trabalho, ferrovia e memoria
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Paulo Cesar Incio
TRABALHO, FERROVIA E MEMRIAA experincia de Turmeiro(a)
no Trabalho Ferrovirio
Universidade Federal de Uberlndia
2003
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Paulo Cesar Incio
TRABALHO, FERROVIA E MEMRIA
A experincia de Turmeiro(a)
no Trabalho Ferrovirio
Dissertao Apresentada pelo Aluno Paulo Cesar
Inciocomo pr-requisito para obteno do Ttulo
de Mestre em Histria, pelo Programa de
Mestrado em Histriada Universidade Federal
de Uberlndia, sob a orientao do Prof. Dr.
Paulo Roberto de Almeida.
Universidade Federal de Uberlndia
2003
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BANCA
Prof. Dr. DILMA ANDRADE DE PAULA - UFU
Prof. Dr. RINALDO JOS VARUSSA UNIOESTE/PR
Prof. Dr. PAULO ROBERTO DE ALMEIDA UFU
(orientador)
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RESUMO
Este trabalho foi construdo a partir de entrevistas com famlias de
trabalhadores braais da Estrada de Ferro Gois, que, aps 1957, encampada pelo
governo federal, passando a se chamar Rede Ferroviria Federal. Moraram por algum
perodo em conjuntos de casas construdas de forma precria pela empresa ao longo do
trecho ferrovirio conhecidas como turma. Busquei aprofundar e indagar como essas
pessoas recordam as transformaes nas relaes de trabalho ocorridas entre os anos de
1950 e 1970. Ao privilegiar o perodo, busquei o sentido que adquirem, para elas, as
diversas mudanas ocorridas nas relaes do trabalho ferrovirio, identificado nadecadncia das empresas ferrovirias, mudanas que culminam com o fim das casas de
turma, no incio dos anos setentas.
Ao realizarmos as entrevistas, busquei perceber a situao de
trabalhadores da empresa no como um enredo completo, mas como uma referncia que
forma um campo de memrias possveis, um campo de foras dentro do qual eles
foram pressionados a alterar hbitos, redefinir regimes de trabalho. No corpo da
pesquisa, priorizei indagar quais sentidos, como aposentados, atribuem a tais mudanas,quais possibilidades exploradas ou no nas condies de vida a que estiveram expostos.
Nas entrevistas, optei por dialogar com homens e com algumas mulheres
que moraram por algum tempo em casas de turmas. O procedimento no visou resgatar
uma amostragem que abrangesse um contexto total, mas, sim, investigar as
possibilidades lembradas, realizadas ou no, no cotidiano da casa e do trabalho,
entendendo que, situados no mesmo campo de trabalho, podem ser visualizados com
dinmicas diferenciadas.
Mesmo a maioria dos entrevistados sendo pessoas que trabalharam na
empresa como feitores, optamos, no desenvolver da pesquisa, por no os tratar apenas
com a especificidade do cargo, mas os perceber em uma dinmica implementada pela
empresa nas relaes de trabalho que no os diferenciava, nos espaos de moradia e de
condies da situao de trabalhadores. As diferenciaes foram identificadas nas
lembranas que guardam da situao marginal que gozavam na empresa.
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Abstract
This project was made by interviews with handworkers families of goisrailroad, which, after 1957, is taken by the federal government, being named federalrailroad network. They lived for a while at communities of homes built in a precariousway by the company through the railroad line, know as group. I have tried to searchdeeply and ask how those people remembered the transformations about the workrelationships between 1950 and 1970.
As I was privileging that period, I tried to show them the several changes
occurred in the railroad work relationships, finding out in the decadence of the railroad
companies, changes that end up with the end of the group homes, at the beginning of the
70 `s.As we were doing the interviews I tried to notice the situation about the workers
in the company not as a whole, but as a regard that makes a possible memories field, a
power camp in witch they were forced to change habits, redefine work rules. In the
search, I first tried to ask what senses, as retired, is related to such changes, what
possibilities explored or not at the life conditions they have been exposed.
In the interviews, I chose to dialogue with men and some women who lived for a
while at group homes. The procedure dont mean to search a sample that contained a
total context, but, to investigate the remembered possibilities, performed or not, at the
work and home routine, understanding that, situated at the same workfield, can be seen
with different dynamics.
Although most part of the interviewed were people who worked at the company
as foremen, we chose, during developing the search, not to consider them with the
function in its own, but to understand them in a dynamic, implemented by the company
in work relationships which didnt differ them, at the home spaces and at the conditions
about identified in the memories they keep of the marginal situation they amused in the
company.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer s contribuies diversas incorporadas a
este trabalho, mesmo sem meno explcita e ao mesmo isent-las de
quaisquer erros ou problemas que nele ainda persistam.
Ao meu pai Jos Francisco Incio e a minha me Izoleta de
carvalho Incio, ex-turmeiros, pela minha vida, pelas entrevistas
concedidas e pelas informaes diversas que me possibilitaram localizar os
entrevistados.
Aos ex-turmeiros e turmeiras pela convivncia nas entrevistas e
a cumplicidade no embate dialgico, o sincero agradecimento pelo
ensinamento poltico de quem aprendeu que a luta pela construo de um
mundo melhor passa necessariamente pelo respeito e considerao por suas
memrias, no evocadas simplesmente como vtimas do capitalismo, mas
como sentimentos diversos de resistncia e aceitao e, sobretudo, na
belssima luta cotidiana da construo incessante da histria do trabalho na
nossa regio.
A Paulo Roberto de Almeida, por ter aceitado o desafio da
orientao, pela convivncia nesses dois anos e pelo crdito no
desenvolvimento desta pesquisa.
Ao Prof. Dr. Rinaldo Jos Varussa e a Prof. Dr. Dilma Andradede Paula, por terem aceitado o convite para participao em minha defesa
de mestrado.
A Prof. Dr. Clia Rocha Calvo, pelas contribuies a este
trabalho, principalmente em minha qualificao.
Aos professores do curso de Histria do Campus de Catalo, pelo
desdobrar nas atividades a fim de que eu pudesse diminuir a carga horria
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e me dedicasse mais pesquisa. Em especial, a Adriana Ciriaco,
companheira de alegrias e angstias de mestrando; a Luiz Carlos do Carmo,
pelo auxlio, em discusses sobre os dilemas e desafios de historiador nomundo atual; a Cludio Lopes Maia, pelo aprendizado contnuo da luta
sindical; Jos Eustquio Ribeiro, amigo na disciplinarizao do cotidiano
de professor acadmico, pelas horas alegres de convivncia; a Eliane
Martins Freitas, pela colaborao no incio da construo do projeto ao
mestrado.
Aos amigos de caminhada durante o perodo de curso a alegria de
t-los conhecido e termos partilhados angstias e alegrias em especial Ana
Paula, Maucia, Sheille, Srgio Paulo e Alexandre.
A Maria Helena, secretria do mestrado, pela amizade e
cumplicidade na realizao dentro dos prazos dos trmites burocrticos do
programa.
Aos professores do Campus da UFG em Catalo com os quais tenho
partilhado na luta a esperana da construo da universidade pblica,
enfrentando, alm da lgica neoliberal do desmonte da instituio,
constantes enfrentamentos com o Poder Pblico Municipal.
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INTRODUO
Busquei, com esta pesquisa, perceber como algumas pessoas, hoje
moradoras da cidade Goiandira (GO) recordam o perodo em que viveram nas casas deturmas1 onde, de forma direta ou indireta, mantiveram relaes com as condutas
exigidas pela Estrada de Ferro Gois e da Rede Ferroviria Federal. Procurei identificar, nas
lembranas dos entrevistados, alguns elementos indicativos do terem sido ferrovirios.
Tive como objetivos ainda, indagar e ao mesmo tempo ouvir pessoas que
viviam marginalmente na empresa - tidas como braais, sem qualquer qualificao
especial -, identificar o significado do trabalho ferrovirio em suas vidas, a sada das
fazendas, a entrada na empresa e, finalmente, a ida para a cidade de Goiandira, em
meados dos anos setentas.
Perceber uma srie de presses exercidas em diversos campos a partir das
mudanas ocorridas no mundo do trabalho, envolvendo horrio, moradia, foi aos poucos
um exerccio inacabado de descortinar o ritmo das relaes de trabalho que envolveram os
trabalhadores conhecidos como turmeiros, os novos olhares, as novas vivncias.
Nesse trajeto de pesquisador e morador dessa pequena cidade, fui perceb-la
no como o resultado de um surto modernizador, mas no ritmo dilacerador de vivncias.
Percorri suas ruas na busca dessas pessoas. A dificuldade de encontr-las, em parte, deveu-se por no manterem contato entre si, nem com a empresa. Esto
dispersas, com as marcas fsicas e culturais do trabalho que desempenharam. Alguns
modos que usam para organizar as lembranas do passado tambm usam como
contraponto realidade atual o mundo que experimentam..
Ao buscarmos alguns referenciais do que era ser turmeiro, no tive a
inteno de evidenciar os limites a que estavam expostos pela condio de trabalho, mas
o espao onde movimentavam e construam expectativas de vida. Os turmeiros eram
trabalhadores braais que se dedicavam a servios de manuteno das condies de
trfego de trechos ferrovirios da Estrada de Ferro Gois. Formavam um segundo
contingente de trabalhadores braais, enquanto havia os trabalhadores que formavam
um grupo de construo conhecido como remodelao de trechos ferrovirios.
Formavam uma mo-de-obra para os trabalhos de manuteno, executando servios
como troca de trilhos, nivelamento, substituio de dormentes.
1Turmas eram conjuntos de casas situadas ao longo do trecho ferrovirio cedidas pela empresa para seustrabalhadores braais, chamados de turmeiros, residirem com suas famlias.
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Em relao a outros trabalhadores da empresa, constituam um
contingente que trabalhava em condies especficas. Moravam em casa de turma,
formadas em mdia com seis trabalhadores, separados de dez em dez quilmetros,
residindo nas margens dos trechos da ferrovia, algumas prximas outras distantes das
cidades, chefiados por um feitor que tambm residia nas turmas e por um mestre de
linha que passava esporadicamente pelos locais de trabalho.
Estavam organizados em um primeiro tipo de relao de trabalho
implementado pela Estrada de Ferro Gois desde o incio do sculo XX, relao que se
manteve at o incio dos anos setentas, quando a empresa transfere esses trabalhadores
para as cidades e acaba com as casas de turma. A partir das cidades, formaram os
pelotes de trabalhadores que se deslocavam para os trechos da estrada, deixando as
famlias na cidade e voltando nos finais de semana.
