toda noite josephine · atingiram a fabulosa cifra de 40 ... É sabido que em qualquer...
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Contracapa:
A
AUTORA
DE
BEST-SELLERS
E
JOSEPHINE
O sucesso sempre foi companheiro
de Jacqueline Susann e seus romances
atingiram a fabulosa cifra de 40
milhões de exemplares vendidos e
tanto impressionaram a revista
L’Express, que logo os redatores lhe
arrumaram um título: A Onassis da
Edição.
Josephine, por seu lado, encantou o
presidente Richard Nixon. Foi admirada
por Margot Fonteyn e o Duque e a
Duquesa de Windsor ofereceram um
coquetel em sua honra.
Toda Noite, Josephine! é a verdadeira
história de amor de Jacqueline Susann.
É, enfim, um romance que vale a pena
ser lido.
orelhas:
TODA NOITE,
JOSEPHINE!
JACQUELINE SUSANN
Jacqueline Susann, cujo estilo cálido, pessoal e espirituoso tornou seus
dois últimos livros best-sellers internacionais, com um recorde mundial de
vendagem, escreve aqui a verdadeira e inédita história do mais doido
triângulo amoroso de toda Manhattan, — com a participação da única moça
— a quem Jacqueline Susann permitia partilhar o amor de seu marido. Essa
é a sua verdadeira história de amor.
É sabido que em qualquer relacionamento romântico um dos parceiros
domina o outro, e a autoridade de Josephine nunca foi colocada em dúvida.
Até o marido de Jackie, Irving Mansfield, viu-se obrigado a se render aos
encantos de Josie.
No dia em que Toda Noite, Josephine! foi editado, nasceu uma estrela!
Em seguida, aconteceu muito frequentemente que, enquanto Jackie
passeava com a estrela em Central Park, alguém se aproximasse
perguntando: “Essa é a Josephine?” Quando Jackie assentia, a estrela
começava a ficar contente. (Ela conseguiu enfrentar a fama com muita
categoria... sempre cumprimentou cachorros estranhos e pessoas estranhas
com muita amabilidade.) Seus fãs olhavam para ela mudos e admirados. Às
vezes um deles perguntava: “A senhora não se importa se eu a tocar?”
(Nesses casos ambas assentiam mais uma vez. Para Josephine era como
assinar um autógrafo. Na realidade, ela não gosta que cocem sua cabeça...
ela prefere que cocem sua barriga, mas não seria muito digno para uma
estrela.) Assim o fã coçava sua cabeça e dizia: “Imagine só, quando eu
voltar e contar aos meus amigos que encontrei a Josephine, e que a toquei
também! Oh, Josie, adorei seu livro!” Em seguida iam embora sem nem dar
bom dia.
Josephine estava convencida de que toda vez que Jacqueline Susann
sentava-se em frente à máquina de escrever, a coisa tinha alguma relação
com ela, foi assim com O Vale das Bolinhas e com A Máquina do Amor. E
pensando bem, acredito que Josephine está completamente certa. O livro
dela precisaria ter uma continuação e Jacqueline Susann tem a intenção de
escrevê-la qualquer dia desses.
JACQUELINE SUSANN
Autora de O Vale das Bolinhas e A Máquina do Amor
TODA NOITE, JOSEPHINE!
Tradução de
AGATHA MARIA AUERSPERG
HEMUS LIVRARIA-EDITORA LTDA.
TODA NOITE, JOSEPHINE!
JACQUELINE SUSANN
Título do original inglês:
EVERY NIGHT, JOSEPHINE!
© Copyright 1970 by Jacqueline Susann
Published by arrangement with Bantam Books, Inc.
Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela
HEMUS — Livraria Editora Ltda.
que se reserva a propriedade desta publicação
Capa:
Equipe HEMUS
HEMUS — LIVRARIA EDITORA LTDA.
Rua da Glória, 314 — Tels.: 278-6872 e 279-0520 São Paulo
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
ÍNDICE
1. Os fatos
2. Como aconteceu que fiquei gamada
3. A busca
4. Josie e eu
5. ... e com paizinho, somos três!
6. A experiência
7. Nossa pequena clínica domiciliar
8. Rudimentos de educação — e coisas tais
9. A gourmet
10. De como renunciei ao New York Times
11. O dia DD
12. Reunião de família
13. Calorias engordam!
14. O círculo familiar
15. Complicações na vida de uma morena maravilhosa
16. Sorria! Câmara! Ação!
17. O segundo chamado
18. Vovó
19. A cadela solteira e o sexo
20. O primo Tony
21. Isso é amizade!
22. Amizade é isso?
23. A vida começa aos quarenta?
24. Aquele sorriso fascinante
25. As coisas que estão na frente não são as mais importantes
26. A difícil escolha
27. A herdeira
28. A vida particular de Josephine
29. A tragédia
30. O dia em que o mundo parou
31. O campo de concentração
32. A manobra diplomática de Irving
33. PS
Epílogo
À Josephine,
a única moça a quem permito partilhar comigo o amor de meu marido.
1 OS FATOS
Acordei de madrugada e liguei o televisor. O olhar de Josephine dizia
claramente que eu devia estar biruta. Era 20 de fevereiro de 1962: o coronel
John Glenn foi lançado ao espaço e o país inteiro ficou segurando o fôlego
e batendo o recorde da insônia. Josephine lançou um olhar entediado à tela,
bocejou e voltou a dormir.
Josephine, de fato, sabe que tudo isso não passa de uma perda de
tempo, de dinheiro e de energias. Nenhum outro país poderia nos
prejudicar. Sermos donos do espaço não adianta nada. Estamos condenados
— breve seremos dominados pela nova Raça Superior. Josephine é um
espécime dessa Raça Superior — e pode prová-lo com documentos. A Raça
Superior está conquistando-nos devagar, e logo será a dona da Terra.
Assim, não é de se admirar que Josephine e os outros espécimes da Raça
Superior nos permitam brincar com mísseis e bombas atômicas sem
levantar protestos. Josephine sabe que para conquistar não basta ter
bombas e mísseis. A Raça Superior é dotada de inteligência superior. Eles
conquistam com amor e com carinho.
Nesse mesmo instante a Raça Superior está se infiltrando nas maiores
cidades dos Estados Unidos e da Europa. Alguns espécimes já se encontram
atrás da Cortina de Ferro.
Você pode encontrá-los nos gabinetes dos diplomatas, assistindo a
conferências ultrassecretas e em Washington corre o boato que uma
belezinha muito morena vive abertamente com um conhecido senador.
Por todos esses motivos. . . esqueça da corrida ao espaço. É tarde
demais. Já fomos conquistados. Eu, pelo menos, sei que fui. Quer saber
uma coisa engraçada? Não me importo. Nunca tentei reagir. Como todos os
outros que se encontram nas mesmas condições, vou andando por aí com
um sorriso meio idiota. Sou uma prisioneira voluntária de um pequeno
espécime da Raça Superior: o poodle.
É possível que você esteja acreditando que você poderá escapar! Você
detesta cachorros desde que se conhece por gente. Você não se deixa
conquistar pelo jeitinho e pelas artes. Você pensa que pode resistir a seus
encantos.
Você quer apostar?
Veja só o que aconteceu com meu marido, Irving Mansfield. Nasceu em
Brooklyn, é formado numa universidade, é um produtor de televisão
criativo, com uma imaginação brilhante e um extraordinário sucesso em
sua profissão. Durante a Segunda Guerra Mundial serviu na Força Aérea. Já
esteve envolvido em lutas corpo-a-corpo com agências de publicidade da
Madison Avenue, com patrocinadores produtores de cosméticos e até com a
União dos Músicos. Superou duas úlceras e cinco anos de “colaboração
estreita” com Arthur Godfrey. Você pode ver, por todas estas razões, que
Irving realmente é um lutador tipo “comando”, e que absolutamente não é
um sujeito que se deixaria dominar por um cachorrinho.
Pesquisando o passado de Irving e até sua infância, poder-se-ia ver que
nunca teve tendências a se deixar subjugar. Nunca teve um cachorro. Nunca
brincou alegremente com Fido ou Duque. Nunca conheceu uma pessoa na
vizinhança toda que fosse um frequentador habitual da exposição canina
de Westminster. Irving admite que na quadra em que morava de vez em
quando aparecia um cachorrinho faminto, mas nunca viu um poodle. Aliás,
se algo remotamente parecido com um poodle tivesse aparecido pelas
redondezas, a mãe dele provavelmente o teria capturado e assado.
Estes são os fatos a respeito de cachorros na infância de Irving. Quando
cresceu, mudou-se para Manhattan, foi para a Faculdade e tornou-se o
homem que é hoje; mas durante todo esse período ele não se lembra de ter
visto um cachorro por anos a fio. Por sinal, quando ia ao “21” ou ao
“Sardi’s”, via de vez em quando pequenos objetos peludos com coleiras
reluzentes entregues aos cuidados das guarda-roupeiras. Mas nunca sequer
imaginou que “aquilo” poderia ser um cachorro.
Minha própria infância também foi desprovida de cachorros. Criei-me
num subúrbio de Filadélfia e tive o azar de conhecer gurias cujos pais
deviam ser donos de poços de petróleo, ou talvez fossem membros da gang
de Al Capone, porque as pequenas drogas possuíam cavalinhos Shetland.
Daí vocês podem adivinhar o que é que eu queria. Lembro-me muito bem
que durante uma semana inteira tive xiliques e fiz cenas horríveis para
deixar bem claro que também queria um cavalinho. Consegui uma vitória
em termos: ganhei um gato persa.
Gostei muito do gato e dediquei-lhe duas semanas de minha vida. Um
belo dia, sem nenhum pré-aviso, saiu em perseguição a uma gata realmente
feia. Acho que a encontrou e que viveram felizes pelo resto da vida porque
nunca mais vi a cara de meu gato persa. Fiquei tão arrasada com essa
manifesta rejeição que dediquei todo meu potencial de carinho a um garoto
rechonchudo chamado Herman, que costumava olhar para mim como se eu
fosse a legítima Miss América. Foi assim que passei minha infância. Nunca
encontrei um cachorro ou gato perdido para levar para casa — só Herman.
Ou então algum substituto, com o mesmo fascínio.
Quando cheguei a Nova York eu era uma jovem candidata a atriz. Como
é notório, as jovens candidatas a atrizes durante os primeiros anos de
carreira dedicam mais tempo a caminhar do que a atuar nos palcos. Desde
nove da manhã até as cinco da tarde visitam todos os escritórios de todos
os agentes e produtores que existem na cidade.
Daí, nunca me passou pela cabeça que poderia dedicar algum tempo a
caminhar também com um cachorro. Quando finalmente comecei a me
afirmar em minha carreira e, em consequência, comecei a ter algum tempo
para me dedicar a um eventual cachorro, acabei conhecendo Irving.
Pronto: este é o resumo total de nossas duas vidas. Durante a infância
nenhum de nós dois ficou influenciado de qualquer maneira pela Raça. Não
tínhamos pontos fracos latentes. Éramos dois adultos — duas
personalidades pronunciadas, preocupados um com o outro, com carreiras
compatíveis, concordes em querer morar somente em hotéis, e vivendo
entre Nova York e a Califórnia. Tínhamos tudo, mesmo. Ou talvez
precisássemos de mais alguns armários, mais tempo para dormir e uma
cozinha um pouco maior. . .
Mas definitivamente, não estávamos precisando de um poodle.
2 COMO ACONTECEU QUE FIQUEI GAMADA
Gostaria poder dizer que aconteceu por acaso — ou que foi o destino.
Gostaria, por exemplo, de poder dizer que estava passeando e que, de
repente, reparei que um poodle perdido estava me seguindo. Mas, em
primeiro lugar, pelos lados de Central Park South é impossível encontrar
poodles perdidos. Em segundo lugar, se um poodle perdido fosse me seguir
até em casa, seria seguido imediatamente pelo seu dono histérico e pela
polícia. Por isso, lembre-se de que toda vez que um poodle está arrastando
um prisioneiro por uma guia, o prisioneiro foi quem colocou
voluntariamente seu pescoço no laço. Um poodle nunca vai à cata de
vítimas. São sempre as vítimas que andam à cata de poodles.
Quero oferecer um conselho a todos àqueles indivíduos convencidos
que ainda não partilham seus bens e possessões com um poodle — aliás,
que afirmam que isso nunca vai lhes acontecer. Vou dizer só duas palavras:
CUIDEM-SE!
A coisa acontece de forma sorrateira. Um incidente inócuo e sem
nenhuma importância pode desencadear o ataque e, de repente, pfft! Você é
tomado pelo estímulo, pela angústia, o desejo irrepressível de renunciar a
todos os prazeres mundanos e dedicar sua vida a criar um poodle.
Quando a coisa aconteceu comigo o dia parecia um dia qualquer.
Almocei com uma amiga querida, Dorothy Strelsin. À tardinha acompanhei-
a até o apartamento dela. Estava querendo me mostrar alguns quadros.
Quando abriu a porta, um pequeno objeto peludo foi ao encontro dela
como uma flecha e em seguida ficou pulando sobre suas patas traseiras,
dando evidentes sinais de estar totalmente extasiado.
— Este é Tinker — disse Dorothy, carinhosamente. Apanhou o bichinho
que parecia não pesar mais de três libras e mostrava estar completamente
fora de si pela alegria. Cobriu o rosto da dona com centenas de beijinhos e
fiquei parada durante cinco minutos, observando todas aquelas
desmedidas manifestações de carinho. Em seguida Dorothy depositou o
bichinho no chão e entramos na sala de estar com Tinker pulando em volta
das pernas dela, dando gritinhos para mostrar quanto estava feliz em vê-la
de novo. Alfred, o marido de Dorothy, levantou os olhos do jornal que
estava lendo e disse: — Olá, querida. Olá Jackie. — Logo, voltou a ler.
(Comportamento perfeitamente normal de qualquer marido.)
Por exemplo, quando volto para casa numa hora avançada e Irving está
assistindo ao noticiário pela TV, ele nem sequer desvia os olhos e os
ouvidos pelo tempo necessário para dizer: “Olá, querida.” Simplesmente
ignora minha presença até que Chet deseja boa noite a David, e David
responda: — Boa noite, Chet. — Só então é que meu marido sorri para mim
e fala: “Olá, querida”.
Entendam bem, não estou me queixando porque meu marido diz: “Olá,
querida”. Gosto muito quando ele fala assim. Aliás, acho simplesmente
glorioso ter um marido dentro de casa. Acontece porém que, depois de
assistir toda aquela cena entre Dorothy e Tinker, fiquei com vontade de ter
uma coisa assim também. Queria alguém que corresse para perto da porta
quando eu chegasse, que desse pulinhos, que cobrisse meu rosto com
beijinhos de adoração e que seguisse meus passos enquanto andava pelo
apartamento. O Irving, apesar de me amar muito, não é tipo de pulinhos e
beijinhos.
Comecei a refletir. Aliás, comecei a refletir a respeito de poodles. A
coisa chegou a um ponto tão agudo que toda vez que via um poodle, eu
parava para olhá-lo. Mais olhava para poodles, mais me convencia de um
fato: TODO poodle olha para seu dono com uma expressão de absoluta
idolatria. Você sabe qual é o olhar a que eu estou me referindo. É como um
jovem pintor olha para um Rembrandt ou um Tiziano. A expressão de Liz
Taylor quando olha para o Richard Burton. A maneira que Zsa-Zsa olha para
um casaco de vison. Pois é desse jeito que um poodle olha para seu amo.
Comecei a olhar as vitrinas das lojas que vendiam animais — mas não
era mais um olhar de espectadora. Era o olhar de uma possível freguesa.
Por que esconder a verdade? Eu estava gamada.
Até este momento, ainda não descobri como é que eles fazem. Talvez é
simplesmente hipnotismo de massas. Os poodles não acreditam que o
mundo será vítima de uma guerra atômica. Os poodles estão convencidos
de que “os engraçadinhos dominarão o mundo”.
De repente percebi que eu estava mesmo à procura de um poodle. E
isso não é nada fácil. Um poodle não é algo que você pode adquirir com o
mesmo desprendimento que ostenta quando compra um Rolls-Royce ou um
casaco de peles. Afinal, você terá que viver com ele. Note bem, eu disse
você terá que viver com ele: de fato, não é ele que vai viver com você.
Existiam, ainda por cima, dois impedimentos de tamanho gigante.
Impedimento número um:
Você não pode entrar no Woolworth’s e comprar um poodle da mesma
forma com que você compra um canário. Os poodles custam de cem até
seiscentos dólares.
Solução:
Posso renunciar à minha massagem semanal. A massagem custa dez
dólares. Durante um ano, posso economizar quinhentos e vinte dólares.
Isso praticamente equivale ao preço do poodle, e com os trocados posso
começar uma caderneta de poupança, uma espécie de aposentadoria para o
poodle para quando estiver velhote. Ainda por cima, minha aparência não
precisa ficar prejudicada pela falta da massagem. O poodle pode cuidar
disso. Penso nos longos e gloriosos passeios no Central Park, nas manhãs
frescas — subindo pelos morros, com o poodle correndo atrás dos pombos
e dos esquilos, e eu correndo atrás do poodle. Só pode dar certo. É tiro e
queda.
Impedimento número dois:
Irving.
Irving nunca gostou de cachorros. Entre todos os cachorros que Irving
não gosta, o poodle é aquele que ele menos gosta. Irving repetia isso toda
vez que encontrava um poodle. Preciso mencionar também que onde
vivemos existem praticamente mais poodles do que gente.
Solução:
Não existe nenhuma.
Vamos inventar uma na hora que for preciso. Talvez orações. Ou
pensamento positivo. Ou histeria.
Foi assim que no mês de março do ano 1954 comecei a procurar por um
membro da Raça Superior, que ainda não estava suspeitando isso, para
poder ficar com ele, cuidar dele e ser totalmente dele.
3 A BUSCA
O primeiro passo:
Aprender tudo a respeito da raça.
Como proceder:
Conversar demoradamente com donos de poodles. Eles gostam de falar
no assunto. (Aliás, eles quase não sabem falar em outros assuntos.)
Obstáculos:
Evitar falar com donos de cachorros de outra raça.
Exemplo:
Uma amiga, dona de um Yorkshire terrier, é capaz de explicar por horas
a fio que os poodles estão se tornando “por fora”. Um torcedor de
cachorros basset diz que é essa a única raça elegante e genial. Finalmente,
existe o individualista empedernido que é capaz de se por de joelhos para
implorar que você se lembre que só existe um ÚNICO cachorro que vale a
pena ter: um boxer.
Aí, você fica sentada olhando para o cachorro cheio de baba, o ÚNICO
objeto de todos os seus carinhos, enquanto o personagem explica que o
boxer é um “cachorro de companhia”. Nunca subestime a inteligência
daquele monstro produtor de saliva. Bem no meio da sentença, o bicho
entra em ação para convencer você. Com um ataque de surpresa pula em
seu colo e começa a cobrir seu rosto com beijos a ventosa, que deixam você
coberta de saliva. A única coisa que você consegue fazer — com jeitinho! —
é livrar sua boca e seu nariz de entre as mandíbulas molhadas,
concordando com entusiasmo, e dizendo que realmente o monstro é
fascinante. Olhe, você não tem escolha: ele é duas vezes maior do que você!
Você é praticamente obrigada a mentir. Faça promessas mil, diga que vai
pensar no assunto e veja onde está a mais próxima saída. Faça um
agradinho na cabeça do monstro, saia pelo portão — e corra!
Acontece que, mesmo limitando as conversas estritamente a donos de
poodles, o angu pode dar caroços.
Você recebe uma quantidade excessiva de palpites. Todo mundo sabe
tudo. Todo mundo conhece a ÚNICA criação de poodles em Westchester, ou
Darien, ou então no interior do Estado de Nova York. E ainda por cima o
poodle de QUALQUER UM é uma verdadeira maravilha de puríssima raça,
com toneladas de documentos que provam que ele descende do Champion
Petite Cherie. Logicamente, trata-se do mesmíssimo Champion Petite Cherie
que ganhou a medalha “Melhor da Exposição” na Inglaterra, na França e em
Berlim Ocidental.
Cá entre nós, se todos estes documentos são legítimos, esse tal
Champion Petite Cherie é tão formidável que o rei Farouk do Egito, com
toda sua fama em comparação, não passa de uma fichinha, tendo ainda por
cima o garbo e o fascínio do finado Errol Flynn e os hormônios de Charlie
Chaplin.
É, portanto, evidente que se você é uma pessoa inteligente, você não vai
prestar ouvidos a ninguém. Tudo o que você tem a fazer é visualizar
mentalmente o tipo de poodle que você quer, e depois sair e arrumá-lo.
Pessoalmente, prestei ouvido a tudo. Além disso, estudei demoradamente
todos os tamanhos, todas as cores e todas as formas.
O lugar mais apropriado para esse tipo de estudo é a Fifth Avenue, onde
você pode encontrar até UMA mulher ostentando ao mesmo tempo TRÊS
poodles, presos na mesma guia múltipla, de couro italiano importado. (Hoje
em dia parece mesmo que tudo é italiano, menos os poodles, que são
franceses.)
Cheguei à minha conclusão usando um processo eliminatório.
O tamanho standard ou o tamanho médio seriam grandes demais. Um
cachorro nesses tamanhos seria excessivo numa cama de casal.
O tamanho “toy” pode ser adorável. Está se lembrando de Wilbur, o
campeão “toy” branco que ganhou a medalha de “Melhor da Exposição” no
Madison Square Garden? Pois é. Infelizmente nem todos os “toy” se
parecem com o Wilbur. Pelo menos, nenhum dos “toys” que vi nas
avenidas. Os mais novinhos pareciam doentes da tireóide, e os mais velhos
se pareciam com o Peter Lorre. Assim, o único tamanho que achei
interessante foi o miniatura. Agora só me faltava escolher a cor.
Tomei uma decisão imediata no instante que vi Tallulah. Estava sentada
no colo do mensageiro, no saguão do hotel, lambendo a mão dele enquanto
o rapaz acariciava sua orelha. Tallulah era branca como a neve, com a
barbicha preta e uma orelha também preta. Era assim mesmo que eu queria
meu poodle! Com características pessoais, sem ser vistoso.
Pedi ao mensageiro para descobrir onde Tallulah tinha sido comprada.
O moço olhou para mim sem disfarçar sua reprovação. “Senhora
Mansfield, Tallulah é uma cachorrinha engraçada e tudo mais. Mas a
senhora não vai querer um cachorro igual a ela. É uma pari.”
Eu não fazia ideia o que fosse “pari”, mas pela expressão do rapaz devia
ser algo socialmente inaceitável. E é isso mesmo. Esnobismo!
Vocês estavam sabendo que entre os poodles existe discriminação?
Acho uma coisa realmente chocante. Por outro lado quem sou eu para
lutar contra o Kennel Clube Americano? (O Kennel Clube Americano não
permite que um cachorro com pelagem “pari” seja registrado ou exibido
numa exposição.) Um poodle deve ser todo preto, ou todo branco, ou todo
marrom, ou todo cinza, ou todo chocolate, ou todo abricó — ou seja, todo
de uma só cor, qualquer que ela seja.
Acredito que em sua origem os poodles deviam ser brancos, pretos e
talvez marrons. Essas são três cores simples, básicas. (Afinal, vocês acham
que algum vison imaginou que qualquer dia ia se tornar cor de alfazema?)
Os poodles deviam ser da mesma opinião. Ficaram brancos, ou pretos
ou marrons até que um criador qualquer, dotado de imaginação
desordenada, decidiu subverter a ordem das coisas. Casou um poodle
branco com um preto e pronto! Deu filhotes cinza. Depois cruzou branco
com cinza e pronto! Já adivinharam: deu cinza prata. Um branco com
marrom deu chocolate. Era lógico que, numa altura qualquer dos
acontecimentos, desse também uma gracinha branca com uma orelha
marrom. Mas valeu o esforço, porque os irmãos eram cor abricó. A gracinha
branca com a orelha marrom teve que ser sacrificada. Com isso não quero
dizer que foi afogada logo quando nasceu, ou então abandonada mais tarde
no deserto. Não aconteceu nada tão simples. O criador, de qualquer forma,
podia ganhar algum dinheiro com o bichinho. Foi vendido, mas barrado
como membro do Kennel Clube Americano. Agora, você nem imagina
quanto isso pode deixar um poodle neurótico! Não adianta o dono esconder
a verdade: algum dia um poodle boquirroto encontrado no parque vai
dizer-lhe como estão as coisas.
Naturalmente existe uma cruzada contra isso e os abnegados
representantes se reúnem secretamente para manifestar sua indignação.
Escrevem petições ao Congresso requerendo igualdade para os “pari”. Até
agora, porém, o Kennel Clube Americano não deu sinal de querer aceitar a
integração.
Também é necessário lembrar que é muito difícil achar um poodle
“pari”. As lojas que vendem animais quase nunca mostram um.
Todas essas considerações eliminaram de maneira definitiva um
cachorrinho engraçado do tipo “pari.”
Não queria absolutamente um cachorro preto. Por outro lado, branco é
bonito mas dá muito trabalho. Toda vez que via um cachorro marrom eu
não sentia nenhuma “mensagem”. Raciocinei comigo mesma que se eu
tinha que ter um poodle, tanto valia escolher uma das cores mais
esquisitas: abricó, prata, bege ou, quem sabe, cor da maravilha.
Tomei minha decisão final a esse respeito quando vi o Dipper. Era
maravilhoso, super bem cuidado e cor de prata. Sua dona, Edyte Kutlow,
contou-me que a mãe de Dipper ia ter filhotes dali a sete meses, e se eu
quisesse, poderia me inscrever na lista de candidatos. Acontece que sou do
tipo impulsivo. Achei que não poderia me tornar um nome numa lista de
candidatos, enquanto ficava esperando sentada que nascessem alguns
pequenos poodles. Tinha certeza que em algum lugar, naquele mesmo
instante, existia um poodle esperando para ser descoberto por mim. Estava
decidida a achá-lo!
Evidentemente, só poderia achá-lo. Calculava que seria bastante difícil
convencer Irving a viver com um poodle: daí, teria que ser um macho,
desses que se tornam solteirões convictos, e que seria para Irving uma
espécie de filho e companheiro. De jeito nenhum poderia ser uma menina
poodle, que faria dele um vovô ano após ano.
4 JOSIE E EU
Vendo, pois, o Dipper e tomando minha decisão a respeito do tamanho e
cor, pensei que o resto seria fácil. Só me restaria sair com um cheque
pronto numa das mãos, para voltar com um poodle na outra.
Mas as coisas não são assim tão fáceis. Os poodles exibidos nas lojas
que vendem animais são cachorros para “turistas”. As pessoas que estão
“por dentro” sabem que um poodle só pode ser comprado de um criador de
poodles, numa criação conhecida.
Apanhei minha listinha de endereços, sentei perto do telefone e comecei
a fazer meus chamados em ordem alfabética. O primeiro nome era uma
senhora Addison, em Westchester. Expliquei à Senhora Addison que era
minha intenção visitá-la naquela tarde e que, por favor, preparasse alguns
poodles machos cor cinza prata para que pudesse vê-los.
A Senhora Addison disse: — Um minuto, por favor.
Pareceu-me que a Senhora Addison tivesse a intenção de me examinar
antes que eu pudesse examinar os poodles. Nada de extraordinário. Só
algumas perguntinhas de rotina. Por exemplo, qual Senhora Mansfield era
eu? Quem foi que me recomendou o endereço? Qual era minha religião?
Qual era minha opinião a respeito do senador Barry Goldwater?
Pareceu-me que minhas respostas foram satisfatórias até o momento em
que ela perguntou se tinha intenção de exibir o cachorro.
Respondi que logicamente ia exibir o cachorro a todos os meus amigos.
Não tinha intenção nenhuma de escondê-lo dentro de um armário!
A voz da Senhora Addison tornou-se um pouco seca. Com o tom que em
geral se usa com uma débil mental, ela explicou: “Queria saber se a senhora
pretende exibir o cachorro em shows”?
Senti-me lisonjeada, pois imaginei que a Senhora Addison devia ter-me
visto na televisão e devia ser uma fã minha. Não conseguia, porém,
entender essa mania de querer aparecer! Afinal, seria eu quem devia decidir
se meu poodle tinha ou não talento artístico. Assim respondi que o poodle
ia ser exibido de tempos em tempos junto comigo, mas que, por enquanto,
não estava preparada a comprar um cachorro e entregar-lhe ao mesmo
tempo um contrato assinado.
A Senhora Addison disse que não estava se referindo a shows de
televisão e acrescentou essa frase histórica: — O senhor Addison e eu não
pretendemos ter um televisor em nossa casa, nunca! Até nossos filhos
acham que é uma perda de tempo e um tédio total!
Em seguida, a notável criatura explicou que estava se referindo a
manifestações esportivas, ou seja, shows de cachorros.
Retruquei com satisfação que o último show de cachorros que assisti foi
quando Lassie apareceu na televisão, e que não tinha curiosidade nenhuma
de ver isso ou coisa parecida mais uma vez.
Tive a impressão — mesmo pelo telefone — que a senhora Addison
estivesse para ter um ataque alérgico. A voz dela pareceu um gargarejo
abafado quando respondeu furiosa: — Se a senhora não tem intenção de
exibir o cachorro, por que a senhora faz questão de ter um exemplar de
nossa criação?
Quando expliquei: — Só para ter um cachorrinho para companhia — a
Senhora Addison não respondeu.
Desligara o telefone.
Nesse caso. . . voltei a discar para outro nome da lista.
Falei com todos os As e os Bes da minha lista com os mesmos
resultados. Quando cheguei aos nomes que começavam por C, uma
senhorita Cosgrove respondeu de maneira bastante rude, aconselhando-me
a comprar um canário, já que eu estava querendo um bichinho para me
fazer companhia.
Já estava a ponto de ficar neurótica e ter chiliques quando finalmente
liguei para o senhor Zussman. Os poodles daquela criação também deviam
ser “exibidos”. Mas o senhor Zussman era uma pessoa muito amável, e
chegou até a admitir que havia um televisor em sua casa. Depois tentou me
convencer que levar cachorros a exposições era bastante divertido. E
bastante simples. Fiquei ouvindo, aliás o que mais poderia fazer? Era o
último nome da minha listinha.
Parece que as coisas se passam da seguinte forma: em primeiro lugar
precisa registrar o cachorro no Kennel Clube Americano. (Não adianta,
qualquer coisa que eu queira fazer, esse Clube sempre se mete no meu
caminho.) Na hora do registro precisa mandar ao Clube vários nomes, isso
porque se por acaso já existe um cachorro registrado com o nome do meu,
ele terá que ser registrado com outro, e não com o que eu escolhi.
(Até aqui, nada demais: afinal sem o e os sindicatos de atores, Actor’s
Equity e AFTRA, impõem o mesmo regulamento.)
Em seguida, precisava levar o cachorro para a escola de treinamento. O
senhor Zussman explicou que o cachorro teria que aprender a caminhar.
(Todos aqueles cachorros que a gente encontra batendo alegremente
suas perninhas na rua só pensam que estão caminhando. São bem
desajeitados, comparados a um cachorro que aprendeu como andar.)
O rabinho deve ficar levantado num ângulo de tantos graus. A cabeça,
erguida num outro ângulo. Existem várias maneiras de andar — o passo, o
trote — e o treinamento dura normalmente seis meses.
Fiquei ouvindo e encorajando o senhor Zussman com expressões tipo:
“Não diga!” e “Mas que interessante!’’ O que ele estava me dizendo era
muito parecido com o que se lê nos anúncios de cursos para manequins.
Pois então, eu teria um poodle de alta moda.
O senhor Zussman encerrou a explicação com uma sentença que me
deixou arrasada:
— Naturalmente a senhora terá que fazer o curso junto com o cachorro.
Francamente, nunca tinha pensado que o cachorro iria para a escola
sozinho, mas por outro lado também não imaginara que teria que assistir
às aulas. A escola não tinha um serviço de ônibus escolares?
O senhor Zussman disse: — Mas eles terão que ensinar também a
senhora, como andar!
Era demais!
Expliquei ao senhor Zussman que talvez minha maneira de caminhar
não fosse idêntica à de Brigitte Bardot, mas assim mesmo até agora tinha
conseguido tomar parte em vários espetáculos na Broadway sem esbarrar
nos móveis e nos cenários. E quando tomava parte nos júris da televisão eu
ficava sentada, mas sempre tinha que entrar e sair caminhando.
Já disse antes que o senhor Zussman era amável e paciente. Explicou
que teria que aprender uma maneira diferente de andar, específica de
exibições caninas.
Moral, o cachorro não se exibe sozinho. Ele é que é a vedeta, mas do
outro lado da guia está você, trotando com ele num papel secundário.
Afinal, perguntou o senhor Zussman, não seria lamentável se o cachorro
ficasse caminhando como um duque e não conseguisse ganhar o prêmio
porque do outro lado da guia havia uma pessoa andando feito caipira, não é
mesmo? Por outro lado, era possível conseguir um treinador que exibisse o
cachorro, naturalmente contra honorários. . .
Nunca é aconselhável me desafiar. Afinal, tinha caminhado em todos os
shows da primeira fase de Milton Berle, e conseguido chegar a me impor até
nos shows ao vivo: uma bobagem como uma exibição de cachorros não
poderia me assustar!
Sempre é melhor encontrar soluções quando as dificuldades se
apresentam, e de qualquer forma, as coisas mais importantes deviam ser
resolvidas primeiro. Assim expliquei ao senhor Zussman que ia pegar meu
carro na tarde seguinte, para ver seus cachorros. Lembrei-me de
acrescentar: — Gostaria de ver um poodle com barbicha e bigodes. Não
gosto nada daqueles focinhos barbeados.
Foi a sentença que não devia ter pronunciado.
O senhor Zussman ficou realmente confuso. — Barbicha e bigodes? A
senhora deve estar se referindo ao corte holandês?
Respondi que era isso mesmo — com os ombros bem cheios e a parte
traseira também.
O senhor Zussman disse: — Esqueça.
— Esquecer o que?
— O corte holandês. Um cachorro de exposição deve ter o corte próprio
para exposições.
Perguntei como era.
O senhor Zussman explicou.
Eu não devia ter perguntado.
Já tinha reparado nesse tipo de corte, em alguns poucos coitados
poodles, completamente neuróticos. Aquele tipo de cachorro que você vê,
para e pergunta: “Meu Deus, o que é que é isso?” A cabeça tem uma vasta
juba de leão, envolvendo um focinho pontudo e raspado. O corpo é
desprovido de pelos da cintura para baixo, com bolotas ridículas
enfeitando o rabo e as patas.
Enquanto o sol desaparecia atrás dos arranha-céus de Nova York,
despedi-me do senhor Zussman pelo telefone.
Eu não estava desanimada. Estava totalmente histérica.
Telefonei a todos os “amigos” que tinham contribuído com endereços
para a minha listinha e perguntei como era possível que seus cachorros
tivessem um corte “holandês’’ se tinham sido comprados naquelas tais
criações.
Recebi as mais diferentes desculpas. Alguns explicaram que seus
cachorros não foram realmente comprados naquelas criações, mas eram os
filhos de cachorros daquelas criações. Outros explicaram que tinham se
sujeitado à escola de treinamento, para exibir os cachorros. Tinham até
documentos que provavam que os cachorros eram autênticos campeões. Só
que não existia uma lei que estabelecesse que o cachorro não podia se
aposentar após se tornar campeão. Quando eram aposentados, podiam
deixar crescer o pelo e andar por aí, à paisana.
Cheguei à conclusão de que não havia outra alternativa que esperar o
novo romance da poodle conhecida de Edythe Kutlow.
Aconteceu porém que naquela época Joyce Mathews (a senhora Billy
Rose) voltou da Europa. E Joyce tinha um poodle, um presente de Billy no
ano anterior. Naquela época eu ainda não estava gamada em poodles, e
quando vi aquela bolinha fofa, fiz-lhe um agradinho na cabeça e vi quando
saía do quarto, sem mais nada.
Achei a chegada de Joyce realmente um golpe de sorte. O poodle dela já
devia estar adulto. Ela poderia fornecer-me todas as respostas. Ainda por
cima, eu não me lembrava ter ouvido que ela ou Billy tivessem assistido a
um curso de treinamento.
A mais, se Joyce tinha um poodle, só podia ser um ótimo poodle. Todo
mundo sabe que Billy Rose é um homem que sempre escolhe o melhor do
melhor. Ele possui a maior residência em Nova York. Quando quer tomar
banho de sol durante o inverno ele não vai para a Flórida. Para esse fim,
comprou uma ilha nas índias Ocidentais britânicas. E sua casa de campo
para o verão também não é uma chácara qualquer: Billy comprou uma ilha
inteira.
Todo mundo sabe que Billy é um homem de excepcional bom gosto. Se
você por acaso descobre um Van Gogh numa parede da casa dele você pode
jurar que não se trata de uma cópia de setenta centavos. E se você encontra
um arranhão na prataria Henrique VIII, o arranhão existe porque Henrique
era muito descuidado — e não o Billy.
Ele só se locomove de um ponto ao outro num Rolls-Royce.
Casou-se com Joyce Mathews, uma das mais lindas mulheres do mundo.
Isso também foi feito em grande estilo. Casou-se com Joyce duas vezes
(pelo menos até agora).
Aqui estava minha solução. Quem mais poderia me dar melhores
palpites em matéria de poodles? Billy nunca escolheria um poodle que não
fosse à altura de seu estilo de vida realmente suntuoso.
Billy, ainda por cima, não é o tipo de homem que assina compromissos
mil na hora de comprar um poodle. Poderia jurar que conseguiria levar
vantagem até com a senhora Addison e toda a turma dela, a qualquer hora.
Liguei logo para Joyce. Ela me ouviu a respeito da mulher em
Westchester sem interromper. Engraçado!
Joyce sabia tudo a respeito dela. Explicou que a mulher em Westchester
era uma verdadeira boneca quando comparada com outra mulher em
Wilton, que era uma verdadeira megera. E recomendou-me também nunca
sequer tentar falar com uma certa senhora Dodge-Higgens em Rye.
Joyce também tivera a mesma desagradável experiência pela qual eu
passara. Por esse motivo, decidira entregar o assunto a Billy. Afinal o Billy,
nos anos vinte, tinha buates conhecidas, e por motivos profissionais teve
que se defrontar frequentemente com personagens famosos cujas façanhas
agora aparecem nos seriados dos “Intocáveis”. Apesar desses contatos, Billy
conseguiu se manter inteiro e vivo. Agora não vá pensar que o Billy só tem
músculos: o Billy se dá muito bem com todo aquele pessoal das Galerias
Parke-Bernet.
Achei que isso era um ponto a favor em matéria de aquisição de poodle.
E Billy resolveu o caso de maneira brilhante. Uma hora após receber a
encomenda de Joyce, Billy voltou para casa com o poodle.
Como foi que isso aconteceu? Muito simples. Billy entrou numa loja que
vendia animais e simplesmente comprou um.
Nunca precisou das teorias da senhora Addison ou de instruções
detalhadas do Kennel Clube Americano. Vamos ser francos! Um produtor
que inventou as “Aquacades” e que já reformou teatros inteiros, mansões e
ilhas, deve necessariamente ter o golpe de vista de um artista. Deve
simplesmente saber escolher o melhor poodle entre todos. Perguntei se
Billy estaria disposto a me acompanhar na mesma loja e me ajudar a
escolher meu poodle.
Joyce disse: — Claro que sim, se você insiste —. Percebi que faltava algo
em seu tom. Talvez um pouco de entusiasmo.
Disse-lhe que pretendia ver aquele famoso bichinho escolhido pelo Billy,
pois agora já devia estar adulto. Ela disse para eu ir já. Ela e o escolhido por
Billy iam ficar em casa o dia todo.
Quando cheguei encontrei Joyce em seu quarto, desmanchando as
malas. Não havia sinal do poodle. Joyce pediu à empregada para trazê-lo.
A empregada se assustou. — Eu? — perguntou.
Joyce assentiu com a cabeça. A moça saiu com ar preocupado. Perguntei
qual era o nome do bichinho. Joyce explicou que ainda não tinha pensado
num nome para ele.
— Como assim? Já faz mais de um ano!
Joyce disse: — O nome deve ser algo que combina com o bicho. Talvez
você consiga encontrar um. Eu ainda não consegui.
A esse ponto chegou a empregada com algo que se parecia com um
jacaré. A “coisa” pulou rapidamente sobre a mesa, só quebrando um abajur
e a mesinha de cabeceira.
— Ele cresceu bastante, não é mesmo? — perguntei polidamente.
Joyce fez um aceno com a cabeça. Os documentos do animal declaravam
que era um poodle miniatura de raça pura. Mas o bicho devia ter opiniões
muito pessoais a respeito de si mesmo, e por isso cresceu. E como cresceu!
Cresceu por segmentos. A cabeça era do tamanho padrão, o corpo era
tamanho médio, e as patas eram de basset. Ainda por cima, a preocupação
de aumentar de tamanho possivelmente fê-lo esquecer da pelagem, porque
quase não tinha pelos. Havia uns magros chumacinhos que talvez fossem
ótimos para um Airedale — mas num poodle eram bem esquisitos!
— Billy se recusa em admitir ter errado — explicou Joyce. — Ele diz que
isso é só uma fase da adolescência e que qualquer dia desses o bicho vai se
transformar num belíssimo poodle. (A voz de Joyce mostrava que não
estava satisfeita com a explicação do marido.)
— Tem olhos muito bonitos. (Precisava dizer alguma coisa, e o bicho
estava me fitando.)
— Que nome você escolheria para ele? — perguntou Joyce. — Fofinho?
ou talvez Gracinha?
O cachorro mostrou que estava chocado e se enfiou debaixo da cama.
Sugeri encontrarmos um bom nome francês, desses bem característicos.
Quem sabe, o nome de um personagem conhecido da literatura francesa.
Era lógico que Joyce dissesse: — Quasímodo.
Expliquei que o bicho me lembrava muito mais Toulouse-Lautrec. Tinha
olhos muito parecidos com os de José Ferrer.
Pela expressão de Joyce vi logo que meu palpite dera certo. “Toulouse”,
ela disse como se estivesse experimentando o nome. Depois levantou-se
com um pulo. “Toulouse, onde está você? Agora já tem um nome!”
O bicho que ganhara um nome estava esticado debaixo da cama,
comendo alegremente uma de minhas luvas de pelica. Tentei recuperar a
luva mas levei uma rosnada.
— Não se preocupe — disse Joyce. — Não vai lhe fazer mal nenhum. O
Toulouse tem um estômago de ferro.
Percebi na voz de Joyce um certo orgulho maternal. — E nunca teve
todas aquelas complicações infantis dos outros poodles — continuou. —
Quando fraturou a perna, não ficou inativo apesar do gesso. Conseguiu
acabar com a mobília inteira de um quarto.
Compreendi que apesar de ser um monstrinho, Toulouse era o cachorro
dela, e que ela gostava dele. Todas aquelas brincadeiras a respeito de sua
aparência eram simplesmente um disfarce. Joyce queria acreditar que
qualquer dia o bicho se tornaria igual a outros poodles. Por isso, como
éramos boas amigas, comecei a mentir descaradamente e disse que o
bichinho era realmente simpático quando visto mais de perto. Tinha um
certo charme, e naturalmente certas feições eram extraordinárias, quando
observadas com mais atenção.
Percebi logo que tinha exagerado.
Joyce olhou para mim e decidiu desabafar. Ela gostava do monstrinho,
claro que gostava, mas quantas humilhações por causa dele! Toda vez que
saíam juntos. . . era sempre a mesma história. As pessoas paravam,
olhavam estupefatas para Toulouse, depois para Joyce e perguntavam: — O
que é isso? — E depois, o vexame no “21”. No grande salão que serve de
sala de espera há sempre cinco ou seis poodles, cheios de fitinhas,
amarrados em cadeiras, esperando pelos donos que estão almoçando ou
jantando. Um belo dia Joyce levou seu espécime para o “21”. Percebeu o
mesmo olhar estarrecido e ouviu a pergunta de rotina: — O que é isso? —
só que no “21” a pergunta foi seguida por uma expressão de desprezo.
Joyce respondeu com um olhar ainda mais carregado de desprezo, com
uma coragem que na realidade não sentia, e o maitre se deu por vencido.
Aliás, não havia alternativa: teve que aceitar o espécime e amarrá-lo numa
cadeira, como se fosse um legítimo poodle.
Joyce, porém, conhece muito bem as diferenças que existem entre as
castas sociais — e sabe qual é o lado certo e o lado errado do El Morocco. E
não pôde fazer nada quando viu que o maitre amarrava o Toulouse no
fundo da sala, e não na frente onde estavam os outros poodles elegantes.
Apesar de ter cadeiras vazias na frente!
Senti tanta pena por Joyce e Toulouse que reagi como qualquer amiga
íntima reagiria. Fiz cafuné no Toulouse e dei-lhe a segunda luva, de
sobremesa. Só que meus problemas ainda não estavam resolvidos. Ainda
não tinha meu poodle.
Joyce achou que eu devia ir até uma loja de animais e escolher um
poodle com um ano de idade. Assim poderia ter certeza absoluta — seria
um cachorro já adulto e crescido, e não reservaria surpresas.
Não gostei da ideia. Todo mundo sabe que quando se adota uma criança
é melhor pegar uma que não tenha mais de cinco ou seis anos. Assim ela se
torna realmente nossa criança. Ela é até capaz de crescer e acabar se
parecendo com você, ou com seu marido, ou quem sabe, até com a tia
Emma que está podre de rica.
A gente, porém, sempre está correndo um risco. Todos os nenês nascem
com narizinhos que parecem um botão e sem dentes. Mas não faz mal se
em seguida o nariz torna-se idêntico ao do Cyrano de Bergerac. Existem
numerosos cirurgiões plásticos. E se os dentes crescem muito e ficam
parecidos a teclas de piano, existem dentistas que colocam aparelhos ou
jaquetas. Hoje em dia qualquer pessoa pode se tornar bonita. Às vezes até
nossos próprios filhos carnais podem ter traços desagradáveis, parecidos
aos de um primo feio de nosso marido. Todo mundo corre os mesmos
riscos com um nenê, porque as gracinhas crescem e se tornam gente
grande. Mas ninguém fica esperando até que um nenê festeje seu vigésimo
quinto aniversário antes de adotá-lo.
Na minha opinião, com os poodles as coisas eram bem parecidas.
Precisava me arriscar. Lógico, não esperava que fosse parecido comigo ou
com o Irving. Só estava torcendo para que se parecesse com um poodle.
Achei que não podia fazer mal nenhum dar uma espiadinha numa loja
de animais. Após ver o Toulouse, estava prevenida e não pretendia ceder a
impulsos irracionais. Quem sabe, poderia até me sujeitar a todas as
imposições da criação de Westchester e ir para a escola de treinamento!
Pelo menos, teria um poodle que ficaria nas cadeiras de frente do “21”!
Considerando que “só queria dar uma olhada”, entrei na primeira loja de
animais que encontrei. A loja já não existe mais, mas naquele dia a vitrina
estava abarrotada de filhotes de poodle.
Com só três meses nenhum poodle tem cara de poodle. Os filhotes são
todos umas adoráveis bolinhas fofas. E todos, sem exceção, parecem estar
convencidos de se tornarem poodles impecáveis quando adultos.
Lembrando mentalmente a imagem de Toulouse, consegui não me deixar
fascinar por nenhuma das adoráveis bolinhas fofas. Disse ao dono da loja
que estava interessada especialmente em machos-miniatura, cor cinza
prata. O homem apanhou alguns filhotes pretos e colocou-os no chão.
Disse-lhe que só me interessaria por cinza prata. Ali, o homem partiu o
pelo das bolotas e fiquei estupefata vendo que realmente já se via uma
polegada de pelo cinza perto do couro. Era como uma loira que precisa de
um retoque — mas ao contrário. O homem explicou que todos os poodles
prata nascem pretos.
Gostei de todos, mas não havia nenhum entre eles que me inspirasse
simpatia de maneira especial. (Estava convencida que sentiria algo especial
quando fosse encontrar o poodle certo — você sabe o que quero dizer:
aquela comunicação misteriosa que ambos sentiríamos no instante do
encontro.)
Expliquei tudo isso ao dono da loja. Respondeu que centenas de poodles
já tinham passado pela loja sem que ele percebesse alguma mensagem
especial. E que olhava bem fundo nos olhos dos próprios, todos os dias.
Além disso, achou que era bobagem. As pessoas compram poodles pela sua
forma e por causa da boa linhagem, e mais adiante, após um certo período
de convivência, sem dúvida haveria uma mensagem.
Mostrou-me as papeladas. Impressionante, mesmo. Lembrei-me dos
documentos muito legítimos de Toulouse e comecei a pensar na maneira de
sair da loja. Aproximei-me da parede cheia de gaiolinhas e disse que todos
os filhotes eram realmente umas gracinhas, mas achava preferível ir para
casa e refletir melhor, após uma boa noite de sono.
Ele mostrou um dos filhotes e começou a escovar seu pelo. Respondi
que realmente era divino, mas assim mesmo queria pensar mais no
assunto. O homem avisou que talvez no dia seguinte, quando eu voltasse, o
bichinho poderia estar vendido.
De repente algo que estava numa gaiola esticou uma patinha e tocou em
meu ombro. Virei-me, e a patinha saiu mais uma vez de entre as grades e
deu-me umas batidinhas jocosas. Perguntei ao homem o que era. Ele disse
que era um poodle. Pedi que o apanhasse para eu vê-lo.
O homem respondeu que seria bobagem, porque aquele poodle era a
síntese do que eu não queria. Era preto mesmo. A mãe era miniatura e o pai
era “toy”. Por isso, ficaria menor que um miniatura normal, mas grande
demais para ser classificado “toy”. Ainda por cima, era uma fêmea. Nem
adiantava olhar para ela. Continuou a escovar o filhote que me oferecera e
voltou a frisar seus pontos positivos com energia renovada.
Pedi que tirasse da gaiola a “síntese de tudo o que eu não queria”. Fingiu
não ter ouvido e abaixou rapidamente o preço do cachorro que estava
escovando. Insisti e mostrei a gaiola na parede. Encolheu os ombros e abriu
a gaiola, explicando que era uma perda de tempo — eu nunca ia querer
aquele poodle.
Respondi que tinha a impressão que o poodle me queria.
O homem colocou a bolinha no chão, junto aos outros filhotes que já
tinham o dobro de seu tamanho.
A bolinha correu e apanhou rápido um brinquedo com que estavam se
divertindo. Os três “cinzas” avançaram com olhares ameaçadores. A
bolinha não se importou, ficou segurando o brinquedo com ar de desafio e
levantou uma patinha. Os três filhotes maiores se afastaram.
Aí, a bolinha olhou para mim, para ver se eu aprovava, e jogou o
brinquedo perto de meu pé. Apanhei a bolinha nos braços e ela logo
começou a lamber meu rosto com sua linguinha áspera.
O homem explicou que ainda era muito cedo para ver como seria o
cachorro adulto. Estava com apenas oito semanas. Poderia ainda
transformar-se num bicho com linhas erradas. A imagem de Toulouse
passou pela minha mente, em technicolor.
O homem, afinal, estava explicando as coisas como elas eram, eu disse a
mim mesma. Uma bolinha fofa não pára de crescer. Não devia
absolutamente me deixar influenciar por alguns beijinhos daquela
linguinha cor-de-rosa. Eu não queria um poodle preto. Absolutamente não
queria uma fêmea. Pensei em tudo isso, convenci-me de que estava certa
em pensar dessa forma e disse: — Vou levar essa bolinha aqui.
O homem de repente ficou com uma cara muito sem jeito. Parecia não
estar à vontade. Explicou que para o fim da semana teria mais outros
filhotes cinza prata, excepcionalmente bonitos. Por que não ia esperar até
vê-los? Esticou as mãos para apanhar a bolinha que estava em meus braços.
Dei um passo para trás. Ela me deu um outro beijinho meio de lado.
Perguntei pelo preço.
A quantia anunciada pelo homem era mais ou menos equivalente ao
aluguel de um ano inteiro. Disse que achava que o preço era absolutamente
exagerado. Ele concordou comigo e esticou as mãos mais uma vez. Eu
continuei segurando a bolinha. A bolinha deu-me mais um rápido beijinho.
O homem e eu olhamos um para o outro.
Ele disse: — Minha senhora, não tem etiqueta de preço no pescoço dessa
cachorrinha. Eu não a ofereci. A senhora paga quanto eu pedi, ou então
coloque-a dentro da gaiola.
Eu retruquei: — Mas isso é um preço exorbitante para uma fêmea-
miniatura!
O homem mais uma vez concordou comigo. Em seguida, contou-me a
verdade. Ele não queria vender aquela cachorrinha. Todos os cachorros
daquela linhagem tinham um pelo magnífico. Queria ficar com ela, para
criação. Os filhotes poderiam alcançar ótimos preços, especialmente se o
pai fosse um toy: ali os filhotes também seriam verdadeiros “toys”, com
uma pelagem extraordinária.
Olhei para o nenê que estava, em meus braços e cuja vida parecia estar
já marcada para ser uma espécie de rainha de bordel, condenada a produzir
filhotes em quantidades industriais para esse horrível mercador de carne e
pelo. Vi que não teria escolha: precisava salvar esse anjo inocente.
Comecei a regatear como uma daquelas ruidosas mulheres francesas no
“marché aux puces”. O homem também estava regateando furiosamente. Os
cachorros começaram a latir e as pessoas começaram a parar, para apreciar
melhor aquela cena toda. Mas não havia mais nada a fazer. Eu não tinha
dinheiro suficiente, e ao mesmo tempo estava decidida a não permitir que
esse pequeno anjo inocente fosse levado à vida de perdição de uma escrava
branca.
O homem tirou cinquenta dólares do preço. Nessa altura dos
acontecimentos até os canários já estavam fazendo uma algazarra infernal.
Assim mesmo, o preço ainda superava de vinte e cinco dólares o que eu
poderia pagar. Fiquei firme e continuei regateando.
Ele retrucou que tinha o direito de pedir qualquer preço por um animal
com uma pelagem tão extraordinária. Ao mesmo tempo, tentou arrancar a
bolinha de meus braços. A ''‘pelagem tão extraordinária” afundou seus
aguçados dentinhos de leite nos dedos do homem. Aí, ele tirou mais vinte e
cinco dólares e disse esperar nunca mais ver nem a mim e nem a bolinha.
