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Achilles Delari Junior Arquivos digitais Toda loucura é arte? análise crítica de um eufemismo romântico

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Achilles Delari Junior

Arquivos digitais

Toda loucura é arte?

análise crítica de um eufemismo romântico

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Delari Jr., Achilles. Toda loucura é arte? Análise crítica de um eufemismo romântico. In: “Estação Mir” Arqui-vos digitais, 2008. 32 p. Palavras-chave: Arte; Loucura; Crítica ao roman-tismo; Vigotski. Artigo não indexado. Disponível em: www.estimir.net/delari_2008_anc-euf-rom.pdf

Primeira versão concluída em 10 de outubro de 2008. Versão atual concluída em 6 de maio de 2020.

Umuarama-PR.

Trabalho voluntário e independente.

Sua reprodução integral ou parcial é livre e incentivada, respeitada a citação à fonte.

www.estmir.net

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“A arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que ex-cede a vida no ser humano”

Vigotski (1924/2003, p. 233)

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Conteúdos 1 Um ponto de divergência 04 2 Do pleonasmo à metonímia 05 3 Da metonímia ao eufemismo 16 4 Do eufemismo à metáfora 12 5 Da metáfora à práxis 19 6 Referências 31

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1 Um ponto de divergência “proximal” em língua portuguesa

Partirei aqui de um emblemático enunciado de Gregorio Barem-

blitt em seu texto “Patologia. Arte. Terapia. Cura” (2006). Tomando-o como fragmento representativo de outras questões às quais ele não se refere, mas que emergem da sua leitura como relevantes para o debate atual em psicologia e saúde mental. Trata-se particularmente de uma afirmação nuclear sua de que o trabalho com as artes junto a pessoas sob o signo da “loucura” pode ser considerado um pleo-nasmo, visto que a loucura como tal já operaria seus processos semió-ticos do mesmo modo que a produção artística, sob o paradigma tal-vez da linguagem onírica. É o que se sintetiza no enunciado:

“Tal vez por eso hablar acerca de, y practicar Arte terapia sea, al mismo tiempo, una estrategia respetable y un pleo-nasmo. El Arte es cura, si por cura se entiende la restauración de un concepto de locura que siempre fue la salud de los ar-tistas” (Baremblitt, 2006, p. única).

Assim, está se dizendo que a arte já é loucura e que nos artistas

já haveria uma loucura que é saúde ou cura. Deduz-se daí que o tra-balho com artes junto a pessoas sob a designação de “loucos” (o autor reprova o termo “pessoas com sofrimento mental” como sendo eufe-mismo) seria então o de lhes potencializar a mesma loucura, estando a arte nela implícita. Sob minha ótica, gostaria de disputar essa apre-ciação tanto sugerindo um caráter não excludente da figura de lin-guagem posta em jogo na relação “arte e loucura”, quanto questio-nando alguns de seus desdobramentos semânticos relativos à práxis terapêutica - inserindo na arena desses signos uma breve crítica à cos-movisão romântica própria ao discurso que atravessa o fragmento ora tomado como ponto de partida.

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2 Do pleonasmo à metonímia “proximal” em língua portuguesa

Penso que quando o autor diz “pleonasmo”, para dar a ver que

“toda loucura já é arte”, pode também emergir, ao invés (ou além) disso, uma “metonimia” da parte pelo todo. Ou seja, nem tudo na loucura é só arte, algo dela o pode ser, mas este algo passa a repre-sentá-la no seu conjunto: “toda loucura já é arte” pode soar como “loucura é arte”, “tudo na loucura é arte”, “arte é o todo da loucura”. De modo que, supondo que fosse a arte algo intrínsecamente "bené-fico" às pessoas que a produzem e fruem, tudo de “maléfico” que na loucura porventura pudesse haver seria extrínseco à sua própria de-finição - a loucura seria apenas mais um bem cultural entre outros e não também um processo que causa sofrimento e decréscimo de qua-lidade de vida como outros males dos quais a humanidade ainda pa-dece. O eventual sofrimento, se houver, seria advindo exclusiva-mente de algum tipo de acidente ou impostura alheia a ela, ou à sua gênese. A não ser, é claro, que se levante, desde já, a possibilidade de não haver para a arte só a finalidade e a capacidade de proporcionar alegria, elevação, composição, potência de vida, mas também tris-teza, rebaixamento, decomposição e impotência – algo a ser pensado, a seu tempo, quanto à própria definição de arte posta em jogo.

Certamente, restará perguntar, frente a isso, se há como sentir ainda desejo de que as paixões alegres predominem, de que a potên-cia de vida se amplie e de que possamos compor mais com o mundo, ou se tal aspiração está desde já condenada a afundar no mar revolto do relativismo cultural, epistêmico, estético e ético da contempora-neidade - mas isso é para mais adiante. No momento, o ponto chave, para aquilo que buscarei articular em seguida, é o de que mesmo que admitamos todos os “devires” da loucura como sendo um tanto arte, também seria preciso assumir que em cada vivência singular sob o signo da loucura nem tudo é apenas arte - não se essa palavra ainda guardar certa especificidade conceituai que a possa definir como tal em inter-relação e contraste com outras realidades propriamente hu-manas. Hegel teria afirmado que “quando se diz que algo é tudo, esse algo é nada”1 e entendo que nisso ele estava correto, do ponto de vista

1 Segundo comentário do Prof. Júlio Cezar Soares, graduado em filosofia e especialista em Ética pela UFPR (em comunicação pessoal, 1993).

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da lógica de construção das nossas próprias categorias verbais. Se tudo for arte, nada é arte. Se tudo for loucura, nada é loucura. Se uma for a outra, uma das duas pode deixar de ser signo de algo que não apenas de outro signo.

3 Da metonímia ao eufemismo “proximal” em língua portuguesa

De metonímia pode-se passar, contudo, também a certo eufe-

mismo, quando ao invés de dizermos que uma pessoa vive uma situ-ação de loucura, dissermos apenas “veja, trata-se de um artista, ape-nas não se compreende sua linguagem, sua estética”. isso me remete à faia de uma jovem estudante que, com aspirações sinceras de crítica e engajamento social, declarada simpatizante da esquizoanálise, disse- me uma vez, no contexto de uma discussão sobre ideologia: “ora, se o louco vê elefantes cor de rosa flutuantes como baiões, que se tem de dizer a ele que isso não é real?”2. Uma tentativa autêntica de proclamar retoricamente o direito a codificar o mundo em diferen-tes linguagens, mesmo as mais surreais, tai como faria Salvador Dali com seus leves elefantes, com compridas pernas de inseto (Figura 1). Contudo, não é esse apenas o ponto, mas antes certo romantismo frente ao que estaria sob o signo loucura, ainda a metonímia da parte pelo todo. Mas quem disse que loucura é exatamente ou apenas pin-tar belos quadros na teia da imaginação? Corre-se o risco de derivar para o eufemismo: ali pode haver algo não tão belo assim, como dor e sofrimento, como angústia e desespero, algo que a franca fantasia de que tudo se resuma a ver “elefantes rosa flutuantes” pode dene-gar. Cabe ver que, sobretudo, falas como a dessa moça cumprem mais uma função retórica num discurso, senão ingênuo e panfletário, ao menos um tanto acrítico e fantástico, fantasioso, fantasmático.

2 Essa fala foi feita em espaço de uma discussão pública, não demandando autorização es-crita para ser citada aqui. Mantém-se, de todo modo, o sigilo quanto à sua autoria e ao con-texto espaço-temporal original.

