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TRABALHO DOMÉSTICO E DESIGUALDADE SOCIAL DOMESTIC WORK AND SOCIAL INEQUALITY Maria Angela Gemaque Álvaro 1 Resumo O serviço doméstico remunerado é uma atividade que tem apresentado persistência e arregimenta grande contingente de mão de obra feminina em todo o mundo. Ainda assim, essas trabalhadoras carecem de uma visibilidade que é essencial à transformação das suas condições de trabalho, em geral precárias. Tendo por base essa preocupação, este artigo acompanhou as estatísticas produzidas pela Pnad-IBGE de 1992 a 2009, focalizando persistências e mudanças no perfil das trabalhadoras domésticas da Região Metropolitana de Belém – RMB, assim como aspectos cruciais na definição das possibilidades que a atividade oferece, como renda e formalização. O objetivo foi detectar tendências que favoreçam a compreensão do trabalho precário e o seu combate. Palavras-chave: trabalho doméstico, desigualdade social, gênero e trabalho, perfil das trabalhadoras domésticas, ocupações precárias. Abstract Paid domestic work is a persistent share of the work force in Brazil and continues to recruit women in the whole of the world. Nevertheless, these workers still need to gain visibility essential to transform poor work conditions. This study has followed data produced by PNAD-IBGE between 1992 and 2009, focusing on patterns of continuity and change on the profile on such domestic workers in Belem Metropolitan Area. It also observes crucial aspects on the definition of the possibilities that this type of occupation offers, such as income and legality. The study has identified trends which favour understanding and the fight against poor working conditions. Key words: domestic work, social inequality, gender and labour, profile of domestic work, poor working conditions. 1 Mestre em Ciências Sociais pela UFPA e tecnologista em Informações Geográficas e Estatísticas do IBGE. Área de pesquisa: estatísticas sociais, história e antropologia.

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TRABALHO DOMÉSTICO E DESIGUALDADE SOCIAL

DOMESTIC WORK AND SOCIAL INEQUALITY

Maria Angela Gemaque Álvaro1

Resumo

O serviço doméstico remunerado é uma atividade que tem apresentado persistência e

arregimenta grande contingente de mão de obra feminina em todo o mundo. Ainda

assim, essas trabalhadoras carecem de uma visibilidade que é essencial à

transformação das suas condições de trabalho, em geral precárias. Tendo por base

essa preocupação, este artigo acompanhou as estatísticas produzidas pela Pnad-IBGE

de 1992 a 2009, focalizando persistências e mudanças no perfil das trabalhadoras

domésticas da Região Metropolitana de Belém – RMB, assim como aspectos cruciais na

definição das possibilidades que a atividade oferece, como renda e formalização. O

objetivo foi detectar tendências que favoreçam a compreensão do trabalho precário e o

seu combate.

Palavras-chave: trabalho doméstico, desigualdade social, gênero e trabalho, perfil

das trabalhadoras domésticas, ocupações precárias.

Abstract

Paid domestic work is a persistent share of the work force in Brazil and continues to

recruit women in the whole of the world. Nevertheless, these workers still need to gain

visibility essential to transform poor work conditions. This study has followed data

produced by PNAD-IBGE between 1992 and 2009, focusing on patterns of continuity

and change on the profile on such domestic workers in Belem Metropolitan Area. It

also observes crucial aspects on the definition of the possibilities that this type of

occupation offers, such as income and legality. The study has identified trends which

favour understanding and the fight against poor working conditions.

Key words: domestic work, social inequality, gender and labour, profile of domestic

work, poor working conditions.

1 Mestre em Ciências Sociais pela UFPA e tecnologista em Informações Geográficas e Estatísticas do IBGE. Área de pesquisa: estatísticas sociais, história e antropologia.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 110

1. Introdução

As mudanças ocorridas no curso da economia mundial nas últimas décadas, a

partir da aceleração do progresso tecnológico e da globalização econômica, afetaram

tanto a natureza da oferta quanto da demanda por trabalho. Um aspecto amplamente

citado na literatura sobre o tema é a associação entre o surgimento de novos modelos

econômicos e o ingresso maciço da mulher no mercado, fato que poderia ser

considerado como um indicador de eficiência social desses modelos, pois encaminharia

para uma maior igualdade social e de gênero.

No entanto, estudos sobre o trabalho da mulher mostram que sua inserção tem

sido realizada em condições desvantajosas em face dos homens, como pode ser visto,

por exemplo, através de dados sobre renda e distribuição ocupacional. As mulheres

ganham menos e estão associadas a ocupações com menores possibilidades de

ascensão ou de obtenção de capacitação profissional. Por outro lado, o aumento da

participação da mulher no mercado não tem contribuído para a correção do problema

da desigualdade social em contextos em que ela se faz fortemente presente, como é o

caso do Brasil. O maior grau de empregabilidade apresentado pelas mulheres com

nível instrucional superior e um aumento do rendimento proporcional em nível de

escolaridade favorecem a desigualdade na distribuição de renda (Lavinas, 2002; León,

2002, Bruschini, 2007).

No Brasil, as mulheres com nível inferior de escolaridade, além de

apresentarem taxas bem menores de participação no mercado, têm poucas opções na

escolha de ocupações, restando-lhes assumir posições consideradas precárias, como é

o caso do trabalho doméstico, do trabalho não remunerado ou do trabalho na produção

para o próprio consumo (Bruschini & Lombardi, 2000; Olinto & Oliveira, 2004;

Bruschini, 2007). Disto decorre que todas as três posições apresentam um forte

caráter de gênero, expresso na alta representatividade feminina que nelas existe.

Entretanto, entre elas, o trabalho doméstico é a posição que reúne um quantitativo

mais significativo de mulheres, congregando 18,18% do contingente feminino ocupado

no Brasil urbano2 em 2009 (Pnad-IBGE, 2009).

A persistência de uma demanda expressiva por esse serviço em países como o

Brasil, ao lado de seu papel absorvedor de mulheres de baixa renda, anuncia a

relevância do seu estudo nas considerações sobre desigualdade social e de gênero.