Nas entrevistas que fiz, foram surgindo como elementos relevantes, as
mudanas sofridas a partir da entrada dessas pessoas para o trabalho ferrovirio. Nas
especificidades do trabalho, estavam submetidas a um cotidiano que envolvia
diretamente toda a famlia, considerando a exigncia da empresa de morarem nas
margens dos trilhos.
Foi possvel perceber que a experincia de turmeiro sinaliza traumas que
os trabalhadores sofreram: a entrada para a empresa e o confronto entre novas maneirasde trabalhar e as diferenas com horrio, disciplina, hierarquia. Isso fez com que
sentissem alteraes em suas vidas e um rompimento com o passado, experimentado em
atividades que desempenhavam em fazendas da regio.
A elaborao de um sentido para as mudanas e as perdas acarretadas de
costumes que mantinham nas relaes de trabalho anterior faz com que recordem o
perodo anterior como dotado de uma idealizao ao lembrarem um percurso inverso
das condies de trabalho na Estrada de Ferro Gois.Procurei evidenciar alguns marcos estabelecidos em suas vidas, como a o
ingresso empresa, a sada de uma relao de trabalho no assalariado para o
experimento de relaes assalariadas, a mudana da concepo de tempo - antes
mediado por condies naturais entendidas usualmente como trabalho de sol a sol -
para um trabalho medido pelo tempo exigido pela empresa, a nova relao de laos de
sociabilidade que estabelecem ao sarem de condies de trabalho e irem para a
ferrovia.
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Eram trabalhadores analfabetos, apenas com experincia em servios
braais executados em fazendas. Ao dialogar com os relatos que fazem, visei perceber
como trabalhadores da Estrada de Ferro Gois sentiram as novas condies de vida e de
trabalho estabelecidas. Pude perceber que a percepo de uma realidade mediada pelas
exigncias da ferrovia foi sentida como algo que ameaou algumas concepes que
tinham, como certa autonomia familiar no desenvolvimento do trabalho nas fazendas,
interferncia direta no ritmo da produo, distanciamento de moradia de outras pessoas
o que influenciava que a relao estabelecida na criao dos filhos.
O desenvolvimento da pesquisa no campo da Histria Social foi um
dilogo intenso, considerando os rigores da pesquisa, a questo do tempo do
pesquisador, o encontro com os ex-turmeiros(as) moradores da cidade de Goiandira
revivendo expectativas de suas vidas. Outros fatores tornaram esse trabalho complexo,
como o construir um presente tenso carregado de projetos do passado (alguns
realizados, outros no), as frustraes e expectativas, as diversas maneiras criadas para
sobreviver em situaes extremamente precrias de trabalho e como conseguiram
construir, no cotidiano, o seu prprio espao. O local de vivncia com suas marcas, suas
elaboraes culturais, suas resistncias e aceitaes, espao do sofrimento das
brincadeiras, forjando, no contato com a empresa, um espao de vida.
Percebi que questes como modernizao, ferrovia, trabalho assalariado
e cidade no eram vistas pelos turmeiros como opo, mas como presses com as quais
tiveram de repensar em seu cotidiano, fatores como hbitos alimentares, educao dos
filhos.
Fizemos leituras de autores que produziram pesquisas a partir dos anos
setentas e perceberam, na ferrovia, um sentido de progresso e desenvolvimento, bem
como um dos marcos de modernidade para o Estado e uma etapa da integrao
crescente do Estado a uma modernidade capitalista. Essa percepo do Estado a partirda chegada dos trilhos criou, na historiografia goiana, um papel histrico para a Estrada
de Ferro Gois at a dcada de 30. Aps este perodo identificada uma crise crescente
em meio a mudanas, a ferrovia vai sendo substituda transporte rodovirio.
Mais do que retornar aos marcos desses trabalhos, sugestivo pensar
como aparecem e so organizados a partir de uma temporalidade - a dcada de 70 - com
fortes implicaes para pesquisas que passam a surgir nos espaos acadmicos. Ao
mesmo tempo em que demarcam perodos de nossa histria, os marcos conferem aoscontemporneos um certo sentido de herdeiros das mudanas do passado, como se
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regies do Estado, em 1970, representassem o pice de um processo iniciado com a
presena dos Bandeirantes, em 1822.
Tentando perceber um sentido histrico no passado do Estado, o
professor CHAUL tenta articular vrias marchas, vindas de fora, como explicativas para
um rumo de progresso e desenvolvimento:
Foram vrias marchas que abriram caminhos, renovaram fronteiras eestabeleceram marcas. Primeiro vieram os bandeirantes desbravadores deterras, vidos por ouro, dizimadores de ndios. Abriram picadas na mata quasevirgem colecionaram doenas, inventaram roas de sobrevivncia e chegaram terra dos ndios goyazes. E mais chegaram ao ouro dos ndios goyazes. Oencontro entre a sede e o pote2.
A chegada dos bandeirantes, em 1722, construda na segunda metadedo sculo XX como uma primeira marcha para o oeste a primeira tentativa de
arrancar o Estado do aparente atraso/imobilismo no qual se encontrava. Mesmo
denunciando os Bandeirantes como dizimadores de ndios, no relato do autor
sobressai um certo herosmo daqueles que primeiro abriram as fronteiras do Estado para
uma influncia econmica externa, soando como uma origem distante de um futuro
progresso que j se anunciava.
A marcha para o oeste entendida em dois movimentos que teriamredimensionado a economia goiana:
O segundo grande desbravamento das fronteiras goianas pode ser sentido naascenso da agropecuria: primeiro atravs do boi que se autotransportava;
segundo por meio dos trilhos da estrada de ferro. Ambos, cada um em seutempo, trouxeram para Gois novas feies territoriais, abriram caminhos,expandiram espaos, dimensionaram a economia regional3.
Essas transformaes, sentidas pelo Estado, ordenadas a partir dos anos
setentas, constroem um sentido de identidade regional, possibilitando, que ao olhar o
passado, os goianos tivessem condies de perceber as origens do Estado, criando um
sentimento de unidade estadual. Seramos herdeiros dos bandeirantes/mineradores, da
criao de gado e dos trilhos da ferrovia.
2
CHAUL, Nasr Fayad. Marchas para o Oeste. In: SILVA, Luiz Srgio Duarte da (Org.). Relaes Cidade Campo: Fronteiras. Goinia, Ed. UFG, 2000, p. 113.3Idem, p. 115.
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De maneira difusa, o historiador atribui ao passado um sentido de
unidade que parece ser uma preocupao de sua poca, delineando um sentido aos fatos:
minerao, criao de gado, chegada da ferrovia. Um sentido que responde angstia
de seu tempo. Essas construes estariam postas diante das transformaes que o Estado
sofre na dcada de 70, inclusive com crescimento de algumas cidades. Regionalmente,
com a chegada das empresas mineradoras na cidade de Catalo, possvel notar uma
apropriao de memorialistas que passam a ser percebidos como construtores de uma
histria local.
A sinalizao de mudanas no Estado, com sua integrao ao capitalismo
nacional/internacional, a partir da presena da ferrovia, vista por BORGES em sua
dissertao de mestrado (1982). O ttulo O Despertar dos Dormentes sugere o
despertar das pessoas com a chegada da ferrovia, tendo em vista a instalao de relaescapitalistas de produo.
O autor entende a primeira fase da instalao/operao da Estrada de
Ferro Gois (1909 1922) como uma redefinio das estruturas do capitalismo nacional
diferente do primeiro, cujo sentido estaria posto apenas no fornecimento de produtos
primrios aos centros produtores, sem, contudo, modificar as estruturas internas:
O que se pretende provar, por conseguinte, que a implantao de estradas de
ferro na Amrica Latina, particularmente no Brasil, serviu, numa primeiraetapa, ou seja, at o final do sculo passado, quase que exclusivamente economia agro-exportadores, ligando os centros produtores aos portos deexportao. Num segundo momento, a partir das primeiras dcadas deste
sculo, as ferrovias passaram a servir tambm, como vias de expanso dasrelaes capitalistas de produo4.
Essa fase de operao da Estrada de Ferro Gois estaria entendida no
apenas como fornecimento de produtos a outros mercados, mas como uma redefinio
das estruturas internas do Estado na maneira de se produzir, com modificaesmateriais/simblicas, na vida dos moradores do Estado. Quando aborda valores culturais
dos goianos, o autor percebe o mesmo processo de intensas modificaes:
A nvel ideolgico, a estrutura social tambm sofreu o impacto damodernizao estimulada pela ferrovia, Dentro de um processo dialtico, asidias e valores petrificados dessa sociedade regional, assentada sobre umaestrutura fundiria retrgrada, comearam a se transformar5.
4
BORGES, Barsanulfo Gomides. O Despertar dos Dormentes: Estudo sobre a Estrada de Ferro de Goise seu papel nas transformaes das estruturas regionais: 1909-1922. Goinia: Cegraf, 1990, p. 11.5Idem, p. 87.
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Os modos de vida dos goianos so articulados no perodo anterior
ferrovia como valores petrificados. Considero que esses trabalhos tm proporcionado,
com pequenas discordncias, um vis de interpretao do Estado ao buscarem no
passado a construo de uma identidade estadual que precisaria passar pelo avano
crescente do capitalismo e um debate sobre moderno/atraso.
Nessas pesquisas, os trabalhadores, tanto das fazendas quanto da
ferrovia, tm sido percebidos apenas como marginais no processo. So colocados como
refns dessa lgica de expanso capitalista, prisioneiros de estratgias empresariais ou
dos fazendeiros pela incapacidade de se organizarem, em parte devido aos prprios
limites construdos pela vida que tiveram, pelas dificuldades cotidianas que enfrentaram
em uma regio dependente de estruturas do capitalismo nacional/internacional:
Esse paternalismo patronal estava presente nas relaes de trabalho naCompanhia Estrada de Ferro Gois: em 1909 foi institudo um servio
previdencirio, criando uma caixa de Beneficncia com o fim principal deatender os empregados e operrios do trfego e construo. Os fundos eram
formados por contribuies mensais dos prprios trabalhadores. Foi institudoainda servio mdico e hospitalar para atender operrios e servidores dacompanhia. Esta postura assistencialista da empresa contribua para manter a
paz nas relaes entre capital e trabalho e aumentar a produtividade deste6.
