todos nos ninguem heidegger

Upload: pedro-milanesi

Post on 18-Oct-2015

191 views

Category:

Documents


27 download

TRANSCRIPT

  • MARTIN HEIDEGGER

    TODOS N6S ... NINGUEM urn enfoque fenomenol6gico do social

    apresentacao, introducao, notas e epflogo

    Dr. SOLON SPANOUDIS

    traducao e comentario

    DULCE MARA CRITELLI

    EDITORA MO:MES

  • d') ~c10S:~~~~ 5 J; \- "" -~--- -'1 ,) ! __ ....... \.-.o, .. -1 11 do tonbo 1 1 1
  • i

    SUMARIO

    Apresenta~ao: A TO DOS QUE PROCURAM 0 PR6PRIO CAMINHO, 9

    Introdugao, 23

    SER-NO-MUNDO COMO SER-COM E SER-SI-MESMO. 0 "A GENTE", 25

    25. Uma aproximagao da questao existencial do "quem" do ser-ai, 26

    26. 0 ser-ai-com dos outros e o ser-com cotidiano, 32 27. 0 cotidiano ser-si-mesmo eo "a gente", 48

    Epilogo, 57

    PARA RECUPERAR A EDUCAQA.O (Uma aproximagao a ontologia heideggeriana), 59

    5

  • 'I Apresentac;ao

    A TODOS QUE PROCURAM 0 PROPRIO CAMINHO

    0 que motivou a tradu~ao do capitulo "Ser--rto-mundo como ser-com e ser-si-mesmo- o 'a gen-te'" para o portugues, foi o fato de que, no contexto da obra de Martin Heidegger Ber e Tempo, esta e uma parte que consideramos de suma importancia.

    Toda a obra Ber e Tempo- apesar de incom-pleta- difere dos livros do genero de antropologia filos6fica. Heidegger e urn pensador que convida o leitor a acompanha-lo nos caminhos dificeis e st nuosos da reflexao que ele mesmo abre; con vida a uma ou tra mane ira de pensar. Heidegger nao se preocupa em fornecer pensamentos elaborados, per-feitos, sofisticados, sensacionais para serem adqui-ridos ou nao. Se alguem espera, na leitura de suas obras e, principalmente, em sua obra fundamental Ber e Tempo, encontrar respostas satisfat6rias, con-clusoes elaboradas com precisao e exatidao, se tern expectativas de aprender li~oes com conteudo pronto de processos cognitivos e de valores estimados, e melhor desistir de tomar contato com elas.

    Para aqueles que querem se aproximar dos ca-minhos que tra~ou esse pensador, a leitura de seus textos nao e facil a primeira vista. Contudo, se esti-verem mesmo interessados e forem capazes de "dar

    9

  • o pulo necessario", segundo palavras do proprio Hei-degger, para superar o modo de pensar representa-tivo, pragmatico e tecnologico, para esses achamos importante contribuir com a tradu~ao desta parte.

    * * *

    Ber e Tempo e o questiona~ento de M. Hei-degger referente ao significado da usada e abusada palavra "ser" ou "sendo"; nessa obra, ele nos enca-minha para sua propria ontologia fundamental.

    Porem, o que q'uer dizer geralmente "ontolo-gia"? Para o pensamento ocidental, "ontologia" e o estudo do "ser enquanto ser", onde a tendencia, desde que foi introduzida a palavra filosofia por Platao e Arist6teles, e a procura de conceitos, categorias uni-versais, persistentes, eternas, chamadas "essencias" (as Ideias de Platao, por ex.). A ontologia, no pensa-mento ocidental, geralmente procura conceitos que transcendem a temporalidade e que se poem como os fundamentos basicos, como os principios fundamen-tais referentes a causa prima, a formula que deter-mina tudo o que foi criado e e encontrado no mundo.

    A ontologia fundamental de M. Heidegger pro-cura as origens genuinas que possibilitam a tudo ma-nifestar-se e presentar-se. Nao procura conceitos ou essencias primas e concretamente definidas, que se-riam as causas supremas de tudo, e das quais o que quer que seja percebido e conceituado se deriva. Para Heidegger, tais essencias fundamentais nao consti-tuem 0 ontol6gico, pois ontol6gico e aquilo que pos-sibilita as varias maneiras de algo tornar-se mani-festo, presente, criado, produzido, atuado, senti-do, etc.

    Em sua ontologia fundamental Martin Hei-degger procura superar os impasses a que chegou o

    10

    '

    pensamento ocidental, ao preocupar-se com o ques-tionamento do ser, perguntando-: "0 que e 0 absolu-tamente ente?".

    0 cotidiano, e nao OS conceitos, e de onde Hei-degger parte para aproximar os problemas funda-mentais. Neste "aproximar problemas fundamen-tais", Heidegger se utiliza das expressoes ontico e ontol6gico} existenciario e existencial, expressoes que precisam de algum esclarecimento, a fim de nao fi-carem monopolizadas pelas esferas academicas.

    Para Heidegger, sere a maneira como algo se torna presente, manifesto, entendido, percebido, compreendido e finalmente conhecido" para o ser hu-mano, para o "ser-ai" ou "Dasein". As caracteristi-cas fundamentais que possibilitam as varias manei-ras de algo se tornar manifesto, realizado, sao aquilo a que chama de "ontol6gico". lAs caracteristicas on-tol6gicas do ser humano ( ser-ai, Dasein) sao tam-bern chamadas "existencialias", ou seja, caracteris-ticas ontol6gicas da existencia. l cv

    A pala vra existencia nao tern liga~ao com o conceito habitual e classico, que quer significar "rea-lidade" como contraposi~ao ao conceito "essencia". Existencia .vern do. verbo ek-sistere; ek-sistencia e

    ~lgo que emerge, se manifesta, se desvela. Tudo o que e percebido, entendido, conhecido

    de imediato, e ontico. Assim como podemos chamar existencial ao ontol6gico, podemos chamar existen-ciario ao ontico.

    ontico, ontol6gico, existencial e existenciario nao sao no~oes abstratas, cujo carater e 0 da sofis-

    tica~ao. Estranham-nas OS leitores que nao tern urn embasamento filos6fico, e com razao, uma vez que a filosofia afastou-se do cotidiano, do ambito do vi-vido, isolando-se e exilando-se no campo exclusiva-

    11

  • mente intelectual e elitista, cuja preocupa~ao era a aquisi~ao de conceitos de .validez universal, imuta-veis e eternos. Nietzsche, em Assim Falava Zara-tustra, comenta que toda essa tendencia da filosofia ocidenta1 de procurar Verdades e Principios de am-bito universal.e eterno e a "vingan~a do homem con-tra o tempo". ldeias, conceitos, modelos, valores ab-solutos, tentam passar por cima da mortalidade hu-mana, procurando refugio no persistente, inaltera-vel, desafiando o tempo e apelando para a eternida-de. Em sua ontologia fundamental, M. Heidegger abre novos caminhos esclarecendo e tornando trans-parente (em sua propria expressao) como e a vin-

    gan~a do homem contra o tempo. Heidegger parte da vida cotidiana para mostrar o:;~ f~momenos onticos e seus aspectos ontol6gicos. Partindo da cotidianeidade e do 6bvio, tentaremos apresentar alguns exemplos a fim de afastar o reves-timento acaderqico e confuso do que quer dizer on-tol6gico-exi&tenCial e, respectivamente, ontico-exis-tenciario, na ontologia fundamental heideggeriana.

    Uma das caracteristicas fundamentais do ser humano e a perspectiva "futural", que podemos com-prender, por ex., atraves das perspectivas a respei-to das mudan~as de tempo. 0 lavrador depende de previsoes do tempo para plantar e fazer suas colhei-tas; programas de ferias, de como passar os feriados, dependem do tempo que enfrentaremos; ao sairmos de casa para o trabalho, dependemos de como espe-ramos que o tempo se estabele~a para nos vestirmos apropriadamEmte e saber se levamos ou nao conosco capa e guarda-chuva. Ventania, frio, chuva, calor sao fenomenos que interferem em nossos programas, no que pretendemos fazer, realizar. Sempre tentamos prever o tempo. A possibilidade de prever, em sua

    12

    forma verbal, de a~ao, .possibilita as varias maneiJas de se prever "o tempo"; 0 prever, neste exemplo, e 0 "ontol6gico", aqt1ilo que possibilita as diversas ma-neiras de se prever o tempo; 6 uma caracterfstica primordial, fundamental do ser humano, uma exis-tencialia entre outras, e que nao se confunde com o que cartesiana e positivamente compreendemos por "causa".

    Como podemos prever o tempo? atraves de instrumentos adequados que medem a

    pressao .aUilosferica, a temperatura, as frentes frias, etc.; em suma, atraves dos boletins meteo-rol6gicos.

    atraves de observa~oes sistematicas, empiricas, que possibilitam as previs6es. Para o lavrador, por ex., nuvens em certas posi~oes no ceu funcio-nam como sinais de chuva e mudan~a do tempo.

    atraves de rituais, dos videntes, dos sacerdotes em povos primitivos. .

    atraves de pessoas que, pela sensibilidade do cor-po- como, por ex., pressao na cabe~a ou articula-

    ~6es- podem prever tempestades ou queda de . temperatura.

    Todos esses exemplos concretos, imediata-mente entendiveis, palpaveis, evidentes, correspon-dem ao ontico ou existenciario. Mas perguntamott:_ em todos esses quatro exemplos, o fa tor que se apre ... senta como comum nao e a previs.ao do tempo? Esse procedimento de deduzir um fenomeno de uma no~ao, de um conceito universal e abstrato- a previsao-e, sem duvida, o modo classico de caminhar atraves das regras da 16gica, das quais precisamos para cons-truir as teorias e OS sistemas. Dentro de teorias e sistemas, a no~ao generica e abstrata "previsio", na

    13

  • forma substantivada, precisa defini~oes exatas e avaliadas. Mas o prever, a no~ao ontologica de Hei-degger, segue outros caminhos onde se abrem inume-ras possibilidades alem das quatro mencionadas, no sentido ontico; possibilidades inesgotaveis dentro da criatividade riquissima do ser humano: :Jn importan-te notar, contudo, que esse ontologico, que e a ori-gem que possibilita as inumeras maneiras de algo ser concretizado, realizado, e, tambeni e ao mesmo tempo, a origem da importantissima possibilidade do niio. Na ontologia fundamental de Heidegger, o "nao" nada tem aver com o aniquilamento, o vazio, o niilismo. Ao contrario, o "nao" e indispensavel ao viver humano.

    Elucidemos essa questao com outro exemplo simples.

    Pescar e um agir do ser humano. Pescar e o on-tologico, que possibilita as varias maneiras de se pes-car. Podemos pescar com anzol, com rede, com equi-pamento submarinho, entre outros. Porem, o que nos motiva a pescar, o que "da folego" ao partir para pescar e a possibilidade qtie sempre nos acompanha de "nao pescar nada". Se, por antecedencia, estives-semos certos e garantidos dos resultados positivos, provavelmente nao haveria a nossa expectativa, o desafio de pescar. 0 pescar ( o ontologico), a possibi-lidade de pescar com rede, anzol ou equipamento sub-marinho (OS fenomenos onticos, existenciarios), nao e so a possibilidade do sim, mas a possibilidade do nao.

    Ou tra caracteristica on tologico-existencial, fundamental, genuina do ser humano e 0 . "espaciali-zar". 0 que e e como e 0 espacializar do ser humano, do ser-ai? Anterior ao espa~o que conhecemos como

    14

    a mensura~ao das distancias, o ser humano experien-cia urn. primordial espacializar-se, que e 0 sentir-se proximo ou afastado de algo ou alguem. Posso sentir--me muito proximo a alguem quando penso nele, e muito afastado de uma pessoa ou de urn objeto que podem estar a meu lado. Sonhando, posso estar pro.;. ximo de alguem ou algo, e esta e, por ex., uma outra maneira ontica de espacializar. Atraves do corpo, de meus gestos, posso me aproximar ou me afastar dos outros, posso acha~ ou nao meu Iugar no meu ambien-te. Refletindo ou rezando, posso ficar ou nao proximo ao divino. Todas essas maneiras onticas tern sua ori-gem no ontologico "espacializar", caracteristica pri-mordial do ser humano. Nao de menor importancia sao OS fenomenos onticOS do espa~O objetivado, indis-pensaveis as teorias cientificas e tecnologicas, como por ex. o espa~o tridimensional, as localiza~oes topo-graficas, as distancias mensura veis e calcula veis, os meridianos, as coordenadas cartE~sianas na matema-tica. Todas essas maneiras objetivadas do espa~o, entre outras, tern suas origens na caracteristica fun-damental do ser humano do "espacializar" ou do "se espacializando". Na ontologia fundamental de Hei-degger, essa caracteristica fundamental e o que cha- ma de ontologico, existencial, e e diferenciada dos varios modos onticos, existenciarios, nos quais se expressa..

