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René Magritte (1898- 1967), O Espelho Falso, 1928 Se cada dia cai Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade está presa. Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência. Pablo Neruda (1904-1973) O Universo não é uma ideia minha O Universo não é uma ideia minha. A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha. A noite não anoitece pelos meus olhos,

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René Magritte (1898-1967), O Espelho Falso, 1928

Se cada dia cai

Se cada dia cai, dentro de cada noite,há um poçoonde a claridade está presa.

Há que sentar-se na beirado poço da sombrae pescar luz caídacom paciência.

Pablo Neruda (1904-1973)

O Universo não é uma ideia minha O Universo não é uma ideia minha.A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.A noite não anoitece pelos meus olhos,A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentosA noite anoitece concretamenteE o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.

Alberto Caeiro (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)

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A Pantera

No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olharesmoreceu e nada mais aferra.

Como se houvesse só grades na terra:grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vultoem círculos concêntricos decresce,

dança de força em torno a um ponto ocultono qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupilaabre-se em silêncio. Uma imagem, então,

na tensa paz dos músculos se instilapara morrer no coração.

Rainer Maria Rilke (1885-1926)

O mundo estava no rosto da amada

O mundo estava no rosto da amada —e logo se converteu em nada, em

mundo fora do alcance, mundo-além. Por que não o bebi quando o encontreino rosto amado, um mundo à mão, ali,aroma em minha boca, eu só o seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.Mas eu também estava pleno de mundo

e, bebendo, eu mesmo transbordei.

Rainer Maria Rilke (1885-1926)

Isto

Dizem que finjo ou mintoTudo o que escrevo. Não.

Eu simplesmente sintoCom a imaginação.Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,O que me falha ou finda,É como que um terraçoSobre outra coisa ainda.Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meioDo que não está ao pé, Livre do meu enleio,Sério do que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa (1888-1935)

Cada Qual Tem O Seu Álcool

Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir.

Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório como qualquer outro.

Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, Como qualquer outro. Sou igual.

E por trás de isso, céu meu, Constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.

Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa, 1888-1935)

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Anelo

Só aos sábios o revelesPois o vulgo zomba logo:Quero louvar o viventeQue aspira à morte no fogo

Na noite – em que te geraram,Em que geraste – sentiste,Se calma a luz que alumiava,Um desconforto bem triste.

Não sofres ficar nas trevasOnde a sombra se condensa.E te fascina o desejoDe comunhão mais intensa.

Não te detêm as distâncias,Ó mariposa! E nas tardes,Ávida de luz e chama,Voa para a luz em que ardes.

“Morre e transmuta-te”: enquantoNão cumpres esse destino,És sobre a terra sombriaQual sombrio peregrino.

Como vem da cana o sumoQue os paladares adoça,Flua assim da minha pena,Flua o amor o quanto possa.

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)Tradução de Manuel Bandeira

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Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

E aqui estou eu, ausente diante desta mesa - e ali fora o Tejo. Entrei sem lhe dar um só olhar.

Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça, e saudá-lo deste canto da praça: "Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!" Não, não olhei. Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado

me lembrei que estavas aí, Tejo. Passei e não te vi. Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!

Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando Pessoa se sentava, contigo e os outros invisíveis à sua volta, inventando vidas que não queria ter. Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.

Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo, tudo indiferença e falta de resposta. Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória, e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,

Tejo que não és da minha infância, mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável, majestade sem par nos monumentos dos homens, imagem muito minha do eterno, porque és real e tens forma, vida, ímpeto, porque tens vida, sobretudo, meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado... Eu que me esqueci de te olhar!

Adolfo Casais Monteiro (1908-1972)

À Memória de Fernando Pessoa

Se eu pudesse fazer com que viesses Todos os dias, como antigamente, Falar-me nessa lúcida visão— Estranha, sensualíssima, mordente; Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses, Meu pobre e grande e genial artista, O que tem sido a vida — esta boémia Coberta de farrapos e de estrelasTristíssima, pedante, e contrafeita, Desde que estes meus olhos numa névoaDe lágrimas te viram num caixão; Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses, Voltávamos à mesma: Tu, lá onde Os astros e as divinas madrugadas Noivam na luz eterna de um sorriso; E eu, por aqui, vadio da descrença Tirando o meu chapéu aos homens de juízo. . . Isto por cá vai indo como dantes; O mesmo arremelgado idiotismo Nuns senhores que tu já conhecias — Autênticos patifes bem falantes. . . E a mesma intriga; as horas, os minutos, As noites sempre iguais, os mesmos dias, Tudo igual! Acordando e adormecendo Na mesma cor, do mesmo lado, sempreO mesmo ar e em tudo a mesma posição De condenados, hirtos, a viver— Sem estímulo, sem fé, sem convicção...

