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RESENHAS

Reis negros coroados

 José Roberto Pinto de Góes 

Topoi , Rio de Janeiro, mar. 2002, pp. 183-189.

Mello e Souza, Marina de. Reis negros 

no Brasil escravista. História da fes-ta de coroação de Rei Congo. BeloHorizonte, Editora da Universi-dade de Minas Gerais, 2002, ....p.

Referindo-se à festa de coroa-ção de reis negros, realizada hoje emdia, Marina de Mello e Souza escre-

veu: “Mesmo que os seus significa-dos básicos permaneçam os mesmospara os que a vivem anualmente, oespaço que ocupava na sociedadecomo um todo se restringiu bastan-te, e para os que a olham de fora, ela se tornou manifestação folclórica,

tradição admirada por alguns, maspercebida como deslocada no tem-po.” Há algo de comovente em al-guma coisa tornar-se paulatinamen-te incompreensível, virar folclore esucumbir ao tempo. Talvez por issoexistam os historiadores. Veja-se ocaso de Marina, que começou a en-

treter este livro ainda na época emque escrevia a dissertação de Mestra-do, quando se inquietava por, em

Parati, haverem desaparecido as

congadas e os jongos. Se não é pos-sível, nem desejável, suspender o flu-xo do tempo, serve de consolo o fatode que é possível resgatar o passadoda incompreensão e da morte abso-luta, configurada pelo pleno esque-cimento. Ao menos enquanto a ta-bacaria continuar defronte da jane-

la de Fernando Pessoa e existir a lín-gua portuguesa e este planeta errante.

 A festa de coroação de reis ne-gros é o tema de Reis Negros no Bra-

sil escravista . O livro, originalmentetese de Doutorado apresentada aoPrograma de Pós-graduação da UFF,

está organizado em cinco capítulos.No primeiro, a autora discute o sig-nificado do rei e de sua mise en scène ,na Europa e na África. Nos dois se-guintes, transporta o leitor para a 

 África habitada por povos falantes delínguas bantos, nos séculos em quea história da região entrelaçou-se às

portuguesa, européia e brasileira,durante os quais cerca de três mi-lhões e meio de africanos foram tra-

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zidos a povoar o Brasil. Os capítu-

los seguintes tratam da festa e de suastransformações.O livro é uma importante con-

tribuição à historiografia brasileira.Vem preencher uma lacuna sinto-mática, concernente ao acanhadoespaço ocupado pela África na his-toriografia de língua portuguesa 

produzida no Brasil, ressalvado, cla-ro está, a qualidade dos poucos es-tudos que se aventuram em territó-rio tão pouco explorado. A nature-za sintomática da lacuna fica porconta do fato de que tal ausência,coisa estarrecedora, na verdade, nãoestarrece a ninguém: os nossos cur-sos de graduação em História, emboa parte, continuam ignorando oconselho de Von Martius, segundoo qual devíamos, os brasileiros, es-tudar as tradições européias e indí-genas, mas também as africanas, demodo a compreender e escrever a 

nossa história. Permanecemos umtanto clones de Varnhagen, fascina-dos pelo que reinou e reina na Eu-ropa. A pesquisa sobre a festa levoua autora a um apurado estudo na bibliografia mais recente, inclusivea antropológica, concernente às cul-turas e sociedades localizadas na 

 África Centro — Ocidental, perten-centes a um tronco lingüístico co-

mum, o banto. O resultado foi um

painel abrangente da história e dastradições culturais de inúmeros po-vos e sociedades que tiveram um pa-pel decisivo na formação do Brasil.

 Acresce o mérito, o fato da  África comparecer no livro, não na forma habitual, parece que “politi-camente correta”, do continente in-

defeso ante a sanha cobiçosa do eu-ropeu. Em vez disso, o leitor é apre-sentado a uma região com uma his-tória própria, a cujas característicase vicissitudes os visitantes tiveramque se adaptar. Composta de socie-dades complexas, com hábitos enrai-zados, inclusive no que diz respeitoà compreensão do mundo e da vida,nas quais, aliás, a sanha cobiçosa deuns, de poder e de riqueza, não era menor do que a dos estrangeiros.

