touca e avental: da empregada doméstica à martha de atwood. · discussões que perpassam o papel...

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Touca e avental: da empregada doméstica à Martha de Atwood. RAFAELA CRISTINA MARTINS RESUMO: Através da cultura visual este trabalho propõe aproximar e analisar dois conjuntos visuais e uma obra de arte: uma série de propagandas de máquinas de lavar, veiculadas em 1960 na revista Cruzeiro; a obra Hausfrauen- Küchenschürze [Donas de Casa - Avental de Cozinha] da artista Birgit Jürgenssen, datada de 1975; e imagens do seriado produzido para a televisão americana em 2017, The Handmaid’s Tale. As análises procuraram mostrar a princípio como propagandas, veiculadas na década de 1960 no Brasil, trazem similaridade visual com a obra crítica da artista Birgit Jürgenssen. Cada material contém informações e finalidades bem específicas e quase contraditórias. Através da análise desses dois materiais é possível entender as tensões e discussões que perpassam o papel social da mulher, especialmente em relação ao trabalho doméstico. Já em The Handsmaid’s Tale, de 2017, as representações e figurinos das Marthas e Aias exibem elementos visuais que remetem às imagens do passado em um futuro distópico. Tal análise oferece pistas sobre como as discussões feministas acerca do corpo e o papel da mulher na sociedade apresentam continuidades na contemporaneidade. Tratarei neste trabalho de dois itens de vestuário de uniforme de trabalhadoras domésticas, a touca e o avental. Nesse trabalho realizarei a análise de três maneiras diferentes em que o avental aparece em três situações e momentos históricos distintos, assim como duas situações diferentes em que aparece a touca. Os suportes e meios de representação desses itens são distintos em cada uma das três situações. O primeiro é uma série de propagandas veiculadas entre 1962 e 1963 de máquinas de lavar roupa, o segundo é a obra Hausfrauen Küchenschürze [Donas de casa avental de cozinha] da artista vienense Birgit Jüergenssen, e, por fim, os uniformes das aias e marthas na adaptação do livro de Margareth Atwood The Handsmaid’s Tale para a plataforma de streaming, Hulu. A análise dessas três situações que envolvem a touca e o avental não pressupõe analisar a moda em sua complexidade, nem como os variados processos de produção das roupas, mas enfocar as diversas formas e como tais itens do vestuário de trabalho, de uniforme, foi utilizado para transmitir diferentes mensagens sobre diferentes meios, e como isso reflete as tensões sociais do trabalho doméstico, do corpo feminino e das muitas violências às quais as mulheres estão expostas. O objetivo central é mostrar como, a partir Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas.

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Page 1: Touca e avental: da empregada doméstica à Martha de Atwood. · discussões que perpassam o papel social da mulher, especialmente em relação ao trabalho doméstico. Já em The

Touca e avental: da empregada doméstica à Martha de Atwood.

RAFAELA CRISTINA MARTINS

RESUMO: Através da cultura visual este trabalho propõe aproximar e analisar dois

conjuntos visuais e uma obra de arte: uma série de propagandas de máquinas de lavar,

veiculadas em 1960 na revista Cruzeiro; a obra Hausfrauen- Küchenschürze [Donas de

Casa - Avental de Cozinha] da artista Birgit Jürgenssen, datada de 1975; e imagens do

seriado produzido para a televisão americana em 2017, The Handmaid’s Tale.

As análises procuraram mostrar a princípio como propagandas, veiculadas na

década de 1960 no Brasil, trazem similaridade visual com a obra crítica da artista Birgit

Jürgenssen. Cada material contém informações e finalidades bem específicas e quase

contraditórias. Através da análise desses dois materiais é possível entender as tensões e

discussões que perpassam o papel social da mulher, especialmente em relação ao trabalho

doméstico.

Já em The Handsmaid’s Tale, de 2017, as representações e figurinos das Marthas

e Aias exibem elementos visuais que remetem às imagens do passado em um futuro

distópico. Tal análise oferece pistas sobre como as discussões feministas acerca do corpo

e o papel da mulher na sociedade apresentam continuidades na contemporaneidade.