Poetas, escutai-me: transformemos A nossa natural angústia de pensar— Num cântico de sonho!, e junto dele, Do camarada raro que lembramos, Fiquemos uns momentos a cantar!

António Botto (1897-1959)

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O homem é aquilo que ele próprio faz. André Malraux

Enfeita de ouro as asas de uma ave e nunca mais voará no céu. Tagore

O que sabemos é uma gota de água, o que ignoramos é um oceano. Isaac Newton

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Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maiorDo que os homens! Morder como quem beija!É ser mendigo e dar como quem sejaRei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendorE não saber sequer que se deseja!É ter cá dentro um astro que flameja,É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...é condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...É seres alma, e sangue, e vida em mimE dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca (1894-1930), Charneca em Flor

As AmorasO meu país sabe as amoras bravas

no verão. Ninguém ignora que não é grande,

nem inteligente, nem elegante o meu país,mas tem esta voz doce

de quem acorda cedo para cantar nas silvas.Raramente falei do meu país, talvez

nem goste dele, mas quando um amigome traz amoras bravas

os seus muros parecem-me brancos,reparo que também no meu país o céu é azul.

Eugénio de Andrade, (1923-2005) O Outro Nome da Terra

CARTA AOS REITORES (excerto)Basta de jogo de palavras,de artifícios de sintaxe,de malabarismos formais;precisamos encontrar – agora –a grande Lei do coração,a Lei que não seja uma Lei, uma prisão,senão um guia para o espírito perdidoem seu próprio labirinto.Além daquilo que a ciência jamais poderá alcançar,Ali onde os raios da razão se quebram contra as nuvens,esse labirinto existe,núcleo para o qual convergem todas as forças do ser,as últimas nervuras do espírito. Antonin Artaud (1896-1948)

Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida Estes são os imprescindíveis Bertold Brecht (1898-1956)

Deus, que será de ti quando eu morrer?Eu sou o teu cântaro (e se me romper?)A tua água (e se me corromper?)Sou o teu agasalho, o teu afazer.Vai comigo o significado teu. Vladimir Maiakovski (1893-1930)

M.C. Escher, Hand with Sphere

Knight, Edmund Blair Leighton

Narciso, Caravaggio

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Suy, 1982

ARMA SECRETA

Tenho uma arma secreta ao serviço das nações. Não tem carga nem espoleta mas dispara em linha recta mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor, nem Snark ou outros que tais. É coisa muito melhor que todo o vasto teor dos Cabos Canaverais.

A potência destinada às rotações da turbina não vem da nafta queimada, nem é de água oxigenada nem de ergóis de furalina.

Erecta, na noite erguida, em alerta permanente, espera o sinal da partida. Podia chamar-se VIDA. Chama-se AMOR, simplesmente. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)

INFÂNCIAUm gosto de amoracomida com sol. A vidachamava-se “Agora”.

Guilherme de Almeida (1890-1969)

Suy, 1983

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AMOSTRA SEM VALOR

Eu sei que o meu desespero não interessa a ninguém.Cada um tem o seu, pessoal e intransmissível:com ele se entretéme se julga intangível.

Eu sei que a Humanidade é mais gente do que eu,sei que o Mundo é maior do que o bairro onde habito,que o respirar de um só, mesmo que seja o meu,não pesa num total que tende para infinito.

Eu sei que as dimensões impiedosas da Vidaignoram todo o homem, dissolvem-no, e, contudo,nesta insignificância, gratuita e desvalida,Universo sou eu, com nebulosas e tudo. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)

O PORTUGAL FUTURO

O Portugal futuro é um paísaonde o puro pássaro é possívele sobre o leito negro do asfalto da estradaas profundas crianças desenharão a gizesse peixe da infância que vem na enxurradae me parece que se chama sável.Mas desenhem elas o que desenharemé essa a forma do meu paíse chamem elas o que lhe chamaremPortugal será e lá serei feliz.Poderá ser pequeno como esteter a oeste o mar e a Espanha a lestetudo nele será novo desde os ramos à raiz.À sombra dos plátanos as crianças dançarãoe na avenida que houver à beira-marpode o tempo mudar será Verão.Gostaria de ouvir as horas do relógio da matrizmas isso era o passado e podia ser duroedificar sobre ele o Portugal futuro. Ruy Belo (1933-1978)

AMADOR SEM COISA AMADAResolvi andar na ruacom os olhos postos no chão.Quem me quiser que me chameou que me toque com a mão.