Ao estabelecer relao entre a empresa e os operrios o autor sinaliza que
nos setores de trfego e construo, apesar de serem vitais para o sistema ferrovirio, os
trabalhadores representavam dificuldades para a empresa. Aponta, contudo estratgias
que ela teria usado para pacificar as relaes, conseguindo manter um acerta
estabilidade, evitando assim que conflitos surgissem nas relaes de trabalho.
Em seu trabalho de doutorado, ao pesquisar as transformaes scio-
econmicas sofridas pelo o Estado entre 1930 e 1960, bem como sua integrao, sob
novos referenciais, a uma economia nacional, BORGES, atribuiu a mesma passividade a
esses trabalhadores da Estrada de Ferro Gois:
As relaes de trabalho na conservao e manuteno da via permanentevariavam entre regimes mensalistas e diaristas. A mo-de-obra em geral eramal remunerada, principalmente para os diaristas que formavam a maior parteda fora de trabalho no setor ferrovirio em Gois. Estes no tinham direito a
frias ou a qualquer seguridade social. Nos perodos de crise, quando faltavamrecursos financeiros, a companhia atrasava o pagamento e demitia parte dos
6Idem, p. 71.
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trabalhadores. (...) Este quadro de relaes de trabalho s foi alterado quandoa E.F. Gois foi incorporada Rede Ferroviria Federal S/A em 1957 A partirda, os contratos de trabalho dos ferrovirios goianos passaram a ser regidos
pela CLT7.
Os trabalhadores so visualizados a partir das condies difceis de trabalho,
ou a merc de mudanas do contrato de trabalho com a empresa. O ritmo de vida deles
aparece em dois modos de vida distintos: um anterior chegada da ferrovia e outro depois
da instalao da empresa. O autor aborda marginalmente os trabalhadores, tendo em vista o
intuito de entender uma sociedade posta em movimento pela Estrada de Ferro Gois,
passando para uma outra com um mercado onde circula bens materiais/simblicos, em via
de mo nica capitalismo sociedade tradicional, ou atrasada.
As prprias condies de trabalho a que esses trabalhadores estiveramsubmetidos pela empresa m remunerao, sem frias, ausncia de seguridade social,
fragilidade do contrato de trabalho, atraso do pagamento s seria melhor se
modificada por uma medida governamental. Essa situao embrutecida de trabalho
fez com que os trabalhadores aparecessem na histria local pela ausncia de condies
dignas de vida. Numa relao direta, isso inibiu uma presena maior deles na histria
local, pois estariam condenados a serem vislumbrados sombra de uma empresa ou da
insgnia de um coronel. A insero dos trabalhadores se constri pela negatividade:vtimas do capitalismo, condenados pelas relaes tradicionais/atrasadas em que viviam.
De uma vida de dominao/subordinao nas fazendas - maneira como
se inserem esses trabalhadores em uma sociedade agrria - passam mesma relao do
trabalho na empresa. Parecem ter de esperar que o capitalismo instalado de forma
satisfatria possibilitasse aos trabalhadores, em sindicatos e em outras organizaes,
terem condies de se opor s condies a que estariam submetidos.
Ao entrarmos em contato com tais abordagens, buscamos possibilitar
outra leitura que tirasse os trabalhadores dessa viso de imobilismo e atraso a que teriam
sido relegados a partir dos anos setentas. Nesse sentido, direcionei uma leitura dos
hbitos violentos dos moradores de Catalo no incio do sculo XX, quando elaboramos
o trabalho de final de curso.
A violncia era percebida naquela fase como elemento que possibilitava
um vis alternativo de anlise. Os moradores de Catalo teriam construdo uma
7BORGES, Barsanulfo Gomides. Gois nos quadros da economia nacional: 1930-1960. Goinia: Ed. DaUFG, 2000, p. 49.
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perspectiva para se contraporem ao projeto de transformaes a que foram submetidos
com a chegada da ferrovia. Nos hbitos dos moradores da cidade, estaria inserida uma
resistncia consciente s mudanas difusas, frutos da chegada da empresa.
Dentre as mudanas, podia ser percebida uma srie de medidas
patrocinadas por poderes pblicos, como a Intendncia e o Conselho Municipal, como
construo de ruas, redefinio do uso do espao urbano e do que era permitido nele ser
exercido. Ao serem confrontados com estas transformaes, os moradores teriam
buscado, em hbitos violentos, uma das formas de resistir s mudanas.
As discusses iniciais foram encaminhadas ao se perceber a ferrovia
como elemento que gerou tenses nos locais por onde passou, principalmente a regio
de Gois composta por diversas cidades, que ficou conhecida como a regio da Estrada
de Ferro.
Em minha monografia de final de curso, a percepo da presena da
ferrovia foi sendo pensada como meio modernizador que problematizou viveres das
pessoas, sentida enquanto negao de alguns modos de vida das pessoas no incio do
sculo XX.
Catalo se inseria no corpo da discusso enquanto local que sentiu, de
forma saliente o processo cujo combate violncia dos seus moradores, a maioria vinda
do campo para a cidade, seria uma sugesto de como seus costumes foram sendo
negados. A violncia tornou possvel perceber como essas pessoas teriam reagido ao
processo de modernizao pelo qual a cidade passou, ao serem pressionadas a mudar
seus viveres, buscando no confronto fsico um aparato material/simblico como uma
das maneiras de evidenciar suas oposies.
Naquele perodo, a pesquisa acadmica sofria influncia desses trabalhos
produzidos em Gois que tm buscado resgatar a presena da ferrovia no Estado a partir
de uma insero/modernizao, momento no qual o Estado de Gois passaria a serincludo nos circuitos do capital.
As produes historiogrficas sobre Gois podem ser entendidas, de
maneira rpida, como se o Estado tivesse sido conduzido s difceis articulaes do
capitalismo nacional/internacional a partir de vrias movimentaes no caminha
histrico, como as marchas para o oeste. Poderamos linearizar, em um campo poltico,
e perseguir as pegadas do Estado de Gois a partir das botas dos bandeirantes, as
insgnias dos coronis, a iluminao de Pedro Ludovico, construo de Goinia e,
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disciplinas Trabalho e Representaes e Seminrios de Pesquisa, bem como nas
misses de trabalho propiciadas pelo PROCAD, foi surgindo a necessidade de
redirecionar caminhos e repensar conceitos.
Em meio s discusses, fui tomando contato com procedimentos de
pesquisa, leituras de autores no campo da Histria Social e, na medida em que
sentamos os limites do que estava trilhando para o fim pretendido, podia perceber como
a vida das pessoas podia ser sentida, como experimentaram as mudanas. Assim fomos
incitados a de buscar novos procedimentos e redefinir os conceitos usados bem como a
forma como estavam sendo trabalhados.
A maneira como se pensava os trabalhadores e os espaos de
documentao onde suas vidas eram buscadas foram sendo sentidos como insuficientes
para os novos contornos os novos embates travados nos espaos de discusso.
De forma tensa e lenta, s vezes mais lenta que a tolerncia da CAPEs
com os programas de Mestrado, o projeto original foi sendo repensado. Do caminho
original, tentei recuperar a cidade de Catalo e Goiandira dos anos trintas, ligada aos
ento incipientes ncleos urbanos pela empresa Estrada de Ferro Gois. A pesquisa foi
direcionada para os espaos oficiais dessas cidades: intendncia/prefeitura, Poder
Judicirio e em documentos produzidos nestes locais.
Um dos incmodos que me guiou nesses caminhos oficiais foi o contato
com produes diversas, muitas delas escritas por memorialistas nos anos setentas, que
produzem um discurso a partir de marcos oficiais, comeando com a passagem do
Anhanguera, em 1722, indo at a chegada de empresas mineradoras, no incio dos anos
setentas.
Ao recuar nos anos trintas e enfocar as cidades de Goiandira e Catalo
que estariam se tornando grandes povoamentos urbanos, encontrar seus trabalhadores,
v-los andando pelas ruas, disputando espaos e, de suas pegadas e conflitos, tentarpensar as duas cidades. Da origem no Anhanguera, discurso linearizado, para as cidades
da regio nos anos setentas, e lido/inserido na histria destes locais, a pesquisa pretendia
contar as histrias dos trabalhadores a partir dos anos trintas com base em documentos
oficiais dessas localidades.
Diante do discurso produzido pelos memorialistas, pensava em contrapor
a um outro que buscasse um espao de discusso que no aparecia no primeiro - a
presena dos trabalhadores.
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De forma angustiante, no transcorrer da pesquisa e com a incorporao
de procedimento, fui alertado que, embora bem intencionada e distante dos
memorialistas, a pesquisa incorporava alguns caminhos por eles assumidos na produo
dos discursos. Era como um aplainar a realidade, fazendo-a igual para todos os
trabalhadores, pensando o local apenas a partir de espaos pblicos de interveno
destes trabalhadores, organizando-os apenas a partir da presena de um prefeito ou um
juiz municipal.
Quanto documentao, fui percebendo que, em grande parte, a escrita no
fazia parte do cotidiano dos trabalhadores. Alguns conflitos no estavam explicitados nem
nestes espaos, nem na forma como era elaborada sua produo, a escrita.
Percebi que, pelos caminhos da pesquisa, ia construindo, a documentao
pelo vis pretendido no fornecia respostas satisfatrias. Os trabalhadores apareciam
apenas em estatsticas como pagadores de impostos. Destas aparies espordicas e
fugidias fui notando os impasses para articul-los em um discurso que abrangesse os
locais pesquisados - o viver e o construir os espaos das duas cidades.
Nessas consideraes, ficou marcado que apenas o olhar oficial, produtor
dos documentos pesquisados, era insuficiente para as respostas por ns buscadas.
Nas leituras de alguns trabalhos de THOMPSON8, principalmente na
busca em problematizar como as pessoas experimentaram as mudanas ocorridas na
Inglaterra, em meados do sculo XVIII, perodo entendido de mudanas nas estruturas
do pas e avano do capitalismo, surgiu, de forma intrigante, um pensar as mudanas a
partir de algumas presses que os turmeiros sofreram e como eles recorrem a costumes
construdos em modos de vida anteriores para se opor a tais transformaes. A maneira
como foram incorporando novos modos de viver nos influenciou no desenvolvimento
de uma metodologia de pesquisa.
