trabalho de aproveitamento

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Pedro Luís de Almeida Camargo 17/11/2014 N° USP 8046701 Trabalho de aproveitamento – Teoria Política Normativa 1) Para entendermos a posição de Berlin expressa em seu ensaio “Dois conceitos de liberdade”, é necessário que se faça preliminarmente uma contextualização histórica do momento da filosofia política, para que se entenda contra quem Berlin desenvolveu estas concepções de liberdade e quais eram as razões para que se atribuísse um valor especial ao que ele chama de “liberdade negativa”. O campo normativo da teoria política, ou seja, aquele que possui um profundo contato com a dimensão ética e que possui um sentido prescritivo em relação à estrutura política da sociedade. Elementos normativos estão presentes na teoria política moderna em autores como Hobbes, Locke e Rousseau, que são fundamentais para o desenvolvimento da filosofia política até o contexto contemporâneo. No contexto de Berlin, no entanto, o caráter normativo da teoria política não estava em evidência no debate. Isto acontecia em virtude de razões metodológicas, sendo que as posições que ilustravam este contato da filosofia moral com a teoria política se davam em uma dimensão não normativa, como em relação ao ceticismo moral de Max Weber, que entendia a escolha dos fins como um ato de vontade em meio à racionalidade instrumental na escolha dos meios no processo de modernização ocidental (WEBER, 2004). Por

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Pedro Lus de Almeida Camargo17/11/2014N USP 8046701

