toxicomania e adolescÊncia: a transgressÃo do mito do herÓi fabio massao yabushita

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3 TOXICOMANIA E ADOLESCÊNCIA: A TRANSGRESSÃO DO MITO DO HERÓI Fabio Massao Yabushita www.psicologiajunguiana.psc.br ___________________________________________________________________ RESUMO Este artigo aborda o uso abusivo de drogas na adolescência como uma forma de transgressão do mito do herói. Assim, o mito, enquanto forma simbólica de descrever o crescimento e autonomia do ego, deixa de ser vivido em sua plenitude, pois o consumo excessivo de drogas, em um contexto de toxicomania, impede a construção do processo de autonomia e consciência de si, elementos necessários para o atendimento das demandas da realidade, que são, em última instância, uma condição para o ingresso na vida adulta. Na primeira parte será abordado o significado do mito do herói e sua relação com os rituais de passagem, seguido de uma análise psicológica deste processo, e, finalmente, a forma tóxica como o sujeito se relaciona com as drogas, considerando-se o contexto deste mito. ___________________________________________________________________ PALAVRAS-CHAVE: Mito do herói, adolescência, drogas, toxicomania ___________________________________________________________________ 1. INTRODUÇÃO A questão das drogas, entendidas aqui como aquelas substâncias psicoativas que interferem no funcionamento do sistema nervoso central, produzindo alterações de comportamento, humor e cognição, é tão antiga quanto à própria história da humanidade. Desde as épocas mais primitivas, diversos povos de diferentes épocas e lugares fizeram usos destas substâncias, principalmente para fins religiosos e ritualísticos, mostrando que havia nas drogas uma função que tornava o seu uso aceitável, ou mesmo necessário, dentro de um contexto maior. Com o advento da sociedade moderna, o uso destas substâncias foi desviado do seu propósito original, passando a ser empregado para outros fins, sobretudo como um meio para obtenção de prazer.

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RESUMO Este artigo aborda o uso abusivo de drogas na adolescência como uma forma de transgressão do mito do herói. Assim, o mito, enquanto forma simbólica de descrever o crescimento e autonomia do ego, deixa de ser vivido em sua plenitude, pois o consumo excessivo de drogas, em um contexto de toxicomania, impede a construção do processo de autonomia e consciência de si, elementos necessários para o atendimento das demandas da realidade, que são, em última instância, uma condição para o ingresso na vida adulta. Na primeira parte será abordado o significado do mito do herói e sua relação com os rituais de passagem, seguido de uma análise psicológica deste processo, e, finalmente, a forma tóxica como o sujeito se relaciona com as drogas, considerando-se o contexto deste mito. _____________________________________________________________ ____________________________________________________________

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TOXICOMANIA E ADOLESCÊNCIA: A TRANSGRESSÃO DO MITO DO HERÓI

Fabio Massao Yabushita www.psicologiajunguiana.psc.br

___________________________________________________________________ RESUMO

Este artigo aborda o uso abusivo de drogas na adolescência como uma forma de transgressão do mito do herói. Assim, o mito, enquanto forma simbólica de descrever o crescimento e autonomia do ego, deixa de ser vivido em sua plenitude, pois o consumo excessivo de drogas, em um contexto de toxicomania, impede a construção do processo de autonomia e consciência de si, elementos necessários para o atendimento das demandas da realidade, que são, em última instância, uma condição para o ingresso na vida adulta. Na primeira parte será abordado o significado do mito do herói e sua relação com os rituais de passagem, seguido de uma análise psicológica deste processo, e, finalmente, a forma tóxica como o sujeito se relaciona com as drogas, considerando-se o contexto deste mito.

___________________________________________________________________

PALAVRAS-CHAVE: Mito do herói, adolescência, drogas, toxicomania

___________________________________________________________________

1. INTRODUÇÃO

A questão das drogas, entendidas aqui como aquelas substâncias psicoativas

que interferem no funcionamento do sistema nervoso central, produzindo alterações

de comportamento, humor e cognição, é tão antiga quanto à própria história da

humanidade.

Desde as épocas mais primitivas, diversos povos de diferentes épocas e

lugares fizeram usos destas substâncias, principalmente para fins religiosos e

ritualísticos, mostrando que havia nas drogas uma função que tornava o seu uso

aceitável, ou mesmo necessário, dentro de um contexto maior.

Com o advento da sociedade moderna, o uso destas substâncias foi desviado

do seu propósito original, passando a ser empregado para outros fins, sobretudo

como um meio para obtenção de prazer.

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Concomitante ao aumento das motivações para o uso das drogas, que se

expandiram para além do contexto ritualístico ou religioso, foi a crescente

preocupação com as implicações médicas, sociais e psicológicas relacionadas ao

consumo das mesmas. Assim, a partir do século XIX as drogas começaram a se

tornar um problema de saúde pública e objeto de pesquisa com implicações

médicas, morais e legais.

Por ser uma questão complexa, cuja abrangência resiste a abordagens

meramente moralistas ou biologizantes, que consideram apenas os efeitos nocivos

das drogas, fomentando discursos que segregam e patologizam o indivíduo que faz

uso das mesmas, é importante buscar novas formas de se olhar para algo que é tão

antigo, e ao mesmo tempo tão atual, quanto o homem.

Para isso, podemos nos servir de um mito, o mito do herói, que em termos

psicológicos representa a formação da consciência e da autonomia do eu.

Este mito está estreitamente relacionado com a adolescência, época de

significativas mudanças corporais e psicológicas que tornam o indivíduo apto a

exercer sua sexualidade de forma genital, entre outras mudanças igualmente

importantes.

Assim a adolescência, termo este que significa “crescer”, “fazer-se grande”,

embora seja uma construção social e cultural, cuja origem deve-se ao discurso da

modernidade ao visar à preparação do sujeito para o ingresso em uma sociedade

tecnicamente desenvolvida, será considerada aqui como um período de transição

entre a vida sexual infantil e a adulta, quando a sexualidade assume o caráter de

genitalidade propriamente dita, ou seja, quando a pulsão sexual se coloca a serviço

da função reprodutora.