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Figura 1: Réplica digital de “Las tentaciones de San Antonio” de Salvador Dali, 1946

Em contrapartida, um relato que obtive de um homem então sob o signo da bipolaridade3 indica significações para sua própria com-preensão da loucura, sua função e seus efeitos, bastante distintas das sugeridas no discurso da jovem estudante. Ele contou-me algo de uma dentre as suas muitas experiências com a paranoia, mas tratava-se de uma ideação delirante e não alucinatória, como a construída pela retórica da moça que acabei de narrar. Estava ele com sua namo-rada, na casa dela, e algo se dizia sobre um calombo pronunciado na sua nuca, lembrou então que um professor de anatomia lhe dissera que a parte correspondente no crânio indicava relação com a glân-dula pineal (Figura 2). Ela riu, e lhe disse “o homem da pineal grande”... Alguns minutos depois, de modo aparentemente inexpli-cável, logo após um pequeno gole de vinho, de cerca de um quarto de taça, seu pensamento se desprendeu e passou a elaborar uma “te-oria de conspiração” na qual a moça e seu irmão, também presente no instante de beber, tramariam matá-lo para extrair sua glândula

3 Esse homem, em dezembro de 2008 com 40 anos de idade, teve acesso ao conteúdo de todo este texto, assim como ao de Baremblitt, e autoriza a inclusão do relato sobre seu episódio, resguarda a não identificação de seu nome, profissão ou quaisquer outros índices identitá-rios.

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pineal e vendê-la no “tráfico de órgãos”. E tudo estaria dado desde o início, muito antes de ele pronunciar uma única palavra sobre o as-sunto. Tal situação fazia recobrar várias outras similares já vividas e um grande pavor se instalou nele naquele instante. Buscando, com todas as forças, controlar os impulsos que as ideias lhe indicavam, necessitou pedir para ausentar-se sem dizer o motivo, além do de que não passara bem com o vinho, pois estava já antes muito sensível.

Foi para casa onde experimentou uma noite longa e terrível de insônia, temendo ainda ser morto pelos próprios pais a quem tam-bém ama muito e lutando com a paranoia, tentando contrapor-lhe a megalomania: se era tão especial para que muitos o quisessem matar, devia ser também suficientemente especial para que alguém o esti-vesse protegendo... E esse foi seu bálsamo, sua saída simbólica e afe-tiva, naquele dia, após horas de agonia. Contou-me, no entanto, que raras vezes houve saída assim bem sucedida para esses seus medos, sendo mais comum criar situações constrangedoras para si e para as pessoas a quem passava a temer, numa espiral crescente só interdi-tada por alguma intervenção médica, que logo depois o poria pros-trado em depressão circularmente... E, sobretudo, expressou a dor e o sofrimento por ter que se afastar do que lhe era aprazível, nesse caso, a presença e o carinho da namorada, em função do delírio per-secutorio.

Figura 2: Localização da glândula pineal. Aquela que Descartes via como sede física da união entre o corpo e a alma.

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Nesse momento, sugiro que certa hermenêutica talvez freudiana da castração, mesmo que emerja por puro hábito mental, seja posta à parte. Para que não circulemos no lugar comum de uma metodologia de análise semelhante a um cargueiro sem leme, que transporta os mais diversos conteúdos, mas é inapto para conduzi-los a algum des-tino deliberado. O ponto assim é outro e mais essencial: o que está sob o signo da loucura não promove só alegria, no sentido que Espi-nosa (1979) dá ao termo. Se o delírio real da glândula pineal é arte, não o é do mesmo modo que a fictícia alucinação dos “elefantes cor de rosa”. Desconsiderar isso pode ser incorrer em eufemismo e omis-são: “deixe que pense de modo delirante, esta é a sua linguagem poé-tica”, como se ser poético ou mesmo hilário para quem frui de fora resolvesse algo do tormento de quem o produz, na gênese desde sua inserção atual no mundo, mas na estrutura e dinâmica sempre ainda atravessando e instituindo uma vivência pessoal. Fosse assim, todo o sofrimento, de algum modo já instalado, magicamente desapareceria desde que, por benevolência ou solidariedade, a apreciação dos ou-tros “deixasse” o pensamento ser pensado. Desconsidera-se, assim, que a própria lógica interna do delírio no instante singular de sua significação já possa se apresentar como indesejável e triste, isto é, impeditiva da potência de alguém para compor com o mundo, para ir ao encontro do que lhe é aprazível.

O talvez eufemismo dos “elefantes cor de rosa” pode ter a ver com o que denomino como um possível influxo contemporâneo de uma cosmovisão romântica no trato com o tema da loucura. O ro-mantismo, não só no sentido do senso comum, mas no dado pela es-tética literária, como em Arnold Hauser (1993) em sua obra “História social da arte da literatura”, implica a agregação de certos índices nu-ma alegoria peculiar da condição humana. Índices como a valoriza-ção: do irracional; da figura da criança como ser livre e espontâneo; da genialidade indomável; da autenticidade do selvagem; da potên-cia e pureza da natureza, tanto quanto da busca de retorno a ela; da elevação do artista; do isolamento voluntário dos solitários... Entre outros traços que talvez pudessem ser condensados na forma de certa regra literário-filosófica do “predomínio do dionisíaco sobre o apolí-neo”. Não há que questionar aqui as contradições e talvez distorções implícitas à arena de cada índice desses. Poderíamos apenas lembrar as três fases do desenvolvimento da alma humana no Zaratustra de Nietzsche (1978) para sentir algo desse path os romântico: primeiro o

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camelo que atravessa arduamente e com poucos recursos; depois o leão que é chamado “eu quero” lutando contra o dragão kantiano do "tu deves"; e, por fim, a criança posta como o auge da evolução, por assemelhar- se ao artista em sua inalienável liberdade criadora. O ro-mantismo satura estas cores com o foco luminoso de sua própria cos-movisão. Sob tal luz, pouco ou quase nada valeria perguntar sobre algo da dignidade e força do dragão, tampouco sobre eventuais ma-tizes de dependência, egocentrismo ou despotismo na atitude da cri-ança. Talvez não descolado da tendência contemporânea, moderna, ao privilégio do indivíduo e seu sucesso pessoal, esteja o sucesso da ideologia do romantismo ao também prezar tanto a solidão, o isola-mento e a descrença ou desprezo pelas organizações coletivas.

No mesmo livro em que se fala da criança como última etapa, de modo um tanto quanto paradoxal, se conclamam os solitários da terra para que um dia formem um povo: “Vós solitários de hoje, vós que vos apartais, havereis um dia de ser um povo: de vós, que vos eleges-tes a vós próprios, há de crescer um povo eleito: - e dele o além- do-homem” (Nietzsche, 1978, p. 234). Povo de solitários! Ainda então “solitários”? Ainda assim “povo”? Tudo se dá, paradoxo retórico à parte, sem dedicar-se a mínima atenção para a contradição básica de que nenhuma criança sobrevive ou se desenvolve sem o suporte de um outro social. Trata-se, certamente, de um discurso que não pre-tende nenhum rigor ou coerência, posto que outorga a si mesmo certa “licença poética”, permeada marcadamente por um pathos trágico, ou por uma paixão que poderíamos chamar de trágica, na acepção que Aristóteles dá para a tragédia em sua “Poética” (1979b). Ou seja, um ato mimético que retrata algo que está para além dos limites da condição humana. Para confirmar isso basta apenas lembrar a tão propagada ideologia do "além-do-homem". Acrescentando-se que no romantismo a isso se ama como a uma utopia que não se pode abso-lutamente alcançar, com relação à qual só se pode fazer sucumbir. Sucumbir talvez de modo catártico, purgando as culpas sociais, como é criticado por Boal (1988) quanto à tragédia grega, ou quem sabe sem catarse alguma, mas apenas experimentando tão fundo a dor que se chegue a uma suspensão no vazio ou na resignação por uma vida na qual nada há de digno de ser amado, senão a dedicação a fazer nascer dela um dia talvez o “além-do-homem”.

