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2012 agosto/setembro ANO VII Continua na página 6 n° 47 O GIGANTE DA POLÔNIA Fontes de Alencar J oaquim Nabuco – Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araujo – fez-se figura estelante da vida pública na- cional como político, orador e memorá- vel estilista; e ainda publicou versos. Graça Aranha em Machado de Assis e Joaquim Nabuco – comentários e notas à correspondência entre estes dous escritores, de 1923, editado por Mon- teiro Lobato & Cia (Brasiliana Digital), referindo–se ao segundo disse: Continua na página 7 Continua na página 2 Continua na página 12 TOBIAS BARRETO NO MUSEU DO ESCRITOR Tobias Barreto PEDRO NAVA E CONTEMPORÂNEOS MINEIROS Jarbas Maranhão (*) Considero hábito sau- dável – o de homenagear bra- sileiros que hajam se notabi- lizado ou, na atualidade, se distingam pelas iniciativas e realizações. Algumas vezes, é o aplauso, mesmo a cidadãos vivos, desde que tenham me- recimentos e se faça oportuno. O louvor aí, num teste- munho de consideração, tem o propósito de um estímulo. Em outras ocasiões, é o tributo a eminentes personalidades desaparecidas. O apreço, nesse caso, visa a fazer justiça e a fixar exemplos. Essas palavras objetivam rememorar, em ligeiros traços embora, a vida e a obra do médico e escritor Pedro Nava. Pedro Nava Em noite de estrepitosa confraternização etílica entre as mesas do Antonio›s, no Leblon dos anos de 1970, alguém se apro- xima do ouvido de um dos mais exaltados convivas e cochicha: Otto, você está falando alto demais, se houver informan- te da repressão por aí, você se ferra. Num rompante que misturou sofisticado bom humor e uma calculada dose (sem trocadilho) de ousadia, Otto Lara Resende subiu na cadeira e proclamou, alto e bom som: Digo e repito para quem quiser ouvir: a ditadu- ra militar é o maior atraso do Brasil, tem de acabar e vai cair. Se algum dedo-duro estiver presente, pode anotar: meu nome é Fernando Sabino! OTTO AOS NOVENTA Fabio de Sousa Coutinho Otto Lara Resende Não era exatamente a manhã que eu escolheria. Na verdade, eu a preferiria fria, com sol brando, vento soprando de leve nas árvores da rua; meio cinzenta e com jeito de chuva. Mas o que tínhamos era a manhã que Deus mandou: quente, sol bravo, verão, dezembro.” DANILO, PRÍNCIPE DA CRÔNICA Edmílson Caminha VOANDO COM O VELHO BRAGA M. Paulo Nunes F oi com muita tranquilidade, que realizamos recentemente um voo direto de S. Paulo a Teresina, após mais uma visita das que perio- dicamente fazemos àquela cidade para realizar exames de saúde, com a mais absoluta segurança. O Museu do Escritor, da Associação Nacio- nal de Escritores, montou uma exposição sobre Tobias Barreto, com abertura no dia 26 de junho (data do seu falecimento). Cons- tam da exposição diversos livros do escritor, poeta e filósofo sergipano, além de fotos da Faculdade de Direito do Recife e outras instituições de que ele participou. A sessão de abertura, contou com pronuncia- mentos dos escritores Napoleão Valadares, Fontes de Alencar e João Carlos Taveira. Continua na página 4

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Page 1: TOBIAS BARRETO NO muSEu O GIGANTE DO EScRITOR O J...Em noite de estrepitosa confraternização etílica entre as mesas do Antonio›s, no Leblon dos anos de 1970, alguém se apro-xima

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2012agosto/setembro

ANO VII

Continua na página 6

n° 47

O GIGANTE DA POLÔNIA

Fontes de Alencar

Joaquim Nabuco – Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araujo – fez-se figura estelante da vida pública na-

cional como político, orador e memorá-vel estilista; e ainda publicou versos.

Graça Aranha em Machado de Assis e Joaquim Nabuco – comentários e notas à correspondência entre estes dous escritores, de 1923, editado por Mon-teiro Lobato & Cia (Brasiliana Digital), referindo–se ao segundo disse:

Continua na página 7

Continua na página 2

Continua na página 12

TOBIAS BARRETO NO muSEu DO EScRITOR

Tobias Barreto

PEDRO NAVA E cONTEmPORÂNEOS

mINEIROSJarbas Maranhão (*)

Considero hábito sau-dável – o de homenagear bra-sileiros que hajam se notabi-lizado ou, na atualidade, se distingam pelas iniciativas e realizações.

Algumas vezes, é o aplauso, mesmo a cidadãos vivos, desde que tenham me-recimentos e se faça oportuno.

O louvor aí, num teste-munho de consideração, tem o propósito de um estímulo.

Em outras ocasiões, é o tributo a eminentes personalidades desaparecidas.

O apreço, nesse caso, visa a fazer justiça e a fixar exemplos.Essas palavras objetivam rememorar, em ligeiros traços embora, a

vida e a obra do médico e escritor Pedro Nava.

Pedro Nava

Em noite de estrepitosa confraternização etílica entre as mesas do Antonio›s, no Leblon dos anos de 1970, alguém se apro-xima do ouvido de um dos mais exaltados convivas e cochicha: Otto, você está falando alto demais, se houver informan-te da repressão por aí, você se ferra.

Num rompante que misturou sofisticado bom humor e uma calculada dose (sem trocadilho) de ousadia, Otto Lara Resende subiu na cadeira e proclamou, alto e bom som: Digo e repito para quem quiser ouvir: a ditadu-ra militar é o maior atraso do Brasil, tem de acabar e vai cair. Se algum dedo-duro estiver presente, pode anotar: meu nome é Fernando Sabino!

OTTO AOS NOVENTAFabio de Sousa Coutinho

Otto Lara Resende

“Não era exatamente a manhã que eu escolheria. Na verdade, eu a preferiria fria, com sol brando, vento soprando de leve nas árvores da rua; meio cinzenta e com jeito de chuva. Mas o que tínhamos era

a manhã que Deus mandou: quente, sol bravo, verão, dezembro.”

DANILO, PRÍNcIPE DA cRÔNIcAEdmílson Caminha

VOANDO cOm O VELhO BRAGAM. Paulo Nunes

Foi com muita tranquilidade, que realizamos recentemente um voo direto de S. Paulo a Teresina, após mais uma visita das que perio-dicamente fazemos àquela cidade para realizar exames de saúde,

com a mais absoluta segurança.

O Museu do Escritor, da Associação Nacio-nal de Escritores, montou uma exposição sobre Tobias Barreto, com abertura no

dia 26 de junho (data do seu falecimento). Cons-tam da exposição diversos livros do escritor, poeta e filósofo sergipano, além de fotos da Faculdade de Direito do Recife e outras instituições de que ele participou.

A sessão de abertura, contou com pronuncia-mentos dos escritores Napoleão Valadares, Fontes de Alencar e João Carlos Taveira.

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2 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

Jornal da ANE no 47 – agosto / setembro de 2012Associação Nacional de Escritores

SEPS EQS 707/907 Bloco F – Edifício Escritor Almeida Fischer CEP 70390-078 – Brasília – DF Telefone: (61) 3244-3576 – Fax: 3242-3642 E-mail: [email protected]

EditorAfonso Ligório Pires de Carvalho

(Reg. FENAJ nº 286)

RevisãoJosé Jeronymo Rivera

Conselho EditorialAnderson Braga Horta

Danilo Gomes

Programação VisualThiago Sarandy

Toda colaboração não solicitada será submetida ao Conselho.

24a DIRETORIA2011-2013Presidente: José Peixoto Júnior1° Vice-Presidente: José Carlos Brandi Aleixo2° Vice-Presidente: Fontes de Alencar Secretário-Geral: Fabio de Sousa Coutinho1° Secretário: Rosângela Vieira Rocha2° Secretário: Kori Bolivia

1° Tesoureiro: Luiz Carlos de Oliveira Cerqueira2° Tesoureiro: José Maria LeitãoDiretor de Biblioteca: Terezy GodoiDiretor de Cursos: Paulo da Mata-Machado JúniorDiretor de Divulgação: Jacinto GuerraDiretor de Edições: Afonso Ligório Conselho Administrativo e Fiscal: Alan Viggiano, Anderson Braga Horta, Danilo Gomes, José Jeronymo Rivera, José Santiago Naud, Napoleão Valadares e Romeu Jobim.

Composição e impressão: Centro Editorial e Multimídia de Brasília.SIG. Qd. 8 - Lote 2356 - CEP: 70610-480 / Brasília - DF - (61) 3344-3738

www.thesaurus.com.br

DANILO, PRÍNcIPE DA cRÔNIcAEdmílson Caminha

Sonetodo Mês

continuação da página 1

SONHOS DE AMOR Amadeu Amaral

Essa graça radiosa, esse donaire lento

– brando raio de sol a redoirar um lírio –

sinto-os ao pé de mim, de momento a momento,

como a velha visão seráfica do Empírio.

Tu passaste por mim como um deslumbramento

que passa; e eu mergulhei desde então num delírio,

a cismar e a tremer sob o pressentimento

de uma nova paixão e de um novo martírio.

Tenho na alma, depois que te vi e me viste,

uma surdina, um murmúrio, uma alvorada,

qualquer cousa de bom, qualquer cousa de triste;

qualquer cousa que chega, em ânsias inda incertas,

como ua ave que acorda, e, inda mal acordada,

move, numa tonteira, as asas entreabertas...

(Seleção de Napoleão Valadares)

Quem é o autor desse belo início de crônica? Rubem Braga? Artur da Távola? Nenhum dos dois, mas ambos, certamente, gostariam de assinar “O primeiro contato com o novo e quase varonil vizi-nho”, página primorosa de Danilo Gomes, que em 2012 chega à plenitude dos setent’anos, consagrado pelo reconhecimento da crítica e pela admiração dos leitores.

O “vizinho” a que se refere é um pequeno cão, filhote de dálmata, que o cronista vê do outro lado da rua, ao sair de carro para mais um dia de trabalho. E põe-se a divagar: lembra-se do filme “101 Dálma-tas”, de Walt Disney; do husky siberiano da filha, dos dois vira-latas que moram nas redondezas, do pastor alemão que bem poderia ser o Rin-Tin-Tin, do ve-lho seriado... Ou seja, as ideias flutuam, dançam no ar, como folhas ao vento, e são assim as boas crôni-cas, despojadas na forma, leves no conteúdo, feitas apenas para iluminar a vida, alegrar o cotidiano e espairecer o leitor. Manuel Bandeira, ele próprio um dos grandes no gênero, dizia que Rubem Braga era cronista como poucos, principalmente quando estava sem assunto...

À despretensão e ao frescor do texto de Danilo Gomes, que o inscre-vem na mais relevante linhagem da crô-nica brasileira, junte-se o interesse his-tórico com que se diferencia da maioria dos colegas, não fosse ele natural de Mariana, a primeira cidade de Minas, cheia de tradições e de memória, onde o passado é de tal maneira vivo que se faz um eterno presente. Não por acaso, na antologia Crônicas Mineiras, lançada pela Editora Ática em 1984, assina “O tesouro de Peter Lund”, sobre o arque-ólogo dinamarquês de Lagoa Santa, e “Um abril imperial”, acerca da viagem de Dom Pedro II pela província das Ge-rais, em 1881. A vocação para a história levou-o a escrever Uma rua chama-da Ouvidor (1980), mote da Escola de Samba Salgueiro, no carnaval de 1991, e Antigos cafés do Rio de Janeiro, pu-blicado em 1989.