Na pesquisa do autor, os costumes so vistos como uma arena, onde asdiversas disputas ocorrem:
...o processo do capitalismo e a conduta no econmica baseada nos costumesesto em conflito, um conflito consciente e ativo, como que numa resistncia aosnovos padres de consumo (necessidades), s inovaes tcnicas ou
8 Dentre os trabalhos podemos destacar: Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular
Tradicional. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. As Peculiariedades dos Ingleses e Outros Artigos.NEGRO, Antnio Luigi e SRGIO, Silva (organizadores). Campinas: Editora da Unicamp, 2001.THOMPSON, E. P. A Misria da Teoria: ou Um Planetrio de Erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
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racionalizao do trabalho que ameaam desintegrar os costumes e, algumasvezes, tambm a organizao familiar dos papis produtivos. Por isso podemosentender boa parte da histria social do sculo XVIII como uma srie deconfrontos entre uma economia de mercado inovadora e a economia moral da
plebe, baseada no costume9.
Fui construindo uma percepo que buscava visualizar como fio
condutor as experincias lembradas pelos turmeiros como um campo denso em que no
recordar atribuem um sentido que tomaram individualmente para suas vidas.
Esse caminho me faz pensar os trabalhadores no apenas como vtimas
da crueldade de um sistema econmico, de uma lgica iluminada de uma empresa ou
de um aparelho de estado de onde viriam as mudanas. Mas, sim, um momento de
intensas presses, onde trabalhadores iletrados entram no como cumprindo um sentidohistrico, a derrubada do capitalismo, mas como reagem a partir dos modos de vida que
tinham e que so ameaados no bojo destas mudanas.
No mesmo trabalho, o autor supracitado questiona como perguntas feitas
ao passado podem assumir uma perspectiva tida como vencedora. Na questo por ele
apontada, a vitria de um comrcio nos moldes do capitalismo:
Como o capitalismo (ou seja o mercado) recriou a natureza humana e asnecessidades humanas, a economia poltica e seu antagonista revolucionriopassaram a supor que esse homem econmico fosse eterno. Vivemos o fim deum sculo em que essa idia precisa ser posta em dvida. Nunca retornaremos natureza humana pr-capitalista; mas lembrar como eram seus cdigos,expectativas e necessidades alternativas pode renovar nossa percepo da
gama de possibilidades implcitas no ser humano. Isso no poderia at nospreparar para uma poca em que se dissolvessem as necessidades eexpectativas do capitalismo e do comunismo estatal, permitindo que a naturezahumana fosse reconstruda sob uma nova forma?10.
A perspectiva delineada pelo autor possibilita pensar sobre algumas
questes surgidas de um presente aparentemente homogeneizado por uma vitria do
capitalismo. Fato que pode nos levar a acreditar que todas as necessidades e
expectativas dos trabalhadores estivessem, desde os primeiros tempos do sistema,
confundidas com o seu jogo de interesses e que no fosse um relacionamento sempre
tenso, em transformao.
9
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudos Sobre a Cultura Popular Tradicional.So Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 21.10Ibidem, p. 23.
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Nessa reflexo, senti uma necessidade peculiar de resgatar, a partir de
setores marginais, trabalhadores braais da Estrada de Ferro Gois. Conduzi minha
pesquisa a partir de aspectos de suas vidas, como sentiram e elaboraram as
transformaes ocorridas e algumas maneiras que usaram para intervirem nestas
mudanas.
Nas entrevistas, a ferrovia foi surgindo no como um todo articulado
universal, entendida numa percepo comum de todos os trabalhadores e moradores da
regio, conferindo um significado para o local, seja o nascimento de uma cidade. Seu
sentido foi sendo percebido na dimenso construda por esses agentes, num recompor
contnuo que unia passado e presente em dimenses nicas da memria, articulada em
um nico discurso. Foram aparecendo dimenses do trabalhar na ferrovia enquanto
experimentar emprego fixo e assalariado, com horrios fixados e presena constante do
feitor, em oposio ao trabalho nas fazendas, que a maioria se dedicava enquanto
agregados.
A jornada dupla de trabalho, ferrovia, fazendas como composio
salarial, a precariedade das condies de moradia, a difcil adaptao inicial s
exigncias da empresa, o adaptar cidade nos anos setentas quando se acabam as casas
de turma, a participao religiosa em igrejas do local, tudo isso ia sendo incorporado
como novos aspectos de vida.
Com as novas especificidades, repensei todo o trabalho: de uma posio
marginal na pesquisa, os testemunhos de pessoas que experimentaram o viver na turma
foi, em alguns momentos, inclusive angustiantes, ocupando dimenso cada vez maior na
pesquisa, terminando por se tornar preocupao central.
Toda a problemtica, ao mesmo tempo em que redirecionava a pesquisa,
tambm causava tenso ao pesquisador, em parte pelo preconceito, por ver em uma
mo-de-obra analfabeta, conhecida na empresa como tatu, alegoria por lidaremessencialmente com servios braais, sem necessitar de qualquer qualificao, a
possibilidade de construir um caminho relevante em uma pesquisa de mestrado. Esses
trabalhadores tinham dificuldade em lidar com a escrita e no cotidiano no dependiam
nem usavam de registros em espaos oficiais.
Ao optar por trabalhar com entrevistas, iniciei uma reflexo sobre as
dimenses do trato com os entrevistados. Busquei perceber como, em um processo
dinmico, os moradores analisam a experincia de ter morado em casas de turma, apartir de moradores de Goiandira:
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Mas o realmente importante no ser a memria apenas um depositriopassivo de fatos, mas tambm um processo ativo de criao de significaes.Assim, a utilidade especfica das fontes orais para o historiador repousa notanto em suas habilidades de preservar o passado quanto nas muitas mudanas
forjadas pela memria. Estas modificaes revelam o esforo dos narradores
em buscar sentido no passado e dar forma s suas vidas, e colocar a entrevistae a narrao em seu contexto histrico11.
Alm das diferenciaes individuais, as entrevistas apontavam marcos na
vida dos trabalhadores em suas casas de turma, uma srie de conflitos, muitos
lembrados de forma tensa, agora na vida na cidade. Fui me aproximando de suas vidas
sem a preocupao em construir um grande contexto a partir de contextos particulares,
percebendo dimenses diferentes, individualmente e por funo, o trabalhador, o feitor
o ser mulher moradora em turma, o Senhor Dito Juliano, negro, que dos entrevistadosfoi o nico que no chegou a feitor. Nas entrevistas com a Dona Irani e Guimar, as
dificuldades em preparar as refeies nas horas certas, s vezes, noite, quando havia
algum acidente estendia as horas de trabalho dos maridos, as lembranas do tempo de
gravidez, distantes das famlias que estavam em fazendas e em cidades.
Nos feitores, percebi as dificuldades do falar das broncas e das
humilhaes que sofriam por parte dos mestres de linha, dos maquinistas, dos chefes de
estao e de funcionrios do escritrio. A dificuldade de preencher relatrios diriossobre os trabalhos feitos e controle de estoque das peas utilizadas. A dificuldade em
controlar e ordenar uma mo de obra rebelde que no aceitava com facilidade as ordens
dadas. A situao difcil dos feitores em estarem mais prximos dos trabalhadores que
tinham de controlar do que uma chefia da empresa.
Escolhi realizar algumas entrevistas com trabalhadores, em sua maioria
os que entraram na poca da Estrada de Ferro Gois e os que, nas mudanas das
condies de trabalho dos anos setentas, foram transferidos para Goiandira. Apesar de
ter dado preferncia em buscar pessoas que ficaram na empresa e se aposentaram nela,
encontramos poucos nesta situao12. A maioria das pessoas que entraram como
11PORTELLI, Alessandro. O que faz a histria oral diferente . In: Revista Projeto Histria, n 14. SoPaulo, fev. 1997, p. 33.12At o momento conseguimos entrevistar o Sr. Benedito Juliano Filho, entrevista realizada em 13/06/02
e a viva de um trabalhador, Guimar Calixto Raimundo, que foi casada com. Gaspar Raimundo, quepermaneceu como trabalhador at aposentadoria e tinha problemas de alcoolismo entrevista feita no dia20/07/2002.
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trabalhadores diaristas13 e que depois passaram a mensalistas, conseguindo chegar a
feitor.
No dilogo com as entrevistas, os anos setentas foram surgindo enquanto
momento significativo que cruzou as experincias individuais narradas, pois quando
so transferidos para as cidades, momento em que reelaboram alguns aspectos de suas
vidas.
Com as famlias morando na cidade, os feitores e trabalhadores so
organizados em pelotes saindo das cidades e indo para os trechos, deixando a famlia
na cidade. Esse fator foi marcante na vida dos entrevistados que, de maneira geral,
compuseram duas fases distintas de vida. A primeira, a vida familiar nas fazendas,
geralmente como agregados, a vida nas casas de turma, pensadas enquanto vida na
roa. A segunda, o perodo depois dos anos setentas, lembrado como a ida para a
cidade. A partir da a educao dos filhos e a participao religiosa se delinearam.
possvel perceber, nas entrevistas feitas e em alguns documentos, como
a revista O Ferrovirio: Por um Gois Maior14, que esses trabalhadores
experimentaram mudanas significativas nas relaes de trabalho a partir dos anos
cinqentas, coincidindo com a chegada de Mauro Borges Teixeira diretoria da
empresa, este, filho de Pedro Ludovico Teixeira, Governador do Estado a partir dos
anos trintas, aps a revoluo, e em parte dos anos cinqentas.
Essas mudanas vo atingir as relaes de trabalho, interferindo nas
condies de moradia, tomando medidas saneadoras nas casas de turma, como
implementao de projetos de criao de animais, construo de pomares, assistncia
mdica, cooperativa de fornecimento de compras nos locais de trabalho.
A empresa impe aos trabalhadores medidas que alteram o trabalhar na
Estrada de Ferro Gois. Outras transformaes experimentadas ocorrem em 1957,
quando o Governo Federal, ao encampar outras empresas ferrovirias, como a RedeMineira de Viao e a Estrada de Ferro Gois, forma a Rede Ferroviria Federal,
encaminha alteraes das condies de trabalho. Neste momento, alguns optam pela
CLT. Essa mudana de estratgia parece estar articulada dificuldade de manter os
13 Regime de trabalho dos turmeiros contratados, embora desempenhando funes como os outrostrabalhadores, no recebiam regularmente como os mensalistas, geralmente no final de cada ano eramdispensados, sendo contratados em perodos de maior demanda de servios, ou no perodo das secas.14 Revista publicada pela Estrada de Ferro Gois, a partir da gesto do cap. Mauro Borges Teixeira.Destinada principalmente aos trabalhadores da ferrovia publiciza balancetes, noticia acidentes e outrosfatos como aniversrios, casamentos, projetos destinados aos trabalhadores. At o momento conseguimos
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trabalhadores nas casas de turma, principalmente a partir dos anos cinqentas, quando
comeam a se dirigir para a cidade, ou pressionar a empresa para ficarem em turmas
prximas das cidades.
