tradição escolástica tomista

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FAJE – Faculdade Jesuíta – Belo horizonte MG Faculdade de Teologia CURSO: ÉTICA TEOLÓGICA SOCIAL – 1/2013 Prof. Élio Estanislau Gasda (Texto «ad usum privatum») TRADIÇÃO ESCOLÁSTICA – TOMISTA Idade Média - Cristandade Existe uma correlação entre o contexto medieval e o discurso moral escolástico, tendo em conta que o mesmo estava muito influenciado pela Igreja. A reflexão moral de caráter mais científico começa a dar os primeiros passos e alcança seu auge em Tomás de Aquino. Em uma Europa eminentemente religiosa, a cristandade é o elemento fundamental para a compreensão deste longo período da história. Existe uma religião única, uma ideologia comum e uma mesma escala de valores. Durante todo o período de cristandade, a formação social está demarcada pela orientação religiosa: o tempo de viver, a economia, a estrutura social, o trabalho. Economia medieval subordinada ao influxo da Igreja e do Estado. A teoria social justificava a condição social de cada individuo: cada um tem sua função neste mundo e deve cumpri-la fielmente se deseja a salvação. O sistema econômico-social encontrava assim sua justificação A sociedade estava organizada nas chamadas ordens: nobreza, clero e camponeses: oratores, bellatores e laboratores. As questões sociais e econômicas são tratadas quando se expõem a virtude da justiça. Apoiados em Aristóteles, os teólogos adotam o instrumental jurídico do direito romano e do direito eclesiástico para expor seu pensamento. TOMÁS DE AQUINO (1225-1274): A centralidade da justiça Principio fundamental: dignidade humana Principio bíblico da dignidade (dignitas) humana: “uma imagem de Deus”(Summa Theologica, II-II, q. 66, a.1): “Todos os homens que nascem de Adão devem ser considerados como um único homem, de modo que no direito civil todos os que são de mesma comunidade se considerem como um corpo, e a comunidade inteira como um homem” (I-II, q. 81, a.1). Cada ser humano deve contribuir para a realização desta meta. 1

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Page 1: Tradição Escolástica tomista

FAJE – Faculdade Jesuíta – Belo horizonte MGFaculdade de Teologia

CURSO: ÉTICA TEOLÓGICA SOCIAL – 1/2013Prof. Élio Estanislau Gasda(Texto «ad usum privatum»)

TRADIÇÃO ESCOLÁSTICA – TOMISTAIdade Média - CristandadeExiste uma correlação entre o contexto medieval e o discurso moral escolástico, tendo em conta que o mesmo estava muito influenciado pela Igreja. A reflexão moral de caráter mais científico começa a dar os primeiros passos e alcança seu auge em Tomás de Aquino. Em uma Europa eminentemente religiosa, a cristandade é o elemento fundamental para a compreensão deste longo período da história. Existe uma religião única, uma ideologia comum e uma mesma escala de valores. Durante todo o período de cristandade, a formação social está demarcada pela orientação religiosa: o tempo de viver, a economia, a estrutura social, o trabalho. Economia medieval subordinada ao influxo da Igreja e do Estado. A teoria social justificava a condição social de cada individuo: cada um tem sua função neste mundo e deve cumpri-la fielmente se deseja a salvação. O sistema econômico-social encontrava assim sua justificação A sociedade estava organizada nas chamadas ordens: nobreza, clero e camponeses: oratores, bellatores e laboratores. As questões sociais e econômicas são tratadas quando se expõem a virtude da justiça. Apoiados em Aristóteles, os teólogos adotam o instrumental jurídico do direito romano e do direito eclesiástico para expor seu pensamento.

TOMÁS DE AQUINO (1225-1274): A centralidade da justiça

Principio fundamental: dignidade humana

Principio bíblico da dignidade (dignitas) humana: “uma imagem de Deus”(Summa Theologica, II-II, q. 66, a.1): “Todos os homens que nascem de Adão devem ser considerados como um único homem, de modo que no direito civil todos os que são de mesma comunidade se considerem como um corpo, e a comunidade inteira como um homem” (I-II, q. 81, a.1). Cada ser humano deve contribuir para a realização desta meta.

