trabalho valor e classe em moishe posto

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1 “Trabalho, valor e classe em Moishe Postone e Robert Kurz” Bruno Lamas As notas que se seguem constituem o guião da apresentação feita a 11 de Outubro de 2014 no Seminário Pensamento Crítico Contemporâneo, dedicado ao tema “Trabalho”, organizado pela Unipop e a revista Imprópria, e que se realizou no ISCTE-IUL. 1. Os dois autores chegaram a conclusões muito idênticas no final da década de 1980/princípios da década de 1990, e isso sem conhecerem a obra um do outro e com precursos bastante distintos. a. Postone é um académico americano, professor de história e teoria social na Universidade de Chicago. Dedicou-se de forma totalmente isolada e num contexto académico pouco favorável a análise marxiana da mercadoria b. Kurz é alemão, estudou filosofia, pedagogia e ciência política mas sempre se manteve afastado do, ou em oposição ao, mundo académico, ganhando a vida como motorista de pesados, taxista durante vários anos e trabalhando em part time na parte técnica de um jornal. Fundou a revista Krisis e posteriormente a Exit!, um projecto que apesar da sua morte continua a desenvolver-se. 2. A proximidade quanto às conclusões teóricas não é uma coincidência, mas um sinal de que pairava qualquer coisa no ar e que as condições sociais que haviam alimentado os velhos paradigmas do marxismo tinham mudado profundamente: a. O desemprego estrutural b. A 3ª revolução industrial da microeléctronica 3. Isto não significa que Postone e Kurz digam exactamente a mesma coisa e do mesmo modo: na verdade, não dizem. a. De facto, o que têm em comum distingue-os claramente de outras críticas ao capitalismo, e por isso são tantas vezes apresentados como dizendo mais ou menos a mesma coisa. b. Mas existem diferenças, que mais recentemente tem sido tematizadas, que parecem meras nuances mas que têm consequência decisivas para o entendimento da fase actual do capitalismo (o próximo artigo da Roswitha Scholz). c. Por isso também não podem continuar a ser simplesmente apresentados em bloco. 4. POSTONE Cronologicamente, Postone foi de facto o primeiro a abrir a porta à crítica categorial do trabalho.

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“Trabalho, valor e classe em Moishe Postone e Robert Kurz” Bruno Lamas

As notas que se seguem constituem o guião da apresentação feita a 11 de Outubro de 2014 no Seminário Pensamento Crítico Contemporâneo, dedicado ao tema “Trabalho”, organizado pela Unipop e a revista Imprópria, e que se realizou no ISCTE-IUL.

1. Os dois autores chegaram a conclusões muito idênticas no final da década de 1980/princípios da década de 1990, e isso sem conhecerem a obra um do outro e com precursos bastante distintos.

a. Postone é um académico americano, professor de história e teoria social na Universidade de Chicago. Dedicou-se de forma totalmente isolada e num contexto académico pouco favorável a análise marxiana da mercadoria

b. Kurz é alemão, estudou filosofia, pedagogia e ciência política mas sempre se manteve afastado do, ou em oposição ao, mundo académico, ganhando a vida como motorista de pesados, taxista durante vários anos e trabalhando em part time na parte técnica de um jornal. Fundou a revista Krisis e posteriormente a Exit!, um projecto que apesar da sua morte continua a desenvolver-se.

2. A proximidade quanto às conclusões teóricas não é uma coincidência, mas um sinal de que pairava qualquer coisa no ar e que as condições sociais que haviam alimentado os velhos paradigmas do marxismo tinham mudado profundamente:

a. O desemprego estrutural b. A 3ª revolução industrial da microeléctronica

3. Isto não significa que Postone e Kurz digam exactamente a mesma coisa e

do mesmo modo: na verdade, não dizem. a. De facto, o que têm em comum distingue-os claramente de outras

críticas ao capitalismo, e por isso são tantas vezes apresentados como dizendo mais ou menos a mesma coisa.

b. Mas existem diferenças, que mais recentemente tem sido tematizadas, que parecem meras nuances mas que têm consequência decisivas para o entendimento da fase actual do capitalismo (o próximo artigo da Roswitha Scholz).

c. Por isso também não podem continuar a ser simplesmente apresentados em bloco.