Tratarei neste trabalho de dois itens de vestuário de uniforme de trabalhadoras

domésticas, a touca e o avental. Nesse trabalho realizarei a análise de três maneiras

diferentes em que o avental aparece em três situações e momentos históricos distintos,

assim como duas situações diferentes em que aparece a touca. Os suportes e meios de

representação desses itens são distintos em cada uma das três situações.

O primeiro é uma série de propagandas veiculadas entre 1962 e 1963 de máquinas

de lavar roupa, o segundo é a obra Hausfrauen – Küchenschürze [Donas de casa –

avental de cozinha] da artista vienense Birgit Jüergenssen, e, por fim, os uniformes das

aias e marthas na adaptação do livro de Margareth Atwood The Handsmaid’s Tale para a

plataforma de streaming, Hulu.

A análise dessas três situações que envolvem a touca e o avental não pressupõe

analisar a moda em sua complexidade, nem como os variados processos de produção das

roupas, mas enfocar as diversas formas e como tais itens do vestuário de trabalho, de

uniforme, foi utilizado para transmitir diferentes mensagens sobre diferentes meios, e

como isso reflete as tensões sociais do trabalho doméstico, do corpo feminino e das muitas

violências às quais as mulheres estão expostas. O objetivo central é mostrar como, a partir

Doutoranda em História pela Universidade Estadual de Campinas.

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dos anos de 1970, esses itens foram usados por mulheres para tomar para si próprias

narrativas e mensagens que não apenas debocham e chocam, mas que também denunciam

o precário lugar social da mulher no pós-guerra e a ameaça de direitos conquistados com

a ascensão da direita nos últimos anos. Portanto, esse trabalho não tem um objetivo

teleológico, ao contrário, a ideia é acompanhar algumas trajetórias de como touca e

avental são apropriados para compor mensagens que demonstram ou denunciam avanços

e recuos dos direitos das mulheres.

Primeiramente uma propaganda que se repete de maneira exaustiva entre os anos

de 1962 e 1963 na revista Cruzeiro, a propaganda traz a mesma mensagem e forma

estética para diversas marcas de máquinas de lavar. A máquina de lavar aparece em uma

ilustração realista, e em cima dela está desenhado, quase como se fosse um desenho a

mão, o rosto redondo de uma mulher de cabelos cacheados usando touca e o avental Cruzeiro. Ano 34, n.50, p. 34, 22 de setembro 1962.

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desenhado sobre a máquina. A propaganda é veiculada em uma revista de grande

circulação no Brasil, a revista Cruzeiro. A ilustração vem acompanhada da frase

“máquina de lavar: uma empregada com que você sempre conta”.

Tal propaganda parece sobrepor dois argumentos: o primeiro são as vantagens da

máquina de lavar em si, demostradas pelo texto ao redor da imagem e acompanhado pela

ilustração realista da máquina de lavar; o segundo argumento vem sobreposto ao primeiro,

e chama a atenção já na primeira e grande frase acima, o segundo argumento serve para

qualquer máquina de lavar e é frisado com o desenho “a mão livre” da empregada

doméstica sobre a ilustração realista da máquina, enfatizando a substituição da empregada

pela máquina de lavar.

Essas propagandas foram veiculadas na revista Cruzeiro entre 8 de setembro de

1962 até 16 de dezembro de 1963 e são praticamente iguais, trazem a mesma frase no

topo, a mesma imagem do rosto da mulher de touca e avental, algo que ao mesmo tempo

que parece humanizar a máquina de lavar também deixa espaço para desumanizar e

invisibilizar ainda mais as mulheres que fazem o trabalho doméstico. Tais propagandas

foram feitas em parceria com o sabão em pó Rinso e mais outras sete marcas de máquina

de lavar diferentes: Bendix, Prima, Rymer, Kenmore, Laundromat Westinghouse, Hoover

e Torga. Durante mais de um ano a propaganda apareceu incessantemente, em apenas

uma revista chega a ter de três a cinco dessas propagandas. Duas edições da revista a de

setembro de 1962 e a de 8 de setembro chegou a ter quatro dessas propagandas e a edição

de 22 de setembro teve cinco delas. Ao todo foram cinquentas e cinco dessas propagandas

entre setembro de 1962 e dezembro de 1963.

