todos os tons de tom zé 

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25/01/09 20:16 Todos os Tons de Tom Zé - Luiz Alexandre Coelho Página 1 de 8 http://www.tomze.com.br/ent1.htm Todos os Tons de Tom Zé Luiz Alexandre Coelho - (Revista Backstage) A primeira imagem que vem à mente quando se pensa em Tom Zé é a do compositor baiano, franzino, barba e cabelos despreocupados e uma ironia sempre na ponta da língua, pronta para ser dita. Misto de artista e intelectual, energia criadora e provocadora e cabeça pensante, Antônio José Santana Martins deixou Irará, no interior da Bahia, ainda jovem e sempre trabalhou com a produção do impacto, antes, durante e depois de ter integrado o movimento tropicalista. Cantor, compositor, inventor de Instrumentos, estudioso da música, Tom Zé quase desistiu da carreira há cerca de dez anos, desiludido com o que ele chama de 'os anos de ostracismo'. Resgatada pelo ex-Talking Heads David Byrne, a trajetória de Tom Zé experimentou um bem-sucedido retorno nos EUA, o que o motivou a continuar. Prestes a retomar sua veia de construtor de instrumentos, Tom Zé nos recebeu para uma entrevista, na qual falou sobre gravação caseira, músicas inéditas, métodos de composição, a infância no Nordeste, o início da carreira, David Byrne e mais uma infinidade de informações recheadas de cultura geral e sabedoria popular. EDITORIAL Baiano de Nascimento. Paulista por opção. Músico por Insistência. Tom Zé é o Tropicalismo vivo. Poeta, busca lirismo na influência árabe da língua. Irreverente, critica o sistema e a mídia. Criador, inventa seus próprios instrumentos em busca do som ideal. A cultura adquirida na infância e adolescência no Nordeste ainda mexem com a cabeça do compositor. E pensar que a música quase o perdeu para um posto de gasolina . A desilusão com o ostracismo a que foi relegado fez Tom Zé pensar em se afastar da música. A mão salvadora de David Byrne colocou o compositor no caminho certo. Que o diga o New York Times. Tom Zé lançou em 98 o CD Com defeito de Fabricação no exterior e agora prepara seu lançamento no Brasil. Mas a mente não É verdade que você ainda tem muitas músicas ainda inéditas no baú? Tom Zé : Esse negócio do baú, que na verdade são as músicas que você tem e que não são levadas a disco, eu tenho realmente como se fosse um Dr. Jeckill, que tivesse uma noite de assassino e um dia de filhinho de mamãe. Brincando, né ?, porque não são tão diferentes. Mas, por exemplo, eu tenho uma música toda composta para cantar sozinho no teatro, só com violão, e uma música com um tipo de arranjo, com uma estrutura um pouco estranha aos arranjos que são feitos no mundo hoje e que abriu espaço para mim nos E.U.A e na Europa. Mas o que te abriu as portas nos Estados Unidos foi este lado de arranjos mais intrincados e não essa dualidade, né? Tom Zé: É. Porque a outra face é uma coisa que depende muito da língua portuguesa. Inclusive, muitas vezes são histórias ligadas ao Brasil, onde a língua ainda prevalece como informação, e também aos resquícios da língua no interior da Bahia, às palavras, aos usos e costumes, ou, então brincadeiras com a língua, como na música Medo de Mulher, onde as

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Todos os Tons deTom Zé Luiz Alexandre Coelho - (Revista Backstage)

A primeira imagem que vem à mente quando se pensa em Tom Zé éa do compositor baiano, franzino, barba e cabelos despreocupadose uma ironia sempre na ponta da língua, pronta para ser dita. Misto de artista e intelectual, energia criadora e provocadora ecabeça pensante, Antônio José Santana Martins deixou Irará, nointerior da Bahia, ainda jovem e sempre trabalhou com a produçãodo impacto, antes, durante e depois de ter integrado o movimentotropicalista. Cantor, compositor, inventor de Instrumentos, estudioso damúsica, Tom Zé quase desistiu da carreira há cerca de dez anos,desiludido com o que ele chama de 'os anos de ostracismo'.Resgatada pelo ex-Talking Heads David Byrne, a trajetória de TomZé experimentou um

bem-sucedido retorno nos EUA, o que o motivou a continuar. Prestes a retomar sua veia de construtor deinstrumentos, Tom Zé nos recebeu para uma entrevista, na qual falou sobre gravação caseira, músicas inéditas,métodos de composição, a infância no Nordeste, o início da carreira, David Byrne e mais uma infinidade deinformações recheadas de cultura geral e sabedoria popular.