    Por estarmos acostumados com, e impregna-dos pelas teorias do conhecimento ( teorias e siste-mas de valores em suas tendencias de no~oes abstra-tas de valor universal), pelos modelos exatos que servem como parametros nas pesquisas, pelos deter-minismos indispensaveis as ciencias exatas, sentimos dificuldades e estranhamos, a primeira vista, a ex-posi~ao da ontologia fundamental de M. Heidegger.

    15

  • Esta Ontologia Fundamental e o caminhar que nos p5e na busca de recuperar o esquecido, de enxergar novamente o simples que, em nossa epoca, atraves do embotamento provocado pelo universo tecnol6gico, se tornou uma das tarefas mais dificeis.

    Ser e Tempo e uma obra que se constr6i na tentativa de compreender a "existencia" do ser hu-mano, do Dasein) ontologicamente. Nos capitulos II e III da primeira parte do livro, Heidegger introduz a expressao "ser-no-mundo", ou ainda melhor "sen-do-no-mundo", que corresponde ao modo basico do ser humano existir, expondo detalhadamente seu sig-nificado. "Sendo-no-mundo" diz respeito as varias maneiras que o existir humano -. o Dasein - esta possibilitado a viver. "Mundo", primordialmente, nao e uma caixa noetica que contem tudo 0 que exis-te, nem mesmo um espa~o homogeneo onde se en-contra tudo o que existe. Este ser "no" ( ser "em") significa, originariamente, familiaridade., o sentir-me confiante, como por ex., nas expressoes habituais "estou por dentro do neg6cio, do assunto ... ", etc. 0 mundo, no qual o ser humano existe, e anterior ao mundo espacial, topografico; interior. "Ser-no-mun-do" e as m.Ultiplas maneiras que o homem vive e pode viver, os varios modos como ele se relaciona e atua com os entes que encontra e a ele se apresentam.

    Ha duas maneiras fundamentais do homem relacionar-se com OS entes (que nao sao humanos), segundo Heidegger, definindo-os. Podemos falar dos "entes presentes sem nenhum envolvimento signifi-cativo", o "Vorhanden" no alemao, ou o "Present at hand" segundo a tradu~ao inglesa. Refere-se ao "Es-toque"' aquilo que, afastado do vivencial, torna-se objetivado: os objetos de estudo tal como tem que 16

    acontecer para o empirismo e para as ciencias exatas. Ha, porem, urn outro modo de relacionamento com os entes, e que Heidegger considera primordial ao anterior, ou seja, o relacionamento com o "ente pre-sente num envolvimento significante", o "Zu han-den" no alemao, ou o "Ready to hand" no ingles. Nes-te modo de envolvimento, em principia, atuamos mais do que teorizamos; assim como e, em geral, nos-sa vida cotidiana - uma totalidade de referencias e

    atribui~oes significativas, por ex., escrever urn texto, dan~ar, vestir-se, guiar autom6vel, produzir artigos, artesanato, etc. :E importante esclarecer que essa ma-neira de rela~ao com os entes em nossa cotidianei-dade e, na maioria das vezes, tao evidente que passa despercebida, e os significados sao vividos sem per-cep~ao, isto e, nao ha significados, mas as coisas. So-mente. quando algo nos falha, falta ou quando se torna urn obstaculo, e que seu significado pode tor-nar-se manifesto, saliente. Quando, por ex., o tele-fone falha durante nossa conversa, e que descobri-mos sua importancia, esta sobressai, e reconhecemos o que o telefone significa em nossa vida. N a hora de um acidente, quando precisamos chamar um pronto--socorro e o telefone nos falta, ai e que vemos o que e 0 telefone e para que ele serve.

    Em bora fa~a referencias a esses modos de rela-cionamento com os entes, o capitulo que apresenta-mos aqui traduzido remete ao relacionamento do "ho-mem com os outros homens". No modo de se rela-cionar e viver "o homem com os outros homens", baseiam-se fundamentalmente todos os enfoques fi-los6ficos e cientificos que encontramos no decurso hist6rico, e que tratam de problemas educacionais, psicol6gicos, psicoterapeuticos e, especialmente, so-ciais. Nas denomina~oes politica social, psicologia

    17

  • social, antropologia social, o adjetivo social e que es-pecifica essa referencia.

    Ao tematizar essa questao, Heidegger nao se preocupa em formular e apresentar regras e leis men-sura veis dessas rela~oes. Ele nao nos oferece respos-tas avaliando sistemas deterg1inistas e pluridimensio-nais; questiona apenas, procurando caminhos de apro-ximar 0 evidente, 0 simples, 0 fundamental que ficou esquecido, escondido e enterrado pelo turbilhao do raciocinio representativo e, mais recentemente, pelo raciocinio pragmatico e tecnol6gico.

    "Ser-com" ou "sendo-com" e urn constitutivo fundamental do "ser-ai" do existir humano. "Com", que tern origem no latim "cum" e no grego "syn" ( simbiose, sincronizar ... ) , significa junto, algo ou alguem na presen~a do outro. Sem essa caracteristi-ca fundamental e genuina do ser humano, que Hei-degger chama existencialia - maneiras caracteris-ticas de se relacionar e de viver- a vida humana nao teria sentido para nos. Expressoes como: "trabalhar com tecidos", "lidar com problemas educacionais", "brincar com bonecas", "falar comigo", em nenhuma lingua poderiam existir sem a palavrinha que pos-sibilita o relacionar, o atuar, o sentir, o pensar, o viver.

    "Ser com os outros", "sendo com os outros", e a caracteristica fundamental e genuina, mais espe-cificamente, o como me relaciono, atuo, sinto, penso, vivo com os meus semelhantes - o ser humano. Hei-degger especifica as palavras "com" e "tambem", no capitulo que traduzimos, independentemente da sua forma gramatical como proposi~oes; especifica-as como aquilo que e existencial. ( 0 termo existencial sempre deve ser tornado em sua acep~ao de verbo, como aquilo que possibilita as varias maneiras de

    18

    atuar, participar e significar, algo fluido que tern ca-racteristica tempbral.) Quando a crian~a e o adulto falam "eu tam bern"' nao necessariamente se repor-tam a imita~ao do outro, a identifica~ao com 0 outro, mas principalmente ao "participar" como outro. Em expressoes tais como: "ma,s eu tambem fui castiga-do", "eu tambem fiz tal curso", "eu tambem fiz te-rapia"' nao ha, primordialmente, 0 tomar alguem para exemplo, mas o expressar que eu tam bern-parti-cipei e experienciei tal ou tal situa~ao. 0 imitar, ou o tomar a palavra "tambem" apenas como o. indica-dar do seguir o exemplo de alguem, sao maneiras de-ficientes do significado primordial da palavra "tam-bern"' que, antes de tudo, e urn existencial.

    0 relacionar-se com alguem, com o outro nu-ma maneira envolvente e significante, e o que Heideg-ger chama de "solicitude", que imbrica as caracte-risticas basi cas do ter considerwiio para com o ou tro e deter paciencia com o outro. Ter considera~ao e pa-ciencia com os ou tros nao sao princi pios morais, mas-encarnam a maneira como se vive com os outros, atraves das experiencias e expectativas. Oonsidero alguem em vista de tudo o que foi vivenciado e expe-rienciado. 0 ter paciencia sempre pressupoe uma expectativa de algo que. possa vir a acontecer.

    Ha duas maneiras extremas de solicitude ou de cuidar do outro, onde existem, obviamente, tam-bern inumeras varia~oes. Uma delas e o "Einsprin-gende Fiirsorge", que literalmente, em alemao quer dizer: cui dar do outro pulando em cima dele ou, em outras palavras, "por o outro no colo", "mima-lo", fa-zer tudo pelo outro, domina-lo, manipula-lo ainda que de forma sutil. A outra maneira de cuidado para com o outro eo "Vorspringende Fiirsorge", em alemao-pular em frente ao outro; quer dizer, possibilitar ao

    19

  • outro assumir seus pr6prios caminhos, crescer, ama-durecer, encontrar-se consigo mesmo. Todas as ma-neiras de indiferen~a, apatia, falta, competi~ao -sintomas, alias, muito atualizados em nossa vida de grandes cidades - sao maneiras deficientes da pri-mordial caracteristica fundamental- solicitude.

    "Sendo com os outros" e a caracteristica fun-damental, original, que Heidegger descobre no existir humano; mas esse original que encontra, nada tern a ver com 0 original encontrado pelos estudos etnol6-gicos, antropol6gicos dos povos primitivos. "Diga-me com quem andas e te direi quem es"; "sinto-me so-zinho, abandonado, marginalizado" ; "ninguem me compreende"' todas sao expressoes que nao teriam 0 minimo senti do se nao fosse a caracteristica basica do "existir com os outros". Urn objeto pode estar metri-camente perto ou Ionge de outro, mas nunca se pode dizer que esta sozinho, ou que tenha sido abandonado por outro objeto.

    Compreender o sentido fundante das caracte-risticas basicas do "ser com". e do "ser com os ou-tros"' da solicitude e das varias maneiras possiveis que podem ser apresentadas e realizadas, e de suma importancia para os novos caminhos da criatividade, para as atividades educacionais, psicol6gicas, artis-ticas, inclusive para as ciencias exatas, conhecendo--se ja suas capacidades e limita~oes.

    A ultima parte do capitulo que aqui apresenta-mos faz uma referencia explicita aquilo que cornu-mente chamamos de "vida social", mas Heidegger, seguindo seus pr6prios caminhos, nao aproxima a questao do mesmo modo como o fazem os estudos cientificos. Aproxima, outrossim, a maneira basica desse viver.

    20

    0 modo basico do viver com os outros, no co-tidiano, Heidegger chama o "man ... " no alemao, o "They" no ingles, ou o "a gente", o "todos", numa lin-guagem mais significativa para nos: "a gente falou"' "a gente decidiu", "a gente fez". Este "a gente", este "eles", tern caracteristicas pr6prias e constitui o "pu-blico" ou a "opiniao publica" - que domina a ma-neira de viver com os outros. N a epoca atual, de con-sumo e tecnologia, a imposi~ao de preferencias da opiniao publica atraves dos meios de divulga~ao tern forgas irresistiveis. Cada vez mais a vida fica estru-turada e dirigida pelas organiza~oes supereficientes, onde o individuo fica disperso, protegido, acomodado no geral, onde e empurrado, compelido a uniformi-dade e mediocridade. Ninguem em particular e res-ponsavel, pois a responsabilidade mesma recai sobre a organiza~ao, sobre seu representante que, sempre, pode ser substituido por outro a qualquer bora. 0 homem se torna apenas urn numero ou uma parcela desse modo superorganizado de viver. 0 "a gente", o "todos", e, para Heidegger, o "ninguem". Isto nao quer dizer que o "a gente" se apresente como urn va-zio, ou que exclua o alguem; ao contrario, o "nin-guem" encobre e acomoda a todos que dele partici-pam, que estao perdidos de si mesmo ali, a todos a que se chama publico ou as exigencias do publico.