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Revista Cruzeiro (1962-1963)

A propaganda remete a substituição da trabalhadora doméstica por uma máquina,

especificamente a máquina de lavar. A touca e o avental desenhados por cima da máquina

não apenas mostram aquela a quem a máquina pode substituir. Essa propaganda

representa bem o lugar da mulher, em especial a trabalhadora doméstica que está marcado

pelo uso do uniforme, a touca e o avental. Esses dois itens podem ser requeridos com

argumentos que envolvam a questão da higiene, especialmente a touca que protege a

comida dos cabelos de quem a prepara, porém mais do que isso também são símbolos que

marcam a distinção entre patroa e empregada, e também apontam a distinção social entre

elas dentro da casa.

Segundo Adrian Forty em seu livro Objetos de desejo os criados homens usavam

uniforme desde o século XVII, mas as criadas, que eram em maior número, não usavam

uniformes específicos até 1860. Pinturas do século XVIII criadas são representadas com

roupas parecidas com as roupas do dia-a-dia de suas patroas, usualmente quem fornecia

as roupas para os empregados nesse período eram os patrões, e isso mantinha o controle

da aparência dos criados, não havia, portanto, risco das criadas se vestirem melhor que

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suas patroas. Esse cenário muda quando os tecidos de algodão estampados ficam mais

baratos e também porque os estampadores passaram a copiar desenhos da moda em

tecidos mais baratos. Essa situação permitiu que as empregadas tivessem vestidos

semelhantes aos de suas patroas no guarda-roupa, o que não agradou as patroas, que

passaram a exigir que suas criadas usassem uniformes, principalmente as copeiras que

eram vistas pelas visitas. Depois de 1860 era frequente que as criadas usassem vestidos

pretos e toucas e aventais brancos, tal uniforme perdurou por boa parte do século XX

(FORTY, 2007: 112).

A situação brasileira durante a década de 1960 no Brasil foi de constante aumento

da desigualdade social. Muitas mulheres acabavam empregadas nas casas das classes

médias e altas no Brasil sem direitos trabalhistas e sem salários justos. Apesar disso é

interessante apontar que as mulheres conseguiram algumas conquistas de direitos entre

1930 e fins de 1970. Desde a década de 1950 movimentos de mulheres e feministas

lutaram em favor dos direitos civis das mulheres. No ano da propaganda em questão,

1962, foi promulgado o Estatuto da Mulher Casada, que garantia à mulher casada plena

capacidade aos 21 anos, ela passou a ser considerada colaboradora do marido nos

encargos da família, o que na prática significava poder tornar-se economicamente ativa

sem necessitar da autorização do marido e ter direito sobre os seus filhos e também

compartilhava do pátrio poder, podendo requisitar a guarda dos filhos em caso de

separação (SANTOS, 2009: 10)1. Concomitante a essa conquista tal propaganda foi

continuamente reproduzida e representava o lugar da mulher na sociedade brasileira: no

espaço doméstico focada no cuidado do lar e da família. A propaganda trata em especial

da trabalhadora doméstica que está representada através do uso de itens de vestimenta, a

touca e o avental. Tais itens do uniforme impedem a individualização da aparência e

também marcam a distinção social entre patroa e empregada dentro da casa. Importante

ressaltar que a maioria das propagandas de eletrodomésticos não trazem a figura

corporificada da empregada doméstica, geralmente esses produtos são apresentados ao

1 Essa lei favorecia principalmente as mulheres da classe média que tinham em vista empregos estáveis e

de acordo com as regras da consolidação das leis de trabalho, por isso necessitavam da autorização do

marido para trabalhar. As mulheres pobres sempre tiveram a urgência de trabalhar e na maioria das vezes

eram empregadas em trabalhos informais e sem direitos.