Quando a angústia embaciarde tédio os olhos vidrados,olharei para os prédios altos,para as telhas dos telhados.

Amador sem coisa amada,aprendiz colegial.Sou amador da existência,não chego a profissional. António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho (1906-1997)

Suy, 1993

Suy, 1995

Suy, 1984

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Suy1982

NA ILHA POR VEZES HABITADA

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites, manhãs e madrugadas em que não precisamos de morrer. Então sabemos tudo do que foi e será. O mundo aparece explicado definitivamente e entra em nós uma grande serenidade, e dizem-se as palavras que a significam. Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas mãos. Com doçura. Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a vontade e os limites. Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos ossos dela. Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres como a água, a pedra e a raiz. Cada um de nós é por enquanto a vida. Isso nos baste. José Saramago (1922- …)

Suy1992

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LEMBRA-TE

Lembra-teque todos os momentosque nos coroaramtodas as estradasradiosas que abrimosirão achando sem fimseu ansioso lugarseu botão de floriro horizontee que dessa procuraextenuante e precisanão teremos sinalsenão o de saberque irá por onde fomosum para o outrovividos. Mário Cesariny (1923-2006)

EPIGRAMA (Veneza, 1790)

"Maus, para a esquerda!" mandará um dia o Juiz,"E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:"A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!"

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

POÉTICA I

De manhã escureçoDe dia tardoDe tarde anoiteçoDe noite ardo.

A oeste a morteContra quem vivoDo sul cativoO este é meu norte.

Outros que contemPasso por passo:

Eu morro ontemNasço amanhãAndo onde há espaço:- Meu tempo é quando. Vinícius de Moraes (1913-1980)

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)

Alphonse Mucha, Reverie

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Man Ray

POEMA EM LINHA RECTA Nunca conheci quem tivesse levado porrada.Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,Indesculpavelmente sujo,Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,Que tenho sofrido enxovalhos e calado,Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachadoPara fora da possibilidade do soco;Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.Toda a gente que eu conheço e que fala comigoNunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida…Quem me dera ouvir de alguém a voz humanaQue confessasse não um pecado, mas uma infâmia;Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?Ó príncipes, meus irmãos,Arre, estou farto de semideuses!Onde é que há gente no mundo?Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, (1888-1935)

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POVO QUE LAVAS NO RIO(excerto)

Povo que lavas no rio, Que vais às feiras e à tenda, Que talhas com teu machado As tábuas do meu caixão, Pode haver quem te defenda, Quem turve o teu ar sadio, Quem compre o teu chão sagrado, Mas a tua vida, não! (…)

Fui ter à mesa redonda, Bebendo em malga que esconda O beijo, de mão em mão... Água pura, fruto agreste, Fora o vinho que me deste, Mas a tua vida, não! (…)

Aromas de urze e de lama! Dormi com eles na cama... Tive a mesma condição. Bruxas e lobas, estrelas! Tive o dom de conhecê-las... Mas a tua vida, não! Pedro Homem de Mello (1904-1984)

ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDOOs bons vi sempre passarNo mundo graves tormentos;E para mais me espantar,Os maus vi sempre nadarEm mar de contentamentos.Cuidando alcançar assimO bem tão mal ordenado,Fui mau, mas fui castigado:Assim que só para mim GraffitiAnda o mundo concertado.

Luís Vaz de Camões (c. 1524/5-1580)

DESLUMBRANTE

Deslumbrante,Um jardim no meio de chamas!

O meu coração conhece todas as formas:Um prado para as gazelas,Um mosteiro para os monges,Para dos ídolos chão sagrado,Ka'ba para o peregrino circular,As tábuas da Tora,Os pergaminhos do Corão.

