traco e ruina na obra de nuno judice

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1 TRAÇO E RUÍNA NA OBRA DE NUNO JÚDICE Maria João Cantinho Professora Auxiliar do IADE (Lisboa) [email protected] §1 No seu texto «Le Murmure», escreve Francis Ponge: “a função do artista é assim bastante clara: deve abrir uma oficina e aí tomar em reparação o mundo, fragmento a fragmento, tal como ele lhe aparece. Não por que se tenha por um mágico. Apenas como um relojoeiro.” (PONGE 1971, 193). A minúcia é uma arte que se forja na paciência e, na tarefa poética, no trabalho incansável e na astúcia, ao nível da produção dos seus efeitos. É neste quadro, o de uma tarefa de reparação minuciosa e metódica 1 , que se instaura a poesia de Nuno Júdice, incansável obreiro e que assume a sua obra poética como o resultado de um trabalho oficinal, diário e metódico. E é também neste contexto, o de uma reparação do mundo, que lhe reconheço a tonalidade saturnina que irradia em toda a sua obra, podendo aludir-se a uma espécie de luz crepuscular que convoca elos secretos, cifras de um universo assombrado e arruinado e que nos remete para uma configuração peculiar da estética e da crítica literárias, isto é, resultante dessa exigência de “reparação” do mundo e essencialmente da memória das coisas, num sentido alegórico, tal como se explicará adiante. Por detrás do olhar de reconhecimento de um mundo fragmentado, esconde-se essa vontade de restituição de sentido, que é irrecusável no poeta, esse desejo de fazer “parar o tempo”, para salvar as coisas arruinadas. Desde os seus primeiros livros que o poeta procura dar-nos conta de um mundo em que se reconhece a perda, não só do mundo e da experiência, como das próprias certezas, das ideologias e da linguagem. E quando me refiro à perda, remeto também o leitor para a ideia de uma ausência que se encontra sempre presente na sua poesia: seja a ausência do amor ou de uma harmonia primordial, que se apresenta aqui fragmentada (e fragmentária), tal como o poeta refere no poema “Princípio de Retórica”:

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    TRAO E RUNA NA OBRA DE NUNO JDICE

    Maria Joo Cantinho

    Professora Auxiliar do IADE (Lisboa)

    [email protected]

    1

    No seu texto Le Murmure, escreve Francis Ponge: a funo do artista assim

    bastante clara: deve abrir uma oficina e a tomar em reparao o mundo, fragmento a

    fragmento, tal como ele lhe aparece. No por que se tenha por um mgico. Apenas como

    um relojoeiro. (PONGE 1971, 193). A mincia uma arte que se forja na pacincia e, na

    tarefa potica, no trabalho incansvel e na astcia, ao nvel da produo dos seus

    efeitos. neste quadro, o de uma tarefa de reparao minuciosa e metdica1, que se

    instaura a poesia de Nuno Jdice, incansvel obreiro e que assume a sua obra potica

    como o resultado de um trabalho oficinal, dirio e metdico. E tambm neste

    contexto, o de uma reparao do mundo, que lhe reconheo a tonalidade saturnina que

    irradia em toda a sua obra, podendo aludir-se a uma espcie de luz crepuscular que

    convoca elos secretos, cifras de um universo assombrado e arruinado e que nos remete

    para uma configurao peculiar da esttica e da crtica literrias, isto , resultante dessa

    exigncia de reparao do mundo e essencialmente da memria das coisas, num

    sentido alegrico, tal como se explicar adiante. Por detrs do olhar de reconhecimento

    de um mundo fragmentado, esconde-se essa vontade de restituio de sentido, que

    irrecusvel no poeta, esse desejo de fazer parar o tempo, para salvar as coisas

    arruinadas.

    Desde os seus primeiros livros que o poeta procura dar-nos conta de um mundo

    em que se reconhece a perda, no s do mundo e da experincia, como das prprias

    certezas, das ideologias e da linguagem. E quando me refiro perda, remeto tambm o

    leitor para a ideia de uma ausncia que se encontra sempre presente na sua poesia: seja

    a ausncia do amor ou de uma harmonia primordial, que se apresenta aqui fragmentada

    (e fragmentria), tal como o poeta refere no poema Princpio de Retrica:

  • 2

    Na poesia, a perfeio tem o nome de/ harmonia; pelo menos na esttica

    clssica ()/Na/poesia, porm, essa regra nem sempre se/verifica; e ver-se-, na anlise

    do poema, a dissonncia entre as palavras e o mundo/quebrar a vontade da

    beleza/quebrar a vontade de beleza, e trazer/de volta a inquietao do inacabado,

    ou/do que nunca chega a comear. (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 380)