Partindo deste pressuposto, este artigo focaliza o serviço doméstico remunerado na

2 As referências de dados das pesquisas feitas neste texto referem-se à população com 10 anos ou mais de idade. Em 2009, no Brasil urbano, as mulheres correspondiam a 94,18% dos trabalhadores domésticos, totalizando um contingente de 6.086.103 trabalhadoras.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 111

Região Metropolitana de Belém – RMB, acompanhando os dados da Pesquisa Nacional

por Amostra de Domicílios (Pnad-IBGE) entre 1992 e 2009, a fim de detectar

tendências que ajudem a compreender e a buscar alternativas para o combate ao

trabalho precário. Este estudo irá se deter nas características das mulheres que vêm

desempenhando tal atividade, tecendo comentários sobre o seu perfil a partir da

literatura existente, procurando nesses elementos caracterizadores da mão de obra

uma melhor compreensão da atividade e das opções de mercado abertas a mulheres

de baixa renda. Focalizam-se modificações e persistências em referência ao perfil das

trabalhadoras domésticas, mas também aspectos cruciais na definição das

possibilidades que uma atividade oferece, como renda e formalização.

Para chegar à discussão destes tópicos, adotam-se os seguintes pontos de

partida: como tem sido a evolução dessa atividade enquanto absorvedora de mão de

obra feminina? Qual tem sido a representatividade das trabalhadoras domésticas em

face de outras posições na ocupação?

2. O trabalho doméstico na RMB

Em 2009, havia na RMB3 85.875 mulheres ocupadas como trabalhadoras

domésticas, o que representava 20,70% da população feminina ocupada de 10 anos

ou mais de idade. Isto significa que uma em cada cinco mulheres ocupadas prestava

serviço doméstico remunerado em dinheiro ou benefícios, em domicílios, atendendo a

pessoas ou a famílias. Assim como em outros contextos, o serviço doméstico

remunerado dentro dessa região metropolitana tem se caracterizado como uma

atividade feminina, embora tenha ocorrido uma ampliação da representação masculina

(Tabela 1).

Tabela 1 – Distribuição dos trabalhadores domésticos segundo o sexo na RMB (1992-2001-2009) (%)

Ano Sexo

1992 2001 2009

Mulheres 96,12 92,99 93,56

Homens 3,88 7,01 6,44

Fonte: Pnad – IBGE

3 Este estudo considerou apenas os dados produzidos pela Pnad-IBGE para a zona urbana dessa região metropolitana, de modo a garantir a comparabilidade com os levantamentos anteriores a 2004, que não incluíam a zona rural dessa unidade geográfica.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 112

A forte correlação das mulheres ao trabalho doméstico remete à divisão sexual

do trabalho, um dos locus das relações de gênero onde é definido o que é masculino e

feminino. Entendido como uma extensão do serviço doméstico não remunerado, cuja

incumbência tem sido atribuída e assumida pelas mulheres – concretamente e

ideologicamente – essa ocupação recruta seus ocupantes entre elas, estando implícito

que a condição de mulher já garante a perícia necessária para o desenvolvimento

satisfatório das atividades. Não se julga, portanto, que o trabalho doméstico requeira

treinamento e qualificação próprios, fato que contribui para sua depreciação (Chaney &

Castro, 1989). Além disso, como se trata de um trabalho que é prestado a famílias e

se desenvolve dentro do espaço doméstico privado, a oposição público/privado é

acionada junto com os significados normalmente atribuídos aos gêneros, facilitando a

inserção de uma personagem feminina.

E esses significados tornam-se mais evidentes em função de algumas

possibilidades ocupacionais ainda presentes no serviço doméstico remunerado, a

exemplo da condição de empregada residente, que reforça a ideologia de que a

empregada se insere na casa como se fosse um membro da família, e não como uma

trabalhadora assalariada com direitos e deveres bem definidos.

Em suma, trabalho doméstico e serviço doméstico são expressões concretas da

divisão sexual do trabalho pautada em uma lógica cultural particular, que estabelece

que a realização de afazeres dentro do espaço doméstico cabe naturalmente às

mulheres e não a reconhece como uma contribuição socialmente importante para a

reprodução da espécie (e da força de trabalho), tampouco para a garantia de seu bem-

estar. Perspectiva que vem sendo desafiada pela literatura sobre trabalho feminino

produzida no Brasil em décadas recentes, que focaliza a articulação entre o espaço

produtivo e o reprodutivo e busca dar visibilidade a formas de trabalho

predominantemente assumidas por mulheres (Sanches, 2009; Bruschini, 2006). Esses

trabalhos evidenciam a importância de desnaturalizar o emprego doméstico e situá-lo

na categoria de uma profissão para poder garantir políticas e ações que teriam forte

impacto na redução da pobreza e das desigualdades, já que esta categoria reúne

milhões de trabalhadoras em todo o mundo.

Entre 1992 e 2009, a representatividade do trabalho doméstico entre as

mulheres ocupadas na RMB permaneceu alta, embora mostrasse oscilações,

provavelmente associadas a fatores conjunturais. Os valores variaram de um máximo

de 25,23% (1996) a um mínimo de 19,07% (2008), sendo que o período se iniciou

com um percentual de 22,32% (1992) e terminou com 20,70% (2009).

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 113

No mesmo intervalo temporal, ocorreu um crescimento da proporção de

mulheres inseridas no mercado de trabalho, já que a taxa de atividade da população

feminina urbana aumentou de 50,06% para 57,07%. Esse crescimento tornou-se mais

acentuado após 2001, estabelecendo-se certa distância entre a taxa de atividade

feminina e a representatividade do trabalho doméstico entre as mulheres ocupadas,

em vista dos maiores valores assumidos pela primeira em contraponto à segunda nos

últimos anos (Gráfico 1).

Fonte: Pnad – IBGE Diferentes autores têm enfatizado que o relativo declínio percentual das

trabalhadoras domésticas, verificado para o Brasil, não é indicador da diminuição ou da

eliminação desta categoria, pois ela vem crescendo significativamente em números

absolutos, mantendo um peso muito expressivo no conjunto da força de trabalho

feminina (Melo, 1998; Liberato, 1999; Bruschini & Lombardi, 2000; Bruschini, 2007).