Mais do que um tipo de trabalhador, tentei perceber como os
entrevistados se organizavam, via memria, agora como aposentados e moradores na
cidade de Goiandira. Procurei identificar como percebem a vida nas casas de turma e
como sentiram a transferncia para as cidades no incio dos anos setentas, quais laos de
solidariedade estabeleciam entre si, como as condies de trabalho indicavam formas de
relaes trabalhadores/chefia/trabalhadores, como construram/preservaram uma
memria do trabalhar na ferrovia, que valores procuraram preservar e como buscaram
novos referenciais ao virem para a cidade de Goiandira.
Na organizao do trabalho, tivemos a preocupao de pensar sua
distribuio na medida em que o sentido do trabalhar na ferrovia lembrado pelos
entrevistados. Apesar da diviso deste trabalho sugerir do primeiro ao terceiro captulo
um ndice cronolgico da entrada na empresa, a vida nas casas de turma e a ida para a
cidade, esta no foi nossa preocupao.
Na diviso, busquei incorporar os traumas que experimentaram em
suas vidas e a partir dos quais interpretam um sentido por terem sido turmeiros e quais
relevncias sociais disso. Li com ateno as entrevistas que nos concederam.
Tive o cuidado de pensar a entrada na empresa, a adaptao a um novo
tipo de trabalho nela, a vida familiar nas turmas e a ida para a cidade, no enquanto
contedos prontos, conceituaes que dessem conta de suas vidas, mas como
referncias postas em movimento nos seus modos de vida, que usaram nas entrevistas
como meios melhor elaborados como explicaes da vida.
O primeiro captulo busca pensar as condies de trabalho nas casas de
turma. O dilogo estabelecido com as entrevistas e com relatrios da empresa buscoudelinear nas condies de trabalho no apenas um conceito identificador, que
formatasse o trabalho na empresa, mas um campo dinmico, de atuaes e estratgias,
em que trabalhadores e empresas aparecem como elementos prximos dotados de
estratgias mltiplas, alterando e mudando de lado com mecanismos.
No mesmo sentido, objetivei compreender como os trabalhadores
procuravam intervir nessas relaes - pressionando ou no para serem transferidos para
os seguintes exemplares: n 06, dezembro de 1952; n 08, fevereiro de 1953; n 10, abril de 1953; n 11,maio de 1953; n 12, junho 1953; n 13, julho de 1953; n 16, outubro de 1953 (fragmentos).
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alguma turma e assim conseguirem espao para o desenvolvimento de outras
atividades, geralmente em fazendas da regio. Intentei verificar como buscam nos
costumes vividos nas fazendas referenciais para se oporem s condies de trabalho:
regulao do horrio de trabalho, condies de moradia na turma, vigilncia do feitor.
Algumas dessas implicncias do trabalho na empresa e na vida familiar,
como esta foi pressionada pela empresa e reagiu s presses sofridas, o tema do
segundo captulo. Neste, busquei perceber, principalmente aps os anos cinqentas,
como a Estrada de Ferro Gois repensa algumas estratgias estabelecidas e, em um
momento de crise, tenta interferir no cotidiano familiar do trabalhador sob a justificativa
de suprir algumas carncias, como formao educacional, treinamento para as mulheres
para a constituio de famlias. Um momento em que a ausncia de recursos, como a
conteno de financiamento feito pelo governo federal, obriga a empresa a usar de
novas estratgias para com os trabalhadores, minimizando os atritos dos moradores em
turmas, buscando resolver a questo de alimentao, que os obriga constantemente a
procurar outras atividades complementares de renda, saindo mais cedo do servio. Li
essa perspectiva apontada nos relatrios apresentados pela empresa.
Procurei perceber como ocorre uma redefinio do papel da mulher na
famlia, a criao dos filhos, espaos de lazer. Alguns sentidos de perda/reconstruo de
valores na sada das fazendas e ida para a vida nas casas de turma.
A ida para a cidade nos anos setentas, quando acabam as casas de turma,
se tornou tema do nosso terceiro captulo. Neste, tentei articular, a partir das entrevistas,
que sentido passam a atribuir ao morar na cidade, quais sentidos atribuem, ao trabalhar,
fixar residncia, a separao semanal do marido/pai, durante a semana trabalhando nos
trechos da ferrovia.
No poderia finalizar esta introduo sem antes mencionar minha relao
pessoal com o fato pesquisado. Ainda criana, em meados dos anos setentas, o levarcomida para meu pai em alguns trechos em que ele trabalhava, ouvir causos na hora
do almoo dos trabalhadores, suas lutas, labutas, o passado nas casas de turma, os
embates com feitores, as brigas cotidianas, as duplas jornadas de trabalho: uma na
empresa e outras em fazendas da regio. Tudo isso despertou, ao longo de minha vida, o
interesse por tal pesquisa.
Outros fatos, embora no vividos por mim, compuseram um passado de
famlia, ou, noutros termos, a memria familiar e tambm contriburam com minhatrajetria. Entre eles, a alegria quando o vago da Cooperativa passava distribuindo
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mercadorias que, depois, seriam descontadas nos salrios, o Papai Noel proporcionado
pelo diretor da empresa, que passava de turma em turma, distribuindo presentes e
pedindo votos para as eleies. A ferrovia se apresentava como ponto referencial. O
presente vivido em famlia buscava uma origem para estabelecer razes, criando laos
emocionais que se cruzavam com a vinda para a cidade de Goiandira, em meados dos
anos setentas, e o passado de ferrovirio, nas casas de turma.
A entrada na Universidade Federal de Gois Campus de Catalo, curso
de graduao em Histria significou um segundo momento na trajetria de vida, com
referencial na ferrovia, dentre outros elementos, e representou um desejo de compor, a
partir de um novo campo de discusses e embates, esse viver em uma famlia, com
novas questes para a ferrovia.
Revisitar o tema na perspectiva do historiador, no campo da Histria
Social, foi buscar um leque mais amplo nas referncias pessoais que descortinam um
meio social carregado de tenses e frustraes: era importante perceber como a ferrovia
teria propiciado transformaes locais mais amplas, como constituio de espaos
urbanos, formao de um grande contingente de trabalhadores que se dirigiram para a
cidade, mudanas culturais nas pessoas que moravam na regio.
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CAPTULO I
LEMBRANAS DO TRABALHO EM TURMA
Os turmeiros foram trabalhadores braais da Estrada de Ferro Gois.
Eram os responsveis pelos servios de manuteno das condies de trfego,
executando servios braais da empresa, como substituio dos trilhos, troca de
dormentes, manuteno/reconstruo de aterros, capina e roagem na margem dos
trilhos, intervenes de emergncia quando ocorria qualquer acidente.
Enquanto o primeiro contingente de trabalhadores da Estrada de Ferro
Gois era responsvel pela construo de trechos ferrovirios, os turmeiros, que
formavam o segundo contingente, eram incumbidos de zelarem pelas condies de
manuteno dos trechos ferrovirios.
Na relao de trabalho a que estavam submetidos, eram obrigados a
morar com as famlias nas margens dos trilhos, num conjunto de casas sob a chefia de
um feitor conhecido como turma.A diviso em turmas fazia parte do planejamento da
empresa com o intuito de, at meados dos anos setentas, fixar seus trabalhadores s
margens das ferrovias. Como esses trabalhadores formavam um contingente responsvel
direto para permitir ou restabelecer as condies de trfego, precisavam estar
constantemente disposio da empresa a qualquer momento que houvesse problemas
no trecho ferrovirio.
Permaneciam alojados em casas fornecidas pela empresa. No havia um
padro estabelecido para elas. Havia turmas compostas por casas de alvenaria at as de
pau-a-pique, dispostas de dez em dez quilmetros, nas margens da Estrada de Ferro
Gois. No parece haver um nmero estabelecido de trabalhadores por turmas, variando
de acordo com a necessidade de interveno junto ao trecho pelo qual a turma eraresponsvel. A princpio, as turmas responsveis por trechos problemticos com
constantes acidentes, deveriam possuir um nmero maior de trabalhadores. Contudo, em
algumas delas, no era assim. Havendo turmas com freqncia maior de acidentes e
mesmo nestas condies, contavam com poucos trabalhadores. Nas entrevistas que
fizemos, alguns se recordaram de um nmero de trabalhadores por turma que variava de
trs a dez trabalhadores.
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Pela rusticidade do trabalho que executavam, pelas condies
extremamente precrias de moradia, acesso ao abastecimento de gua, esses
trabalhadores no eram alcanados por nenhuma poltica de contratao ou qualificao
pela empresa. At meados dos anos setentas, o requisito bsico era a possibilidade de
executar servios braais, portanto a fora fsica. Tivemos contato com trabalhadores de
turmas localizadas no municpio de Goiandira, que eram originrios de fazendas da
regio, onde trabalhavam como agregados. Acostumados a uma forma de trabalho
vivenciada em fazendas, eles ainda no haviam experimentado uma relao como a que
experimentaram no trabalho ferrovirio, como o cumprimento de horrio para as
atividades e vigilncia constante de um feitor.
O dia de trabalho se iniciava s sete horas, quando os trabalhadores, aosarem das casas, reuniam sob a chefia do feitor e saam para locais a serem escalados
para o trabalho. A cada dia, um trabalhador era escalado para fazer a ronda. Saia de
madrugada para percorrer os dez quilmetros onde havia turma e, depois, se juntava aos
trabalhadores para o dia de trabalho.
O Sr. Jos Francisco menciona a dificuldade do servio de ronda, na
segunda entrevista:
ronda era uma bobajada, pr castig um trabaiad, procev, um ronda fizmuito, por exemplo, aqui a turma dez trabalhei aqui muito tempo. C saa daquia fazenda do trole era ali, pertim da casa da cumade Inhana, c saa daqui, dez quilmetros proc e dez quilmetro e dez pra volt c saa daqui, demadrugada pra ir l na divisa, tinha a chave a redonda e a tringulo, tringulodia trs redondo dia quatro e as chapa, troc certo.C ia l trocava as chave, voltava aqui pra ajud bot o trole, entrava no troleia trabalh l na divisa onde oc foi.
