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1 1 TOBIAS BARRETO ESTUDOS DE FILOSOFIA 2ª EDIÇÃO Introdução de Paulo Mercadante e Antonio Paim PARTE III

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TOBIAS BARRETO

ESTUDOS DE FILOSOFIA

2ª EDIÇÃO

Introdução de

Paulo Mercadante e Antonio Paim

PARTE III

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SUMÁRIO

PARTE III

Última fase (período do Recife): - ciclo da adesão

ao neokantismo

I. Dissertação de concurso

II. Notas a lápis sobre a evolução emocional e

mental do homem

III. Relatividade de todo conhecimento

IV. Glosas heterodoxas a um dos motes do dia,

ou variações anti-sociológicas

V. Recordação de Kant

VI. A irreligião do futuro

VII. Introdução ao estudo do direito

Notas dos organizadores da presente edição

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PARTE III

ÚLTIMA FASE (PERÍODO DO RECIFE):

CICLO DA ADESÃO AO NEOKANTISMO

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I

DISSERTAÇÃO DE CONCURSO

(1882) A

A concepção da sociologia, e especialmente a

concepção do direito, ainda hoje correntes entre nós, são

um pedaço de metafísica, um resto de mitologia.

Ainda hoje em nossas Faculdades jurísticas pro -

põem-se questões como esta:

“Conforma-se com os princípios da ciência social

a doutrina dos direitos naturais e originários do

homem?

Uma tese assim envolve uma questão preliminar,

que deve ser elucidada antes de qualquer solução

ulterior, e é a seguinte: a ciência social já tem prin-

cípios, já tem verdades assentadas, que determinem a

conformação ou não conformação dos direitos naturais e

originários do homem, com essas mesmas verdades e

princípios estabelecidos?

Dou-me pressa em respondê-la. A ciência social,

como conjunto de idéias adquiridas e sistematizadas

sobre os fenômenos sociais e suas leis, ainda se acha,

por assim dizer, em estado embrionário. Na classi-

ficação das ciências, ela ocupa o último lugar da série

ascendente; mas isto, bem ao invés do que pudera

parecer, indica justamente que essa ciência, até hoje

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pelo menos, não é mais do que um pium desiderium do

espírito científico.

Porquanto, se todas as ciências, antes de tudo,

devem ter um método, e este é o método de observação

e indução, é inegável que a sociologia não satisfaz ainda

a semelhante exigência, isto é, os seus fenômenos ainda

não se prestaram a uma observação regular, e muito

menos tem sido possível, do pouco que se há observado,

induzir leis e chegar ao conhecimento das causas reais,

que geral os fatos, cuja soma constitui a sociedade.

Verdade é que a sociedade, na qualidade de um

organismo de ordem superior, na qualidade, não de uma

antítese, mas de uma continuação da natureza, deve ter a

sua mecânica; mas essa mecânica, para dizer tudo em

uma só palavra, ainda não encontrou o seu Kepler.

É um fato que a sociedade se desenvolve; porém,

as leis desse desenvolvimento não estão descobertas, o

que importa dizer que a ciência social existe ainda

apenas como uma aspiração, e, em tais condições, não

tem, não pode ter princípios seus, princípios próprios,

com os quais possam conformar-se os direitos, quais-

quer direitos do homem.

Em outros termos, a sociologia não se acha no

caso de bitolar pelos seus dados, pelo enunciado dos

seus problemas, os conceitos de outra qualquer ciência.

Não se diga que a ciência social é um gênero, que

abrange em si diversas espécies, algumas das quais já

têm atingido um grau de desenvolvimento capaz de

conferir-lhes o poder de adaptar aos seus os velhos

conceitos científicos; e não se diga, porque o mesmo

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exemplo da economia política, que se co nsidera muito

adiantada, em vez de infirmar, antes confirma o meu

asserto.

Com todos os seus progressos, reais ou pre-

sumidos, a economia política ainda discute sobre as suas

idéias fundamentais.

As noções de valor, capital, trabalho mesmo, não

se acham definitivamente assentadas.

O grande fenômeno do movimento econômico, ou

do desenvolvimento da riqueza, não achou nem sequer

ainda uma fórmula, que o represente.

A ligeireza desse movimento, que ao contrário do

que se dá no mundo físico, onde a ligeireza é igual à

“força dividida pela massa”, é igual à “massa dividida

pela força”, constitui ainda uma questão ardente: esta

força, que serve de denominador da fração, é o capital

ou o trabalho?

É lis sub judice!...

Quando falo de ciência social, só tenho em vist a

uma tal, que se baseia nos dados comuns a todas as

ciências de observação.

Quanto, porém, a uma velha ciência da sociedade,

a esse pedaço, repito, de metafísica e mitologia, que não

pode hoje fazer as delícias de espíritos sérios, eu a

considero fora do círculo das minhas meditações.

O célebre David Hume disse uma vez: “Quando

entrardes em uma biblioteca e pegardes de qualquer

livro, perguntai primeiro: este livro trata de números?

Este livro trata de fatos observados, e de leis

induzidas?

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Se a isto vos responderem negativamente, então

queimai o livro, porque não pode conter senão rabulices

e sofisticarias”.

É o caso com a decrépita metafísica social.

Entretanto, e pondo termo à questão preliminar, o

que aí fica dito a respeito da sociologia embrionária, da

sociologia em via de formação, não envolve a idéia de

que a segunda parte da tese seja incompatível com a

primeira.

Pelo contrário.

Dados os princípios da ciência social, como ela

existe, como ela se acha, é conformável com esses

princípios a doutrina dos direitos naturais e originários

do homem?

Quando mesmo tais princípios não sejam mais do

que hipóteses, conforma-se com estas hipóteses a

referida doutrina?