Sugerem que a queda na proporção das trabalhadoras domésticas pode estar

relacionada ao fato de o aumento da atividade das mulheres estar sendo acompanhado

por uma maior diversificação ocupacional, estimulada pelo aumento da escolaridade

feminina.

A persistência do trabalho doméstico nos países em desenvolvimento e o seu

respectivo aumento nos países desenvolvidos, verificado nos últimos anos, mostram

que a ocupação não está sendo eliminada com a introdução de novas formas de

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 114

produção, mas, ao contrário, vem convivendo e sendo alimentada por elas (Hirata,

2005; Sanches, 2009). Para isto contribui, do lado da demanda, o enfraquecimento do

Estado Social nos países onde ele chegou a se consolidar como uma realidade; as

mudanças na organização e na intensificação do trabalho, e também a nova realidade

demográfica representada pelo envelhecimento da população. Do lado da oferta, o

aumento – ou a persistência – da desigualdade e da pobreza tem conduzido muitas

mulheres a entrarem no mercado de trabalho (Sanches, 2009).

A evolução da distribuição das mulheres ocupadas na RMB por posição na

ocupação, apresentada no gráfico a seguir (Gráfico 2), mostra que, ao longo de todo o

período, as trabalhadoras domésticas apresentaram percentual próximo ao das

trabalhadoras por conta própria, ainda que a última posição na ocupação seja aquela

que apresentou maior crescimento entre todas. O aumento da representatividade das

trabalhadoras por conta própria, do início ao fim do período, é de 7,32 pontos

percentuais. As oscilações sofridas pelas diversas posições, assim como as assimetrias

desse movimento quando se estabelece uma comparação entre elas, sugerem um

trânsito entre posições por uma parcela da população feminina ocupada.

Fonte: Pnad – IBGE

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1992 1993 1995 1996 1997 1998 1999 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Gráfico 2 – Distribuição das mulheres ocupadas por posição na ocupação - RMB (1992 a 2009)

Empregado Trabalhador doméstico

Conta-própria Empregador

Trabalhador na produção p/ o próprio consumo Trabalhador na construção p/ o próprio uso

Não remunerado

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 115

Em vista de a escolaridade ser um elemento muito importante na determinação

da posição que um indivíduo ocupa no mercado de trabalho, pode-se dizer que o baixo

perfil educacional apresentado pelas trabalhadoras domésticas (ver adiante) indica

possibilidades restritas de trânsito entre posições na ocupação, circunscrevendo o

movimento dessas mulheres dentro de um quadro de precariedade, no qual se inclui a

posição de trabalhadoras na produção para o consumo próprio ou da unidade

domiciliar, de trabalhadoras não remuneradas, empregadas sem carteira assinada e

uma parcela significativa das trabalhadoras por conta própria.4

No caso brasileiro, os trabalhadores por conta própria formam um grupo

bastante heterogêneo que, segundo Kon (2001), pode ser classificado em diferentes

categorias de ocupação, segundo o nível de qualificação. No entanto, a maior parte

dessas categorias vivencia situações de trabalho com baixa produtividade, em função

de vários fatores, entre eles o baixo nível de qualificação profissional. Dados da Pnad-

IBGE 1997 elaborados pela autora mostram que 30,30% das mulheres ocupadas como

trabalhadoras por conta própria no Brasil naquele ano pertenciam ao grupo das

trabalhadoras autônomas não qualificadas. Já os dados recentes sobre instrução

(Pnad, 2009) indicam a existência de um alto percentual de mulheres com baixo nível

educacional atuando como trabalhadoras por conta própria na RMB: 33,37% delas

possuíam apenas nível fundamental incompleto. Destaca-se aqui que o baixo nível

instrucional e a ausência de qualificações adicionais marcam ainda mais

acentuadamente o perfil das trabalhadoras domésticas.

Pode-se supor, portanto, que em resposta a mudanças conjunturais exista

dentro da RMB uma parcela de mulheres economicamente ativas que, pelo perfil que

possuem – especialmente em termos de instrução e qualificação – pode estar

transitando entre posições precárias, nas quais se incluem as atividades de baixa

produtividade assumidas pelas trabalhadoras por conta própria.

3. Quem são as trabalhadoras domésticas?

As formas de ocupação, a estrutura salarial e a empregabilidade5 da mão de

obra são aspectos frequentemente associados ao perfil dos trabalhadores, incluindo-se

4 Olinto e Oliveira (2004) realizaram um trabalho sobre categorias e posições ocupacionais de modo a identificar o quanto coortes de idade e de educação teriam interferência no esvaziamento de determinadas posições na ocupação consideradas precárias e que apresentam forte caráter de gênero em vista da sobrepresença feminina, como é o caso do trabalho doméstico, trabalho para o próprio consumo e trabalho não remunerado. Concluem pelo “esvaziamento progressivo e constante dessas ocupações, à medida que se sobe na hierarquia educacional” (:9). 5 O conceito de empregabilidade refere-se àquilo que possibilita ao trabalhador “sua participação no mercado de trabalho e condições de escapar do desemprego, mantendo sua capacidade de obter um emprego” (Lavinas & León, 2002:9).

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 116

aí características etárias, de raça e gênero, mas também aquelas que resultam da

escolaridade, da experiência e de habilidades adquiridas através de qualificação

profissional (Kon, 2001; Lavinas & León, 2002). Traçar o perfil da mão de obra é assim

um elemento relevante para a compreensão do mercado de trabalho e das mudanças

que nele se operam.

Cabe, então, a pergunta: quem são as trabalhadoras domésticas da RMB? Para

respondê-la, foi feito um acompanhamento temporal de algumas variáveis que

informam sobre o perfil dessas trabalhadoras, como idade, cor, instrução, posição na

família e condição de migração.