Trata-se, como podemos perceber, de um pensamento sincrético, talvez mais presente em nossa sociedade do que se possa imaginar,

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poderia agregar todos esses índices românticos sob o signo da "lou-cura". O louco é o gênio, o solitário, a criança, o selvagem, o dionisí-aco, o prenúncio do além-do-homem. O louco é o artista. Mas que arte é essa que associada à loucura provocaria um pleonasmo? Reto-mando o exemplo do meu conhecido diagnosticado como bipolar aos seus trinta e dois anos, qual a operação semiótica posta em jogo na poética de seu “delírio paranoide”? Tenho notado que aí incide, so-bretudo, a hipérbole, a figura que opera pelo exagero. Um exagero orgânico-semiótico geral na oscilação entre os extremos, inação e agi-tação, hipersonia e insônia, depressão e mania. Mas também exageros semânticos específicos em cada polo, sobretudo no extremo da ma-nia, com a paranoia (exagero de perseguição) e a megalomania (exa-gero de presunção), e no extremo da depressão com a ideação suicida (exagero de morbidez) e o automoralismo (exagero de julgamento). A exegese da arquitetura semiótica da chamada bipolaridade não vem aqui ao caso, até porque o que está sob este signo, tanto quanto o que está sob o signo da loucura de modo geral, apresenta configu-rações “nômades”, “rizomáticas”, se assim se preferir dizer. As quais são dificilmente nomeáveis com uma única palavra. No limite, não são coincidentes, nem tampouco exatamente redundantes ou repetí-veis, “pleonásticas”.

Contudo, mesmo atendo-nos apenas ao exemplo da glândula pi-neal, notamos que a situação flagra uma operação semiótica hiperbó-lica, não só na estrutura do enunciado, mas, sobretudo, no conteúdo afetivo, sensível do episódio... A dor do medo, o tremor, a sudorese nas mãos, a dilatação das pupilas, a respiração ofegante, a ardência no peito, a impossibilidade de dormir, descansar, desligar, mesmo diante do forte desejo de que isso pudesse ocorrer logo, mesmo na cama deitado com silêncio e todas as luzes apagadas. A terrível sen-sação de que o tempo se congela nesse sofrimento, que não passa, que dura para sempre. Assim uma hipérbole de corpo inteiro. Como disse Bakhtin, o homem “se põe todo na palavra” (apud Schnaiderman, 1996, p.1388), trata-se de uma palavra de corpo inteiro. Mas essa es-tética hiperbólica do ato semântico e sensível do delírio paranoide seria exclusiva e/ou precisamente arte? Não é a hipérbole também um forte recurso retórico para os políticos de carreira ou mesmo para al-guns dos componentes de uma militância social mais aguerrida, su-perfaturando qualidades nossas e de nossos aliados, subfaturando as de nossos oponentes? Não seria ela também um recurso de

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linguagem muitas vezes presente ainda na ciência ou na filosofia, com seus recorrentes “verdadeiro”, “falso”, “correto”, “incorreto”, “tudo”, “nada”, “nunca” ou “sempre”? “Só sei que de nada sei”! “Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”! Não estão estes operadores também presentes nas falas mais cotidianas? O que há de especificamente artístico nesse processo simbólico, nessa semiose, nessa produção de significados e sentidos?

Penso que seja interessante e desejável pensar numa “estética ge-ral da criação verbal” ou, de modo ainda mais abrangente, “estética geral da criação sígnica”. Isso porque a estética, sobretudo, tem a ver com a sensibilidade humana, para o belo por definição, mas também para toda a polifonia e policromia do mundo, para sua “poliestesia”, por bela ou feia que seja, mas não indiferente ou “para além” da atri-buição de valores como “bom” ou “ruim”. Por suposto é interessante, mas não restaria ainda algo específico para quando se fala da estética propriamente artística, que não só o mesmo que se passa na estética de qualquer signo cotidiano, político, científico, filosófico, ético ou outro? Se tudo pode ser considerado arte, poderíamos usar esse nome para designar tudo o que é humano, não só a loucura? Ou a loucura também passará a ser uma definição primeira da própria condição humana? Consideremos a ideia de que uma condição sine qua non para estabelecer um diálogo seja a de haver diferença entre os inter-locutores em função de uma constitutiva polissemia nas palavras que eles confrontam e compartilham. Se tal noção tem algum funda-mento, não seria mais interessante procurar destacar o que distingue as palavras ou as coisas e o que compõe suas contradições internas, para assim haver diálogo entre elas, do que igualar e equiparar todos os seus “devires” sob um único signo, no limite sempre redundante?

4 Do eufemismo à metáfora “proximal” em língua portuguesa

Essa discussão, mesmo que despretensiosa, não deve seguir adi-

ante sem considerar, ainda que apenas de passagem, o contexto no qual uma eventual romantização eufêmica da loucura se dá. Pois

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concomitante à recorrente banalização da dor humana, seja na forma de redução à caricatura, interdição de sua expressão ou invisibilidade de sua agudez, está também presente certo desejo legítimo de com-preender a linguagem própria da dita loucura, como algo significa-tivo socialmente e relevante do ponto de vista da compreensão da condição humana de modo geral. Ocorre assim que, entre esses dois vetores e outros mais, há uma tensão representada, posta em jogo, aqui nessas nossas observações. Tensão imanente ao fato de que os signos “loucura” e “arte” não têm sentidos unívocos e se constituem antes como “arena de lutas” como também diz Bakhtin, mas agora em seu “Marxismo e filosofia da linguagem” (1992). Nessa luta não está ainda definido o que prevalecerá: (a) uma busca de um termo médio, de um equilíbrio, como se põe na “Ética a Nicômaco” de Aris-tóteles (1979a); (b) uma atitude como a sugerida pela “teoria da cur-vatura da vara”, formulada por Lênin e parafraseada pelo pedagogo brasileiro Dermeval Saviani; ou ainda (c) outros arranjos entre essas duas vias ou para além delas. Por um lado, numa atitude de busca do termo médio não poderíamos estar nem com uma postura demasiado romântica da loucura “o louco é exatamente um artista incompreen-dido a ser justiçado”, nem com uma postura demasiado realista “a loucura é apenas e tão somente uma realidade bastante dolorosa a ser superada com um tratamento”.

Nada disso então deixaria de cobrar choques de sentidos entre os polos e no interior de cada um deles. Seria preciso, nessa lógica, bus-car um ponto de equilíbrio: “algo de artístico ou criativo, mas tam-bém algo de doloroso e autodestrutivo” - uma composição de opostos complementares, “a dor de criar e a criação da dor” juntos com “o prazer de criar e a criação do prazer”. Por outro lado, numa concep-ção de “curvatura da vara”, é necessário puxar a linha argumentativa para outro extremo, para que o que está agora torto venha depois en-direitar e chegar ao centro... Se a loucura foi e ainda é tida como algo áspero, inaceitável, repugnante a ser interditado, escondido, desesti-mulado, curado - pois é preciso “trazer à tona quem está no fundo”, caberia então puxarmos para o oposto e dizermos que é algo suave, aceitável, aprazível a ser liberado, mostrado, estimulado, agravado - pois o problema talvez não seja "estar no fundo", mas "não ter ainda ¡do realmente ao fundo". Assim me parece insinuar-se que a tática do que chamo de cosmovisão romântica frente à loucura seja mais a da curvatura da vara que a do termo médio. É certo que muitas vezes há

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que confrontar o conservadorismo mediante o contraste, contudo se essa tática é utilizada para dialetizar a discussão na sequência, o sen-tido é um, se o é para fazer do extremismo não um meio, mas um fim que se esgota em si mesmo, já é outro.