Eis o ponto elucidável.

A teoria dos direitos naturais e originários

pertence a uma época já um pouco distante de nós.

A concepção de um direito superior e anterior à

sociedade, é uma extravagância da razão humana, que

não pode mais justificar-se.

O homem é um ser histórico, o que vale dizer,

que ele é um ser que se desenvolve.

A idéia de um direito natural e originário do

homem envolve a de um direito universal e permanente,

a de um direito, quero dizer, que não está sujeito a

relatividades, em no espaço, nem no tempo.

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Um direito universal é um direito que existe para

todos os povos; um direito permanente é um direito

imóvel, um direito que não se desenvolve; mas de

acordo com as noções correntes da própria sociologia,

que se forma, tudo está subordinado à lei do desen-

volvimento, da qual não escapa o direito mesmo.

É concludente, portanto, que a teoria dos direitos

naturais não se harmoniza com a ciência social.

“Um direito universal, diz R. von Jhering (Der

Zweck im Recht), um direito de todos os povos, está no

mesmo pé que uma receita universal, uma receita para

todos os doentes”.

A etnologia nos mostra que as diferenciações que

produzem as raças, trazem diferenças nos costumes, nas

leis, nas instituições dessas mesmas raças, e a história

confirma essa asserção.

A universalidade do direito é simplesmente uma

frase.

Mas objetar-se-me-á: - existem certos direitos,

que se têm feito valer em todos os tempos e em todos os

lugares, até onde pode chegar a observação direta e

indireta; não serão eles originários? Não são eles

naturais?

Não hesito, mesmo assim, em responder

negativamente.

A expressão direito natural valeu por muito

tempo, e ainda hoje vale como antitética da expressão

direito positivo. Admitir um direito natural é admitir

que a positividade não é o característico de todo o

direito.

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Mas eu penso com George Meyer (Das Studium

des oeffentlchen Rechts in Deutschland) que, se há uma

verdade, digna de ser geralmente aceita e reconhecida, é

a da positividade de todo e qualquer direito.

Desde que a idéia do direito entrou a idéia da

luta, desde que o direito nos aparece, não mais como um

presente de céu, porém, como um resultado de combate,

como uma conquista, caiu por terra a intuição de um

direito natural.

Bem como as artes, bem como as ciências, o

direito é um produto da cultura humana; fora desta, em

qualquer grau que ela seja, nenhum direito, nenhuma

disciplina das forças sociais.

Os chamados direitos naturais e originários, como

o direito à vida, à liberdade e poucos outros, nunca

existiram fora da sociedade; foi esta quem os instituiu e

consagrou.

Parece absurdo, eu sei, exprimir -me assim; mas

não é tal.

O direito que foi mui bem definido pelo ilustre R.

von Jhering como um complexo de condições exis -

tenciais da sociedade, asseguradas por um poder

público, o direito, repito, nasceu no dia em que nasceu a

mesma sociedade.

É uma velha ilusão esta que ainda leva muitos

espíritos a abandonarem os ensinos da experiência, os

testemunhos da história, e continuarem a sonhar com

direitos preexistentes aos primeiros ensaios de orga-

nização social.

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Uma das melhores provas de que a concepção de

um tal direito é simplesmente o resultado do espírito de

uma época, nós achamo-la na consideração seguinte: o

direito natural dos tempos modernos é inteiramente

diverso do jus naturale dos romanos; quem nos pode

garantir que para o futuro o conceito de um direito

natural não será tão diferente do hodierno, quanto este é

diverso do romano?

Falemos ainda mais franco: o direito natural

moderno com o seu apriorismo, com suas pretensões de

filho único da razão humana, é uma criação da Holanda

no século XVII.

Mas é digno de nota: o célebre Grotius, que abriu

caminho a esse preconceito científico, além de outros

escritos, consagrou também o seu Mare liberum à

exposição da nova idéia.

Entretanto, essa mesma obra, cheia de apelos à

razão, tem por subtítulo as seguintes palavras, que d ão a

medida do grande conceito: “Sive de jure, quod Batavis

competit ad indiana commercia...”

Bom direito natural!

Resumamos e concluamos.

Qualquer que seja o estado da ciência social, ou

os seus princípios sejam realmente tais, ou somente

pressupostos de uma ciência que se levanta, a verdade é

que a doutrina dos direitos naturais e originários não se

conforma com aqueles princípios.

E digo mais: a teoria de semelhantes direitos não

é somente inarmonizável com os referidos pressupostos,

mas até sucede que a sua permanência é um obstáculo

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ao desenvolvimento da sociologia. Platão disse: não há

ciência do que passa; a moderna teoria da evolução

inverteu a proposição e redargüiu ousada: só há ciência

do que passa, porque a história só se ocupa do que

passa, e todas as ciências caminham para tornar-se

preponderantemente históricas.

Não me é estranho que a tese acadêmica tem um

modo, já consagrado, de ser resolvida; porém, eu tenho

também de respeitar as minhas próprias convicções.

Não há direitos naturais e originários.

O que nós hoje chamamos direito é uma

transformação da força, que limitou-se, e continua a

limitar-se, no interesse da sociedade. A idéia de direitos

originários arrasta, como associado lógico, a de direitos

derivados. São categorias, que já não têm importância

científica.

Os direitos, como tais, quer como condições de

existência, quer como condições evolucionais da vida

social, são da mesma natureza, e são-no justamente,

porque saem da mesma fonte; esta fonte é a sociedade.