3.1 Instrução: a baixa escolaridade ainda é um fato

Ocorreu um aumento significativo do nível instrucional das trabalhadoras

domésticas inseridas na RMB, fato que acompanha uma tendência de melhoria nos

padrões educacionais da população brasileira. As políticas de ampliação das

oportunidades na área de educação por parte do Estado têm se traduzido num

aumento dos anos de estudo, e esse resultado tem sido mais positivo entre a

população feminina, cujo perfil educacional vem superando o dos homens.

No entanto, uma comparação da evolução da instrução das trabalhadoras

domésticas com a do conjunto da população feminina ocupada revela que, apesar dos

ganhos educacionais expressivos obtidos pelas primeiras, elas ainda apresentavam um

nível educacional bem abaixo daquele verificado para o último grupo. Enquanto

encontramos entre a população feminina ocupada 51,75% de mulheres com 11 anos

ou mais de estudo, o percentual de trabalhadoras domésticas que tinham 11 anos de

estudo alcançava 19,04%, sendo que apenas 0,92% delas possuía escolaridade

superior a esta. Por outro lado, nos níveis mais baixos de escolaridade (sem instrução

e menos de um ano/nível fundamental incompleto), encontramos um percentual de

51,84% de trabalhadoras domésticas, enquanto para o conjunto das ocupadas o

percentual era de 27,40% (Tabela 2).

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 117

Tabela 2 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo o nível de instrução – RMB (1992 – 2001 – 2009) (%)

População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Nível de instrução

1992 2001 2009 1992 2001 2009

Sem instrução/menos de

1 ano 6,11 4,44 2,66 11,66 9,1 5,28

Nível fundamental incompleto 40,44 30,92 24,74 76,68 54,55 46,56

Nível fundamental completo 9,21 11,51 9,31 6,28 15,74 14,22

Nível médio incompleto 7,01 9,32 10,97 1,35 8,87 13,76

Nível médio completo 21,62 27,85 33,9 1,35 7,54 18,12

Superior 14,01 14,14 17,85 - 0,22 0,92

Sem declaração 1,60 1,81 0,57 2,68 3,98 1,14

Fonte: Pnad – IBGE

A baixa escolaridade das empregadas domésticas é verificada em outros

contextos dentro da América Latina, o que leva os estudiosos a considerarem o serviço

doméstico remunerado como um bolsão de ocupação para as mulheres oriundas de

famílias de baixa renda. A pobreza, a necessidade econômica e a falta de preparação

para outros tipos de trabalho estariam agindo na orientação de tais mulheres para esta

ocupação. Não se trata, portanto, de opção, mas de ausência de outras possibilidades

de inserção no mercado de trabalho, do que resulta que o trabalho doméstico tenha

forte orientação não apenas de gênero, mas também de raça e classe (Chaney &

Castro, 1989; Ávila, 2008).

A correlação entre atividades domésticas e os papéis atribuídos às mulheres,

associada à especificidade do processo de trabalho (desenvolvido dentro do espaço

doméstico e destinado ao consumo de seus membros), torna difícil aplicar ao serviço

doméstico remunerado uma racionalidade que evidencie as vantagens de uma

preparação para o exercício das atividades implícitas nesta ocupação. Disto resulta

tanto a depreciação da atividade como a negação da possibilidade de as empregadas

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 118

domésticas adquirirem, durante o seu exercício, habilidades que as capacitem a

assumir outras posições no mercado.

Assim, a melhoria no nível educacional das empregadas domésticas parece ser

explicada mais satisfatoriamente pelos investimentos em educação por parte do Estado

do que por exigências relacionadas a mudanças no interior desta atividade.

3.2 O amadurecimento das trabalhadoras domésticas

Nas últimas décadas, surgiu um novo padrão de participação feminina no

mercado latino-americano forjado a partir de processos demográficos, culturais,

educacionais e econômicos de longo prazo. O aumento da taxa de participação da

mulher tem se concretizado paralelamente à consolidação do padrão de ambos os

cônjuges no mercado de trabalho, preservando a população mais jovem de uma

entrada precoce, a qual pode assim aproveitar as oportunidades educacionais que vêm

sendo oferecidas pelo Estado. Essa opção pela esposa como segundo membro a entrar

no mercado de trabalho tem favorecido mais as filhas do que os filhos, tendência

confirmada pelos dados sobre educação no Brasil, já que a população feminina vem

apresentando melhores indicadores instrucionais, superando o perfil educacional da

população masculina (Lavinas, 2002).

A distribuição etária das empregadas domésticas da RMB, em três anos

intercalados (1992/2001/2009), mostra uma mudança em consonância com esse novo

padrão delineado para a América Latina, reduzindo-se a proporção de empregadas

mais jovens, em favor de um crescimento do percentual de mulheres situadas em

faixas etárias mais elevadas (Gráfico 3).

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 119

Fonte: Pnad – IBGE A tabela 3 mostra a distribuição etária da população feminina ocupada e das

trabalhadoras domésticas, nos três anos mencionados, considerando três grandes

faixas: a primeira delas correspondente às mais jovens (10 a 24 anos), a segunda

focaliza o intervalo de vida associado ao período reprodutivo e de cuidado de filhos

menores (25 a 44 anos), e a terceira reúne as mulheres com idade situada entre o fim

do ciclo reprodutivo e antes da aposentadoria (45 a 59 anos).

Tabela 3 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a faixa etária – RMB (1992 – 2001 – 2009) (%)

População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Faixa etária

1992 2001 2009 1992 2001 2009

De 10 a 24 anos 25,22 19,90 15,39 46,63 28,36 14,68

De 25 a 44 anos 53,65 53,75 55,74 34,98 54,54 58,71

De 45 a 59 anos 17,92 20,94 23,88 13,9 15,96 24,31

Fonte: Pnad – IBGE

Ocorreu uma diminuição expressiva das trabalhadoras domésticas mais jovens

(queda de 31,95 pontos percentuais), que foi acompanhada por um aumento das

mulheres mais maduras, em especial daquelas situadas no período reprodutivo

(aumento de 23,73 pontos percentuais).