Como mostram os ritos de passagem, a transição para a vida adulta implica

no reconhecimento da capacidade de procriação e na necessidade de se prestar,

através do trabalho, a necessária contribuição para o sistema produtivo da

coletividade. Além disso, os ritos também servem para inserir o sujeito no mundo

simbólico das crenças e tradições, que constituem o patrimônio cultural e religioso

de seu povo.

No contexto do mundo civilizado, é justamente nesta época de transição entre

a infância e a vida adulta que surgem sentimentos conflitantes relacionados à perda

do corpo infantil e dos pais idealizados, e a descoberta de si mesmo como alguém

distinto e separado do outro.

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Este é um período crítico onde há, reconhecidamente, uma grande incidência

de casos de uso e abuso de drogas, que muitas vezes levam a quadros graves de

dependência e toxicomania.

A abordagem desta questão através do mito, entendido aqui como afirmações

sobre a realidade psíquica, ou “padrões narrativos que dão significado a nossa

existência” (MAY, 1991, p.3), pode subsidiar, de maneira diferenciada, o

atendimento clínico a este público, que se constitui como uma demanda significativa,

porém, resistente ao tratamento.

O que este artigo pretende mostrar é que o adolescente, ao fazer uso

compulsivo da droga, exibe uma recusa inconsciente em construir o próprio eu,

transgredindo assim o mito do herói, pois, ao abdicar da busca que o levaria ao

encontro e descoberta de si mesmo, ele fica impossibilitado de fazer a passagem

para a vida adulta.

A conseqüência deste impedimento será a permanência no estado infantil,

mostrando assim a sua incapacidade em lidar com as demandas da realidade, que

incluem, além da capacidade de exercer a sexualidade de forma genital, o laço

social com o outro, e a aceitação da falta enquanto impossibilidade de satisfação

absoluta dos seus desejos.

2. O MITO DO HERÓI

Temos apenas de seguir a trilha do herói. E lá, onde temíamos encontrar algo abominável encontraremos um deus. E lá, onde esperávamos matar alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde esperávamos estar a sós, estaremos na companhia do mundo todo (CAMPBELL, 1990, p.137).

Em sua estrutura básica o mito do herói narra um processo de afastamento

ou isolamento do indivíduo, seguido da busca de algo de grande importância para

ele ou para seu povo, e posterior retorno ao seu local de origem. Este padrão

mitológico também aparece em forma de sonhos e fantasias originadas na estrutura

inconsciente da psique.

Segundo Henderson (1964, p. 110):

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O mito do herói é o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo. Encontramo-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade Média, no Extremo Oriente e entre as tribos primitivas contemporâneas. Aparece também em nossos sonhos. Tem um poder de sedução dramática flagrante e, apesar de menos aparente, uma importância psicológica profunda.

O significado psicológico subjacente a este mito é a formação do ego e da

consciência, marcando assim a transição da infância para a vida adulta. Ao término

deste processo o indivíduo estará preparado para assumir o seu lugar na sociedade

e enfrentar as vicissitudes da vida. Implicitamente o mito traz também a idéia de

maturidade psico-sexual, representada pelo encontro ou resgate de alguém do sexo

oposto, com quem é consumado o tão esperado casamento.

Independentemente de sua forma de manifestação, o mito implica em um

processo composto de três fases: separação- iniciação- renascimento (ou retorno).

A separação aparece em forma de afastamento do seio familiar ou social,

quando o herói precisa deixar seu local de origem para sair em busca de algo,

geralmente difícil de ser encontrado.

No Sidarta, de Hermann Hesse (2006, p.25), este momento da partida foi

assim descrito pelo autor:

Foi quando o pai se deu conta de que Sidarta já não se achava junto dele, nem no torrão natal, pois que acabava de separa-se de ambos. O pai colocou a mão no ombro do filho. -Hás de embrenhar-te no mato- disse- para que possas ser um samana. Se encontrares a felicidade no mato, volta e ensina-me. Se encontrares desilusões, procura-me novamente e junto sacrificar-nos-emos aos deuses. Agora vai-te. Abraça tua mãe e dize-lhe aonde te encaminhas.

Este padrão de acontecimento, apesar de infinitas variações, repete-se

indefinidamente no espírito humano, marcando o momento da partida, ou seja, a

separação.

Assim:

“O horizonte familiar da vida foi ultrapassado; os velhos conceitos, ideais e

padrões emocionais, já não são adequados; está próximo o momento da passagem

por um limiar” (CAMPBELL, 1997, pg. 32)

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Este momento de separação também se dá através de algum ato de

desobediência, contrariando a ordem estabelecida.

O mito de Prometeu, personagem que contrariou a ordem dos deuses

roubando-lhes o fogo para entregar aos homens, mostra este ato de desobediência,

que neste caso resultou na conquista do fogo, ou seja, a aquisição da consciência.

Outro exemplo bastante ilustrativo, e de profunda implicação psicológica, é o relato

bíblico da expulsão do Paraíso, onde o Paraíso, obviamente, é o estado infantil de

servidão e dependência do Pai onipotente.

Segundo Campbell (1990, p.138):

“Evoluir dessa posição de imaturidade psicológica para a coragem da auto- responsabilidade e a confiança exige morte e ressurreição. Esse é o périplo universal do herói – ele abandona determinada condição e encontra a fonte da vida, que o conduz a uma condição mais rica e madura”

Após a separação inicia-se o processo de transformação, ou iniciação, que é

a aventura propriamente dita, onde o indivíduo será submetido a todo tipo de provas

e obstáculos.

Neste percurso o herói toma conhecimento de sua força e desperta suas

habilidades para poder alcançar seus objetivos. Esta é a fase das provas e tarefas

que precisam ser cumpridas como condição para a autonomia e crescimento do ego,

como mostra a epopéia de Ulisses, que no fim de sua longa jornada retorna a Ìtaca,

seu local de origem, e a lendária busca pelo Graal, exemplos desta façanha heróica

que visa as mais altas realizações.