É tamanho o gosto pelos tempos de outrora que chega a revelar-se no estilo, por um suave toque de nobreza que lhe confere apuro e elegância. Ao receber o convite para a Bienal Rubem Braga, em Cachoeiro do Itapemirim, proclama: “Vou engraxar as botinas e escovar o chapéu de cerimônia, além de mandar para a lavanderia a fatiota do-mingueira, mas sem gravata, para ficar

mais à vontade. Vou correr mundo, senhores, vou bater pernas como fazia outrora o capixaba Quinca Cigano. Quero ir de trem de ferro, descer na estação e pegar cavalo de boa andadura, para vencer algu-mas léguas até o destino final da andança.”

Somem-se, a esses méritos literários, a gene-rosidade humana e a grandeza espiritual com que Danilo Gomes nos seduz a todos como um nobre de Florença, um sábio renascentista em pleno século XXI, daqueles que, pela vida que vivem e pela obra que deixam, fazem a vida melhor e a vida mais bela. Bem houveram os pais, Seu Daniel e Dona Maria das Dores, em batizá-lo com nome de aristocrata, como se consagrou o lendário Príncipe Danilo, que marcou época no Vasco da Gama e na seleção bra-sileira, tão querido que chegou a nomear um corte de cabelo. Por gosto dos deuses, o cronista escreve como jogava o meio-campo: com refinamento e es-mero, sofisticação e requinte. Coisa de mestres, que aos mortais comuns só resta aplaudir, na vibração dos estádios ou no silêncio da leitura.

Ave, Danilo, Príncipe da Crônica! Os pe-quenos oficiais do mesmo ofício respeitosamente te saúdam!

Danilo Gomes

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3Associação Nacional de EscritoresJornal da ANEagosto/setembro – 2012

um ROmANcE EXTRAORDINÁRIOJoão Carlos Taveira

Quando chegaram às minhas mãos os origi-nais do romance de costumes de Josefina Duailibi Mahfuz, nem pude acreditar no

que estava vendo, no que estava lendo. Esse li-vro levou mais de vinte anos para ser escrito e, mesmo assim, não teve a oportunidade de ser publicado. E certamente não mais o terá, pois sua autora faleceu no interior de Minas há mais de sete anos e a família nem quer saber do as-sunto. Pelo menos por enquanto.

O país do faz de conta, escrito na tercei-ra pessoa, numa linguagem tensa e avassaladora, narra a história de uma mulher que, impossibili-tada de ter filhos, resolve adotar crianças pobres da periferia de uma cidade média, situada num país imaginário da América do Sul. Na verdade, são muitas histórias paralelas que se cruzam e se distanciam no tempo e no espaço para, ao fim e ao cabo da narrativa, se juntarem num só ema-ranhado de situações plausíveis e, não raro, bem próximas da realidade: o desfecho inexorável e surpreendente ultrapassa qualquer tentativa de compreensão. Embora apresente personagens e cenários deliberadamente atuais, trata-se de um livro de difícil classificação e quase impossível de ser analisado. Mas tentemos.

Aurora Solrac, professora de piano e ati-vista política, chegou a casar-se pelo menos três vezes, fora duas tentativas frustradas de relação à la Sartre e Beauvoir — o que lhe causou pro-blemas com a polícia e, consequentemente, com a justiça de sua cidade. Pois bem. Aos quarenta e sete anos, resolve pendurar as chuteiras amorosas e adotar três crianças de uma favela próxima. A decisão, entretanto, não foi tomada antes de con-sultar seus velhos pais, que, embora apreensivos e descrentes, concordaram com o ímpeto da filha única. Documentação reunida e aprovada pelas autoridades competentes, dentro de três meses os pequenos puderam se transferir para a casa da nova mãe. Em resumo: começam aí dramas e conflitos, em cenário surreal e fantasmagórico, narrados com frieza e precisão sintática. Um ver-dadeiro soco no estômago.

A autora, utilizando-se da tessitura de uma aranha, faz o tempo passar devagar, contando ou-tras histórias paralelas e pintando novos quadros, em que transporta o leitor para situações sempre inusitadas. O país do faz de conta não lembra Cem anos de solidão, mas se aproxima do mis-terioso universo de García Márquez pelo que traz de informações e representações simbólicas da condição humana, ao descrever um painel psico-lógico digno dos melhores prosadores do século XX. O livro trata de guerras conjugais, litígio por posse de terra, desavença familiar por espólio, corrupção política, homossexualismo e, de ma-neira soberba e cristalina, luta pelo poder — em todos os seus desdobramentos e especificidades. E mergulha também nas relações pessoais dos personagens, desnudando um quadro perturbador de tragédias que deságuam em crimes hediondos e todo tipo imaginável de perseguição, em que a inveja é sempre o fio condutor de todos os percal-ços e atribulações.

Dividido em seis partes e 66 capítulos, O país do faz de conta consegue a proeza da poesia em sua prosa tensa, contida e ritmada, e o milagre do permanente interesse pela leitura, a cada frase, a cada parágrafo, a cada capítulo. As situações e tipos descritos apresentam consistência e verossi-

milhança. São seres marcados por distúrbio psí-quico, por desvio de conduta e por irremediável fracasso social. E todos de carne e osso. Poucos volumes romanescos de mais de 800 páginas con-seguem efeito literário como esse. Aliás, um feito para poucos narradores contemporâneos. Salvo raríssimas exceções.

Há no capítulo 13, da segunda parte do ro-mance, descrições pormenorizadas de questões marcadas pelo sentimento da inveja e do despei-to. (E aqui o narrador, malabaristicamente, des-trincha os dois substantivos com a lente da clare-za e os conhecimentos da filosofia.) Há no livro referência também ao escritor ítalo-argentino José Ingenieros sobre a mediocridade sistêmica a pairar sobre a humanidade, que vegeta sem ne-nhuma possibilidade de salvação. O homem é, antes de tudo, um animal, o mesmo animal de Ne-anderthal, embora hoje use computador, trafegue em automóveis possantes e voe em aviões a jato. Segundo análise feita a partir do discurso livre in-direto da narrativa josefiniana, poucos, pouquís-simos homens — aqui tratados de “lúcidos”, “lu-minares”, “visionários” — conseguem, com seu trabalho, sua fé ou sua arte, transformar o curso da história, o fluxo da vida e a face do mundo, revolucionando conceitos, práticas e mesmo cul-turas milenares, para o bem da maioria de seres que caminham sem nada perceber, tamanha a ce-gueira coletiva que os condiciona e aliena.

O narrador não deixa, entretanto, de apon-tar, nas entrelinhas, aqueles outros seres que, meio vivos, meio mortos, fingem ser o que de fato não são e que, certamente, jamais serão: homens que não criam nada e nada fazem, a não ser cor-romper, matar, roubar, futricar e viver na sombra de alguns luminares, só por ter-lhes um dia en-graxado as botas, esfregado as costas, ou servido de fantoches em suas caminhadas extraconjugais, nalgum momento de suas vidas. O clímax desse episódio retorna noutra história, lá no penúltimo capítulo, em um conflito autoral pela disputa dos originais de um livro secreto, cujo prefácio fora grosseiramente arrancado, não se sabe como, quando e por quem.

A falsidade e o ressentimento tiveram tra-tamento quase cirúrgico em três capítulos do li-vro (17, 36 e 64), justamente quando a autora se detém no complexo de inferioridade. Dessa ano-malia estritamente humana, vão surgindo, aqui e acolá, infelizmente, nuanças de uma convicção cada vez mais cristalizada. Homens e mulheres protagonizam cenas ridículas repletas de signifi-cados supraliterários. Em contraposição a um con-junto de situações ficcionais de cunho fantástico, o quadro exposto quase toca o real, quando leva o leitor a mergulhar numa análise das similaridades de suas próprias vivências. Pululam nestas pági-nas personagens que fingem dar aquilo que, na verdade, estão a subtrair de alguém supostamente necessitado de alguma ajuda ou cuidado — não se pode admitir nunca a superioridade intelectual de quem se revela contrário aos apelos da etnia e ao determinismo genético. Naturalmente, as com-parações são inevitáveis.

As referências que tratam da inveja, carac-terizadas nos capítulos 13 e 52, trazem-nos uma constatação terrível: a inveja — ao lado do des-peito — é um sentimento de inferioridade quase infantil. O grande perigo reinante, embora subter-râneo, é o despeito. Na inveja, deseja-se um ob-

jeto, um cargo, uma posição e vive-se, de fato, a tormenta de não tê-los; no despeito, mais avassa-lador e cruel, além de desejar-se o objeto, o cargo, a posição alheios, busca-se a eliminação do outro, social e fisicamente, numa tentativa desesperada de tomar-lhe o lugar cobiçado e colocar/vestir sua máscara na face despersonalizada pelo distúrbio psíquico e má formação de caráter. Retrato bem característico de nossos dias.

Josefina Duailibi Mahfuz, aqui e ali, des-creve uma paisagem humana hostil sendo devas-tada pela fraqueza e apatia de uns e pela ganân-cia e corrupção de outros. Devido à omissão do Estado e de carcomidas leis, suas criaturas não conseguem vislumbrar, em curto prazo, uma so-lução para o impasse de suas vidas mesquinhas e sem sentido. Por isso, os personagens do livro, espectrais, em sua caminhada para o aniquila-mento, vão se diluindo em autômatos, mortos vivos ou sonâmbulos, ao deixarem na cidade um rastro de desolação e uma aparência de abando-no. Não se pode dizer, no entanto, que seja uma cidade fantasma, após a avalanche de desgraças que se abateu sobre a sua população. Os recur-sos linguísticos utilizados pela escritora, por diversos, vão a pouco e pouco enriquecendo a trama com sutilezas verbais as mais insólitas e surpreendentes. Um alívio para as nossas afli-ções silenciosas.

Nos capítulos 27 e 43 há referências explí-citas também sobre o ciúme. Em cenas meticu-losas, plasmadas com o esmero artesanal de um escultor impressionista, surge um emaranhado de intrigas e dissimulações. Um exemplo será bastante. No último diálogo entre enteado e pa-drasto, há frases lapidares sobre esse sentimen-to: — “Deixa-me em paz, Orestes. Não vês que estou em outra? – argumenta o jovem Fernando, tentando se desvencilhar do abraço do padrasto”. — “Se não me queres mais, não devias me enga-nar assim tão abertamente. Nem por isso deixo de te amar, mesmo sabendo da existência de Sandro. Mas saiba de uma coisa: se não ficares comigo, não ficarás com mais ninguém – esbraveja com fúria o esposo de Juliana.” E, após dizer isso, saca do revólver e, cego de cólera, atira diversas vezes contra o rapaz, matando-o friamente. Esse gesto faz pensar que o ciúme de um homem por outro homem é mais compulsivo e neurótico do que o ciúme de um homem por uma mulher, ou o ciúme de uma mulher por um homem ou por outra mulher. E isso, não só na ficção de Josefi-na Duailibi Mahfuz, como também na vida real, tem gerado desavenças e desencontros na rotina de muita gente, com resultados assustadores e consequências desastrosas. Os jornais têm estam-pado manchetes dessa natureza, cotidianamente, sem nenhum pudor.

Ao fim do sexagésimo sexto e último capí-tulo, lá pela página 880 desse livro apocalíptico, as trinta e três histórias, inicialmente díspares e independentes, se fecham uniformemente como por encanto: Aurora Solrac, rediviva, contempla o sonho de ser mãe com uma ponta de decepção, e se vê desamparada frente ao mistério da vida, totalmente entregue à impotência e à desespe-rança. Mas, do seu desconforto existencial, ain-da encontra força para proferir uma frase extra-ída e adaptada do relatório final de Albert Eins-tein sobre o famoso “Manhattan Project”, que há de ficar martelando por muito e muito tempo na cabeça dos leitores...

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4 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

Cultura em Debate

GILBERTO FREYRE E AGRIPINO GRIECO

No livro Tempos Mortos e Outros tempos - trecho de um

diário de adolescência e primeira mocidade, Gilberto

Freyre registra sua impressão sobre o crítico literário

Agripino Grieco:

“Apresentam-me a Agripino Grieco. Desaponta-me. Tenho

por esse escritor uma enorme admiração. Tem ele um poder verbal

a que o sentido plástico da arte de escrever dá com o desassombro

de crítico extraordinário e personalíssimo relevo. Tem sensibilidade.