Existe a mesma relação entre o fim do homem em geral e todo o gênero humano, e o fim último deste homem. Assim, havendo a natureza dado um único fim ao conjunto de todos os seres humanos, é preciso que a vontade deste homem em particular se estabeleça também como fim último (I-II, q. 1, a.5, 43). Dignidade humana: fundamento da sociedade: direito à existência, vida digna, família, participação na vida social, acesso à verdade, ao bem, à felicidade, à religião (I-II q. 94, a.2, 732).

Justiça

Tomás é o primeiro teólogo em construir um tratado sobre a justiça e integrá-lo dentro de uma síntese teológica. Seu pensamento sobre as questões sociais se situa em dois níveis:

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escritos estritamente sociopolíticos: De regimine principum, Política, Ética a Nicômaco; estritamente teológicos: Summa Contra Gentiles, Summa Theologica.

O tratado da justiça constitui uma das suas elaborações mais pessoais, mesmo que as fontes predominantes aduzidas no sed contra sejam Aristóteles (384-322 a.C.) - “o Filósofo” - com o seu tratado “Ética a Nicômaco” (Livro V sobre a justiça), M. Túlio Cícero (106-43 A.C.) com a obra “Sobre os deveres”, Isidoro de Sevilha (570-636) com as “Etimologias (Livro V: “Acerca das leis e dos tempos”) e o Código Justiniano no qual, sob a ordem do Imperador Justianino I (527-565), são reunidos extratos dos 39 jurisconsultos sobre questões jurídicas.

Na ST, a moral se divide em dois blocos: a moral em geral (I-II) e a moral concreta (II-II). O segundo bloco se organiza em torno da categoria «Virtude». A justiça pertence às virtudes “morais” (I-II q.58), às virtudes “cardeais” (I-II q.61), a principal dentre as virtudes morais (I-II q.66, a.4; II-II q.58, a.12). O Tratado “De justitia” (ST II-II qq. 57-122) é o maior dos sete tratados sobre as virtudes: A justiça é a mais excelente por estar mais próxima da razão.

Origem teológica da justiça: A vontade humana é um reflexo da Bondade divina: “Deus move os seres para a unidade, dando-lhes o mesmo ser e as outras perfeições, lhes une a si” (Suma contra gentiles I, livro I, cap. 91). Esta identidade originária torna natural que todos se sintam solidários e irmanados. A benevolência é congênita ao homem e constitui o fundamento de todo humanismo. O bem do outro se converte em um bem para mim, um bem comum. O amor é a força que incorpora o outro a mim, respeitando-o como a mim mesmo” (ST I, q. 20, a. 1 ad 3, 190): Homo homini naturaliter amicus (ST II-II, q. 114, a. 1).

Que é a Justiça? De um lado, tem-se a definição dos juristas: “justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um seu direito” (iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum unicuique tribuens); de outro lado, a definição aristotélica: “justiça é um hábito que dispõe a realizar o justo e pelo qual se realizam e se desejam as coisas justas (est habitus a quo sunt aliqui operativi iustorum, et a quo operantur et volunt iusta (Ética a Nicômaco, Livro V, cap. 1).

O ATO DA JUSTIÇA: A CADA UM O SEU (ST IIa-IIae, q. 58, a. 11)

A matéria da justiça é a operação exterior (a.8 e 10) que, por si mesma ou pela realidade da qual ela se serve, é proporcionada a outra pessoa à qual somos ordenados pela justiça. Ora, diz-se que pertence a uma pessoa aquela coisa que lhe cabe em uma igualdade de proporção; por essa razão, o ato próprio da justiça consiste em dar a cada um o seu (iustitiae actus non est reddere unicuique quod suum est).

Sentido da definição da justiça (dar a cada um o seu). O termo “o seu” é uma tradução do “ius suum” da definição romana da justiça, sendo respaldada pelos testemunhos da Antiguidade. Cícero, por exemplo, afirmou que a justiça consistia no “suum cuique tribuere”. Segundo a solução clássica, formulada por Tomás de Aquino, na fórmula da

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justiça, dar a cada um o seu, o seu é o justo concreto; é aquela coisa que a virtude da justiça impele a dar a outro por constituir o seu. Em outras palavras: o justo é o seu de cada qual, o seu direito, aquilo que a justiça dá.

