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  • 7/27/2019 TOPOI 3 - Maria Clementina Pereira Cunha - A histria nas histrias (resenha - Natalie Zemon Davis - Histrias de

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    A histria nas histrias

    Maria Clementina Pereira Cunha

    Davis, Natalie Zemon. Histrias de per-

    do e seus narradores na Frana do

    sculo XVI. So Paulo: Compa-

    nhia das Letras, 2001. 315 p.

    Se historiadores cultivassem a

    mania norte-americana de escolher

    os dez mais para estabelecer o

    rankingde seu prprio ofcio, segu-

    ramente Natalie Zemon Davis figu-

    raria em todas as listas em posiode destaque. Nas ltimas duas dca-

    das, excepcionalmente frteis nesta

    rea, seus trabalhos tm tido uma

    repercusso notvel e inspirado pro-

    fissionais do mundo inteiro por sua

    ousadia, capacidade de inovar e bus-

    car formas alternativas de pesquisa,interpretao e exposio de resul-

    tados. Esta posio consolidou-se

    desde o aparecimento da obra-pri-

    maO retorno de Martin Guerre. Pu-

    blicado originalmente em 1982 e

    traduzido para o portugus em

    1987, o livro enriqueceu uma inten-

    sa polmica entre especialistas,abrindo o campo sobre o qual a au-

    tora voltou a debruar-se em Hist-

    rias de perdo e seus narradores na

    Frana do sculo XVI, de 1987, que

    a Companhia das Letras acaba de

    traduzir e publicar. Impossvel, por

    isto, discutir este livro sem remeter

    ao anterior e ao seu impacto na his-

    toriografia contempornea.

    Com a histria de Martin,

    Bertrande, do simptico impostor

    Pansette e outros personagens da

    pequena aldeia de Artigat, nosPireneus, narrada com a estrutura e

    a graa de um romance (e antes, de

    um filme laboratrio que co-

    locou para a autora novas questes

    relativas especificidade do discur-

    so historiogrfico), Natalie Davis se

    colocava entre aqueles historiadores

    que afirmavam a possibilidade de

    conhecer algo da experincia de gen-

    te de carne e osso perdida nas bru-

    mas do passado. Com Martin Guer-

    re e seus companheiros de aventura

    ela alcanou este mundo desapare-

    cido sem recorrer a grandes catego-

    rias explicativas, abstratas e finalis-tas: so as vidas de homens e mulhe-

    res comuns que aparecem naquelas

    Topoi, Rio de Janeiro, set. 2001, pp. 187-192.

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    pginas, compreendidas atravs dos

    significados de um episdio de gran-

    de apelo literrio. Ela enfrentava as-

    sim de modo original os impasses

    criados pela crise dos paradigmas

    que, de diferentes maneiras, parali-

    sava alguns historiadores e estimu-

    lava outros busca de novas respos-

    tas. A micro-histria, na Itlia, assim

    como algumas obras importantes dachamada Nova Histria cultural

    francesa e parte da historiografia

    norte-americana podem ser aponta-

    das como produtos deste mesmo

    impulso.

    O mais impressionante, no

    caso deste livro, que no houve

    chance de recorrer a uma documen-

    tao direta. Seu resultado, assim,

    ampliou e legitimou como procedi-

    mento historiogrfico o uso da

    conjectura, das evidncias paralelas,

    do cruzamento de informaes, da

    especulao controlada e amparada

    por uma slida pesquisa que permitainserir os indivduos em seu contex-

    to, explicando a um s tempo uns e

    outros. No caso, o relato do jurista

    Jean de Coras, em seuArrest Memo-

    rablefoi cotejado com uma ampla

    gama de fontes manejadas com ad-

    mirvel habilidade. Obras anterio-

    res que marcaram profundamente ahistoriografia do sculo XX tm esta

    mesma marca: E. P. Thompson, por

    exemplo, em Senhores e caadores, de

    1975, enfrentou a mesma ausncia

    de documentao especfica sobre a

    Lei Negra produzindo uma in-

    terpretao original a partir de uma

    investigao impressionante em

    fontes paralelas, suficiente para sus-

    tentar concluses que incomodaram

    seriamente tanto os especialistas pre-sos a velhos modelos tericos ou a

    procedimentos convencionais de

    anlise quanto os intrpretes que

    no conseguiam ver na histria se-

    no a imaginao dos historiado-

    res. Thompson foi classificado por

    Hayden White como um vulgar

    empirista em seu esforo em des-

    vendar novos aspectos da sociedade

    inglesa no sculo XVIII emA forma-

    o da classe operria inglesa cr-

    tica dirigida tambm a toda a sua

    obra, inclusive a interpretao dos

    significados da lei como um campo

    de embates e produo de direitos.O notvel caso de Menocchio, res-

    suscitado em livro por Ginzburg em

    1976, deixou ecos semelhantes e

    outros exemplos poderiam ser men-

    cionados para recuperar um pouco

    da atmosfera intelectual na qual

    Natalie Davis trouxe luz estas His-

    trias de perdo,tomando-as comoobjeto de um exerccio que nos traz

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    de volta ao debate, nunca esgotado,

    sobre a questo. Em meio a esta at-

    mosfera to rica quanto conturbada,

    Natalie Davis forjou sua prpria

    maneira de lidar com a histria,

    imprimindo-lhe definitivamente

    sua marca. Basta lembrar que, um

    ano aps a publicao das Histrias

    de perdo, seus pares ainda discutiam

    as implicaes de sua narrativa so-bre a histria de Martin Guerre

    como se pode ver no seu dilogo

    de 1988 com Robert Finlay na

    American Historical Reviewou nos

    comentrios posteriores de Ginzburg.