Inteligência crítica. Cultura literária.

Mas sua pessoa, confesso-te com franqueza, amigo diário, que

foi para mim um desapontamento. É um homem com qualquer coi-

sa de permanentemente espirituoso e às vezes até carnavalesco que

me irrita como me desaponta a pessoa de outro grande aqui da Cor-

te… refiro-me a J. de F. Este - líder católico - …

…Mesmo assim, desapontando-me como pessoas, cada um

por um motivo - esse A. G. e esse J. de F. continuam para mim duas

das maiores figuras das modernas letras brasileiras. Das letras consi-

deradas no seu sentido mais amplo, pois ambos são críticos sociais e

não apenas das belas letras.”

GONÇALVES DIAS

O dia 3 de novembro de 1863 foi sacudido por grande movi-

mentação de gente no porto de São Luís do Maranhão. Havia nau-

fragado nas costas maranhenses o navio francês Ville de Boulogne.

Salvos os demais passageiros, a única vítima fatal foi o poeta Gonçal-

ves Dias. A notícia, que só chegou ao anoitecer em São Luís comoveu

a cidade. O próprio comandante da embarcação, diante do clamor

do povo nas ruas compareceu à polícia para esclarecer que “o Dr.

Gonçalves Dias fora encontrado morto no seu camarote após o cho-

que do barco nos escolhos...”

O Diário de Pernambuco noticiou a morte do poeta mara-

nhense.

VOANDO cOm O VELhO BRAGA

M. Paulo Nunes

continuação da página 1

Faltou-nos, entretanto, uma coisa importante para manter o bom humor e o equilíbrio na viagem, ou seja, comida a bordo. Não, é claro, com a fartura de antigamente, quando viajar de avião era uma festa ou uma farra, e hoje constitui “o mais triste dos prazeres”, como diria a fabulosa Madame de Stäel, quando viajava para o exílio, para cumprir um edito de Napoleão Bonaparte, de quem era desafeta.

Mas, embora faminto, tive, no meu caso, outra compensação, a companhia do velho Braga, na certidão de nascimento, Rubem Braga, a que os seus leitores poderiam acrescentar o cognome de nosso cronista-mor. Alguns o consideram do mesmo nível de Machado de Assis, o que constitui um exagero, dada a universalidade do “bruxo do Cosme Velho.” Mas esta é outra história.

O que posso acrescentar é que os dois diferem fundamentalmente na temática. Ambos cronistas da cidade e, no caso, da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, o autor de Dom Casmurro é o cronista, e também contista e romancista, da classe média urbana, enquanto que o velho Braga, seguindo a lição do Modernismo, que ora completa 90 anos, introduziu o povo na criação literária, como ocorreria com os demais representantes dessa corrente em nossas letras, a exemplo do romance de 30 ou de documentação sociológica da vida brasileira, de que destacaríamos, “a vol d’oiseau”, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.

O livro de que me utilizei para este passeio ou por esta volta ao passado, em companhia do velho Braga, foi 200 Crônicas Escolhidas (Seleção Saraiva – Edição Best – Rio de Janeiro, 2011). Aí são recolhidas as melhores crônicas de todos os seus livros, em ordem cronológica de publicação, quais sejam: O Conde e o Passarinho, Morro do Isolamento, Com a FEB na Itália, Um Pé de Milho, O Homem Rouco, A Borboleta Amarela, A Cidade e a Roça, Ai de Ti, Copacabana!, A Traição das Elegantes.

Não pratiquemos uma desatenção com os demais oficiantes do mesmo credo, como Joel Silveira, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e outros monstros sagrados. Mas, depois de João do Rio, pseudônimo literário de Paulo Barreto, o cronista-mor da “belle époque”, autor daquela admirável farsa vicentina O Homem da Cabeça de Papelão, ninguém, como o velho Braga, marcou tão fundamente a sua época. Façamos assim o mesmo voo.

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5Associação Nacional de EscritoresJornal da ANEagosto/setembro – 2012

O SuRPREEENDENTE “PETER PORfÍRIO”DE ALAOR BARBOSA

Jacinto Guerra

Nos últimos dias, tive a oportunidade de ler um romance que atraiu minha atenção, página por página, interrompendo a leitura

somente quando não era possível continuar, em razão de outras atividades também interessantes e importantes.

Esse livro foi um dos finalistas do primeiro Prêmio Leya, honraria literária das mais importantes da Europa. Trata-se do romance Eu, Peter Porfírio, o Maioral, de Alaor Barbosa, escritor brasileiro que divide o seu tempo entre Goiânia e Brasília. Editado em Portugal pela Dom Quixote, editora do Grupo Leya, e lançado em Lisboa, em Coimbra e no Porto, Peter Porfírio já está a caminho das livrarias do Brasil e de outros países.

Natural de Morrinhos, no Estado de Goiás, com raízes familiares em Minas Gerais e São Paulo, Alaor Barbosa tem ricas experiências de vida e de trabalho, também, no Rio de Janeiro e em Brasília. Suas origens e experiências diversas, aliadas ao seu gênio literário, deram-lhe as condições de escrever um romance tão interessante, rico e divertido como esse que encantou os editores europeus, tanto que mereceu até um prefácio do angolano Pepetela, um dos grandes escritores da Língua Portuguesa.

O personagem principal é Peter Porfírio, fazendeiro do interior de Goiás, homem do sertão, ilustrado com algumas leituras e conhecimentos num ginásio do Prata, pequena cidade do Triângulo Mineiro. Mas é sujeito dotado de inteligência e sagacidade que o fizeram capaz de vencer dificuldades enormes e ganhar muito dinheiro.

O cenário de sua história é o universo do interior de Goiás, com a sua capital, Goiânia; a grande São Paulo; cidades do interior paulista; uma região do Mato Grosso; a maravilhosa cidade

do Rio de Janeiro – e Brasília, nos primeiros tempos da nova capital brasileira.

Pois bem, Peter Porfírio – sujeito muito bom de negócios – ganhou tanto dinheiro engordando e vendendo bois, que acabou dono de grandes fazendas – e até de um avião para administrá-las com mais conforto e facilidade.

Pepetela diz que, nesse livro, o escritor recupera “uma linha seguida por alguns grandes autores brasileiros”, dando a palavra a um “coronel”, que “acredita ser bem intencionado” – e tem tudo para divertir” o leitor, “ao mesmo tempo que dá preciosas indicações sobre os negócios e a vida na época escura da ditadura militar”brasileira – período que Alaor Barbosa viveu intensamente em sua juventude no Rio de Janeiro e no interior de Goiás.

Tendo enriquecido como poucos de sua geração, Peter Porfírio decide ampliar seus negócios com um lance de muita ousadia: comprou um pequeno banco em Goiânia, um “tamborete”, como ele próprio definiu.

Apesar de sua cultura limitada, o fazendeiro Peter tornou-se um homem viajado, até com um perfil de executivo moderno, se bem que meio caricato. Foi até aos Estados Unidos e não há de ver que aprendeu muita coisa por lá.

Nesse romance originalíssimo, o escritor viaja com muita segurança pelo que há de melhor no folclore brasileiro, na cultura universal, especialmente de nossa Língua Portuguesa, e na linguagem oral do nosso povo, que ele tão bem conhece.

Em síntese, esse Eu, Peter Porfírio, o Maioral é um livro escrito para o prazer e a cultura do leitor brasileiro, europeu, latino-americano – ou de qualquer parte do mundo em

que haja algum interesse pelo Brasil, sua história, seu povo, suas tradições.

Quanto ao Peter Porfírio, com suas qualidades e seus defeitos, é um personagem inesquecível, que não sairá jamais da memória do leitor. Ficará para sempre lembrado como uma grande figura dos livros editados em nosso mundo da Língua Portuguesa, personagem digno da literatura de um Fernando Sabino, um Guimarães Rosa, um Eça de Queiroz, um Machado de Assis.

DE GREGóRIO A DRummOND, (SONETOS), DE NAPOLEãO VALADARES

Alan Viggiano

Volta e meia, Napoleão Valadares brinda a literatura com nova pesquisa séria. Desta feita, temos em mãos seu livro de sonetos De

Gregório a Drummond, publicado em 1999 através da André Quicé, editoração eletrônica VGArte, impressão da Gráfica e Editora Ideal.

O livro é inicialmente dedicado a Anderson Braga Horta e contém os melhores sonetos brasileiros dos poetas que vão de Gregório de Matos a Carlos Drummond de Andrade, segundo o critério de seleção esclarecidamente subjetiva. “Mas todos o são” – opina Valadares – “Não posso dizer que reuni os cem melhores, mas sonetos que me parecem de primeira linha.”

Antes de incluir cada soneto, Valadares faz um relato resumido, mas completo, da vida do autor. O livro começa com o mais emocionante soneto da língua portuguesa: “A Jesus Cristo Nosso Senhor”, de Gregório de Matos. Nele, o Boca do Inferno abandona a sátira e se entrega à religião, pedindo perdão de seus pecados, que são inumeráveis. Mas o poeta o faz com tanta veemência e lógica, que (alguém já disse) “coloca Deus contra a parede”, não deixando ao Filho outra alternativa que não a de perdoá-lo. Vejamos:

A Jesus Cristo, Nosso Senhor

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado, Da vossa alta clemência me despido;Porque, quanto mais tenho delinquido,Vos tenho a perdoar mais empenhado.Se basta a vos irar tanto pecado,A abrandar-vos sobeja um só gemido:Que a mesma culpa, que vos há ofendido,Vos tem para o perdão lisonjeado.Se uma ovelha perdida e já cobradaGlória tal e prazer tão repentinoVos deu, como afirmais na sacra história,Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada.Cobrai-a, e não queirais, pastor divino,Perder na vossa ovelha a vossa glória.

A representação gráfica na capa corresponde à do soneto de Gregório de Matos, um requinte especial que Napoleão usou pensando que ninguém ia descobrir. Mas nós descobrimos.

O livro de cem sonetos organizado e publicado por Napoleão Valadares se encerra com um de Carlos Drummond de Andrade: “O quarto em desordem”. Uma questão de limitação de época.  Eu, porém, prefiro transcrever um dos meus preferidos: “Visita à casa paterna” de Luís Guimarães Júnior (pág. 51):

Visita à casa paternaA minha irmã Isabel

Como a ave que volta ao ninho antigo,Depois de um longo e tenebroso inverno,Eu quis também rever o lar paterno,O meu primeiro e virginal abrigo.Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,O fantasma talvez do amor materno,Tomou-me as mãos, – olhou-me, grave e terno,E, passo a passo, caminhou comigo.Era esta sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)Em que da luz noturna à claridade,Minhas irmãs e minha mãe... O prantoJorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?Uma ilusão gemia em cada canto.Chorava em cada canto uma saudade.

Esse soneto é daqueles que a gente julga estarem ali já prontos, o poeta simplesmente os encontrou e colocou neles o seu nome. Que ritmo! Mas temos no livro mais 98 sonetos que não podem, de maneira alguma, ser desprezados.

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6 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

PEDRO NAVA E cONTEmPORÂNEOS mINEIROS

Jarbas Maranhão (*)

continuação da página 1

Médico por mais de cinquenta anos e escritor que, dentro de apenas uma década, alcançou, com suas me-mórias, enorme projeção.

Em termos literários, colabora-ra eventualmente em jornais e revistas, mas sua descoberta como escritor ocor-reu somente quando lançou, em 1972, o seu primeiro livro – Baú de Ossos.

A exemplo de Proust, quis falar de seu tempo, de pessoas e lugares e fa-lou muitíssimo bem.

Por isso, Carlos Drummond de Andrade escreveu que ele esperara meio século para surgir como escritor e logo conquistou a unanimidade das admirações.