Exemplo disso é a história da cristianização do reino do Congo,com o qual os portugueses se depa-

raram quando descobriram a embo-cadura do rio Zaire, no final do sé-culo XV. Os convertidos filtraram,a partir da rede de significações queera peculiar à  cultura bacongo, osensinamentos e as esquisitices dospadres, criando um catolicismomuito particular, assentado sobreuma cosmogonia própria e inaltera-da. Nesta, os mundos natural e so-

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brenatural, dos vivos e dos mortos,

eram reflexo um do outro e encon-travam-se separados pela água ou

por uma superfície que reflete a ima-

gem projetada, como o espelho. No

mundo de cá, vivia a gente negra, no

qual aparecia pelo nascimento e de-

saparecia com a morte; no mundo

dos mortos (que eram brancos) ha-

bitavam os ancestrais e espíritos di-versos, que influenciavam o mundo

visível, diretamente ou através de lí-

deres religiosos (itomi e nganga, em

kikongo). Se dependesse apenas da 

vontade benevolente do criador, a 

vida seguia boa e em harmonia. Mas

forças malévolas, despertadas, cons-

cientemente ou não, pelos homens,

faziam da vida o que ela era, sujeita 

a doenças, pobreza, desavenças e

demais infortúnios. Por isso era 

muito importante poder comuni-

car-se com o mundo dos espíritos e

tentar refazer a ordem natural das

coisas.Movimentos religiosos surgiam

toda vez que os cultos tradicionais se

mostravam ineficazes. Calcula-se

que os mais longevos duravam uns

50 anos. Freud dizia que a religião é

o delírio das massas. Se assim for,

cada geração de africanos se via obri-

gada a dar novas roupagens ao delí-

rio coletivo — o que não deixa de

ser uma medida do quanto é difícil

alcançar a paz e a harmonia no mun-do dos vivos. O padrão era mais ou

menos o mesmo. Um líder carismá-

tico convencia os demais que, em

sonho ou em transe, comunicava-se

com o além. Seguia-se a pregação e

a aceitação das novas normas, que

eram uma “recombinação de rituais,

símbolos, crenças e mitos já existen-tes, sendo apenas ocasionalmente

incorporado material completamen-

te novo“, no dizer de Marina. O

processo envolvia a conversão de al-

deias, lances dramáticos, ritos de

purificação (algo análogo ao batismo

cristão), a destruição de objetos

cultuados (aos quais se dava o nome

de minkisi), e a adoção de outros,

quiçá pela incorporação de elemen-

tos estrangeiros. A recombinação de

mitos e ritos se dava sempre nos li-

mites daquelas crenças básicas, que

o estudo mais autorizado sobre o

assunto (Religious movements in Cen-tral Africa: a theoretical study , de

Craemer, Vansina e Fox) denomina 

“complexo ventura — desventura”.

Os povos falantes do banto faziam

isso há séculos, quando os portugue-

ses descobriram o Zaire.

Os nossos ancestrais lusos tam-

bém tinham lá o seu arrebatamento

característico, muito parecido, em

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variados aspectos, com o que dava 

asas à imaginação no reino doCongo. Também acreditavam nomundo dos mortos e dos espíritos ena possibilidade de fazê-lo interce-der por nós, viventes. (Às vezes, deinusitadas maneiras: e não havia gajas casadoiras que, impacientes,esfregavam a imagem do santo nas

próprias coxas, com o intuito deconvencê-lo a arranjar-lhe um ma-rido?) Também tinham os seus ri-tuais, os seus minkisi — basta pen-sar na profusão de santos cujas ima-gens são cultuadas pelos fiéis — e osseus nganga, os padres. Assim, maisuma vez nas palavras de Marina, “ocristianismo foi recebido peloscongoleses como um novo movi-mento religioso, excepcionalmentepoderoso”.

Quando, por ocasião do batis-mo do rei do Congo, o irmão deleafirmou ter encontrado uma cruz de

pedra quando saía de casa, os padresviram nisso um sinal do triunfo deCristo e, os congoleses, mais uma confirmação de seculares convicções— notadamente, o que a cruz repre-sentava na cosmogonia bacongo, na qual os mundos encontravam-se se-parados pela água ou pelo espelho.Uns viam o triunfo de Cristo ondeoutros viam a representação de en-

sinamentos ancestrais. Lembra a 

carta de Caminha: “Isto tomávamosnós nesse sentido, por assim o dese- jarmos!” Durante um bom tempo asrelações entre portugueses e congo-leses pautaram-se por uma espéciede “diálogo de surdos”, numa suces-são de “mal entendidos” mutuamen-te concertada. Aos padres como às

elites congolesas convinha a “cristia-nização” do reino. Aos padres, pela sabida mescla de fé, cobiça e gostopelo poder. Aos congoleses, pelosmesmos motivos. O catolicismo era um movimento religioso que impu-nha respeito: os cristão pareciambafejados pela sorte, dominavamuma tecnologia superior (que incluía arma de fogo e escrita) e vinham dedepois da grande água. Havia deconferir legitimidade ao rei — poiso soberano devia ser capaz de mere-cer a benevolência do outro mundo— e reforçar o seu poder.

