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Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Culturas Visuais realizado sob a orientação científica de Prof.ª Dr.ª Filomena Silvano

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Trabalho de Projecto apresentado para cumprimento dos requisitos necessários à

obtenção do grau de Mestre em Culturas Visuais realizado sob a orientação científica

de Prof.ª Dr.ª Filomena Silvano

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AGRADECIMENTOS

Queria agradecer, em primeiro lugar, à Prof.ª Dr.ª Filomena Silvano, pelos conselhos e partilha de ideias ao longo deste projeto, que se demonstraram essenciais para o arranque desta pesquisa e originalidade na sua concretização.

À Raquel Castro pela inspiração que recebi a partir da visualização do seu documentário “Soundwalkers” e pelo apoio na fase mais importante deste projeto.

Aos pesquisadores e músicos Mick Mengucci, Yuri Vellasco, Luiz Gabriel Lopes, Felipe José e Pedro Durães pelo seu entusiasmo profissional e partilha de conhecimentos sobre esta área de pesquisa sonora.

Aos meus colegas de mestrado: Amaya Sumpsi pelos conselhos essenciais no início desta investigação, Catarina Faria, Tatiana Macedo e Arlindo Horta pela partilha dos seus projetos de pesquisa.

À Prof.ª Dr.ª Chiara Pusseti pelo apoio e disponibilidade em partilhar o seu trabalho pessoal que em muito influenciou este projeto.

Ao Prof. Dr. Carlos Falci pelo apoio e recetividade nos projetos que desenhámos em conjunto no Brasil e que vieram a contribuir diretamente para esta investigação.

Aos meus amigos e companheiros de viagem:

André Salgado, Pap Lamine, Ricardo Falcão e Magueye pelo apoio e acolhimento que me deram no Senegal. No Norte do Mali, um agradecimento especial a Homeini, Hamo e sua família, Titi, Azima, Sandy e Abba que me “adotaram” em Timbuctu, e a todos os habitantes da aldeia de Tintelut pela sua generosidade (penso neles todos os dias, com uma certa tristeza, por estarem neste momento num campo de refugiados em Mbera, na Mauritânia). No Brasil, um agradecimento a Mateus Bahiense e Luiza Vianna pela hospitalidade em sua casa no vilarejo de Milho Verde em Minas Gerais.

À Joana Estevão, pela partilha dos seus conhecimentos e do seu entusiasmo contagiante.

À Rita Gaspar, pelas nossas conversas que deram uma maior clareza a este projeto.

Aos meus amigos João Vicente, Indira Andrade, Hugo Ribeiro, pela colaboração e paciência que tiveram durante a fase de recolha de campo.

Um especial agradecimento às minhas amigas e colaboradoras Joana Gomes, Maria Louzeiro e Linda Campos pela sua ajuda na fase final de concretização do relatório.

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À Dr.ª. Thais Magalhães e Dr.ª Isabel Crespo por terem ajudado na recuperação de uma lesão contraída durante esta pesquisa.

Às entidades e seus encarregados que se disponibilizaram para este projeto:

Um agradecimento ao Eng. António Cruz que gentilmente me recebeu na Divisão de Ambiente Urbano da Câmara Municipal de Lisboa, ao Dr. João Chumbinho, Presidente dos Julgados de Paz, ao Sr. Romão Lavadinho da Associação de Inquilinos Lisbonense, ao Sr. Luís Paisana da Associação de moradores do Bairro Alto e ao Tenente Coronel Joaquim Delgado, Chefe da Divisão da Natureza e Ambiente da Guarda Nacional Republicana.

Aos entrevistados que colaboraram neste projeto:

Um especial agradecimento ao Hugo Ribeiro, João Vicente, Dona Ivone, Chefe Costa, Sérgio e Mira do Tejo Bar, Gustavo e Zé Patrício, Nober, Sara, Jerome, Vasco Costa, José Silva Carvalho, Daniel Ribão e Tiago.

Aos meus amigos e colegas Gustavo Patrício e Tiago Salsinha do projeto Imidiwan e ao Juninho Ibituruna e João Pires do projeto XAFU.

Aos autores Brandon Labelle, François Augoyard, Henry Torgue, Richard Sennet, George Prochnik e Murray Schaffer pela inspiração que recebi dos seus trabalhos.

Aos músicos que fizeram parte da banda sonora que acompanhou a escrita deste relatório: Jagga Jazist, Tinariwen, Bombino, Bonobo, João Gilberto, Jorge Ben, Herbie Hancock, Cinematic Orchestra, Terakaft e Amon Tobin.

Ao mestre Guilherme Luz, pela partilha da sua experiência de vida.

Um especial agradecimento ao meu amigo Francisco Leitão que me ajudou em todas as fases de concretização deste projeto.

À minha família Mafalda, Fausto e Susana, pela paciência eterna e o seu apoio incondicional, por terem sempre acreditado em mim e por serem pessoas com valores e princípios que quero partilhar com o mundo, tal como intentei através deste projecto.

À Débora, pela sua ajuda que foi essencial para este projeto se concretizar, na partilha e construção de ideias, na motivação que me deu ao longo do processo, na paciência e no carinho.

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Sharawadji

Casos de ruído de vizinhança na cidade de Lisboa

André Miguel Carvalho Coelho

RESUMO

O projeto Sharawadji pretende ser uma instalação interativa que retrata seis casos de ruído de

vizinhança analisados na cidade de Lisboa, de forma a ser possível refletir sobre a

importância do som no meio urbano. Esta instalação consiste em problematizar certos aspetos

referentes à lei de redução e controlo de ruído existente em Lisboa.

A finalidade principal deste projeto é promover uma experiência dos sentidos ao observador

da instalação. A nível conceptual foi baseado num efeito sonoro existente nos centros

urbanos, denominado efeito Sharawadji. Documentado por Jean-François Augoyard e Henry

Torgue, Sharawadji é um efeito estético, caracterizado pela sensação de plenitude através da

contemplação de uma paisagem sonora complexa.

Este relatório contém a descrição dos passeios sonoros realizados no Senegal, Mali e Brasil

pelo seu autor (estas viagens despertaram a sua capacidade auditiva, ao percepcionar a

influência do som em diferentes contextos geográficos e socioculturais), seguida da descrição

detalhada dos seis casos analisados. O primeiro exercício de escuta influenciou o processo de

recolha de campo realizado em Lisboa.

PALAVRAS-CHAVE: ruído, consciência de escuta, comunidade acústica.

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ABSTRACT

The Sharawadji project aims to be an interactive installation which portraits six analyzed

cases of neighborhood noise in Lisbon, in order to evaluate about the importance of sound in

the urban environment. This installation brings into discussion some aspects concerning the

Portuguese noise abatement law (act) in Lisbon city.

The main purpose of the project is to promote a sensory experience to the observer of the

installation. Conceptually, it was based on a sound effect that happens in the urban centers

called Sharawadji effect. Documented by Jean François Augoyard and Henry Torgue,

Sharawadji is an aesthetic effect, characterized by a feeling of plenitude emerged by the

contemplation of a complex soundscape.

This report contains the description of the soundwalks made in Senegal, Mali and Brazil by

the author (these journeys awakened his perceptive ability and trough the observation of the

influence of sound in different geographical and socio-cultural contexts), followed by the

detailed description of the six cases analyzed. The first listening exercise influenced the

process of the fieldwork held in Lisbon.

Keywords: noise, listening consciousness, acoustic community.

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ÍNDICE

Introdução .................................................................................................................................. 1

Parte 1: Uma abordagem sociocultural do ruído ....................................................................... 7

1.1. Entre Alfama e Panjim ................................................................................................ 7

1.2. Ruído e volumes éticos ............................................................................................. 11

1.3. Lei do Ruído .............................................................................................................. 19

1.4. Observações sobre o Regulamento Geral do Ruído .................................................. 21

Parte 2: Comunidades Acústicas ............................................................................................. 27

2.1. Entre Milho Verde e Belo Horizonte ........................................................................ 27

2.1.2. Subúrbios acústicos ................................................................................................ 32

2.2. Entre Dakar e Timbuctu ............................................................................................ 39

2.2.1. Silêncio negativo e música programada ................................................................. 53

Parte 3: Metodologia do trabalho de campo ............................................................................ 58

3.1. Recolha de Campo .................................................................................................... 58

3.2. Problemáticas ............................................................................................................ 63

Parte 4: Casos .......................................................................................................................... 66

4.1. Bordão ....................................................................................................................... 66

4.2. Vibração e proximidade ............................................................................................ 76

4.4. Imitação ..................................................................................................................... 88

4.5. Onda do Tejo ............................................................................................................. 94

4.6. Aldeia Vertical ........................................................................................................ 100

Parte 5: Instalação ................................................................................................................. 107

5.1. Arte e Antropologia ................................................................................................. 109

5.2. Corpo da instalação ................................................................................................. 113

5.2.1. Efeito Sharawadji................................................................................................. 115

Considerações finais .............................................................................................................. 117

Bibliografia ............................................................................................................................ 123

Anexo 1: Modelo tridimensional.................................................................................................I

Anexo 2: Instruções..................................................................................................................III

Anexo 3: Demonstração e Casos.................................................................................contracapa

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Introdução

Qual é o papel de uma voz antropológica num estudo sobre a influência do

som em certos contextos sociais, estudo esse que necessita também de vozes oriundas

de outras áreas como a acústica, performance, design, psicologia, geografia,

musicologia, composição, arquitetura, filosofia e comunicação? O objetivo num tema

tão complexo como este acaba por ser a constituição de uma abordagem

multidisciplinar que permita olhar para hábitos, sistemas de crenças, conhecimentos e

regras de cultura de uma dada realidade social. Para isso, o foco recai sobre os

sujeitos, de forma a representar a sua voz e o seu mundo. Dispensável será dizer que

não é possível reproduzir as experiências vividas pelos sujeitos, mas podemos

aproximar-nos ao máximo do conhecimento e análise das suas realidades.

Independentemente da complexidade existente na diversidade dos comportamentos

humanos, experienciar diferentes realidades relacionadas com a mesma problemática

ajuda a clarificar a questão chave a ser investigada, neste caso, a influência do ruído

nas relações de vizinhança.

Sendo assim, esta pesquisa teve como base o contacto com sujeitos que lidam

diretamente com o ruído de vizinhança, ou seja, fui observar a influência do som

dentro dos limites físicos e emocionais dos espaços de habitação destes indivíduos,

através da captura sonora e visual dos territórios que emergem neste tipo de relações

entre vizinhos.

Este projeto surgiu após uma situação por mim experienciada num bairro

histórico na cidade de Lisboa. No ano de 2010, eu e alguns colegas de profissão

tínhamos com alguma frequência desentendimentos com um vizinho que vivia ao lado

do nosso apartamento, devido ao ruído que produzíamos durante o período noturno.

Com o tempo sucederam-se episódios que começaram a fugir de um normal

relacionamento de vizinhança, tal como descritos no ponto “Entre Alfama e Panjim”.

Esta situação tornou-se o ponto de partida para uma pesquisa que necessitou de

diversas experiências pessoais que se tornaram imprescindíveis para um melhor

entendimento da minha própria relação com o som, antes mesmo de começar a

investigação sobre este tema.

Esta pesquisa foi conduzida por uma metodologia que teve em conta a minha

profissão enquanto músico, mas mais importante enquanto “turista sonoro”, isto é,

através das experiências acústicas em diversos países ao longo dos últimos três anos.

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Descritas no capítulo “Comunidades Acústicas”, as viagens sonoras que incluí neste

relatório, realizadas entre 2010 e 2012, foram indispensáveis para um maior

entendimento da minha capacidade percetiva. Desde a oportunidade de constatar a

existência de uma “comunidade acústica” (Schaffer, 1977) na aldeia de Niafrang no

sul do Senegal, da “limpeza dos ouvidos” (idem) no deserto de Timbuktu a norte do

Mali, até ao confronto com os djs do volante na aldeia de Milho Verde no Brasil,

estas experiências deram-me oportunidade de compreender a minha sensibilidade de

escuta em diferentes contextos sociais e culturais e também de observar a influência

de certos fatores ecológicos, geográficos e urbanísticos na perceção do sujeito do seu

meio envolvente.

A melhor forma de definir estas experiências é a partir do termo soundwalk ou

“passeio sonoro”, prática conceptualizada por Murray Schaffer no momento em que

ele criou, nos finais dos anos 60, o World Soundscape Project na Simon Fraser

University. Este método empírico consiste na identificação de uma paisagem sonora1

e das suas componentes num dado lugar. De acordo com M. Adams (2008) o passeio

sonoro “é uma caminhada em torno de uma área urbana, onde os sentidos são

direcionados para os sons de um local”2. Já Hildegard Westerkamp (1974) afirma que

soundwalk é “qualquer tipo de excursão em que o único objetivo é escutar o meio

ambiente.” Esta investigadora descreve esta prática como uma introdução à educação

acústica, no sentido do ouvinte “experienciar a escuta de uma forma

descomprometida” (Westerkamp, 1974 in Adams, 2008). A primeira vez que entrei

em contacto com este método de observação do espaço acústico foi através do

documentário “Soundwalkers” realizado por Raquel Castro, no primeiro ano de

mestrado. Este documentário tornou-se importante para a pesquisa, devido à forma

elucidativa como a realizadora conseguiu partilhar a história sobre o pensamento do

ruído nas sociedades modernas e também pela sua abordagem sobre a ecologia

acústica, área de investigação do som cada vez mais importante na sociedade atual.

Neste sentido, o “Soundwalkers” trouxe para o projeto uma maior clareza sobre a

consciência de escuta que é necessária para este tipo de estudo, por ter sido um dos

1 O termo soundscape (paisagem sonora) criado por Schafer a partir do termo landscape

(paisagem), refere-se a “qualquer ambiente sonoro ou qualquer porção do ambiente sonoro visto como

um campo de estudo, podendo ser esse um ambiente real ou uma construção abstrata qualquer, como

composições musicais, programas de rádio, etc”. (Schafer, 1977: 274-275 in Lucia José e Julio Sergi,

2007). 2 Disponível em http://usir.salford.ac.uk/2461/1/Adams_etal_2008_Soundwalking_as_Methodology.pdf

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primeiros contactos que tive com o trabalho de muitos investigadores desta área

científica.

Esta investigação também se baseou na abordagem dos trabalhos de alguns

investigadores, nomeadamente de Murray Schafer, François Augoyard e Brandon

Labelle. Desde os anos 70 e 80, têm emergido inúmeras investigações sobre a

influência do ruído ao nível ecológico, social e cultural. Como um dos pioneiros deste

tipo de investigação, Schaffer traz uma análise consistente sobre as paisagens sonoras

existentes no meio urbano e rural em diferentes sociedades um pouco por todo o

mundo. Na sua obra “Tuning of the World”, o autor realça a importância para o ser

humano da escuta enquanto forma de compreensão do seu meio ambiente e social,

contrapondo-a com o aumento da poluição sonora proveniente do crescimento

industrial e tecnológico nas sociedades modernas. Este livro tornou-se muito

importante ao longo desta pesquisa tendo em conta que, para além das descrições

históricas sobre as diversas paisagens sonoras existentes no mundo, a sua proposta de

“limpeza dos ouvidos” (Schaffer, 1977) foi essencial para a criação de uma maior

sensibilidade auditiva durante o trabalho de campo3.

Ao nível prático, o livro que incentivou a conduta no trabalho de campo foi

“Sonic Experience”, criado por François Auyogard e Henry Torgue. Fruto de uma

colaboração que durou cerca de dez anos entre engenheiros, arquitetos, planeadores

urbanísticos, sociólogos, filósofos, geógrafos e musicólogos, este trabalho contribuiu

para a ampliação das ferramentas de estudo do som já existentes nesta área de

investigação, através do preenchimento de três critérios: interdisciplinaridade,

adequação à escala das situações urbanas observadas e capacidade em integrar

dimensões para além do design estético (Augoyard e Torgue, 2006: 7). O conceito

finalmente adotado por estes autores foi o de “efeito sonoro”, que está cada vez mais

a ser utilizado nos três campos onde é particularmente eficiente: ciências sociais,

estudos urbanos e acústica aplicada (idem: 7). Para estes autores, o conceito de “efeito

sonoro” descreve esta interação entre o ambiente de um som físico, o meio acústico

de uma comunidade sociocultural e a “paisagem sonora interna” de cada indivíduo

(idem: 9).

Uma outra inspiração para este projeto de pesquisa foi o livro “Acoustic

Territories” escrito por Brandon Labelle. A sua pesquisa traduz um retrato das

3 Ver “Entre Dakar e Timbuctu”.

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relações que atualmente os indivíduos têm com os diversos espaços urbanos em que

estão inseridos, e de como isso influencia a sua perceção auditiva no seu meio

sociocultural. Mais especificamente no capítulo “Home”, Labelle descreve a

importância do lar enquanto santuário dos rituais e partilhas íntimas do sujeito e a

forma como este preserva acusticamente o seu espaço doméstico em equilíbrio com o

seu meio envolvente4.

Através desta pesquisa bibliográfica, comecei a estruturar a metodologia do

trabalho de campo com o objetivo de recolher os dados que contribuíssem para a

concretização do projeto final. Ao mesmo tempo pretendi que a minha perceção

conduzisse o processo de recolha de campo, de forma a usufruir das diversas

experiências sensoriais vividas durante a pesquisa, para que contribuísse para a

reflexão teórica, dependendo da natureza dos casos em análise. Por outras palavras, a

conciliação da parte teórica da pesquisa com a minha presença no terreno poderia dar

a oportunidade de demonstrar as questões debatidas ao longo deste processo de

investigação, testando e desenvolvendo em simultâneo a minha capacidade percetiva,

através dos “passeios sonoros” possibilitando uma maior sensibilidade de escuta num

dado evento 5 . Após ter escolhido as ferramentas para a pesquisa no terreno,

nomeadamente ao nível de captura sonora e de registo fotográfico, comecei a procurar

os casos mais adequados para este tipo de investigação na cidade de Lisboa, através

do contacto com as entidades e agentes sociais que de alguma forma se relacionam

com este fenómeno6.

Escolhi os casos que demonstram o universo desta pesquisa dando preferência

aos que tinham fontes de ruído diferenciadas entre si e diferentes tipos de

relacionamento dos sujeitos com o fenómeno de ruído de vizinhança. Dos doze casos

analisados escolhi seis que julguei serem apropriados para a fase posterior do projeto,

nomeadamente na materialização desta pesquisa, descrita no capítulo “Instalação”.

Escolhi casos de diferentes áreas da cidade de Lisboa que possuíam

características distintas entre si como a fonte sonora, recetividade percetiva do

indivíduo, condições urbanísticas e tipo de relacionamento de vizinhança. Cada caso

apresentava as suas próprias especificidades o que veio a evidenciar a pesquisa

4 Ver “Ruído e volumes éticos”. 5 Desde a observação não intencionada de um determinado espaço acústico até às anotações

dos elementos que compunham uma dada paisagem sonora, tentei “limpar os ouvidos” de forma a

alcançar uma certa autonomia percetiva no momento da recolha de campo. 6 Ver capítulo “Metodologia do trabalho de campo”.

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bibliográfica que esta investigação exigiu7. Porém, convém realçar, que estes casos

não são reflexo da “comunidade acústica” dos bairros analisados, mas situações

singulares encontradas nestas zonas.

Uma das questões que surgiu na fase de escrita deste relatório foi a de como

colocar a voz dos sujeitos entrevistados. Penso que, para além do trabalho de projeto,

o relatório deve ser o mais fiel possível aos eventos analisados, o que se concretiza

através da transcrição direta dos depoimentos recolhidos. Por essa razão os casos aqui

expostos também contêm a reprodução exata dos registos áudio captados durante as

entrevistas, de forma a que haja uma referência escrita dos depoimentos que serão

ouvidos no projeto final8.

Foi também necessário contextualizar a nível bibliográfico certos aspetos

referentes a estes casos, para que fosse mais fácil a localização do seu conteúdo neste

projeto de pesquisa. Nesse sentido, introduzi as abordagens dos autores que

influenciaram a minha investigação tais como Murray Schaffer, François Augoyard,

Brandon Labelle e George Prochnik, que facilitaram a análise da complexidade destes

fenómenos sociais através das suas pesquisas.

Ao refletir sobre a concretização deste projeto, pareceu-me essencial que o

som fosse o elemento central na composição do produto final. Os estudos em torno

deste tema, da influência do ruído nas relações entre sujeitos promovem discussões

importantes para a sociedade, nomeadamente de que forma é exercida a nossa

consciência de escuta no dia a dia. Por abordar uma temática que requer uma análise

multidisciplinar, devido à forma como atualmente o som influencia a vida dos

indivíduos nos centros urbanos, este trabalho visa inserir-se numa área cada vez mais

transversal nas ciências sociais e humanas.

Presenciamos cada vez mais o aumento da recorrência de certos fenómenos

sociais, como por exemplo os conflitos de vizinhança, o que parece estar relacionado

com a falta de clareza das leis, incapazes de conciliar as diferentes formas de perceção

do espaço entre os sujeitos. A fraca definição dos critérios de controlo e restrição do

ruído, sem uma compreensão multidisciplinar destes fenómenos existentes no meio

urbano, podem gerar uma leitura insuficiente sobre esta matéria e consequentemente a

criação de soluções pouco eficazes por parte dos órgãos reguladores9.

7 Ver em anexo “Casos”. 8 Ver capítulo “ Instalação”. 9 Ver “ Observações do Regulamento Geral do Ruído”.

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A abordagem feita nesta pesquisa, iniciada a partir da análise de diferentes

espaços domésticos e das relações das pessoas que neles habitam com o ambiente

sonoro que as envolve, demonstra vários aspetos que influenciam a conceção do ruído

enquanto barulho incómodo produzido pelo “outro”. Este facto tem origem tanto em

significados sociais e culturais compartilhados pelos indivíduos como nos próprios

condicionamentos urbanísticos a que estão sujeitos.

Sendo assim, o efeito subjetivo do som no indivíduo tornou-se uma das

questões centrais desta pesquisa: como “observamos” o ruído e porque escutamos um

evento sonoro de forma distinta de outro sujeito?

A melhor forma de materializar esta questão teórica pareceu ser através de

uma instalação que criasse possibilidades de leitura que evidenciassem a dimensão

acústica da pesquisa, de modo a que o “espetador” pudesse ter experiências sonoras

semelhantes às experienciadas por mim durante a fase de recolha de dados em Lisboa.

Pessoalmente, sinto que esta partilha é necessária dado que os indivíduos que habitam

em certos espaços urbanos têm cada vez menos acesso a sensações auditivas

diversificadas devido não só a fatores arquitetónicos e urbanísticos como também à

influência do meio sociocultural na sua capacidade percetiva. Assim sendo, um dos

objetivos deste trabalho é despertar a consciência de escuta através da apreciação dos

diversos fenómenos acústicos existentes nos espaços domésticos, delimitados pelas

fronteiras que separam a liberdade íntima da convivência em sociedade, tal como

assistimos neste fenómeno de ruído de vizinhança.

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PARTE 1

Uma abordagem sociocultural do ruído

1.1. Entre Alfama e Panjim

Durante a primavera de 2010 frequentei muito o bairro de Alfama. Por ter

alguns amigos e colegas de profissão que lá trabalhavam, na sua maioria músicos,

costumávamos encontrar-nos numa casa no coração deste bairro histórico lisboeta.

Como trabalhávamos de dia, as noites eram reservadas para um convívio mais

sossegado, de forma a retirar a pressão do trabalho diurno.

Em meados de maio, começámos a ter visitas inesperadas do vizinho do lado,

que se queixava do barulho produzido na casa. De pijama e completamente

desesperado por sossego, ele batia à nossa porta com muita frequência e a sua atitude

era, a meu ver, desproporcional ao incómodo que eu julgava que causávamos com o

nosso ruído. Não havendo qualquer recurso à música, nem por meio de aparelhos

eletrónicos nem pela prática instrumental, o nosso barulho resumia-se a conversas e

aos sons das tarefas domésticas. Inicialmente os pedidos para reduzir o som foram

respeitados, mas permaneceu sempre a dúvida se estávamos realmente a incomodar

ou se era exagero daquele senhor.

Os problemas agravaram-se quando, em vez das queixas diretas, recebemos

ordens da Polícia de Segurança Pública para cessar a produção de ruído. Após duas

visitas seguidas, confrontámos os agentes de autoridade com os factos: o único

barulho provinha das nossas conversas, e essa fonte de ruído, quantitativamente, não

ultrapassava os limites estabelecidos pela lei. Compreensivos com os nossos

argumentos, os agentes admitiram ter dificuldades em gerir este tipo de conflito de

vizinhança, tendo em conta que, de acordo com o seu testemunho, muitas vezes são

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chamados para ocorrências que não têm solução, pelo facto de estas não serem

suficientemente graves para autuar o (aparente) infrator.

O caso mais grave sucedeu quando o vizinho, por volta da meia-noite,

começou a buzinar dentro do seu carro para nos chamar a atenção. Ao observarmos

esta situação pela janela, ele atacou-nos verbalmente, conduzindo o conflito para fora

dos limites da cordialidade.

Após algumas conversas com outros vizinhos, comecei a saber mais a respeito

deste senhor que estávamos a incomodar. Descobri que exercia a profissão de taxista,

que acordava pelas seis da manhã e que trabalhava cerca de 12 horas por dia. Nesse

momento, tornou-se nítido para mim que o sossego noturno era indispensável para

uma pessoa com estas condições de trabalho.

Relacionando as suas queixas com os sons do seu quotidiano, quis entender a

realidade acústica do seu espaço profissional e doméstico. O táxi onde trabalha

consegue oferecer formas de bloqueio sonoro do seu espaço envolvente, seja a partir

das paisagens musicais disponíveis no rádio seja da barreira acústica criada pelas

janelas da sua viatura. Mas não consegue isolá-lo completamente da exposição aos

barulhos mecânicos provenientes de outras viaturas, buzinas, sirenes ou sinais de

trânsito o que torna a sua paisagem sonora vulnerável a estes sons densos e

agressivos. Sendo o seu espaço pessoal continuamente interferido, ele é obrigado a

reagir às constantes mudanças de intensidade sonora durante o horário de trabalho.

Devido a estes exercícios auditivos no seu dia a dia, é plausível supor que, ao

chegar ao seu espaço doméstico, um indivíduo num contexto semelhante ao do taxista

tenda a resistir a qualquer tipo de som proveniente do exterior, pela sua necessidade

de sossego e descanso. Neste sentido, o lar reflete o seu “estado psíquico” (Bachelard,

1958), ao procurar o equilíbrio com o espaço exterior, através do controlo acústico

dentro da sua habitação (LaBelle, 2010). Sendo o ruído de vizinhança um fluxo

invasivo, ele tenta proteger a sua paz doméstica, tanto através de queixas diretas,

como também recorrendo à própria lei. No lar, invariavelmente o taxista terá o seu

vizinho do outro lado da parede, sem qualquer possibilidade de se deslocar para um

espaço mais desejável, tal como acontece no seu período de trabalho devido à

mobilidade por diferentes paisagens urbanas que a sua viatura proporciona, ou através

da música de rádio usada como “áudio-analgésico” (Schaffer, 1977). Sendo assim, as

suas reações ao barulho produzido por nós pareceram tornar-se atos defensivos

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perante o domínio de uma paisagem densa e intrusiva no seu quotidiano, tal como

acontece no tráfego rodoviário.

Ao refletir sobre a experiência que tivemos com o nosso vizinho de Alfama,

lembrei-me de uma viagem à Índia, 8 anos antes. Na cidade de Panjim, capital do

distrito de Goa, aluguei uma motorizada para me deslocar com mais facilidade aos

locais turísticos. Inicialmente, o trânsito era insuportável, não tanto pela quantidade

de viaturas nas estradas, mas pelo caos proveniente das buzinas dos veículos. Tendo

em conta que em certas localidades não havia sinais de trânsito para regular o fluxo

rodoviário, rapidamente entendi a razão para esta desordem: os constantes avisos

sonoros contribuíam para que a circulação entre viaturas fosse mais homogénea e sem

engarrafamentos, sendo este o meio de negociação entre os condutores. Desta forma,

era possível saber a localização de todas as viaturas, pelo alerta das diferentes

tonalidades e timbres das buzinas.

Comecei nesse momento a questionar o que me levou, no início da viagem, a

ter uma aversão a esta paisagem das estradas de Panjim. Após associar os sons das

buzinas às necessidades locais, o excesso de ruído tornou-se significativamente menos

incomodativo, e a dado momento prazeroso. Comecei a sentir que estava a contribuir

para essa organização do espaço, assegurada pela constante negociação entre sujeitos:

senti-me, por momentos, pertencente a uma “comunidade acústica” ( Schaffer, 1977:

215).

Estas duas situações, de Alfama e Panjim, parecem ter algo em comum pelo

facto de trazerem experiências distintas com um mesmo som pertencente ao nosso

quotidiano, o som da buzina. Enquanto em Panjim ela se tornou indispensável para a

organização da circulação rodoviária, a buzina em Lisboa é usada pontualmente, na

maioria das vezes em situações de advertência ou repreensão, raramente com uma

função mais construtiva de organização de fluxos coletivos, tal como presenciei na

Índia. No caso de Panjim, a buzina deu-me oportunidade de negociar com o outro, em

conformidade com as características do fluxo rodoviário local. Em relação a Alfama,

o nosso vizinho taxista, enquanto proprietário do seu lar, demonstrou o seu incómodo

usando a buzina (som a que recorre e a que está exposto diariamente no seu local de

trabalho) como forma de inquietar quem o incomodava. Exposto a este som no seu

quotidiano, ele acabou por utilizar a sensação que a buzina lhe provoca, fazendo dela

um instrumento de poder contra quem importunava o seu sossego.

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Se este conflito de vizinhança tivesse acontecido em Panjim a buzina seria

também usada como uma arma ao nível doméstico? As características da buzina,

enquanto sonoridade densa e agressiva, são observadas em ambas as situações mas

em todo o caso existe uma apreciação sociocultural distinta deste tipo de som. Ao

imaginar que um taxista de Panjim tem as mesmas reações de incómodo no trânsito

que o nosso vizinho, a sua exposição ao som da buzina pode ser menos dolorosa. Isto

pode acontecer porque a buzina em Goa contem à partida um código que é entendido

como uma forma contínua de solucionar os problemas do trânsito local, e não como

um recurso sonoro utilizado pontualmente para casos de repreensão e advertência, tal

como acontece em Lisboa. Pessoalmente, por não ter a carta de condução, a minha

relação direta com este som ocorre apenas em situações de desatenção, quando

atravesso uma estrada. A minha reação instintiva a este som, tanto na estrada como

nessa noite em Alfama, é de estar a ser repreendido por alguém que tem uma presença

sonora maior que a minha nesse espaço. O taxista de Alfama, apesar do seu domínio

físico e acústico na estrada, também sente na pele o peso deste instrumento ao ser

advertido por outros motoristas.

Sendo assim, constatei nestes dois casos, que a dimensão cultural do som pode

determinar a perceção do indivíduo e, consequentemente, a forma como este

configura o seu espaço social.

Através desta breve interpretação de duas situações por mim vividas,

introduzo a questão essencial do meu projeto: o que é o ruído?

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1.2. Ruído e volumes éticos

“Ruído pode ser definido como um som indesejado. Isto torna o ruído um termo

subjetivo, tendo em conta que a música de um indivíduo pode ser o ruído de outro” (Schaffer,

1977: 183).

Estas experiências vividas entre Alfama e Panjim parecem ilustrar a teoria de

que o ruído não possui um caráter objetivo, ou seja, de que este se configura na

relação direta entre um evento sonoro e a perceção de um indivíduo. De acordo com

Paul Hegarty (2007), essa relação varia de acordo com fatores como a localização

histórica, geográfica e cultural, dependendo de quem produziu o ruído, quando e de

que forma afetou o recetor (Hegarty, 2007: 3).

Ruídos não são diferentes de outros sons até serem classificados como

incómodos. Mas a noção de “barulho” já tem essa qualificação, ou seja, já é o

julgamento de que um dado som está a ser incomodativo10. Apesar de o ruído poder

ser recebido fora da nossa compreensão (sem entendermos o seu objetivo, forma ou

fonte) um julgamento é feito quando temos uma reação a este (idem: 4).

O ser humano pode ser fisicamente afetado por certos sons: frequências ou

sons muito altos podem prejudicar o ouvido, enquanto frequências muito baixas

podem afetar certas áreas do corpo, com perturbações ao nível do sistema digestivo e

cardíaco (LaBelle, 2010). Porém, ao nível fisiológico, a tolerância do aparelho

auditivo varia entre indivíduos, o que não se deve apenas a fatores biológicos. Em

grande parte essa classificação de ruído, enquanto som nocivo, provém da

aprendizagem que adquirimos socialmente em relação ao desconforto, seja este físico

ou espiritual (Hegarty, 2007:5).

Certos tipos de ruído têm a ver com os sons produzidos por “outras pessoas”, e

estes são os que normalmente conduzem à regulamentação e controlo do ruído a nível

social. Como resultado, práticas que não produzem sons de volume elevado para

serem uma ameaça física, segundo os padrões determinados pela Medicina, podem ser

tidas como barulhentas. Sendo assim, o ruído é visto como um excesso, mas para o

10 Penso ser importante destacar a diferença entre a noção de ruído e de barulho. No senso

comum, as duas palavras parecem ter o mesmo significado. No entanto, se analisarmos com mais

cuidado o que as pessoas querem dizer quando as utilizam, parece que o ruído é um som indesejável,

ao passo que o barulho é o resultado da conjugação de diversos sons que incomodam o ouvinte.

Normalmente, quando um indivíduo se refere a um som incomodativo denomina-o de ruído,

designando por barulho um espaço acústico confuso e perturbador.

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ouvido humano isto ocorre maioritariamente pela perceção cultural, bem como pelas

reações individuais que dependem, além da cultura e da sociedade, das experiências

pessoais de cada sujeito e das relações que ele estabelece com determinados sons

(Hegarty, 2007).

Se considerarmos a definição objetiva de ruído como sons que ultrapassam

determinado limite de decibéis suportáveis pelo ouvido humano, pode afirmar-se que

o ruído sempre existiu na natureza. Sons volumosos de certos fenómenos como o som

do trovão, do tremor de terra ou da tempestade no mar sempre foram fundamentais

como referência da ocorrência de certos eventos naturais para os seres vivos

(Schaffer, 1977). Neste sentido, podemos afirmar que a invenção da música (ou da

linguagem em geral) como organização humana dos sons, determinam a forma como

se dará a perceção do que é ruído. Por outras palavras, se o ruído é um fenómeno

cultural, este emerge em contraste com outros sons que não categorizamos como

barulhentos, ou que organizamos em estruturas com um certo significado social e

cultural (Hegarty, 2007: 5).