EDITORIALBaiano de Nascimento. Paulista poropção. Músico por Insistência. Tom Zéé o Tropicalismo vivo. Poeta, buscalirismo na influência árabe da língua.Irreverente, critica o sistema e a mídia.Criador, inventa seus própriosinstrumentos em busca do som ideal. Acultura adquirida na infância eadolescência no Nordeste ainda mexemcom a cabeça do compositor. E pensarque a música quase o perdeu para umposto de gasolina . A desilusão com oostracismo a que foi relegado fez TomZé pensar em se afastar da música. Amão salvadora de David Byrne colocouo compositor no caminho certo. Que odiga o New York Times. Tom Zé lançouem 98 o CD Com defeito de Fabricaçãono exterior e agora prepara seulançamento no Brasil. Mas a mente não

É verdade que você ainda tem muitas músicas aindainéditas no baú?

Tom Zé: Esse negócio do baú, que na verdade são as músicasque você tem e que não são levadas a disco, eu tenhorealmente como se fosse um Dr. Jeckill, que tivesse uma noitede assassino e um dia de filhinho de mamãe. Brincando, né ?,porque não são tão diferentes. Mas, por exemplo, eu tenho umamúsica toda composta para cantar sozinho no teatro, só comviolão, e uma música com um tipo de arranjo, com umaestrutura um pouco estranha aos arranjos que são feitos nomundo hoje e que abriu espaço para mim nos E.U.A e naEuropa.

Mas o que te abriu as portas nos Estados Unidos foi estelado de arranjos mais intrincados e não essa dualidade, né?

Tom Zé: É. Porque a outra face é uma coisa que dependemuito da língua portuguesa. Inclusive, muitas vezes são históriasligadas ao Brasil, onde a língua ainda prevalece comoinformação, e também aos resquícios da língua no interior daBahia, às palavras, aos usos e costumes, ou, então brincadeirascom a língua, como na música Medo de Mulher, onde as

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lançamento no Brasil. Mas a mente nãopára e um novo trabalho já está sendoelaborado. Coisa de quem pensamúsica. Vive música !

palavras vão eternamente fazendo eco (ver box). Brincadeirascomo essa, onde a língua é muito importante, não se podecantar nem para americano nem para americano que sabeportuguês, pois eles não vão ter tempo de compreender.É umacoisa que a pessoa precisa ter um grande traquejo na línguapara poder acompanhar um pouquinho. Agora que eu tenhoassentamento da minha profissão de artista, eu estou pensandoem gravar essas coisas para o consumo de uma imensidão depessoas dos anos de ostracismo. Porque, durante os anos deostracismo, eu só podia apresentar esse tipo de coisa em unsespetáculos vegetativos da cidade de São Paulo, no SESI,SESC, coisas da Prefeitura, Diretórios Acadêmicosprincipalmente...

O que você chama de anos de ostracismo?

Tom Zé: Entre 1973 e 1990, eu fui meticulosamente esquecido e tirado dahistória, como se eu fosse o Trotski da Revolução Bolchevista (risos). OStalin do sucesso tirou minhas fotos de todos os lugares. Não há nenhumporquê. No quinto aniversário do Tropicalismo, as pessoas ainda mecolocavam. No décimo, um pouco menos. No décimo-quinto, o Stalin tirouminha imagem das fotografias.

Medo de Mulher A Dora me botou fora / A Bil me despediu /A Marta nenhuma carta /Dorete nenhum bilhete /Duquinha nenhuma linha /Zenaide nem good bye...

(trecho)

Esquema em computador para adisposição em palco e execução dosinstrumentos experimentais, como o feitocom colheres (acima).

Fotos de Arquivo Pessoal

Quem é o Stalin?

Tom Zé: O Stalin é o consumo. É a gangorra da mídia. E essa disputade mercado é comum. A vida humana é assim mesmo, todos nós.

Então, o fato é que você passou nesse período de ostracismo atrabalhar essas músicas violão-e-voz em São Paulo?