Preenchi o cheque, enfiei a bolinha debaixo de minha capa, pulei num
táxi e voltei para casa. Tinha achado meu poodle, afinal. Mas em meu
íntimo mais íntimo havia a convicção de que as coisas tinham se passado
exatamente ao contrário. A bolinha possivelmente ficara durante uma
semana inteira naquela gaiola, examinando possíveis pais. Era ela quem
tinha me achado.
5 ...E COM PAIZINHO, SOMOS TRÊS!
Cheguei em casa, depositei meu tesouro bem no centro da sala de estar
e de repente senti-me tomada pelo pânico. Uma vozinha minúscula
continuava a berrar em meu cérebro: “E agora?”
Isso mesmo: e agora? Acabava de encerrar uma relação amistosa e
agradável com o banco Chase Manhattan em troca de uma delícia de
poodle, de aproximadamente três libras. Sabia que não ia me arrepender,
porque estava perdidamente apaixonada pela bolinha. E o que mais, a
bolinha também estava perdidamente apaixonada por mim. Mas era só o
que eu sabia.
Minha despedida do dono da loja de animais não fora nem carinhosa e
nem demorada e na pressa esqueci de perguntar a respeito de detalhes
bastante importantes. Por exemplo: o que é que meu tesouro podia comer?
E quando?
Ainda, teria que enfrentar o Irving! Meu marido nem estava imaginando
a surpresa que o estava esperando em casa. Qual seria a reação de Irving?
Infelizmente, sou dotada de muita imaginação. Já sabia qual seria a reação
de Irving. Engoli rapidamente um tranquilizante.
Decidi telefonar ao dono da loja de animais. Se berrasse comigo, ia
berrar com ele, e daí? Até que seria um ótimo exercício em previsão como a
cena com o Irving. O chamado resultou melhor que a expectativa. O
assistente do homem atendeu. Disse que sentia-se feliz por eu ter chamado.
Queria meu endereço.
Perguntei por que! (Afinal estou morando em Nova York. Todo cuidado é
pouco!)
Ele disse: — A senhora não quer os papéis? E o formulário do Kennel
Clube? A senhora não vai querer registrar a cachorrinha?
Respondi que nada me interessava menos.
— Mas a senhora não vai achar um macho decente para ser o pai dos
filhotes, sem os papéis e sem o registro do Kennel Clube!
Filhotes! E a bichinha ainda nem tinha todos seus dentes de leite! Senti-
me realmente feliz por tê-la arrancado daquele ambiente horrível. Era mais
do que evidente que a loja de animais encobria as atividades de dois
pervertidos sexuais!
A esse ponto o moço decidiu pedir com voz implorante: — Por favor,
quando a senhora decidir cruzar a bichinha, não se esqueça de mostrar-nos
logo os filhotes! E por favor, antes de escolher o macho, fale conosco! Será
um prazer arranjar um bom macho para ela.
Achei melhor explicar que antes de discutirmos o futuro da bolinha era
necessário falar em assuntos muito sérios do presente. Por exemplo, o que
era que minha sereia deveria comer na manhã do dia seguinte?
O moço disse: — Carne moída molhada com leite evaporado enlatado.
— Isso de manhã?
— De manhã, na hora do almoço, para o lanche e para o jantar. Quatro
vezes por dia.
Não parecia difícil, e decidi que valia a pena tentar. Mas tudo a seu
tempo. Paizinho estava para chegar a qualquer instante. Achei que era
muito importante que tivesse uma ótima impressão.
A coisa mais importante era o cenário. Muitas vezes nas vitrinas do
Tiffany’s só há um único diamante, sobre uma base de veludo preto, não é
mesmo? Coloquei minha pequena joia sobre o sofá da sala. Não deu certo
porque o sofá era preto. Achei que o dormitório oferecia um cenário mais
favorável. A colcha de seda branca lavrada seria perfeita. Coloquei a
bolinha sobre a cama. Ela se esticou toda e virou sobre as costas, como uma
princesa. Era mesmo uma pequena princesa! Uma pequena princesa
francesa. . . Num impulso, chamei-a de Josephine. No mesmo instante
Josephine molhou a colcha de seda branca lavrada.
Recomendei a mim mesma para ficar calma. Afinal, tínhamos um ótimo
tintureiro. A colcha ia voltar a ter a mesma aparência de antes. Arranquei-a
da cama e escondi-a na rouparia.
Voltamos para a sala. Sentei na poltrona vermelha com a bolinha no
colo. O cenário não era tão bonito como o apresentado pela colcha de seda
branca — mas assim mesmo, dava para quebrar o galho. Dez minutos mais
tarde tive que trocar de vestido e comecei a me preocupar seriamente a
respeito do estado dos rins da princesa.
Uma hora mais tarde minha sala de estar apresentava uma aparência
absolutamente diferente. A transformação foi radical. O carpete ficou
coberto com papel de jornal em toda sua extensão. Todos os objetos
mastigáveis, como por exemplo chinelos, fios de telefone e pequenas
almofadas, já não se encontravam no chão. Sentamos no meio de toda
aquela bagunça — esperando pela volta de Irving.
Mas logo naquele dia Irving estava se atrasando. Comecei a temer que
não encontraria mais a Josephine com vida, por causa do jeito que as coisas
estavam tomando.
A cachorrinha mostrou uma tendência a não se afastar de mim. Sentei
numa cadeira da sala, ela se enrolou sobre meus pés, e dormiu logo. Aí,
tocou o telefone. Tive que me levantar para atender. Josie acordou e me
seguiu, mas pensou melhor e desviou rapidamente para colocar mais uma
lagoinha no único lugar em que o carpete não estava coberto por jornais.
Em seguida deitou sobre meu pé e continuou sua soneca. Quando desliguei,
tive que acordar Josie — muito a contragosto — para poder limpar aquele
pedaço de carpete. Josie achou que era sua obrigação ajudar-me na tarefa:
apanhou a esponja, correu com ela, virou a bacia com água e também
começou a puxar a barra de minha saia. Corri para a cozinha, apanhar um
pano pra secar a água. Foi aí que reparei que, pela primeira vez desde
nossa chegada em casa, Josie não estava comigo. Bati facilmente todos os
recordes de velocidade correndo para o dormitório e cheguei a tempo de
ver Josie engolir o último pedaço de sabão como se fosse sorvete. Não
encontrei vestígios da esponja, mas pelos fragmentos encontrados entre
seus bigodes, deduzi que a esponja fez papel de tira-gosto.
Acabamos voltando à cadeira da sala, e mais uma vez ela deu uma
demonstração do seu segundo maior talento — sono instantâneo. O
telefone tocou mas me recusei em atender. Tudo ficou na santa paz por
mais ou menos dez minutos, quando a bichinha decidiu vomitar o sabão. A
esponja também apareceu logo em seguida.
Quando conseguimos sentar mais uma vez na tal cadeira da sala, não
estava bem certa qual de nós duas ia cair no sono antes, quando de repente
ouvi o barulho da chave de Irving virando na fechadura.
Vi logo que estava de bom humor. Estava assoviando. Fiquei sentada,
dura, sem conseguir me mexer. Josie teve mais coragem. Abandonou o
lugar em cima de meu sapato e chegou até a entrada para investigar. Irving
parou de assoviar. Entrou vagarosamente na sala.
Minha voz era muito fraquinha, mas consegui dizer: — Josie, esse é seu
paizinho.
Ela entendeu perfeitamente. Correu para Irving com tanto ímpeto que
deu uma cambalhota. Irving parecia uma estátua de bronze. Josie tentou
ser mais fascinante ainda, aliás usou de todos os recursos. Mordiscou os
laços dos sapatos. Deitou de costas. Apanhou com os dentinhos a bainha
das calças e puxou. Finalmente fez mais uma lagoinha sobre os jornais
espalhados.
Irving recuperou o uso da palavra. Disse:
— O que é isso? E a quem pertence? (Cá entre nós, que falta de
imaginação: afinal não é qualquer poodle que ia chamar Irving de paizinho!)
Bati rapidamente as pestanas e com todo o charme possível e voz
suavíssima, murmurei: — É nossa, meu amor.
Irving disse: “Livre-se imediatamente dessa coisa”, e foi para o quarto
de dormir.
Ora, eu nunca imaginei que ia ser fácil. Preparei um lindo uísque e soda,
exatamente do jeito que Irving gostava, e levei-o para o dormitório. Depois
comecei um discurso dramático cujo resumo era que um poodle só poderia
trazer mais felicidade a nossas vidas; ah, a alegria de partilhar nossas vidas
com um bichinho vivo, cujo único alvo na vida era proporcionar-nos todo
seu carinho e toda sua lealdade!
Irving explicou que, apesar disso poder provocar um trauma, ele não
tinha a menor intenção de ser o alvo dos carinhos de um poodle. Aí eu sorri
da maneira mais fascinante possível (você sabe, eu li o livro de Arlene
Francis sobre fascínio. Arlene afirma que com fascínio a gente consegue
remover montanhas.) Mas com Irving a tentativa falhou.
Após dez minutos de fracasso total desisti de ser charmosa e comecei a
agir de maneira natural. Tive um ataque histérico. Não posso dizer que foi
um sucesso, mas pelo menos consegui a atenção de Irving. Durante os dez
minutos que se seguiram teve que se esforçar em me acalmar, explicando
que realmente me amava. Claro que nunca tinha pensado em jogar na rua
uma coitada cachorrinha sem defesa. Mas amanhã eu ia dá-la de presente a
Florence Lustig, para o garotinho dela. A cachorrinha com certeza ia gostar
da casa de Florence, e eu poderia vê-la sempre que eu quisesse. Acendeu
um cigarro e o enfiou entre meus lábios.
Para Irving, a crise estava superada, e a situação estava sob controle.
Mergulhou tranquilamente no jornal, com o copo na mão. Mas não durou
muito. Fiquei muda. Muda, olhando para ele.
Largou o jornal e falou com aquele tom “falei e está falado”: — Escute
aqui, Jackie, ela vai para a casa de Florence! Não adianta chorar, porque não
vou mudar de opinião. — Olhou firmemente para mim. Olhei para ele. Sabia
que Irving estava certo. Não adiantava chorar. Por isso, simplesmente
desmaiei.
6 A EXPERIÊNCIA
Como era de se esperar, consegui ganhar tempo. Irving vendera um
novo “show” para a televisão, que ia ser transmitido da Califórnia durante o
verão. Iríamos para lá no fim de junho. Josephine poderia ficar comigo até
aquela data. Então teria que entregá-la a Florence, como um presente para
seu filho Craig.
Tive que assinar e entregar ao Irving um compromisso, prometendo que
na hora de entregar o cachorro não aconteceria nenhum drama. Assinei de
boa vontade. Refleti que isso me dava três meses de tempo. Muita coisa
poderia acontecer em três meses. Até o tal “show” poderia ser cancelado.
Naturalmente cuidei para não expressar meus pensamentos. “Cancelar”
é um palavrão dos mais horríveis nas redondezas da Madison Avenue. O
efeito dessa palavra poderia ser comparado ao da notícia de que tanques
russos estavam atravessando a ponte George Washington.
Também tive que concordar com algumas regras básicas:
1. Irving nunca sairia para passear com Josie — e não viria comigo
quando eu levasse a cachorrinha. (Se eu pretendia dar espetáculo
com aquela coisa pendurada numa guia, era assunto exclusivamente
meu.)
2. Irving nunca iria limpar uma daquelas lagoinhas.
3. Todas as despesas com o cachorro seriam pagas por mim. (Com uma
ressalva: se por acaso ela morresse de repente, Irving pagaria com
muito prazer todas as despesas do funeral.)
4. Teria que cuidar em mantê-la sempre afastada dele!
Concordamos com esses termos, e a vida de Josephine na família
Mansfield começou assim mesmo.
Josephine não prestou a menor atenção à aparente falta de carinho
paterno de Irving, e não perdeu nem um pingo de charme e alegria. Aliás
tornou-se mais adorável a cada dia que passava. No primeiro dia aprendeu
a latir toda vez que ouvia um barulho na entrada. Depois latiu também a
noite toda. No segundo dia aprendeu a pular em cima da cama e acordar o
paizinho de madrugada com um monte de beijinhos molhados. No terceiro
dia aprendeu a roer a massa das paredes. No quarto dia aprendeu a ter
convulsões.
Irving achou que devia ser por causa de alguma coisa que ela comera,
como por exemplo, esparadrapo, as meias que ele usava para jogar golfe, a
tampa de uma garrafa de plástico ou então as lantejoulas importadas
daquela minha bolsa que eu tinha certeza estava fora de seu alcance. Uma
consulta urgente com o dono da loja de animais deu-me a certeza que uma
dose frequente de um laxante bem suave poderia resolver a parada dentro
de vinte e quatro horas.
Como era de se esperar, essa nova situação, além de seus rins realmente
atléticos, me obrigaram a confinar Josie numa área mais restrita, pelo
menos temporariamente. Escolhi para ela, como laxante, o Castoria de
Fletchers. (A publicidade do laxante dizia: “Toda criança o adora!”) Dei a
Josephine o domínio da cozinha. Era uma cozinha típica para um
apartamento de hotel — uma espécie de armário com uma pia e uma
geladeira. Forrei a cozinha com uma espessa camada de papel de jornal,
coloquei Josephine sobre o papel, junto com todos os confortos
domésticos: sua caminha, uma tigelinha de água, seus brinquedos e os
biscoitinhos para cachorro. Em seguida consegui enfiar um pouco de
Castoria em sua garganta, explicando que tão logo a situação voltasse ao
normal, ela poderia voltar a correr pelo apartamento todo. Após um
beijinho, falei boa-noite e tranquei a porta.
Josephine deu uma imediata demonstração de mais um de seus talentos
ocultos. A garganta da menina era tão formidável que poderia torná-la uma
rival de Maria Callas. Voltei a abrir a porta e a gritaria parou. Josephine
abanou freneticamente o rabinho e seus olhinhos estavam positivamente
sorrindo. Pensei que talvez o óleo Castoria já tivesse feito o que deveria.
Josephine foi correndo para a sala enquanto eu examinava a cozinha. Mas
não vi nada. O New York Times estava impecável. Fiquei observando Josie
enquanto brincava com uma bola na sala. Deu-me a impressão de estar se
sentindo muito bem. Cinco minutos mais tarde ela sentiu-se ainda melhor:
aconteceu depois de vomitar a dose de Castoria.
Dei-lhe mais uma dose de Castoria e coloquei-a mas uma vez na
cozinha. Expliquei que não era para sempre. No dia seguinte íamos ver um
médico. Mas por enquanto precisava que ficasse na cozinha. Pareceu
aceitar meu raciocínio e deitou em sua caminha de junco. Dava para ver
que era mesmo uma cachorrinha compreensiva.
A impressão durou até o instante em que fechei a porta. Voltou a
vocalizar nas notas mais altas. Juro que eram notas acima do mais alto dó,
nunca ouvidas antes. Apanhei um livro comprado naquela tarde. O autor
deve ser dono de muitas criações de cachorros. Sentei e li o livro da
primeira página até a última enquanto Josephine cantava todo seu
repertório de Puccini. O autor afirmava que “precisava ser firme. . . mostrar
uma atitude enérgica. Não era necessário evitar de bater no cachorro. O
cachorro deseja respeitar seu dono, quer ter certeza que o dono é um ser
superior. . . seu amo. Era sobretudo necessário lembrar que o dono do
cachorro realmente é seu amo. Se o cachorro comer algo que não deve. . .
precisava dar-lhe uma palmada. Se o cachorro se recusar a aprender a não
sujar. . . precisava de outra palmada...” Olhei repetidamente para a capa do
livro: queria me convencer que realmente tratava do carinho e dos
cuidados a serem dispensados aos cachorros, e que não era parte das
memórias de Adolf Eichmann.
O dono da loja de animais, que entretanto tinha-se tornado uma espécie
de parente, sugeriu que colocasse um despertador junto a Josie. Filhotes
muito novos não gostam de ficar sozinhos e o tique-taque de um
despertador iria dar-lhe a impressão de que havia alguém com ela. Foi isso
que o homem falou. Josie acabou tendo três despertadores em volta dela,
mas cheguei à conclusão de que ela era bem mais inteligente que o dono da
tal loja. Ela sabia perfeitamente a diferença entre despertadores e gente.
Às duas da madrugada Josie continuava vocalizando. Irving perguntou
se eu não achava que devia tomar uma atitude a respeito. Nem respondi. Às
três da madrugada o gerente do hotel telefonou e pediu que tomasse uma
providência, e não era possível ignorar a sugestão. Assim, expliquei a Irving
meu dilema: tinha que escolher entre duas alternativas. Deixar que Josie
dormisse conosco (que afinal era o que ela queria), ou então ir para a
cozinha e dormir com ela. Irving resolveu meu problema num piscar de
olhos, eliminando uma das duas alternativas. Fui dormir na cozinha. Josie
parou de cantar no momento em que apareci, e dormiu tranquila até a
manhã seguinte. Sei disso, porque fiquei sentada a seu lado, observando-a.
De manhã os mensageiros do hotel me deram o endereço de um bom
veterinário. (Mensageiros de hotel sabem de tudo.)
Vou chamar o estabelecimento de hospital para cães e gatos, do dr.
White, com a ressalva que se por acaso existe um dr. White vivo ou morto,
trata-se de mera coincidência.
Não consegui ver o dr. White pessoalmente. Ele estava na cirurgia. Falei
com o dr. Black, que era da sua equipe. O dr. Black examinou a garganta de
Josephine e franziu o cenho. Olhou para os ouvidos e franziu o cenho.
Perguntei se havia algo de errado.
Disse: — Fique quieta até eu terminar o exame. (Só faltava essa: tinha
encontrado o Ben Casey dos veterinários.)
Expliquei que estávamos celebrando nosso sexto dia de convivência.
Olhou para mim de cara feia: — Onde foi que a senhora arranjou a
bichinha?
Dei-lhe o nome da loja de animais.
— Leve-a de volta! — Era uma ordem.
Levá-la de volta?
Ele franziu a testa: — Esse filhote foi tirado da mãe muito cedo. Tem um
vírus que já tomou conta de todo seu organismo. Acho que o apanhou há
duas semanas atrás. Às vezes é possível eliminar o vírus quando é
percebido em tempo, mas acho que já é tarde demais. Devolva a
cachorrinha e peça seu dinheiro de volta — ou então outro bichinho. Se o
dono da loja causar-lhe dificuldades, pode me chamar. Vou fazer um
relatório para o Kennel Clube. Essa gente vendeu à senhora um cachorro
praticamente agonizante.
Logo em seguida começou a berrar para alguém trazer os sais. Quando
voltei a entender o que estava se passando, comecei a berrar também. Não
queria meu dinheiro de volta. Não queria outro cachorro. Esse era o único
cachorro que eu queria. Ele devia salvá-la.
Josie compreendeu que estava se passando algo desagradável e me deu
a maior cooperação. Começou a uivar e vomitar ao mesmo tempo. Outros
cachorros que se encontravam em outras partes do hospital também
começaram a levantar a voz em sinal de simpatia. Um bom número de
pessoas que estavam na sala de espera saíram rapidamente para a rua,
carregando seus gatos e cachorros.
O veterinário consentiu finalmente em aceitar Josephine como paciente,
explicando que não tinha muitas esperanças de vê-la recuperada. (Acredito
que naquele momento ele só esperava que eu saísse rápido do prédio!)
Avisou-me também que o tratamento seria muito caro.
Dinheiro! Numa hora dessas, tinha coragem de falar em dinheiro! Lancei-
lhe um olhar tão carregado de desprezo, que ele deve ter pensado que eu
era a única herdeira de Paul Getty. Mas não falou somente em dinheiro.
Explicou-me também o regulamento do hospital e disse que devia ser
rigorosamente observado:
1. Josephine teria que ficar internada durante uma semana.
2. Durante a semana inteira eu não poderia me aproximar do hospital.
3. Só poderia telefonar uma única vez por dia, e quaisquer que fossem
as notícias recebidas, não poderia de jeito nenhum atrapalhar o PBX com
ameaças ou cenas histéricas.
Em seguida, tocou uma campainha: Josephine foi levada para os raios X
e eu fui convidada a ir embora.
A semana que se seguiu foi a mais comprida semana de toda minha
vida. Para Irving, ao contrário, os dias estavam passando depressa demais.
Explicou-me que não era nada de pessoal contra Josephine. Desejava
sinceramente que ela ficasse boa e tudo o mais, mas achava que era muito
agradável poder uma vez mais caminhar sobre os carpetes, sem o Times
encobrindo tudo. Eu telefonava diariamente para o hospital. Gostaria de me
encontrar qualquer dia com o sádico da classe médica que inventou as
seguintes sentenças: “As condições da paciente são estacionárias”. “A
paciente está passando conforme suas condições” e “A paciente passou
bem a noite”.
Não sei se é melhor ouvir essas notícias que não explicam nada, ou a
outra que ouvi no sétimo dia: “O doutor gostaria de ver a senhora”. Só isso.
Sem mais explicações. Frio e impessoal como a gravação meteorológica da
companhia telefônica.
Irving segurou-me no instante em que quis sair correndo do
apartamento. Obrigou-me a me sentar para uma conversinha. Era óbvio que
ele também tinha chegado às mesmas conclusões a respeito da frase: “O
doutor gostaria de ver a senhora”.
Começou dizendo: “Ora, Jackie” (Dito por Irving, isso quer dizer: “por
favor, seja razoável.”)
— Ora, Jackie. Quero que você me prometa uma coisa.
Só consegui acenar com a cabeça. Estava ansiosa para chegar ao
hospital. Com a voz mais suave possível Irving explicou que se o
veterinário achasse que era necessário “fazê-la dormir”, eu não deveria
ficar chocada, não poderia ameaçá-lo e nem fazer cenas histéricas.
Precisaria me lembrar que esse tal doutor não tinha conspirado para fazer
adoecer o cachorro. Precisaria lembrar também que o doutor tinha cursado
uma faculdade, estudando durante muitos anos, porque gostava de animais
e sua tarefa era principalmente mantê-los vivos e saudáveis. Por isso teria
que aceitar qualquer veredito vindo do veterinário, e sobretudo teria que
me lembrar que Josephine era somente um cachorrinho. E sendo um
cachorrinho, já tinha vivido seis maravilhosos dias conosco. A maioria dos
cachorros vive uma vida inteira (de cachorro) sem nunca conhecer nem
uma pequena parte de tanto luxo e tanto carinho. Para finalizar, com um
gesto realmente generoso, entregou-me um cheque em branco, assinado.
Fiquei olhando para o cheque, estarrecida. Irving era um amor. Queria
que eu saísse para comprar logo outro cachorro. Mas nunca subestime a
telepatia. Irving lançou-me um olhar assustado e disse: — O cheque é para
qualquer despesa do hospital. Você vai encontrar uma boa conta, aposto. E
se eles quiserem “fazê-la dormir”, é provável que isso seja uma despesa a
mais. Eu sei, me lembro muito bem, eu disse a você que todas as despesas
com o cachorro eram com você pessoalmente, mas se a bichinha tem que
ser liquidada, pelo menos quero que tudo seja feito da melhor maneira
possível!
7 NOSSA PEQUENA CLÍNICA DOMICILIAR
Quando consegui chegar ao hospital, pelo menos não tive que esperar.
Levaram-me logo para o gabinete particular do doutor White. Como era de
se esperar, não havia nem o rastro do doutor White. Estava na cirurgia. Mas
meu amigo, o doutor Black, estava me esperando. Tudo parecia idêntico à
outra vez. Até aquele adorável jeito dele. Foi direto ao assunto:
— Senhora Mansfield, a senhora sabe que a cachorrinha estava muito
doente no dia em que a senhora a trouxe. A situação era desesperadora. Em
seguida ela se recusou a comer durante três dias. Tivemos que alimentá-la
artificialmente. (Pensei: preciso ficar calma. Pelo menos, ainda está viva.)
— Um médico ficou de plantão durante a noite, somente para cuidar
dela. Conseguimos controlar o vírus com penicilina. Mas cachorro nenhum
pode continuar vivo sem água e sem alimentos. (Talvez estivesse morta.)
— Tentamos injeções endovenosas, mas o resultado não foi muito bom.
De qualquer forma, tentamos tudo. (Ela está morta.) Foi por isso que pedi
para a senhora vir, senhora Mansfield. . . (Não devo desmaiar quando eles
me entregarem o pequeno caixão.) Fizemos o impossível. O vírus agora está
controlado. Mas ela deve se alimentar e tomar água. É possível que a
senhora consiga fazê-la comer. Aliás, acredito que só a senhora conseguirá.
Por isso quero sugerir que a senhora leve a cachorrinha para casa.
Levá-la para casa! O coitado começou a gritar por socorro quando cobri
de beijos aquele adorável rosto dele. Continuei a fitá-lo com olhos cheios
de adoração enquanto se livrava de meus braços e começava a escrever
receitas e instruções alimentares. Avisou-me para não me deixar enganar
pela pelagem fofa. A bichinha estava reduzida a pele e ossos. Era
absolutamente necessário que ela recuperasse o peso.
Um enfermeiro entrou com Josephine e ela quase explodiu de amor e
felicidade! Deu gritinhos, me beijou, agitou o corpo inteiro de maneira tão
frenética que tive a impressão de ouvir suas costelas batendo uma contra a
outra! Acho que eu também dei gritinhos e outros sons mais guturais. O
veterinário assistiu pacientemente à nossa reunião exagerada e dramática.
Quando paramos de nos beijar lançando gritinhos, dediquei o tempo
necessário a preencher o cheque em branco de Irving e a ouvir as
derradeiras recomendações do dr. Black. Daí a dez dias Josephine teria que
voltar para tomar mais uma injeção contra cinomose e ter mais um “check-
up”. Até maio ela não poderia sair de casa para passear — se é que ela
viveria até lá. Se eu não conseguisse fazê-la comer, a morte chegaria dentro
das quarenta e oito horas. Mas isso não me deixou preocupada. Sabia que
Josephine comeria qualquer coisa que eu quisesse. Enquanto a segurava
para ouvir as palavras do doutor ela já tinha comido uma boa refeição,
removendo praticamente toda minha maquilagem.
À noite quando Irving chegou e viu o News e o Mirror cobrindo o
carpete, ficou tão chocado que nem falou. Quando expliquei que Josie já
tinha comido uma costeleta inteira de carneiro e um prato de pudim de
arroz, não partilhou do meu entusiasmo. Simplesmente ficou curioso de
saber como era possível que de repente eu soubesse fazer pratos
complicados, considerando que ainda não conseguia fazer o mesmo café
todas as manhãs (com o pó instantâneo!).
Fiquei estarrecida. Seria possível que Irving nunca ouvira falar em
serviço de copa? Por uma esquisita associação de ideias Irving se lembrou
do cheque em branco e pediu que eu o devolvesse! Disse que, em se
tratando de um enterro, estava mais do que disposto a gastar o suficiente,
mas que definitivamente não via razões para gastar dinheiro para a
sobrevivência dela. E ainda por cima, com iguarias do serviço de copa!
Enquanto Irving falava Josephine começou a se aproximar dele, para
lamber-lhe a mão. Quando expliquei que tinha gasto o cheque, Josephine
começou a lamber mais rapidamente. (O bichinho realmente sabia qual era
a fonte do seu próximo serviço de copa!)
Era inevitável que eu usasse sentenças como essas: “Você não tem
sentimentos”? e “Você não acha que ela é uma gracinha”?
Irving teve que concordar que era uma gracinha. Mas, perguntou, o que
ela poderia fazer por ele? De que forma ia ela contribuir em nossas vidas?
Ela não passava de uma fonte viva de amolações, que tinha nascido
unicamente para gritar a noite toda, furtar o carinho de sua companheira,
destruir o apartamento, suas roupas e seu sossego. Aliás, do jeito em que
as coisas estavam se metendo, a manutenção de Josephine iria custar mais
do que a manutenção de um Cadillac!
Entretanto não parou por um instante de afagar a cabecinha de
Josephine que estava roçando-se contra a perna dele. Quando apontei o que
estava fazendo, ficou furioso.
— O que é que você acha que eu devia fazer? Quer que eu a mate a
cacetadas? — Enquanto saía da sala, gritou: — Você prefere que leve seu
travesseiro e seu cobertor para a cozinha agora mesmo, ou vamos esperar
até de madrugada, quando ouvirmos aquela gloriosa voz de soprano?
Josie, porém, já tinha feito seus planos para a noite. Nem por um
instante ela se deixou enganar por aquele sorriso falso que Irving ostentava
toda vez que olhava para ela. Ela sabia tudo a respeito de Florence e do
garoto de Florence, Craig. Estava também convencida de que o caso do
vírus fosse uma artimanha de Irving. Afinal, ela nunca sentiu que estava
doente.
Mas tendo manifestado vocalmente sua desaprovação por causa do
confinamento na cozinha durante a noite, ele tinha-a “desterrado” para um
lugar em que ficara numa gaiola, sendo continuamente picada por agulhas
e submetida a uma série de indignidades e humilhações. Josephine estava
decidida a não voltar para lá.
O raciocínio dela foi perfeito. “Ela gosta de mim. Ele não gosta.
Paciência. Se ela me levar para a cozinha, a coisa não é muito ruim: de
qualquer forma prefiro a cozinha àquela gaiola. Aqui ninguém virá para
espetar agulhas em meu traseiro no meio da noite.” Foi assim que Josie
raciocinou. (Mas eu não sabia disso.)
Quando fui levá-la à cozinha, lambeu minha mão, sacudiu a cabeça,
entrou em sua caminha de junco de vinte dólares e quando fechei a porta
não deu um pio.
Deitei em minha cama ao lado de Irving, apaguei a luz e logo em seguida
ambos começamos a esperar pelos uivos. Não aconteceu nada. Após cinco
minutos de espera Irving bocejou. “Graças a Deus, ela decidiu deixar-nos
dormir.” Seguiram-se mais dez minutos de silêncio absoluto.
Não aguentei mais. Sussurrei: — Irving, você está acordado?
Irving: Bem, agora estou.
Eu: O que é que você pensa que ela está fazendo?
Irving: Vai ver que está preparando um omelete espanhol! Não estou
interessado, viu? Contanto que não abra a boca.
Eu: Acho que o silêncio é excessivo. Você não acha que eu devia dar uma
espiadinha?
Irving: Escute aqui. Eu não sou especialmente fã dela, mas quando ela
está certa, está certa! A coitada da cachorrinha está tentando fazer o que
você mandou. Está tentando dormir. E agora você inventa essa mania de
querer ver o que ela está fazendo. Ela vai pensar que você está biruta.
Eu: Está certo. Boa-noite.
Irving: Você está falando sério?
Eu: Sim. Boa-noite. Amo você.
Irving: Eu também. Boa-noite.
(Dez minutos mais tarde.)
Eu: Irving.
Irving: Quer saber de uma coisa? Eu devia ter mandado você para a
cozinha e deixado que a cachorrinha dormisse aqui comigo.
Eu: Mas Irving, ela ainda não está fora de perigo. O veterinário disse que
ainda está em fase crítica.
Irving: Boa-noite!
(Dois minutos mais tarde.)
Irving: Como é que é? Por que o médico disse que ainda está numa fase
crítica?
Eu: O vírus está sob controle. Mas ela ainda não está fora de perigo.
Poderia morrer de um minuto para o outro!
Irving: Até que ela está se portando muito bem, por estar tão mal assim.
Eu: Ela ainda é nenê. Ela não sabe quanto está doente. Reconheça que ela
fez uma porção de esforços para lhe agradar. Acho que agora está quieta
demais. Pode ser que esteja com medo de me chamar, com medo de lhe
desagradar.
Irving: (saindo da cama) Está bem. Fique aqui. Vou até a cozinha para
ver se ouço algum barulho.
Eu: Irving! Você se preocupa com ela!
Irving: A coisa que me preocupa é de ter pelo menos umas duas horas
de sono.
(Irving volta após dois minutos.)
Eu: Você ouviu alguma coisa?
Irving: (voltando para a cama) Nada. O que é que você pensava que eu ia
ouvir? Uma batucada? Ela está dormindo. Quer saber? Estou com inveja
dela.
Eu: Mas os filhotes nunca dormem uma noite inteira.
Irving: Vou dar-lhe o recado quando ela acordar amanhã de manhã.
Eu: Mas Irving, o que é que vamos fazer?
Irving: Eu sei que você vai achar muito ridículo, mas eu vou dormir.
Agorinha mesmo. Boa-noite.
Eu: Você não precisa ser tão maldoso, ouviu?
Irving: Você prefere que eu vá dormir na cozinha e deixe a cama para
vocês duas?
Eu: Boa-noite!
Irving: Boa-noite.
(Uma hora mais tarde — mais ou menos às 2 da madrugada. Deslizo da
cama com muito cuidado.)
Irving: (acordadíssimo, com fúria contida) Onde é que você pensa que
vai?
Eu: (altiva) Onde é que você pensa que as pessoas querem ir quando
levantam da cama no meio da noite?
Irving: Eu sei muito bem o que as outras pessoas fazem. Quero saber o
que você vai fazer?
Eu: (indo para o banheiro) Estou com sede! (voltando para a cama) Está
satisfeito? E agora, boa-noite!
(Às 2 e 30 da madrugada.)
Eu: Irving? É você?
Irving: Não. É o Rossano Brazzi.
Eu: Onde é que você vai?
Irving: Talvez você não saiba, mas eu também sou uma pessoa e eu vou
para o banheiro!
(Três horas da madrugada.)
Eu: Irving, você está dormindo?
Irving: Claro que não. Você sabe que eu sempre passo as noites em
claro.
Eu: É possível que ela tenha morrido.
Irving: Seria sorte demais!
Eu: Boa-noite!
(Alguns minutos mais tarde.)
Irving: Por que você não perguntou ao veterinário se ela ia dormir a
noite toda?
Eu: Como é que eu ia saber?
(Cinco minutos mais tarde.)
Irving (sentando na cama) Escute aqui. Não aguento mais! Precisamos
parar com isso!
Eu: Eu não disse uma palavra!
Irving: Você está pensando! Posso perceber seus pensamentos e não
consigo dormir!
Eu: E o que é que você acha que eu estou pensando?
Irving: Coisinhas. Bobagens. Por exemplo, que eu sou um frio crápula,
por deixar aquela bichinha inocente morrer sozinha.
Eu: (sentando na cama) Você também pensa que ela está morrendo!
Irving: Penso que me casei com uma débil mental. De qualquer forma,
vamos dar uma olhada. Depois disso, quer ela esteja viva ou morta, eu vou
dormir!
(Chegamos até a porta da cozinha na ponta dos pés. Irving abre a porta
com muito cuidado. Josephine pula da caminha, abana o rabinho e olha
para ambos cheia de expectativa, como querendo perguntar: O que foi que
aconteceu, doutor?)
Irving: Está certo. Leve-a para o quarto.
Eu: Você disse, levá-la para o quarto?
Irving: É a primeira noite em casa. Pode ser que ela precise dormir com
alguém perto. Afinal, no hospital, havia um bocado de cachorros.
(Chegamos ao dormitório. Josephine está entusiasmada com a mudança.
Distribui beijinhos a ambos e finalmente deita entre os braços de Irving e
adormece.)
Uma hora mais tarde levanto da cama procurando fazer o mínimo de
movimentos necessários. Estou mesmo com sede. Irving berra furioso: —
Pelo amor de Deus! Será que você não tem um pingo de consideração? Você
acabou por acordá-la!
8 RUDIMENTOS DE EDUCAÇÃO — E COISAS TAIS. . .
Aquela noite memorável marcou o início de quatro semanas de
felicidade perfeita. Cancelei todos os meus compromissos sociais, expliquei
ao meu agente que não teria tempo para nada, e concentrei-me em bancar a
Florence Nightingale para Josephine. Além disso, tive que me tornar uma
atleta olímpica.
Tenho certeza de que o doutor Dafoe, para cuidar das cinco gêmeas
Dionne, não despendeu nem a metade da energia que gastei com um poodle
de três libras. Você deve se lembrar que quando a gente enfia o bico da
mamadeira na boca de um nenê, o nenê toma o leite. Mas será que você já
tentou enfiar uma dose de Pepto-bismol na boca de um poodle?
Você procede da seguinte forma: em primeiro lugar coloca o poodle
sobre a pia da cozinha. Com uma mão abre a boca do poodle. Com a outra
mão despeja uma linda dose de Pepto-bismol cor-de-rosa na boca do
poodle. Nessa altura, terá que largar tudo (menos o poodle, claro!) e usar
ambas as mãos para segurar a boca do poodle. Apesar disso, você verá que
o Pepto-bismol escorre mansamente dos dois lados da boca do poodle. (A
boca de um poodle tem reações esquizóticas. Por exemplo: quando um
poodle segura com a boca algo que quer segurar, a boca se torna uma
prensa; mas quando você coloca na boca do poodle algo que o poodle não
quer, a boca do poodle se transforma em peneira.)
É claro que você faz mais uma tentativa. É a hora do ataque lateral. (Os
donos de poodles com muita experiência juram que este é o melhor
sistema.) Você procede assim: você vira a cabeça do poodle para um lado, e
se for preciso, usa até seus joelhos para obter o efeito desejado. Segure a
boca fechada e enfie o Pepto-bismol pelas aberturas entre os molares. Em
seguida feche as bochechas e segure durante três minutos. O Pepto-bismol
desaparece pela garganta, mas o pescoço do poodle nunca será o mesmo.
Acontece, porém, que cinco minutos mais tarde, enquanto você massageia
carinhosamente o pescoço do poodle, o poodle cospe o Pepto-bismol em
sua blusa. Pelo menos, com Josie e eu as coisas se passaram assim.
De qualquer forma, insistindo sem parar, um pouco de Pepto-bismol vai
acabar chegando ao estômago do poodle. Eu acabei tendo a pia da cozinha
cheia de Pepto-bismol, e três calças salpicadas de Pepto-bismol mas, após
três semanas de esforços, Josephine estava funcionando de maneira regular
em ambas as extremidades.
Sinto-me também muito feliz em afirmar que durante as quatro semanas
nossa pequena joia comeu como um cavalo. (É claro que a pobrezinha ainda
não podia comer alimentos comuns. Ingeriu somente um alimento especial
para cachorros que o veterinário mandava fazer só para ela.)
De qualquer forma acho que não teria aguentado sem a ajuda do New
York Times e do Herald-Tribune. Em matéria de jornais, eu prefiro de
longe o New, o Mirror, o Journal e o Post. Estes sim, são jornais, com
artigos de fundo e colunas que realmente deixam a gente muito mais
animada.
Você pode imaginar o que significa perder esse grupo e acabar tendo
que ler Arthur Krock e David Lawrence. Mas não havia alternativas. O Times
e o Tribune cobriam totalmente a entrada e a cozinha, enquanto que os
jornais menores não conseguiam dar aquele efeito “de parede a parede”. O
que eu quero dizer é que se você é obrigado a viver em cima de papel de
jornal em lugar de carpete, você não vai querer um efeito remendado.
A primavera chegou cedo. Olhava para toda aquela maravilhosa grama
verde no Central Park, mas só podia olhar. E ainda por cima, da janela.
Nossa joia de sangue azul não podia ainda — por mais um mês! — se
arriscar a pisar na umidade. Lembrei-me dos passeios saudáveis que tinha
programado para ambas, e que seriam tão vantajosos para minha linha. De
fato, minha linha não estava em perigo e não estava ficando flácida por
falta de exercício. Criar um poodle num apartamento é realmente um
grande feito esportivo. Perdi cinco centímetros na cintura e adquiri um
terceiro olho na parte traseira da cabeça.
Não preciso salientar que se por acaso você pretende fazer uma nova
decoração em seu apartamento num futuro bastante próximo, você não
precisa tomar todos os cuidados que eu tomei. Você pode até sair e deixar
o poodle sozinho no apartamento. Acontece, porém, que a decoração do
nosso apartamento era recentíssima e eu não ia nem sequer escovar os
dentes sem ter Josephine dentro de meu campo de visão.
A essa altura dos acontecimentos alguém poderia perguntar: “Mas sua
vida social? Deve haver alguma coisa, além de brincar com a bola do
cachorro?”
Pois não tem nada mesmo. A menos que eu não convide as pessoas a
fazer uma visitinha — para me ver, e para ver o poodle. (Você vai ver logo
logo quem são seus verdadeiros amigos!)
Quando as visitas chegam precisa observar algumas regras. (No caso que
você queira conservar o resto de suas amizades, é claro.)
1. Nem que a conversa seja realmente fascinante, nunca deixe de ver o
que seu poodle está fazendo.
2. Reconheça imediatamente todos os sinais de perigo. (O rápido
desaparecimento debaixo da cama. Um súbito silêncio. O terrível som de
um objeto sendo mastigado.)
O rápido desaparecimento debaixo da cama significa que o poodle
arrancou um pedaço da bolsa de crocodilo da visita e está decidido a comê-
lo. O som de um objeto sendo mastigado nunca significa um brinquedo ou
um osso, como seria razoável para qualquer poodle. (Trata-se, sempre, de
um enrolador de plástico para cabelos, ou de um pacotinho de lâminas para
barbear ou de um vidrinho de água oxigenada.)
Um súbito silêncio significa que o poodle está para lançar um ataque
contra a estola de vison da visita, ou contra o chapéu do marido da mesma.
Você não vai acreditar, mas a gente desenvolve uma rapidez espantosa em
pulos para o outro lado da sala, para salvar a echarpe de chiffon importada
de entre os dentes aguçados como agulhas — e uma extraordinária cara de
pau também, para explicar que aqueles rasgos podem ser consertados.
(Sobretudo nunca se esqueça que não tem absolutamente importância que a
visita seja logo Radie Harris, a colunista de Hollywood. Você não pretende
atuar no cinema, não é mesmo?) Mas é muito triste ter que constatar que a
echarpe era um presente da finada Gertrude Lawrence, e que a boutique
onde foi comprada foi destruída durante a guerra.
As únicas “saídas” de Josie aconteciam num táxi quando, toda envolvida
num cobertor, ia levá-la ao hospital onde, com coragem espartana, ela
suportava todas aquelas picadas cruéis com a agulha de injeções. Durante
esses exames Josie conheceu um certo número de veterinários; um Dr.
Grey, um Dr. Green, um Dr. Brown e naturalmente o encantador Dr. Black1
.
Nunca tivemos a sorte de encontrar o Dr. White, que era o titular do
hospital. Ele continuou na cirurgia.
No fim de abril tivemos um dia maravilhoso e a temperatura chegou a
vinte e cinco graus. Telefonei ao hospital e perguntei a um dos veterinários
(esqueço de que cor era) se poderia levar Josie ao parque por um breve
passeio.
Disse: “Absolutamente!”
Fiquei olhando tristemente para o parque. Estava repleto de poodles.
Acabei telefonando ao Irving para saber sua opinião. Irving sugeriu que eu
obedecesse ao veterinário. Afinal ele se preocupava em ter um cachorrinho
bem sadio, que entregaria à Florence no fim de junho. Você pode ver que
Irving é um sujeito que nunca deixa de cumprir uma promessa —
especialmente quando fez essa promessa a si mesmo. Irving era dono de
uma folhinha em que o 1° de julho era marcado por um círculo em lápis
vermelho. Em volta do círculo estava escrito: “Califórnia” e “Dia D.D.”
Irving explicava alegremente a todos que o dia D.D. era o “Dia do
Desenlace”.
Acho que minha atitude naquele glorioso dia de abril foi devida também
a isso. Tínhamos tão pouco tempo! Precisávamos aproveitar todos os
minutos. Porque só o garoto de Florence poderia se divertir com Josie? Eu
também queria viver um pouco!
O pensamento foi logo seguido pela ação. Disse: “Josie, vamos dar um
passeio!”
A coitadinha naturalmente não sabia o que era “um passeio”. A palavra
era desconhecida dela, mas logo percebeu que alguma coisa estava para
acontecer. Largou a almofada de cetim marrom que estava mastigando e
deu-me toda sua atenção.
Mostrei-lhe a guia. (Isso mesmo: tinha comprado uma guia. Afinal,
ninguém sugeriu que Josie saísse com uma cadeira de rodas. E quem
poderia ter imaginado que acabaria sendo a dona da Elizabeth Barrett dos
poodles?2
Josie olhou para a guia. Compreendeu que realmente havia
novidades. Nunca tinha visto uma guia antes. Farejou-a, mas não entendeu
nada. Sendo, porém uma cachorrinha que faria qualquer coisa para me
agradar, começou a mastigar a guia. Coloquei a coleira em volta de seu
pescoço.
No mesmo instante Josie transformou-se num dervixe e começou a
rodopiar. Rolou, pulou e tentou livrar o pescoço da coleira usando as
quatro patas juntas. Era óbvio que pela primeira vez em nossa convivência
estávamos tendo uma “diferença de opiniões”.
Carreguei Josie no colo até o parque, sem tirar a guia. Sabia que tão logo
visse outros cachorros com adornos similares, ela compreenderia.
Realmente compreendeu após três tentativas de estrangulamento. Quando
viu que a guia e eu éramos simplesmente uma extensão de sua
personalidade, ficou muito mais descontraída e começou a observar o
mundo em sua volta.
1 Os nomes também significam cores: white = branco, black = preto, grey = cinza, green =
verde, brown = marron.
2 Poetisa inglesa que ficou paralítica por muitos anos.
Farejou os bancos, a grama e até os troncos das árvores. Mandei que
sentasse e expliquei-lhe os segredos da grama e dos troncos das árvores.
Sua função não era meramente ornamental. A licença de Josie me custara
dois dólares: logo, Josie era uma contribuinte. Era dona do parque. A grama
e as árvores ali estavam para conveniência dela, para serem usados todas
as vezes que ela quisesse. Em substituição do New York Times.
Tive a impressão de que ela não entendesse direito, mas estava
convencida que seria suficiente que Josie visse um claro exemplo. Levei-a
correndo para perto de um boxer que estava se preparando para dar uma
demonstração contra uma cesta de lixo. Foi um erro. Estava querendo que
Josie assistisse a uma demonstração — e não a um dilúvio. Saímos de lá
correndo!
Em seguida mostrei-lhe um Scotch terrier que estava distintamente
erguendo a perninha contra uma árvore. Josie não se assustou — mas
mostrou que julgava a ação de extremo mau gosto. Ficou observando um
fox de pelo duro executar a mesma cerimônia, e logo em seguida dois
cocker spaniel e um terrier maltês. Josie bocejou. Para quem tivesse visto o
boxer, os outros eram só fichinhas!
Fiquei passeando com ela durante vinte minutos. Ela gostou. Mas foi só
isso: ela gostou. Quando voltamos à intimidade de nosso apartamento
correu como uma desvairada para a cozinha e o New York Times.
Não achei que devia ficar desanimada logo no começo. Josie era muito
inteligente. Estava convencida de que após mais um passeio ela aprenderia
a usar o parque de maneira apropriada, esquecendo o Times e o Tribune.
Estava, aliás, crente que Josie teria aprendido até no primeiro passeio, se
aquele tolo de um boxer não tivesse exagerado.
9 A GOURMET
Naquela noite, quando Irving voltou para casa, fiz um relatório
completo a respeito de “Nosso dia no parque”. Josie assistiu abanando o
rabinho, como para confirmar minhas palavras. Ambas estávamos radiantes
e Irving opinou que talvez os instintos maternos eram mais certos que os
do veterinário. Pelo menos dessa vez minha inspiração fora certa. Só que na
manhã seguinte Josie estava com disenteria.
Como era normal fazer, fomos correndo para o hospital. O veterinário
passou-me um sermão e aplicou mais uma injeção em Josie. Em seguida
mandou que voltássemos para o apartamento e para o Pepto-bismol.
Quando Josephine toma Pepto-bismol, o efeito é realmente fantástico: em
vinte e quatro horas fica boa. Fui pesá-la na semana seguinte e constatei
que tinha uma libra a mais.
Voltei mais uma vez a olhar para o parque. O veterinário também
começou a ser mais otimista. Se nada acontecesse nas próximas quarenta e
oito horas, poderíamos sair mais uma vez passear, e dessa vez com
permissão da junta médica. Fiquei felicíssima. Imaginei que até que enfim
tudo estivesse certo. Se tudo continuasse dessa maneira, estávamos a
salvo. Josie porém inventou uma coisa nova. Parou de comer.
Aconteceu sem nenhum pré-aviso. Era um dia igual a todos os outros
dias. Coloquei em sua frente um lindo pires com o alimento especial para
cachorros e disse: — Queridinha, tome seu lanche. — A queridinha chegou
mais perto, farejou o pires e se afastou com ar enojado.
A cena se repetiu no almoço, na merenda e no jantar. Não telefonei ao
veterinário. Decidi agir por conta própria. Detestei profundamente ter que
agir dessa maneira, mas tentei a “alimentação forçada”. Ela também
detestou agir dessa maneira, mas tentou se estrangular três vezes. Acabei
telefonando para o veterinário que achou oportuno mudar o regime.
Josephine provavelmente já estava forte o bastante para largar do alimento
especial. Explicou-me que poderia dar-lhe restos de carne. Como assim
restos?
Disse ao veterinário que não tinha o hábito de assar carne ou perus em
meu fogão elétrico. A minha cozinha era estritamente uma cozinha de
apartamento de hotel, que ainda por cima era dormitório e banheiro de
Josephine. O doutor deixou transparecer que o problema era
exclusivamente meu. Ele era somente um veterinário, e não um chefe de
cozinha. Cheguei à conclusão que não poderia me valer dos préstimos do
serviço de copa. Não era uma questão de esnobismo. Você já imaginou,
serviço de copa quatro vezes ao dia? Pedi a Irving para encontrar uma
solução.
Irving, num primeiro momento, mostrou que não estava interessado em
soluções. Perguntou-me: — O que é que você quer que eu faça? Quer que
coloque na cabeça uma touca de cozinheiro e comece a preparar pratinhos
para Josephine?
Mas Irving não era absolutamente o tipo que deixa alguém morrer de
fome sem mexer um dedo. Além de tudo, Irving, quando quer, tem uma
extrema agilidade mental. Desceu para o restaurante do hotel, teve umas
conversinhas de negócios com três lavadores de pratos. Trocaram algumas
palavrinhas, algumas notinhas mudaram de dono e uma hora mais tarde
chegou um pacote enorme com rosbife e filé mignon. Josephine achou
ótimo. Comeu tudo o que estava em seu pires e ainda pediu bis.
O novo regime logo mostrou seus efeitos e no primeiro de maio toda a
equipe do dr. White deu-me licença para sair com Josie e levá-la ao Central
Park. Ela adorou o parque. Também adorou a Fifth Avenue, mas continuou
fiel ao Times e ao Tribune. A menina estava acostumada ao jornal, e
mostrou que pretendia continuar assim.
Alguns dias mais tarde Madge Evans e seu marido Sidney Kingsley
vieram nos visitar à noite. Madge e Sidney adoram cachorros. Sempre têm
pelo menos dois ou três. Ficaram praticamente extasiados com Josephine.
Irving explicou que a cachorrinha só ficaria conosco até o 1° de julho.
Madge lançou-lhe um olhar ártico, e começou a mostrar as belezas de
Josie. Tinha olhos amendoados e não proeminentes. O rabo era do tamanho
exato. A pelagem prometia tornar-se simplesmente magnífica. As orelhas já
mostravam a tendência a serem extraordinariamente compridas. Não era
possível encontrar nela o menor defeito. Era uma verdadeira campeã. De
repente a campeã tossiu.
Madge disse: “Ela está tossindo.”
Sidney disse: “Cachorros não podem tossir.”
Eu expliquei que minha cachorrinha era capaz de fazer qualquer coisa.
Sidney disse que cachorros não devem tossir. Quando tossem, isso sempre
tem um motivo.
“Que motivo?”
“Cinomose!”
(Sidney escreveu “Homens em branco”!)
Não quero dizer que isso arruinou a noite, mas é um fato que durante
cinco minutos a conversa parou. Não houve barulho nenhum, a não ser de
vez em quando uma tosse rouca de Josephine, que, apesar de tossir estava
muito bem disposta. Entre uma tosse e outra trazia de volta a bola para que
a jogássemos.
Ninguém disse nada. Todos estávamos olhando para Sidney, esperando
que pronunciasse a palavra da salvação. Finalmente disse: — Vocês tem um
bom veterinário?
Claro que tínhamos. Infelizmente o serviço de recados me informou que
todos os veterinários estariam no hospital somente na manhã seguinte às
nove. No hospital não havia mais ninguém, a não ser os cachorros doentes
e o serviço de recados.
Madge e Sidney foram embora após tentar me convencer que a cinomose
nem sempre é fatal. Sabiam a respeito de muitos cachorros que tinham
superado a doença. Claro que perderam todos os dentes e tinham uma série
de cacoetes, mas pelo resto estavam muito bem.
Quando saíram, Irving começou a conversar comigo, usando a forma
positiva. Ele sabia que a cachorrinha ia ficar ótima. Tinha certeza que no
dia seguinte estaria sem tosse. Após fazer essa proclamação sentou-se em
frente à televisão para assistir a um formidável bangue-bangue do Último
Programa.
Durante o Ultíssimo Programa a tosse de Josephine começou a se
manifestar com mais força e frequência. Até Irving começou a mostrar uma
certa preocupação. Desligou a televisão — apesar do programa ser ótimo.
Olhou atentamente para Josephine. — O que foi mesmo que Madge
disse? Que ela vai perder todos os dentes?
Só consegui acenar com a cabeça.
Irving suspirou. — Paciência. Talvez consiga convencer a Florence que
os poodles não tem dentes.
Não respondi. Estava refletindo a respeito de minhas possibilidades em
convencer um júri que o crime fora passional.
Em seguida me levantei, apanhei Josie e fui correndo arrumar uma cama
no escritório. (Para todo homem casado isso significa: “Amanhã falarei com
meu advogado, e você fale com o seu.”). Irving que só hostilizava
Josephine, mas não queria me hostilizar, fez uma tentativa de pacificação.
Irving: Ora, não seja tola. Você sabe que eu amo você.
Eu: Eu não estou com cinomose. Não precisa se preocupar comigo. Você
está sendo cruel com ela.
Josefine (tossindo duas vezes, perfeitamente a propósito).
Eu: (correndo para a cozinha com Josie): Venha comigo, meu amor.