É justamente com a contemplação do silêncio que é dado um passo importante

no pensamento sobre o ruído, a partir de uma obra do compositor contemporâneo

John Cage. Inspirada numa visita a uma câmara anecoica11, Cage continuava a ouvir

algo: foi informado que o som que estava a ouvir era da sua circulação sanguínea. A

partir desta experiência nasceu a peça silenciosa “4’33”, uma composição na qual os

músicos da orquestra não tocam, sendo a atenção do público direcionada para os

outros sons ouvidos na sala de concerto. A partir daqui, o mundo pode ser revelado

como infinitamente musical12.

A urbanização, a partir do século XVII, foi um fator importante para o

aumento do ruído humano, devido à confluência entre pessoas, máquinas e riqueza.

Combinado com a concentração das classes mais baixas nos centros das cidades,

surge nesta época o fenómeno da música e performance de rua, o que impulsiona as

primeiras leis de controlo sonoro. A regulamentação do ruído exercida nesse período

era maioritariamente direcionada a estes artistas de rua e a outras atividades artísticas

realizadas em espaços exteriores ou públicos. Murray Schaffer descreve que nesta

11 Uma câmara anecoica (do inglês an-echoic, que significa “sem eco”) é uma sala

insonorizada ou seja, possui um isolamento de fontes de ruído externas a esse espaço. 12 Tal como Hegarty afirma, “a musicalidade tem a ver com a nossa atenção para com os sons

do mundo. Isto leva-nos à conceção platónica do universo: a forma total das coisas existe - nós só

criamos versões delas.“ (Hegarty, 2007: 6).

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época, a perceção dominante era a de que a “rua se tornou na casa da não-música,

onde se misturou com outros sons de esgoto”13. Jacques Attali (1977) acrescenta, no

seu livro Noise, que é neste período que as classes mais baixas se tornam uma ameaça

para a elite, ao ocuparem certos espaços da cidade, sendo a sua cultura considerada

cada vez mais “barulhenta” pelas classes mais altas. Notamos que a ideia inerente que

temos em relação ao ruído ou barulho enquanto tipos de sons não desejados está,

desde os seus primórdios, ligada a uma aversão que vai muito além do incómodo

auditivo que certos sons provocam (Hegarty, 2007: 5).

Nesta perspetiva, podemos afirmar que a antiga legislação de redução de ruído

era essencialmente seletiva e qualitativa, contrastando com aquelas criadas na era

moderna, que começaram a fixar os limites quantitativos em decibéis. Nesta época,

enquanto a legislação era direcionada para a voz humana (ou para as “vozes” das

classes mais baixas), não existia nenhum tipo de condenação ao som mais alto então

produzido: o som dos sinos das igrejas (Schaffer: 1977: 67).

Para Schaffer não se trata apenas de uma questão de classes e hierarquias, mas

também da divisão entre o espaço público e o privado. O autor argumenta que foi na

transição feita pelas elites para a “vida no interior” (nomeadamente com a criação das

janelas com vidro no final do século XVII) que a música erudita se tornou privada,

sendo feita na casa das pessoas. Este fator foi a base para o aparecimento das salas de

concerto, que as pessoas frequentavam para escutar música, sem que lhes fosse

autorizado provocar qualquer tipo de barulho, com exceção dos momentos

convencionais, como por exemplo as palmas no final de uma performance14.

Esta separação do espaço interior e exterior dividiu o mundo entre os sons

desejados, organizados, e os sons não desejados, desenvolvendo, nas palavras de

Schaffer, tanto a arte superior como a poluição sonora, pela qual os ruídos eram os

“sons deixados de fora” (idem: 35).

No início do século XX, a compreensão do ruído transformou-se novamente,

segundo modos de pensar marcados pelo momento histórico, como também por

fatores culturais e geográficos. O ruído começou a ter conotação de poder e eficiência,

com o aparecimento das primeiras máquinas de transporte, surgindo movimentos

13 Murray Schaffer, Music, Non-Music and the Soundscape, p36. 14 Idem, p35.

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políticos, culturais e artísticos que enalteciam o desenvolvimento industrial enquanto

sinónimo de progresso económico e social:

“A indústria precisa de crescer; sendo assim os seus sons precisam de crescer

também. Este é o tema central dos últimos duzentos anos. De facto, o ruído é tão importante

como um criador de atenção que se a maquinaria silenciada tivesse sido desenvolvida o

sucesso da industrialização não teria sido grande”(Schaffer, 1977: 77-78).

Ao nível artístico, uma das primeiras abordagens destes novos sons mecânicos

provêm da poesia onomatopeica de Tomaso Marinetti, que buscava traduzir o ruído

da tecnologia e da guerra em linguagem, enaltecendo a estética da indústria e acima

de tudo a “beleza pela velocidade” (Marinetti, 1909: 21). Mas foi a partir do

Futurismo, um movimento cultural liderado por Luigi Russolo, que se iniciou a

representação do mundo industrial tal como ele era. Russolo, com o seu manifesto

“Arte do Ruído” de 1913, demonstrou que “o mundo industrial era o meio ambiente

da humanidade, e que, assim como necessitamos invariavelmente de interagir com o

que nos rodeia, deveríamos tratar o som que dele emana da mesma maneira”

(Russolo, 1986). Este movimento acabou por procurar essa amplitude da

musicalidade do mundo a partir da invenção de máquinas que estalavam, assobiavam

ou disparavam, e isso seria mobilizado em composições musicais. Ao invés de

representar esta época industrial a partir da tradição musical do ocidente, este

movimento trouxe o novo mundo sonoro diretamente para a arte através da “estética

da indústria”. Neste sentido, os Futuristas viram na tecnologia e na agressão mecânica

um contraponto ao conservadorismo artístico e social da época: o ruído seria então

uma forma de demonstrar que a música ocidental materializava a sociedade a partir

dos atributos da ordem e do poder central (Attali, 1977).

Na revolução pós-industrial surgem então os mecanismos que revolucionaram

o mundo da comunicação: o telefone, o fonógrafo e o rádio. Com o poder de

transporte de um sinal sonoro para qualquer espaço do mundo, o ser humano já não

estava dependente da sua capacidade vocal para ser ouvido à distância. Ainda nesta

época, surge o ruído de fundo nas grandes cidades: máquinas emitem

ininterruptamente frequências baixas, contrastando com o som de duração limitada

dos elementos da natureza, que se situam nas frequências médias e agudas. Surge uma

nova “parede sonora” (Schaffer, 1977: 93), denominada de drone ou bordão, ou seja,

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um som contínuo numa tonalidade específica, dependendo da frequência elétrica do

lugar, que se torna um subtil condicionador dos gestos percetivos dos indivíduos no

meio urbano. Estes sons, que nesta altura podiam ser ouvidos nos sistemas públicos

de iluminação, semáforos ou geradores elétricos, introduziram-se progressivamente

no espaço do lar, com o aparecimento dos eletrodomésticos e utensílios variados que

o indivíduo começou a utilizar em suas práticas caseiras.

O crescimento das grandes cidades começou progressivamente a influenciar a

perceção auditiva do indivíduo, como também levou a que as manifestações entre os

seus habitantes se adaptassem às constantes configurações do espaço urbano. Seja

estar no metro a falar ao telemóvel, numa conversa na rua ou em casa ouvindo

música, as nossas expressões encontram o espaço do “outro” que forçosamente

coabita na nossa esfera social.

A partir das noções de respeito e cidadania, compartilhadas por grupos e que

emergem nas dinâmicas existentes no meio urbano, as nossas expressões passaram a

ser condicionadas pelos “volumes éticos” padronizados pela sociedade. Nesta

perspetiva, o ruído pode ser observado como um som que ocorre onde não deveria,

pelo facto de não ser admitido como pertencente ao espaço comum entre indivíduos,

sendo este o seu posicionamento nas leis de controlo sonoro ou na própria definição

de saúde ambiental (Labelle, 2010:47).

Mas antes de aprofundar a reflexão sobre a influência do som enquanto fator

condicionante da nossa mobilidade social, é importante destacar a importância da

relação entre o sujeito com a sua propriedade privada, nomeadamente o lar, por ser o

principal motor de equilíbrio entre o espaço íntimo e as dinâmicas exteriores a esse

lugar (físico e imaginário).

Na sociedade ocidental, a evolução do espaço doméstico está relacionada com

a conceção burguesa de privacidade, devido principalmente à crescente retirada da

classe média das experiências do quotidiano nas cidades. Charles Rice (2007)

argumenta que, no século XIX, “para a burguesia, a habitação separou-se do trabalho,

e nesta divisão as condições para o surgimento do espaço interior doméstico foram

possíveis” (Rice, 2007: 12). A criação do lar veio então equilibrar-se com a crescente

intensificação das dinâmicas do meio urbano, transformando o espaço doméstico num

“estado psíquico” (Bachelard, 1958) que promovia o desejo de prazer, sossego e

intimidade. Em contraste com o crescimento das metrópoles e da intensidade do

trabalho moderno, o lar tornou-se um refúgio requintado, através da coleção de

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objetos, mobílias, design de interiores e uma ordenação do espaço que renova o

sentimento de serenidade (Labelle, 2010).

Podemos observar a esfera doméstica como um espaço central para os

movimentos e experiências do dia a dia. Para muitas pessoas trata-se de um espaço

físico singular e protegido, quase inacessível a tudo o resto que o rodeia, e é, tal como

afirma La Belle “a base de onde um indivíduo avança para o mundo e para onde

regularmente retorna” (idem: 49). O espaço doméstico pode ser visto como um lugar

que equilibra as dinâmicas de exposição do sujeito com o seu espaço social, ao

proporcionar bem-estar e distanciando o indivíduo das “exigências” do mundo

exterior. O lar apresenta-se como um núcleo estável e como um espaço de partilha de

valores, ou seja, é o lugar onde conflui o que é comum entre pessoas em contraste

com a intensa atividade da vida urbana e das experiências fragmentadas da cidade

(idem: 49).

É possível argumentar que o espaço doméstico expressa a interioridade de um

sujeito ao tornar-se, materialmente, um reflexo íntimo da vida e dos rituais privados

de quem nele habita. Nesta perspetiva, pode ser visto como um espaço de procura de

um equilíbrio emocional, onde as relações se normalizam à volta da partilha de

objetos, valores, rituais e performances. Sendo assim, o lar é um lugar sensível ao

refletir as necessidades físicas, psicológicas e emocionais do sujeito. Tal como

Labelle sugere, “o voltar para casa é a procura de refúgio do fluxo descontrolado de

ruídos e do discurso do exterior”(idem: 50). Seguindo esta perspetiva, podemos

admitir que a manutenção de uma nitidez auditiva potencia a estabilização das

dinâmicas no espaço doméstico, onde a “ordem equivale a sossego” (Labelle, 2010).

Neste sentido, as noções de mobilidade e transitoriedade urbana, que observamos nas

sociedades modernas, tornam-se sinais de transgressão face à estabilidade de um

espaço doméstico ordenado.

Karin Bijsterveld (2008) refere que foi a partir da instalação dos sistemas de

canalização e aquecimento nas habitações coletivas no início do século XX, que os

espaços domésticos foram de repente invadidos por novas sonoridades que trouxeram

um contacto inesperado entre vizinhos. De repente, um indivíduo a tomar banho

criava uma nova intromissão no espaço do outro, produzindo novas formas de

conectividade ao nível doméstico. Mas foi com a introdução dos aparelhos

domésticos como o gramofone, o rádio e finalmente a televisão, que se reconfigurou a

vida doméstica pelo aparecimento de ruídos que interferiam no espaço de cada sujeito

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(Bijsterveld, 2008: 166). Consequentemente, as leis de diminuição de ruído doméstico

surgiram um pouco por todo o mundo, dependendo das características de cada

sociedade15. Em Roterdão no início de 1913, foi debatida uma legislação de controlo

referente ao barulho provocado pelos gramofones e seu uso doméstico. A lei foi

amplamente contestada por se revelar uma medida elitista, devido ao facto de o uso

deste aparelho ser feito maioritariamente pela classe laboral da época. Devido à sua

popularidade e fácil aquisição, o gramofone deu aos indivíduos das classes mais

baixas a oportunidade de amplificar a sua cultura musical (idem).

Este exemplo, entre outros existentes em diferentes sociedades16, mostra que a

situação de distúrbio de vizinhança foi inicialmente definida não apenas numa

perspetiva quantitativa, isto é, relativa ao volume ou intensidade do ruído produzido,

mas também qualitativa, relativa à natureza ou ao tipo de som considerado como

ruído. Nesta época, ao conjugar as questões de espaço doméstico com o som, os

antigos modelos de leis de diminuição de ruído encontraram o desafio de como

quantificar e qualificar o som, ou seja, como julgar e definir que tipos de sons são

incómodos e porquê. Sendo o som um fator importante de contacto social, a

experiência urbana tornou-se progressivamente localizada dentro dos “volumes éticos

da cidadania” (Labelle, 2010: 46). Seguindo esta perspetiva, gostava de lançar a

seguinte questão: como regular os “movimentos” do ruído urbano sem enfraquecer a

condição essencial que a cidade oferece enquanto experiência social ou comunitária?

Apesar de as leis de controlo sonoro atualmente não serem criadas para estabelecer o

silêncio absoluto, estas acabam mesmo assim por localizar o som numa escala em que

se privilegiam os volumes baixos. Neste sentido, esta posição ao nível legal, de

promover o silêncio enquanto ponto central da geografia auditiva do sujeito, acaba

por realizar um “aprisionamento” doméstico de certas dinâmicas sociais, a partir da

noção de respeito e cidadania desenvolvidas numa dada sociedade17.

Seguindo esta perspetiva, torna-se necessário antes entender de que forma são

definidos os critérios de avaliação de ruído ao nível legal, tendo em conta que o

controlo sonoro numa dada sociedade depende inicialmente de uma apreciação social

e cultural. Tal como Schaffer (1977) argumenta, os estatutos legais sobre o ruído “não

são criados arbitrariamente por indivíduos; eles são discutidos perante a sociedade.

15 Ver “Lei do Ruído”. 16 Idem. 17 Ver “Subúrbios acústicos”.

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Assim revelam as atitudes culturais distintas em relação à fobia sonora.“ (Schaffer,

1977: 197).

No próximo ponto serão descritas as diferentes abordagens sobre a lei do ruído

ao nível social e cultural existente em distintos lugares do mundo, e será feita uma

breve observação do Regulamento Geral do Ruído em Portugal, através da sua

aplicação ao nível municipal na cidade de Lisboa.

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1.3. Lei do Ruído

Por todo o mundo, a classificação legal do ruído é heterogénea. Dependendo

dos países, as suas definições localizam-se entre dois tipos de legislação: qualitativa e

quantitativa. Enquanto o primeiro lida com os sons socialmente incomodativos, as

legislações quantitativas lidam com os sons “altos”, ou seja, com os volumes sonoros

que podem ser nocivos para a saúde pública. Apesar dos critérios das leis

quantitativas poderem ser definidos através de valores em decibéis, os modelos

qualitativos historicamente tiveram o desafio de conciliar os diferentes tipos de

perceção auditiva existentes numa dada sociedade, devido à influência de fatores

socioculturais sobre os indivíduos ou grupos sociais distintos. Isto acontece porque ao

definirmos um ruído como “som indesejado” tornamos a análise de um dado som

subjetiva, tendo em conta que, no caso das legislações mais tradicionais em certas

sociedades, a classificação de ruído e sua regulamentação varia de acordo com a

opinião pública.

Murray Schaffer descreve, através da sua pesquisa sobre os diferentes tipos de

legislação existentes no mundo, a existência de diferentes avaliações de ruído que vão

depender de uma apreciação cultural desse país ou comunidade. Como exemplo,

Schaffer aponta que na cidade de Génova (Itália), no seu Regolamento di Polizia

Comunale (1969), são identificados alguns artigos que definem proibições pouco

comuns. No artigo 65º consta que das 21h às 7h as persianas têm que ser abertas e

fechadas silenciosamente (Schaffer 1977:197). No caso do artigo 67º do mesmo

regulamento, “existem restrições nas mudanças de mobília em casa, entre as 23h e as

7h, tendo em conta que é comum o trabalho mais pesado ser feito à noite, para evitar

o calor diurno do verão” (idem: 198).18

18 Podemos ver aqui outros casos distintos um pouco por todo o mundo, descritos pelo mesmo

autor:

“In Hong Kong a principal source of noise complaints is the sound of ‘mah jong parties’. The slapping

together of mah-jong tiles is also characteristic of the Chinese districts of Vancouver and San

Francisco, where it is enjoyed by the tourists. (...) In Mombassa (Kenya), some of the most common

noises are tin-beaters, drum-beaters, blacksmiths and charcoal-stove makers; while in the port cuty of

Auckland (New Zealand), a major source of complaint is ‘backyard panelbeating and boat building’-

and there is a by-law designed to prevent it from taking place at night. In Rabat (Morocco) one of the

chif noises is family reunions, while in Izmir (Turkey) (...) in bus terminals and parking lots propor

behaviour is expected. Any case of noise which may disturb the public- for instance, shouting, fighting,

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Muitos países têm uma legislação nacional que pode ou não ser suplementada

por leis municipais, enquanto noutros a questão pode ser da inteira responsabilidade

dos municípios (Schaffer, 1977: 191). Apesar de as legislações de ruído serem

variadas pelo mundo, alguns temas são recorrentes: distúrbios públicos, música de rua

ou em casa, amplificadores de som, rádios, animais, motores de veículos ou indústria

ruidosa nas áreas residenciais.

No caso da legislação quantitativa, o ruído é definido a partir dos limites de

decibéis. Por exemplo, se um regulamento estipular para uma fonte de emissão o

valor máximo permitido de 50 decibéis, a fonte que produz 51db é ruidosa enquanto a

de 49db não o é. Neste sentido, a medição quantitativa veio dar o significado de ruído

como um “som alto” (Schaffer, 1977). Em grande parte, esta avaliação quantitativa

corresponde aos parâmetros que a Medicina definiu em relação à pressão sonora

suficiente para causar a perda auditiva19. Todavia, nem todos os ruídos incomodativos

são necessariamente elevados, ou elevados o suficiente para figurarem no medidor de

decibéis. Esta dificuldade em criar parâmetros qualitativos na lei está ligada ao facto

de os níveis máximos estabelecidos conseguirem lidar com os sons fisicamente

destrutivos, mas não serem capazes de aliviar o problema ao nível do incómodo

psicológico, enquanto “som indesejado”. Dificilmente quantificável, este aspeto

demonstra que “a lei deveria também ter disposições ao nível qualitativo para

contrabalançar o avanço da mentalidade tecnocrática nesta matéria” (idem:197).

etc. - is subject to a penalty. Any claim that the act was a joke will not change the consequences, which

is a 50 Turkish Lira fine”. ( Schaffer, 1977: 198-199).

19 Ver “ Vibração”.

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1.4. Observações sobre o Regulamento Geral do Ruído

“A prevenção do ruído e o controlo da poluição sonora visando a salvaguarda da

saúde humana e o bem-estar das populações constitui tarefa fundamental do Estado, nos

termos da Constituição da República Portuguesa e da Lei de Bases do Ambiente. Desde 1987

que esta matéria se encontra regulada no ordenamento jurídico português através da Lei n.o

11/87, de 11 de abril (Lei de Bases do Ambiente), e do Decreto-Lei n.o 251/87, de 24 de

junho, que aprovou o primeiro Regulamento Geral sobre o Ruído. O Decreto-Lei n.o

292/2000, de 14 de novembro, que aprovou o Regime Legal sobre Poluição Sonora, revogou

o referido decreto-lei de 1987 e reforçou a aplicação do princípio da prevenção em matéria de

ruído.” (in Decreto-Lei n.o 9/2007, de 17 de janeiro).

No Regulamento Geral do Ruído, aprovado a 17 de janeiro de 2007 (Decreto-

lei Nº9/2007), ruído de vizinhança é definido como “o ruído associado ao uso

habitacional e às atividades que lhe são inerentes, produzido diretamente por alguém

ou por intermédio de outrem, por coisa à sua guarda ou animal colocado sob a sua

responsabilidade, que, pela sua duração, repetição ou intensidade, seja suscetível de

afetar a saúde pública ou a tranquilidade da vizinhança” (cfr. artigo 3.º, alínea r, do

Regulamento Geral do Ruído).

Como citado, este tipo de ruído pode ser produzido diretamente por alguém,

por algum equipamento colocado à sua guarda ou por um animal sob sua

responsabilidade. Como exemplo, temos os casos de ruídos produzidos por

eletrodomésticos, animais domésticos, televisão ou música alta. Neste sentido, o ruído

de vizinhança está associado às vivências dos habitantes em meios urbanos, espaços

em que os emissores e os recetores têm alguma proximidade entre si.

A fiscalização do ruído de vizinhança é da competência das autoridades

policiais, sendo que os serviços municipais têm deveres ao nível de fiscalização e

encaminhamento de reclamações. Embora este tipo de ruído não esteja enquadrado

por qualquer regime de licenciamento, como é o caso de obras ou eventos, o

Regulamento Geral do Ruído estabelece que, entre as 23 e as 7 horas, as autoridades

policiais “podem ordenar a adoção de medidas para a cessação da incomodidade

produzida pelo ruído de vizinhança, de forma imediata ou em prazo a definir” (cfr.

artigo 24.º, n.º 2, do Regulamento Geral do Ruído).

Para além destes artigos referentes ao ruído de vizinhança, existem outras leis

que influenciam a eficácia da regulação do ruído doméstico, ou seja, que não

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dependem somente da aplicação legal do artigo 24º, mas que estão sujeitos tanto à

categorização dos espaços urbanos em termos acústicos, como dos critérios de

isolamento acústico dos edifícios20 que são licenciados pelos órgãos reguladores.

Houve algumas alterações da lei, após a revogação no ano de 2007, tal como a

introdução de mapas de ruído, que são elaborados pelos serviços municipais e que

tem o objetivo de retratar as diversas zonas de atividade ruidosa das cidades. Isso é

feito segundo uma classificação das áreas urbanas, a qual distingue os espaços da

cidade entre zonas sensíveis e zonas mistas. Tal como descrito no artigo 3º, alínea v; x

, do Regulamento Geral do Ruído:

“v) «Zona mista» a área definida em plano municipal de ordenamento do território, cuja

ocupação seja afeta a outros usos, existentes ou previstos, para além dos referidos na

definição de zona sensível;

x) «Zona sensível» a área definida em plano municipal de ordenamento do território como

vocacionada para uso habitacional, ou para escolas, hospitais ou similares, ou espaços de

lazer, existentes ou previstos, podendo conter pequenas unidades de comércio e de serviços

destinadas a servir a população local, tais como cafés e outros estabelecimentos de

restauração, papelarias e outros estabelecimentos de comércio tradicional, sem funcionamento

no período noturno;”

No caso da cidade de Lisboa, a Direção Municipal de Ambiente Urbano da

Câmara Municipal de Lisboa (CML) é a principal entidade fiscalizadora de ruído. Em

conversa com o Engenheiro António Cruz, responsável técnico do Laboratório de

Acústica da CML, foram apontados alguns dos trabalhos executados por esta divisão.

Esta entrevista teve como objetivo esclarecer as diversas responsabilidades desta

entidade municipal, na fiscalização e regulação do ambiente sonoro, como também

investigar que tipo de planos de redução de ruído estão sendo implementados pela

Câmara Municipal de Lisboa.

Através da carta de ruído, que está em permanente atualização, a CML define

os planos de redução de ruído que dependem da classificação das áreas analisadas. Na

sua maioria, estes planos são implementados com o objetivo de combater o ruído

rodoviário, uma das maiores fontes de poluição sonora. António Cruz referiu-se a

certas soluções propostas pela CML, tal como a construção de barreiras acústicas nas

vias de circulação de automóveis junto a áreas habitacionais, ou a criação de

pavimentos drenantes, por terem maior absorção do atrito entre o pneu e a estrada.

20 Estes requisitos encontram-se estipulados no Regulamento Acústico dos Edifícios.

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Mas as limitações de ruído dependem da definição da área em causa, ou seja, se tal

área está classificada como zona mista ou zona sensível. De acordo com António

Cruz:

“Em relação a Lisboa, optou-se por classificar todas as áreas como zonas mistas

porque os critérios são muito rigorosos, o que depois obriga a que, quando os níveis sonoros

ultrapassam estes valores, se faça a implementação de medidas minimizadoras de ruído. Mas

como os níveis são muito apertados e as limitações são muito grandes, mais vale classificar

como uma zona muito mais ampla em termos de classificação do que estar a classificar em

zonas sensíveis, em que, por exemplo, no período noturno o limite é de 45 decibéis (db) e,

durante o dia, 55db. São níveis muito baixos para uma cidade, e estar a fazer com que se

cumpra estes níveis sonoros é muito complicado (...). É por isso que no início ainda tentámos

classificar alguns espaços da cidade como zonas sensíveis, mas depois optou-se por

classificar tudo como misto, em que os níveis sonoros são 65db no período diurno e 55db no

período noturno.” 21

Exemplificando algumas zonas sensíveis, como é o caso das áreas adjacentes a

hospitais, António Cruz referiu que é impensável essa classificação em Lisboa porque

“as medidas mitigadoras são incomportáveis para o município”. Como medidas

compensatórias foram introduzidas barreiras acústicas junto do tráfego rodoviário, por

serem de relativa facilidade ao nível de implementação. No caso dos edifícios, são

implementadas medidas como a instalação de fachadas de vidros duplos22.

Com cerca de quinze técnicos a trabalhar nesta divisão, a CML também faz

medições de isolamento acústico, em todos os edifícios licenciados, de acordo com o

Regulamento Acústico dos Edifícios. Porém, a CML de momento só emite licenças

de construção, baseadas no projeto acústico do responsável da obra, não fazendo mais

os testes obrigatórios após a construção do edifício. Tal como António Cruz refere:

“Normalmente quando se acaba a construção de um edifício há uma empresa que faz

esses ensaios. Já existem muitas firmas acreditadas, e assim a CML separou-se um bocado

dessa situação (...). Tem que haver um projeto acústico acompanhado de medições a dizer que

21 Entrevista concedida em junho de 2012. 22 Esta medida, nas palavras de António Cruz, torna-se difícil de ser implementada devido aos

elevados custos e também porque incomoda “as pessoas que querem ter a janela aberta e não estar

enclausuradas numa gaiola”.

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estão ser cumpridos os requisitos, portanto a Câmara autoriza e emite essa licença baseando-

se naquilo que o técnico (o responsável pela obra) indicou.”

Questionei a razão pela qual a Câmara Municipal não faz mais medições,

apesar de emitir as licenças. A resposta foi de que, muitas vezes, os projetos eram

desaprovados por falta de cumprimento dos requisitos estipulados pelo Regulamento

Acústico dos Edifícios. Como exemplo, o engenheiro falou-me de alguns casos que

presenciou na Parque Expo (situado na zona oriental de Lisboa):

“Fizemos algumas medições na zona da Expo. Nós íamos fazer medições de

isolamento, e quase todas as que fazíamos não cumpriam os requisitos. Depois as pessoas

questionavam o facto de a Câmara ter licenciado para depois chumbar o projeto. Agora a

alteração da legislação imputa tudo para o técnico, ao assinar um termo de responsabilidade a

dizer que o projeto cumpre os requisitos acústicos, e a Câmara só tem que aceitar. Não vamos

andar a medir o isolamento de tudo o que é edifício em Lisboa, senão não fazemos mais nada.

Numa situação pontual, quando havia uma reclamação depois do edifício já estar licenciado e

habitado, nós íamos fazer a medição e quase sempre estava mal. (...) Ao fim e ao cabo, ao

fazer o relatório estávamos a pôr em cheque a Câmara, ao dizer que aquilo estava mal, sendo

que foi a Câmara que previamente licenciou.”

Com a recente alteração da lei, a responsabilidade recai sobre o técnico

contratado pela empresa construtora, que no final das obras faz os ensaios para

certificar se o isolamento acústico está a cumprir os requisitos. Neste sentido, António

Cruz refere-se à negligência por parte dos construtores, que muitas vezes não

obedecem ao projeto de isolamento acústico previsto e ao rigor exigido na

implementação dos requisitos definidos na lei:

“Por exemplo, uma empresa constrói um prédio, contrata um técnico que desenha um

projeto acústico, mas o dono da obra depois não contacta o técnico para acompanhar a obra

(...). Se o técnico que fez o projeto não estiver a acompanhar minimamente a execução, as

pessoas que estão a construir põem aquilo de qualquer maneira (...). O que está feito no

projeto até pode estar bem feito, mas depois o que foi feito na obra, por vezes não tem nada a

ver com o que está no projeto. Não podemos estar a imputar as culpas só ao projetistas: na

maior parte das vezes a culpa é das empresas construtoras (...). Esse acompanhamento não

acontece normalmente por questões financeiras.”

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António Cruz citou ainda outro exemplo, do conflito entre um empreiteiro e

um morador na zona da Parque Expo. Após uma reclamação junto à CML, o projeto

acústico deste edifício foi desaprovado pelos serviços municipais. A solução, proposta

pelo dono da obra, passava por transferir o sujeito para outro apartamento. Se a

população em geral tomasse conhecimento da lei, haveria edifícios suficientes e em

condições para efetuar esta compensação, tal a relatada pelo António Cruz na zona da

Parque Expo?

A entrevista permitiu entrever a existência de certo desalinhamento entre a

construção civil e a própria CML, ao abrigo de uma legislação que dissemina as

responsabilidades por todos os seus agentes, complexificando a análise de certos

casos aos olhos da lei. O artigo 3º do Regulamento Geral do Ruído, referente ao ruído

de vizinhança, é a “ponta do iceberg” de uma complexa legislação sobre o ruído, que

se reflete desde a falta de cumprimento dos parâmetros de classificação das áreas

urbanas por parte da CML, até à negligência da construção civil em relação aos

critérios de isolamento acústico descritos na lei. O combate à poluição sonora por

parte da Câmara Municipal de Lisboa, através da implementação de medidas

mitigadoras de ruído, evidenciou o conformismo existente na lei perante este

fenómeno. A criação de isolamentos mais eficazes contra o ruído não elimina um

problema ambiental cada vez mais presente nas sociedades modernas: a evolução

industrial e tecnológica da sociedade, traz consigo o ruído, como som do progresso, o

que provoca impactos negativos diretos na qualidade de vida da população.

De acordo com Prochnik (2010), se analisarmos historicamente as lutas contra

outros tipos de poluição, como é o caso da atmosférica, vemos que a regulamentação

das emissões é constantemente atualizada, de acordo com os estudos científicos sobre

os seus riscos para a saúde pública. No caso do ambiente sonoro não acontece o

mesmo. Uma causa provável para esta negligência pode passar pelo facto de o ruído

ser um fenómeno menos visível, comparado com o fumo, por exemplo, ou com a

contaminação das águas por substâncias poluentes, tornando-se um problema menos

discutido e rigoroso em sua legislação (Prochnik, 2010: 203-204). Mas em geral, os

riscos de saúde provenientes, por exemplo, do ruído do tráfego rodoviário, são 40%

maiores que os da poluição atmosférica, de acordo com um relatório de 2008 da

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Organização Mundial de Saúde23. Ao nível de saúde mental, o ruído é uma das

maiores fontes de doenças psíquicas, causador de distúrbios como o stress, a

ansiedade e até mesmo a violência entre indivíduos.

Sendo assim, estas problemáticas que estão a surgir no meio urbano acabam

por refletir a leitura pouco adequada, por parte das entidades reguladoras, dos

diferentes ambientes acústicos e sociais existentes nas grandes cidades. Tal como

Schaffer propõe, parece ser no recurso de parâmetros de análise qualitativa que

poderemos acrescentar uma melhor observação sobre estes fenómenos existentes na

nossa sociedade.

23 Em 2009 a OMS lançou inúmeros relatórios que relacionam o som do tráfego rodoviário

com complicações ao nível do sistema cardiovascular, especialmente nas populações que habitam perto

de grandes vias de circulação de automóveis.

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PARTE 2

Comunidades Acústicas

2.1. Entre Milho Verde e Belo Horizonte

Na manhã seguinte de um combate perdido. Foi assim que me senti após dois

dias de intensos ataques sonoros na nossa casa. Pessoas vindas um pouco de toda

parte, tanto de Minas Gerais como de outros estados do Brasil, chegaram ao vilarejo

de Milho Verde para festejar o reveillon, e com eles toda a sua maquinaria, desde

carros com sistemas de som semiprofissionais a rádios portáteis de alta potência.

Milho Verde é um pequeno distrito do município do Serro, situado a mil e

duzentos metros de altitude. Conhecida como um dos primeiros lugares onde se

descobriu diamantes naquela região, esta vila foi criada no início do século XVIII,

originária da lavra de minerais preciosos. Afastada da velocidade e da tecnologia do

mundo moderno, Milho Verde tornou-se um dos cartões-postais de Minas Gerais,

sendo muito visitada por turistas e atraindo um grande número de novos moradores,

vindos do recente êxodo urbano. Situada a poucos quilómetros da cidade de

Diamantina, Milho Verde integra roteiros turísticos de cunho histórico, cultural e

ecológico, tais como o da Estrada Real ou o das inúmeras cachoeiras envolventes.

De ruas estreitas e casas jardinadas, avista-se em quase todas as esquinas

placas que atentam os forasteiros, desde “por favor fazer silêncio” até “respeite os

costumes locais”, demonstrando desta forma a importância que este vilarejo dá às

condutas serenas que tanto a caracteriza. Milho Verde possui uma associação

comunitária local e também dá abrigo a algumas organizações não-governamentais

que têm hoje em dia um papel importante no distrito devido às iniciativas

socioculturais e ambientais, produção de material de construção, creche, recolha de

lixo e outras atividades, contribuindo para intermediar a procura turística com a

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manutenção da qualidade de vida da população.

A minha ida para Milho Verde foi um pretexto para fugir de Belo Horizonte,

uma cidade cada vez mais populosa e poluída tanto a nível atmosférico quanto

sonoro. Sendo a minha pesquisa sobre o impacto social do ruído, achei que fazer uma

pausa num local como Milho Verde ajudaria a aumentar a minha sensibilidade em

relação ao tema. Fiquei em casa do Mateus, amigo e percussionista de Belo

Horizonte, que se instalou neste vilarejo há cerca de 3 meses com a sua esposa que se

encontra grávida. Luiza é instrutora de yoga e a sua decisão de permanecer em Milho

Verde prendeu-se com o facto de a aldeia ser, para ela, um lugar ideal para o seu filho

crescer e por a sua casa se situar numa reserva natural de nome Lageado.