Trabalho de aproveitamento Teoria Poltica Normativa1) Para entendermos a posio de Berlin expressa em seu ensaio Dois conceitos de liberdade, necessrio que se faa preliminarmente uma contextualizao histrica do momento da filosofia poltica, para que se entenda contra quem Berlin desenvolveu estas concepes de liberdade e quais eram as razes para que se atribusse um valor especial ao que ele chama de liberdade negativa. O campo normativo da teoria poltica, ou seja, aquele que possui um profundo contato com a dimenso tica e que possui um sentido prescritivo em relao estrutura poltica da sociedade. Elementos normativos esto presentes na teoria poltica moderna em autores como Hobbes, Locke e Rousseau, que so fundamentais para o desenvolvimento da filosofia poltica at o contexto contemporneo. No contexto de Berlin, no entanto, o carter normativo da teoria poltica no estava em evidncia no debate. Isto acontecia em virtude de razes metodolgicas, sendo que as posies que ilustravam este contato da filosofia moral com a teoria poltica se davam em uma dimenso no normativa, como em relao ao ceticismo moral de Max Weber, que entendia a escolha dos fins como um ato de vontade em meio racionalidade instrumental na escolha dos meios no processo de modernizao ocidental (WEBER, 2004). Por outro lado, existia no campo da filosofia, particularmente na epistemologia, a proeminncia do positivismo lgico, que sustentava que as proposies cognitivas se davam ou em proposies analticas, que diziam respeito a objetos formais e juzos a priori, ou em proposies sintticas, que dependem de uma metodologia cientfica com material emprico para serem verificadas. Sendo assim, a cincia poltica anglo-sax tendia a ser marcada por essa posio epistemolgica, como no behaviorismo de David Easton, que analisava apenas a poltica emprica e no levava em conta proposies de carter normativo (EASTON, 1957). Ocorria tambm um impedimento ao desenvolvimento da teoria poltica normativa devido a questes de ordem substantiva, com alguns autores argumentando que as ideologias j no importavam no debate poltico devido a um certo consenso em relao aos fins da democracia liberal (BELL, 1960).A partir dos anos 1960, o contexto envolvendo tanto as questes ideolgicas da poltica quanto o predomnio metodolgico do positivismo so abaladas, e Isaiah Berlin um grande expoente desta reao. Um debate em voga era sobre o conflito entre liberdade e igualdade, em que se contrapunham os positivistas afirmando que este conflito era insolvel, porque no tinha um carter cientfico (dentro dos seus prprios termos), e entre os que acreditavam que este confronto era relevante. Dentro desta ltima posio, havia um destaque para a posio utilitarista, que acreditava que este confronto era mais aparente que real, sendo que o foco deveria ser reduzir o conflito dimenso da utilidade, ou seja, da satisfao das preferncias racionais (pelo menos em uma de suas formulaes) (KYMLICKA, 2002, pp. 10-52). Berlin reage a estas duas concepes do conflito entre igualdade e liberdade, o que motiva seu artigo Dois conceitos de liberdade, em que discutida uma definio exata deste termo, se desdobrando em liberdade negativa e liberdade positiva. Berlin justifica sua posio em relao ao levantamento da definio com o sentido de que ela envolve algum juzo de valor, procurando compreender as ideias ou atitudes morais que envolvem conflitos polticos, o que parte de questes como a existncia da autoridade, o que a justifica e qual o seu limite (BERLIN, 2002, p. 228). Ao mesmo tempo, h um questionamento em relao a Max Weber, j que sua tipologia no abarca o que envolvido pela normatividade destas questes, em relao ao positivismo lgico, j que uma questo que excede seu escopo de anlise, e contra o utilitarismo, j que a partir da ausncia de consenso normativo e a existncia do pluralismo moral no possvel definir um critrio valorativo nico. A partir destas consideraes sobre o contexto, importantssimas para entender a definio de liberdade feita por Berlin e qual ser a posio do autor em relao a isto, podemos prosseguir para a anlise da liberdade neste artigo, confrontando suas duas definies. A liberdade negativa pode ser entendida como simplesmente a rea na qual um homem pode agir sem ser obstrudo por outros. (BERLIN, 2002, p. 229). Isso significa que a liberdade neste sentido se d a partir da ausncia de interferncias arbitrrias de outrem, sendo que este outrem muitas vezes toma a forma da autoridade poltica. Isto no significa que qualquer perda de liberdade seja injustificada perante outros fins sociais, mas que estes fins no se confundem com a liberdade negativa em si, como define Berlin quando afirma que o sacrifcio no um aumento do que est sendo sacrificado, a saber a liberdade, por maior que seja a necessidade moral ou a compensao pelo sacrifcio. (BERLIN, 2002, p. 232). Esta concepo de liberdade encontra eco na definio de Benajmin Constant da liberdade dos modernos no contexto dos direitos civis clssicos (CONSTANT, 1985), assim como sua formulao a respeito da perda de liberdade em favor de outros fatores remete a John Stuart Mill (BERLIN, 2002, pp. 233-234).Antes de analisarmos a chamada liberdade positiva e comparar as duas definies de liberdade, cabe aqui uma distino que feita pelo prprio Berlin, sobre a possibilidade desta liberdade no dizer respeito necessariamente a uma sociedade democrtica, j que no se importa com a fonte de autoridade, apenas com a ausncia de interferncia na esfera individual. Sendo assim, a liberdade negativa no est ligada necessariamente com o autogoverno. Berlin define isto nos seguintes termos: A ligao entre democracia e liberdade individual muito mais tnue do que parecia a muitos advogados de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo, ou pelo menos de participar do processo que controle minha vida, pode ser um desejo to profundo quanto o de uma rea livre para a ao e talvez historicamente mais antigo. Mas no o desejo da mesma coisa. (BERLIN, 2002, p. 236).Passemos agora para a definio da liberdade positiva. Existe uma ligao ntima deste sentido de liberdade com a ideia de autogoverno, mais especificamente com o autogoverno definido como racional, no sendo sujeito a paixes, natureza externa ou domnio de outros homens. O que seria aparentemente compatvel com a liberdade negativa passa a entrar em conflito quando pensamos na questo do que seria esta racionalidade. Isto abre caminho para uma distino entre aqueles que alcanam este nvel de liberdade e portanto so verdadeiramente livres e aqueles que ainda so escravos de desejos no racionais, no alcanando o nvel de liberdade positiva para serem verdadeiramente autogovernados. H uma distino entre um eu emprico e um eu verdadeiro, que varia conforme a concepo de indivduo que envolve esta liberdade. Sendo assim, pensa-se uma forma racional de vida para o indivduo, em Kant possuindo autonomia moral (BERLIN, 2002, p. 241) e em Mill possuindo autonomia individual, que envolve uma concepo de boa vida de um indivduo crtico em relao s autoridades morais, religiosas e polticas, escolhendo seus prprios fins e valores (BERLIN, 2002, p. 234).Percebe-se aqui um afastamento da concepo de pluralismo moral de Berlin, porque se prescreve uma forma de vida para o indivduo na qual ele seria verdadeiramente livre porque estaria seguindo uma certa racionalidade. O verdadeiro perigo para Berlin, porm, envolve o fato de esta concepo de autogoverno racional ser estendida para a sociedade, em que uma concepo coletivista de autogoverno racional divida os cidados entre aqueles autoconscientes e os recalcitrantes que devem ser coagidos para o papel considerado melhor pela sociedade (um ideal de boa vida social). Isto no seria propriamente uma coao, j que seria em benefcio dos prprios coagidos. A crtica de Berlin que esta concepo transforma a coao em liberdade atravs da falsa afirmao de eus verdadeiros, o que um espao aberto para a manipulao e a tirania justificado como liberdade. Sobre estas concepes, Berlin observa, com certo tom de ironia:

O pressuposto comum desses pensadores (e de muitos escolsticos antes deles e de jacobinos e comunistas depois deles) que os fins naturais de nossas verdadeiras naturezas devem coincidir, ou serem levados a coincidir, por mais violentamente que os nossos pobres eus, ignorantes, dominados pelos desejos, apaixonados, empricos, possam gritar contra esse processo. A liberdade no a liberdade de fazer o que irracional, estpido ou errado. Forar os eus empricos a se adaptar aos padres corretos no tirania, mas libertao. (BERLIN, 2002, p. 251)

V-se, portanto, que Berlin est preocupado com a justificativa de uma poltica autoritria por meio de um conceito de liberdade. Ele identifica em autores como Marx e Rousseau tentativas de justificar uma ideia de boa vida para a sociedade, com o eu verdadeiro tomando esferas supra individuais. Berlin, portanto, percorre o caminho destas definies para mostrar o potencial conflitivo que estes dois conceitos de liberdade possuem, sendo que no possvel pensar em conciliar absolutamente os dois, mas sim que Vale reconhecer essa divergncia, mesmo que na prtica seja frequentemente necessrio chegar a uma soluo de compromisso entre as duas. (BERLIN, 2002, p. 267). Berlin, porm, assume uma clara postura de defender a liberdade negativa em absoluto, procurando apenas limit-la para evitar males maiores, inclusive pensando na liberdade negativa como meio de frear a autoridade da liberdade positiva. Ilustrando esta posio, conclui-se aqui esta investigao com o seguinte trecho da obra: O pluralismo, com a dose de liberdade negativa que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritrias o ideal do autodomnio positivo por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas so muitas, nem todas comensurveis, e em perptua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa nica escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens so agentes livres, representar a deciso moral como uma operao que uma rgua de clculo poderia, em princpio, executar. Dizer que em alguma sntese suprema que a tudo concilia, mas que ainda assim pode ser realizada o dever interesse, ou a liberdade individual pura democracia ou um Estado autoritrio, equivale a lanar um cobertor metafsico sobre o auto-engano ou a hipocrisia deliberada. (BERLIN, 2002, p. 272)

BibliografiaBELL, D. (1960). The end of ideology. Cambridge: Harvard University Press.BERLIN, I. (2002). Dois conceitos de liberdade. Em I. BERLIN, Ensaios sobre a humanidade (pp. 226-272). So Paulo: Companhia das Letras.CONSTANT, B. (1985). Da liberdade dos antigos compara dos modernos. Filosofia Poltica n 2.EASTON, D. (Abril de 1957). A approach to the analysis of political systems. World Politics, pp. 383-400.KYMLICKA, W. (2002). Contemporary Political Philosophy: an introduction. New York: Oxford University Press.WEBER, M. (2004). A tica protestante e o "esprito" do capitalismo. So Paulo: Companhia das Letras.