Mãezinha vai lhe dar um pouco de mel para sua garganta. (Enfio mel na
garganta de Josie, que aprova.)
Irving: (observando a cena): Uma vez que fiquei com tosse você só me
disse para largar de fumar.
Eu: Você não estava com cinomose.
Irving: E como é que você pode estar certa disso? Agora me lembro: foi
na mesma época que perdi um molar. E você sabe também que de vez em
quando faço uns trejeitos com o nariz.
Eu: Você já tinha esses trejeitos no dia em que o conheci.
Irving: Vamos, deixe-a dormindo na cozinha. Estamos todos precisando
descansar.
Eu: Não posso deixá-la sozinha, agora que sei que ela está com
cinomose!
Irving: Mas você não sabe se ela está com cinomose!
Eu: Sidney disse que ela está!
Irving: Sidney escreveu um livro a respeito de médicos, mas nem por
isso pode fazer um diagnóstico.
Eu: Sidney fêz um bocado de pesquisa. Ele sabe.
Irving: Ele escreveu também História de um detetive, mas nem por isso
o chefe do FBI acredita ser necessário pedir a opinião dele.
(Nessa altura dos acontecimentos, Irving pega Josefine e a coloca na
sua cesta. Josie lambe a mão de Irving e adormece logo em seguida.)
No dia seguinte, bem cedo pela manhã, Josie e eu fomos para o hospital
do dr. White. Fomos atendidas pelo doutor Silver. O dr. White estava na
cirurgia. O doutor Silver estudou atentamente a ficha de Josephine, que
relatava todos os antecedentes em dez páginas. Mandou chamar o doutor
Black.
O doutor Black examinou-a minuciosamente e sentenciou que não era
um caso de cinomose. Era simplesmente uma das facetas da “condição”
dela. O vírus estava sob controle, mas afinal ainda não fora eliminado.
Estava alojado agora no aparato respiratório superior e a tosse
permaneceria até ela completar seis meses. Naquela época haveria duas
alternativas: ou a tosse desapareceria, ou então desapareceria Josephine.
Quando viu em meus olhos a expressão de horror que ele já conhecia muito
bem, levantou a mão espalmada:
— Um momento, senhora Mansfield. Eu nunca prometi que a menina
alcançaria a velhice! É praticamente um milagre que tenha sobrevivido ao
início da doença. Se ela continuar aumentando em força e em peso, e
passar de seis meses, terá boas possibilidades. Por enquanto, ainda está
muito magra. Volte para casa e dedique-se a engordar a cachorrinha.
Josie e eu estávamos saindo do ambulatório quando o doutor Black
acrescentou: — Cá entre nós, senhora Mansfield, não seria mal se a senhora
também engordasse um pouquinho.
— Eu trabalho na televisão, — retruquei. — Preciso continuar magra.
— Pois bem, se a senhora acha que deve continuar passando fome, o
problema é seu. Espero que a senhora não queira fazer da cachorrinha mais
uma Lassie. Ela precisa aumentar o peso!
Lancei-lhe um olhar de desdém. Irving está certo quando diz que “todo
mundo acredita saber tudo a respeito do “show business”.
10 DE COMO RENUNCIEI AO NEW YORK TIMES
O tempo foi passando e aprendemos a viver com a tosse de Josephine.
Aliás, pelo jeito, achei que deveria me acostumar também a viver com o
New York Times.
Não sei se Josephine era teimosa ou simplesmente tímida, mas
continuou a considerar o Central Park uma zona de recreio, recusando-se a
usá-lo como um banheiro público.
O mês de maio transformou-se num mês muito estimulante. Pela
primeira vez em sua vida, Josephine teve o pelo cortado como todo poodle
que se respeite, e o restaurante do hotel fechou para reforma. Não sei quem
ficou mais triste, os lavadores de pratos ou eu. Irving resolveu o problema
com uma rápida visitinha ao “Danny’s Hideaway”. Danny ficou muito
satisfeito em se tornar o novo cozinheiro de Josephine.
Irving, porém, não conseguiu tomar providência nenhuma a respeito do
corte de Josie, apesar de achar que era uma verdadeira catástrofe.
Reclamou muito comigo e declarou que tinha me aproveitado de uma
cachorrinha inocente, tornando-a um monstrinho ridículo. Concluiu seus
protestos declarando: — Não estou admirado de ela insistir em usar o New
York Times. Ela deve estar envergonhada de se mostrar na rua com aquele
corte horrível.
Expliquei que já um mês antes do corte Josie e eu éramos
frequentadoras do parque, mas que mesmo assim ela não se decidira.
Irving disse: “A culpa é sua. Você está exagerando em tudo e ela
simplesmente ainda não entendeu o que é que você quer que ela faça no
parque. Você conseguiu transformar uma coisa muito simples num
complexo de angústia e, ainda por cima, transferiu toda essa angústia para
ela!
— Aposto que você pensa que pode conseguir melhores resultados!
— Pois é isso mesmo — Irving retorquiu.
Fiquei furiosa e berrei: — Ótimo! Você é um sujeito tão brilhante e tão
estável! Por que você não tenta explicar-lhe as razões que levaram Deus a
criar árvores?
O desafio teve um resultado inesperado. Compelido pelo cego e
estúpido ego masculino, Irving gritou: — Pois veja se eu não consigo! —
Pegou Josie e sua guia enfeitada com pedrarias cor-de-rosa e saiu a jato do
apartamento. Aconteceu tão depressa que acredito foi mais um reflexo do
que uma verdadeira decisão racional.
Fiquei sentada com um sorriso satisfeito e toda minha raiva
desapareceu, tentando imaginar o que aconteceria: a expressão horrorizada
de Irving no instante em que se daria conta da realidade, compreendendo
que se encontrava na rua, em plena luz do dia, passeando com um poodle
praticamente nu, com lacinhos vermelhos enfeitando as orelhas! Passaram
cinco minutos sem que Irving voltasse e comecei a me sentir feliz: talvez
tivesse conseguido e estivesse começando a se sentir orgulhoso dela. Após
quinze minutos de espera fiquei radiante. Mas passada uma hora comecei a
ficar tão nervosa que estava prestes a chamar a polícia.
Antes de tomar essa medida, porém, chamei os meus amigos. Todos
tentaram me acalmar, explicando que Irving sempre fora muito cuidadoso
em respeitar os sinais do trânsito. Afinal, ia todos os dias para o escritório
e voltava de lá sem ser atropelado por um ônibus e sem cair numa boca de
lobo. Tive que convir que era verdade. Fiquei esperando por mais uma
hora.
Estava engolindo meu terceiro tranquilizante quando ouvi a chave na
fechadura. Calculei rapidamente que o passeio demorara praticamente três
horas e doze minutos. Josephine entrou e foi correndo para o New York
Times, pois estava quase estourando, e Irving ficou a observá-la com um
sorriso idiota nos lábios. Perguntei por onde tinham andado. E se ele tivera
algum sucesso com as árvores. (Mas era óbvio que não tivera, e aprestei-me
a limpar a aluvião no chão da cozinha.) Perguntei se Irving não
compreendia que tinha ficado preocupadíssima. Afinal, por onde foram?
Irving continuava com aquele sorriso idiota.
Finalmente disse: — Puxa! Essa cachorrinha é um chamariz e tanto!
Não tive o tempo de fazer outras perguntas porque de repente o
“chamariz” deitou no chão, pegou no sono ferrado e começou a roncar.
Tenho certeza absoluta que filhotes de seis meses nunca roncam! Irving
explicou que devia estar cansada, porque tinha andado aproximadamente
sessenta quadras. Comecei logo a massagear suas patinhas com óleo e
perguntei se ele tinha intenção de matá-la.
Continuando com aquele sorriso idiota, Irving começou a explicar.
Parece que de quadra em quadra tinham encontrado três ou quatro moças
bonitas que paravam, dizendo: “Ah, mas que delícia de cachorrinho!” Era
lógico que não poderia deixar de parar, por uma questão de polidez, para
deixar que as moças fizessem agradinhos na cachorrinha. Era óbvio que
sempre perguntavam pelo nome dela. Quando ouviam a resposta: “Josie
Mansfield”, muitas das moças perguntavam: — O senhor não é Irving
Mansfield, o produtor de televisão?
(Parece que as moças, em sua maioria, carregavam grandes frasqueiras e
pastas com fotografias — eram modelos e todas queriam trabalhar na
televisão. Por isso se apresentavam e tudo isso levava tempo.) Falei que
nunca tinha reparado que o Central Park fosse povoado por tantas bonecas.
Irving explicou que desistira do parque porque parecia muito úmido, e
ele estava usando seus novos mocassins italianos. Explicou também que a
Park Avenue é cheia de árvores.
E aconteceu assim: mais caminhava e mais gente encontrava, e todos
queriam conversar. Falou até com algumas pessoas conhecidas, como por
exemplo o Rudolph Bing.
— Você não conhece Rudolph Bing — afirmei categórica. Tinha absoluta
certeza disso.
— Mas agora conheço. O cachorro dele e Josephine ficaram se farejando
de maneira muito íntima.
A esse ponto Irving deitou no sofá para descansar um pouco. Acho que
estava esperando que massageasse também os pés dele com óleo! Mas eu
estava furiosa: tinha ficado me preocupando enquanto ele estava se
divertindo com o meu cachorro!
De repente falou: — Olhe, a próxima vez que você levar Josie para cortar
o pelo, não esqueça de experimentar lacinhos amarelos nas orelhas. A Jayne
Mansfield achou que amarelo ficaria muito bem. — Essa era boa: Jayne
Mansfield!
Irving adotou um tom defensivo: — O que é que você queria que eu
fizesse? Você queria que a afastasse a pedradas? Ainda por cima, a Jayne é
dona de um poodle. O Bobo dela é cor-de-rosa.
— O que?!
— O poodle dela, que se chama Bobo. Ela usa uma tintura vegetal. (Como
foi que vivi até hoje ignorando essa informação realmente vital?)
— Não há nada de errado em conversar com os donos de outros poodles
— explicou meu marido — e nem com os admiradores de poodles. É uma
ação socialmente aceitável, como conversar com pessoas desconhecidas
quando a gente viaja de navio.
E continuou com seu relato interminável. Contou dezenas de fatos.
Quando já começava a pensar que estivesse no fim, disse: — A próxima vez
que você a levar para cuidar do pelo, mande aplicar esmalte prateado nas
unhas dela. Zsa Zsa disse.
— Zsa Zsa — quem?
Irving sorriu com expressão compreensiva e divertida. — Zsa Zsa tem
um terrier maltês e me disse que...
À noite tomei um seconal. Peguei no sono enquanto sua voz continuava
flutuando na escuridão. Lembro-me que a última informação que recebi foi
que Josie adorava os outros cachorros. Especialmente aquela gracinha de
chihuahua da Abbe Lane!
11 O DIA DD.
Levei a cachorrinha para a Park Avenue logo no dia seguinte. Afinal, eu
também estava com vontade de viver. Os jornais anunciavam que Cary
Grant e Tony Curtis estavam em Nova York. Percebi logo que não havia
nenhum exagero nos relatos de Irving. Josie era um sucesso absoluto. Era
verdade: todas as mais lindas manecas pararam para admirá-la. Para mim a
coisa não era muito interessante e decidi mudar para uma outra avenida.
Pensei que a Madison seria bem diferente. De fato. Passei dez minutos
conversando com Arthur Murray, e na quadra seguinte parei por causa de
Charles Coburn. Você pode ver que não era meu dia de sorte.
Daí em diante limitei nossos passeios ao Central Park. Era o lugar para
se encontrar bastante cachorros e eu esperava que qualquer dia Josie
entendesse a utilidade de árvores. Parecia, porém, que Josephine já tinha
uma opinião formada a respeito. Mostrei-lhe todos os outros cachorros que
levantavam obrigatoriamente suas perninhas perto das árvores que só
esperavam por isso. Josephine observava, obediente, às vezes mostrava até
um certo interesse, mas limitava-se a ser uma espectadora.
Tentei convencê-la. Cheguei a pedir. Finalmente decidi instruí-la de
maneira prática. Levantei a perninha traseira dela e fiquei segurando-a
contra uma árvore por dez minutos. O único resultado foi uma aglomeração
de curiosos em volta de nós. Apesar disso, insisti. Meu lema era: “Deixe que
olhem, eles não me preocupam”.
Continuei com a instrução até me tornar conhecida por todos no parque.
Após um certo número de dias as pessoas deixaram de se aglomerar em
minha volta, e só um ou outro me lançava olhares curiosos.
Um belo dia em que estava exercendo meu novo hobby, passou uma
mulher gorda com duas fêmeas Airedale prenhes. A mulher parou e olhou
com bastante interesse.
Passados dez minutos, perguntou: — O que é que você quer que ela
faça? (Francamente, algumas pessoas são gozadas! Como é que a mulher
não entendia o que Josephine teria que fazer?) Não quis ser malcriada com
uma senhora de idade, gorda e acompanhada por duas cadelas prenhes, e
expliquei o que eu estava pretendendo.
A senhora gorda observou: — Mas ela é uma menina.
Concordei e voltei a segurar a perna de Josie contra a árvore. Josie é
dócil como um anjo e manteve sua perninha contra o tronco, mas
naturalmente não aconteceu nada do que eu esperava. (Estou convencida
que a cachorrinha faria qualquer coisa por mim, menos renunciar ao New
York Times.)
A senhora gorda continuou estudando a situação com muito interesse, e
finalmente falou: — As meninas não levantam as pernas perto de árvores.
Larguei a perna de Josie. Como assim?
Ela explicou: — Elas ficam de cócoras.
No mesmo instante ambas as cadelas prenhes, como se tivessem
recebido uma ordem, se botaram de cócoras, mostrando como procediam
as moças. Até Josephine ficou observando com muito interesse, apesar de
ficar um pouco confusa por aquela falta de modéstia. A senhora gorda e as
duas Airedale se afastaram satisfeitas.
Quando desapareceram de nossas vistas tentei forçar Josephine a se por
de cócoras. Josephine resistiu e olhou para mim como para ver se eu estava
louca. Insisti, mas quanto mais eu tentava, mais Josephine se tornava
rígida.
À noite contei a Irving a respeito da senhora gorda. Meu marido achou
que ela dissera coisas bastante sensatas e que valia a pena tentar. Na
manhã seguinte ambos saímos com Josephine e fomos até o parque. Fiz
duas ou três tentativas sem êxito, e depois disso Irving tirou a guia de
minhas mãos. Chamou minha atenção para o fato que durante muito tempo
eu tinha tentado arrancar a perna de Josephine, e agora estava me
propondo de quebrar-lhe a espinha.
Era o momento de entrar em ação. Mandou que eu fosse para casa e
prometeu não voltar até que não pudesse anunciar “missão cumprida”. Só
que ele achava que Josephine teria que chegar às conclusões apropriadas
pelo seu próprio raciocínio. Se ela assim o quisesse, meu marido estava
disposto a deixar que ela levantasse a perna, sentasse, ficasse de cócoras
ou plantasse bananeira. Porém, tudo teria que acontecer de maneira
natural, sem imposições e sem palpites da assistência. Explicou-me que
quando ele saía com Josephine não havia complicações. Quando paravam
para conversar, conversavam e bastava. E sempre conversavam com
pessoas simpáticas. Nunca se envolviam com gente desconhecida e
sobretudo não aceitavam palpites. Voltou uma hora mais tarde. Josephine e
Irving estavam radiantes.
Pulei da cadeira. — Ela levantou a perna?
Irving sacudiu a cabeça. Negativo.
— Ela ficou de cócoras?
Meu marido fez uma careta de tédio. — Será que você não pode pensar
noutra coisa?
— Pois então o que foi que aconteceu?
Sorriu para mim. — Ela ficou noiva.
— O que?
— Ficou noiva do Bobo Eichenbaum.
— Quem é esse sujeito?
— Um poodle, ora.
— Um poodle? Fiquei estarrecida.
Irving encolheu os ombros. — Pode ser que você prefira o Gregory Peck.
Mas ela está completamente satisfeita com um poodle.
Retruquei que nosso pequeno anjo ainda não sabia nada a respeito de
aves e árvores, e que ele não poderia desde já começar a pressioná-la e
impor-lhe um casamento.
Irving recomendou-me ficar calma, porque ambos não tencionavam
fugir aproveitando o fim de semana. Iam namorar bastante, iam ficar se
conhecendo bem, e quando ela quisesse, estabeleceriam a data. Num certo
sentido, não poderia deixar de acontecer, porque Bobo morava no mesmo
hotel. No quarto andar.
Na manhã seguinte fiz uma pequena investigação particular para saber
algo a respeito do meu futuro genro. Os mensageiros do hotel e as
arrumadeiras forneceram uma ficha completa. Bobo era um poodle preto
muito atraente e educado. A família de Bobo possuía companhias
financiadoras, clubes de golfe e alguns hotéis na Flórida. Bobo parecia o
tipo de homem que todas as minhas amigas solteiras estavam procurando
— uma lástima que fosse um poodle!
Achei que seria uma boa ideia telefonar à senhora Eichenbaum e explicar
porque Josephine estava obrigada a recusar o maior partido do ano.
Imprimi à minha voz a maior cordialidade e disse a ela que, não tendo
ainda conhecido Bobo, ela não deveria pensar que o que eu ia dizer fosse
motivado pela antipatia. Nada disso. Simplesmente, o noivado teria que ser
desmanchado. Josephine não ia casar com Bobo, aliás Josephine não ia
casar com ninguém! Em primeiro lugar, a saúde de Josephine era muito
delicada. Quando terminei de contar todas as dificuldades de Josie, a
famosa pneumonia de Liz Taylor parecia não ter sido mais que um vulgar
resfriado de cabeça.
Durante todo o meu monólogo tentei três pronúncias diferentes do
sobrenome Eichenbaum, e imaginei que pelo menos duas deviam estar
erradas, mas assim mesmo a senhora Eichenbaum não me interrompeu
sequer uma vez. Não fosse a sua respiração regular, que podia ouvir
claramente pelo fone, eu poderia ter imaginado que não estivesse me
escutando. Quando terminei, a senhora Eichenbaum deu o primeiro sinal de
vida: pigarreou.
Em seguida disse: — Vamos começar pelo início. Meu nome é
Eichenbaum. Como vai ser também o sobrenome de sua filha qualquer dia
desses, seria melhor que a senhora aprendesse a pronunciá-lo. A segunda
parte pronuncia-se como a primeira parte de bomba: bóm.
Respondi que jamais esqueceria esse detalhe, mas assim mesmo Josie
não ia se casar nunca.
A senhora Eichenbaum pareceu refletir um pouco. Em seguida
perguntou:
— Por que a senhora é tão contrária ao casamento?
Expliquei que era a favor do casamento, especialmente do casamento
com Irving.
— Muito bem. Mas por que o meu Bobo não pode se casar com a sua
Josephine?
Decidi que a senhora Eichenbaum merecia uma explicação mais
detalhada e comecei contando meu problema mais urgente: Florence Lustig
e seu filhinho Craig.
A senhora Eichenbaum comentou: Ts. . . ts. . . ts.
Continuei, dizendo que mesmo que acontecesse um milagre e Irving
reconsiderasse, permitindo-me ficar com Josephine, eu não poderia abusar
dele ao ponto de impor a meu marido os filhotes de Josie.
— Seu marido parecia muito entusiasmado com a ideia do casamento —
observou a senhora Eichenbaum.
— Pois não! Ele pensava que a senhora ia ficar com a Josie também.
A senhora Eichenbaum pensou um pouco. — Sabe de uma coisa? Até que
eu gostaria — respondeu a seguir.
— Mas eu não gostaria — berrei. — Quero que Josephine fique comigo. E
se ela tivesse uma cria, acho que não conseguiria me separar dos filhotes,
porque seriam os dela.
A senhora Eichenbaum começou a entender o que eu estava querendo
dizer. — Estou vendo. Você não poderia ficar com os filhotes, e
considerando isso, você acha que tanto vale que ela não tenha cria.
Respondi que era isso mesmo.
— Você poderia vender os filhotes — observou a senhora Eichenbaum,
que era uma mulher muito prática.
— Você venderia os filhotes de sua filha? — perguntei.
— Claro que não. Eu os daria aos meus sobrinhos. — Esperou um
instante e continuou: — Gostaria muito que Bobo se casasse. Todos os
meus sobrinhos sonham em ter um poodle. Sendo eu a mãe do noivo, posso
receber a taxa de cruzamento, ou então escolher o filhote que eu quiser.
— E sendo eu a mãe da noiva, eu ficaria com o que?
— Uma cadela prenhe.
— Quem estabeleceu essas normas? — perguntei indignada.
A senhora Eichenbaum explicou que isso era do regulamento do Kennel
Clube Americano. Ela não pretendia escolher um filhote. Precisava começar
a dar um poodle pelo menos a um de seus sobrinhos.
Minha curiosidade estava aguçada. — O que aconteceria se Josephine
tivesse um único filhote?
— Seria de meu sobrinho.
Achei que era uma injustiça. O machismo imperava até no mundo dos
cachorros. Minha queridinha teria que fazer todo o trabalho enquanto Bobo
se limitaria a distribuir charutos e filhotes!
Disse: — Gostei muito de conversar com você — e comecei a me
despedir da senhora Eichenbaum.
Ela porém retrucou: — Qual é a pressa? Ainda não resolvemos o maior
de seus problemas. Acho que juntando nossa sabedoria poderíamos talvez
encontrar um meio para você não ter que se separar de Josephine.
Senti-me cheia de alegria. Tinha perdido um genro, mas ganhara uma
amiga. Disse que estava pronta a receber qualquer palpite. A senhora
Eichenbaum não tinha palpites a dar naquela mesma hora, mas explicou
que pessoalmente ela se separaria do senhor Eichenbaum muito mais
facilmente que do Bobo. Ainda faltava um mês para chegarmos à data fatal,
e num mês muitas coisas poderiam acontecer. Despedi-me dela sentindo-
me muito mais aliviada.
O mês de junho pareceu voar. Antes que eu percebesse como o tempo
estava passando, já estávamos a só quarenta e oito horas do dia DD. Estava
deprimida. Josie também percebeu que algo estava errado. Fez o impossível
para me agradar. Parou de tossir. Aliás parou de tossir três dias antes.
Falando com Irving, mencionei que o período crítico estava superado. Ela
viveria feliz e contente por muito tempo — mas com quem?
Não entendia em que pé estivessem as coisas, apesar de estarmos a
quarenta e oito horas do dia DD; já fazia mais de uma semana que Irving
não mencionava Florence Lustig e seu filhinho Craig. Mas precisava encarar
a realidade — Irving já estava com nossas passagens para a Califórnia, e
não tinha feito nenhuma tentativa para ter uma licença para levar a
cachorrinha no avião. (Eu sabia que precisava de uma licença, pois tinha
perguntado a respeito.)
Decidi ignorar o assunto. Se alguém tivesse que falar alguma coisa, que
fosse o Irving. Ele sabia que eu costumo manter as promessas. Tinha
prometido que no dia marcado entregaria Josie sem cenas, traumas ou
recriminações.
É claro que ia retaliar. Não ia recriminar, mas também não ia falar com
ele por um mês ou dois. Só manteria minha promessa: nada de choros e de
cenas histéricas. Entretanto, não ia ser eu a entrar no assunto. Devia ser o
Irving. Foi o que ele fez naquela mesma noite, enquanto estávamos no
Sardi’s.
Pedira sua sobremesa favorita, uma delícia de chocolate.
Eu não pedi nada. Não estava com fome.
Ele disse: — Você não pode ficar sentada aí, sem comer.
Eu disse: — Você acha? Pois é isso mesmo que eu vou fazer.
Chegou a delícia de chocolate. Irving disse: — Olha que beleza. Você não
quer mudar de ideia?
Sacudi a cabeça. Passaram-se cinco minutos de horrível silêncio.
Irving disse de repente: — Florence Lustig alugou uma casa maravilhosa
em Long Island para o verão.
Respondi que era uma ótima notícia.
Ele disse: — Experimente uma colher dessa delícia.
Sacudi a cabeça.
Ele falou: — Aqui no Sardi’s as delícias de chocolate são perfeitas.
Espiei para o prato dele. — Já que é assim, por que você não está
comendo a sua?
Olhou para a sobremesa: — Acho que não estou com vontade. — Acenou
para o garçom levar a delícia de chocolate desmoronada e liquefeita.
Ambos continuamos mudos.
Irving disse de repente: — Olhe, nem que quiséssemos levá-la conosco,
o Hotel Beverley Hills não admite cachorros.
Não conseguia acreditar no que eu estava ouvindo. — Irving! Você não
quer mais se desfazer dela!
Assentiu. — Claro que não quero. Mas o que é que vamos fazer com ela
durante o verão? Não posso dizer a Florence Lustig que Josie vai ser
somente uma hóspede durante o verão. Também seria uma maldade fazer
isso com o garoto. Ele acabaria se afeiçoando a ela, e seria uma crueldade
tirá-la depois.
— Podemos colocá-la como pensionista numa criação de cachorros —
expliquei. — Tem uma porção em Westchester que aceitam pensionistas. Ou
poderíamos levá-la para a Califórnia e encontrar uma criação que a
aceitasse ali mesmo. E ainda por cima, sempre tem o senhor Ingram.
Irving ficou estupefato. — Para uma moça que estava pronta a se separar
da bichinha, você sabe um monte de coisas. Ou você lembrou de tudo isso
nesse instante?
Sorri e me recostei nele.
Perguntou: — Quem é o senhor Ingram?
— O senhor Ingram recebe cachorros em sua casa. Só aceita cachorros
famosos, e preferivelmente cachorros de pessoas ligadas com o show-
business. Já hospedou o cachorro de Myrna Loy, o cachorro de Polly
Bergen, o cachorro de Merv Griffith. Os cachorros ficam na casa dele como
se estivessem em suas próprias casas, e se quiserem dormir na cama dele,
ele deixa. Mas cobra muito caro.
— O que quer dizer, caro? — perguntou Irving.
— Caro, quer dizer cinco dólares por dia.
Irving olhou friamente para mim. — Se nós podemos nos dar ao luxo de
ficar no Hotel Beverly Hills, ela pode se dar ao luxo de ficar na casa do
senhor Ingram!
Percebi que eu estava com os olhos rasos de água. Só consegui dizer:
Irving, eu amo você.
Meu marido continuou: — Amanhã de manhã fale com esse senhor
Ingram. Quero me encontrar com ele. Minha cachorra vai passar o verão na
casa dele, mas antes quero ver as referências!
Ficamos a nos olhar, radiantes. Irving pediu outra delícia de chocolate.
Com duas colheres.
12 REUNIÃO DE FAMÍLIA
Durante todo aquele verão tivemos muitas saudades de Josie, mas o
senhor Ingram escrevia frequentemente para nos manter a par de suas
atividades. Ela estava feliz e com boa saúde, escrevia o senhor Ingram. No
fim do verão mandei-lhe uma cartinha avisando o dia de nossa chegada.
Sabia porém que aterrissaríamos à meia-noite e expliquei ao senhor Ingram
que poderia entregar Josie na manhã seguinte.
O vôo foi ótimo. Tivemos alguma turbulência, mas não liguei. O medo
de voar é um fator psíquico. É muito fácil de controlar. Basta lembrar que o
piloto conhece de sobra todos os segredos da profissão dele, que o avião é
testado após todo vôo, e manter-se firme nessa convicção enquanto se
tomam duas pílulas para dormir com uma garrafa de cerveja. Voar dessa
maneira é uma glória.
Após aterrissarmos no aeroporto Kennedy, escolhi o banco mais
confortável e me preparei a ver Irving se desdobrar nas costumeiras
manobras para recuperar nossa bagagem. Fiquei estupefata vendo que ia na
direção oposta para se enfiar numa cabina telefônica. Aproximei-me dele
porque estava realmente curiosa.
Irving estava conversando com o senhor Ingram, anunciando sua
intenção de passar daí a pouco para apanhar nossa pequena joia. O senhor
Ingram possivelmente tivesse outros programas para a madrugada, porque
percebi que a voz de Irving se fazia seca.
— O que é que há? Todo mundo está dormindo? Só passa pouco da
meia-noite, e Josie nunca dorme antes das duas ou três da madrugada.
Parou durante alguns instantes. O senhor Ingram devia estar explicando
que a hora era inconveniente.
Irving ficou firme: — Senhor Ingram, não me interessa o que foi que a
senhora Mansfield escreveu. Vamos passar ainda essa noite para apanhá-la!
Saiu da cabina com a expressão de um guerreiro vitorioso, olhando para
mim com desdém, como a dizer: “Bela mãe que é você”!
Fiz uma exceção e não disse nada. Estava muito impressionada com a
nova atitude paterna de Irving. Acredito que o senhor Ingram também ficou
impressionado. Quando chegamos em frente a casa dele, estava nos
esperando na calçada, com um sobretudo enfiado por cima do pijama e
Josie nos braços. Josie manifestou sua alegria de maneira histérica.
Esqueceu do senhor Ingram após dar-lhe uma breve abanada com seu
rabinho e dedicou-se apaixonadamente a cobrir nossos rostos com centenas
de beijinhos.
O senhor Ingram ficou a observá-la com evidente adoração. — A Josie é
uma cachorrinha incrível. Nenhum dos cachorros que ficaram conosco
jamais teve nem uma parcela de seu encanto e de sua personalidade!
(Constatei que o senhor Ingram também estava gamado!) Josie nem se
lembrou de olhar para o senhor Ingram enquanto o táxi prosseguia seu
caminho. Estava ocupadíssima em distribuir carinhos em quantidade
industrial entre Irving e mim, até que chegamos perto do hotel. A esse
ponto ela parou para emitir alguns sons de evidente satisfação.
Irving ficou estupefato. — Ela está reconhecendo a rua!
Quando paramos em frente ao hotel, Josie pulou do táxi e nos arrastou
até a beira da calçada, e se acocorou. Ficamos cheios de orgulho!
Irving mandou que o porteiro e o mensageiro parassem de descarregar
malas para poder observar o milagre. Até desabafou com o motorista. Ela
só estava com oito meses, e era simplesmente genial!
Bobo Eichenbaum e seus pais estavam no saguão. Irving não se conteve
e relatou o que acontecera na calçada. O senhor Eichenbaum concordou que
era uma façanha gloriosa. Estava um pouco preocupado com Bobo. Bobo
também tinha o hábito de se por de cócoras. Mas os meninos não deveriam
agir dessa forma. A senhora Eichenbaum defendeu Bobo acaloradamente.
Disse que isso era assim porque Bobo era ainda muito jovem e inocente.
Sem dúvida, não havia outros motivos para isso.
Irving às vezes consegue ser de uma franqueza brutal e disse: — Se
quiser saber a minha opinião, sempre pensei que o Bobo fosse um maricas.
A senhora Eichenbaum ficou muito chocada, mas o senhor Eichenbaum
era muito mais realista. Explicou: — Já disse mil vezes à minha mulher que
o Bobo não pode andar com aqueles lacinhos amarelos pendurados nas
orelhas.
— Acho que fica ótimo com os lacinhos — insistiu a senhora
Eichenbaum. — E o fato de ele se por de cócoras não quer dizer nada. Tem
instintos perfeitamente normais. Olhem só como age com a Josephine.
Olhamos todos. Bobo estava sentado em suas patas traseiras e com as
mãos pedia a atenção de Josephine. A esse ponto o destino se encarregou
de introduzir um novo elemento, e os acontecimentos que se seguiram
convenceram todos que não havia nada de errado com a masculinidade de
Bobo. Apareceu mais um poodle. Era um lindo “pari” branco e preto
chamado Brandy, e acabava de chegar do Texas. Brandy olhou para Josie e
se apaixonou por ela no mesmo instante.
Josie observou Brandy mas não se interessou por ele. Bobo continuou
sentado, pedindo atenção. Brandy se fez um pouco mais agressivo. Chegou
perto de Josie, farejando-a. Bobo parou de agitar as mãos e levantou uma
orelha. Brandy deu mais uma farejadinha. Bobo ficou estupefato. Brandy
quis manifestar sua admiração de forma mais evidente e Bobo pulou para
matar o Brandy.
Tudo aconteceu muito rápido. Bobo pulou agarrando Brandy pela
garganta, os dois cachorros começaram a rolar, rosnando e guinchando. O
saguão inteiro ficou uma bagunça. Dois mensageiros, o senhor Eichenbaum,
Irving e o pai de Brandy correram para separar os dois, enquanto a senhora
Eichenbaum gritava a plenos pulmões. Segurei Josephine e também
comecei a gritar por socorro. Tinha certeza que nenhum dos dois cachorros
ia sobreviver. Josephine ficou observando tudo com calmo interesse.
Finalmente conseguiram separar Bobo e Brandy; Bobo tinha um lábio
rasgado e sangrando, Brandy tinha perdido um bom chumaço de pelos
perto da garganta. Nenhum dos dois estava seriamente ferido. Levaram
Brandy para a rua, para tomar um pouco de ar. A senhora Eichenbaum ficou
sentada no sofá com dificuldades de respiração, e o senhor Eichenbaum
tentou acalmar Bobo.
Josephine se recostou no sofá e dormiu. A senhora Eichenbaum olhou
para ela com bastante desprezo. — Olhem só. Os dois quase se mataram
por causa dela, e ela nem se importa.
Carreguei rapidamente Josie para o elevador. Josie nem sequer olhou
para o lado de Bobo para lhe desejar boa-noite, e acredito que foi essa a
razão que induziu a senhora Eichenbaum a exclamar maldosamente:
— Pois sim, uma mulher fatal e com aquele corpo!
Parei perto do elevador. — O que é que há com o corpo dela?
— Ela não tem linha nenhuma. Olhe só para o barrigão dela!
Irving e eu ficamos mudos até que chegamos ao nosso andar. Tão logo
ficamos a sós no apartamento, inspecionamos nossa queridinha. A senhora
Eichenbaum não estava de todo errada. Josie não tinha mais aquela bonita
linha côncava.
Irving achou que devia defendê-la. — Ela não está gorda. Precisa de uma
aparadinha no pelo. E seu pelo é realmente estupendo.
Mas, na barriga? Irving admitiu que realmente a partir das costelas ela
não encolhia como Bobo ou Brandy. Na opinião dele, das costelas em diante
ela continuava em linha reta. Eu já via as coisas de maneira diferente. A
partir das costelas, ela estava definitivamente gorda.
Irving retrucou que possivelmente as meninas poodles tinham todas
aquela aparência. Afinal, elas tinham ou não tinham dez ou onze mamas? E
afinal, nenhuma moça muito magra pode ser atraente. Todas as maiores
beldades eram bastante avantajadas. Era suficiente citar Sofia Loren e Anita
Ekberg!
Respondi que Grace Kelly sempre foi magra e teve bastante sucesso.
Irving insistiu que Grace Kelly era um tipo diferente. Josie era morena — o
gênero de morena sensual, como Liz Taylor.
Eu não era louca para discutir com ele. Em primeiro lugar porque estava
cansada e, em segundo lugar, porque também sou morena. Se Irving
pensava que Josie se parecia com Sofia Loren e Liz Taylor, porque haveria
eu de estragar a festa, apontando para alguma diferenças negligíveis?
Afinal, quem estava pagando as contas de Josie era Irving, e não a senhora
Eichenbaum.
13 CALORIAS ENGORDAM!
A genial explicação de Irving a respeito da ampla cintura de Josephine
proporcionou-me uma falsa sensação de segurança. Nossa belezinha
avantajada continuou se desenvolvendo durante todo o outono e o inverno.
Demorou e me acostumei tanto em vê-la rechonchuda que fiquei me
convencendo que isso era parte integrante de sua brilhante personalidade.
Acabei não me incomodando mais quando os mensageiros do hotel a
cumprimentavam: — Olá, gorducha. — E achava graça quando gente
estranha, que passava na rua, observava: — Olha só que bolota.
É natural que nenhum dos meus bons amigos jamais disse que ela
estava gorda. Nunca saberei se eles não perceberam, ou mais simplesmente
quiseram poupar meus sentimentos. Tenho certeza que Bea Cole não fez de
propósito. Falou sem pensar. Afinal, Bea Cole é uma das minhas mais
velhas e queridas amigas.
Estávamos sentadas, uma tarde, jogando a bola para Josie. Disse a Bea
que havia a possibilidade de Irving e eu termos que ir para a Califórnia para
uma breve estada, e que eu estava indecisa se levaria Josie conosco ou
deixá-la-ia aos cuidados do senhor Ingram.
Bea disse: — Por que você não a deixa conosco? No verão passado ela
ainda era muito pequena e também doentinha, mas agora ela já está com
um ano, está bem educada, e para mim seria facílimo.
Como não respondi, Bea perguntou: — Você não tem confiança em mim?
— Eu tenho toda confiança em você. É que eu me preocupo por causa de
Karen.” (Karen é a filha de Bea. Tem cinco anos.)
— Karen adora cachorros.
— Tenho certeza que sim. Mas, Bea, crianças acham que cachorros são
brinquedos. Ela poderia tratar Josephine de maneira rude, sem querer; você
sabe, pisá-la ou deixá-la cair. Karen não entende ainda que os poodles são
realmente muito delicados.
Foi a esse ponto que Bea disse algo que me deixou arrasada. —
Delicados, hein? Do jeito que a Josie está, acho que é a Karen que corre o
risco de ser amassada por ela.
Minha voz era mortalmente fria quando perguntei: — Você está
querendo dizer que Josie está gorda?
Bea não arredou pé. — Estou querendo dizer que do jeito que ela está,
você será obrigada a mandar fazer sua nova capinha de inverno sob medida
por Lane Bryant.
Nossa longa amizade ficou perigando durante cerca de dez segundos.
Finalmente minhas emoções foram dominadas pelo raciocínio e
compreendi que Bea tinha a melhor das intenções. Observei atentamente
Josephine. “Talvez fosse melhor mandar cortar seu pelo de maneira
diferente.”
Bea ficou firme: — Acho que você devia por uma cinta elástica nela e
levá-la a fazer um curso de ginástica com Vic Tanny.
Decidi tentar primeiro um corte diferente. Logo no dia seguinte levei-a
correndo à Boutique dos Poodles. Falei com Mel Davis, que sempre cuidava
dela, e pedi que mudasse o corte holandês dela. Os ombros e os quadris
muito cheios a deixavam quadrada.
Mel ficou estudando Josephine. — Poderia fazer o corte esportivo.
Rasparia o corpo todo, deixando pelo somente nas pernas, mas talvez não
seja a solução certa. Assim, com os ombros e os quadris cheios a gente não
repara na barriga dela.
Até o Mel? Perguntei se achava que Josie estava gorda.
Mel foi muito diplomático. — Ela está meio rechonchudinha na cintura.
Acho, porém, que isso faz parte da personalidade dela. (Josie não somente
era uma boa cliente, mas também distribuía polpudas gorjetas.) Disse a Mel
de dar a Josie um corte esportivo.
Voltei às cinco em ponto para buscar Josephine. Mel cumprimentou-me
com um jeito um pouco estranho. Aliás, todos na loja estavam um pouco
esquisitos, menos Josephine. Josephine estava ridícula. Por um instante,
ninguém falou. Em seguida Mel minimizou a situação com uma sentença
histórica.
— Acho que talvez o corte holandês fosse mais vantajoso.
Não falei nada, porque estava refletindo que talvez Ira Senz pudesse
fabricar uma espécie de peruca — que ocultasse a barriga de Josie. Ela é
uma morena absoluta — mas seu couro é totalmente alvo. Sem os pelos
compridos e armados dos ombros, a barriga era muito mais visível: branca,
enorme, sem disfarces. Não havia mais pelo armado que ocultasse aquela
alvura esplendorosa.
Mel disse: — Pode ser que ela esteja com um tumor.
Ela devia estar doente! Saí da “boutique” e levei Josie correndo até o
hospital do doutor White. O doutor Blue atendeu. (O doutor White estava na
cirurgia.) O doutor Blue olhou para Josie e mandou chamar o doutor Black e
o doutor Green. Todos ficaram a olhá-la, estupefatos. Alguém falou em
edema. Outro alguém falou em mau funcionamento dos rins. Todos
concordaram em fazer imediatamente raios X.
Cinco minutos mais tarde recebi o responso. Nenhum tumor. Nenhum
edema. Era gordura mesmo. O remédio: nada de biscoitos, nada de
guloseimas, somente uma refeição por dia!
“Uma refeição por dia?”
— Uma refeição por dia, oito onças de carne moída e só — sentenciou o
doutor Black.
Expliquei que oito onças de qualquer coisa para Josie representavam um
simples tira-gosto.
Quando começaram a explicar a respeito da gordura que envolvia o
coração, a respeito de asma, e a respeito de pneumonia, parei de discutir.
Conseguiram me convencer. Agora só me restava convencer Irving e Josie.
Irving deu-me algum trabalho. Quando viu Josie com o novo corte ficou
quase em estado de choque. Quando expliquei a respeito das oito onças de
carne moída, explodiu. Acusou-me de andar à procura de complicações.
Não ligava a mínima para as opiniões de Bea Cole. Era uma moça bonita e
uma boa atriz, mas isso não era o suficiente para se erguer em juiz e
prescrever o regime de Josie. E os veterinários do hospital do doutor White
— pois era lógico, queriam que ela ficasse magra para poder prescrever
injeções fortificantes quando ficasse anêmica. Uma só refeição por dia? E o
desjejum? Os veterinários sabiam que éramos gente de teatro? Os
veterinários sabiam que Josie tinha nossos mesmos horários e que nem
podia começar o dia de maneira decente sem tomar seu segundo pires de
café?
Expliquei que o doutor Blue dissera que gente magra vive mais. Irving
disse que isso era tolice. Argumentou que Sophie Tucker fazia tempo que
tinha passado dos setenta, e apesar disso trabalhava durante cinquenta e
duas semanas todos os anos, dando dois shows por noite, e vendia seus
próprios discos no intervalo para promover uma clínica para crianças
retardadas. O doutor Blue seria capaz de fazer isso?
Expliquei então a respeito da gordura em volta do coração e a respeito
da asma. Apesar de Josie ter a silhueta de Sophie, era bastante possível que
para os cachorros a gordura fosse realmente prejudicial. Irving se acalmou.
Quando fomos nos sentar para tomar nosso uísque Irving não colocou no
chão o pires de amendoins salgados que sempre oferecia a Josie. Estava
acabando a era do café, dos biscoitos, dos amendoins, das batatas fritas e
do caviar. Basta de refeições de “Danny’s Hideaway” e não mais “caneloni”
de Sardi’s.
Sim, Josie comera tudo isso. E agora a boa-vida estava para mudar de
maneira radical.
14 O CÍRCULO FAMILIAR
Os bons propósitos duraram exatamente quarenta e oito horas. Às seis
horas da tarde de sexta-feira Irving chegou em casa trazendo um frango
assado quentinho. Frango é o prato preferido de Josie.
Começou logo a dançar freneticamente em volta do saquinho enquanto
Irving falava com sua voz mais suave: — Veja aqui o que paizinho trouxe
para você. Sua mãe quer que você morra de fome. Só porque a mãezinha
trabalha na televisão e acha que é lindo ter cara de morfética, não vou
permitir que ela deixe minha cachorrinha morrer de fome.
Fiquei furiosa. Josephine entende todas as palavras, e uma conversa
desse tipo poderia afastá-la de mim. Tentei explicar a ambos que comida
muito temperada iria levá-la à destruição e que precisávamos lembrar o que
o veterinário tinha dito a respeito de gordura e colesterol.
Josephine me fitou friamente e logo em seguida deu toda sua atenção a
Irving, emitindo breves sons que provavam que estava praticamente
extasiada em frente àquele saquinho tão cheiroso. Irving tirou a embalagem
e começou a dar a Josie pedaços de frango que ele partia com as mãos,
tendo o máximo cuidado de não dar-lhe nenhum osso. É inútil dizer que ele
me deu uma explicação muito lógica para essa incrível quebra de regime.
— Ela vai voltar ao regime amanhã. Hoje, não. Hoje é sexta-feira.
— O que há de tão especial numa sexta-feira?
— Quando eu era garoto e morava no Brooklin todo mundo comia frango
no jantar da sexta-feira.
— Mas ela não é nenhum garoto e não mora no Brooklin. Ela é uma
poodle com excesso de peso e mora em Central Park South.
Não adiantou nada. Ambos decidiram de não prestar ouvidos às minhas
recriminações. Irving acrescentou que era possível que ela fosse um pouco
gorda “por natureza”. Tinha a impressão que Josie tivesse puxado
tendências da família dele. Os traços dela eram parecidos com os da mãe
de Irving, ele disse. Ossos delicados, mas um pouco grossa na cintura.
Não pude desistir de contar tudo à mãe de Irving, um amor de mulher,
que aceitou esse raciocínio com uma expressão estupefata. Adoro minha
sogra, e nem posso explicar até que ponto. Basta dizer que para mim ela
nunca foi uma sogra: é uma das mulheres mais meigas que já conheci,
sempre pronta a se sacrificar em benefício dos outros, e também a melhor
de minhas amigas. Ela, porém, acha que animais são simplesmente animais.
Animais não podem ser parentes. Animais deveriam ficar no zoológico ou
no mato. Cavalos deveriam atuar na televisão ou estarem debaixo de
policiais. Os gatos serviam para comer ratos. E os cachorros — talvez os
cachorros foram criados para comerem os gatos. Cachorros que comiam
frangos e iam ao cabeleireiro eram uma novidade para ela.
No dia do meu casamento ela me abraçou e disse estar feliz por ter
ganho uma filha, em vez de perder um filho. Ela sempre quisera uma filha.
Mas quando adquirimos Josie, ela não mostrou entusiasmo nenhum — por
ter ganho uma neta barriguda e de quatro patas.
Muito pelo contrário. Pareceu-me que ela começasse a se preocupar um
pouco com a saúde mental de Irving. Durante a depressão dos anos trinta,
ela e o marido tiveram que fazer muitos sacrifícios para que Irving pudesse
completar os estudos, e ele nunca se esqueceu disso. Ela sentia-se muito
orgulhosa pelo sucesso do filho, mas não costumava contar vantagem a
respeito. Estava convencida de que o filho era mais bonito que Ronald
Colman. (Não adianta você falar em Cary Grant, Robert Taylor e todos os
outros. Ela gostava do Ronald Colman.)
Quando Irving a ajudava a fazer as contas do mês e lhe explicava os
mistérios das anotações nos canhotos dos cheques, ela repetia que era
muita sorte de Einstein que Irving tivesse escolhido fazer uma carreira no
mundo do espetáculo, em vez de se dedicar à metafísica. Por isso, quando
viu de repente seu filho brilhante e genial transformado em pai de um
poodle, falando com esse poodle como se fosse um nenê, ela
provavelmente sentiu-se bastante preocupada.
Mas eu já expliquei que ela era uma mulher notável. Nunca me culpou
pela transformação do filho. Limitou-se a fazer observações inócuas, como
por exemplo: “Todo homem é dono de seu destino”, ou “Se um homem
adulto e formado numa universidade se sente feliz em ser a babá de um
poodle, não vejo motivos para me intrometer.” Explicou também que
achava muito engraçado que nós nos considerássemos o paizinho e a
mãezinha do poodle. Estava porém curiosa em saber se o poodle realmente
pensava que éramos seus pais, ou simplesmente dois criados
extraordinários que só viviam para satisfazer todos os seus desejos. De
qualquer forma, ela observou, se éramos felizes assim, nada mais tinha
importância. Em seguida fez algumas alusões ao tio Louis, parente do pai
de Irving, que nunca fora muito inteligente e que, envelhecendo-se, tornou-
se um pouco fraco das faculdades. Disse a esse respeito que não acreditava
num fator hereditário, mas que talvez fosse oportuno fazer um “chek-up”.
Deixou bem claro que pessoalmente não hostilizava Josephine. Até
concordou com o Irving dizendo que um pouco de gordura nunca fez mal a
ninguém. E que todo mundo devia comer frango na noite de sexta-feira.
Nunca deu palpites e nunca fez perguntas de caráter pessoal. A única
vez em que essa mulher maravilhosa deu alguns sinais de contrariedade foi
quando, numa de suas visitas semanais, tentei uma aproximação mais
estreita entre ela e Josie, tipo relacionamento neta-vovó. Levantei Josie até
a altura do rosto dela quando entrou pela porta e murmurei meigamente: —
Josie, vovó chegou. Dá um beijinho na vovó.
Como era de se esperar, Josie obedeceu. Desejava muito fazer uma boa
impressão, e se esforçou bastante. Começou a lavar o rosto da vovó com
afinco — incluindo o véu e o chapéu.
Vovó se afastou um pouco e falou com muita ternura: — Você não acha
que ela poderia me chamar de Annie? — Compreendi perfeitamente e parei
de chamá-la vovó.
15 COMPLICAÇÕES NA VIDA DE UMA MORENA MARAVILHOSA
Quando a primavera chegou percebemos que ela se transformara numa
beldade realmente extraordinária. Todo mundo dizia isso. Era tão linda que
quase não dava para notar que sua cintura continuava um pouco farta
demais. As orelhas chegavam até os ombros. Os dentes pareciam marfim.
Seus olhos eram meigos e mais lindos que zibelina. O cabelo (tecnicamente
conhecido como pelagem) era preto azulado, farto e naturalmente jeitoso.
Se não estivesse absolutamente biruta por ela, sentiria ciúmes,
especialmente quando Irving olhava primeiro para ela e depois para mim,
dizendo: — Sabe de uma coisa? Antes de Josie eu sempre pensei que seus
cabelos eram pretos. — Fitou-a com ternura: — Você não acha que
precisaríamos mandar fotografá-la?
Assenti. Ambos ficamos em silêncio.
Após um intervalo, falei: — Poderia falar com Bruno de Hollywood.
Tenho certeza que a fotografaria bem.
Irving refletiu um pouco. — Bruno é ótimo para você, mas talvez seria
melhor encontrar algum fotógrafo especializado em cachorros.
Disse: — Vou procurar um.
Respondeu-me: Faça isso, sim?
Logo em seguida mudamos rapidamente de assunto. Sempre evitamos
os assuntos perigosos, como por exemplo, coisas que para um ou outro de
nós representam fracassos. Em matéria de fotografias, Irving é um fracasso.
Eu sou a negação absoluta.
Irving e eu somos realmente muito unidos. Somos unidos até em
matéria de golfe, amigos e carreiras. Infelizmente, somos unidos também
por termos cérebros que automaticamente se recusam a funcionar quando
entram em contato com geringonças mecânicas ou eletrônicas.
Irving consegue produzir sozinho o mais complicado espetáculo de
televisão, e nesse campo sempre vai se sair ganhando. Mas deixá-lo sozinho
para encher um isqueiro com fluido pode resultar num desastre.
Nunca mais vou esquecer aquele lindo isqueiro forrado em couro que
ganhamos de George S. Kaufman no Natal. Funcionou durante três semanas
como um verdadeiro archote. Mas como acontece com todos os isqueiros,
um belo dia ficou sem fluido. Irving disse: “Pode deixar comigo”. Se
qualquer outro marido falasse assim, a esposa poderia concordar e
continuar dedicando sua atenção a outros assuntos.
Mas foi o Irving que falou! O isqueiro ainda por cima era lindo. Corri
para apanhá-lo. — Por favor, Irving. Não mexa no isqueiro. Vou chamar o
eletricista do hotel para colocar o fluido.
Irving afastou-me e apanhou o isqueiro. — Você vai ver que dessa vez
vou conseguir. Passei na loja Dunhill e recebi instruções detalhadas. É só
saber como; encher esse isqueiro é realmente fácil.
O tom de Irving era autoritário e começou a manejar o isqueiro com ar
profissional. Primeiro, tirou o paletó; em seguida arregaçou as mangas da
camisa. Apanhou uma toalha de banho e colocou-a sobre a mesa. Com um
gesto mandou que me afastasse para não perturbar sua visão. Com a
pedanteria de um cirurgião que prepara seus instrumentos, colocou sobre a
toalha uma moeda, uma latinha de fluido e uma pinça de arrancar
sobrancelhas, todos enfileirados. (Apesar de tudo, comecei a ficar
impressionada.)
Colocou a moeda na fenda do parafuso, na base do isqueiro. Antes que
eu conseguisse dizer: — Irving, talvez você não devia. . . — o isqueiro se
abriu.
Aliás, o isqueiro não se abriu propriamente, mas foi eviscerado. Fios de
arame, molas e outras pecinhas caíram na mesa. Irving não pareceu
impressionado. Apanhou a pinça com muita calma e puxou o pavio para
cima. Com o ar de um cirurgião que explica aos estudantes, disse: — Isso é
para aumentar o tamanho da chama.
Largou a pinça e abriu a latinha de fluido. Virou o isqueiro para colocar
o fluido. De repente, parou.
— Está cheio de algodão. — Arrisquei uma espiadinha. Era verdade.
Estava mesmo cheio de algodão.
— Ninguém mencionou o algodão — disse.
— Faça de conta que você não viu nada — implorei. — Você está
procedendo muito corretamente. Procurei não olhar para todos aqueles
objetinhos de todo tipo que estavam em cima da mesa.
Irving colocou uma pedrinha nova, mas vi que suas mãos estavam
tremendo levemente. A presença do algodão fora um choque. Enquanto
colocava o isqueiro em sua capa e inseria todos os objetinhos, começou a
perder a confiança. Terminou o trabalho, apesar de tudo. Fez um trabalho
excelente. Recolocou todas as pecinhas e finalmente só sobraram duas
pequenas molas. Conseguiu fechar a rosca com a moeda. Tudo parecia
perfeito. Mas o isqueiro se recusou a funcionar.
Irving olhou-o durante alguns instantes, depois se aproximou da janela,
abriu-a, respirou profundamente e arremessou o isqueiro para o espaço
com todas as suas forças.
Qual foi minha reação? Fiz o que qualquer boa esposa teria feito. Joguei
fora as molinhas que sobraram e fechei a janela. Esse é o relato de nosso
encontro com um isqueiro. Agora, você pode imaginar o que conseguimos
fazer com uma máquina de fotografar?
Poderia contar também como quase morremos eletrocutados com uma
cafeteira automática. Como conseguimos um curto circuito geral no hotel
inteiro quando ligamos pela primeira vez nosso condicionador de ar. . .
mas não vejo razão de aborrecer ninguém contando nossos pequenos
fracassos científicos. Irving acha que John Glenn é um semideus por ser
capaz de usar todos aqueles botões do painel, mas respeita muito também
o macaco que serviu para o teste de lançamento. Pois eu concordo. Irving
poderia comer toneladas de bananas mas nunca aprenderia a reconhecer os
botões certos.