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lado de donas de casa brancas, jovens mães e, algumas vezes, junto de avós e senhoras

também brancas. A invisibilidade das trabalhadoras domésticas e das mulheres negras,

em um país onde o número dessas mulheres é grande, torna marcante a invisibilidade do

trabalho doméstico e também da total ausência de representação da mulher negra como

consumidora desses produtos.

O avental, que marca o uniforme da empregada doméstica nas propagandas

apresentadas aparece de forma totalmente diferente nos autorretratos de Birgit

Jüergenssen. A situação da mulher como dependente do marido e presa às tarefas

domésticas foi tema da crítica da arte de vanguarda feminista. Em 1975 Jüergenssen

fotografou a si mesma em uma série de fotos que criticam de forma irônica o modo de

vida da mulher herdado do pós-guerra, voltado apenas para o espaço doméstico, o

casamento e a família.

Nascida em Viena em 1949, a artista tem seu primeiro contato com a arte aos

catorze anos quando ganha sua primeira câmera fotográfica. El estudou belas artes na

Universidade de Artes Aplicadas de Viena e desenvolveu pincipalmente a arte

fotográfica, usando-a para denunciar os códigos culturais de uma sociedade patriarcal que

restringiam a vida da mulher austríaca no espaço doméstico. O trabalho de Jürgenssen é

caracterizado por seu discurso crítico aos papéis desempenhados pela figura feminina,

para isso ela usa o seu corpo, a ironia e objetos principalmente do ambiente doméstico

(LÓPEZ, 2018).

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JÜRGENSSEN, Birgit. Hausfrauen – Küchenschürze.1975. 2 fot., preto e branco. 99 x 68.6 cm, 39,3 x 27,5 cm.

Em sua obra Hausfrauen – Küchenschürze [Donas de casa – avental de cozinha],

Jürgenssen fotografa a si mesma usando um avental que é também um fogão, a porta do

forno permanece aberta e vê-se dentro dele um pão. Esta obra é composta por duas fotos,

uma de frente e outra de perfil, mostrando o corpo todo da artista, a sua face não é

expressiva, suas duas mãos repousam sobre sua cintura, quase todo seu corpo é tomado

pelo avental em forma de fogão. Na foto de perfil é possível ver que o fogão é um objeto

muito mais largo e roliço que o corpo de Jürgenssen, algo bastante desajeitado, incomodo

e aparentemente pesado.

O pão que é possível ver saindo do forno, é uma referência ao ditado inglês bun

in the oven ou pão no forno, que é uma metáfora da maternidade. Essa referência e o

modo como ela foi usada pela artista traduz bem a situação de uma época em que a mulher

parecia ser indivisível da sua casa, com isso a obra se tornar uma crítica perspicaz e

irônica. (BLACK, 2018).

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A fusão do corpo feminino da mobília e o interior da casa é uma ideia que tem

feito parte de diferentes discursos desde o século XIX. O fogão que se prende ao corpo

feminino como um avental representa a dupla reprodução da dona de casa e da mãe: a

produção do alimento, representado pelo pão assado e a geração de um filho. Isso,

segundo Irene Nierhaus, “It gives visible form to the female, biopoliticized body

committed to birth rates and the hygiene of family and marriage as well as its localization

in reproduction and residential living.”2 (NIERHAUS, 2011: 37).

Já em The Handsmaid’s Tale (MORANO, 2017) a touca e o avental aparecem

mais uma vez no figurino da série de 2017. A série é baseada no livro homônimo da

escritora canadense Margareth Atwood, de 1985. O livro conta a história de um futuro

distópico onde a maioria das mulheres se tornaram inférteis, e os Estados Unidos se

transformaram em uma sociedade extremamente autoritária, conservadora e

hierarquizada, chamada Gilead. Não por acaso todos da casa usam uniformes, ou ao

menos cores que identifiquem seus lugares sociais e suas hierarquias.