A crítica literária o tem situado entre os maiores memorialistas.

Era de uma geração de intelectu-ais e políticos mineiros de muito valor.

Era, não. É, pois ficará na his-tória de nossa literatura. Minas, aliás, é fértil em oferecer ao país grandes figu-ras de nossa vida cultural e política.

Tive a satisfação de conviver com algumas delas.

Entre os que partiram, um Mil-ton Campos, jurista e humanista, polí-tico de comportamento inspirado em princípios éticos e ideológicos, claros e firmes, numa conduta de equilíbrio, modéstia e brandura, desprendimento, cordialidade e zelo pelos direitos hu-manos, tudo definindo nele um espíri-to superior, “uma flor da humanidade”, como o designou o Senador Mem de Sá, ou “o homem que a gente gostaria de ser”, na expressão do poeta Carlos Drummond de Andrade.

Um José Maria de Alkmin, mi-neiro autêntico, de extraordinária capa-cidade política, dos mais participantes nos momentos decisivos de nossa histó-ria, nesses últimos cinquenta (50) anos; talento, bravura pessoal e cívica, um grande cidadão, de admirável humor. Quando ele atravessou o rio e chegou à outra margem das águas, Capanema, seu contemporâneo de vida pública, ressaltou a sua personalidade múltipla, cheia de brilho e fascínio, para acentuar que ele, verdadeiramente, não morrera. Fora chamado por Deus.

E por falar em Gustavo Capa-nema, Ministro da Educação por oito anos, pioneiro e animador, entre nós, do modernismo artístico, líder da maioria no governo constitucional do Presidente Getúlio Vargas, foi um belo orador, dos maiores que ouvi no Parla-mento, embora confessasse ter medo da tribuna.

A força de sua eloquência vi-nha da emoção e sinceridade com que se expressava, traduzindo sentimentos, expondo ideias, defendendo causas. Vi-nha da clareza de seu pensamento e do cultivo de uma inteligência, animada de dons literários. Um homem simples e brilhante, de muita lealdade.

Um Juscelino Kubitscheck de Oliveira, que harmonizava tolerância e firmeza, compreensão e coragem, simpatia humana e a determinação de construir, com o dinamismo próprio dos mineiros de sua região – o chão de ferro, da linguagem de Guimarães Rosa.

Um Tancredo Neves, outro “mi-neiro da gema”, pela intuição dos fatos,

argúcia política, comedimento, senso da hora, espírito público. Longa expe-riência de demarches, de competições partidárias, de vida parlamentar e da administração pública e privada.

Foi Vereador em São João del Rey, sua cidade natal. Deputado na Constituinte Estadual de 1947, em Belo Horizonte, onde foi líder da bancada do Partido Social Democrático, quando do governo udenista do grande brasileiro Milton Campos.

Chegou à Câmara Federal quan-do eu já estava em meu segundo man-dato. Por coincidência sentamo-nos juntos na Comissão de Constituição e Justiça. Eis que de repente ele é nome-ado Ministro da Justiça pelo Presidente Vargas. Passou a cobrar minha presen-ça, quase que diariamente, ao seu gabi-nete de Ministro.

Nas eleições de 1954 eu eleito Senador, e ele, não disputando eleição, ficou sem mandato. Não deixei, porém, de visitá-lo nos cargos que então passou a ocupar.

Com mandatos ou sem manda-tos, independente dessa circunstância, conservamos, ele e eu, uma sólida e crescente amizade, até que “a indeseja-da das gentes”, numa hora imprópria, estupidamente o levou.

Foi Vereador, Deputado Estadu-al e Federal, Senador. Governador, Pri-meiro Ministro, Presidente da Repúbli-ca eleito, mas não empossado por haver, infelizmente, desaparecido, quando se fazia tão necessária sua vida ao Brasil. Inteligência, cultura, patriotismo, von-tade de servir. Era, assim, Tancredo Neves.

Na época em que fiz esse traba-lho, ou em seu original, escrevi:

Entre os que permanecem, um Afonso Arinos de Melo Franco, combi-nação de escritor e político, intelectual e homem de Estado; de muitas lutas e vários livros, numa expressiva contri-buição cultural e cívica.

Hoje, Afonso Arinos de Melo Franco é saudade. Saudade para os fi-lhos, parentes e amigos. Para os que, como nós, o estimaram e conservam admiração pelo que ele fez em benefício do país e da cultura nacional.

Coincidentemente fomos cole-gas na Câmara dos Deputados e no Se-nado Federal.

Tive, assim, tempo bastante para observar sua atuação política-parla-mentar.

Na Câmara integrou a famosa Banda de Música – Discursos ardoro-sos de oposição mesclados com ensi-namentos de ciência política e direito público.

Professor de Direito Consti-tucional discursava como se estivesse dando aulas.

Na Comissão de Constituição e Justiça seus pareceres mereceram desta-que. Foram muitos.

Lembro-me, agora, de dois de-les, extensos, volumosos, densos. Um sobre o Regime Presidencialista. O se-gundo sobre o Parlamentarismo, entre outros que serviram para comprovar a sua cultura jurídica e no campo das Ciências Sociais. Sobre ele escrevi na tradicional Revista Forense e na Revis-

ta de Informação Legislativa do Senado Federal. Apreciei muito seu belo e pro-fundo livro, que ele intitulou de Amor a Roma. Também escrevi a respeito.

Vêm-me á memória, nesse ins-tante, mais dois de seus livros, Conceito de Civilização Brasileira (vol. 70 da fa-mosa Coleção Brasiliana, da Compa-nhia Editora Nacional, São Paulo, 1936) e O Índio Brasileiro e a Revolução Fran-cesa (da Coleção Documentos Brasilei-ros, dirigida por Gilberto Freyre – Li-vraria José Olympio Editora, Rio, 1937).

Publicou outros livros, inclusive sobre A Realidade Brasileira, Direito Constitucional e Preparação ao Nacio-nalismo.

Intelectualmente produziu mui-to. Ao lado de Gilberto Freyre e de ou-tros intelectuais de renome, foi membro do Conselho Federal de Cultura e, por algum tempo, dirigiu o Departamento de Ciência Política da Fundação Getú-lio Vargas, quando, ao tempo dele e de Themistocles Cavalcanti, publiquei al-guns artigos.

Foi ao Recife (em 1985) parti-cipar do Congresso de Direito Cons-titucional, promovido pelo Professor e Constitucionalista Pinto Ferreira, então diretor da pioneira e histórica Faculda-de de Direito do Recife.

Foi conferencista e homenage-ado pela intelectualidade pernambu-cana. Tive o prazer de acompanhá-lo nessa sua passagem pelo Recife.

Esses nomes aqui lembrados e que caminhos de minha vida permi-tiram conhecer de perto, além de ou-tros ilustres brasileiros dos quais pude acompanhar – pelo menos de alguns deles – ou as produções intelectuais ou a ação política, constituem com o médi-co e memorialista Pedro Nava e intelec-tuais de outros Estados, nesse período, uma geração que trouxe ao Brasil um apreciável desenvolvimento no campo das ciências, das letras, das artes e da política.

Das Artes Literárias e da Crítica, das Artes Cênicas, das Artes Plásticas, enfim, das Artes em geral.

São individualidades que ficarão sempre presentes.

Da mesma forma que esses in-telectuais, artistas e homens públicos, o memorialista Pedro Nava, ficará, tam-bém, na lembrança do país, em nossa história literária.

Pena que não haja concluído suas memórias. Mas os seis (6) volumes que publicou, assim como entrevistas à imprensa escrita e falada, poesias, arti-gos e outros trabalhos esparsos, servirão para identificar sua individualidade de médico, escritor e imortalizar sua obra.

(*) Jarbas Maranhão foi Secre-tário de Estado, Deputado à Consti-tuinte Nacional de 1946, Deputado Federal reeleito, Senador da Repúbli-ca, Presidente do Tribunal de Contas de Pernambuco, Professor de Direito Constitucional, Integrante de várias Academias, a exemplo da Centenária Academia Pernambucana de Letras, da Academia Brasileira de Ciências Morais e Políticas, sediada no Rio de Janeiro e da Associação Nacional dos Escritores, com sede em Brasília.

cONcuRSO LITERÁRIO NAcIONAL

- CONTOS -ASSOCIAÇãO NACIONAL

DE ESCRITORES - ANEAuTORES DO LIVRO

ANE - 50 ANOS

Ana Beatriz Cabral/DFAndré Alge/PRAndré Kondo/SPAndréia Cavalcante/MAAntonio Fernando Sodré Júnior/MAAradia Raymon/DFBruno Vinícius/PECarla Dalmolin/BACarlos Eduardo Café/MGCarolina Benazzato/SPClarissa Melo/BACris Dakinis/RJDiego Rodrigues/SPDilma Leite Schmitz/RSEdnaldo Bezerra/PEEduardo Nascimento/SPElias Soares da Silva/MGFábio Martins Moreira/SCFernanda Castro/SPGiovanna Artigiani/SCGladis Berriel/RSGracinda Vieira Barros/MGGuto Stresser/PRHudson Reginaldo dos Santos/SPIgor Fernando/SPIrede Inês Masiro Farenzena/RSIsrael Pinheiro/PEIvana Maria/SPJacqueline Salgado/MGJoaquim Bispo/PortugalJessica F. Coutinho/PEJohnny Miranda/SPJuliana Bernardo/SPLuzia Stocco/SPMaria Luiza Falcão/MGMárcia Gomes/RJMarco Hruschka/PRMario Filipe dos Santos/PEMaycon Batestin/ESPaloma Xavier/PRRafael Vianna/PRRegina Nadaes Marques/RJReginaldo Costa de Albuquerque/MSRichard Ybars/RJTatiana Angele de Carvalho/FrançaTiago André Vargas/RSValdério Costa/DFVânia Figueredo/SPVinicius Bezerra/MAWilson Rossato/DF

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7Associação Nacional de EscritoresJornal da ANEagosto/setembro – 2012

OTTO AOS NOVENTA

Fabio de Sousa Coutinho*

Continuação da página 1

Sabino formava, com Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos, o

trio de amigos inseparáveis de Otto, os quatro cavaleiros do apocalipse

mineiro, todos saídos de Belo Horizonte na década de 1940 e radicados

no Rio, desde então. Mas Otto teve dezenas, talvez centenas, de outros

amigos, quase todos fascinados pela conversa a um tempo solta, diverti-

da e invariavelmente culta e bem informada do grande «causeur». Nel-

son Rodrigues, um desses admiradores, chegou a agregar um apêndice

ao título de uma de suas peças mais célebres: «Bonitinha mas ordinária,

ou Otto Lara Resende».

Jornalista, funcionário público, diretor de banco e da revista Man-

chete, romancista de concisão machadiana e força dostoievskiana, como

fica patente no poderoso e estranho O BRAÇO DIREITO, Otto foi eleito

para a Academia Brasileira de Letras em 1979, numa disputa acirrada.

O resultado, porém, foi celebrado em festa memorável, como se fora a

vitória de um candidato popular, com torcida e tudo.

Nascido em São João del-Rei em 1º de maio de 1922, Otto Lara Re-

sende trabalhou durante meio século, vindo a falecer poucos dias após

o Natal de 1992, aos setenta anos de idade, depois de se submeter a uma

cirurgia de coluna. Sua partida, no auge do prestígio como colunista

da Folha de São Paulo, foi um choque, uma trombada de frente sofrida

por milhares de leitores, antigos e novos, idosos e jovens, pessoas que

se haviam acostumado, nos dois últimos anos, a encontrar, naquele pe-

queno espaço da página dois do jornal, um texto saboroso sobre os mais

diversos assuntos do cotidiano, a crônica de um autêntico  mestre do

gênero.