Eu creio no amor;Seja onde for que a sua caravana vira no caminho,Esta é a minha certeza,A minha fé. Ibn Arabi (1165-1240)

ELEGIA

Abandonai-me aqui, meus fiéis companheiros!Deixai-me ao pé do precipício, entre o pântano e o musgo;Segui o vosso caminho! Olhai o mundo aberto.A imensa terra, o céu sublime e grande;Observai, procurai, coleccionai os factos,Balbuciai o mistério da Natureza.

Para mim perdeu-se o Todo, eu mesmo me perdi,Eu, que há bem pouco fui o preferido dos deuses;À prova me puseram, deram-me Pandora,De bens tão rica, mais rica ainda de perigos;Impeliram-me para a boca dadivosa,Separaram-me dela, e assim me aniquilam. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

Fot. de Dorothea Lange, Migrant Mother

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Octavio Ocampo, (1943-…), pintor mexicano, Cara de Pájaros, arte metamórfica

Carta ao filho

Não vivas sobre a terra como um estranho um turista no meio da natureza. Habita o mundo como a casa do teu pai. Crê na semente, na terra, no mar. mas acima de tudo crê nas pessoas. Ama as nuvens,as máquinas, os livros, mas acima de tudo ama o homem. Sente a tristeza do ramo que murcha, do astro que se extingue, do animal ferido que agoniza, mas acima de tudo sente a tristeza e a dor das pessoas.Alegra-te com todos os bens da terra, com a sombra e a luz, com as quatro estações, mas acima de tudo e a mãos cheias alegra-te com as pessoas.

Nazim Hikmet, (1902-1963), c. 1960. John William Waterhouse, Spring

Nota biográfica: Nazim Hikmet é um poeta e pintor turco nascido em Salónica, Grécia, que em 1902 ainda fazia parte do império otomano. Na Turquia, foi perseguido e viveu exilado durante muitos anos. É um renovador da literatura turca ao romper com a tradição islâmica. Sob a influência dos futuristas russos, com quem conviveu no exílio, tendo proposto a “despoetização” da poesia.Site oficial: www.nazimhikmetran.com (em inglês)

Esta é a Minha Carta ao Mundo

Esta é a minha carta ao MundoQue nunca Me escreveu —As Notícias simples que a Natureza contou —Com branda Majestade

A sua Mensagem está destinadaA Mãos que não consigo ver —Pelo Seu amor — Afáveis — camponeses —Julguem-me brandamente — a Mim Emily Dickinson (1830-1886)

«Tudo o que sabemos do amor, é que o amor é tudo o que existe.» Emily Dickinson

«Falar é uma necessidade, escutar é uma arte.» Johann Goethe

Octavio Ocampo, Mariposa a la Flor

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William Dyce (1806-1864), Omnia Vanitas Quadro de Nazim Hikmet,

pintado em 1946.

Nota biográfica: Emily Dickinson (1830-1886), poetisa americana.Escreveu cerca de 1800 poemas mas não publicou nenhum livro

em vida, à excepção de alguns poemas anónimos saídos emperiódicos. A primeira edição crítica da sua obra apenas foi publicadapela primeira vez em 1955. A partir de 1864, começou a sentir gravesproblemas de visão e abrandou o seu ritmo criativo. Chamaram-lhe a

“Grande Reclusa”, pela personalidade solitária que aparentava ter, mas a sua poesia evidencia uma profunda sensibilidade e amor por tudo o que

a rodeava: as pessoas, a Natureza, a escrita…A quase ausência de pontuação e as maiúsculas que criam seres e metáforas

fazem parte do seu estilo.

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Pontes

Nas terras e terras cruzadas por correntes de água,Nos caminhos e caminhos mutilados por correntes de água, À beira da água o homem parou a cismar:Assim nasceram as pontes.

O ser humano, cansado de digressões penosas,Sente gratidão pelas pontes.

Pontes que ligam terras e terrasSão o amor entre rios e caminhos;Postos de mudas onde barcos e veículos se cumprimentam,Lugar onde se despedem os que partem e os que ficam. Ai Qing, poeta chinês, (1910-1996)

M. C. Escher, Bond of Union, 1956«Eu quero encantar com a mais pequena coisa, basta uma pequena borboleta com pouco mais de 2 cm de diâmetro pousada num pedaço de rocha para me fazer tentar atingir aquilo que desejo à tanto tempo, incluindo a cópia destes pedacinhos de nada de forma tão rigorosa quanto possível apenas para descobrir o quão grandes são.» Maurits Cornelis Escher (1898-1972)

M. C. Escher, Hand with Reflecting Sphere, 1935

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Fantasia do Anoitecer

Frente à choupana tranquilo na sombra está sentadoO lavrador; fumega a lareira ao homem frugal.