    Esta dissonncia entre as palavras e o mundo que quebra a vontade da

    beleza uma condio essencial que move e alimenta a escrita e, em particular, a

    potica de Nuno Jdice, de forma bem assumida na sua obra. E tambm aqui expressa

    a ideia de que o verso no faz seno romper essa totalidade,/lembrando na insistncia

    da slaba a/pura impossibilidade do regresso (Idem). Desde logo, o percurso judiciano

    inscreve-se neste princpio de irrevocabilidade do passado e de um regresso a um

    passado. No entanto, o poeta reserva memria esta tarefa de restaurao daquele, no

    sentido em que essa memria concentra no poema o indcio ou a marca do ocorrido. A

    recordao restitui, como sabemos, essa possibilidade do passado, como Walter

    Benjamin bem explica na clebre carta que escreve a Adorno, em que diz o seguinte: O

    que a cincia constatou, a rememorao pode transformar. A rememorao pode

    transformar o que inacabado (a felicidade) em qualquer coisa de acabado e o que

    acabado (o sofrimento) em qualquer coisa de inacabado.2. Tambm a potica judiciana

    anseia por esta tarefa de restituio do passado, pela rememorao, como fica claro,

    ainda, nesse mesmo poema: No h aqui repetio, mas a nostalgia/do nico, um

    arqutipo que se confunde com a imagem/inscrita no fundo da memria, de que

    todas/as outras constituem o reflexo degradado. (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-

    2000 2000, 380).

    Teresa Almeida, na introduo de Poesia Reunida (p. 34), relembra o contexto

    da chegada de Nuno Jdice poesia portuguesa, numa poca de intensa efervescncia

    cultural e poltica, em que o poeta conviveu, no apenas com a poesia do neo-realismo

    (sobretudo Carlos de Oliveira), mas tambm do surrealismo e com a potica de Sophia

    Mello Breyner Andresen, David Mouro Ferreira, Ruy Belo, Gasto Cruz, Herberto

    Helder, entre outros. Recusando tanto o neo-realismo quanto os experimentalismos,

    podemos afirmar que o seu percurso claramente inovador na utilizao de um

    discurso prprio (Ibidem) e uma conscincia aguda do fenmeno potico (Ibidem). O

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    poeta reagia essencialmente ao carcter militante do neo-realismo, afirmando a

    absoluta inutilidade da poesia e a sua autonomia absoluta. Pode dizer-se que Nuno

    Jdice jamais perfilhou a ideia de que a poesia deva submeter-se a qualquer ideologia

    e, para ele, o poema no tinha outra justificao que no fosse ele prprio (Ibidem),

    numa contra-corrente do que foram os anos pobres de uma poesia panfletria,

    sobretudo no ps-revoluo. Durante esse perodo, a sua poesia concentrava um gesto

    subversivo, indo na contramo e proclamando o triunfo absoluto da poesia sobre o

    mundo, o seu carcter sagrado, a sua dimenso sobrenatural num mundo onde a

    ausncia de Deus se fazia sentir. (Ibidem, p 35).

    Desde os seus primeiros livros que Nuno Jdice toma a poesia como objecto de

    reflexo terica, algo que se inicia logo no seu livro A Noo de Poema, reflexo que se

    torna cada vez mais precisa e se centra na prpria experincia potica, ao confrontar-se

    com o acto da escrita. Em O Pavo Sonoro diz assim:

    Ao apresentar a narrativa exacta do que aconteceu, descubro/ que tambm aqui

    no tenho nenhum objectivo, nenhum/pretexto, nenhum facto que justifique o poema.

    Mas ele/ existe apesar disso. E por isso mesmo que, sem arte/potica e sem

    argumentos, o apresento e mantenho. (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000,

    180).

    Forma radical de questionamento e tambm enigmtica, a sua origem revela-se

    como um mistrio. E esse mistrio joga-se na relao do sujeito lrico com a prpria

    transcendncia da linguagem e da poesia, que reclama do poeta a imerso. Ao mesmo

    tempo, faz-se imperioso o afastamento do quotidiano, como ele o escreve no poema

    As Inumerveis guas, que d o ttulo ao livro:

    () Obtive assim um estranho universo,/que no o reflexo ou a imagem deste

    ()/despertando-me da letargia/ da vida comum, incitando-me ao contacto fsico/ com

    essas outras realidades essenciais e primitivas. (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000

    2000, 157).

    A pregnncia das imagens e das figuras define a fora imagtica da sua poesia,

    cujo ritmo o da natureza e dos seus elementos, em particular a presena obsessiva do

    mar, aproximando-se aqui de uma linguagem romntica3 e simbolista4, inscrevendo-se

    assim numa tradio lrica que no se limita apenas ao classicismo, mas que se integra

  • 4

    numa teia intertextual que percorre toda a histria da literatura ocidental. A

    aproximao ao simbolismo e ao seu imaginrio de um universo decadente torna-se

    mais notria com A Partilha dos Mitos (1982) e A Lira de Lquen (1985), em que a

    explorao das imagens das mulheres mortas e de um universo contaminado pela

    doena e pela morte se fazem sentir ainda mais, reforando-se assim a componente

    mais mrbida e alegrica.