E no podia espera l. Cada dia um pra trabalh, cada dia um na escala1.
A finalidade da ronda era perceber se havia algum problema ou algum
trecho necessitando de alguma interveno mais urgente. Segundo suas informaes,
programavam escalas sobre o que seria feito no dia de trabalho. A funo do ronda era
evitar que houvesse qualquer acidente.
1Sr. Jos Francisco, entrevista realizada em 06/08/2001, Goiandira,GO.
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Para certificar de que o trabalhador tinha percorrido todo o trecho, o
controle era feito com duas chapas de formatos distintos, uma para os dias pares, outra
para os dias mpares.
O horrio de trabalho era das sete horas at s onze horas. O almoo, das
onze horas ao meio dia. Do meio dia s dezesseis horas, o segundo perodo de trabalho.
Apesar do horrio de oito horas de trabalho fixado para o dia-a-dia, nada impedia que
diante de algum acidente o horrio fosse estendido sem que tivessem direito de receber
algum adicional.
Enquanto chefia imediata, o feitor era o encarregado da empresa na
distribuio de tarefas, visando que as atividades fossem realizadas. A vigilncia era
constante, tendo em vista que as boas condies de trfego eram cobradas de maneiradireta do feitor.
Ao ser perguntado como o feitor realizava o controle do dia de trabalho
na turma, assim descreveu o Sr. Jos Francisco:
Era difcil, o feitor tinha que anotar tudo que passava durante o dia. Tinha queanotar assim da turma aonde ele ia trabalhar quer dizer l da turma onze, umacomparao, eu era feitor nis saa de l para trabalhar l no 108: da turma
at o local de trabalho tantos minutos. Agora eu tinha que somar seistrabalhadores comigo sete tinha que somar quantos minutos dava para umtrabalhador daqueles e oito horas de trabalho com aqueles minutos. Agora o
feitor ia pra o servio que ele ia por aqui achava um servio para fazer era umpouquim eu falava fulano tira a ferramenta e vai faz um servio aqui depois cvai pra l ento eu j anotava, chegava l falava eu fiz isso e isso anotava um
servidor de tantas horas e tanto substituiu um parafuso, repregando linha,repregando assim que jogava aquela linha o prego vai virando assim ranc os
pregos velho e chega os trilhos no lugar, prega os novos os prego novo. Essechama repregando tinha troca de parafuso, tala, tala aquelas que segura aemenda dos trilhos, de lado agora o que eu tava falando com voc, difcil era
controlar essa hora por exemplo, seis trabalhad saiu sete horas da turma gastoquarenta minutos pra chega no local de trabalho, agora voc vai reduziraqueles minutos com aquele pouco ali v quanto d pra cada um ... e no pode
passar das oito horas (risos)2.
Na narrativa, o Sr. Jos Francisco apresenta como dificuldade das
atribuies de feitor, alm da vigilncia com os trabalhadores, o preenchimento dos
relatrios de comprovao das atividades feitas pelos trabalhadores. Pode-se perceber
2Ibidem.
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um descompasso deliberado pela empresa entre o exerccio das atividades e o seu
registro.
A orientao principal a ser seguida pelo feitor no era de fidelidade ao
horrio de trabalho, mas o cumprimento de um aspecto formal. O dia trabalhado no
podia ultrapassar oito horas, pois a partir deste controle a empresa firmava o pagamento
a ser feito. Mais que o registro do dia trabalhado, a preocupao era encaixar a atividade
realizada pelo ferrovirio no tempo determinado pela empresa, computando, inclusive o
tempo desprendido no percurso at o local de trabalho.
Outra atividade que exigia do feitor o conhecimento mnimo da escrita
era o controle de material gasto nas atividades dirias. Esses relatrios de freqncia e
de controle de material na turma, ao serem mandados para o escritrio, eram verificadose, havendo diferenciao entre uma instncia e outra, o feitor era chamado para dar
explicaes.
Registro e controle do trabalho e do tempo certamente faziam com que a
documentao explicitasse condies ideais, deixando margem atividades feitas fora
disso. A tenso e a dificuldade com que os feitores se relacionavam com o controle do
trabalho dos ferrovirios pode ser entendida, em parte, pelo novo relacionamento com o
tempo de trabalho na empresa, distante e diferente de um tempo no trabalho nasfazendas. Menciona o Sr. Jos Francisco que, ao chegar ao cargo de feitor: a primeira
coisa que a gente precisava quando chegava a feitor era um relgio3. O tempo
cronometrado para execuo de tarefas diferencia de um tempo de trabalho nas fazendas
onde a o dia-a-dia do trabalho era firmado pela observncia da natureza em suas
diferentes estaes ou pela movimentao do sol.
Entendi que a expresso tpica da regio, trabalho de sol a sol, informa
a compreenso de uma realidade em que o posicionamento do sol determinava as
atividades a serem feitas, um trabalho com relao tpica nas fazendas, anterior
entrada destes trabalhadores na ferrovia, a diferenciao de temporalidades na execuo
das atividades.
Nesse sentido, o Sr. Sebastio Henrique, ao ser perguntado sobre a
diferena que sentiu ao sair das fazendas para trabalhar na ferrovia, apontou que um dos
problemas de adaptao foi a rigidez dos horrios serem cumpridos:
3Ibidem.
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...o horrio de alimentao, na roa a gente trabalhava geralmente at nove emeia, a gente j tinha almoado, na empresa, na rede era onze horas e notinha como, enquanto no desse onze hora a gente no almoava, a gente tinhauma dificuldade de adaptao com o horrio de alimentao. No comeo, ia
dando onze horas eu quase desmaiava de fome4
.
Na passagem de um ritmo de trabalho para outro, um dos grandes
problemas era a adaptao do corpo s novas condies. No que a situao de
ferrovirio determinasse suas vidas, o ser ferrovirio apresentava questes com as quais
tinham que lidar: condies de trabalho, local de moradia, relacionamentos envolvendo
outros ferrovirios, fazendeiros, cidades.
A partir das mudanas nas condies de trabalho - a introduo das
mquinas movidas a diesel, alterao das exigncias para entrada na empresa, o fim das
casas de turma - os trabalhadores vo sendo pressionados a alterar alguns hbitos,
reordenando alguns modos de vida. Pensar, a partir de suas memrias, o relembrar estas
condies de trabalho/vida, as respostas criadas, opes que tiveram que fazer enquanto
ferrovirios, moradores em turmas.
A escolha para o cargo de feitor no significava o acesso a uma carreira
de ferrovirio. Aqueles que exerciam tal funo eram colocados diante de questes
cotidianas extremamente difceis. Podiam voltar a ser um trabalhador sem cargo dechefia, pois havia casos de feitores temporrios. Mais do que algo colocado de maneira
ordenada pela empresa, a escolha estava colocada mediante uma questo bsica: licena
ou morte de algum outro feitor, abertura de uma nova turma ou diviso de outra.
O feitor estabelecia relaes tensas com outras chefias. Ao mesmo tempo
em que era incumbido de decises na rbita da turma sob sua responsabilidade,
usualmente era tratado pelo restante como trabalhador comum, sem distino do cargo.
Em recordaes do passado aparecem ressentimentos com as condies de trabalho,pois, embora ocupando uma funo de chefia, no eram respeitados por funcionrios de
outros setores.
Os feitores no eram responsveis apenas pelo controle das relaes de
trabalho a serem executados, mas suas atribuies avanavam para o cotidiano do viver
nas casas de turma. Qualquer desentendimento ocorrido entre os trabalhadores exigia
sua interveno imediata. A sada temporria de qualquer trabalhador para pesca, visita
4Sr. Sebastio Henrique, entrevista realizada em 19/07/2002, Goiandira,GO.
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a familiares, ida cidade ou qualquer outro motivo, deveria ser vigiada de forma
enrgica, tendo em vista que um acidente poderia ocorrer a qualquer momento e os
trabalhadores deveriam estar prontos para entrar em servio e restabelecer o trfego no
menor tempo possvel.
Acima do feitor estava o mestre de linha, escolhido geralmente entre um
dos feitores, responsvel pelo controle das relaes de trabalho em um nmero de
turmas. Morava nas cidades e diariamente percorria trechos para observar os trabalhos
realizados e o cumprimento do horrio de trabalho. Acima do mestre de linha estava o
chefe de setor e, depois, o engenheiro residente.
Essas relaes de trabalho estabelecidas pela empresa, mais do que
marcos rgidos de controle de trabalho, eram elementos referenciais para ostrabalhadores que podiam estar em desacordo contnuo com o feitor e manter boas
relaes com algum do escritrio da empresa. Mesmo ao sofrerem penalizaes do
feitor, estas eram anuladas quando chegavam no escritrio.
O processo de mudana em suas condies de trabalho, redefinido em
muitos de seus aspectos a partir dos anos cinqentas, pode ser lido nas memrias dos
ex-turmeiros como referenciais relevantes que redefiniram suas vidas e os obrigaram a
buscar novas estratgias de vida, elaboradas com maior nfase a partir dos anossetentas, quando passam a residir nas cidades da regio, no caso das nossas entrevistas,
com a transferncia para a cidade de Goiandira.
As mudanas so articuladas a partir do final dos anos quarentas, quando
Goiandira integrada via Catalo ao Estado de Minas Gerais, atravs da Rede Mineira
de Viao. A partir desse momento, a cidade cruzada por entroncamentos que
comunicam com trs ferrovias: para Araguari, ligao com a Mogiana; para Minas
Gerais, indo por Catalo, com a Rede Mineira de Viao e comunicao com Goinia,
Estrada de Ferro Gois. Este novo cenrio redimensionou a rede de trfego ferrovirio
na regio, pressionando de maneira tensa as relaes de trabalho dos turmeiros.
Ligando Goiandira a Goinia, a Estrada de Ferro Gois, a partir de um
ramal em Roncador, possibilitava a ligao com Braslia, em fase inicial de construo.
Ao redimensionar o trfego ferrovirio, algumas questes surgem, tais como o aumento
do nmero de acidentes, a necessidade inicial de fornecer madeira para dormentes e
para queima nas caldeiras das locomotivas.
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O fornecimento de madeira ferrovia para esses fins, a partir do comeo
do sculo XX, propiciou aos fazendeiros da regio uma alternativa econmica. A mo-
de-obra para a extrao da madeira era buscada nos prprios funcionrios braais da
ferrovia e em trabalhadores das fazendas, possibilitando a estes alternativas deganho/trabalho em suas vivncias.