A justiça se coloca, em primeiro lugar, a vontade, para explicar que o ato da justiça deve ser voluntário; em seguida, acrescenta ‘a constância e a perpetuidade’, para indicar a firmeza do ato. Esta definição da justiça está assim completa, exceto o fato de que se coloca o ato no lugar do hábito, uma vez que é o ato que o especifica. Se se desejasse colocar esta definição em uma forma lógica perfeita, seria preciso dizer que ‘a justiça é um hábito graças ao qual o homem dá a cada um o seu direito com vontade constante e imutável’. Tal definição se aproxima muito daquela de Aristóteles: ‘a justiça é um hábito pelo qual se diz que alguém age escolhendo aquilo que é justo’.

JUSTIÇA E ALTERIDADE (ST IIa-IIae, q.58, a. 2)

A IGUALDADENa q.57, a.1, o termo justiça implica a igualdade, razão pela qual a noção mesma de justiça faz referência ao outro. De outro lado, é tarefa da justiça conferir retidão aos atos humanos (Ia-IIae, q.60, a.2), com a consequência de que esta alteridade postulada pela justiça seja de diferentes sujeitos capazes de agir. De fato, as ações não se atribuem às partes nem às formas ou às potências, mas às pessoas e àquelas que formam um todo . Não se diz, falando propriamente, que a mão golpeia, mas, sim, o homem, servindo-se da mão; nem é exato afirmar que o calor esquenta, mas, sim, o fogo por meio do calor: trata-se de frases que se usam em sentido figurado.

Objetivo da justiça: A igualdade conforme as exigências da natureza humana. Sua ausência concretizada pela injustiça assemelha-se a uma gravíssima enfermidade psíquica: a falta de saúde mental ou loucura é a corrupção da saúde. O corpo perde a saúde perdendo o equilíbrio humano normal. Desfrutar do sofrimento alheio ou abandonar o outro ao seu sofrimento é insano e desumano (ST II-II, q. 157, a. 3).

A ALTERIDADEA justiça entendida em sentido exato postula diversidades de sujeitos, e não há justiça senão de um homem em relação a outro homem. A fonte imediata é a definição de M. T. Cícero (106-43 a.C.): a justiça “é aquela razão pela qual se mantém a sociedade dos homens entre si e também a comunidade da vida” (De officiis, cap. 7). A relação de justiça é uma relação que tem a nota de alteridade, também chamada intersubjetividade. Isto significa que a relação de justiça requer dois ou mais sujeitos em posição distinta e complementar; um ou uns como credores, outro ou outros como devedores. Sendo a justiça em dar a cada um o seu direito, a relação de justiça requer necessariamente pelos menos dois sujeitos: o titular do direito e o devedor. Ambos os sujeitos ou grupos de sujeitos se encontram unidos por uma relação obrigatória ou vinculante, ou seja, por um vínculo de natureza pública. Assim, na relação de justiça se compõem os seguintes elementos: a) os sujeitos; b) o vínculo jurídico; c) o conteúdo ou situações jurídicas (direitos subjetivos, deveres, faculdades, poderes, etc.).

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Função primordial da justiça: ordenar o complexo mundo de relações de amizade inter-humanas: “É próprio da justiça ordenar ao homem nas coisas relativas ao outro” (II-II, q. 57, a.1). O outro pode ser tanto o individuo quanto a sociedade. A justiça nasce da e para a sociedade, está baseada na existência de um interlocutor de mesma natureza. Neste sentido, justiça é a retidão da ordem (ST I-II, q. 113, a. 1). A amizade confia à justiça seu próprio ordenamento. A “amizade” deve informar as relações especificamente políticas: amicitia concivium. (ST II-II, q. 26, a. 8).

“A desigualdade não cabe na benevolência da amizade” (II-II, q. 26, a. 6). “O individuo é parte da sociedade, portanto, pertence à ela em que ela é e naquilo que ela tem” (I-II, q. 96, a. 4). O compromisso com o bem comum realiza o fim para o qual está orientado e faz cumprir a justiça: suum cuique tributere. Cumprir a justiça conduz à paz (ST II-II, q. 180, a. 2). A justiça busca o que é conveniente por direito não apenas ao individuo, mas à coletividade. Tradição bíblica: justiça-caridade-paz: “A paz é produto da justiça indiretamente, ou seja, em quanto elimina os obstáculos para a paz; porém é obra da caridade diretamente, porque a caridade, de acordo com sua própria razão, gera a paz” (II-II, q. 29, a. 3).