    Na obra de Nuno Jdice, o mar, lugar privilegiado pelo sujeito lrico, no nos

    aparece como um espao luminoso e salvfico (como aparece em outras poticas de

    contemporneos seus), mas o lugar do naufrgio e da catstrofe, dos temporais e da

    prpria morte. Limiar ou passagem, remete para a tenso entre a viagem e a

    permanncia, pela evocao de lugares de partida ou de chegada: os portos, os cais.

    Espao de sonho e de deambulao onrica, mas tambm de pesadelo, de errncia

    contnua e de inquietao constante, nas figuras dos bbados e das prostitutas, dos

    nmadas ou viajantes sem destino, acossados pela vida. O uivo da morte ou o vento que

    percorre as costas desabrigadas traz consigo essa imagem constante da catstrofe.

    Prevalece ainda um registo nocturno da imagem, que confere essa dimenso saturnina

    sua poesia. O universo potico de Jdice o de uma descida ao mundo inconsciente,

    para dele extrair novas ligaes e conexes que o real no deixa ver. Uma tcnica que o

    surrealismo privilegiou, para explorar todas as potencialidades do sonho e da vida

    simblica das suas imagens. Trata-se de mergulhar nesse mundo informe para, a partir

    da descoberta das conexes enigmticas entre os seus elementos, lhe dar forma.

    Poderamos, ainda, falar numa experincia do sublime5, no sentido em que ela brota

    desse abrasamento dos limites, isto , a imaginao soobra no abismo da razo e

    obtm, nesse combate com os limites, uma fruio esttica. H, na poesia de Jdice,

    esse estremecimento que ressalta do reconhecimento da incomensurabilidade do caos

    e da informidade da matria.

    Este tambm o mundo em declnio, em que a morte invade a vida, sob as mais

    variadas formas (e imagens). Um mundo de fantasmas que nos perseguem e nos

    assombram, como o diz o poeta, por diversas vezes, aludindo ao modo como eles nos

    chamam pelos nomes/ familiares (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 267). No

    seu poema Decadncia, Nuno Jdice evoca essa condio de perda da experincia e

  • 5

    do arrastamento da prpria perda da linguagem, dizendo: Quando um mundo acaba,

    no s o vazio que/enche os nossos com o seu peso de dvida;/tambm as palavras

    se desfazem no esprito/que interroga o passado. (Idem, p. 569). Essa interrogao do

    passado, como o sujeito lrico o diz, no mesmo poema, oferece como resposta um seco

    silncio (Ibidem). A ideia de um sujeito lrico, que se reconhece como uma sombra

    sem memria, logo no primeiro livro, A Noo de Poema, perdido entre as

    recordaes e as relquias6, como parte de um outro/tempo e de outra gente,

    crepsculo sem noite nos lugares abandonados assumida como uma condio

    potica que se repercute em toda a obra.

    O exlio e o silncio, a condio de espectralidade, o desamparo so estruturais

    na sua obra, como muito bem o notam Ricardo Marques7 e Pedro Serra8, acentuando a

    dimenso saturnina, enigmtica e nocturna, desmedida e excessiva, razo pela qual a

    designa como uma lio de trevas9. A melancolia desenha-se, assim, na sua obra,

    como matriz primeira, onde convergem dois eixos que se sobrepem: por um lado, esse

    exlio, que dominante na nostalgia, que se confunde com o desejo de um espao e de

    um tempo sempre outro e que impulso para a criao; por outro, a conscincia da

    finitude, que tanto pode estar na base da renncia vida, como constituir uma exigncia

    de desprendimento, convertendo-se na condio impulsionadora do pensamento.

    Livros como A Condescendncia do Ser (1988), Enumerao das Sombras (1989) e As

    Regras da Perspectiva (1990) confirmam um percurso e uma configurao muito

    prprias, norteadas para a reflexo do fenmeno potico, no sentido de explorar as suas

    limitaes, mas tambm as inmeras possibilidades que a se abrem, a partir de uma

    estrutura rizomtica10, em que os conceitos e as temticas se repetem em variantes.

    O poema judiciano aparece, assim e deste ponto de vista, como um litoral ou

    um topos de abertura, ou melhor, o rosto belssimo de imagens mortas11. Por ser nele

    que se resgata a decomposio e decadncia, o rosto imagem orgnica por excelncia

    - confere, pela sua unidade, imposta pelo poema, um sentido ao que j se encontra

    morto. Nesta acepo reconhecemos uma das grandes figuras alegricas de Walter

    Benjamin: o fisionomista, de que ele nos fala na sua obra magistral O Livro das

    Passagens, ao referir-se ao coleccionador.

  • 6

    neste paradoxo, o da prpria vida e da sua ciso com a arte, j que a vida

    orgnica e a arte de uma outra ordem, que jamais alcana a metamorfose e a

    evanescncia da vida, que se crava a alegoria potica. Parto aqui, no de um conceito

    de alegoria clssico, mas sim do modo como Walter Benjamin o definiu, na sua obra A

    Origem do Drama Barroco Alemo e o aplicou posteriormente nos seus estudos sobre

    Charles Baudelaire12. Distinguindo assim o procedimento simblico da alegoria, Walter

    Benjamin reabilitou a alegoria, que era desvalorizada por Goethe13, no sentido em que

    a experincia arruinada e fragmentria constitui o que j no representvel atravs do

    smbolo, mas que pode ainda ser compreendida e salva no olhar alegrico.