Quando surgiu a ideia de mandarmos fotografar Josephine, nem
pensamos na possibilidade de fazer isso pessoalmente. Após um cuidadoso
inquérito, descobri um homem que todos diziam ser um fotógrafo genial de
cachorros. Falei com ele e fiquei realmente impressionada com suas
referências. Fora o fotógrafo de todos os mais conhecidos cachorros de
Hollywood. Acabava de abrir seu estúdio de Nova York. Explicou-me que os
cachorros de Hollywood precisaram de muitos truques para se saírem bem.
Com uma escova de ar tivera que encurtar bochechas, aumentar rabos
praticamente sem pelos, e encompridar orelhas. Conhecia todos os macetes
da profissão. Após um demorado exame de Josie sentenciou que precisaria
disfarçar uma polegada ou duas de cintura, mas que pelo resto ela era
absolutamente perfeita.
Josie foi ao cabeleireiro e chegou na hora marcada no auge da glória e
cheia de lacinhos. Não tive dificuldade nenhuma em mostrar-lhe como
posar. Foi suficiente mostrar-lhe um biscoitinho, que recebeu após o clique.
Após o terceiro clique Josephine entendeu perfeitamente e ficou tão
entusiasmada com a coisa que acredito começou a pensar em se tornar uma
modelo profissional. Ficou sentada, virou-se, levantou-se a pedido, e após
cada pose, mastigou. Como já disse outra vez, ela faria qualquer coisa por
mim — e por um biscoito.
O fotógrafo ficou encantado com ela. — Ela é positivamente o má-xi-mo!
— murmurou. — Ah, ela vai se sair di-vi-na-men-te! Resolvi o problema da
barriga com uma iluminação ma-ra-vilhosa! Aquela expressão. . . Josie, você
é o máximo, você é a glória! Aquelas orelhas! Ela deveria estar no cinema.
Nenhum cachorro que fotografei tinha olhos assim. Ela é a maior de todos.
Vou tomar um close daquele focinho — com aqueles olhos. São olhos
humanos. Meu amor, pare de mastigar esse horrível biscoito, parece feito
com serragem. Como é que eles PODEM gostar dessas drogas. Pronto, meu
amor, agora abra bem aqueles seus olhos ma-ra-vi-lho-sos, minha
queridinha. (Os olhos da queridinha estavam quase que esbugalhados. Ela
nunca encontrara ninguém parecido com o fotógrafo.)
Ele continuou seu monólogo: — Vou mandar essas fotografias a Vogue.
O pessoal da redação vai ficar louco. Eles já me pediram para trabalhar para
eles, mas recusei, é claro. Queridinha, eu ficaria biruta fotografando
sempre aquelas moças chatas. Mas fotografar Josephine é o máximo, o
máximo!
Continuou a falar com entusiasmo da beleza de Josephine enquanto
guardava seu equipamento. Senti-me emocionada. Já estava imaginando a
expressão da mãe de Bobo Eichenbaum, vendo uma fotografia de página
inteira de Josephine na Vogue. Josie, junto com todos aqueles manequins
magros de alta costura!
Nem precisa dizer que quando o fotógrafo pediu um adiantamento de
cem dólares, não discuti e preenchi o cheque. Explicou-me que pretendia
fazer algumas ampliações de vinte e cinco por vinte. Pretendia até oferecê-
las à Life para a capa. Já fazia anos que Life estava querendo publicar
fotografias dele.
Em seguida me beijou e beijou Josephine. — Meus amores, detesto ter
que ir embora, mas preciso correr. Vou mandar as provas em menos de
uma semana.
Saiu dançando pela porta. Josie sentiu muito. O homem tinha feito pelo
menos setenta e cinco fotografias. Para Josie, ele representava setenta e
cinco biscoitinhos.
O homem manteve a palavra e mandou as provas após só cinco dias.
Abri o pacote e fiquei estupefata. Não consegui acreditar em que meus
olhos estavam enxergando. Eu estivera presente. Não fosse por isso,
poderia jurar que as fotos eram obra do Irving. Setenta e cinco poses:
setenta e cinco manchas de tinta, dessas que se usam para testes. Não se
viam os olhos, não se via o focinho, não se viam os dentes! As orelhas eram
invisíveis. O close parecia a ampliação de um teste de Rorschach.
Liguei para o fotógrafo e comecei a berrar. Ele também berrou do outro
lado da linha. Disse que as cores de Josie eram péssimas para fotografias.
Era sempre mais difícil fotografar morenas, e ela era uma morena completa.
Olhos negros, nariz preto. . .
Perguntei o que ele queria que fizesse. Teria que clarear o nariz dela e
colocar lentes de contato azuis?
Ele teve uma ideia. — Meu amor, diga-me o que é que você faz na
televisão para que seus cabelos fiquem luminosos?
— Aplico um pó dourado.
— Pois é isso! Vou já para lá. Vamos fazer tudo de novo. Saia já e
compre uma tonelada de pó dourado.
Fui. Comprei também mais uma caixa de biscoitinhos. Josie ficou
encantada. Não se importou em se tornar uma meia loira. De fato, ficou
muito bem. Tivemos mais setenta e cinco poses, acompanhadas por setenta
e cinco biscoitinhos. O fotógrafo saiu, prometendo setenta e cinco
maravilhosas fotografias. Chegaram oito dias mais tarde. Eram setenta e
cinco fotos de um poodle malhado, sem olhos, sem focinho e sem
expressão.
Irving falou horrores para o fotógrafo, e depois me disse também
algumas coisas desagradáveis. Foi por causa do spray dourado que
resultou firme, apesar de todas as tentativas de retirá-lo. Alguns dias mais
tarde o pó de ouro começou a oxidar e pensei que Irving ia explodir.
Quando saía com Josie sempre encontrava desconhecidos na rua que
observavam: — Olhe só, meu amigo, seu poodle está ficando verde! — ou
então — Oba, que espécie de cachorro é esse?
Não consegui compreender porque fosse impossível eliminar o spray.
Todos os meios se mostraram inúteis, até quando tentei com água e sabão.
Tentei explicar ao meu marido que o pó dourado sempre saía do meu. . .
cabelo com algumas escovadelas.
Irving estava furioso. — Você nunca pensou que o cabelo dela podia ser
diferente do seu, não é mesmo? Você já reparou que ela é uma criatura
independente, sem ligações com você? Que ela tem seu próprio cabelo, seu
próprio rosto e sua própria personalidade?
Senti-me insultada: — O que é que você pensa que eu penso?
— Você está pensando que ela é simplesmente uma extensão de você!
Você gosta de carne mal passada, ela gosta de carne mal passada. Pois eu
gosto de carne bem passada e não tento impor a Josie minhas preferências
pessoais.
— O que é que você quer que eu faça?
— Deixe que ela seja ela mesma. Pode ser que ela goste de carne no
ponto!
Não discuti porque em meu íntimo tive que admitir que estava certo.
Josie realmente tinha todos os meus hábitos e todas as minhas
características. Gostava dos mesmos pratos, das mesmas pessoas e dos
mesmos espetáculos de televisão que eu gostava, e também partilhava de
todas as minhas fobias. Por exemplo, meu medo de insetos. Eu não sou
uma daquelas mulheres que costumam desmaiar se um camundongo entra
num quarto. Acho até que os camundongos são muito engraçadinhos.
Porém, tenho horror à qualquer inseto. De vez em quando uma mariposa de
verão entra pela janela aberta, vindo do parque. Qualquer cachorro, quando
vê uma mariposa, começa a pular para caçá-la. Quando vejo uma mariposa
corro para o banheiro aos gritos e Josie desaparece debaixo da cama até
que Irving liquide a mariposa.
Irving acha que essa situação é escandalosa. Já é o suficiente ter que
lidar com uma biruta! Os poodles são caçadores natos, tem o instinto de
espreitar as presas — e a nossa fugia aterrorizada quando via um inseto!
Não podia discutir, pois Irving estava certo. Percebi de repente a
dualidade de nossas personalidades. Eu adoro comer na cama. Josie
também mostra a mesma preferência. Não interessa onde ela esteja,
quando ganha um biscoito vai correndo para o dormitório, e come em cima
da cama.
Comecei a por em prática meu plano: “Deixe Josie ser ela mesma”. Antes
disso, quando saíamos, eu virava automaticamente para a Fifth Avenue,
porque adoro olhar vitrinas. O primeiro passo do plano foi deixar Josie
decidir sozinha. Fiquei parada na entrada do hotel e perguntei: — Para onde
você prefere ir, Josie?
Josie encarou-me surpresa, mas logo começou a me puxar — em direção
da Fifth Avenue.
É possível que continuaria tentando, não fosse por um artigo
encontrado por acaso no Harper’s Bazaar ou na Vogue — não me lembro
bem qual foi. (Estava na sala de espera do dentista, onde sempre consigo
ler as coisas importantes que perdi.)
O título do artigo era: “Os poodles são gente?”
Em resumo, o artigo dizia que alguns poodles são mesmo poodles. Mas
alguns iconoclastas dessa raça acreditam piamente serem pessoas. (Claro
que não era o caso de discutir a respeito daqueles poucos que imaginavam
ser dinamarqueses. Estes eram mesmo doentes.) Muitas coisas poderiam
ser ditas a favor do poodle cheio de imaginação que acredita ser gente,
especialmente a respeito de seu raciocínio.
O artigo afirmava que a maioria dos cachorros tem pelos, mas não os
poodles! Os poodles tem cabelos! Os poodles usam suas patas dianteiras
como se fossem mãos: muitas vezes seguram com elas um brinquedo. Os
poodles vestem capinhas de inverno, capinhas de primavera, capinhas de
chuva e usam lacinhos nas orelhas. Por que um poodle com suficiente
imaginação não poderia chegar à conclusão que havia muitas afinidades
entre ele e o gênero humano?
Concordo com tudo isso. Quando chove, Josie e eu vamos para o parque
com capas de chuva idênticas, tipo mãe-e-filha. Ela vê que eu estou com a
capa, ela está com a capa, e outras pessoas também estão com capas. Mas o
“cocker spaniel” que veio ao nosso encontro estava sem. A mesma coisa
aconteceu com um “collie”. Daí, Josie chegou à conclusão que ela não era
um cachorro. Um raciocínio perfeitamente lógico.
Comprei alguns livros sobre psicologia canina. Após lê-los todos e, após
fazer muitas perguntas por aí, descobri que existiam testes aptos a mostrar
se nosso cachorro se considerava um poodle ou uma pessoa.
Por exemplo: O cachorro prefere a companhia de pessoas ou de outros
poodles? O cachorro se interessa de maneira normal por outras raças
caninas? O cachorro entende o significado de um latido ou somente o
significado de palavras? Se as respostas forem positivas o cachorro é um
poodle.
Vou mencionar alguns sintomas de poodles que pensam que são gente.
Preferem claramente a companhia das pessoas à companhia de qualquer
cachorro. Para esses poodles até Lassie não passa de um bonito cachorro.
Entre todas as raças caninas, preferem os poodles. Olham para os outros
poodles com interesse, quase achando graça, como a dizer: “Olhem só, que
cachorrinho engraçado. Se eu tivesse que ter um cachorro, gostaria de um
igual a esse”.
A resposta final e irrefutável pode ser obtida com o teste do espelho. A
característica mais positiva de um poodle que acredita ser gente é a certeza
de ter a mesma aparência de seu dono.
Para fazer o teste do espelho, você coloca o poodle em frente a um. Se
ele olhar e se pavonear, trata-se de um poodle. Se olhar e se afastar
continua sendo um poodle — mas está precisando de ajuda psiquiátrica. Os
poodles são muito vaidosos e se um deles demonstrar claramente não
gostar de sua própria imagem no espelho, é um cachorro infeliz.
Possivelmente recalcado. Isso pode ser corrigido dizendo ao cachorro em
qualquer ocasião que é um poodle lindo. Também aconselha-se mudar o
cabeleireiro e o corte, para dar ao poodle mais confiança em si mesmo.
Tentei o teste do espelho com Josephine. A reação dela foi
positivamente de gente. Olhou seu próprio reflexo no espelho e virou-se
para mim com expressão interrogativa, como querendo dizer: “Quem é
aquele cachorro engraçadinho?”
Em seguida, como faria qualquer pessoa, aproximou-se do espelho para
agradar o cachorrinho. Como era de se esperar deu uma boa cabeçada.
Ficou furiosa. Convenceu-se que o cachorrinho era engraçado, mas ao
mesmo tempo mau caráter. Rosnou. O reflexo rosnou ao mesmo tempo.
Ficou tão agitada que tive que afastá-la do espelho para evitar que se
machucasse querendo atacar o intruso.
O livro de psicologia canina afirmava também: “Faça um esforço para
convencer o poodle que não passa de um poodle. Vai ser muito mais fácil
viver com ele”.
Esperei alguns dias antes de tentar uma outra variante do teste do
espelho. Segurei-a no colo e fomos nos olhar no espelho. Aproximei meu
rosto a seu focinho, para que não se assustasse, e falei com voz macia:
— Josie, isso é um espelho.
Josie olhou para a imagem carinhosa no espelho. Pareceu feliz, e se
pavoneou um pouco. Até aqui, muito bem. Achei que podia tirar conclusões
a esse respeito, mas de repente percebi que quando ela se pavoneava
olhava em direção à minha imagem!
Decidi explicar-lhe tudo sem muitos rodeios. Apontei para o reflexo:
— Josephine, sinto muito, mas preciso por os pingos nos ii. A pequena
rechonchuda com um corte italiano é você. A outra alta e magra sou eu.
Josephine bocejou, sorrindo ironicamente para o gozado cachorrinho no
espelho, e voltou a olhar para minha imagem. Desisti. Nunca mais tentei
convencê-la do contrário. De uma certa forma, senti-me até lisonjeada em
constatar que Josie decidira ter minha aparência. Afinal, ela poderia ter
escolhido o Irving.
16 SORRIA! CÂMARA! AÇÃO!
Aconteceu, e não vejo como poderíamos ter evitado que acontecesse.
Afinal, todos na família tinham ligações com a televisão, e era natural que
Josephine também chegasse a participar do mesmo tipo de espetáculo. As
pessoas que entendem de cachorros afirmam que um cachorro
compreende, em média, de cinco a seis palavras ou ordens. Cachorros
inteligentes chegam a compreender de vinte a trinta palavras — como por
exemplo: biscoito, passeio, jantar, paizinho, mãezinha, geladeira, corte (!)
de pelos, NÃO, bom rapaz, e assim por diante. Josie entendia todas essas
palavras que os cachorros inteligentes conhecem, e além disso sabia o
significado de: patrocinador, Nielsons (Ibope), ações, horário nobre,
substituto para o verão e filme piloto. Sabia, que “cancelamento” era um
palavrão, e que “tempo de opção” uma palavra que provocava dores de
estômago. Sabia que “treze” não era simplesmente um algarismo, mas um
ciclo de televisão, “vinte e seis” era um bom ciclo de televisão e que “trinta
e nove” significava “Podemos jogar fora os tranquilizantes, é realmente um
sucesso.”
A barriga de Josephine recebeu agradinhos de Milton Berle, Jack E.
Leonard, Clifton Fadiman, Earl Wilson, Ed Sullivan, Keefe Brasselle, e do
padrinho dela, o famoso anti-alcoólico Joe E. Lewis. De fato, a barriga de
Josephine recebeu agradinhos de tantas mãos célebres que poderia ser
comparada à calçada de concreto em frente ao famoso Teatro Chinês de
Grauman, em Hollywood, onde existem as pegadas de todas as “estrelas”.
Estávamos chegando ao ponto em que poderíamos apontar para a barriga
de Josephine e dizer: — As mãos de Lucille Ball ontem à noite estavam ali!
Com isso não quero afirmar que as pessoas entravam em nosso
apartamento perguntando: — Onde está a barriga de Josephine? Quero
fazer-lhe uns agradinhos! — O que eu quero dizer é que qualquer um que
chegasse ao nosso apartamento era levado a fazê-lo de qualquer forma. Em
cinquenta por cento dos casos as pessoas acariciavam Josephine sem
sequer saber o que estavam fazendo. Josephine era a que os levava a isso.
Quando chegava alguém, Josephine se transformava num verdadeiro
comitê de recepção. Gritava, pulava e dançava como se fosse a Kathryn
Murray. Sempre fui da opinião que exagerava um pouquinho, mas assim
mesmo suas ruidosas boas-vindas sempre surtiram efeito. Afinal, as
pessoas não sabiam que ela cumprimentava com o mesmo exagero o
limpador de janelas e o entregador da mercearia. Em qualquer lugar que a
visita sentasse, Josephine sentava logo a seu lado, encostando nela. Se a
pessoa era normalmente extrovertida, começava logo a fazer agradinhos na
cabeça de Josephine. Se a pessoa não tinha bastante imaginação para fazer
isso de própria iniciativa, ela a encorajava com a “cena da pata”. A cena da
pata era uma roçada suave no braço da vítima com uma das patas. Se a
visita não prestava atenção, ela roçava com mais energia. (Bea Cole
observou um dia: Lá vem ela de novo com aquela cutucada de pata)! Daí
você pode ver que era mais simples fazer agradinhos a Josephine do que
ignorá-la. A maioria das pessoas fazia isso automaticamente enquanto
conversava. Quando percebia que o movimento era regular e contínuo,
Josephine se colocava na posição mais adequada e com a pata empurrava a
mão da pessoa para o lugar preferido — sua redonda barriga branca. Se a
pessoa parava nem que fosse para acender um cigarro, logo recebia mais
uma cutucada.
Para Josephine a época mais formidável foi sem dúvida quando Irving
decidiu fazer os testes em nosso apartamento. Na maioria dos casos os
testes eram feitos no estúdio da estação de TV ou no escritório dele, mas às
vezes os testes demoravam prolongando-se até a noite. Então acontecia que
uma fila interminável de jovens candidatos passasse pela nossa porta. Se
você fosse um jovem candidato cheio de ambição, e quisesse ser escolhido
para atuar num programa de calouros, e uma poodle gorducha de
propriedade do produtor pedisse para você fazer agradinhos em sua
barriga, o que é que você ia fazer? Você faria exatamente o que qualquer
candidato jovem e normal faria. Você iria acariciar a barriga de Josephine,
como se isso fosse a sua verdadeira missão nesse mundo.
Era portanto natural que Josie, contornada por uma atmosfera de amor e
carinho, se tornasse uma menina poodle muito estável, mas com uma
grande inclinação para os espetáculos. Era lógico que ela escolhesse essa
carreira.
Num primeiro tempo não tomei nenhuma iniciativa nesse sentido.
Preferi deixar as coisas como estavam, pois sentia que no momento
oportuno alguém a descobriria. Ninguém conseguirá jamais esquecer o
relato da gloriosa coincidência pela qual Mervyn Le-Roy descobriu Lana
Turner quando ela estava tomando coca-cola num “drugstore”, ou como
Norma Shearer viu por acaso aquela linda fotografia de Janet Leigh na
escrivaninha da mãe de Janet, numa cabana de caça. Essas coisas
acontecem. Mas não aconteceram com Josephine.
Preciso acrescentar que Josephine foi vista por um sem-número de
pessoas importantes, mas era evidente que não estavam num estado de
espírito favorável às descobertas. Billy Rose nunca piscou admirado, vendo-
a. Isso não me admira, porque ainda hoje Billy costuma contar, rindo, que
uma vez uma jovem desconhecida chamada Mary Martin se apresentou para
um teste, e ele deu-lhe o palpite de voltar para o Texas, casar-se e ter uma
batelada de nenês. E Billy, em épocas mais recentes, só se dedica à
produção de teatros, mansões e milhões. Abe Burrows não precisava de
cutucadas para acariciar a barriga de Josephine, mas nunca pensou em
aproveitá-la num de seus espetáculos musicais. Meu bom amigo Earl Wilson
que escreve artigos quilométricos a respeito de moças avantajadas como
Jane Russell, Monique Van Vooren, Jayne Mansfield e até outras
completamente desconhecidas, nunca dedicou uma linha sequer a
Josephine. E Josephine não somente é linda mas também é avantajadíssima
— tem dez mamas! Até Sidney Kingsley, seu velho amigo, ignorava de
maneira total a possibilidade de Josie entrar para o “show business”.
Foi Anna Sosenko que, de uma certa forma, proporcionou a Josephine o
primeiro passo em direção ao mundo do espetáculo. Anna é uma mulher de
muitos talentos. Escreveu “Darling, je vous aime beaucoup”, foi a
descobridora de Hildegarde, e é profunda conhecedora das artes. Apesar
disso, Josie a amava por ser ela mesma. Anna era uma coçadora de barriga
incansável, e Anna também tinha em seu apartamento um lindo terraço
com uma churrasqueira elétrica para fazer cachorro quente. E ainda, Anna
sempre oferecia coisas deliciosas, como canapés de caviar ou de paté.
Um belo dia Anna, Josie e eu estávamos sentadas no tal terraço, sem
fazer nada de especial. Aliás, Josie e eu não estávamos fazendo nada. Anna
estava ocupadíssima, pois estava preparando os martínis com uma mão e
coçando a barriga de Josie com a outra. De repente, o idílio foi
interrompido por uma visita — um jornalista conhecido de Anna chegou
inesperadamente. Anna ficou muito satisfeita em vê-lo, eu gostei muito de
conhecê-lo, pois tinha lido muitos artigos escritos por ele, mas para
Josephine ele representava uma coisa só — uma nova vítima. Pensou ainda
que se deixasse livre Anna, Anna teria o tempo de preparar rapidamente
aqueles deliciosos canapés. Por isso, precipitou-se ao encontro do
desconhecido como se ele fosse um parente íntimo. Era lógico que o
homem se sentisse muito lisonjeado. Era ainda mais natural que eu
pronunciasse a frase histórica que nunca falhava: — Vejam só, nunca vi
Josie tão entusiasmada. Ela está mesmo gostando de você.
A frase teve o efeito desejado, porque ele respondeu com outra sentença
clássica: — Não sei o motivo, mas parece que todos os cachorros gostam de
mim.
Olhei para o homem com a expressão requerida: — É mesmo. Ela não
costuma fazer isso com pessoas estranhas. (Ela faria as maiores festas ao
Kruschev se ele chegasse com um paio e uma mão direita disponível.)
Quando Josie começou as costumeiras manobras para ganhar
agradinhos na barriga, Anna também percebeu o que estava se passando e
deu algumas explicações. “Olhem só, ela quer que você lhe coce a barriga.
Ela só faz isso com as pessoas de quem ela realmente gosta.”
Quando o jornalista parou de coçá-la para aceitar seu drinque, Josie
cutucou-lhe o braço para lembrar-lhe qual era sua verdadeira função na
vida.
Em vez de se irritar, ele ficou encantado. — É incrível, ela se comunica!
Tive que admitir que era uma nova expressão para algo que eu
considerava simples arranhões. Logo, achei o homem extremamente
simpático. Não demorou muito e começamos a considerar as possibilidades
de uma carreira de Josie no palco. Ele insistiu em querer se preocupar com
o assunto. Antes de se despedir, disse: — Conheço um homem na NBC.
Não lhe dei nenhuma importância, porque todo mundo conhece “Um
homem na NBC”, mas para qualquer eventualidade, dei-lhe nosso número
de telefone e disse que estávamos dispostas a tomar em consideração
qualquer oferta séria.
Irving, num primeiro momento, não gostou da ideia. Por que Josie teria
que se preocupar com a televisão? — perguntou. — Se eu achava divertido
ser matada a facadas ou a tiros no programa “Stúdio Um” e no “Suspense”,
isso era comigo. Josie, porém, não parecia estar precisando de um campo
para auto-afirmação.
Mas eu já tinha tomado minha decisão. Queria que ela compreendesse
que a vida não se resumia em comer biscoitinhos, brincar com a bola e
encontrar alguém que coçasse sua barriga. Sua atuação poderia também
promover sua raça. Havia gente demais pensando que os poodles não
passavam de arrogantes cachorrinhos de colo e só. Estava cansada de ouvir
sempre as mesmas observações: “Ah, sim, os poodles são ótimos para
pessoas que querem um bichinho tolo e cheio de manhas, que pode ser
enfeitado para atrair a atenção, mas EU gosto de cachorros de verdade.” Ou
então: “O cachorro mais inteligente é o vira-lata. Entre os cachorros, os de
raça mais pura tem o QI mais baixo”.
E, desde que existia a “lei Jackie Coogan”, Josie poderia ficar
descansada: eu não iria usar o dinheiro ganho por ela para financiar meus
luxos pessoais. Seus cachês serviriam para comprar ações da AT&T. Poderia
gastar os dividendos para comprar biscoitinhos ou aqueles brinquedos
especiais que eram mastigáveis. E no caso que tivesse sucesso e se tornasse
uma estrela, poderia alugar um coçador pessoal de barriga, pagando-o por
hora.
Todos os meus amigos concordaram com a ideia de Josie fazer uma
carreira na TV, especialmente quando expliquei de que maneira ela usaria
os dividendos. Ficamos todos esperando pelo chamado do homem que
conhecia outro homem na NBC.
Não recebemos chamado algum. Recebemos uma carta. Infelizmente
nosso benfeitor tinha que viajar por conta de seu jornal, para fazer
reportagens a respeito de uma rebelião na Índia, ou na África ou na China,
de qualquer forma, num daqueles países onde sempre explodem pequenas
guerras. Ele não se esquecera de Josephine, e se preocuparia com a carreira
dela tão logo voltasse.
Fiquei muito deprimida porque essa espécie de pequena guerra tem o
hábito de durar muito. Em matéria de guerra, prefiro de longe uma guerra
aberta, de grandes proporções e rápida. Todo mundo toma conhecimento e
por consequência todo mundo se esforça para que termine logo. Mas
aquelas guerrinhas menores chegam sorrateiramente e você precisa tomar
cuidado, como quando você lê no jornal que alguns terroristas mataram
quatro pessoas numa rua secundária, metralhando também um prédio de
escritórios. Ninguém parece tomar medidas eficientes para acabar com
isso, e no máximo alguém faz alguns discursos na ONU, e uma ou outra
nação manda-lhes até algum dinheiro e meia dúzia de aviões obsoletos. E
foi por isso que Josie não ganhou nenhum contrato na televisão.
Fiquei mal-humorada durante alguns dias até que Anna Sosenko disse:
— Se você quer que ela faça carreira na TV, tome as necessárias
providências!
— Que providências?
— Por exemplo, faça circular o boato que Josie está disponível. Você tem
que convir comigo que quando as pessoas a vêem passear com você, elas
só percebem um poodle. Não sabem que ela tem talento. — Anna parou,
olhou para mim e perguntou: — Por falar nisso, o que é que ela sabe fazer?
— Ela não faz nada de especial. Simplesmente, tem talento.
Anna ficou observando Josie que engolia um pedaço de esturjão.
— Pode ser. Acho que seu maior talento é ser uma comilona.
Fiquei ofendidíssima. Precisava mostrar à Anna que as coisas não eram
assim! Telefonei a todo mundo, e dentro de uma semana Josie recebeu sua
primeira oferta. Eu conhecia uma moça cuja mãe trabalhava na ASPCA. (1)3
A ASPCA participava do show de Herb Sheldon. Após algumas entrevistas
entre pessoas das mais altas esferas, recebi de repente um chamado de um
homem da NBC. Queria saber se Josie poderia aparecer no show de Herb
Sheldon da semana seguinte.
— Fazendo o que? — perguntei. (Era melhor não mostrar entusiasmo
excessivo.)
— O senhor Sheldon falará rapidamente a respeito da ASPCA e explicará
seus bons serviços. Em seguida vamos apresentar a senhora e a senhora
apresentará Josephine, explicando brevemente de que maneira ela traz
alegria em sua vida. Naturalmente, enquanto a senhora estará falando, as
câmaras estarão focalizando Josephine.” (Era assim, hein? Ela teria todos os
closes? Mas não deixei que isso interferisse com minha decisão. Afinal, era
a estreia dela.)
3 Sociedade Protetora dos Animais.
Deixei que minha voz expressasse todo meu entusiasmo: — E qual será
o cachê dela?
— Esse tipo de apresentação não recebe cachê.
Meu entusiasmo começou a arrefecer. Nenhum close para mim, e
nenhum dinheiro para Josie! — Mas ela está inscrita na AFTRA — menti.
— Não faz mal. AFTRA tem um acordo com todas as instituições
beneficentes e permite aos seus membros participações gratuitas para
ajudá-las.
— E eu? Terei que ir com Josephine para ajudá-la.
— Senhorita Susann, a senhorita não pode encarar a coisa dessa
maneira. Precisa se conformar com a ideia que a senhorita não passa de
uma coadjuvante glorificada de Josephine.
— Coadjuvante?
— Isso mesmo. A ASPCA nunca apresenta pessoas, só apresenta animais.
Esperamos ver a senhora e Josephine quinta-feira próxima, às oito e trinta
da manhã. — Oito e trinta da manhã!
Comecei na mesma hora a explicar com todos os detalhes os hábitos e
horários dos Mansfields, inclusive Josephine, que, resumindo, queria dizer:
“Procure outro cachorro”!
O homem entendeu e desligou.
Dez minutos mais tarde recebi um chamado de Irving. O homem da NBC
falara com ele e Irving concordara com a apresentação de Josephine para
uma organização tão beneficente como ASPCA, apesar da hora impossível.
— Afinal — ele me explicou — trata-se de uma boa obra.
— Já que você faz tanta questão de fazer boas obras, leve-a você!
Tive a impressão de ouvir uma risadinha pelo fone. — Não fui EU que
abri minha boca, falando com todo mundo, para ver se conseguia uma
apresentação de Josephine na TV.
Continuei brigando. Disse que ele não tinha a menor consideração com
Josephine, que ela simplesmente odiava se levantar antes do meio-dia.
Aliás, nem que ela conseguisse se levantar antes daquela hora, EU não
poderia! Afinal precisava pensar em minha própria carreira; não poderia me
apresentar com uma expressão humana àquela hora da madrugada!
A resposta de Irving encerrou definitivamente a discussão: E você pensa
que alguém vai ver você quando ela está aparecendo no vídeo?
Como não havia outro remédio, levei Josephine para o instituto de
beleza, para a sessão de dez dólares, e eu lavei e enrolei meu cabelo
sozinha. Na noite antes da apresentação desliguei a luz às dez e pedi que
me acordassem às sete. À meia-noite continuava acordada e Josephine
estava brincando alegremente na sala com um daqueles bichinhos de apito.
Fui para lá e mandei que fosse para a cama comigo — precisávamos dormir
já! (Irving estava no escritório, lendo.)
Josie gostou muito de ir para cama comigo, mas continuou me
arranhando com aquela sua patinha de unhas afiadas. Demorou, mas
finalmente compreendeu: havia algum motivo maluco que a obrigava a ficar
na cama comigo. Devo dizer até que enfrentou a situação de maneira
elegante. Saiu e voltou trazendo todos seus brinquedos para a cama e
durante horas a fio ficou mastigando ruidosamente seu osso. Em seguida
pulou em cima do brinquedo com o apito mais forte. Trouxe uma bola toda
molhada e colocou-a em cima de meu rosto. Considerando, a culpa não era
dela. Para Josephine, uma hora da madrugada era a melhor hora da noite.
Às duas, tomei um comprimido para dormir e dei-lhe meia aspirina com
algumas gotas de uísque. Assim conseguimos descansar um pouco.
Na manhã seguinte ela levantou lindíssima e cheia de graça. Eu tinha
uma aparência horrível e uma sensação de ressaca, deixada pelo
comprimido. Assim mesmo, ambas fomos para a NBC. Irving já avisara
todos seus amigos. A mãe de Irving avisara meio Brooklin. Anna Sosenko,
que nunca dorme, prometeu gravar um tape da apresentação. O juiz
Rosenblum e sua esposa Fran, moradores de North Bergen, e muito amigos
nossos, iam alertar todo o Estado de New Jersey, Bea Cole telefonara a todo
mundo na parte alta de Park Avenue, e Karen avisara todas as coleguinhas
da escola. Joyce acordou às oito e trinta. Ela, Vicki e Toulouse iam assistir
ao show. A mãe de Joyce morava em Huntington, e toda Long Island estava
esperando para ver Josie. Com todo o respeito devido ao senhor Herb
Sheldon, você vai concordar comigo em dizer que ele estava com muita
sorte. A menina estava trazendo seu próprio índice Trendex.
No estúdio todo mundo foi muito amável conosco. Ninguém pediu que
fizéssemos um verdadeiro ensaio, mas insistiram que fizéssemos uma
prova de iluminação para poder focalizar a “estrela” pela objetiva e ver o
que ela apresentava. Fiquei segurando-a enquanto uma porção de homens
subia até o forro, aumentando o número de holofotes. Fizeram um ótimo
trabalho. “Dê-me um panelão aqui, Pete, para aumentar o brilho dos olhos!”
“Aumente a iluminação de baixo, para por uma luz em seu nariz!” (Nunca
recebi tantas atenções durante minhas apresentações em “Estúdio Um”.
Josie aceitou tudo com um bocejo de tédio.)
Percebi que ela estava realmente letárgica e comecei a me preocupar:
talvez não fosse o melhor dia para exibir sua brilhante personalidade.
Afinal, ela não estava acostumada a madrugar. Era uma “flor da noite”. Era
possível que desse a impressão de ser um cachorro comum. Não tinha
pensado nisso antes. Coloquei-a no chão e tentei interessá-la numa
brincadeira qualquer. Josie deitou e adormeceu no mesmo instante.
Comecei a ficar histérica. Era cedo demais para ela!
O diretor observou-a estupefato. — Será que ela acorda quando estiver
na hora?
Assenti, procurando mostrar uma segurança que na realidade não
sentia. De repente, foram nove horas. . . todo mundo ficou tenso. . .
tocaram o motivo do show. . . o show começou!
Josie e eu fomos apresentadas cinco minutos mais tarde. Existem atores
que atuam de maneira maravilhosa no ensaio geral, e ficam sem saber
como se movimentar quando sabem que estão sendo focalizados pelas
câmaras ou quando precisam enfrentar uma audiência. Existem outros que
não sentem nada até que se encontrem em frente aos espectadores.
Naquele mesmo instante começam a brilhar, sentem-se inspirados, mudam
radicalmente de personalidade, parece que sua estatura aumenta. No
ambiente são conhecidos como os “naturais” ou atores natos. Josie era uma
“natural”.
No mesmo instante em que fomos apresentados e as câmaras
começaram a focalizá-la, ela acordou. Abriu desmesuradamente aqueles
olhos lindos e começou a irradiar encanto. Inclinou a cabeça no ângulo
mais favorável. Enquanto a câmara se aproximava de Josie para um close
lembrei-me que era uma atriz. Por enquanto, o show fora só dela, mas não
ia me prejudicar se eu também entrasse em cena. Encostei o focinho ao
meu rosto. Dessa maneira, ambas teríamos um close fabuloso. (Ou pelo
menos foi o que eu imaginei.)
Não poderia saber que Josie se transformaria numa verdadeira Ethel
Barrymore. Josie não dá colher de chá a ninguém! Enquanto a câmara se
aproximava enquadrando um encantador close de mãe e filha, a filha
entrou em ação e decidiu cobrir o rosto da mãezinha com uma porção de
beijinhos. Era uma cena muito terna, mas o rosto da mãezinha ficou
completamente coberto. O diretor ficou encantado com essa improvisação e
mandou logo entrar em ação a câmara número dois, que estava atrás de
nós. Josie voltou a ser completamente visível, junto a um estonteante
panorama de minha nuca.
Como era de se esperar, ela teve um sucesso sem precedentes. O PBX da
estação começou a brilhar por causa de dezenas de luzes que se acendiam
com os chamados. Todo mundo queria saber se ela se chamava Josephine
ou Josie? E qual era seu verdadeiro nome, antes de estrear na televisão?
Qual era sua idade? Tinha filhotes? E um bocado de outras coisas que o
público sempre quer saber a respeito de celebridades. Ninguém perguntou
nada a meu respeito.
Quando cheguei em casa meu fone não parou de tocar. Joyce disse que
em comparação com Josie, Lassie não passava de uma débil mental. A
senhora Eichenbaum observou que a barriga de Josie não apareceu. Irving
disse que após ver Josie estava comprovado que as morenas apareciam
muito bem na TV. Entretanto, a única vez que conseguiu me ver por uma
fração de segundos, eu estava horrível.
— Horrível, como? — perguntei.
— Bem, você sabe. Assim, meio apagada.
Pois não podia deixar de ser. A iluminação fora para ela. Eu não poderia
me sair bem numa iluminação própria para uma poodle preta, não é
mesmo? Era um milagre que alguém tivesse me enxergado. Durante o dia
todo continuaram chegando os chamados de congratulações para
Josephine.
Naquela noite, bem tarde, no momento em que Irving estava para pegar
no sono, perguntei:
— Irving, eu estava mesmo muito desbotada?
Bocejou. — Completamente desbotada. Boa-noite. Eu amo você.
Senti-me, de repente, alarmadíssima. — Irving! Isso não poderá
prejudicar minha carreira?
— Não seja ridícula.
Irving voltou a bocejar. — Olha, meu bem, você estava tão horrível que
ninguém poderá nem imaginar que era você. Agora pare de falar e vê se
dorme.
Parei de falar, mas não consegui dormir.
17 O SEGUNDO CHAMADO
O segundo chamado da estação de televisão NBC chegou no dia
seguinte. Queriam que Josephine fosse se apresentar mais uma vez. Regra
geral, nunca convidavam duas vezes, mas Josephine tivera um sucesso tão
extraordinário que estavam dispostos a fazer uma exceção.
Concordei. Estava sentindo tanto orgulho pelas suas capacidades de
atriz nata, que consegui dominar minha própria vaidade.
Irving se mostrou preocupado. — O que você pretende fazer com
respeito a sua própria aparência, numa iluminação que só serve para ela?
— Vamos ver se consigo um meio-termo. Se eles diminuírem um pouco
as luzes, eu não vou ficar tão horrível, e ela não parecerá tão fascinante.
Irving disse que havia uma maneira melhor para chegar a um
compromisso.
— Como assim?
— Simples. Você compra uma lâmpada ultravioleta, e ainda fica
tomando sol durante algumas horas por dia. Você tem uma semana para se
preparar.
Assim fui sentar no parque para bronzear e fiz meus planos. De que
forma Josie poderia superar o sucesso da primeira apresentação? Não podia
simplesmente voltar, repetir o mesmo fascinante sorriso e não fazer mais
nada. Para ser uma estrela é necessário, toda vez superar a atuação
anterior, e repetir isso muitas vezes. Ed Sullivan convida uma estrela nova
todas as semanas, e até Jack Paar dirige seus ataques contra um país ou um
colunista diferente, cada vez que aparece no vídeo.
Josie teria que fazer algo diferente, dessa vez, mas infelizmente Josie já
mostrara tudo o que ela sabia fazer.
Pois precisaria inventar algo. Ela teria que se apresentar com um truque
qualquer. . . algo que a ajudasse. . . alguém. . . É claro, alguém! Bobo
Eichenbaum!
Perguntei à senhora Eichenbaum se Bobo gostaria de aparecer na
televisão. Ora, se gostaria! A senhora Eichenbaum começou a tremer pela
agitação. Bobo faria qualquer coisa! Bobo adoraria aparecer no vídeo, nem
que se tratasse da menor das participações — imaginem, Bobo na televisão!
Nunca membro nenhum da família Eichenbaum sequer pisara num palco! E
Bobo poderia começar logo dessa forma grandiosa — na TV — na NBC!
Expliquei que a estrela seria Josie e que Bobo seria simplesmente
coadjuvante. A senhora Eichenbaum estava tão agitada que nem se
importou: Bobo faria qualquer coisa. Ela só queria saber o que fazer —
como se preparar. . .
Disse à senhora Eichenbaum que Bobo precisaria dar um demorado
passeio pelo parque antes do início do show. Em seguida, não precisaria
fazer nada! Eu não sabia quanto tempo Josephine teria que ficar atuando,
mas que da última vez ficara em cena só dois minutos. Se eu tivesse tempo,
mencionaria o nome de Bobo.
O nome de Bobo na televisão! A senhora Eichenbaum quase desmaiou
pela emoção! Ah, ouvir o nome de Bobo Eichenbaum pela televisão!
Essas foram as reações dela na quarta-feira. Na quinta ela foi muito mais
prática. Perguntou a respeito da coleira de Bobo: teria que usar a coleira
preta de lantejoulas ou a coleira de pelica vermelha com o monograma em
pedrarias?
Expliquei que teria que ser uma coleira simples, porque qualquer pedra
lustrosa poderia provocar irisação. (É claro que a esse ponto tive que
explicar por meia hora o que eram irisações. Quando terminei ela não ficou
convencida. Continuou não acreditando que Perry Como e Garry Moore
usavam camisas azuis. No vídeo ela via perfeitamente que as camisas eram
brancas!)
Na sexta-feira a senhora Eichenbaum chegou com mais uma batelada de
perguntas. O programa era retransmitido para Miami? Ela tinha parentes em
Miami. Bobo precisaria ir ao instituto de beleza um dia antes do show, ou
havia um cabeleireiro à disposição na TV?
Eu não tinha certeza a respeito do que acontecia em geral na estação,
mas sabia que esse show seria transmitido de um pequeno estúdio na rua
66 Oeste, que não se parecia em nada com os estúdios da Metro Goldwyn
Mayer. Bobo teria que ir ao cabeleireiro antes.
E que tal Chicago? A senhora Eichenbaum conhecia uma porção de gente
em Chicago. Comecei a ficar sem jeito quando vi que não poderia garantir a
transmissão do programa para Chicago. Tinha a impressão que o show era
transmitido só localmente. Vocês podem imaginar como fiquei feliz quando
ela perguntou a respeito de Paterson, New Jersey. Consegui garantir que em
Paterson, New Jersey, o show seria visto!
Sábado e domingo passaram sem maiores novidades. (Fui até Filadélfia
visitar minha mãe.) Mas a segunda-feira foi agitadíssima. Faltavam vinte e
quatro horas para o show!
O primeiro chamado da senhora Eichenbaum foi ao meio-dia, e dessa
vez a pergunta era importantíssima: o que era que ela teria que vestir?
Tentei manter-me calma apesar de saber que minha resposta poderia
provocar uma catástrofe.
— Vestir? O que é que você está querendo dizer?
— Quero dizer, não pretendo provocar irisações. Você acha que um
vestido estampado provoca irisações?
— Hattie — falei com muito carinho (era o nome da senhora
Eichenbaum) e fiz uma pausa. — Você pode se vestir de qualquer maneira.
Somente Bobo entrará em cena.
Seguiu-se um silêncio mortal. Depois veio a pergunta: — E como é que
Bobo entrará em cena?
— Simples. Você terá que colocá-lo no chão e dar-lhe um
empurrãozinho.
Mais um intervalo prolongado. — Por que preciso empurrá-lo, quando
poderia levá-lo ao palco com mais dignidade?
— Porque vai ter que ser assim. Quando Bobo entrar em cena, as
câmaras se abaixarão para o soalho, e nem eu vou aparecer. Somente os
dois cachorros. Aliás, Hattie, a iluminação necessária para dois cachorros
pretos só serve mesmo para cachorros pretos. Você, Hattie, com aqueles
seus maravilhosos cabelos ruivos, ficaria quase que invisível, ouviu?
Apesar de eu ser morena, minha aparência não foi muito boa na última vez.
— Ah, foi por isso que você estava tão horrível? — Um intervalo
carregado de tensão: — Mas escute, não ligo a mínima se eu ficar horrível.
Só quero que me vejam. Quero que todo mundo em Paterson, New Jersey,
veja e acredite que é realmente Bobo. Ninguém vai acreditar que Bobo é
Bobo, se não me vêem junto.
— Mas eu vou explicar que o nome dele é Bobo.
— Isso não basta para convencer o pessoal de Paterson. Muitos poodles
se chamam Bobo. Conheço dois Bobo que moram na Essex House; um Bobo
que mora na Hampshire House. Sei de três Bobos na rua 57. E minha irmã
em Paterson conhece um Bobo que nem é poodle.
Compreendi o drama. — Está certo, Hattie. Vou anunciá-lo como Bobo
Eichenbaum. Agora não tente me dizer que há mais de um Bobo
Eichenbaum por aí!
A senhora Eichenbaum voltou a telefonar duas horas mais tarde. —
Deixei Bobo no Instituto de beleza. Você acha que precisa dar-lhe um corte
especial ou enfeitá-lo de alguma maneira para que ressalte mais?
— Não mude nada. Deixe que apareça exatamente como é. Tenho certeza
que seus encantos naturais são suficientes.
— Mas eu não quero que pareça um poodle qualquer.
Achei que estava chegada a hora de ser firme. — Olhe aqui, senhora
Eichenbaum. Para mim é fácil encontrar um outro poodle que possa
aparecer com Josie. Mas você pode arranjar outro show para o Bobo
aparecer na TV?
A senhora Eichenbaum compreendeu. — Está certo. Nenhuma
extravagância. — Pelo menos, essas foram suas últimas palavras.
Quando, porém, nos encontramos no saguão do hotel às oito horas da
manhã seguinte ficou claro que a senhora Eichenbaum esquecera o
prometido. Bobo estava limpinho, escovadinho e lustrozinho. Mas com dois
enormes laços de cetim nas orelhas.
Olhei para Bobo e depois olhei para a senhora Eichenbaum. — Você terá
que tirar aqueles laços.
A senhora Eichenbaum mostrou-se estupefata. — Por quê? Josephine
está com laços amarelos, e também tem unhas esmaltadas de amarelo!
Expliquei: — Quando o Bobo tiver seu próprio show, poderá usar laços e
esmalte amarelo.
A senhora Eichenbaum insistiu. Disse que tinha certeza que Josie ficaria
satisfeita de ver seu coadjuvante com laços. Um coadjuvante bem
apessoado só refletiria favoravelmente nela mesma, não é? Afinal uma
estrela se sobressaía também pelo brilho de quem estava em volta. Fiquei
estupefata. A senhora Eichenbaum não tinha ligações de qualquer espécie
com o mundo do espetáculo, mas de repente parecia transformada numa
espécie de David Belasco feminino.
Mas insisti: — Nada de laços para Bobo.
A senhora Eichenbaum começou a fazer beicinho, e eu comecei a perder
a paciência. Só me faltava isso — às oito e quinze da manhã! A batalha dos
lacinhos no saguão do hotel!
Fui em direção à porta. — Vamos indo?
Bobo deu alguns passos, mas a senhora Eichenbaum o segurou. — E o
que vai acontecer se eu recusar a tirar os laços?
— Pois nesse caso haverá uma porção de gente desapontada em
Paterson, New Jersey.
Paterson, New Jersey, foi a palavra mágica que resolveu o impasse. A
senhora Eichenbaum voltou à realidade, levada pelo pensamento de seus
parentes. Abaixou-se e tirou os laços. Em meu íntimo, sentia-me uma
megera. Bobo estava um amor com aqueles laços. Mas no mato do “show
business” as coisas se passam assim mesmo — precisamos defender nossa
estrela!
Felizmente a senhora Eichenbaum é uma criatura com um ótimo caráter.
Quando chegamos ao estúdio o incidente dos laços já se tornara uma coisa
do passado e ela estava emocionadíssima. Quando viu as câmaras e todo o
pessoal, ficou muda pela excitação. E quando o diretor e o resto do pessoal
viram dois poodles, também emudeceram.
Um personagem da equipe chegou correndo. — Realmente, sinto muito,
senhorita Susann, mas precisamos insistir em que não haja nenhuma
assistência. Sua amiga e o outro cachorro terão que sair.
A senhora Eichenbaum recuperou o uso da palavra. — Como assim,
outro cachorro? Ele é um ator.
Fiz as devidas apresentações e expliquei meu plano. Fui muito rápida,
mas a equipe se reuniu mais rápida ainda, para uma troca de opiniões. O
diretor voltou a falar comigo. Perguntou se era possível ver um ensaio da
“cena dos cachorros”. Disse que não. Um ensaio só poderia complicar as
coisas, porque tiraria toda a espontaneidade. Josephine precisava sentir o
que estava fazendo — era esse seu método de atuação.
O diretor voltou a falar com seu grupo. Trocaram mais opiniões em um
murmúrio. O diretor voltou com outro pedido. Poderia eu pelo menos
explicar o que os cachorros iriam fazer? Não era porque Herb Sheldon
duvidasse de meu bom gosto ou de meus instintos teatrais. Simplesmente
ficava preocupado quando via mais que um só cachorro. O diretor me
assegurou que ele também não estava preocupado. Era uma simples
questão de rotina administrativa. Essas coisas precisavam ser aprovadas
pelo pessoal dos escritórios.
Expliquei como imaginara a cena. Herb Sheldon apresentaria a mim e a
Josie. A câmara focalizaria Josie e eu diria algumas palavras a respeito da
ASPCA, explicando que era a organização preferida de Josie. Em seguida eu
apresentaria Bobo, o amigo de Josie, e falaria a respeito de seu amor e de
sua devoção. Colocaria Josie no chão — seria o sinal para a câmara se
abaixar. A esse ponto alguém daria um sinal à senhora Eichenbaum para
colocar Bobo no chão. (Ela ficaria fora do palco, segurando Bobo no colo.)
Na mesma hora Bobo se aproximaria naturalmente de Josie. Sentaria
levantando as patinhas dianteiras para abraçá-la e ela faria o resto.
O diretor achou que a cena parecia ótima. Não poderia ser melhor. Mas
apesar de detestar ter que se mostrar pedante — queria ver um ensaio
dessa pantomima. Precisava saber quanto tempo levaria, para poder
eventualmente cortar alguma outra parte do show. Pediu para eu não
pensar que ele era um desmancha-prazeres, mas a ASPCA explicara que a
apresentação de Josie só levaria dois minutos, e pelo jeito que as coisas
estavam se metendo era opinião dele que teria que cortar pelo menos dois
dos monólogos do senhor Sheldon.
Respondi que minha conversa inicial seria breve e que tinha certeza que
a cena não demoraria mais que quatro minutos. O diretor evidentemente
era um homem corajoso e de uma audácia fora do comum, porque deu-me
um sorriso meio esverdeado e foi contar ao senhor Sheldon as grandes
novidades.
O show começou. Fomos apresentadas e Josie revelou-se brilhante como
sempre. Quando a luzinha vermelha da câmara se acendeu, ela começou a
irradiar o mesmo encanto. Enquanto eu falava a respeito da ASPCA Josie
virou-se para mim e aplicou um beijinho em meu nariz. Quando quis
depositá-la no chão, virou-se de novo e tocou em minhas pérolas. Juro que
conhecia de sobra minhas pérolas, por tê-las visto centenas de vezes. Mas
de repente começou a agir como se ela fosse o Jules Glaenzer do Cartier.
(Aposto também que ela não ligava a mínima para as pérolas mas estava
bem no meio de um close e não estava com pressa nenhuma de ir para o
chão e repartir a glória com Bobo.)
Compreendi o que ela estava querendo e colaborei. Deixei que estudasse
as pérolas, depois tirei-as do pescoço colocando-as no dela. Ela se
pavoneou, vaidosa. Realmente ficaram ótimas nela. Sobre um fundo preto
as pérolas sempre aparecem mais. Coloquei Josie no chão. Alguém da
equipe tocou no braço da paciente senhora Eichenbaum que colocou Bobo
no chão, apontando-o em direção a Josie. Bobo viu Josie, começou a se
encaminhar — mas reparou na câmara. Parou, virou-se e voltou para perto
da senhora Eichenbaum. (A câmara não focalizou esse pequeno drama nos
bastidores mas continuou em Josie que ficou sentada, rindo do medo de
Bobo.)
A senhora Eichenbaum empurrou gentilmente Bobo em direção a Josie.
Bobo olhou para Josie, olhou para as câmaras, voltou a olhar para Josie — e
finalmente o amor venceu. Foi atraído para perto da sereia, apesar de seu
medo de uma porção de coisas desconhecidas. Quando chegou perto de sua
namorada esqueceu que estava num ambiente esquisito. Esqueceu o calor
das lâmpadas, os homens estranhos, as câmaras. Só teve olhos para a Liz
Taylor da raça poodle. Aproximou-se dela com os olhos brilhantes de
carinho. Josie, que percebeu o sofrimento dele, fez algo para encorajá-lo.
Levantou-se nas patas traseiras para cumprimentá-lo. Bobo naturalmente
jogou-se entre seus braços. Ela permitiu que a segurasse mais do que de
costume e até aturou um beijinho no nariz. (Ela é uma verdadeira atriz:
Bobo não é propriamente o tipo dela, e o beijinho foi aturado só porque ela
estava em cena.)
Em seguida ela largou Bobo e virou as costas. Como se fosse um sinal,
Bobo levantou-se sobre as patas traseiras e agitou as mãos, pedindo a
atenção de Josie. Como não podia deixar de ser, foram sensacionais.
O diretor disse que nunca teria acreditado que dois poodles
conseguissem fazer uma cena de dez minutos. Todo o pessoal das equipes
foi se congratular com Josephine. Bobo também ganhou sua salva de
palmas. Por ser um simples amador, até que sua atuação fora excelente.
Bobo, porém, não estava interessado em congratulações. Ganhara um
beijo de Josie e não desgrudava os olhos cheios de adoração de minha
rechonchuda cachorrinha. Quando saímos do estúdio, Bobo quis encostar
carinhosamente o focinho nela. Josie virou-se e rosnou para mostrar
abertamente que suas atenções não lhe agradavam. Bobo tentou dar-lhe
mais um beijinho, mas dessa vez Josie mostrou mesmo os dentes.
— Coitado do Bobo — disse a senhora Eichenbaum. — Ele não está
compreendendo que ela estava somente fingindo. Também não sabe que foi
televisionado. Estava convencido que ambos estavam namorando no duro.