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De 10 a 14 anos

De 15 a 19 anos

De 20 a 24 anos

De 25 a 29 anos

De 30 a 34 anos

De 35 a 39 anos

De 40 a 44 anos

De 45 a 49 anos

De 50 a 54 anos

De 55 a 59 anos

De 60 a 64 anos

De 65 a 69 anos

De 70 anos ou

mais

Gráfico 3 – Distribuição etária das trabalhadoras domésticas na RMB (1992-2001-2009) (%)

2009

2001

1992

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 120

A distribuição das mulheres ocupadas na RMB segundo a faixa etária, nesses

três anos intercalados, mostra que aconteceu um amadurecimento da mão de obra

feminina. No entanto, não se trata de uma mudança tão acentuada quanto aquela

verificada entre as trabalhadoras domésticas, provavelmente porque a preservação da

população feminina mais jovem de uma entrada precoce no mundo do trabalho atingiu

fortemente um grupo populacional que vinha sendo absorvido com intensidade pelo

serviço doméstico remunerado. Além disso, cabe destacar as políticas públicas de

combate ao trabalho infantil e seu impacto sobre a redução de crianças nessa

atividade, um reduto tradicional do trabalho infantil. No período em foco, ocorreu uma

queda significativa de trabalhadoras domésticas na faixa entre 10 e 16 anos, pois

enquanto elas representavam 16,59% das trabalhadoras domésticas da RMB em 1992,

o registro de sua representatividade caiu para 0,92% em 2009.

A modificação na distribuição etária das trabalhadoras domésticas ajuda a

compreender o aumento ocorrido dentro desse grupo com respeito à proporção de

trabalhadoras domésticas que, dentro da família, assumem a condição de pessoa de

referência ou cônjuge.6 O percentual registrado para outras posições (filha, outro

parente, agregada e empregada doméstica) tem diminuído (ver Tabela 4), sendo que a

redução de representatividade foi maior quanto à condição de empregada doméstica

(empregada moradora), que caiu de 25,5%, em 1992, para 3,21%, em 2009.

Tabela 4 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a condição na família - RMB (1992-2001-2009) (%)

População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Condição na

família

1992 2001 2009 1992 2001 2009

Pessoa de referência 26,22 37,17 39,84 26,90 39,03 51,38

Cônjuge 41,24 38,93 35,75 26,01 34,81 30,50

Outras posições 32,53 23,90 24,41 47,08 26,16 18,12

Fonte: Pnad – IBGE

6 A condição na família classifica as pessoas que fazem parte deste grupo em função da relação mantida com a pessoa de referência (pessoa considerada responsável pela família) ou com seu cônjuge. A Pnad-IBGE oferece as seguintes definições: pessoa de referência, cônjuge, filho, outro parente, agregado, pensionista, empregado doméstico e parente de empregado doméstico. Como é necessário preencher a condição de morador para ser considerado membro da família, o registro de empregado doméstico inclui apenas aqueles que ali residem, sem retornos para outro domicílio nos fins de semana.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 121

Essa diminuição dos empregados residentes vem sendo registrada na literatura

sobre o emprego doméstico na América Latina e tem sido relacionada a mudanças

culturais (preservação da intimidade), a alterações nos locais de residência da unidade

doméstica, que se tornam cada vez mais reduzidos, assim como à tendência de

redução dos gastos familiares com os benefícios de alimentação e moradia providos às

empregadas domésticas (Chaney & Castro, 1989; Bruschini & Lombardi, 2000).

O grupo das empregadas domésticas moradoras não recobre exatamente o

grupo das empregadas chamadas residentes, visto que, pela definição da Pnad, uma

empregada doméstica só pode ser considerada como moradora na casa dos patrões

quando ela não retorna regularmente para o domicílio onde vive sua família. Ainda

assim, é possível traçar uma aproximação entre os dois grupos e interpretar a redução

da condição de empregada doméstica no domicílio como uma diminuição da situação

de trabalho que favorecia privilégios e opressões típicos das relações paternalistas que

marcam a sociedade patriarcal brasileira (Chaney & Castro, 1989).

Olinto e Oliveira (2004) enfatizam que a posição do indivíduo na família é um

critério que precisa ser considerado nas análises direcionadas a apontar propostas de

melhoria da qualidade do trabalho no Brasil, especialmente em se tratando do trabalho

feminino. Os dados mostram que o amadurecimento da força de trabalho feminina

tornou predominante a presença de mulheres que se definem como pessoa de

referência entre as trabalhadoras domésticas (51,38%), seus rendimentos sendo

fundamentais para o sustento desses grupos familiares. Este fato merece ser

considerado em mais de um aspecto.

Essa predominância relaciona-se a uma tendência de aumento da chefia

feminina que vem sendo verificada em todo o país e que é um fenômeno tipicamente

urbano. Este fato desencadeia processos geradores de maior autonomia e poder de

decisão na família, maior participação no espaço público e, portanto, pode ser visto a

partir da ótica de empoderamento feminino.

No entanto, o perfil socioeconômico das mulheres provedoras mostra que a

chefia cresceu principalmente entre as mulheres pobres, com baixa escolaridade e

negras, o que indica o lado perverso dessa tendência. A situação de pobreza tem

forçado um grupo crescente de mulheres a assumir a função de provedoras e a se

lançar no mercado de trabalho, no qual elas são absorvidas em condições

extremamente desvantajosas em vista de sua baixa qualificação e escolaridade. As

desigualdades sociais, raciais e de gênero são reproduzidas e reforçadas num mercado

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 122

de trabalho que atribui a essas mulheres funções depreciadas, como as relativas ao

serviço doméstico remunerado, com salário e proteção social baixos (Mendes, 2008).

Um crescimento tão expressivo da chefia de família entre as trabalhadoras

domésticas da RMB evidencia o lado negativo desse fenômeno, que é sua associação

com um quadro de desigualdade e pobreza, fato que ganha maiores proporções

quando se considera que essas trabalhadoras representam um quinto da mão de obra

feminina dentro da RMB.