Em termos pictóricos, a fase da separação está fartamente representada na

luta do herói com o dragão.

Segundo Henderson (1964, p.120), “a batalha entre o herói e o dragão é a

forma mais atuante deste mito e mostra claramente o tema arquetípico do triunfo do

ego sobre as tendências regressivas”.

Estas tendências regressivas referem-se à incapacidade do ego em assumir

responsabilidades, em favor de um estado de dependência que impede o pleno

desenvolvimento do sujeito.

Neste sentido, regredir é permanecer no estado infantil, alimentando uma

falsa imagem de si que pode tanto menosprezar quanto distorcer narcisicamente os

limites do ego, atribuindo-lhe um valor ou importância que não corresponde aos

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dados da realidade.

Embora o herói obtenha êxito em sua busca, e por é isso é um herói, ele

inevitavelmente passa por situações de quase morte, onde é engolido por um

monstro ou tem suas forças esgotadas.

Este é o momento crítico da aventura, quando a derrota parece iminente. Aqui

o herói deve obrigatoriamente reconhecer suas limitações e vulnerabilidade,

mantendo aquilo que os gregos chamam de aidos, ou seja, a capacidade de se

reverenciar algo maior, acompanhado do “sentimento de vergonha quando estes

poderes são desacatados” (EDINGER, 1995, p. 58).

Manter esta capacidade de reverência diante de algo maior é fundamental

para o indivíduo prosseguir em sua jornada, sem se deixar dominar pelos seus

poderes ou desejos.

Caso contrário, o herói pode não retornar para casa, passando a viver uma

pretensa superioridade da qual não irá abrir mão. É quando ele se torna vítima da

inflação de seu ego, acreditando poder desfrutar para sempre de seus dotes e

proezas, de forma narcísica e vaidosa.

O êxtase vivenciado por conseguir cumprir com suas metas e objetivos pode

levá-lo à ruína. Assim, ao fixar residência naquilo que Campbell (1997) chamou

“eterna ilha da sempre jovem Deusa do Ser Imortal”, uma forma de designar o objeto

da conquista, o herói pode se recusar a voltar para o convívio de seu povo. Os

valores e virtudes adquiridos ao longo da jornada são perdidos, e o que deveria ser

aprofundamento no conhecimento de si mesmo torna-se soberba e luxúria,

impossibilitando o relacionamento autêntico com o outro. O laço social não é

consumado.

É a hybris da consciência, ou seja, a confiança excessiva no próprio eu e o

desejo desmedido de satisfazer as vontades pessoais, sem o devido

reconhecimento dos próprios limites, que leva a esta recusa.

Um exemplo clássico da hybris está retratado no mito de Ícaro, que, tomado

pelo ímpeto de voar, tentou alcançar o sol, contrariando as orientações de seu pai,

até que suas asas de cera se derreteram, levando-o a precipitar-se violentamente

contra o mar. Alcançar o sol era um desejo inflado, uma forma de narcisismo

primitivo que não leva em conta a realidade como algo que se interpõe contra este

desejo que busca a satisfação a todo custo.

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Pode acontecer também do indivíduo nem mesmo atender ao chamado para

a aventura, permanecendo paralisado em seu desenvolvimento, como acontece com

aquelas pessoas que resistem em literalmente ‘sair de casa’. Nos mitos e nas

fábulas estas pessoas aparecem aprisionadas, ou em estado de sono profundo, à

espera de um despertar, mostrando o quanto estão alienadas do mundo, imersas

em seu estado de inconsciência (é como diz a música Stairway to Heaven, da banda

inglesa Led Zeppelin, “to be a rock and not roll”, ser uma pedra e não rolar, em

tradução livre).

Todo este desenvolvimento presente no mito do herói, que envolve o

processo de separação- iniciação- retorno, também está representado nos ritos de

passagem que marcam a transição da infância para a vida adulta.

O’ Kane (1994) refere-se a este processo presente nos ritos como separação,

fase liminar, reintegração.

Nos ritos, durante a cerimônia, as pessoas que estão atravessando a fase

liminar são afastadas da rede social e cultural do seu povo.

Neste estágio o noviço deve respeitar tabus, aprender uma linguagem secreta

ou entrar em contato com os espíritos. Há uma perda temporária da identidade ou

do nome original.

Antes de retornar ao convívio com os demais, o noviço vive uma condição

análoga a da criança por estar na condição de aprendiz, sujeitando-se a novos

referenciais simbólicos. Neste processo ele é exposto ao perigo real, através do qual

o aprendizado é mostrado e vivido concretamente.

È o que ocorre, por exemplo, com os índios Algonquinos, do Canadá, que em

certo momento da vida são enjaulados e isolados dos demais membros da tribo para

ingerirem uma substância alucinógena que provoca profundas alterações

perceptivas. O objetivo desta prática é fazer com que se esqueçam de todas as

lembranças relativas à infância para tornarem-se adultos.

Outro exemplo é o dos índios Matis, da floresta amazônica, que injetam

veneno nos jovens neófitos, provocando profundo mal-estar, para depois espancá-

los com o intuito de dar-lhes força e resistência. Este processo ajuda a torná-los

aptos a caçarem e contribuírem com o sustento da tribo.

Entre as finalidades dos ritos que instauram a entrada na vida adulta,

marcando assim a passagem para uma nova posição social, está a inserção do

sujeito nos costumes e tradições de seu povo. Ao se tornar adulto, que neste

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contexto significa ser capaz de produzir, casar e procriar, é seu dever contribuir para

a subsistência e manutenção da coletividade, reproduzindo seu sistema de valores e

crenças. Para o herói é o momento de retornar para casa, retorno este que significa

o reconhecimento de si como alguém distinto do outro, em um contexto social e

cultural que regula as relações humanas, e que permite o endereçamento a este

outro por meio da linguagem.

T. S. Eliot (apud BREHONY, 2010) descreve assim este momento:

“Não cessaremos de explorar

e o final de toda exploração

será chegar aonde começamos

e conhecermos o lugar pela primeira vez”.