4. POSTONE Cronologicamente, Postone foi de facto o primeiro a abrir a porta à crítica categorial do trabalho.

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a. O artigo “Necessidade, tempo e trabalho” em 1978, com desenvolvimentos posteriores na década de 1980 e a elaboração final no livro “Tempo, trabalho e dominação social” de 1993.

b. É verdade que houve críticas ao trabalho antes dele (Lafargue, o operaísmo, a internacional situacionista, etc); mas nestes o “trabalho” mantinha-se como uma categoria positiva. O que aí se criticava era o excesso de trabalho, ou o facto das condições de trabalho estarem separadas dos trabalhadores ou uma decadência do trabalho.

c. Para Postone, não se trata de fazer uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho mas de fazer do trabalho o próprio objecto da crítica.

5. Crítica ao Marxismo tradicional a. uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho b. O trabalho é visto como o princípio ontológico estruturante em todas as

sociedades c. A classe é a categoria fundamental da análise da estrutura social d. A contradição principal do capitalismo é entre a propriedade privada e

mercado, por um lado, e o desenvolvimento dos meios de produção industrial, por outro.

e. Que assume que a abolição da propriedade privada dos meios de produção, ou seja, um novo modo de distribuição dos meios de produção industrial, é a condição fundamental para a abolição do capitalismo; ou seja, na verdade o modo de distribuição (e não o modo de produção) é o foco de toda a crítica.

6. A releitura de Marx por Postone

a. a teoria do valor de Marx não é uma teoria da riqueza em geral; é a teoria de uma forma de riqueza abstracta, social e especificamente moderna

b. se existe um duplo carácter de valor nas mercadorias (valor de uso e valor de troca), então o trabalho incorporado nelas não pode ser simplesmente ‘trabalho’ em geral mas possui necessariamente, também ele, um carácter duplo: trabalho concreto e trabalho abstracto.

c. As mercadorias só podem ser trocadas porque possuem algo em comum: o trabalho abstracto. O que Marx chama uma ‘substância social comum’ constituída por ‘trabalho humano indiferenciado’, ‘dispêndio de força de trabalho humana sem atender à forma do seu dispêndio’, apenas puro “dispêndio de cérebro, nervos, músculos, órgãos do sentido, etc.” que está “representado” na “objectividade fantasmagórica” das mercadorias e do dinheiro

d. O “trabalho no capitalismo” é uma forma de integração e “mediação social”, e é só nessa sociedade que ele desempenha essas funções.

e. Mas é também uma forma de mediação social dinâmica porque a magnitude da substância social do valor é medida em tempo.

f. Cada capitalista aumenta o seu lucro apenas de duas formas possíveis: i. baixando os salários dos trabalhadores (mais-valia absoluta)

ii. aumentando o número de mercadorias produzidas num tempo determinado com a introdução de novos meios técnicos (mais-valia relativa).

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g. Compulsão moderna para a inovação tecnológica e uma dinâmica lógico-histórica inteiramente desconhecida nas sociedades pré-capitalistas.

h. A reter: ao aumento da produção material não corresponde um concomitante aumento da produção de valor.

i. O que Postone chama o “efeito esteira rolante”: correr cada vez mais rápido sem se sair do mesmo sítio, produzir cada vez mais output material sem modificações no valor produzido por unidade temporal.

j. Limites ecológicos: consumo de recursos e a inundação de mercadorias à escala mundial.

7. Postone relembra então a contradição fundamental do capitalismo para Marx

a. “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza”.

b. Nos Grundrisse Marx mostra que o resultado historicamente previsível do capitalismo seria a crescente contradição entre a importância da ciência e do conhecimento social geral aplicado na produção material e uma forma de riqueza social abstracta fundamentada no trabalho.