A passagem para um novo ano exige um ritual, ou pelo menos a maioria das

pessoas acredita nisso. Na casa do Mateus, o ritual escolhido pelos amigos que foram

lá passar o ano novo foi a criação de um distanciamento para com a paisagem do

quotidiano na cidade, da agitação diária de que dificilmente se consegue escapar em

Belo Horizonte. Sendo assim, Milho Verde tornou-se o nosso reino de sossego e

tranquilidade, o sítio ideal para essa renovação.

Para nossa surpresa, deparámo-nos com um cenário que potenciava ainda mais

esse desgaste proveniente da cidade: carros estacionados, outros que passavam

lentamente na rua e que se tornaram emissores, durante 15 horas por dia, de uma

massa sonora densa e difusa vinda das caixas de som dos carros, roncos de motor,

buzinas e a exaltação generalizada de gritos e folia.

O desconforto era geral na casa. Mateus, enquanto músico e protetor da sua

família, demonstrou-se preparado para confrontar qualquer um que interferisse com o

seu espaço, alertando os “Djs do volante” sobre a lei do silêncio24, que impede este

tipo de práticas dos carros com sistemas de som alterados e também contactando a

polícia para fazer o boletim de ocorrência a todos os infratores. O resultado

conseguido foi: tratados de paz violados 5 minutos depois e falta de atuação policial

devido às próprias ameaças dos festivaleiros de rua para com as autoridades, tornando

a situação insustentável para todos os que não estavam naquele ritmo de festa.

Milho Verde torna-se nesta altura do ano um não-lugar. Não-lugar porque os

seus habitantes não estão presentes e com eles desvanecem as dinâmicas locais.

Tirando o Mateus e mais uma dúzia de famílias, os habitantes saem para a “roça” e

24 Lei que impera desde o ano passado em Milho Verde.

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outras cidades vizinhas, normalmente nas alturas mais festivas do ano. Milho Verde

deixa de ser uma aldeia sossegada e ambientalmente harmoniosa ao ser engolida, tal

como Mateus refere, por um “tsunami sonoro que leva tudo o que está à sua frente“.

Luiz, um dos convidados e também músico mineiro, propôs uma fuga para um

terreno que Mateus possui a 3 km de Milho Verde. O seu desejo devia-se ao

desconcerto que o som proveniente da rua estava a criar ao nível doméstico, que se

revelava pela apatia, falta de energia e de expressão física dos residentes da casa,

desconcentração nas tarefas domésticas, irritabilidade e dificuldade de atingir o sono

profundo.

Na tarde do dia 31 fomos todos para o terreno. Ao sairmos de casa deparámo-

nos com um “dj de rua” e seus entusiastas. Mateus, dentro do seu carro, advertiu a um

dos intervenientes de que tinha chamado a polícia para autuar os prevaricadores,

sendo a reação do rapaz de consentimento, um tanto indiferente às palavras do meu

amigo. Do meu lado do carro estava uma das fontes sonoras: três monitores de 300

watts de som alojados na transportadora de uma pick up, com a sua traseira

direcionada para a estrada e para todos os transeuntes que por ali passavam. Este

cenário não seria surreal se não estivesse um dos participantes sentado justamente em

frente aos monitores, não demonstrando qualquer tipo de ferimento com as

“flechadas” provenientes das caixas de som. Bem pelo contrário, ao cruzarmos o

olhar, vi nele uma magnanimidade amplificada pela mensagem gritante do carro, um

olhar distante e vazio, mas que continha 300 watts e que subjugava o espaço físico

daquele perímetro. No tempo que ali permanecemos tive a sensação de estar a ser

dominado, tanto no meu espaço físico como emocional, num movimento simultâneo

de repulsa e de magnetismo que a música criava e a que dificilmente conseguíamos

fugir.

Em direção ao terreno do Mateus, as ondas desse tsunami sonoro iam

embatendo no nosso horizonte, desde as frequências baixas de uma música até às

buzinas dos carros que alertavam as pessoas da sua passagem lenta e robusta na arena

social.

Chegámos ao fim da tarde à propriedade do Mateus. Rapidamente, os meus

sentidos descomprimiram, sentindo o horizonte acústico daquele espaço. Sentado num

rochedo, ainda sentia pequenas réplicas desse terramoto na minha cabeça. Surgiu

então a ideia de passarmos ali a ceia do reveillon, e sem hesitar toda a gente embarcou

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novamente para o vilarejo, de forma a preparar toda a logística que a nova decisão

implicava.

Ao voltarmos para Milho Verde presenciámos um milagre: na entrada do

vilarejo as casas estavam sem energia, com velas acesas, pessoas deambulando no

escuro e somente iluminadas pelos faróis dos carros. Inacreditavelmente, o som que

duas horas antes estava a incomodar-nos tinha reduzido drasticamente, pelo facto de

que o excesso de população provocou uma sobrecarga energética no vilarejo. Para o

nosso espanto, a casa do Mateus e uma outra moradia foram as únicas que

continuavam a ter eletricidade. A casa que menos tinha exigido energia para

amplificar o regozijo do final de ano foi a que tinha merecido, pelas palavras do

Mateus, “a bênção de Deus”, ao termos respeitado o meio ambiente de Milho Verde.

Desesperado, Mateus dizia acreditar que a única forma de combater esta

situação seria através da ocorrência de uma tragédia, como a morte de um turista ou

habitante local, na medida em que isso criaria notícia. Na sua visão, “só assim é que o

governo vê os problemas”. Sua esposa mostrou-se desconfortável com estas palavras,

mas ao mesmo tempo temia o agravar da situação. Ela acabou por se demonstrar mais

disposta a voltar para Belo Horizonte ou a confiar na aplicação da lei, do que a

encarar o problema diretamente com os infratores. No final da conversa que tivemos

sobre a questão, ficou no ar a ideia de criar uma milícia juntamente com outros

membros da comunidade, de forma a fazer frente a qualquer transgressor das leis

locais.

Dois dias depois encontrámos uma outra “forasteira residente” neste vilarejo e

amiga do casal anfitrião. Dona Gaia instalou-se em Milho Verde há 12 anos, após ter

construído uma pousada que normalmente tem muita afluência, devido às qualidades

de acomodação que oferece. Ao conversarmos sobre os acontecimentos da passagem

de ano, ela também se mostrou profundamente incomodada e dedicada a evitar a

mesma situação no futuro. No dia anterior, já havia ocorrido uma reunião de

moradores para discutir de que maneira seria possível estancar um tipo de turismo que

nada tem a ver com Milho Verde e que não contribui economicamente, pelo facto de

que muitos destes “novos” turistas vêm previamente abastecidos de mantimentos e

assim não dependem do comércio local. Dona Gaia contou-nos que a razão para esta

excessiva afluência, sem precedentes na história do vilarejo, deveu-se ao facto de que

as cidades vizinhas não tiveram as festas que as caracterizam nesta altura do ano. O

soar dos sinos de Diamantina, evento inconfundível desta cidade, não aconteceu

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naquele ano devido à destituição do prefeito. Esta situação levou muitas pessoas a

festejarem o reveillon em Milho Verde, misturando o público que procura as

qualidades naturais deste sítio com os que procuram o frenesim oferecido pelas

cidades próximas. Dona Gaia referiu que, para não acontecer novamente este

descontrolo, havia sido criada, por membros da associação de moradores, uma

comissão de aluguer que iria decidir quem poderia alugar casas na cidade, de forma a

selecionar melhor os visitantes para que estes não “desafinassem” com as

características do lugar. Ao perguntar se isso era possível, pelo facto de haver

moradores que alugavam a casa em épocas festivas por questões financeiras, a

resposta de Dona Gaia foi de que os arrendatários não têm essa justificação, pois em

“Milho Verde as pessoas não têm necessidades, essa negligência chama-se ganância”.

No último dia, antes de regressarmos a Belo Horizonte, Mateus estranhou a

ausência de animais na sua casa: desde o chilrear dos passarinhos, que caracteriza os

fins de tarde no seu jardim, até às aranhas e outros insetos, a agitação do vilarejo tinha

espantado a fauna local.

Ao chegar a Belo Horizonte relembrei estes dias em Milho Verde, desde o

ruído incessante por parte dos donos das viaturas até à determinação dos residentes

em fazerem frente a quem não respeitasse as leis locais. Presenciei tanto a inércia da

polícia como também o desprezo da parte dos turistas para com esta comunidade.

Comecei a refletir: seria a milícia a solução para os problemas de Mateus e sua

família, ou o reforço da lei do silêncio por parte dos governos locais e estaduais?

Na minha casa, situada num bairro histórico de Belo Horizonte, oiço a partir

do quintal os sons da minha vizinhança, desde as aulas de trompete de um músico

iniciante, o choro de uma criança e a discussão de um casal até à passagem do

comboio no horizonte. Sinto-me reconciliado com os ruídos do meu espaço. Oiço os

meus vizinhos a comunicarem entre si e o nosso espaço a comunicar com todos. A

minha relação com estes ruídos de vizinhança definem o espaço em que eu estou

inserido, localizam-me. Entendi nesse momento que a minha disponibilidade

percetiva para com os sons exteriores ao meu espaço singular se tornou um fator

importante para fluir os meus laços comunitários, ao impulsionar uma comunicação

que, mesmo sendo indireta, compensa o diálogo quase inexistente entre as pessoas

que coabitam um mesmo lugar.

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2.1.2. Subúrbios acústicos

Relativamente a estes acontecimentos que vivi em Milho Verde, li depois uma

notícia no Estado de Minas sobre o Bairro de Lourdes, que se situa na região sul de

Belo Horizonte:

“Imagine você ser multado pela associação do bairro onde mora porque a festa de

aniversário que ocorria numa área externa do seu prédio ultrapassou o horário das 23h. Pois

saiba que em nome da preservação do silêncio e da conservação das características de alguns

bairros tradicionais de Belo Horizonte, moradores tentam emplacar normas mais rígidas,

como essa, para modificar a Lei de Uso e Ocupação do Solo e criar áreas de diretrizes

especiais (ADE25) – locais onde a concessão de alvarás e a implantação de atividades seguem

restrições e necessitam do crivo de órgãos de controle da Prefeitura de Belo Horizonte

(PBH).” 26

Este projeto de lei, apresentado pelo vereador Daniel Nepomuceno, poderá dar

legitimidade aos moradores de Lourdes para autuar pessoas que frequentem este

bairro como também a restaurantes com mesas nas calçadas ou mesmo aqueles que

promovam confraternizações nos prédios. A proposta determina ainda que os

estabelecimentos comerciais deverão ter projetos acústicos aprovados pela Prefeitura

de Belo Horizonte, filtragem de fontes de odores fortes e a obrigação de promover

campanhas educativas para que os clientes não façam ruídos muito altos ao chegar ou

deixar os bares e as casas noturnas. Uma das vozes contrárias vem do Instituto dos

Arquitetos do Brasil (IAB) ao considerar “temeroso criar ADE desnecessárias em

algumas áreas da capital, principalmente porque isso impediria a vocação progressista

de certas regiões e o desenvolvimento da própria cidade”.

Pessoalmente, num primeiro momento, achei este projeto de lei interessante,

por localizar no próprio bairro as decisões da comunidade através de critérios

25 As áreas de diretrizes especiais (ADEs), previstas na Lei de Uso e Ocupação do Solo

(7.166/1996) são regiões que têm regras diferenciadas na tentativa de preservá-las como referência

(seja ambiental, cultural ou patrimonial) para a população. Nesses espaços, as regras de urbanização –

como altura das edificações e taxa de ocupação dos terrenos – devem ser iguais ou mais restritivas que

os da zona em que se localizam. Empreendimentos nessas áreas devem passar pela aprovação do

Conselho Municipal de Meio Ambiente (Copam) e pelo Conselho Municipal de Política Urbana

(Compur).

26 Http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2013/06/01/interna_gerais,397692/associacao-de-

moradores-quer-emplacar-lei-autorizando-vizinhos-a-multar.shtml

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discutidos pelas associações de moradores, tal como aconteceu com a comunidade de

Milho Verde. Com esta nova possibilidade de ação comunitária, o bairro poderia ser

construído envolto do diálogo entre os seus moradores.

Porém, ao ser um bairro constituído maioritariamente por pessoas de classe

alta e média alta, ponderei que leis como esta podem, tal como argumenta Richard

Sennet, favorecer o aparecimento de comunidades purificadas. No livro Uses of

Disorder, Sennet refere que os indivíduos que vivem em ambientes controlados, tal

como identificou nos bairros suburbanos de classe média nos Estados Unidos, criam

“identidades purificadas” devido à tentativa de construção de uma imagem que seja

coerente, que unifique e que filtre todas as ameaças existentes na experiência social

(Sennet, 1970: 9). Para ele, a história do desenvolvimento das zonas suburbanas

demonstra como estes fatores, nomeadamente a preservação do silêncio como

catalisador do espaço físico, influenciaram os projetos urbanísticos e as dinâmicas

sociais destes espaços.

Nos anos cinquenta, particularmente nos Estados Unidos da América, houve

um crescente desenvolvimento habitacional nos subúrbios das grandes cidades, com a

construção de grandes espaços de lazer, centros comerciais e habitações espaçadas

entre si, ou seja, tudo o que potenciasse a criação de um ambiente de separação e

autonomia (Labelle, 2010). Este tipo de planeamento urbanístico permitiu a existência

de um distanciamento para com o meio laboral dos centros urbanos, oferecendo aos

seus habitantes a oportunidade de terem uma atmosfera sociável, mas ao mesmo

tempo eliminando a experiência social que as cidades proporcionam. Neste sentido, os

subúrbios podem ser vistos como uma tentativa reacionária de controlar e limitar as

dinâmicas do urbanismo (Labelle, 2010: 54-55). Naturalmente nas cidades, o

indivíduo está imerso em situações de negociação social, que derivam da partilha de

espaços comuns por pessoas de classes sociais, hábitos, crenças e mesmo origens ou

culturas diferentes. Este contato com a diferença e com a alteridade desafia os sujeitos

a deslocarem-se do seu lugar de conforto para lidar com outros modos de vida

diversos, o que é menos provável de ocorrer em locais onde se instalam grupos sociais

mais homogéneos e a convivência fica restrita a pessoas com hábitos semelhantes.

O subúrbio tenta gerir o inesperado. Com base na noção de “vida em

comunidade”, estes bairros começaram a surgir para dar às pessoas um espaço de

livre expressão dos seus valores comuns. Recorrendo a estratégias provenientes do

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design e da arquitetura, estes bairros foram criados com o objetivo de controlar e

estabilizar desta forma a experiência social de quem neles habita.

Dolores Hayden em “Building Suburbia” documenta como o planeamento nos

subúrbios na América do pós-guerra teve uma divisão ideológica implícita:

“Os subúrbios do pós guerra foram construídos a uma grande velocidade, mas foram

planeados para maximizar o consumo de bens produzidos em massa e minimizar a

responsabilidade dos planeadores em criar espaços e serviços públicos” (Hayden, 2004:128 in

Labelle, 2010: 59).

Nesta época, os projetos públicos de habitação nos Estados Unidos passaram a

distinguir entre o que era a preocupação em dar aos cidadãos habitações facilitadas

pelo Estado e o que eram os interesses privados ao nível do planeamento urbanístico,

fazendo emergir um debate sobre gestão comunitária, barreiras sociais e práticas

discriminatórias existentes na época. Com poder de investimento, os planeadores e

investidores privados ganharam força, deixando as comunidades mais desfavorecidas

dependentes do investimento estatal. Neste sentido, deu-se uma nova configuração

urbana, entre habitação pública e desenvolvimento privado (idem: 59). As noções de

comunidade mudaram em grande parte, ao serem privatizados espaços físicos e

imaginários destinados a determinados tipos de pessoas e classes sociais. Fazendo

isto, também se delimitaram as fronteiras da expressão “pública”, o que, a nível

acústico, pôde ser observado a partir do controlo do ruído de vizinhança.

Progressivamente, os subúrbios começaram a tornar-se espaços uniformes

tanto a nível arquitetónico como social, de forma a criar ambientes controlados e

seguros. As “loud party calls”, nome dado pela polícia americana às festas

promovidas pelas gerações mais jovens que habitavam estas áreas, liderando as

queixas de ruído nos bairros suburbanos. Tal como LaBelle argumenta:

“O adolescente no subúrbio pode ser contemplado como uma figura performativa:

enquanto o subúrbio atende a uma visão particularmente adulta de comunidade, o adolescente

é levado a ocupar uma zona sobrada, onde o tédio é frequentemente abundante” (Labelle,

2010: 58).

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Nos subúrbios, os adolescentes interferem com as suas dinâmicas no núcleo

destes espaços imaginários estáveis. Na procura das expressões facilmente

encontradas no meio urbano, o jovem suburbano entra em conflito com a visão

purificada de comunidade existente no subúrbio (Labelle, 2010: 58). De acordo com

Sennet, o subúrbio age como uma barreira física e psicológica, procurando opor-se ou

resistir a tudo o que possa infringir esse bem comum “purificado”, isto é, os valores

compartilhados por um grupo social homogéneo que ali habita. Por outras palavras, o

subúrbio subscreve a noção de comunidade de acordo com o sentimento de

“semelhança” entre sujeitos:

“O medo pela riqueza da sociedade urbana prevalece nos subúrbios pós-industriais

das classes médias, e a família torna-se o lugar de refúgio onde os pais protegem as suas

crianças e a eles mesmos da cidade”. (Sennet,1970:72).

Sennet reforça que estas condições levantam um modelo problemático de vida

comunitária. Ao eliminar as experiências do diferente, o modelo suburbano retira

oportunidades para uma apreciação mais ampla de outras formas de viver em

sociedade. Os indivíduos nos subúrbios “ganham uma nova perceção de coletivismo,

de possuírem uma identidade comunitária, mas esta noção de coesão social cultivada

por estas pessoas é a mesma que elas querem evitar” (Sennet, 1970: xii).

Sennet argumenta que é a partir daqui que se forma uma nova “ética puritana”.

O indivíduo retrata em si mesmo a crença de coesão emocional e de valores

partilhados entre si, mas que nada tem a ver com a sua experiência no local, ao criar-

se uma imagem falsa de comunidade que rejeita e filtra tudo o que é diferente desse

sentimento de coesão.

Neste tipo de comunidades, especialmente nos espaços suburbanos de classe

média alta, a abundância material providencia o poder de reforçar o “mito de coesão

da vida comunitária” (Sennet,1970). Pelo facto de haver recursos financeiros e

materiais para controlar os limites e sua composição interna, a necessidade de partilha

ou de dependência mútua entre as pessoas para sobreviver não é mais a força que

conduz a comunidade, tendo em conta que o próprio indivíduo se submete a um

autonomismo isolado (idem: 47-49). Esta experiência purificada do “nós” leva à

ilusão de conhecermos o outro, por ele ser aparentemente semelhante a nós mesmos,

mas na verdade evita experiências aprofundadas de conhecimento. As consequências

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sociais destas dinâmicas podem levar a um progressivo desinteresse de participação

na vida comunitária, já que a existência de confrontos entre grupos de pessoas é

mínima e que os indivíduos considerados desviantes são reprimidos por estarem em

dissonância com a imagem coesa do “nós” (idem: 39).

A regulação e delimitação do ambiente nos subúrbios, como sistema separado

e internamente homogéneo, propicia o desejo de experiências purificadas,

impulsionado pelo receio destes indivíduos de viverem num mundo que não

conseguem controlar. Neste sentido, as famílias suburbanas começam a restringir

experiências sociais que lhes são desconhecidas ou dolorosas, a partir do valor moral

que estas comunidades legitimam. Esta redução da experiência, pela separação entre o

que é o espaço íntimo e o que é o espaço do mundo, inevitavelmente leva à ansiedade

de interagir com o que rodeia (idem: 71-72).

O silêncio e o ruído nos espaços urbanos definem a fronteira entre o espaço

interior doméstico e o espaço exterior. Neste sentido, o aspeto ético e espacial destes

dois fluxos integram-se na base de construção de uma dada comunidade ou na

definição de uma lei. Tal como Sennet argumenta, no subúrbio o silêncio circula para

apoiar o desenvolvimento de uma “comunidade positiva”, assegurando não só o

sossego mas também para se opor à influência que o ruído pode criar.

Os vários debates em torno da poluição sonora e dos padrões de saúde pública

vêm demonstrar certos regimes morais que localizam as expressões desviantes como

“fora do lugar”. A projeção de bairros sossegados, enquanto projeto cívico, posiciona

parcialmente o ruído no lado da violação, conotando atos de expressão diferenciados

como distúrbio ou excesso auditivo. Ao nível do pensamento urbanístico moderno o

silêncio potenciou o sossego e a estabilidade social, mas paradoxalmente forneceu

mecanismos de valores sociais de controlo e constrangimento (idem: 64). No caso do

bairro de Lourdes, as associações de moradores ganharam algum poder de decisão

dentro do bairro, através de uma maior autonomia sobre a Prefeitura de Belo

Horizonte. Em todo o caso, existe a voz dos donos dos restaurantes, do “dj do

volante”, e de todos os indivíduos que de uma forma ou de outra não têm a mesma

opinião entre si, mas o mesmo direito de coabitarem esse bairro.

Mas o ruído não é só um distúrbio ambiental e social. Ao invés, pode vir a

providenciar uma experiência fulcral para o estabelecimento de uma “comunidade

acústica” que está sendo continuamente elaborada. O termo “acústico” aqui deveria

ser enfatizado não só como sons que circulam numa situação particular, mas mais

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importante como uma relação de troca, onde o som também é uma voz, diálogo,

partilha e confrontação. Apesar de o ruído ser ouvido como um ato de

irresponsabilidade por parte dos outros, este também pode fornecer um encontro rico

na criação de responsabilidade, ao proporcionar a oportunidade para conhecer o que é

diferente (Labelle, 2010).

Tal como LaBelle argumenta, eu penso que é na observação da amplitude de

um dado ambiente sonoro que realmente conseguimos entender a importância do que

é o silêncio enquanto motor de espaços sossegados, como também do próprio ruído

enquanto reflexo das dinâmicas sociais de um lugar, que são indispensáveis para um

maior entendimento do espaço em que vivemos e dos sujeitos que habitam num

mesmo ambiente comunitário. Nesta perspetiva, somente na contínua negociação

entre sujeitos, através das dinâmicas que emergem dos choques sociais e culturais

entre pessoas de uma mesma comunidade, é que poderá ser possível o

desenvolvimento de um ambiente que promova a responsabilidade local. Referindo as

palavras de Sennet, “se os indivíduos continuarem a acreditar que a hostilidade entre

grupos deveria ser silenciada e não encorajada pela sua expressão social, as cidades

vão continuar a ruir, por não haver nada que faça a mediação dessa hostilidade ou que

force as pessoas a olharem para além das imagens que projetam do outro” (Sennet,

1970: 147). Por outras palavras, as verdadeiras “comunidades“ somente nascem das

experiências e confrontos entre sujeitos. Para Sennet, as comunidades que “ao invés

impõem limites ou que limpam qualquer oportunidade de interação, solidificam em

formas vazias de grupos de semelhança27” (Sennet, 1970:idem). Como contramedida,

Sennet encontra um valor produtivo na desordem, ou seja, em vez de se procurar o

comum a partir das formas semelhantes, o desordenamento do impacto das diferenças

sociais pode garantir a configuração e uma contínua modelação das relações entre os

sujeitos. A partir desta perspetiva é possível questionarmos se o ruído, ao ser

considerado um som “desviante” e que não deveria acontecer num certo ambiente

27 Li recentemente no Estado de Minas ( 2 de outubro de 2013) outro artigo relacionado com o

Lourdes sobre o diálogo entre habitantes deste bairro, neste caso sobre a estratégia criada entre

moradores e comerciantes para os mendigos que frequentam este bairro. Tal como descrito na notícia,

“comerciantes e moradores do Bairro de Lourdes, Centro-Sul de BH, decidiram firmar um pacto para

evitar a presença de mendigos. A orientação é não dar dinheiro, agasalhos e alimentos, mesmo os que

estiverem com prazo de validade quase vencido. Na Praça Marília de Dirceu, foram instalados mais

esguichos de água no jardim, e o jardineiro é orientado a ligá-los para espantar moradores de rua que se

deitam nos bancos”.

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social, no final de contas não é, tal como argumenta La Belle, um fluxo ”produtivo de

partilha ao nível comunitário?” (Labelle, 2010: 61)

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2.2. Entre Dakar e Timbuctu

Cheguei a Dakar sem saber o que me esperava. Não antecipei os desafios do

choque cultural que estava prestes a sentir. Apesar de ter viajado por alguns países,

especialmente na Ásia (por ter residido em Macau), era a segunda vez que aterrava

em África, sem ter uma experiência relevante neste continente que pudesse

salvaguardar a minha pesquisa. Tinha a mínima segurança de falar algum francês, e

assim, adaptar-me linguisticamente a este país francófono. Devido à existência de

uma comunidade oriunda de Cabo Verde na capital senegalesa, pensei que, por ser

descendente de cabo-verdianos, seria mais fácil a minha integração através do contato

direto com esta comunidade.

Mesmo assim, estas minhas seguranças não serviram de muito: ao chegar ao

aeroporto de Dakar não entendia o francês “corrido” do agente da alfândega, que por

cinco vezes me perguntou onde ficaria instalado naquela cidade. Com muito esforço,

consegui conversar com ele, sentindo naquele momento a vertigem de uma aventura

que iria durar no mínimo três meses.

Encontrei-me à saída do aeroporto com Magueye, conhecido do meu amigo

Ricardo, o único contacto que tinha no Senegal. Antropólogo e residente no norte

deste país, Ricardo confiou a Magueye a responsabilidade de me receber por alguns

dias na sua residência. Magueye foi das poucas pessoas que conheci que falava inglês,

o que me ajudou para aprender com ele muitos aspetos da vida local, num curto

espaço de tempo. Fiquei dez dias num dormitório na aldeia de Yoff, situada nos

arredores de Dakar, onde rapidamente comecei a aprender a falar wolof, uma das

línguas oficiais do Senegal, compensando desta maneira a minha falta de

conhecimento da língua francesa.

Somente com o meu gravador digital da Zoom, sem recorrer ao uso da

máquina fotográfica ou de filmar, quis adaptar a minha experiência a um registo

meramente sonoro, tendo em conta que sabia previamente que iria presenciar eventos

de elevada intensidade acústica. Todos os sons que eu ouvia possuíam uma riqueza

impressionante, desde a língua falada até aos minaretes das mesquitas chamando para

a oração. Sentia-me constantemente embriagado por sons que jamais tinha escutado.

Tinha levado como companheiro de viagem o livro Tuning of the World, do

compositor e pesquisador Murray Schaffer que, curiosamente, num dos capítulos faz

referência aos fatores essenciais para se criar uma comunidade acústica. De acordo

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com Schaffer (1977), existem elementos sonoros que têm a qualidade de tornar uma

dada comunidade distinta, por serem sons únicos e especialmente notados por

indivíduos dessa mesma comunidade, chamando a esses sons de soundmarks ou

marcos sonoros (Schaffer, 1977: 274). No dia seguinte, iniciou-se o meu despertar

para a perceção desses marcos existentes no espaço acústico, onde estava inserido:

“O dormitório é constituído por sete quartos, uma casa de banho e uma cozinha. De

manhã, eu acordo com o varrer (de pequenas vassouras de palha) do pátio interior do

dormitório, pelas conversas das mulheres que cozinham (a cozinha era ao lado do meu

quarto) e dos choros das crianças. O meu quarto situa-se num primeiro andar, por baixo existe

um pátio que serve como entrada para o dormitório, mas também como quintal para os

animais - na maioria cabras e bezerros. Em frente do prédio existe um descampado, que pela

tarde, é preenchido por jovens que jogam futebol. Aos domingos, por volta das cinco horas da

tarde, há uma missa no pátio interior do rés do chão.“ 28

Fiz este exercício maioritariamente de olhos fechados. Procurei, com a

audição, “observar” estes eventos, descobrindo assim particularidades que

provavelmente de outra forma não conseguiria vislumbrar. Muitas vezes começava a

capturar os sons, e fechava os olhos de forma a atingir um espaço que ia para além da

minha escuta, aproveitando o alcance do gravador. Nas minhas primeiras recolhas de

áudio, através do gravador, demonstrei que a minha própria audição não tinha muita

profundidade. Observei que na recolha de frequências mais agudas o áudio ganhava

corpo, sendo possível escutar os sons mais “limpos”. Nesse momento questionei-me:

que estímulos tenho que criar na minha rotina para “limpar os ouvidos29”? Por estar

presente no meu dia a dia em Lisboa, uma “parede sonora” (Schaffer,1970) que

influencia a minha perceção, constatei que essa barreira resistia, mesmo em espaços

tão distintos como a aldeia de Yoff.

Outra questão com que me deparei diz respeito às preferências de escuta que a

visão pode vir a influenciar. Ao fechar os olhos, eu conseguia escutar os sons numa

forma mais neutra, e assim percecionei espaços para além do meu alcance visual. Por

28 Anotações de 20 de outubro de 2010 29 Para que possamos voltar “a escutar”, Schafer propõe uma “limpeza dos ouvidos”, uma

“escuta” ou “ouvido pensante”. Por exemplo, Schafer refere-se à necessidade de identificação dos

marcos sonoros do quotidiano desse ouvinte, como forma de criar uma maior consciência de escuta do

seu meio envolvente e da sua própria capacidade percetiva.

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este fator, senti que o exercício na busca destes marcos sonoros se tinha tornado um

desafio, tendo em conta o facto de pertencer a uma cultura dominada pela visão.

Neste sentido, por mais distante que eu estivesse da minha realidade, ela teve

implicações diretas na forma como percecionei o meu campo de trabalho: a minha

carga cultural influenciou-me a experiência, sendo um fator que tive que adaptar, tal

como experimentei ao fechar os olhos.

Depois de um período de adaptação, fui ter com um amigo com quem

dificilmente entrei em contacto meses antes, devido ao seu isolamento geográfico.

Francisco, que também foi meu colega de mestrado, estava em trabalho de campo na

ilha de Karabane, situada na província de Casamance. Cheguei a essa ilha, onde fui

recebido por ele e por André, amigo nosso que residia em Bissau. Sem saberem o

porquê da minha ida para o Senegal, contei-lhes um dos objetivos da viagem: sentir o

silêncio. Expliquei-lhes que o meu destino era a cidade de Timbuktu, a norte do Mali,

umas das portas de entrada para o deserto do Sahara, para experienciar a ausência de

sons no espaço, e assim ter mais um contributo (periférico) para a minha pesquisa

sobre o ruído de vizinhança em diferentes contextos da cidade Lisboa. Outro objetivo

era recolher, através das captações sonoras as memórias desta viagem, com o

propósito de entender o património sonoro em que estive imerso, sabendo que estava

perante uma sociedade onde ainda domina a cultura oral.

Tive uma conversa bastante interessante com o Francisco, na qual idealizámos

um projeto relacionado com esse património sonoro. Pensámos na criação de um site

que possuísse um mapa sonoro, ou seja, uma cartografia acústica dos espaços

capturados. O site funcionaria como um portal, onde cada utilizador poderia aceder a

uma base de dados de ficheiros áudio correspondentes a cada um dos lugares

registados. A navegação, através do sítio e das paisagens sonoras, seria realizada

através de um mapa virtual, semelhante ao de sistemas como o Google Earth. Esta

ideia, apesar de não ser original (o que constatei ao chegar a Portugal), tornou-se um

dos catalisadores para a minha obsessão de registar a realidade, nos meses seguintes.

Comecei a gravar tudo o que acontecia à minha volta: tarefas domésticas, conversas,

sons urbanos, manifestações populares, sons da natureza, ou seja, todos os marcos

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sonoros existentes nos lugares que visitei, criando uma base de dados essencial para a

(futura) concretização desse projeto 30.

Após uma curta estadia nesta ilha, a minha viagem prosseguiu até Niafrang,

uma aldeia situada a duzentos quilómetros da cidade de Zinguinchor, a convite do

André. Ao chegarmos, reparei que a aldeia não tinha eletricidade. Pela primeira vez

na viagem, eu estava num ambiente acusticamente limpo. Os habitantes de Niafrang,

que maioritariamente trabalhavam nos campos de arroz, falavam francês mas havia

quem somente falasse karonike, um dos dialetos existentes nesta província

senegalesa. Apesar do meu francês ainda ser débil, lentamente conseguia entender e

ser entendido. Em todo o caso, esta fragilidade ao nível linguístico tornou-se uma

oportunidade, por estar menos condicionado com a dimensão semântica da fala, e

assim mais atento à fonética. Nesta paisagem sonora rural, assistia aos diálogos entre

os seus habitantes, anotando os seus timbres, ritmos e dinâmicas na fala. Assisti, tal

como já tinha presenciado em Dakar e Karabane, a um som característico nos

diálogos. Através de uma reação subtil provocada pela garganta (o som assemelhava-

se a um “clic”), o recetor demonstrava ter alcançado a ideia escutada, como uma

forma de dizer “entendi”, sem cortar a respiração da emissão do locutor. Nas

conversas, observava que as interlocuções pausavam entre si, deixando a conversa

respirar. Muitas vezes existiam diálogos quase silenciosos, que se adequavam ao

espaço sonoro envolvente. Para uma pessoa “da cidade”, como é o meu caso, esta

realidade foi uma nova e intensa experiência acústica, que invariavelmente

condicionava a minha relação com as pessoas à minha volta. Senti que, por vezes,

tinha a necessidade de preencher o vazio, quando em certas situações dominava o

silêncio noturno nas conversas. De forma a contrariar o constrangimento, por estar

com pessoas que mal conhecia, tentava constantemente tapar os “buracos

silenciosos”.

Constatei que por não existir energia elétrica, quase todo ruído que nós

presenciamos, naturalmente, em contexto citadino, não existia naquele lugar. Pap

Lamine, um dos habitantes desta aldeia, confessou-me que uma das razões para não

terem eletricidade era o facto da população optar por viver de uma forma tradicional.

30 Apesar de já possuir uma base de dados, conseguida ao longo das viagens que

posteriormente fui fazendo a outros países, este site ainda não teve a oportunidade de ser criado devido

às suas implicações ao nível de programação informática. Em todo o caso, criei um blog no qual faço

uma primeira abordagem deste projeto, a partir dos estudos de François Augoyard. Ver

www.sontato.tumblr.com .

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Estava a comparar esta aldeia com a de Kafountine, a cinco quilómetros de distância,

onde a recente introdução de uma rede elétrica originou investimentos,

maioritariamente turísticos, tornando a sua paisagem sonora distinta da assistida em

Niafrang. Desde o som dos rádios amplificados, lojas, eletrodomésticos e de toda a

azáfama de um sistema social “eletrificado”, o ambiente de Kafountine era distante da

sua aldeia vizinha.