2.2. O DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO REPRESENTADO PELO MITO DO HERÓI

Como já foi dito, o mito do herói, assim como os ritos de passagem,

representa a transição da infância para a vida adulta, referindo-se, portanto, ao

desenvolvimento psicológico do indivíduo.

Antes que este processo se inicie, dando início a formação de um ego que

torne o indivíduo apto a lidar e enfrentar as demandas da realidade, de forma

consciente e reflexiva, a vida psicológica restringe-se a um estado de inconsciência

que não distingue mundo interno e externo, eu e outro, pois a ausência da

consciência propriamente dita impede a distinção destes elementos.

Desse modo:

A psique da criança parece operar como uma inteireza relativamente indiferenciada, um padrão de respostas instintivas, integradas num campo abrangente, onde a separação sujeito-objeto no sentido adulto ainda não tem nenhuma validade (WHITMONT, 1995, p.236)

Ainda segundo o autor:

“No estado de identidade primitiva e infantil, há uma total imersão na mãe, na

família, no clã, no grupo, na tribo e na natureza” (WHITMONT, 1995, p. 241)

O mito do herói refere-se justamente a superação deste estágio de

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identificação, principalmente com as figuras parentais, levando o indivíduo a adquirir

gradualmente maior consciência de si, desde que supere esta identidade primitiva e

infantil, e aceite que os seus desejos não poderão ser plenamente satisfeitos, como

acreditava acontecer anteriormente, pois o encontro com a realidade implica na

impossibilidade da satisfação plena e irrestrita dos impulsos instintivos.

Uma melhor compreensão sobre este mito, considerando-se a sua estrutura

básica de separação, iniciação e renascimento, pode ser buscada no complexo de

Édipo, conceito fundamental na psicanálise, cuja terminologia foi extraída do mito de

Édipo, herói da mitologia grega que cometeu o que se pode chamar de os crimes

mais repudiados pelo ser humano, o incesto e o parricídio.

O complexo de Édipo é uma organização estruturante do psiquismo humano,

e conseqüentemente da personalidade do sujeito, que ocorre entre os 2 e 5 anos de

idade, com uma reedição na adolescência, por volta dos 12 anos, quando se inicia o

processo de entrada do sujeito na vida adulta.

Para entender este processo, que de algum modo é inerente a todo ser

humano, devemos partir da premissa de que toda criança se origina de duas figuras:

a figura do pai e a figura da mãe. Assim todo sujeito estará submetido a uma

triangulação formada por ele, o sujeito, pelo pai e pela mãe, de tal modo que estes

elementos sempre estarão presentes nesta organização.

Antes desta triangulação, a criança mantém uma relação predominantemente

dual com a mãe, sem uma participação efetiva por parte do pai, que é sentido como

uma presença velada. Neste ponto do desenvolvimento, chamado de pré-edípico, há

uma íntima relação erótica com a mãe que proporciona uma satisfação, cujo prazer

equivale ao incesto adulto. (KUSNETZOFF, 1982)

Em seu estágio inicial de formação, antes da entrada do pai na triangulação

edípica, o aparelho psíquico é dominado pelo id, o pólo psicobiológico da

personalidade formado basicamente por instintos e pulsões (o componente psíquico

do instinto) que demandam satisfação, uma forma de aliviar as tensões internas de

ordem fisiológica, como a fome, através de um objeto que as satisfaça.

Em termos funcionais o id, que topologicamente equivale ao inconsciente, é

dominado pelo princípio de prazer, a tendência do funcionamento psíquico de buscar

satisfação imediata. O objeto que irá atender a essas necessidades de satisfação é

a mãe, com quem a criança mantém uma relação fusional que pode ser

caracterizada como incestuosa.

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Este estado de fusão e completude com o outro será sucedido pela entrada

da figura do pai nesta relação, que deixará de ser uma relação dual entre mãe e filho

para se tornar uma relação triangular, onde o sujeito desenvolverá sentimentos

hostis em relação ao progenitor do mesmo sexo e atração erótica pelo progenitor do

sexo oposto.

Com a participação do pai, que trará consigo a marca da lei através da

proibição do incesto, o sujeito será obrigado a renunciar ao seu estado de

completude com a figura materna, esse objeto único e onipresente, sempre pronto a

satisfazer seus desejos e necessidades mais prementes.

Através desta interdição o sujeito é inscrito na cultura, na ordem simbólica,

onde se reconhece como um ser singular no social. Isso torna possível o

relacionamento com o outro, dentro de um contexto social e cultural, permeado pela

linguagem e pelo discurso simbólico (sem estas restrições o ser humano viveria

como os animais, dando livre curso aos seus impulsos instintivos).

Quando a criança entende que os seus desejos não serão satisfeitos, pois

isto é da ordem do impossível, ela se vê obrigada a restringir os impulsos oriundos

do id, que no início da vida formaram a base do seu funcionamento psíquico. Assim,

caberá ao ego administrar a tensão entre as pulsões que demandam satisfação e as

restrições que lhes são impostas por meio da proibição.

Com a estruturação do aparelho psíquico, formado pelas instâncias do id, ego

e superego, e com a aceitação de que não é possível ocupar o lugar do pai, nem

tampouco ter a mãe só para si, a criança se vê obrigada a buscar objetos substitutos

para os mesmos fora da estrutura familiar primária, iniciando assim o seu processo

de socialização.

Ao ser inserida na ordem cultural e simbólica, ela passa a reproduzir os

valores e normas vigentes, adaptando-se aos regulamentos sociais através do

superego oriundo do não imposto pelo pai.

Após a estruturação do aparelho psíquico, onde a interdição do incesto é um

fato consumado, há o primeiro fechamento do complexo do Édipo. O chão onde a

‘casa’ será construída está praticamente pronto.

Com isso inicia-se a grande socialização do sujeito, onde ele receberá os

valores e códigos morais que posteriormente serão objeto de recusa e

questionamento, como mostra o mito do herói através do momento da separação.

Neste período a criança vive um período de relativa tranqüilidade, sendo

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ensinada, protegida e modelada de acordo com sua cultura e meio social.