Como confrontar então uma sutil ingenuidade e um velado pacto do silêncio que podem estar na base ou no topo de certa visão talvez romântica e eufêmica? Trazer para um novo extremismo e jogar na mesa as mazelas dolorosas e as profundas feridas ainda não curadas, as quais ninguém parece pretender curar, sejam os ditos “tradicio-nais” sejam os ditos “alternativos”, senão apenas curar com o ato de panfletar que devem ser “vistas com outros olhos”, quase como com olhos que dizem que ali tão somente não estão ou nunca realmente estiveram? Talvez fosse temerária essa queda de braços... Sobretudo porque, sim, muito da dor que envolve a loucura deriva de fatores iatrogênicos, isto é, de fatores etiológicos coincidentes com os pró-prios tratamentos impetrados justo em nome de se livrar a pessoa do mal que a acometia. Dizer que tudo o que gera a dor na loucura é intrínseco à sua própria definição seria retrocesso. Contudo, ainda não há na loucura, socialmente gerada e pessoalmente incorporada, uma dor pungente contra a qual combater, nem que seja sequer para amenizá-la? Contrapor extremismo com extremismo não parece o melhor caminho, mas tampouco um suposto harmônico caminho do meio parece apaziguar as contradições em jogo na arena das palavras chave desse diálogo. Tendo a pensar que os vetores opostos não po-dem rumar tranquilamente para um equilíbrio aristotélico neutro, harmonioso, isento de tensão ou conflito. Soa-me mais pertinente re-tomar a lembrança duma herança heraclítica da centralidade da ten-são, como a “do arco e da lira”. Sem tensão não há qualquer harmonia para extrair da lira, sem tensão a flecha de Apoio não é lançada e o guerreiro não é acertado em seu calcanhar.

Uma tradução mais contemporânea da importância do conceito de tensão está na visão dialética da psicologia de Vigotski, sobretudo no seu conceito de drama, exposto em seu “Manuscrito de 1929” (2000). O conceito de drama de Vigotski é mais moderno do que clás-sico. Para os clássicos, sobretudo Aristóteles (1979b), drama é um modo de representar mediante a “ação” - abrangendo tanto tragédia como comédia, mas não a lírica. Já para os modernos o foco central do drama é o conflito que aquela ação envolve, ou mesmo a própria mistura conflitiva de vetores tanto trágicos quanto cômicos.

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Confluência e choque que tratariam de constituir uma representação mais próxima da “vida como ela é”, e menos da vida como idealizada e elevada na figura de heróis e deuses (mimese classicamente típica da tragédia, quanto ao seu objeto de representação) ou da vida como caricaturada e rebaixada na figura de animais e pessoas grotescas (mimese classicamente típica da comédia, também quanto ao seu ob-jeto de representação). Misto entre tragédia e comédia, mas tendo como central ainda o conflito no interior dessa mistura... Jogo de for-ças entre hierarquias opostas de valores, hierarquias opostas de rela-ções de predominância entre afeto e razão, tal como se apresenta no exemplo paradigmático de Vigotski (2000) de um juiz que julga a pró-pria esposa – numa hierarquia o afetivo predomina sobre o racional, e ele a absolve, noutra o racional predomina sobre o afetivo e ele a condena: o que prevalecerá? Trata-se assim de um confronto ao qual, por não se saber o que vencerá, é inerente certa “suspensão” ou “epokhé”... Uma recorrência à dúvida, constituída e constitutiva de uma imprevisibilidade que sempre se refaz, nunca se esgota, senão talvez com a própria morte.

O “drama” como metáfora da vida, quiçá o drama como metáfora das relações entre loucura e arte. Ou ainda o drama como a modali-dade de arte que de modo, porventura, menos eufêmico pode meta-forizar a loucura, tanto quanto metaforiza a luta que é a vida da qual esta ou aquela loucura emerge e à qual ela permanece entretecida, de modo inalienável. Para desenvolver essa nossa intuição, cabe desta-car que a ênfase no conflito também filia Vigotski, salvo engano, a certa estética romântica, não saberia hoje dizer se via Hegel ou por qual referência, mas a um conceito moderno e romântico de drama: o conflito no centro da vida humana, o conflito não como algo a ser banido ou superado definitivamente pelo equilíbrio, a harmonia e a total ausência de tribulações, o nirvana, ou quiçá por alguma provi-sória vitória de “Thánatos”, a pulsão de morte. Mas antes tal conflito como algo constitutivo da condição humana, imanente a ela mesma. Assim o seu pathos não indica ser o mesmo que o do romantismo no sentido que vimos contrapondo aqui, pois no cerne do conceito vigo-tskiano de conflito põe-se em jogo a concomitância, sem vencedor de-finido, mesmo que porventura pretendido, entre tristeza e alegria, trágico e cômico, dionisíaco e apolíneo, dor e prazer, morte e vida, solidão e companhia. Conflito entre opostos no qual não há um foco axiológico no predomínio dos primeiros termos, de modo que fossem

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valorados como signos maiores da beleza, da nobreza e da profundi-dade da experiência humana, como sugere a cosmovisão romântica, stricto sensu.

Na ausência de um termo bem preciso, poderíamos nomear tal centralidade do conflito mesmo entre a tragédia e a comédia como um romantismo, digamos, “sério-cômico”, para usar mais uma ex-pressão de Bakhtin (1997) – relativo à dialogia da cosmovisão carna-valesca, de origem popular. Já o romantismo de tom predominante-mente sério e aristocrático, ao qual esse texto se contrapõe tem um duplo aspecto: o pathos trágico e a apologia da solidão por um lado; e, por outro, o eufemismo quanto à condição daqueles sob o signo da loucura, numa certa elisão do sofrimento que nela pode estar envol-vido e na maioria das vezes efetivamente está. Um tanto se o omite, mas também se o põe num pedestal, quase como que num certo pro-cesso de admiração mítica pela “divina loucura”. Mítica não só por-que puramente ficcional, mas também e principalmente porque irre-fletida, acrítica. De modo geral, temos uma filosofia que insinua uma beleza poética em reconhecer nossa condição trágica, como em Ar-thur Schopenhauer, que teria dito: “melhor do que morrer, só mesmo nunca ter existido” – numa visão que de fato, ou na raiz, não se mos-tra tanto como uma forma de pessimismo quanto como um elogio ao ato de ver beleza e/ou verdade em postular a degradação como cerne da condição humana. Não é de nos surpreender o fato de no atual cenário dito “pós-moderno” de queda dos projetos coletivos e des-crédito quanto à busca de ampliar os espaços da participação do ho-mem na decisão sobre seu próprio destino, esse discurso venha fa-zendo tantos adeptos, sobretudo entre jovens encantados por aforis-mos filosóficos dispersos e sem aspiração alguma à coerência episte-mológica ou ao compromisso político.

Posto que se tenha por definitivo que já não haja contra o que lutar, muito menos como vencer, então será aprazível a fruição esté-tica da derrota. Não como acidente ou contingência, mas como um caráter inevitável da condição humana que, como tal, guarda inclu-sive uma beleza, mesmo que mórbida ou triste. Esse sentido mais ra-dical, profundo, do romantismo não é o mesmo que o do eufemismo dos “elefantes cor de rosa”, mas ambos guardam relação, ainda que o segundo seja mais ingênuo e talvez mesmo mais prejudicial à cons-tituição de uma visão crítica sobre o signo “loucura”. O eufemismo do segundo tende a bloquear a crítica mais que a hipérbole do

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primeiro, mas tem ainda algo a ver com ele, pois se trata, em ambos os casos, de dar um lugar peculiar às paixões tristes: seja hipostasi-ando-as, seja elidindo-as. Dos dois modos desmobiliza-se o desejo de contrapô-las, de lutar para que elas, já que nunca deixarão de existir, ao menos nem sempre predominem sobre as alegres ou as aniquilem. Nos dois casos, então, contribui-se para que aquelas prevaleçam. Eis o que há de comum. Mas como um conceito de drama como conflito sem vencedor definido, e das relações da arte com a loucura como drama, poderia se contrapor às visões românticas trágico-aristocráti-cas, tanto à radical quanto à eufêmica?