As marthas e aias são mulheres da antiga sociedade que não se adequariam por

qualquer razão, muitas delas eram profissionais altamente especializadas na antiga

sociedade e agora são forçadas a trabalhar como aias, empregadas e cozinheiras nas casas

dos altos oficiais. As aias não podem sequer usar seus nomes, eles se tornaram proibidos,

elas recebem os nomes dos comandantes a quem servem, por exemplo, Offred, na

tradução do inglês significa literalmente “de Fred”. As aias são as mulheres férteis que

Gilead conseguiu rastrear e torná-las prisioneiras, e por serem férteis são usadas nas casas

de altos oficiais em rituais extremamente violentos, tanto fisicamente quanto

simbolicamente, no qual essas mulheres são estupradas pelos comandantes com a

conivência e cumplicidade de suas esposas para que elas engravidem, a criança gerada

deveria ser criada como filha do casal. Ao passo que as marthas usam uniformes verdes

claros, com panos simples amarrados a cabeça e um avental longo com bolsos, a função

delas é limpar e cozinhar para as famílias dos comandantes.

2 Tradução livre: Dá forma visível ao corpo feminino, biopolítico comprometido com as taxas de natalidade

e a higiene da família e do casamento, bem como a sua localização na reprodução e na vida da casa.

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As aias usam uma touca branca específica para ser vestida quando saem de casa,

é uma touca de abas largas que cobre todo o rosto da aia e tampa muito de sua visão. Ao

mesmo tempo que seu rosto é coberto, seu corpo é vestido com roupas e capas vermelhas

que chamam muita atenção diante das cores neutras que os outros personagens usam.

Na sequência de cinco minutos do primeiro episódio que apresenta os principais

personagens da trama é possível entender os significados do uso da touca pelas aias. No

diálogo que a aia, June, tem com Serena, esposa do comandante Fred, o rosto de June é

focalizado em close e é possível ver todo o rosto dela enquadrado pela aba da touca.

Quando o marido entra em cena o close de June é feito na diagonal e a touca começa a

cumprir seu papel cobrindo parte de seu rosto.

Na continuação a personagem Rita é apresentada, ela é a martha daquela casa, é

possível vê-la preparando um pão, a cena parece de uma idílica cozinha, mas as roupas

da martha deixam claro seu lugar naquela casa. O tratamento que a martha dispensa a aia

é bastante árido o que reflete uma relação nenhuma confiança entre as mulheres da casa.

O oitavo episódio da segunda temporada, chamado Women’s work, marca como

as mulheres são tratadas em Gilead como seres sem autonomia e sem possibilidade de

exercer qualquer habilidade intelectual. Nesse episódio o comandante Fred se encontra

hospitalizado e sua mulher, Serena, passa a escrever e revisar os memorandos do marido.

Para isso ela pede ajuda de June que no passado era editora. A sequência de June e Serena

trabalhando mostra como ambas retornam brevemente para suas ocupações de antes da

guerra, Serena como escritora e June como editora. Parte da cena se passa com a voz off

de June fazendo uma reflexão sobre o que ela chama de o “novo normal”, o fato delas

estarem trabalhando juntas. A narradora diz que Serena parece feliz, nesse momento June

pergunta a Serena se ela não sente falta de trabalhar, e Serena responde “é um pequeno

sacrifício para ser acolhida por deus”, após uma pausa Serena adiciona “eu realmente

detesto tricotar para ser franca”. Ambas em suas roupas, June em seu uniforme de aia e

Serena vestida com a cor das esposas, trabalham escrevendo e lendo enquanto ouvem

músicas que provavelmente são censuradas, tudo acontece no escritório de Fred. A

sequência toda é uma série de transgressões das leis de Gilead: o uso do escritório, espaço

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do marido, mulheres lendo e escrevendo, a reprodução de músicas muito provavelmente

censuradas. Uma aparente cumplicidade surge entre as duas, que não carrega afeto, a

cumplicidade de transgredir várias regras juntas, por isso a hierarquia aparece amenizada

nessa sequência, uma sensação que é interrompida quando Serena avisa June que Fred

logo voltará para casa.

No mesmo episódio uma das crianças dos altos oficiais se encontra gravemente

doente e o melhor especialista em neonatologia antes da guerra era uma mulher negra,

que agora se encontra na posição de martha. Serena, através da falsificação da assinatura

de seu marido, autoriza uma breve transferência: a martha Hodgson voltaria a ser por

alguns instantes a neonatologista Hodgson para examinar criança doente.