Sem querer questionar sobre os prós e os contras do uso da eletricidade,

foquei-me em descobrir como é que a evidência dos elementos sonoros naturais, na

aldeia de Niafrang, influenciava as práticas dos seus habitantes. Presenciei que nesta

aldeia há uma forte comunicação oral, influenciada pela inexistência de eletricidade,

tornando-se impossível o contacto com os novos media31, dificultando a partilha de

conhecimento e informação com o/e do mundo exterior.

Para Schaffer (1977), antes da introdução da escrita, o sentido auditivo era

mais vital que a visão. Desde a “palavra de Deus” até às histórias partilhadas nas

tribos, as informações eram na sua maioria escutadas. Nas palavras deste pesquisador,

a “África rural ainda vive no mundo maioritariamente do som, contrastando com o

mundo ocidental que vive muito mais no mundo visual” (Schaffer, 1977: 11). Tal

como assisti em Niafrang, o ouvido era um importante órgão recetor devido à relação

dos seus habitantes com o espaço envolvente.

Um dos cenários mais impressionantes que observei foi a existência de uma

árvore fromagier, que estava situada no meio da aldeia. Com quatro séculos de

existência e com uma altura aproximadamente de cinco andares, esta árvore

destacava-se tanto pela sua grandiosidade como também por ser a casa de muitas

centenas de pássaros. A presença da fromagier era “amplificada” através do canto das

aves, sons esses que se envolviam no quotidiano desta aldeia. Desde as aulas da

escola primária, no convívio na boutique, nas tarefas domésticas ou na missa

dominical, o poder vocal daquela árvore estava em concordância com o seu tamanho.

Ao referir a grandiosidade desta árvore a Pap Lamine, ele transmitiu-me que existem

diversas espécies de aves naquela área e que os seus habitantes, a partir da distinção

do canto destes animais, sabiam localizar-se no espaço envolvente da aldeia32.

31 Aqui refiro-me a televisão, rádio ou internet. Havia o recurso ao telemóvel, apesar da

bateria ser carregada em Kabadjo e só parte da aldeia tinha cobertura de rede. 32 Pap Lamine deu-me o exemplo dos diferentes trajetos possíveis para chegar até a aldeia de

Niafrang. Dependendo do tipo de vegetação como de outras condições ambientais, existem espécies

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Após dez dias nesta aldeia, continuei o meu caminho em direção a Timbuctu,

restando três mil quilómetros até alcançar o deserto. Saí de Niafrang com muitos

amigos e com várias reflexões, sobre alguns eventos que observei nesta aldeia remota.

Pessoalmente, não sei se desejo a instalação de uma rede elétrica neste lugar, tanto

pelas tradições que esta comunidade quer preservar, como pelas experiências

sensoriais que tive. Apesar do desenvolvimento social e económico também passar

pelo uso da eletricidade, ao trazer melhorias das condições de vida e impulsionando a

criação de novas atividades locais, a evolução industrial e tecnológica não evolui

necessariamente uma comunidade. Principalmente se certas questões, como é o caso

do meio ambiente, forem subjugadas a essa ideia de progresso. Observando o caso de

Kafountine, outrora “aldeia gémea” de Niafrang, a energia elétrica disseminou-se nos

hábitos e tradições da população, trazendo novas dinâmicas como também

consequências ecológicas. Em Niafrang, ao não aceitarem (de momento) a

eletricidade, estão a preservar o passado e o seu património sonoro e ecológico, em

constante adaptação com as características do seu meio ambiente.

Ao chegar a Ziguinchor, procurei a melhor forma de alcançar ainda naquele

dia a fronteira com o Mali. Esperei por um 7place (lê-se sept place), que são carros de

sete lugares e os únicos veículos que conseguem conduzir nas estradas senegalesas,

ou no que restam delas. O dia era especial porque antecedia o Tabaski33, tornando

aquele terminal rodoviário um espaço caótico, porque as pessoas tentavam voltar à

sua terra natal, para junto das suas famílias.

O trajeto para Tambacounda, a cidade mais próxima da fronteira, poderia ter

durado cerca de três horas, mas devido às condições das estradas durou quase dez.

Durante essa viagem escutava os bezerros que estavam amarrados no tejadilho do

nosso carro, para serem sacrificados para a celebração do Tabaski. Os animais

berravam incessantemente, misturando--se com as constantes buzinadelas entre os

motoristas dos 7place, juntamente com o som do rádio que o condutor fazia questão

de pôr no máximo. Os sons pareciam fazer parte de uma banda sonora de um filme de

terror, tudo isto debaixo de um calor insuportável.

que habitam certas áreas dentro e fora da aldeia, caracterizando desta maneira os diferentes espaços

sonoros que são escutados pelos habitantes de Niafrang. 33 Tabaski é a segunda maior festa muçulmana, depois do Ramadão, que celebra a coragem de

Abraão ao sacrificar o seu filho mais velho para provar a sua lealdade a Alá. Momentos antes deste

sacrifício, um anjo apareceu e não permitiu este ato, ao dar uma ovelha em lugar do seu filho. Sendo

assim, todos os anos, todas as famílias muçulmanas têm que matar uma ovelha para relembrar a fé de

Abraão.

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Ao chegar a Tambacounda, uma das cidades mais quentes do Senegal, apanhei

um outro 7place em direção a Kayes, a cidade fronteiriça no lado do Mali. Após uma

longa espera no posto fronteiriço, continuámos a viagem pela noite até que duas rodas

do 7place furaram, devido ao excesso de carga. Longe de qualquer urbanização,

fomos obrigados a arranjar uma outra forma de alcançar a cidade. Por sorte, uma

moto-táxi surgiu no meio do escuro, proporcionando uma boleia para os cinco

quilómetros que restavam até alcançar a cidade.

Ao chegarmos a Kayes o inesperado acontece: dois adolescentes de mota

despistam-se à nossa frente e o nosso táxi atropelou-os, passando literalmente por

cima deles. Em choque, não podia acreditar no cenário diante de mim: entre gritos dos

familiares dos acidentados e da agitação dos transeuntes que comentavam

energicamente o sucedido, fiquei sem qualquer tipo de reação. Para além de ver dois

adolescentes ensanguentados, eu não estava a entender a língua que as pessoas

conversavam em meu redor, sentindo-me naquele momento “fora de lugar”.

Rapidamente, um outro passageiro que veio na moto-táxi pediu-me para o

acompanhar. Papisse, um jovem maliano (de etnia bambara) e residente em Dakar,

levou-me para a sua casa confessando-me que por esta época, durante os dias do

Tabaski, eu não teria oportunidade de sair de Kayes devido à paralisação dos

transportes públicos nos dias de feriado.

Nesses três dias passava a maior parte do tempo fora de casa, gravando tudo o

que se passava à minha volta. Fiz alguns amigos nesta curta estadia, mas ao contrário

da minha convivência no Senegal os malianos eram mais contidos, notando-se pouca

curiosidade em conhecerem o tubab34. Na casa ao lado da família de Papisse, por

vezes observava a movimentação de pessoas com a pele mais clara que o comum, mas

que aparentemente não pareciam ser árabes. Um dos adolescentes dessa casa veio

falar comigo em árabe, ao qual respondi que não entendia. Após uma conversa em

francês percebi a origem desta família. De etnia tuareg, Homeini e sua família,

oriunda de Timbuctu, instalaram-se em Kayes por ser uma cidade que também é

próxima da Mauritânia, um dos países africanos com maior “simpatia” por este povo

34 Tubab é o nome dado a pessoas oriundas da Europa (os “brancos”) usado no Senegal,

Gambia e Mali. Mas pelo facto de eu ter origens africanas, muitas vezes eu era confundido com os

povos do Magrebe, havendo inclusive, com certas etnias no Mali, desconfiança e falta de interesse na

minha pessoa.

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nómada35. Ao ter explicado o objetivo da minha pesquisa em Timbuctu, Homeini

“obrigou-me” a ficar com a sua família, residente nessa cidade, tendo em conta que de

outra forma a minha estadia seria muito cara e a experiência no deserto influenciada

pela relação entre o tubab e os agentes turísticos locais36. Aceitei o “convite”, ficando

extremamente agradecido pela ajuda, tendo em conta que ainda faltavam mil e

quinhentos quilómetros para alcançar o meu destino, ainda sem um plano bem

definido.

Ao chegar a Bamako, capital do Mali, contactei Hamo, primo de Homeini,

para combinarmos o dia de chegada a Timbuctu. Após três dias de estadia em

Bamako, apanhei o autocarro que me levaria até ao norte do Mali. As estradas são

substancialmente melhores que as senegalesas, mas mesmo assim ao chegar a Mopti,

uma das localidades que serve de entrada para o país Dogon, o caminho começou a

tornar-se mais difícil, tendo em conta que estávamos a entrar em zonas mais áridas. A

viagem começou a tornar-se muito dura quando, no autocarro que levava cerca de

cinquenta passageiros e lutava contra o terreno instável do deserto, entre sacudidelas e

embates violentos no solo se ouviram gritos provados pelos diversos impactos nas

estradas arenosas, generalizando-se o desespero entre os passageiros.

Depois de trinta e duas horas de viagem chegámos a Kouriomé, um pequeno

porto situado nas margens do rio Niger, a cerca de vinte quilómetros de Timbuctu. O

amanhecer, após uma viagem desgastante, foi recompensador. Ao ouvir o som dos

minaretes que chamavam para a oração, surgiu à minha volta um efeito sonoro

ubíquo, devido à dispersão no horizonte dos altifalantes que não se avistavam,

tornando aquele nascer do sol algo de outro mundo. Lentamente, as dunas e a pouca

vegetação existente ganharam tons desconcertantes, sem que eu conseguisse imaginar

o que estava a ser desenhado diante dos meus olhos. Finalmente, quando o sol

emerge, vejo a sublime união entre o rio Niger e o deserto do Sahara.

Cheguei a Timbuctu e observei, ainda dentro do autocarro, o que já tinha

imaginado: uma cidade engolida pelas inúmeras tempestades de areia, pobreza

35 Nos confrontos entre rebeldes tuaregs e tropas malianas, nos anos 90 e recentemente em

2011, a Mauritânia foi o país que mais acolheu refugiados de guerra, provenientes do Norte do Mali. 36 Refiro-me às dinâmicas turísticas de Timbuctu entre os estrangeiros (que vão em busca do

“autêntico” do deserto, mas através de uma “aventura controlada” devido aos conflitos iminentes

naquela região no ano 2010) e os guias turísticos. O resultado, para muitos casos que observei, era uma

experiência local conduzida por um paternalismo exacerbado dos guias, ao transmitirem uma realidade

distorcida de Timbuctu, através do medo e da incerteza que os turistas tinham sobre aquela cidade.

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extrema nas ruas e um calor insuportável. Ao descer no terminal de autocarros fui

rapidamente interpelado por dois rapazes que afirmavam serem guias oficiais aos

quais eu declinei de imediato a sua ajuda. Após a minha recusa, amedrontaram-me

com os problemas que estavam a acontecer em Timbuctu: banditismo, terrorismo e

difícil acesso a povoações nómadas sem o devido acompanhamento. Referi-lhes que

ia visitar uma família e nesse instante surgiu no meio da multidão o Hamo, primo de

Homeini, resgatando-me deste assédio que se tornou comum nestas cidades de

turismo de risco37.

Fui recebido pela família do Hamo na sua casa, que de seguida me mostrou as

divisões da sua moradia, situada no bairro Abaradjou. Nesta casa viviam dez pessoas,

na sua maioria ligada por laços sanguíneos, próximos ou distantes, mas todos

originários de Tintelut, uma aldeia situada a trinta quilómetros de Timbuctu. O

interior da casa era constituída por um pátio (como a maioria das casas que frequentei

no Senegal e no Mali), três quartos, uma casa de banho e um terraço. A maioria das

pessoas dormiam no exterior, porque a estação do ano permitia. A casa era palco de

convívio, todos os dias de manha até à noite, devido ao cousinage38 exercido pelos

familiares, amigos e colegas de trabalho.

Após dois dias em Timbuctu iniciei as minhas caminhadas pelo deserto. De

manhã ou no final da tarde, percorria uns bons quilómetros pelas dunas, até encontrar

um sítio que fosse totalmente isolado. Normalmente ia sozinho, apreciando um

sossego que jamais tinha sentindo na minha vida. Nas minhas primeiras sensações

conseguia ouvir perfeitamente a minha própria respiração, que juntamente com o

vento, eram os únicos sons existentes naquele espaço. Por vezes, no horizonte,

escutava alguns animais com o seu pastor ou uma caravana que atravessava o deserto.

Acusticamente, Timbuctu estava tão distante que me fazia sentir realmente sozinho e

desprotegido naquela imensidão. No final da tarde, observava ao longe outras pessoas

a contemplarem o pôr do sol nas dunas. Apaixonei-me pelo deserto sem ter vontade

de regressar para a minha realidade em Lisboa. Semana após semana, o tempo que

37 Nos finais de 2010 a situação no norte do Mali estava a tornar-se delicada, tanto por causa

dos raptos de estrangeiros na fronteira com o Niger, devido à disseminação das movimentações da

AQMI pelo Sahara, como também pelos conflitos internos entre o governo maliano e as populações do

norte deste país. Todas as embaixadas, incluindo a portuguesa, desaconselhavam veemente viajar para

Timbuctu. 38 O cousinage são as relações entre parentes, mas também entre as pessoas que não têm laços

sanguíneos, que em jeito de brincadeira se referem como primos uns dos outros. O cousinage é

demonstrado através das visitas regulares às residências entre as pessoas.

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tinha definido de estadia começou a ser adiado até decidir ficar dois meses e meio, o

tempo que tinha até o voo de volta para Portugal.

Com mais tempo disponível, comecei a definir outras breves pesquisas em

Timbuctu39 . Fiz mapeamentos sonoros das ruas e dos locais emblemáticos desta

cidade, mas também fui convidado para assistir a casamentos e outras manifestações

populares, conseguindo desta maneira entrar diretamente no mundo dos sons desta

cultura. Presenciei a forte ligação, em diversos contextos, que estas pessoas têm com

a música. Fosse tocada por griots, nos eventos populares ou na escuta ensemble

através do rádio40, a música fazia parte do seu quotidiano41. Algo que reparei na

escuta, tanto dos eventos populares como na rádio ou no mp3, foi no facto de a

música estar sempre com o volume consideravelmente alto, provocando a distorção

do som. Azima, amigo da família de Hamo, diz que no caso dos casamentos, o

volume alto é uma forma de celebrar a alegria dessa própria cerimónia, já que

contrasta com a vida silenciosa dos tuaregs. Na “nossa casa” a rádio estava sempre

ligada, na maioria das vezes para se escutar música local enquanto se faziam as

tarefas domésticas. Numa manhã acordei com três rádios ligados: um transmitia as

notícias da ORTM, outro tocava música tradicional através da rádio Tahanint, e um

outro, simplesmente, emitia ruído de estática. Eram oito da manhã e só a matriarca e a

sua filha estavam em casa a ver televisão. Aquela algazarra deixou-me desconcertado,

o que me obrigou a fugir para as dunas silenciosas. Fui para Texak, uma aldeia

situada a seis quilómetros de Timbuctu onde conheci Sandy, um nómada que, entre

outras coisas, me falou das suas dificuldades e da falta de apoio do governo do Mali

para com o povo do deserto. Ao constatar que o espaço físico do deserto é

indissociável do modo de vida dos tuaregs, Sandy confessou-me que raramente vai a

Timbuctu, porque a cidade contrasta com a tranquilidade a que está habituado. Passei

dois dias com a sua família, ouvindo as suas histórias e ajudando-os nas tarefas

diárias, presenciando ao mesmo tempo os obstáculos ambientais que este povo tem

39 Em todo o caso, vou somente referir as que tem interesse para o projeto, tendo em conta que

algumas investigações que exerci tomaram caminhos imprevisíveis, devido á atual situação política do

Mali. Foi o caso por exemplo das entrevistas a locutores de rádio, ideia retirada a partir de um texto de

Murray Schafer. As minhas entrevistas ou tinham uma conduta política por parte dos entrevistados ou à

partida desconfiavam das minhas intenções (aconteceu com a ORTM, a rádio estatal). Neste sentido,

quero referir-me maioritariamente às minhas experiências sensoriais neste espaço, não querendo

veicular análises de caráter político, por não terem relevância para os objetivos desta pesquisa. 40 Os estilos musicais que dominavam os gostos destes indivíduos iam desde takamba,

tehardant ou o desert blues, mundialmente conhecido através das bandas Tinariwen e Ali Farka Touré. 41 Muitas vezes ouvíamos música pelo telemóvel, devido à facilidade na transferência de

ficheiros entre aparelhos a partir do blue tooth.

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que ultrapassar para sobreviver. Numa noite, e entregue às histórias de Sandy, senti a

vertigem de realmente estar num espaço infinitamente desabitado, debaixo do céu

mais estrelado que alguma vez observei.

Na terceira semana comecei a sentir uma certa agitação sempre que ia para as

minhas caminhadas no deserto. O silêncio começou a inverter o prazer que

inicialmente estava a proporcionar e só depois de alguns dias é que comecei a

entender o porquê. Esta viagem também tinha servido para me afastar de problemas

de ordem emocional, deixados em Portugal, mas aos quais, naquele momento

solitário, eu não tinha maneira de escapar, porque ouvia o som dos meus

pensamentos. Aquela paisagem desocupada promovia um diálogo interno que eu,

meses antes, tentei bloquear de diversas maneiras 42 . As memórias tornaram-se

audíveis, sem conseguir escapar delas. Esta viagem introspetiva reverberava à minha

volta: o espaço desértico contrastava com a minha “paisagem interna” que

transbordava de inquietações, medos e inseguranças. Ao impor esta condição solitária,

durante cinco horas por dia, o silêncio progressivamente deu-me a oportunidade de

clarear o meu ser interior ou o meu “centro psíquico” (Bachelard,1958), ao expandir-

me, num plano meditativo, naquela imensidão vazia. Dia após dia, e também por

questões de contínua adaptação à cultura local, comecei a sentir-me verdadeiramente

em Timbuctu, muito por causa desse confronto interno que o silêncio do deserto me

proporcionou.

Em meados de dezembro fui com a família do Hamo para Tintelut. Nesta

aldeia, habitada por pouco mais de mil pessoas, fiquei num quarto juntamente com os

irmãos do Hamo durante duas semanas. Tintelut não tinha eletricidade, apesar de ter

sido construída uma rede elétrica dois anos antes. O único recurso existente vinha da

casa da família do Hamo, através de um painel solar que era somente usado para

carregar os telemóveis, de forma a conseguirem escutar música e trocar morceaus

entre si43.

As casas, tal como a maioria em Timbuctu, são feitas de barro. Através deste

material era possível conservar a temperatura, tanto o calor nas noites geladas como a

frescura nos dias de calor. Na sua maioria as habitações tinham uma vedação e eram

42 Recordo-me que no verão de 2010 toquei em muitos concertos, trabalhei num festival,

escutava e produzia música em casa, com o objetivo (inconsciente ou não) de evitar o confronto com os

meus problemas emocionais, neste caso, o término de uma relação amorosa. 43 Em Tintelut não havia cobertura de rede telefónica, apesar da existência, a dois quilómetros

da aldeia, de uma antena (desativada) da operadora Orange.

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espaçadas entre si, mas existia uma facilidade de comunicação entre as moradias, pelo

facto de Tintelut ser uma área desértica e sem barreiras acústicas naturais. O espaço

exterior tornava-se familiar com o da habitação, devido à ausência de portões na

vedação. Desta forma, os habitantes que por ali passavam eram facilmente induzidos

a entrar nas casas para exercer o cousinage. Constatei que esta “abertura”

arquitetónica, como também o ambiente acústico da aldeia, facilitava a expansão do

espaço íntimo dos indivíduos para com a sua comunidade, ao tornar as paredes e

outras barreiras habitacionais vulneráveis aos fluxos imateriais produzidos naquele

espaço social 44 . Através desta facilidade de circulação de pessoas e das suas

expressões, tive a oportunidade de criar um mapa de Tintelut no meu imaginário,

através da identificação dos marcos sonoros45 que pertencem à comunidade acústica

desta aldeia.

Dos quinze dias que se seguiram fiz um mapeamento sonoro da aldeia, de

forma a que no futuro, após o funcionamento da rede elétrica, pudesse realizar um

estudo comparativo sobre as mudanças na paisagem sonora de Tintelut. O objetivo

seria compreender que tipo de mudanças sociais e culturais a introdução da rede

elétrica iria provocar nessa aldeia, através da captação das expressões sonoras da sua

população. Neste sentido, um dos locais mais importantes a documentar seria o

espaço doméstico dos habitantes, por ser um lugar que intensificava os

relacionamentos sociais, tal como observei com as cousinages. Aqui ficam algumas

breves observações:

“No presente, o espectro sonoro de Tintelut é limpo, já que se encontra a três

quilómetros do Rio Niger e a dois da estrada que liga Timbuctu a Gondam. Como a

circulação da estrada é quase inexistente46 , não afeta persistentemente o espectro sonoro de

Tintelut, ou não tem um impacto acústico de uma “parede sonora” urbana. (...) Sempre que

chegava um carro à aldeia as pessoas tinham a perceção da sua aproximação muito mais

rápida que a minha, antes mesmo de emergir no meu campo de escuta. Através do som do

motor, ou das características de condução do motorista (a velocidade e trepidação do veiculo),

44 Ver caso “Aldeia Vertical”, a respeito das escadas de emergência do prédio nos Anjos, que

facilitavam a relação de vizinhança entre os seus moradores. 45 Desde a voz do vizinho do lado, que tinha um timbre agudo e que me acordava todos os

dias de manhã em conversas com o pai do Hamo, das mulheres e crianças moendo o trigo no pilão ao

som de um rádio que mal captava a frequência da emissora, do griot da aldeia que tocava logo de

manhã até ao som da bomba de água enferrujada situada no centro da aldeia, reconheci que estes sons

eram únicos e que somente existiam nesta aldeia.

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algumas pessoas conseguiam identificar quem vinha no horizonte. Durante a noite, assistia a

estes exercícios de identificação através do som. Durante as cousinage, as pessoas

conseguiam reconhecer no escuro quem se aproximava da nossa casa, através do seu ritmo de

locomoção. (...) Numa noite consegui ouvir um avião a dez mil metros de altitude. Isto é um

indício de que estou num ambiente acusticamente limpo, tendo em conta que nas cidades não

é possível escutá-lo a tal distância. (...) Escutei pela primeira vez a chamada para a oração

sem recurso à amplificação elétrica, conseguindo ouvir esse chamamento em qualquer ponto

extremo de Tintelut. (...) Nas tendas, montadas no exterior das casas, os volumes das

conversas são mais baixos que o normal. As tendas têm uma altura reduzida, sendo

impossível andar de pé. Por estarmos sentados ou deitados, a nossa comunicação era menos

enérgica. Esta situação lembrou-me o que vi na aldeia de Tojuna, no país Dogon. No Palais

de La Justice, que é um espaço que servia de assembleia do povo, a sua estrutura de madeira

possui um teto muito baixo para que desta forma, nas palavras de Tidjani47, fosse ‘evitado o

confronto físico’. Neste sentido, as pessoas eram obrigadas a manter um nível de discussão

regular, por haver esse condicionamento físico”. 48

Esta viagem serviu para comprovar alguns aspetos já descritos pelos

pesquisadores que me influenciaram ao longo deste trabalho. Mas acima de tudo quis

ter uma experiência pessoal, através da descoberta de fenómenos acústicos distantes

da minha própria realidade. No início da viagem ficou demonstrado que a minha

própria sensibilidade de escuta era limitada, causada tanto pelos meus exercícios

auditivos no meu quotidiano como por questões socioculturais que influenciam a

minha perceção na observação de um evento sonoro distinto. Através dos constantes

“passeios sonoros” 49 que realizei durante a viagem é que foi possível entender as

minhas limitações, como também adaptá-las a estas novas realidades acústicas. Em

Niafrang, observei modos de vida nos quais o som era um importante veículo de

entendimento entre a comunidade e o seu meio ambiente, emergindo as comunidades

acústicas descritas por Schaffer. Consegui desta forma presenciar o poder do som

enquanto património sonoro local, ao constatar a existência de marcos sonoros que

caracterizavam e eram identificados por uma dada comunidade. Já em Timbuctu tive

a oportunidade de “limpar os meus ouvidos”, ao entregar-me a um espaço vazio que

me obrigou a exercer uma “escuta interna”. Inicialmente, a tranquilidade do deserto

47 Nome do guia que me acompanhou na visita ao país Dogon. 48 Anotações feitas entre 23 de dezembro de 2010 e 2 de janeiro de 2011. 49 Ver definição de “passeios sonoros” ou (soundwalking) no capítulo “Metodologia do

trabalho de campo”.

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foi deslumbrante, mas com o passar do tempo começou a envolver outros níveis da

minha consciência, e a obrigar-me a um confronto inesperado com o meu “centro

psíquico”. Acima de tudo, estes exercícios, maioritariamente percetivos, tornaram-se

uma aprendizagem ao terem proporcionado um autoconhecimento que dificilmente eu

teria no meu contexto social e ambiental.

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2.2.1. Silêncio negativo e música programada

Através desta experiência no deserto do Sahara reforcei, ao nível pessoal, um

argumento já transmitido por inúmeros pesquisadores: o silêncio é não só menos

apreciado como também mal interpretado pelos indivíduos nas sociedades modernas.

Tal como a cidade para muitas pessoas pode representar a excitação e o estímulo, o

campo ou as áreas desertificadas retratam com frequência o “tédio, o conformismo, a

preguiça, a falta de escolha e o mais importante, o medo de estar fora de contacto”

(Newman e Lonsdalee, 1995: 10). Esta visão, criada em torno das paisagens naturais,

revela um medo psicológico para aqueles cujo objetivo (consciente ou não) é o de

evitar os seus sentimentos ou pensamentos indesejáveis. Tal como Schaffer refere, “o

homem tanto teme a ausência do som quanto a ausência de vida” (Schaffer, 1977:

250). Do ponto de vista sociocultural, esta perspetiva negativista sobre o silêncio

tornou-se cada vez mais evidente. Apesar de algumas culturas apreciarem o silêncio

no seu contexto social, a cultura ocidental perceciona normalmente o puro “estado de

silêncio” como constrangedor. Susan Frykberg (1999) afirma que muitos norte-

americanos tendem, de uma forma ansiosa, preencher qualquer espaço vazio de uma

conversa com palavras, apreendendo qualquer momento silencioso como estranho:

“Uma comunicação com sucesso envolve conversação, e o facto de que também o

silêncio pode ser usado num diálogo como indicador de hostilidade e desprezo ajuda a essa

perspetiva negativa. Embora o silêncio possa ser utilizado para expressar a compreensão

subentendida entre dois espíritos, pode também representar um silêncio pesado entre um casal

de namorados que discutiram” 50.

Em circunstâncias extremas, pessoas com estatuto de poder, frequentemente

torturam os seus inferiores sob regras de silêncio. Por exemplo, as imagens dos

campos de concentração durante o Holocausto ilustram como indivíduos oprimidos se

mantinham em silêncio para se manterem vivos, apenas escutando o som da sua mão

de obra nos trabalhos forçados. Nos sistemas prisionais, o regime de prisão “solitária”

é dos castigos mais severos dados aos presos, ficando isolados e desta forma

silenciados para com o exterior, devido à inexistência de qualquer tipo de contacto

humano.

50 Frykberg, Susan, 1998, “Acoustic Dimensions of Communications 1: Study Guide“, Simon Fraser

University.

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De certa forma, esta perspetiva negativista sobre o silêncio, parece ter sido

impulsionada através da contínua exposição do indivíduo ao ruído urbano. As

cidades, ao serem um reservatório de sons que nunca cessam, levaram os seus

habitantes a adequarem-se a essa realidade acústica tanto ao nível fisiológico como

social. Mas se um ambiente de ruído pode tornar-se o aparente “amigo de fora” para

quem tem receio de ambientes sossegados, o barulho dos sentimentos ou pensamentos

não desejados podem transformar-se no inimigo interno. Isto acontece devido ao facto

de o som ter a capacidade de ser usado como um “áudio-analgésico”, ou seja, uma

parede de som que “bloqueia o incessante diálogo interno com o meio envolvente,

provocando a ilusão de controlo sobre a emoção” (Schaffer, 1977: 66). Uma das

noções básicas da psicoterapia define que os “pensamentos e sentimentos não

expressados poderão resultar em ações inadequadas, que vão desde uma explosão de

raiva durante um evento insignificante, até aos incidentes horríficos que acontecem

cada vez mais nas sociedades modernas”51. O custo físico e psicológico desse tipo de

conflito emocional pode originar doenças relacionadas com o stress ou ansiedade,

refletindo assim a adaptação do ser humano às contínuas mudanças do estilo de vida

no meio urbano.

Por outro lado, o avanço tecnológico dos aparelhos de áudio personalizados,

providenciou não só um abrigo performativo para os sentidos do indivíduo, ao filtrar

o fluxo de som indiferenciado ao seu redor, como também a capacidade de controlo

do que “entra”. Através destes aparelhos, os seus utilizadores definem um ritmo

personalizado a partir da escolha de uma música, numa presença alienada entre o

“aqui” e o “outro lugar” (Labelle 2010). A proliferação de aparelhos portáteis de

música, como o walkman ou mais recentemente o IPOD, deram a oportunidade de

criarmos a nossa própria paisagem sonora como forma de bloquear as intromissões

existentes no nosso espaço físico e psíquico. Os estudos empíricos de Michael Bull,

acerca do uso de aparelhos pessoais de música, sugerem que o uso do IPOD age como

uma estratégia de “gestão do tempo e da experiência, onde os seus utilizadores

constroem espaços de narrativa e de ordem, de forma a ajudar na negociação

individual do sujeito com a fragmentação inerente da experiência urbana” (Bull,

2000: 130 in Labelle, 2010: 97). George Prochnik argumenta que o possível sucesso

51 GEEST, Heather, 1996, “The Negative Person of Silence”, disponivel em:

http://wfae.proscenia.net/library/articles/de_geest_persona.pdf

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do IPOD provém da liberdade condicionada dos movimentos do indivíduo nas

cidades modernas. Com o aparecimento destes aparelhos, o “ser urbano” foi injetado

com um novo transmissor de fluxos nas suas práticas diárias, ao conseguir filtrar as

expressões indesejadas à sua volta, como também da possibilidade de “tapar os

buracos silenciosos” existentes no seu dia a dia (Prochnik, 2010: 164). Mais do que

uma questão defensiva perante a agressividade sonora nos centros urbanos, a

tecnologia estimula o indivíduo a aparentemente dialogar com o seu “eu interior” e a

contactar menos com o exterior de si mesmo. Com o fácil acesso a estes novos

instrumentos de transmissão e reprodução, a negociação territorial moderna ganhou

novos limites, ao permitir que o ser humano projete a sua mensagem com o alcance e

a forma que desejar. Desde a portabilidade da música nas ruas até ao culto

automobilístico do tuning, a cultura citadina impulsionou novas dinâmicas de discurso

que começaram a dominar tanto a arena social como também o espaço singular de

cada indivíduo.

Hoje em dia, o som também é usado por “grupos marginais como uma

estratégia de resistência”52. Na cultura automobilística, o boom box foi um fenómeno

impulsionado por jovens pertencentes a grupos minoritários norte-americanos como

forma de autoexpressão, na segunda metade do século XX. Através da alteração das

componentes dos seus veículos, de forma a provocar mais ruído mecânico, ou com o

aperfeiçoamento dos sistemas de som dos automóveis para dar mais potência sonora,

esta postura “tornou-se uma arma de defesa contra o sistema: quanto maior era o som

produzido, maior era o território dominado, conseguindo ameaçar os limites de

propriedade física e social” (Prochnik, 2010: 131).

Neste contexto, a música toma um papel central na relação entre sujeitos. Tal

como Tia Denora argumenta, “a música oferece recursos que condicionam a nossa

imaginação, lucidez, consciência, ação motora, tudo o que consegue afetar a nossa

formação interna e social” (Denora, 2000: 27). Ao longo dos séculos, a música

tornou-se uma fonte de produção de vida social, ao criar cenários de desejo, estilos de

ação, e de potenciar novas formas de comunidade. Denora ainda refere que a música

“consegue oferecer materiais específicos que os atores usam na organização da vida

social, tendo assim a capacidade de criar espaços imaginários” (idem: 158). Nesta

perspetiva, a música tem a capacidade de promover uma realidade virtual, onde o

52 Idem.

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indivíduo tem a oportunidade de expressar-se de uma forma simbólica, ao dar-lhe o

poder de controlar por momentos o seu espaço físico e psíquico.

De acordo com Jacques Attali (1985), a música está inscrita entre o ruído e o

silêncio, no espaço onde a codificação social se revela: cada código musical está

enraizado nas ideologias e tecnologias do seu tempo, e ao mesmo tempo ajuda a

produzi-las. Na sua sucessiva relação com a política e a economia de uma dada

sociedade, a música pode ser usada e produzida como um ritual “para fazer as pessoas

esquecerem a violência ou fazer com que as pessoas acreditem na harmonia do

mundo, que existe ordem e legitimidade no poder comercial, (...) censurando outros

tipos de ruído humano“ (Attali, 1985: 19). Ao nível social, estamos sob a influência

de códigos que analisam, marcam, restringem, reprimem e canalizam sons primitivos

da linguagem, do corpo, das ferramentas, dos objetos e das relações entre sujeitos.

Nesta perspetiva, toda a música ou qualquer organização de sons torna-se numa

ferramenta para a criação e consolidação de uma comunidade, ou seja, de uma

totalidade (idem: 6). Nas palavras de Attali, é o que liga o poder central aos seus

sujeitos e consequentemente uma fonte de poder:

“Por isso, a música é profecia, porque o seu estilo e organização económica estão à

frente do resto da sociedade ao explorar, mais rápido do que a realidade material, todas as

possibilidades num dado código. Torna audível o novo mundo que gradualmente se torna

visível, que se irá impor e regular a ordem das coisas”. (idem: 24)

Se a música é um media que influencia a construção de realidades sociais,

então o controlo da configuração do indivíduo, enquanto agente social, é cada vez

mais politizado (Denora, 2000: 162). Entidades privadas e marketeers estão cada vez

mais sofisticados nas suas intenções através da música, o que se torna preocupante

devido ao efeito que o som tem na relação do sujeito com a sua própria realidade.