Fiquei muito feliz em ver que a senhora Eichenbaum compreendia. Bobo
era mesmo um ingênuo. Passando pelo saguão, trotou em nossa frente,
cheio de expectativa por um beijo de Josie, ou um passeio no parque. Era
um cachorro simpático e sem complicações. Mas Josephine, como todas as
grandes atrizes, estava exausta após a representação. Inventara sozinha
algumas cenas — como, por exemplo, com as pérolas — e ainda por cima
tivera que aturar os arroubos amorosos de Bobo. Seus nervos estavam
mesmo em frangalhos. Por isso, enquanto atravessávamos o saguão da NBC,
teve de repente um deslize temperamental. Agachou-se! Bem no meio do
lustroso soalho da NBC!
A senhora Eichenbaum e Bobo fugiram, fingindo que não estavam
conosco, aliás que nunca nos conheceram. Pessoalmente mostrei não
perceber nada e continuei andando, como a perguntar: — O que é que há?
Todo mundo não faz a mesma coisa no saguão da NBC?
Era lógico e humano que a senhora Eichenbaum ficasse satisfeita em
mostrar que Bobo tinha esperado chegar ao primeiro poste ao lado da
calçada. De fato, enquanto voltávamos para casa, continuou fazendo
perguntinhas desse tipo: — Quem é o encarregado de contratar poodles no
MCA? Quem é preferível para convites, o William Morris ou a GAC? Acho
que estava convencida que Bobo realmente poderia fazer carreira no teatro,
pois Bobo não tivera nenhum pequeno acidente no saguão da NBC.
A senhora Eichenbaum, porém, desistiu dessas ambições logo após
chegar em casa. Parece que o coitado do Bobo teve uma reação retardada e
ficou vomitando durante dois dias.
18 VOVÓ
Josie estreou na televisão, no show de Herb Sheldon, no fim da
primavera de 1955. Recebeu logo ofertas de outras estações, mas Irving não
permitiu que trabalhasse durante o verão. Explicou que trabalhar durante o
verão debaixo das escaldantes lâmpadas era duro demais para uma menina
poodle de um ano e meio. Assim, tive que explicar a todo mundo que Josie
estava “de férias”.
Durante aquele verão ficamos em Nova York. Irving estava montando
um novo show para a televisão e Josie e eu íamos simplesmente levando a
vida. No fim do verão Irving descobriu que desejava ardentemente passar
duas semanas no Concord, jogando golfe.
Telefonamos a Lorraine Trydell e Ray Parker, gerentes daquele imenso
hotel, perguntando se admitiriam um cachorro. “Frenchy”, que é o apelido
da senhorita Trydell, disse que não encorajavam muito esse tipo de coisa,
mas que naturalmente fariam uma exceção. Por isso, numa linda manhã de
agosto, Irving, a “exceção” e eu, sentamos em nosso carro e viajamos para o
hotel Concord no lago Kiamesha. Adoro o Concord. O campo de golfe é
sensacional, a comida é ótima e os apartamentos são realmente
inacreditáveis. Deram-nos um, com um banheiro para “ele” e outro para
“ela”, iluminação indireta e televisão — todo o luxo do Waldorf entre as
montanhas. Toda pessoa que se hospeda pela primeira vez no Concord fica
impressionadíssima. Todo mundo. Menos Josephine.
Desde o começo ficou aparente que a viagem não estava lhe agradando.
Observou o porteiro de nosso hotel carregar as malas e os sacos de golfe
para nosso carro. Arregalou os olhos quando viu uma caixa com seus
próprios brinquedos e biscoitinhos tomar a mesma direção. E ficou ainda
mais estarrecida quando percebeu que seria parte integrante da caravana.
Ficou no colo de Irving enquanto eu dirigia, mas ela se recusou em se
descontrair. Latiu para todos os guichês de pedágio, não quis dormir e não
ficou satisfeita nem quando Irving, para agradar-lhe, começou a coçar sua
barriga. Parecia acreditar que era seu dever ficar acordada e alerta. Estava
desconfiada daquela história toda e decidida a descobrir o que estava
acontecendo.
Não ficou impressionada nem com o imenso dormitório e com os dois
banheiros. Mostrou claramente que não estava com vontade de ficar. Após
farejar por todos os cantos foi direta até a porta, abanou o rabinho como a
dizer: “Muito bem, e agora vamos sair daqui”.
Para deixar bem claro que o ambiente era-lhe totalmente desagradável,
Josephine recusou-se a comer. Cá entre nós, qualquer criatura que se
recuse a comer o que servem no Concord não está muito boa da cabeça —
está realmente perturbada. Não consegui convencê-la que nossa mudança
era somente temporária, e ela estava achando falta de tudo que ela gostava
em Nova York — o Central Park, a Fifth Avenue, as compras no
Bloomingdale’s. De fato, Josephine era uma cachorra urbana e todo aquele
bom e fresco clima da serra a deixava enervada. Mais ainda: ela não jogava
golfe, não nadava e quando saía com ela para um passeio, não havia coisas
interessantes a farejar. Só bateladas de gramas.
Nós, porém, — Irving e eu — adoramos nossa estada e senti muito
quando saímos de lá ao findar das duas semanas. Mas a personalidade de
Josephine mudou de forma radical quando viu nossas malas colocadas no
carro. Quando, finalmente, chegamos no Elevado Oeste, ela se transformou,
e quando passamos pelas ruas conhecidas de Central Park South, quase
engasgou de felicidade. Estava em casa!
Beijou o porteiro, beijou todos os mensageiros — até o rapaz que não
lhe agradava em circunstâncias normais. Começou a rolar sobre o carpete
do saguão do hotel. Quem estava precisando de grama fresca nas serras?
Ela preferia o carpete de lã. Irving e eu sentimos muito, realmente.
Josephine era uma nova-iorquina puro sangue. Nunca poderia se sentir feliz
longe da cidade.
Acontece que Josephine adorava os outonos de Nova York. No inverno já
não se mostrava muito entusiasmada. Saía todos os dias, convencida que a
temperatura da rua devia ser a mesma que em nosso apartamento. Quando
percebia o frio, parava estupefata. Em seguida, sendo como era, uma
poodle com mentalidade prática, encerrava rapidamente os assuntos que a
tinham levado à rua, para arrastar-nos de novo para o hotel. Os rápidos
passeios revigorantes não eram com ela! Preferia fazer exercício em nosso
bem aquecido apartamento.
Em janeiro Josie festejou seu segundo aniversário. Em fevereiro se
apresentou pela primeira vez no show de Robert Q. Lewis, transmitido por
uma cadeia de televisão. Dessa vez as congratulações foram em escala
muito maior. Foi vista por nossos amigos de Los Angeles, pelo primo de
Irving em Detroit. E mais importante ainda, minha mãe que mora em
Filadélfia também assistiu ao espetáculo. Apesar de ser muito comedida
por natureza, minha mãe recebeu congratulações da cidade inteira.
Mamãe aceitara, sem protestos, o apelido de vovó — possivelmente por
ser realmente muito apegada a animais — apesar de ela viver sem gatos e
sem cachorros.
Mamãe tinha um carpete novo de uma cor dourada. E se o doutor Ben
Casey (que mamãe acha adorável) chegasse para uma visitinha e uma xícara
de chá, mamãe insistiria para ele tirar os sapatos antes de pisar no novo
carpete cor de ouro.
Mamãe também nunca teve muita sorte com os bichinhos que arranjava.
Vejam vocês o que aconteceu com um lindo tanque cheio de maravilhosos
peixes tropicais. Conheço muita gente que compra alguns peixinhos e após
um certo tempo percebe que está com milhões de pequenas belezinhas
nadando dentro do tanque. Mamãe, porém, comprou um bom número de
peixes e acabou descobrindo que eram todos canibais. Mudou
repetidamente de ração, mas não adiantou nada: eles continuaram
preferindo se comer uns aos outros. Isso continuou até que mamãe ficou
com um grande tanque habitado por um único e gordo assassino vitorioso.
É lógico que o coração dela não estava transbordando de amores por aquele
monstrinho de três polegadas, que tinha comido todos os seus parentes e
vizinhos.
Apesar de ela não gostar obviamente do peixe, continuou alimentando-o
com toda espécie de rações extravagantes, que ele recusava decidido.
Perdeu peso, mas não queria comer. Mamãe também era teimosa. Recusou-
se em comprar um verdadeiro e legítimo peixinho vivo para ele comer.
Achava que isso seria promover o crime. A situação ficou tensa: era um
desafio de temperamentos. Quem cederia primeiro? O peixe ganhou.
Morreu de fome. Foi a melhor das soluções. Mamãe estava em ponto de
ceder e já estava se informando a respeito dos preços de peixinhos
dourados de qualidade mais comum.
Em seguida mamãe teve um canário que não queria cantar e dois
periquitos que se odiavam. Ficavam o tempo todo em cantos opostos da
gaiola encarando-se com ferocidade. Num belo dia um dos periquitos
morreu. Todo mundo sabe que quando há um casal de periquitos e um
deles morre, o outro também morre dentro das vinte e quatro horas. Mas o
periquito de mamãe não fez nada disso. De repente desenvolveu uma
personalidade encantadora. Mudou as penas e começou a chilrear o dia
todo. Morreu só três anos mais tarde de uma hemorragia da garganta
devido a excesso de chilreios, porque era um passarinho muito feliz.
A mãe de Irving já era uma pessoa totalmente diferente. Também era
viúva e morava sozinha — mas não tinha nenhum bichinho. Não era por
causa de um carpete novo. Era só porque ela não gostava mesmo de
animais. Era, porém, uma mulher muito inteligente, e quando viu que Irving
e eu nos tornamos praticamente birutas por causa de Josephine, ela aceitou
uma solução de compromisso. Não quis aceitar Josephine como uma
parenta e descendente, mas prometeu considerá-la e respeitá-la como uma
boa amiga da família.
Entretanto, o “show business” é um grande catalizador de situações.
Vocês devem estar lembrados como a Princesa Margaret se tornou amiga de
Danny Kaye. Também concordarão comigo que se a Grace Kelly não tivesse
ganho um Oscar e estrelado em tantos filmes, o príncipe Rainier nunca teria
tomado conhecimento de sua existência. Considerando tudo isso, por que
minha sogra se mostraria menos impressionável do que a Princesa Margaret
e o príncipe Rainier? Após as aparições de Josie na TV, minha sogra
começou a mostrar-se muito mais carinhosa com a cachorrinha. Percebi
isso quando um dia levei comigo Josephine e fui ao Brooklin fazer-lhe uma
visita. Minha sogra estava com uma senhora e logo ouvi quando fazia as
apresentações: “Jackie, você já conhece minha amiga, a senhora Braff?
Senhora Braff, essa é Josephine, nossa poodle que participa dos shows de
Herb Sheldon e Robert Q. Lewis”.
Naquela mesma primavera percebi que minha sogra carecia de sua
costumeira vivacidade. Ela me explicou que estava se sentindo
perfeitamente bem, mas por meio de um cuidadoso inquérito fiquei
sabendo que nunca mais estivera num médico desde o nascimento de
Irving. A teoria de minha sogra era a seguinte: a gente ficava de pé até se
sentir tão mal que era preciso deitar-se numa cama. Esse era o momento de
se levantar e ir ver um médico! Se não fosse assim, a gente iria ver um
médico à cata de preocupações.
Insisti que viesse comigo para Nova York e ficasse conosco, para ter um
completo “check-up”. Foi muito duro convencê-la. Só conseguimos com
chantagem sentimental: ameaçamos nunca mais ir vê-la no Brooklin, e
nunca mais permitir que preparasse para nós aqueles almoços de onze
pratos, a menos que ela não fosse passar algumas semanas conosco em
Nova York e também passasse por alguns exames. Minha sogra não teve
escolha. Ficamos muito satisfeitos, e Josephine ficou radiante. Para Josie
minha sogra representava uma companhia obrigatória durante o dia inteiro.
Como já tive ocasião de dizer, Josie sabe um bom número de palavras.
Ensinei-as todas à minha sogra: “Vá apanhar sua bola!” “Sente aqui!” “Deite”
“Vamos dar um passeio!” e a sentença mais importante “Agora estou
ocupada!” Quando Josie ouve isso, suspira mas obedece, e começa logo a
dar atenção à outra pessoa ou então a um brinquedo.
Expliquei à minha sogra que deveria usar essa frase todas as vezes que
as atenções de Josie se tornassem asfixiantes, e que deveria fazê-lo sem
hesitações.
Apesar disso, toda vez que voltava para casa encontrava Josie deitada
no sofá, a cabeça no colo de minha sogra, enquanto aquela santa mulher
massageava a barriguinha de Josephine com tanto afinco que qualquer
pessoa poderia jurar que ela ganhava um salário para isso.
Então perguntava: — Mãe, a senhora não costuma assistir “Tempestade
oculta” ou “O jovem doutor Malone” a essa hora? (Ela adorava assistir
novelas.)
Ela assentia. — Sim, mas se eu levantar para ligar o televisor, ela ficaria
chateada.
Tentava raciocinar com ela: — Mãe, a senhora está em Nova York. Tem
tantas coisas para ver. Afinal a senhora está aqui para se divertir um pouco
e não para ser a dama de companhia de Josephine e sua massagista de
barriga.
Minha sogra sorria, terna, e continuava coçando a barriga de Josie: — Ela
gosta muito de minha companhia.
Ao mesmo tempo Josephine me lançava um olhar indignado, como a
dizer: “Você está se incomodando conosco? Fique quieta, quer?”
— Mas a senhora pode assistir televisão, e ela vai continuar na
companhia da senhora — retruquei. — A senhora pode ler um livro, ou ir
passear com ela. — Continuei apresentando todas as maravilhas de Radio
City, as maravilhosas liquidações das grandes lojas e todas as lindas coisas
que estavam esperando para serem vistas fora do apartamento. Disse que
tinha certeza que Josephine aguentaria ficar algumas horas sem alguém a
lhe coçar a barriga.
Minha sogra acenou afirmativamente com a cabeça, e continuou
coçando. “Mas ela gosta tanto disso.”
Observando ambas, tive de repente a impressão que a barriga branca e
redonda de Josephine estivesse muito maior. Fiquei considerando a
possibilidade de ela ter-se dilatado por causa da massagem.
Um pouco mais tarde olhei para Josie que atravessava a sala
cambaleando. Foi quando me convenci que não estava imaginando coisas. A
barriga dela realmente estava enorme! Perguntei à minha sogra se por acaso
estava ela dando biscoitinhos a Josie.
Ficou indignada. Nunca daria a Josie qualquer biscoitinho! Ainda por
cima era totalmente contrário a seus princípios dar biscoitinhos entre as
refeições. Tinha também experimentado um daqueles biscoitinhos para
saber como eram. Pois eram horríveis, não serviam nem para um cachorro.
O homem que os inventara e chamara de sobremesa de cachorro,
possivelmente devia ser um pega-cachorros. Tinham um paladar de
serragem de madeira congelada!
Expliquei que os cachorros gostavam daquele paladar. Para Josie, eram
doces.
Minha sogra sacudiu a cabeça. — Ela finge que gosta para agradar você.
Ela é muito meiga.
Continuei observando Josie. Seria minha imaginação? Mas aquela barriga
parecia bem maior. Coloquei-a na balança. Não era minha imaginação, Josie
estava pesando duas libras a mais.
Telefonei ao veterinário para marcar uma hora o mais cedo possível.
Minha sogra observou que estava vivendo no mesmo apartamento com um
punhado de hipocondríacos. Estava vivendo calma no Brooklin, sem amolar
ninguém, e lá fomos nós, arrastando-a para Nova York só porque estava
pesando algumas libras a menos. Agora queríamos arrastar Josie para o
veterinário só porque estava com algumas libras a mais. Ela queria saber o
que pretendíamos afinal. Não era o suficiente que tivesse um médico
furando seu dedo, tirando dela frascos e frascos de bom sangue e
mandando que ela engolisse gesso líquido? Se nos sentíamos felizes
desperdiçando nosso dinheiro assim, paciência. Mas por que essa
cachorrinha feliz e saudável teria que se submeter a um exame? Finalmente
resumiu a resposta assim: — Pois é, isso é por causa do “show business”!
Entretanto, na manhã seguinte, bem cedo, fomos ao hospital do doutor
White. Fomos atendidas pelo doutor Green. O doutor White estava na
cirurgia. Quando o doutor Green olhou para Josie, esbugalhou os olhos.
Perguntou o que é que estávamos fazendo com ela. Bombeando ar na
cachorra? Quando expliquei que ela não estava prenhe, mandou fazer os
raios X. Precisava ver o que havia com ela.
E viu mesmo. Uma quantidade inacreditável de gordura. Só gordura. O
doutor Green mandou buscar o doutor Black. O doutor Black sugeriu uma
junta médica. Talvez seria oportuno Josie ficar internada até o dia seguinte,
para ser vista pelo famoso doutor White. Poderia ser um caso de glândulas.
Recusei-me a deixar Josie no hospital, nem que fosse por uma só noite.
Toda vez que a levava para lá, ela começava a tremer a uma quadra de
distância, e continuava tremendo até que não saíamos pela porta, indo
embora. Não queria sujeitá-la a tanta angústia inútil.
Perguntaram o que Josie comia. Expliquei que ela não comia muito. Era
eu quem a alimentava. Recebia uma refeição por dia — mas seu horário era
às duas da madrugada. A refeição era composta de restos de bisteca de um
certo número de restaurantes — Danny’s Hideaway, ou Toot’s Shor’s, ou do
Little Club, ou do Lindy’s. Ao meio dia tomava café comigo, e durante o dia
roía alguns biscoitos. E só.
Mandaram que mudasse logo de regime. Nada de biscoitinhos. Nada de
café. Uma só refeição por dia — mas não vinda de um restaurante. A
refeição seria simplesmente meia lata de ração para cachorro. Nada mais.
Teríamos que observar esse regime espartano durante um mês. Se Josie não
perdesse bastante peso nesse período, teria quo se submeter a um “check-
up” demorado. Se não perdesse peso, devia ser um caso de glândulas,
talvez de tireóide.
Corri para casa e joguei fora todos os biscoitinhos que encontrei. Josie
ficou olhando para mim como se eu tivesse enlouquecido de repente. Nas
manhãs seguintes tomei meu café atrás de uma porta fechada para não
induzir Josie em tentação. No fim de duas semanas coloquei-a na balança.
Estava com uma libra e meia a mais!
Fiquei histérica. Não queria submeter Josie a todos aqueles exames.
Quem sabe, se ela fizesse um pouco de exercício? Aliás, sim, era isso
mesmo. Ficar assim sem fazer nada o dia todo, além de deixar que
coçassem sua barriga, estava contribuindo para torná-la ainda mais obesa.
Qualquer criatura ficaria com as glândulas embotadas levando uma vida
assim. Nem precisa dizer que não falei nada a minha sogra: ela só daria a
culpa aos veterinários.
Naquela noite coloquei meu despertador para as nove da manhã.
Daquele dia em diante Josie e eu iríamos dar um passeio de uma hora no
parque, toda manhã. Talvez resolvesse o assunto.
Quando o despertador tocou na manhã seguinte quase mudei de ideia.
Mas sabia que precisaria me levantar. Minha sogra sempre se levantava
cedo — podia ouvi-la remexendo na cozinha. Saí da cama com todos os
cuidados para não acordar Irving. Não vi Josie e imaginei que ainda
estivesse dormindo debaixo da cama.
Resolvi deixar que dormisse mais alguns minutos enquanto tomava uma
xícara de café. Fui indo para a cozinha, onde estava minha sogra. Sabia que
ficaria surpresa por me ver tão cedo.
Enquanto atravessava a sala, meio adormecida, percebi na cozinha uma
conversa bastante animada. Minha sogra estava falando. Josie estava
respondendo com pequenos guinchos extasiados. A conversa foi mais ou
menos assim:
— Termine a aveia, Josie, e depois você vai comer esses ovos cozidos.
Não Josie. Você não pode comer os ovos antes de terminar a aveia. Aqui,
meu amor. Pronto, vou pôr mais um pouco de creme em cima disso. Agora
diga, não é mesmo gostosinho?
Segurei a porta para não cair. Quando consegui falar, minha voz saiu
meio estrangulada: — Bom dia, meninas.
Minha sogra ficou muito feliz em me ver. — Como é que você acordou
tão cedo? Sente-se aqui. Acho que ainda tem bastante aveia para você.
Encheu um prato para mim.
— Mãe — disse, procurando falar o mais suavemente possível. — Pensei
que a senhora disse que nunca dava comida nenhuma a Josie.
Esbarrou os olhos francamente surpresa. — Você não pensa que eu
deixaria um cachorrinho morrer de fome? Eu disse que nunca dava-lhe
comida entre as refeições. É você quem faz isso, dando-lhe aqueles
biscoitinhos de serragem, e café ao meio-dia.
Comecei a entender. — E que espécie de refeições a senhora dá a Josie?
— Só o trivial. Os horários seus e de Irving são basicamente errados para
um animalzinho desses. Por isso cuido que tenha um bom desjejum, um
almoço decente e um jantar. É o menos que eu posso fazer enquanto ficar
aqui.
— E o que é que a senhora dá a Josie para comer no almoço? (Era uma
tortura, mas eu precisava saber.)
— Isso depende — ela explicou. — Às vezes um pouco de galinha cozida
com ervilhas e cenouras. Ou então, um pouco de peixe. Sempre tiro as
espinhas primeiro. Outras vezes comemos laticínios. Verduras com creme
azedo ou panquecas com queijo. Ela adora sopa de cevada com cogumelos,
mas tenho a impressão que a sopa dá gases.
— E para o jantar? — Estava começando a ficar fascinada com a vida
particular desse pequeno Henrique VIII peludo.
— Você e Irving continuam insistindo para eu não preparar o jantar, e
então mando buscar o que for preciso pelo serviço de copa. Mas ninguém
conseguiria comer porções daquele tamanho, não é mesmo? Assim, Josie e
eu dividimos as porções, e até agora nos demos muito bem. Você não
precisa se preocupar, eu cuido que ela tenha um trivial bem variado. Você
não pode esquecer que criei o Irving, e sempre insisti para ele comer
bastante frutas e verduras. Já faz muito tempo isso, mas assim mesmo não
me esqueci.
Debruçou-se para apanhar o pires vazio (os ovos já tinham
desaparecido) e fiquei observando-a com fascinação misturada a horror
enquanto despejava creme de leite, café, leite e açúcar num outro pires.
— Só ponho uma colherinha de café — desculpou-se minha sogra. — Por
sinal, é a única maneira em que consigo que beba seu litro de leite por dia.
Na hora do almoço, acrescento um pouco de xarope de chocolate. Também
o Irving, quando era pequeno, detestava leite. Mas todo mundo precisa
beber pelo menos um litro de leite por dia. Acho que você e o Irving
deveriam fazer a mesma coisa. — Em seguida falou com Josie que estava
afastando-se do pires ainda meio cheio: — Termine de tomar o leite, meu
docinho de coco. Faça-o pela vovó. — Vovó! O docinho de coco, que sabia
perfeitamente quem era que lhe proporcionava todas aquelas deliciosas
iguarias, obedeceu e voltou até o pires, acabando de lamber o leitinho
oferecido pela vovó.
Vovó sorriu satisfeita, apanhou o pires e falou com ternura: — Boa
menina. Agora pode dar um beijinho na vovó, e depois ir brincar um pouco.
— Josie colocou um beijo úmido no rosto de sua cozinheira pessoal, e
vovó, com os lábios apertados numa careta, recebeu-o com evidente
satisfação maternal.
— Quando foi que começou essa história de “vovó”? — perguntei.
Vovó sorriu. — Sabe, quando a gente começa a conhecê-la melhor, a
gente percebe que ela não somente é engraçadinha, mas que também é um
amor de criatura. Sabe, ela gosta muito de me chamar de vovó.
Como não podia deixar de acontecer, mandei “vovó” sentar e expliquei-
lhe a vida como ela era. Disse que apesar de um cachorro ter reações
extremamente humanas, tinha que observar algumas regras de vida
absolutamente caninas.
Vovó reagiu. Disse que eu vestia o cachorro como uma criatura humana.
Que permitia que dormisse em minha cama como uma criatura humana.
Que eu tratava Josie como uma criatura humana, e depois de tudo isso, eu
pretendia alimentá-la como cachorro. Como assim? Afinal, ela possuía
pulmões, dois rins e todas as outras vísceras encontradas em criaturas
humanas.
Expliquei que os cachorros só precisavam de uma refeição por dia.
— Uma só refeição por dia! — Vovó ficou horrorizada. — Quem foi que
disse isso?
Expliquei que eram ordens do veterinário. Vovó ficou indignada. Pois
sim! O veterinário não entendia nada. Se entendesse alguma coisa, seria um
médico e não um veterinário.
Finalmente vovó enfrentou-me com um argumento que ela julgou
incontroversível. Percebi que durante seus passeios no parque fizera um
pequeno inquérito sobre cachorros, com todas as velhinhas simpáticas que
encontrava. Perguntou se eu sabia que os cachorros tem dois estômagos?
Achei que afinal poderia convencê-la: — Sim, eu sei. Os cachorros tem
dois estômagos, porque eles na realidade não mastigam os alimentos.
Engolem tudo no estado em que está e usam o segundo estômago para
digerir a comida.
Vovó assentiu satisfeita. — Nó comemos três refeições por dia e só
temos um estômago. Quem é o professor que sancionou que cachorros só
podem comer uma refeição por dia, quando tem dois estômagos a encher?
Ninguém poderia lutar contra argumentações inspiradas nesse tipo de
lógica. Lembrei-me que os exames de vovó estavam quase terminados.
Voltaria ao Brooklin no fim da semana, e por isso dei a discussão por
encerrada.
No dia em que foi embora fiquei muito triste vendo Irving levar suas
malas para o carro. Irving teve que acompanhá-la sozinho. Eu não ousei
deixar Josie sozinha. A partida de vovó deixou-a praticamente em estado de
choque. Fiquei, porém, muito feliz em poder telefonar ao veterinário,
explicando que tinha certeza que Josie não sofria de nenhuma disfunção
glandular. Não se tratava de disfunção de tireóide: Josie estava se
recuperando de uma prolongada orgia.
19 A CADELA SOLTEIRA E O SEXO
Quando a primavera chegou ao fim e o calor começou a tornar o asfalto
mole e pegajoso, Josephine deu a entender claramente que não desejava
dar longos passeios devido à estação. Josephine não era contrária a
caminhar, mas somente quando o clima era condizente. Nunca no inverno,
porque era frio demais. Também detestava chuva. De junho a setembro o
tempo era quente demais. Pelas minhas observações, havia mais ou menos
três dias em outubro que Josie achava perfeitos do ponto de vista
climático. Infelizmente, seus pontos de vista eram completamente errados
para uma cachorrinha com um problema de peso.
Em julho Josephine conheceu Moppet. Moppet era uma poodle cor de
cacau, tamanho padrão. Era dois anos mais velha, e tinha seis vezes o
tamanho de Josie. Mas Moppet e Josie tinham muitos pontos de contato:
ambas viviam num ambiente de “show business.”
Apesar de Josephine continuar tratando Bobo como um cachorro, ela
não estendia seu esnobismo a todos os poodles. Aliás, entre seus melhores
amigos havia bastante poodles. Mas ela não pretendia casar com um deles,
e por isso achou que era mais seguro limitar suas amizades às fêmeas da
espécie. Suas amiguinhas poodles reconheciam que Josie era sempre
solidária e generosa.
Especialmente, com Moppet. Moppet não representava, e podia ser
considerada “do ambiente” por uma questão de osmose. Sua dona era Lee
Reynolds que naquela época era assistente de produção e de direção de
Jackie Gleason. Jackie possuía um grande apartamento no hotel Park
Sheraton, que servia de residência e escritório. Lee e Moppet iam trabalhar
ali todos os dias.
Quando o senhor Gleason contratou Lee não estava ainda sabendo que
ela tinha um apêndice. Aliás, a própria Lee não sabia disso. Mas Lee
descobriu logo que não era possível deixar Moppet sozinha no
apartamento, porque Moppet ficava de mau humor. E quando Moppet
estava de mau humor, isso não era pouca coisa. De fato, o mau humor de
Moppet só ficava aliviado roendo móveis. Quando ainda filhote, Josie roera
algumas almofadinhas, mas você não deve se esquecer que Moppet era
tamanho padrão. Para Moppet uma almofadinha era um simples aperitivo.
Moppet conseguia roer uma poltrona inteira, ou fazer desaparecer a perna
de uma mesinha baixa, de sobremesa.
Lee resolveu o problema levando consigo Moppet todos os dias quando
ia ao escritório. Moppet mostrou apreciar muito a atividade ligada a tudo
que era show e parou de roer móveis. Fez amizade com toda a equipe, e
sendo uma antiga fã de Gleason, praticamente adorava o “Grande”. Gleason,
por sua parte, achou que ela era uma cachorra e tanto, e assim todo mundo
ficou satisfeito com a solução.
Lee levava Moppet ao parque durante a hora do almoço, e sendo Lee
minha amiga, Josie logo fez amizade com Moppet. Com o passar das
semanas a amizade que Josie sentia por Moppet transformou-se em
verdadeira adoração. Seguia Moppet com aquela admiração que todas as
meninas tem por moças maiores.
Quando o show de Gleason terminou temporariamente por causa das
férias, Gleason foi para sua propriedade em Peekskill, no Estado de Nova
York. Antes que passasse uma semana, telefonou a Lee, explicando que
estava sentindo saudades de Moppet. Anunciou também que uma casa de
campo era o lugar ideal para qualquer cachorro. Perguntou se poderia
mandar seu motorista buscar Moppet na cidade.
Lee recusou a oferta, pois eu já tinha-lhe explicado a falta de entusiasmo
de Josie no Concord e todo o maravilhoso ar serrano em volta, Mas Gleason
insistiu. Disse que Moppet precisava conhecer finalmente o entusiasmo e a
excitação de poder correr por acres e acres de grama verde. Por que Lee não
queria deixá-la gozar de tudo isso por uma semana? Jurou que cuidaria de
Moppet da melhor maneira.
Lee continuou recusando. Moppet era muito feliz, apesar de não ser
livre. Moppet adorava passear no Central Park com coleira e guia. Nunca
vira acres e acres de grama, e talvez não gostasse disso. Finalmente, disse
Lee, não era o momento oportuno para deixar que Moppet ficasse correndo
sozinha. Se Moppet ficasse muito sozinha poderia encontrar-se com um
poodle macho, e acabaria ficando prenhe. Gleason compreendeu, mas
assim mesmo insistiu. Disse que Lee não teria que se preocupar. Não havia
outros cachorros à vista num diâmetro de muitas milhas.
Finalmente Lee e Gleason chegaram a um acordo. Moppet iria passar um
fim de semana. Lee convenceu-se que seria cruel negar a Moppet a gloriosa
vista dos campos abertos. Josie era uma cachorrinha urbana por convicção,
mas talvez Moppet tivesse um outro gênio. Assim foi que entregou Moppet
com um sorriso nos lábios, mas muitas dúvidas no coração.
Moppet ficou com Gleason durante duas semanas carregadas de
atividades. Como Gleason explicou mais tarde, tudo se desenrolou da
melhor maneira. Durante os primeiros dias Moppet ficou sentada,
observando de longe os muitos acres cobertos de grama. Ela não sabia para
que serviam. Mas logo aconteceu uma afortunada coincidência. A senhora
Orbach, que morava nas paragens, chegou um dia acompanhada de uma
simpática e maternal “collie”, de idade já avançada. Essa collie conhecia
todos os cantos de Peekskill. Começou logo a pagear Moppet, ensinando-lhe
os segredos da vida no campo — caçar coelhos, pular em riachos e cavar
enormes buracos no gramado para recuperar ossos de bisteca pré-
históricos.
Quando Moppet voltou, Josephine fez muitas festas, para dar-lhe as
boas-vindas e mostrar que realmente sentira muita falta dela. Mas Moppet
já não estava mostrando o mesmo entusiasmo pelo Central Park. Era claro
que para ela não passava de uma estrutura comercial. E sem dúvida Josie
não se comparava com aquela collie da senhora Orbach. Com o passar dos
dias, porém, conseguiu se acostumar mais uma vez com o ambiente, e só
um olhar triste em direção a algum esquilo mostrava que ainda sentia
saudades da gloriosa temporada em Peekskill.
Moppet voltou a ser a grande amiguinha de Josephine. Moppet tinha
uma influência formidável sobre Josie dentro do parque. Pelo seu tamanho
grande, Moppet precisava fazer exercícios de verdade, e gostava disso.
Josie sempre achara que o parque não passava de um banheiro ajardinado.
Quando a missão estava cumprida, ficava ansiosa, queria atravessar a rua e
voltar para casa.
Mas Moppet gostava de se movimentar e por isso tinha aquela linda
linha côncava logo após a caixa torácica. E devido à influência de Moppet,
Josie até conseguiu subir e descer correndo por algumas elevações.
Três semanas após a volta de Moppet percebi que não havia mais aquela
linda linha côncava. Perguntei a Lee se Moppet estava comendo mais do
que o normal.
Lee disse que Moppet não estava comendo nada mais do que de costume
mas que estava precisando aparar o pelo. Moppet foi raspar o pelo. Assim
mesmo, aquela maravilhosa linha côncava continuou ausente Moppet
estava gorda. Lee começou a levá-la para demorados passeios. Em
consequência Lee perdeu três libras, mas Moppet continuou engordando.
Finalmente Lee externou com palavras a terrível dúvida que surgira em
nossas mentes. Teria mesmo sido uma fêmea collie?
Lee telefonou a Gleason que continuava em sua casa de Peekskill.
Gleason afirmou categoricamente que a collie era fêmea.
Lee se sentiu aliviada. — Você quer dizer que a senhora Orbach
confirmou que é uma fêmea?
— Eu não preciso pedir confirmações — trovejou Gleason. — Quando vi
o bicho, logo vi que era.
O alívio de Lee começou a desaparecer. — Como foi que você viu, Jackie,
meu querido?
— Porque sei que uma mina é uma mina, quando a vejo, ora! Esse bicho
era uma cadela, você acha que eu não sei?. . . Tinha cabelos compridos e. . .
ora essa!. . dava para perceber que era fêmea!
Lee levou Moppet ao veterinário. O resultado do exame provou que
Gleason era um ótimo juiz de beleza da espécie humana, mas não
compreendia nada quando se tratava de cachorros. Moppet estava
“esperando”.
Lee quase teve um colapso. Um collie e uma poodle! Qual seria o
resultado? Um copoodle! O que faria com os filhotes? Com certeza seriam
monstrinhos e não conseguiria nem dá-los de presente. Assim mesmo, era
responsável por eles, pois eram a carne e o sangue de Moppet.
Chamou o senhor Gleason pelo telefone. O senhor Gleason chamou a
senhora Orbach. Em seguida o senhor Gleason chamou a senhorita
Reynolds. O senhor Gleason, a essa altura dos acontecimentos, já estava
muito humilde. Após pedir mil vezes para ser perdoado, Gleason tentou
mostrar os pontos positivos da situação. Afinal, a Moppet não tinha dado
um mau passo com um cachorro qualquer e desconhecido. O collie era
ótimo. Vinha de uma excelente linhagem — todos os seus antepassados
foram campeões. Talvez a coisa não fosse tão ruim assim. Era necessário
lembrar que muitas vezes os casamentos mistos davam excelentes
resultados.
Como era de se esperar, todo mundo começou a dar palpites. Explicaram
a Lee que uma grande dose de óleo de rícino poderia resolver a situação. E
que tal, aquelas injeções? Ou poderia levar Moppet para a Dinamarca — ou
seria a Suécia? Lee, porém, achou que era preferível e mais seguro deixar
que a natureza seguisse seu curso.
Moppet iria ter sua cria, a cria sem dúvida seria de aparência
surpreendente, mas o senhor Gleason teve de garantir que cuidaria
pessoalmente que cada monstrinho encontrasse uma família carinhosa para
cuidar dele. Era lógico que o senhor Gleason, muito confuso, empenhasse
sua palavra.
Após o intervalo de praxe, nasceram os copoodles. Collies são lindos. Os
poodles também são lindos. Mas a mistura resultou horrível. Os filhotes
nasceram cor de lodo cinza-avermelhado, com manchas brancas, um
focinho de poodle e as pernas compridas dos collies. Até Moppet ficou
surpresa. Deu-lhes todo seu carinho, mas apesar disso sempre esbugalhava
os olhos quando voltava a vê-los. É possível que, como toda mãe, ela
estivesse pensando que, crescendo, melhorariam de aparência.
Lee começou a dar telefonemas diários a Gleason, perguntando: —
Então?
Gleason respondia invariavelmente: — Estou pensando seriamente no
assunto.
Quando completaram três meses, ainda estavam com Lee e Gleason
continuava pensando no assunto. Um belo dia Lee apanhou todos os
filhotes e levou-os ao escritório do senhor Gleason.
Gleason ficou estupefato. — Minha nossa, como são feios. O que é que
vamos fazer com eles?
Lee sorriu suavemente: — Nós não vamos fazer nada. Você é que vai
encontrar famílias carinhosas que queiram ficar com eles.
— Mas como é que eu ia imaginar que teriam essa aparência? O que é
que você quer que eu diga a essas pessoas?
— Diga que eles tem personalidades cativantes quando a gente chega a
conhecê-los mais de perto.
— Por favor, Lee — pediu Gleason. — Leve-os: de volta para casa e fique
com eles mais dois meses. Talvez cheguem a melhorar.
— Quanto maiores forem, piores serão — sentenciou Lee. — Você sabe
como são as pessoas. Todos os filhotes parecem engraçadinhos. E que você
queira acreditar ou não, esses são filhotes!
Ninguém jamais poderá dizer que Jackie Gleason não é um homem de
palavra. Naquela mesma noite ele e seu motorista pegaram os filhotes, e
foram de carro para o interior do Estado. Pararam em frente a primeira casa
que viram e tocaram a campainha. Quando a porta se abriu, Gleason se
apresentou com ar abatido e um dos filhotes entre os braços.
— Minha senhora — falou em voz baixa — uma poodle que é minha
amiga íntima teve um fim de semana amoroso com um collie. Em seguida, o
safado deu o fora. A senhora não ficaria com um dos filhotes? Não posso
dizer o nome do safado, mas ele também pertence a uma ótima família.
E assim por diante. Parou em todas as casas, dizendo a mesma coisa.
Agora, pense um pouco. Se você estivesse morando no campo e Jackie
Gleason tocasse a campainha oferecendo pessoalmente esses filhotes, você
se recusaria em aceitá-lo? Pois é. Os “copoodles” foram recebidos com o
maior prazer, como se fossem espécimes raros. Tornaram-se verdadeiras
celebridades naquelas paragens. Pense bem. Todo mundo pode ter um
collie. Todo mundo pode ter um poodle. Mas quem é que pode ter um
copoodle, oferecido por Jackie Gleason em pessoa?
Só sete felizardos que moram nos montes Catskill!
20 O PRIMO TONY
Moppet começou a reaparecer no Central Park após a adoção de seus
filhotes, e mostrou que estava bem humorada e feliz como sempre. Voltou
a ter as bonitas linhas de antes e no meio do inverno ficou evidente que já
esquecera o collie, Peekskill e até os sete esquisitos filhotes. Esperava
ansiosamente pelos seus encontros diários com Josie. Mas a fascinação que
Josie sentia por Moppet parou de repente. Isso nada tinha a ver com
Moppet pessoalmente. Os motivos foram meteorológicos. Josephine já
passara pelo terceiro aniversário e estava muito “por dentro” das coisas.
Ela sabia que existiam estações. E durante o inverno ela se recusava ir ao
Central Park. Moppet, ao contrário, parecia achar que era igualmente
divertido correr pelo parque num dia com dez graus abaixo de zero, como
em qualquer outro. Continuou convidando Josephine a subir correndo por
uma elevação para fazer um pouco de exercício. Mas Josephine, a pequena
flor de estufa, ficou parada com sua capinha vermelha e continuou batendo
os dentes. Olhava em direção a Moppet e ao mesmo tempo puxava na guia
em direção a casa.
Não demorou, e começou a evitar os encontros com Moppet. Quando via
Moppet correndo um pouco mais adiante, Josephine fingia estar míope
puxando-me na direção oposta.
Senti muito por ela perder a amizade com Moppet, mas com Josephine
parecia mesmo que o destino se encarregava das coisas no momento certo.
Foi isso que aconteceu num lindo dia de fevereiro.
Meu telefone tocou às oito horas da manhã. Era Joyce Mathews Rose. —
Tenho um novo cachorro! — berrou.
Procurei um cigarro, apalpando a mesa de cabeceira na luz cinzenta da
madrugada. Esforcei-me para responder com entusiasmo: — Ótimo. E o que
foi que Toulouse disse a esse respeito?
— Não estou mais com Toulouse.
A sentença me acordou por completo. Não gostei das imagens que logo
se apresentaram à minha mente. Toulouse realmente não é um cachorro
que se pode dar de presente.
Mas Joyce me tranquilizou. — Sabe, o Billy disse que não aguentaria o
Toulouse por mais um dia. Aí, minha mãe mencionou que conhecia uma
família em Huntington, em Long Island, que estava morrendo de vontade de
ter um cachorro. Achei melhor mandá-lo logo.
— Eles são capazes de mandá-lo de volta — avisei.
— Nada disso — retrucou alegre. — Eles não queriam um poodle de
linhas perfeitas. Simplesmente queriam um cachorro. Você não pode negar
que o Toulouse parece um cachorro. Precisamos admitir isso. Falei com o
pessoal e eles acharam que o Toulouse era um espetáculo. Tenho certeza
que Toulouse terá uma vida feliz. Agora eu estou com um basset adorável.
— Boa sorte. — Estava querendo encerrar a conversa para poder dormir
mais um pouco. Irving também já estava começando a se agitar, e além
disso nunca gostei especialmente de cachorros basset.
Mas Joyce estava querendo falar. — Você precisa ver. Uma belezinha.
— Joyce, lembre-se que todos os nenês são adoráveis.
Irving sentou-se de repente. — Quem foi que teve um nenê?
— Joyce. Um cachorro basset.
Irving bocejou. — Que horas são?
— Oito e dez.
Irving voltou a bocejar. — Você quer dizer, da manhã?
Não gostei do tom. Disse: — Joyce, vou chamar mais tarde, e poderemos
conversar.
— Não desligue. Se você desligar, vou chamar logo em seguida —
ameaçou Joyce.
Josephine acordou e saiu bocejando de debaixo da cama. Pulou ao lado
de Irving e começou a dar-lhe a ração matinal de beijos. Dava para ver que
ainda estava morta de sono, mas deve ter pensado que já passara da hora.
— Volte a dormir, Josie — gemeu Irving. — Ainda é noite.
— Joyce — cochichei — preciso desligar. Irving e Josie ainda estão
dormindo.
— Todos aqui em casa acordamos muito cedo — exclamou Joyce
animada. — Até Billy já tomou seu café.
— Então deixe seu basset dormir. Nenês precisam de bastante descanso.
— Mas não é mais um nenê. Está com dois anos. Billy não quis mais se
arriscar. O bichinho se chama Tony e tem um pedigree compridíssimo. Já
recebeu todas as vacinas, é muito saudável — resumindo, dessa vez não
pode acontecer mais nada.
— Espero que vocês sejam muito felizes juntos. — Comecei a afastar o
fone do ouvido para repô-lo no gancho.
— Vamos estar em sua casa daqui a uma hora.
— Pois nós estaremos dormindo.
— Por favor — pediu Joyce. — Vamos. Você não se lembra como a ajudei
a ministrar Pepto-bismol?
— Mas você acaba de dizer que Tony não está doente.
— Não está. Mas está morrendo de vontade de conhecer Josie.
— Você não poderia esperar até a tarde?
— Já disse: vamos estar ali dentro de uma hora. — Joyce desligou antes
que eu conseguisse berrar mais objeções. Tanto fazia. Irving estava
acordado e Josie estava trazendo para a cama o terceiro brinquedo de
assovio.
Preciso reconhecer que foi um encontro memorável. Para Tony, foi amor
à primeira vista. Nunca vira um poodle antes daquele dia e ficou admirando
Josie de queixo caído.
Josie já tomara conhecimento da existência de bassets, observando-os
estarrecida toda vez que cruzávamos com um em Central Park. Ela sabia
que todos somos criaturas de Deus e que algumas nascem defeituosas,
assim que sentiu pena de Tony. Já vira toda espécie de cachorro, e pensou
consigo mesmo que cachorro nenhum deveria ter aquela aparência.
Tony sabia que sua aparência era diferente da de Josephine, mas tinha
certeza de ser um cachorro. Sabia que era um membro licenciado da mesma
espécie canina. Tony crescera no campo, numa afamada criação de bassets
em meio a muitos outros iguais a ele. Conhecia bem os mistérios do sexo.
Era um jovem rapaz solteiro, mas já estava “por dentro” das coisas.
Afinal, Tony vivera no meio das árvores, sabia o que era a chuva. Sabia
como faziam os passarinhos, como faziam os esquilos, como faziam as
abelhas — e por isso pensou, com Cole Porter, “Vamos nos apaixonar.”
É claro que ele sabia que uma abelha ama outra abelha, que um esquilo
ama outro esquilo. Mas ele amava Josephine! Compreendeu, porém, que
não poderia fazer declarações até que perdurasse sua atual aparência. Mas
não estava preocupado. Você precisa se lembrar que Tony já vivera em
contato com a natureza. Sabia que a natureza provocava transformações.
As coisas mudavam. Já vira taturanas se transformarem em borboletas, e
depois voar com outras borboletas. Olhou com adoração para Josie e
decidiu esperar. Esperaria até o dia em que, acordando, percebesse que
tinha se transformado em poodle.
Nunca duvidou por um único instante que esse milagre ocorreria. Ficou
satisfeito com o belo presente, enquanto pensava num futuro mais feliz
ainda. Ficou observando Josephine e começou a adotar seus hábitos.
Desprezou sua caminha de junco e começou a querer dormir na cama de
Joyce. Desenvolveu um apetite terrível. Mas Tony vivia em condições que
favoreciam seu vício. Primeiro partilhava do desjejum de Joyce. Em seguida
trotava até o quarto de Billy e pedia guloseimas. Finalmente acabava indo
até a copa. Joyce e Billy estavam sempre de regime para não perder a linha,
e assim o verdadeiro desjejum de Tony era na copa com a cozinheira e o
mordomo. Comia, por exemplo, panquecas e linguiças. Tony tinha uma vida
maravilhosa. Recebia cuidados e carinho de todo mundo, e finalmente
tornou-se terrivelmente gordo.
Josie tinha uma hora marcada no veterinário, para os exames de
primavera e Joyce decidiu levar Tony junto. A equipe do doutor White ficou
muda quando Tony apareceu. Ninguém se preocupou com a barrigona
branca de Josephine — que pesava dezessete libras. O doutor Black anotou
o peso dela encolhendo os ombros. (Como de costume, não vimos o doutor
White. Estava na cirurgia.)
Quando, porém, começou a medir e pesar Tony, o doutor Black ficou
com os olhos arregalados. Colocou-o no chão para observar como
caminhava. Tony não caminhava: arrastava-se com um balanço. Ninguém
conseguia ver suas perninhas. O doutor Black começou a chamar a atenção
de Joyce, e explicou-lhe alguns fatos essenciais a respeito de cachorros
basset. Tinham um corpo comprido e uma espinha comprida sobre quatro
patinhas curtas. Era muito fácil que um basset muito gordo acabasse com
uma hérnia do disco. Um pulo de mau jeito poderia até quebrar uma
vértebra e deixar o cachorro paralítico.
Joyce e eu pagamos os cinco dólares do exame e saímos apressadas.
Fomos até meu apartamento, onde começamos a discutir a situação
tomando um uísque, enquanto Josie e Tony brincavam juntos, roendo
alguns biscoitinhos.
— Olhe só como estão felizes — disse Joyce radiante. — Se você quer
saber o que eu penso, então eu penso que se trata de pura teoria, e não de
fatos. — Jogou um amendoim salgado ao Tony. — Em nossos tempos a
teoria é que você precisa ser magra para ser saudável. Uma geração atrás
era o contrário: diziam que precisava ser rechonchudo para ser saudável.
Ninguém pode garantir que daqui a dez anos o ciclo não se repita.
Perguntei o que ela queria dizer com isso.
— Quero dizer que Josie e Tony tem que morrer de fome só porque os
veterinários estão atravessando um ciclo ‘mantenha-os magros’? — Jogou
mais um amendoim ao Tony. Josie olhou para mim e gemeu de inveja.
Fiquei firme. — Mas as companhias de seguro dizem que as pessoas
magras vivem mais do que as gordas. Não são somente os veterinários. Os
médicos que cuidam da gente também concordam com essa mesma teoria.
Veja só quanto escrevem a respeito de gordura e de colesterol.
— Já conheci um bom número de médicos gordos e de agentes de
seguros gordos — explicou Joyce.
Tive que admitir que ela estava certa. Lembrei-me de Edith Piaf. Só
pesava uns quarenta e cinco quilos, e apesar disso não fazia que entrar em
hospitais e sair de hospitais. Ao contrário, Sophie Tucker que, afinal, nunca
poderia ser garota-propaganda para o Metrecal, continua firme. Minhas
decisões ficaram abaladas. Josie teve que perceber meus pensamentos,
porque começou a babar e gemeu mais uma vez.
Hesitei por mais três segundos. Em seguida servi mais um drinque a
Joyce, despejei um para mim, coloquei o pires de amendoim no chão entre
os cachorros extasiados e disse: — Viva a vida gastricamente feliz!
E assim foi. Joguei fora as latas de alimento para cachorros e Josie
voltou mais uma vez a se alimentar de gostosos restos de bistecas do
Danny’s Hideaway. Ganhou biscoitinhos e outras guloseimas de mãos
cheias. Josie passou os seis meses seguintes entre delícias epicurianas.
Tony acabou sendo conhecido como o desafio da rua 93 ao rei Farouk. Seis
meses mais tarde Josie pesava dezoito libras no dia de seu aniversário, e no
dia seguinte Tony morreu de repente.
Após a autópsia ficamos sabendo que morrera por uma hemorragia
cerebral, mas que sua espinha estava em condições tão perfeitas que
poderia ficar exposta no museu da “Smithsonian Institution”. Joyce se
sentiu reconfortada, porque qualquer pessoa sabe que hemorragias
cerebrais nada tem a ver com calorias. Pelo menos Tony conhecera as
delícias do pato brasado, do salmão defumado e do sufflê.
Eu fiquei um pouco impressionada com o repentino desenlace de Tony.
Joguei fora todas as caixas de biscoitinhos e voltei a alimentar Josie com
alimento para cachorros enlatado. Larguei de citar Sir Winston Churchill e
comecei a falar mais em George Bernard Shaw. Ele só comia grama e viveu
até quase os cem anos!
Joyce ficou muito triste mesmo. Billy, que sabe sempre como enfrentar
uma emergência, saiu correndo e trouxe-lhe de surpresa uma fêmea basset,
de cor fulva. Chamava-se Baby Doll. Baby Doll só levou uma semana para
preencher no coração de Joyce o vazio deixado por Tony. É claro que
ninguém poderia substituir Tony, mas conseguiu se apegar bastante a Baby
Doll.
Também-gostei muito de Baby Doll. Fiquei, porém, preocupada com
Josie. Como é que eu ia explicar-lhe a coisa? Era tão jovem e inocente e não
sabia nada a respeito da morte. Poderia ficar muito chocada com o que
acontecera ao Tony. Afinal, fora seu melhor e mais íntimo amigo.
Irving fez uma sugestão um pouco maluca. Aliás, era tão maluca que
acabei me convencendo que poderia dar certo. Josie não sabia muito a
respeito de cachorros basset e talvez ela não imaginasse que havia uma
multidão desses cachorros. Para ela, Tony era um erro da natureza. Quem
sabe, ela poderia acreditar que Baby Doll era Tony.
Concordamos que o encontro teria que acontecer em meu apartamento.
Baby Doll entrou aos pulos e cumprimentou Josie como se fosse sua amiga
de infância. (Graças a Deus, era muito novinha e extrovertida.) Durante um
instante carregado de tensão, Josie ficou parada, olhando.
Joyce e eu falamos ao mesmo tempo — É seu amiguinho Tony — olhe só.
. . agora decidimos chamá-lo. . . chamá-la Baby Doll. É seu novo apelido,
Josie.
Josie continuou observando. Em seguida se aproximou cautelosamente
de Baby Doll. Começou a farejá-la de maneira radical e prolongada, e
pareceu um pouco surpresa. Achara algo diferente. Mas como já tive
ocasião de dizer antes, Josie é uma cachorrinha muito ajustada e aceitou o
que estava em sua frente. Aceitou Baby Doll tranquilamente, como se fosse
uma coisa natural que um basset preto se transformasse de repente numa
basset fulva. E se ficou um pouco surpresa que faltassem alguns dos
equipamentos de Tony, não se importou com isso. Afinal, o problema era
dele.
21 ISSO É AMIZADE!
Durante toda a primavera Josephine viu Baby Doll com muita
frequência. Joyce fez o possível para manter Baby Doll a regime e eu
também me mantive severa com Josie. Apesar disso, algumas vezes
aconteceu que ela trapaceasse no regime. É sabido que quando a gente é
convidada para o jantar na casa de alguém não é possível recusar as ricas
iguarias preparadas pela dona da casa e pedir meia lata de alimento para
cachorro. Josie pelo menos não podia fazer isso. E Josie era frequentemente
convidada para o jantar. Especialmente por Última Hershkowitz. Antes de
mais nada, deixem que eu explique o nome de Última.
Última provém de uma família numerosa. A mãe dela teve um caráter
extraordinário, ou então muito senso de humor, ou então ambas as coisas,
porque permitiu que seu marido escolhesse os nomes de todos os filhos. A
primogênita foi chamada Lebanon (naquela época moravam na cidade de
Lebanon). O segundo foi um menino e recebeu o nome de Harlem (evidente,
tinham-se mudado). A terceira criança foi uma menina e foi batizada
Portland (eles viajavam muito). Portland, quando cresceu, casou-se com
Fred Allen e ficou famosa no rádio com o nome de Portland Hoffa. James
Mason gostou do nome e batizou sua própria filha Portland. É possível que,
sendo inglês, ele pensasse que fosse um nome muito comum na América do
Norte. De qualquer forma, ele gostou. Assim você pode ver que essa
excentricidade do velho senhor Hoffa vai se repetir por muitas gerações.