    No se deve, assim, dissociar um

    trabalho do outro sob pena de per-

    dermos seus melhores desdobra-

    mentos e significados.

    Com Martin Guerre, que veio

    luz quase uma dcada depois do

    livro de Thompson e quatro anos

    aps os trpicos de Hayden White,

    a autora trouxe para o centro do seu

    trabalho a celeuma sobre a positivi-dade da histria, as fronteiras entre

    fato e fico ou entre literatura e

    histria, que ganhara corpo no final

    dos anos 1970 e incio dos 80. F-

    lo com ousadia e provocou um am-

    plo campo de objees. A histria de

    Martin Guerre uma inveno

    para usar o vocabulrio do tericonorte-americano Hayden White

    mas produzida atravs de uma escu-

    ta atenta de vozes do passado. Dian-

    te dele, historiadores mais conven-

    cionais protestaram contra a extra-

    polao, a conjectura e, mais ainda,

    contra a construo ficcional como

    parte do trabalho cientfico. Do

    outro lado, aqueles que julgavam

    que vozes do passado no se podiam

    fazer ouvir em velhos papis (e que,portanto, julgavam que ao historia-

    dor apenas interessava seu prprio

    processo de inveno ou restrin-

    giam as possibilidades cognitivas da

    histria desconstruo de textos),

    escarneceram de sua tentativa de

    atingir, como Thompson ou Ginzburg,

    a experincia de homens reais. Em

    outras palavras, discutia-se o prin-

    cpio de realidade da histria em

    seu jogo entre verdades e possibili-

    dades. Se a insistncia de Natalie

    Davis em buscar a experincia dos

    camponeses e aldees na Frana

    moderna foi capaz de encantar atodos pela maestria do texto, a redu-

    o na escala da anlise e o modo de

    ver e narrar desgostaram aqueles que

    preferiam apostar em categorias ge-

    rais desgastadas pelo (mau) uso. In-

    comodou igualmente os que ques-

    tionavam, em uma perspectiva pr-

    xima s variantes de uma historio-grafia ps-moderna, a possibilidade

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    de recuperar valores e modos de vida

    reeditando, de certa forma, a pol-

    mica que cercou, com referncias

    um pouco diversas, o massacre de

    gatos de Darnton publicado

    pouco depois do Martin Guerre

    que envolveu, em 1985, nomes

    como os de Roger Chartier e Domi-

    nick LaCapra: o que podemos

    acessar da experincia do passado apartir destes relatos? Em que medi-

    da textos de juristas, literatos, advo-

    gados e outros agentes, cifrados e

    conformados pelas etiquetas narra-

    tivas da retrica ou pelos seus pr-

    prios objetivos institucionais, po-

    dem ser tomados como vestgios de

    modos de vida, da cultura popular

    e seus significados ou em que

    medida se deve tom-los como re-

    presentaes ou discursos que falam

    apenas de seus prprios autores? At

    que ponto a retrica, os cnones

    discursivos ou os enunciados da cul-

    tura letrada que revestem textosempoeirados dos arquivos permi-

    tem acesso a valores e comporta-

    mentos humanos cujos significados

    teriam sido irremediavelmente se-

    pultados com seus praticantes? A

    histria, entendida como a interpre-

    tao de acontecimentos do passa-

    do, seria ainda um exerccio intelec-tual e poltico legtimo?

    Estas Histrias de perdo man-

    tm, assim, estreitas ligaes com

    um debate que envolvia diferentes

    concepes de histria e posies

    opostas a respeito de sua legitimida-

    de como saber sobre o passado. Tal-

    vez estas crticas ao seu livro de 1982

    a tenham levado rapidamente a este

    novo exerccio a partir de um con-

    junto de fontes j parcialmente per-corrido em sua incurso pela hist-

    ria de Martin Guerre. O universo

    das cartas de remisso foi o ponto de

    partida para uma retomada destas

    interrogaes que giram igualmen-

    te em torno do ofcio do historiador

    e da histria cultural da Frana no

    sculo XVI. O ttulo originalmente

    escolhido para o volume, Fico

    nos arquivos, secundado pelo sub-

    ttulo histrias de perdo e seus

    narradores na Frana do sculo

    XVI talvez tenha parecido um tan-

    to tedioso para os editores que, em

    boa hora, traduziram para o portu-gus o volume publicado nos Esta-

    dos Unidos. Seu aparente paradoxo,

    entretanto, aponta inequivocamen-

    te para esta inteno.