Agora, em cuidadosa edição da Companhia das Letras, organizada

por outro craque mineiro, Humberto Werneck, as colunas da Folha são

reeditadas, com o título da primeira delas, datada de 1º de maio de 1991,

BOM DIA PARA NASCER. É leitura na categoria das imperdíveis, livro

para estar na pasta, ou na bolsa, dos leitores, e abrir em qualquer página,

com garantia de satisfação ética e estética. No marco dos 90 anos do nas-

cimento de Otto Lara Resende, fomos todos vivamente presenteados.

(*) Fabio de Sousa Coutinho, advogado e bibliófilo, é membro titular do PEN Clube do Brasil e Secretário Geral da Associação Nacional de Escritores (ANE).

O galo da madrugada

Flávio R. Kothe

O galo se põe a cantar de madrugadacomo se tivesse uma razão para cantarem vez de só ficar no poleiro sentado.

A mão que lhe dá tanto afeto e atençãocada dia, de gota em gota, grão em grão,é a mesma que há de fazer sua degolação.

Essa mesma mão há de arrancar as penas,cortar o corpo em pedaços, tudo temperar,cozinhar, para melhor os beiços lambuzar.

O sorriso é um riso sob, mas sob o sorrisotanta vez não se sabe o verdadeiro sentido,não se percebe o inimigo sob esgar amigo.

Até tu meu filho, dizia o César, ao sentirna carne o punhal brutal do amado Brutus:esse punhal quer tua carne, quer aniquilar.

Não é bem a ti que eles estão querendoquando te perseguem, torturam e ferem:querem o que pensam que tu de fato sejas.

Tu não és aquele que eles querem matar,és o mais parecido que podem encontrar,não é nada pessoal, mas em ti está a estar.

Tens o azar de ser aquele estranho enteque eles tanto procuram para exorcizar,o mais parecido ente em sua mente doente.

Tu és quem tu és, sei que não és aqueleque eles buscam para sob o ódio até amar,mas acabas sendo o que para tanto serve.

Tens o azar de ser o que eles precisam,tens o azar de estar aí bem disponível,para ser posto na cruz, posto no altar.

Assim como te adoram também odeiam,assim como odeiam poderiam até adorar:eles te abusam por quererem se salvar.

Sossega, pois, deixa esse galo cantarcomo se a manhã fosse de carnavale no fundo da panela valesse a carne.

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8 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

As palavras que dão título a estas evocações em torno da vida e da obra do escritor Anto-nio Olavo Pereira foram a ele atribuídas por

Alfredo Bosi, em sua clássica História Concisa da Li-teratura Brasileira.

Nome largamente conhecido do público nas décadas de 50, 60 e 70, detentor de vasta fortuna crítica, embora tenha deixado uma obra pequena em número de títulos, é possível afirmar, sem nenhum favor, tratar-se de uma das figuras mais importantes da prosa psicológica da literatura brasileira pós-45.

Nascido aos 5 de fevereiro de 1913, em Ba-tatais, interior de São Paulo, quinto filho numa ir-mandade de nove, veio para capital paulista aos 14 anos, onde estudou no Colégio Rio Branco e no Gi-násio do Estado.

Seu irmão mais velho, José Olympio Perei-ra Filho, que em 1918 se iniciara no ramo livreiro na antiga Casa Garraux de São Paulo, fundaria, em 1931, aquela que por décadas foi a mais importan-te casa editorial brasileira, a Livraria José Olympio Editora, tornando-se o maior editor dos modernis-tas brasileiros. Basta lembrar que José Olympio reu-niu entre seus editados nomes como Carlos Drum-mond de Andrade, Graciliano Ramos,Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Clari-ce Lispector, João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, Jorge Amado e Lygia Fagundes Telles, dentre tantos outros da mais alta relevância para nossas le-tras. Foi também José Olympio quem criou a céle-bre Coleção Documentos Brasileiros, que ao longo de mais de meio século publicou cerca de duzentos títulos de história, sociologia, filosofia, antropologia, crítica literária, economia e outros assuntos relacio-nados à cultura brasileira. Inaugurada com Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, teve entre seus autores nomes como Joaquim Nabuco, Eucli-des da Cunha, José Veríssimo, Oliveira Lima, Luís da Câmara Cascudo, Nelson Werneck Sodré, Lúcia Miguel Pereira, Capistrano de Abreu e Paulo Prado.

Os primeiros escritos de Antonio Olavo apareceram em O Malho, tradicional publicação li-terária das primeiras décadas do século XX. Tinha, então, pouco mais de vinte anos e acabara de ler Menino de Engenho, de José Lins do Rego, recém--publicado por José Olympio. A obra impressionou--o demais, especialmente pela linguagem fluida e despojada.

A estréia em livro aconteceria em 1950, com a novela Contramão, laureada no ano anterior com o Prêmio Fábio Prado, um dos mais importan-tes da época. A obra mereceria de Graciliano Ramos um prefácio, infelizmente nunca publicado, no qual o autor de S.Bernardo destacava que poucos dos au-tores brasileiros contemporâneos haviam estreado com tamanha maturidade.

Contramão foi imediatamente consagrado pela crítica. Carlos Drummond de Andrade escre-veu: “seu livro, vazado numa expressão cortante e exata, constituiu a meu ver um de nossos melhores estudos artísticos do tímido inadaptado e lê-lo é mergulhar em cheio no drama de todos os minutos que a vida representa para as criaturas desse tipo.” Sérgio Milliet acentuou: “da novela muito densa, só-bria de estilo e rica de emoção que Antonio Olavo Pereira escreveu, pode-se dizer que assinala mais

um passo feliz no caminho da renovação do nosso romance contemporâneo.”

Paulo Rónai destacou: “o equilíbrio do in-trospectivo e do descritivo, da análise e da impres-são...constitui a marca talvez mais característica deste talento tão vigoroso da novelística brasileira.” Marcoré, de 1957, veio significar definitiva consa-gração junto ao público e à crítica. Antonio Candido salientou: Marcoré representa em nossa ficção atual um ponto de refinamento e maturidade que pres-sagia os mais auspiciosos desenvolvimentos.” Para Rachel de Queiroz , “livro de escritor definitivo.” Gil-berto Freyre apontou: “em Marcoré, do vento regio-nal que sopra sobre os personagens, pode-se dizer que , à maneira do vento espanhol, é tão sutil que mata um homem e não apaga um candil. Mas sopra. Acaricia. Mata.” Antonio Houaiss viu uma “obra es-sencialmente anti-heróica, vinculada com o cotidia-no em fidedigna coerência, consegue, não obstante, manter um nível de excepcional interesse em todas as suas páginas, pela sabedoria com que são conota-dos os acidentes do efêmero nos planos de vida que se cruzam dentro da trama.”

Na sensível percepção de Massaud Moisés “...transparente na linguagem e denso nos pormeno-res psicológicos, dir-se-ia de um Machado de Assis que se dispusesse a descrever, com melancolia, mas sem ceticismo, sem nenhum sentimento de revolta ou inconformidade, o ramerrão pachorrento duma típica família do interior de São Paulo.” Premiado pela Academia Brasileira de Letras, publicado em Portugal e nos Estados Unidos, alcançou treze edi-ções entre nós.

Fio de Prumo, de 1965, romance autobio-gráfico, fez Rolando Morel Pinto ponderar: “...per-feita estrutura, cujo enredo se tece naturalmente ao ritmo da própria vida, enquanto a linguagem que o transmite flui com segurança e graça e todos os ma-tizes da expressão se atingem com precisão ou sutil delicadeza.” Para Nelly Novaes Coelho “...romance que os nossos adolescentes não só podem, como devem ler, pois inscreve-se claramente entre os que, neste momento, estão franqueando novas frontei-ras... *” Vilma Arêas reconheceu-o “um clássico de nossa língua”.

Em 1979, Antonio Olavo Pereira recebeu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo pelo conjunto da obra. A comissão julgadora foi com-posta por nomes da invergadura de Lygia Fagundes Telles, José Aderaldo Castello, Mário Chamie, Nilo Scalzo e Ricardo Ramos.

Seu último livro, Uma Certa Borboleta Azul, de 1990, destinado ao público infantil, foi visto por Tatiana Belinky como “...uma alegre e grande fanta-sia, onde a linguagem do contador, simples e acessí-vel, sem ser condescendente, atenua a extensão deste conto-fábula”. Ainda inédito permanece outro texto seu para crianças, O Quimico da Terra, ganhador do Prêmio de Literatura Infantil do SAPS, em 1953.

Casado por mais de quarenta anos com Gulnara Lobato de Moraes Pereira, exímia traduto-ra e autora de O Menino Juca, biografia de Monteiro Lobato, seu tio, destinada aos jovens, Antonio Olavo Pereira faleceu em São Paulo, aos 15 de novembro de 1993.

um ESTILIzADOR SóBRIO E INTENSO DE DRAmAS fAmILIARES

Angelo Caio Mendes Corrêa Jr.Dois Poemas Macabros

Luiz Carlos de O. Cerqueira

QuADRAS N° 42, OP. 270, N° 3(Após leitura de Allan Poe)

O que são estas batidas à minha porta?Enquanto aguardava o sono, pus-me à leiturae as horas se escorriam nesta noite escura...Não vou pensar, o livro sim, mais me conforta.

Aborrecem-me, pois, estas leves batidas.Não sei se o livro fecho e se à velha porta acudo...Quem a esta hora quando tudo está mudo?Alguém a juntar-se às minhas noites feridas?

Não, por certo alguém seria a querer confortoou, quem sabe, a esta insônia compartilhar?Estas batidas perturbam o meu sonhar,sem sonhar a noite será um barco sem porto.

Agora a pancada se faz soar mais forte!Ergui-me, insone e abri a porta num repente.Linda figura deparei à minha frente,deu-me as mãos, levou-me consigo – era a morte!

SONETO N° 131, OP. 297(O urutau)

Quem ousa rir de mim assim na mata densa?Quem assustar vem minha alma combalida?Já não basta esta angústia vil e tão imensade, sem saudade, tê-la esquecida?

Ah, que tétrico canto! Põe-me a alma tensa.Pungente qual soluços de pomba ferida.Assusto-me, a tensão cresce, se faz intensa.Onde está, de onde vem a visão malquerida?

Um tremor corre em meu corpo. A noite é escura.Caminho atormentado por louca aflição, atordoado por lufadas de loucura.

Ah! Quem gargalha assim nessa alucinação?Lúgubre é o canto dessa estranha criatura...Tremo e o medo domina a minha solidão.

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9Associação Nacional de EscritoresJornal da ANEagosto/setembro – 2012

A POESIA DE TIAGO NENÉ*

O princípio da distânciapoesia é a arte metafísica de escavar palavrase encontrar outras palavras;e escavar estas palavras e encontrar outraspalavras;foi assim que escrevi o teu corpoe, escavando as suas palavras, encontreioutras palavrasque diziam ser a outra metade da solidão a esperançae os nossos corposo princípio da distância;

Primeira experiência sobre a autoria das coisas

se eu partir deste poema,perderei o que de mais beloele disser;se ficar, ele não diránada mais do que já sei;

Definição por comparaçãovejo a poesia como o caos de um puzzle desfeito, excetona maneira plural de a montar;(et comme ça l’amour,et la seine)

Hímeneu vi uma canção libertar-seda sua consciênciaquando todas as palavrasquiseram brilhar

(*) Poeta português, nasceu em Tavira, advogado e tradutor.

PIRENóPOLIS, umA cIDADE cENOGRÁfIcA

Sonia Ferreira

JuBILEu DE PRATA DA AcADEmIA DE LETRAS DO BRASIL

No dia 25 de julho de 2012 a Academia de Letras do Brasil comemorou seus 25 anos de existência, pois foi criada no dia 25 de julho de 1987, na residência do escritor José Geraldo, o saudoso Jota, que já partiu, mas

nos deixando a Academia como um dos seus legados mais preciosos. No dia 18 de julho a Academia reuniu-se na sede da ANE, para escolher a nova Diretoria, que ficou assim constituída: Presidente – Fontes de Alencar; Secretário Geral – Flávio Kothe; Primeiro Secretário – Napoleão Valadares; Segundo Secretário – Anderson Braga Horta; Tesoureiro – Fábio Coutinho; Diretor de Divulgação – Danilo Gomes; Diretora de Biblioteca – Kori Bolivia; Comissão de Contas – Edmílson Caminha, Romeu Jobim e Lina Tâmega. Na ocasião decidiu-se também

constituir uma Comissão Editorial, presidida pelo Diretor de Divulgação e constituída por Alan Viggiano, João Carlos Taveira e Luiz Carlos Cerqueira.