Hodgson chega escoltada por homens armados de fuzis, sua expressão é de

ansiedade e medo, eles chegam no que parece ser a entrada dos fundos do hospital, ela

ainda não sabe o que iria fazer lá. A cena de Hodgson trocando seu uniforme de martha

pelo jaleco de médica é carregada de emoção, ela é recebida pelo médico do hospital com

muitos elogios, sua expressão é de quem vive algo surreal, ao mesmo tempo que parece

deslumbrada não deixa de sentir medo. O médico a recebe dizendo que está feliz em revê-

la, que ela não lembraria dele porque ela treinou o seu mentor, ele apenas a tinha ouvido

em uma conferência, já que no passado ela era a maior autoridade de sua área. Nesse

momento Hodgson veste o jaleco chorando, Serena diz ao médico que ele deve parar com

a adulação, o médico então passa o caso para a, agora, médica Hodgson. Serena diz que

querem a opinião médica dela e imediatamente Hodgson passa a dizer quais exames

precisa para fazer o diagnóstico da criança.

O retorno do comandante Fred a sua casa marca o final dessas transgressões, ele

pune sua mulher com cintadas nas costas pela sua atividade ilícita.

O corpo da mulher em O Conta da Aia não é apenas ligado a casa, a nutrição e

reprodução da família, ele é claramente explorado como um recurso: as marthas são

usadas exclusivamente para o trabalho doméstico e as aias são os recursos para a

reprodução humana.

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A série além de ser baseada em um livro de uma autora, também foi dirigida por

Reed Morano entre outras diretoras, posição pouco ocupada por mulheres em filmes de

longa-metragem na indústria do cinema. Além disso ela foi produzida durante o ano de

2016, quando a eleição de Trump era apenas uma ameaça. A estreia da série na plataforma

de streming ganha muito sucesso em um contexto após a eleição de Donald Trump nos

Estados Unidos e nos últimos anos com os recentes embates da direita pela criminalização

do aborto em vários estados do mesmo país. O conteúdo da série bem como do livro é

chocante e bastante violento, mesmo que não tenham cenas repletas de sangue a série traz

muita violência em sua simbologia. O que faz refletir sobre a situação da fragilidade da

mulher na sociedade atual tanto em relação a violência doméstica, quanto em outras

questões como a liberdade sobre seu corpo, a escolha da maternidade, o apagamento e

invisibilidade das capacidades intelectuais e profissionais entre outras questões.

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BLACK, H.. “This 1970s Artist Turned Her Body into Domestic Applicances”. AnOther.

Disponível em: <http://www.anothermag.com/art-photography/10775/this-1970s-

artistturned-her-body-into-domestic-applicances> [acessado 1 março 2019].

FORTY, A. Objetos de Desejo. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

JÜRGENSSEN, Birgit. Hausfrauen – Küchenschürze.1975. 2 fot., preto e branco. 99 x

68.6 cm, 39,3 x 27,5 cm.

LÓPEZ, N.C. “Reivindicando a Birgit Jürgenssen”. Good2b lifestyle Barcelona &

Madrid. Disponível em: <http://www.good2b.es/reivindicando-a-birgit-jurgenssen/>

[acessado 1 março 2019].

MARTÍNEZ, Marta P. Retales y Remendos. Un estudio em torno a la representación de

la mujer desde una perspectiva femenina 1970s y 1980s. 2018. 87 f. Dissertação

(Mestrado em Arte) – Faculdade de Belas Artes, Universidade de Sevilha, Sevilha, 2018.

NIERHAUS, Irene. “Landscapeness as Social Primer and Ground” in: MOOSHAMER,

H.; MÖRTENBÖCK, P. Space (Re)Solutions: Intervention and Research in Visual

Culture. Bielefeld: Transcript, 2011.

Revista Cruzeiro, 1962-1963.

The handmaid’s tale. Direção: Reed Morano, Kari Skogland et al. Produção: Elizabeth

Moss, Joseph Boccia et al. Ontario (CA): MGM television entertainment inc., Relentless

productions, 2017.