    No toa, Natalie Davis abre

    seu livro relembrando velhas lies

    de histria a respeito dos fatos reais

    que aprendeu em seus anos de estu-dante. Evoca assim passagens conhe-

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    cidas de Hayden White em seu Tr-

    picos do discurso: se reconhecsse-

    mos a existncia de um elemento

    fictcio em toda narrativa histrica,

    haveramos de encontrar na prpria

    teoria da linguagem e da narrativa a

    base para a representao daquilo

    em que consiste a historiografia, re-

    presentao mais sutil que aquela

    que simplesmente exorta o estudan-te a ir adiante e a descobrir os fatos

    lanando-os por escrito de modo a

    relatar o que realmente aconteceu.

    A rpida meno a este autor re-

    ferncia fundamental para um dos

    lados neste debate sobre os signifi-

    cados da histria logo nas primei-

    ras pginas de um livro dedicado a

    discutir fontes e seus usos, explicita

    o campo no qual sutilmente Natalie

    Davis se coloca. Dir-se-ia que o li-

    vro, primeira vista despretensioso

    em seus objetivos, tem a dimenso

    de um acerto de contas com a for-

    mao acadmica e com os descami-nhos e fracionamento da disciplina

    histrica. Por isso ele trata funda-

    mentalmente dos mecanismos de

    construo textual, discutindo

    para bons entendedores como se

    situar diante destes e outros tipos de

    testemunho do passado. O esforo

    equivale a exibir os alicerces, andai-mes e estruturas do seu prprio tra-

    balho, desnudando formas de apro-

    ximao, leitura e interpretao de

    um conjunto de fontes que, ao mes-

    mo tempo, relatam e reelaboram

    ficcionalmente histrias verdicas de

    criminosos em busca do perdo.

    O primeiro momento do exer-

    ccio corresponde ao propsito de

    contextualizar os documentos que

    tem em mos. No primeiro captu-lo, intitulado A poca em que se

    contavam histrias, Natalie Davis

    busca inserir cuidadosamente as car-

    tas de perdo em uma rede de tex-

    tos de diferentes naturezas, para es-

    tabelecer seu significado poltico na

    Frana do sculo XVI. Assim, des-

    venda para os leitores as funes, os

    mecanismos de produo discursiva,

    os objetivos pretendidos com estes

    relatos destinados a convencer, co-

    mover e obter perdo bem como

    as referncias literrias e culturais

    que os sustentam. No segundo ca-

    ptulo, a anlise assume uma outradireo: em A raiva e a legtima

    defesa discutida basicamente a

    maneira pela qual estas narrativas se

    estruturam na tentativa de obter re-

    misso de penas. Atendendo ao ob-

    jetivo de justificar moralmente a

    violncia em torno de valores social-

    mente compartilhados, capazes deabrir caminho para o perdo real,

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    estes textos avaliados em seu con-junto revelam temas, estratgiasnarrativas, princpios organizadorescomuns e negociados entre conde-nados e homens da lei, que giramem torno das formas aceitveis de

    justificao da violncia e da culpa.Finalmente no terceiro e lti-

    mo captulo, que intitulou O der-

    ramamento de sangue e a voz damulher, Natalie Davis assume umaposio no debate para estabelecerde modo inequvoco a relao dosdocumentos com a experincia so-cial dos sujeitos. J no se trata maisde analisar a textualidade o dis-curso em seus critrios literrios ouem suas intenes ou funes ,mas de aplicar-lhes os filtros com osquais os historiadores buscam cla-rear a audio para escutar vozes dopassado, de sujeitos reais que noscontam sobre si e sobre o mundo emque viveram. A escolha da autora

    recai justamente sobre as mulheres para as quais a obteno do per-do era mais difcil, resultando emcartas de remisso mais elaboradas

    e complexas que, ao mesmo tempoem que ocultam suas razes e senti-mentos, revelam tanto mais de suaexperincia histrica. inevitvelouvir a murmurar Bertrande deRols junto a estas companheiras deinfortnio, embora suas histriastenham tramas e desfechos diferen-tes. Todas elas, de certo modo, an-

    tecipam as vozes de outras mulhe-res, seres das margens de que vai seocupar no livro seguinte com a ha-bilidade de sempre.

    Estamos a milhas de distncia,ao fim do livro, das inquietaesps-modernas e do velho zelopositivista. Resta ao leitor a clarasensao de uma ressonncia maisampla que, segundo ela, devemosencontrar entre estas curiosas narra-tivas e nosso complicado mundocontemporneo. Por que, afinal,achamos engraados estes velhosrelatos? pergunta-nos no final do

    percurso. Tudo a ver com a maneirapela qual entendemos o significadoda histria e nos apropriamos das di-menses sempre renovadas do tempo.