E seja-me permitido repet ir agora o que já tive

ocasião de exprimir de outra vez:

Em nome da religião, disse o sublime gnosta,

autor do quarto evangelho: no princípio era a palavra ( in

principio erat verbum); em nome da poesia, disse

Goethe: no princípio era o ato ( im Anfang war die That);

em nome das ciências naturais, disse Carus Sterne: No

princípio era o carbono ( im Anfang war der

Kohlenstoff); em nome da filosofia, em nome da

intuição monística do mundo, quero eu dizer: no

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princípio era a força, e a força estava junto ao homem, e

o homem era a força.

Desta força conservada e desenvolvida, é que

tudo tem-se produzido, inclusive o próprio direito, que

em última análise não é um produto natural, mas um

produto cultural, uma obra do homem mesmo.

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NOTAS A LÁPIS SOBRE A EVOLUÇÃO

EMOCIONAL E MENTAL DO HOMEM

(1884) B

Der monistische Gedanke ist allein im Stande, die ewige Gegensaetze, an welchen von jeher die besten Denker sich zerquaelt haben und die sie dann endfich als unloeslich aufgegeben haben, zum Ausgleich zu breingen. Der Kernupunkt dieses Gedankens liegt ebenfalls in der Warnung, Abstractionen nicht fuer Wesenheiten zu halten.(

*)

I

Atualmente a palavra evolução é uma espécie de

magia, com que se pretende dissipar todas as dúvidas e

quebrar a força de mais de um problema insolúvel.

Passando do vasto domínio da ciência, onde o

fato ou lei que ela significa, ainda é e será por muito

tempo objeto de sérios estudos, ao domínio, não menos

(*) Somente o pensamento monista tem a possibilidade de

promover um acordo entre as eternas abstrações, com as quais se

angustiaram, desde a antiguidade, os melhores pensadores, para

afinal abandoná-las como insolúveis. O ponto central desse

pensamento consiste na seguinte advertência: não se pode tomar, como essências, meras abstrações. (T. do E.).

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vasto, do diletantismo leviano e incompetente, a evolu-

ção tornou-se, na boca dos literomaníacos, alguma coisa

de semelhante ao que é a palavra liberdade na boca dos

demagogos, ou a palavra amor na boca das cortesãs, isto

é, um termo convencional, um artigo de moda, uma

frase de ocasião.

O resultado é que esse vocábulo tem sido

desviado do seu verdadeiro sentido. Os mistagogos e

gnostas modernos, que o consideram uma espécie de

Logos divino, que lhe tributam um como respeito

religioso, a ponto de escreverem-no com letra inicial

maiúscula, como se sói escrever o nome de Deus – esses

senhores têm assim contribuído para dar um caráter

cabalístico e incompreensível a uma coisa aliás de fácil

compreensão.

Entretanto, é certo que a evolução é a palavra que

move o mundo; e na frase de Rudolf Gottschall, a

palavra que move o mundo, não pode ser misteriosa.

Está passado o tempo dos oráculos.

Já é costume, geralmente aceito, prender a idéia

da evolução ao nome de Darwin. Evolucionismo e

darwinismo soam a muitos ouvidos, como perfeitos

sinônimos. Isto, porém, não é de todo razoável.

A teoria evolucionista surgiu bem antes do

darwinismo. Os dois conceitos precípuos, que entram na

idéia da evolução, os conceitos de transformação e

melhoramento, já eram bem comum de espíritos notá-

veis, anteriores ao grande naturalista inglês.

Se a justiça da história e da crítica científica se

regulasse pelo direito dos lapônios, segundo o qual o

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urno não pertence a quem o mata, mas a quem lhe

descobriu a pista, Darwin ficaria fora de questão na

contenda pela glória. Basta lembrar os nomes de

Geoffroy, Saint-Hileire, Lamarck, Goethe, e até Kant e

Herder, na opinião de Otto Liebmann, para saber, entre

quem então a disputa seria travada(1)

.

Mas o caso aqui é outro. Darwin não criou

decerto a teoria do evolucionismo, porém, concebeu um

novo modo de explicação, tanto mais aceitável, quanto

mais apoiado na riqueza dos fatos observados.

Foi o princípio da seleção natural, por sua vez

explicada pela grande lei da concorrência vital, ou da

chamada luta pela existência, esta bela frase, que

entretanto já tornou-se chapa, mas uma chapa de ouro,

onde se acha para sempre gravado o nome do célebre

autor da Origem das espécies.

Conquanto o darwinismo seja destarte uma nova

forma, a última forma do evolucionismo, todavia pode-

se ainda notar uma ligeira diferença entre ambos. Essa

diferença não se deixa melhor acentuar e aperceber do

que dizendo – que o darwinismo é mais científico, e o

evolucionismo mais filosófico. Bem entendido: sem dar

a esta distinção uma importância capital.

Quando pois afirmo que o evolucionismo é mais

velho que o darwinismo, só me refiro à teoria, à idéia

nele contida, não assim à palavra, que é relativamente

nova, no sentido da geral aplicação hodierna.

Na língua francesa, por exemplo, a primeira

aparição do termo évolutionniste, foi na Revue des deux

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mondes no 1º de janeiro de 1869, segundo sou in-

formado por Carl Sachs.

Não falo da introdução do neologismo na língua

alemã, porque esta pôde bem dispensá-lo; já tinha há

muito tempo o seu Entwicklung, que traduz per-

feitamente todos os fenômenos evolucionais ou

evolucionísticos, de que falam franceses e ingleses,

positivistas e spencerianos.

Importa sobretudo deixar de lado essa –

philosophy of epithets and phrases, como há pouco um

articulista da Edimburg Review qualificou, com toda a

justiça, a filosofia de Spencer. Importa acabar com esse

moderno alexandrinismo, que converte palavras em

outras tantas realidades.

Assim como os devotos de antigo estilo vêem em

todas as coisas, ainda as mais disparatadas, o dedo da

Providência, assim também os evolucionistas descobrem

em tudo o sinete da evolução, ainda que ela realmente

não exista.