    Heidegger nao atribui conota~oes valorativas ao "a gente", no sentido de desprezar essa maneira de viver, mas considera-o como fundamental, a medida que possibilita a vida comunitaria e o coletivismo massificante. 0 "a gente" ou 0 "eles" nao e a soma aritmetica dos individuos, assim como tambem nao e 0 "sujeito" coletivo que representa uma classe ou o conjunto de pessoas vivendo, digamos, nas grandes cidades. 0 "a gente" e a maneira fundamental de se

    21

  • viver com os outros que possibilita tanto o viver em comunidade, onde cada um compartilha numa manei-ra propria e autentica, quanto o viver dissolvido e diluido na massifica~ao, absorvido no coletivismo, tornando-se uma pe~a, um objeto tnanipulavel. 0 ser si mesmo autentica e propriamente depende e se ba-seia nos modos de "viver com os outros", no "ser com os outros".

    Partindo-se dessa caracteristica fundamental - ou para dizermos melhor, existencial - do ser humano, novos caminhos sao abertos para se apro-ximar, atuar, realizar e resolver problemas humanos vitais. Questoes como a de uma educa~ao autoritaria ob nao autoritaria podemser resolvidas a partir dessa perspectiva. Problemas de psicologia social, de as-sistencia terapeutica de grupos, de profilaxia mental, enfim, inumeros problemas das atividades humanas podem ser aproxim~dos e compreendidos atraves dos novos horizontes abertos pela maneira atraves da qual Heidegger nos ensina a pensar.

    Dr. Solon Spanoudis

    22

    lntrodu~ao

    A trad:u~ao do capitulo que trazemos ao lei-tor, da obra fundamental do pensador contemporaneo Martin Heidegger, realizou-se em fun~ao de um prin-cipia e de uma inten~ao especificos.

    0 principia que nos orientou foi o da fidelida-de ao pensamento de Heidegger, o que fez com que uma tradu~ao "literal", em sua exatidao tecnica, fos-se relegada a um segundo plano. Era preciso que o pensamento encontrasse expressao em nossa lingua, pois a sua transmissao eo que nos importava. Muito embora o original alemao nos tenha acompanhado como que dirigindo nossa compreensao, foi na tradu-

    ~ao inglesa que reconhecemos uma melhor apresenta-~ao da proposi~ao heideggeriana. Consultamos tam-bern, constantemente, as tradu~oes francesa e espa-nhola, e estas nos auxiliaram em nossa tarefa. 0 que apresentamos ao leitor e, portanto, mais do que a compara~ao ou compila~ao de todas essas tradu~oes: e, em nossa linguagem, a exposi~ao do caminho do pensamento de Martin Heidegger.

    0 cuidado com a fidelidade do pensamento de-correu, simultaneamente, motivado pela inten~ao ou

    solicita~ao que sentiamos para a apresenta~ao mes-ma deste capitulo. Apreendemos em nossa atualidade uma urgencia em recompreender e reempreender as atividades humanas. Esse reconhecimento fez com

    23

  • ~~

    que nos decidissemos por tornar publica a recupe-ra~ao que, neste capitulo de Ber e Tempo) Heidegger realiza das rela~oes humanas, e que e fundamental a compreensao e plenifica~ao das nossas proprias ati-vidades.

    24

    _q ,

    SER-NO-MUNDO COMO SER-COM E SER-SI-MESMO. 0 "A GENTE".

    Martin Heidegger

    N ossas analises da mundaneidade do mun-do ( 1) mantiveram constantemente em perspectiva o fenomeno inteiro do "ser-no-mundo", muito em bora seus itens constitutivos nao tenham sido estudados com a mesma distin~ao fenomenologica que o pro-prio fenomeno mundo. Expusemos o mundo, ontolo-gicamente, atraves daquilo que e 0 "ente-envolven-te" ( 2) dentro do mundo; e esta exposi~ao foi desen-ll volvida por primeiro, pelo fato de o "ser-ai" (Da-sein), em sua cotidianeidade (em razao da qual ele permanece urn constante tema para estudo) , nao simplesmente estar num mundo, mas por referir-se a este mundo atraves de uma maneira de ser predomi-nante. De imediato e de forma geral, o ser-ai e fasci-nado com seu mundo; ele e, desta maneira, absorvido no mundo. ( 3 ) Tal maneira propria de ser do ser-ai e,

    l

    1. A mundaneidade e a caracteristica existencial do viver, e nela se fundamentam as varias maneiras especificas de viver que pode-mos chamar de o "mundo do artista", o "mundo do tecnico", o "mundo do cientista" etc.

    2. Ente-envolvente e uma expressao usada para as coisas que servem "de imediato" para algo - os utensilios, brinquedos, ideias, crenc;;as . . .

    3. Estar absorvido no mundo quer dizer estar vivencialmente li-gado ao mundo, interpenetrado nas coisas, nos entes-envolventes.

    25

    -

  • I : I I

    em geral, o "ser-no" que subjaz a esta, sao essenciais para a determina~ao do carater do fenomeno que te-mos agora para estudo. Aproximaremos esse feno-meno, a medida que formos questionando "quem" e este ser-ai em sua cotidianeidade. Todas as estruturas de ser pertencentes ao ser-ai, juntamente com o fe-nomeno que fornece a resposta a questao do "quem"' sao seus modos de ser. A caracterizagao ontol6gica destes modos de ser da-se explicitando-os existencial-mente. ( 4 ) Para tanto, precisamos colocar correta-mente a questao e delinear um procedimento adequa-do que nos possibilitem trazer a vista 0 amplo domi-nio de fenomenos constituintes da cotidianeidade do ser-ai. Para direcionar nossas investiga~oes a respei-to do fenomeno que

  • I r

    uma esfera fechada e enterrada na base, num sentido muito especial, como o subjectum. Conservar-se como algo identico em multiplas diferencia

  • nhasse nossa analise existencial e, em verdade, de urn modo fundado no ser do ser-ai mesmo? m possivel que quando o ser-ai se enderece a si mesmo, de urn modo que lhe e proximo, diga sempre "eu sou este ente" e, por fim, diga isto muito alto exatamente quando ele. "nao" e este ente. Mas o ser-ai e, em cada caso, meu, e esta e sua constitui~ao; en tao, se esta e sua verda-deira essencia, ( 8 ) por que o ser-ai, de imediato e em geral, niio e ele mesmo? Por que a aproxima~ao acima mencionada, partindo da presentidade do "eu", e com a mais patente auto-interpreta~ao do ser-ai, desenca-minharia nossa analise existencial levando-a para uma armadilha?

    Se o que for acessivel por uma mera "presenti-dade" puder ser determinado, e presumivel urn ho-rizonte ontologico para determina-lo; mas qual se-ria, se esse horizonte permanece ele proprio, em prin-cipia, indeterminado? E provavel que onticamente seja sempre correto dizer desse ente que "eu" o sou. Entretanto, ja a analise ontologica que se serve de tais afirma~oes precisa resguardar-se delas em prin-cipio. A palavra "eu" devera ser tomada apenas como um nao-confiavel indicador formal) apontando para algo que pode, talvez, revelar-se como seu proprio "oposto" em algum particular contexto de fenome-nos de ser. Partindo-se dessa coloca~ao, tambem a ex-pressao "nao-eu" nao equivale a dizer que um ente care~a essencialmente de seu eu; antes disso, ela se refere a um especifico modo de ser do "eu" mesmo, que e 0 do ha ver-se perdido.

    A propria explicita~ao do ser-ai que temos ofe-recido ate entao nos proibe partir da presentidade

    8 0 termo "essencia" nao e tornado aqui como na ontologia e metafisica tradicionais, que se reporta as ideias conseguidas por urn processo 16gico de abstrac,;ao, mas refere-se ao fundamental "ser" en-quanta existir.

    30

    formal do "eu", se tivermos como propo~ito responder ao questionamento do "quem" e 0 ser-ai cotidiano, de uma maneira que seja fenomenologicamente adequa-da. Ao esclarecermos o "ser-no-mundo", mostramos que, de imediato, um sujeito nu, desprovido de mun-do, nunca e; mostramos que ele nao chega sequer a ser presentado. Urn "eu" isolado, sem os outros, tam-bern esta, de imediato, especialmente distante de ser presentado. Pore~, mesmo que, fenomenologicamen-te, seja correto dizer que os "outros" estao ali co-nosco (mit da sind) no ser-no-mundo, nao deveremos nos enganar em supor que a propria estrutura onto-logica do que e entao "presentado" seja obvia, e que esta nao requeira investiga~ao. N ossa tarefa e a de tornar fenomenologicamente visiveis os modos de ser--ai-com que pertencem ao ser-ai encerrado em sua cotidianeidade, explicitando-os de uma maneira on-tologicamente apropriada.

    Da mesma forma como a obviedade ontica do "ser-si-mesmo" dos entes dentro-do-murido nos leva a convic~ao enganosa de que 0 sentido desse ser e, entao, ontologicamente obvio, e nos faz "passar por cima" do fenomeno "mundo"' a obviedade ontica de que o ser-ai e, em cada caso, meu, tambem nos escon-de a possibilidade de desvirtuamento da problema-tica ontologica que lhe pertence. 0 "quem" do ser-ai nao e, de imediato, apenas ontologicamente um pro-blema; ate mesmo onticamente ele permanece enco-berto.

    Essas afirma~oes nao estarao querendo signi-ficar que, atraves dos caminhos da analise existen-cial, nao ha cha ves para responder ao questionamen-to do "quem"? Certamente que nao. Nos modos atra-ves dos quais indicamos formalmente a constitui~ao do ser do ser-ai ( 9 e 12), o que estivemos discutindo

    31

  • l apenas nos apresentou uma chave para a compreen-sao de que a essencia do ser-ai esta fundada em seu existir. Se o "eu" e uma cara.cteristica essencial do ser-ai, ela precisa ser existencialmente explicitada. Assim, a resposta ao "quem" eo ser-ai s6 podera ser dada atraves de uma explicita~ao fenomenol6gica de urn espeCifico modo de ser pertencente ao ser-ai. Se, em cada caso, o ser-ai e seu si mesmo apenas enquanto existindo, entao a constancia do si mesmo e a pos-sibilidade de sua incapacidade em manter-se como si mesmo requerem que tal questao existencial seja for-mulada ontologicamente, pois este e o (mico caminho apropriado de acesso a sua problematica.

    Entretanto, se o "si mesmo" for considerado como urn modo "exclusivo" de o ser-ai ser, isto pare-ce equivaler a que o real "cora~ao" do ser-ai se eva-pora. Toda a apreensao do "si mesmo", como urn modo exclusivo de ser do ser-ai, recebe seu alimento de pre-juizos que, no fundo, compreendem este ente que temos em questao, como tendo uma maneira de ser que pertence apenas as coisas que sao "presem;a simples e objetivada", mesmo que mantenhamos afas-tada a perspectiva de lhe atribuir a solidez de uma coisa corp:::>ral. A "substancia" do homem nao eo es-pirito como sintese de corpo e alma; mas, somente a existencia.

    26; 0 Ser-ai-com dos Outros eo Ser-com Cotidiario.

    A resposta ao questionamento do "'quem' eo ser-ai cotidiano" e obtida ao analisarmos o modo de ser no qual, de imediato e em geral, o ser-ai se man-tern. 0 "ser-no-mundo" e o modo de ser basico do ser--ai atraves do qual todos os seus modos de ser sao codeterminados, e e, tambem, aquilo que orienta 32

    nossa investiga~ao. Sendo assim, e se estivermos cor-retos em dizer que a explicitagao do mundo, ou seja, dos itens estruturais do ser-no-mundo, elaborada an-teriormente, tornou estes itens visiveis, entao, de certa forma, eles ja devem ter-nos preparado para respondermos a questao: quem e 0 ser-ai cotidiano?

