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Trabalho sobre a ADPF 54
Este trabalho visa analisar o voto da ministra do Suprema Tribunal(STF) Federal Rosa Weber na
Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF) 54, em que se discutiu a
possibilidade realizar a antecipação terapêutica do parto para fetos anencéfalos. O voto foi
dividido em três partes onde a ministra procurou abordar os pontos trazidos pelos
requerentes para viabilizar tal procedimento e também os pontos contrapostos levantados por
aqueles que são contrários a tal questão. Ao final do trabalho, há uma breve e objetiva crítica
não no que tange aos argumentos postos pela ministra, mas ao fato de que, numa leitura total
do voto, percebe-se – com as mais respeitosas vênias – uma contradição na estrutura
argumentativa apresentada pela ministra.
Inicialmente, no voto, a ministra demonstra os preceitos fundamentais previstos na
constituição que estariam sendo violados em que se reputam violados os seguintes preceitos
fundamentais: dignidade humana (art. 1º, III, da Constituição Federal – CF),liberdade e
autonomia da vontade(previstos no art. 5º, II, da CF) e o direito à saúde (presente nos arts. 6º
e 196 da CF). tais preceitos fundamentais estariam sendo violados pela a aplicação indevida
dos arts. 124 e 126, e 128, I e II, do Código Penal(CP), uma vez que estariam abrangendo a
hipótese de aborto a antecipação terapêutica do parto de fetos portadores de má-formação
denominada anencefalia, inviabilizadora da vida extrauterina, criminalizando mulheres que
tenham praticado tal ato.
Pedido foi na questão de se interpretar tais arts. do Código Penal conforme a CF/88,
permitindo que a gestante possa se submeter, caso portadora de um feto anencéfalo, ao
procedimento médico adequado, bastando somente a sua vontade para interromper tal
gravidez.
Entre os argumentos apontados estão:1) a má formação que causa defeito no fechamento do
tubo neural que a anencefalia causa ao desenvolvimento da gestação, sendo,
inexoravelmente, fatal para o ente em formação, seja dentro do útero, seja fora dele, ou seja,
o quadro de morte é irreversível; 2) o riscos e os danos físicos e psicológicos que a gravidez do
feto anencéfalo apresentam para a mulher, violentando a sua dignidade e sua liberdade; 3)
como nada pode ser feito pelo feto, a única possibilidade a ser feita é a sua retirada, por meio
de um médico habilitado para tal; 4) retirar tal conduta do tipo penal do art 128 do CP, uma
vez que o legislador à época em que criou tal dispositivo legal(1940), não tinha a possibilidade
de exclui-la, pois não havia diagnóstico preciso para a sua má formação.
A ministra inicia dizendo que ficou muito sensibilizada com a visita que recebeu
da Vitória de Cristo pais que parecia acometida de acrania, o que justificou, como se verá mais
a frente o caminho percorrido por ela na exposição argumentativa de seu voto na terceira
parte ao afirmar que o feto anencéfalo possui dignidade, ainda que reduzida, uma vez que ele
possui vida.
O voto da ministra se dividiu em três partes:(i) atipicidade da antecipação terapêutica do
parto, em caso de anencefalia, quanto ao crime de aborto; (ii) vontade do legislador na
retirada da anencefalia do rol das excludentes de ilicitude; e (iii) ponderação de valores entre
liberdade, dignidade e saúde da mulher e a vida do feto anencefálico.