Hospitaleiro soa ao caminhante na aldeiaPacífica o sino da tarde.

Talvez voltem agora também os barqueiros ao porto, Em cidades longínquas morre alegre o rumor

Afanoso da feira; em tranquila ramadaBrilha o banquete em convívio aos amigos.

Para onde irei eu? Vivem os mortaisDe soldo e trabalho; alternando en fadiga e repouso

Tudo se alegra; porque não dorme entãoNunca em meu peito o espinho?

No céu da tarde floresce toda uma Primavera;Incontáveis florescem as rosas, e tranquilo aparece

O mundo áureo; oh! Levai-me p’ra lá,Nuvens purpúreas! E que lá em cima

Em luz e ar se dissolvam meu amor e dor! —Mas, como corrido da súplica louca, foge

O encanto; faz-se escuro, e solitárioSob o céu, como sempre, me encontro. —

Vem tu agora, sono suave! Demasiado cobiçaO coração; mas ao fim, juventude, também tu amorteces,

Sonhadora, inquieta!Serena e pacífica é então a velhice.

Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843) Tradução de Paulo Quintela (1905-1987)

Hőlderlin A Paulo Quintela

O íntimo dos deuses e das fontes,Divino louco, amado de astros, amploAmante e mago de eras e horizontes:Para tudo dizer — Hőlderlin, prumo do templo.Tocou fímbrias de lume nas palavras,Deu sua mão incauta às quedas:Cobrindo de semente etéreas lavras,Teve dedos para o grão na haste das medas.Seu destino de sangue o aparelhouComo à nau que se afunda ou desarvoraÉbria de sal e vento.A Terra lhe foi dura, o Mar o amou:Por isso a gota de água clara choraNos versos que entoouE neles demoraUm eterno momento.

Amigo que trouxeste à nossa voz O seu indecifrado chamamento, Bem hajas de todos nós,Tão pobres sem o novo sentimento.Pois só no rigor a fogoDas palavras exactas e sofridasAbre o estame de amor, pólen do Logo,Que é maneira de Deus com nossas vidas.

Vitorino Nemésio, (1901-1978), 9/9/1959

«Quando jovem, o homem acredita estar tão próximo do seu objectivo! De todas as ilusões criadas pela natureza para socorrer a fragilidade do nosso ser, esta é a mais bela.»

Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)

Hőlderlin (1770-1843), por Franz Karl Hiemer,

c. 1792

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LIMITES

Há uma linha de Verlaine que não voltarei a recordarHá uma rua próxima que está vedada aos meus passosHá um espelho que me viu pela última vez,Há uma porta que fechei até ao fim do mundoEntre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os)Há algum que nunca mais abrirei.Este Verão cumprirei cinquenta anos.A morte desgasta-me, incessante.

De Inscripciones, de Julio Platero Haedo, Montevideu, 1923Poema e poeta criados por Jorge Luís Borges (1899-1986), pertencente a um conjunto de poemas intitulado Museu, incluídos na obra O Fazedor cuja 1.º edição data de 1960, Buenos Aires. Julio Platero Haedo é uma criação de Borges.

SUDDEN LIGHT

I have been here before,But when or how I cannot tell:I know the grass beyond the door,The sweet keen smell,The sighing sound, the lights around the shore.

You have been mine before,—How long ago I may not know:But just when at that swallow’s soarYour neck turn’d so,Some veil did fall,—I knew it all of yore.

Has this been thus before?And shall not thus time’s eddying flightStill with our lives our love restoreIn death’s despite,And day and night yield one delight once more?

Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), pintor e poeta inglês.

Juan Carlos Liberti (1930-…), Si Soy AsiDante Gabriel Rossetti, A

Sea Spell, 1877

Suy, Right Between the Eyes, 19/6/1982

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O MITO DO GRANDE AUSENTE

Tudo começou há muito, muito tempo,num tempo em que os homens ainda não tinham memóriamas já tinham saudade.Não caçavam animais nem pescavam peixes, alimentavam-se do ar e da luz que envolvia as grandes montanhas azuis.Trabalhavam ao sabor dos desejose desejar era uma forma de arte,uma atitude estética para com a vida e a morte.