Convém reduzir um pouco mais as despesas de

fraseologia. Evolução é desenvolvimento. Se este último

termo não está hoje muito em moda, por não ter o ar de

profundeza e sabedoria, que por si só co nfere aquela

outra expressão, de caráter místico e ocamente sonora, é

uma simples questão de galanteria do demimonde

literário.

Isto, porém, não quer dizer que eu condene de

todo o emprego da palavra. Costumo, e quase que devo

também usar dela, ainda que a meu modo, sobretudo no

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domínio científico, na aplicação das chamadas idéias

darwínicas.

Tenho medo das sentenças, que grandes natu-

ralistas têm lavrado contra a importuna legião dos

darwinistas amadores. Haeckel, por exemplo, já disse

terminantemente: “O que pensaríeis vós de um leigo,

que quisesse dar juízo sobre a teoria das células, ou

sobre a teoria dos vertebrados, sem jamais ter cultivado

a anatomia comparada?!... Pois é o que sucede todos os

dias a respeito da teoria biológica da descendência.

Decidem sobre ela leigos e semicultos, que nada sabem

de botânica, nem de zoologia, nem de anatomia

comparada, nem de histologia, nem de paleontologia,

nem de embriologia”...

E o que sabemos de tudo isto nós outros, homens

do direito, discípulos de Papiniano, leitores do Corpus

Juris e das Ordenações?

Parece-me que nada. Os meus receios não são

infundados.

Schleiden também escreveu o seguinte: “É uma

prova de repugnante grosseria de espírito querer ajuizar

de coisas, sobre que não se tem o mínimo conhecimento;

aconselho pois àqueles que pretendem porventura julgar

das doutrinas darwínicas, se dignem primeiramente de

estudar com toda profundeza (ganz gruendlich) as obras

de Darwin, se não querem correr o perigo de se

tornarem brilhantemente ridículos”.

O perigo é sério, e não se me levará a mal o

desejo de evitá-lo. Com este propósito, aceito do

darwinismo, como verdades relativamente incon-

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testáveis, a idéia da luta, o princípio da herança e da

adaptação, a seleção natural, e em suas mais altas

aplicações, a seleção artística. Tanto me basta.

Dir-se-á talvez que todo o darwinismo está

mesmo contido nessas quatro ou cinco idéias. Nenhuma

dúvida. Mas essas quatro ou cinco idéias abrem caminho

a longos desenvolvimentos, explanações e detalhes que

só os homens competentes podem fazer; e é este

justamente o domínio, onde não me julgo com o direito

de entrar.

À vista da imensa literatura darwinística, posta ao

alcance de qualquer leitor menos inculto, a quem é que

hoje não seria fácil ostentar muita ciência com a ciência

alheia? É verdade – e fui eu mesmo quem já disse – que

nós pensamos, falamos e escrevemos a crédito; mas

tudo tem seus limites, inclusive esta mesma espécie de

crédito intelectual.

“Quem tem observado, diz Émerson, o mundo dos

insetos, as moscas, os mosquitos, os inúmeros parasitas,

e até os jovens mamíferos, deve ter admirado o seu

extraordinário gosto de sugar, que forma a principal

ocupação de sua vida. Quando se entra em uma

biblioteca ou em um gabinete de leitura, vê-se a mesma

ocupação, exercida com o mesmo afinco...”

É exato; porém, há sempre a notar que uma coisa

é sugar a seiva alheia para alimentar-se, haurir alheias

idéias para instruir-se, e outra coisa querer fazer figura

com o dinheiro dos outros, respectivé, com o trabalho

dos Haeckel, dos Huxley, dos Fritz Müller, quando não

sucede receber-se de segunda e terceira mão, re-

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correndo-se a menores grandezas, como os Spencer, os

Le Bom, os Letourneau... et le reste. O parasitismo

literário também é uma causa e um sinal de doença.

II

O processo da evolução emocional e mental do

homem é o mesmo processo da civilização, da cultura

humana em geral, encarada pelo seu lado íntimo.

O conhecimento desse processo é sobretudo um

conhecimento histórico.

A evolução emocional e mental constitui, pois,

uma das partes da história evolutiva dos seres orgânicos

e vivos. No domínio das ciências naturais toda a história

evolutiva, segundo Haeckel, divide-se em duas seções: a

ontogenia e a filogenia, conforme se trata do de-

senvolvimento do indivíduo, ou do desenvolv imento do

tronco genealógico.

Assim, a ciência das formas orgânicas ou

morfologia tem uma dupla face: como morfogenia,

ocupa-se do desenvolvimento formal dos indivíduos

orgânicos; como morfofilia, da história genealógica das

formas ou desenvolvimento paleontológico das espécies,

morficamente apreciadas.

Se bem compreendo Haeckel, dou a mim mesmo a

seguinte explicação: a morfogenia estuda, por exemplo,

no homem, como indivíduo, o desenvolvimento das

formas orgânicas, desde o mais ínfimo até o mais alto

estádio da vida embrional; a morfofilia estuda no ho-

mem, como espécie, o desenvolvimento dessas mesmas

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formas, desde aquela, sob a qual deveram manifestar -se

os primeiros esboços da humanidade, até as que hoje se

observam nos graus superiores da evolução morfo lógica,

onde a ciência já encontra na beleza plástica, por

exemplo, de um corpo de mulher, alguma coisa de

disteleológico, ou irregular, muito além do que é preciso

para o fim restrito da propagação da espécie.

Se estes dois ramos da morfologia no dizer do

grande professor de Jena, ainda não chegaram ao grau

de adiantamento, que é para desejar, muito menos

adiantados se acham os dois ramos correspondentes da

fisiogenia, segundo aquele mesmo duplo ponto de vista,

não quanto às formas, porém quanto às funções .