    Em nossa previa descrigao do mundo que nos e mais proximo ( 9 ) - o mundo-do-trabalho do ar-tesao, por ex. - o resultado obtido foi o de que, quando alguem esta trabalhando, juntamente com a totalidade dos entes-envolventes para o trabalho, os outros, para quem 0 "trabalho" e destinado, tambem sao encontrados. No envolvimento (que lhe pertence como modo de ser) do ser-ai com os "entes-envolven-tes", repousa uma indica~ao ou referencia essencial aos possiveis "usuarios" para quem ele esta "apron-tando a coisa". Da mesma forma, quando urn mate-rial e posto em uso, tambem nele encontramos seu produtor ou "fornecedor", como alguem que "serve" bern ou mal. Quando, por ex., caminhamos a margem de urn campo, mas "fora dele", o campo mostra-se como pertencendo a tais pessoas e decentemente man-tido por elas; o livro que usamos foi com prado em uma livraria enos foi dado portal ou tal pessoa, e as-sim por diante. 0 barco ancorado na costa indica, em seu ser-em-si-mesmo, uma familiaridade com quem com ele empreendeu viagens; mesmo que esse barco nos seja estranho, ainda assim ele e indicativo de ou-tros. Os outros, que sao assim encontrados nos "entes--envolventes", na totalidade dos entes-envolventes, de maneira alguma sao pensados como sendo, de ime-diato, somente "presenga simples e objetivada". To-das as coisas sao encontradas como tendo vindo de

    9. "Mundo pr6ximo" ou mundo "circundante" e o ambiente com o qual estamos familiarizados .

    33

  • I

    l urn mundo onde elas eram "entes-envolventes" para outros - urn mundo que e sempre, a priori) tambem meu. Em nossas analises anteriores, a multiplicidade daquilo que encontramos dentro-do-mundo foi, em primeira instancia, reduzida a totalidade dos "entes--envolventes" ou a "presen

  • zem-nos com facilidade. Contra tais explana~oes, de-vemos nos segurar firmemente aos fatos fenommi-cos do caso que salientamos, a saber, que os outros sao encontrados circumundanamente. ( 11) Este ele-mentar modo mundano de encontrar, que pertence ao ser-ai e lhe e proximo, leva o ser-ai a encontrar-se naquilo que faz, usa, espera, evita- naquelas coisas que sao circumundanamente "entes-envolventes" e as quais ele se refere de imediato.

    Mesmo quando o ser-ai se endere~a a si mesmo como "eu aqui", esta designa~ao pessoal locativa pre-cisa ser entendida ao nivel do espacializar existen-cial ( 1 2 ) do proprio ser-ai. Quando interpretamos isso ( 23) , invocamos ja esse "eu -aqui", nao como sig-nificando urn certo ponto privilegiado - o de uma coisa-eu - - mas, compreendendo-o como ser-em em termos do "la" ( 13) do mmido que e ente-envolvente; o "Ia" que eo lugar-moradia do ser-ai como cuidar.

    W. von Humboldt fez alusoes a certas linguas que expressam o "eu" por "aqui", o "tu" por "ali", o "ele" por "Ia", e que assim submetem os pronomes pessoais a adverbios de Iugar, para se colocar a ques-tao gramaticalmente. Nisto e controvertido saber se, de fato, a significa~ao primordial de expressao de Iugar e adverbial ou pronominal. Essa controversia, entretanto, perde seu fundamento se notarmos que esses adverbios de Iugar tern uma rela~ao como "eu"

    11 . A expressao circumundanamente nao trata de uma noc;ao to-pognifica, mas refere-se a familiaridade; expressa o "relacionar-se no ambito da vizinhanc;a".

    12 . 0 "espacializar existencial" do ser-ai e seu caniter constitu tivo e, portanto, primordial em relac;ao ao espac;o geognifico, men-suravel.

    13. 0 "Ia" e aquila que se apresenta no espacializar existencial do ser-ai, que, como mencionamos na nota acima, nao se refere ao es-pac;o topografico, nem mesmo e apenas urn adverbio de Iugar. 0 "Ia" diz respeito a expectativa temporal, diz do futuro como algo por-vir.

    36

    qua Dasein. Primordialmente o "aqui", o "ali" e o "la" nao sao modos de designar a localiza~ao topogra-fica dos entes "objetivados"; sao, melhor, caracte-risticas do primordial espacializar do ser-ai. Estes su-postamente adverbios de Iugar sao designa~oes do ser-ai; sua significa~ao e primordialmente existencial e nao categorial. Alem disso, eles tam bern nao sao pro-nomes, pois seu sentido e anterior me!:fmo a essa dife-

    rencia~ao gramatical entre adverbios de Iugar e pro-nomes pessoais. Estas expressoes sao uma significa-

    ~iio-do-ser-ai, que e autenticamente espacial, e servem como evidencias de que, prescindindo de distor~6es teoreticas, quando explicitamos 0 ser-ai, podemus ve--lo, imediatamente, como "sendo-no-mundo" ao qual se refere, e como "ser-no" espacialmente - quer di-zer, superando a distancia e dirigindo-se. 0 "aqui" nao fala do ser-ai voltando-se para si me -;mo - uma vez que o ser-ai e sempre absorvido em se 1 mundo -mas referindo-se para alem de si mesmo. P )is, quando o ser-ai esta em rela~ao com o "hi" de al:, urn "ente--envolvente" cuidando deste, e a si mesmo \ ue se tern em vista em seu existencial espacializar.

    De imediato e em geral o ser-ai cor ... .tpreende a si mesmo em termos de seu mundo, assim como o ser-ai-com de outros e freqiientemente encontrado em termos dos "entes-envolventes" dentro-do-mundo. Mesmo se, como neste trabalho, os outros forem to-rnados como tema para estudo, em seu proprio ser-ai eles nao sao encontrados como pessoas-coisificadas, como meros objetos: nos os encontramos "em traba-lho", isto e, primordialmente em seu ser-no-mundo. Ainda quando olhamos os outros "com certo afasta-mento". eles nao sao a preen didos como uma coisa--humana "objetivada"' mas seu "estar afastados" e urn modo existencial de ser - urn indiferente e des-

    37

  • I i cui dado demorar-se ao lado de tudo e de nada ( V er weillen bei Allem und Keinem). 0 outro e encontrado em seu ser-ai-com no mundo. A expressao "ser-ai", contudo, mostra plena-

    mente que, "em primeira instancia", esse ente esta em nao-referencia aos outros e que, posteriormente, pode com certeza vir a estar "com" os outros. E pre-ciso deixar claro que o termo "ser-ai-com" esta sendo por nos usado, referindo-se aquele ser para 0 qual OS outros que sao (die seienden Anderen) estao desve-lados dentro-do-mundo. 0 ser-ai-com de outros e des-velado dentro do mundo para urn ser-ai e, da mesma forma, para aqueles que sao ser-ai conosco (die Mit-daseienden) , porque somen te o ser-ai em si m~smo e essencialmente ser-com. A afirma~ao fenomenolo-gica de que o "ser-ai e essencialmente ser-com" tern uma significa~ao existencial-ontologica. 0 que ela busca nao e estabelecer onticamente aquela factici-dade de que eu nao sou uma "presen~a simples e ob-jetivada" sozinha, pois ha outros de minha especie. Se fosse isto que a proposi~ao "o ser-no-mundo do ser-ai e essencialmente constituido pelo ser-com" quisesse dizer, entao o ser-com nao poderia ser urn atributo existencial ao qual, espontaneamente, o ser--ai adviesse por seu proprio modo de ser. Tal asser-tiva seria, entao, alguma coisa que, em todo caso, revolvesse a questao do acontecimento dos outros. Ser-com e uma caracteristica existencial do ser-ai, ainda que facticamente nenhum outro for presente ou percebido. Ate mesmo o ser-so do ser-ai e ser-com no mundo. Apenas em e para um ser-com os outros podem faltar. 0 ser-so e urn modo deficiente do ser--com; sua verdadeira possibilidade e prova disso. Em outras palavras, 0 meu factico ser-so nao e percebido porque ha urn segundo exemplar de urn ser humano

    38

    "alem" de mim, nem dez, nem varios exemplares. Mesmo quando estes ou mais forem "presen~a sim-ples" , o ser-ai ainda pode ser-s6~ 0 ser-com e a facti-cidade de ser-com-os-outros nao estao fundados no haver varios "sujeitos" juntos. 0 ser-s6 "no meio" de muitos nao quer significar que com rela~ao ao seu ser eles estejam meramente "presentes" junto de nos. Mesmo em nosso ser "no meio deles" eles sao la co-nosco; seu ser-ai-com e encontrado num modo no qual eles sao indiferentes e estranhos. Ser ausente e "ser--distante" (Das Fehlen und "Forstein") sao modos do ser-ai-com de outros e sao possiveis porque o ser--ai, como ser-com, permite o ser-ai-com de outros ser encontrado em seu mundo. Ser-com e uma caracte-ristica de cada ser-ai; o "ser-ai-com" caracteriza o ser-a{ de outros, na medida em que eles sao desvela-dos atraves de seu mundo para urn ser-com. Ate mes-mo urn s6 ser-ai possui a estru tura essencial de ser--com; e o ser-ai-com como possibilidade de encontrar os outros.

    0 nosso modo de proceder com os entes-envol-ventes dentro do mundo foi por nos chamado de 0 "cuidar". Ora, se em geral o ser do ser-ai e definido como o "zelar" e, se o ser-ai-com e existencialmente constitutivo do ser-no-mundo (v. cap. VI desta sec-

    ~ao) , en tao o ser-ai-com deve ser compreendido em termos desse :rnesmo fenol)leno ( ou seja, do zelar). Entretanto, muito embora o ser-com e urn referir-se atraves do "cuidar" aos entes encontrados dentro-do--mundo, 0 "cuidar", propriamente, nao e urn carater--de-ser que perten~a ao ser-com. Os entes ( os outros) com OS quais 0 ser-ai como ser-com Se comporta nao tern o mesmo modo de ser que pertence a "totalidade dos entes-envolventes", pois eles proprios sao ser-ai. Assim, a esses entes (que tambem sao ser-ai) com os

    39

  • II I

    '

  • l ' to, e com freqiiencia exclusivamente, naquilo que e materia de cuidado habitual em cada ser. 0 ser-com--os-outros que se abre a partir de se fazer a mesma coisa com-os-outros nao apenas se mantem dentro de limites exteriores, mas introduz os modos do afasta-mento e da reserva. 0 ser-com-os-outrps que estao empregados para a mesma tarefa freqiientemente faz surgir apenas a desconfian~a. Em outras palavras, _quando pessoas se devotam a mesma tarefa comum, seu fazer e determinado pela maneira na qual seu ser.:. -ai ( cada urn em seu proprio modo) tern sido apro-priado. Elas, entao, tornam-se autenticamente presas juntas, e isto torna possivel o justo modo de obje-tividade (die rechte Sachlichk.eit), que desvela o ou-tro em sua liberdade para si mesmo.

    0 ser-com-os-outros cotidiano mantem-se en-tre os dois extremos de solicitude- aquele que salta sobre o outro e o domina, e aquele que salta diante do outro e o liberta ( vorspringend-befreienden). Ha numerosas e mistas formas de acontecer desses mo-dos de solicitude; descreve-las e classifica-la~ nos le-varia para fora dos limites desta investiga~ao.

    0 "cuidar de" pertence ao cuidar como urn mo-do de descobrir aquilo que e 0 "ente-envolvente"; a "solicitude", por sua vez, e orientada pela considera-Qiio e paciencia. ( 14 ) Como a solicitude, estas podem estender-se atraves de sua respectiva deficiencia e modos indiferentes ate a desconsideraQiio ou a negli-gencia para as quais a indiferen~a abre caminho.

    14. A palavra "consideraQao" no original alemao e Riick-sicht, que literalmente significa "vista para tras" (em vista do acontecido consideramos . . . ). A "pacHincia ou tolerancia", no original alemao -nach-sicht, significa "vista para a !rente" (e-se paciente ou tolerante em vista de algo esperado). As duas expressoes tern caracteristica temporal.

    42

    0 mundo nao apenas desvela OS "entes-envol:. ventes" como os entes encontrados dentro-do-mundo, mas tambem desvela o ser-ai - os outros em seu ser-ai-com.

    0 mais proprio sentido de ser do ser-ai (que e desvelado circumundanamente) e 0 ser-no mesmo mundo em que encontra os outros, ser la com eles. Explicitamos a mundaneidade como a totalidade de referencias significativas. No seu sendo-familiar com essas referencias significativas e previamente com-preendendo-as, o ser-ai deixa o "ente-envolvente" ser descoberto a partir de seu envolviu\.ento. A totali-dade de referencias ou indica~oes significativas esta imbricada no mais proprio ser do ser-ai - um ser que pode, essencialmente, nao estar em envolvimento mas que, antes, e um ser para 0 qual 0 ser-ai e como e.