Tom Zé: Sim. Eu posso lhe indicar umas testemunhas que viram tardesou noites grandiosas. Roberto Santana, por exemplo, que era diretor daPolygram durante os anos 70, uma vez veio ver um show meu no SESI da Avenida Paulista num domingo de manhã, outra das coisasvegetativas. Ele entrou, o auditório estava imensamente cheio, como écomum aqui em São Paulo na classe estudantil... Aí Roberto entrou,assistiu ao espetáculo e disse: "pô, mas o que é isso?! O que estáacontecendo? Você entra num espetáculo de um artista desconhecido,que não é nada, que ninguém sabe o que é.

Durante duas horas ele é a maior glória que se pode imaginar, com o público morrendo de rir, pedindo bis dezvezes, gritando, cantando as músicas, o diabo... O que é isso? Tá errado isso! Esse cara é um 'ostracisado' ouqualquer outra palavra mais correta. Não pode estar fazendo esse sucesso!". Eu quero contar uma coisagozada a vocês. Um amigo meu, um senhor que era diretor da Continental, um dia disse assim: "porra, não épossível, esse Tom Zé é tão falado, eu mesmo gosto dele e tantas pessoas importantes falando..." Ele, então,veio a minha casa para assistir a isso, querendo me levar para gravar. Veio almoçar comigo e, antes do

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almoço, eu toquei as músicas para ele. Resultado: ele, passou mal e não almoçou.

Por causa dos arranjos?!

Tom Zé: Música estranha, né? Ele tem um trabalho lá na gravadora e tem a esperança de que aquele trabalhová alimentar a família dele. Quando ele viu, eu acho que passou mal, porque pensou: "como é que eu vou levarisso para a gravadora?". Ele passou mal pelo desespero interior em que ficou. Eu vi que o trabalho estava difícilpara eles digerirem. Não é só não ser comercial, porque eu não quero ser um anarquista total. Eu não querodizer "o mercado é uma merda! Eu não tô ligando". Não. Eu quero ter idéias, adaptá-las, transformá-las numacoisa bem feita, profissionalmente bem acabada, com uma sintaxe racional, cartesiana, compreensível, para aspessoas terem facilidade de acesso. Não quero botar uma coisa em estado bruto, porque isso é atéantiprofissional. Eu não sou nenhum como aquele que Umberto Eco chama apocalíptico (risos). Eu sou maisintegrado. Mas, como eu não sou um mestre, um homem capaz de fazer uma melodia bonita e ganhar a vidacom isso - Deus não me deu isso, graças a Deus! -, eu tenho que partir para um universo da invenção. Logoque eu comecei a aprender violão, aos 17 anos, eu tentei fazer canções. Em 1953, não era ainda a bossa nova,mas já tinha na Rádio Nacional as músicas brasileiras clássicas, Nora Ney, estava chegando o Antônio Mariacom aquela letra despojada ("E não posso esquecer um momento sequer/ Vivo pobre de amor à espera dealquém, e esse alquém não me quer / Se outro amor em meu quarto bater, eu não vou atender). Eu tentei fazercanções desse nível e vi que era incapaz.

Maria Bago Mole

Pierre se requebra /Rufino bota póEuclides morde o braço /Das Dores fala só...

...e aí a música vai até chegarem

Lucinha sobe e desceTiririca bole boleMas todos passam o dedo emMaria Bago Mole...

(trecho)

Eu não tinha profissão, não tinha futuro, não tinha nada, não gostava daescola, não sabia o que eu iria ser e queria me afirmar de qualquer jeito.Até o dia em que eu chequei a seguinte conclusão: o que interessa é que apessoa fique três minutos, como média, né?, na minha frente me ouvindo. Eeu posso fazer qualquer coisa, tocar qualquer coisa, seja bem ou seja malfeito, contanto que crie interesse. Aí eu comecei a fazer as maluquices, quesão essas coisas como a Maria Bago Mole, que é a música para os doidosde Irará. Irará é uma cidade pequena e os doidos circulavam pelo comérciopara receber alguma coisa. Os doidos eram conhecidos, circulavam, e eu fiza canção. É uma coisa bem teatral, que só tem graça com intervenção depalavras e tal. Eu me treinei nisso. Até que, em 1960, teve um programa detelevisão chamado Escada para o Sucesso. Eu nunca tinha visto televisão,pois tinha sido inaugurada naquele ano, e Roberto Santana disse: "você vaicantar no programa". Na hora de ir para a televisão, eu disse assim: "o queé que eu vou fazer? Essas canções? Eu não aguento um público grandecom essas canções".