Na montanha mais azul havia uma cabana de madeira.Os povos da planície entretinham-se em especulações: vivia ou não vivia nela alguém?Jamais subiam a montanha, pois estavam convencidos de que tudo o que estava a mais de uma girafa do solojá não fazia parte do reino terreno.Por isso, todos os pássaros eram mágicose os deuses, que ainda não tinham sido inventados,contentavam-se com ser pássaros, nuvens e vento…

Os dias tinham então um número variável de momentos,consoante a disposição anímica dos planetas.Todavia, os investigadores vindouros descobriram que no antepenúltimo momentode cada um desses dias volúveis e atemporaisse repetia um fenómeno no topo daquela montanha:um vulto humano sentava-se no alpendree voltava os braços abertos na direcção que os sábios diziam ter sido outrora o Poente.

O Sol, que então se mantinha habitualmente invisível,apesar da limpidez e intensa luminosidade do céu,surgia de uma fresta do horizonte, descia sobre a montanha,dissolvia-se lentamente no corpo do humanoque, com a mesma lentidão, ia assumindo os contornosde um ibex castanho com reflexos cobreados.O ibex descia do alpendree desaparecia por entre a imensidade de azuis.

Os que ficavam acordados pelas indeterminadas noites aforadiziam que o ibex não regressava nunca à cabanapara de novo se transformar em homem.No entanto, no antepenúltimo momento do dia seguinte,o homem voltava a aparecer no alpendre e o ritual repetia-se.

Um dia, porém, o homem não apareceu: no milionésimo sétimo antepenúltimo momento dos dias da sua aparição.Em vez dele, surgiram um milhão e sete ibexes,todos de um azul diferente.Primeiro ocuparam o alpendre,depois o quintal à volta, a floresta, o topoE toda a encosta até ao último milímetro do sopé.

Lentamente, cada ibex dissolveu-se no azul gémeo que havia na montanha: um milhão e sete azuis.E os azuis rodopiaram e ondularam e ziguezaguearame fundiram-se num único azulcom a forma de um elefante colossal.É esse elefante que ocupa hoje o lugar da montanha.É a ele que os povos da planície chamam — O GRANDE AUSENTE.Desde então, escrevem belos poemas azuis na areiaque ciclicamente se apagam e regressam gravados em nácar.Desde então, sem saberem ao certo porquê,pelo menos uma vez na vida,escalam o Grande Ausente, tocam as nuvens, abrem as asas e regressam a casa mais transparentes do que o vento… Suy, 5/7/1991

Diego Rivera (1886-1957),

A Vendedora de Flores(pintor mexicano)

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«O homem que sabe reconhecer os limites da sua inteligência está mais perto da perfeição.»

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

James Sebor, I Am We

Suy, Irradiação, 2/10/1982

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Beber

WALDEN, ÉS TU? Ora aqui está o Walden, o mesmo lago no meio dos bosques que descobri há tantos anos (…)

Não se trata de uma ilusão minhaPara ornar o verso de uma linha:Não posso estar de Deus do céu mais pertoDo que junto ao Walden, este céu aberto.Eu sou a sua pedregosa praiaE a brisa que por aqui se espraia.Suas águas e areias estãoNa concha da minha mão.E seu mais profundo recintoAlto jaz no que penso e sinto.

Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques

«O tempo é apenas o rio em que vou pescando. Bebo nele, mas ao beber vejo-lhe o leito de areia e percebo quão raso é. A fina corrente logo se esvai, mas a eternidade permanece. Gostaria de beber mais fundo e de pescar no céu, em cujo leito os seixos são estrelas. Não consigo contá-las. Ignoro a primeira letra do alfabeto. Tenho lamentado sempre não ser tão sábio com no dia em que nasci. A inteligência é um cutelo que penetra e corta caminho adentro o segredo das coisas. Não desejo ocupar as minhas mãos mais do que o necessário. A minha cabeça é mãos e pés. Sinto que as minhas melhores faculdades aí se concentram. O instinto diz-me que a cabeça é um órgão para escavação, como o focinho e as patas de certos bichos, com a qual gostaria de explorar e cavar o meu caminho através desses morros. Penso que o filão mais rico está por aí nas redondezas, e assim avalio por meio da varinha de condão e dos finos eflúvios que se levantam. Aqui começarei a minerar.»Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques Steven Kenny, The Ruff,

2001

Steven Kenny, The Perch, 2006

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Maria Barry, Forever Friends

ECO

Nada se perdeu, querido ser,Nada se perde nunca;A palavra por dizerNão está exausta, pode ainda ser ouvida.Música que mancha;O silêncio permanece…Oh, o eco está por toda a parte, pássaro inarmadilhável.