JUSTIÇA, LEI E DIREITO

O estudo da justiça se consolida dentro do estudo do Direito e da Lei. Uma vez estabelecida a essencialidade do aspecto de “alteridade” fundamental da justiça, Tomás de Aquino passa a considerar um segundo “outro”, além do indivíduo: trata-se da comunidade. Tal relação indivíduo-comunidade tem um aspecto de globalidade (virtude geral), considerando, porém, que a comunidade é aquela que promove o bem comum do qual é também a expressão; como tudo aquilo que diz respeito à comunidade como Estado é regulado pelas leis, este tipo de justiça que se apresenta como geral é também justiça legal, na medida em que toda ação do indivíduo no âmbito estatal é regulada pelas leis.

Influencia de Aristóteles

Conforme Aristóteles, a justiça está intimamente ligada à vida em sociedade Onde, “o justo também será aquele que respeita a lei e que é equitativo” 1. Sua teoria da justiça parte de uma definição de sentido comum da sua época: "A justiça (dikaiosyne) é a virtude que nos leva (...) a desejar o que é justo (dikaion)” 2. Dikaion significa tanto o legal (nomimon) como o igual (ison). Esta distinção aponta para dois tipos de justiça manifestada na linguagem - legal/igual e estabelece dois modos de se estabelecer o que é devido a outrem: pela lei ou pela igualdade.

Pela lei tem-se a justiça geral, no qual ato justo é aquele que se exerce em conformidade com a lei. Seu objeto –lei- são os deveres em relação à comunidade e ao bem da pólis.3 Ações legais são ações justas, na medida em que atribuem à comunidade aquilo que lhe é devido. O termo "geral" refere-se à sua abrangência: todos os atos,

1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1991.2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1, 1129ª.3Id., op. cit. v. 1, 1129b.

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independentemente da sua natureza, na medida em que são devidos à comunidade, constituem deveres de justiça.

Além da justiça geral orientada pela lei, tem-se a justiça particular, aquela em que o padrão do que é devido é dado pela noção de igualdade. A justiça particular subdivide-se em justiça distributiva e justiça corretiva.

Justiça distributiva: justiça "que se exerce nas distribuições de honras, dinheiro e de tudo aquilo que pode ser repartido entre os membros do regime (politeia)”.4 Considera-se uma qualidade pessoal do destinatário ou encargo, apreciável segundo o regime adotado pela comunidade.

Justiça corretiva: justiça “que exerce uma função corretiva nas relações entre os indivíduos”.5 Visa o restabelecimento do equilíbrio nas relações privadas, voluntárias (contratos) e involuntárias (ilícitos civis e penais). O sujeito do restabelecimento da igualdade é o juiz, concedendo algo à vítima (que perdeu algo), e tirando algo do agressor (que ganhou algo) "6.

Tomás de Aquino dá continuidade à tradição aristotélica, acrescentando-lhe elementos do Direito Romano. Para designar a justiça geral (aristotélica), Tomás utiliza o termo justiça legal, uma vez que os atos devidos à comunidade para que esta alcance o bem comum, estão, na maior parte dos casos, dispostos em lei.

Justiça legal ou geral: regula as relações dos cidadãos com a sociedade: visa garantir a ordem social mediante uma legislação justa.

JUSTIÇA LEGAL COMO VIRTUDE GERAL (ST IIa-IIae, q.58, a.5) ordena o homem em relação ao outro de dois modos: primeiramente, considerando o outro como pessoal singular; em segundo lugar, considerando o outro socialmente, isto é, enquanto aquele que serve a uma comunidade; por isso mesmo serve a todos os indivíduos que a compõem. A justiça pode referir-se a ambos os casos, segundo sua própria natureza.

Todos aqueles que integram alguma comunidade se relacionam com a mesma, do mesmo modo que as partes com o todo: em consequência qualquer bem da parte é ordenável ao bem do todo. Portanto, o bem de cada uma das virtudes, ora ordene o homem para si mesmo, ora ordene para outras pessoas singulares, é susceptível de ser referido ao bem comum, ao qual nos ordena a justiça. Pode-se dizer que os atos de todas as virtudes pertencem à justiça, na medida em que esta ordena o homem ao bem comum. É a justiça como virtude geral.