Este é o período de latência, que se inicia por volta dos 6 anos, estendendo-

se até a adolescência, quando há a reedição do complexo de Édipo e o início da

transição para vida adulta.

Durante este período as pulsões sexuais serão desviadas de sua finalidade.

Assim sentimentos de ternura e amizade substituirão os sentimentos eróticos que

caracterizaram a fase anterior.

A criança, feita a “imagem e semelhança” dos pais, continua a ver neles um

ideal a ser aspirado, porém, outras figuras começam a se incorporar em sua rede de

relações, com importância semelhante, ou mesmo maior, como os amigos,

professores, etc. É nesta época que ela começa a desenvolver suas habilidades

lúdicas e cognitivas, dentro de um contexto sócio-educativo, que inclui a família, a

escola, a igreja, e outras instituições sociais.

Com isso está se construindo o que no mito do herói é chamado de ‘casa’, o

local que representa o espaço de aprendizado e de aquisição dos valores

norteadores da cultura na qual o sujeito está inserido. Outras formas de se designar

a ‘casa’ é a terra natal, o povoado, a cidade de origem, etc.

Passado alguns anos de relativa estabilidade do aparelho psíquico, tem início

um dos períodos mais conturbados e fascinantes do desenvolvimento humano, o

momento de deixar o lar. A mitologia, as religiões, lendas e contos de fada estão

repletos de personagens que retratam, através da figura do herói, este momento na

vida psíquica do sujeito.

Antes de começar a “aventura”, que no mito surge como o momento de

separação, é preciso entender que o sujeito chega nesta fase da vida com um corpo

biologicamente transformado, e apto a exercer a sexualidade de forma genital.

O corpo, até então um corpo infantil, fragilizado e dependente, não é mais o

mesmo. O sentimento de impotência que vinha sendo compensado pela proteção

conferida pelas figuras de autoridade, principalmente os pais, começa a ceder

espaço para a vontade e o desejo de liberdade. Com isso, surgem também as

dúvidas quanto à benevolência e onipotência daqueles que representam a Lei.

A vida, que até então estava restrita aos limites do Éden, onde o indivíduo era

levado a acreditar que tudo é belo e perfeito sob aos auspícios da Lei, começa a

vislumbrar novos horizontes.

O corpo torna-se genitalmente erotizado, apto a consumar a relação sexual,

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inclusive para fins reprodutivos.

As mudanças corporais que ocorrem com o adolescente trazem a estranheza

e o desconforto característico do encontro com o real ainda não simbolizado, ou

seja, este novo corpo é um corpo sexualizado, mas não integrado psiquicamente,

daí o seu caráter de estranheza. A jornada do herói começa, portanto, com a

exploração e descoberta deste novo corpo.

Esta busca, que coincide com o despertar da sexualidade, implica também no

encontro com o outro enquanto alteridade, ou seja, aquele que se apresenta como

alguém totalmente diferente, com uma existência própria que difere, ou mesmo se

opõe à existência do eu.

No contexto do mito, esta alteridade que leva ao encontro e descoberta do

outro está representada pelas terras distantes e pelos seres estranhos que as

habitam, ou seja, a alteridade do outro é aquilo que chega ao sujeito como o

desconhecido.

Para o adolescente este é um momento de grande ansiedade e incerteza

sobre aquilo que o espera devido a todas estas transformações de ordem psíquica,

social e biológica.

Em termos psicológicos está ocorrendo uma reedição do complexo de Édipo,

com a diferença de que a sexualidade está agora voltada quase que exclusivamente

para os órgãos genitais, e não mais dispersa pelo corpo.

Neste sentido, sair de casa significa também abandonar o corpo infantil, auto-

erótico, para buscar a sexualidade através do encontro com o outro, condição esta

para que ela seja consumada.

Com efeito, a grande massa de energia pulsional, que foi justamente pré-genital durante todo o período infantil, devido, sobretudo, à insuficiência dos aparelhos orgânicos genitais, tem agora, na adolescência a ocasião de se satisfazer (KUSNETZOFF,1982, p. 110)

Com a reedição do complexo de Édipo a libido é novamente reinvestida nos

objetos primários da infância, ou seja, o pai e a mãe, sendo mais uma vez

confrontada e forçada a desviar-se para objetos substitutos. O adolescente precisa

definitivamente deixar sua casa.

Uma das formas de ocorrer esta ruptura é através da busca por novas figuras

de autoridade, encontradas, por exemplo, nos ídolos da juventude, uma imagem do

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herói que desperta o interesse e o desejo do adolescente em ser como ele, num

processo de identificação semelhante ao que ocorreu com o pai durante o complexo

de Édipo. Nesse sentido, esta relação é marcada pela ambivalência, ou seja, pelo

sentimento de amor decorrente da admiração que este outro suscita, e pelo ódio, por

ver nele um rival que dispõe de uma potência que o sujeito não possui. É o que

mostra os inúmeros casos onde o ídolo é assassinado pelo seu fã e admirador, que

comete este ato movido pelo desejo de ocupar o lugar daquele que ama, tornando-o

assim vítima da hostilidade inconsciente que acompanha o amor.

Ao recorrer a novas formas de autoridade o adolescente questiona a ordem

estabelecida, podendo libertar-se da autoridade dos pais por meio da revolta e da

contestação, vivendo aquilo que se pode chamar de período de marginalidade (nos

ritos primitivos a marginalidade é representada pelo isolamento social e perda da

identidade habitual)

Com o questionamento da autoridade vigente, e a busca por outras

referências, a idéia de limite é posta em questão, pois o adolescente entende que só

ele, enquanto autoridade auto-instituída, pode decidir sobre o certo e o errado, sobre

o que se pode ou não fazer. Ele deixa a posição de submissão infantil ao outro, que

lhe determinava os limites a serem seguidos, para buscar uma outra posição nesta

nova trama.

Isto se refletirá inclusive na forma como ele lida com seu próprio corpo, pois

os limites fisiológicos e anatômicos são ignorados ou mesmo desprezados, como

mostra a clássica imagem da força descomunal do herói, que tem como equivalente

psicológico a onipotência juvenil.