    Se Benjamin j identifica essa compreenso enlutada no barroco alemo, pela

    dolorosa constatao da perda da Graa divina, ento a emergncia da modernidade

    reflecte em si a runa do olhar humano, abandonado por Deus e entregue a si prprio.

    Quando falamos de modernidade, referimos essa experincia radical de perda (do

    sagrado e da transcendncia)14 e, ainda, da fragmentao ou estilhaamento, no

    apenas do espao e do tempo, como tambm das prprias categorias da totalidade e de

    unidade, de sistema. Uma experincia de declnio da aura. Esta converte-se na vivncia,

    totalmente diferente do homem moderno, da temporalidade e da espacialidade nas

    grandes cidades, a qual ter empurrado o homem para uma situao de derrocada do

    mundo familiar ou como ele o conhecia anteriormente.

    Da que ganhe a maior pertinncia a expresso utilizada por Pedro Serra, como

    uma lio de trevas. Fala ainda o autor de um opus nigrum, referindo-se claramente ao

    procedimento alegrico utilizado pelo poeta, que apenas reconhece, como significante

    comum da experincia, essa noite escura e impenetrvel e que tambm a prpria

    noite da linguagem. No poema Exorcismo, o sujeito lrico interroga-se: Estarei

    preparado para a noite? (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 598). O trabalho

    potico escava atravs da memria, atravs de um trabalho invisvel (ibidem, p. 599).

    Alude o sujeito a uma voz que abre o seu poo, na brevidade de um eco; e a sua gua

    negra/ reflecte-me um rosto cujos olhos cegos/no encontram o cimo. Todo o poema

    se move numa atmosfera sonamblica, mais de pesadelo do que de sonho, onde a

    poesia ronda uma ferida abstracta, lugar de onde sai uma luz de fonte. Mas esta

    noite, como o lembra Pedro Serra, tambm a obscura noite, a noite mstica de S.

  • 7

    Joo da Cruz, a quem Nuno Jdice dedica um poema, intitulado Homenagem a S. Joo

    da Cruz (Idem, p. 529), aludindo questo da nomeao, to cara poesia: Noite sem

    fim porque/ no teve um princpio e definitiva no olhar /cego de um reflexo: dando/

    o nome s coisas que nunca o tiveram. Significa tal dizer que no afundamento da

    noite e do sonho mstico que nasce a possibilidade de nomear/salvar as coisas. Tambm

    aqui a ideia do sublime aflora, pois a imaginao distendida ao seu limite, no seu

    combate com a razo e o sujeito lrico abisma-se em si prprio, procurando a

    transfigurao da noite informe em linguagem e forma.

    Rosa Maria Martelo, num ensaio sagaz sobre Nuno Jdice (MARTELO 2010, 134-

    151), referindo-se questo do significado abstracto na poesia judiciana, diz que

    Abstracto , na poesia de Nuno Jdice, um qualificativo normalmente aplicado a nomes

    concretos, de forma a produzir um efeito de deslocamento dos significados envolvidos

    nesses mesmos nomes. (p. 153). Na verdade, esse detalhe no de menor importncia,

    pois visa a demarcao de tudo o que se quisesse destacado da circunstancialidade ou

    da prpria singularidade, para aceder a um outro plano de existncia. Este , sem

    dvida, um dos recursos mais poderosos da construo alegrica do poema, que visa

    subtrair o seu objecto ao circunstancial e permite ligar memrias e experincias

    aparentemente desligadas (p. 114). Este procedimento, segundo a autora, j aparece

    explicitado num dos primeiros livros de Nuno Jdice, O Mecanismo Romntico da

    Fragmentao (1975), onde se define assim o trabalho do poeta: [a]lgum que possui

    o dom de comparar/ e que, perante realidades diversas, entrev /a luminosidade

    distante do Idntico15.

    Trata-se, como Rosa Maria Martelo sublinha de um princpio construtivo (p.

    145), que estrutura a potica de Nuno Jdice e que permite, no apenas subtrair-se ao

    circunstancial e ao acidental, como igualmente aplicar-se ao que no aparece

    naturalmente ligado, criando desta forma uma construo potica escolhida e que

    aproxima e compara realidades diversas, numa estratgia de recomposio onde

    reconhecemos o procedimento alegrico. Por outro lado, este princpio construtivo

    permite a identificao do dilogo to intensamente mantido com a tradio do

    Romantismo e do Simbolismo, como refere Ricardo Marques (MARQUES 2013).