Lawrence Durrell (1912-1990), Alexandria***&***

Vamos esquecer que existe um tempo e não vamos contar os dias da vida!

Johann Christian Friedrich Hőlderlin (1770-1843)

Suy, A Coroação do Belo Insignificante, 25/1/1987

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OS PÁSSAROS NASCEM NA PONTA DAS ÁRVORES

Os pássaros nascem na ponta das árvores As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássarosOs pássaros são o fruto mais vivo das árvoresOs pássaros começam onde as árvores acabamOs pássaros fazem cantar as árvoresAo chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-sedeixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animalComo pássaros poisam as folhas na terraquando o Outono desce veladamente sobre os camposGostaria de dizer que os pássaros emanam das árvoresmas deixo essa forma de dizer ao romancistaé complicada e não se dá bem na poesianão foi ainda isolada da filosofiaEu amo as árvores principalmente as que dão pássarosQuem é que lá os pendura nos ramos?De quem é a mão a inúmera mão?Eu passo e muda-se-me o coração

Ruy Belo (1933-1978)

NATUREZA VIVA

Um pintassilgo desce pelas escadasda canção, empoleira-se nos seus versos, estende o bico para que o cantonão se perca pelo chão. Ainda bem que épara o céu que ele está a olhar: assim,não vê os teus cabelos que se espalhampor entre ervas e ramos, nem os teusbraços que se apoiam ao declive da encosta. No entanto, a tua respiraçãocanta com ele; e só quando o ventoo enxota do ramo é que um silênciose faz para que, de dentro dele, nasçam obater de asas do seu voo e o teu riso, aoveres um pássaro saltar de dentro do amor.

Nuno Júdice, Pedro, Lembrando Inês

Steven Kenny, Paper Birds, 2007

Victor Safonkin (pintor surrealista russo, nascido em 1967)

«Os pássaros, com as suas plumagens e cantos, estão em harmonia com as flores, mas que rapaz ou rapariga se associa à beleza selvagem e luxuriante da Natureza? Ela floresce sobretudo sozinha, bem longe das cidades onde moram os homens. Falais do céu, vós que degradais a terra!»Henry David Thoreau (1817-1862), Walden, ou A Vida nos Bosques

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AUTOPSICOGRAFIA

Konstantin Alexeievitch Korovin, Paris Boulevard

O poeta é um fingidor. Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dor A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. Fernando Pessoa (1888-1935)

Boris Izrailovich Anisfeld, Retrato de uma Guitarra

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CÂNTICO NEGRO

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos docesEstendendo-me os braços, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: "vem por aqui!"Eu olho-os com olhos lassos,(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)E cruzo os braços,E nunca vou por ali...A minha glória é esta:Criar desumanidades!Não acompanhar ninguém.- Que eu vivo com o mesmo sem-vontadeCom que rasguei o ventre a minha mãeNão, não vou por aí! Só vou por ondeMe levam meus próprios passos...Se ao que busco saber nenhum de vós respondePor que me repetis: "vem por aqui!"?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,Redemoinhar aos ventos,Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,A ir por aí...Se vim ao mundo, foiSó para desflorar florestas virgens,E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!O mais que faço não vale nada.Como, pois, sereis vósQue me dareis impulsos, ferramentas e coragemPara eu derrubar os meus obstáculos?...Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,E vós amais o que é fácil!Eu amo o Longe e a Miragem,Amo os abismos, as torrentes, os desertos...Ide! Tendes estradas,Tendes jardins, tendes canteiros,

Tendes pátria, tendes tectos,E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...Eu tenho a minha Loucura !Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;Mas eu, que nunca principio nem acabo,Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,Ninguém me peça definições!Ninguém me diga: "vem por aqui"!A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou,É um átomo a mais que se animou...Não sei por onde vou,Não sei para onde vouSei que não vou por aí! José Régio (1901-1969)

Michael Parkes, Fearless, 2008

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