O novo corpo adquirido com a adolescência é levado ao seu limite máximo,

como mostram os ritos de passagem, onde as transformações corporais são

acompanhadas por práticas que trazem a marca da dor e do abandono, uma forma

de extrair deste corpo o seu máximo, mas também de expor-lhe na carne o

sofrimento pela sua debilidade constitucional.

Ao sair de casa em busca de novas identificações o adolescente se depara

também com a necessidade de construir novas formas de organização psíquica,

substituindo o grupo familiar pelo grupo social, que lhe propicia a possibilidade de

construir uma identidade que facilite sua inserção no mundo a ser desvelado.

Apreender este novo universo é uma forma de designar aquilo que no mito é

chamado de “aventura”.

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No percurso deste trajeto, uma das tarefas mais difíceis é resolver os

impasses que a sexualidade suscita, como a constatação da diferença anatômica

entre os sexos, pois o sexo oposto apresenta uma alteridade tal que jamais

complementará de fato o sujeito, que se percebe agora um ser faltante, que é

justamente uma das condições para o sujeito ingressar na vida adulta.

A questão da falta é paradigmática para se entender a importância do herói

em não se deixar levar pela hybris, enquanto desejo de se satisfazer de forma

narcísica e onipotente.

Esta impossibilidade está representada no momento crítico da aventura,

quando o herói, após uma seqüência inquestionável de êxitos, torna-se prestes a

sucumbir, ou seja, quando ele descobre o seu “calcanhar de Aquiles”.

Sua vulnerabilidade mostra que todo herói, por mais capaz que seja de

realizar suas proezas, em algum momento da jornada irá se deparar com a

possibilidade de fracassar, e não poder seguir adiante. Neste momento a ajuda vem

de onde menos se espera, geralmente através de uma figura subestimada no

decorrer da trama, como ocorreu com o mais moderno dos heróis, o Super-Homem,

salvo pela empregada do vilão quando tudo parecia perdido.

Esta particularidade do mito traz a questão da alteridade do outro como uma

forma de impedir a satisfação narcísica e infantil ao qual o herói está sujeito.

Se o mito do herói refere-se ao processo psicológico que leva a aquisição da

consciência e a autonomia do ego, estas somente serão alcançadas se o sujeito

reconhecer e aceitar essa falta estruturante, a mesma falta que impede o herói de

ser alguém absolutamente invencível.

Portanto, ao longo deste processo, ou jornada, o sujeito torna-se consciente

de que algo lhe falta. Ao aceitar este fato, ele encontra o seu tesouro, pois a

verdadeira conquista do herói é reconhecer e aceitar suas limitações.

Lidar com a frustração e a incompletude, simbolizando-as por meio da

linguagem e do discurso subjetivo, é a condição para retornar para casa.

Esta é uma exigência da civilização e uma forma de passar à vida adulta, que

se diferencia da infância justamente pela impossibilidade da satisfação de todos os

desejos do sujeito. Com isso, uma parcela da felicidade para sempre está perdida.

Assim ocorre o que se pode chamar de ingresso no processo civilizatório,

permeado de exigências sociais, proibições e restrições de toda ordem, pois o

sujeito não pode mais regular sua vida unicamente em função da busca pelo prazer,

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como acontecia em sua infância.

Como é o ego que faz papel de mediador entre o desejo e a proibição,

condição esta para o ingresso no processo civilizatório, ou seja, ao mundo adulto

propriamente dito, o mito do herói e os ritos de passagem visam exatamente à

consolidação deste ego para capacitá-lo a atender as demandas da realidade, o que

justifica as privações e o sofrimento que lhes são impostos, pois este sofrimento é

inerente à vida. Saber aceitá-lo é uma condição para a maturidade, e

conseqüentemente uma forma de se tornar menos suscetível aos quadros de

toxicomania, enquanto impossibilidade de se estabelecer o laço social com o outro,

pois a relação é de exclusividade com a droga, a serviço da satisfação narcísica e

do prazer absoluto.

2.3. A TOXICOMANIA E A TRANSGRESSÃO DO MITO DO HERÓI

Considerando-se que o mito do herói representa a passagem da infância para

a vida adulta, transgredi-lo significa desviar sua função de conduzir o sujeito à

maturidade, como acontece com o dependente ao estabelecer uma relação tóxica

com a droga.

A conseqüência imediata desta transgressão, entendida também como uma

forma de não se viver o mito, é a fixação do sujeito no estado infantil, onde ele se

servirá das drogas para atender suas necessidades de satisfação imediata, evitando

uma das condições para o ingresso na vida adulta, que é a renúncia ao princípio do

prazer e a consciência da falta.

Neste ponto é importante distinguir o que é considerado uso ocasional ou

esporádico das drogas do seu uso compulsivo, associado ao quadro de

dependência.

No primeiro caso, onde também se enquadra o chamado uso abusivo

(nocivo), cujo padrão de consumo acarreta algum prejuízo social e uma exposição

maior a situações de risco, não há necessariamente a transgressão do mito do herói.

Ao contrário, o sujeito pode estar buscando justamente viver este mito através da

contestação das normas instituídas, uma forma de expressar a necessidade de

novos ideais, alimentado por uma crença que supervaloriza o ego que está

começando a desabrochar para o mundo, como mostram os grandes sonhos da

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juventude.

Além disso, a atitude de oposição e questionamento também contribui para a

dialética do desenvolvimento pessoal e coletivo, e por isso não deve ser considerada

obrigatoriamente uma manifestação patológica. Estes casos têm que ser pensados

dentro do seu contexto, considerando-se, obviamente a possibilidade de um quadro

de uso ocasional evoluir para a dependência, mas sem tomar isso como uma regra,

ao contrário do que supõe o senso comum.

O primeiro aspecto a ser considerado na relação entre o mito do herói e a

toxicomania é a recusa do sujeito em “sair de casa”, o que configura a permanência

no estado infantil por priorizar a satisfação imediata do prazer, como acontece com a

criança nos primórdios do desenvolvimento em sua relação incestuosa com a mãe.