  • 8

    Essa tcnica de deslocamento, como o ressalta Rosa Maria Martelo, aproxima-se

    dos mecanismos de deslocamento aproximveis daqueles que Freud observou no

    sonho (p. 147), algo que a tcnica alegrica modernista explorou exaustivamente no

    surrealismo16. E este deslocamento, que se opera no discurso potico, obriga a um

    trabalho reflexivo constante e metapotico, inseparvel da sua poesia. justamente a

    partir de um mundo assombrado pela runa e pela morte17, que urge a revisitao do

    detalhe e do fragmento, para o obrigar a significar num outro contexto. Importa

    restituir o sentido ao que j se apresenta amorfo e avulso e o trabalho do poeta , com

    efeito, essa (re)constituio do sentido a partir do que j se encontra desmembrado,

    numa procura de salvar o que se encontra votado ao esquecimento, procurando

    inscrever as coisas numa ordem intemporal e absoluta, subtraindo-as ao tempo fsico.

    Retomo ainda Pedro Serra, a esse propsito, onde o autor refere a dimenso

    escatolgica que prpria do poema judiciano, numa tenso para o Absoluto18 e para a

    perfeio, como um anseio de circunscrever imageticamente o real.

    Na verdade, o poema anela o Absoluto ou a Totalidade19, mas um Absoluto

    possvel, j que ele no existe, ainda que a poesia no possa prescindir dessa tenso.

    ela prpria, como se h-de ver, que a alimenta, enquanto pulso. Porm, este Absoluto

    no teolgico20, como o precisa Pedro Serra (p. 13), de carcter transcendente, mas o

    poema joga-se precisamente nesta sublimao, de que nos fala Jean-Luc Nancy, na sua

    obra Ivresse: A embriaguez condio do esprito, ela faz sentir a sua absolutidade, ou

    seja, a sua separao com tudo o que no ele. (). A embriaguez ela mesma a

    absolutizao, o desencadeamento, a ascenso livre para fora do mundo.21 tambm

    esse o desejo que o poema transporta consigo, configurando uma desestabilizao que

    se instala no prprio poema, pela sua condio de excesso, e ela que se constitui uma

    ponte de acesso quele (Idem, p. 40).

  • 9

    2

    Se at aqui falmos nos efeitos da linguagem e no procedimento atravs do qual

    a potica de Nuno Jdice se constri, no podemos faz-lo seno assentando a anlise

    num outro vector que no menos importante: a teoria do trao, como um contexto a

    partir do qual se desenvolve a ideia de rememorao alegrica no trabalho potico e

    literrio. A propsito da poesia de Baudelaire e da prosa de Proust, Walter Benjamin

    refere-se ideia da rememorao, definindo-a como um procedimento especfico da

    alegoria, na arte e literatura modernas. E, como veremos, a ideia de rememorao

    encontra-se profundamente articulada com a ideia de trao, numa contraposio, mas

    tambm numa justaposio, com o conceito de aura. Na sua obra Livro das Passagens,

    Walter Benjamin define o conceito de trao (Spur) da seguinte forma:

    Trao e Aura. O trao o aparecimento de uma proximidade, por longnquo que

    possa ser o que a deixou. A aura o aparecimento de um longnquo, por prximo que

    possa ser o que o evoca. Com o trao ns apoderamo-nos da coisa; com a aura, ela

    que se apodera de ns.22

    E se retomarmos o texto Escavar e Recordar reconhecemos no texto

    benjaminiano a apresentao da figura daquele que visa aproximar-se do seu passado

    como a de um arquelogo que escava: Quem procura aproximar-se do seu passado

    soterrado tem de se comportar como um homem que escava (BENJAMIN, Imagens de

    Pensamento 2004, 219, 220). Escavar, seguir as pisadas e os vestgios dos antepassados

    podem ser definidas, no seu conjunto, como uma tarefa da arqueologia, isto , o

    trabalho da verdadeira recordao (idem). Porm, ela d-se no campo da linguagem

    e, sobretudo, trata-se de um trabalho de construo imagtica23, como aquele que o

    prprio poema judiciano encena. Esta metfora, a do arquelogo que visa reconstruir o

    passado a partir desses traos e vestgios, tambm apresentada por Freud, numa

    analogia com o trabalho do psicanalista e, ainda, por Husserl, ao aludir ao trabalho do

    fenomenlogo. Em qualquer dos casos, o trao corresponde a uma espcie de

    sedimento que, no sendo acessvel directamente, pode ser (re)presentificado a partir

    da rememorao. E o trao ou o rastro configura-se como um arqutipo, no sentido de

    uma vivncia originria. Tambm Jacques Derrida se refere a esta experincia matricial

    da escrita, em vrios textos, sublinhemos, no entanto, a anlise derrideana da

  • 10

    arqueologia do trao, seguindo claramente as pisadas de Freud (DERRIDA, Freud et la

    Scne de l'criture 2006).

    Retome-se a ideia fundamental deste texto, a partir desse ncleo temtico da

    contraposio aura/trao. O procedimento potico da rememorao que corresponde

    a esta compreenso pode ser caracterizado pelo desejo de se apoderar de algo,

    tornando-o prximo de ns, numa tentativa de restaurao e reapropriao do passado.