O estudo da cristianização doreino do Congo é um momento im-portante da pesquisa sobre a festa da coroação de reis negros no Brasil,mas é apenas um dos temas aborda-dos no livro, relativos à história da 

 África. Ao situar o processo na his-tória africana, Reis Negros no Brasil 

escravista  convida o leitor a com-preender a organização social dos

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povos bantos da região Centro —

Ocidental, as relações ambíguas en-tre linhagem e escravidão, o papel do

tráfico transatlântico na história dos

reinos do Congo, do Ndongo, de

Matamba etc. (o leitor há de prefe-

rir conhecê-los pelas palavras da pró-

pria Marina).

Festas de coroação de reis ne-

gros aconteceram em Portugal, na  América do Norte, no Caribe, na 

 América espanhola, mas, sobretudo,

no Brasil, onde existem desde o al-

vorecer do século XVII. Repare o

leitor como Henry Koster assistiu a 

uma, em Recife, no ano de 1814:

No mês de março tem lugar a 

festa anual de Nossa Senhora do Ro-

sário, dirigida pelos negros, e é nes-

sa época que elegem o Rei do

Congo, se a pessoa que exerce essa 

função faleceu durante o ano, resig-

nou por qualquer motivo ou haja 

sido deposta por seus súditos... Es-

ses soberanos exercem uma espéciede falsa jurisdição sobre seus

vassalos, da qual muito zombam os

brancos, mas é nos dias de festa que

exercem sua superioridade e poder

sobre seus companheiros. Os negros

dessa nação mostram muito respei-

to para com seus soberanos... O ne-

gro velho que seria coroado nesse dia 

de festa, veio pela manhã cedo apre-

sentar seus respeitos ao Vigário que

lhe disse, em tom jovial: ‘Perfeita-mente, senhor, mas hoje estarei às

suas ordens, devendo servir-lhe de

Capelão!’ Pelas onze horas fui à Igre-

 ja com o Vigário. Ficamos parados

à porta, quando apareceu um nume-

roso grupo de negros e negras, ves-

tidos de algodão branco e de cor,

com bandeiras ao vento e tamboressoando. Quando se aproximaram,

descobrimos, no meio, o Rei, a Ra-

inha e o Secretário de Estado. Cada 

um dos primeiros trazia na cabeça 

uma coroa de papel colorido e dou-

rado. O Rei estava vestido com uma 

velha roupa de cores diversas, verme-

lho, verde e amarelo, manto, jaleco

e calções. Trazia na mão um cetro da 

madeira, lindamente dourado. A 

Rainha envergava um vestido de

seda azul, da moda antiga. O humil-

de secretário ostentava tantas cores

quanto seu chefe, mas era evidente

que sua roupa provinha de váriaspartes, umas muito estreitas, e ou-

tras demasiado amplas para ele. As

despesas com a sagrada cerimônia 

deviam ser pagas pelos negros e por

isso, no meio da Igreja, estava uma 

mesinha, com o tesoureiro dessa Ir-

mandade preta e outros dignatários,

e sobre ela uma pequena caixa para 

receber o dinheiro. Tudo ia lenta-

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mente, muito mais lentamente que

o apetite do Vigário, que nada co-mera, embora fosse perto do meio-dia, porque ele e outros padres assis-tentes deviam cantar a missa. Con-seqüentemente, aproximou-se da mesa e começou a falar aos direto-res, declarando que não iria ao altarantes que a despesa fosse paga. Di-

vertia-me muito vê-lo cercado pelosnegros e entediado pela falta de pon-tualidade nas suas contribuições.Houve a seguir um rumor na Igreja entre os pretos. O Vigário havia ex-probrado alguns deles e logo que esteos deixou, começaram a discutir unscom os outros, em voz alta e com

palavras zangadas, sem respeito pelolocal. Foi uma cena muito interes-sante para mim e para outras pes-soas, mas tudo se passou rapidamen-te. Por fim, Suas Majestades ajoelha-ram-se ante a grade do altar-mor e a missa começou. Terminado, o novoRei devia ser coroado, mas o Vigá-

rio estava com fome e desempe-nhou-se sem muitas cerimônias.Segurou a coroa, na porta da Igreja,o novo soberano apresentou-se e foimandado ajoelhar, a insígnia lhe foiposta e o Vigário disse: ‘Agora, se-nhor Rei, vai-te embora!’1