As técnicas de distribuição musical estão, na era moderna, a contribuir para o

aparecimento de novos sistemas de escuta e vigilância social (Denora, 2000). A

corporação americana Muzak, que vende música estandardizada, apresentava-se como

o “sistema de segurança dos anos setenta, ao permitir o uso da distribuição musical

para a circulação de ordens e valores” (Attali,1985: 8). Este “perfume acústico”

(Schaffer,1977) foi difundido tanto em lojas comerciais como também nos espaços

públicos, com o objetivo de provocar a mobilidade percetiva e motora dos seus

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utilizadores, de acordo com os padrões que os criadores deste tipo de música

definiam. Sendo assim, o que é chamado de música hoje em dia é na maioria das

vezes “um disfarce para o monólogo do poder” (Attali, 1985: 9).

A nossa paisagem sonora tem sido constantemente influenciada pelo uso

privado do som, através da exploração das suas dimensões manipulativas. Estes

discursos calculados providenciam oportunidades de domínio de um determinado

espaço, ao tornar o ambiente sonoro numa mercadoria ou num património privatizado.

Hoje em dia existe música programada em grande parte dos espaços públicos e

privados, facto que influencia, de alguma forma, as dinâmicas sociais, físicas ou

psicológicas53. A eliminação do silêncio, ou a propagação calculada de ruído é feita

progressivamente e sem o consentimento da opinião pública. Em última análise, quem

tem o direito de manipular o nosso ambiente sonoro?

53 Por exemplo, desde o caminhar pelo espaço de um centro comercial, o “para–arranca” no

supermercado, dentro de um elevador ou numa estação do metro.

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PARTE 3

Metodologia do trabalho de campo

3.1. Recolha de Campo

A cidade de Lisboa foi escolhida como o ponto central do trabalho de campo

por haver uma relação direta entre o aprofundamento teórico do projeto e a cidade.

Através do caso de Alfama54, como de outras situações por mim experienciadas antes

do início da investigação, criei um rumo ao nível bibliográfico baseado nos diversos

eventos que vinha assistindo nesta cidade.

O meu interesse da pesquisa passou pelo mapeamento dos significados sociais

do ruído no meio urbano, neste caso na cidade de Lisboa. Desde o início entendi que

seria necessário descobrir casos de estudo diferenciados, para que fosse possível

evidenciar as diversas problemáticas surgidas na fase de análise do estado da arte. A

melhor maneira para documentar este mapeamento não podia acontecer apenas com

um caso explorado ao limite. Neste sentido, tornou-se necessário efetuar uma

pesquisa multissituada, ou seja, em múltiplos locais de observação, devido à

amplitude que o projeto iria implicar, como também pela complexidade em delimitar

a noção de ruído num contexto social e cultural. De acordo com Marcus (1995), este

tipo de pesquisa, “autoconsciente do seu embutimento no sistema-mundo, e associada

com o pós-modernismo, sai dos lugares tradicionais de pesquisa etnográfica para

examinar a circulação de significados culturais, objetos e identidades no tempo-

espaço difuso” (Marcus, 1995:79).

Numa primeira fase, a pesquisa foi delineada através da possível recolha de

dados provenientes das entidades reguladoras de ruído mais importantes,

nomeadamente a Polícia de Segurança Pública e a Câmara Municipal de Lisboa. Estes

54 Ver no primeiro capítulo “ Entre Alfama e Panjim”.

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dados, na sua maioria estatísticos, iriam fornecer as análises destas entidades tanto

sobre o espaço acústico da cidade de Lisboa como outras informações referentes ao

ruído de vizinhança, tornando-se a base essencial para a definição dos lugares de

pesquisa.

Inicialmente a procura dos casos de estudo demonstrou-se complexa por duas

razões. A primeira prendia-se com o lado burocrático das próprias entidades

reguladoras, que se mostraram pouco recetivas para colaborar com pesquisas como

esta. A outra estava relacionada com o facto de que o fenómeno do ruído de

vizinhança, apesar de ser comum, é um assunto pouco discutido pela sociedade civil,

dificultando o acesso direto a certos casos de conflitualidade ao nível doméstico.

Mesmo assim, achei que poderia ter uma boa oportunidade ao começar a investigação

através das entidades responsáveis pela fiscalização do ruído em Lisboa.

Confiante na colaboração da Polícia de Segurança Pública (PSP), através de

uma entrevista formal como primeiro ponto de contacto, defini um questionário

enviado à Direção Nacional, Departamento de Formação, como também ao

Departamento de Relações Públicas da Polícia de Segurança Pública. As perguntas

foram genéricas e a entrevista, sendo ela aceite, seria do tipo semiestruturada, ou seja,

o questionário partia de um plano geral, previamente composto, mas flexível com os

“desvios” pertinentes para esta pesquisa. Numa forma básica o questionário foi o

seguinte:

“Qual o número de queixas relacionadas com o ruído entre vizinhos recebidas pela

PSP anualmente; que zona de Lisboa recebe mais queixas de ruído; qual o procedimento da

PSP nestas situações de conflito; qual a relação do agente de autoridade com a vítima e o

agressor; qual o perfil comum da vítima e do agressor; de que forma são aplicadas as coimas;

como é constituída a base de dados das queixas”55.

Outro objetivo seria a criação de um protocolo com a PSP, no qual eu estaria

disposto a fazer turnos nas esquadras que recebessem o maior volume de queixas

referentes ao ruído de vizinhança, para que desta maneira eu tivesse a facilidade de

presenciar o fenómeno e também de entrevistar os intervenientes desta tríade: a

vítima, o agressor e o mediador (neste caso o polícia). Depois de três meses de

diálogo (burocrático), esta entidade não mostrou qualquer tipo de interesse na

55 Inquérito enviado via e-mail, junho 2012.

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pesquisa, demarcando-se de quaisquer responsabilidades nesta matéria, tal como a

resposta da Chefe Dulce traduz:

“Relativamente ao presente email, encarrega-me o Sr. Subintendente Luís Moreira,

do Departamento de Formação da Polícia de Segurança Pública, de informar V.Ex.ª que,

atendendo a que a matéria é de intervenção residual por parte da PSP, não é possível

satisfazer o seu pedido. No entanto, poderá dirigir o seu pedido para os serviços camarários,

dado à priori reunirem um maior volume de informação nessa matéria.” 56

Esta resposta foi um duro golpe para esta fase da pesquisa. Mas com o tempo

comecei a dirigir a investigação para outras entidades e agentes sociais que de alguma

forma se relacionavam com o fenómeno do ruído de vizinhança.

A minha pesquisa progrediu noutra direção, da qual o ponto de partida foi a

leitura de jornais, maioritariamente online, por serem uma fonte disponível na

internet, obtendo desta forma outras referências para a investigação. Jornais como o

Público, Expresso ou o Diário de Notícias possuem inúmeras notícias relacionadas

com a poluição sonora, ruído provocado por estabelecimentos noturnos, casos

explorados pelas associações ambientais ou mesmo casos de agressão entre vizinhos

nos quais o ruído foi a causa das desavenças. Tive acesso a variados casos de ruído de

vizinhança ocorridos entre 2001 e 2012, em que descobri algumas pessoas relevantes

para o trabalho de campo tal como o Sr. Luís Paisana da Associação de Moradores do

Bairro Alto, o Dr. Romão Lavadinho da Associação de Inquilinos Lisbonense e o Dr.

João Chumbinho dos Julgados de Paz.

Apesar de ter desistido da colaboração da PSP, tentei o apoio de uma outra

entidade reguladora do ruído, neste caso a Câmara Municipal de Lisboa. Após enviar

um requerimento para a Direção Municipal de Ambiente Urbano, a resposta não

tardou e foi agendada uma reunião com um dos representantes deste departamento

municipal, o Eng.º António Cruz57. A partir daqui surgiram outros contatos, sobretudo

de pessoas que telefonavam para a CML para fins de fiscalização do ruído

proveniente de estabelecimentos noturnos, nomeadamente na zona do Bairro Alto. No

caso da Associação de Moradores do Bairro Alto (AMBA), por ser um órgão criado

pelos moradores das freguesias pertencentes a este bairro, facilmente se tornou viável

56 Resposta da PSP recebida via e-mail, setembro 2012. 57 Ver “Regulamento Geral do Ruído”.

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conhecer sujeitos que sofriam com o barulho proveniente dos restaurantes, bares e

outros tipos de estabelecimentos noturnos. A partir da entrevista feita ao Sr. Luís

Paisana, entrei em contato com duas pessoas importantes para o meu trabalho,

nomeadamente a Dona Ivone e o Chefe Costa58. Também comecei a divulgar o meu

projeto de pesquisa em conversas com amigos e conhecidos, e naturalmente os seus

casos pessoais começaram a surgir e a ser discutidos. Tanto amigos próximos como

colegas de trabalho descreveram-me as suas próprias situações, distintas entre si: João

e o vizinho que imita a sua música, Vasco e os galos do pátio da frente, Tejo Bar e as

palmas “esfregadas “, entre outros.

Foi escolhido o método de abordagem qualitativa como o mais adequado aos

objetivos visados, porque desta maneira conseguiria privilegiar o aprofundamento na

pesquisa de campo e no contato direto com as pessoas envolvidas. Nas palavras de

Alves-Mazzoti (2004), as pesquisas que utilizam metodologias qualitativas são

“pesquisas cujo relevo é dado na compreensão das intenções e do significado dos atos

humanos”, seguindo uma tradição interpretativa. Partindo do princípio de que os

sujeitos agem de acordo com valores, crenças e perceções, esta pesquisa, de base

qualitativa, demonstra que o sentido das ações humanas não se dá a conhecer de modo

imediato, sendo necessária uma abordagem mais aprofundada ou seja, que

“compreenda as inter-relações em jogo no contexto em análise” (Alves-Mazzoti,

2004:131).

Após um contacto prévio com os sujeitos, de forma a que pudesse agendar as

entrevistas, foi importante refletir sobre a produção do roteiro dos questionários como

também do tipo de registo audiovisual a ser feito dos espaços em análise. Devido à

complexidade dos objetos de estudo (neste caso a “voz de fora” proveniente da

habitação e do seu espaço envolvente, como também a de “dentro” do próprio

sujeito), as entrevistas teriam que permitir desvios de rota, dependendo da

imprevisibilidade de algum evento sonoro que ocorresse durante a sua realização ou

do possível relato de acontecimentos passados que estivessem guardados na memória

do sujeito. Nesse sentido, as entrevistas foram na sua maioria semiestruturadas,

regidas por um roteiro que praticamente não seguiu a ordem preestabelecida,

protegendo assim os “desvios” que fossem pertinentes para a interação com o

entrevistado.

58 Ver em anexo o caso “Vibração”.

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Para realizar as captações sonoras usei um gravador digital da ZOOM®, sendo

o modelo H2 o mais adequado, tanto por ter uma boa qualidade de captação como

pelo tipo de gravação em estéreo, através de um ângulo de 120 graus, que se tornou

essencial para os registos mais “paisagísticos” durante o trabalho de campo. Ao longo

da pesquisa foi também necessário o recurso à fotografia, para que houvesse uma

contextualização visual dos áudios capturados, tornando-se um dos aspetos mais

importantes para o projeto final59. A câmara utilizada foi a Canon® 400D, com uma

resolução de 10 mega pixéis, suficiente tanto para as recolhas diurnas como noturnas.

A captura de imagens, por ser fotográfica, revelou-se benéfica na recolha de

campo devido à preferência dada à escuta enquanto principal instrumento de

observação e análise dos eventos. Neste sentido, a minha disponibilidade percetiva foi

dominada pela audição, remetendo a visão para um plano mais imaginário: ao querer

recolher com o gravador de som a “imagem em movimento”, acabei por ter ao nível

fotográfico a necessidade de encontrar o “som na imagem” ou seja, vislumbrar os

territórios invisíveis que o som cria no espaço visual. Desta forma tentei capturar os

campos subjetivos que resultam da relação entre som e espaço, ao experimentar

conduzir o meu olhar através do campo acústico em que eu estava inserido. Por outras

palavras, a intenção da recolha fotográfica não passou por um interesse objetivo ao

nível da composição visual dos espaços em análise, ou seja, pela tentativa de fazer um

registo neutro e ilustrativo da imagem destes espaços, mas foi o resultado da

conjugação entre a minha localização no espaço físico, disponibilidade percetiva no

momento da captura e do contexto sociocultural do lugar em análise60.

Mais do que delimitar o trabalho de campo de acordo com a visão de certos

pesquisadores que me influenciaram neste tema, o lado subjetivo deste estudo exigiu

um constante exercício da sensibilidade de escuta durante a análise de certos eventos

(por via dos “passeios sonoros”), pelo facto de o som ser um fluxo instável ao nível

do espaço e do tempo em certos ambientes sociais e culturais. Sendo assim, a minha

pesquisa no terreno tornou-se uma experiência pessoal, devido à desconstrução de

certos significados que eu enquanto sujeito criei ao longo da minha vivência em

certos meios urbanos, sociais e culturais, como também pelo facto de eu ser produtor

musical e de ter criado um treino auditivo específico, influenciado pelo meu ambiente

de trabalho.

59 Ver capítulo “Instalação”. 60 No ponto “ Problemáticas” faço referência à forma como essa captura visual foi realizada.

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3.2. Problemáticas

Ao observar a diversidade de casos encontrados referentes ao ruído de

vizinhança, vividos tanto por pessoas do meu convívio social quanto por sujeitos que

conheci ao longo do projeto, fiquei confiante em relação ao processo de recolha de

campo. Porém, a familiaridade com estes sujeitos e com alguns espaços que eu

próprio já conhecia antes mesmo da definição do meu projeto, poderia causar uma

influência tanto no meu olhar como na própria escuta dos eventos. Sendo assim, foi

importante entender de que maneira seria possível encontrar um caminho imparcial na

recolha de campo, distanciando-me do “amigo”, como também do exercício ao nível

da sensibilidade da escuta para conseguir gerir o distanciamento para com os espaços

acústicos que eu previamente conhecia. Sendo assim, foi necessário, antes da recolha

audiovisual, fazer diversos “passeios sonoros” nos locais em análise, de forma a

conseguir “descomprometer” os meus sentidos (Westerkamp,1974) no momento da

captura.

Outro ponto sensível na recolha de campo seria a relação com os “agressores”

ou seja, os produtores de ruído. Em termos acústicos, a noção de culpa perante um ato

invasivo para com o espaço alheio é dificilmente definida, sendo simplesmente

descrita em decibéis pelo Regulamento Geral de Ruído. Em todo o caso, para haver

uma ampla discussão deste tema seria necessário ouvir todas as vozes implicadas,

independentemente da instabilidade de diálogo com pessoas que por vezes se

demonstram intransigentes em “baixar o som”. Podemos afirmar que este facto, de

não respeitarem os limites da propriedade alheia, poderá ser um indício de falta de

abertura para o diálogo, nomeadamente quando à partida, aos olhos da lei, já existe a

colocação deste tipo de sujeito enquanto infrator. Esta hipótese de impossibilidade de

diálogo ou de uma recolha mais detalhada de informação por parte do agressor não se

mostra à partida impeditiva, pelo facto de que o lado da “vítima” (com quem

facilmente terei contacto devido à sua necessidade de partilha) parece suficientemente

esclarecedor para o projeto, no sentido de já permitir a análise da influência do som

no sujeito e das implicações socioculturais que influenciam a sua definição de ruído

de vizinhança.

Ao nível da captação no terreno tive por vezes a dificuldade em conciliar o

registo áudio com o fotográfico, pelo facto de possuir instrumentos distintos para

ambas as recolhas, recorrendo desta forma à colaboração do meu colega João Vicente.

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Músico profissional e amante da fotografia, a assistência do João pareceu-me

interessante devido a esta inversão dos papéis: sendo uma pessoa habituada a escutar

e produzir som, ele teria que captar visualmente essa produção, o que o obrigaria a

compor a imagem com essa “matéria invisível” que provém da relação entre o som e

o espaço físico. A proposta era que, nesta composição das imagens, João atendesse

mais às formas como o som moldava o espaço do que se preocupasse com o

enquadramento visual do entrevistado ou da fonte emissora de ruído. Inicialmente a

proposta foi desafiadora, apesar da relutância do João “fotógrafo” que desejava

enquadrar a imagem de forma ilustrativa e objetivar a composição visual. Propor a um

produtor de imagens para capturar cenários visualmente pobres mas com riqueza ao

nível acústico demonstrou-se pouco motivador, mas pareceu-me estimulante este

exercício ao nível da sensibilidade percetiva do fotógrafo. Por vezes, João “entrou”

nos registos de áudio com o “clic” da máquina, em momentos da entrevista

acusticamente relevantes. Com pouca sensibilidade auditiva no momento da captura,

acabei por condicionar a sua execução, ao propor que as fotografias fossem

produzidas antes ou depois da entrevista, de forma a evitar a sua contaminação61.

Ao nível da escuta, senti que foi influenciada pela minha localização no

espaço e pelo meu olhar perante um dado evento sonoro. Mesmo buscando sempre

analisar objetivamente o espaço físico e emocional do sujeito, eu estive sempre

envolvido pelos sons que escutava, tornando-se complexo deslocar-me da sua

influência devido às configurações acústicas, sociais e culturais de um dado lugar,

desestabilizando desta maneira a minha capacidade percetiva. Ao contrário dos outros

órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser

fechados se quisermos enquanto os ouvidos estão sempre abertos. Os olhos podem

focalizar e apontar à nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do

horizonte acústico, em todas as direções (Schaffer, 1977).

Sendo assim fui obrigado a levantar a seguinte questão ao longo deste

processo: como é que um investigador consegue exercer “distâncias” de observação

no terreno, quando o som tem um efeito que influencia os nossos sentidos e

consequentemente a forma como utilizamos os instrumentos de análise? Mais do que

tudo, penso que é assumindo à partida que um evento sonoro tem um caráter subjetivo

inerente e que os resultados dessa observação provêm de uma escuta

61 Dependendo também da densidade sonora no momento do registo, houve casos, como no

Bairro Alto, em que não houve quaisquer problemas devido ao volume do som nas ruas.

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instrumentalizada pelo observador, sendo então uma análise parcial dessa mesma

realidade. Será no aprofundamento de novos métodos de recolha de campo, através de

uma abordagem multidisciplinar, que poderemos retirar conclusões mais amplas mas

que em simultâneo não menosprezem a análise interpretativa do observador.

É no constante diálogo entre a teoria e a prática que podemos evoluir no nosso

trabalho de campo, mas é também na atenção das riquezas das nossas ferramentas

internas, como é o caso da nossa perceção auditiva, que poderemos dar um maior

contributo para o esclarecimento de fenómenos tão complexos como vislumbramos

nas situações de ruído de vizinhança.

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PARTE 4

Casos

4.1. Bordão

Hugo é finalista do mestrado de arquitetura e músico amador. Reside neste

momento na freguesia da Pontinha onde passou a viver sozinho a partir de 2003, após

a sua mãe ter mudado para outro apartamento no mesmo bairro. A sua casa possui três

divisões, onde criou um atelier e o seu estúdio de música. Hugo passa muito tempo

em casa, entre os seus trabalhos de arquitetura e produções musicais, recebendo quase

todos os dias a visita de amigos ou colegas da faculdade. O apartamento situa-se na

cave do prédio. A parede da sua sala é contígua a uma rua muito movimentada no

período diurno. A vizinhança, tal como a freguesia, é constituída por uma população

na sua maioria idosa, havendo uma grande concentração de comunidades imigrantes,

provenientes dos PALOP e do leste da Europa. Na parede da sala Hugo tem acesso às

dinâmicas acústicas do seu espaço envolvente, criando o seu próprio mapa

imaginário, tanto da sua vizinhança, como da rua contígua ao seu prédio, tal como o

próprio refere:

“O meu prédio está colado a umas escadas, ou seja uma janela é quase ao nível do

chão e a outra janela está quase a dois metros de altura (...), isto aqui é uma cave, eu oiço tudo

o que se passa aqui, ainda por cima isto é uma rua movimentada da Pontinha: tem um centro

de saúde, duas oficinas, dois ou três cafés, uma padaria e um campo de futebol. Durante o dia

é barulhento, oiço muitos carros a apitarem porque isto é uma rua pequena e estão sempre a

parar carros em segunda fila. Oiço as pessoas mais idosas a falarem na rua de manhã. Como

estou a dormir, às vezes acordo ao falarem muito perto da janela, mas como uma pessoa está

aqui sozinha, por um lado acabo por sentir-me seguro porque sei que estou rodeado de

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pessoas. À noite oiço muitas vezes pessoas a subir a correr, às quatro da manhã. Nunca

aconteceu nada, mas por vezes assusto-me.”62

Hugo tem a possibilidade de escutar as dinâmicas da rua devido à localização

do seu apartamento, mas também através da sua disponibilidade percetiva para com

os sons que o rodeiam. Dois fatores particulares contribuem para a hiperconsciência

da sua forma de escutar: o primeiro prende-se com o facto de que ele próprio sente a

vulnerabilidade da sua exposição, devido ao fácil acesso exterior às janelas da sua

sala, o outro está relacionado com o seu sono, tanto por ser leve como por acontecer

em horários desconcertados com os da sua vizinhança:

“Eu começo a fazer barulho quando as pessoas se deitam, páro de fazer quando eles

se levantam e eles começam a fazer quando eu me deito. Por exemplo, há uns banquinhos

fora do meu prédio, mais ou menos junto à minha janela, e há uma escola secundária aqui

perto e quando é a hora do almoço os miúdos sentam-se ali e fazem barulho. Mas como é uma

da tarde eles podem fazer barulho àquela hora, e eu não me posso queixar. Tenho o sono

relativamente leve (....), acordo com facilidade com qualquer barulho na rua e no prédio.“

Desde o bater constante das portas dos carros estacionados até ao camião do

lixo que passa sempre à mesma hora da noite, os sons do bairro mapeiam o seu espaço

temporal, tendo em conta que estes eventos acontecem sempre na mesma altura do

dia. Hugo refere ainda que um dos sons característicos do seu espaço exterior são as

conversas no telefone público, por volta da hora do jantar, devido ao facto de que

muitos estrangeiros residentes no bairro telefonam aos seus familiares.

Questionado sobre os sons que mais o incomodam, ele comenta que a chuva é

um dos ruídos que mais o perturba:

“ Isto como é uma cave inunda facilmente, e há um som que me stressa muito, que é o

som da chuva (...). Tu pelo som percebes se está a chover muito ou a chover pouco, e quando

começa a chover muito eu começo logo a ficar com medo que isto inunde, a partir de uma

certa intensidade da chuva.”

62 Entrevista concedida na sua residência, outubro 2012.

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Um som que é recorrente nas imediações da sua casa é proveniente dos

adolescentes que andam de skate. Como antigo praticante, estes sons proporcionam ao

Hugo uma ativação da sua memória, ao conseguir imaginar os movimentos que os

jovens estão a executar:

“Miúdos de skate estão sempre aqui a passarem com o skate no corrimão. Esse

barulho até tolero porque andei de skate, acho piada ao barulho e tanto que eu sei reconhecer

logo. Reconheço quando estão a andar com as rodas na calçada, (...) consigo visualizar só de

ouvir porque reconheço perfeitamente os sons.“

Podemos chamar a este efeito sonoro proveniente dos skates de anamnésia,

descrito por Augoyard como um efeito semiótico que “reaviva a memória

involuntária, através da escuta do ouvinte e pelo significado dado a um determinado

som” (Augoyard e Torgue, 2006: 21). Ao nível percetivo, o som age como uma

chave, abrindo portas para nos reunirmos com o passado, ao conseguir estimular as

imagens que nós escondemos nas várias profundidades da nossa psique. Neste

sentido, um ambiente particular pode assim evocar memórias do passado (idem: 21).

Ao confrontá-lo com a ideia de que a posição da sua casa perante a rua traz a

possibilidade de ele ser um observador invisível, ele comenta:

“Eu sei o que acontece, mas ninguém sabe que eu sei (...). Eu estou na cave, estou no

chão, eu sinto tudo.”

Uma das primeiras referências que Hugo fez dos sons da sua casa foi da sua

campainha desligada. Este corte com o exterior proporcionou-lhe o poder de escolher

com quem comunicar, tendo em conta que antes era obrigado a exercer uma

negociação incerta: o som da campainha invadia o seu espaço, intrometendo um

sujeito à partida desconhecido. Sendo assim, ao delimitar a sua distância para com o

outro, renunciou a qualquer contacto indesejado em certos períodos do dia:

“Eu tinha uma campainha, (...) O botão para abrir a porta do prédio prendeu e estava

há duas horas a fazer ‘trrrrrrrrrrrr’63 e já estava a queimar o circuito e os outros moradores

pensavam que era a minha campainha. Mas afinal não era, desmontei-a e nunca mais voltei a

63 Referência onomatopeica do Hugo sobre o som da campainha.

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montar (...). A campainha é algo relativamente desnecessário. As pessoas hoje em dia têm

telemóvel, e eu sei a partir do telemóvel se estão à minha porta ou se querem contactar

comigo, porque quem usava a minha campainha era a publicidade, todos os dias. Por um lado

é bom porque metade das vezes não me chateiam.“

Desde os passos do vizinho de cima, tarefas domésticas, ou do funcionamento

dos canos do prédio, Hugo tem a perceção do seu espaço envolvente. A partir da

escuta, Hugo refere que sabe, por exemplo, que a senhora de cima está mais velha,

por ter uma locomoção cada vez mais lenta, ou qual a faixa etária de quem está a

caminhar nas escadas do prédio:

“Percebe-se perfeitamente quando são miúdos a descer a escadas, descem a correr (...)

os miúdos têm um ritmo, os adultos têm outro, e depois acima dos sessenta anos têm outro

ainda, um ritmo que vai ficando cada vez mais lento. Os sons identificam as pessoas.“

Ao perguntar sobre a relação que tem com os vizinhos, ele descreve que

melhorou ao longo dos anos, tendo em conta que, quando começou a viver sozinho,

ouvia música com um volume elevado à noite, até ao momento em que começou a

receber as primeiras queixas:

“Uma vez liguei as colunas às duas da manhã e a senhora lá de cima veio cá abaixo

por causa das frequências graves. Quando o sistema de som está no chão a estrutura do prédio

vibra (...) as pessoas sentem as vibrações, então a primeira coisa que fiz foi tirar o subwoofer

do chão e pôr numa mesa. Às vezes usava esferovite, que absorve o som (...). Tive que

adaptar-me para viver como eu quero.“

O Hugo comenta que as reclamações dos seus vizinhos serviram de emenda,

no sentido em que a partir de certa hora tenta reduzir o barulho, desde diminuir o som

da aparelhagem até advertências aos amigos que o visitam:

“Estás entretido e não te apercebes e começas a levantar a voz, eles (os amigos)

começam a levantar a voz e às tantas estás a exagerar e já me aconteceu estar com dez

pessoas, tudo a falar e vir a mulher do prédio do lado bater nos estores, a dizer para eu parar

de fazer barulho senão chamava a polícia. Também costumo fazer som com uns amigos, um

toca baixo e o outro guitarra. Houve alguns avisos (dos vizinhos do lado) no verão, mas

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mesmo tentando controlar o som era difícil, porque por exemplo o som do baixo propaga-se

mais facilmente nas estruturas (do prédio). Nunca me vieram avisar diretamente mas através

da minha vizinha, porque eu não tenho campainha. Nunca chegou a vir cá a polícia. As

pessoas podem avisar que eu paro imediatamente. Se eu estou a fazer barulho foi sem dar por

isso, se eu me apercebo que estou a fazer eu paro logo. Eu tento respeitar ao máximo.”

Ao perguntar as preocupações que hoje em dia surgem em relação ao seu

ruído, Hugo descreve a forma como regula a responsabilidade para com a vizinhança

quando produz música:

“Eu tenho aqui um valor: as minhas colunas trabalham entre o volume 0 e 20. Eu

nunca vou ao valor 20 (...), 12 ou 13 é suportável, ás vezes 15 durante o dia para escutar as

minhas próprias músicas, 20 é insuportável para o tamanho da sala. A partir da meia-noite as

colunas têm que estar no valor 4, é o valor que eu sei que não incomoda as pessoas do

apartamento do lado. Isto são prédios com mais de 40 anos, e isto tem um mau isolamento

acústico. Por exemplo, se eu estiver com tudo em silêncio eu oiço os vizinhos e os vizinhos

ouvem-me. Eu oiço o vizinho a levantar-se da cama. Eu até o oiço a estalar os joelhos quando

se levanta.“

Observei então que a sua involuntária intromissão no espaço dos outros é

constantemente negociada, respeitando por um lado a relação formal que tem com a

vizinhança e por outro protegendo o seu espaço doméstico enquanto santuário das

suas dinâmicas e partilhas íntimas (Labelle, 2010). Neste sentido, Hugo demonstra as

responsabilidades perante o sossego da sua vizinhança mas também o seu direito a

ouvir música:

“Ás vezes tenho um bocado de stress porque não quero incomodar ninguém, nem

quero que se ponham a chamar a polícia. Os vizinhos do meu prédio não vão chamar a

polícia, porque eu os conheço bem, e se tiverem alguma coisa a dizer dizem, que eu paro

logo. Às vezes são vizinhos que estão numa casa alugada, gente mais nova que podem ser

menos tolerantes e com quem nunca estou em contacto por serem do prédio do lado.”

A música ouvida pelo Hugo funciona como uma parede sonora, ao bloquear os

sons da rua, mas ao mesmo tempo dá-lhe a estabilidade ao nível de significados no

seu interior doméstico. Das visitas que fiz à sua casa o som foi sempre um fluxo

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constante, não havendo quebras na sua circulação. Desde o recurso a listas de

reprodução de música no computador, ou por vezes com a televisão ligada, o som

dissimula a paisagem sonora imprevisível proveniente do exterior:

“Só oiço a minha música, e os sons da rua passam a ser ruídos lá no fundo.”

De acordo com Augoyard e Torgue, este efeito sonoro pode ser definido de

“máscara”. Ao nível acústico, o efeito de máscara é descrito como a existência de um

som que, baseado na sua intensidade ou frequência, consegue apagar a perceção de

um outro som (Augoyard e Torgue, 2006: 66). No caso do Hugo, pelo facto de viver

num espaço exposto tanto para a rua como para a sua vizinhança, este efeito torna-se

favorável ao proporcionar-lhe um ambiente sonoro constante. Sendo assim, a máscara

tem uma função psicológica ao criar isolamento para com os espaços acústicos

indesejáveis.

Hugo tem o seu computador em constante funcionamento, entre o uso da

internet e a produção de trabalhos de desenho gráfico. Por este fator, o computador

necessita de um sistema de refrigeração para não sobreaquecer:

“Eu tenho este computador, está sempre ligado, tenho uma ventoinha para esfriar o

computador e que está sempre a fazer este barulho ‘vvvvvvv’64, o que me obriga (à noite) a ter

o som mais alto que o normal para abafar o som da ventoinha. Tem que ser, a gente tem que

sacrificar algumas coisas para obter outras. No valor 4, tu notas que a ventoinha se torna

incómoda, então eu aumento um pouco as colunas.“

O efeito de máscara que a música exerce para com o exterior da sua casa é

usado também para bloquear o ruído do ventilador de refrigeração, som esse que cria

o efeito mais comum nas cidades, conhecido como drone ou bordão. Este efeito

refere-se a uma camada sonora constante, num tom estável e sem variações na

intensidade. No dia a dia, este efeito aparece normalmente na forma de um zumbido,

caracterizado por ser um “som incómodo e prolongado, sendo percecionado tanto nas

lâmpadas fluorescentes e sistemas de ventilação dos prédios mais modernos, como no

tráfego rodoviário ou linhas de alta voltagem” (Augoyard e Torgue, 2006: 42). Como

refere Augoyard, alguns bordões “entranham-se nos nossos hábitos percetivos do dia

64 Referência onomatopeica do Hugo sobre o som proveniente da ventoinha.

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a dia a um ponto que uma simples modificação nas suas características pode até

resultar em confusão” (idem:42). Presenciei este facto quando o Hugo desligou o

ventilador. Pessoalmente, senti nesse momento que tinha perdido a noção da presença

deste som, devido ao hábito de o escutar permanentemente. Ao ter desligado, a

sensação que tive foi de vazio e da necessidade de cobrir este “novo silêncio”, por

exemplo conversando insistentemente com ele, devido ao constrangimento que estava

a sentir nesse momento.

Os bordões a que estamos sujeitos podem levar à necessidade de adicionar

novos bordões, para desta forma podermos controlar o ambiente sonoro (idem: 41).

No caso do Hugo, a música e a televisão ligada servem como forma de dar um

significado ao seu espaço privado, com o objetivo não só de rejeitar os sons da rua

mas também o som da ventoinha, ilustrando assim a sua necessidade de cobrir o

bordão a que está sujeito diariamente. Este efeito sonoro está introduzido em todas as

nossas atividades diárias através da sua presença contínua e dissimulada. Através de

um estudo realizado pela CRESSON65, que exigiu a análise da frequência da rede

elétrica de um dado espaço66, estes investigadores pediram a diferentes indivíduos

para cantar espontaneamente uma nota musical. O tom cantado pela maioria dos

inquiridos acabou por corresponder ao tom da frequência dessa rede. No caso do

Hugo, as suas composições musicais tendencialmente são na tónica de ré menor.

Poderá a exposição excessiva ao som do ventilador ser a base de inspiração tonal das

suas composições?

Numa breve conversa sobre a sua produção musical, Hugo referiu que os

novos estilos de música eletrónica são cada vez mais produzidos por pessoas como

ele, ou seja sem formação musical e em estúdios caseiros, devido ao fácil acesso a

ferramentas de criação digital, nomeadamente através do computador. Ele diz que

existe, no seu caso, um condicionamento acústico do seu lar na forma como escuta,

devido à forma como os elementos sonoros são refletidos num espaço que possui

certas características arquitetónicas67. Para além disso, a calibração do seu sistema de

65 Le Centre de recherche sur l’espace sonore et l’environnment Urbain (CRESSON) é um

laboratório de pesquisa da Direction de l’Architecture et du Patrimoine (BRAUP), criado na l’ Ecole

Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble (ENSAG) . 66 Na Europa a frequência da rede elétrica é de 50hz e nos Estados Unidos da América

encontra-se nos 60hz. Apesar destas frequências serem quase inaudíveis, elas possuem uma tonalidade.

No caso da frequência situada nos 50hz, musicalmente situa-se entre sol e sol#. 67 O seu estúdio está montado na sala de estar, mas ocupando somente metade dessa divisão e

sem um isolamento acústico normalmente feito nos estúdios profissionais. Estes isolamentos são

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som (que dá predominância às frequências baixas), influencia a sua perceção que vai

ser consideravelmente diferente se, por exemplo, escutar noutros monitores de som.