Muito satisfeito por sua família ser composta por Lebanon, Harlem e
Portland, o senhor Hoffa decidiu que estava na hora de encerrar o
expediente na propagação da espécie. A senhora Hoffa, porém, era de outra
opinião e conseguiu dar à luz a mais uma filha. O senhor Hoffa, para
mostrar sua decisão irrevogável, chamou a caçula de Última.
Entretanto, não subestime a independência espiritual da finada senhora
Hoffa. Ela permitia que o senhor Hoffa escolhesse seus nomes mas quem
fazia os filhos era ela. Chegou mais uma linda menina. A senhora Hoffa
possivelmente imaginou que dessa vez teria sorte e acabaria finalmente
tendo uma filha chamada “Janie” ou “Mary”. Afinal seria difícil o senhor
Hoffa encontrar um nome mais original de que Última. Mas o senhor Hoffa
achou. Chamou a recém-nascida Ponto Final.
A senhora Hoffa não teve outra saída do que se conformar com o
inevitável. Parou de produzir mais filhos. Talvez estivesse temendo que o
próximo bebê chegasse a ser chamado “Ponto de Exclamação” ou
“Brincadeira”. Ela também encerrou o expediente e Ponto Final ficou a
última da série.
Por estranho que pareça nenhuma das crianças se ressentiu com seu
nome esquisito, nem quando estavam crescidos. Última dizia que seu nome
era realmente uma vantagem muito grande. Era difícil alguém esquecê-lo.
Era também verdade que toda vez que era apresentada a alguém, sempre
constatava a mesma reação A pessoa arregalava os olhos e perguntava: —
Como é mesmo que você disse que se chama? — e logo em seguida
suspirava: — Pois é. Foi isso mesmo que pensei ter ouvido.
Por isso, ninguém esquecia o nome dela. E se uma pessoa mencionava
para a outra: — Ah, me lembrei agora, hoje vi Última — ninguém jamais
perguntava: Última quem?
Última começou a se chamar também Hershkowitz quando se casou com
um advogado chamado Arthur Hershkowitz. Última e Artie moravam perto,
e tínhamos o hábito de passar frequentemente uma noite juntos,
descontraídos no ambiente culturalmente elevado pelo jogo da canastra e
pela TV. Última é uma cozinheira formidável. Acontecia muito que ela me
telefonasse na última hora para dizer: — Se vocês não tiverem um outro
programa, venham para cá. Preparei um rosbife enorme. E não se esqueça
de trazer Josephine. — (Note por favor que o “trazer Josephine” é uma
expressão de Última.)
Na realidade, Última não gostava muito de cachorros. Josie, porém,
conseguiu conquistá-la. Pensando bem, ninguém na família de Última era fã
de cachorros. Portland, aliás, tinha horror a cachorros. Toda vez que via
um, fugia.
Josie gostava muito de passar a noite em casa de Hershkowitz.
Reconhecia o prédio à distância de uma quadra, e começava a me arrastar
pela guia para chegar mais depressa. Muitas vezes quando eu não estava
indo à casa de Última mas simplesmente tinha que passar em frente ao
prédio, Josephine declarava uma greve sentada, recusando-se a sair de
perto do portão. E eu era obrigada a fazer uma visitinha à Última.
Havia muitas coisas, ligadas com Última, que Josephine adorava. Em
primeiro lugar, a cozinha do apartamento. Josephine nunca vira uma
verdadeira cozinha. E uma cozinha do tamanho de uma sala de estar, cheia
de aromas exóticos, seria o suficiente para atrair o poodle mais esnobe — e
mais ainda um tipo feminino como Josie, que só vivia para comer. Era,
portanto, muito natural que ela considerasse Última uma pessoa
extraordinária.
Não somente Josephine, durante o jantar, ganhava um prato cheio de
rosbife ou de peru com todos os acompanhamentos, mas Última costumava
oferecer a Josie pequenas surpresas programadas só para ela. Antes do
jantar era nosso hábito tomar um aperitivo e Última achava que a coitada
da Josie se entediava, sem receber atenção de ninguém. Então dizia: “Olhe
só, Josie, o que titia Última trouxe para você. Um tira-gosto!” e colocava
três ou quatro fígados de frango torradinhos e quentinhos em frente à
querida convidada. Fígado de frango é o prato preferido de Josie, e ao
mesmo tempo é algo que ela come só de vez em quando, já que eu não sou
uma cozinheira entusiasta.
Além da cozinha e dos fígados de frango, havia mais coisas que
fascinavam Josephine quando estava em casa de Última. Por exemplo a
bomboneira de três andares na sala de estar. Josephine conhecia
bomboneiras, mas essa era a torre Eiffel das bomboneiras. Num prato havia
bombons de chocolate, no segundo gominhas e no terceiro caramelos.
Em seguida havia uma mesa baixa sempre cheia de tigelas com toda
espécie de salgados e, às vezes também, gelatinas. Acredito que Última
acostumou a ter em casa essa confeitaria doméstica quando largou de
fumar.
Uma visita em casa de Última era realmente uma festa, e fiquei
comovida que ela sempre incluísse Josie em todos os convites. Coloquei
logo Última num dos primeiros lugares de minha lista de “amigos para o
resto da vida”.
Uma noite estávamos sentados em volta da mesa jogando canastra, após
um jantar especialmente suntuoso quando Portland (que mora no mesmo
prédio) desceu até o apartamento de Última para uma visitinha. Josephine
estava deitada no carpete, descansando um pouco, para ver se encontrava
energias para atacar a bomboneira de três andares. Josephine tem muitos
talentos, e entre as habilidades de ficar com um olho aberto enquanto
dorme profundamente. Isso é importante para o caso que aconteça algo
inesperado — como a chegada de Portland, por exemplo. Como era de se
esperar, Josephine se esforçou por tomar uma iniciativa quando Portland
chegou. Última lançou-me um olhar apreensivo, do tipo “Porty-tem-medo-
de-cachorros”.
Portland entrou, cumprimentou todo mundo e logo observou
estarrecida: — Olhe só, tem um cachorro aqui.
Todos concordamos que realmente havia um cachorro ali, e Irving e eu
nos revezamos em declarar que era nosso, jurando que não mordia e que
nunca amolava pessoas estranhas.
Satisfeita com essa afirmação, Portland sentou no sofá. — Continuem
seu jogo. Trouxe meu tricô. Vocês juram que aquele sabujo não vai se
aproximar de mim?
— Pode ficar tranquila, Portland — respondi. — Ela nunca se aproxima
de pessoas estranhas.
Última começou a abrir a boca para me contradizer, mas dei-lhe um
chute debaixo da mesa e disse: — Vamos, dê as cartas.
Portland perguntou: — Nesse caso, quer me explicar por que ela está
agora sentada no sofá, bem ao meu lado?
Expliquei que isso era muito fora do comum, e muito lisonjeiro, porque
em geral Josephine era muito reservada. Todo mundo em volta da mesa
ficou em silêncio enquanto eram distribuídas as cartas. Última e Artie se
esforçaram para ficar com uma expressão displicente.
Ouviu-se mais uma vez a voz de Portland: — Por que cargas d’água ela
está cutucando meu braço agora?
Mantive minha voz indiferente enquanto apanhava uma carta: “Isso quer
dizer que ela quer que você lhe coce a barriga. — Última parecia estar a
ponto de desmaiar.
Portland começou a coçar a barriga de Josephine.— Nunca cocei a
barriga de cachorro nenhum em toda minha vida — disse-lhe para tentar.
Irving bateu e eu fiz canastra.
De repente Portland falou: — Quando paro de coçar, ela me cutuca com
sua patinha. Nunca vi nada assim. Que bichinha esperta, puxa.
Sugeri que ela continuasse coçando Josephine.
— Pois é o que estou fazendo — respondeu Portland. — Mas acho meio
complicado fazer tricô com uma mão só. Mas que coisa! — exclamou de
repente. — Quando não fico coçando no ponto certo, ela empurra minha
mão para onde ela quer!
Continuamos jogando, esperando pelo instante em que Portland
voltasse à realidade e se lembrasse que ela era apavorada por cachorros.
Durante cinco minutos só se ouviu o farfalhar das cartas.
Portland voltou a falar: — Escutem aqui, essa é a cachorrinha mais
engraçada que já vi. Vocês todos sabem que eu não gosto de cachorros,
mas Josephine é diferente.
Começamos a nos descontrair. Artie pegou o morto e Última bateu,
apanhando-me com quarenta pontos. Portland desistiu do tricô e dedicou-
se completamente a Josephine. — Escute aqui, Jackie. Sei que você e Irving
viajam muito para a Califórnia. Se por acaso vocês não querem levar esse
sabujo, gostaria muito de ficar com ela. Seria uma ótima companhia para
mim. Nunca vi um cachorro assim antes de hoje.
Última protestou, indignada. — Portland, para Josephine isso aqui é seu
segundo lar. Se Jackie deixasse Josephine com qualquer pessoa, eu me
sentiria insultada. Josephine gosta muito de minha maneira de cozinhar,
Frances a adora e Artie é completamente maluco por ela.
O senhor Hershkowitz confirmou: — Tudo o que Última está dizendo é
verdade. Essa cachorrinha é completamente diferente. Gosto muito dela.
Entre outras coisas, ela é muito simpática. Gostaria muito poder hospedá-
la. Quando Frances está no colégio ou sai de férias, a casa parece vazia.
A senhora Hershkowitz protestou indignada. — O que é que você quer
dizer, a casa parece vazia? O que é que eu sou? Um móvel?
O senhor Hershkowitz respondeu com os protestos e as declarações
carinhosas requeridas pelas circunstâncias. Última era a melhor das
companheiras, mas quando Frances não estava em casa ele achava falta de
uma criança. Josie era como uma criança.
Última concordou. Disse que ela também gostaria de ter Josephine em
casa, especialmente porque certas noites uma certa pessoa costumava
adormecer assistindo televisão. Insistiu para que deixasse Josephine com
eles a próxima vez que Irving e eu tivéssemos que ir para a Califórnia.
Como era lógico, pronunciei todas as palavras necessárias para mostrar
minha gratidão, mas expliquei que Josie estava acostumada a ficar com o
senhor Ingram, que era um criador de cachorros, e talvez fosse preferível
que as coisas continuassem assim.
Como era de se esperar, retrucou: — Você não confia em mim? Eu criei
Frances, afinal. Qualquer pessoa que sabe como criar uma criança, sabe
cuidar de um cachorro.
Tentar explicar que a coisa é muito diferente equivale ser julgada
excêntrica, apesar que nem sempre uma pessoa capaz de criar uma criança
sabe como cuidar de um cachorro. Ou vice-versa.
Assim, dois meses mais tarde, para não ofender Última, decidi me
arriscar e deixei Josie com os Hershkowitz por oito dias. Preparei uma
pequena mala para Josephine, com sua guia, seus biscoitinhos, sua bola e
mais alguns brinquedos dos quais ela gostava. Acrescentei meu número de
telefone do Hotel Beverly Hills, e o número de telefone do veterinário.
Dei um beijo em Josephine, recomendei-lhe ser uma boa menina. Fui em
direção à porta, sabendo que me seguiria. Preparei-me para a costumeira e
desagradável cena de despedida. Mas não aconteceu nada. Quando me virei
para acenar para ela, Josephine não estava olhando para mim. Estava
ocupadíssima, tirando os bombons de chocolate da bomboneira de três
andares.
22 AMIZADE É ISSO?
Apesar de tudo, fiquei preocupada durante todo o tempo em que fiquei
na Califórnia. Era inegável que Última sabia cozinhar um maravilhoso
rosbife, mas isso ainda não queria dizer que ela soubesse que um nariz
quente e seco significava febre. Não conseguia me lembrar se tinha falado a
respeito de ossos de frango. As crianças sabem comer frango e sabem que
devem evitar engolir os ossos. Mas um osso de frango pode matar um
cachorro. Já um osso de rosbife é permitido. E o Pepto-bismol — esquecera
de falar a respeito disso! Quando voltamos, fomos diretamente do
aeroporto à casa de Última, para apanhar nosso anjo.
Artie, Última e Josephine estavam nos esperando. Tinham um ar
cansado. Quero dizer, os três pareciam cansados. Como se estivessem de
ressaca. Até Josie estava com olheiras. Irving perguntou o que tinha
acontecido.
Última disse: — Josephine. Durante a noite passada. Aliás, todas as
noites. — Acrescentou: — Gostaria que vocês me respondessem algumas
perguntinhas. Por exemplo: que tipo de horário tem um cachorro? Qual é
sua hora de deitar?
— O meu mesmo horário — respondi.
Última suspirou. — E você me diz isso agora!
Parece que Última estava convencida que Josie tinha que ser cuidada
como uma criança pequena. Ou pelo menos como um cachorro. Convencida
disso, todos os dias, quando levantava às sete, tentara forçar Josephine a
sair para a rua, antes mesmo de preparar o café de Artie. Afinal, todo
mundo sabe que os cachorros acordam de manhã transbordando energia e
com uma vontade louca de sair. Quando a gente os chama e mostra-lhes a
guia, eles pulam e dançam pela felicidade de uma corridinha na calçada, no
fresco ar matutino. Todos, menos Josephine.
Por isso, às sete, quando todo mundo pulou da cama, Josephine brilhava
pela ausência. Chamá-la pelo nome, aos berros, não surtiu nenhum efeito.
Após uma busca muito cuidadosa, Josephine foi encontrada debaixo da
cama, toda enrolada e no sono ferrado.
Última conseguiu se enfiar também debaixo da cama e começou a falar
com ela em tom suave: — Acorde, meu amorzinho, já é de manhã. —
Josephine bocejou, se afastou um pouco, se ajeitou e continuou dormindo.
Última esticou a mão e continuou meiga: — Saia daí, Josie, meu bem.
Titia Ultiminha está chamando.
Josie conseguiu se afastar mais algumas polegadas, para ficar fora do
alcance. Não demorou, e cada uma puxava para seu próprio lado. Última
conseguiu agarrar a perninha de Josie e arrastou-a para a sala. Infelizmente
descuidou-se e largou Josephine para apanhar a guia. Josephine voltou a
jato para debaixo da cama, com o intuito de tirar mais uma soneca.
Após mais uma escaramuça, Josie foi arrastada para a rua e depositada
em cima da calçada. Josie tem o caráter de um anjo e apesar de estar de
olhos inchados pelo sono, funcionou exatamente da maneira requerida. É
claro que foi mais para agradar Última do que porque realmente estava
precisando. Em seguida virou-se e arrastou Última de volta ao apartamento.
Nessa altura Última começou a se preocupar com o desjejum de Frances
e Artie. Terminada essa tarefa, sem alimentar mais nenhum ressentimento,
chamou alegremente: — Josie, aqui está seu biscoitinho. Venha tomar café,
queridinha.
Ninguém apareceu. A Princesa Adormecida estava mais uma vez em seu
refúgio debaixo da cama, roncando com satisfação.
Última, como aliás a maioria das mulheres, segue uma rotina em seus
afazeres domésticos. Logo após a saída de Artie e Frances começa a por
tudo em ordem, e ao meio-dia as camas estão feitas e o apartamento está
impecável. A esse ponto Última tira uma soneca no sofá da sala. A uma da
tarde ela sente-se suficientemente descansada para sair.
Por isso, aconteceu que ao meio-dia, quando Última já estava deitando
para sua sesta, Josephine apareceu radiante e alegre. Estava querendo seu
desjejum. A esse ponto Última decidiu que estava na hora de mudar os
hábitos de Josephine. A cachorrinha teria que aprender a ter horários
decentes e a viver uma vida mais saudável. Começou levando Josie para
longos passeios, pelo menos três ou quatro vezes durante o dia. Toda noite
após o jantar arrastava Josie para mais um passeio de dez quadras. Afinal,
é sabido que todo cachorro gosta de passear! Última disse que se não
soubesse que isso era impossível, teria jurado que de vez em quando Josie
parava para chamar um táxi.
À noite a situação piorava consideravelmente. Última e Artie dormiam
cedo, quer dizer, lá pelas dez. Mas às dez horas da noite a brilhante
personalidade de Josie estava começando a desabrochar. Estava no auge de
suas atividades — pronta para brincar com sua bola durante horas a fio, e
pronta a deixar que alguém lhe coçasse a barriga. Em casa, Josie sempre
assistia o “Ultimíssimo Show”, com Jack Paar. Mas no apartamento dos
Hershkowitz todo mundo deitava às dez. Menos Josephine.
Quando as luzes se apagavam ela corria do quarto deles ao quarto da
filha com uma expressão estupefata, como querendo dizer: — O que está
acontecendo? Está todo mundo ficando maluco por aqui? A noite nem
começou ainda! — Todos tentavam dormir. Exceto Josephine.
Começava então a andar de um lado para o outro. O hall do apartamento
de Última tem um soalho de lindos ladrilhos tipo veneziano. Infelizmente
os ladrilhos ampliavam o som das unhas de Josephine enquanto caminhava
sem parar. Caminhava horas a fio. Ia e voltava. Artie e Última ficavam
acordados, sem acender a luz, escutando.
No fim do relato, Última suspirou: — Josie nunca foi se deitar antes das
3 da madrugada. Nem uma única vez.
Pedi mil desculpas à Última. Sem dúvida, a estada de Josephine fora
uma dificuldade para ela. Entretanto, ao mesmo tempo, refleti que Josie
com certeza também achara tudo muito difícil. Josie é uma “criatura da
noite”. Algumas criaturas funcionam bem somente no período noturno, e
isso é um fato cientificamente comprovado.
Última observou que se eu era biruta, não era necessário obrigar Josie a
ser biruta também. As crianças sempre imitam as pessoas adultas que elas
mais admiram. Portanto, era de se esperar que Josie, vendo que eu ficava
acordada até altas horas da madrugada, achasse lógico agir da mesma
forma. Como a história de comer na cama. A esse ponto Última exigiu que
eu explicasse onde eu tomava meu desjejum.
Boa pergunta! Onde é que todo mundo toma seu café da manhã? Na
cama, é claro.
Em seguida intrometeu-se ainda mais em minha vida particular
perguntando: — E quando você toma seu café na cama, onde é que Josie
come seu biscoitinho?
Ora, boa pergunta! Moro numa suite de hotel, composta de quatro
aposentos. O que pensava ela que eu fizesse? Que mandasse Josie comer
seu biscoito no estúdio?
Pelo que eu entendi, na casa de Última todo mundo toma seu desjejum
na área de jantar, sentadinhos em volta de uma mesa — no mesmo lugar
em que costumam tomar todas as outras formas de alimentação. Quando
Josie acordava finalmente ao meio-dia, Última dava-lhe um biscoito.
Quando isso aconteceu pela primeira vez Última percebeu horrorizada que
Josie pulara sobre a cama recém-arrumada, coberta de uma colcha de
organdi branco, e estava alegremente mastigando seu biscoito.
Agora diga você como é que Josie poderia saber disso. Em nosso hotel a
arrumadeira nunca aparece antes de três horas da tarde. E nós não temos
colchas de organdi branco. Nossas colchas são de seda branca e Josie tem
toda liberdade de pular sobre a cama a qualquer hora que queira. Aliás,
pula sobre as colchas de seda branca desde que era nenezinha e as colchas
ainda se apresentam em condições excelentes. (Se você quer saber minha
opinião, acho que desde que Última arrumou colchas de organdi branco, ela
bem que mereceu o susto.) De qualquer forma, não externei minhas
opiniões e perguntei a Última como conseguira resolver o problema.
Parece que Última não conseguira resolvê-lo de forma satisfatória mas
chegara a uma solução de compromisso. Última simplesmente não colocava
a colcha sobre a cama até que Josie não tivesse acabado seu biscoito.
Desculpei-me mais uma vez pelo incômodo e prometi que a próxima vez
que tivesse que me ausentar, Josie passaria suas férias com o senhor
Ingram.
Fiquei estupefata quando percebi que Última estava indignada. — Nada
disso! Quero que fique comigo. Faço questão, e pelo bem dela! Não quis
impor a Josie novas regras de vida, porque afinal era a primeira vez que
estávamos juntas. Mas ela é uma cachorrinha excepcionalmente inteligente,
e vai aprender rápido como viver conosco. Com você ela está vivendo de
maneira muito desregrada. Esse jeito pode ser ótimo para você. Afinal, você
é uma atriz, e as estatísticas provam que a maioria das atrizes é um pouco
maluca. E deve ser assim mesmo, para conseguir superar todas as
decepções e contrariedades e ainda continuar na mesma carreira.
— Escute aqui, Última — interrompi. — Estamos aqui para discutir os
riscos de minha profissão ou a hora de Josephine ir para a cama?
— Pois é sua profissão que está arruinando a coitadinha. Não acho certo
que uma poodle viva, agindo como se fosse uma atriz. Josie é uma
cachorrinha muito inteligente, normal e estável. Se ela ficasse comigo
durante um mês inteiro, garanto que mudaria seus hábitos de maneira
radical.
Sem tomar conhecimento do olhar estarrecido de Josie expliquei a
Última que poderia ter a companhia de Josie toda vez que Irving e eu
estivéssemos viajando. A coisa não ia me deixar preocupada. Entre ambas,
era evidente que a personalidade de Josie era a mais forte, e apostaria nela
contra Última a qualquer momento. Se ficassem juntas por um período de
tempo suficiente, Josie sairia vitoriosa da peleja. Fiquei muito admirada
quando Artie fez algumas observações que confirmavam minha opinião.
— Última está se iludindo, pensando que poderia mudar os hábitos de
Josie. Aposto qualquer coisa em Josie. Ela raciocina. Já nos deu os
respectivos rótulos e, em sua “lista de trouxas”, ela nos julga assim: Última
é a trouxa que cozinha, Frances é a trouxa que brinca com a bola e eu sou o
trouxa que coça barriga.
Como não podia deixar de ser, Josephine mandou a Última uma
maravilhosa bolsa branca, em agradecimento por ter ficado na casa dela.
Mandou a Frances um vidro de perfume e a Artie uma garrafa de seu uísque
favorito. Pelo menos, assim ninguém diria que Josie não tinha traquejo
social.
Última adorou os presentes e, como era lógico, disse que Josie nunca
deveria ter-se incomodado. Fora um prazer tê-la em casa. Aproveitou essa
ocasião para me lembrar que se tivéssemos que viajar, Josie estava
convidada a ficar com eles.
Entretanto, seis meses mais tarde quando vimos que seria mais uma vez
necessário viajar para a Califórnia, Irving observou que a situação entre
Josie e Última teria que ser examinada com bastante cuidado. Sem dúvida,
para Josie era mais divertido passar uma semana com amigos como Última
e Artie, em lugar de ficar como pensionista na casa do senhor Ingram.
Sendo, porém, uma pensionista a pagamento era tratada de maneira
perfeita e o senhor Ingram não mostrara até agora nenhuma ambição de
reformar os hábitos de Josie. Se ela preferia tomar seu desjejum na cama,
podia! Afinal, nós estávamos pagando por isso. Serviço personalizado. Se
estava com vontade de ficar acordada para ver o “Último Show”, podia. E
toda vez que voltávamos para buscar Josie, o senhor Ingram dizia: — Ela foi
um amor. Tem uma personalidade excepcional. Não deu trabalho nenhum.
— O senhor Ingram não nos obrigava a ouvir um sermão a respeito dos
péssimos hábitos e da decadente forma de viver de nossa menina, e de
como ela não deixava ninguém dormir.
Portanto expliquei à Última que seria preferível que Josephine fosse
ficar com o senhor Ingram, pois não queria dar-lhes trabalho e Josephine
continuava com seus horários noturnos.
Última ficou alterada, e Artie também. Como era possível que não
quiséssemos confiar-lhes Josephine? Não era trabalho nenhum, nem que
tivesse que passar algumas noites em claro. Josephine acabaria se
acostumando com os horários deles.
Não tivemos alternativa: foi necessário deixar Josie com os carinhosos
Hershkowitz, ou então uma longa amizade teria ficado a perigo de acabar.
Josephine mostrou compreender perfeitamente a situação. Adorava Última,
mas assim mesmo acho que estava secretamente torcendo para que a
deixássemos com o senhor Ingram; percebi claramente que não entrou no
apartamento de Última pulando com o costumeiro entusiasmo. Acredito
que encarou o assunto como uma temporada inevitável numa dessas
fazendas de leite, ou então um período de treinamento básico no exército.
Dez dias mais tarde quando fui buscar Josephine, Última anunciou com
ar triunfante que tinha acabado com os passeios de meia-noite, permitindo
a Josephine de dormir junto com ela na cama.
— Você quer dizer que a outra vez você não deixou? — perguntei. —
Agora você não me diga que ela quis dormir com você e você não permitiu?
Última arregalou os olhos. — Você nunca me avisou que deveria ser
assim. Como é que eu podia saber que teria uma convidada que achava
normal dormir na mesma cama que eu?
Pois estava resolvido o mistério. Não me admirava que a coitada da Josie
tivesse passeado durante a noite inteira. Não tinha segurança. Josie até que
gosta de dormir debaixo da cama, aliás prefere isso, mas precisa saber que
a cama está à disposição. Ela precisa ter certeza de poder pular na cama e
encostar em quem está dormindo a qualquer hora. Ninguém gosta de
dormir debaixo de uma cama durante uma noite inteira.
Última explicou que ninguém queria forçá-la a dormir no chão. Além de
dormir com ela, Josie poderia escolher uma porção de outros lugares. Por
exemplo o sofá da sala, ou então as poltronas. Afinal, durante o dia Josie
sempre dormia lá.
Mas Última permitira que se aninhasse com ela. Teria feito qualquer
coisa para não ouvi-la andando. Última, porém, perguntou-me por que,
querendo se aninhar em algum lugar, Josie tinha escolhido sua cama, e não
a de Artie ou a de Frances? Por que com ela? Perguntei qual era o motivo da
pergunta. Descobri que Última não gostava que ninguém encostasse nela,
quando dormia. Quando dormia, queria dormir. Não gostava que ninguém
se aninhasse ao lado.
Consegui não fazer nenhum comentário. Afinal, o casamento de Última e
Artie era muito bem sucedido, e quem era eu para contar a Última o que ela
estava perdendo? Levei Josie para casa e agradeci à minha amiga por ter
permitido a Josie de se aninhar.
Dessa vez Josephine mandou a Última um relógio de pulso italiano de
ouro. Alguns meses mais tarde Josephine voltou a se aninhar com Última e
mandou-lhe um par de brincos de ouro italianos, combinando com o
relógio.
Durante o verão tivemos que voltar para a Califórnia. Nessa ocasião
deixei Josie com Última, toda enfeitada de joias, sem a menor preocupação.
Pensei que ela ainda precisaria de um broche para completar o conjunto.
No ano seguinte, se tudo corresse bem, poderia começar a dar-lhe as
primeiras peças de um conjunto de pérolas.
Quando voltei, Última aceitou o broche e disse: — Você não precisaria
me dar presentes tão caros. — Colocou o broche no vestido, foi-se olhar no
espelho, e disse: — Além do mais, essa foi a última vez que aquela droga de
cachorro ficou em meu apartamento.
Pulei para agarrá-la pela garganta, mas Irving conseguiu me segurar.
Com calma realmente heroica, perguntou o que Josephine tinha aprontado.
Última continuou a admirar seu broche e perguntou tranquila: —
Quando foi que a cachorra tomou seu último banho?
Pois sim! Puxei Josie. Ninguém ia nos obrigar a ouvir esse tipo de
insulto! Josie tomava banho e recebia uma aparadinha no pelo com muita
frequência, e cheirava igual a um gerânio.
Última observou que infelizmente estávamos no verão, e que o tempo
era realmente quente. Josephine estava mais e mais afeiçoada a ela. Queria
se aninhar com ela durante a noite e como se isso não bastasse, pretendia
ficar sentada em seu colo durante o dia. Com a umidade do ar do mês de
agosto Josephine estava ficando com uma tremenda catinga.
Irving só conseguiu me acalmar lembrando-me que Josephine sempre
ficava muito perturbada quando ouvia meus gritos. Afinal Josie não podia
saber que eu estava ameaçando Última de matá-la. A coitadinha pensou que
eu estava berrando com ela. Fechei Josie entre os braços, encostei meu
rosto nela e expliquei que aquilo não passava de teatro. Em seguida lancei
um olhar feroz em direção à Última.
Última sentou-se tranquilamente no sofá, ficou polindo seu broche e
declarou: — Jackie pode berrar quanto ela quiser. Não me incomodo com
isso. Os fatos são fatos. A cachorra fede.
Josephine, que não estava compreendendo que toda aquela confusão
fora provocada por dúvidas a respeito de sua higiene pessoal, pulou no
sofá e começou a cobrir o rosto de Última com beijinhos carinhosos.
— Isso me lembra também — Última continuou com a mesma calma —
que a bichinha precisa urgente usar um pouco de Sen-Sen.
Era demais! Expliquei à Última que talvez Josie não estivesse achando
que Última estava perfumada com Chanel, mas que Josie era por demais
bem educada para deixar que um mero detalhe desses interferisse com seu
carinho por qualquer pessoa.
Como Irving também sempre dizia que Josie tinha um cheiro limpinho,
expliquei a Última que isso estava a provar que nunca conhecemos
realmente uma pessoa até que não vivemos com ela.
Última resolveu ignorar essa indireta e anunciou, sempre com a mesma
calma, que esperava que tudo isso não prejudicaria nossa amizade e que
continuava considerando também Josie sua amiga. Só que não queria um
excesso de aproximação.
A esse ponto Artie explicou que, na opinião dele, Josie tinha um cheiro
muito agradável, mas precisava também levar em consideração que estava
constantemente com febre de feno, e na realidade não distinguia cheiro
nenhum — ao passo que Última sempre fora muitíssimo sensível a cheiros.
Acrescentou que Última, na opinião dele, tinha o mais superdesenvolvido
nariz de que tinha notícia.
Última não conseguiu se controlar e retrucou que seu faro era normal.
Se ele não tinha faro nenhum, isso não era motivo para fazê-la parecer
neurótica. Ele respondeu que, pensando bem, ela era um pouco neurótica
em matéria de cheiros. Por exemplo, sempre ralhava por causa dos
charutos. Tinha a coragem de dizer que o cheiro dos charutos era horrível!
Saímos da casa deles segurando Josie e fomos para nosso apartamento
satisfeitos com o eco daquela pequena briga doméstica.
Continuo me encontrando com Última, é claro. Não sou o tipo de pessoa
que alimenta ressentimentos. Saímos juntas, jogamos baralho juntas.
Esqueci completamente nossa pequena diferença. Mas quando meus olhos
caem sobre o lindo relógio de ouro italiano em seu pulso, que brilha
enquanto ela dá as cartas, às vezes, eu admito em meu íntimo que na
realidade estou com vontade de apunhalá-la.
23 A VIDA COMEÇA AOS QUARENTA?
Lembro-me que li em alguma parte a respeito de uma velha senhora que
estava agonizando em sua cama e que, num rasgo de lucidez, gritou: —
Estou com noventa e três anos e estou morrendo! Como é possível, se meu
coração me diz que ainda estou com dezoito?
Pode parecer esquisito, mas eu a compreendo muito bem. Sempre senti
que estava com dezoito anos, até quando só tinha cinco. Se por acaso eu
chegar à venerável idade de noventa e três, vou sentir exatamente o que
aquela velha senhora sentiu. Penso que não vou ficar andando por aí
vestida distintamente de roxo, ou posar para retratos como o da mãe de
Whistler. Por sinal, nem adianta eu ficar pensando nisso. Nunca vou chegar
aos noventa. Meu palpite é que perto dos oitenta ou vou derreter até morrer
por causa dos cremes nutritivos, ou sufocar-me até morrer por causa de um
modelador de queixo. Resumindo, não tenho intenção nenhuma de
envelhecer de forma digna. Vou morrer chutando, berrando e lutando, na
batalha pela eterna mocidade.
Nem seria necessário mencionar que Josephine pensa da mesma
maneira. Em geral, os poodles deveriam se acalmar, completado o segundo
ano de vida, e parar de brincar com a bola e com os brinquedos
mastigáveis. Sua tarefa deveria se limitar a dormir e, às vezes, enfeitar o
ambiente. Apesar disso, Josephine com seis anos completos ainda se
agitava quanto o Yogi Berra quando estava brincando com uma bola, e
caminhava com a agilidade e a rapidez de um filhote. Para mim, ela
continuava sendo nenê, e isso teria continuado assim se eu não prestasse
ouvidos a qualquer pessoa desconhecida e boquirrota que passeia no
parque.
Essa boquirrota específica estava passeando com três Yorkshire terrier.
Disse: Engraçadinho, seu filhote. Que idade tem?
Respondi: — Seis.
Ela perguntou: — Seis meses?
Quando expliquei que eram seis anos, a mulher quase teve chiliques.
Então era um poodle miniatura? Então não ia mesmo crescer mais? Ela
imaginara que se tratasse de um filhote gorducho que ainda tivesse que
crescer e ficar mais esbelto, até que alcançasse o tamanho padrão. Por que
eu deixava que ela se tornasse tão gorda? (Encontro todos os dias pelo
menos três desse gênero. São os ossos do ofício quando a gente leva um
cachorro passear.)
— Ela sempre teve um problema de peso — expliquei. — Mas apesar de
todo mundo se preocupar com isso, ela está ótima, e não precisou de
nenhum veterinário nesses últimos dois anos.
— Você quer dizer que não a leva regularmente ao veterinário cada seis
meses para um exame geral?
Respondi que de jeito nenhum! E que nem tinha intenção de fazer isso,
submetendo Josie a uma angústia inútil. Durante seus primeiros meses de
vida a menina fora espetada e examinada tantas vezes, que já dava para o
resto da vida. Ainda hoje, quando passamos perto do hospital, ela começa a
tremer.
— Mas afinal, ela já está com quarenta e dois anos — insistiu a mulher.
Como assim, quarenta e dois? Até Josephine observou a mulher com
curiosidade. Ela continuou insistindo que Josephine estava com quarenta e
dois anos. Para os cachorros, cada ano vale sete dos nossos. Tendo
completado seis anos, Josie agora estava na realidade com quarenta e dois.
Era uma mulher de meia-idade.
Fui correndo para casa, junto com a mulher de meia-idade. Telefonei ao
doutor White. O pessoal do ambulatório dele respondeu que sim, as contas
estavam certas, ela estava mesmo com quarenta e dois. Você pode imaginar
em que estado isso me deixou? Olhei para minha menina de seis anos que
estava mastigando alegremente um de meus bobbies e procurei encará-la
da maneira que todo mundo dizia que ela era — uma mulher amadurecida!
Que coisa mais ridícula! Ela era simplesmente uma menina.
Irving também foi pedir informações. Todo mundo confirmou que o
cálculo da idade era feito na base de um a sete. Não adiantava mesmo. De
qualquer forma que encarássemos a coisa, o resultado era sempre o
mesmo. Josephine estava com quarenta e dois anos. Pela primeira vez
compreendi uma coisa horrível — Josephine não ficaria conosco para
sempre!
Fiquei terrivelmente deprimida. Por que os cachorros tinham uma vida
tão breve? Uma vez li um cartaz numa loja que vendia animais: “O único
amor que você pode comprar é o amor de um filhote”. É verdade! Quando
você leva um filhotinho para sua casa, o animalzinho só tem um desejo:
dedicar a você cada instante de sua vida! Só quer ganhar seu carinho, quer
lhe agradar, quer lhe divertir, e gostar de você de maneira tão constante
que não possa ser comparado a nenhum tipo de amor humano. Além de
comer e de dormir, um cachorro dedica todo seu tempo ao seu amo. Não
pretendo me tornar uma daquelas pessoas esquisitas que andam por aí
fazendo obscuras alusões ao fato de que cachorros são melhores que gente.
Eu vou ser uma daquelas pessoas esquisitas que declaram abertamente que
cachorros são melhores que gente!
De qualquer forma, lembre-se que eu disse melhores. Não disse que
eram mais importantes ou mais inteligentes. Se você estiver doente, seu
cachorro não poderá telefonar ao médico, ou alimentar você empurrando
colheres de sopa para a sua boca. Não poderá lhe dar um lar, criar seus
filhos, inventar vacinas, tornar-se um advogado, um cirurgião ou um
presidente. Um cachorro não se interessa pelos problemas da civilização ou
pelo resto do mundo. O cachorro só se interessa por você. É nesse sentido
que ele é melhor. Também, pudera. O cachorro não fica se aborrecendo por
nenhuma influência externa.
Veja o Irving, por exemplo. Irving me ama muito mais do que Josephine,
e me ama de uma maneira completa. De uma forma que é prática. Como
acontece com todas as pessoas que estão apaixonadas umas pelas outras e
gostam de seu casamento, representamos uma união que funciona como
um conjunto. Pensamos em conjunto — eu não consigo imaginar qualquer
espécie de futuro sem ele, e não consigo me lembrar de ter vivido
realmente antes de encontrá-lo. Gosto de sua companhia, de seu senso de
humor, de. . . Bem, acho que você já me entendeu. Estou convencida de que
ele é o homem mais extraordinário do mundo. Aliás, Irving já provou que
pensa em mim nos mesmos termos.
Mas quando acordo de manhã, Irving não dá pulinhos e não cobre meu
rosto com centenas de beijinhos, e não costuma tremer de emoção e de
alegria somente porque está me vendo. Irving não tenta demonstrar que
está achando que é praticamente um milagre que o destino nos permita
passar mais um dia juntos: é claro que ele não faz nada disso. Mas
Josephine, sim.
A maneira de Irving me cumprimentar de manhã é bastante variável.
Depende, em geral, do número de horas que conseguiu dormir, ou dos
compromissos para aquele dia, marcados em sua agenda. Se Irving
conseguiu dormir sete horas seguidas e nenhuma crise iminente está
ameaçando o horizonte, vai me cumprimentar mais ou menos assim:
— Você já colocou a água no fogo para fazer café, ou você quer que eu o
faça?
Mas se por acaso não dormiu bem e o dia promete ser muito enervante,
fala comigo mais ou menos assim:
— Quantas vezes você se levantou durante a noite, afinal? Ouvi você
pelo menos duas vezes indo para a cozinha! Não consegui pregar olho pelo
barulho que você estava fazendo. — Enquanto apresento o café (do tipo
solúvel e instantâneo) com mãos carinhosas, ele continua: — Como é? Você
mudou mais uma vez de marca, ou perdeu de novo aquele seu toque
mágico?
Entretanto melhora bastante após tomar um chuveiro, e quando acaba
de se arrumar, já está quase normalmente romântico. Saindo pela porta
grita: — Não se afobe. Saia você com ela, eu estou atrasado. Tchauzinho, eu
amo você.
Acho que com isso expliquei o que sinto pelos cachorros. São tão
simpáticos! E volto a perguntar: Por que eles têm uma vida tão breve?
Outros animais são mais favorecidos. Por exemplo, o elefante. Pode viver
por mais de cem anos. E depois que suas presas são removidas, para serem
transformadas em objetinhos de adorno, o que mais um elefante poderá
fazer para você? Poderá comer amendoim e sujar o zoológico. Depois, veja
a tartaruga. Pode viver durante séculos. Fora ser uma ótima matéria-prima
para sopa, o que é que uma tartaruga já fez para alguém?
Irving também se aborreceu bastante com aquela história de um ano
valer por sete. Começou a insistir que a levasse ao veterinário, pois estava
na hora de fazer um exame. Chegou a insinuar que isso precisaria ser feito
regularmente, a cada seis meses.
Não quis dar-lhe ouvidos. Por que teria que submetê-la à angústia de ver
o hospital e os veterinários, quando estava muito bem de saúde? Afinal,
poderia também se dar o caso que não fosse necessário encararmos uma
vida sem Josephine, apesar de ela alcançar os setenta daí a quatro anos.
Uma bomba atômica poderia explodir qualquer dia! Finalmente decidi que
precisávamos esquecer essa história dos setenta anos: estávamos ficando
positivamente chatos! Tínhamos que viver e nos alegrar pela companhia de
Josie, em termos de presente. Irving concordou comigo, mas de uma forma
subconsciente começou a desenvolver uma atitude totalmente diferente
com respeito a Josie. Uma hipocondria histérica!
Por exemplo, estava lendo o Times. De repente abaixava o jornal e
começava a observá-la. — Por que está arfando daquele jeito?
— Porque ficou brincando com a bola por mais de uma hora. Não está
lembrado? Era você que arremessava a bola.
— Mas por que está respirando com a língua de fora?
— Porque sempre esteve respirando desse jeito desde que nasceu.
Todos os cachorros respiram assim.
Uma outra vez Irving deu um grito e explicou que estava percebendo
uma espécie de grande caroço no peito dela. Corri para averiguar. Pois era
mesmo um caroço, mas um grande caroço de gordura!
A crise verdadeira se manifestou de repente algumas semanas mais
tarde, quando estávamos na cama. Estávamos fazendo o que faz qualquer
casal normal, bem entrosado e felizmente casado quando deita na cama
altas horas da noite — estávamos assistindo Jack Paar. Josie estava
ocupadíssima cobrindo o rosto de Irving de beijinhos. De repente, meu
marido falou: — Jackie, preciso dizer-lhe algo muito importante.
Fiquei sobressaltada. Irving estava falando bem no meio de uma das
mais importantes anedotas de Alex King!
— Não quero que você se impressione.— explicou. — O que quero dizer
não é nada de pessoal. É simplesmente uma constatação clínica.
Fiquei esperando, com o coração aos pulos.
— Você sabe perfeitamente o que eu sinto por Josie — ele começou,
incerto. — Entretanto Josie mudou de posição e começou a lamber o outro
lado de seu rosto.
Minha voz tornou-se estrídula: — O que é que há com Josie?
— Acredite, detesto dizer isso. . . mas a boca da menina não cheira igual
a um canteiro de rosas. Estou percebendo pela primeira vez o que Última
estava querendo dizer.
Chamei Josie para me dar beijinhos. Tive que admitir que Irving estava
certo. É claro, Josie nunca me incomodaria, mas percebi que uma pessoa
com um nariz exageradamente sensível como Última poderia achar que
existia uma razão para queixa.
Irving observou demoradamente o interior da boca de Josie e chegou à
conclusão de que uma boa sessão com o dentista resolveria definitivamente
o assunto. Os dentes dela, disse, estavam completamente cobertos por
tártaro. Olhei também, e só vi dentes iguais a pérolas. Mas o recém-auto-
eleito membro da classe odontológica insistiu comigo: estava vendo que
havia tártaro.
— Leve-a ao dentista amanhã e mande logo limpar seus dentes.
Expliquei que não existiam dentistas para cachorros. O hospital do
doutor White teria que se encarregar do assunto.
— Está bem, então leve-a para o hospital do doutor White amanhã e
mande limpar os dentes dela.
— Nós vamos levá-la para o hospital do doutor White amanhã, para que
limpem logo os dentes dela — retorqui.
Irving explicou que estava com um grande número de compromissos
importantes que o manteriam ocupado durante a semana toda. Não teria
um minuto de tempo. Expliquei que poderia esperar até a semana seguinte,
quando seus compromissos não fossem tão urgentes e ele tivesse um
pouco de tempo para me acompanhar na expedição.
Irving disse que seus compromissos poderiam se estender por algumas
semanas, mas que se eu quisesse ficar sentada esperando, enquanto os
dentes da menina apodreciam só porque eu era covarde, então paciência!
Não teria outra saída. Aliás, qual era o motivo de tantas tergiversações
minhas? Ninguém iria enfiar agulhas em Josie, ou fazer coisas parecidas. O
veterinário retiraria o tártaro em poucos minutos. Terminou com essas
palavras: — Afinal, eu sou o pior covarde que existe quando preciso me
sentar na poltrona do dentista. E nem eu fico com medo quando vou lá para
limpar o tártaro.
Tive que convir que isso correspondia à verdade. Afinal, eu também sou
muito covarde quando devo ir ao dentista. Apesar disso aguento uma
limpeza de dentes sem gás e sem novocaína. Irving estava certo. Josie não
ia sofrer por ter seus dentes livres de tártaro.
Na manhã seguinte Josie e eu saímos para ir até o hospital. Era um lindo
dia de primavera, mas assim mesmo Josephine começou a tremer quando
entramos na tal rua. Reconheceu-a logo, apesar de não ter passado por lá
durante os últimos dois anos. Ela é a única poodle miniatura que ao mesmo
tempo tem a memória e o estômago de um elefante.
Entramos no hospital do doutor White. Fomos atendidas por um médico
desconhecido. — Já faz dois anos que estivemos aqui pela última vez —
expliquei.
— O senhor deve ser novo por aqui.
— Peço licença para me apresentar — respondeu. — Eu sou o doutor White.
Quase desmaiei pelo susto.
O doutor White começou a estudar a ficha de Josephine. Estalou com a
língua enquanto lia as muitas páginas do relatório. — Vejo que ela esteve
aos nossos cuidados desde nenê. Sinto muito nunca tê-la atendido
pessoalmente, mas de qualquer forma todos os membros da minha equipe
são excelentes.
Respondi que partilhava dessa opinião, mas que era emocionante
sermos atendidas por ele pessoalmente. Expliquei que Josie estava
perfeitamente bem de saúde, mas que precisava de uma limpeza de dentes.
O doutor White apanhou o estetoscópio e auscultou o coração.
— O coração dela está muito bem — repeti. — Gostaria que o doutor
examinasse os dentes dela.
Não me deu ouvidos e começou a dobrar todas as juntas das pernas de
Josie. Examinou as vértebras duas vezes, num movimento de ida e volta.
Após dez minutos disso, toquei de leve no braço dele e expliquei que não
tinha nenhuma intenção de me intrometer a ensinar-lhe como exercer sua
profissão, mas que estava examinando o lado errado. Josie e eu estávamos
lá por causa dos dentes dela.
Respondeu: — Já vamos chegar lá. Estou fazendo um exame geral,
porque vi pela ficha dela que durante os últimos dois anos ela não se
submeteu a nenhum “check-up”. — Acrescentou em tom calmo: — As
glândulas anais dela estão infeccionadas. — Quando começou a apalpar a
grande barriga branca percebi que estava ficando realmente preocupado.
Não conseguia acreditar no que estava vendo. Colocou-a na balança. Estava
pesando vinte libras.
Disse: — Ela está gorda demais.
Concordei.
— Ela terá que se livrar dessa gordura. Nunca vi poodle nenhum que
tivesse um acúmulo de banha num único lugar, como ela tem. Quero que
perca seis libras o mais rápido que puder.
Prometi que Josie perderia seis libras. Mas, entretanto, poderia o doutor
dar uma espiadinha nos dentes dela, por favor? Disse que o faria, mas que
em primeiro lugar teria que tratar das glândulas anais!
Comecei a ficar frenética. Tantas complicações, e o homem nem sequer
examinara os dentes ainda! Um minuto mais tarde enfiou uma seringa em
Josie que ganiu, estupefata. Quase desmaiei, e o doutor White teve que
chamar alguém para ajudá-lo, porque não adiantava que pedisse minha
colaboração.
Em seguida examinou os ouvidos. Ainda bem. Pelo menos estava
progredindo na direção certa. — A senhora nunca tira esse excesso de
pelos? — rosnou enquanto arrancava triunfalmente tufos das orelhas de
Josie.
— Ninguém sugeriu que precisava fazê-lo — rosnei de volta. — Ela ficou
com aqueles pelos dentro dos ouvidos durante seis anos, e nunca se
queixou disso. Aliás, também nunca se queixou das glândulas anais. Estou
muito feliz com elas, do jeito que estavam!
O doutor White não me respondeu. Estava olhando atentamente para o
fundo dos olhos de Josie, iluminando-os com uma lanterna.
Os olhos de Josie são a coisa mais linda do mundo. Descontraí-me. — O
senhor terá que convir comigo — disse com óbvio orgulho, — que ela tem
os mais lindos olhos de todos os poodles do mundo. (Estava falando
também para levantar o moral de Josephine. Até aquele momento o homem
tinha achado defeitos por todos os lados.)
Continuei: — São castanhos e parecem de veludo. Aliás, dependendo da
luz, às vezes parecem azul meia-noite.
— Certo. Isso acontece porque está com um início de catarata —
anunciou o doutor White.
Comecei a tremer mais que a própria Josie. Estava também com uma
vontade louca de me defrontar com Irving. Só porque tivera uma estúpida
manhã a respeito do hálito dela, estavam reduzindo Josie a um caso grave!
Não devia ter dados ouvidos, e deveria ter enfiado na boca de Josie alguns
grãos de Sen-sen. Afinal, que importância tinha o hálito dela? Não estava
cantando duetos numa ópera. Não estava ofendendo colegas no escritório.
E a coisa não estava atrapalhando sua vida social, com exceção de Última.
Até aquele momento o doutor White dispensara bastante atenção aos
ouvidos, à barriga, aos olhos e ao traseiro dela. Mas quando examinou os
dentes de Josie, vi que o interesse dele estava realmente aguçado.
Pensei que o doutor nunca tivesse visto tanto tártaro. Mas descobri que
não era isso. — Olhe só para isso — exclamou meneando um dos molares
grandes e fortes. — É o pior caso de piorreia que já vi.
No ponto em que eu estava, não queria mais saber de nada. — Por favor,
limpe os dentes dela e só — implorei.
— Vou fazer isso, não tenha dúvidas. — Continuou a examinar a boca de
Josie com atenção concentrada. Receio que ela terá que perder alguns
dentes.
— Mas são perfeitos!
— Verdade. Mas para salvar a boca o único remédio é tirar os mais
afetados, e em seguida tratar da gengiva. Assim, os outros dentes voltarão
a ficar firmes. A boca poderá sarar com o tratamento adequado.
— Mas se o senhor extrair um dente, não há perigo dos outros ficarem
soltos por causa do espaço vazio e a mudança na mastigação? (Meu
dentista me dera uma explicação exaustiva a respeito quando me entregou
uma conta de cem dólares por uma jaqueta num molar. Eu era da opinião
que não estava absolutamente precisando daquele molar, e uma extração só
me custaria vinte dólares. Mas meu dentista se recusa em extrair sequer um
dente meu.) Comecei a contar isso ao doutor White.
— As coisas se passam de maneira diferente com os cachorros —
respondeu altivo. — Os cachorros só usam os dentes caninos. Nunca
mastigam com os molares.
— Quantos dentes o senhor acha terá que extrair?
— Não posso ter certeza até limpar todos os dentes.
— O senhor não pode me dar uma estimativa por alto?
— Talvez três ou quatro.
Arrastei Josie em direção à porta.
As palavras que se seguiram me obrigaram a parar. — Se os dentes dela
não forem tratados, ela ficará cega muito antes do que é necessário.
Quando abri os olhos, estava deitada no sofá do escritório do doutor
White. O enfermeiro me deu um pouco de água, e quando me senti melhor
apanhei Josie e expliquei que íamos embora naquele mesmo instante. (Josie
estava plenamente de acordo.)
O doutor White sentou-se e, ostentando muita paciência, tentou explicar
como estavam as coisas do ponto de vista clínico. — Ninguém até hoje
conseguiu dizer com toda certeza de que maneira se formam as cataratas,
senhora Mansfield. Trata-se de uma película que cobre a lente dos olhos. Os
olhos humanos podem ser operados, e a lente nublada pode ser removida.
As pessoas conseguem ver perfeitamente, usando óculos. Mas não
enxergam sem óculos. Os cachorros não podem usar óculos e por
consequência seus olhos não podem ser operados. De qualquer forma, é
possível controlar o progresso das cataratas. Nesse momento, as cataratas
nos olhos de sua cachorra estão começando a se formar. Precisamos
controlá-las, obstaculando seu progresso, para que a cachorra possa
enxergar pelo resto de sua vida. Podemos dar-lhe vitaminas A. Doses de
vinte e cinco mil unidades por dia. Isso sem dúvida poderá ajudar. Mas é
imprescindível sanear a dentadura dela. Tenho uma teoria pessoal, pela
qual existe uma relação irrefutável entre dentes em más condições e
cataratas de cachorros.
— Quantos dentes o senhor disse que precisava arrancar? — Eu sabia
que não era o caso de me preocupar com aquele sorriso de publicidade de
creme dental, mas precisava de algo que me desse confiança.
— Já expliquei que não posso dizer nada até que limpe os dentes dela.
Para limpá-los bem, teremos que dar-lhe uma anestesia geral. Sugiro que a
senhora deixe a cachorra conosco agora, e poderemos tratar disso em
seguida.
— Posso esperar por ela?
Sacudiu a cabeça. — Vai levar mais de uma hora para limpá-los. Depois
teremos que proceder com as extrações. Finalmente, seria melhor que ela
ficasse aqui até se recuperar da anestesia. Por isso sugiro que a senhora a
deixe aqui durante a noite.
Telefonei ao Irving para saber o que pensava disso. Irving não estava no
escritório. Precisava tomar a decisão sozinha. Olhei para Josie. Os olhos
dela estavam berrando: — Não confie nesse sujeito. Vamos dar o fora
daqui, rápido!
Vi, porém, que o veterinário estava certo. Saí de lá sem ousar olhar para
Josie. Sabia que estava olhando para mim como seu eu fosse a Ilse Koch
original. Mesmo assim, a reação dela foi melhor do que a de Irving!
— Você a deixou ali? — berrou — simplesmente assim! E ainda por cima
com um veterinário estranho que você nunca viu antes?
— Mas era o próprio doutor White!
— Existem outros médicos! Outras opiniões!
— Quer me dizer por que teria que submetê-la à angústia de mais outros
exames? E por que teria que experimentar um hospital novo? A equipe de
veterinários desse hospital cuidou dela, e muito bem, durante todas as
doenças de sua infância. Ainda por cima, dessa vez quem cuida dela é o
doutor White, o chefe da equipe!
Retrucou que não ligava a mínima, nem que fosse o doutor Schweitzer
em pessoa. Ele não permitiria a qualquer médico extrair três ou quatro
dentes em perfeitas condições, a menos que tivesse a opinião de um outro,
confirmando. Para fazê-lo parar, relatei brevemente as outras poucas
complicações.
Ficou em estado de choque. Comentou que se tivesse que aceitar esse
tipo de diagnóstico, só nos restariam duas opções: mudar de veterinário,
ou mudar de cachorro!
Durante o resto da noite continuou a comentar de maneira indireta as
mulheres histéricas que entram em pânico por qualquer coisinha e
concordam com operações inúteis. Como por exemplo, extrações de
molares grandes e fortes.
Não pude deixar de lembrar ao Irving certa ocasião em que chamou seis
especialistas de garganta no mesmo dia, quando resultou que ele só tinha
uma dorzinha de garganta da variedade mais comum.