8. A dominação social impessoal e abstracta

a. « A dominação social no capitalismo, no seu nível mais fundamental, não consiste na dominação das pessoas por outras pessoas, mas na dominação das pessoas por estruturas sociais abstratas constituídas pelas próprias pessoas».

b. Não é que não existam momentos de dominação social directa e aberta entre grupos e classes sociais; a questão é que não são esses conflitos que fazem surgir a dinâmica histórica de desenvolvimento do capitalismo.

c. Face a isso, não há nem pode haver um sujeito histórico com um ponto de vista crítico privilegiado. Na verdade, enquanto “contradição em processo”, para lá da consciência e controlo dos indivíduos, o capital é o verdadeiro sujeito da história moderna (como Marx afirmou mais do que uma vez): o capital como um “sujeito automático”.

d. A abolição do capitalismo é uma possibilidade que emerge da «contradição crescente entre o tipo de trabalho que as pessoas executam sob o capitalismo e o tipo de trabalho que poderiam executar se o valor fosse abolido e o potencial produtivo desenvolvido sob o capitalismo fosse usado reflexivamente para libertar as pessoas do domínio das estruturas alienadas constituídas pelo seu próprio trabalho».

9. Se o princípio da década de 1990 marca de certo modo o ponto alto do desenvolvimento da teoria de Postone, no caso de Kurz é o início de um novo ciclo de desenvolvimento teórico

10. KURZ Um aprofundamento do conceito de “fetichismo” de Marx

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a. Fetiche como processo de autonomização de regras sociais que ganham uma espécie de vida própria enquanto pressuposto e matriz de percepção e acção humana.

b. Inconsciência das formas de consciência e reprodução social c. Superação da dicotomia teoria da acção vs teoria da estrutura ou do

sujeito vs objecto d. História como história das relações de fetiche e. As relações de fetiche são relações de dominação. f. O fetiche não faz dos indivíduos marionetes mas é uma condicionalidade

real, social e inconscientemente constituída. g. O facto do momento fundamental da dominação ser uma matriz social de

acção humana e não uma classe social não a torna menos merecedora de ódio.

11. Crítica a Postone: o problema fundamental de Postone é desde logo procurar

apresentar um Marx inteiramente coerente e livre de contradições.

a. A tese do “duplo Marx” de Kurz: i. Marx esotérico, crítico do fetichismo da mercadoria e da

submissão dos seres humanos (tanto capitalistas como trabalhadores) aos seus próprios produtos ideais e materiais

ii. Marx exotérico, da modernização, da metafísica do progresso iii. Por um lado, um crítico radical da sociedade capitalista na sua

totalidade negativa e, por outro, um partidário do movimento operário que lutava pelo reconhecimento social no interior dessa mesma totalidade.

b. Os resquícios de uma metafísica do trabalho em Postone

i. Fala do “trabalho no capitalismo”, do “trabalho nas sociedades pré-modernas” ou dos “tipos de trabalho que as pessoas têm no capitalismo” e dos “tipos que terão depois do valor ser abolido”

12. Kurz: O trabalho tem de ser definido como uma abstracção real exclusiva da sociedade capitalista

a. A aporia de Marx nos Grundrisse (que Postone curiosamente não refere): “a categoria trabalho é um produto das condições sociais modernas. Só se aplica, só tem “validade plena”, só é uma “realidade prática” ou “praticamente verdadeira” na sociedade moderna; mas afinal, por causa do seu nível elevado de abstracção, também se pode aplicar a todas as épocas e ter aí validade. Uma confusão derivada da filosofia da história.

b. Antes de mais, a categoria “trabalho” é já uma abstracção. Nas sociedades pré-capitalistas não existe conceitos equivalentes ao que nós modernos chamamos “trabalho”, em parte porque também não há uma separação das actividades produtivas dos outros momentos da vida quotidiana.

c. A expressão “trabalho concreto” é uma contradição. A expressão “trabalho abstracto” é na verdade um pleonasmo lógico que só faz

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sentido como conceito imediatamente crítico: a combustão de energia humana representada em mercadorias e dinheiro.

d. O trabalho abstracto é uma abstracção real, uma metafísica real socialmente constituída.