Nessa perspetiva podemos questionar se o facto de os sistemas de som dos

bares e discotecas, que cada vez mais privilegiam a emissão de frequências baixas,

pode ser em grande parte um reflexo da paisagem sonora do nosso quotidiano. Os

“novos” produtores musicais, tal como os seus ouvintes, possuem o prazer de criar e

escutar certas atmosferas que em muito lembram eventos sonoros das cidades, através

do uso de sonoridades de raíz industrial e tecnológica. Estilos musicais como

Dubstep, Techno ou Drum n’ Bass, que atualmente dominam os gostos musicais de

uma grande parte das gerações mais jovens, retratam ambiências urbanas tanto ao

nível rítmico como de dinâmicas (através da velocidade rápida ou do “para-arranca”),

como ao nível composicional (através de climas densos e obscuros e uso de

harmonias melancólicas). Será uma consequência do domínio da paisagem sonora

urbana em que o sujeito está imerso no seu dia a dia?

Ao questionar-se sobre a sua rotina, Hugo refere que apesar de ser inconstante,

tem certas práticas que foram criadas ao longo dos anos. Um dos exemplos que

transmitiu foi o do seu hábito de leitura nos transportes públicos, referindo-se aos

sons do metropolitano que o ajudam a concentrar-se:

“Faço o caminho para a faculdade de metro. Uma coisa que me habituei muito foi

ouvir o barulho do metro para ler um livro. Aquele vibrar do metro e do barulho das

carruagens quase me envia um sinal ao cérebro. Sabe bem ler assim.“

No seguimento desta conversa, Hugo referiu que uma vez tentou estudar em

casa para um exame da faculdade em silêncio (quase) absoluto, mas que acabou por

adormecer devido à falta de estímulo musical que desde sempre o habituou nas tarefas

mais funcionais.

Podemos referir que o uso de sons para fins de concentração, como em casa

com a televisão ligada “lá no fundo”, na rua com o uso do IPOD ou no caso do Hugo

com as vibrações da carruagem do metro, podem ser sintomas de excesso de

exposição ao ruído, que cada vez é mais nítido na população urbana. Pesquisas sobre

criados para que a propagação do som seja mais fiel à emissão sonora, de forma a que as características

do espaço não contaminem a audição. Na construção de um estúdio de som tem que ter-se em atenção

tanto as dimensões do espaço (devido à reverberação), como os revestimentos das suas paredes

(devido à forma como certo tipo de materiais usados refletem o som no espaço).

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o distúrbio de deficit de atenção (DDA), sugerem que quando um ruído de fundo entra

num sistema cognitivo desordenado, como é o caso de pessoas com falta de

concentração, esse sinal é estabilizado e amplificado, prevenindo desta maneira que

este se perca entre outros sons (Prochnik, 2010: 77). Por outras palavras, um som

estável e controlado por um indivíduo pode mascarar a distração de outros sons. No

caso do Hugo, o sinal constante da locomoção da carruagem “afunila” a sua escuta,

estabilizando a sua perceção e concentração.

Com o aumento progressivo da poluição sonora, que adaptações está o ser

humano a sofrer, e em especial as gerações mais novas, aos ambientes acústicos que

dominam nas cidades? O facto de os centros urbanos serem altamente ruidosos, e de

cada vez mais as pessoas ampliarem o som nos seus ambientes, pode contribuir para o

aparecimento das condições essenciais do DDA na população em geral. Se isto for

verdade, um número acrescido de pessoas, cujo cérebro precisa de ruído para

funcionar otimamente, podem descobrir que têm que aumentar o volume perante o

ruído feito pelos outros (idem: 77-78).

Uma outra questão sobre a qual gostava de refletir tem, neste caso, a ver com

os “horários acústicos” a que o Hugo está sujeito. Através das expressões sonoras que

acontecem quase sempre na mesma altura do dia, os sons do espaço exterior ao seu

apartamento acabam por impor, regular e disciplinar a sua rotina doméstica,

obrigando-o a viver segundo os mesmos horários, como se, na verdade, a sua vida

estivesse rodeada de alarmes. O que sente o Hugo quando escuta atividade humana à

uma da tarde ao lado da sua sala ou os carros a buzinar, estando ele a dormir? Sente-

se culpado por estar na cama? E ao escutar o camião do lixo à meia-noite, não seria

um aviso que já é hora de ir dormir?

A paisagem sonora urbana evidencia esse diálogo regimentado entre as

configurações da vida privada e as geometrias das instituições públicas, a partir dos

sinais sonoros do trânsito, alarmes ou das vozes “eletrónicas”. Neste sentido, a rua

contígua ao apartamento do Hugo torna-se um espaço mediador entre as estruturas

formais dos sistemas urbanos e os movimentos informais da vida privada” (Jacobs,

1962: 68 in Labelle 2010: 91). O corpo, fugindo às narrativas impostas pelo espaço

urbano, encontra-se em constante negociação com os padrões ambientais e sociais em

que vive. Sendo assim, o indivíduo intervém nesse diálogo do corpo com o espaço a

partir das suas próprias práticas. Desde o uso do IPOD, telemóveis ou no caso do

Hugo com o recurso da música e televisão para mascarar os sons alheios à sua

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paisagem sonora doméstica, estes “novos” sinais introduzem-se na topografia auditiva

do meio urbano, misturando-se com os fluxos e ritmos que transitam entre a liberdade

e o “aprisionamento” do sujeito na cidade.

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4.2. Vibração e proximidade

Após um breve contato telefónico dias antes, a Dona Ivone aceitou ser

entrevistada em sua casa, numa quinta-feira à noite. Situado no terceiro e no quarto

andar68, o seu apartamento está virado para duas das ruas mais movimentadas do

Bairro Alto. Aposentada, trabalha como voluntária no Hospital de Santa Maria e

frequenta a Faculdade de Belas Artes no curso de Pintura.

Uma das minhas primeiras interrogações, ao ter ouvido o barulho proveniente

dos bares e do convívio de rua mesmo por baixo do seu prédio, foi como é que esta

senhora lidava com a situação. Dona Ivone respondeu que usava tampões, mas que

não conseguia dormir por causa do “tum-tum-tum”. Esta onomatopeia retrata o bombo

grave da música proveniente dos bares contíguos a sua casa. Para Dona Ivone, este

som tornou-se um fator de incómodo pelo facto de as frequências baixas facilmente

percorrerem as fundações do prédio, através da vibração, ao contrário das frequências

mais agudas, como as conversas das pessoas na rua, que normalmente não a

incomodam, devido à eficácia dos tampões no bloqueio deste tipo de som. O efeito de

repetição destas frequências baixas é também um fator que perturba o seu sono, no

qual refere que:

“A sensação é de que parece que sinto uma coisa aqui assim por dentro (...), parece

que fico com aquele som no cérebro, é uma coisa infernal.”69

De acordo com Jean-François Augoyard e Henry Torgue, o efeito de

repetição, ao nível de distúrbios de vizinhança, é um critério chave de incómodo

devido à continuidade de um som e ao ritmo constante desse sinal. Desde o ladrar de

um cão até aos sons de passos no andar de cima, este efeito sonoro provoca, tal como

acontece com a Dona Ivone, uma invasão do seu estado psíquico devido à sua

assinatura de tempo repetitiva (Augoyard e Torgue, 2006: 97-98). O facto de serem

ondas de baixa frequência fazem com que o seu corpo seja também afetado, tendo em

conta que entre os 0 e os 400hz as ondas sonoras materializam-se e provocam a

vibração de materiais. Uma exposição prolongada a este tipo de frequências pode ter

consequências físicas e psicológicas.

68 O seu apartamento possui uma água-furtada que se tornou o seu quarto de dormir. 69 Entrevista concedida no seu apartamento, entre julho e setembro 2012.

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Têm sido desenvolvidas nas ciências médicas inúmeras investigações sobre a

influência do ruído nos indivíduos. Os estudos referentes às frequências baixas têm

sido pouco conclusivos devido à sua complexidade de avaliação e aos interesses

económicos inerentes, havendo assim pouco avanço nesta matéria (Antunes, 2009).

Sendo assim, a perda auditiva ainda é o efeito mais estudado na Medicina, sendo o

único considerado no Regulamento Geral do Ruído. Apesar de existirem instrumentos

de avaliação e quantificação dos efeitos do som que levam à surdez, não existem em

relação aos efeitos provocados pela exposição a frequências baixas. Tal como Marco

Lourenço Antunes refere:

“Os métodos tradicionais de medição do ruído avaliam somente a energia acústica,

que ocorre às frequências que causam surdez (400-8000 Hz). Assim, os ruídos de baixas

frequências, definidos como fenómenos acústicos que ocorrem a frequências inferiores a 400

Hz nunca são avaliados, dado que se sabe não serem responsáveis pela surdez.” (Antunes,

2009, disponível em http://repositorio.ul.pt).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (2002), os efeitos de uma

exposição excessiva ao ruído são múltiplos: despertares longos e frequentes, aumento

do número de mudanças de fases do sono, aumento do número de micro-despertares e

alterações da estrutura do sono. Os problemas auditivos não são os maiores efeitos

provocados pelo ruído no organismo (Antunes, 2009). De acordo com Raquel Castro,

tem sido desenvolvida em Portugal uma investigação pioneira sobre as consequências

da exposição ao ruído de baixa frequência, conhecido como doença vibro-acústica.

Este estudo, liderado pelo médico Nuno Castelo Branco, tem demonstrado que apesar

de essa exposição não nos causar surdez, e de na realidade nós nem conseguirmos

ouvir esse ruído, “é passível de causar patologias cardiovasculares e respiratórias e

aumentar a propensão para a epilepsia” (Castro, 2007, disponível em

http://academia.edu/344330/Para_uma_Introducao_a_Ecologia_Acustica). Na

perspetiva de Rabat (2007), a maioria dos efeitos nocivos do ruído não afetam

somente a audição: podem surgir na contínua exposição a limites sonoros permitidos

na lei. Tais efeitos incluem distúrbios cardiovasculares e endócrinos, como também

perturbações psicológicas e distúrbios do sono que podem levar a problemas

psiquiátricos (Rabat A., 2007 in Antunes, 2009, disponível em http://repositorio.ul.pt).

Desta forma, compreendi a resposta da Dona Ivone, ao ser questionada sobre

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a opinião médica acerca das suas queixas ao nível de saúde. Desde enjoos, insónias

até à falta de motivação em atividades dentro do lar, o seu médico aconselhou-a “a

comprar um aparelho de medição, e depois fazer a medição ao mesmo tempo que os

fiscais da Câmara ”. Esta sugestão do médico demonstra que ainda existe uma falta de

objetividade na medicina sobre as consequências de uma excessiva exposição às

baixas frequências, apesar de reconhecer os sintomas físicos e psíquicos.

Simultaneamente, ao sugerir a compra do aparelho de medição de ruído o médico

evidenciou a falta de eficácia da lei a respeito de certos ruídos que, apesar de

causarem mal estar na população, não são vistos como nocivos para a saúde pública.

Dona Ivone mencionou que a sua vizinha já tinha exigido uma medição de

ruído na sua rua. Os fiscais da CML demoraram quatro anos para se pronunciarem,

decidindo pelo arquivamento dessa reclamação. Tendo sido feita uma nova queixa, os

fiscais foram recetivos e efetuaram a medição. Dona Ivone descreve que:

“Vieram três indivíduos da Câmara, antes de fazerem as medições foram falar com os

bares (...). No momento da medição, os bares puseram o som mais baixo que o normal (...).

Varria a Câmara de ponta a ponta, não deixava lá ninguém. Porque sim senhor há bares mas

tem que haver regras, tem que se lembrar que há moradores, (...) isto há grandes interesses

por detrás disto tudo. Eu fazia uma queixa, mas pra quê? Eles arquivam-na!“

Dona Ivone contactou com a associação de moradores local, mas como ela

comentou:

“Prometem e ninguém faz nada. Se há reuniões ninguém vai, ou porque um tem um

filho que trabalha no bar, outra porque trabalha no bar, outra porque tem um bar.”

Ao questionar sobre estas situações existentes no Bairro Alto, Luís Paisana,

presidente da Associação de Moradores do Bairro Alto (AMBA), comenta que:

“Existem conflitos entre moradores, porque há moradores que trabalham na vida

noturna comercial e acham que a AMBA é contra o comércio. Veem o seu emprego em

causa, são agressivos, mas nós somos a favor do comércio mas justo.“

A AMBA, com dois anos de existência e 200 associados, tem debatido a

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situação através da sensibilização dos moradores para o facto de que ainda vale a pena

fazer alguma coisa pelo bairro, apesar da descrença generalizada. Alguns acham, nas

palavras de Luís Paisana “que é impossível alterar a situação, outros têm receio de

que se se pronunciam lhes riscam o carro ou são atacados (...) até porque não estamos

a falar de riscos teóricos mas riscos reais.“ Houve casos de alguns moradores que

foram aconselhados a saírem de suas casas porque a polícia não garantia a sua

segurança, visto terem feito uma denúncia de um estabelecimento noturno e estas

serem as consequências. Dona Ivone tentou por algumas vezes conversar com os

donos dos bares e a resposta obtida foi, tal como refere:

“Eles diziam que pagavam para ter música, e eu dizia que pagava para ter descanso

(...). Agora eu já não falo, porque eles depois se ficam a rir e depois eu enervo-me e fico

doente.”

Luís Paisana defende que é mais fácil, através da associação de moradores, ser

feito um “kit de reclamação”, porque desta maneira preparam uma reclamação de

todos os moradores na qual a Câmara Municipal se baseia para tomar medidas

porque, tal como o presidente da AMBA argumenta, muitas vezes a “CML quer tomar

medidas, vai à procura de reclamações para contestar e estas reclamações não têm a

formalidade exigida”. Ao questionar sobre a atuação da Câmara Municipal, ele refere

que:

“Talvez seja pesado dizer isto mas, há muitos interesses, interesses que afetam a

própria CML, que de certa forma tenta ter uma posição a favor dos comerciantes e moradores

e assim não contentam ninguém.”

Sobre a relação da AMBA com a associação de comerciantes do bairro, ele

descreve que é tensa, pelo facto de, tal como confessou:

“ (...) não haver interesses comuns, inclusive têm um blog agressivo contra os

moradores, onde nos chamam extremistas.“

Luís Paisana relata que a vida noturna é muito movimentada, como é tradição

naquele bairro, mas que neste momento, com o aparecimento de novos bares e

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estabelecimentos comerciais, incluindo lojas de conveniência, e com venda direta de

álcool, provocam situações de muito ruído devido ao consumo na rua.

Num estudo efetuado em França, no verão de 2008, por pesquisadores da

Bretanha do Sul, descobriram que quando a música é tocada nos 72 decibéis, o

consumo de álcool é em média de 2.6 bebidas, numa estimativa de uma bebida em

cada 14 minutos. Quando o nível do som subia para 88 decibéis, a média passava para

3.4 bebidas, cada uma consumida a cada 11 minutos. De acordo com George

Prochnik, as razões para tal aceleração têm a ver com “o aumento do ambiente

energético, dificuldade em falar e também mudanças químicas no cérebro” (Prochnik,

2010: 100-101).

A Dona Ivone referiu que a partir da meia-noite ela sente que o barulho

“aumenta de tal modo que os vidros tremem”. Eram 23h30 e esperei para observar

esse fenómeno que constatei de facto: o prédio começou a tremer mais intensamente e

lá fora a multidão, num efeito em cadeia, aumentou o volume das suas conversas.

Será uma estratégia de marketing sonoro por parte dos bares, ou mera coincidência?

O facto é que houve uma mudança de energia acústica ao tornarem-se menos audíveis

as conversas dispersas entre os notívagos, dominando na rua a música proveniente dos

bares.

Som de fundo é usado nos espaços públicos, fechados e abertos, para mascarar

ruídos incómodos, ou para criar uma atmosfera que é considerada mais confortável ou

mais encorajadora ao nível de consumo. Relacionando com a forma como a música é

reproduzida no Bairro Alto, seja a partir do Dj ou de uma lista de reprodução

automática no computador, os donos dos bares impõem o som no plano decorativo do

seu espaço, onde aliado ao objetivo principal de negócio, a venda de álcool,

estimulam o cliente tanto nas suas funções motoras70 como precetivas, procurando

atrair novos clientes através do volume e da escolha musical71. Entre os bares existe

uma disputa territorial ao nível acústico: volume alto é sinónimo de afluência. Os

consumidores, conscientemente ou não, correspondem a este apelo, subtilmente

seduzidos pelo som que melhor estimula aquela circunstância física, emocional ou

social.

70 Aqui refiro-me à mobilidade dentro do bar. No Bairro Alto a maioria dos bares são

pequenos e o consumo acontece normalmente na rua. 71 Incluem-se as propriedades físicas das músicas: as frequências baixas involuntariamente

estimulam o corpo a responder, tornando-se numa parte do espectro sonoro cada vez mais usada nas

músicas modernas.

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No rés do chão do prédio de Dona Ivone mora o Chefe Costa e a sua esposa.

Este polícia aposentado vive ao lado do bar que afeta ao nível da vibração a sua

vizinha. Para ele, este bar não o incomoda e até tem uma boa relação com o seu dono.

Para o Chefe Costa, o problema está situado à frente da sua residência. Tal como o

próprio descreve:

“O Luís, quando ele veio para cá tinha o grave um bocado alto, mas depois falei com

ele e ele pôs o som mais moderado, mas desde há dois meses aquela casa é que faz muito

barulho, (...) há quinze dias estes vidros da janela, nunca me aconteceu, estavam

‘turutututu’72, o bar do Luís estava fechado (...) o barulho só pode ter vindo dali.”

Depois de ele ter conversado com o “espanhol”, um dos gerentes do bar, o

Chefe Costa referiu que este estabelecimento estava à espera dos fiscais da Câmara

Municipal de Lisboa para selar o aparelho de restrição de decibéis, e que quem lá

trabalha normalmente não se apercebe do barulho no exterior porque estão dentro bar.

Tal como o Chefe Costa afirma:

“Eles metem o som lá para fora, eles conhecem o artigo: o sinal acústico é para o

interior e não para o exterior, mas conseguem pôr mais barulho cá fora que para as pessoas lá

dentro.”

Nas palavras do Chefe Costa o “espanhol” é uma pessoa pouco comunicativa e

sem sensibilidade para as queixas dos moradores:

“Ele (o espanhol) é abusador, não tem consideração por ninguém (...) ele não é nada

acessível (...) ele ouve mas como se diz na gíria, entra a 500 e sai a 2000.”

O “espanhol” não mora no bairro, o que influencia a sua recetividade às

queixas dos moradores. O Chefe Costa refere esse fator:

“Se ele morasse aqui, quando houvesse um barulho de um bar queria ver a reação

dele...Tinha que ter a mesma que nós temos, que estamos aqui a viver. Temos que ter

sossego.”

72 Referência onomatopeica usada pelo Chefe Costa.

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Felipe, antigo dono desse mesmo bar, apesar de não ser morador do bairro, era

uma pessoa educada e correspondia às exigências do Chefe Costa para diminuir o

som:

“Nunca tive problemas com o Felipe, ele vinha até à porta da minha casa para ver

que o grave estava alto e ele mandava o dj baixar o som.”

Para além da sua relação com outros bares na rua, Chefe Costa reforça a

amizade que tem pelo Luís e pelo Gonçalo, os dois sócios do bar contíguo à sua sala

de estar, referindo que:

“Eles são impecáveis, a gente pode falar, agora aquele (o espanhol)... aliás o Luís

dizia me logo, ‘se ouvir um som a mais venha-me logo dizer que eu baixo’.”

Tentei conversar com o Luís e com o “espanhol”. Nunca encontrei o primeiro

no bar, em quatro ocasiões diferentes. Quanto ao “espanhol”, este mostrou-se

desafiado após o meu pedido para colaborar na entrevista. Fiquei com receio, porque

para além dele estavam outras pessoas no bar, tanto trabalhadores como

frequentadores, que não demonstraram (aparentemente) recetividade para dialogar.

Preferi proteger o trabalho, para futuras visitas ao bairro, sem que fosse vigiado ou

perturbado no processo de recolha de campo.

Em todo o caso a problemática que eu quis evidenciar, a partir do testemunho

do Chefe Costa, é a da forma como a proximidade social pode influenciar a perceção

do ruído. No caso do Luís, com o seu bar ao lado da sala de estar do Chefe Costa, a

propagação do som não incomodava este agente aposentado, enquanto o bar do

“espanhol”, a meio quarteirão de distância, era alvo de queixas por parte de todas as

pessoas que habitavam à volta do seu estabelecimento, tanto pelo barulho como pela

sua falta de abertura para o diálogo.

No caso da Dona Ivone, ela própria enaltece que se as pessoas do bairro se

juntassem poderia dar algum resultado. Descrente tanto da lei como da própria

associação de moradores, ela diz que tem medo de retaliações porque vive sozinha. O

facto de Dona Ivone só estar em casa, tal como ela diz ,“para dormir e pouco mais“,

faz com que queira equilibrar a agitação da sua rotina com o sossego do lar. Tendo em

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conta que mantém um contacto distante com os donos dos bares, e uma relação formal

com os seus vizinhos, de que forma a sua audição se foi adaptando ao envolvimento

local?

Chefe Costa trabalhou como agente de autoridade durante vinte cinco anos,

conhecendo ao longo desse tempo pessoas que ainda moram ou trabalham neste

bairro. O seu envolvimento na comunidade é ativo, ao conversar com outros

moradores e donos de estabelecimentos, debatendo os problemas locais resultantes da

expansão do comércio noturno. Presenciei a procura do diálogo por parte do Chefe

Costa e a invenção de uma “legislação local” que acabou por produzir alguns efeitos,

como minimizar a propagação de frequências baixas no bar do Luís. Pelo contrário,

Dona Ivone demonstra-se pouco interessada em estimular qualquer tipo de diálogo no

seio da sua vizinhança, tentando bloquear este problema por meio de tampões,

antidepressivos73, ou fugas nos fins-de-semana para a Costa da Caparica, onde fica

em casa de amigos.

O que leva cada um destes sujeitos a ter uma leitura acústica do espaço tão

singular? Apesar de a lei quantificar essa noção de ruído, ela não é respeitada pelos

proprietários, como não é percecionada da mesma maneira pelos moradores. A forma

como estes sujeitos criaram resistências perante o som proveniente de um

estabelecimento noturno influenciou a sua forma de relacionamento com os

proprietários dos bares ou com outros moradores. Apesar de existir um problema na

falta de cumprimento da lei por parte dos proprietários, a própria fiscalização da

Câmara Municipal de Lisboa não põe em prática os critérios existentes no

Regulamento Geral do Ruído.

A procura da responsabilidade comunitária torna-se mais verdadeira perante a

realidade desse espaço, ao permitir o ajuste entre o que são os direitos, mas também

os deveres de todos os membros da comunidade do Bairro Alto, sejam eles

moradores, proprietários ou frequentadores da noite lisboeta. Apesar de ainda persistir

no Chefe Costa a figura autoritária dos tempos em que era polícia, este demonstrou

que através da negociação entre sujeitos, com as suas diferentes necessidades (neste

caso o sossego dos moradores e o lucro dos bares), pode ser criada uma plataforma de

entendimento entre indivíduos que coabitam no mesmo território.

73 Tal como Dona Ivone referiu, o seu médico aconselhou-a a tomar ansiolíticos (XANAX).

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4.3. Galos

Situado no bairro da Bica, o apartamento do Vasco possui uma vista

privilegiada sobre o Tejo, vislumbrando o rio desde o Montijo até à ponte 25 de Abril.

Nos pisos inferiores habitam tanto pessoas idosas como jovens com idade semelhante

à sua. Sendo uma casa com piso de madeira, o som propaga-se mais facilmente, mas

apesar disso, a vizinhança não é incómoda como também não se sente perturbada

pelos hábitos domésticos do Vasco. Referindo-se a uma entrevista feita ao realizador

Pedro Costa, Vasco compara a sua vida na Bica com o filme Juventude em Marcha:

“Há uma passagem engraçada na entrevista em que ele diz que nas Fontainhas não há

privacidade, porque como aquilo é um bairro de lata e é a lata que divide a fronteira entre as

famílias e as pessoas, ouve-se tudo. A lata não absorve o som. Por vezes a Bica é assim nesse

sentido, eu oiço o que se passa nas vidas das outras pessoas (...). Se alguma porta é fechada

neste prédio eu oiço. Existe também um cão que faz barulho porque anuncia o dono, mas isso

não me chateia, é muito raro, e o dono é preocupado porque às vezes oiço ‘shhhhhhh’74...” 75

Para o Vasco, a área dentro do seu bairro é como uma ilha, onde todas as

pessoas se conhecem e se tratam por “vizinho”. Os moradores convivem muito na rua,

mas ele sente-se mais contido nas relações de vizinhança, não tendo muita interação

com eles. Referindo a sua juventude em Benfica, Vasco afirma:

“Quando eu era criança vivia num prédio, e as pessoas quase se evitavam quando

entravam no elevador. Aqui não, há muita cumplicidade entre as pessoas (...) mas eu digo

bom dia, boa tarde e não passa disso.”

O quintal que está em frente ao seu prédio pertence a uma comunidade oriunda

do Bangladesh, que possui um estabelecimento comercial numa rua próxima. Vasco

elogia esta comunidade pelo facto de terem os seus estabelecimentos abertos a horas

que não são convencionais no comércio terciário lisboeta. Ele acha que a comunidade

“é fechada, o que é natural por serem de fora”, vivendo numa pequena vila dentro do

74 Referência onomatopeica do Vasco sobre a forma como o seu vizinho silencia o seu animal

doméstico. 75 Entrevista concedida em sua casa, junho 2012.

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bairro onde cultivam hortas e fazem a criação de galos. Pelas 4h da manhã os galos76

desse quintal começam a cacarejar até as 19h, tornando-se o principal incómodo do

Vasco:

“É por isso que eu estou sempre a ouvir música... (os galos) cortam-me

completamente a concentração.”

Ao ser questionado sobre se os galos o despertavam durante a noite, Vasco

afirma que tem o sono profundo, sentindo o incómodo apenas no momento em que se

levanta da cama:

“Quando eu acordo... quero acordar com uma certa paz, e lá vêm os galos... às vezes

fico na cama à espera de um momento de silêncio para me levantar, porque sabe bem, sabes?

Não ouvir nada, ouves-te a ti próprio a pensar ‘o que vou fazer’, ‘como vai ser o dia’, e os

galos... fazem um barulho extraordinário...”

Ouvindo ao longo da entrevista uma emissão da rádio online Deutsch

Grammophon, Vasco justifica a razão pela qual escuta música clássica em casa:

“Às vezes estou a ouvir e nem dou pelo tempo passar, porque o objetivo é mesmo

esse, quando oiço música clássica, que é apagar o som dos galos, que me corrói o tímpano

(...). A música de facto funciona, quando dou por mim começo a associar as palavras ao som

e abstraio-me do que está lá fora.”

Esta capacidade de abstração, nas palavras de Vasco, teve muito a ver com a

convivência com a sua avó paterna que vive na Guarda, devido às histórias repetitivas

que ela lhe contava na sua infância e adolescência. Tal como Vasco descreve:

“Ela todas as tardes repetia sempre as mesmas histórias de família (...) durante dez

anos. Eu só queria estar na sala a ver um filme que tinha gravado em VHS (...) a minha avó

falava, falava, falava até que numa altura eu abstraia-me... ficava a ver televisão, e para piorar

as coisas ela tinha desde criança uma deficiência auditiva, usava um aparelho e falava mais

alto que o normal, para se conseguir ouvir, (...) e eu fui treinando ao longo do tempo, porque

76 Vasco refere que é possível que o cacarejar dos galos durante 15 horas esteja relacionado

com o facto de não existirem galinhas neste quintal, tornando estes animais mais agitados.

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as pessoas têm que conviver e é isso que eu faço. Encontro um chão comum de entendimento,

mas vou-te contar: não tenho vagar para ir falar com o pessoal do Bangladesh (...) tenho mais

que pensar, não estou para me chatear com isso, mas acho que sim, que sou capaz de me

adaptar a tudo.“

Questionado sobre os sons que o agradam mais na sua paisagem, Vasco refere-

se aos apitos dos comboios porque “é um som que é grave, suave, sedoso, que passa

pela pele, é curtinho, inesperado mas não fere... é tranquilo.”

Ao reparar no som proveniente da ponte sobre o Tejo, lembrei-me da minha

infância passada na cidade de Almada, onde especialmente aos fins de tarde

conseguia escutar os carros atravessarem uma das vias, que possui uma faixa sonora e

que através da sua trepidação cria um som característico que me lembrava um enxame

de abelhas. No seguimento desta recordação perguntei ao Vasco se o som dos galos

não criava uma ativação da sua memória, por exemplo da infância na terra dos seus

avós, ao que respondeu:

“Sinceramente (...) eu não sou transportado para lado nenhum quando oiço galos, eu

sou mas é deslocado para o sítio onde eu estou que é numa cadeira, porque quando estou a ler

para a minha tese eu vou para outro sítio, começo a pensar e a raciocinar em termos de

construção de frases, ideias e de conceitos e o que os galos fazem é puxar-me de volta para o

sítio onde eu estou, que é de onde eu saí, porque a partir do momento em que abres um livro

ou vês um filme mandas-te para outra realidade. Os galos não me transportam, impedem-me

de sair do sítio onde eu estou.”

O ambiente sonoro da casa do Vasco é modificado através dos eventos

inesperados provenientes do quintal da comunidade do Bangladesh. O cacarejar

destes animais, por ser ritmicamente irregular, influencia o comportamento da

perceção do ouvinte, num efeito denominado por incursão (Augoyard e Torgue, 2006:

65). Neste sentido, Vasco cria uma máscara, através da escuta da rádio online da

Deutsch Grammophon, de forma a bloquear os sons intrusivos destes animais.

De acordo com François Augoyard, nas superfícies comerciais de grandes

dimensões a falta de conforto acústico, devido a fraquezas arquitetónicas, levam à

implementação de música de fundo para mascarar os eventos sonoros funcionais do

prédio, para criar um ambiente sonoro constante e minimal (Augoyard e Torgue,2006:

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69). No caso do Vasco, as fragilidades da sua casa são evidentes77, por não conseguir

bloquear os sons indesejáveis do exterior.

A nossa incapacidade em lidar com uma certa quantidade de informação

constitui uma das maiores causas de stress. A valorização de um ou muitos sons é

conseguida a partir da seleção percetiva, o que implica uma atividade mínima por

parte do ouvinte, para assim estabelecer continuidade nas suas experiências diárias

(idem: 70). Neste sentido, Vasco é obrigado a valorizar um elemento específico no

seu ambiente, neste caso a música, de forma a criar as condições necessárias para a

sua concentração nas tarefas de trabalho. Esta escuta seletiva está presente nos seus

comportamentos sonoros do quotidiano, ao ser produzida através da vigilância

acústica (idem: 124), que é determinada por critérios funcionais (uso da música para a

concentração) e culturais (prazer em ouvir música clássica ou os sons do comboio ao

longe).

Percecionar é selecionar os elementos num determinado espaço, privilegiando

os marcos sonoros que estão enquadrados na sua dimensão sociocultural (Schaffer,

1977). Vasco favoreceu a música na decoração do seu lar, para que desta forma

bloqueasse a intromissão dos galos. Para além disso, a sua disponibilidade para

estimular as relações de vizinhança pode influenciar a sua tolerância para com os sons

do exterior, ao não estabelecer proximidade com o espaço físico e emocional

envolvente. Curiosamente, os sons provenientes de longe, desde as sirenes dos barcos

aos apitos dos comboios, são a paisagem sonora predileta do Vasco, contrabalançando

com o distanciamento que o próprio cria com os sons mais contíguos. Observando o

cenário sublime do rio Tejo, entendo o porquê do seu fascínio por estes alertas

sonoros. Sendo ele realizador e amante de cinema, o retrato visual que ele vislumbrou

da sua janela envolve harmoniosamente os elementos sonoros encontrados no plano

de fundo. Os objetos sonoros em primeiro plano, desde os galos, o convívio de rua, o

cão do vizinho, ou as festas de Santo António (durante as quais ele faz questão de se

ausentar para casa dos pais) desequilibram-se perante a grandiosidade do rio Tejo que

ele observa da sua janela.

77 Para além do chão de madeira, as janelas são típicas destas habitações antigas dos bairros

históricos lisboetas, com uma estrutura em madeira.

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4.4. Imitação

João Vicente vive na Quinta da Luz, bairro situado na freguesia de Carnide,

onde mora no 7º andar juntamente com os seus pais. Músico profissional, criou o seu

próprio estúdio caseiro, onde normalmente compõe e grava os seus temas.

Musicalmente tem um percurso eclético, explorando áreas distintas que vão do rock à

música eletrónica, jazz e mais recentemente à música clássica.

A sua relação com o vizinho de cima tem sido muito conflituosa nos últimos 9

anos, devido ao incómodo provocado pela sua produção musical. No início destes

conflitos o tipo de música produzida pelo João era sobretudo eletrónica, admitindo o

próprio o incómodo que poderia causar pelo facto de perder por vezes a noção do

volume, apesar de sempre no período diurno. As reações do vizinho, nas palavras do

João, começaram a intensificar-se e de forma pouco diplomática:

“Ele dava a ideia que atirava uma panela, ou um banco de metal à parede ou ao chão

repetidamente e fazia uns barulhos esquisitos. Tinha uns acessos de fúria, (...) ouvia-se uns

grunhidos estranhos, ou então punha música o mais parecido possível, ou seja, se ele ouvia

esta batida, punha na aparelhagem o mais parecido que ele encontrava e punha no máximo

para retribuir da mesma maneira. (...) arranjava dentro daquilo que ele tinha o mais parecido

possível para causar o incómodo mais semelhante possível: quando era música com batidas

fortes ele punha música desse género, quando era com guitarra ele punha músicas com

guitarra altíssimo, portanto havia ali uma sofisticação esquisita...era meticuloso na música

que escolhia para me incomodar, realmente era estranho...”78.

João compreende o incómodo sofrido pelo seu vizinho apesar de não

compreender as suas reações, tendo em conta que começou a moderar os volumes da

sua música. Com o tempo, João começou a compor música menos amplificada, sendo

hoje em dia a viola clássica o seu instrumento preferencial. Como relata João:

“As coisas começaram a tornar-se esquisitas: houve um dia que cheguei a casa à

noite, dedilhei assim umas coisas na viola baixinho, ele pôs a música altíssima e o meu pai

ficou irritado. Fomos bater à porta dele. No outro lado ele grunhia e fazia uns sons

estranhíssimos, berrava que só baixava o som se eu parasse de tocar. Estava histérico e

raivoso, foi estranhíssimo, e não nos abriu a porta (...). Como agora a música que eu faço é

78 Entrevista concedida em sua casa, agosto 2012.

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tendencialmente diferente, já não tem aquela batida tão forte, é menos incómodo, mas apesar

de tudo nos últimos anos tem-me incomodado imenso com coisas tão simples como tocar um

pouco de viola... ou ouvir música no computador portátil sem colunas. Às vezes ele fica

incomodado e põe “martelada”, altíssimo, para ter uma reação completamente

desproporcional.”