O segundo ramo sobretudo, a fisiofilia ou filo-

genia das atividades vitais, Haeckel considera como

ainda quase não cultivado, se bem que em alguns pontos

já tenha feito progressos notáveis. É o caso com a

filogenia da linguagem, como ela forma atualmente o

alvo principal da lingüística comparada.

Entro aqui em terreno sagrado, e como profano

que sou – para não ver-me obrigado a tirar os meus

sapatos e beijar o chão em que piso – recuo e passo por

fora.

A fisiologia não está na minha alçada. Entretanto

não posso vencer o desejo de fazer umas ligeiras

observações, que não demandam conhecimentos

profissionais.

Referindo-se à fisiofilia em geral, diz Haeckel:

“Que monstruosa extensão nos apresenta este domínio,

ainda tão pouco estudado, quando consideramos que

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qualquer atividade vital, qualquer função fisiológica nos

animais e nas plantas, bem como nos seres humanos,

tem a sua história própria, qualquer delas se há de-

senvolvido historicamente!

Que interessante objeto de indagação oferece, por

exemplo, a filogenia ou mais exatamente a fisiofilia dos

movimentos! Quão atraente e instrutivo se mostra este

problema, só dentro da série dos vertebrados, onde o

andar e porte reto do homem é remontável à locomoção

dos macacos arborícolas, e mais adiante a dos outros

mamíferos e quadrúpedes!

A locomoção destes é por sua vez herdada dos

anfíbios, que ora correm, ora nadam, e que saíram dos

dipneustas e peixes habitantes das águas. Nestes últimos

então o movimento de remo das barbatanas apresentar -

se-á como a forma primitiva, donde proveio a função

locomotriz do homem”.

Não sei se me engano, mas me parece que há

nestas palavras uma genial largueza de vistas, tanto

mais dignas de reflexão, quanto é certo que Haeckel

mesmo não as expõe como dados de uma ciência feita,

porém como plano de “disciplinas científicas do futuro”.

Deixando aos competentes a apreciação detalhada

do valor, que possam ter tais disciplinas, quero aqui

restringir-me a fazer sensível a importância de um

ponto. É o que diz respeito à fisiofilia dos movimentos,

não dentro da série dos vertebrados, mas limitada

unicamente ao desenvolvimento humano, e ainda assim,

no círculo da humanidade histórica.

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A questão é séria. Guilherme His, um dos

adversários de Haeckel, combatendo a lei da herança

progressiva, não hesitou em dizer: “há milênios que o

nosso porte e o nosso andar são os mesmos; desde

séculos, os nossos ascendentes falam sempre a mesma

linguagem, e escrevem a mesma escrita; entretanto

fomos nós obrigados, como são os nossos filhos, a

aprender, cada um por si, estas capacidades”.

Ainda mais: - “há milênios que certos povos

exercem a circuncisão, sem que a parte, sempre de novo

arrancada, tivesse desaparecido pela herança. Diante de

tais experiências não pode medrar a mão cheia de

anedotas, que se têm contado em favor da here-

ditariedade dos atributos individuais adquiridos”.

Para esta expectoração do oráculo, Haeckel

parece ter somente um sorriso de desdém, e limita -se,

em rápidas notas, a invocar os mestres de dança, os

historiadores, filólogos, lingüistas e calígrafos, que

todos dão testemunho contrário às pretensões de His(2)

.

Mas eu creio que ao teimoso antagonista do

professor de Jena poder-se-ia opor, logo no começo do

seu argumento, uma exceção peremptória. Com efeito

ele diz: - “há milênios que o nosso porte e o nosso andar

são os mesmos”... Porém isto será exato? A afirmativa é

difícil, depois de alguma reflexão. Se quer dizer

somente que há milhares de anos a posição e a marcha

do homem é com o corpo em forma vertical – nenhuma

dúvida, pois isso não importa mais do que repetir que há

séculos de séculos o homem é bípede.

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Mas a questão é outra; é saber se este mesmo

verticalismo, característico da humanidade e dos seus

mais próximos parentes, tem ou não passado por varia -

ções e melhoramentos, através dos tempos, melho-

ramentos e variações, que são outros tantos produtos de

herança e adaptação.

Segundo o belo hemistíquio virgiliano – et vera

incessu patuit dea – é de crer que os antigos julgavam

conhecer os deuses, ou pelo menos as deusas, pelo modo

de pisar. Este privilégio divino é hoje, porém, bem

comum da maior parte das mulheres de educação.

Atualmente se distingue, só pelo andar, o homem

das cidades do homem dos campos. A mulher rústica se

caracteriza sobretudo por um certo peso corpóreo; não

possui aquela rapidez de movimentos, que assinala a

moça de fino trato, desde os músculos que lhe des -

cerram os lábios, por ocasião do riso, até as contrações e

expansões ondulosas, que agitam-lhe o corpo, no vórtice

de uma valsa.

Ora, estas diferenças no modo de exercer a

motricidade, que correspondem a outras tantas no grau

de cultura, apreciada em sua totalidade atual, acentuam-

se mais claras, quando as consideramos em relação às

fases sucessivas do desenvolvimento humano.

É inadmissível que há três ou quatro mil anos, a

mulher, esposa ou filha, que brilhava no paço dos

faraós, ainda que fosse a bela salvadora e educadora de

Moisés, tivesse a mesma graça, a mesma consonância de

movimentos orgânicos das que refulgem nos salões

atuais.

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Um progresso, portanto; este progresso não podia

dar-se sem a lei da hereditariedade.