Coloquemos em questão uma breve interpretação romântica do delírio, dada pelo grande dramaturgo Antonin Artaud, um exemplo emblemático de uma visão perspicaz, na medida em que parece cum-prir certa função de “curvatura da vara”. Em sua célebre “Carta aos diretores de asilos de loucos” ele chega a dizer que: “não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um delírio, tão le-gitimo e lógico como qualquer outra série de ideias e atos humanos” (Artaud, 1979). Ora, mais uma vez só pode se tratar de a parte pelo todo: trata-se de todo e qualquer delírio, ou de um tipo determinado de delírio? Que dizer do delírio paranoide que afasta um homem da-quilo que lhe faz bem? Que dizer de um delírio que esse próprio ho-mem tenta dolorosa e solitariamente a todo custo contrapor, nem que seja com um delírio megalomaníaco para que ambos se anulem e seus efeitos peculiares não prejudiquem a relação com aquilo que lhe é aprazível? Fica bastante claro que o problema não está absolutamente em ser ilegítimo ou ilógico um delírio. Tráfico de uma glândula que tem grande valor tem muita lógica nos tempos atuais. A expressão de medo de que se a tire tem ainda muita legitimidade, por sua vez. O próprio Vigotski (1999) destaca o fato de haver “método na loucura”, parafraseando Shakespeare (1990) – entenda-se aqui “método” por lógica interna de funcionamento mesmo sob olhares externos tal pro-cesso pareça ilógico. E recorre ainda, noutro lugar, à metáfora de que “nenhum edifício desaba senão segundo as mesmas leis pelas quais foi construído” (paráfrase minha). Indicando que aquilo que apre-senta aparência caótica na patologia tem, desde início, lógica de or-ganização interna, com gênese histórico-cultural que se configura de modos qualitativamente distintos ao longo da vida.

Sim, mas a pergunta, retornando a Artaud, seria: essa lógica pró-pria a uma expressão legítima, de algo que nem bem se definiu ainda,

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está aí para ampliar a potência de vida da pessoa naquele momento? Ela permite que tal pessoa continue próxima daquilo que lhe dá pra-zer? Permite que ela componha mais com o mundo? Artaud, por per-tinente que seja seu próprio destaque a que “há método nessa lou-cura”, como o do velho Polônio em Hamlet séculos antes, acaba tam-bém elidindo qualquer referência às consequências dolorosas que pode trazer o delírio. E acaba, querendo ou não, transmitindo uma visão idealizada e romântica da loucura: “quem está sob esse signo não é alguém que sofre”, “se sofre é só porque não pode expressar seus sentimentos e pensamentos livremente”. No caso da ideação de-lirante à qual já nos referimos aqui, bastaria que se pudesse expressar o medo, o pavor, “livremente” que ele não iria se potencializar. Sim-plesmente seria um medo que faria bem? Sem “medo de ter medo”, e “apenas” com um medo de ter parte do corpo extraída, a custo da própria vida? Então, digamos que, caso quem produziu tal delírio houvesse decidido expressar seus pensamentos, as pessoas ali pre-sentes apenas o incentivassem a dizer seu delírio “livremente”, sem contestação, concordassem com ele... O medo passaria ou aumenta-ria? Teria o delírio que ser confirmado para não contrariar a lógica de quem o estava produzindo?

Que triste seria... Em tal lógica uma ideação suicida também en-tão seria incentivada a ser posta em prática. Ao contrário, a tática en-contrada por ele foi apartar-se e viver o drama de delírios opostos em confronto até que se anulassem, ficassem por um instante em sus-penso e uma relação mais potente entre razão e emoção pudesse se estabelecer – para que o sono e o descanso pudessem enfim chegar, sempre passageiros, mas pelo menos existentes. Se há algo de artís-tico nisso, não é como metonímia da parte pelo todo, nem como eu-femismo... Se há uma metáfora que melhor signifique essa condição parece ser antes a do drama. Mas um drama que remete não à genia-lidade de um artista individual produzindo em seu atelier, com pai-xão, amor, ódio ou fúria, prazer ou dor, exclusivamente íntimos ao seu ato criador. O drama implica a ação da representação de papéis sociais variados, de uma mesma pessoa em cenários e situações dis-tintos, com interlocutores diversos. O outro vem compor essa arte em parceria ou disputa, seja com ele, para ele ou contra ele. Assim trata-se de uma produção coletiva, mais uma vez contrapondo o individu-alismo, o isolamento e a solidão privilegiados pela cosmovisão ro-mântica radical, cinzenta, ou elididos pela eufêmica, multicor.

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5 Da metáfora à práxis “proximal” em língua portuguesa

Dizer que é preferível ter como figura de linguagem para a lou-

cura não o pleonasmo, nem a metonímia, nem o eufemismo, mas a metáfora, não é suficiente, não fecha a discussão. Tampouco seria para fechar a discussão que estas questões vêm sendo colocadas, mas para abrir a sua polissemia, no movimento inverso ao do “fechamen-to do universo da locução” denunciado por Marcuse em “A ideologia da sociedade industrial” (1978), movimento de mostrar que as pala-vras são contraditórias, polissêmicas, arenas de luta, que seu sentido não é unívoco, transparente, nem tranquilo, que não se pode dizer tudo de qualquer coisa, que aquilo que dizemos tem consequências éticas e políticas. Tampouco é suficiente ou inequívoco dizer que a metáfora utilizada poderia ser antes a do drama, como modalidade específica de atividade artística, e não como conceito genérico e ide-alizado de arte. Existem desafios postos a partir disso, desafios que só poderão se desdobrar e potencializar com a indicação e efetivação de uma práxis. Algo por construir, com todas as dificuldades e suces-sos que isso possa implicar. Algo que aqui não se há de resolver, mas ainda em outras arenas, verbais e não verbais. Mas, ainda com a fina-lidade de abrir os horizontes do diálogo muito mais do que de con-cluir seja o que for, resta algo a problematizar quanto ao fragmento de Baremblitt ao dizer que “praticar arte terapia, seja ao mesmo tempo uma estratégia respeitável e um pleonasmo” (2006, p. única). Quanto a ser respeitável, isso implica um juízo de valor do qual com-partilhamos. O que intriga aqui é quanto a ser pleonasmo, ou seja, redundância. Ora, como pode algo que é redundante ser então neces-sário?

Se for respeitável deve ser algo necessário, mas como pode ser necessário o que não acrescenta nada ao que ali já está? “Entrar para dentro”, “sair para fora”, “descer para baixo”, “subir para cima”, sendo pleonasmos, são na maioria das vezes construções desnecessá-rias, dispensáveis, o segundo termo não acrescenta ao primeiro e pode assim ser desconsiderado a não ser como forma de “ênfase” me-diada pela repetição. Então o que se passa ao “trabalhar arte com quem já trabalha arte”? Como é isso? Seria, assim, um ato de ampliar

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as capacidades artísticas que ali já estão desde o início? Como seria a ampliação da capacidade artística de produzir uma hipérbole de um delírio persecutorio ou um delírio megalomaníaco, tomando aqui apenas o nosso exemplo mais próximo na construção deste texto? Se-ria converter essa hipérbole em uma outra modalidade de linguagem mais aprazível para o próprio sujeito que antes produzira a primeira, ou seria gerar a hipérbole da hipérbole? Penso haver aqui uma ques-tão central para toda essa incipiente discussão que vimos tentando, com todos os nossos limites, desenvolver aqui. Qual seja: a arte com relação a quem está sob o signo da loucura, tem algo a acrescentar como linguagem que “ressignifica” e/ou recompõe em uma outra a situação de sofrimento "psíquico" (por mim entendido já como um momento corpóreo em sua própria definição), ou ela é uma mera re-dundância, um pleonasmo, uma repetição de um processo que já está ali desde sempre ao qual cabe apenas aceitar, incentivar e/ou deixar apoderar-se da experiência daquele que já a produz por si mesmo?