No primeiro ponto a ministra aborda a questão da dificuldade em se definir o que é
vida(quando ela começa, quando ela termina e o que se pode entender por vida), mostrando
que há uma falácia, por parte da ciência, ao se tentar retirar de uma descrição de um fato( pois
é isso que o cientista faz) um dever ser, isto é, uma prescrição, um dever de proteção( uma
conduta a ser realizada). Segundo a ministra, a falácia se apresenta na medida em que, se a
medicina considera determinadas características necessárias para definir o que é vida e o feto
anencéfalo, apresentando tais características, as possui, ele deverá, portanto, ser protegido,
mas, se a Medicina considera determinadas características como suficientes para a vida e o
feto anencéfalo não as apresenta, não poderá ser protegido. A ministra, neste ponto, deixa
claro que embora a ciência possa auxiliar o Direito - e auxilia muito – o fato de a medicina
considerar determinadas características como necessárias para que um ente seja considerado
vivo, não quer dizer que o Direito – que cuida de aspectos de conduta, estabelecendo
prescrições e não apenas passivelmente descrevendo a realidade – não deve se reverenciar ou
tomar como verdade absoluta conceitos e teses esposadas pela ciência. O Direito, ainda mais
nesse caso, deve atinar para o que é vida segundo uma ótica constitucional, isto é,
independentemente do que a ciência - no caso, a medicina – descreva como um fato sendo ele
verdadeiro ou falso, disto não se pode tirar um dever de proteção ou não que será dado ao
feto anencéfalo.
O fruto de uma ´´verdade empírica´´, típica da pretensão cinentífica, não pode enrijecer outras
áreas tornando-as inquestionáveis, ou seja, a ´´verdade empírica´´ não pode determinar que
uso da linguagem será feito em outras áreas do conhecimento(como, por exemplo, o Direito) ,
uma vez que nem mesmo a própria ciência possui a pretensão de estabelecer verdades que
controlem absolutamente os seus próprios conceitos.
A ministra para corroborar a sua tese expõe o exemplo de Plutão que de um momento para o
outro deixa de ser planeta não simplesmente por verificações empíricas que buscam a verdade
absoluta, mas por uma votação promovida pela International Astronomical Union – votação
esta apertadíssima, diga-se de passagem – por critérios de utilidade, ou seja, uma ciência
como a astrofísica, considera uma hard sciences, estabelece um conceito do que seria um
planeta por uma votação, visando critérios de utilidade para que não somente Plutão deixasse
de ser planeta como para que outros astros também não fossem considerados planetas e não
de propriamente uma busca de uma verdade absoluta. Pode-se perceber, portanto, os
conceitos da ciência não decorrem necessariamente de definições lógica ou empiricamente
precisas, muito menos inquestionáveis, mas sim de um critério de utilidade decorrente das
necessidades do procedimento e que são descritivas conforme o paradigma de conhecimento
de um determinado momento.
No voto a ministra expõe isso muito bem, demonstrando que esse é o caso da medicina
também, pois em um momento a medicina considerava o indivíduo como morto após a
falência cardiorrespiratória, mas com o desenvolvimento de técnicas que viabilizaram a
recuperação do indivíduo, mesmo acometido por uma parada cardíaca, alteraram o conceito
de quando ocorreria a morte. A medicina passou, então, que para que o indivíduo fosse
considerado vivo era o funcionamento do cérebro, pois o funcionamento das outras partes do
corpo, em breve, sucumbirão, mas, mesmo para esse critério, houve um fato determinante no
que tange à questão utilitária: com a morte cerebral decretada, é possível captar órgãos para
transplantes que ainda estejam, funcionando. A ciência, portanto, embora tenha como
atividade a busca da descrição acurada dos fatos, também não está fora das condições sociais
e não possui a capacidade – muito embora tente – de definir e descrever os fenômenos
empíricos em suas verdades últimas.
A ministra também aborda o fato de que, nas ciências, cada uma possui uma linguagem
específica conforme o seu paradigma próprio, podendo conceitos ordinários, como, por
exemplo, vida em medicina e em biologia, serem diferentes para ciências distintas. No caso,
portanto, cabe colocar que quando se estabelece que um conceito seja verdadeiro e
absolutamente inquestionável não é propriamente científico(nem verdadeiro), nem se
coaduna com a esfera democrática. Para a ministra, citando Alexy, o Direito procura buscar
um saber que reflita uma estabilidade conceitual, via compartilhamento intersubjetivo da
comunidade linguística estabelecendo quais as regras de criação e transformação da
linguagem , para viabilizar a aplicação dos conceitos e institutos propriamente jurídicos e que
leva em consideração a jurisprudência e a legislação para manter a consistência e coerênciado
sistema e não um conjunto de pressupostos inquestionáveis e absolutos que descreve a
essência em si dos objetos.