3.3 Naturais ou imigrantes? A literatura sobre trabalho doméstico na América Latina destaca como um

importante aspecto do perfil das trabalhadoras engajadas nesta ocupação a sua

condição de imigrantes, sendo o deslocamento geralmente feito de uma área rural

para os principais centros urbanos. É um processo relacionado à tendência de

urbanização crescente desses países, os quais têm tido sua população rural

grandemente reduzida nas últimas décadas. O serviço doméstico remunerado seria

exercido por mulheres imigrantes, recrutadas nas camadas mais pobres e com baixo

nível instrucional, e funcionaria como porta de entrada no mundo do trabalho para

jovens sem qualificação técnica e com poucos recursos sociais para lidar com o

ambiente e o mercado de trabalho urbanos (Chaney & Castro, 1989; Melo, 1998).

Nas situações em que esta atividade é assumida na condição de empregada

residente – mais comum no passado – essas mulheres estariam garantindo não só

uma fonte de renda, mas abrigo e proteção. Sua condição de imigrantes e de

pertencentes às camadas mais pobres da população tem sido inclusive destacada como

um aspecto que reforça estigmas aplicados ao serviço doméstico remunerado, dadas

as distâncias entre patrões e empregadas, tanto em termos de hierarquia social como

de aspectos culturais – revelados em hábitos, linguagem e vestimenta – ao lado das

distinções raciais.

As estatísticas da RMB mostram que o percentual de trabalhadoras domésticas

que nasceram fora do município de moradia é grande em todo o período considerado,

com registros variando entre 53,67% (2009) a 69,57% (1993). Os dados sobre a

naturalidade em relação à Unidade da Federação revelam que de 8,03% (2009) a

19,57% (1993) dessas trabalhadoras provinham de fora do estado, dependendo do

ano.

Uma comparação com a situação de migração do conjunto da população

feminina ocupada mostra que as imigrantes de fora do município se encontram em

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 123

maior proporção entre as trabalhadoras domésticas, já que os percentuais estão em

média 12 pontos acima dos registros feitos para o primeiro grupo. Quanto à

naturalidade em relação à Unidade da Federação, não se registram grandes diferenças

entre os dois grupos, sendo possível concluir que existe de fato uma proporção maior

de migrantes entre as empregadas domésticas, mas apenas quando se considera a

naturalidade em relação ao município.

Investigações sobre os mecanismos de contratação das empregadas domésticas

ajudariam a esclarecer essas diferenças, levantando-se aqui a hipótese de que são

utilizadas aproximações em dois níveis. Por um lado, a aproximação de mulheres de

baixa renda (potenciais empregadas domésticas) com famílias de renda mais alta

facilitaria sua inserção nesses domicílios na condição de empregada doméstica. Essa

aproximação teria raízes históricas, remetendo inclusive ao sistema de

apadrinhamento tão característico das relações patriarcais no Brasil. Por outro lado, é

preciso considerar como as indicações feitas pelas próprias empregadas domésticas

facilitam a entrada (ou a permanência) de outras mulheres nesta ocupação, sendo

essas indicações direcionadas para sua rede de relações. Isto pode ter funcionado

como um elemento facilitador da migração de mulheres de municípios próximos e sua

introdução no serviço doméstico remunerado em áreas urbanas.

3.4 Cor ou raça Os dados sobre cor mostram que entre as trabalhadoras domésticas o

percentual de pretas e pardas equivale a 79,36%, enquanto para o conjunto da

população feminina ocupada esse percentual é de 72,80% (Tabela 5). Há, portanto,

uma ênfase no recrutamento das empregadas domésticas entre as pessoas pretas e

pardas, cujos indicadores de renda familiar e instrução são mais baixos que o da

população branca.

Tabela 5 – Distribuição das trabalhadoras domésticas e da população feminina ocupada na RMB, segundo a cor ou raça – (2009) (%)

Raça ou

cor Pop. Feminina

Ocupada Trabalhadoras

domésticas

Branca 27,11 20,41

Preta 6,65 9,40

Parda 65,43 69,96

Fonte: Pnad – IBGE

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 124

Kuznesof (1989) faz uma análise histórica do serviço doméstico na América

Espanhola (1492-1980), a partir da qual destaca que as trabalhadoras domésticas no

período colonial provinham das camadas mais baixas do sistema de classe/casta/cor

que dominava a sociedade hispano-americana, fato que estabeleceu uma distância

entre empregadores e trabalhadores domésticos, assim como uma perda de status

para a ocupação de serviço doméstico. Esta colocação vale também para o Brasil

Colonial, marcado, como a sociedade hispano-americana, pelo regime de trabalho

escravo e pela preeminência da família patriarcal como ordenadora das relações

sociais.

A existência de um maior percentual de pretas e pardas entre as trabalhadoras

domésticas remete, portanto, a circunstâncias históricas que ajudam a compreender

não apenas a composição racial dessas trabalhadoras, mas também a característica de

servidão ainda associada a esta ocupação, ou seja, a subordinação e o desprestígio

têm, além do componente de gênero, um componente racial e de classe.

4. Rendimentos, horas trabalhadas e formalização do serviço doméstico

remunerado

A análise dos indicadores econômicos normalmente associados aos rendimentos

de trabalho como produtividade, horas trabalhadas e provisão necessária para a

reprodução diária da força de trabalho revela a especificidade do trabalho doméstico.

As trabalhadoras domésticas são definidas pela negativa, porque seu trabalho não gera

valor, nem produz lucro. Além disso, têm um horário de trabalho difícil de precisar em

se tratando de empregada residente, e têm parte de sua remuneração provida em

benefícios (moradia, alimentação, vestuário, cuidados médicos etc.). Sanches (2009)

discute a dificuldade em estabelecer um enquadramento produtivo adequado para a

categoria das empregadas domésticas em vista de as definições correntes de trabalho

e mercado de trabalho não incorporarem a esfera da reprodução como criadora de

valor. Destaca que, embora o trabalho doméstico não gere produtos ou serviços

diretamente para o mercado, ele permite a reprodução da força de trabalho que será

vendida no mercado. E ainda que as trabalhadoras domésticas realizem seu trabalho

em espaços privados (domicílios), seu ofício é público e sua força de trabalho é

vendida no mercado de trabalho. A definição do trabalho doméstico pela negativa e a

naturalização reforçam sua invisibilidade e desvalorização, elementos que impactam a

questão salarial desta categoria.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 125

Em 2009, os trabalhadores domésticos (homens e mulheres) apresentavam o

mais baixo rendimento entre os ocupados, equivalendo a 62,93% do rendimento dos

trabalhadores por conta própria, o grupo com o segundo menor rendimento médio

mensal. As diferenças de rendimentos de acordo com o gênero são perceptíveis,

estando as mulheres em situação desfavorável em quase todas as posições na

ocupação, exceção feita àquelas que estavam inseridas no mercado de trabalho na

condição de empregadoras (Tabela 6).