Conceito de Legal

Ordenar ao bem comum é tarefa da lei (Ia-IIae, q.90, a.2), daí por que tal justiça, que é geral no sentido explicado, é dita justiça legal (iustitia legalis), isto é, por meio dela o 4 Id. V, 2, 1130b. 5 Id. V, 2, 1131a.6Id. V, 4, 1132a.

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homem se coloca em harmonia com a lei que ordena os atos de todas as virtudes ao bem comum. Todas as virtudes colaboram na adaptação do individuo na vida social (I-II, q. 69, a. 5); porém, a que efetiva imediatamente sua inserção no todo é a justiça: ela está implantada no instinto de solidariedade e o aperfeiçoa. “A virtude do bom cidadão, a que orienta como convém ao bem comum, é a justiça legal” (ST II-II, q. 58, a. 6). A justiça legal não esgota o conceito de justiça. É necessária a justiça particular: uma justiça que regule diretamente aquilo que é devido a membros determinados da comunidade, nas distribuições (justiça distributiva) e nas trocas (justiça comutativa): esta é a justiça particular.

Justiça comutativa: regula as relações entre as pessoas e as entidades privadas: visa o bem concreto do individuo.

Justiça distributiva: regula as relações da sociedade com seus membros (do Estado com indivíduos): visa garantir a igualdade na distribuição dos deveres e direitos.

Lei (ST, I-II, qq. 90-92)

Lex é entendida ora no sentido humano, ora no sentido natural, ora no sentido divino. Diversidade das leis: eterna, natural, humana, divina, lei do pecado (q.91).

Lei eterna : lei de Deus para governar o universo;

Lei natural : participa da lei eterna, uma inclinação natural do ser humano ao fim devido e aos atos que o realizam. A lei natural oferece os princípios mais universais para que o homem, por meio da razão, possa deduzir as leis humanas;

Lei divina (Sagrada Escritura) ajuda ao homem para alcançar seu fim sobrenatural, discernir as incertezas nos juízos sobre as situações imediatas;

Lei do pecado : inclinação humana à sensualidade que confunde os juízos e leva ao mal;

Lei humana : ordenação da razão ao bem comum, promulgada por quem tem o cuidado da comunidade (ST I-II, q. 90, a. 4). Finalidade da lei humana: 1). Garantir o direito; 2).Apoiar na prática da virtude para que se alcance o bem comum; 3). Proporcionar relações de amizade entre os membros da sociedade (I-II, q.105, a. 1).

A lei humana é justa na medida em que se orienta pela racionalidade humana (reflexo da lei natural). As leis humanas, quando são justas, participam da lei eterna, e por isso obrigam em consciência. As leis são injustas quando entram em aberta contradição com o bem humano e possuem fins alheios ou opostos. A lei deve ordenar todos os atos que tem relação direta com o bem comum e que favorecem a formação que conservam a justiça e a paz (I-II, q. 96, a. 3, 750).

Direito (II-II, q. 57)

Objetivo imediato da justiça é fazer cumprir o Direito.

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Divisão do direito: natural , positivo, das nações (povos) Aquilo que não contradiz a lei natural pode converter-se em direito positivo, por decisão humana. O direito das nações ( ius gentium ) é o reconhecimento implícito do direito natural, sancionado pela prática e pelos costumes dos povos. Aquelas que, mesmo quando não estão legisladas, são reconhecidas pelos povos. Não é o direito natural, porque é consenso, tão pouco é de tipo legislativo. O direito de gentes não se reduz ao natural, mas se deriva dele.

Lei natural e Direito natural

Tomás empregue quase indistintamente os termos lei natural e direito natural : A Lei natural rege a totalidade da atividade humana e é causa exemplar do

segundo, sua regra. O Direito natural se aplica ao setor particular das relaciones humanas.

Sendo projeção da lei eterna no tempo humano, o Direito natural se impõe a todos os legisladores humanos (lei positiva e direito das nações): A mesma unidade da humanidade, fundada na identidade da natureza humana, explica a universalidade e imutabilidade de um direito obrigatório para todos. Para compreender o alcance de esta obrigação, deve-se remontar-se a Deus, de quem depende a existência do universo. A criação é a objetivação progressiva dos planos do Criador, a Lei eterna: “Toda lei se deriva da lei eterna na medida em que participa da reta razão” (ST I-II, q. 95, a. 3). A lei eterna é o fundamento de toda a lei, da lei natural e da lei humana.Com sua compreensão de lei, justiça e direito, Tomás é um dos precursores do direito moderno. Mas a situação histórica não lhe permitia ir além.