A meta dessa suposta redundância "arte-loucura" (toda arte já é loucura) ou “loucura-arte” (toda loucura já é arte) seria mais a su-plantação do sofrimento psíquico, ou mais a criação de belas obras a serem fruidas por outrem? A pergunta pode parecer descabida, mas há uma diferença entre as duas coisas que se pode resgatar com a história da arte, sobretudo nas biografias de grandes gênios que fo-ram, de algum modo, também considerados loucos, seja isso visto como pleonasmo ou não. Tal diferença consiste no fato de que nem sempre a criação artística faz tanto bem a quem cria quanto a quem frui, embora muitas vezes esta fruição socialmente aprazível só seja possível postumamente - há alguns grandes artistas que só têm suas obras reconhecidas quando não mais agridem os padrões estéticos do tempo em que são fruidas, quando não mais abalam o status quo da sociedade em que são assimiladas e nas quais ganham altíssimos va-lores mercantis. Concretamente, personagens como Van Gogh foram retratados por historiadores da arte como sofrendo muitíssimo no próprio ato de criar, reportando-nos sua criação como processo pro-fundamente doloroso. Então como valorar isso? Como o esforço de um mártir que se sacrifica para criar algo de grandioso para a huma-nidade? A produção do belo como uma febril exteriorização de uma dor que não tem mesmo como cessar apenas pelo fato de exteriorizar-se?

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Sendo assim, quando pensamos em proporcionar, para alguém que sofre sob o signo da loucura, recursos necessários para produzir sua arte não só de modo intrapsíquico, mas também extrapsíquico (mediante signos compartilháveis), qual será o objetivo? A arte como produto social, peça cultural a ser apreciada pelos outros apenas? ou também como transformação de conteúdos internos capaz de aplacar ou ao menos diminuir as paixões tristes de quem a produz? Creio que no segundo sentido não pode haver pleonasmo. No segundo sentido algo de novo se acrescenta à arte que já estava ali, ao drama que já estava ali. A arte, a criação artística, se coloca como algo que vem acrescentar à loucura, e não apenas como algo que já lhe fora inerente desde o início e, portanto, configuraria mera redundância. Chegamos aqui ao momento de pensar não só a definição de loucura que está em jogo, que parece muitas vezes elidir o sofrimento, mas também a de arte, que parece valorizar apenas seu aspecto porventura trans-gressor, que talvez tivesse romanticamente em comum com a lou-cura. Como já foi dito, “se tudo é loucura, nada é loucura”, do mesmo modo: “se tudo é arte, nada é arte”. É interessante lembrar a obra “Argumentação contra a morte da arte”, de Ferreira Gullar (1993), para por em tela a resistência aguerrida de alguns autores críticos contra uma pretensa “dessubstancialização” absoluta da linguagem artística, promovida, sobretudo, pela vertente, de resto muito difusa e indefinida, dita “pós-moderna”4.

O poeta brasileiro foca como exemplo a ênfase hipertrofiada no ato de colocar algo no espaço de uma exposição artística como sufici-ente para que se o tenha como arte. Tome-se uma barata esmagada sobre o asfalto pelo pneu de um carro importado da fábrica Toyota, recorte-se esse pedaço de asfalto da rua e se o coloque num museu e assim está feito: temos uma obra de arte retratando “a finitude da metamorfose kafkiana numa releitura a partir da sociedade pós-in-dustrial sob o paradigma toyotista nas linhas de produção”! Ou seja, “tudo é arte”... Logo, “nada é arte”, posto que a ela não é necessária a tarefa de transcender o que quer que seja. Levar-nos além de nossos limites não faz mais parte de sua definição, assim: a arte como outros “deuses”, está morta! Argumentar contra a morte da arte seria resistir

4 Habermas (1990) fala de duas grandes vertentes no pensamento dito pós-moderno: os ne-oconservadores e o anarquistas. Com relação à postura estética que parece atravessar as con-cepções relativas à arte e à loucura às quais nos opomos aqui, não fica muito claro em qual campo intermediário entre esses dois polos elas se situam.

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na postura de que ela como atividade cultural, como atividade pro-priamente humana, tem ainda sua especificidade. Tem algo que nos permite fazer dela arte e não ciência, e não política, e não religião, e não outra esfera da vida cultural e social pública ou cotidiana. Muito embora certamente sempre possa haver algo de arte na ciência, na política, na religião e no cotidiano.

Mas em que ainda poderíamos buscar a especificidade da arte em contraponto à sua especificidade ausente nos pós-modernos? Dessa vez mais como “curvatura da vara” do que como busca de um ”ponto de equilíbrio” ou de “tensão situada”, mais para criar um conflito na arena social, do que para já interiorizar todos os seus vetores, dentro da cosmovisão que perpassa a abordagem histórico-cultural em psi-cologia, seria interessante retomar o que diz Vigotski sobre educação e arte e que talvez nos traga alguma luz para o tema das relações entre arte e saúde mental. Para este psicólogo “a arte não é um comple-mento da vida, mas o resultado daquilo que excede a vida no ser hu-mano” (2003, p. 233). Ou seja, há um sentido de transcendência na arte, de um ato de se acrescentar, de ir além, e não apenas de redun-dância, pleonasmo, repetição, do que ali já está dado desde sempre no sujeito e, portanto, em suas relações sociais atuais, efetivas. Esse excedente de visão e sensibilidade que a arte produz pode ser apro-priado e fruído pelo próprio artista ou não, como no que se relata sobre Van Gogh. Mas a tendência à constituição do predomínio, já que não exclusividade, de uma paixão alegre, isto é, aquela que au-menta a potência de vida e conduz a compor mais com o mundo, está dada como algo intrínseco à definição de arte posta em jogo por Vi-gotski.

O fato de poder haver uma arte triste, ou seja, que leve a decom-pormo-nos em nós e com o mundo, que diminua nossa potência de vida, que nos faça passar de estados mais elevados de nossa experi-ência afetivo-volitiva para uns menos elevados, também não está bem claro para mim. Certamente não é só arte aquilo que provoca um riso fácil, e mesmo rindo nossa potência de vida não necessariamente se amplia. Se me coube aqui contrapor a hipérbole ou o eufemismo romântico, uma hipérbole ou eufemismo cômicos também não se-riam de grande ajuda, por mais que o próprio riso possa efetivamente também ter a função de subverter, de fazer-nos “ir além” quando contrapõe-se ao tom sisudo aristocrático e oficial. Desse modo, a obra de arte que provoca profunda tristeza, no sentido comum da palavra,

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pode ser também a mesma que provoca profunda alegria, no sentido espinosano da palavra, nem toda lágrima diminui nossa potência de vida, nem toda dor é vã, assim como nem todo riso liberta, nem todo prazer é subversivo. Nesse sentido, se o riso me aliena e me paralisa é um riso triste, se a lágrima me impulsiona e me faz ir além é uma lágrima alegre. Mas é difícil imaginar uma obra de arte, por mais cáustica ou cruel que seja a sua abordagem, que como linguagem se dirija a diminuir a potência do seu interlocutor, que tenha como meta entristecer no sentido de aniquilar, decompor, impedir que se vá ao encontro do que é aprazível. Se houver, que finalidade teria?