Tabela 6 - Rendimento médio mensal do trabalho principal, de acordo com a

posição na ocupação, da população ocupada na RMB (2009)

Posição na

ocupação

Rend. médio

(R$)

Rend. Homens

(R$)

Rend. Mulheres

(R$)

Empregados 935,35 961,30 891,99

Trabalh.domésticos 362,45 476,88 354,58

Conta própria 575,93 680,83 433,40

Empregadores 2.557,58 2.528,48 2.617,53

Fonte: Pnad – IBGE

Uma avaliação da evolução dos rendimentos por faixa salarial das mulheres

ocupadas como empregadas domésticas, tomando por base três anos intercalados

(1992/ 2001/ 2009), mostra que ocorreu uma melhoria entre os anos situados nos

extremos (1992 e 2009). Mas entre 2001 e 2009 verifica-se a ocorrência de um

aumento da proporção de empregadas situadas nas faixas de renda mais baixas (até

um salário mínimo), enquanto diminuiu o percentual das que tinham rendimento acima

de um salário mínimo (Tabela 7). O mesmo quadro é verificado quando se observa o

rendimento das mulheres inseridas no serviço doméstico remunerado nas zonas

urbanas do estado do Pará e no Brasil.

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 126

Tabela 7 – Distribuição da população feminina ocupada e das trabalhadoras domésticas, segundo a faixa de rendimento no trabalho principal –

RMB (1992 – 2001 – 2009) (%)

População feminina ocupada Trabalhadoras domésticas Faixa de rendimento no trabalho

principal 1992 2001 2009 1992 2001 2009

Sem rendimento 8,71 4,06 4,37 4,93 1,11 0,46

Até ½ salário mínimo 20,62 8,66 16,48 47,53 10,20 24,31

Mais de ½ até 1 salário mínimo 24,33 30,05 36,23 36,33 60,31 61,01

Mais de 1 até 2 salários mínimos 24,22 30,37 23,88 11,20 25,72 11,47

Mais de 2 até 3 salários mínimos 5,71 8,72 5,89 - 2,00 0,23

Mais de 3 até 5 salários mínimos 9,01 8,88 5,08 - 0,44 -

Mais de 5 até 10 salários mínimos 5,60 5,10 3,23 - - -

Mais de 10 até 20 salários mínimos 1,20 2,58 0,76 - - -

Mais de 20 salários mínimos 0,30 0,82 0,19 - - -

Sem declaração 0,30 0,77 3,89 - 0,22 2,52

Fonte: Pnad – IBGE

Para o conjunto das mulheres ocupadas na RMB, as estatísticas de rendimento

também apresentam um resultado mais favorável para o ano de 2001 (Tabela 7). Isto

faz crer que o movimento salarial na categoria das empregadas domésticas

acompanhou um processo conjuntural mais amplo de definição de rendimentos de

trabalho no período em foco, devendo-se levar em conta a recuperação do valor de

compra do salário mínimo nos últimos anos.

Para entender o baixo custo salarial das trabalhadoras domésticas, é preciso

levar em conta aspectos estruturais das sociedades latino-americanas, tanto com

respeito às estruturas de classe, raça e gênero como também à forma de

desenvolvimento do capitalismo na área.

Entre os fatores estruturais que contribuiriam para o baixo preço do serviço

doméstico estaria o reduzido número de alternativas de trabalho assalariado para os

setores populares e o significado social do serviço doméstico no modelo de

desenvolvimento e subdesenvolvimento dos países da América Latina. O baixo custo

salarial das trabalhadoras domésticas ajuda a manter o estilo de vida das classes

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 127

média e média alta num contexto marcado pela inoperância do Estado em prover

serviços urbanos coletivos (Castro, 1989).

Oliveira (2003) afirma que a expansão do Setor Terciário no Brasil se fez de

forma horizontal, com absorção crescente da força de trabalho mediante baixa

remuneração, como forma de suprir a necessidade por serviços urbanos, posto que o

desenvolvimento do setor mediante uma capitalização seria inviável num contexto

onde os capitais se direcionavam para a indústria em crescimento. Com respeito aos

serviços estritamente pessoais, como os que são prestados às famílias, o autor afirma

que eles também revelam uma forma disfarçada de exploração que reforça a

acumulação e a tendência à concentração de renda. O padrão de vida de uma família

de classe média brasileira, em que se inclui a prestação desses serviços, seria

sustentado pela exploração da mão de obra, sobretudo feminina.

Como visto acima, as estatísticas da Pnad mostram uma melhoria salarial entre

o início e o fim do período, quando se observa a distribuição das trabalhadoras por

classe de rendimento. Este dado, associado a outros indicadores, como a redução de

empregadas residentes, de crianças trabalhadoras, do número de horas trabalhadas, e

a existência de carteira assinada, indicam que a atividade parece estar adquirindo

algum grau de profissionalização. Essa melhoria, no entanto, não ajudou a combater

de forma decisiva as desigualdades sociais, raciais e de gênero que a acompanham.

Dentro da RMB, as empregadas domésticas trabalhavam em 2009 um número

maior de horas que o conjunto da população feminina ocupada. Mas a tabela 8 mostra

que esse total vem sendo reduzido, e hoje se encontra em 36,74 horas semanais,

tempo um pouco abaixo das 44 horas semanais que são previstas na Consolidação das

Leis do Trabalho – CLT, a qual, entretanto, não se aplica às trabalhadoras domésticas.