O Direito, diferente das ciências naturais, não possui uma linguagem que procura descrever a
realidade, mas de estabelecer a ações e condutas que irão reger a sociedade. Neste ponto, há
de observar a independência do conhecimento jurídico no que se refere a estes outros
conhecimentos científicos descritivos.
Cabe ao Direito, portanto, discutir e estabelecer, dentro do âmbito legislativo e da
jurisprudência, um saber jurídico próprio, desvinculado e não subordinado do saber médico,
sobre o conceito de vida. Vale ressaltar que o fato de o Direito não estar subordinado ao saber
de outras áreas científicas, não o exime de buscar ajuda ou se valer de conceitos dados por
esses outros conhecimentos, mas sempre deixando claro que as decisões jurídicas não estão
subordinadas a tais saberes científicos.
A ministra também coloca como argumentação – muito boa, diga-se de passagem - que no CP
o aborto decorrente de estupro permite com que a gestante não prossiga com a gravidez sem
que isso configure um crime, ou seja, se um feto que tem todas as possibilidades de se
desenvolver pode ter a sua interrupção devido ao fato do estupro, previsto em lei, quanto
mais um feto que está fadado a morte(se é que se chegou a ter vida). Isso também demonstra
que embora a vida no Direito seja considerada um bem jurídico importante, ela não é
absoluta.
A ministra se vale da doutrina para fundamentar a tese de que o feto anencéfalo não possui
vida e que, por isso, não se pode considerar como um fato típico a interrupção de tal gravidez,
uma vez que não se pode matar ou deixar de viver algo que nem chegou a ter vida. Portanto,
nas palavras de Luiz Regis Prado, citado pela ministra, a má-formação no critério de morte
encefálica, a falta de capacidade para a afetividade, consciência e comunicação faz com que o
feto não possa ser considerado “tecnicamente vivo”, não sendo protegido o aspecto apenas
biológico da vida. Neste caso, o fato seria atípico em razão de uma “excludente de desvalor”
da conduta (Prado, 2008, p.102-120).
A ministra argumenta em seu voto que a vida, para o Direito, não é o simples funcionamento
orgânico(embora este também seja importante), mas a possibilidade de atividades
psíquicas que viabilizem que o indivíduo possa minimamente ser parte do convívio social, isto
é, a possibilidade de o feto possuir( ou vier a possuir) uma característica subjetiva para que
esta pudesse ser compartilhada intersubjetivamente. Ora, uma vez estabelecido isto, o Direito
pode se valer da medicina para saber em quais circunstâncias é viável as capacidades
convivência, emoção, inter-relação, cognição, consciência para que o Direito possa protegê-las,
uma vez que haverá nesse caso vida.
Segundo o Conselho Federal de Medicina a morte encefálica é algo irreversível. Diante disso, o
Direito estabelece que, sendo algo sem volta, a morte cerebral é suficiente para que o
indivíduo(quanto mais o feto anecéfalo) não apresente vida. Inviável, portanto, qualquer
possibilidade de ter consciência, emoção, sentimento, capacidade de resposta ao (ou
interação com) ambiente, e não somente de critérios e atos de desenvolvimento biológico,
viabiliza a antecipação terapêutica do parto sem que isso configure fato típico.
O segundo ponto que foi abordado no voto representa a questão da vontade do legislador na
ausência da anencefalia como causa excludente de ilicitude. A ministra ao abordar a questão
argumenta(corretamente) que o fato de o legislador não ter estabelecido expressamente na lei
a questão do aborto dos fetos anecéfalos como excludente de licitude é que, por óbvio, à
época em que tal lei foi editada(em 1940) não havia diagnóstico para prever tal circunstância,
o que não acontece nos dias de hoje. Para corroborar isso, ela se vale da excludente por
estupro, isto é, a viabilização da interrupção da gravidez de um feto saudável e que possui
chances de se desenvolver, mas que, por ser oriundo de estupro, a lei permite tal interrupção
sem que se configure um crime.