Aí eu fiz uma canção para o público grande, uma sátira política.Eu inventei um método. Peguei todos os jornaisatrasados, porque lá em Irará não chegava jornal do dia. espalhei pelo meu quarto e, com aquela febre do caraque quer uma idéia, comecei a costurar as manchetes, os acontecimentos daqueles dias e, então, fiz umaespécie de imprensa cantada.E a música chamava-se Rampa para o Fracasso, para brincar com o Escadapara o Sucesso (risos), e tudo eram brincadeiras desse gênero. Minha irmã, quando viu a música, ficou numatristeza. Então eu mostrei a música aos amigos em Salvador e eles também ficaram assim e tal...

E eu teimando, rapaz. Sabe aquela coisa que o instinto te leva a fazer? Felizmente, eles me deixaram cantar aRampa para o Fracasso. Rapaz, foi um sucesso sensacional, tudo o que eu pensava que era ininteligível, poiseu estava inaugurando aquela sintaxe que, digamos, era uma forma nova de ligar fatos. Aí, para a minhafelicidade, quando eu cantei as primeiras palavras da música, as pessoas começaram a reagir. A música tinhauns 200 ritmos misturados e um discurso doido.

De onde vieram as influências que te levaram aesse tipo de composição?

Tom Zé: Era um pouco a influência dos cantadores deIrará, que cantavam motivos da ciência, dos astros, dodesenvolvimento da corrida atômica, da guerra naAlemanha.Nós tinhamos uma cultura muito rica, porque onordestino - Guimarães Rosa e Euclides da Cunha

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dizem exatamente isso - o sertanejo é um homem comespírito de cientista, embora seja analfabeto. Ele está odia todo observando as coisas que acontecem em voltadele e fazendo observações conclusivas,experimentais. Ele está sempre trabalhando como sefosse um cientista.

Reprodução do livro 'Tropicália'

"Stalin tirou minha foto de todos os lugares. Até daTropicália. "

Eu tinha observado isso no balcão da loja do meu pai . Eu vendia tecido para a gente da roça. E eles iam lá efalavam a língua deles. Eu tive duas línguas de infância: a língua da cidade e o português que tem emGuimarães Rosa. Exatamente como fala o Guimarães, as palavras, a sintaxe lingüística, a língua... Dizem que alíngua contém uma filosofia, conceitos metafísicos etc., então eu tive uma outra filosofia no balcão da loja. Eisso me dava uma riqueza de vocabulário, de idéias e de capacidade especulativa, que não era comum nomenino de cidade, porque só tinha a escola primária linear, a linearidade de uma língua ocidental, e eu tinha omosaico daquela língua "hierogâmica". Por exemplo, ela tem muita coisa de línguas orientais.

Você acha que as línguas orientais influenciaram o "dialeto" sertanejo?!

Tom Zé: Lá em Irará, o tipo de língua do Guimarães Rosa tem essa característica. E também é um portuguêsantigo, um português do século XVI, XVII... Eu sou muito resultado da presença da canção árabe no Nordeste.Primeiro, os portugueses foram invadidos pelos árabes durante oito séculos, do século Vll até o século XV.Eram os dominadores de toda a Peninsula Ibérica. Enquanto da França para cima a Europa foi educada pelosbarbaros-cristãos, os portugueses foram educados pelo povo mais culto daquele tempo: o povo árabe, quetinha um filosofia desenvolvida, tinha uma metafísica complexa , arquitetura, matemática, medicina...Então. esse meu perfil é árabe.. Se você reparar bem, lá no Nordeste, numa feira de fim-de-semana, essasfeiras de rua, você olha os perfis, as pessoas Margrelas, um tipo de físico árabe. É muito comum... É essehomem que eu encontrava no balcão da loja, com essa língua, essa filosofia, era tudo árabe.

Arquivo PessoalSão, São Paulo, meu amor deu aTom Zé a primeira colocação noFestival da Record em 68.