A conseqüência disso é a crença onipotente de que ele pode se satisfazer a

todo custo, atitude essa que sustenta o uso compulsivo da droga.

Assim:

“Ele institui a droga, não importa qual seja, como seu objeto, esperando que o

fará gozar à vontade, ou seja, gozar segundo seu bem entender, seu bem querer”.

(CLASTRES, 1999, p. 59)

Subjacente a recusa em deixar a casa, está o sentimento de abandono e

desamparo que esta situação inevitavelmente traz, algo ao qual o herói não pode se

furtar caso queira cumprir sua jornada até o fim.

O desamparo decorrente desta separação, uma condição para a aquisição da

consciência de si, mostra o aspecto solitário do herói, pois somente a ele cabe

cumprir a aventura de se reconhecer como ser faltante. Neste percurso ele tem que

se haver com a própria morte e com a impossibilidade de se satisfazer plenamente,

algo insuportável para o toxicômano, que se serve da droga para suprir o desamparo

que ele não consegue tolerar.

Uma vez deixada a casa, o herói empreende sua busca solitária, recebendo o

impacto decorrente das mudanças corporais na puberdade. Estas mudanças trazem

o real do sexo ainda não simbolizado, demandando uma organização e integração

psíquica difícil de ser operada, pois o adolescente se encontra diante de um impasse

pela perda do corpo infantil, que está sendo abandonado juntamente com sua ‘casa’,

e aquisição de um novo corpo que se lhe descortina para ser explorado como parte

da jornada que leva a descoberta de si e ao encontro do outro.

Novas posições são exigidas do adolescente, que se vê em conflito diante

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desta necessidade que demanda novas significações, gerando nele um mal estar

que pode encontrar escape pela via do tóxico.

Sobre isso, Pereira (1999, p. 96) diz que “outra função que a droga exerce e

que podemos ouvir no discurso dos pacientes adolescentes, é o apaziguamento da

angústia vivenciada na relação com o outro sexo”.

Na toxicomania este artifício vai ainda mais além, pois através da droga o

sujeito separa-se deste outro. Assim, se a descoberta do corpo adulto pressupõe um

gozo que passa pelo corpo do outro, na toxicomania este outro está destituído,

sendo então substituído pela droga

Com isso vem à tona a questão da impossibilidade do laço social, o que

dificulta ainda mais o seu acesso ao aparato cultural e simbólico, onde este laço é

constituído. Esta situação favorecerá a posição narcísica do sujeito, que ao se

fechar em si mesmo encontrará nas drogas um substituto para este outro com quem

ele dispensa o laço social e afetivo. Além disso, a satisfação que poderia ser

encontrada em outros objetos oferecidos pela cultura, como a arte e a religião, uma

forma de compensar a renúncia que lhe foi exigida, fica restrita a ele próprio, ou

seja, a satisfação é buscada em seu próprio corpo por meio das drogas, o que

justifica o caráter narcísico do toxicômano.

“O que posso fazer para proporcionar a felicidade a mim mesmo? Uma das maneiras (desesperada, dirão alguns) de se chegar a esse ideal auto-referido da felicidade pode ser traduzido pela droga. Pois, afinal, se se trata de proporcionar-se satisfação, por que não fazê-lo pela via de um objeto que me permite esse gozo solitário? Assim, a concha humana se fecha, na posse dessa pérola mortífera que a droga é” (CORSO M. e CORSO D. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre n. 12, p.78).

Como o mito do herói representa a transição da infância para a vida adulta,

através deste período chamado adolescência, cumprir o mito é também uma forma

de ingressar no mundo civilizado, identificado com a vida adulta, pois o

desenvolvimento libidinal do sujeito, que leva a uma sexualidade

predominantemente genital, coincide com o próprio processo civilizatório (FREUD,

1929).

Quanto a civilização, entendida aqui como a soma das realizações que

retiraram o homem da sua condição animal, esta tem como um dos seus propósitos

ajustar os relacionamentos humanos em favor da coletividade e da vida em comum.

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Neste sentido podemos entender a civilização como sendo uma forma mais

abrangente de ‘casa’, para onde o sujeito se encaminha em seu processo de

amadurecimento, ou seja, a civilização designa também a família em um sentido

mais amplo, algo como a fraternidade que une os seres humanos por laços comuns.

Para isso é exigido do sujeito um pesado sacrifício, a renúncia a uma parcela da

satisfação instintiva, traduzida como uma renúncia a uma parcela da felicidade

enquanto “experiência de intensos sentimentos de prazer” (FREUD, 1929, p. 84)

É quando então ele percebe que “a vida, tal qual a encontramos, é árdua

demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas

impossíveis” (FREUD, 1929, p. 83).

Para suportar a angústia e o sofrimento decorrente desta constatação, onde o

sujeito se reconhece impotente diante da morte, ameaçado pelas forças da natureza

e limitado pelas restrições que o outro impõe aos seus desejos, algo que os ritos

mostram de forma extremamente eficaz, o ser humano passou a se utilizar de

medidas paliativas.

Entre estas medidas paliativas está o uso de substâncias tóxicas, que se

constituem, devido ao seu potencial de alterar a química do corpo, como um dos

métodos mais “eficazes”, porém, demasiadamente “grosseiros”, como salientou

Freud (1929), de se evitar o sofrimento, proporcionando aquilo que Aldus Huxley

chamou de Paraísos Artificiais: “Parece extremamente improvável que a humanidade, de um modo geral, jamais seja capaz de passar sem Paraísos Artificiais. A maioria dos homens e mulheres leva uma vida tão sofredora em seus pontos baixos e tão monótona em suas eminências, tão pobre e limitada, que os desejos de fuga, os anseios para superar-se, ainda que por uns breves momentos, estão e têm estado sempre entre os principais apetites da alma” (HUXLEY, 2006, p.35).

Os Paraísos Artificiais apontam também outro recurso muito utilizado para se

evitar o sofrimento, a alteração na percepção da realidade, considerada pelo ser

humano como “a única inimiga e a fonte de todo sofrimento” (FREUD, 1929, p. 88).