A Academia espera reunir-se proximamente para a posse de dois membros recém-eleitos: José Santiago Naud e Ático Vilas Boas. A cadeira que era ocupada pelo poeta e ensaísta José Geraldo também se encontra vaga, devendo o novo Presidente abrir o processo eletivo em data próxima. Em sua última reunião, a Academia discutiu a possibilidade de fazer uma revista eletrônica e uma publicação em papel, bem como a necessidade de se providenciar o ISBN e o ISSN nas publicações para garantir os direitos autorais dos participantes e dar maior legitimidade a elas.

O Rio das Almas ficou extasiado, pas-mo, contemplativo, durante trinta minutos de emoção. Suas águas, que

murmuram, fazem ziguezague e cantam, nas corredeiras do dia a dia, à noite de vinte e seis de maio último, viraram espelho assustado, tornaram-se paralisadas. Refletiam e repro-duziam a transformação cênica do escuro nos céus daquela bucólica cidade, no interior goia-no. Era um momento de bênçãos especiais a almas e a olhos encantados pelos incontáveis buquês de lágrimas de fogo coloridas, apari-ção mágica e iluminada, transformada em de-senhos fugazes de fumaças surrealistas. Apa-reciam, alternada e sucessivamente, nos céus de uma noite especial em Pirenópolis: era o Divino Espírito Santo no coração do povo, homenageado pelas artimanhas de fogos de artifício.

Uma bandeira vermelha, ostentan-do no centro uma rica imagem dourada, fixada na ponta de um mastro gigantes-co, imponente e majestoso, assistia a tudo. Trinta minutos de estrondos graves, de tiros estridentes e agudos pipocavam no azulão cores e luzes, chuva de estrelas arrepiando os corações devotos.

Foi um capítulo inesquecível, após a celebração da Santa Missa solene, cele-brando o Divino, e em latim, como reza a tradição. Último dia da novena. Como nos demais, a Banda de Música Phoenix, enri-quecida por instrumentos de sopro e per-cussão, acompanhava-se de vozes soprano, contralto e outros tons.

A Rua do Lazer, iluminada a velas, dentro e fora das casas antigas que a com-põem, transformadas em lojas de artesana-tos, bares e restaurantes de bom gosto, aco-lhia mesas forradas artisticamente, cadeiras e gente, ora assentada, ora andando pra lá e pra cá, ora de pé batendo prosa. As cortini-nhas de renda e as floreiras enfeitavam do-cemente as janelas e as taças que brindavam a fé em Deus, a comunhão, o querer bem e a alegria entre as pessoas.

Era Pentecostes em Pirenópolis, em Goiás, no Mundo inteiro. Cinquenta dias, após a Páscoa. Neste clima de convivência e vivência, as pessoas recebendo os dons do Espírito Santo: sabedoria, entendimen-to, fortaleza, conselho, ciência, piedade, temor de Deus. Verdadeira celebração da vida interior. Não sei todos os nomes das pessoas aniversariantes. Destaco dois: Apa-recida e Luzia, vidas especiais.

No dia seguinte, domingo, qua-se nove horas. As cores que matizaram o céu na noite anterior invadiram as ruas, as vielas e as praças. Cavalos e cavaleiros, dis-farçados em máscaras de animais e tecidos multicores, uns em cetim, outros em chitão,

xadrez, com seus sinuelos sonoros, desde a madrugada, convidavam a população local e os turistas a admirarem e a aplaudirem suas exibições gaiatas.

Duas intermináveis filas, na cadên-cia musical das bandas desciam e subiam, subiam e desciam ladeiras, totalmente co-bertas por bandeirolas, em vermelho e branco: à frente, as Bandas Phoenix e de Couro, depois a Procissão das Virgens, branquinha e doce como alfenim, com to-ques de fitas vermelhas; em seguida, azul e vermelho com aventais brancos, os cordões de pastorinhas e, depois, os pequenos con-gos, expressão da cultura africana.

Foguetes e os melódicos sinos da Igreja Matriz recebiam aquele espetáculo cênico e de fé, enquanto o desfile de cavalei-ros medievais, mouros vermelhos e cristãos azuis, elegantes e estilizados, em cavalos treinados, completava o cenário para a exi-bição vespertina das Cavalhadas, a aconte-cerem nas tardes dos três dias subsequentes.

O Brasil inteiro, de modo especial Brasília, a Capital do País, tem olhos acesos para vivenciar a Festa do Divino em Pirenó-polis/GO. Cada visitante, o povo da cidade e da roça são personagens importantes des-sa festa, tão significativa na cultura popular e no cultivo da fé no coração dos devotos da Santíssima Trindade.

TestemunhoTerezy Godoi

Terrível dor atravessou meu peitoe o dilacerou de tal forma e jeito,

me fez sentir no ar, tonta e sem teto,não ser humano, mas um objeto

lançado ao caos, num total desamparo.Imensurável dor. Destino amaro

de toda mãe que diz adeus ao filhono seu último leito, o olhar sem brilho,

pálida a tez, entre cravos e rosas,testemunhas mudas e dolorosas

do ato final, de tal densidade,por sua cruel autenticidade.

Somente a inquebrantável fé em Deuspode amparar o coração no adeus!

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10 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

Os poetas, como os cegos, enxergam na es-curidão.Hoelderlin já nos ensinava: “O que per-

manece, fundam-no os poetas.”Alphonsus de Guimaraens Filho escre-

veu: “Se não for pela poesia/como crer na eter-nidade?”

Numa mensagem, meu amigo Ronaldo Cagiano, confessa: “Um minuto no túmulo de Balzac, uma tarde à beira do Sena ou um café n’A Brasileira, onde sentou Pessoa, me ensinam mais que todas as religiões e filosofias.”

Kafka já dizia: tudo o que não é literatura me aborrece.

Complementa Cagiano, o colega escritor: Não tenho medo de andar contra a corrente. A vida não é feita de adesões a política, estética e culturalmente correto, mas ao que tem dimensão onírica, humana e solitária. E isso não dá votos, nem resenhas na Folha.”

O mais difícil – nos tempos em que se con-funde uniformidade com igualdade – é perma-necer fiel a si mesmo.

Há uma espécie de robotização, de medio-crização, em favor do gosto “médio”, para que não se veja além.

Mesmo com recursos tecnológicos, as

LEmBRANDO ANTIGOS PROfESSORESEmanuel Medeiros Vieira

imagens que circulam, no geral, são veiculadas apenas para vender, e o lixo dominical da TV aberta é a prova maior do que se quer dar para o rebanho.

É uma espécie de idiotização da mente.Mesmo sabendo que o ser humano, em sua

maioria, tende para a mediocridade e para o con-formismo, a banalização dos valores e da vida só não espanta as consciências mais resignadas.

Insisto: é preciso ter disciplina, um proje-to, e correr atrás dele, sem buscar álibis ou des-culpas pelas dificuldades enfrentadas, evitando a auto-comiseração ou o fácil papel de vítima.

Por que se escreve?Porque – segundo Memo Giardinelli – só

a arte e a literatura podem redimir o gênero hu-mano, com mais tendência à mediocridade que ao talento.

Não tenho outro poder, senão o de buscar dizer a verdade diariamente naquilo que escrevo.

Um professor humanista, no curso Clássi-co (e não tínhamos ainda 20 anos), já advertia, quando percebeu o meu interesse e de outros co-legas pela literatura e pela arte:

Não textualmente – assim, não coloco as-pas –, ele dizia o seguinte: Preparem-se. Sigam em frente. Mas não vai ser fácil. Quase tudo

conspirará contra vocês. Os fundamentos da mediocridade e da defesa da existência leviana, vazia são muito fortes e estão enraizados na so-ciedade.

Só querem que valha o que dá dinheiro.Mas não nunca desistam. Alguns, antes

dos 40, já terão vendido a sua alma. Não importa.Só os iluminados chegarão mais longe.

Mas com a consciência que sempre haverá pe-dras no caminho.

Vocês terão instantes tão belos e intensos, que eles compensarão as mesquinharias, a inveja, a tendência de muitos de querer destruir aquilo que não conseguem para si mesmos. É a tendên-cia de achar que dando cotoveladas no outro (na-quele que se inveja), o invejoso se destacará.

Ou, em outras palavras: não faço, mas não quero que ninguém faça.

É a prevalência dos baixos instintos: inve-ja, ciúme, posse.

Mas o iluminado é maior que isso.Quando penso nesse querido mestre,

lembro-me das palavras de Carlos Castañeda:“Sabemos que nada pode temperar tanto

o espírito de um guerreiro quanto o desafio de lidar com pessoas intoleráveis em posições de poder.”

Duas horas da tarde e eu modorrando, naquela santa beatitude da digestão. Meio dormindo, sou despertado pelo caseiro que entra correndo,

resfolegando, esbaforido e quase sem fala.– Doutor, um dragão, um dragão enorme está

deitado no capim do fundo do quintal!– Cê tá doido, rapaz? Onde é que já se viu dragão

em Brasília, dragão é fantasia do imaginário oriental é bicho lá da China.

– Vai lá, doutor, vai lá.– Ora, vai trabalhar e me deixa em paz.– Doutor, nem os cachorros tiveram coragem

de enfrentar o bicho. Estão os três, os dois grandes e a cadelinha, todos três metidos na casinha dela. Não sei como estão cabendo lá.

– Vai, vai embora, me deixa sossegado.– Olha, Doutor, olha só o rabão dele! Disse meu

caseiro, num gesto largo, mostrando o tamanho do rabo do dragão.

Aquele homem devia estar louco. Onde já se viu? Dragão? Ora, dragão! Talvez fosse um bruto calango, daqueles bem coloridos, que estivesse lá nos fundos, pensei. Porém, o silêncio dos cachorros, seguido às vezes de uma espécie de gemidozinho, começaram a inquietar-me. Levantei-me e fui ver o que estava acontecendo. Aquele diabo velho de caseiro devia ter ficado louco mesmo.

Inacreditável, absurdo! De fato, lá estava o baita dragão deitado, quentando sol, no fundo do meu quintal. Parecia adormecido. As pálpebras cerradas deram-me esta impressão. Não. Estava acordado e me esperava. Inicialmente fiquei muito assustado. Era, de fato, um dragão. E dragão dos grandes. Parecia manso e não soltava fogo pela boca. Mas que era um dragão, lá isso era. Seu olhar, por trás daquelas pálpebras enrugadas e apertadinhas, quase escondendo seus olhinhos, parecia olhar de gente boa, de dragão manso. Resolvi aproximar-me. Oh! Surpresa, o dragão era o Dragão da Lua. Era o Dragão de São Jorge.

Ele esboçava um sorriso. Tomei coragem. Cheguei mais perto.

Quando abriu a boca para falar, imaginei que fosse sair um vozeirão, um trovão. Qual nada, falava baixinho e tinha ótima dicção. Meio encabulado, procurava justificar sua presença ali.

– Vim, porque São Jorge mandou, disse. Naquela noite em que o senhor esteve lá, levado por uma nave espacial, quando visitou a Lua, montado num raio de luar em companhia de São Jorge, lembra-se? Pois é, por causa daquela esporada que o senhor deu na sua montaria e do salto que ela deu, caíram seus documentos e sua carteira de telefones. São Jorge mandou que eu o localizasse. Com a ajuda de sua agenda, pude saber seu endereço e agora estou aqui para devolver-lhe tudo.