Como essa presença árabe se refletiu na música do sertão nordestino?

Tom Zé: A canção que se canta no interior ainda tem muita coisa do chamadomicrotom, da chamada microtonalidade, que o ll Concílio de Trento expulsoudo Ocidente, porque a Igreja precisava de uma música diatônica: Dó - ré - mi -ré - dó - mi -dó - si - dó... (solfejando), para poder fazer um cantochão, etodos os fiéis poderem cantar juntos. Uma música microtonal é impossível dese cantar junto, é uma música pessoal. Ora, o Deus cristão não admite umcontato pessoal com ele, pelo menos das comunidades que a Igreja queriaformar na época. A Igreja, naquele tempo, precisava muito de comunidadescantando a mesma canção e tal. O ll Conflito de Trento expulsou amicrotonalidade, passou se a ter a escala diatônica. Até certos intervalos daescala diatônica foram proibidos, escrito no papel "o trítono é o diabo". A

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DivulgaçãoDepois de gravar normalmente emestúdio, Tom Zé '"degenera" oabsolutamente convencional.

escala diatônica foram proibidos, escrito no papel "o trítono é o diabo". Adissonância já é o pecado, a microtonalidade já é o pecado, mas o trítono é odiabo em si. O trítono é a quarta aumentada ou quinta diminuída... Dó - Fá#(solfejando) Isso era proibido na música da Igreja e proibido na música erudita. Então, pode-se dizer que o maior compositor do Ocidente em toda a suaHistória é o próprio Concílio de Trento.A canção microtonal tinha muito isso decantar, por exemplo: aqui, entre um intervalo de Dó para Dó#, eu tenho quatrocomas e meia.

Porque aí também já é a escala temperada. Se eu tivesse no violino, eu faria o Dó# um pouco mais alto, seriamcinco comas. De Dó para Ré são nove comas. Quando você faz Réb, você faz cinco comas abaixo, quer dizer,está mais perto de Dó, só restam quatro comas. Quando você faz Dó# num instrumento como o violino, porexemplo, ou com a voz, você faz cinco comas acima. Quer dizer: Dó# é diferente de Réb, mas na escalatemperada não, ficou em quatro e meio Dividiu isso para poder ficar bom. De todo modo, de Dó para Re temnove comas, nove divisões. Você pode cantar, na música microtonal, todas essas divisões. De um tom paraoutro você canta nove sons, e a escala diatônica jogou fora essas coisas intermediárias. Tanto a canção celtaquanto a canção árabe usavam esses microtons. Isso foi proibido.

Você acha que, de alguma maneira, a música do Nordeste resgata essa microtonalidade?

Tom Zé: Quando a gente ouve hoje a beleza da música do Djavan ela também remete um pouco àquelasnotas longas em que ele permanece no agudo com um pequeno vibrato... Ele aproveita essas notas para fazermodulações, Quando eu canto a nota Mi num acorde de Dó, eu a canto numa altura. Quando eu canto Mi numacorde de Lá maior, eu estou parado nela, mas eu faço uma pequena modificação que você ouve, mesmo nãosendo músico. Ela tem outra intensidade, outro caráter. Isso é um pouco da música microtonal na música dele(Djavan). É claro que os críticos não estão formados para observar essas coisas. Eu sou um estudante demúsica, passei anos na universidade e me interesso também pela presença da canção árabe aqui. Então, dealgum modo, ele não faz canção árabe, não é influenciado por árabe, mas tem alguma coisa no profundo danossa alma, que foi ele quem pôs para fora. Ele é o cavalo que fala desse lado da nossa alma. Ele é o espíritoque trouxe isso à tona, por intuição, porque tudo o que está dentro da alma uma hora sai.

Como é a sua relação com as tecnologias de gravação?

Tom Zé: Daquilo que eu fui levado a observar, para mim , toda máquina, todogravador, todo V.U. é um censor estetico do sistema. Eu descobri isso naprópria pele. Quando você faz uma novidade sonora, você já tem umadificuldade. Você viu o cara da Continental que teve a dor de estômago. Amáquina tem o mesmo problema. Vou dar um exemplo. É muito famosa aqui emSão Paulo, não sei fora daqui, uma canção minha chamada Brigitte Bardot (verbox). A idéia dessa música era fazer uma canção bem lenta, bem baixinha.Tinha um trecho que dizia assim: "Será que algum rapaz de 20 anos vaitelefonar / Na hora exata em que ela estiver com vontade de se su-i-ci-DAR!Quando falava a palavra suicidar, na sílaba DAR entrava a banda toda antesera só o violão. Mas entrava a banda toda com 100% da escala de Hertzpresentes para encher toda a capacidade de volume do disco.