O terceiro ponto que a ministra expões como argumento foi através do uso do método de
ponderação entre a vida do feto anencéfalo e a dignidade, a integridade, a liberdade e a saúde
da gestante. No voto a ministra expõe que embora o direito a vida seja de suma importância
para o ordenamento jurídico brasileiro, ele não é absoluto, pois há circunstâncias tais em que
tal direito deverá ser restringindo em prol de outro que se mostra mais importante no caso:
que é a dignidade da pessoa humana.
No caso, o feto anencéfalo, mesmo que consiga nascer, inexoravelmente irá morrer e passará
por dificuldades devido a restrição que lhe é colocada, não apresentando capacidades
fisiológicas, mas se a gestante, manter a gestação em tais circunstâncias, sofrerá maiores
riscos à sua saúde e absurdo desgaste psicológico, com sério comprometimento de sua
integridade física e psicológica. Devem, pois, prevalecer os direitos da gestante sobre a vida
precária do feto, uma vez que essa precariedade do feto representaria a balança a favor da
gestante.
Não havendo direito que prevaleça, a priori, um sobre o outro, uma vez não há hierarquia
entre tais princípios - eles têm o mesmo status - mas, a partir do caso concreto com suas
particularidades e suas peculiaridades, realiza-se a ponderação para se aferir qual dos
princípios irá prevalecer no caso. Vale ressaltar que para o afastamento de um dos princípios
para que se aplique o outro o interprete desse lançar mão de uma base argumentativa,
expondo o porquê que tal princípio preponderou naquele caso concreto em detrimento do
outro.
Para o uso da ponderação a ministra argumentou que, por estarem em jogo o princípio da
vida do feto e a dignidade, liberdade e saúde da gestante, por meio da adequação o meio
adequado para se proteger e garantir a saúde, a integridade física e psíquica da mulher e a sua
liberdade que somente pode ser feita pela interrupção da gravidez em detrimento da vida do
feto(que, inexoravelmente, irá sucumbir), sendo também que não outro meio menos gravoso
para proteger tais direitos da gestante que a interrupção da gravidez.
Vale ressaltar que no ordenamento jurídico os graus de proteção de vida são diferentes basta
perceber a possibilidade de interromper a gravidez oriunda do estupro, isto é, mesmo um feto
que tem todas as possibilidades para se desenvolver plenamente tem restringido o seu direito
em prol de outro direito: o da gestante, vítima do crime de estupro. Ora, por este ponto, deve
o interprete não descurar da proteção da vida do feto anencéfalo, mas, exatamente por ele
estar nessa posição, a proteção de seu direito, no caso, e arrefecido para a proteção da
dignidade, liberdade e saúde a integridade física e psíquica da mulher, não havendo outro
meio menos gravoso para viabilizar tal proteção que a interrupção da gravidez.
Sendo assim, a ministra entendeu por não configurar crime e ser uma escolha pessoal da
gestante – que tem a possibilidade de não realizar – a interrupção da gravidez, quando se
tratar de um feto anencéfalo, sendo que uma tomada de decisão em sentido contrário, isto é,
obrigando a gestante a ter um filho anencéfalo(que irá inevitavelmente morrer), poderá causar
um prejuízo mais grave em aspectos físicos e emocionais na mulher do que se deixar a sua livre
escolha em prosseguir ou não com a gravidez.
À guisa de conclusão, é interessante observar que o voto da ministra apresenta uma
argumentação extremamente robusta, digna de uma magistrada que se preocupa em
fundamentar para conferir uma legitimidade inquestionável no seu mister: exercer a
jurisdição. Todavia, entendo que há um ponto controverso entre a primeira parte do voto
dela, onde se entende que o feto anencéfalo não possui vida e por isso viabiliza a tese de
atipicidade e a terceira parte, onde a ministra realiza a ponderação entre a vida do feto e os
direitos da gestante. Ora, como conciliar o fato de o feto não ter vida e depois realizar
ponderação com o princípio da vida do feto. Repito, embora o voto esteja muito bem
fundamentado, entendo que, com a devida vênia, seria melhor optar ou pela primeira tese, ou
pela terceira, mas não misturar as duas, uma vez que, ao que parece para agradar gregos e
troianos, pode-se auto enfraquecer o voto.
Referencias:
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro. Vol. 2 –parte especial, 7.ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 102-120(veja-se especialmente a p. 119).