Mesmo que assumíssemos que a arte em si prima por não ter obrigação com qualquer função pragmática que seja, ainda podería-mos perguntar, que gosto então haveria em fruí-la? No caso de pro-mover deliberadamente paixões desagregadoras, desvitalizantes, não seria esta arte antes um mecanismo de dominação, imobilização e subordinação do interlocutor? Isso sem entrarmos no mérito da es-tética agenciadora do ódio como aquela própria do nazi-fascismo ou do anticomunismo, ainda que não só destes... É com relação a isso que nos voltamos em nossa crítica ao eufemismo quanto à “artística loucura”: algo que promove uma paixão triste teria como ser arte? Chega um momento, se é que já não está claro desde o início, no qual cabe marcar que o mais importante aqui não é disputar se há ou não algo de artístico na loucura, uma parte no todo, mas perguntar se não há algo que não seja só isso, algo triste também, um sofrimento, algo a que a arte, como tal, poderia converter em outra coisa... E não ape-nas ampliar em forma de repetição ou redundância. Por outro lado, cabe dizer que esse processo de conversão da vida em arte não é di-reto nem imediato, as transições são mediadas e envolvem certa ten-são, como se pode deduzir também do que é dito por Vigotski: “Na arte, a realidade está sempre tão modificada que não é possível fazer uma transferência direta do significado dos fenômenos da arte para os da vida” (Vigotski, 2003, p. 228).

Conta-se que, em dada ocasião, numa exposição, Matisse foi in-terpelado por uma senhora que lhe disse, referindo-se a um de seus quadros (ver Figura 3): “Nunca vi mulher de barriga verde...”, ao que ele teria replicado “Minha senhora, isto não é uma mulher; é uma pintura”. Na arte a vida não está como tal, como cópia. A vida está como significada, codificada, traduzida, transcriada, para usar um termo de Haroldo de Campos, pela linguagem artística... Se a arte não

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é o mesmo que a vida, a vida também não é o mesmo que a arte, em-bora se relacionem, significando-se uma à outra, como metáfora, como hipérbole ou como elipse, como alegoria, como a figura que melhor convier à sua proposta em cada caso. A arte se põe aqui no limiar de um paradoxo. A vida certamente é categoria mais abran-gente que a arte, não se faz nem se frui arte sem se estar vivo, não se faz arte sem trazer da vida para a sua linguagem ou sem fazer tal linguagem atravessar a vivência de alguém. Mas poderia então aquilo que está contido na vida, rumar para além dos limites dela? Eis um paradoxo constitutivo, temos aqui um mecanismo semiótico de expansão das fronteiras da própria vida, desde ela mesma, é a arte vista como uma modalidade privilegiada de linguagem.

Figura 3: Réplica digital da obra “La Gitane” de Henri Matisse, 1906

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Estas são, salvo engano, questões pertinentes à práxis: cabe ficar na repetição da arte, linguagem, drama, já dados, já postos desde o início? Ou cabe contribuir para que tais arte, linguagem, drama, se convertam ainda em uma outra realidade que os transcenda, ou seja, os negue e reafirme em um outro patamar? Ainda para Vigotski a educação estética busca converter em um retorno para o cotidiano, ela tem isso como meta que tenciona com a realidade atual, efetiva, na qual de início se situam educador e educando, tenciona em direção de uma realidade potencial...

“A beleza deve deixar de ser uma coisa rara e própria das festas para se transformar em uma exigência da vida cotidi-ana, e o esforço criativo deve impregnar cada momento, cada palavra e cada sorriso da criança. Potebnia disse de uma bela forma que, assim como a eletricidade não está apenas onde há tormenta, a poesia também não está apenas onde existem grandes criações artísticas, mas em todos os lugares onde a palavra humana estiver. E essa poesia de ‘cada instante’ é que talvez constitua o objetivo mais importante da educação estética” (Vigotski, 2003, p. 239).

Essa fagulha que está onde toda palavra humana estiver, pode

converter-se em tormenta ou não, para além de uma educação esté-tica uma formação de artistas, mas para que algo como tal educação seja necessário deve-se admitir e não omitir que uma “transformação em uma exigência da vida cotidiana” é ainda literalmente “transfor-mação”, ou seja, implica algo por modificar, algo por converter, algo por realizar, algo que não está dado, não está posto. Isso de a beleza “deixar de ser uma coisa rara” envolverá por um lado uma aprendi-zagem de converter a vida em arte, já que arte desde o início está na vida cotidiana, mas nela não se esgota, converter fagulhas em tor-mentas. Mas também, por outro lado, envolverá uma aprendizagem de reeducar o olhar para enxergar e fruir, sentir e entender, tanto pe-quenas fagulhas como grandes tormentas... Uma educação do olhar que não se esgota na pura e simples proclamação panfletária da ne-cessidade de "ver com outros olhos", pois exige trabalho, formação, apropriação de práticas sociais relativas à nossa própria sensibili-dade, e isso só pode se dar no tempo. Tanto num caso quanto noutro a arte teria algo a acrescentar à vida, e não só a redundar, repetir, reiterar...

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Caberia ainda relembrar, talvez retirar do subtexto e trazer para enunciação explícita, que na concepção vigotskiana de educação es-tética e arte insinua-se uma concepção espinosiana de alegria. A arte demonstra estar posta, nesse caso, como promotora de paixões ale-gres, senão isso, ao menos como promotora da busca de uma relação favorável para o homem no infindável jogo dramático entre as pai-xões alegres e as tristes. Creio que seja o que podemos intuir a partir da afirmação de que: “toda vivência poética age como se acumulasse energia para ações futuras, lhes dá uma nova direção e faz com que o mundo seja visto com outros olhos” (Idem, p. 234). Outra vez a am-pliação da potência, acúmulo de energia, a prospecção, o lançar vistas para o futuro, a reconstituição do olhar, a busca de uma nova visão - como resultado de um trabalho, de um processo criativo em que ima-ginação e realidade estão intimamente vinculadas, como se explica na obra “A imaginação e arte na infância” deste mesmo autor (Vigo-tsky, 1987). Ao mesmo tempo, neste mesmo livro, a concepção de ati-vidade criadora como modo humano de reordenar o real em combi-nações inéditas, permite não tomarmos a arte somente como repeti-ção do que estava dado desde sempre. Dialeticamente, o novo com-porta o velho e este também traz o gérmen daquele, mas o primeiro não se esgota na repetição circular do segundo, num "eterno retorno", perpétua reedição do mesmo, pleonasmo de leis da natureza ou do “destino”.

Além disso, se arte, em grego, podia ser denominada pelo signo “tekhné”– que indica um “saber fazer”, um “como fazer”, do qual porventura teria derivado nossa palavra “técnica”, entre outras. Vi-gotski, em sua “Psicologia da arte”, amplia bastante essa definição estritamente etimológica, denominando a arte como “técnica social do sentimento” (1999b, p. 3). Considera-se, assim, que a arte seja mesmo um “saber fazer” prático, ou seja, que ela demanda o apren-dizado de um ofício, a aquisição de um domínio da técnica, e não só um puro arrebatamento, por um processo criador inerente ao artista, cuja origem se possa pretender estritamente inata, orgânica, quando não mágica ou divina. Ademais, trata-se ainda de uma prática social, tanto na origem, pois é preciso aprendê-la com alguém, quanto na dinâmica de seu funcionamento, posto que a arte, sendo linguagem, envolve sempre, pelo menos: (a) alguém que a enuncia; (b) um signo enunciado; e (c) um interlocutor, um outro, ao qual este signo se des-tina e que, desde o início, estabelece parâmetros para a sua

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composição. De modo que a alteridade, nessa concepção, é vista como imanente à própria definição da arte como tal. Por fim, além de ser técnica social, há uma especificidade quanto àquilo que ela visa a produzir e que reside no fato de que a contradição conteúdo-forma que lhe é própria dirige-se a provocar, evocar, ou mesmo criar, cons-tituir, emoções humanas, nossos sentimentos com relação à própria obra, ao mundo e a nós mesmos. Em complemento a esta definição poderíamos destacar, ainda na visão do pensador bielo-russo, uma ênfase no fato de que "a vivência estética organiza nosso comporta-mento" (Vigotski, 2003, p. 234).