    De , acordo com as analises que completamos agora, pertence ao ser do ser-a! o "ser-com-os-ou-tros"; e para o ser-ai, em seu verdadeiro ser, esse ser--com-os-outros constitui-se como um problema. As-sim, como ser-com, o ser-ai e essencialmente para os outros. Isto, assim como sua essencia, precisa ser compreendido existencialmente. Mesmo se cada fac-tico ser-ai nao esta voltado para os outros, e supondo . que nao tenha a necessidade deles, ou que arranje urn meio de viver sem eles, ainda assim ele esta no modo do ser-com. No ser-com, enquanto o existencial ser--para-os-outros, estes sao sempre desvelados em seu ser-ai. Com o seu ser-com os ou tros tern sido desve-lados com anterioridade; conseqiientemente, tam-bern seu desvelamento ganha significa~ao - quer dizer, mundaneidade. Esta significa~ao, a mundanei-dade, esta imbricada no existencial "ser-para-os-ou-tros". Desde que a mundaneidade do mundo ( na qual todo ser-ai e constante e essencialmente) e consti-

    43

  • tuida pelo ex1stencial "ser-para-os-outros", ela nos deixa encontrar aquilo que e "ente-envolvente" cir-cumundanamente como algo ao qual nos referimos cuidando dele e, de tal maneira que, junto com ele, encontramos o ser-ai de outros. A estrutura da mun-daneidade do mundo e de tal ordem que OS outros nao sao ali encontrados de imediato como "presenc;;a sim-ples e objetivada", como sujeitos desprendidos jun-tamente com outros objetos. Ela nos apresenta os outros-no-mundo, em seu especial ser circumundano, e faz isso atraves do relacionamento com os "entes--envolventes" que eles mantem nesse mundo.

    0 ser-com e de tal sorte que 0 desvelamento do set-ai-com de outros lhe pertence; isto quer dizer que, p_orque o ser-ai e' ser-com, sua compreensao de ser implica, constantemente, a compreensao dos ou-tros. Esta, como qualquer outra compreensao, nao e urn saber dos outros que se deriva de urn conheci-mento elaborado sobre eles; mas, primordialmente, e urn modo existencial de ser que, mais do que qual-quer outra coisa, torna possiveis esse conhecimento e esse saber. 0 conhecer-se ( sicknnen) esta fundado no ser-com que e compreendido primordialmente; ele atua, de imediato, em acordo como modo de ser que nos e proximo - o ser-no-mundo como ser-com. Ele atua atraves de urn saber-com, cujo ser-ai, junto com os outros, se depara em seu circumundano cuidar de e referir-se a - urn saber no qual o ser-ai com preen-de. 0 cuidar solicito e compreendido ao nivel daquilo que estamos cuidando-com, e juntamente com nossa compreensao dele. Assim, o outro e, de imediato, des-velado na solicitude cuidadosa.

    Todavia, porque de imediato e em geral a soli-citude habita os modos deficientes ou, por fim, nos modos indiferentes ( na indiferenc;;a de "passar" pelo 44

    outro, por ex.), o modo de conhecer-se, que e essencial e proximo, exige que alguem: se tome conhecido de si mesmo. Quando urn conhecer-se perde-se em mo-dos como a alienac;;ao, encobrindo-se ou disfarc;;ando--se, o ser-com-os-outros precisa seguir seus proprios e especiais caminhos para aproximar-se dos outros, ou mesmo para "ver atraves deles" (((hinter sie" zu kommen).

    0 abrir-se ( Sichoffenbaren) ou o fechar-se do ser-ai estao fundados no ser-com-os-outros como mo-do de ser e, em verdade, em nada mais do que isso; ate mesmo o explicito desvelamento dos outros' na solicitude funda-se no primordial ser-com eles em cada caso. 0 desvelamento do outro (que, de fa to, e tematico, mas. nao no modo de uma psicologia teore-tica ) transforma facilmente o fenomeno que, ao con-sidera-lo, trazemos a vista, na problematica teoretica de compteender a "vida psiquica dos outros" ( "frem-den Seelenlebens"). Nesta maneira fenomenologica-mente proxima, apresenta-se, compreensivelmente, urn modo de ser-com-os-outros; contudo, ela o toma, ao mesmo tempo, como aquilo que, primordialmente e "no comec;;o", constitui o ser em relac;;ao aos outros e o torna possivel. Este fenomeno, que de uma ma-neira infeliz foi chamado empatia ( Einfuhlung), e entao suposto, como se pode dizer, para fornecer a primeira ponte ontologica que liga urn sujeito parti-cular, dado de imediato como sozinho, a urn outro sujeito que, de imediato, e inteiramente fechado.

    Certo e que o ser em relac;;ao aos outros, ontolo-gicamente, difere do ser em relac;;ao aos objetos que sao "presenc;;a simples". 0 ente que e 0 "outro" tern, ele mesmo, o modo de ser do ser-ai. No ser-com e em relac;;ao aos outros, o que ha e uma relac;;ao de ser ( Seinsverhiiltnis) do ser-ai para o ser-ai. Contudo,

    45

  • e forc;;oso dizer que tal relac;;ao e ja constitutiva de cada ser-ai que, em sua propria medida, tem uma compreensao de ser e, assim, conduz-:se relativamente ao ser-ai. A relaQao-de-ser que se tern referentemente aos outros pode tornar-se uma projec;;ao de urn pro-prio ser-em-relac;;ao-~-si-mesmo com algo mais; o ou-tro pode ser uma duplicata do si mesmo.

    Porem, ao mesmo tempo que essas delibera-c;;oes parecem ser suficientemente obvias, e facil ver, tambem, que possuem urn alicerce pouco firme. Fal-ta-nos apreender a pressuposic;;ao que esse argumento exige - que o ser do ser-ai em relac;;ao a si mesmo e ser em relaQao aos outros. Da mesma maneira como a legitimidade desses pressupostos nao se tornou evi-dente, pode-se confundir o modo pelo qual a relaQao do ser-ai consigo mesmo pode ser desvelada ao ou tro enquanto outro.

    0 ser em relac;;ao aos ou tros nao e a penas uma relac;;ao de ser autonoma e irredutivel: enquanto "ser--com" ela e uma relagao que, como o ser do ser-ai, ja esta ai. E indiscutivel que urn intenso conhe-cimento pessoal mutuo, fundado no ser-com, depende freqiientemente de ate onde cada ser-ai conhece-se a si mesmo na ocasiao; mas isto quer dizer que esse co-nhecimento depende apenas de ate onde o essencial ser-com-os-outros de alguem o tein tornado transpa-rente e nao o tern disfargado. Isto e possivel somente se o ser-ai, enquanto sendo-no-mundo, ja e com os ou-tros. A "empatia" nao e o constitutivo primeiro do ser-com; unicamente enquanto fun dada no ser-com a empatia pode tornar-se possivel. Ela recebe sua mo-tivagao da insociabilidade dos modos dominantes de ser-com.

    0 fato de essa "empatia" nao serum fenomeno existencial primordial nao quer dizer, todavia, que

    46

    ela nao se constitua como problematica. Uma herme-neutica especial da empatia devera mostrar como o ser-com-os-outros eo auto-conhecimento do ser-ai sao desviados e obscurecidos pelas varias possibilidades de ser que o proprio ser-ai possui, de forma que uma "compreensao" genuina e suprimida e o ser-ai sere-fugia em substitutas. A possibilidade de compreen-der corretamente o que e estranho pressupoe, entao, uma hermeneutica como sua condigao existencial po-sitiva. N ossas analises mostraram que o "ser-com" e urn constituinte existencial do ser-no-mundo. 0 "ser-ai-com" mostrou-se como urn modo de ser que os entes encontrados dentro-do-mundo possuem como seu; enquanto o ser-ai for, ele tera o ser-com-os-ou-tros como seu modo de ser. Este ser-com-os-outros nao podera ser concebido como a soma resultante de varios "sujeitos". Mesmo o deparar-se com urn nu-mero de "sujeitos" ( einer Anzahl von "Subjekten") torna-se possivel somente se os outros, que sao pro-ximamente referentes em seu ser-ai-com, forem tra-tados meramente como numeros ( "Nummer"). Ate urn numero de "sujeitos" e descoberto somente atra-ves de urn especifico ser-com-e-em-relac;;ao-aos-ou-tros. Este "indiscernivel" ser-com "leva em conta" os outros sem seriamente "con tar com eles" ("auf sie zahlt"), ou mesmo sem esperar "ter alguma coisa para fazer" com eles.

    Cada ser-ai, assim, como o ser-ai-com de outros, e encontrado, de imediato e em geral, em termos do com-o-mundo ao qual estamos circumundanamente nos referindo. Quando o ser-ai ( Dasein) e absorvido no mundo ao qual se ref ere - isto e, ao mesmo tempo em seu ser-com em relagao aos ou tros - ele nao e ele mesmo. Quem e ele, entao? Quem assume seu en-cargo de ser no cotidiano ser-com-os-ou tros?

    47

    ' ".~

  • 27. 0 Cotidiano Ser-si-mesmo eo "A Gente)). Ontologicamente, o resultado relevante, obtido

    de nossas ana.lises do ser-com, foi a percep~ao de que o "carater subjetivo" de cada ser-ai e o dos outros tera que ser definido existencialmente- quer dizer, em termos de certos modos nos quais se pode ser. Os 6utros sao encontrados como eles sao naquilo com o que nos mesmos nos relacionamos circumundana-mente; eles sao aquilo que eles fazem ( sie sind das, was sie betreiben).

    No "referir-se aos outr.os" - apoderando-se deles, com, para ou contra eles, isto e, no modo de dis-tanciar-se dos outros, mesmo que esse distancia-mento esteja encoberto de m.aneira que nao se deva nada a eles, ou m.esm.o que urn ser-ai determinado tenha aprisionado os outros e queira agarra-los em sua rela~ao com eles, ou ainda que urn ser-ai tenha ja alguma prioridade sobre eles, dispondo deles, .man-tendo-as suprimidos - ha urn constante cuidar. 0 cuidar assim dimensionado revela uma perturba~ao, uma diferencia~ao entre o ser-ai e os outros, que blo-queia seu ser-com-os-outros. Se expressarmos isso existencialmente, esse ser-com-os-outros tern o cara-ter do afastamento (Abstiindigkeit). Por mais indis-cernivel que seja, esse e o modo de ser cotidiano do ser-ai, no qual mais tenaz e primordialmente ele pro-prio atua.

    Esse afastamento que pertence ao ser-com e de uma tal ordem que o ser-ai, no cotidiano ser--com-os-outros, encontra-se em submissiio (Botmiis-sigkeit) aos outros. Ele nao e "si mesmo"; seu ser foi arrebatado pelos outros. As possibilidades cotidianas de ser do ser-ai estao para serem dispostas pelo ar-bitrio dos outros. Ainda mais, esses outros nao sao

    48

    nunca outros "definidos". Pelo contrario, qualquer outro pode ser representante deles. 0 que e decisivo e que, inadvertidamente, essa domina~ao indiscernivel dos outros ja assumiu o encargo do ser-ai como ser--com. Pertence-se aos outros e, desta maneira, in-tensifica-se seu poder. Os "outros"' que e como se OS designa para encobrir o factico pertencer a eles, es-sencialmente sao aqueles que sao za} de imediato e em geral, no cotidiano ser-com-os-outros. 0 "quem" nao e alguem, nem aquele, nem urn certo alguem (man selbst) , nem urn certo povo ( einige) , nem mesmo a soma de todos; 0 " quem" e 0 impessoal, 0 "a gente" (das Man).