Foto J. Santana

Brigitte Bardot

Resultado- o técnico de som me disse "essa música não vai tocar norádio". E eu respondi: "Mas eu tenho que fazer a minha idéia: vamosgravar a música". Aí gravamos. Quando chegou à sala de corte (paravocê ver como as máquinas censuram, naquele tempo era corte, agora é

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A Brigitte Bardot está ficando velha /Envelheceu antes dos nossos sonhos/Coitada da Brigitte Bardot que erauma moça bonita/ Mas ela mesmanão podia ser um sonho para nuncaenvelhecer/ A Brigitte Bardot está sedesmanchando...Os meus sonhos querem pedirdivórcio /Agora o mundo inteiro tem milhões emilhões de sonhos que pedemdivórcio/Que a Brigitte Bardot está ficandotriste e sozinha...

(trecho)

masterização), eles acertaram o VU e largaram o disco correndo, porqueé tudo mais ou menos a mesma coisa - em música popular não temesse negócio de dinâmica, trechos altos e trechos mais baixos. Quandochegou em Brigitte Bardot, o Gaus, aquele mesmo da gravação doTropicália disse: "esse cara fode com o meu trabalho, canta essa músicabaixo demais. Não dá! Aí jogou o acetato fora, me xingou, voltou esuspendeu a música baixa.Acontece que no meio da música baixa, que ele só ouviu um pedacinho,tinha um porrete da desgrama, na hora do "SUICIDAR", com todo ovolume. Aí tornou o VU. a dizer "não, não, não, não, não"... A máquiname censurando, dizendo "não, senhor", "não, senhor"! Aí o Gaus falou"Que diabos! Esse homem quer me acabar com os dias de vida?!"Arrancou, jogou o outro acetato fora e, quando chegou nessa música, eleouviu toda. Viu como é que é? Para o técnico ouvir uma música todatem que dar um problema terrível.

É tudo tão previsível que não precisa nem ouvir Aí ele ouviu toda e disse: "o jeito é botar um compressor" Ocompressor aumenta o que está baixo e abaixa o que está alto. Quer dizer, ele jogou fora, acabou com o meuarranjo. Para você ver como as máquinas são censoras estéticas do sistema. Então, o gravador não é só umobjeto capaz de captar um som, ele está pronto só para captar o gosto estético vigente. Vários outros exemplosse sucedem.

TOM ZÉ E DAVID BYRNE

Em 1989, Tom Zé tinha decidido largar a música "Um dia eu fui fazer um show em Praia Grande. ninguémsabia o que era TomZé, Uma porção de crianças correndo pra Iá e pra cá.. Sabe o que é isso? É você não teruma banda, não ter nada. Tenta cantar com o violão e ninguém está ligando." E, depois eu ouvi muitasconversas e fiquei tão humilhado. Cheguei em casa tão triste que falei para a Neuza: "não trabalho maisnisso". A opção de voltar a Irará para trabalhar no posto de gasolina do sobrinho, parecia mais interessante.Foi quando apareceu o David Byrne, que três anos antes tinha comprado disco Estudado Samba (76) numaloja no Rio de Janeiro. "Na capa têm uns arames farpados, enrolado, com umas cordas. Eu queria figurar comisso que o samba era uma coisa muito aprisionada como era o Brasil naquele tempo da ditadura ", Byrne ficouimpressionado com a capa e comprou o disco. O Byrne conta que ouviu o disco em Nova lorque e disseassim: que diabo está acontecendo aqui. Era uma desconstrução do samba misturando a vanguarda countrycom elementos de ritmos brasileiras, com o lirismo de um poeta concreto. Um verdadeiro nocaute. Porquenunca ouvi este cara antes?' Através de Arto Lindsay Byrne conheceu melhor TomZé, que voltou à músicadesistindo do comércio.