13. O trabalho abstracto só se pôde afirmar historicamente através de um processo de dissociação sexual (influência de Roswitha Scholz)

a. Delegação na mulher de todas as actividades que não são passíveis de ser integradas no processo de valorização do capital

b. Evidente também no carácter machista e patriarcal do movimento operário

c. Valor e dissociação sexual presupõem-se reciprocamente, sendo portanto uma única forma social, essencial e dinâmica

d. Crítica do valor transforma-se em crítica da dissociação-valor

14. A crítica do sujeito a. A dicotomia sujeito-objecto não é conceptualização trans-histórica mas é

justamente uma das polarizações da constituição fetichista do capitalismo

b. O sujeito é justamente a forma abstracta exigida pela relação de valor aos indivíduos modernos de se relacionarem com o mundo social e sensível: uma categoria do “homem branco ocidental”

c. O sujeito é uma categoria armadilhada: ao encararem-se como sujeitos os indivíduos modernos já se julgam para lá do condicionalismo da sua própria forma social negativa e objectivada

d. O que leva Kurz a uma crítica radical do Iluminismo, enquanto ideologia de imposição do sujeito, e do paradigma da luta de classes enquanto expressão da forma do sujeito concorrencial moderno

e. A procura de um sujeito emancipatório definido prévia e objectivamente é já um paradoxo que desmente qualquer ideia de emancipação. Como pode ser um sujeito emancipatório aquele que já se espera que seja o sujeito emancipatório?

15. A teoria da crise e o limite interno absoluto a. As teorias da crise sempre foram redutoras no próprio campo do

marxismo: partem do pressuposto que a produção sempre produz valor e que o problema está na distribuição desproporcional entre os vários sectores ou injusta entre as classes, e que poderia ser resolvido por meios políticos

b. Os poucos que apontaram a possibilidade de um verdadeiro colapso, uma crise inultrapassável (Rosa Luxemburgo e Henrik Grossmann) foram marginalizados, sem no entanto irem para além do entendimento reduzido à distribuição do valor

c. A problemática só é resolvida se virmos as crises como a expressão de uma produção cada vez menor de valor, à escala do conjunto da sociedade, olhando para a dinâmica da relação contraditória entre a forma do valor e a sua substância, que é o trabalho abstracto.

d. O mecanismo de compensação e o limite interno absoluto: no conjunto da sociedade, uma produção cada vez menor de valor novo

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(mais-valia) só pode ser compensada por uma absorção cada vez maior do número de trabalhadores. Isto apenas funciona enquanto o desenvolvimento da maquinaria cria mais postos de trabalho do que aqueles que suprime.

e. Postone não tirou todas as consequência da sua própria teorização, sobretudo porque não viu o conjunto do processo social global do capital

i. Parece acreditar que a dinâmica histórica do capital possa continuar indefinidamente

ii. A reconstituição do valor num novo nível de produtividade só se pode dar se o crescente número de mercadorias produzidas forem realmente compradas, e a mais-valia retornar para um novo ciclo de investimento

iii. Mas isso pressupõe uma massa de trabalhadores produtivos sempre em crescimento

f. O agudizar da contradição no contexto da 3ª revolução industrial da micro-electrónica

g. Nesta dinâmica de desenvolvimento técnico, e de forma inversa, os custos à cabeça aumentam progressivamente e, portanto, também a necessidade de capital; daí a importância crescente do crédito que acompanha a revolução da microeléctronica.

h. O colapso não começa quando for eliminado o último trabalhador produtivo de valor, mas quando são eliminados mais trabalhadores produtivos de valor do que os que são absorvidos. Um processo que há muito já começou.

16. Crise e crítica a. Não existe nenhum caminho imediato do colapso do capitalismo para

a emancipação; e inversamente é em princípio possível que os seres humanos se emancipem sem que o capitalismo colapse.

b. O reconhecimento de uma tendência objectiva do capitalismo para o colapso também não significa que se deva esperar que o cadáver do capitalismo passe por nós a boiar. Até porque o seu colapso arrastará a humanidade para a barbárie. Neste contexto, são absolutamente perigosas as ideologias que negam por princípio a existência de qualquer tendência objectiva do capitalismo.

c. Actualmente, o potencial barbárico da decomposição do capitalismo parece ser maior do que a capacidade humana de pensar contra a sua própria forma destrutiva de sociabilidade.

d. O desafio mais urgente parece estar na insistência e desenvolvimento de uma “crítica e ruptura categorial” que rompa com entendimento habitual balizado pelas categorias do capitalismo.