Ainda mais: se o fugitivo instante do abrir e

cerrar dos lábios pudesse ser apreendido e descrito com

exatidão, os poetas que nos houvessem deixado pinturas

da boca ridente das Frines e das Lais, ou das Clódias e

das Lídias, dar-nos-iam talvez o direito de falar hoje de

um sorrir antigo e de um moderno sorrir. A beleza,

como a bondade, é um produto histórico, um resultado

da civilização.

Esta ordem de considerações, em aparência

digressivas, tem uma vantagem: é prevenir o espírito do

leitor contra a facilidade, com que se mete mãos a

resolver certas questões, que agora é que começam a

sair do fundo das conjeturas fantásticas e hipóteses

imaginárias.

Diz Haeckel, como acabamos de ver, que a

fisiofilia ou genealogia das funções, é um ramo de

conhecimento, que mal principia a rebentar. Ora, não há

dúvida que o estudo da atividade emocional e mental do

homem faz parte dessa genealogia, pois que idéias e

sentimentos, em última análise, são funções; por

conseguinte esse estudo participa também do estado de

balbuciência, em que ainda se acha a mesma fisiofilia.

Ninguém há, portanto, a não ser algum enviado

do céu, que já possa fazer a história da emocionalidade

e mentalidade humana – pois toda evolução é histórica –

e isto com o mesmo grau de segurança, com que se

conta a gênese e o desenvolvimento de qualquer artefato

notável dos nossos dias.

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Mais que algumas observações e plausíveis

conjeturas, ainda não é permitido aventurar neste

terreno. A isso me limito.

III

Quando se trata de dar um sentido ao estudo da

evolução emocional e mental do homem, a primeira

dificuldade que surge, é a que resulta da pobreza de

materiais precisos para a construção do edifício

planejado, se não se quer levantar, como os poetas, um

palácio de sonhos e quimeras.

O desenvolvimento humano divide-se em dois

grandes períodos – o pré-histórico e o histórico. Se já

sap imensos os embaraços, com que se tem de lutar no

seguimento da marcha evolutiva das idéias e paixões

humanas, dentro das raias da história – o que não serão

eles além desses limites, onde... alguns crânios e

pedaços de crânios, um par de queixadas e alguns

fragmentos de ossos, como diz Schleiden, são tudo o

que existe para dar testemunho da organização dos

nossos primitivos avoengos?

O autor que acabo de citar, faz a seguinte

comparação, esclarecedora e instrutiva: “Na noite

tenebrosa do interior da montanha, trabalhavam

minadores em perfurar um lado do monte Cênis. Do lado

oposto outros se ocupavam em igual mister. Ambos

sabiam que um dia haviam de encontrar-se, porque o

engenheiro tinha determinado as duas direções.

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De maneira análoga os naturalistas trabalham

através da noite de milênios transatos, divididos em dois

grupos, frente a frente um do outro. Eles sabem também

que um dia hão de encontrar-se, porque a ciência lhes

traçou a direção a seguir.

Ali, parte-se do ponto mais longínquo do passado,

da época dos primeiros seres vivos sobre a terra, e

acompanha-se o desenvolvimento contínuo até a origem

do homem. Aqui, porém, toma-se como ponto de partida

esse mesmo homem, tal qual ele se mostra atualmente, e

segue-se a sua história em sentido regressivo por meio

dos documentos, das tradições, dos monumentos que

resistiram à ação do tempo, enfim, por meio dos sinais

guardados nos últimos leitos da formação geológica.

Se afinal, e de que modo, estes dois grupos de

trabalhadores, no rompimento das espessas sombras do

passado, encontrar-se-ão um com outro, ainda não é

tempo de dizer”(3)

...

Ainda não é tempo de dizer – isto afirma um

prógono; e tanto basta para inutilizar a pretensão dos

epígonos, que já se julgam munidos de todos os dados

necessários para, de uma assentada, absorverem o

estudo do homem e das sociedades, desde as suas

origens mais longínquas até os nossos dias.

Neste número está, entre outros, o sociólogo

francês Gustave Le Bom, cuja obra L’homme et les

societés, semelhante a uma dessas mulheres, que apenas

interessam pelo diminutivo dos pés, visto que o resto é

vulgar, só tem de meritório a table des matières, que é

decerto prometedora e imponente, mas em vão,

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completamente em vão. O corpo do livro é quase nulo e

insignificante.

Nos meus anos de curso acadêmico ainda alcancei

a notícia de um fato, que diziam ter-se dado em uma

sabatina.

Certo estudante, respondendo à argüição de um

seu colega, não sei sobre que matéria, entendeu dever

apelar para a história, e disse convicto: - “não precisa ir

muito longe, basta o exemplo de Adão e Eva”; ao que o

lente acudiu: - “e poderia lembrar uma época mais

remota?”

O caso não deixou de produzir impressão cômica,

e foi então objeto de muitos comentários.

Entretanto os tempos mudaram-se, e quem quer

que hoje, lendo a obra de Le Bom, usasse daquela

expressão, não seria digno de riso, pois que o sábio

francês, para estudar o homem e a sociedade, para tratar

do direito, da religião, da moral e da indústria, começou

pelo protoplasma!...

Adão e Eva são de ontem. Os dois grupos de

trabalhadores, de que fala Schleiden, o sociólogo

reuniu-os todos em sua cabeça!

Não se oponha, à visa das minhas simpatias

haeckelianas, que também o autor da Natuerliche

Schoepfungsgeschichte começou de muito longe. Sem

dúvida; mas ele esbarrou no homem; ainda não transpôs

os limites da história natural, para fazer sociologia.

Se entre os alvos, para onde se dirige a

Entwicklungsgeschichte, ele assinala como disciplina do

futuro, uma ciência que ocupar-seá do desenvolvimento

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embrional dos troncos, famílias, comunas, Estados, e a

que dá o nome de cormogenia, não é de crer por isso

que já tenha essa ciência como assentada.