– Fico muito grato com a preocupação do bondoso São Jorge. Mas, ao mesmo tempo, fico intrigado. Quem ficou no seu lugar lá na lua? Se ela aparecer lá no Céu sem dragão, São Jorge que já foi cassado uma vez, pode ser cassado de novo e aí, adeus Lua de São Jorge com Dragão e tudo. E se ele for cassado, como é que você vai ficar lá em cima sozinho, sem seu Santo? Voltando-me para o caseiro:

– Seu Zé, vá buscar um cafezinho para o nosso Dragão.

– Não se preocupe, Doutor, porque, olha aqui, meu Santo e eu já andamos muito cansados. Toda noite, e há quantos anos, a mesma coisa: meu Santo, o Cavalo Branco e eu lá naquela baita solidão. Aí resolvemos a coisa assim: Só trabalhamos tempo integral na lua cheia. Meu Santo muito preocupado com seus documentos, mandou-me vir de qualquer jeito. Até gostei. Lá em cima é como o senhor viu: aquela pasmaceira. Chegamos até a festejar quando por lá apareceram os astronautas. Imaginamos que teríamos sempre visitantes, turistas na Lua. Qual nada! Chegaram, cutucaram, cutucaram, rasparam o chão, juntaram uns saquinhos de poeira, fincaram uma bandeira e se mandaram. Ficamos só com a expectativa de outras visitas. Até hoje, nada. Mas, recebida a ordem para vir, fiz como o senhor: ontem, montado num raio de luar, vim passar o resto da noite e a madrugada aqui olhando a cidade e vendo a Lua refletida no Lago Paranoá.

— São Jorge é muito legal. Preocupar-se comigo que havia ido lá perturbar-lhes o descanso e ainda mandar você fazer uma viagem deste tamanho. É formidável!

A prosa comprida foi se alongando e levando-nos tarde adentro. Os cachorros, já acomodados, vieram brincar com o rabão daquele bicho diferente mas de presença tão simpática e agradável. O caseiro, servido o café – homem do interior de Minas –, afastou-se. De longe, esconjurava e se benzia o tempo todo.

Quando percebemos, o Sol já declinava no horizonte. Meu amigo Dragão ficou preocupado. Tinha que chegar à Lua antes do anoitecer.

Seu raio de luar, aquele em que viera à Terra, vendo as luzes da cidade refletidas no Lago, saiu correndo e mergulhou nas águas geladas do Paranoá. Consequência: morreu afogado. Na Lua não existe água e ele não sabia nadar.

A Lua, àquela hora, já devia estar de volta. Mas demorava a surgir lá pelas bandas de Sobradinho. Nem um raiozinho para o aflito Dragão montar e voltar. Foi então que sugeri a ele pegar um raio de sol e voltar para o Céu. Apavorado ele disse:

— O senhor esqueceu-se de que os raios de sol queimam?

— Mas veja, passe a mão neste que está entre os galhos e as flores desta buganvília, é bem fresquinho. O Sol, nas tardes de inverno aqui em Brasília só tem tamanho. Não queima, nem esquenta a gente!

O Dragão, meio desconfiado, passou a mão pelo lombo do raio-de-sol. Sabendo-o fresquinho montou nele, apressado que estava, disse adeus e zarpou rumo à Lua que já anunciava seu despontar lá no fundão da cidade. Acenei-lhe, desejei boa viagem, mandei agradecer a São Jorge e fiquei olhando até vê-lo chegar à Lua e ocupar seu lugar. São Jorge de lá me fez um aceno e eu fui para a cama. Fui dormir para pensar nestas coisas misteriosas que acontecem. Muita gente não acredita. Mas que acontecem, acontecem. É só ter um pouquinho de imaginação.

O DRAGãOAffonso Heliodoro

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11Associação Nacional de EscritoresJornal da ANEagosto/setembro – 2012

PERQuIRIÇÕESFábio Lucas

Reúno aqui reminiscências de um tempo áspero, no qual o escultor do Cristo em pânico exprime o sofrimento do povo brasileiro nas garras da

ditadura. O escultor, Guido Rocha, faleceu no ápice da carreira, mártir. Junto está, na segunda parte, o modo pelo qual Manoel Hygino dos Santos aborda a causa mortis de Jesus no contexto das leis romanas e judaicas. Precedo a análise com referência às aberturas do ensaísmo brasileiro contemporâneo ao simbolismo do escritor Machado de Assis e da sua obra.

A CRUCIFICAÇãO DE CRISTO

Impressionou-me vivamente a obra Jesus - causa mortis (Belo Horizonte: Papi, 2010) de Manoel Hygino dos Santos, sobre o qual escrevi breve estudo. Mas não me limitei àquele trabalho quando me propus a refletir sobre a leitura, sobre o mito e sobre as forças que operam na mente humana para construir a opinião. Discorri acerca dos vários cristos modelados ao longo dos sucessivos horizontes de expectativa, tentando relativizar certos estudos diacrônicos e conclusões históricas baseados tão somente na interpretação dos historiadores, ou dos religiosos, mesmo calcados em vasta documentação.

Fiz igualmente incursão demorada nas figurações de Machado de Assis e de sua obra, após o convívio com os trabalhos de extremo valor epistemológico: O Altar e o Trono - Dinâmica do poder em “O Alienista” (S. Paulo: Ateliê, 2010) de Ivan Teixeira e O Dom do Crime -romance (Rio: Record, 2010) de Marco Lucchesi. Ambos, o ensaísta e o novel romancista, deslocam os estudos de crítica genética e de avaliação historiográfica ou textual para nível mais elevado, apontando em direção de novo modo de inclusão de Machado de Assis na arena político-ideológica do Brasil. Do mesmo modo saneador do meio congestionado pelos estudos repetitivos e escassamente criativos, vale apontar a coleção organizada por Gustavo Bernardo, Joachim Michael e Markus Schäffauer, a reunir as Conferências do Colóquio de Hamburgo (2008), com o título Machado de Assis e a Escravidão (S.Paulo:Annablume, 2010). Inúmeros cristos, vários machados, incontáveis interpretações.

Pois bem: permito-me reproduzir a apresentação que procedi, em dado momento da ditadura brasileira, de uma exposição de esculturas de Guido Rocha (não há muito falecido), com o título “A Crucificação do Homem”. Também ele,no dia 13 de abril de 1973, expôs seus trabalhos ao público numa era de extrema vigilância e censura. Sofrera torturas no Brasil e no Chile, para onde fugira. Regressou como corpo dilacerado e o espírito altivo. Também ele figurou seus vários cristos, conforme testemunhei naquela data.

Eis o meu escrito:

Guido Rocha é mineiro do Serro, onde nasceu em 1933. Cedo começou sua ligação com as artes plásticas, iniciando os estudos, em 1951, com Guignard que, à época, ensinava na escola do Parque Municipal. Guido era dos mais jovens de um grupo de alunos em que estavam Chanina, Wilde Lacerda, Vicente Abreu, Petrônio Bax, Holmes Neves e outros. Estudou em seguida com Haroldo Mattos na ex-Escola de Belas Artes de Minas Gerais.

Em 1960, ingressou no Curso de Sociologia e Política da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, que terminou em 1963, tendo abandonado provisoriamente as artes para trabalhar como sociólogo. Enquanto estudante, foi também jornalista, militando na imprensa como repórter da Tribuna de Minas, Diário da Tarde e editor de Última Hora. Antes, em 1958, fundou e dirigiu com outros companheiros a revista TV Semanal, onde fez “cartoons’”.

Voltou a dedicar-se às artes, semi-profissionalmente, em 1967, realizando uma experiência inovadora com a pintura de cartões de Natal. Começava então uma “pesquisa sobre a textura”, utilizando materiais novos, o que o levou novamente a pintar quadros. Em 1968, participou da I Feira de Arte Popular, realizada por uma extinta galeria da cidade, e do salão da Prefeitura, onde ganhou prêmio de aquisição. É dessa época também sua primeira exposição individual, realizada no “Chez Bastião”, mostrando quadros das séries “Dom Quixote” e “A Guerra do Povo”.

Seus trabalhos causaram forte impacto na critica e no público, esgotando-se rapidamente.

Mudando-se para o Rio, dedicou-se ao artesanato,

confeccionando objetos de bijuteria com o emprego de aço inoxidável, cimento e resinas. Nessa ocasião, parte para modelar pequenos cristos com o material que vinha utilizando para fazer bijuterias. Empolgado com a temática e descobrindo um novo caminho na técnica da escultura, foi abandonando pouco a pouco a pintura e o artesanato para dedicar-se exclusivamente à feitura de cristos. Estes, na sua forma atual, isto é, após três anos de demoradas pesquisas formais, resumem todas as inquietações humanas do artista.

Por baixo da forte expressão visual, repousa um apelo pragmático no estudo de Guido Rocha: a nova cruzada de libertação do Cristo. O artista parte do principio de recondução da vítima ao seu quadro original, circundado de opressão e miséria humana. Esteticamente, poucos escultores terão chegado tão próximos da visão trágica da flagelação.

Durante séculos, os que se apoderaram da imagem de Cristo, para fins de consolidação de um domínio temporal, deslocaram a tragédia do Calvário para um cenário ambíguo de paródia e falsidade. Compôs-se, inicialmente, o Cristo-adorno, modelado em ouro ou em prata, a presidir a opulência dos abastados; em seguida, em nosso tempo, executou-se a mais perfeita banalização do Cristo, em espetáculos, em canções populares, em camisas-esporte, em enfeites massificados.

A sociedade de consumo tornou-o uma peça a mais da imensa rede de relações mercantis. Já se falou que, no Brasil colonial, era costume conceber um Cristo que deslisava na cruz para uma posição mais confortável. Cheguei a ver um antropólogo americano repetir este comentário: “In Brazil, even Christ hangs comfortably on the cross.”

O Cristo de Guido Rocha, contrariamente, procura romper com a punição, saltar da cruz, formar com ela uma relação de antagonismo. Qualquer observador notará uma oposição Cristo (ruptura) X Cruz (regra), um jogo de violento contraste.

O realismo dramático de Guido Rocha sacraliza a força humana injustamente punida, dessacralizando a imagem piedosa envolta na dor-enfeite do sadismo e da hipocrisia. Nessa perspectiva, o escultor hostil posto que artisticamente calculado. Aparecem, então, o Cristo-lanhado, o Cristo-protesto, o Cristo impotente na sua revolta. A cena é patética e o artista não foge dessa tonalidade.

Dentro do conjunto de espantosa unidade criadora podemos surpreender-nos com o Cristo-negro, o Cristo-índio, o Cristo-heróico, e o Cristo-épico, o Cristo leproso, o Cristo arruinado pela dor. Nova relação se estabelece ao nível de espectador/obra. Esta o agride e o leva a tomar partido, a comprometer-se com ela. Deriva da tortura e da mutilação um estado de pânico ou de revolta, de compromisso ou de cumplicidade de que o observador dificilmente se vê livre.

O material de Guido Rocha é elementar (barro, em vez de ouro), a concepção é realista, a relação entre Cristo e Cruz bem como entre Crucificado e Espectador, é dialética. Por isso a indiferença perante a obra é impensável.

Cada Cristo é uma existência artística de rápida polarização crítica. Tem uma autonomia proveniente da originalidade, da força da paixão dominada pela expressividade artística. Fala e diz muito, do homem de todos os tempos.

NA PAUTA DO MITO, A MITOGRAFIA

Aponta-se a exaustão das faculdades imaginativas e o despreparo dos autores como causas preponderantes da decadência de nossa produção literária. Frágil e repetitiva na criação poética, assim como chã e pleonástica na prosa de ficção. A previsibilidade da trama e da linguagem constituem os sintomas comuns da enfermidade da era consumista.

Contra esse estádio da improvisação ergueu-se o vagalhão das vanguardas que acabou diluído pelo discurso massificador, plebeísta e simplificador.