Algumas aplicações concretas

Apropriação dos bens: A propriedade privada tem seu fundamento em motivos sociais. Os bens estão ordenados à satisfação das necessidades humanas. O modo concreto desta apropriação deve seguir a reta razão. Logo, tanto a propriedade privada como a coletiva e pública não se opõem ao direito natural, mas pertence à racionalidade determinar em cada situação qual é a forma de posse mais adequada para que os bens possam responder a seu ordenamento original.Retomada da distinção aristotélica entre potestas e usus dos bens materiais: a propriedade é privada no tocante à administração (poder de gestão), porém é comum no que concerne ao uso e desfruto.

Preços (fórmula do preço). Medidas para fixar o valor dos bens: a necessidade humana (indigentia) e o dinheiro. Os preços variam de acordo com as necessidades humanas. O preço justo é aquele que se ajusta à equivalência entre o valor de troca das coisas e a soma do dinheiro entregue para adquiri-la. É de difícil determinação. Pode ser corrente, variável, legal, de exceção (II-II, q. 73 a.2 et a.3).

Ambiguidade do mercado: O comércio, considerado em si mesmo (lucro), não tende por natureza a um fim honesto e necessário (II-II, q. 77, a.4). Mesmo que em sua essência não

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contenha nenhum elemento honesto, não significa que seja totalmente contrário à virtude. É licito quando está ordenado ao um fim honesto: sustento da família, socorro dos pobres, interesse público. O clero deve abster-se do comércio por sua natureza.

Usura: Um dos pecados mais graves (II-II q. 78). O dinheiro é um bem improdutivo, não gera riqueza e não passa de um instrumento do mercado. Por isso, só se pode receber licitamente a devolução do mesmo valor emprestado, do contrário, se trataria de vender duas vezes a mesma coisa, vender algo que não existe ou vender algo que não lhe pertence. Só a terra é produtiva.O desprezo pelo enriquecimento pessoal levava ao desinteresse pelas atividades com fins lucrativos e aquelas relacionadas com a moeda, o crédito e as finanças. Coube aos judeus assumirem tais atividades. A ganância em si não é má, mas o comércio ilimitado é contrário à natureza humana. O trabalho é fundamentalmente, um serviço ao próximo, e deixa de ser virtuoso quando busca o enriquecimento individual em primeiro lugar. O importante é o bem comum.

Roubo: Distinção entre furto e rapina: rapina é furto por meios violentos. Licitude do roubo: extrema necessidade, porque tal necessidade torna nosso o que tomamos para sustentar e preservar a própria vida, ou para socorrer a vida do pobre (II-II, q. 78, a.7; cf. II-II q. 32 a.7 ad 3; Sent. 4 d. 15, q. 2, a.1: Quodl. 5, q. 9 a.1 ad 1). Licitude da rapina: quando o Estado deve atuar contra os malfeitores ou contra os súditos que não cumprem as obrigações para com o bem comum (II-II q. 66, a.3; a.5, ad 5).

Restituição: restabelecer, reparar ou repor as coisas a seu estado original (II-II q. 62, a.1): Para salvar-se é necessário preservar a justiça; quem não restitui o injustamente adquirido permanece na injustiça; logo, restituir o que injustamente se tirou de alguém é necessário para a salvação.

Estado e Bem comum

O tema do Estado deve ser interpretado no contexto da organização medieval do poder temporal: é um aparato político onipresente, quase todas as relações sociais dependiam dele. Por isso Tomás o define como sociedade perfeita. (I-II, q. 90, art. 2). A idéia de perfeição se aplica às funções realizadas, e não ao exercício do direito e da justiça. Uma das funções do Estado é colaborar com a Igreja na salvação das almas. O Estado não pode ser considerado como fruto do pecado original. O Bem comum compete ao Estado, porque os indivíduos, por separado, já buscam seu próprio bem. O Estado é a única instituição humana cuja tarefa se refere ao conjunto das pessoas. Por esta razão o bem comum é anterior ao bem privado dos indivíduos na hierarquia de valores, tem caráter universal e participa em maior grau da ordem da criação. Por tanto, ao possuir uma finalidade mais ampla, o Estado é a mais perfeita das instituições humanas. Logo, não existe contradição entre o bem público e o bem privado: o individuo é um membro da sociedade (II-II, q.47, a.10). Tomás não define bem comum com exatidão.