Quem proíbe ao moço de hoje, que ainda não tem

filhos, declarar que a sua primeira netinha chamar -se-á

Diotima ou Gnatênio, Terpsícore ou Melpômene? Pois o

caso é semelhante. Por ora, somente o nome.

Voltemos ao centro do assunto. A expressão –

evolução emocional, que é legítima spenceriana podia

ser muito bem, sem quebra de honra, substituída por

esta outra, nossa velha conhecida – desenvolvimento da

sensibilidade – assim como a sua companheira, a

evolução mental, nada também perderia, despido a roupa

de gala e tomando o trajo comum de... desenvolvimento

da inteligência.

Mas fiquem as novas frases, contanto que o seu ar

de novidade não se imponha aos espíritos irrefletidos

como uma conquista ou uma descoberta.

O estudo da emocionalidade e mentalidade do

homem tem duas faces: uma individual e outra es-

pecífica, ou para empregar ainda aqui as expressões de

Haecke, uma ontogenética e outra filogenética.

A evolução ontogenética de ambas ou de qualquer

das duas manifestações da vida, conquanto de muit a

importância no puro domínio da psicologia, como ela

deve ser estudada, e como parece que Condillac já tinha

um certo pressentimento no seu sistema de sensações

transformadas, todavia não é a que mais nos interessa

no domínio da história. Aqui o ponto cap ital da

indagação é a filogenia das emoções e das idéias.

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Há um problema muito maior e mais penoso, do

que é para o astrônomo catalogar estrelas na imensidade

do céu – é para o filósofo catalogar fenômenos, que

sucessivamente emergem do fundo da alma, através da

escuridão dos séculos.

A evolução emocional e mental da humanidade

forma uma imensa cadeia, cujo primeiro elo... quem

poderá definir? Conjeturá-lo apenas.

No princípio era o ovo de ouro, dizem as fontes

da sabedoria bramínica. Não há mister de remo ntar tão

alto. O evangelho da filogenia emocional e mental tem

um intróito menos poético e mais modesto.

No princípio... era a fome e o amor. Estes dois

aguilhões da ferocidade animal, que Schiller disse, bem

que com algum exagero, ainda hoje serem os únicos

sustentáculos do edifício do mundo, é de crer que

fossem realmente as forças originárias da cultura, de

toda cultura humana.

Nem se concebe que outras molas pudessem

mover o homem primit ivo, além desses dois ímpetos

psíquicos, redutíveis às duas capitais funções orgânicas

da nutrição e da propagação. Eles formam, por assim

dizer, as raízes da árvore genealógica da vida sensível e

intelectual.

Mas o que há de mais difícil neste assunto, não é

determinar o ponto de partida e o ponto de chegada, o

estado primitivo e o estado atual do desenvolvimento

das paixões e das idéias, das impressões e percepções do

homem. O problemático, o indecifrável talvez, consiste

em acompanhar com o pensamento a direção ascensional

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da monstruosa cadeia, cujos anéis se contam po r

milênios.

O problema se complica tanto mais, quanto é

certo que o estudo dessa evolução, em muitos casos, isto

é, em relação a muitas épocas, não seria um estudo de

psicologia, mas de psiquiatria histórica. Nele poderiam

encontrar-se, como diz Moritz Lazarus, o etnólogo, o

historiador e o alienista, com recíproca vantagem.

Ver-se-ia que não raras vezes o processo cultural

não tem sido mais do que um processo de

desalucinação, desde o primeiro esforço para vencer a

pantofobia infantil, que levava o homem a ver por toda

parte espíritos perniciosos, no fuzilar do raio, no silvo

do vento, no ruído das árvores e das águas, até o

trabalho atual de acabamento dos últimos fantasmas da

razão mal-educada.

Aprender é desiludir-se. O sistema de Copérnico

desiludiu o espírito humano de uma vã imagem dos

sentidos. Isto mesmo está de acordo com o fato e

significação da experiência.

Esta fonte de todo saber, a chamada mestra da

vida, é mais negativa do que positiva; ela consiste

menos em adquirir verdadeiras idéias novas, do que em

arredar velhas e falsas idéias. Não é em vão, mas antes

com muito senso, que o homem experimentado costuma

falar das suas desilusões.

Acresce ainda uma circunstância; e é que, não

obstante o longo decurso das idades, grande número de

sentimentos parecem ter ficado estacionários, e de um

modo mais anômalo do que se observa no domínio

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intelectual, onde também o progresso tem sido parcial e

incompleto.

IV

Aí está precisamente o ponto questionável nas

condições atuais da ciência. Já não é o saber se tem

havido e como tem havido evolução emocional e mental.

Se tem havido, é uma questão ociosa: como tem havido,

é uma questão sem resposta. Porquanto não bastam para

resolvê-la, dizer que a sensibilidade e a inte ligência se

têm diferenciado, no correr dos tempos. Nem todo

progresso é uma diferenciação, nem toda dife renciação é

um progresso, já o disse Haeckel.

As sutilezas dialéticas, as distinções capciosas da

escolástica, eram outras tantas diferenciações do pen-

samento; e ninguém com seriedade julgá-las-á um sin-

toma de evolução progressiva.

Dando pois como irrecusável – e não pode deixar

de ser – que a vida mental e emocional dos povos

históricos tem tido uma marcha ascendente, limito -me à

indicação de certos fatos, que podem ilustrar a teoria,

para depois entrar na questão, única admissível no caso

de saber qual das suas formas de atividade vital revela

mais progresso, ou se uma só tem sido a medida do

desenvolvimento de ambas.

Na categoria da evolução emocional compreende-

se também, e não sei se principalmente, o que diz

respeito às sensações, aos fenômenos de sensibilidade

física, segundo a velha tecnologia da escola.