Então, essa é a experiência que eu tenho de lutar nãocontra uma censura, mas contra um censor muito maisrigoroso e meticuloso, que é o sistema representadopor suas máquinas, que não permitem a novidade, sógravam o gosto médio vigente. Agora, na gravação damúsica com o Grupo Corpo, no ano passado no Rio,nós fizemos um petit comité com o pessoal da técnica,mostrando alguns exemplos já gravados, e eles

Foto J. Santana

fizeram um trabalho intelectual muito grande para romper, para enganar a máquina como quem engana acensura. (risos) Mas não saiu o que eu quero. Porque, por exemplo, minha música tem muitos instrumentos nãoconvencionais: o som de uma enceradeira que eu consigo domesticar.. Não é um negócio de eu botar uma

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enceradeira para assombrar a burguesia em cima do palco. Não é isso. É uma coisa que eu domestico, comfiltros e não-sei-que-mais, e faço fazer parte de uma sintaxe, de uma organizacão sonora. Não é o ruido domotor, são microfones acoplados no metal de onde eu tiro glissandos e tal, é uma coisa trabalhada que só podefazer com enceradeira mesmo, não tem outra coisa.

Você sempre gostou de fazer esses instrumentos?

Tom Zé: Eu tinha uma enceradeira emperrada lá em casa. Quando você desligava, ela parava logo.Normalmente leva meio dia para parar, Eu fiquei brincando com aquilo e falei: "pô, fiz um ritmo". Peguei outraenceradeira e tentei emperrar. Comecei a fabricar instrumentos assim Com as duas eu fazia um ritmo, e foi umsucesso imenso quando botei em cima do palco. Me lembro que a Folha de S. Paulo escreveu assim: "Umartista em construção", com as fotos de alguns instrumentos. O Estado de S. Paulo colocou: "Oseletrodomésticos deixam a cozinha e vão para o palco" Quem foi adorou. Inclusive os próprios músicos. Isso foiem 74 e é curioso, porque esta semana eu ouvi uma música eletroacústica, usando gritos, etc. e eu inventeiisso por processos artesanais, porque eu fazia na orquestra de Hertz esse negócio da voz humana, grito,choro.. Eu inventei isso, 20 anos antes, de uma maneira não-tecnológica, não eletrônica, de uma maneirasimplória quase artesanal. Por acaso não botei isso na praça. Mas é engraçado como me respeitam, dizem:'`Tom Zé, há 20 anos, estava fazendo instrumentos com enceradeira.

Agora eu estou reconstruindo os instrumentos com a ajuda do Grupo Corpo, de Minas Gerais, para fazer o meupróximo disco.

De que maneira o Grupo Corpo está te ajudando?

Tom Zé: Os instrumentos são caros e precisam de espaço. Naquele tempo tinha a casa do Serginho Leite. Elesempre teve muita habilidade, toca muitos instrumentos, é um grande músico, um ótimo arranjador. Nóstinhamos comprado uns gravadores, porque a DPZ Publicidade tinha me empregado para o homem de rádio eTV. Na casa dele tinha silêncio, vários quartos e tal e a maior parte dos jingles faziamos lá e tão bem que, àsvezes, eram usados diretamente, sem estúdio nem nada. Então aqueles instrumentos de enceradeira erammuito altos com caixas superpostas, marceneiros trabalhando, o diabo. Tudo coube na casa dele. Quando amãe dele morreu e ele saiu, não havia onde botar. Um amigo, que era guitarrista, ofereceu o sítio do pai. O painão queria. E o caseiro, sabendo que o pai não queria, tirava as tábuas e queimava no frio, durante todo oinverno. Que pena, mas que grande simbolo metafórico, né?!l Os instrumentos aqueceram uma pessoa,salvaram uma pessoa!

Como é que você grava em casa, antes de levar para o estúdio?