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Escola de Salamanca e Direito Internacional

“A consciência cristã aflorava com valentia profética nesta cátedra de dignidade e liberdade que foi a Escola de Salamanca, a escola de Vitoria” (João Paulo II, Sto. Domingo Discurso inaugural da IV Conferencia).

Um dos períodos mais produtivos da historia da moral social: Renascimento tomista e Escola de Salamanca. O Humanismo era um ideal. Preocupação pelo exercício do poder político, a inclinação pela conquista de territórios em busca de mais poder e riquezas. Reflexão a partir dos fenômenos históricos. Coragem e criatividade dos teólogos.

Tratados De Justitia et Jure: uma integração dos estudos interdisciplinares integrados pelas ciências jurídicas, pela teologia e o Direito Canônico. Estes tratados assumiram como tarefa o estudo dos problemas sociais, econômicos e políticos. Pensar teologicamente em um novo contexto histórico: a base antropológica do humanismo (Petrarca, Erasmo, Vives, Pico de Mirandola); humanismo utópico (Utopia, de Tomás Moro; Cidade do Sol, de Campanella; Nova Atlântida, de Bacon); o método de estudo teológico da Companhia de Jesus (Ratio Studiorum), a reforma do clero do Concilio de Trento; novas espiritualidades (Inaciana, Santa Tereza, São João da Cruz); o acontecimento da conquista da América, a Reforma Protestante.

Renascimento Tomista (segunda escolástica): O retorno ao pensamento de Tomás de Aquino especial interesse para Moral Social: tratados De justicia et Jure dos séculos XVI-XVII: comentaristas da Suma Teológica, especialmente as qq. 57-79 da II-II. Iniciador: Domingos de Soto. Estudos interdisciplinares (filosofia, ciências jurídicas, teologia, direito canônico) assumiram como tarefa a abordagem de problemas sócio-político-econômicos a partir das categorias Direito e Justiça.

Espanha: condições políticas e econômicas, escolas de teologia com abertura e criatividade: Domingos de Soto (+1560), Luis de Molina (+1600), Gabriel Vázquez (+1604), Francisco Suárez (+1617), Juan de Lugo (+1660). (Itália: Antonino de Florença(1389-1459) dominicano, bispo de Florença: Summa Sacrae Theologiae).

Escola de Salamanca: grupo de teólogos e uma corrente de teologia do s. XVI, vinculados à Universidade de Salamanca e com enfoque metodológico no renascimento tomista. Teólogos dominicanos Francisco de Vitoria (1473-1546) e Domingos de Soto (1495-1560). Outros: Melchior Cano, Bartolomé de Medina.

Francisco de Vitória (Burgos, 1473-1546)

Obras principais: Relectio De potestatis civili (1528); Relectio De potestate papae et concilii (1534); Relectio de Indis o libertad de los indios (1539); Relectio de iure belli o Paz dinámica (1539); Comentarios a la Secunda secundae de Santo Tomás; Fragmentos de relecciones: De regio Christi; De temperantia.

“Vejo como uma grande reprovação que nestes tempos em que nossos próximos e irmãos e morrem de fome, exista alguém tentando enriquecer. Porém, em quanto ao ponto se peca

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mortalmente quem de novo encareça o preço do pão, e realmente o encarecesse notavelmente, eu não saberia como inocentá-lo”.

O maior teólogo moralista do Renascimento, iniciador e catedrático da Escola de Salamanca (1526-1546). Formação escolástica com interesse na cultura clássica, conectado aos problemas fundamentais da época: relações internacionais, moral dos estados nacionais emergentes e seus vínculos com a Igreja, a conquista, colonização e evangelização da América, etc. A teologia uma ciência que deve ocupar-se do conjunto da existência: “O oficio do teólogo é tão vasto que argumento algum, debate nenhum e nenhuma matéria são estranhos ao teólogo” (De Potestate civili).

Direito internacional e teoria da Guerra justaConflitos entre as nações como preocupação moral (contexto histórico da rivalidade entre príncipes cristãos de Espanha e França e o confronto com os turcos). Interesse: possibilitar uma paz de justiça para uma Europa tomada pela violência: “Sendo uma nação parte de todo o orbe (...) se a guerra fosse útil a uma província ou a uma república com dano do orbe, penso que por isso é injusta” (De Potestate civili).