Ultimamente, João já não conseguia suportar as reações do seu vizinho,

parando de tocar, desligando a música ou diminuindo o som por achar que se trata de

uma pessoa “desequilibrada que não tem reações normais, parecendo estar em

sofrimento”.

Questionado sobre as reações dos seus outros vizinhos, tendo em conta que o

seu apartamento é contiguo a duas outras moradias, ele afirma que “nunca ninguém se

queixou de nada, aliás ele também não se queixou...”. João ainda refere que a atitude

do seu vizinho era contraditória, quando a sua reação é mais barulhenta, ao tentar

causar um incómodo ainda maior e sem nunca ter recorrido às autoridades.

Normalmente este tipo de reação não cessava mesmo quando João parava de fazer

música. Tal como ele refere, por vezes “ele saía de casa e deixava a música da

aparelhagem a tocar durante três horas”.

João desconhece se o seu vizinho ouve música, ou se a escuta somente nos

seus momentos vingativos. Nas suas palavras, raramente o vê nas imediações do

prédio, nem mesmo através das janelas do seu apartamento, por estarem sempre com

os estores fechados:

“A toda a hora os estores dele estão para baixo, portanto é alguém que tem uma

existência um bocado estranha, não sei mais nada, mas que ajuda para além das reações dele a

perceber que há ali uma inadaptação acentuada”.

João sabe que ele vive sozinho, que ambos têm uma idade semelhante, mas

desconhece se o seu vizinho tem uma ocupação. Como os horários das reações eram

sempre ao fim da tarde, supõe que ele trabalhe.

Tentei contactar o vizinho do João, de forma a saber mais sobre esta situação

relacionada com o meu projeto de pesquisa. O meu objetivo seria fazer algumas

perguntas sobre a qualidade acústica do seu apartamento, tentando encontrar uma

relação com as questões colocadas pelo João. Das duas vezes que tentei, com uma

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certa apreensão, não fui atendido, apesar de escutar movimentações dentro da sua

casa. Apesar da tensão neste tipo de situações, tentei fazer uma abordagem isenta para

que desta forma conseguisse compreender as condicionantes do relacionamento entre

este sujeito e o João. Como fui ignorado, procurei ainda assim outras opiniões que se

distanciassem da perspetiva do meu entrevistado.

José Carvalho, pai do João, refere que antes destes conflitos já tinha existido

uma situação inversa, no qual o vizinho tinha colocado o som alto. A reação de José

traduziu-se num bilhete cordial, colocado à porta da casa do seu vizinho, pedindo para

baixar a intensidade da sua música a partir das 22h. Esta abordagem funcionou tendo

em conta que nas semanas seguintes este indivíduo deixou de incomodar. Mas ao

mesmo tempo, José reconhece o incómodo que a música do seu filho poderia

provocar na vizinhança. Citando a célebre frase de Mário Soares, que o “excesso de

liberdade é libertinagem“, José argumenta que devemos saber controlar a nossa

liberdade, permitindo que ela não colida com a liberdade de terceiros:

“Eu quantas vezes não pedi ao João para pôr a música mais baixo, porque estava de

facto a incomodar. Independentemente de incomodar-me, estava mais preocupado com os

vizinhos de cima, porque eu acho que temos o dever de civismo, na medida em que vivemos

numa sociedade comunitária ou tão comunitária quanto seria desejável... Mas portanto temos

que ter respeito pelas liberdades de terceiros, como eles devem ter pelas nossas liberdades.“

Referindo-se ao vizinho e à sua vida pessoal ele descreve que:

“Há de facto por parte dele algumas debilidades que potenciam os erros eventuais que

eram produzidos aqui no sétimo andar. Mas o certo é que quando ele se sentiu incomodado,

largos meses depois de eu ter mandado o bilhete, ele deveria, tal como eu fiz, ter batido à

porta, escrito qualquer coisa na caixa do correio, e depois caber-nos-ia julgar se teria ou não

razão. Eu acho que tinha, porque de facto o João sempre teve a tendência para começar essas

coisas ao fim da tarde, que é quando as pessoas voltam do emprego, porque se entrasses aqui

as 10h, 14h ou 16h, não se ouvia nada, que é de facto quando se deve fazer mais barulho,

porque tendencialmente as pessoas não estão em casa e há um ruído do dia que é

completamente diferente do silêncio da noite. O problema chegou a situações complexas de

histerias do vizinho de cima, de bater com paus no chão e de bater com coisas tipo pedras,

depois pôr o rádio no máximo e sair de casa não sei para onde e ficar minutos e minutos e

minutos sem fim a tocar, de tal forma que eu pensei em chamar a polícia (...). Partindo do

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pressuposto que ele se sentia incomodado, obviamente que o barulho que ele fez cá pra baixo

foi muito mais grave do que o que foi feito cá de baixo lá pra cima (...), a reação era mais

enérgica do que a ação.“

José refere que o seu vizinho poderia ter tido uma atitude civilizada. Mas ao

não existir uma reação diplomática por parte dele, José recorreu aos seus vizinhos do

mesmo andar para entender a situação. Estes achavam estranho mas não quiseram

tomar uma posição neste conflito, apesar destas reações também os afetarem tendo em

conta que o prédio é de betão armado. Tal como refere José, que também é arquiteto

da CML:

“Se há uma pessoa com uma broca no quinto andar que está a fazer um furo numa

viga, a pessoa do rés do chão ouve perfeitamente (...), a transmissão acústica é mais violenta

que nos edifícios convencionais.“

Ao dar a minha opinião sobre a contradição entre a aparente timidez pública

do vizinho com as suas reações em casa, José descreveu algumas situações em que se

encontraram:

“Às vezes quando nos via tentava fugir, e eu também não forçava em falar, mas agora

já diz as boas tardes. Há de facto uma tentativa e eu não ganho nada em esgravatar no passado

de maneira que enfim... não vou ter com ele para falar, mas se ele fala eu falo com ele

obviamente.”

Para demonstrar a sua diplomacia neste tipo de casos, José referiu-se a uma

reunião entre os condóminos em que se decidiu em ata que a produção de ruído no

prédio deveria ser limitada entre as 9 da manhã e as 22h. José conta que houve um dia

que umas obras estavam a ser executadas no terceiro andar pelas 8h, obrigando José a

advertir o empreiteiro que acabou por acatar de forma sensata:

“É evidente que eu poderia chamar a Polícia Municipal, mas a eficácia das

autoridades públicas é limitada (...). É chato a denúncia e a dúvida da eficácia é sempre

enorme. Isto resolveu-se a bem e dá-me ideia que parte importante destes conflitos poder-se-

ão resolver se houver um mínimo de educação e sensibilidade de ambas as partes.”

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Com o exemplo das obras no prédio, José demonstrou um dos aspetos

essenciais para criar consenso entre indivíduos, que passa pelo diálogo e negociação

com o outro e não deixar depender a resolução do conflito inteiramente da eficácia

das autoridades reguladoras.

No caso do João, o diálogo do seu vizinho era promovido através da imitação

consciente dos sons que escutava. Esta imitação implica o uso de um código cultural

que permita o reconhecimento do estilo da emissão sonora, como também do

conhecimento destas referências por parte do recetor (Augoyard e Torgue, 2006: 59).

Ao tentar mascarar os sons provenientes da casa do João, as respostas do seu vizinho

foram recebidas como atos ofensivos. Sendo assim, ao sentir o seu espaço invadido,

exercia a mesma intrusão que escutava, provocando um desconforto aparentemente

maior do que sofria. Apesar das tentativas de minimizar o incómodo para com o seu

vizinho, João foi obrigado a reduzir drasticamente a sua expressão musical em casa,

apesar de a praticar dentro dos horários permitidos pela lei. Ao ser influenciado pela

perceção do seu vizinho, João tornou-se a própria vítima, através das reações

provenientes do andar de cima.

Esta atitude do seu vizinho, nas palavras da família do João, reflete-se na

relação com os outros moradores, ao blindar qualquer interação no espaço comum do

prédio, ou mesmo ao nível do seu lar, através dos estores constantemente fechados.

Receando a destruição da harmonia criada no seu território (psíquico e físico), este

sujeito explodia através de comportamentos que demonstram a sua própria inabilidade

em lidar com o seu espaço envolvente (Labelle 2010).

Mas por mais que o vizinho do João não queira relacionar-se com o seu meio,

o espaço invariavelmente comunica com ele através dos sons provenientes do exterior

do seu apartamento ou seja, a partir dos “territórios invisíveis” criados pelos sons

domésticos desse espaço. Os seus ouvidos, ao tentarem localizar e relacionar-se com

os elementos existentes ao seu redor, demonstram uma das condições básicas do ser

humano, que reside na compreensão do espaço enquanto atitude de sobrevivência79.

Este distanciamento para com a sua vizinhança dificilmente será alcançado tendo em

conta que, para além do som não ser afetado pelas fronteiras existentes no seu espaço

79 Podemos denominar esta atitude percetiva de escuta seletiva. Na antiguidade, a escuta

seletiva acontecia por uma questão de sobrevivência. Inicialmente, ouvir sons e reconhecê-los

especificamente era base fundamental de existência para o homem primitivo, ao confiar na escuta para

apanhar mensagens de sobrevivência ou sinais de perigo. De acordo com François Augoyard e Henry

Torgue podemos definir esta função primária como o “ouvido primitivo” (Augoyard e Torgue, 2006).

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de habitação, a capacidade percetiva do ser humano evoluiu de acordo com a sua

necessidade de relacionamento com o meio ambiente. Através de “reações

sofisticadas” com utilização de música, este sujeito revelou o inevitável diálogo que

um indivíduo tem com o seu espaço, ao ter procurado um código de entendimento

com o João.

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4.5. Onda do Tejo

Tejo Bar é um estabelecimento noturno situado no coração do bairro de

Alfama. Com cerca de treze anos de existência, este bar é gerido por Miriam, Mané e

Sérgio. Miriam e Mané são provenientes do Brasil, enquanto Sérgio é natural deste

bairro lisboeta. Este bar, de pequenas dimensões, situa-se numa praceta que possui um

parque infantil público. As pessoas que frequentam este bar encontram nele um lugar

de criação e convívio artístico, onde se faz poesia, música e pintura, destacando-se

pela ausência de um anfitrião ou de dinâmicas fixas, estimulando-se desta forma a

espontaneidade dos seus frequentadores. No entanto, as pessoas do bairro

inicialmente não aceitavam a presença deste estabelecimento, tendo sido feito vários

abaixo-assinados por causa do barulho. Tal como Sérgio descreve:

“No início a relação era um bocado péssima, porque eles vinham, reclamavam, a

gente tinha e ainda temos horário até as quatro da manhã, então todos os dias tínhamos a

vizinha do lado, de cima ou do outro lado a reclamar para a gente fazer pouco barulho.” 80

A reclamação era sempre a mesma: o ruído proveniente do bar e do convívio

nos espaços contíguos ao Tejo Bar. Apesar de ser um lugar dedicado ao convívio e à

criação musical, os gerentes começaram a adotar alguma medidas dentro do

estabelecimento. Devido às constantes reclamações, o Tejo Bar começou a promover

outras dinâmicas, como por exemplo acabar com instrumentos amplificados, de sopro,

“abafar” a percussão para não fazer tanto ruído, e uma das mudanças mais

importantes, o esfregar das mãos como forma de aplauso.

Miriam conta que existem várias versões sobre o aparecimento das “palmas

esfregadas”:

“Tem uma moradora aqui, já velhinha, que cantava fado, mas como cantava muito

mal, em vez das pessoas aplaudirem vaiavam, então ela ficou traumatizada com as palmas.

Então quando ela ouvia as nossas palmas vinha ao Tejo Bar reclamar, chamava a polícia,

porque ela morava aqui perto...então começámos a arranjar uma outra forma de aplaudir,

fazendo um movimento de esfregar as mãos, como forma de agradecimento, sem o barulho

das palmas que incomoda as pessoas, especialmente ela.“

80 Entrevista concedida no Tejo Bar, julho 2012.

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Curiosamente, a vizinha do lado, que teria mais legitimidade para se queixar

do ruído, nunca participou das contestações e dos abaixo-assinados porque o barulho

não a incomodava e até a ajudava a adormecer. Tal como o Sérgio afirma:

“A senhora aqui do lado que é velhota, estava doente e acamada, o quarto dela é

encostado a esta parede. Ela até dizia que a música a ajudava a dormir, o que a acordava era

quando a música acabava e as pessoas batiam palmas!”

Miriam comprova o incómodo das palmas, por ter uma situação semelhante na

sua própria casa:

“As palmas incomodam, porque eu moro ali ao pé da Mesa de Frades (casa de Fado

na Rua dos Remédios). Estão a cantar fado e quando termina e ‘tááááááá’ 81... ali um tempão

a bater palmas depois começa de novo e ‘tááááá’ e não dá quem aguente as palmas.“

Quando implementaram as “palmas esfregadas”, houveram diversas reações a

esse aplauso por parte dos frequentadores. Pelas palavras da Miriam, há pessoas que

gostam, outras acham que, por exemplo, se estão a cantar fado tem que aplaudir, mas

a maioria associa-se sem grande resistência:

“A reação das pessoas ao início era estranha, porque em vez de baterem palmas

esfregavam as mãos (...). As pessoas aderem e acham graça, há pessoas que é a primeira vez

que estão aqui, a gente está a cantar e estão divertidos e de repente acaba a música e começam

a bater palmas. Não somos nós que trabalhamos na casa que avisamos, mas as próprias

pessoas que estão na mesa do lado (...). Uns gostam, outros não, mas como o espaço é

pequeno é incómodo o som das palmas.”

Fora do bar, os gerentes tiveram que implementar medidas para minimizar o

ruído no exterior. Por causa da lei sobre o consumo de tabaco dentro dos

estabelecimentos, os frequentadores têm que fumar fora do Tejo Bar. Sérgio e Miriam

aconselham a dispersão das pessoas pelo quarteirão, para não haver uma concentração

que possa aumentar o ruído, tendo em conta que os vizinhos também se queixam do

81 Referência onomatopeica de Miriam sobre o som das palmas da Mesa de Frades.

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aglomerado de pessoas na rua. A solução passou por disseminar o convívio exterior

pela praceta, de forma a iludir a perceção dos vizinhos. Tal como o Sérgio descreve:

“A única coisa que a gente pede é que a partir da meia-noite as pessoas falem mais

baixo, porque há pessoas a dormir. Quando se sentam à porta das casas das pessoas a beber,

eu peço-lhes para irem ali para cima, para os bancos do jardim, para o parque infantil, ou para

o miradouro da Igreja de Santo Estevão. Há pessoas que se queixam por causa do barulho cá

fora e não do bar.”

A partir destas mudanças o relacionamento com os moradores mudou.

Anteriormente, tal como Sérgio confessa, as pessoas eram rudes e agressivas. Miriam

afirma que hoje em dia existe um bom relacionamento de vizinhança, mas refere que

tiveram que ser perseverantes para alcançar a compreensão dos moradores da praceta:

“Às vezes temos que nos impor, para nos conseguirmos entender, para depois

podermos conversar, ou seja, temos que ser determinados... o relacionamento vem com o

diálogo.”

Sérgio também reconhece que atualmente existem boas relações de

vizinhança. Lentamente, os moradores começaram a observar o Tejo Bar como um

espaço que dava segurança naquela área, tendo em conta que não existe outro tipo de

movimentação noturna para além do bar. Tal como Miriam refere:

“Isto é uma segurança para eles, porque à noite não se vê ninguém aqui, e além de ser

uma segurança para eles, descansam também, porque ouvem música, ouvem voz, uma viola,

mas não ouvem muito barulho (...). Havia alguns vizinhos que vinham agradecer por causa do

movimento do bar durante a noite, que era bom por causa dos assaltos. Há vizinhos que falam

que os carros aqui nunca foram assaltados por causa do bar.”

Este reconhecimento por parte dos habitantes, de que a existência sonora do

bar acaba por beneficiá-los ao evitar os assaltos, acaba por demonstrar a existência de

um novo património sonoro neste bairro urbano, que ao ser interiorizado ao nível

identitário pelos seus moradores se torna ele mesmo no “próprio bairro”.

Nunca houve qualquer intervenção ao nível do ruído por parte das entidades

reguladoras porque as atividades dentro do espaço não ultrapassam o que é permitido,

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e também por não existirem situações em que as pessoas possam extravasar os limites

da lei. Tanto Miriam como Sérgio gerem o ambiente emocional da casa, impondo

certas regras para salvaguardar o sossego do bar e dos vizinhos. Mas quando não dão

conta da situação acabam por fechar o espaço de forma a evitar o confronto com os

clientes que desconhecem as regras do bar. Questionada sobre esta regra da casa,

Miriam afirma que:

“Há dias que temos que fechar a casa mais cedo porque não conseguimos controlar as

pessoas. São pessoas que não estão acostumadas a vir aqui. A gente usa a regra, é chato usar

essa palavra, mas é uma forma de organizar para manter a casa aberta.”

Estes “volumes comunitários” criados pelo Tejo Bar tornaram-se o

regulamento local de ruído, ao adequar as dinâmicas do bar com a forma como a

vizinhança perceciona o espaço acústico envolvente. A paisagem sonora da praceta

tanto embala como por vezes interrompe o sossego dos seus moradores, obrigando os

gerentes do Tejo Bar a definir constantemente a intensidade das expressões

provenientes do seu estabelecimento. Ao nível do campo percetivo podemos afirmar

que as dinâmicas tanto no interior do bar como na rua provocam nos moradores o

efeito sonoro de onda (Augoyard e Torgue, 2006). Este efeito é uma “metáfora que

designa um tipo de som que progressivamente se intensifica, expande e fica suspenso,

dando a sensação de chegar ao topo da sua intensidade, recomeçando novamente o

seu ciclo” (Augoyard e Torgue, 2006: 146). Por outras palavras, este efeito é baseado

na sua variação de intensidade. É o seu volume flutuante que caracteriza este efeito,

ao desenvolver-se como uma permanência descontínua, havendo uma quase

interrupção da mensagem. No campo da perceção, o efeito de onda atua

essencialmente como um sinal de localização e contextualização em duas direções

opostas: a incerteza da origem da fonte sonora no espaço devido à falta de referências

visuais, e um sentimento de submersão proveniente da flutuação cíclica da fonte

(idem: 148).

No caso do Tejo Bar, a fonte sonora torna-se incerta no espaço devido ao facto

de ser projetada a partir de dois pontos distintos: o interior do bar, com a produção

musical e atividades variadas, e o convívio disperso na praceta. Um dos aspetos mais

importantes para o efeito de onda emergir está relacionado com o facto de os

moradores não conseguirem percecionar o princípio ou o fim de uma música, devido

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aos “aplausos silenciosos”. Neste sentido, criam-se as condições para influenciar a sua

perceção do significado das práticas provenientes do bar, e assim potenciando um

efeito progressivo de submersão dos moradores. Dentro do bar, as músicas e o

convívio nunca cessam, mas flutuam consoante as intensidades dos temas tocados, e o

tipo de aplauso não quebra esse efeito imersivo.

Existem outros dois fatores que ajudam a propagação desta onda. O facto de o

Tejo Bar estar sempre com a porta e as janelas fechadas provoca a filtragem do som

no interior, desfocando a escuta a quem está fora do bar. O outro aspeto tem a ver

com o convívio de rua dos clientes do bar, que ao ser disperso confunde

acusticamente a localização das fontes emissoras, tanto dos diferentes grupos na rua

como do ambiente do bar. Sendo assim, o efeito de onda é percecionado

inconscientemente, tendo em conta que a sua variação de intensidade mergulha a

atividade sensorial dos moradores ao longo do tempo e ciclicamente: a “onda do

Tejo” é uma variação da intensidade dos sons que nunca acabam82.

A regulamentação criada pelo Tejo Bar respeitou os limites de tolerância dos

moradores, ao definir a amplitude entre o que é incómodo (as palmas que acordam) e

o agradável (a música que embala). Neste sentido, o Tejo Bar provou que pode haver

uma coexistência tanto de parâmetros qualitativos como quantitativos enquanto

alternativa aos critérios definidos pelo Regulamento Geral do Ruído. Ficou

demonstrado que através de uma gestão do espaço físico, percetivo e emocional, pode

criar-se um ambiente harmonioso entre as diversas formas de relação dos indivíduos

com o som e o espaço em que habitam. Perante a lei, este bar tem o direito de fazer

ruído, tendo em conta que mesmo as atividades inicialmente propostas, desde os

instrumentos amplificados até às palmas, respeitam os limites legais. Em todo o caso,

os gerentes deram prioridade ao entendimento da ordem coletiva daquela praceta,

através de uma atitude construtiva e conciliadora com a sua vizinhança.

O caso do Tejo Bar demonstra que é possível, através da consciência do

espaço em que estamos inseridos, criar uma identidade (acústica) coletiva

constantemente negociada entre os seus habitantes, respeitando as ondulações que

82 De acordo com Augoyard, “este efeito pode ser visto, metaforicamente, como a ordem

coletiva do mundo. Desde uma conversa informal de um grupo de pessoas ou multidões em estádios

aclamando. Estes são alguns exemplos de participação de vozes individuais num corpo coletivo.

Podemos também assistir este efeito ao nível fisiológico, desde uma respiração normalizada, até a um

choro de uma criança”.(Augoyard e Torgue, 2006: 149).

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caracterizam a capacidade percetiva de cada sujeito. Nesta negociação sensorial entre

indivíduos são definidos os limites do seu espaço acústico, que se situam entre o

sossego e o barulho, refletindo também os limites da própria existência humana nesse

espaço. Tal como Schaffer afirma “é tão difícil um ser humano imaginar um ruído

apocalítico como imaginar o silêncio definitivo. Ambas as experiências existem na

teoria para que sejam demonstrados os limites da própria vida.“ (Schaffer, 1977: 28).

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4.6. Aldeia Vertical

O “Cinema Lá em Cima” é um fórum de cinema criado por Francisco Leitão e

Francesca Corpaci, no terraço do prédio onde vivem na freguesia dos Anjos desde

maio de 2010. Ambos estudantes universitários e amantes de cinema, aproveitaram o

espaço extenso do terraço para promover este fórum, desde a apreciação de filmes

clássicos até aos lançamentos mais recentes da indústria cinematográfica. Para além

da amostra de filmes, esta mostra dinâmica realizada todas as terças feiras e aberta ao

público, engloba um jantar feito pelos moradores do prédio e por vezes concertos com

músicos convidados. O principal objetivo pelas palavras do Francisco, é o de manter o

projeto familiar e de dar prazer a quem colabora nesta iniciativa:

“O Cinema lá em cima proporciona uma reunião simples de pessoas, que acho que dá

prazer a toda gente e isso explica porque se manteve durante tanto tempo. Acho que todas as

formas de ativismo mais exibicionista não duram tanto tempo, o que não é este caso. É tudo

muito diluído, o coletivo é grande, tu nunca sentes um peso que se não estiveres presente o

cinema não vai acontecer. Sempre que o cinema esteve mais em risco, foi quando foi

organizado apenas por duas ou três pessoas: quanto maior o coletivo melhor as coisas

funcionam, curiosamente sem grande organização, com uma estrutura caótica mas

orgânica.”83

Além da existência deste projeto, os moradores do prédio já promoviam outro

tipo de dinâmicas, tendo em conta que é habitado por pessoas heterogéneas, na sua

maioria entre os vinte e os trinta anos e de áreas profissionais diferentes. Sobre essas

atividades comunitárias, Francisco comenta:

“Há quem goste de lhe chamar de aldeia vertical devido a uma certa relação entre os

diversos andares que noutros prédios não existe. Penso que tem muito a ver com a zona dos

Anjos, que se está a transformar, e que há um lado político nisto: reúnem-se aqui muitas

pessoas de esquerda, muitos jovens, muito pessoal de ciências sociais e ciências humanas, e

este prédio por se situar no coração dos Anjos, reúne naturalmente essa diversidade

cúmplice.”

83 Entrevistas concedidas neste prédio, entre julho e outubro 2012.

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A existência das escadas de emergência exteriores, que percorrem as varandas

de cada andar do prédio, proporcionam uma mobilidade e exposição entre os andares

que se vê pouco noutros edifícios lisboetas. Referindo a peculiaridade destas escadas,

Francisco destaca o facto de estas serem um elemento vital nas relações de vizinhança

deste prédio:

“Como coisas tão fortes estão dependentes de coisas tão fracas, ou seja, como as

relações humanas, que são coisas que se dizem vencer montanhas, na verdade podem estar

dependentes ou não existiriam se não houvesse uma simples escada de incêndio.“

Para quem não mora no prédio, estas relações parecem ser muito intensas, mas

Francisco refere que nem sempre é assim, e que isso depende da vontade de cada um.

Em todo o caso existe à partida a base ideológica que potencia um dos objetivos

principais de alguns moradores: tornar o prédio ainda mais coletivo. Jerome, arquiteto

e ativista político francês, mora neste prédio há cerca de três anos, tendo-se tornado

numa das pessoas mais ativas desta comunidade. Neste momento, alugou o terceiro

andar, com o objetivo de ampliar as dinâmicas deste coletivo, ao destinar dois dos

cinco quartos somente para atividades comunitárias, desde aulas de yoga, explicações

de francês, oficinas de música, artes plásticas ou aulas de culinária.

Nober, de origem brasileira e residente no prédio há cerca de seis anos,

conhece melhor que ninguém as histórias deste lugar. Mora no quarto (e último)

andar, paredes meias com as atividades existentes no terraço. Com ele moram Sara,

há dois anos vivendo neste prédio, e João, que recentemente se instalou aqui. Na

descrição de Nober, a vida do prédio sempre foi agitada, desde o convívio informal

entre vizinhos até aos concertos improvisados por alguns moradores:

“O som de alguma forma unifica um bocado o prédio, porque o barulho de festa é

omnipresente aqui à noite. Se não é um andar é outro. Às vezes há música num andar e as

pessoas começam a aglomerar-se, porque há música ali.”

Questionado sobre o barulho proveniente do fórum “Cinema Lá em Cima”,

Francisco refere que a aceitação do ruído é heterogénea, tendo em conta que por vezes

o problema nem é o barulho do cinema ou da música, mas sim as movimentações nas

escadas de emergência, que são o único acesso para o terraço, ou a presença de

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estranhos na sua varanda. Descrevendo o “ritmo do prédio”, que muda consoante as

dinâmicas, Nober refere que os moradores estão sujeitos a uma “força invisível

coletiva que ajusta os seus habitantes numa mesma vibração todas as semanas”.

Ao questionar Sara e João sobre essa “força invisível”, eles referem que ela

influencia as suas atividades e a própria tolerância para o ruído, dependendo dos

horários e do dia da semana. Em geral a música não os incomoda, mas

simultaneamente torna-se difícil definir o grau de incómodo, tanto pelas dinâmicas

instáveis do prédio como da disposição percetiva de cada um. No seguimento, Nober

refere que também tolera a música, sendo o convívio o mais incomodativo:

“Eu durmo com mais facilidade com música do que com conversa de gente. Porque

mesmo que seja baixa, eu estou a ouvir as conversas e não me consigo desviar do significado

das palavras.”

Mas o prédio também não é habitado somente por pessoas dispostas a

estimular essa noção de “aldeia vertical”. A existência destas dinâmicas teve efeitos

particulares, especialmente para quem não se revia neste tipo de convivência. Tal

como Francisco descreve:

“A família mais antiga do prédio foi-se embora há três meses. Estavam cá há 18 anos,

mas não se integraram na vida coletiva do prédio e nem a vida coletiva soube encaixá-los.

Tanto por causa do barulho, como do cinema e das festas. É algo sobre o qual não há

culpados. O prédio transformou-se e eles ficaram isolados dentro dele.”

Nober refere que o patriarca desta família mal falava com os restantes

moradores, não havendo qualquer tipo de diplomacia nas reclamações do ruído. Sara

lembra um episódio com este mesmo vizinho:

“Um dia lembro-me do vizinho super irritado, aos berros, mas eram duas da tarde

(...). Mesmo se efetivamente o ruído fosse fora de medida temos direitos. Existe esta

apreciação pejorativa de que alguém que faz ruído é alguém que não faz nada, porque o ruído

é visto com uma atividade paralela, derivado do ócio.”

Recorrentemente, este vizinho chamava as autoridades competentes, tendo

havido um episódio no qual a polícia apareceu por volta das 19h, ameaçando que, na

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vez seguinte, teriam que pagar 400 euros. Convém realçar a forma como a lei foi

exercida, tanto pelas autoridades policiais como pelo vizinho, tendo em conta que a

lei tem contemplado, ao nível de horários e limites de decibéis, tanto a proteção do

sossego como da salvaguarda da produção de ruído. Nesta perspetiva, João refere que

a lei do ruído pode ser uma arma para as pessoas se prejudicarem umas às outras, mas

também uma forma de proteger os que estão a fazer barulho:

“Há um limite e um horário estabelecido, as pessoas dizem que ainda não é hora ou

que não estão a fazer tanto barulho, e isso é perigoso porque ao criares um limite estás a dar

um poder indevido às pessoas.”

Francisco salienta que este prédio demonstra que, mesmo numa cidade,

quando se cria uma comunidade localizada forte, quem não se adapta tem que sair,

tornando o som num fator de exclusão social. Tal como o próprio argumenta:

“No caso desta família... num seio de um prédio jovem, de esquerda, ativista, com

muita música, o cinema, as festas, as aparelhagens, os concertos, mas também pessoas a

falarem na cozinha à noite...como regulamentar isto? Será que não se pode falar na cozinha à

noite com amigos? E um prédio inteiro, que vivia a horas diferentes do senhor Fernandes, que

se levantava às 6 da manhã para conduzir uma carrinha com crianças onde, provavelmente,

também aí sofria abusos sonoros. A dura realidade é que talvez ele e a sua família não

tivessem tido outro remédio senão sair do prédio.”

Para além destes antigos moradores, Nober refere que recentemente um casal e

seu recém-nascido se instalaram no andar de baixo, surgindo naturalmente

reclamações por causa do barulho, mas que a partir do diálogo conseguiram adequar o

som às necessidades desta família. Através desta atitude, criou-se um compromisso

entre os diferentes grupos que habitam o mesmo espaço: cada indivíduo, com o seu

próprio nível de perceção, cria constantemente uma regulação do seu volume de

acordo com a tolerância de cada morador, mas baseando-se na identidade coletiva

existente no prédio.

João argumenta que a relação de afinidade com uma pessoa cria o limite de

tolerância, tendo em conta que tem que “haver uma compreensão pelo ruído do outro

de forma a que haja consentimento para o ruído da própria pessoa”. No seguimento

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desta afirmação, Nober conta um episódio que presenciou numa noite após o “Cinema

Lá em Cima”:

“Estava no meu quarto e vi que estava um cara tocando guitarra, e a fazer a marcação

‘tum tum tum tum’ 84 em cima da minha cabeça. Estava todo o mundo dormindo e eu achei

que fosse uma pessoa que tivesse ficado do cinema. Cheguei de pijama e falei para tocar mas

não bater com o pé no chão. Quando ele respondeu eu reconheci a silhueta e a voz: era o Gil,

o vizinho aqui do lado, aí eu pensei “porra fui muito duro com o cara, vou ter que ir pedir

desculpa”. Se fosse alguém do cinema já era diferente.”

Nesta perspetiva, Sara refere que a noção de ruído tem a ver com o convívio

entre sujeitos, tendo em conta que a música de uma pessoa pode ser o ruído de outra.

João referiu como exemplo o som das máquinas de ginástica existentes na praça, que

apesar dos vidros duplos do seu quarto é um incomodo diário, especialmente de

manhã:

“Já me incomodou mais o som da rua que o som do prédio. Muitas vezes são as

pessoas com as máquinas de ginástica no parque que fazem uma chiadeira gigante ‘iii-iii-iii-

iii’ 85. Acordas e está um velho a fazer esse barulho que é agudo, irritante. Ainda por cima

esta praça faz muito eco, é incómodo, e pensares que foi a Câmara Municipal que pôs aquilo

ali...”

As escadas de emergência exteriores acabaram por tornar as relações de

vizinhança mais horizontais, ao permitir o livre acesso dos moradores aos diversos

apartamentos e desta forma contribuindo para a mobilidade humana dentro do prédio.

O uso exterior dos espaços dos apartamentos, através do convívio nas varandas ou no

terraço, promoveu o cruzamento de sons de cada morador. O som e a sua dispersão

naquele espaço desenvolveram assim a criação de uma comunidade acústica, tanto

pelo inevitável contacto com o ruído do outro, a partir dos nichos sonoros

provenientes de cada apartamento, como do próprio consentimento da existência

desses sons como pertencentes a essa noção de “aldeia vertical”. Estes fluxos

misturam-se, criando uma única paisagem, ou seja, emerge uma identidade global

proveniente das expressões heterogéneas de cada sujeito.

84 Referência onomatopeica de Nober sobre o som proveniente do terraço. 85 Referência onomatopeica do João sobre as máquinas de ginástica da praça.

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Ficou demonstrado, a partir das reações do vizinho mais antigo do prédio, que

as dinâmicas coletivas não respeitaram o seu direito ao sossego, direito esse

contemplado pelo Regulamento Geral de Ruído. Porém, o seu abuso de poder, ao

chamar a polícia às 19h ou a reclamar agressivamente às 14h, exemplificaram que a

quantificação do ruído não poderá ser o único critério ao nível legislativo tendo em

conta que, neste caso, os “agressores” não ultrapassaram os limites permitidos86.

Este caso demonstrou a sensibilidade que uma comunidade pode ter para com

o seu espaço, tanto na regulação dos “volumes comunitários” como no respeito às

expressões e partilhas de quem nele habita. Sendo assim, estas relações de vizinhança

distanciam-se de uma lei que ao fim ao cabo soluciona os problemas do ruído a partir

da imposição do poder e da penalização, afastando o indivíduo dos seus deveres

locais. Aqui, a noção de ruído é constantemente negociada, dependendo tanto das

dinâmicas, disposição percetiva e diálogo entre moradores, promovendo desta forma a

responsabilidade local.

A partir da perceção e tolerância do ruído do outro ou de uma abertura para o

diálogo que diplomatize os conflitos de vizinhança, tal como acontece em certos

momentos nesta “aldeia vertical”, é possível negociar as diversas amplitudes

percetivas existentes entre os indivíduos, de forma a respeitar a necessidade tanto do

sossego como do ruído de cada um.