Estas últimas são regidas por legislação própria, que não regulamenta o número de

horas do trabalho.

Tabela 8 – Média de horas semanais trabalhadas pelas trabalhadoras

domésticas e pela população feminina ocupada – RMB (1992/ 2001/2009)

Ano População Feminina Ocupada

Trabalhadoras Domésticas

1992 39,05 47,70

2001 40,43 46,74

2009 34,74 36,74

Fonte: Pnad – IBGE

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 128

Cabe observar que a redução das horas trabalhadas ocorre nos dois grupos,

porém é mais significativa entre as trabalhadoras domésticas, o que pode estar

associado à redução do percentual que declara morar no domicílio do patrão.

A formalização da atividade ainda é pequena e sofreu contínuas oscilações ao

longo do período 1992-2009, que terminou com acréscimo de 4,01 pontos percentuais

em relação à proporção de trabalhadoras domésticas que declararam possuir carteira

em 1992. Uma comparação com a formalização das mulheres empregadas do setor

privado reforça a precarização do trabalho doméstico, ainda que tenha diminuído o

percentual de empregadas do setor privado com carteira de trabalho (Gráfico 4).

Fonte: Pnad – IBGE

O vínculo de trabalho mediante carteira assinada, além de garantir a

comprovação de tempo para aposentadoria e o gozo de benefícios previdenciários,

estabelece um patamar salarial mínimo. Assim, embora o rendimento médio das

trabalhadoras domésticas na RMB tenha ficado em R$ 354,58, há uma distinção

significativa de rendimentos de acordo com a existência de formalização deste

trabalho, pois o rendimento médio para as trabalhadoras com carteira é de R$ 501,23

contra os R$ 320,61 de rendimento médio das que não possuíam carteira assinada.

Para concluir, destaca-se que a Pnad registra as disparidades entre as Regiões

Metropolitanas com respeito a esses indicadores, sendo que aquelas situadas no Norte

e no Nordeste tendem a apresentar os piores resultados (Tabela 9). Este fato é

mencionado no trabalho de Melo (1998) sobre o serviço doméstico remunerado no

14.8

21.95 18.81

68.38

62.2 57.82

0

10

20

30

40

50

60

70

80

1992 2001 2009

Gráfico 4 – Trabalhadoras domésticas e empregadas do setor privado que apresentavam vínculo de trabalho

(1992-2001-2009) (%)

Trabalha

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 129

Brasil, numa comparação que a autora estabelece entre as estatísticas das Grandes

Regiões, e que demonstram a existência de um quadro mais perverso em relação às

regiões brasileiras mais pobres (Norte e Nordeste).

Tabela 9 - Rendimento médio mensal, horas semanais trabalhadas e existência de carteira assinada entre as trabalhadoras domésticas por Região

Metropolitana - 2009 (%)

Região Metropolitana Rendimento Médio Mensal

Horas semanais trabalhadas

Trabalhadoras domésticas com

carteira de trabalho (%)

Belém 354,58 36,74 18,81

Fortaleza 325,71 40,44 15,17

Recife 349,03 38,55 26,53

Salvador 338,68 37,54 29,53

Belo Horizonte 429,52 35,57 37,29

Rio de Janeiro 539,05 35,48 31,00

São Paulo 533,94 36,56 38,30

Curitiba 505,61 33,43 31,94

Porto Alegre 500,38 34,6 40,73

Fonte: Pnad – IBGE 5. Palavras finais

O acompanhamento das estatísticas referentes ao serviço doméstico

remunerado dentro da RMB sinaliza que as mudanças e as permanências verificadas

estão de acordo com aquilo que é retratado pela literatura especializada tanto para o

Brasil quanto para a América Latina.

Embora já tenha sido considerada uma atividade fadada a desaparecer, o

serviço doméstico remunerado vem demonstrando sua persistência e

representatividade para a população feminina ocupada nos países da América Latina.

Fato justificado por alguns autores pelo baixo nível da rede de serviços públicos e de

apoio à família disponível na maioria desses países, associado a uma estrutura social,

racial e de gênero marcada por forte desigualdade.

A atividade apresenta uma orientação de gênero, mas é também atravessada

por uma questão de classe, situando em polos opostos patroas e empregadas. A

demanda continuada pelo serviço doméstico remunerado é um fato que acompanha a

ENFOQUES v.11(1), março 2012 Maria Angela Gemaque Álvaro 130

crescente inserção no mercado de trabalho de mulheres oriundas de famílias de rendas

médias e altas, garantindo o estilo de vida desses grupos.

No entanto, a permanência da representatividade da categoria vem sendo

acompanhada, também, por mudanças no perfil das trabalhadoras domésticas, assim

como em indicadores econômicos como renda e formalização da atividade. Essas

alterações parecem relacionar-se menos a mudanças internas à atividade, e mais a

fatores externos, como processos demográficos, culturais, educacionais e econômicos

de longo prazo.

Se, por um lado, o acompanhamento dos indicadores econômicos revela alguma

melhoria na profissionalização dessas trabalhadoras, por outro lado, o quadro final

ainda se caracteriza por forte precariedade. Trabalhos recentes vêm destacando a

dimensão e a importância desta ocupação no tratamento da questão das desigualdades

sociais, raciais e de gênero. Indicam a necessidade de provisão de políticas públicas

para esse contingente enorme de trabalhadoras e seu impacto na redução da

desigualdade e da pobreza.

É uma questão que tem diversas implicações, entre elas a necessidade de

desnaturalizar a ocupação para poder conferir-lhe status profissional e a equiparação

dos direitos. Não será resolvida unicamente através de mecanismos técnicos e legais,

mas necessita também que se crie um ambiente de discussão, conscientização e

transformação de aspectos culturais profundamente enraizados em sociedades como a

brasileira. Um ponto de partida fundamental é dar visibilidade às trabalhadoras

domésticas, mostrando as circunstâncias que cercam o exercício de seu ofício. Foi esta

a contribuição que este artigo pretendeu dar.

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