 A citação é longa mas a descri-ção da cerimônia é ótima. Observe-se a pobreza dos escravos na roupa 

do “humilde secretário”, composta 

de peças diferentes, cujas medidasnão eram as dele. O modo como ossúditos e devotos levavam a cerimô-nia a sério, trocando, até, palavraszangadas entre si. O modo como os“brancos” zombavam dela, a come-çar pelo padre, impaciente por apla-car seus apetites. O próprio Koster

divertiu-se muito, ao vê-lo rodeadode negros. Até agora, o que sobres-saía na festa era o ser um ritual deinversão, comum em muitas socie-dades, inclusive as portuguesa ebaconga: breves instantes nos quaiso mundo fica de ponta cabeça, o fra-co vira forte, o forte vira fraco e o

mar vira sertão. Marina propõe quea festa, além disso, celebrava ummito, o mito fundador de uma co-munidade negra e católica no Bra-sil. Com todo direito às luzes deMircea Eliade: a congada relembra-ria o tempo mítico no qual o caos sefez ordem e as coisas receberam no-

mes. Mito elaborado a partir da he-rança africana (aí incluída a ideali-zação do passado), mas também deapropriações no universo simbólicodos senhores. Além, claro, da apeti-tosa propensão em reinventar uma identidade, em meio às agruras da escravidão.

Reis, coroas e cetros ajudavama forjar identidades na África e con-

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tinuaram com a mesma valia no

Brasil. A coroa podia ser de papel,mas isso não tinha importância. O

vigário estava interessado nas econo-

mias dos escravos e de pança vazia.

Quase se pode vê-lo, impaciente, na 

porta da igreja, a segurar uma coroa 

de papel dourado, prestes a assentá-

la na cabeça de um velho escravo.

 Após ler o livro de Marina, pode-seimaginar também os assistentes,

acompanhando a coroação do rei

congo pelo nganga branco. Eram

também protagonistas, pois não dei-

xavam de estar coroando a si pró-

prios. Diálogo de surdos.

Reis Negros no Brasil escravista 

é também um ótimo exemplo de

como pode a História Cultural con-

tribuir para a história das pessoas

comuns, mesmos as mais oprimidas,

como era o caso dos escravos. Pelo

estudo de uma festa se escreve a his-

tória daquela legião de desterrados.

Na celebração há histórias, signifi-cados, escolhas, além de muita espe-

rança e ilusão. Como devia ser uma 

festa tipicamente lusitana. Aliás, to-

mara que o livro passe o óbito defini-

tivo à idéia de que a escravidão anu-

lava a “humanidade” do escravo.

Nele, os escravos são surpreendidos

na arte de recriar um mundo espiri-

tual tão complexo como o de seus

dominadores. Se a isso acrescenta-

mos a lembrança de que o mundomaterial ficava a cargo do seu traba-

lho...

Para finalizar, cumpre dizer que

o livro de Marina de Mello e Souza 

é também uma ótima contribuição

à sociedade brasileira. As lembran-

ças movem o mundo e a vida, e o

trabalho do historiador é lembrar,como disse Hobsbawm. A geração

presente, ao menos a parte dela que

governa o Brasil, instruiu-se na cren-

ça de que os escravos eram um nada,

ao invés de sujeitos da história. Era 

o efeito da transposição do diálogo

de surdos para a historiografia e para 

a sociologia. O resultado, agora, é a 

tentativa de implantar cotas raciais

no Brasil, uma maneira infinitamen-

te mais sutil, só possível em tempos

muito hipócritas (Caminha jamais

acharia emprego hoje em dia), de

discriminar e ser racista. Mas como

tamanha sutileza só subsiste na ig-norância, quem sabe o livro de Ma-

rina não pode ser antídoto a tais

imposturas?

Notas

1 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do

Brasil . Secretaria de Educação e Cultura,Governo do Estado de Pernambuco, 1978,pp. 276-7.