— Mas pelo menos ouvi uma porção de opiniões — berrou.
— Mas eram todas idênticas! — berrei mais alto ainda. (Quando você
está no palco, aprende a soltar a voz para que chegue até a segunda
galeria.)
Continuamos assim durante a noite toda, dizendo uma porção de coisas
inteligentes, mas como eram todas a respeito do mesmo assunto, não acho
necessário relatá-las para a posteridade.
De qualquer forma, passamos a noite inteira ocupados nessa agradável
brincadeira.
24 AQUELE SORRISO FASCINANTE
No dia seguinte cheguei ao hospital do doutor White pontualmente no
começo do expediente. O enfermeiro disse que Josephine estava ótima e
que ia trazê-la em seguida. Mas antes de mais nada, me entregou a conta.
Vinte e cinco dólares.
Quando vou limpar meus dentes, só pago dez dólares, e meus dentes
são muito maiores do que os dentes de Josie. Apesar disso, preenchi o
cheque sem protestar. Na próxima oportunidade ia discutir o preço antes.
Especialmente se isso tivesse que se repetir a cada seis meses.
Trouxeram Josephine que estava se esforçando e puxando a guia —
parecia alegre como sempre. Estava ansiosa para chegar perto de mim, e
mais ansiosa ainda para sair correndo do hospital.
O doutor White, porém, insistiu em conversar comigo antes de sairmos.
Fiquei segurando a agitadíssima Josephine, e ouvindo o conhecido sermão
a respeito de obesidade e de suas funestas consequências. Disse que queria
ver Josephine dali a três semanas, para constatar a perda de peso.
Concordei e gratifiquei-o com meu mais radiante sorriso, porque Josie
realmente parecia estar ótima, considerando tudo, e porque percebi que ela
estava cheirando como um anúncio de Listerine. (Agora poderia dizer à
Última que era ela que não cheirava bem!)
Dei um beijinho na testa de minha queridinha tão cheirosa enquanto o
doutor White continuava com seu sermão sobre os perigos do colesterol e
do excesso de peso. Josephine se aconchegou em meus braços, já
consciente que daquele momento em diante, qualquer coisa que
acontecesse, ela estava comigo. Para mostrar a confiança que sentia, virou-
se para mim e sorriu largamente. Lancei um grito agudo! Não estava vendo
dente nenhum!
— Ah, sim — disse calmo o doutor White — os dentes afetados eram em
número maior do que o esperado, e tivera que extraí-los.
— Quantos? — perguntei. (Pela verdade, eu não queria saber. Mas sou
uma masoquista.)
— Dezesseis.
— Dezesseis! E quantos sobraram?
A esse ponto o doutor White me proporcionou uma conversa cheia de
evasivas e termos médicos. Ou talvez eu estivesse estuporada, e não podia
compreender as palavras. De qualquer forma, tive a impressão de que ela
continuava com os molares necessários à mastigação, com as presas
superiores, e mais alguns em ordem esparsa. O doutor achou que por causa
dos bigodes e da barba, ninguém poderia reparar se seus lábios estavam ou
não um pouco murchos. Como sou uma covarde mental, deixei que
terminasse de dizer todas aquelas frases reconfortantes.
Voltei para casa e precisei de uma hora para criar coragem suficiente e
ver pessoalmente o que faltava. Coloquei Josie sobre a cama e abri sua
boca. Todos aqueles lindos dentinhos da frente, embaixo, não estavam
mais lá! Havia um bocado de gengivas desguarnecidas, e alguns molares
aqui e ali. A arcada superior estava em condições piores. Os dentes da
frente tinham desaparecido todos, menos um, bem ao centro. Nunca vou
saber porque o deixou ali. Não enfeitava o sorriso dela de maneira alguma.
As presas superiores estavam lá, e vi alguns molares alvos lá no fundo. Mas
do ponto de vista das aparências, tanto valia encarar a realidade: a menina
estava desdentada!
De qualquer forma, de nada adiantava cultivar meu próprio desespero.
Precisava me preparar a enfrentar uma crise muito mais séria. Irving. Como
é que poderia explicar-lhe? Precisava encontrar uma maneira. Talvez até
um poodle novo!
Ou talvez adiantasse tomar a iniciativa e fingir um trauma. Ou dar gritos
histéricos? Nesse caso Irving estaria ocupado em me reconfortar e não se
lembraria de dizer ao menos: — Como foi que você pôde?
Ou que tal bancar a heroica? Explicar que queriam arrancar todos os
dentes dela, mas que eu não permitira. Enfrentara sozinha toda a equipe, e
finalmente conseguira que arrancassem só dezesseis! Não, isso não daria
certo.
Talvez fosse melhor dizer simplesmente que ela estava ótima, e ele
poderia não perceber que havia alguma coisa. Afinal, Irving não costumava
fiscalizar os dentes dela.
Mais refletia a respeito, e mais me convencia que seria a melhor maneira
de agir. A coisa era perfeitamente viável. Precisava só dizer que ela estava
muito bem, e me demorar bastante nos detalhes do regime a seguir para ela
perder peso, assim esqueceria da boca. Quase deu certo.
Irving chegou e Josie correu até a porta para cumprimentá-lo aos pulos.
Meu marido ficou tão satisfeito em ver que ela estava bem disposta e alegre
que não se lembrou de examiná-la pessoalmente. Ela estava cheirando
como uma flor e queria brincar como sempre, e com o passar do tempo
Irving começou a elogiar o doutor White de maneira até extravagante. Disse
que o homem realmente era formidável, para dar uma anestesia geral num
cachorro, extrair alguns dentes, e conseguir que ela se recuperasse daquela
maneira notável dentro de vinte e quatro horas. Estava se lembrando que,
por ocasião da extração de um dente do siso, teve que ficar sofrendo
durante três dias! Talvez no futuro o doutor White pudesse cuidar de
nossos dentes também!
Irving continuou falando sem perceber que, contrariamente ao meu
costume, eu ficava calada. Após levar Josie para o último passeio antes de
deitar, sentou na cama e deixou que ela o “ajudasse” a tirar as meias.
Isso acontece todas as noites. É uma espécie de ritual entre os dois. Ele
começa a puxar uma meia, ela chega correndo, agarra a ponta com os
dentes e fingindo se esforçar muito, consegue puxá-la do pé. Josie age com
muito cuidado e nunca beliscou um artelho de Irving, e quando consegue
ficar com a meia, diverte-se sacudindo-a, como se fosse um inimigo.
Naquela noite Josie chegou correndo para puxar a meia. Como era de se
esperar, a ponta da meia deslizou entre seus lábios. Ficou sentada
pensando no assunto. Irving, que estava sentado, também começou a
refletir.
Josie porém tem um altíssimo QI e encontrou a solução numa fração de
segundo. Teria que apanhar a meia com os dentes laterais. Afinal, ainda
estava com os caninos superiores e alguns molares, e poderia usá-los. De
fato, a manobra funcionou, só que Irving quase perdeu um artelho.
— O que foi que fizeram com ela? — berrou. — Afiaram seus dentes?
Em seguida chamou: — Vem cá com o paizinho, meu bem. Paizinho quer
ver seus lindos dentinhos.
Naturalmente, “meu bem” obedeceu. Irving disse: — Abra a boquinha
para o paizinho ver.
“Meu bem” abriu a boca.
Paizinho disse: — Meu bem, vou ter que puxar seus lábios, porque
paizinho quer ver aqueles lindos dentes na frente. — Paizinho puxou os
lábios.
Paizinho falou: — Devo estar fazendo algo errado. Juro que não consigo
encontrar os dentes do maxilar inferior.
Respondi: — Pois não tem nenhum.
Nessa altura dos acontecimentos, Irving achou o dente de cima. Em
seguida colocou os óculos e estudou a situação com cuidado. Num tom
mortal, perguntou quantos dentes sobravam na boca de “meu bem”.
Expliquei que não conseguira contá-los, mas que dezesseis ficaram com
o doutor White.
Em seguida, falei: — Pare de gritar! Você está assustando Josie. — Então
Irving tomou um Seconal e murmurou que poderíamos continuar a
discussão na manhã seguinte.
Graças ao Seconal, dormiu nove horas num sono ferrado. Quando
acordou, estava de ótimo humor. Levantou-se e colocou a água para ferver.
Quando viu que Josie estava alegremente mastigando um pedaço de torta
com as gengivas, sorriu encantado.
— Nossa cachorra não se abate por nada. Ela nem precisa de dentes. E
consegue comer as nozes, sem nenhuma dificuldade!
Não tive ânimo para estragar tanta felicidade, anunciando que nunca
mais poderia comer torta — e que precisaria entrar num regime ferrenho!
Afinal, tenho juízo suficiente para não insistir quando estou ganhando.
25 AS COISAS QUE ESTÃO NA FRENTE NÃO SÃO AS MAIS IMPORTANTES
Seis meses felizes e tranquilos se passaram após a histórica extração de
dentes. Todas as noites enfiava na garganta de Josephine toda a vitamina A
receitada pelo doutor White. Mas não voltamos para um outro exame,
porque eu estava receosa — Josie não perdera uma única onça de peso! Pior
ainda, estava pesando vinte e duas libras. Verdade seja dita, cada libra
vibrava de felicidade e saúde. Ficava um pouco sem fôlego após brincar
com a bola durante uma hora inteira. Mas eu sou magra, e quando fico
durante cinco minutos no trecho de areia de campo de golfe, fico sem
fôlego também. Josephine foi vivendo, apreciando tudo por ser gulosa e
despreocupada. E continuou assim até que chegou um certo dia de junho.
Irving e Josie estavam apreciando o costumeiro passeio matinal. Só que
Irving voltou com expressão preocupada. Josie parecia ótima. Começou a
falar com a clássica e reconfortante sentença que todos os maridos
parecem usar em tempos de perigo.
— Procure ficar calma, porque acaba de acontecer uma coisa terrível. —
Foi o suficiente para eu ficar histérica antes mesmo de saber o que havia.
— Foi no parque — explicou Irving. — Ela estava depositando uma
lembrança no topo de uma elevação, quando de repente soltou um ganido.
— Que espécie de ganido?
— Um ganido curto, rápido. Em seguida, pareceu estar ótima.
— Pode ser que ela viu alguma coisa que a assustou.
— Não. Não era um ganido assustado.
— Pois, então, que espécie de ganido era?
— Como é que eu vou saber? — perguntou exasperado. — Mas fique
tranquila que hoje não vou ao escritório. Vou até a biblioteca de sons da
NBC ou da CBS, para ouvir todas as fitas de ganidos de cachorro. Não vou
sair de lá até não encontrar um ganido que se pareça com o que ela deu. Em
seguida telefonarei a você para comunicar o que está escrito na etiqueta da
fita daquele ganido específico.
Observei que não me parecia a ocasião certa para sarcasmos. Então ele
insistiu que nunca fora um técnico em interpretação de ganidos de poodles.
Josie parecia estar em perfeita forma, e decidimos que nada restava a fazer
a não ser esperar pelo próximo ganido.
— Quando acontecer a próxima vez, tente explicar mais claramente —
avisei.
— Pois não! ou levar meu gravador!
Ficamos observando e esperando. Passaram-se três dias sem nenhum
ganido e comecei a pensar que Irving imaginara toda aquela situação. Toda
vez que Josie ia comigo ao parque, cumpria sua missão em silêncio
perfeito.
No quarto dia estávamos caminhando pelo Central Park South quando
Josie sentiu-se apertada. Logo em frente ao Hampshire House! Procurei
convencê-la a atravessar a rua em direção ao parque, mas foi inútil. Correu
para a beira da calçada em frente ao Hampshire House e colocou-se naquela
posição peculiar, parecida com uma sanfona, que significa que o assunto é
importante.
O porteiro fuzilou-nos com os olhos. Para um porteiro de hotel, um
incidente desse tipo pode ser uma verdadeira catástrofe — para o lado
financeiro. De fato, quando o porteiro se apressa em abrir a porta de um
táxi, não é porque gosta de representar o papel de Sir Galahad. Ele gosta é
da moeda de prata que ganha pela extraordinária tarefa. Mas quando uma
moça toda embonecada e usando sandálias abertas desce do táxi e afunda o
pezinho em você-sabe-o-que-eu-quero-dizer, ela é capaz de ficar um pouco
irritada. Pelo menos, irritada o bastante para esquecer de colocar aquela
moedinha de prata na mão do porteiro. Simpatizo com todo mundo que
tenta ganhar dinheiro honestamente, e procuro sempre cooperar com os
porteiros.
Josie, porém, tem um ponto de vista totalmente diferente. Ela sabe que
nessa vida precisa observar uma série de normas e regulamentos.
Naturalmente, ela segue ao pé da letra as normas que lhe dizem respeito.
Só que, por esses mesmos motivos, ela acha que os porteiros que se
cuidem. Todos os porteiros tem seus próprios banheiros e seus próprios
lares. E os regulamentos do Departamento de Saúde da Cidade de Nova
York estabelecem que o banheiro dela está no meio-fio. Qualquer meio-fio.
Os cartazes anunciam: “Leve seu cachorro até ao meio-fio” mas não
explicam: “Leve seu cachorro até o meio-fio, menos em frente ao
Hampshire House, ao Navarro, ao Pierre ou ao Sherry Netherlands”. Sendo
uma cidadã e uma contribuinte (afinal, todos os anos ela paga três dólares
para renovar sua licença) ela acha que tem o direito de escolher o meio-fio
de sua preferência. É verdade que em geral Josie limita suas atividades ao
Central Park, mas de vez em quando ela se entedia da grama e das árvores,
e prefere um pouco mais de movimento, por exemplo, em frente a um
grande hotel de boa categoria.
Por isso, lá estávamos nós: Josephine em posição de sanfona, o porteiro
fuzilando e mais dez caçadores de autógrafos que esperavam por Lucille
Ball.
Josephine estava em plena ação. E bem no meio de seus esforços, soltou
um ganido. O timbre era quase de soprano. Enquanto continuava com os
esforços, continuou soltando breves e agudos ganidos.
Não sabia mais o que fazer! Não poderia arrastá-la de lá antes que
terminasse. Estava preocupadíssima, mas estava também muito amolada
pela situação embaraçosa. A tal função já é bastante delicada, e não precisa
ser acompanhada com uma ária de La Traviata.
Você pode dizer que isso é uma função muito natural — mas é um fato
que ninguém consegue se manter perfeitamente impassível. Se você não me
acreditar, fique observando a expressão de qualquer pessoa que esteja com
um cachorro funcionando na beira da calçada. O dono do cachorro procura
manter um ar displicente, que é só superficial — apesar de ele estar se
dizendo que não está fazendo nada mais do que segurar a guia. Mas não
adianta! De qualquer ponto de vista, ele é parte integrante da cena. E sente
isso. Parece aliás que esse é o único ponto enigmático da etiqueta canina. O
livro explica como a gente tem que se portar em qualquer ocasião, menos
nessa.
Devo admitir que naquele dia específico as pessoas em nossa volta
tinham o direito de ficar olhando. No instante em que decidi pedir ao
porteiro para chamar uma ambulância, Josie terminou o que estava fazendo
e voltou alegremente para a calçada, feliz como um passarinho e sem
perceber que fora um ponto de atração do Central Park South.
Pois enquanto seus ganidos se seguiam, o número de espectadores
continuou aumentando. Não esqueça, desde o começo já tínhamos dez
caçadores de autógrafos esperando por Lucille Ball e um porteiro irritado.
Claro que o pessoal não ficou só olhando. Logo começou a dar palpites.
Como, por exemplo: — O que é que há — e — Moça, a senhora sabe que seu
cachorro está berrando? — e uma mulher declarou que ela tinha certeza
que estávamos sendo focalizados por alguma televisão ao vivo.
Logo que chegamos ao apartamento, preparei um drinque reforçado e
liguei para o escritório de Irving. Quando acontece uma crise com Josie, eu,
em geral, não consigo localizá-lo. Dessa vez aconteceu a mesma coisa. Sua
secretária não sabia quando voltaria.
Chamei Bea Cole. Preferi chamar Bea em vez de Joyce, porque Joyce
estava ocupada com seu terceiro cachorro, enquanto eu ainda estava com
meu primeiro, e estava começando a ficar com a impressão de que ela era
um pouco descuidada com eles. Bea, ao contrário, já conseguira recuperar
totalmente um Afghan muito doente, e a mãe dela tivera dois cocker
spaniel desde filhotes até a velhice avançada. (Não chamei o doutor White,
porque sabia que meus nervos não resistiriam a outro sermão a respeito do
peso de Josephine.)
Bea sugeriu banhos de assento quentes e aqueles supositórios
milagrosos que todo mundo usa (até se convencer que não adiantam, e ir
para a cirurgia mesmo). Coloquei Josie num banho de assento e depois
apliquei-lhe os supositórios: ela aturou tudo com cara de mártir. Como se
não soubesse que diabo eu estivesse inventando — mas se era isso que eu
queria fazer, pois bem, ela ia aguentar firme.
Finalmente, após uma sessão especialmente embaraçosa bem em frente
a Saks, comuniquei a Irving que teríamos que ir em romaria ver o doutor
White. E dizendo “teríamos”, estava querendo dizer que isso incluía Irving
também.
Na manhã seguinte, bem cedo, Josephine, Irving e eu chegamos ao
hospital do doutor White. O milagre se repetiu mais uma vez. Fomos
atendidos pelo doutor White em pessoa. Após ouvir a respeito dos ganidos,
colocou-a em cima de uma mesa e começou a cutucá-la por todos os lados.
Em seguida, anunciou: — Essa cachorra tem glândulas anais
infeccionadas.
— O senhor já disse isso faz seis meses, doutor White.
Olhou para mim sem expressão nenhuma. Apanhou aquela imensa
seringa. — Vou cuidar disso agora.
Minha voz começou a ficar estrídula. — O senhor disse isso também,
doutor White. Seis meses atrás. (Estava começando a ficar com a dúvida de
que talvez ele não estivesse reconhecendo Josephine.)
Irving cochichou em meu ouvido para me acalmar: — Jackie, ele vê um
bocado de cachorros, todos os dias. (Era óbvio que Irving também estava
começando a ficar com dúvida.)
— Mas não existe outro cachorro igual a Josie — cochichei de volta. —
Como é que ele poderia esquecê-la?
Irving costuma ser mais objetivo do que eu. — O que a gente não pode
esquecer é a expressão dela, e também a personalidade. Vamos ser justos:
nesse momento ele não está olhando para aqueles olhos divinos.
Acabei me acalmando um pouco. Irving estava certo.
Finalmente o doutor White chegou a olhar para o lindo focinho. Disse
com voz indiferente: — Essa cachorra tem um começo de catarata. (Era um
homem já velho e foi essa a única razão porque eu não bati nele. E ainda
por cima, porque Irving estava segurando-me pelos braços.)
Finalmente olhou dentro da boca e disse: — Ah, estou vendo que já
extraíram alguns dentes dela.
Foi a última gota. Até o Irving ficou furioso! Está certo, todos os dias via
mesmo uma batelada de cachorros. O fato de não ter reconhecido as
glândulas anais dela era quase compreensível. Mas o outro fato, o de ter
extraído pessoalmente dezesseis dentes daquele maravilhoso focinho e não
reconhecê-lo assim mesmo... isso era demais!
Agora não vá pensar que eu sou parcial. Todo mundo concorda em dizer
que Josie tem um rostinho lindo. Parecia mesmo que o doutor White não
tinha a capacidade de reconhecê-lo, e por isso chegamos à conclusão que
estava na hora de procurar outro veterinário que não achasse difícil
lembrar-se dela.
Comecei a procurar.
26 A DIFÍCIL ESCOLHA
Encontrar um novo veterinário não é nada fácil Só existe um método
para isso: perguntar a todo mundo. Como todos os meus amigos que
possuíam cachorros usavam meu mesmo médico, tive que andar
perguntando à gente totalmente desconhecida. Esse método, porém, tem
seus imprevistos. De fato, você não pode simplesmente ir ao encontro de
uma pessoa qualquer, que ande com um cachorro, e perguntar a frio:
“Quem é seu veterinário?” Não sei porque a gente não pode fazer isso, mas
realmente não pode.
Existe uma manobra preliminar chamada bate-papo. Em primeiro lugar
você comenta o tempo. Em seguida você comenta a encantadora
personalidade do cachorro (da outra pessoa), e pergunta a idade do mesmo.
Se o cachorro tem cinco anos ou menos, a manobra não passa de um
desperdício de tempo. Nesse caso acene com a cabeça e vá procurar outro
cachorro. Mas se por acaso você encontrar um que está com dez ou doze
anos, e ainda está circulando, você ganhou! Encontrou a mina!
Mas será que você pode perguntar: “Quem é seu veterinário?”, anotar o
endereço e só? Não, você não pode fazer isso. Após iniciar o costumeiro
bate-papo ainda resta muito trabalho básico a fazer. Primeiro, você precisa
ouvir toda a ficha médica do veterano sobrevivente — e ouvir com
expressão interessada. Você precisa até comentar o relato, inserindo
exclamações como: “Não diga!” ou “Quem diria, hein?”
Arrisquei-me a morrer congelada no Central Park enquanto ouvia os
detalhes mais íntimos da histerectomia de uma poodle tamanho padrão de
quatorze anos! Fiquei estalando com a língua até o último ponto, e quando
terminou apanhei minha caneta e esperei pelo endereço do cirurgião
milagreiro. A mulher ficou alvoroçada: — Fique longe dele! Foi ele que
provocou a peritonite da Minnie! Tivemos que levá-la correndo, e ainda de
madrugada, até o doutor Carr, em Brooklin, para uma operação de
emergência. Recebeu alimentação endovenosa durante duas semanas e o
doutor Carr teve que estirpar um rim, mas conseguiu salvá-la. Não é
mesmo, Minnie, meu nenê?
Brooklin, pensando bem, era um pouco longe demais, mas a distância
nunca poderia ser um obstáculo: precisava absolutamente dos serviços de
um veterinário desse quilate. Pedi o endereço do maravilhoso doutor Carr.
— Ah, coitado, morreu faz três meses — respondeu a mulher. — Aliás,
qual é seu veterinário? Estou procurando um também.
Apesar de muitos incidentes decepcionantes como esse, consegui reunir
uma listinha de nomes. Era uma listinha de especialistas comprovados.
Apesar disso, não estava disposta a confiar Josephine a nenhum deles. De
fato, todo relato de um sucesso total era contrabalançado por outro relato
de uma catástrofe total. Por exemplo, o doutor X, que salvara
milagrosamente o pequeno Gerônimo que estava com gripe intestinal. A
dona de Gerônimo estava disposta a levantar um monumento ao doutor X.
Parecia ótimo, não é mesmo? Pois anotei o endereço do doutor X e seu
número de telefone. Mas uma quadra mais adiante encontrei uma senhora
que me contou em altos brados que o doutor X liquidara sua pequena
Cocoa sem razões válidas. Vá ver o doutor Y, berrou a senhora. Mas um dia
antes, duas pessoas disseram que o doutor Y não passava de um
açougueiro.
Finalmente uma minha amiga, que já nasceu louca por poodles, e que
possui um belíssimo poodle cinza chamado Sam, falou-me a respeito do
doutor Rafael. Yvette Schummer (a mãe de Sam) disse que era o melhor
veterinário do mundo inteiro, e falou em tom categórico. No dia seguinte
Lee Reynolds confirmou sua opinião. O doutor Rafael cuidava de Moppet, e
Moppet era dois anos mais velha que Josie. Quanto mais eu perguntava por
aí, mais o doutor Rafael parecia ser a resposta a todos os meus problemas.
O hospital do doutor Rafael fica situado numa casa de tijolos, na seção
60 Oeste. Ele e seu associado, o doutor Bernard, cuidam do hospital inteiro.
Levei Josie correndo para fazer um exame geral. Nem precisa dizer que
insisti para que Irving nos acompanhasse nessa visita mais do que
importante.
O exame trouxe mais uma vez à baila o peso excessivo de Josie.
Concordaram com o distraído doutor White a respeito de suas glândulas
anais. Mas continuaram repetindo que ela precisava perder peso e já! Em
seguida me ofereceram um tubo com um bico. Observei o objeto com
curiosidade. Josie fez o mesmo.
O doutor Rafael explicou que uma aplicação diária durante um mês
resolveria o problema que provocava os ganidos. Em seguida ele e o doutor
Bernard se revezaram num outro sermão a respeito do peso. Exigiram que
eu voltasse com Josephine dali a um mês — com menos cinco libras!
Irving, que às vezes é muito mascarado, ficou sentado num canto
concordando plenamente com os veterinários. Mas logo que chegamos à
rua, virou-se para mim e disse: — Espero que você compreenda que o
serviço com aquele tubo bicudo só pode ser feito por você!
— Por mim? Como assim? Você quer que ela me odeie? Vamos nos
revezar! — Mas Irving recusou-se de maneira categórica.
Josephine não chegou a me odiar. Ficou pensando que eu estava ficando
um pouco esquisita. Toda vez que me aproximava dela, eu enfiava uma
vitamina em sua garganta, ou então enfiava um tubo em seu traseiro. Ainda
por cima, após todas essas humilhações, eu estava ficando muito avarenta
com os biscoitinhos. Antes, toda vez que tinha que tomar uma vitamina,
ganhava dois biscoitinhos. Josie achava que toda aquela manobra com o
seu “derrière” valesse pelo menos o dobro. Mas tudo que recebia era um
agradinho na cabeça e um floco torrado de trigo integral. Consegui seguir a
rotina da vitamina e do tubo por dez dias, até que Irving me fez uma
contraproposta.
— Escute aqui, o doutor Rafael disse que a medicação com o tubo seria
necessária somente durante um mês. Entretanto, a coitadinha deve fazer
um esforço incrível para acreditar que você tem ainda algum lado humano.
Ela está pensando em seu íntimo que, dispensando toda aquela atenção ao
seu traseiro, você se transformou numa degenerada, e como se isso não
fosse o suficiente, você está deixando-a morrer de fome. Faz sete anos que
ela está gorda demais. Não vai morrer só por esperar mais um mês.
Terminei todas essas práticas de doutora Kildare doméstica, e em seguida
vamos começar o tratamento aerodinâmico à la Elizabeth Arden.
Cheguei à conclusão de que Irving estava certo. Josephine concordou.
Voltamos a comer tortas de nozes e outras guloseimas, e Josephine
começou a acreditar que eu estava voltando devagar ao meu costumeiro
bom senso. Aliás, na opinião dela, eu ainda tinha algumas manias, mas
estava confiante que breve tudo voltaria ao normal.
Quando terminamos um mês de tratamento, o tubo e os ganidos se
tornaram uma lembrança do passado. Infelizmente, o regime teve o mesmo
destino.
27 A HERDEIRA
Acredito que é completamente supérfluo explicar que não voltamos a
ver o doutor Rafael quando o mês terminou. Josephine não gania mais, mas
sua grande barriga branca continuava redonda. Precisava de algumas
semanas para reduzir um pouco o peso dela. Afinal, a busca ao doutor
Rafael fora demorada, e não estava disposta a perder um excelente
veterinário. Lembrei-me de que ele estivera mais preocupado com o regime
de que com o problema traseiro.
Passou um mês e Josie ainda estava rechonchuda e feliz. Passou mais
um mês, e como tudo parecia em ordem (com exceção do regime) achei que
o doutor Rafael podia esperar mais um pouco.
Era verão e precisávamos ir à Califórnia por algumas semanas. O
encerramento traumatizante da temporada de Josie com Última fora uma
ótima lição: vi que era muito mais vantajoso pagar. Infelizmente, a cortesia
e o respeito são difíceis de merecer, mas frequentemente podem ser
comprados. Uma pessoa que se hospeda num hotel e distribui gorjetas
generosas sempre é recebida com entusiasmo quando volta. Quando parte,
é praticamente carregada no colo até um táxi por um mensageiro
entusiasmado, que implora: — Não se esqueça de nós! Volte breve!
Permita que eu lhe pergunte se sua tia Emma se porta assim, quando
você vai passar uma semana com ela em sua casa de campo? Você sabe
perfeitamente que não, a menos que você não seja dono de poços de
petróleo no Texas, que ela seja sua única herdeira viva, e que tenha visto o
testamento. Não estou amargurada, estou simplesmente sendo realista. Se o
grande dólar americano surte melhores resultados do que um feitiço, quem
sou eu para bancar a pioneira?
Josie também pensa da mesma forma. Ela, ainda por cima, é uma
oportunista. Quero dizer, se alguém lhe dá biscoitinhos ou coça sua
barriga, ela pouco se importa se isso é devido a carinho, ou à mágica da
carteira. O que interessa, é que aconteça.
Fico, portanto, muito feliz em trocar Última pelo senhor Ingram e suas
atenções “mercenárias” — o senhor Ingram dava-lhe as boas-vindas de
braços abertos, e só sabia elogiar seus encantos e sua personalidade. Digo
isso para você poder imaginar melhor minha consternação quando
telefonei ao senhor Ingram para anunciar a boa notícia que sua querida
seria mais uma vez sua convidada e estava a caminho. O telefone do senhor
Ingram não atendeu. Insisti horas a fio, mas após três dias ficou evidente
que dessa vez o senhor Ingram estava ausente, provavelmente
aproveitando a hospitalidade de outra pessoa.
Joyce se ofereceu prontamente para cuidar de Josie. Ela tinha uma
enorme experiência com cachorros. Tivera Toulouse, em seguida Tony e
depois foi a vez de Baby Doll. Isso mesmo, foi: Baby Doll não existia mais.
Tudo estava indo às mil maravilhas quando um belo dia Baby Doll
simplesmente foi e morreu sem pré-aviso. Um cachorro não poderia fazer
nada pior para seu dono: é frustrante. Quando um cachorro morre após um
ligeiro aviso — como por exemplo, uma convulsão ou duas — o dono pelo
menos pode ter a satisfação de correr para um veterinário. Pode bater-se o
peito, e receber os pêsames de amigos chegados e compreensivos. Quero
dizer, é muito mais correto quando um cachorro avisa que tem a intenção
de deixar esse mundo. Assim você tem a possibilidade de se preocupar, de
chorar e receber a simpatia dos amigos. Mas quando um cachorro
simplesmente vai e morre sem pré-aviso, o dono fica com uma cara desse
tamanho. Em vez de oferecer simpatia, os amigos começam a perguntar
com voz dura: “O que foi que você fez? Ontem parecia estar perfeitamente
bem.” E você tem que encontrar um jeito para justificar o súbito desenlace.
Coisas assim podem até deixar você com um legítimo complexo de culpa.
Joyce começou a imaginar que estava sem sorte nenhuma com cachorros.
E Joyce trata os cachorros com todo esmero. Baby Doll teve uma vida
breve, mas que vida! Passou a infância na mansão de Billy na rua 93 Leste.
Passou os fins de semana numa ilha em Darien. Quando Billy e Joyce
decidiram divorciar-se, Baby Doll assistiu a todas as fascinantes
negociações. Quando Joyce fugiu para a Suíça para colocar Vicki num
colégio, recuperar-se do divórcio e ficar sentada no topo de um Alpe para
pensar um pouco no futuro, quem ficou sentada ao lado dela no topo
daquele Alpe? Foi Baby Doll.
Quando Joyce se cansou dos Alpes, ela e Baby Doll deram uma voltinha
passando por Roma e Paris. E depois de tudo isso, Baby Doll foi e morreu
sem mais nem menos.
Uma criatura diferente ter-se-ia dado por vencida. Mas Joyce é feita de
um material a toda prova. Decidiu tentar mais uma vez um poodle.
Comprou um na Suíça: uma minúscula pelotinha peluda e preta, com um
“pedigree” quilométrico. Começou a me escrever cartas transbordantes de
entusiasmo. Finalmente! Josi ganhara mais um primo. Seu nome era Micky.
Passaram-se alguns meses, e Joyce continuava a relatar maravilhas. Micky,
ao contrário de Toulouse, estava crescendo simultaneamente em todas as
direções. Tinha uma linha perfeita.
Alguns meses mais tarde os relatos começaram a esfriar um pouco.
Micky continuava lindo. Mas Micky continuava crescendo. Em seguida, o
susto final: Micky era tamanho padrão. Joyce resolveu dá-lo de presente a
uma simpática família suíça e voltou para Nova York sem cachorro
nenhum. Voltou logo a se casar novamente com Billy. Billy ofereceu-lhe,
como presente de casamento, uma adorável Yorkshire anã. Pesava duas
libras e seu nome era Esther.
Esther viveu durante dez dias gloriosos e cheios de atividades. A
autópsia não conseguiu estabelecer as razões da morte súbita. E Joyce que
naquele tempo estava num intervalo entre cachorros, insistiu para que
deixasse Josie com ela, enquanto eu ia para a Califórnia.
Você terá que admitir que minha situação era mais do que delicada.
Joyce tinha acabado com cinco cachorros, enquanto eu continuava com a
minha Josie. Entregar Josie a Joyce seria equivalente a assinar a sentença de
morte de Josie. Recusar significaria o fim de uma longa e bela amizade.
Irving resolveu o problema dizendo a Joyce que tinha assinado um contrato
com Bea Cole, para que tomasse conta de Josie.
Joyce ficou admiradíssima. — Como assim, um contrato?
— Você está lembrada do tempo em que Bea trabalhava comigo,
tomando conta de moças que eram candidatas no meu show?
Joyce se lembrou.
— Pois então agora contratei Bea para tomar conta de Josie, a cinquenta
dólares por semana. (O nariz de Irving estava se contraindo, como acontece
todas as vezes quando mente de maneira descarada.) Mas Joyce não sabia
nada a respeito do nariz de Irving, e acreditou piamente no que ele dizia.
Só faltava agora explicar as coisas à Bea Cole.
Como era de se esperar, Bea estava ansiosa para tomar conta de Josie,
mas recusou o dinheiro. Explicamos nossa complicada situação com todos
os detalhes: sorriu, mas continuou recusando o dinheiro. Josie para ela era
uma convidada muito bem-vinda.
Expliquei o que tinha acontecido com Última e foi o suficiente para
convencê-la. Bea e eu somos unidas como irmãs, e ela não desejava que
esse relacionamento ficasse afetado. Disse em se tratando de Josie, eu era
realmente uma espécie de maníaca hiper-sensitiva. Bea explicou que ela
também tinha paixão por Josie, independentemente dos sentimentos a meu
respeito: se a única maneira de ficar com Josie fosse assinar um contrato e
tornar-se uma empregada, faria isso mesmo. A mais, só usaria seu melhor
serviço de porcelana e consideraria Josie uma pensionista de respeito.
Irving escreveu uma espécie de contrato e entregou-o a Bea junto com
Josie, os biscoitinhos, os brinquedos de apito e a vitamina A. Bea prometeu
escrever tudo a respeito das atividades de Josie. Não tínhamos certeza
absoluta de quanto demoraríamos na Califórnia e Irving prometeu mandar a
Bea um cheque semanal pelo correio.
Uma semana após nossa chegada na Califórnia, recebemos a primeira
carta.
10 de junho.
Querida Jackie,
Ainda não contei a Roby (o marido de Bea) e a Karen que a menina é uma
herdeira e uma hóspede a pagamento. Imaginei que isso poderia afetar o
relacionamento entre eles. Você sabe, muitas pessoas se tornam tímidas
quando se encontram na presença de milionários; ficam educadas e
amáveis demais. Assim, por enquanto, Roby e Karen continuam a tratá-la
como uma pessoa da família, e acho que isso é também preferível do ponto
de vista de Josie. É melhor não mimá-la em excesso só porque é uma
menina rica.
Tudo está indo às mil maravilhas. Alguns dias atrás aconteceu um
pequeno incidente. Josie e eu estávamos passeando pela Fifth Avenue
quando passou um daqueles carros-pipa que costumam molhar as ruas.
Antes que tivéssemos a possibilidade de pular, levamos um jato de água em
cheio. Eu só fiquei úmida, mas Josie estava mais perto do meio-fio e ficou
completamente encharcada. O que mais me deixou furiosa foi a atitude dos
transeuntes. Todos caíram na gargalhada. Josie ficou tão chateada de estar
naquelas condições que simplesmente se recusou a sair de lá. Ficou parada
e imóvel, pingando água. O que é que eu teria que fazer? Não poderia
permitir que apanhasse uma pneumonia! Nenhum táxi quis parar para nós.
Como ela estava pingando, pensaram que poderia estragar-lhes o
estofamento. Não sei porque isso acontece, mas toda vez que um motorista
de táxi vê uma pessoa com um cachorro ligeiramente úmido, eles agem
como se aqueles assentos de plástico arrebentados fossem cobertos de
tapeçaria em gobelin.
Pois lá estávamos nós, encharcadas e na Fifth Avenue. Uma de nós era
uma cachorra muito rica que me pagava cinquenta dólares por semana por
serviços de atendimento. Aí pensei, ao diabo meu vestido novo de seda
preta! Peguei-a no colo e levei-a assim pelas dez quadras que nos
separavam de casa. Quando chegamos sequei-a com uma toalha e ela ficou
muito feliz.
Divirtam-se bastante e descansem. Aqui tudo vai bem. Um abraço
Bea
PS. Como se chama aquela tinturaria de luxo na Madison Avenue que
cobra vinte dólares para limpar um vestido? Meu tintureiro recusou meu
vestido preto.
17 de junho
Querida Jackie,
Esqueça o vestido. A tinturaria de luxo da Madison Avenue também não
pôde fazer nada, mas o Roby diz que o vestido não me ficava bem, assim
tanto faz. Pare de se preocupar com o regime de Josie. É claro que estamos
dentro do regime. Para ter certeza que você não me acuse em seguida de
aumentar o peso da nossa florzinha, organizamos uma pesagem oficial no
mesmo dia em que ela chegou. Não sei qual é o seu sistema para pesá-la,
mas desenvolvi um sistema meu. Subo na balança e me peso. Em seguida
subo mais uma vez na balança junto a Josie, e calculo o peso adicional.
Quando nos pesamos, eu estava com “bobbies” nos cabelos e um vestido
leve de verão. Josephine estava nua. Meu peso era de cento e vinte libras,
enquanto Josie estava com vinte e três.
O cheque chegou. Muito obrigada. Ainda não expliquei nada a Roby e
Karen. Um abraço
Bea
22 de junho
Querida Jackie,
O segredo deixou de ser segredo! Roby abriu por engano uma carta de
Irving, pensando tratar-se de alguns palpites adicionais sobre como cuidar
de alimentar Josie. Apareceu o cheque. No primeiro instante ficou furioso:
perguntou como eu tinha ousado aceitar dinheiro de Josie? Aí mostrei o
contrato e expliquei o resto.
Só posso dizer que Roby agora olha para Josie de uma maneira
totalmente diferente. Com uma expressão como de sonho. Disse: “Por que
tenho que me matar de trabalho por ser um engenheiro? Voando para
Birmingham e de volta, arriscando minha vida em aviões? Tudo o que eu
preciso é de mais três poodles como Josie, e minha situação estará ótima.
Posso me aposentar.”
Como já previ, tudo mudou. Agora a atitude dele com Josie é como se
ela fosse uma parenta rica. Na hora do aperitivo, quando vê que eu dou a
ela um pouquinho de paté, logo berra: “Pare com isso! Você quer que ela
fique com colesterol? Precisamos manter viva a menina por muito, muito
tempo. Jackie e Irving viajam muito, não é mesmo? Ela não é somente uma
cachorra — ela é uma renda”!
Quando Karen começa a jogar a bola para Josie, Roby urra: “Você está
maluca? Você quer que ela tenha um enfarte?”
Minha mãe também já está seguindo a nova filosofia. Larga qualquer
coisa para ir coçar a barriga de Josie e ao mesmo tempo dá indiretas como
essa: “Josie, eu moro em Carmel. Carmel é no campo, aposto que você
gostaria mais de estar no campo do que num apartamento da cidade. Por
que você não explica ao paizinho e à mãezinha que você gostaria mais de
ficar com a titia Amy da próxima vez que eles forem viajar?”
Até Karen ficou afetada de uma certa forma. Outro dia Josie e eu saímos
e voltamos somente após duas horas. Quando chegamos Karen estava
assustadíssima. Perguntou: “Onde Josie ficou por esse tempo todo?” (Não
onde eu fiquei!) Expliquei que fomos até o Bloomingdale’s para comprar
algumas coisas que ela precisaria nas férias. Karen ficou pálida: “Você
levou Josie ao Bloomingdale’s? Lá tem gente demais! Ela poderia apanhar
um vírus!”
A festa acabou. Josie não é mais tratada como um membro da família.
Todo mundo olha para ela com expressão admirada — como se ela fosse
uma ação “blue chip” — dessas que pagam dividendos melhores do que
AT&T e IBM. Um abraço
Bea
2 de julho
Querida Jackie,
Compramos um condicionador de ar para o dormitório. Já tínhamos um
na sala de estar, mas quando chega a noite Josie prefere dormir conosco e o
dormitório era mesmo quente demais para ela. Percebi que pelas 2 da
madrugada ela sempre começava a arfar. Continuamos levando-a para a
sala de estar onde a temperatura era fresquinha e agradável, mas ela se
sentia muito só. Assim mandamos colocar um condicionador no
dormitório. Isso aconteceu três dias atrás e Josie está adorando.
Como não podia deixar de acontecer, agora precisamos dormir com
cobertores e Roby está com um pouco de febre porque tomou uma friagem,
mas precisamos pensar sobretudo em Josie. Afinal, ela é uma hóspede que
paga muito bem e tem o direito de ter tudo do melhor. Abraço.
Bea
11 de julho
Querida Jackie,
Enderece sua resposta ao hotel cujo nome está no cabeçalho. A
administração do prédio em que moramos decidiu mandar pintar o saguão,
e Josie não gostou do cheiro da pintura. Tivemos a impressão de que ela ia
desmaiar. Logo, Roby e eu nos mudamos com Josie para esse hotel onde
vamos ficar durante alguns dias. O hotel é realmente ótimo e pedimos uma
suíte com ar condicionado: você pode ficar descansada, Josie tem todo o
conforto que merece. Roby melhorou do resfriado e o médico disse que sua
bursite vai desaparecer se ele não se virar durante o sono, e não expor o
ombro direito ao ar condicionado. Um abraço
Bea
PS. Na próxima semana vamos ver Karen em seu acampamento de férias
e levaremos Josie conosco. Telefonei ao acampamento e disseram que
ficariam muito felizes de conhecer Josie, mas naturalmente não poderemos
pernoitar no bangalô porque eles não admitem cachorros. Não faz mal, pois
já nos reservaram lugares num motel que dista apenas sessenta milhas do
acampamento. Não fique se preocupando, aquelas pequenas viagens de
carro não são nada. Roby adora dirigir. Um abraço
Bea
20 de julho
Querida Jackie,
O acampamento é uma beleza, Josie também adorou. Uma lástima que
você esqueceu de me dizer que Josie fica enjoando quando a viagem de
carro é mais comprida. De qualquer forma, não faz mal. O carro já é velho,
tem dois anos, e precisava mesmo de um estofamento novo. Um abraço
Bea
2 de agosto
Querida Jackie,
Faz alguns dias, Josie e eu estávamos descendo pela Park Avenue e ela
quis parar no meio-fio para você-já-sabe-o-que. De repente, soltou um
ganido. Quase desmaiei. Em parte, devido ao susto, e em parte porque uma
grande multidão juntou-se em volta de nós, sufocando-nos. Levei-a
correndo até o doutor Rafael. Minha boneca, você esqueceu de me dizer
que isso já aconteceu uma outra vez. O doutor Rafael pareceu não dar
importância à coisa. De fato, pareceu muito mais preocupado com o peso
dela. Deu uma violenta bronca — como se a florzinha tivesse chegado às
minhas mãos com uma cinturinha de vespa, e eu tivesse a culpa de ela ter
engordado. Em seguida mandou que voltássemos para casa, dando-nos
ordens severíssimas a respeito do regime. Antes, deu-me de presente um
lindo tubinho com um bico comprido. Perguntei o que eu ia fazer com
aquilo. Ele me explicou! Três vezes ao dia, durante uma semana! Um abraço
Bea
PS. Esqueci de perguntar: quando é que vocês voltam para casa?
28 A VIDA PARTICULAR DE JOSEPHINE
Se qualquer pessoa fosse fazer uma análise do caráter de Josephine,
teria que dar-lhe um rateio muito alto. Tem uma disposição amável e
carinhosa. Está sempre animada e radiante. Mas sendo humana, ela tem um
pequeno senão. Ela não sabe o que é partilhar.
Tudo que é dela, é dela! Tudo que é meu, também é dela! Por exemplo,
temos um acordo implícito que dividimos tudo o que eu estiver comendo.
Ainda por cima: eu tenho duas mãos. Uma delas fica à minha disposição
para usar como eu quiser, a outra deve jogar uma bola ou coçar a barriga
de Josie.
É possível que ela tenha passado por alguma experiência traumática em
seus primeiros meses de vida, antes que viesse morar conosco. Quem sabe?
É possível que na hora da refeição a mãe dela tivesse se virado, e ela não
recebeu uma ração suficiente da bomba de leite. Ou quem sabe, o bico que
era dela simplesmente secou. Ou talvez a própria mãe não lhe deu bastante
carinho e dedicação. Os documentos de Josie proclamam que a mãe era
uma verdadeira campeã. Não fazia outra coisa a não ser desfilar em
passarelas de exposições caninas, voltando para casa carregada de copas e
fitas azuis. Qualquer psiquiatra poderá explicar que uma mãe que se
encontra constantemente na luz dos holofotes pode provocar uma psicose
em seus filhos. Talvez os irmãos e as irmãs de Josie sejam todos vítimas de
neuroses incuráveis, e Josie conseguiu evitar uma verdadeira psicose
graças à sua maravilhosa personalidade extrovertida, com a exceção desse
pequeno pecado venial — um traço de egoísmo extremo e possessivo.
O defeito é tão pequeno que não seria necessário mencioná-lo. Quero
dizer, posso continuar vivendo muito bem sem partilhar metade do
biscoitinho dela ou tentar uma roidinha em seu osso. Mas ela também
recusa qualquer partilha em sua vida social. Como já tive ocasião de dizer,
qualquer pessoa que me conhece, conhece Josephine. Mas nem todos que
conhecem Josephine, conhecem a mim também!
E olhe que Josephine conhece Greta Garbo, Laurence Harvey, Margaret
Leighton, Michael Rennie, Nat King Cole, Rudolph Bing e Richard Burton.
Ainda mais, ela nem teria percebido Greta Garbo se eu não falasse!
Estávamos descendo pela rua 57 quando descobri os famosos óculos
escuros e o grande chapéu frouxo. Falei: “Olhe, Josie. Aí vai a Greta Garbo.”
(Você está compreendendo o que eu quero dizer? Eu sempre partilho com
ela todas as minhas experiências.)
Quando Garbo chegou mais perto, Josephine parou e farejou um pouco
em sinal de saudação. A Garbo se inclinou e disse: “Olá, meu bem.” Josie
sorriu para Garbo, Garbo sorriu para Josie. Eu me preparei para sorrir
também, esperando que Josie se lembrasse e me apresentasse. Mas não
aconteceu nada. Fiquei lá, como se eu fosse um poste — ou qualquer outro
objeto inanimado na outra extremidade da guia, enquanto Garbo e Josie
trocavam pequenas amabilidades. Enfim Garbo, sem sequer dirigir um olhar
para o meu lado, continuou seu caminho e Josie, com a mesma
displicência, puxou-me para a direção oposta.
O caso com Laurence Harvey e Margaret Leighton foi pior ainda. Naquela
época Margaret Leighton era a estrela de uma peça que se chamava Mesas
Separadas.
Era casada com Laurence Harvey, e moravam num apartamento do outro
lado do corredor, bem em frente ao nosso. Todos os moradores do nosso
andar eram confiados aos serviços de uma arrumadeira irlandesa bastante
engraçada. Essa pérola da velha Erin4
e eu logo ficamos amigas. Tínhamos
muitas coisas em comum. Ambas adorávamos Josie e detestávamos a
governanta. A moça contou-me lindas histórias da Irlanda e vendeu-me uma
série de bilhetes de loteria e de “sweepstake”. De fato, a ninfa irlandesa
sabia fazer tudo menos limpar, mas por causa de sua personalidade
brilhante e sua devoção por Josie não pedi que fosse substituída. Contratei
uma arrumadeira pessoal para que o apartamento ficasse sempre limpinho
e em ordem, mas aquela flor de Killarney não se sentiu ofendida por isso.
Aliás, tudo em sua atitude indicava que ela achava que minha arrumadeira
pessoal fora contratada para lhe fazer companhia. Tomava o café da manhã
com Evie, minha arrumadeira, e em seguida transformou Evie em uma nova
cliente para seus bilhetes de loteria. Infelizmente um belo dia essa
formidável empregada irlandesa teve seu momento de verdade enquanto
conversava com a governanta e agora já não está mais conosco.
Entretanto, no período em que ainda abrilhantava nossas vidas (mas não
o apartamento) foi uma das mais íntimas amigas de Josie. Sem que eu
soubesse a respeito, Josie costumava acompanhá-la pelos apartamentos
que ela fingia limpar. É claro que esses passeios nunca aconteciam quando
eu estava em casa (possivelmente a ninfa duvidasse que eu não aprovaria),
mas como eu saía pelo menos durante três ou quatro tardes numa semana,
Josie conseguiu aumentar sensivelmente suas atividades sociais.
E foi com Margaret Leighton e Laurence Harvey que surgiu em mim a
primeira suspeita a respeito da política de boa vizinhança de Josie. Ela e eu
estávamos esperando o elevador quando a porta do outro lado do corredor
se abriu deixando passar os Harvey. Eles não me viram. Afinal eu estou
somente com um metro e sessenta e cinco. Josie tem trinta e sete
centímetros, mas eles a viram.
Os cumprimentos foram simultâneos, pronunciados com apurado
sotaque britânico: — Josephine, querida! Como é que você vai?
“Querida” abanou fervorosamente o rabinho, como fazia só para os mais
íntimos.
— Querida, por que você não veio tomar seu desjejum hoje de manhã?
Desjejum? Eu nunca chegara nem a tomar um aperitivo com o casal.
Josephine deitou-se no chão, para deixar que o senhor Harvey coçasse sua
barriga. A senhorita Leighton deu uma gargalhada. Durante toda essa cena
tão carinhosa, meu papel foi o do homem invisível.
Na manhã seguinte tive uma pequena discussão com a ninfa. Conversei
a respeito do desjejum com os Harvey. Ela jurou que isso não acontecia
todos os dias. Só algumas vezes, quando Josie e ela iam arrumar as camas,
e os Harvey ainda estavam tomando café. Era lógico que convidassem
Josephine. Josie adorava aqueles pedacinhos de “bacon” e também aqueles
pedacinhos de biscoito.
Passei-lhe um sermão de cinco minutos a respeito do pedacinho de
“bacon” e do pedacinho de biscoito. Poodles não podem comer “bacon”.
Expliquei também o problema de peso. Disse que não estava implicando
com a ampliação do horizonte social de Josie com suas visitas a outros
apartamentos, mas que não pretendia absolutamente ampliar a barriga de
Josie que já estava com proporções respeitáveis. Consegui dela uma
4 Antigo nome da Irlanda.
promessa solene que cuidaria que nem um tiquinho de alimento fosse parar
na boquinha de Josie sem meu consentimento.
A ninfa mostrou que era uma mulher de palavra. No dia seguinte achei
uma notinha assim: “Olhei na geladeira dos Harvey e vi que tem bacon
canadense. Acho que é para o desjejum de amanhã. Nossa queridinha pode
comer bacon canadense?”
Após o infeliz incidente com a governanta, o orgulho de Erin foi
substituído por uma arrumadeira muito eficiente mas pouco comunicativa,
originária da Jamaica, e a vida social de Josie parou de repente. Não sei
como foi que ela conheceu Michael Rennie. Mas o senhor Rennie tomou o
apartamento após a partida dos Harvey e um belo dia, enquanto estávamos
esperando pelo elevador, o senhor Rennie apareceu e como já tinha feito o
casal, cumprimentou Josie e me ignorou totalmente.
Quando o senhor Rennie foi embora, apareceu o Richard Burton. Ficou
por alguns dias, e dava para ver que estava atarefadíssimo. Assim mesmo
encontrou tempo suficiente para conhecer Josephine. Um dia deu uma
coçadinha na orelha dela enquanto estávamos esperando pelo elevador. A
espera foi demorada e tive a impressão de que o senhor Burton quase
percebeu minha presença. Se Josephine tivesse feito o menor gesto, acho
que poderíamos até chegar às apresentações formais. Mas ela só deu-lhe
uma cutucada com a pata, que queria dizer “continue até o elevador
chegar”. E você terá que convir que quando um homem está dobrado,
coçando a orelha de um cachorro, é difícil dizer qualquer coisa que leve a
uma conversa e a uma apresentação.
Quando nossos caminhos se separaram, ela deu aquela abanadinha de
rabo muito falsa. O senhor Burton não sabe — mas sou eu quem toca o
álbum dele, interpretando Camelot. Josephine prefere West Side Story.
Consegui afinal conhecer uma inquilina do apartamento em frente. É
uma moça muito bonita chamada Mary Mayer. É inútil mencionar que
Josephine a conheceu muito antes, mas Mary tornou-se uma de minhas
boas amigas. Josephine não ajudou em nada. Mary tem um cachorro basset
chamado Baby. Foi Baby quem fez as apresentações!
29 A TRAGÉDIA
O dia era igual a todos os outros dias. Josie e eu fomos passear no
parque. Na volta, ela foi correndo para a cozinha para receber seu prêmio
— um biscoitinho por ter passeado direitinho no parque num frio dia de
novembro, e ter feito todas as coisas que eram previstas.
Quando apanhei a caixa e ela ouviu o barulho seco dos biscoitinhos
escorregando sobre o metal, foi correndo e pulando para meu quarto. (Ela
sempre come na cama.) Pulou para a cama, babando, esperando pela
guloseima. Só que não chegou onde queria.
Já fazia algum tempo que eu percebera que Josie estava precisando de
uma corridinha mais comprida para conseguir pular. No começo, saltava
para cima e para baixo como se estivesse num trampolim. Quando
expliquei a Irving o que estava acontecendo, meu marido encolheu os
ombros e disse que se a cama estava ficando alta demais, poderíamos
pensar em mandar serrar os pés.