Sobrevivem, no entanto, autores e críticos recolhidos ao círculo da excelência, a percorrer o longo caminho do aprendizado e da criação. Às favas os inescrupulosos, os velozes improvisadores.

Modas e metamorfoses operaram transformações nos gêneros literários e nas preferências dos leitores. Os autores, em consequência, se concentram mais nas

espécies “populares”: as biografias, as confissões, os ensaios livres, os depoimentos invadem o território da História da Literatura; a releitura dos Clássicos, a revisão de valores poéticos, o gosto da síntese, o aticismo como conduta literária, a poética do despojamento despertaram as iniciativas dos líricos. Tudo parece mudar, inclusive a se tornar o mesmo, na sedução pelo antigo ou pelo que dura. Época da transição. Toda época se julga de transição.

Tudo isso nos veio à mente diante da leitura de Jesus Causa Mortis (Belo Horizonte: Ed. FAPI, 2010), de Manoel Hygino dos Santos.

Maravilhosa síntese acerca do Jesus produzido pelos apóstolos e pacatos pescadores, que se entregaram à tarefa de difundir os ensinamentos do pregador que se dizia Jesus e que viera ao mundo salvar a humanidade.

Ou bandeira gestada no ânimo de Saulo/Paulo na luta contra a dominação romana?

Manoel Hygino dos Santos, ante as inúmeras hipóteses dos sábios que analisaram o Cristianismo e seu Império, procedeu a inenarrável síntese das correntes de pensamento, em sugestivos capítulos. Tão atraentes e agradáveis que se assemelham a episódios de uma interminável novela.

O que se conclui, se há conclusão no espinhoso assunto, limítrofe da Fé e da Razão (duas forças apaixonantes da Humanidade), é que cada época, cada horizonte de expectativas, cada contexto, fabrica o seu Jesus a seu modo e segundo as conveniências dominantes.

A Humanidade é useira e vezeira na arte de substanciar mitos. No famoso verso de Fernando Pessoa, “O mito é o nada que é tudo”.

Cada sociedade, cada grupo social, cada nação carrega seus mitos, seus avatares e avoengos que os mantêm coesos e idênticos.

Manoel Hygino dos Santos, pródigo na divulgação de bons textos literários e intelectual vocacionado pela especulação filosófica, logrou, com Jesus Causa Mortis, oferecer, em língua portuguesa, uma obra estupenda de informações acerca do registro das circunstâncias da morte de Jesus. Mostrou como conflitam as leis romanas e as judaicas no aprisionamento e condenação dos delinquentes. E como os evangelhos, sejam canônicos, sejam apócrifos, divergem acerca da morte de Jesus. Até mesmo sobre o vulto de Jesus pendem incertezas e divergências. Até os gnósticos se subdividiam a respeito do verdadeiro Cristo. Mais, ainda, dúvidas pairam sobre a causa mortis do condenado.

Daí o fecundo e frutífero relato de Manoel Hygino dos Santos, que lida com a Historiografia e seus ramos arqueológicos. Sem descurar, entretanto, das criações míticas dos povos, dos jogos da imaginação e das crenças. Um mar de especulações ou de certezas apodítícas.

O mesmo que acontece com o Jesus multiplicado, se verifica no plano da investigação e análise crítica do fenômeno literário em torno da personalidade e da escrita de Machado de Assis.

A cada tempo renasce e se configura um novo mito machadiano. A erudição no campo das Letras torna-se cada vez mais sutil e abundante. E é justo que a natureza de seus textos sejam objeto de estudos inovadores. Eis que, em pleno ano de 2010, apareçam obras capitais acerca do tema da persona machadiana relacionada com a polivalência de sua criação no âmbito da escrita. Daí a grandeza do estudo de Ivan Teixeira, Altar e Tronco- Dinâmica do Poder em “O Alienista” (S. Paulo: Ateliê Editorial, 2010) e da ficção de Marco Lucchesi, O Dom do Crime (Rio: Record, 2010), na qual o mestre da ficção brasileira é romanceado, após intensa e inesperada investigação de suas fontes, assim como de sua conduta literária num contexto caprichoso e efervescente. Ler Ivan Teixeira é reler Machado e cultuar seus mananciais, desde Teofraste, na figuração dos caracteres, até Swift, no jogo áspero da paródia. Sem contar a releitura da revista “A Estação”, a cuja efêmera elegância o ficcionista se ligou.

Com tantos e tais exemplos, é justo admitir que a taxa de mortalidade dos maus escritores é maior, bem maior, do que a cota de bons trabalhos literários nas oficinas das Letras do Brasil contemporâneo. Com a comercialização de tudo, a morte instantânea atinge fortemente os especuladores do câmbio literário. Os depósitos culturais de longa duração rendem para sempre, pois se apóiam num lastro de fixidez inabalável.

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12 Jornal da ANEAssociação Nacional de EscritoresAgosto/setembro – 2012

O GIGANTE DA POLÔNIA Fontes de Alencar

continuação da página 1

A campanha pela Abolição o havia revela-do ao Brasil e à humanidade, sensível às cousas brasileiras. O heroísmo da sua mocidade tinha se cumprido. Nabuco renunciara ao domínio, à posição, ao repouso, rompera com a classe dos senhores, a qual pertencia, e tornara-se o apóstolo da libertação dos escravos.

De sua produção versífica destaco nesta ocasião Amour et Dieu – Paris, Imprimerie de J. Claye, 1874 (Brasiliana Digital), de cuja peça der-radeira transcrevo este quarteto:

Je parle une langue étrangèreDans mes vers; je ne sais pourquoi.Peut-être pour dire à ma mère ,Le poete, ce n’est pás moi. Dez anos antes, Nabuco de Araujo, o pai,

estimulava-o a versejar. Angela Alonso em Joa-quim Nabuco: os salões e as ruas (São Paulo: Com-panhia das Letras, 2007) especifica que ele pro-movera edição luxuosa, no ano de 1864, de um poema em que o filho o homenageava – O Gigante da Polônia.

A criação nabuqueana chegara às mãos de Machado de Assis e o então folhetinista do Diário do Rio de Janeiro, na edição de 31-01-1865, a pro-pósito grafou:

...Já que falo em poetas escreverei aqui o nome de um jovem estreante da poesia, a quem não falta vocação, nem espontaneidade, mas que deve curar de aperfeiçoar-se pelo estudo. É o Sr. Joaquim Nabuco. Tem 15 anos apenas. Os seus versos não são de certo perfeitos: o jovem poeta balbucia ape-nas; falta-lhe compulsar os modelos, estudar a lín-gua, ultimar a arte; mas se lhe faltam os requisitos que só o estudo pode dar, nem por isso se lhe desco-nhece desde já uma tendência pronunciada e uma imaginação viçosa. Tem o direito de contar com o futuro. (GA, op. cit.).

E o adolescente escreveu ao periodista: Não sou poeta; as minhas toscas composições,

escritas nas minhas horas vagas, ainda não preten-dem a tanto; o título pomposo de – poeta, – que por extrema bondade, e complacência, dignou-se--me aplicar, poderia esmagando a minha nula va-lia, encher-me de um orgulho sem fundamento, que me elevasse acima do que eu realmente sou, se por-ventura não tivesse a indestrutível convicção de que ele verdadeiramente me não pertence, e de que me foi aplicado por um poeta, que, talvez por simpatia ou por qualquer motivo, desejando estender-me a sua mão de apoio e de admiração, me deu títulos superiores às qualidades que realmente eu possuo.

Escrevo versos, é certo; porém estes versos, sem cadência e sem harmonia, não podem elevar o seu autor à altura de poeta,...

Não obstante, decorrida uma década Na-buco publicaria na capital da França o poemário Amour et Dieu.

Findava o século XIX quando apareceu Minha Formação, de Joaquim Nabuco. Gilberto Freire preludiou a 2ª edição dessa autobiografia (Brasília, Senado Federal, 2001). Do mencionado lavor nabuquino colho:

Recordo-me de que nesse tempo (aos quinze e dezesseis anos...) tive uma fascinação por Pedro

Luís, cuja ode à Polônia, Os Voluntários da Morte, eu sabia de cor.

Em setembro de 1939 a Alemanha inva-dira a Polônia. A 6 do mês seguinte completo era o domínio nazista acolá. Em maio de 1942, Tadeu Skowronski, no proêmio de Páginas Brasileiras sobre a Polônia, obra por ele organizada e editada pela Freitas Bastos, do Rio de Janeiro, vozeou:

A Polônia sucumbiu, mas não foi vencida... Li o poeta de “Terribilis Dea” – Pedro Luiz Pereira de Souza, as estrofes do jovem Joaquim Nabuco, as poesias inflamadas de Castro Alves, reli as palavras proféticas de Rui Barbosa...

Da seleta do Ministro polônio extraio o poema do jovem:

O GIGANTE DA POLÔNIA(Trechos de uma ode) ........................................................................... Anjo tutelar, propício nume Do Polaco terreno, ufano logra Ovações mil a mil da pátria cara! VÍSTULA fero, da Polônia o guarda! ............................................................................ O Vistula espumoso é incentivo Do brio, do denodo e da braveza, Que ao Polaco assinala um posto d’honra Marcando dos heróis o lugar primo! ............................................................................. Sentinela fiel, guarda em vigília, Do morticínio atroz ali sangrento Ele foi testemunha. Enraivecido, Suas águas com sangue misturadas. Para os mares do norte arroja afoito! ...

Elas são, bem que tácito, um protesto, Que na mente dos povos alto clama. Para os bravos Polacos d’hoje,e d’ontem, Para os da fé valentes defensores, Vingança!

Hidra que os Russos assoberba. Na história a Polônia se apresenta; Não lhe paga o presente o seu passado, Quando a orbe do Cossaco ameaçado Com o sangue dos seus salvou a custo, Seus atos de bravura a mundo espantam, Seus feitos de heroísmo ele contempla, Seu presente brilhante o maravilha! ... Um bárbaro colosso transportado De inóspitas paragens para a Europa,Chamar-se de Europeu indigno povo! ...Inerte e rude massa sem cultivo,Sem crença, sem amor, letras, nem artes,Eis ao que se resume o grande império,Que o oriente da Europa abrange largo!Prolongada extensão possui ele hoje;Despótico autocrata as leis lhe dita;Seu exército imenso é de carrascos ... ......................................................................................Entretanto os polacos não trepidamEm, nas lanças agudas dos inimigos.Morte de bravos ir buscar, pujantes, Não lhes assusta o cadafalso erguido, Nem da morte o cortejo os intimida.As geladas campinas da Sibéria, Onde mil infelizes se lamentam,Onde chora a mulher seu caro esposo,Onde o filho pranteia o pai ausente;Os pesados grilhões, fortes cadeias,De seus cansados membros – opressores:A vista aterradora dos suplícios,E a presença constante dos algozes,O alento desses bravos não comovem,Nem no peito tão pouco a chama abafamNem a voz da consciência nalma calam!Em sagrado holocausto, n’ara pátria,Cada dia mais vítimas se oferecem! ... Seu sangue fertiliza o solo bravo ...Novos, brotam do chão guerreiros fortes ...Pela pátria se finam – ai vêm novos.A Polônia de Antéus é terra fértil! ...Um constante lidar entre dois povos!Dois povos, dois anelos mutuados!Este, a morte, o horror, a tirania;Aquele, a religião, a pátria e a vida!Um, combate para o jugo impor, odioso,Outro, para dele libertar a pátria;Um, pretende apertar grilhões de escravo,Outro, o elo romper, que o prende à Russia!Por ser tirano aquele, fere e mata;Este, ali pela pátria morde o solo!A morte desses bravos não choremos.Porque, noutra vida, um Deus existe, Que sabe premiar os grandes feitos ...Um Deus que tem para os bons a Eternidade,Um Deus que tem para os maus torturas grandes.

Joaquim Nabuco