    Em nossas considera~6es anteriores mostra-mos como na circumundaneidade - que permanece proxima a nos - a "circumundaneidade publica" e urn "ente-envolvente"' ao mesmo tempo que e, tam-bern, materia de referencia ( mitbesorgt) . Em nos-utilizando dos meios publicos de transporte, dos ser-

    vi~os de informa~6es como os jornais, cada outro e como o proximo. Este ser-com-os-outros dissolve eada ser-ai completamente no modo de ser dos "ou-tros", e de tal forma que os outros, de fato, enquanto explicitos e distinguiveis, desaparecem mais e mais. A real ditadura do "a gente" desdobra-se nesse in-discernimento e incerteza. Nos sentimos prazer enos contentamos como "a gente" se compraz e se con-tenta; Iemos, vemos, criticamos literatura e arte como

    se ve, le e critica; nos apartamos, tam bern, da "gran-de massa" como se se aparta dela; nos revoltamos como se revolta. 0 "a gente", que e indefinido e que sao todos, embora nao como soma, prescreve o modo de ser da cotidianeidade.

    0 "a gente" tern seus proprios modos nos quais ser. Aquela tendencia do ser-com, a qual cha-

    49

  • Ill~

    -

    mamos "afastamento", tern seu fundamento no fa to de que 0 ser-com-os-outros refere-se a publicidade - que e uma caracteristica essencial do "a gente". Dis to o "a gente", em seu ser, faz essencialmente urn tema. Desta maneira o "a gente" mantem-se factica-mente na publicidade que lhe pertence, que atesta como valida ou nao, da qual garante 0 sucesso ou a relega. Nesta publicidade prescreve-se o que deve ser empreendido e vela-se por cada coisa excepcional que o empurra para a frente. Todo tipo de prioridade e silenciosamente suprimida. De um momento para outro, tudo 0 que e primordial e atenuado como se fosse algo que ha muito tempo e largamente conhe-cido. Cada coisa conseguida atraves de uma luta transforma-se em algo apenas a ser manipulado. Todo segredo perde sua for~a. Tal "cuidar" pertencente a publicidade revela uma tendencia essencial do ser-ai, que chamamos "uniformidade" de todas as possibili-dades de ser.

    Afastamento, publicidade e uniformidade sao modos de ser do "a gente" e constituem aquilo que conhecemos como "massifica~ao e mediocridade" (die Offtenlichkeit). A massifica~ao e a mediocridade controlam de imediato cada maneira pela qual o mun-do e o ser-ai sao interpretados. E atuando assim es-tao corretas - nao porque nelas haja uma primordial distintiva rela~ao-de-ser em que se da uma referencia as coisas, nem mesmo porque se aproveitem de uma certa transparencia ( 15) do ser-ai da qual se tenham explicitamente apropriado; ao contrario, estao cor-retas porque sao insensiveis a toda diferen~a de nivel e genuinidade e, desta forma, jamais atingem o "ful-

    15. A expressao nao tern nada a ver com a propriedade fisica da transparencia, mas quer dizer da "plenitude do desvelamento", da cla-reza do ser-eu.

    50

    : .. .J

    I

    ~

    I

    I

    c:to da questao" ("auf die Sachen"). Atraves da mas-sifica~ao e mediocridade tudo 0 que e obscurecido e, entao, aquilo que e totalmente encoberto, passa como sendo algo familiar e acessivel a todos.

    0 "a gente" esta em toda a parte ( ist iiberall dabei) , mas de urn tal modo que, sempre que o ser-ai o pressiona a uma decisao, ele escapa. Exatamente pela razao do "a gente" apresentar todos OS julgamen-tos e decisoes co:rp.o propriedade sua, ele priva cada ser-ai de sua propria responsabilidade. Por assim di-zer, o "a gente" pode manipular a todos para ser invo-cado constantemente. Pode responsabilizar-se por tu-do com grande facilidade, exatamente porque ele nao e alguem que precisa dar testemunho de coisa alguma. Foi sempre o "a gente" quem fez, e tambem se pode dizer que foi "ninguem". Na cotidianeidade do ser-ai, o agente atraves do qual muitas coisas apareceram, e aquele de quem podemos dizer "nao foi ninguem".

    Desta feita, em sua cotidianeidade, cada ser-ai e aliviado pelo "a gente". Nao somente is to, mas em aliviando o ser-ai do seu ser, o "a gente" tambem o acomoda ( kommt ... dem Dasein entagegen), se o ser--ai tiver qualquer tendencl.a para tomar e fazer coisas na facilidade. E justamente em razao de o "a gente" constantemente acomodar o ser-ai descarregando-o de seu ser, e que o "a gente" mantem e acentua seu tenaz dominio.

    Cada urn eo outro e ninguem e ele mesmo. 0 "a gente"' que e aquele que fornece a resposta a ques-tao do "quem" e 0 ser-ai cotidiano, e 0 ninguem, a quem o ser-ai cotidiano esta, ele mesmo, ja rendido no ser-em-meio-aos-outros ( Untereinandersein).

    Nos caracteres de ser que expusemos - o co-tidiano ser-em-meio-aos-outros, o afastamento, a pu-blicidade, a uniformidade, a massifica~ao e mediocri

    51

    I

    -

  • r"f

    lc\.,'L

    dade, o descarregar alguem de seu ser e a acomoda-Qao - repousa aquela "constancia" do ser-ai que e proxima de nos. Essa constancia pertence, nao ao permanente ser "presenQa simples e objetivada" de algo, mas ao modo de ser do ser-ai como ser-com. 0 si mesmo de cada ser-ai eo si mesmo dos outros nao se encontram nem se perdem nos modos mencionados. Neles encontram-se os modos de ser da inautentici-dade e da incapacidade de ser por si mesmo. Estar sendo nesses modos nao significa uma depreciaQao da facticidade do ser-ai, da mesma mane ira como o "a gente", enquanto "ninguem", nao indica urn nao-ser. Exatamente o contrario, pois, sendo nesses modos de ser, o ser-ai e urn ens realissimum, se por "realida-de" ( 16 ) compreendermos urn ser que tern o carater do ser-ai.

    Em verdade, tao pouco quanto o proprio ser--ai e 0 "a gente" uma "presenQa simples e-objetivada". Quanto mais abertamente ele se comporta, mais di-ficil e apoderar-se dele e defini-lo; entretanto, isto nao quer dizer que o "a gente" seja coisa alguma. Se nos 0 "olharmos" ontico-ontologicamente com urn olhar sem prevenQoes, o "a gente" se revela como o "su-jeito mais real" da cotidianeidade. Ainda que ele nao seja acessivel como o e uma pedra enquanto "presen-Qa simples e objetivada"' nao e esta a decisao ultima de seu modo de ser. Nao se pode, prematuramente, decretar que 0 "a gente" nao seja "realmente" nada, como nao se pode atestar a opiniao de que e possivel

    16. Para a tradi.;ii.o ocidental, "realidade" e urn conceito que corresponde a algo objetivado e independente de mim, que pode ser comprovado, mensurado, certificado, confirmado, pois e urn termo correspondente a verdade (enquanto o que corresponde ou se adequa a ... ) . 0 real e a "prova", a confirma.;ii.o da teoria dos valores e do conhecimento. Para Heidegger, "realidade" e o contexto dos signifi-cados e das refer6ncias com que pos relacionamos.

    52

    c-- -- ~

    ) l

    ~ ..

    '(

    i,l ~I ~I I

    explicitar ontologicamente esse fenomeno atraves de uma "explanaQao" resultante de tomar a "presenQa simples e objetivada" de varios sujeitos, urn ao lado do outro, e ajusta-los conjuntamente. Pelo contrario, ao trabalhar conceitos de ser, deve-se levar o curso desta empresa para . aqueles fenomenos que nao po-dem ser deixados de lado.

    Alem disso, o "a gente" tambem nao e alguma coisa do tipo de urn "sujeito universal" pairando sobre uma pluralidade de sujeitos. Apreende-lo neste sentido so e possivel se o ser desses sujeitos for com-preendido como tendo urn carater diferente do ser--ai e se esses sujeitos forem relacionados como casos de urn genero de acontecimentos - casos que fac-tualmente sao "presenQa objetivada". Atraves dessa aproximaQao, a (mica possibilidade ontologica que nos resta e a de compreender cada coisa ao nivel de generos e especies. 0 "a gente" nao e 0 genero ao qual pertence o ser-ai individual, nem mesmo pode-mos nos defrontar com ele como se fosse urn ente de caracteristicas precisas e duraveis. Ate mesmo a lo-gica tradicional nos falha quando se depara com es-ses fenomenos; falha esta que nao nos deve surpreen-der se tivermos em mente que, ainda por cima, ela e crua, primaria. Nao e nosso tema discutir como a lo-gica poderia ser aperfeiQoada e expandida, pois, em principio, ela ja nao pode ser flexivel. Toda reforma da logica, se orientada em referencia as "ciencias hu-manas", apenas avoluma a confusao ontologica.

    0 {{a gente'' e um existenciario e, enquanto um jenomeno primordial, pertence a constitUiQfiO po-sitiva do ser-ai. Ele proprio, por sua vez, tern varias possibilidades de tornar-se concreto enquanto algo caracteristico do ser-ai (seiner daseinsmiissingen Konkretion). 0 ambito onde seu dominio torna-se

    53

  • compelido e explicito _ pode mudar no curso da his-toria.

    0 si mesmo do ser-ai cotidiano e a gente mes-mo- que distinguimos do autentico si mesmo -isto e, do si mesmo que se apropria de seu proprio modo ( eigens ergriffenen). Cada ser-ai, como "a gente mesmo", dispersa-se no "a gente" e precisa primeiro encontrar-se. Essa dispersao caracteriza o "sujeito" do modo de ser que conhecemos como a ab-sorc;ao cuidadosa no mundo que nos e proximo. Quando o ser-ai e familiar a si mesmo como "a gente", isto significa, ao mesmo tempo, que e o proprio "a gente" quem prescreve o modo de interpretar o mun-do eo ser-no-mundo que permanece proximo. De uma maneira cotidiana o ser-ai esta para o "a gente", e e o proprio "a gente" . quem. articula a totalidade de re-ferencias significativas. A medida que os entes sao encontrados, o mundo do ser-ai desvela-os para a to-talidade de envolvimentos com a qual o "a gente" e familiar, e sempre dentro dos. limites estabelecidos pela publicidade do "a gente". 0 factico ser-ai, de imediato, esta-no-mundo descoberto num modo pu-blico. De imediato, ele nao e "eu", no sentido do meu proprio "eu mesmo", o "sou", mas, antes, e os outros no modo do "a gente". Ao nivel do "a gente" e como "a gente", eu sou "dado" de imediato para mim mes-mo (mir {{selbst"). 0 ser-ai, de imediato, e "a gente", e em geral permanece como tal. Quando o ser-ai des-cobre o mundo em seu proprio modo ( eigens) e o aproxima, quando desvela para si mesmo seu pro-prio autentico ser, essa descoberta do "mundo" e esse desvelaniento do ser-ai sao consumados como um desembarac;amento dos ocultamentos e obscuridades, como um rompimento de disfarces com os quais o ser-ai mesmo obstrui seu proprio modo.

    54

    Atraves dessa explicitac;ao do ser-com e do ser-si-mesmo no "a gente"' a questao do "quem" e 0 ser-ai na cotidianeidade do ser-com-os-outros esta respondida. Ao mesmo tempo, ela nos trouxe uma compreensao concreta da constituic;ao basica do ser--ai; o ser-no-mundo em sua cotidianeidade e publici-dade tornou-se visivel.

    0 ser-ai cotidiano retira seu modo pre-ontolo-gico de interpretar seu ser do modo de ser que per-tence ao "a gente" - 0 modo que nos e p~oximo. Numa primeira instancia, a explicitac;ao ontologica segue a tendencia de expor o ser-ai deste modo: ela o compreende em termos do mundo e depara-se com ele como um ente dentro do mundo. Isto, porem, nao e tudo : a significac;ao de ser, na base da qual esses entes que sao "sujeitos" (dieseseienden "Subjekte") sao compreendido3, e aquela em que a ontologia do ser-ai, que nos e proximo, deixa-se mostrar em ter-mos do "mundo". Porque o fenomeno mesmo do mun-do, contudo, e passado por alto nessa absorc;ao no mundo, seu lugar e tornado ( tritt an seine Stelle) por aquilo que e "presenc;a simples e objetivada" dentro do mundo e que chamamos objetos. 0 ser dos entes que sfio l6 conosco e concebido como "presenc;a obje-tivada". Desta forma, ao exibirmos o fenomeno con-creto do ser-no-mundo cotidiano que nos e proximo, tornamos possivel uma apreensao da razao pela qual uma interpretac;ao ontologica desse estado de ser tern sido mistificadora. Esse verdadeiro estado de ser) em seu modo. de ser cotidiano) e aquele que) de imediato) engana-se e se encobre.