    Tal como o arquelogo nas metforas anteriormente citadas - detm o seu olhar nas

    runas do passado e demorando-se sobre os fragmentos, procurando a sua restaurao,

    pela sua inscrio numa ordem de sentido, tambm o poeta recolhe as runas do

    passado (sejam elas vividas ou imaginadas) no poema. Poderamos assim referirmo-nos

    ao poema como uma imagem ou uma constelao ou uma figura constituda pela

    afinidade recproca dos elementos que o compem. Acrescente-se, ainda, que o poema

    seria, no uma representao, mas uma apresentao do passado no seu carcter

    imagtico.

    Assim, retome-se a poesia de Nuno Jdice, onde perpassa esse anseio de

    restaurao do passado e dos seus vestgios. Ele torna-se claramente visvel nas suas

    obras Enumerao das Sombras, Meditao sobre Runas e em Um Canto na Espessura

    do Tempo. O facto de remeter o leitor para estas obras no significa no significa que

    esse sopro no exista nas suas obras mais recentes, com uma tonalidade mais

    quotidiana. Nessas obras, como referi, a rememorao estrutural e d-se atravs da

    construo de poemas que se abrem como portas de acesso ao passado. Porm, o

    passado no se apresenta de forma cronolgica e sim sob a forma de imagem,

    corroborando o significado de imagem como apresentao e leitura/reinterpretao do

    passado a partir do presente. Ainda na entrevista que Nuno Jdice me concedeu, o

    poeta afirma: A memria, para mim, nunca corresponde a uma realidade objectiva,

    factual, invarivel. O que se vive vai sendo modificado ao longo da vida, e o presente

    que funciona sempre como a lente ptica que (de)forma aquilo que est no nosso

    passado. (CANTINHO, Storm Magazine 2005).

    O sujeito lrico move-se, assim, num territrio onrico que o transporta, atravs

    das imagens, at ao seu passado (vivido ou no), num desejo de o restaurar e de lhe

    conferir um sentido, como uma exigncia de reconhecimento, atravs das faculdades

  • 11

    da analogia (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 164). Todavia, se, por um lado,

    ele se move nessa tenso, por outro, como j dissemos, o final do poema acontece como

    um despertar desse sonho que o transporta at ao passado. No poema Enumerao de

    Sombras, o sujeito lrico interroga-se:

    quem sois, sombras de uma insnia lenta,/corroendo o poema? Sento-me

    vossa beira, descansando da viagem./Conversais, sem que vos oua, na equvoca

    obscuridade/da morte. Ou sou eu que me esqueci de vs e vos arrasto

    comigo,/intranquilos, pedindo-me em vo que vos despea de uma vida/que o sonho

    contamina? (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 334).

    Essa convocao, que se abre no espao do sonho, diluindo todas as evidncias

    espcio-temporais para se abrir num limbo que tambm o territrio da imagem,

    corresponde ao modo como o sujeito lrico obedece ao chamamento e ao trao

    mnsico do passado24. Para o fixar no poema, entenda-se. Elas, sombras de uma

    insnia lenta, so ausentes, por pertencerem a um tempo arcaico, presentificando-se

    no poema. Porm, o despertar, tambm ele alegrico, no sentido em que um

    reconhecimento do que j desapareceu, do ocorrido no tempo do outrora, no se faz

    esperar no poema: No vos assusteis. Algum me disse/ quem reis, e qual a vossa

    efmera vontade. Um sopro/de esquecimento agita os ciprestes. Ave alguma/cantou

    esta tarde. (idem, p. 335) Agamben, no seu texto La Fin du Pome (AGAMBEN, La Fin

    du Pome 2002, 136), ressalta esta suspenso que instaurada no ltimo verso.

    Evocando Proust e Baudelaire (que partilham entre si o procedimento alegrico), cita

    Walter Benjamin, que reconhecia nesta suspenso o aparecimento do fragmentrio, ou

    seja, o elemento surpreendente que quebrava bruscamente a unidade e a organicidade

    do poema.

    No poema de Nuno Jdice, intitulado Exorcismo, de que j aqui falmos, da

    sua obra Meditao sobre Runas, confrontamo-nos com essa evidncia. Nesse poema

    ressalta de imediato, no primeiro verso, o regresso infncia, territrio do qual se

    reclama a proximidade, no modo como esse arqutipo que se inscreve e se apresenta

    na imagem: Uma linha de sombra traz-me, de novo, a voz/que ouvi numa infncia de

    pedras e gua. () (N. JDICE, Poesia Reunida 1967-2000 2000, 598). O mesmo poema

    rasga o vu da nostalgia, no seu final, como se o sujeito lrico fosse acordado do sonho:

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    E volto a abrir a ferida de onde, como/ antiga nascente, corre o pus das vogais.

    Deito/vinagre e cinzas no centro da figura:/a videira seca da infncia. E/a voz cala-se.

    (idem, p. 599). Mais uma vez, o ltimo verso corta bruscamente a evocao do passado,

    relembrando a condio humana, votada irreversibilidade do tempo e da sua

    passagem, mostrando no poema a sua dilacerao ou tenso alegrica, a sua clivagem

    interna, para sermos mais precisos.