A partir dessa poca, a cidade vai surgindo como possibilitadora de
trabalho e educao para os filhos, obrigando a empresa a redirecionar e implementar
medidas visando manter estes trabalhadores morando em casas de turma, ou criar
formas alternativas de trabalho na empresa, como os pelotes, forma que, a partir dos
anos setentas substituiu, o trabalho nas turmas.
A percepo de como aparece, nas memrias dos trabalhadores, o lidarcom essas alteraes das relaes de trabalho e nas condies de vida, faz com que
entenda as mudanas enfrentadas em contextos particulares da histria de vida de cada
um. Aponta, tambm, como essas pessoas lidaram e interpretaram a vida de ferrovirios,
como moradores da cidade de Goiandira a partir dos anos setentas.
Em outro sentido, as relaes percebidas foram encaminhadas no sentido
de se pensar as relaes de trabalho no como construdas somente no trabalho s
margens dos trilhos, mas como referenciais de mudana que atingiam toda a famlia,
tendo em vista que esto unidas as condies de trabalho e moradia no delineamento do
cotidiano dessas pessoas.
Esse contexto foi entendido como um campo denso e conflituoso
carregado de elementos que manipulavam no cotidiano, conforme DAVIS:
...no supus que o contexto, ou qualquer atributo singular (...) determinasse porsi s seu comportamento. Imaginei, em vez disso, que essas caractersticas desuas vidas moldavam suas condies e seus objetivos e limitavam ou ampliavamsuas opes; vi-os como atores que, utilizando os recursos fsicos, sociais eculturais de que dispunham, agiam no sentido de sobrevir, resistir e, s vezes,mudar as coisas5.
Os trabalhadores, ao experimentarem relaes de trabalho em condies
extremamente precrias, em locais prximos das fazendas, movimentavam em alguns
perodos das turmas para as fazendas e, sem deixar a empresa, desenvolviam algumas
5
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo: Sociedade e Cultura no incio da Frana Moderna. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1990, pp. 8-9.
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atividades nas propriedades rurais, como corte de lenha, o que possibilitava um ganho
adicional.
Nesse sentido, nas entrevistas, algumas perspectivas delineadas nas
memrias das mulheres entrevistadas, como nas de Dona Irani e Dona Guimar,
apontavam como elementos norteadores de suas vidas o cuidado com os filhos,
requisitos de boa me. Levantar de madrugada para o tratamento de alguma doena das
crianas, as dificuldades no momento do parto, a distncia dos centros mdicos e a
afirmao de objetivos alcanados ressaltam que possui bons filhos que no lhes do
trabalho.
Outras questes assinaladas com freqncia nas duas entrevistas eram o
trabalho em casa, bom relacionamento com os vizinhos de turma, bom convvio com omarido. Estando inseridas nas relaes com a Igreja, em Goiandira, suas memrias
afirmam suas vivncias nas casas de turma a partir de requisitos como boa me, esposa
cumpridora de seus deveres, bom relacionamento com vizinhos.
J nas entrevistas com os homens, aparecem como valores o ideal de
bom trabalhador, leal empresa e aos companheiros de servio, honesto, que executa
com preciso as tarefas que lhes eram dadas. Para alguns, a lealdade aos companheiros
fazia com que tivessem problemas com a empresa, como aconteceu com o Sr. JosFrancisco, feitor que afirmava ser perseguido pelos chefes por no ter coragem de punir
trabalhadores subordinados a ele.
Todos os turmeiros entrevistados possuem em comum a origem enquanto
trabalhadores de fazendas. O trabalhar nas fazendas moldou aspectos de suas vidas.
Pude inferir das entrevistas que a opo em trabalhar na ferrovia, mais do que uma
opo por um emprego mais rentvel ou executado em melhores condies, apontava
para situaes limites que, por desentendimento com um fazendeiro, determinava a
sada da propriedade.
o que assinala o Sr. Jos Francisco Incio: a deu uns fuxicos com o
Natal Vigrio, eu tinha tentado falar para ajudar, mas ele me toc da fazenda igual
toca um cachorro6. Ele menciona que saiu da fazenda e entrou para o trabalho na
ferrovia. Mais do que uma escolha por condies melhores de trabalho, a opo
respondia a uma condio emergencial porque no havia outras alternativas de renda.
6Sr. Jos Francisco, entrevista realizada em 06/08/2001, Goiandira, GO.
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O Sr. Jos Francisco Incio tinha uma relao de trabalho na Fazenda
Cachoeira diferente da relao de outros trabalhadores daquela propriedade. Perdeu sua
me devido s complicaes sofridas por ela durante o parto. Foi criado pelos
proprietrios da fazenda, como Nigrin, numa situao de quase filho. Dentre as
atribuies que possua na fazenda, uma era a de controlar as vendas no armazm da
propriedade para outros trabalhadores e esta posio de certo poder na fazenda fazia
com que tivesse dificuldades no relacionamento com alguns chefes na ferrovia.
Com a morte dos proprietrios, no tendo ganhado nenhuma
propriedade, passou a trabalhar para um dos herdeiros, o Sr. Natal Vigrio. Relata o
episdio de quando o expulsaram da propriedade e foi trabalhar na ferrovia. Afirma que,
ao saber que o proprietrio da fazenda no estava agradando do servio de um
agregado, procurou avisar a este para tomar cuidado. O proprietrio ficou sabendo o
que ele fez e o expulsou da fazenda.
A viso dos que optaram por trabalhar na ferrovia, alcanada nesta
pesquisa, aponta para uma situao em que, no havendo outras alternativas de
emprego, a ferrovia buscada como ltima alternativa de ganho.
No relato do Sr. Bernardo, ao ser indagado sobre como entrou na
ferrovia, revela que a escolha saiu aps desentendimentos com proprietrios da fazenda
onde trabalhava:
...eu fui trabalh na fazenda que era do meu padrinho de casamento, ento nisfoi quase criado junto: eles rico e eu pobre. Trabalhava com ele l e l s eutoquei uma boa roa e tal e coisa eu tava at bem de vida, tinha capado e umacoiseira l. Por causa dessa enfermidade aqui (mostra com o dedo uma cicatrizno rosto) isso que me levou pr estrada... De agregado ento l a gente tiravaleite e coisa e o velho garrava na enxada, foice, mexendo com boi l, carro anis foi discutiu l por mal ou por bem, nis discutiu e eu tava bem. No deviaele, porque eu nunca trabalhei devendo, e pouca coisa manda embora(...).
Ento resolvi vim pr c pr trabalh com o Geraldo Moreira7.
Sugeri ao Sr. Bernardo que contasse um pouco de sua entrada na
ferrovia. Ele narrou que, aps tentar trabalhar como foguista na Mogiana, em
Araguari - o que no conseguiu - veio trabalhar com um padrinho de casamento. Aps
7Sr. Bernardo, entrevista realizada em 27/04/2002, Goiandira,GO.
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reunir algumas economias, aparece uma doena em seu rosto. medida que a doena
no permite a continuidade de seus trabalhos na fazenda, ele se desentende com o patro
e obrigado a sair da propriedade. Ao tentar e no conseguir emprego como carregador
em um caminho de propriedade do Sr. Geraldo Moreira, vai trabalhar em Goiandira, na
baldeao.
Na cidade, devido ao encontro de dois ramais ferrovirios, sempre que
chegava uma carga pela Rede Mineira de Viao, havia a necessidade de fazer o
transporte braal das mercadorias para a composio dos vages da Estrada de Ferro
Gois. Apesar do ganho superior ao da fazenda, o Sr. Bernardo recorda das condies
difceis a que estava exposto:
...a eu passei a trabalh com esse Z Teles, l era por hora e trabalh nabaldeao e tava dando um dinheirim bo mais do que na roa, tinha dia que eutirava vinte e cinco mil ris por dia, outro dia tirava quinze, dezessete era umabase assim n, mais tinha baldeao todo o dia, era pesado n, tinha que passde um vago pro outro; o dia que era pr passa aquelas pranchas de ferro meu Deus, faz fora mesmo8.
A dificuldade no exerccio das atividades de trabalho se contrape ao
ganho financeiro. O trfego intenso parece ter redimensionado possibilidades detrabalho na regio, em parte pela construo de Braslia, tendo em vista que muitos
materiais usados na construo da cidade passam a ser transportados pela ferrovia, e
principalmente com o avano das obras da ligao da Estrada de Ferro Gois.
Nesse trabalho, em que faz servios na ferrovia sem ser empregado da
empresa, Sr. Bernardo entra em contato com turmeiros que trabalhavam perto do local
da baldeao. O que chama sua ateno o fato de estes trabalhadores estarem em
condies melhores do que as que ele executava:
mais a eu l ia passando tinha o Tezim desses malandro da estrada, porquea estrada foi me de muita gente ou ainda at hoje (riso), hoje ainda melhdo que no meu tempo. No tempo do seu pai hoje bem melh, a ento ele t lcapinando com uma enxadinha, assim pezim de burro assim essas tiririca euchamo de cebolinha, na rede ali perto do Joo Cardoso ali, barrigudo assimenfiou a mo no bolso tirou uma lata de p, a toma p o ag dele era tom p,nunca dei certo com p eu espirro at sa sangue pro nariz a eu agradeci ele e
8Ibidem.
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coisa (riso) vem trabalh com nis aqui. c v que um comeo de umavida como que . vem trabalh conis aqui, falei, mas desse jeito tava comuma enxadinha dessa eu fao por cinco homem tinha o Z Lus que morreuagora a pouco e esse Z Lus tinha o, o Benedito Alves, tinha o Paulinim tudo
velho, tudo (...) n tudo rapando com aquela enxadinha tava um punhado, trsou quatro, pegara aqui tava ali, depois do almoo, falei cabo isso em meiahora, eu falei ele, ele chamava Antnio, falei seu Antnio como que faz prmim trabalh aqui9.
O encontro com trabalhadores braais e a forma aparentemente tranqila
em que o servio executado - em condies melhores que o servio na baldeao -
motivam a entrada do Sr. Bernardo na Estrada de Ferro Gois. As condies melhores
de trabalho parecem estar postas como trabalho assalariado. Esse tipo de relao novo
para o Sr. Bernardo. Antes de entrar na Estrada de Ferro Gois, a experincia de
trabalho tinha sido a agregao nas fazendas, os garimpos e a baldeao, formas de
trabalho em que a produo determinava o ganho.