Outra perspetiva interessante deste tipo de comunidade localizada é a da

autonomia que elas de certa forma ganham das cidades. Tal como Francisco

argumenta:

“Ao ser dada força a este tipo de comunidades, as cidades perdem a sua homogenia

para verem criar-se squats ou aldeias verticais, ou seja, espaços de identidades e dinâmicas

com personalidades muito próprias que, mesmo adequando-se a todos os critérios legais, são

porventura difíceis de compatibilizar em termos sonoros com habitantes desses lugares, que

de repente se tornam eles próprios em infelizes acasos em lugares com novas ordens”.

Na verdade, se todos os prédios dos Anjos de repente fossem habitados de

formas análogas à “aldeia vertical”, o processo de segregação das “outras” pessoas

não seria porventura natural? Por exemplo em Berlim, há bairros inteiros de turcos, de

86 Nober referiu que quando a polícia veio adverti-los eles estavam a conversar e a ouvir

música num nível “aceitável”.

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jovens, de hipsters ou de yuppies. Mas também existem cada vez mais por todo o

mundo os condomínios fechados ou espaços habitados por pessoas de classe alta, no

qual o silêncio se torna um valor positivo ao nível comunitário, mas simultaneamente

um mecanismo de controlo e constrangimento social87 . As cidades do futuro, ao

tornarem-se mais humanas, através da sua diversidade sociocultural, e menos

povoadas por uma homogeneidade casual e estéril, não poderiam ter, afinal, zonas de

tolerância sonora, enquanto espaços de conhecimento do outro?

87 Ver “ subúrbios acústicos”.

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PARTE 5

Instalação

Durante a pesquisa, produzi registos de áudios dos ambientes acústicos das

pessoas entrevistadas, bem como registos fotográficos dos espaços físicos

correspondentes. As relações estabelecidas com os sujeitos entrevistados foram

variadas, segundo a natureza dos casos em análise. Foi possível presenciar

efetivamente situações de ruído no espaço doméstico das pessoas, mas também foi

recorrente a referência a histórias antigas de situações já vividas por elas. Neste

sentido, foi necessário fazer registos complementares através de captações de som dos

locais em análise ou recorrer a sons que conseguissem elucidar os eventos que não

tive a possibilidade de assistir (isto porque estas captações sonoras e fotográficas

foram desde o início realizadas com a intenção de compor um produto final que daria

materialidade à pesquisa).

Esta necessidade de captar o espaço acústico dos entrevistados levou-me a

distinguir dois pontos de escuta: do espaço (físico e imaginário) do sujeito e do seu

espaço envolvente (ou o espaço do “outro”). Para tornar mais clara esta diferenciação

espacial, denominei estes dois lugares como de “dentro” e de “fora”, visando também

destacar uma das propostas da pesquisa que é reconhecer os limites dos territórios

acústicos, sociais e culturais existentes nas relações de vizinhança.

Inicialmente comecei por desenhar este projeto a partir da forma genérica

como o som é definido na cidade, ou seja, quis entender o campo existente (o limite/ a

relação) entre o sossego e o barulho. Tornou-se importante enfatizar a região

“cinzenta” entre estes dois extremos, de forma a melhor compreender, no caso do

ruído de vizinhança, tanto as fronteiras como os novos territórios que o som define

nos espaços domésticos.

Após escolher os casos que melhor ilustravam esta polarização entre sossego e

barulho, comecei por analisar os áudios das captações de som realizadas durante a

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pesquisa, de forma a entender o que seria mais oportuno introduzir no trabalho final,

dando preferência aos elementos que melhor refletiram a experiência do trabalho de

campo. No fenómeno do conflito de vizinhança, o som parece criar novos domínios

territoriais ao nível urbanístico, demonstrando a complexidade existente na definição

do espaço de “dentro” e de ”fora” dos sujeitos. Sendo assim, foi prioritário o uso das

capturas sonoras dos eventos que estão situados nessa “região cinzenta”, que estão

localizadas entre o domínio público e o espaço privado.

Mas além destas captações sonoras, o uso dos áudios dos entrevistados no

trabalho final também se mostrou importante, para que eles assim tivessem também

uma voz presente no produto. Neste sentido, este trabalho não seria simplesmente a

reprodução dos seus dilemas acústicos, mas um contacto mais direto com a realidade

destas pessoas. Desde as situações de ruído de vizinhança até aos depoimentos dos

sujeitos, tornou-se necessário expor todos os elementos recolhidos durante o trabalho

de campo, para que o trabalho fosse o mais verdadeiro possível com os diversos

eventos presenciados ao longo da sua construção.

Uma das primeiras impressões, ao ouvir os áudios recolhidos, foi do lado

imagético que o som possuía, fosse na escuta de um dado evento sonoro ou nos

depoimentos dos entrevistados. Nesse momento surgiu a reflexão sobre um fator

importante para a apreciação do próprio trabalho: como apresentar um trabalho de

pesquisa sobre o ruído de vizinhança num formato que não prejudique a sua leitura

sonora?

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5.1. Arte e Antropologia

Após assistir a exposição Woundscapes, o meu trabalho ganhou um novo

rumo. Organizada pelo Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) e

resultante da colaboração entre artistas e antropólogos de diferentes nacionalidades, a

exposição teve como base a partilha de olhares sobre a imigração em Portugal e suas

representações em contextos de dor e sofrimento social. Chiara Pusseti, uma das

curadoras, refere que um dos objetivos da exposição era a exploração do potencial

criativo dos colaboradores, acedendo a novos territórios conceptuais dentro da

etnografia:

“Woundscapes foi o resultado de um projeto coletivo originalmente concebido para

responder à falta de oportunidade, tanto para os antropólogos que trabalham como artistas,

quanto para os artistas ligados à antropologia, de apresentarem os próprios trabalhos num

diálogo internacional e transdisciplinar, para além dos canais acadêmicos mais tradicionais.”88

Mencionando a crise de representação nas ciências humanas e sociais nas

décadas de 80 e 90, Pusseti afirma que os antropólogos começaram a usar novas áreas

disciplinares para traduzir as suas pesquisas etnográficas, áreas estas que

aproveitavam os recursos tecnológicos contemporâneos, permitindo também alcançar

públicos menos académicos:

“Depois de Writing Culture (Clifford e Marcus, 1986) a escrita e a autoridade

etnográfica, a identidade do antropólogo, o género, o corpo e a sua reflexividade, as políticas

da interação e os campos de poderes, a sensorialidade e a sensualidade da relação com o

terreno, começaram a ser o centro de debates e a reflexão ainda continua. Os antropólogos

começaram então a experimentar formas não textuais, visuais, sonoras, plásticas e digitais, de

forma às vezes evocativa, e outras para provocar reações; às vezes para desafiar os limites

disciplinares, outras como manifesto político (…). As experiências do Sensory Ethnography

Lab (SEL) de Harvard ou do coletivo Ethnographic Terminalia representam bem esta

perspetiva de reflexão que, de alguma forma, se coloca entre arte e antropologia, defendendo

combinações inovadoras de estética e pesquisa etnográfica, para dar espaço a dimensões

experienciais que dificilmente conseguimos reproduzir por palavras.” (idem)

88 Disponível em http://www.portalseer.ufba.br/index.php/cadernosaa/article/view/6491/4872)

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Em torno de um dos conceitos centrais das obras, a vulnerabilidade social,

Woundscapes partia de diferentes contextos sociais e da criação de percursos

narrativos no espaço da exposição, permitindo que a reflexão emergisse tanto do olhar

dos autores quanto da interpretação dos próprios visitantes:

“O observador podia ao mesmo tempo explorar os caminhos de pesquisa dos autores

e criar interpretações em diálogo constante com as imagens produzidas pelos sujeitos

etnográficos, conseguindo leituras múltiplas e originais dos fenómenos sociais representados.

Se cada ponto de observação é particular e subjetivo, é também verdade que os observadores

se mexem de forma original e que o mesmo caminho pode ser percorrido e diversamente

interpretado por qualquer observador.” (idem)

Woundscapes mostrou-me que seria possível materializar a pesquisa utilizando

estratégias oriundas de áreas mais transversais da etnografia. A ideia do

posicionamento do observador enquanto sujeito autónomo na apreciação do espaço da

exposição foi uma forte influência para a proposta deste trabalho. Sendo o campo

narrativo do meu projeto conduzido principalmente pelo som, a mobilidade percetiva

torna-se importante, na medida em que propicia a reflexão sobre algumas noções base

da pesquisa, nomeadamente sobre o efeito do som em diferentes contextos sociais.

Relacionando este trabalho com a minha profissão de músico, decidi

materializar a pesquisa através da criação de uma instalação sonora, apostando no

potencial desta para gerar uma leitura mais clara da dimensão acústica dos espaços

analisados, bem como para explorar novos territórios criativos. Tive em consideração

esta abertura para a criação artística durante a fase de edição dos casos, procurando as

ferramentas necessárias para configurar o trabalho de forma original. Elegendo a

mobilidade percetiva como um fator imprescindível para a proposta, procurei tornar a

instalação interativa, de forma a que o observador tivesse uma certa liberdade de

“movimentos” ao nível sensorial. Neste sentido, procurei entender de que forma

poderia conciliar a exposição dos dados recolhidos no terreno com a presença do

observador no espaço da instalação.

Após algumas conversas com colegas de profissão, cheguei à conclusão de

que seria possível montar um projeto que daria ao visitante da instalação a

oportunidade de experimentar diferentes percursos narrativos de forma independente,

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tendo em conta que, para além dos casos escolhidos para compor a instalação serem

distintos entre si, existem interfaces tecnológicas que podem ajudar nas transições

entre os diversos campos acústicos existentes no trabalho. Através do recurso a

monitores de som para a escuta dos áudios e de uma tela para projeção das imagens

referentes aos espaços acústicos correspondentes, desenhei a instalação pensando na

interatividade que poderia surgir na relação entre som e imagem. A configuração

proposta para a instalação será explicada a seguir, mas em primeiro lugar é importante

descrever a relação sensorial com a visitante pretendida por meio dela.

Durante a fase de edição, ao analisar a relação entre as fotografias e os áudios

capturados, observei que o som tinha a capacidade de estimular os meus sentidos, na

medida em que realçava cores e criava movimentos dentro da imagem, projetando a

minha imaginação para além dos elementos observados e escutados. Esta ativação

percetiva tornou-se interessante não só pela prioridade do som na leitura do espaço da

instalação, mas também pela sua influência no “desenho” de elementos à partida

invisíveis na imagem. Nesta perspetiva, a fotografia era um médium silencioso, que

convidava o som a ser a “imagem em movimento”, deixando a composição final ao

critério dos sentidos e da imaginação do observador.

Podemos afirmar que o ser humano possui cinco sentidos distintos, que estão

todos em relação uns com os outros: visão e audição, olfato e paladar, tato e audição e

todas as possíveis combinações entre eles. As obras de arte e os trabalhos artísticos

em geral costumam proporcionar experiências sensoriais, envolvendo as diferentes

dimensões percetuais, de forma a provocar o que se designa como sinestesia. Como

experiência da relação entre planos sensoriais diferentes, ”a soma da imagem com

som cria a base de um mundo imaginário que vai para além da escuta e da visão,

dependendo da disponibilidade do sujeito” (Cox, 2001: disponível em

http://www.mocp.org/exhibitions/2001/10/-audible-imagery-sound-and-photography.php).

Esta provocação entre planos sensoriais distintos tornou-se importante para

este trabalho. Tendo em conta que um dos exercícios propostos ao observador reside

na desestabilização, ao nível percetivo, da sua observação natural de um dado evento,

o objetivo da instalação é impulsionar uma transcendência sensitiva, ou seja, que a

experiência do visitante vá para além dos seus sentidos e dos significados existentes

no espaço da instalação (abrindo-se à construção de novos sentidos que podem

emergir a partir da vivência individual de cada observador). Seguindo esta perspetiva,

são utilizados elementos sonoros e visuais que estimulam essa relação sensorial,

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através da sobreposição do áudio com a fotografia, designando a priori o som como o

fluxo que orienta o observador pelos diversos espaços narrativos disponíveis.

De seguida, passo a explicar o corpo da instalação.

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5.2. Corpo da instalação

A configuração espacial da instalação tem como base uma tela de projeção,

central à sala da exposição, com dois monitores de som nos seus extremos 89 .

Juntamente com o controlador MIDI90, situado no centro da sala, estará um texto

explicativo da instalação, como também a legenda de cada opção possível ao nível

interativo91.

Recorrendo a um computador através do software Resolume® e Abelton Live®,

será dada ao observador a possibilidade de misturar (isto é, mixar) os diferentes casos

ou espaços acústicos disponíveis, através do controlador MIDI da Korg que estará

ligado via USB ao computador. Este controlador interativo possui 9 faders92 com os

respetivos botões, designados por knobs93.

A nível audiovisual, cada caso terá dois faders, sendo que cada um

corresponde simultaneamente a um evento sonoro e à imagem relacionada com o

espaço onde se deu tal evento. Destes dois faders por caso, um é dedicado ao som e

imagem de “dentro”, ou seja, o espaço do entrevistado (tanto da sua presença como

dos eventos que acontecem no seu espaço doméstico), e o outro é designado para o

som e imagem de “fora”, ou seja, os eventos do espaço envolvente do fader 1. Por

exemplo, o fader 1 e 2 correspondem ao caso “Vibração e Proximidade”, que retrata

os problemas existentes entre os bares e os moradores do Bairro Alto. Sendo assim, o

f 1 é destinado aos eventos da casa de Dona Ivone, moradora do Bairro Alto

entrevistada durante a pesquisa, enquanto o f 2 é voltado para os eventos e sons dos

bares que se encontram entorno da casa da senhora.

Na interação com os faders, o utilizador da instalação pode aumentar ou

diminuir o volume do som. Ele pode ainda misturar eventos relacionados (de cada

caso), bem como sobrepor eventos de outros bairros/freguesias disponíveis. Outra

característica do controlador consiste na possível modificação da panorâmica dos

89 Ver Anexo 1. 90 MIDI (abreviatura de Musical Instrument Digital Interface) é uma tecnologia padronizada

de comunicação entre instrumentos musicais e equipamentos eletrónicos (teclados, sintetizadores,

computadores, etc.), que possibilita que uma composição musical seja executada, transmitida ou

manipulada por qualquer dispositivo que reconheça esse padrão. Tecnicamente, MIDI é um protocolo;

entretanto, o termo geralmente é utilizado também para se referir aos diversos componentes do sistema,

como adaptadores, conectores, arquivos, cabos, etc. 91 Ver Anexo 2. 92 Designa-se faders aos controladores de volume de um aparelho de som. Ver Anexo 2. 93 Designa-se knob aos botões de um aparelho de som. Ver Anexo 2.

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eventos. Através dos knobs, podemos mover o som no ângulo de 180°, amplitude que,

de acordo com a localização dos monitores de som, encontra-se entre a esquerda e a

direita do utilizador.

A fotografia é simultaneamente condicionada por estas aplicações no som. Ao

sobrepor eventos, as imagens vão sendo somadas, criando desta forma um “ruído

visual” (devido à sobreposição de fotografias) caso estejam muitos eventos a serem

escutados ao mesmo tempo. No caso da aplicação das panorâmicas, o campo da

imagem será ampliado na mesma área em que se localiza o evento sonoro. Por

exemplo, se o utilizador mover o áudio para a esquerda, esse lado da superfície da

fotografia será aumentado em simultâneo. Simbolicamente, a ampliação da imagem é

uma forma de demonstrar o destaque sonoro que se quer dar a algum elemento

escutado nesse ângulo de 180º, ao distribuir os eventos pelo espaço da instalação.

Podemos afirmar que, nas suas diferentes aplicações interativas, a instalação procura

enaltecer essa metáfora resultante da relação entre o campo visual e os eventos

sonoros, ou seja, de emergir o som na imagem como também a imagem no som.

Neste sentido, eleva-se tanto as semelhanças entre a escuta e a observação como

também as diferenças existentes entre estes dois planos sensoriais.

Uma das intenções desta instalação é também a de estimular a capacidade

percetiva do observador, a partir da escolha dos eventos disponíveis no espaço da

instalação. Esta interatividade demonstra-se acima de tudo como um exercício, pois

influencia o utilizador a transitar entre os diferentes campos acústicos existentes, seja

através da curiosidade proveniente dos depoimentos dos entrevistados, da relação

entre eventos num dado caso, ou da simples mistura de campos narrativos distintos

entre si.

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5.2.1. Efeito Sharawadji

Este trabalho tem como finalidade principal promover uma experiência dos

sentidos ao observador. A nível conceptual, ele foi baseado num efeito sonoro

existente nos centros urbanos, denominado efeito Sharawadji. Documentado por

Jean-François Augoyard e Henry Torgue no livro Sonic Experience (2006),

Sharawadji é “um efeito estético, caracterizado pela sensação de plenitude que por

vezes acontece na contemplação de uma paisagem sonora complexa, que possui uma

beleza inexplicável” (Augoyard e Torgue, 2006: 117). Este termo exótico, introduzido

na Europa no século dezassete por viajantes que regressavam do Oriente, é

proveniente da “apreciação subjetiva dos jardins chineses, que, por não possuírem

uma ordem no ornamento do espaço, transportavam os seus observadores para um

outro lugar, fora de contexto, ao afetar a sua imaginação de uma forma inesperada”

(idem:117). A aparente desordem dos elementos no espaço torna-se uma condição

necessária para o aparecimento deste efeito, ao confundir a perceção e assim fugir à

elaboração cultural a que os nossos sentidos estão habituados:

“The effects of beauty obtained through the anamorphosis of the geometric

representation, if and only if calculated distortions do not appear: so is the sharawadji effect.”

(Marin, “L’effet sharawadji: 124 in Augoyard e Torgue, 2006: 182).

Nas paisagens sonoras urbanas podemos observar este efeito devido a sua

imprevisibilidade e diversidade sonora. Sejam de origem industrial ou tecnológica, os

sons escutados na cidade podem criar uma aparente repulsa, mas simultaneamente

uma estranha beleza, sensação típica do efeito Sharawadji. Sons de uma motorizada

de alta potência ou de um avião atravessando em baixa altitude são exemplos de

eventos sonoros que possuem os critérios indispensáveis para o aparecimento deste

efeito: ritmos descontínuos, intensidade alta e sons de baixa frequência (Augoyard e

Torgue, 2006: 119). Em todo o caso, o surgimento do efeito Sharawadji acontece em

circunstâncias específicas, nomeadamente através da recetividade psicológica e

percetiva perante os eventos, acionando a imaginação do indivíduo:

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“If dreamed or worried we may be completely deaf to the environment. On the other

hand, during a travel our minds can combine receptivity, attention, and perspicacity to

become receptive to novelty and sonic fantasy.” (idem: 120)

A interatividade existente no espaço da instalação, ao permitir que múltiplos

campos acústicos se misturem sem uma ordem prevista, poderá permitir o surgimento

do efeito Sharawadji. Ao retirar certos sons do seu contexto, abre-se o caminho para

uma distorção tanto ao nível percetivo como semântico dos eventos. Neste sentido,

através das inúmeras combinações possíveis para os diversos casos, o observador

estará apto a produzir este efeito, evidenciando uma ordem subjetiva e sublime, que

vai para além dos significados dados aos elementos escutados e observados no espaço

da instalação. A disponibilidade com que o indivíduo interage com o espaço é

essencial, para que haja uma abertura para as diferentes sensações provocadas pelos

eventos vivenciados e um despertar dos sentidos para o alcance dessa “beleza

inexplicável” que emerge do efeito Sharawadji.

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Considerações finais

Logo após a finalização desta investigação académica, tive uma experiência

curiosa em casa dos meus pais, situada no bairro de Telheiras. A casa deles é de

construção recente, com acabamentos ao nível acústico de fazer inveja aos moradores

da zona da Parque Expo (que descrevi no ponto “Observações sobre o Regulamento

Geral do Ruído”). Tenho o costume de ir ter com a minha família para o nosso

habitual almoço de domingo. Normalmente almoçamos na cozinha, por ser ampla e

ter uma boa luminosidade. Eu fico sempre sentado perto da janela, onde gosto de

olhar para a rua de vez em quando, evitando a televisão que está insistentemente

ligada à hora da refeição. Um domingo, a certa altura ao olhar para a estrada, reparei

num senhor que passava de bicicleta com um estojo na sua traseira. Imediatamente

me apercebi que era o amolador de facas, uma entidade para mim mítica, devido ao

som característico da sua flauta de beiços, som esse que remete para as memórias da

minha infância passada em Almada velha. Como desde que iniciei esta investigação

académica tenho sempre o gravador digital comigo, capturei a passagem sonora deste

senhor, que reverberava pela praceta do bairro. Para isso precisei de abrir um pouco a

janela tendo em conta que ela é de vidros duplos e bloqueia eficazmente os sons

provenientes do exterior. Por vezes, ou se calhar por impressão minha, observo neste

senhor um certo ar de confusão, ao olhar para todas as direções como se sentisse

ignorado pelos moradores daquela praceta. Pessoalmente suspeito que ninguém o

escute, especialmente num bairro com apartamentos que possuem um isolamento

acústico de excelência. No momento em que decidi gravar o som que emitia

questionei-me acerca da importância de o fazer, não só por ter recentemente

despertado o prazer de escutar sons do quotidiano, mas também por esta sonoridade

pertencer à história da minha infância, sabendo que a profissão de amolador de facas,

ou esta forma de o exercer, tende a desaparecer. Apesar do apego emocional que eu

tenho por este som e de querer ter sempre a oportunidade de escutá-lo, este tipo de

expressões irão certamente dissolver-se por não se adaptarem às mudanças rápidas a

que assistimos nas sociedades modernas. No mundo desenvolvido, os sons estão

progressivamente a perder o seu “efeito patrimonial”, enquanto elementos acústicos

que refletem a história de um lugar. A questão que ponho é: até que ponto não seria

imperativo haver uma memorização de sons, deixados ao sabor da erosão da evolução

industrial e tecnológica, sons esses que fazem parte da nossa herança cultural? Por

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todo o lado existem marcos sonoros, ou seja qualidades específicas de um espaço

acústico que é percecionado por uma dada comunidade. Penso que é na

“museificação” destes elementos imateriais que pode residir a reflexão sobre a

importância do som na construção da nossa identidade coletiva, ou seja, a definição

de uma comunidade e o que a distingue, mas também pode levar-nos a questionar a

utilização e manipulação acústica que acontece tanto no domínio público como

privado e que é cada vez mais frequente nas sociedades de consumo (tal como

descrito no ponto “Silêncio negativo e música programada”).

A partir deste novo “olhar” para o mundo sonoro para o qual fui despertando

ao longo destes anos de investigação académica, criei o blog Sontato.tumblr.com onde

estão expostas as captações sonoras que fui fazendo nos diferentes locais que

despertaram a minha atenção percetiva. Baseadas no efeito sonoro Sharawadji, estas

captações visam representar as minhas preferências de escuta num dado lugar,

procurando encontrar essa beleza sublime que caracteriza este efeito sonoro e que

pode ser percecionado nos centros urbanos.

Iniciei esta pesquisa académica com o objetivo de entender que tipo de

relações o ser humano desenvolve com o som em diferentes contextos sociais. Sinto

que fui evoluindo em certos aspetos, muito por causa da exigência e dedicação que foi

necessária para este tipo de investigação. Para além da pesquisa bibliográfica, que me

elucidou e deu a conhecer as diferentes abordagens existentes nesta área, tive

necessidade de realizar diversos passeios sonoros para conseguir despertar a

capacidade percetiva indispensável para este trabalho.

O ato de viajar é uma forma de compreendermos o mundo e a nós mesmos,

através da vulnerabilidade a um meio geográfico, social e culturalmente distinto. As

experiências vividas no Senegal, Mali e Brasil foram cruciais devido às pessoas,

culturas e eventos com as quais tive oportunidade de entrar em contacto. As

dimensões acústicas, especialmente as que encontrei no deserto do Sahara, a norte do

Mali, foram imprescindíveis para que pudesse ultrapassar algumas barreiras, na sua

maioria de cariz percetivo, mesmo não tendo encontrado o silêncio absoluto que

imaginei que existisse. Comecei a partir daqui a valorizar os lugares mais sossegados

da minha cidade, que promovem a escuta dos “sons interiores”. Desde os jardins

públicos até aos ambientes de diversão noturna mais sossegados, esta experiência

influenciou a minha rotina e ensinou-me a apreciar espaços que são menos afetados

pelo ruído urbano.

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Penso que é importante a partilha desta experiência, para a população em

geral, por realçar os benefícios do silêncio enquanto campo acústico que desperta para

a sensibilidade da escuta, indispensável para um melhor entendimento tanto do meio

envolvente como da paisagem sonora “interior” de cada indivíduo. Penso também

que, ao nível da legislação existente sobre o ruído, o trabalho e a visão das entidades

reguladoras sobre esta matéria ainda está longe de ser o mais adequado.

Ao nível institucional existe uma luta visível em relação a certos tipos de

poluições como a atmosférica, do solo ou da água, através de estudos constantemente

monitorizados ou na implementação de medidas de redução dos seus impactos

ambientais. Em relação à poluição sonora acontece o mesmo, mas os resultados não

vão de acordo com o investimento que tem sido feito. Ano após ano, as autoridades

governamentais investem mais recursos e tornam as leis mais severas, mas os índices

de poluição sonora continuam a aumentar. Sendo assim, o que está a ser feito de

errado?

A sociedade civil manifesta-se ruidosamente sobre o combate à poluição

sonora, mas paradoxalmente existe um silêncio sepulcral sobre os benefícios do

sossego. Observando as implementações levadas a cabo pelas entidades reguladoras

(desde barreiras acústicas nas autoestradas até aos diversos modelos de bloqueio

sonoro ao nível habitacional), reparo que além de serem dispendiosas servem para

segregar os seus utilizadores, agravando algumas implicações sociais que estes

isolamentos podem vir a causar.

Ao nível social, a relação do ser humano com o som é quase contraditória.

Verifica-se uma atitude quase obsessiva em querer garantir o silêncio para o bem

estar, mas ao mesmo tempo um marcado receio pela ausência total de som, por ser um

sinónimo de falta de estímulos ou mesmo de vida ao redor. Isto deve-se em grande

parte à aprendizagem que se adquire inevitavelmente no dia a dia dos centros urbanos,

que é imposta pela evolução da indústria e tecnologia (dos seus ruídos que não

cessam nas paisagens sonoras urbanas) e também pela saturação da sociedade de

informação, através do constante “preenchimento do vazio” comunicacional a que se

assiste principalmente nos media. Por um lado, as pessoas nas cidades não sabem o

que é uma verdadeira experiência de som e silêncio por terem o seu imaginário preso

a uma paisagem sonora intrusiva, por outro, as entidades governamentais combatem a

poluição sonora sendo as próprias que a fomentam, ao controlarem os níveis de ruído

emitido e escutado ao nível ecológico e sociocultural.

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A forma como os problemas ambientais e sociais que provêm do ruído são

debatidos pela sociedade civil pode ser um indício de como certos valores morais e

políticos são impostos à população em geral. Por outras palavras, a sobrevalorização

do silêncio, enquanto campo sonoro essencial para o bem estar de uma sociedade,

pode acabar por se tornar num instrumento de controlo de valores e expressões

sociais, se o ruído ou qualquer ato de expressão diferenciado for visto como crime (tal

como aconteceu nas primeiras leis de ruído um pouco por toda a Europa). A partir de

uma análise de caráter sociocultural, o ruído pode também ser visto como um veículo

de diálogo, partilha e confrontação entre sujeitos, ao proporcionar a oportunidade de

se conhecer o outro e o que é diferente, tal como observei nos casos sobre o ruído de

vizinhança em Lisboa.

As relações de vizinhança emergem do inevitável encontro entre pessoas, isto

é, nascem tanto do contacto formal como da conflitualidade entre membros que

habitam no mesmo espaço urbano. Ao nível acústico, esse conflito traduz-se numa

negociação percetiva entre sujeitos que debatem entre si a noção de ruído, procurando

um campo de entendimento entre o que pode ser emitido e o que deve ser escutado.

Nesta perspetiva, as leis de ruído e os seus critérios de fiscalização podem

impulsionar uma divisão entre pessoas que habitam o mesmo espaço, ao favorecer e

punir simultaneamente os seus intervenientes, tornando-se uma arma que influencia a

estrutura orgânica desse lugar.

A noção de ruído possui um caráter subjetivo que surge da relação de um

indivíduo com o seu meio social e cultural. Na maioria dos casos analisados, observei

que através de uma disponibilidade percetiva para com o espaço do outro ou de uma

abertura para um diálogo que promovesse o consenso, foi possível negociar as

diversas perspetivas sensoriais implicadas, para que fosse respeitada a necessidade de

sossego e a de produção de ruído de cada sujeito. Casos como “Onda do Tejo” ou

“Aldeia Vertical”, demonstraram que o Regulamento Geral do Ruído carece de

parâmetros de análise qualitativa, ou seja, uma abordagem mais ampla deste

fenómeno que consiga, acima de tudo, impulsionar um entendimento (circunscrito) e

não um relacionamento silencioso e hostil entre os envolvidos. Nestes dois casos

assisti ao surgimento de uma responsabilidade local, que só aconteceu através do

conflito direto entre sujeitos. Nesta perspetiva, o termo conflito deve ser visto o início

de uma necessária negociação entre apreciações distintas sobre um determinado lugar,

neste caso ao nível percetivo acústico. Assisti a casos em que o ruído não excedeu os

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limites determinados pela lei e em que o distúrbio provinha de um quase inexistente

relacionamento entre vizinhos. Neste sentido, as formas de controlo do ruído ao nível

legal, através da denúncia ou da intervenção policial, acabam por se substituir a um

debate construtivo que possibilitasse os seus intervenientes regular diretamente as

intensidades sonoras desse lugar comum.

Talvez se esteja a canalizar os recursos no combate à poluição sonora de forma

errada. Em vez de se investir tanto tempo e dinheiro em medições e restrições de

ruído que já se sabe ser nocivo para a saúde, ou criar legislações que nunca vão ter o

sucesso pretendido devido ao inevitável aumento do ruído enquanto “som do

progresso” (e por vezes devido à negligência das próprias autoridades fiscalizadoras),

porque não, tal como alguns investigadores argumentam, repartir o investimento entre

atividades educacionais e espaços que promovam o silêncio para a população em

geral?

Penso que a solução pode passar em grande parte não só pela criação de mais

espaços reservados ao sossego ao nível urbanístico como também pela educação da

população, dando especial relevo às gerações mais novas, realçando tanto o valor do

silêncio enquanto fluxo indispensável para a estabilidade psíquica e emocional do ser

humano, como o do ruído enquanto reflexo das dinâmicas sociais de um lugar, que

são indispensáveis para um maior entendimento do espaço em que se vive e dos

indivíduos que habitam um mesmo ambiente comunitário. Não é necessário nem

aconselhável o silêncio que promova um “aprisionamento” sonoro (Labelle, 2010),

sabendo que essa restrição acústica pode vir a influenciar os relacionamentos entre

sujeitos. O que julgo ser necessário é o silêncio que promova um estado

contemplativo (tal como descrevi no ponto “Entre Dakar e Timbuctu”), percecionado

em espaços onde se possa interromper a experiência diária de ruído urbano, de forma

a ter-se acesso a uma prática dos sentidos mais ampla. Um espaço sossegado promove

a diferenciação e a distinção. Quanto mais se observam as distinções entre as coisas

mais objetivamente se apreciam as diversas expressões que fazem parte do meio

envolvente. Se é pretendido que mais pessoas apreciem a importância do sossego ou

que outras entendam a relevância da existência do ruído enquanto ato de expressão

livre, é necessário criar ambientes nos quais o som possa ser ludicamente desfrutado.

Por outras palavras, o objetivo passa por trazer à população em geral a noção de

amplitude acústica do ambiente social em que se está inserido. Ao nível escolar,

existem programas de sensibilização ao nível alimentar ou sobre a educação sexual,

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mas será que não existe espaço para a implementação de atividades relativas à

educação acústica? A expressão musical, que já existe no plano curricular das escolas,

é uma aproximação muito superficial do impacto que o som tem no dia-a-dia. Seria

benéfico proporcionar aos jovens as condições necessárias para que conseguissem

adquirir uma perceção nítida do reservatório de sons existentes no seu quotidiano, ou

seja, ensiná-los a compor de forma consciente o espaço sonoro que os rodeia sabendo

distinguir os elementos pertencentes à sua comunidade acústica.

Tal como este trabalho final de mestrado pretendeu recriar, através da

interatividade no espaço da instalação, poderiam ser criadas oportunidades de

estímulo percetivo para a população em geral, através da relação entre a paisagem

“interior” e exterior de cada indivíduo. Ao tentar entender essa zona de interseção

situada entre o “dentro” e o “fora”, ou seja, o espaço invisível em que o “mundo

interior” do sujeito comunica com o seu exterior (ou o espaço potencial da relação

humana), é que realmente podem emergir as condições básicas para que as pessoas

foquem uma maior atenção periférica nos diversos fenómenos existentes no seu meio

envolvente. Neste sentido, o indivíduo atinge uma maior capacidade percetiva através

deste exercício entre o “fora” e o “dentro”, ao conseguir deslocar-se de si mesmo.

Penso que é na demonstração da amplitude sonora do ambiente social que se

poderão criar os contextos adequados para as pessoas despertarem para uma maior

sensibilidade de escuta. Ao colocar o som como principal bússola na criação do mapa

social e na estimulação do imaginário, através do reconhecimento dos marcos sonoros

que fazem parte da comunidade acústica, isto é, na valorização do som enquanto

forma de conhecimento do meio em que se vive, é que se poderá verdadeiramente

encontrar espaço para a elevação de uma conformidade entre as diversas formas de

perceção existentes entre sujeitos.

Parece ser no recurso a parâmetros de análise qualitativa, provenientes das

ciências sociais e humanas, que se pode encontrar possibilidades de uma melhor

leitura dos diferentes ambientes acústicos e sociais existentes nos centros urbanos.

Esta parece ser a alternativa adequada para se criarem as condições necessárias para

que as entidades competentes possam proteger os direitos dos seus cidadãos, bem

como clarificar os deveres dos diversos agentes sociais envolvidos nesta matéria.

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Entrevistas:

Engenheiro António Cruz, 6 de junho 2012.

Luís Paisana, 23 de junho 2012.

Dona Ivone 10 de julho 2012.

Francisco Leitão, 11 de julho 2012.

Mira e Sérgio, 15 de julho 2012.

Vasco Costa, 19 de julho 2012.

João Vicente e José Silva Carvalho, 8 de agosto 2012.

Hugo Ribeiro 3 de outubro 2012.

Chefe Costa 11 de outubro 2012.

Nober, Sara e João, 25 de outubro 2012.

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ANEXOS

ANEXO 1

I

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II

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ANEXO 2

III