    Se o ser do ser-no-mundo-com-os-outros coti-diano e, em principia, diferente de uma "pura pre-senc;a simples e objetivada" - com relac;ao ao fato

    55

  • de que, aparentemente, isso e proximo para ele, on-tologicamente - ainda menos o ser do autentico si mesmo pode ser concebido como uma "presen~a sim-ples e objetivada". 0 autentico ser-si-mesmo nao re-pousa sobre uma condi~ao excepcional do sujeito, na qual ha uma extirpa~ao do "a gente"; antes disso, ele e uma modi{icw;ao existencial do ((a gente"- do ((a gente" enquanto uma existencialia essencial.

    Neste caso, entretanto, existe, ontologica-mente, urn abismo que separa a "mesmidade do si mesmo existindo autenticamente" da "identidade do 'eu' que se mantem si mesmo atraves de suas mul-tiplas experiencias".

    56

    Epilogo

    0 capitulq_ IV de Ber e Tempo, abordando a tematica do "ser-com" e do "ser-com-os-outros", no caminho da ontologia fundamental de Martin Hei-degger, abre novos horizontes e inumeras possibili-dades para se compreender, entender e esclarecer as maneiras como vive o homem, as atividades do ser-humano, do "ser-ai".

    A partir do significado da palavra "com", das maneiras de cuidar dos outros, da solicitude, do con-viver com os outros, e a importancia do que quer di-zer "a gente", Medard Boss, entre outros psiquiatras e psicoterapeutas, fundou a "Daseinsanalyse", refe-rente a psicoterapia e psicopatologia. A tentativa e de abrir novos caminhos aos encontros psicoterapeu-ticos e as no~oes e conceitos de psicopatologia. Como temos exposto em outro lugar, * Daseinsanalyse e urn novo metodo de aproximar e compreender os proble-mas e fenomenos humanos. Nao e uma teoria que se baseia em parametros e sistemas 16gicos positivos, mas uma maneira humilde de tentar compreender melhor os sofrimentos e as possibilidades de felici-dade do ser humano.

    Psicoterapia. e psicopatologia, entretanto, sao apenas uma parcela das atividades do homem. A on-

    * Daseinsanalyse, publicaQao da AssociaQiio Brasileira de Analise e Terapia Existencial Daseinsanalyse, n.o 2 e 4.

    57

  • - ~

    tologia fundamental de Martin Heidegger, porem, dirige-se a toda plenitude da sensibilidade, criativi-dade, das realizagoes, das decepgoes, enfim, a todas as atuagoes do ser humano. Porque a ontologia funda-mental de Martin Heidegger apela, solicita-nos a apresentagao e desvelamento dos fenomenos e suas riquezas num panorama global, e que nos decidimos a apresentar aqui uma tentativa de aproximagao com outra atividade que nao as acima mencionadas.

    Dr. Solon Spanoudis

    58

    .()

    PARA RECUPERAR A EDUCA(_;AO ( uma aproximac;ii.o a ontologia heideggeriana )

    0 estudo profundo e dedicado as obras de Martin Heidegger abre-nos a compreensao do que constitui a essencia da propria filosofia. Ap6s essa compreensao, chega-nos a constranger definigoes, vindas de ambitos diferentes, que confinam a filoso-fia a ser apenas uma teoria sistematizada de conheci-mentos especificos entre outras. Toma-se comumente a filosofia por uma especie de "ciencia" com a qual as demais podem manter urn contato para "troca de ideias", em bora pensem com ela nao se imbricar. La-menta-se a falta de urn rigor cientifico ao pensar fi-los6fico e, quando nao se traz a vista sua negativi-dade, 0 que se lhe atribui de positivo e a classificagao e exposigao das 16gicas do conhecimento que lhe ca-beria explorar. Quando ,nao se lhe entrega o encargo de ser exclusivamente urn manual tecnico de linhas de pensamento, e quando nao se lhe da, pejorativa-mente, o carater de "poesia", concede-se-lhe o esta-tuto de uma critica social indispensavel, mas cuja especificidade, infelizmente, confunde-se ou e em-prestada as ciencias sociais. 0 que percebemos dai, nao sem tristeza, e que nossa cultura em sua histori-cidade, enderegando-se a conquista cada vez mais to-tal da cientificidade e tecnologia, assim como do apri-

    59

  • moramento do consumismo, perdeu de vista esse modo de conhecimento que e tao estru tural ao pro-prio homem. Mais ainda, pois "nega-se" sua presen~a inalienavel a constitui~ao de todos OS demais sabe-res humanos.

    A facilidade com que se relegou a filosofia a urn dos (lltimos pianos dignos de aten~ao, e dizemos isto em rela~ao a ocidentalidade, parece-nos ter uma.

    liga~ao direta como carater mesmo de tal civiliza~ao. E-nos impassive! e aflitivo lidar com urn conhecer que nao nos possa encher de respostas objetivadas, como se fossem instrumentos, e que se coloquem a nossa disposi~ao para urn uso definido e imediato, especialmente pragmatico. A uma civiliza~ao que se consuma e se consome ao nivel exclusivo do "fazer'', o compreender torna-se obsoleto e sem sentido.

    Por essa razao, acreditamos de fundamental . importancia a recupera~ao mesma da filosofia en-quanta a a~ao de pensar. Por ser pensamento, ela nao e nem se remete precisamente ao pragmatismo de uma consecu~ao, mas incorp:)ra esta ultiina numa su-

    pera~ao. 0 fazer eo pensar, enquanto possibilidades existenciais e eqiiiprimordiais do homem, imbricam--se mutuamente. Muito em bora fazer e pensar nao se-jam excludentes urn do outro, a recupera~ao da a~ao de pensar implica que, num primeiro momenta, pos-samos nos entregar a a~ao de pensar o p::msamento, independendo do vasculhar a que tipo de fazer ele nos possa conduzir. Precisamos pensar o pensamento e permitir que o fazer pragmatico nao catalise nos-sas aten~oes. Precisamos permitir que urn novo fa-zer emerja de urn novo horizonte. 0 pensar abre o fazer, mas so se confiarmos no vigor do proprio pen-samento. Se a unica coisa que podemos querer e a prontidade das respostas, das formulas, das regras,

    60

    .f.

    IJ

    nesse querer o pensar nao pode se presentificar como sendo fundamental. A dificil tarefa dos que querem ir mais alem de urn fazer pragmatico sem se senti-rem sufocados pela "incerteza imediata" de urn "o que" fazer e pela seguran~a do ja convencionado, e poder deixar o fazer no "vazio", abandonar sua prio-ridade e, concomitantemente, poder abandonar-se a verdade de urn fim ainda nao-dado.

    A especificidade mesma do conhecer filoso-fico esta na possibilidade de interrogar o ja-dado, de-sinstalando-nos dele e nos jogando na liberdade do poder-ser, sem nos conduzir a Iugar nenlium ja pre-viamente definido. A filosofia e o espago mesmo do exercicio do pensar ou, se se quiser, do refletir. Uma

    afirma~ao do proprio Heidegger, em sua obra 8endas Perdidas, langa-nos no ambito do justo filosofar quando diz que: "A reflexao e a coragem de tornar a verdade de nossas pressuposi~oes e o ambito de nos-sos proprios fins em coisas que, sobretudo, sao dig-nas de serem chamadas em questao." Nao seria, pois, o especifico da filosofia o "abrir" as verdades em que nos fechamos e os fins a que determinadamente nos confinamos?

    Em vista dessa compreensao e que se pode que-rer pensar a educa~ao, a partir, por exemplo, do capi-tulo de Ser e Tempo que trazemos aqui traduzido. Pen-sar a educagao nesse caminho exige de nos uma preo-cupagao com a educagao mesma e nao nos engajar-mos num apenas construir tecnicas de ensinar.

    As reflexoes que aqui se seguem sao somente reflexoes e convidamos a partilhar delas apenas aqueles que ousarem Iibertar-se do imediatismo do fa-zer pedagogico, e superar o incomodo de caminhar sem apoios e por suas proprias pernas.

    61

    ~.,

  • Logo que tornado como um tema a ser consi-derado, 0 "fenomeno educa~ao" traz-nos a vista a evi-dencia de ser ele o lugar onde, com primazia, nos de-frontamos com a rela~ao homem-homem. 0 que por primeiro enxergamos na educac:;ao e "o homem-sendo--com-os-outros-homens'' de uma maneira particular. Este sermos-uns-com-os-outros e o que se oferece como a "oportunidade" da educac:;ao. Mas o que de imediato se evidencia e, talvez, em razao mesmo de sua obviedade, e aquilo com que menos nos temos preocupado em nossas especulac:;oes a respeito do fe-nomeno educac:;ao.

    Outro aspecto que, juntamente com essa pri-meira evidencia, se mostra e_ com o qual tambem nao nos temos ocupado e o fato de que a educac:;ao, en-quanta fenomeno que se desdobra a partir do sendo--os-homens-uns-com-os-outros, e algo extensivo a to-das as nuances da existencia. Em nossa contempo-raneidade, toda via, confinamos a questao " educa-c:;ao" as escolas. Ha um setor ou instituic:;ao da socie-dade que se encarrega dela. Sectarizamos tambem o fenomeno educac:;ao relativamente aos adjetivos com os quais o caracterizamos; falamos em educac:;ao re-ligiosa, em educac:;ao social ou de massa, em educa-c:;ao familiar, entre outras. A cada uma delas compete uma instituic:;ao oficial- as igrejas, os meios de co-municac:;ao de massa, as familias. Desenvolvemos mesmo ciencias que acreditamos, particularmente, orientarem melhor tais tipos de educac:;ao como a teo-logia, a psicologia social, a pedagogia, a p~icologia familiar e ate mesmo o servic:;o social, sem contar os inumeros desdobramentos em que se oferecem.

    Com toda essa compartimentac:;ao educacional acabamos por perder de vista a propria educac:;ao. Nao

    62

    ,~ .. o# ,

  • rancar para fora", subentendemos, de uma condi~ao de existencia para outra. *

    Se, em verdade, substituimos a educa~ao pela instru~ao, e a segunda e nao a primeira que nos te-mos remetido em nossas discussoes; e com a instru-

    ~ao que nos temos preocupado. Tal situa~ao acaba de dirimir, de uma vez por todas, a questao educa-cional que imagimivamos refletir. Alem disso ela nos vem denunciar que nossa contemporaneidade nao tern

    espa~o para a educa~ao, mas so para a instrumen-ta~ao.

    Sen do a instru~ao, desta . feita, o fenomeno a ser pensado, aquilo que se evidenciava logo ao pri-meiro lan~ar de olhos no fenomeno educa~ao - a saber, o .sermos-uns-com-os-outros- ja nao mais se mostra e, de uma mane ira muito particular, nem tem mais por que se presentificar. Aquilo que na instru-

    ~ao se manifesta como seu constitutivo basico sao os processos, conteudos, instrumentos, recursos, ob-jetos e objetivos da instru~ao. As rela~6es homem-homem, neste ambito, nao sao mais a "oportuni-dade", mas os "subsidios" da concretiza~ao de tal tarefa.

    A aproxima~ao a ontologia heideggeriana des-sa questao exige de nos um abrir-caminho a recupe-

    ra~ao da "educa~ao" mesma e enquanto tal. ::m o que estaremos tentando a seguir.

    No primeiro momento em que nos referimos a educa~ao, deparamos com aquilo que chamamos de primeira evidencia oferecida por tal fenomeno - o fa to de ser ele o Iugar onde, com primazia, encontra-mos a rela~ao homem-homem; o Iugar no qual en-

    Dulce Mara Critelli, Educacao e Dominacao Cultural: Tentativa de Reflexao Ontol6gica, Cortez Ed. e Autores Associados, Sao Paulo, 1980, pp. 42 e 43.