Dessa vez, ela não conseguiu mesmo. O pulo foi curto demais. Caiu no
chão de mau jeito, lançando um grito agudo. Corri perto dela e procurei o
lugar machucado. Josie continuava berrando e soluçando como uma criança
aterrorizada.
Quando a crise é mesmo desastrosa, torno-me completamente fria. Isso
parecia mesmo uma calamidade! Vi que era assim porque recusou o
biscoito que lhe dei para confortá-la. Tive que lutar para dominar meu
pânico, enquanto Josie continuava berrando. Sentei no chão e comecei a
coçar-lhe a barriguinha. É mesmo engraçado como a gente se lembra de
detalhes inesperados nas horas mais impróprias. Lembrei-me vagamente
que uma pessoa atropelada por um carro não deve ser removida. Precisa
deixá-la lá onde está até chegar uma ambulância. Por isso mantive uma mão
na cabeça dela e deslizando sobre o tapete tentei alcançar com a outra o
telefone para chamar o doutor Rafael. Mas não consegui.
Josephine parou de ganir de repente, sacudiu-se toda e levantou-se com
expressão interrogativa, como perguntando: “Afinal, o que foi, doutor?”
Soltei o fôlego. Quando vi que comia rapidamente o biscoitinho que estava
no chão, meu coração também voltou a seu ritmo normal. Em seguida
começou a andar. Mas só com três pernas. A perna traseira direita ficou
encolhida. Quando vi isso, senti-me mais tranquila. Pelo menos tinha
certeza de que não tinha quebrado a espinha. Eu sabia que quando um
animal arrasta a perna, a perna está quebrada. Quando ficam com a perna
encolhida, pode ser um mau jeito ou uma torsão.
Telefonei a Irving e expliquei o que tinha acontecido. Por sua vez, a
“Autoridade Máxima” concordou comigo. Aliás disse que não era necessário
chamar o veterinário. Josie ficava muito nervosa quando ia vê-lo, e o susto
de torcer a perna já era o suficiente. Irving também disse que quando era
garoto havia milhões de cachorros no Brooklin que corriam sobre três
pernas. Tinha certeza que ela estaria recuperada até a hora de ele chegar
em casa.
Irving estava certo até um certo ponto. Quando ele chegou em casa
aquela noite, Josie estava radiante, mas radiante sobre três pernas. O
apetite dela pareceu-nos normal, como também a boa disposição, e como
era óbvio que ela não estava sentindo dor nenhuma, controlei o pânico.
Quando, porém, passaram-se quatro dias e Josie me pareceu disposta a
passar o resto da vida sobre três pernas só, achei que era hora de tomar
uma atitude. Afinal, precisávamos ficar acordados pela metade da noite. Ela
costumava deitar quando se convencia que o dia estava definitivamente
encerrado, ou seja, quando Irving e eu já estávamos na cama e as luzes
estavam apagadas. Nessa altura ela se enfiava debaixo da cama e dormia
com a consciência tranquila. Um hora mais tarde sentia o ar frio da janela
aberta e pretendia mudar seu local de repouso. Fazia isso pulando para
minha cama e se aninhando em meus braços. Mas não podia fazê-lo com
três pernas só!
Sendo uma cachorrinha brilhante, já sabia como descer da cama com
muito cuidado e aterrissar nas três pernas, mas para subir ela precisava de
quatro. Assim, quando a atmosfera debaixo da cama se tornava fria demais
ela requeria nossa ajuda, apesar de detestar perturbar nosso sono. Seu
modo de proceder era muito delicado, e o sistema inventado por ela era
bastante inteligente. Não fazia nada de grosseiro. Um latido poderia
assustar-nos. Mas Josie saía debaixo da cama e ficava do meu lado durante
cinco minutos, tentando me acordar com um olhar concentrado. (Você pode
não acreditar, mas você acorda facilmente quando um pequeno poodle
sobre três pernas fica olhando para você sem parar.) Se meu sono resultava
ferrado demais para reagir ao olhar, ela ia para o lado de Irving e tentava a
mesma coisa. Se por acaso o resultado era um duplo zero, tentava uma leve
cutucada com a patinha. E se isso também não surtisse efeito, começava a
resmungar baixinho. Nesse caso eu, ou então Irving, esticávamos um braço
para colocá-la sobre a cama. Josie sempre agradecia com alguns beijinhos e
se aconchegava para dormir. Não seria nada demais, se os planos de Josie
para a noite se limitassem somente a isso.
Sabia vagamente que Josie costumava se aninhar comigo a uma certa
hora da noite. Sabia também que a uma hora qualquer ela voltava para o
chão. De manhã sempre a encontrava ao meu lado, mas não sabia como e
quando se desenrolavam todas essas movimentações. Mas chegara a hora
de eu saber. Tornei-me uma parte integrante.
Parece que após uma meia hora de se encostar, nossa pequena princesa
acha que faz calor demais. O remédio é ir até os pés da cama. Dez minutos
mais tarde, esquecida do frio debaixo da cama, ela acha que logo ali é o
único lugar onde ela pode passar a noite. Então desce, aterrissando nas três
pernas, e se retira para seu refúgio. Dez minutos depois ela sente frio de
novo e logicamente deseja voltar para nossa cama. Mas não pode pular.
Segue-se então mais uma sessão de olhares concentrados, cutucamentos e
murmúrios de protesto. Mais uma vez um de nós dois estica o braço e a
levanta para cima.
E a vida continuou assim. Noite após noite. Experimentamos ficar com a
janela fechada. Foi ótimo. Ela ficou debaixo da cama; em compensação
quase nos sufocamos.
Telefonei ao doutor Rafael. O doutor Bernard atendeu. Expliquei a
respeito do mau jeito de Josie. Perguntei se não haveria um sonífero leve
que a mantivesse quieta até que a perna voltasse a ficar boa.
O doutor Bernard perguntou quem diagnosticara uma torsão. Expliquei
tudo o que eu sabia a respeito de torsões. O doutor Bernard disse-me
algumas coisas, e entre outras, de trazer Josie imediatamente.
Ambos os médicos estavam esperando por nós. Tentei explicar que não
era nada grave e que, não fosse por todas as atividades atléticas durante a
noite, não teria sequer telefonado.
Não me prestaram ouvidos e ficaram examinando Josie.
— Ela está muitíssimo bem — insisti.
Nenhuma resposta. — Vamos esperar mais uma semana antes dos raios
X — o doutor Rafael disse ao doutor Bernard. O doutor Bernard acenou com
a cabeça. Devolveram a paciente aos meus cuidados.
O doutor Bernard disse: — A senhora sabe que se ela fosse menos gorda,
isso não teria acontecido.
O doutor Rafael disse: — Se ela não estiver andando normalmente
dentro de uma semana, por favor, traga-a de volta. Entretanto, deixe-a de
regime.
O doutor Bernard olhou para o doutor Rafael como se não estivesse
ouvindo direito: — Deixá-la de regime! — Lançou-me um olhar acusador,
como se estivesse convencido que Irving e eu nos divertíamos enchendo a
cachorra de guloseimas. Continuou: — Nem me lembro quantas vezes já
expliquei ao casal que ela teria que perder peso. Acho que é uma causa
perdida.
A esse ponto o doutor Rafael lembrou-se do que falara a respeito da
grande barriga branca. — Não estamos brincando, minha senhora — disse.
— Por quê? Aconteceu alguma coisa grave? — Comecei a ficar inquieta.
— Não podemos dizer nada até depois dos raios X. E se há algo grave,
ela terá mais probabilidades se pesar menos. E se ela precisar de raios X,
vai precisar também de uma anestesia geral. Qualquer cachorro se ressente
menos disso se não tiver peso em excesso.
— Mas por que ela vai precisar de anestesia total? Se é para os raios X,
posso ficar segurando-a.
— Vamos discutir essa situação se ela se tornar necessária. Pode
acontecer que daqui a alguns dias ela esteja caminhando bem. De qualquer
forma ela precisa começar um regime já. E faça massagens com Absorbine
Jr., para o músculo não ficar muito atrofiado por não estar sendo usado.
Começou nossa semana de espera. Não consegui ter muito tempo à
minha disposição. De fato, estava ocupadíssima com Josephine. Em
primeiro lugar precisava tomar sua ração costumeira de vitaminas. Em
seguida, havia três sessões diárias com Absorbine. Ainda por cima,
precisava encontrar tempo para tirar uma soneca de vez em quando porque
minhas noites de atividades atléticas eram solitárias. Irving mudara-se
temporariamente para o estúdio. Tendo que enfrentar tudo sozinha,
percebi que as atividades eram contínuas. Subir, descer. Subir, descer. Não
demorou e percebi que ficava acordada esperando a cutucada em meu
braço. Irving não estava se desinteressando, mas precisava ir ao escritório
de manhã, e explicou-me que pelo menos um de nós precisava dormir.
Josie, devido às frequentes aplicações de Absorbine, começou a cheirar
como um ginásio. A semana chegou ao fim, e todos os três voltamos a ver o
doutor Rafael. O doutor colocou Josie na balança. Vinte e cinco libras!
Comecei a encontrar justificativas. — O que é que eu posso fazer? Afinal
ela é inválida e preciso mimá-la. Ela não pode fazer exercícios ou brincar
com a bola.
O doutor Rafael respondeu sacudindo a cabeça com ar preocupado.
Estava só pensando na perna. Disse-me para levá-la para casa e mantê-la
esfomeada. Nada de alimentos e nem água após seis horas da tarde. Teria
que levá-la de volta na manhã seguinte às nove. Receberia uma anestesia
geral para os raios X. Irving e eu trocamos um olhar.
Irving falou: — O senhor não acha que as medidas são um pouco
drásticas para uma simples perna torcida?
— Gostaria mesmo de ter certeza que não é nada mais do que isso —
disse o doutor Rafael.
Fiquei alarmadíssima. — Afinal, o que é que ela tem?
— Não vou me pronunciar até depois dos raios X.
Aceitamos o conselho dele e ficamos sentados do lado de fora por todo
o tempo necessário aos raios X. Quando finalmente fomos chamados ao
escritório particular do doutor Rafael, ficamos sabendo que não se tratava
de um mau jeito. Os ligamentos atrás da rótula de Josie tinham-se partido.
Explicou que esses ligamentos cruzavam-se atrás da rótula para
imprimir flexibilidade ao joelho. Quando rasgavam, acabavam se
encolhendo e sumindo, e nunca mais emendariam ou poderiam ser
suturados. Restava uma única saída: uma cirurgia. Seria necessário abrir a
coxa de Josie em todo seu cumprimento, achar dois ligamentos novos,
cruzá-los atrás da rótula e fixá-los à barriga da perna. A operação, bastante
rara, só fora tentada durante os últimos cinco anos. Havia cinquenta por
cento de probabilidade de sucesso — e até agora isso só acontecera com
cachorros muito novos. Tudo estava contra Josie: a idade e o peso. Irving
perguntou o que aconteceria se Josie não fosse submetida à cirurgia.
Pois bem, nesse caso Josie continuaria caminhando com as outras três
pernas. Poderia até chegar a mancar com a perna machucada, porque os
ligamentos partidos não tinham terminais nervosos e ela não sentiria dor
nenhuma. Mas com o tempo acabaria destruindo a cartilagem perto da
rótula e o osso começaria a ser afetado. Em certos casos o último recurso
era a amputação da perna.
Por alguns instantes ninguém falou. Em seguida Irving resumiu nossos
sentimentos, atenuando a realidade como nunca fizera antes: — Doutor
Rafael, essa cachorra para nós não é apenas uma cachorra.
O doutor Rafael comentou que já estava duvidando disso.
— Queremos fazer o que for melhor para ela — continuou Irving. — Não
queremos que sofra por uma operação inútil, como seria se não tivesse
êxito. Porém, não podemos ficar sem fazer nada e arriscar que perca a
perna. Se Josie fosse do senhor, o que é que o senhor iria fazer?
— Eu a operaria — declarou o doutor Rafael. — Nem que a operação não
tenha êxito, ela ficaria mancando mas não perderia a perna. Só posso
aconselhar uma coisa: voltem para casa e reflitam no assunto após uma boa
noite de sono. Vejam um outro veterinário e peçam sua opinião, se assim
quiserem.
Irving assumiu o comando: — Temos confiança no senhor. Se o senhor
acha que é necessário operar, então opere. Amanhã mesmo.
O doutor Rafael sacudiu a cabeça. — A coisa não é tão simples assim.
Não vou me arriscar a operá-la até que não perca peso. Toda aquela gordura
é um perigo para o coração dela, por causa da anestesia, mas não é só:
quando ela fosse experimentar andar após a operação, o excesso de peso
arrebentaria os ligamentos novos antes que conseguissem ficar mais
robustos.
— Quanto peso ela terá que perder? — Eu estava encarando a questão
com toda a seriedade pela primeira vez.
— Pelo menos cinco libras antes da operação. Vou me arriscar e esperar
que ela perca mais algumas libras durante a convalescença.
Cinco libras! O doutor Rafael percebeu meu olhar aterrorizado. Levaria
pelo menos um ano para ela perder cinco libras!
— É muito importante considerarmos o fator tempo — ele continuou. —
Vou ajudar vocês. Vou dar-lhe um alimento para cachorros com um teor de
calorias muito baixo. Josie terá que comer só meia lata por dia, e um único
biscoitinho pela manhã — e nada mais! Se vocês respeitarem as regras, ela
poderá perder as cinco libras numa semana.
Saímos de lá, com Josephine trotando com três pernas e uma caixa de
alimento para cachorros.
Pela primeira vez na vida de Josephine o regime foi respeitado ao pé da
letra. Para que as coisas fossem mais fáceis para ela, todo mundo ficou
fazendo regime. A torta de nozes tornou-se uma lembrança do passado.
Irving e eu passamos a tomar nosso desjejum no drugstore. Todos os
biscoitinhos e outras guloseimas foram para o lixo. Cartazes de aviso foram
afixados por todos os cantos para uso de arrumadeiras, mensageiros e
visitas. Ninguém nunca comeu nem um “cracker” na presença de Josie. Por
que atormentar a coitadinha?
Num primeiro momento ela pensou que todo mundo tivesse ficado
biruta. Alguns dias mais tarde, porém, começou a olhar para nós com
compaixão. Era uma bichinha de inteligência excepcional e imaginou que
devíamos estar passando por um período de terrível aperto financeiro. Para
ela era óbvio que a comida dela era reduzidíssima, mas que para nós nunca
chegava comida nenhuma. De fato, começou a se perguntar se comíamos
alguma coisa. Não demorou e começou a adorar sua ração de alimento para
cachorros. Afinal, era o momento mais alegre de seu dia. Devorava tudo
como se fosse caviar. Mas pelos seus hábitos, aquela única refeição por dia
para ela tinha o efeito de um aperitivo. Ficava esfomeada o tempo todo.
Quando saíamos para passear ela ficava atenta para perceber qualquer
coisa que pudesse encontrar na rua. Um pedaço de chiclete, meia minhoca,
o palito de pirulito — de fato, a rua e o parque começaram a assumir para
ela a aparência de um enorme smorgasbord onde poderia se servir. O lugar
mais perigoso era o Central Park. De fato tentou, em primeiro lugar, furtar
as migalhas dos coitados dos pombos, e em seguida começou a olhar para
os próprios pombos com um interesse totalmente diferente. Era como se
tivesse entendido que “debaixo daquelas penas deve haver algo com
paladar de frango”.
No fim da semana pesei Josie. Só perdera duas libras. Telefonei ao
doutor Rafael que ficou firme: não operaria até que ela não chegasse a vinte
libras.
Continuamos aquela vida de campo de concentração durante mais duas
semanas, atormentados pelos olhares implorantes de Josie. Finalmente
alcançamos as vinte libras! Telefonei ao doutor Rafael e ele marcou a
operação para a segunda-feira seguinte.
Na noite de domingo ofereci uma pequena recepção para Josie. Pouca
gente, só suas amigas mais íntimas: Bea Cole, Anna Sosenko, Joyce e
Última. (Última continuava a proclamar seu grande carinho pela menina.)
Foi uma festinha em jejum absoluto. Josie teria que enfrentar uma
anestesia geral no dia seguinte e eu não ofereci nem água. Todas trouxeram
um brinquedo para ela e se esforçaram em se mostrar alegres, mas na
realidade pareceu mais um velório. Quase desmaiei quando ouvi Joyce
cochichar no ouvido de Irving: — Escute o que eu digo, Irving, não perca
tempo, se Josie não sobreviver, saia logo e compre um outro cachorro para
Jackie. — Irving assentiu, mudo, e eu comecei a berrar que não queria outro
cachorro nenhum, só queria Josie, não existia outro cachorro como Josie.
Todos concordaram e me asseguraram que tudo ia correr bem, mas
ninguém parecia acreditar no que estava dizendo.
Foi uma festinha horrível. Ninguém se divertiu, com exceção da
convidada de honra. Estava animadíssima. Pulava em todas as direções
sobre suas três perninhas para dar boas-vindas às visitas. A certa altura
desapareceu. Bea conseguiu encontrá-la no banheiro onde estava
devorando a pasta de dentes. Claro, tinha um gostinho de hortelã — e nas
condições de Josie, era uma verdadeira sobremesa.
Na manhã seguinte Irving e eu fomos levá-la ao hospital. O doutor
Rafael e o doutor Bernard tiveram uma última conversa conosco. Queriam
mantê-la em observação durante vinte e quatro horas antes de operar. Eu só
poderia telefonar no dia seguinte, às três horas da tarde. A operação já
estaria terminada. O custo da cirurgia seria de duzentos dólares, mais a
diária para dez dias de internamento no hospital.
Quase não demos ouvidos. Naquele momento o dinheiro não tinha
nenhuma importância. Nem por um instante nos lembramos que por
duzentos dólares poderíamos comprar um poodle novinho em folha, com
quatro pernas em boas condições. Só estávamos preocupados com o bem-
estar e com a saúde de Josie.
Perguntei onde ela ficaria após a operação.
— Vamos mantê-la numa jaulinha — explicou o doutor Rafael.
Uma jaula! Irving tentou me acalmar. — Jackie gostaria que ela ficasse
num quarto no “Doctor’s Hospital”, com uma linda vista para o rio — ele
explicou aos veterinários. — Eu sou muito mais realista. Eu sei que os
cachorros num hospital devem ficar em jaulas. Mas existem jaulas e jaulas.
Gostaria que os senhores dessem a Josie a jaula mais luxuosa, com todos os
confortos. — Os dois veterinários se limitaram a olhar para Irving de
sobrancelhas erguidas.
— O que eu quero dizer — explicou meu marido, — é que gostaríamos
que vocês a colocassem numa jaula bem grande, tipo “boxer”. Pelo menos a
menina terá acomodações mais espaçosas.
O doutor Rafael explicou que todas as jaulas eram do mesmo tamanho.
Aliás, esclareceu que no período pós-operatório Josie não estaria com
vontade de fazer muito exercício e ficaria pela maior parte do tempo sob
ação de sedativos.
— Pelo menos terá um enfermeiro durante as vinte e quatro horas? (A
pergunta fora minha, como era de se esperar.)
O doutor Rafael possivelmente estava acostumado a lidar com gente
maluca como nós. Respondeu como se a pergunta fosse perfeitamente
normal. — Não senhora. O doutor Bernard e eu ficamos aqui o dia todo, e
durante a noite temos os enfermeiros. Temos também um homem que é
velho demais para trabalhar seriamente, mas que adora cachorros. Nós o
mantemos aqui só para se ocupar dos cachorros doentes e dispensar-lhes
carinho. Já tivemos casos em que o homem ficou com um cachorro recém-
operado durante quarenta e oito horas.
Voltou a falar na cirurgia explicando alguns detalhes que era necessário
chegassem ao nosso conhecimento. Era óbvio que teriam que raspar toda a
perna de Josie. Poderia acontecer que o pelo voltasse a crescer numa cor
diferente.
— Por exemplo?
— Por exemplo, completamente branco.
Tentei imaginar Josie, toda preta como um carvãozinho, com uma perna
branca como neve. Ora, paciência. O importante era que conseguisse
caminhar. Poderia usar tintura para cabelos, no pior dos casos. Ia enfrentar
aquele problema quando chegasse sua hora.
O doutor Bernard lembrou ao doutor Rafael que precisaria explicar a
respeito do chiqueirinho. Ah sim, isso mesmo. Teríamos que arrumar um
chiqueirinho. Que espécie de chiqueirinho? O mesmo que é usado para
nenês. Quando Josie voltasse para casa precisaria impedi-la de pular para
ou de qualquer móvel. Caso tivéssemos que sair à noite, a maneira mais
segura de confiná-la num certo espaço seria colocá-la num chiqueirinho.
Saímos do hospital e no mesmo instante em que cheguei em casa
telefonei a Sheila Bond que tem duas crianças pequenas. — Você ainda tem
o chiqueirinho do Brad? — perguntei. — Vou precisar dele.
Um instante de silêncio. Em seguida Sheila falou: — Mas que ótimo!
Congratulações!
Estava perturbada demais para conversar. — Você ainda tem o
chiqueirinho?
— Não — disse Sheila. — Não o tenho mais desde a semana passada. Mas
vou mandar a você o esterilizador de mamadeira, o carrinho e a balança.
Estou tão feliz por você! Para quando é o grande acontecimento?
— É amanhã, mas assim mesmo não vou precisar do chiqueirinho por
mais de uns dez dias.
Sheila ficou quieta por alguns instantes, e em seguida falou: — Vamos
começar pelo começo. Por que você está precisando de um chiqueirinho?
Expliquei tudo. Minha amiga ficou desapontada mas disse que
perguntaria a todos os moradores de seu prédio para ver quem tinha um
chiqueirinho. Bea disse a mesma coisa, mas quem finalmente arranjou um
chiqueirinho foi Joyce. O chiqueirinho estava no sótão, e ela o comprara
quando um de seus cachorros teve uma complicação na espinha.
Bea Cole estava comigo quando o motorista de Joyce chegou. Entrou
trazendo o maior chiqueirinho que já vi em minha vida e o armou bem no
centro da sala de estar.
Bea ficou pálida. — Isso quer dizer que quando Josie vier para minha
casa, para passar alguns dias, vai chegar com as vitaminas, o tubo de bico e
o chiqueirinho? — perguntou. (Vi que Bea estava mentalmente removendo e
recolocando os móveis em sua sala de estar.)
Expliquei que o tubo já não era mais necessário e que Josie não iria
passar nenhum dia em casa de ninguém até que não estivesse totalmente
recuperada.
Bea ficou comigo pelo resto do dia, para me distrair um pouco. Disse
coisas assim: “Pare de se preocupar. Lembre-se de como viveu bem o Peter
Stuyvesant com uma perna só.” Quando chegou a noite e Bea estava em
plena forma, relatando fatos de “amputados duplos” que assim mesmo
tiveram vidas ativas e felizes, Irving voltou para casa e tomou conta de
mim. Levou-me para assistir três fitas em cinemas diferentes. Quando
voltamos para casa, ambos tomamos duas pílulas vermelhas. Assim mesmo
não conseguimos dormir.
Bea chegou às nove da manhã seguinte. Disse que não estava nem um
pouco preocupada. Ela sabia que Josie tinha uma saúde de ferro e que o
doutor Rafael e o doutor Bernard eram ótimos cirurgiões. Mas acordara
cedo e pensara que talvez estivéssemos precisando de companhia.
Foi assim que tomamos café e a espera começou. Irving tentou me
apresentar as coisas de uma forma mais animadora: — Imagine só que hoje
de manhã podemos até comer torta de nozes com o café sem sentir aquela
patinha nos cutucando.
Mandamos buscar torta de nozes mas ninguém comeu nem uma fatia.
Ficamos sentados esperando pelas três. Às três poderia telefonar e saber o
resultado da cirurgia.
30 O DIA EM QUE O MUNDO PAROU
Às três em ponto Bea foi até a extensão do telefone e eu chamei o doutor
Rafael. Ela pegou um bloco de papel, pronta a taquigrafar toda a conversa
para poder repetir palavra por palavra o que o doutor Rafael diria, porque
Irving infelizmente tivera que ir ao escritório. O doutor Rafael não foi
muito animador.
— Ainda não podemos dizer se a operação teve êxito ou não, senhora
Mansfield. De qualquer forma, a situação não é das melhores. Em primeiro
lugar foi muito difícil encontrar um novo ligamento. Normalmente são
fáceis de achar e existem de sobra. Mas os dois que acabamos achando e
que conseguimos esticar o suficiente para cruzá-los, apenas deram para a
serventia. Somente com o tempo poderemos saber se o efeito será
suficiente. Como tivemos que esperar por bastante tempo o músculo está
muito atrofiado. O osso também já estava um pouco prejudicado. De
qualquer forma, o estado de Josie é satisfatório e agora está descansando
confortavelmente. A senhora poderá chamar amanhã à mesma hora e então
poderemos dizer-lhe mais alguma coisa.
Chamei Irving e li o relato taquigrafado por Bea. Houve uma pequena
pausa e meu marido disse: — Não entendo uma maldita palavra. Isso não
faz sentido. Bea deve ter errado alguma coisa.
Sugeri para ele chamar o doutor Rafael e gravar toda a conversa, para
ter mais certeza. Irving disse que já tinha pensado nisso e que o faria na
mesma hora. Dez minutos mais tarde Irving telefonou e deixou que eu
ouvisse a gravação. Exatamente a mesma conversa.
A voz de Irving soou triste. — Acho que isso quer dizer que as coisas
não estão indo muito bem para a menina.
No dia seguinte a conversa foi mais ou menos a mesma. Perguntamos se
poderíamos vê-la. O doutor Rafael achou que não, ela poderia ficar muito
excitada com isso. Era preferível que telefonássemos todos os dias para
saber como ela estava progredindo. Começamos a telefonar cinco vezes por
dia. Bea só chamava uma vez por dia. Todos os dias recebemos a mesma
resposta. Josie não estava com dores, estava comendo pouco, estava
fazendo regime com aquela maravilhosa ração para cachorros.
No quarto dia o doutor Rafael falou entusiasmado: — Senhora Mansfield,
a senhora tem uma cachorra e tanto! Numa operação dessas, até um
cachorro novo não ousa experimentar andar com a perna recém-operada
durante algumas semanas. Hoje tiramos Josie da jaula e tentamos fazê-la
andar um pouco, e ela teve a coragem de tentar pisar naquela perna!
Naturalmente não conseguiu, e talvez nunca consiga, mas que espírito
formidável ela tem!
Pensei em Josie e respondi calma e profundamente convencida: “Doutor
Rafael, ela vai ficar boa e vai andar, porque ela quer ficar boa.
Ele não discutiu. — Eu também acredito nisso. É óbvio que Josie ama a
vida. Sempre digo que recebemos dos cachorros o que lhes damos. É
evidente que a senhora e seu marido deram à bichinha oito anos de
carinho. Acredito que pode se recuperar.
E assim continuamos durante mais seis dias. Toda vez que telefonava, o
doutor Rafael falava com entusiasmo no caráter de Josie, mas não nos
progressos que fazia. Era evidente que toda a equipe do hospital estava
encantada com ela, mas também era claro que não pensavam que ela
voltasse a ficar boa, não digo para ser campeã olímpica, mas nem para
perseguir um esquilo paralítico.
No décimo dia fomos buscá-la. Irving e eu tínhamos a impressão de
sermos pais de uma criancinha, que levaríamos para casa pela primeira
vez. (O chiqueirinho estava armado no centro da sala de estar, e dentro
dele estavam todos os brinquedos dela. O apartamento estava também
cheio de flores para dar uma aparência mais festiva.) O doutor Rafael levou-
nos até seu escritório particular.
— Senhora Mansfield, sua cachorra é extraordinária! Extraordinária
mesmo! — Continuou sacudindo a cabeça.
Sorrimos, cheios de humildade. O doutor Rafael e o doutor Bernard
sorriam radiantes, como se fossem depositários de um segredo.
O doutor Rafael finalmente se decidiu a revelá-lo. — Essa manhã,
quando tentamos fazê-la caminhar, ela pisou no chão com a perna operada.
Ficamos todos boquiabertos.
O doutor Rafael continuou: — Como eu já disse antes, um cachorro novo
nunca ousaria fazer isso. Mas parece que Josie já chegou à conclusão de
que quanto antes ela tentar, mais cedo ela vai sair daqui. É realmente
incrível.
E para concluir, anunciou triunfalmente: — E perdeu mais quatro libras
de peso. Está com dezesseis libras. Todo mundo se congratulou com todo
mundo.
O doutor Bernard explicou: — É por causa do alimento de baixo teor
calórico. Quero que ela continue comendo só aquela ração.
— Até quando? — perguntei.
— Pelo resto da vida. Com o tempo, quero que ela chegue a doze libras!
O doutor Rafael concordou. — Vai ser necessário encomendá-lo. Não é
possível encontrar esse alimento nas lojas, porque é feito sob receita. Já
encomendamos uma caixa para vocês, e toda vez que a caixa estiver para
acabar, vamos encomendar mais.
Concordei com tudo. Irving estava ansioso para assinar o cheque.
Estávamos impacientes para ver a doentinha milagrosa.
— É de se esperar — avisou o doutor Bernard — que no mesmo instante
que ela sair daqui, ela suspenda a perninha. Mas é tarefa de vocês
conseguir que ela ande com as quatro patas. Não sei como poderão fazer
isso, mas obviamente vocês conseguem se comunicar com ela melhor do
que qualquer pessoa. Quero que vocês a levem para breves passeios e
numa guia bem curta. Terá que caminhar devagar. Cuidado com degraus e
meios-fios: não pode subi-los e nem descê-los sozinha. Precisa carregá-la.
Se ela escorregar, poderia rasgar o ligamento novo! Não poderá
absolutamente pular durante três meses, pelo menos. Mas tentem fazê-la
pisar com aquela pata.
— Se vocês não conseguirem durante as próximas três semanas —
acrescentou o doutor Bernard — tragam para cá e vamos por um peso na
pata.
— Um peso? — Irving e eu perguntamos juntos.
— Por causa do músculo que é muito atrofiado. Se ela não usar a perna,
o músculo forçosamente ficará mais atrofiado ainda. O peso vai forçá-la a
colocar a pata no chão. Tem mais uma coisa: apesar da gordura e da idade
dessa cachorra, estamos quase completamente convencidos de que a
operação teve um êxito perfeito.
A esse ponto um enfermeiro trouxe a doentinha. Quando nos viu, lançou
um ganido e depois cobriu nossos rostos de beijos. Para uma pessoa
qualquer ela devia parecer meio esquisita, mas para nós era de uma
formosura perfeita.
Sua pata traseira direita e seu quadril estavam raspados. Na pele branca
aparecia uma incisão de dez polegadas, profunda, larga, vermelha e feia.
Sem os pelos sua pata, sua coxa e seu quadril pareciam ter uma polegada
de largura. Do outro lado, coberta de pelo armado, a largura parecia seis
vezes maior. Mas nada poderia prejudicar a perfeição daquele focinho. Saí
carregando-a e Irving me seguiu segurando a caixa de alimento.
Todos os mensageiros e o resto dos empregados do hotel
cumprimentaram Josephine com carinho e olhos úmidos. Fiquei com ela no
colo durante o dia todo e todos os amigos chegaram para vê-la. Também
levei-a para a rua, para dar alguns passos, cinco vezes durante aquele dia e
toda vez pedi: — Pise com aquela patinha, meu bem.
Fiquei emocionada quando ela obedeceu e deu três ou quatro passos
com as quatro pernas. Compreendi que talvez ia demorar, mas que ela
ficaria perfeitamente boa.
Naquela noite coloquei-a no chiqueirinho com um cobertor e expliquei
tudo a respeito da pata. Ela deitou confortavelmente. Irving apagou as
luzes e fomos deitar. Cinco minutos mais tarde percebi uma cutucada
familiar em minha mão.
Falei com calma: — Irving, você não saiu da cama, e não veio para esse
lado se arrastando no chão para cutucar minha mão, não é mesmo?
Irving respondeu que sabia que eu tinha passado por uma terrível
tensão nervosa, mas que agora tudo estava bem e poderia relaxar.
— Mas alguma coisa cutucou minha mão de novo, Irving. E se isso for
simplesmente imaginação, então estou precisando de uma camisa de
força.
— Alguma coisa cutucou você de que maneira?
— Exatamente da maneira que Josephine costuma me cutucar.
— Está bem, está bem — respondeu-me. — Você quer me dizer que ela
pulou por cima do chiqueirinho e agora está aí ao seu lado?
De qualquer forma, para tirar a dúvida, ligou a luz. Josephine estava
mancando pelo dormitório e abanando o rabinho de felicidade. Por um
instante só conseguimos olhar, estupefatos. Em seguida Irving apanhou
Josephine e a colocou de novo no chiqueirinho. Sentamos na sala e ficamos
para observar. Queríamos ver como conseguia pular do chiqueirinho. Josie,
porém, escolheu o sistema mais fácil. Simplesmente saiu de entre duas
barras! As barras estavam a uma distância de oito polegadas uma da outra.
Começamos a passar Josie em revista. Ela estava realmente com uma
pelagem maravilhosa, mas debaixo dos pelos sobrava muito pouco
cachorro. O doutor Bernard e seu alimento dietético foram realmente
milagrosos. É claro que aquela barrigona branca nunca ficaria bem num
biquíni, mas estava definitivamente reduzida. A menina já não tinha mais
nenhum excesso de peso. E também estava livre do chiqueirinho.
Irving voltou a dormir no estúdio e eu voltei a me transformar todas as
noites na empregada pessoal de Josie. Agora ela me cutucava não somente
quando queria subir na cama, mas também me acordava para me informar
que estava querendo descer.
Mas eu estava tão feliz de tê-la mais uma vez comigo que não me
importei de perder o sono, meu ar saudável e, temporariamente, também
meu marido, que continuou a dormir no estúdio. Aliás, Irving sempre me
escrevia um bilhete todas as manhãs, e me telefonava duas vezes por dia —
assim, nunca realmente perdemos o contato entre nós.
31 O CAMPO DE CONCENTRAÇÃO
Um dia, mais ou menos uma semana após a volta de Josephine do
hospital, voltei para casa e a encontrei deitada no sofá. Estava com ar tão
satisfeito e parecia tão confortável que levei cinco minutos antes de me
lembrar que Josie ficara no apartamento sozinha. Então tinha pulado para
o sofá sem a ajuda de ninguém!
Enquanto procurava me convencer do acontecido, alguém tocou a
campainha: Josie pulou agilmente do sofá e foi correndo até a porta,
latindo a plenos pulmões. Telefonei ao doutor Rafael. Ele não conseguia
acreditar em minhas palavras e pediu para eu levar Josie até o hospital.
Ficou a examiná-la sacudindo a cabeça pela surpresa. Nunca tinha visto
cachorro algum se recuperar tão rapidamente. Disse, porém, que eu
precisava controlá-la. De maneira alguma ela poderia pular para cima ou
para baixo durante os próximos dois meses.
Irving voltou a dormir em nossa cama e Josephine e eu concluímos um
acordo. Estava bem, ela poderia pular da cama, porque vi que aterrissava
somente nas três patas boas. Mas de maneira nenhuma ela poderia pular
para a cama. Eu estava lá para levantá-la. Josie compreendeu perfeitamente
e durante a noite pedia a Irving ou a mim que a levantássemos todas as
vezes que ela queria mudar de lugar.
O momento pior foi quando ela trouxe a bola. Queria brincar. Tivemos
que obrigá-la a rolar a bola no chão. Nada de pulos à la Yogi Berra.
Passou um mês e o pelo voltou vagarosamente a crescer. Felizmente,
voltou a crescer preto e a cicatriz começou a desaparecer.
Em janeiro, Josie festejou seu oitavo aniversário e o pelo estava quase
completamente crescido. A perna ainda parecia magrinha, mas já conseguia
caminhar com ela quase tão bem como antigamente. E todas as vezes que
sabia que não estávamos prestando atenção, ela pulava na cama ou para
uma cadeira ou para o sofá, em suma, para qualquer lugar que quisesse.
Josie, porém, percebeu que sua vida tinha mudado de maneira radical.
Nada de biscoitos com suspiro. Nada de sonhos e outros doces pela manhã.
Nada de cerveja à noite. Mas nunca se queixou. Como já tive ocasião de
explicar, Josie é o tipo de cachorra que racionaliza tudo. Decidiu que talvez
fosse por causa da Bolsa — ouvira alguma coisa a respeito da baixa. Ou
talvez algum show do Irving tivesse sido cancelado. Apertou o cinto e não
protestou. Do ponto de vista dela, pelo menos ela ganhava meia lata de
ração uma vez por noite, e um miserável biscoitinho pela manhã. Mas nós
— Irving e eu — nunca comíamos nada. Josie tinha certeza absoluta disso.
Toda vez que íamos até a cozinha ela corria atrás, cheia de esperanças,
para ver se por acaso não poderia ganhar pelo menos um biscoitinho, ou se
nós o escondíamos. Mas era dona de um ótimo caráter. Continuou
dispensando-nos seu carinho nos tempos magros com a mesma devoção
que já havia mostrado durante os tempos áureos cheios de miúdos de
frango e ovos cozidos.
Era claro que imaginava que qualquer dia o aperto terminasse e poderia
voltar aos tempos saudosos dos pratos gordos. Todas as vezes que passava
frente a uma mercearia, ela tentava convencer Irving a entrar. Ela sabia que
as linguiças de fígado não eram muito caras. Mas quando Irving mostrava
que era impossível, ela engolia em seco e aceitava a situação de boa
vontade.
Não demorou e começou a pensar que o passado fora um sonho. Todos
aqueles dias gloriosos quando podia lamber as panelas! Por meses a fio
Josie nem sequer vira uma panela. E aquelas noites divinas quando o
paizinho trazia um frango assado! Talvez, fora simplesmente imaginação.
Talvez, a vida inteira ela nunca comera outra coisa que não fosse uma meia
lata de ração por dia, e aquele desmilinguido biscoitinho pela manhã.
Mas como era uma cachorra com uma filosofia saudável, simplesmente
encolhia os ombros e dizia: “Pois é, isso é o show-business”!
32 A MANOBRA DIPLOMÁTICA DE IRVING
Quando a primavera chegou, o doutor Rafael deu sinal verde: Josie teve
permissão de brincar com a bola, pular sobre os móveis, descer pulando —
estava completamente restabelecida. Agradeci e não contei que ela estava
pulando e brincando já fazia cinco semanas. Os veterinários também
ficaram muito satisfeitos com o peso de Josie. Estava com quinze libras.
Quando o enfermeiro tomou nota de meu pedido de mais uma caixa de
alimento dietético, o doutor Bernard entregou-me um bonito frasco
lustroso.
— Josephine está se alimentando só com a ração e quero descobrir se
podemos continuar com a mesma, ou se precisamos mudar para outra. Peço
à senhora a gentileza de me trazer na próxima semana uma amostra
tomada cedo de manhã. Quero saber a quantas andam os rins dela.
Fiquei muito satisfeita com todo esse interesse e me enfiei num táxi
com Josie e o frasco. Quando Irving chegou em casa mostrei-lhe o frasco e
expliquei o que o doutor Bernard queria.
Irving também ficou satisfeito com tanta eficiência mas quis saber como
eu pensava obter a amostra em questão, em se tratando de uma menina
poodle. Com um menino poodle a gente tem uma possibilidade, apesar de
que esportiva. Por exemplo, você poderia amarrar o frasco numa árvore e
ver se conseguia recolher alguma coisa. Mas, como todo mundo sabe, as
meninas se agacham. Telefonei ao doutor Bernard e expliquei os motivos
das minhas dúvidas.
O doutor Bernard explicou que não havia problema. — Quando a
senhora levar Josie ao Central Park, terá que levar também um prato fundo.
Quando ela se agachar, basta enfiar o prato fundo debaixo dela. (Como você
vê, tudo é simples: basta conhecer os macetes.)
Mas Irving mais uma vez surgiu com uma dúvida. Josephine tem um
lugarzinho favorito no parque. É na grama, bem em frente aos bancos em
que há, normalmente, de cinquenta a sessenta pessoas lendo o New York
Times. Poderíamos não levar em conta que aquelas cinquenta ou sessenta
pessoas abaixariam o jornal, para observar minha manobra, enfiando o
prato fundo debaixo de Josie. Talvez eu tivesse classe suficiente para
simplesmente olhar para aquela multidão com uma expressão tipo:
“algumas pessoas colecionam selos ou borboletas, mas eu coleciono isso”.
Mas o que pensaria Josephine? Pensaria que eu era uma maluca, se de
repente eu me intrometesse nos assuntos particulares dela, enfiando um
prato fundo e frio debaixo de seu traseiro.
Mas vamos supor também que, tendo um ótimo caráter, ela não se
importasse com aquela intromissão e que, após algumas tentativas
frustradas, ela me fizesse o favor de entregar a amostra, talvez pensando
que isso para mim era uma nova espécie de diversão. E depois?
Eu ficaria bem no centro do Central Park, segurando a guia de Josephine
com uma mão e o prato fundo cheio e fumegante com a outra, sempre
observada por cinquenta ou sessenta pessoas curiosas que deixariam de ler
o New York Times para ver o que eu iria fazer. Qual seria o passo
seguinte?
Nosso hotel fica logo em frente, do outro lado da rua. É um hotel de
muita categoria. Não faz muito, colocaram um lustre novo no saguão e
aumentaram os aluguéis. O que é que eu faria em seguida? Atravessaria a
rua, entrando no saguão com lustre novo, com o prato fumegante de você-
já-sabe-o-que-na mão como se fosse alguma iguaria do “Casserole Kitchen”?
E se o elevador estivesse repleto de pessoas?
Telefonei mais uma vez ao doutor Bernard. Ele me explicou que seria
suficiente levar comigo o frasco e um funil, quando fosse ao parque com
Josephine e o prato fundo. Após encher o prato, bastava apanhar o funil e
transferir o conteúdo do prato fundo para o frasco. (Era lógico que ele
sempre tivesse uma resposta pronta. Afinal, era formado numa faculdade!)
Expliquei a Irving que a solução do problema era realmente muito
simples, mas que ele teria que me acompanhar. Do jeito que toda aquela
manobra estava se projetando, não poderia ser executada por uma pessoa
só. Irving teria que segurar a guia de Josephine enquanto eu tentava enfiar
o prato fundo debaixo dela.
Irving também cursou uma faculdade, e tinha suas próprias ideias a
respeito. Apresentou seu caso contra a Operação Prato Fundo.
1. Não se importava com a possibilidade de um guarda aparecer e nos
prender, achando que éramos um casal de degenerados. Para o bem de
Josephine, correria esse risco.
2. Frisou que, apesar da grande perda de peso, o barrigão branco
continuava pêndulo e quando ela se agachava, chegava até o chão.
Impossível enfiar um prato fundo debaixo dela. Um pires seria
diferente. Mas é sabido que uma boa amostra não cabe dentro de um
pires.
3. Após conseguir enfiar o prato fundo debaixo dela, o que faria eu?
Chegaria até um dos bancos com o prato, o funil e o frasco e, pedindo
licença às pessoas já sentadas, começaria aquela operação de
transladação do prato ao frasco?
Irving telefonou pessoalmente ao veterinário. Disse que tinha certeza
que Josephine tinha um par de esplêndidos rins e que acreditava que a tal
amostra seria supérflua. O doutor Bernard pareceu ficar ofendido. Disse
que eles gostavam de ter uma ficha completa de todos os casos pós-
operatórios, mas que se Irving não se importasse. . .
Irving jurou que se importava muito. (Afinal o doutor Bernard e o doutor
Rafael tinham salvo a vida da menina. Eram os melhores veterinários da
cidade. Não poderíamos perdê-los!)
Pois estavam querendo uma amostra, e uma amostra teriam! Agora a
solução do problema ficara nas mãos de Irving, que me explicou que
éramos obrigados a agir assim para que os veterinários continuassem
satisfeitos. Bem cedo na manhã seguinte Irving levou o frasco para o
hospital. Foi assim que descobrimos que Irving tem um par de rins em
perfeitas condições!
33 PS.
A operação foi há um ano e meio atrás. Josephine está com nove anos e
meio, mas continua a saltar, pular e agir como se ainda fosse filhote.
Continua comendo ração dietética, mas como todas as mulheres, trapaceia
um pouco. (Por exemplo, quando janta em casa de Última ou passa alguns
dias em casa de Bea Cole.) O peso varia entre dezesseis e dezoito libras.
Sua amiga Moppet agora já é uma senhora de idade, muito amável, que
só vai raramente até o parque. Ela vive bem, mas já é um pouco senil e
gosta de seu conforto. Faz muito tempo que esqueceu aquele louco fim de
semana com Jackie Gleason e aquele “collie” romântico.
Billy e Joyce que continuam se adorando (não importa se casados ou
divorciados), divorciaram-se mais uma vez. Billy conseguiu ficar com o
sétimo cachorro, um amor de maltês chamado Zoey. Em compensação deu
a Joyce um novo poodle cinza. Ela e o poodle foram para a Suíça. O poodle
cinza é um amor e parece estar com boa saúde — até agora, pelo menos.
Bobo Eichenbaum foi morar em New Jersey, e os cachorros jerseítas
acham que ele é um amável mas excêntrico solteirão, que costuma contar
mentiras enormes a respeito de sua atuação na TV, e um romance
demorado que teve com uma menina poodle do ambiente.
Baby Mayer, a “basset” do apartamento do outro lado do corredor, é no
momento a companhia preferida de Josephine. Baby a adora e a respeita
muito, porque Josie afinal é mais velha.
Mas Josie só se aproveita do fato de ser mais velha quando precisa. Seu
coração continua o de uma menina. Sabe que ainda tem muito tempo de
vida feliz pela frente. Aliás, também de vida aventurosa. Isso acontece
porque agora temos uma nova ordem do dia: Onde nós vamos Josephine
vai junto.
Essa nova ordem do dia foi baixada alguns meses atrás. Precisávamos ir
a Califórnia por uma temporada breve. Bea Cole já estava esperando pela
sua convidada especial, preparando-se a sorrir. Era um dia lindo e por isso
Irving e eu decidimos ir até o apartamento de Bea a pé. Josie trotava ao
lado, belíssima com seu novo corte. O pelo das pernas estava cuidado e
armado e havia laços em suas orelhas.
Irving disse cheio de orgulho: — Nem dá para perceber qual das pernas
sofreu a intervenção.
— Pois é. Talvez seria útil amarrar uma fita no lugar ou coisa parecida —
sugeri.
— Por quê?
— Para Bea e Karen se lembrarem que precisam ter cuidado. Aquela
perna ainda requer um trato especial.
— Bea é ótima para essas coisas — respondeu Irving após um intervalo.
— Não estou preocupada por causa de Bea. Estou preocupada com
aquele sofá novo e aquelas cadeiras que ela mandou estofar.
— O que é que os móveis de Bea tem a ver com a perna de Josie? —
Irving quis saber.
— As cadeiras novas foram estofadas em cetim. O cetim é muito
escorregadio. Josie poderia derrapar. E o sofá novo é muito alto. Pode ser
difícil para Josie pular tão alto.
— Isso é ridículo — retrucou Irving.
Andamos em silêncio por toda uma quadra. Finalmente ele perguntou:
— Até que ponto o cetim é escorregadio?
— Como é que eu vou saber? Não costumo pular em cadeiras.
Caminhamos por mais uma quadra em silêncio. Aí Irving perguntou: —
Aquele sofá é muito alto mesmo?
— Bastante alto.
Sacudiu a cabeça. — Por que Bea foi fazer uma asneira dessas? Ela sabe
que o cetim é escorregadio.
— Paciência — retorqui. Tenho certeza que tudo vai se passar muito
bem.
Irving concordou com a cabeça. Caminhamos por mais meia quadra.
Irving parou. — Você sabe perfeitamente que por todo o tempo que
estaremos fora eu vou ficar preocupado com aquelas cadeiras de cetim e
aquele sofá alto demais.
Expliquei que infelizmente o decorador de Bea não idealizara a sala de
estar em função da perna de Josie.
— Pois decorador nenhum vai aleijar meu cachorro! — Irving fez sinal,
um táxi parou e dez minutos mais tarde Josie, Irving e eu estávamos de
volta ao nosso apartamento. Meu marido agarrou o telefone e começou a
berrar com as companhias aéreas. — O que é que você pensa? Ela não vai
viajar em nenhuma cesta! Ela vai viajar conosco!
Após pedidos e ameaças, e pela cortesia de um piloto que gostava de
cachorros, Josie chegou na Califórnia. Adorou a viagem. Ficou dormindo em
meu colo, com um olho sempre aberto e vigilante observando todos os
movimentos da aeromoça. Estava decidida a não perder nenhum “hors
d’oeuvre”. . . nenhum biscoito. . . nenhuma refeição. . . nenhuma aspirina.
Para ela, a viagem se resolveu num “smorgasbord” voador.
Daqui a alguns meses Irving pretende filmar alguns “shows” para a
televisão na Europa. Quando soube que os cachorros não podem entrar na
Inglaterra a não ser após seis meses de quarentena, encolheu
filosoficamente os ombros e disse: “Pois então, vamos esquecer da
Inglaterra”.
Você poderá pensar que para ele ser um homem adulto, essa atitude é
infantil. Pode ser, mas só para um homem adulto que nunca viveu com um
poodle. Após a primeira vez que você e um poodle andam amarrados na
mesma guia, você fica gamado. Há uma mágica que passa por aquela guia,
unindo o poodle ao seu amo. Pode também acontecer que você fique na
dúvida: sou eu que estou levando o poodle ou é o poodle quem está me
levando?
De qualquer forma, as coisas entre nós e Josephine são assim mesmo. A
esse propósito, estou mais uma vez me lembrando daquele cartaz que vi na
vitrina de uma loja de animais: “O único amor que você pode comprar é o
amor de um filhote”.
É uma verdade sagrada. Do primeiro instante junto a nós, Josephine
passou cada minuto consciente de sua vida tentando nos agradar e
amando-nos.
Mas acho que o cartaz devia conter mais algumas palavras, porque se é
verdade que um filhote nos ama desde o primeiro momento, ele também
passa o resto de sua vida tentando merecer nosso carinho.
Josephine mais do que ninguém mereceu o nosso! Dizem que um poodle
faz tudo, menos falar. Não faz mal: afinal, falar é a parte mais fácil do
amor. A frase “Eu amo você” é dita com demais facilidade e com demais
frequência. Josephine não precisa falar. O amor que irradia de seus olhos
dispensa qualquer palavra.
Você pode aprender muito a respeito do amor pela devoção de um
cachorro. Nós, pelo menos, aprendemos. Mas infelizmente somos apenas
humanos, e nenhum amor humano pode ser tão constante quanto o amor
de Josephine. Nós podemos falar, mas não existem palavras que possam
comunicar àquele pequeno ser peludo o tamanho da felicidade que ela
trouxe às nossas vidas. Só podemos tentar, e por isso dizemos: “Amamos
você — todas as manhãs. . . e todas as noites, Josephine.”
EPÍLOGO
Dezembro, 1969
Richard Nixon, pouco tempo antes de ser eleito Presidente dos Estados
Unidos, fitou-me nos olhos e disse: — A diferença entre um cocker spaniel
e um poodle é que o cocker spaniel só tem coração e não tem cérebro,
enquanto um poodle só tem cérebro e não tem coração. Todos, com
exceção de Josephine, que tem ambos.
TODA NOITE, JOSEPHINE! foi publicado pela primeira vez, em edição
encadernada, em 14 de novembro de 1963. Naquele dia nasceu uma estrela.
Em seguida, aconteceu muito frequentemente que, enquanto passeava
com a estrela em Central Park, alguém se aproximasse perguntando: — Essa
é a Josephine? — Quando eu assentia, a estrela começava a abanar o
rabinho. (Ela conseguiu enfrentar a fama com muita categoria. . . sempre
cumprimentou cachorros estranhos e pessoas estranhas com muita
amabilidade.) Seus fãs olhavam para ela mudos e admirados. Às vezes um
deles perguntava: — A senhora não se importa se eu a tocar? — (Nesses
casos nós assentíamos mais uma vez. Para Josephine, era como assinar um
autógrafo. Na realidade, ela não gosta que cocem sua cabeça... ela prefere
que cocem sua barriga, mas não seria muito digno para uma estrela ficar de
patas para o ar na grama do Central Park.) Assim, o fã coçava sua cabeça e
dizia: — Imagine só, quando eu voltar e contar aos meus amigos que
encontrei a Josephine, e que a toquei também! Oh, Josie, adorei seu livro! —
Em seguida iam embora sem nem me dar bom dia.
Josephine estava convencida de que toda vez que eu me sentava em
frente à máquina de escrever, a coisa tinha alguma relação com ela. Por isso
ela sentia que era sua obrigação deitar em cima de meus pés e “colaborar”.
Não tive coragem de dizer-lhe que O Vale das Bonecas não era a
continuação do livro dela. Quando porém soube a verdade, tomou a coisa
com muita classe. Mas quando me sentei para escrever A Máquina do Amor
ela teve a certeza que dessa vez teria que ser a continuação da história
dela. De fato, muitas coisas aconteceram com Josephine desde a publicação
de TODA NOITE, JOSEPHINE! Ela já usou o mesmo secador junto a Victoria
Nixon, uma pequena poodle preta, na Boutique dos Poodles. (De fato, foi
Josephine que nos apresentou aos Nixon; e nem todo mundo pode dizer
que anda por aí conhecendo Presidentes.) O Duque e a Duquesa de Windsor
ofereceram um coquetel em honra de Josephine. (Irving e eu fomos levados
por ela.) Também foi admirada e acariciada por Dame Margot Fonteyn. Um
dos Rolling Stones coçou sua barriga. (Ela achou que o toque dele era muito
suave.) E pensando bem, acredito que Josephine está completamente certa.
O livro dela precisaria ter uma continuação e tenho a intenção de escrevê-
la qualquer dia desses.
Mas a razão primeira de eu escrever esse epílogo é anunciar que
Josephine vai completar dezesseis anos no dia 10 de janeiro de 1970, e
sinto-me cheia de gratidão por poder dizer a todos que ela está viva e
saudável em Central Park South.
Este livro foi composto e Impresso nas oficinas de ARTES GRÁFICAS
BISORDI S. A.
C. G. C. M. f. N.o 60 881 8101, à Rua Santa Clara, 54 (Brás - São Paulo.