    Na verdade, e arriscando aqui a minha interpretao, esta tenso releva de um

    outro aspecto que se encontra to entranhado na modernidade e que o

    reconhecimento da perda da aura das coisas, isto , da sua totalidade e organicidade. O

    olhar do poeta apenas tem acesso a uma viso arruinada do mundo, e isto o mesmo

    que dizer uma viso no-aurtica. O seu acesso faz-se a partir desses fragmentos. Faz-

    se tambm a partir de um estranhamento face ao mundo, onde tudo aparece

    contaminado por essa tristeza, convocando imagens como a infncia perdida ou o amor

    que desapareceu. Mas, nesses fragmentos da vida vivida, ele procura o rosto possvel, a

    fisionomia das coisas. Essa a condio da modernidade (e tambm da ps-

    modernidade, na acelerao vertiginosa desse desamparo). Se, por um lado, o mundo

    aparece desprovido de aura, rompendo com uma viso harmoniosa do mesmo, por

    outro, mais o trao ou o vestgio pode assumir o seu potencial de remisso origem,

    num anseio arqueolgico. Porm, esta origem no um incio nem se confunde com

    ele, o ponto inicial em que algo veio a ser, mas antes, como Derrida bem o notou, uma

    falta originria (DERRIDA, Signature vnement contexte 1972) que reclama a sua

    restaurao, como tambm o para Walter Benjamin, quando o autor se refere s

    coisas no mundo de Kafka25, que eram anteriores ao seu tempo ou demasiado velhas

    para ele.

    No mundo da alegoria no h repouso para a linguagem, uma vez que todos os

    sinais reenviam para outros, as imagens repercutem-se ad infinitum, tudo se move para

    uma lenta decomposio, num mundo em que o vivo se apresenta ameaado pelo dente

    da morte, encontrando na repetio mecnica e na irreversibilidade do tempo a marca

    derradeira. Porm, o gesto potico vive o sonho da interrupo e da suspenso do

    veredicto. Termino, citando os ltimos versos do poema Orfeu e Eurdice, onde o

    sujeito lrico fala do regresso a casa e da morte da amada Eurdice e conclui: Deito-te

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    na estrofe e deixo-te,/olhando para trs at ao fim do tempo que a respirao do

    verso/me concede.

    Conclumos que a salvao do Amor, esse gesto derradeiro de fidelidade capaz

    de resgatar a fragilidade dos corpos, se define na imagem potica, inscrevendo-se nela,

    de forma intemporal e absoluta, que o fim do tempo da respirao do verso concede

    ao poeta. Esse o gesto alegrico por excelncia, resgatando o trao e arrancando-o ao

    esquecimento, isto , subtraindo-o as runas do passado.

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    1 Relembro a entrevista que Nuno Jdice me concedeu para a revista Zuna, em 2010, onde fala do seu trabalho potico: A inspirao a parte menor da criao. O poema nasce em geral de um objeto, uma memria, uma imagem - e a partir da que a sua construo vai sendo desenvolvida. Pode ser um quadro ou uma escultura, como pode ser uma fotografia, ou uma simples cena do quotidiano. No entanto, a palavra que vai guiar a escrita potica; e por palavra entendo tambm o lado fnico, sonoro, que obriga procura de um ritmo e de uma respirao que vo buscar msica as suas regras. Mas tambm no me considero um arteso dado que no preciso de trabalhar demasiado o objeto potico: o poema nasce praticamente j acabado, e se h um trabalho ele d-se na cabea, antes de passar pgina o texto. (CANTINHO, Revista Zunai 2010). 2 Benjamin, Walter, Passagen-Werk, in Gesammelte Schriften, V, [N 8, 1]. 3 Na entrevista que Nuno Jdice deu a Ricardo MARQUES, in Na Teia do Poema, um percurso intertextual na Poesia de Nuno Jdice, ed. Chiado, Lisboa, 2013, p. 516, o poeta esclarece qual a sua relao com o Romantismo, de modo a que no se gerem equvocos. A sua aproximao ao romantismo nasce da sua relao com o Pr-romantismo alemo, isto , com Novalis, Hlderlin, com esse mundo nocturno, mas numa tradio contida e sbria, sem deixar o poema perder o norte. Tambm quero deixar aqui o meu agradecimento ao Doutor Ricardo Marques pelas sugestes e leitura atenta do meu texto. 4 Desta intertextualidade nos d conta Ricardo MARQUES, no seu livro, Na Teia do Poema, abordando de forma notvel a questo da intertextualidade, refere toda a tradio desde a Antiguidade Clssica grega e romana, como Homero, Plato, Ovdio, passando pelo Renascimento, maneirismo, etc. 5 Tal como Kant a define, na sua obra Crtica da Faculdade do Juzo, traduo do original alemo por Antnio Marques e Valrio Rohden, Estudos Gerais Srie Universitria. Clssicos de Filosofia, INCM, Lisboa, 1992. A passagem a que me refiro desenvolve-se entre os pargrafos 25 e 29. 6 Os corredores do poema, p. 86. 7 Tema que Nuno Jdice vai beber a Ovdio e que uma figura fundamental da poesia e da literatura para Nuno Jdice, de acordo com Ricardo Marques. V. Op. Cit., pp. 215/217. Aqui, a poesia de Nuno Jdice tambm me faz lembrar esse longo poema que A Morte de Virglio, de Hermann Broch, sobretudo no olhar devastado de Ovdio, a caminho do exlio. Expresso judiciana dessa devastao sobretudo o