    64

    ,:

    1

    xergavamos os homens-sendo-uns-com-os-outros. E compreendamos bem que a facticidade de serem os homens uns com OS outros nao e 0 decorrente da edu-

    ca~ao, mas, ao contrario, tal facticidade e aquilo que se apresenta como a "oportunidade" da educa~ao, uma vez que ser-com-os-outros e carater constitutivo do proprio homem ( ser-ai) .

    Tendo como fundamento o ser-com-os-outros, a educa~ao constroi-se na "circumundaneidade" de que Heidegger nos fala, no existir cotidiano. No en-volvimento. com o mundo de que cuidamos; em nosso trabalho, e que OS outros sao por nos encontrados: nesse envolvimento cuidadoso com o mundo somos uns com os outros e, nele, a educa~ao se da. E nesse modo basico e habitual de ser que a educa~ao en-contra sua oportunidade. Ora, tal modo habitual de ser e aquele em que cada homem que dele participa nao se apropria de seu "si mesmo" autenticamerite. Quer dizer: 0 cotidiano ser-com-os-outros e 0 modo de ser como os outros, o modo do "ninguem", da inau-tenticidade, do "a gente". Assim, e no espa~o da inau-tenticidade em que basicamente a educaQao se des-dobra.

    0 ser-com-os-outros cotidiano e o Iugar do "publico"' onde tudo e para todos indistintamente, onde somos como os outros sao, fazemos aquilo que se faz, preocupamo-nos com o que "a gente" se preo-cupa, onde estamos familiarmente habituados ao "afastamento" de nossas proprias responsabilida-des e de nosso proprio ser. Esse ser-com -os-ou tros cotidiano e, portanto, o Iugar do nivelamento ou "uni-formidade"' onde tudo e de todos, on de estamos sempre amerce do arbitrio do "a gente". Esse mundo habitual que e para todos, de todos e onde somos como todos, e o espaQo que se configura como aquele

    65

  • que. pertence a massifica~ao e a mediocridade, ao qual acabamos, enfim, por pertencer e construir. Heidegger chama nossa aten~ao para o fato desse cotidiano mundo publico, de afastamento e unifor-midade, onde se desenvolvem a massifica~ao e a me-diocridade, ser insensivel as diferen~as entre as questoes e ao "cora~ao" destas; chama a aten~ao, mostrando que esse universo encarrega-se de inter-pretar o mundo e o homem, impondo e seduzindo o homem a tais interpreta~oes, em fun~ao das quais ha que se conduzir.

    Aqui, chegamos a algo de particular interes-se. 0 mundo circumundano, em suas caracteristicas pr6prias, e urn mundo que "conduz o homem em suas

    situa~oes de existencia", urn mundo que, basica-mente, caracteriza-se pelo estar levando ou arran-cando sempre cada ser-ai de uma condi~ao de exis-tencia para outra. Esta a~ao e a que originariamente reconhecemos como constitutiva da "educa~ao". Tal agir, todavia, nao implica que se arranque de uma

    situa~ao de inautenticidade para outra de autentici-dade. Exatamente o oposto, pois ja tivemos a opor-tunidade de perceber, atraves do pensar de Heideg-ger, que esse universo publico, esse universo do "a gente", s6 man tern o inautentico. Quer dizer que, em seu movimento de conduzir ao homem, ele o faz sem-pre partindo de condi~oes de existencia impr6prias para outras de impropriedade. Nestes termos, o uni-verso do "a gente" e urn educador.

    As escolas, as igrejas, os meios de comunica-~iio de massa, os nucleos de servi~o social, os centros de tratamento psiquiatrico, etc., sao aqueles organis-mos que o "a gente" reconhece como encarregados "publicos" daquilo a que chama educa~iio em suas especifica~oes. Ainda que essas institui~oed se

    66

    ocupassem da educa~ao e nao da instru~ao, ainda assim elas basicamente incorrem no fazer persistir a inautenticidade. Todas elas sao, como os meios de transporte, institui~oes "publicas", quer dizer, sao sempre eridere~adas a todos, 6 que equivale a serem endere~adas a "ninguem". Se e, pois, .no cotidiano e publico ser-com.:os-outros (no inautentico) que a

    educa~ao encontra sua oportunidade para ser, isto quer significar que o educar encontra seu funda-mento 1;10 inautentico.

    Essas compreens

  • \ . .'\. I ~~::

    . Esse desalento pelo qual fomos tornados e ape-nas q Iugar onde a problematicidade do fenomeno educa~ao pode se fazer presente; a problematicidade central que desde o come~o de nossas discussoes nao encontrava oportunidade para mostrar-se.

    Se a educa~ao nao e algo que "inventamos", mas que encontramos como urn modo de sermos-uns-com-os-outros, qual a razao de nos preocuparmos com ela? Para que nos envolvemos com ela e o que dela queremos? Se a educa~ao nos fosse indiferente, certamente nao teriamos criado tantos "centros" edu-cacionais. A multiplicidade deles nos mostra que a educa~ao e algo muito importante, mas qual e, expli-citamente, essa importancia? Ainda mais, por que

    lan~amos nela a possibilidade da autenticidade do existir?

    Negar a educa~ao o seu carater de publici-dade e impossivel. Contudo, devemos nos voltar a ela recuperando o que nela se mostra de mais fundamen-tal. 0 educar e 0 espa~o- onde OS hom.ens estao sendo uns com os outros. Se a educa~ao implica a relagao homem-homem como rela~ao basica, isto ja nos esta dizendo que se trata da rela~ao dos homens entre si e nao dos homens com outros entes que nao sao ser-ai tambem. Desta feita, a educa~ao deve entao ser pen-sada fundando-se na compreensao de como e o ho-mem (-ser-ai, Dasein). Nao esque~amos que o homem e urn ente que, diferentemente dos demais, e sempre como "possibilidade". Os outros entes tern o carater de ser em determina~ao, enquanto que o ser-ai tem o carater de ser em possibilidade. Se a educa~ao so fi-zesse abrir caminho a inautenticidade, seu end.erega-mento seria as coisas, aos objetos, e nao aos homens. Se ao homem e dada a condi~ao de ser em possibili-dade, tanto a inautenticidade como a autenticidade

    68

    ~

    :I.

    como modos de ser lhe estao ab.ertas. Ser no modo do "a gente" e apenas urn dos modos, embora o mais basico, possiveis para o homem. No capitulo que apresentamos traduzido, Heidegger, ao mesmo tem-po que apresenta a inautenticidade do modo de ser cotidiano, nos fala tambem da possibilidade da autenticidade, nao como uma extirpa~ao do "a gente", mas como uma modifica~ao existencial de ser nele, apesar e a partir dele.

    A inautenticidade e a autenticidade se desdo-bram no :qtodo pelo qual os homens se relacionam entre si, quer dizer, na solicitude. ::m, portanto, a par-tir da solicitude como urn todo que a educa~ao deve ser pensada, uma vez que, em ultima instancia, e ela que se apresenta como a "oportunidade" da educa-~ao. Se estivermos atentos a solicitude, talvez encon-tremos a possibilidade de responder a problematica manifesta no fenomeno educa~ao.

    0 existir solicito e alga que acontece eqiiipri-mordialmente ao "ser-no-mundo"' carater fundamen-tal do ser-ai. 0 homem absorve-se no mundo onde faz sua moradia, referindo-se e cuidando envolvida-mente desse mundo. 0 envolvimento ou a absor~ao mundana que o homem experimenta tern a caracte-ristica do proprio ser do homem - a temporali-dade. 0 homem, enquanto homem, so pode situar-se no "aqui" do mundo, porque o proprio mundo des-cortina-se tambem como urn "la". 0 futuro, o por--vir, abre ao homem o seu estar-aqui. 0 homem des-cobre-se sendo aqui para ser la. 0 que ele faz agora e aqui receb.e seu sentido do "la" do mundo, muito em bora esse "la", esse futuro, esteja imbricado na-quilo a que chamamos de passado, o como-tem-sido. 0 referir-se ao mundo cuidando dele tern urn cara-

    69

  • ter temporal. Neste, a solicitude se desdobra, e ela tambem, por assim dizer, tem um carater temporal.

    :m em razao da temporalidade que a solicitude pode desenvolver-se enquanto considera~ao e pacien-cia e setis modos deficientes - a desconsidera~ao e a negligencia.- A considera~ao e a vivencia solicita com olhos no passado, enquanto que a paciencia e a vivencia solicita atraves do olhar para o "la" do mundo, olhar para o futuro. Considera~ao e pacien-cia, como modo de sermos-uns-com-os-outros, assim como o modo do "a gente", sao constitutivos da edu-

    ca~ao. Para se recuperar a educa~ao a partir das es-

    eolas, por exemplo, seria preciso que a discussao a respeito de metodos, conteud.os, objetivos e avalia~ao de alunos levassem em conta a "considera~ao", a "paciencia" e o "a gente" como estruturas da solici-tude, do sermos-uns-com-os-outros que fundamenta a

    educa~ao. A recupera~ao desse fundamento prova-velmente abriria novos horizontes a nossa propria historicidade.

    0 solicito ser-no-mundo que se abre temporal-mente enquanto considera~ao e .paciencia ocorre atraves de dois extremos basicos- um dominador e outro libertador. 0 modo cotidiano e, portanto, in-discernivel de ser, que e 0 do "a gente", desenvolve-se segundo o extremo dominador; aquele que, segundo Heidegger, consiste em "sal tar sobre o outro", ali-viando-o e alijando-o da responsabilidade de seu proprio ser. A habitual e cotidiana a~ao educacional desdobra-se segundo esse modo, pois a tendencia ba-sica do nos so dia-a-dia e. cair e permanecer. nele; e nossa condi~ao de humanidade, nossa possibilidade constante e inalienavel. 0 outro modo possivel a edu-

    70

    ca~ao e 0 libertador, aquele em que se "salta diante do outro"' entregando-o a sua propria transparencia e responsabilidade para ser livre para si. Esse "po-der ser livre para si" implica em alguem reconhecer e entregar-se a seu destino. Uma das dificuldades mais tenazes que encontramos e a de sermos capazes de confiar ao outro o seu destino, de confiar no des-tino que ele descobre, de confiarmos na possibilidade do outro responsabilizar-se por ele, pela possibilidade desse destino escapar a nossa determina~ao.

    Na assim chamada educa~ao escolar, onde sempre compreendemos a presen~a de "alguem que educa" e "alguem que e educado"' 0 modo do "saltar diante do outro" e de dificil realiza~ao, uma vez que supomos estarem os dois entregues a uma mesma causa, empenhados juntos numa mesma tarefa. Esse cotidiano fazer-a-mesma-tarefa-com-o-outro e 0 es-pa~o que Heidegger nos aponta onde o habitual e medrar somente a desconfian~a. Nao estaria ai radi-cada a questao tao evocada e discutida em nossa epoca de uma educa~ao autoritaria e/ou antiautori-taria?

    0 sentido original de autoridade (aug ere) lat.) e "fazer crescer". Nao e, pois, precisamente a esse sentido que nos referimos quando colocamos em pauta o problema de uma educa~ao autoritaria ou do autoritarismo em qualquer instancia que seja. Se fossemos contrarios ao "fazer crescer", provavel-mente nao nos preocupariamos como aspecto domi-nador da educa~ao. Atualmente, o sentido dessa questao se apresenta atraves de tais palavras - au-toridade e anti-autoridade. Sao expressoes inadequa-das ao problema, mas e o que a linguagem comum impropriamente nos mostra e onde nos faz cair. Po-rem, como responder a essa questao? Ademais, como

    71

  • I

    responder as questoes que anteriormente surgiram em nossas reflexoes?

    0 responder que essas interroga~oes requisi-tam deixaremos em aberto; deixaremos aqueles que se sentirem chamados a pensar e, especialmente, a pensar a educagao. 0 que aqui pretendemos fazer foi apenas aproximar um pensamento filos6fico, o pen-sar ontol6gico