Universalidade do direito de gentes : constituído por um pacto entre a maior parte do orbe. Qual é seu sujeito? As nações ou as pessoas particulares que a constituem? Nem a autoridade papal nem o imperador podem erigir-se autoridades de um direito mundial. É necessário fundar outro tipo de relações entre os Estados. O direito de gentes é um produto da autoridade das nações do mundo. O direito de gentes se funda no direito natural, está na origem do acordo entre todos os homens.

A obrigatoriedade que estabelece o direito de gentes não significa subordinação de umas nações a outras. É um direito que se estrutura como doutrina neutra, estabelecida sob o império da lei e da justiça entre as nações. Não é possível aceitar qualquer norma como produto de acordo de várias nações, se a mesma prejudica alguma outra. O bem comum do orbe é o princípio que deve seguir-se no momento de impor normas de direito. Como no caso da república, o bem da orbe está por em cima do bem das nações particulares (De Potestate civili). Existe uma primazia das comunidades internacionais sobre os indivíduos quando se trata de estabelecer normas de comportamento universais ante determinadas situações (guerra, socorrer oprimidos, imigrantes...).

“O direito de gentes não somente tem força pelo pacto e convênio entre os homens, mas tem verdadeira força de lei. Todo orbe, que de certa maneira forma uma república, tem poder de dar leis justas e convenientes a todos. Pecam mortalmente os que violam os direitos de gentes, seja de paz, seja tocante à guerra e nos assuntos como a inviolabilidade dos pactos. Nação alguma pode dar-se por desobrigada ante o direito de gentes, porque está dado pela autoridade de todo orbe” (De potestate civili).

A violação dos direitos, também do direito de gentes, constitui uma injustiça, as nações podem servir-se da guerra como forma de reclamação do direito violado. A violação do direito de gentes exige uma sanção que vá mais além do aspecto moral que impõem sua

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Page 11: Tradição Escolástica tomista

obrigatoriedade. Esta sanção é a guerra, mas não qualquer guerra, mas aquela que tem por finalidade o bem mais universal. A guerra é resposta a um ato injusto (De iure belli). É um instrumento dos inocentes para defender seu direito.

A guerra é a forma de se manter a existência de uma ordem internacional baseada na justiça

Um direito só pode ser efetivado quando existe um respeito coletivo para com ele; se a guerra não for utilizada para sua preservação, este não teria validez, pois não seria respeitado por aqueles que não o consideram. A guerra como elemento de justiça é uma guerra lícita: corrigir injustiças e pacificar desavindos. Deve-se utilizar esta sanção com prudência e moderação. A crueldade da guerra exige a certeza quase absoluta do governo acerca da injustiça cometida. Os governos devem ponderar a magnitude da injustiça cometida, pois, do contrário, se corre o risco de criar maiores violações do direito que aqueles que se pretendia reparar. Se o governante tem dúvidas a respeito, jamais deve iniciar uma guerra (De iure belli). Guerras por motivos duvidosos ou injustos são pecados contra Deus (De iure belli). A injustiça é a única causa razão para a guerra: “Seria impossível a manutenção da tranquilidade na terra e a situação geral da orbe seria caótica se os tiranos, os ladrões e os sequestradores pudessem impunemente cometer seus crimes e oprimir a justos e inocentes, e não fosse lícito aos inocentes ajustar contas com os culpados(De iure belli).

F. Vitoria se ocupou da guerra precisamente pelos sofrimentos infligidos aos inocentes. O inocente necessitado de defesa se concretizava nos habitantes das Índias ante as notícias de sacrifícios humanos em Yucatán (De temperantia e De indiis): Nestes casos, é licito intervir externamente? Aqui se aplica o principio da comunidade universal na defesa e proteção dos direitos fundamentais das vítimas. O direito de intervenção somente se justifica quando se trata de defender o direito violado de inocentes. É a única exceção ao direito de soberania: violar a dignidade de um só representa violação a toda comunidade humana (De Potestate civili).

SOARES, Afonso M. Ligorio; PASSOS, João Décio (orgs.). Teologia e Direito: o mandamento do amor e a meta da justiça. São Paulo: Paulinas, 2010.

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