As drogas, perigosamente, oferecem esta possibilidade. Por isso elas estão

entre “os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento” (FREUD, 1929, p.85),

de forma, obviamente, insatisfatória e danosa.

Segundo Freud:

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O serviço prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um benefício, que tanto indivíduos quanto povos que lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também, um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos (FREUD, 1929, p.86)

A capacidade de causar danos que estes veículos intoxicantes proporcionam

está diretamente relacionada à forma como o sujeito se relaciona com eles. Assim,

ao manter uma relação de exclusividade com a droga, um dos fatores que

caracterizam a toxicomania, o sujeito não se socializa, e, portanto, não adere aos

preceitos da civilização.

Neste sentido, não aderir é também manter-se à margem, separado do desejo

do outro, em um permanente estado de ruptura. É a recusa em voltar para casa, o

que implica em um estado de marginalidade como uma forma de não se consumar o

laço social, e, conseqüentemente, não regular as relação com o outro.

A separação, por meio da oposição e da contestação, ocorre através de uma

violência dirigida contra aquilo que foi instituído, como a lei imposta pelo pai. Ao

invés de uma separação simbólica, no plano da palavra, que favoreça a consciência

de si como condição para o diálogo e o reconhecimento da alteridade do outro, a

separação ocorre de forma literal, podendo levar, nas situações mais extremas, a

prisão ou mesmo a morte, como mostram os casos de violência e criminalidade

relacionada ao uso de drogas, onde a idéia de marginalidade coincide com a

transgressão da lei penal.

Considerando-se o contexto da adolescência, Kusnetzoff (1982, p.115) diz

que: “a contestação pode atingir níveis-limites e até patológicos, como verdadeiras fugas para se subtrair às imposições que são sentidas como intoleráveis. Estas fugas podem ser motoras e/ou perceptuais, sendo estas últimas ativadas, por exemplo, pelo consumo de drogas”.

Assim, se a adolescência se caracteriza como uma fase de contestação

contra o corpo da lei, as drogas podem ser o meio de se consumar uma separação

que deveria ser simbolizada por meio da fala.

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Como a consciência, enquanto campo da linguagem e do pensamento, é a

consciência da falta, condição esta para a constituição do sujeito, como mostra o

mito do herói, na toxicomania isto não ocorre, pois no consumo compulsivo da droga

não há espaço para o pensamento e a palavra. O sujeito, ao aliviar a dor do existir

por meio de veículos intoxicantes, não verbaliza, não submete o ato à reflexão,

evitando assim uma das mais importantes tarefas do herói que é a aquisição da

consciência de si enquanto ser faltante. É deste modo que o sujeito retorna para

casa, fazendo-se presente perante o outro por meio da fala e da palavra.

Por fim, a questão da toxicomania na adolescência tem que ser pensada

dentro de um contexto maior, que inclua os mecanismos sociais e culturais

presentes na formação do sujeito, e que são parte integrante da visão de mundo de

uma determinada época.

Neste sentido, o mundo que prepara o adolescente para a vida adulta é um

mundo materialista e capitalista que prega o prazer e a satisfação imediata.

A lógica do consumo é colocada como uma forma de recuperar a completude

perdida, assegurando ao sujeito uma felicidade cada vez mais difícil de renunciar,

pois “os objetos de consumo são oferecidos como promessa de satisfação ou

supressão da falta, esforço de reduzir o desejo ao simples encontro com esses

objetos” (BAHIA, et. al. 1999, p. 166).

Portanto: “Se não temos nenhuma transcendência a oferecer a nossos filhos, somente o espetáculo da banalidade iluminada com os holofortes de uma felicidade publicitária, virtual, não há por que estranharmos estarem nossos adolescentes mergulhados no embalo narcísico das drogas” (CORSO M. e CORSO D. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre n. 12, p.78)

A completude narcísica almejada pelo sujeito através do consumismo, uma

forma de pretensamente recuperar a satisfação perdida, também é prometida pelo

racionalismo científico, que acredita ter uma resposta para aliviar o sofrimento

humano. Tudo se torna possível por meio da razão científica, que já acena, inclusive

com a possibilidade de se evitar a morte.

O homem de hoje, seduzido pela crença de que é possível alcançar a

completude prometida pelo ideal de consumo ou pelo racionalismo científico, busca

elidir a falta, elemento essencial para se simbolizar o encontro angustiante com o

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real. Com isso os agentes culturais e sociais que deveriam proporcionar o

amadurecimento do sujeito por meio da instauração e elaboração da falta, mostram-

se não serem eles próprios seres faltantes.

Isto está bastante evidente no discurso dominante da razão científica ao se

colocar como absoluta em seu saber, capaz, inclusive, de dar conta das limitações e

do sofrimento humano, como se percebe na questão dos medicamentos que são

comercializados como promessas de solução para o sofrimento humano, mostrando

que a relação tóxica pode ser mantida também com outros objetos que não as

drogas propriamente ditas. Assim, os bens de consumo socialmente valorizados

também podem desempenhar uma função tóxica no psiquismo do sujeito, desde que

seja estabelecida uma relação de dependência com estes objetos que chegam com

a promessa de satisfação absoluta.

A conseqüência imediata disso é uma sociedade hedonista, um Paraíso

Artificial incapaz de inserir o sujeito na vida adulta, o que nos leva a acreditar que o

mundo de hoje, tal qual um toxicômano que não quer saber de sua angústia,

também precisa aprender a viver a aventura do autoconhecimento, como mostram

as inúmeras faces do mito do herói.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão do uso de drogas na adolescência, principalmente em um contexto

de toxicomania, é um tema bastante complexo que tem que ser pensado dentro de

um contexto maior, que leve em consideração inclusive os paradigmas de uma

determinada época.

O presente artigo se propôs a esta reflexão através de um tema que instiga o

imaginário do jovem, o herói. Deste modo, o conteúdo aqui levantado poderá ser

utilizado na clínica como instrumento de auxílio ao adolescente toxicômano,

contribuindo em sua difícil passagem para a vida adulta.

Contato:

[email protected]

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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