A arte não é assim vista como idêntica a qualquer outra atividade humana, ela tem sua especificidade como aquela atividade social que se volta para a organização do comportamento humano, e mais espe-cificamente no que diz respeito aos nossos sentimentos, na direção da produção de um excedente de visão e de sensibilidade. Entendo que pensar tal especificidade nos proporcione pistas para uma compre-ensão sobre em que poderia vir a contribuir a arte num dado processo de educação estética ou mesmo para um processo “arte- terapêutico” – se o neologismo não for “pleonasmo”. Pistas na direção de uma re-flexão metodológica por ser construída, entendendo que haja o que questionar, na contramão do eufemismo romântico, para o qual a res-posta já está dada na dita redundância: “a loucura em si é arte”. To-mando a questão do método, nos termos clássicos de sua relação com a noção de caminho, notamos que mesmo que este só se faça “ao ca-minhar”, sua produção envolve também uma direção, um dardo de aspiração, uma meta. Dentre os diferentes momentos constitutivos do método, tomemos aqui o da busca de definição de uma meta como uma unidade significativa nuclear – pois talvez uma diferença impor-tante entre uma práxis pautada na contribuição de Vigotski e outra pautada num certo eufemismo romântico que vimos contrapondo, resida mais na definição de fins do que na dos meios como tais.

Karl Krauss disse, em termos poéticos, que “a origem é o alvo”, sugerindo-nos um movimento que se inicia no ato de definir-se onde se deseja chegar, ou que se origina justo naquilo a que se destina. Em termos meta-teóricos, diria novamente o “homem da voz amarela”5:

5 “Homem da voz amarela” é apelido dado a Vigotski por Solomon Shereshevski (1892-1958), mnemonista de grande fluxo sinestésico, paciente de Luria, cujo caso foi detalhada-mente narrado no livro "A mente de um mnemonista: um pequeno livro sobre uma grande memória” (Luria, 2006).

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“O método, isto é, o caminho seguido, se contempla como um meio de cognição: mas o método é determinado em todos os seus pontos pelo objetivo a que conduz” (Vygotski, 1991, p. 357). O método no caso da arte não seria um caminho exclusiva ou prioritariamente da cognição, mas também e, sobretudo, um caminho que conduz à cons-tituição de sentimentos que à cognição se entrelaçam e a ela impulsi-onam. Entretanto, nosso foco está aqui no problema metodológico de um possível “objetivo”, ou “meta”, para um trabalho com arte em saúde mental. Haveria alguma meta, a não ser repetir ou porventura aumentar o que ali já está dado desde sempre? Na visão vigotskiana, tal como a entendo, para o homem de modo genérico, a meta não há de ser nenhum fantasmático “além-do-homem” nietzschiano, nem alguma de suas derivações ideológicas solipsistas mais camufladas, mas antes o próprio homem como um devir social concreto, real e potencial6.

O que nos aproximaria daquilo que Dostoiévski logrou chamar “o homem no homem” e que interpreto como “o que há de humano no homem”, o que está no alvo de nossa própria busca e na raiz mais profunda de nossa existência social. Uma tomada de posição em di-reção ao homem, em direção a nós mesmos, também é explicitada por Marx na sua “Crítica à filosofia do direito de Hegel”, onde diz que

“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que o poder material tem que ser derrocado pelo poder material, mas também a teoria se transforma em poder material logo que se apodera das massas. A teoria é capaz de se apoderar das massas quando argumenta ad hominem, e ar-gumenta ad hominem quando se torna radical: ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz, para o homem, é o pró-prio homem” (apud Chasin, 1999, p. 9).

Talvez possamos parafraseá-lo dizendo que a linguagem da arte

não pode por si só converter a hegemonia das paixões tristes em he-gemonia das paixões alegres. Que só no próprio jogo de forças entre elas, como função das relações sociais que as constituem, elas pode-rão configurar correlações mais favoráveis e saudáveis. Contudo, se a arte puder inscrever-se ad hominem (“relativa ao homem”, “junto ao

6 Para uma discussão detalhada dos conceitos de "desenvolvimento real" e "desenvolvimento potencial" cuja distância define uma "zona de desenvolvimento proximal", ver Vygotsky (1989).

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homem”, “adstrita ao homem”), indo à raiz da condição humana, que atingida o projeta para além de si como ser cuja definição não se res-tringe ao que está sob sua própria pele, talvez haja ainda um papel para a criação artística nas práticas terapêuticas em saúde mental - que não seja tão somente o de pleonasmo. Não basta a crítica para mudar as condições materiais, como não basta a arte para fazer com que o homem vá além de seus limites e construa modos inéditos de sentir e entender o mundo. É preciso que a crítica se aproprie das massas, é preciso que a arte possa ser apropriada concretamente pelo homem que a frui e/ou produz, em coexistência com outras pessoas com as quais se compõe mediante a linguagem dela, em sua acepção radical. A rigor, a práxis como tal não é movimento só da ordem crí-tico-argumentativa, stricto sensu.

Aqui, a reflexão sobre ela só pode se colocar como relativa às im-plicações semânticas de certa cosmovisão romântica para uma dada prática social. Deste modo, lançamos mão de enunciados que se con-figuram somente como esboço da composição de uma meta que ori-enta e constitui um núcleo metodológico possível, sendo o próprio método um caminho a ser trilhado, cujo curso só realmente se esta-belece no próprio desenvolvimento da ação e, por vezes, só pode ser descrito em detalhe retrospectivamente. Esta meta, tal como já foi dito, configura-se em termos éticos e políticos como a edificação pro-cessual e permanente do "homem no homem", mediante uma ação que busque constantemente um predomínio das paixões alegres so-bre as tristes em suas relações dialéticas. Uma hegemonia, mesmo que tensa, do bem estar sobre a dor e/ou sofrimento psíquicos, e não apenas uma relativização do sofrimento como a expressão de mais uma linguagem estética entre outras, além ou aquém de qualquer va-loração ética.

O que implica, na raiz, a ampliação de nossa capacidade de asso-ciarmo-nos e compormos com nossos semelhantes, com o mundo e, portanto, conosco - não somente um livre fluxo de todo e qualquer delírio, já tomado aqui como metonímia de “loucura”, como parece reivindicar Artaud. Parâmetros esses que demandam a elaboração social de uma terapêutica que vise à promoção de um acréscimo, de uma ampliação da potência de vida, da capacidade do homem de compor com o mundo, com os outros e consigo - por parte de pessoas que, em algum momento, põem-se/são postas sob o signo da loucura - palavra tão imprecisa, passível de ser dita tanto de modo ufanista e

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relativista quanto coercitivo e dogmático. Em síntese, aqui me coube apenas destacar princípios metodológicos potencialmente organiza-dores para tal práxis, como: um conceito de drama como metáfora da loucura e da própria condição humana; e um conceito de arte como técnica social dos sentimentos que se volta à criação de um excedente de visão e de sensibilidade. Desse modo, trilhando por veredas de sentido, no próprio passo que as abre, este texto, como diz a canção popular, “termina na hora de recomeçar”.

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6 Referências “proximal” em língua portuguesa

Aristóteles (1979a). Ética a Nicômaco. In: ______. Metafísica: livro 1 e li-

vro 2; Ética a Nicômaco; Poética (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural.

Aristóteles (1979b) Poética. In: ______. Metafísica: livro 1 e livro 2; Ética a Nicômaco; Poética (Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural.

Artaud, A. (1979) Carta os diretores de asilos de loucos. In: ______. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Villa Martha.

Bakhtin, M. М. (1992) [Voloshinov, V. N.] Marxismo е filosofia da lingua-gem. São Paulo: Hucitec.

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