O estmulo estava colocado na prpria dedicao ao servio, pois ao
visualizar os trabalhadores da Gois, percebe que o assalariamento uma forma nova de
trabalho em que a produo no determinava o ganho, dando condies para uma
malandragem durante o expediente. Para demonstrar isso, compara o tempo de
trabalho disponvel para executar tarefas como superior ao que estava sendo feito por
trs ou quatro funcionrios da Estrada Ferro Gois.
Algumas imagens do trabalhar na ferrovia surgem para o Sr. Bernardo
como uma forma diferenciada dos trabalhos que havia executado antes, o trabalhador
malandro, que tem tempo para tom p, barrigudo, etc.
Ao sair das fazendas, o percurso feito pelo Sr. Bernardo e a referncia
para os trabalhadores das fazendas a migrao de uma propriedade para outra. A
fragilidade das relaes de trabalho - onde no h contrato escrito, mas obrigaescostumeiras que mediam a relao entre empregador e empregado - podia ser rompida a
qualquer momento. Isso faz o Sr. Bernardo esclarecer que sempre trabalhava preparado
para isso: No devia ele, porque eu nunca trabalhei devendo, e pouca coisa manda
embora. A percepo de que o fazendeiro tinha um poder reconhecido e entendido
como vlido na regulao das condies de trabalho faz com que trabalhe sem dever
nada ao proprietrio.
9Ibidem.
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Parece-me, no entanto, que a fragilidade de manuteno das relaes de
trabalho nas fazendas, antes da entrada do Sr. Bernardo na ferrovia, uma estratgia de
poder que o fazendeiro tinha para dispor, inclusive por questes no surgidas nas
relaes de trabalho, para dispensar os agregados, como no caso do Sr. Jos Francisco,
expulso devido a uma intriga.
Esse mecanismo de poder era exercido de fato, levando alguns dos
entrevistados a irem para a ferrovia. A ameaa diria a que os trabalhadores em
propriedades rurais eram submetidos como agregados, por ser algo posto no cotidiano
de suas vidas e que os atingia ou atingia seus conhecidos, foi algo no apenas
conhecido, mas algo com que aprenderam a lidar.
Essa ameaa vista como possibilidade real de exerccio de poder e noprecisava de outra instncia pblica como o Poder Judicirio para ser legitimada. Mas
aceitvel pelas posies que os trabalhadores ocupam. Esta condio no trabalhar, em
alguns momentos, parece ser usada por eles para sair de uma fazenda e procurar outra
propriedade, buscando trabalho sob melhores condies.
Quando o Sr. Jos Francisco recorda a condio de trabalhador e de
como precisava, algumas vezes, sair de uma propriedade para outra, recorda: Ia pra
outra fazenda. s vezes ele tava numa fazenda, coisa e tal, eles falava s o Nenzico tcontrariado com voc s, vem mor na minha fazenda, te dou servio te dou tudo,
ficava l10. Ao recordar do trabalho que realizava em fazendas, aponta a possibilidade
de sada a qualquer momento enquanto estratgia que dispunha para circular de uma
fazenda para outra, s vezes negociando com fazendeiros trabalho em melhores
condies.
A possibilidade de movimentar de uma fazenda para outra em condies
melhoradas parece algo que, s vezes, surgia quando os proprietrios tinham de disputar
os trabalhadores, principalmente para algumas funes como a de carreiro. Em alguns
momentos, os fazendeiros tinham de propor uma maior vantagem de emprego, aponta o
relato do Sr. Jos Francisco Incio, como no caso do Nenzico Vigrio com a perda de
um agregado.
A permanncia ou a sada de uma fazenda podia ser algo que atingia
esses trabalhadores no apenas na relao de trabalho, mas em questes surgidas
10Sr. Jos Francisco, entrevista realizada em 06/08/2002, Goiandira,GO.
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noutros espaos. Assim, o contar um segredo que desagradava um fazendeiro podia
determinar os rumos de vida de algum morador da fazenda. Ao mesmo tempo, parece-
me que, em algumas circunstncias, possvel perceber nas memrias destes
trabalhadores como um movimento inverso era usado como recurso tanto de
permanncia quanto de sada para alguma propriedade. Essas estratgias podiam ser
manipuladas cotidianamente pelos trabalhadores como um dos elementos que
possibilitava romper as fronteiras estipuladas no mundo do trabalho.
Como estratgia de convivncia, o Sr. Jos Francisco Incio descreve
como era possvel burlar as normas estipuladas pelo fazendeiro no fornecimento de
mercadorias para os trabalhadores no armazm existente na fazenda. Depois de aprender
a ler e a escrever, comeou a tomar conta do controle do fornecimento de artigos doarmazm da fazenda:
Cada um tinha uma anotao cada um tinha um caderno no nome dele (riso).Quantas e quantas vezes eu pesei trs quilos de trem pr uma pessoa e anotava
s dois. Tinha uma d de v aqueles homem com sol quente (riso). Eu desde odia que tive um pouquim de escola eu que pesava e anotava11.
Entendo essa percepo de como estes trabalhadores entendiam e se
movimentavam diante de normas de trabalho no escritas ou mediadas por qualquer
instncia pblica como questes que manipulavam no cotidiano. Nessa perspectiva,
considerei ser possvel relativizar o feixe terico que coloca esses trabalhadores como
vtimas das relaes de trabalho que os enquadrava em relaes semi-servis - traduzidas
em esquemas tericos sados de setores das esquerdas -, como assaltados
cotidianamente em uma relao de dependncia ou favor, como agentes que
enxergavam os horizontes permitidos pelo fazendeiro.
A permanncia na fazenda observada, em algumas anlises, apenas
como um favor do fazendeiro ao empregado, como se o trabalhar e o desempenhar
diversas funes na fazenda fosse entendido como uma benesse distribuda livremente
pelo fazendeiro.
Ao se dar importncia exclusiva ao poder que um fazendeiro dispunha e
implementava diariamente, tem-se deixado escapar um leque dinmico de
11Ibidem.
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possibilidades exercidas por esses trabalhadores. O contar um segredo podia ser fator
que determinava a permanncia ou a demisso de um funcionrio de uma fazenda. Da
mesma forma, o silncio diante de um segredo, ou mesmo a obedincia, mais do que
apenas a submisso inconteste de um trabalhador, eram percebidos por esses agentes
como uma maneira de permanecer trabalhando. Entendendo que no havia alternativas
melhores ou que havia condies aceitveis de permanncia na propriedade.
Na entrevista realizada com Dona Guimar, percebi que mesmo depois da
morte do pai, quando ainda era criana, ela continuou morando na fazenda do Sr. Natal
Vigrio junto com sua me, que permaneceu l mesmo depois da sada dos filhos. A
entrevistada relata que levava parte das compras feitas na cooperativa para a me, que
no exercia qualquer atividade remunerada na propriedade.No caso de Dona Guimar, o permanecer em uma fazenda, mais do que
posto no exerccio de algo lucrativo, estava preso ao bom relacionar com o fazendeiro,
tanto pelo silncio diante de algo quanto pelo falar algo que o agrade. Quando foi
possvel comprar uma casa em Goiandira, a me da Dona Guimar se mudou para a
cidade, sem ter sido obrigada a isto. Instalada na cidade, leva o fazendeiro na justia,
movendo uma ao trabalhista para receber direitos pelo tempo que permaneceu
naquela propriedade.Em alguns momentos, lembra o tempo em que morava na Fazenda
Cachoeira. Mesmo quando criana, saa para trabalhar em outras propriedades. Nesse
sentido, a experincia de ter trabalhado na fazenda do Sr. Nenzico Vigrio assim
lembrada: trabalhei na Iai, na Arcdia do Nenzico: lav roupa, arrum casa, faz
comida. Na Arcdia do Nenzico eu sofria naquela casa, paulim 12. Fala no apenas das
duas fazendas em que trabalhou, mas a quais condies de trabalho estava submetida e
como sua percepo dessas essas relaes determinou o rumo que buscou na sua vida.
A gente trabalhava Paulim, a Arcdia era ruim, nis era duas ajudante, a genteconversava um pouquim trabalhando ela gritava com a gente. eu sofri,agora a Iai era muito boa pr mim. (...) era assim, nis pulava o mangueiro
pr panh goiaba pr faz doce. Fazia aqueles tacho de doce, aquilo elapunha trancava num cachoto, no dava pros visitante no. Foi ruim, que Deusd pr ela o reino do cu13.
12
Dona Guimar, entrevista realizada em 20/07/2002, Goiandira,GO.13Ibidem.
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Recorda ainda que trabalhou em condies e relaes difceis com a
Dona Arcdia, esposa de um proprietrio de fazenda. Saiu aps 25 dias de trabalho, indo
para outra fazenda, da Dona Iai, onde ficou muito tempo por julgar as relaes de
trabalho melhores:
Eu sofri quando era nova, porque meu pai morreu. A nis ajudava a trabai eutrabaiava na Iai ela era boa pr mim (com nfase). Ela mim pagava bem. Detarde ela falava, espera o Natal sa que eu vou te d uns trem escondido.
Mandava (riso)14.
Depois de trabalhar para a Arcdia, foi trabalhar para a Dona Iai.
Compe como o fato de desenvolver, em melhores condies, as relaes de trabalho,permanecendo por muito tempo naquela propriedade. Alm de receber uma quantia
melhor, tambm tinha relaes boas com a esposa do fazendeiro. Esta a ajudava a
driblar a vigilncia do fazendeiro, entregando algumas coisas para serem levadas para
casa, certamente mantimentos armazenados na fazenda.
Esse jogar com as condies que estavam postas em seu cotidiano de
vida foi levado por esses moradores para a vida nas turmas como forma de conseguir
uma relao de trabalho em condies melhores e isso significava a ida ou sada de
alguma turma.
O movimentar de uma turma para outra significava uma maneira de estar
em um local em que o feitor no era muito exigente com horrio ou execuo dos
trabalhos nos trechos ferrovirios, ou ficar em um local aonde a ida para a cidade ou
para qualquer outro local fosse possvel, at mesmo o estar perto de uma rodovia.
Algumas condies que usavam para o trabalho nas fazendas parecem ter
sido usadas por esses turmeiros como tentativa de impor essa movimentao empresa.
Aparecem nas entrevistas feitas como estratgia de se conseguir uma transferncia ou,
caso contrrio, escapar de alguma transferncia. Guardar um segredo de algum chefe ou