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    poema Exlio (p. 61) e A respirao do exlio (p. 570). Dante e Cames so tambm as outras figuras aqui vislumbradas. Recordo, ainda, o poema Ovdio, escrevendo do ponto euxino (p. 911). 8 SERRA, Pedro, in Devastacin de Slabas, p. 10: Lo que conlleva que en el poema de la soledad, tpica estructural de la obra judiciana, se hace monumento de silencio, de exilio (). 9 SERRA, Pedro, Devastacin de Slabas, ed. Universidade de Salamanca, Salamanca, p. 10: la obra potica de Nuno Jdice supone una leccin de tinieblas. 10 Tomo aqui o conceito abordado por Gilles DELEUZE, na sua obra Capitalisme et Schizophrnie 2. Mille Plateaux, Les ditions, Paris, 1980, pp. 13/37. 11 V. Poesia Reunida, D. Quixote, Lisboa, 2000, p. 86: Durmo na perptua/imobilidade do poema, nos recantos esquecidos de uma praia inacessvel,/litoral eterno de viajantes sem navio./E o poema esta casa/abandonada, o rosto belssimo de imagens mortas. 12 Os textos que Walter Benjamin consagrou a Baudelaire encontram-se reunidos num volume intitulado A Modernidade, traduzidos por Joo Barrento, na editora Assrio e Alvim. 13 Benjamin, Walter, Gesammelte Schriften, Band I, 1, pp. 400-401. 14 Refiro-me ao diagnstico nietszchiano da morte de Deus , sentimento que tambm subjacente potica de Nuno Jdice. 15 Apud Martelo, Rosa Maria, Op. Cit., p. 144. 16 Benjamin refere-se a esta tcnica da montagem surrealista na sua obra magistral O Livro das Passagens, onde se dedica ao estudo das imagens do inconsciente colectivo e tambm ao estudo da rememorao proustiana. Nesta tcnica da rememorao reconhece o autor a sua importncia para a construo alegrica do texto. 17 Recordo tambm o belo livro de Nuno Jdice e de Duarte Belo, Geografia do Caos, ed. Assrio & Alvim, Lisboa, 2005, em que abordada a relao das runas actuais com o seu passado, num dilogo entre a poesia e a fotografia. 18 V. Op. Cit., pp 11, 12: El poema, para Nuno Jdice, es la realidade absoluta, es la realidade de um Absoluto posible. 19 Numa entrevista que Nuno Jdice me concedeu em 2005, para a Storm-Magazine, ele refere essa aspirao Totalidade como o que move o poema, dizendo: A totalidade o objectivo, o alvo inatingvel. Ela encontra-se no poema ou a sua iluso () (CANTINHO, Storm Magazine 2005). Entenda-se aqui a Totalidade como o Absoluto. 20 Para corroborar esta ideia, veja-se o que Nuno Jdice diz sobre a religio na entrevista que d a Ricardo Marques, Op. Cit., p. 520. O poeta afirma que a sua ruptura com a religio vem dos tempos da adolescncia, por razes filosficas e polticas. 21 Nancy, Jean-Luc, Ivresse, Bibliothque Rivages, ditions Payot & Rivages, Paris, 2013, p. 37 : Livresse est condition de lesprit, elle donne sentir son absoluit, cest--dire sa sparation davec tout ce qui nest pas lui (). Livresse est elle-mme labsolutisation, le dsenchanement, lascension libre jusquau dehors du monde. 22 Benjamin, Walter, Das Passagenwerk, [M 16 a, 5]. O conceito de trao bastante equvoco, mas sigo aqui a acepo especfica do conceito alemo de Spur, que designa trao, vestgio. 23 A a sua obra Geografia do Caos tem um papel paradigmtico, nesta relao com a runa e o trao, do ponto de vista arqueolgico. 24 Retomo aqui uma categoria da psicanlise freudiana que se encontra certamente na base da teoria benjaminiana, pois sabemos o quo importantes foram as investigaes freudianas para o estudo benjaminiano da percepo e da compreenso da experincia de choque, que caracteriza toda a modernidade e o seu desencanto. 25 Num texto intitulado Franz Kafka: a propsito do dcimo aniversrio da sua morte, in Magia e Tcnica, arte e poltica: ensaios sobre literatura e histria da cultura, trad. Srgio Rouanet, ed. Brasiliense, S. Paulo, 1994, pp. 137-164.