Tom Zé: Eu tenho um gravador Yamaha de quatro canais e tenho um... isso é bom podia até fazer uma coisaseparada na revista como método de composição. Porque eu vou aproveitar o negócio de gravador para dar ométodo. É uma coisa auto didática, uma coisa que foge da tonalidade, que implica em você fazer tônica sobredominante e ter relações de forças atrativas e repulsivas. Como eu faço música tonal, mas a vida toda façomúsica em tom maior, não tenho tonalidade, porque não tenho as relações da tonalidade. Eu faço o seguinte:pego primeiro um gravador, Tenho duas fitas com baterias gravadas. Fui a um estúdio e gravei samba sambaduro, samba quadrado. É dai que eu vou degenerar as coisas: começo em cima do absolutamenteconvencional, boto isso numa fita e começo a ouvir. Descobri que, se você começa a fazer certos ostinatos emcima da batida no grave, você começa a degenerar o ritmo da batida da bateria. Ela parece que não é maissamba, mas fica mais interessante. Isso eu transfiro para a quinta e a sexta cordas da guitarra e para ocontrabaixo, na hora de fazer a instrumentação. Depois de fazer uma coisa que me agrada, que eu acho queseja bonita, que tenha um som legal, que faça a quebra do ritmo de samba e ofereça alguma célula quaseparecendo o arcabouço de uma frase musical, quando eu já gosto intuitivamente, eu pego os cavaquinhos efaço em duas vozes, no agudo, um contrabaixo muito rigoroso com essa frase do baixo. Quer dizer, o que euvou fazer no agudo depende muito da frase do baixo. No cavaquinho, eu ainda ponho mais dissonância. E botointervalos estranhos, fica quase escapando da tonalidade, mas nunca totalmente. Quando isso já me satisfaz, aíeu sou japonês, eu erro, erro, erro . Depois de um mês, um belo dia. eu volto e digo: "ah, está bem fluente! ».Aí eu vou tentar cantar, tentar botar uma carne nessa parede, nessa estrutura levantada, Então faço outraparede, que é a idéia do que eu devo cantar. Eu não faço uma coisa que é experimentação de letras. Começointeressando, com o ritmo, com o contraponto. Mas ninguém sabe o que é ritmo. O que é contraponto, mas aspessoas sente vontade de mexer o corpo. O que me interessa é isso. Depois, levanto outra parede, que é umaidéia sobre o que cantar e tal. Com essas duas paredes levantadas, eu tento fazer a cumeeira, que é a letra, amelodia. Tenho uma estrutura pronta que se agüenta em pé. Eu acho que a pessoa que ouvir vai ter o grande

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25/01/09 20:16Todos os Tons de Tom Zé - Luiz Alexandre Coelho

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prazer de desvendar essas estruturas e ter aquele prazer não só de brincar e dançar, cantar comigo no show,porque eu tento fazer refrões, às vezes não faço porque erro. (risos) Esse é meu método de composição. Todasas minhas músicas são assim. Por que Tom Zé faz sucesso no exterior? Vá lá e veja: não tem nada dedificuldade. Não tem segredo, não tem inspiração, não tem bate papo. Qualquer pessoa no Brasil pode fazer. Sóque eu peguei esse método e acreditei nele. Gostei, minha intuição me levou a isso. Em 1976, quando eu fiz odisco Estudando o Samba houve até críticas boas. Tárik de Souza disse na revista Veja que era uma coisainteressante e tal, mas foram necessários 17 anos para o David Byrne me levar para os Estados Unidos e sersucesso lá. Aí as pessoas voltaram a se interessar no Brasil. Deus sabe o caminho da coisa, eu não me queixode nada, Deus sabe o que faz com a gente. Por exemplo: teve gente nos Estados Unidos que, no princípio,sem entender o que eu fazia, chamou de... como é aquela música do Phillip Glass? Minimalista. Chamou deminimalista. Ora isso está muito errado. Não é minimalismo. Isso pode lembrar mais o móbile. O móbile temuma coisa assim: cada estrutura, cada planeta gira no tamanho de sua corda, Cada frase desses ostinatos,dessas repetições, da melodia, gira do tamanho que é. E então essas coisas vão se encontrando cada hora emlugares diferentes horizontalmente, E, verticalmente, se você vir, nunca tem um acorde igual, embora nuncasaia do Dó Maior, por exemplo. Aí você acaba criando outro tipo de interesse, mas não é minimalismo. Tem atégente boa aqui da música brasileira chamando isso de minimalismo. Mas não é, Não estou dizendo comoopinião, estou dizendo como professor de música, que eu também sou embora não faça pose. Você, olhando omóbile 20 vezes num dia, nunca vai achá-lo na mesma posição.