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E é digno de nota: um espírito pouco afeito ao

estudo não achará grande embaraço em compreender que

um sentimento – o amor da pátria, por exemplo – tenha

sido alterado pela ação do tempo; mas esse mesmo

espírito dificilmente compreenderá que uma sensação ou

gruo de sensações não haja mostrado sempre um caráter

idêntico em todas as épocas da história.

Entretanto é certo que a segunda asserção é tão

razoável como a primeira.

Sirvam de prova as sensações da vista.

“Dois terços dos raios enviados pelo sol, diz

Tyndall, não despertam em nossos olhos nenhuma

sensação visual. Os raios aí estão, mas falta o órgão

próprio para transformá-lo em luz”... Terá sido sempre

assim? Parece que não. Há três mil anos, nem esse

mesmo terço era percebido.

Lazarus Geiger, em sua História evolutiva da

língua e da razão humana, foi o primeiro a observar que

o progresso da humanidade tem tido lugar de um modo

quase paralelo à diferenciação das cores. Os gregos do

tempo de Homero não conheciam o azul. Até mesmo

Demócrito e os pitagoreus só sabiam de quatro cores:

branca, preta, vermelha e amarela.

A cor que hoje nos delicia na contemplação do

céu e do mar, a cor que hoje racionalmente associa-se à

idéia de ns belos olhos de moça loira, foi portanto uma

das últimas, senão a última, adicionada pela retina do

homem ao espectro solar.

Daí vem talvez que certas almas, que chamarei

modernas, poeticamente delicadas e delicadamente

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sensíveis, são justamente aquelas, que mais gostam do

azul.

Não dissimulo que, à primeira vista, a coisa é

difícil de admitir; porém, depois de alguma reflexão, a

dificuldade diminui e tende a desaparecer. As línguas

por si sós oferecem um meio de verificação.

O black alemão e o black inglês têm raiz comum

no sânscrito. O caeruleus latino, que passou a significar

azul, pois é neste sentido que os poetas falam de

cerúleas ondas e cerúleos céus, nada encerra em sua

origem, que dê idéia de cor. A raiz sânscrita quer dizer

cavus, cavado, côncavo.

A mesma ordem de considerações se pode fazer a

respeito dos sons. A evolução das sensações auditivas é

evidente. A história da música é em grande parte a

história dessa mesma evolução.

Desde a lira do grego Timóteo, que aliás foi um

revolucionário em aumentar-lhe o número das cordas, e

mereceu ser acusado por efeminar os ânimos com as

suas melodias; desde a lira do Timóteo até o piano de

Liszt, há um progresso estupendo, mas também, afinal,

o que há progredido – é somente o ouvido do homem.

É de crer que os antigos, usando de menor

número de notas, não iam, ainda assim, além do

diatonismo; o cromatismo lhes era desconhecido. A

verificação direta é impossível; mas podemos recorrer a

uma indireta.

Quando se presta séria atenção à estrutura

musical das canções populares, produtos de espíritos

inteiramente estranhos à cultura hodierna, observa-se

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que os componistas anônimos de tais canções fazem

toda a sua despesa com quatro ou cinco notas; as

subidas e descidas da voz são sempre diatônicas. Não há

razão de supor alguma coisa de semelhante na música da

antiguidade? Eu o creio.

Atualmente, o cromatismo já vai ficando um

pouco atrás do desenvolvimento acústico. O ouvido

bem-educado já leva mais adiante o fracionamento da

escala, concebendo e admitindo intervalos entre os

semitons.

A polifonia moderna não pode produzir em

ouvidos comuns senão simplesmente a impressão do

barulho; ao passo que órgãos melhor desenvolvidos

estão no caso de seguir e apreciar, no rebuliço de uma

grande orquestra, sem perder a impressão do conjunto, a

sonoridade isolada de três e mais instrumentos.

Esta marcha evolucional das sensações

auriculares, que se diferenciam pelo andar dos tempos,

parece também obedecer à influência das raças, nos

limites em que tal influência pode dar-se.

Uma jovem polaca, Dra. Susana Rubinstein, em

sua tese inaugural – Die sensoriellen und Sensitiven

sinne(*), faz a este respeito uma observação curiosa. Ela

diz que a diversidade da vida espiritual e psíquica da

cada povo repousa em grande parte sobre o predomínio

de regiões e grupos determinados de sensações.

Assim, a raça ariana e a raça semítica mantêm-se

entre si, como o olho e o ouvido. Dão disso testemunho

(*) O sentido sensorial e sensitivo. (T. do E.).

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o senso do plástico, predominante na primeira, e o

íntimo recolhimento da vida sentimental, que pre-

pondera na segunda. A aptitude especial dos judeus para

a música é ainda uma prova bem significativa.

E quem sabe, podia perguntar à minha bela

doutora – quem sabe, se a esta mesma preponderância

não se prende o fato da exaltação religiosa, do ardente

fideísmo judeu, em perfeita harmonia com o princípio

paulínico – fides ex auditu – (A fé vem do ouvido?) A

pergunta não seria sem propósito.

O tema é inesgotável, e não tenho a pretensão de

absorvê-lo. Pelo que toca às outras sensações, a

observação atenciosa chega aos mesmos resultados,

ainda que se note mais ou menos morosidade no

desenvolvimento deste ou daquele sentido.

Assim se estabelecem, de indivíduo a indivíduo,

diferenças de grau sensitivo, bem dignas de estudo.

Somente uma rápida indicação a respeito. Não há

quem não ouça falar e não fale, por sua vez, da

relatividade dos gostos. Nesta frase existe, a meu ver,

um largo assunto de indagação filosófica. Relatividade

de gostos quer dizer relatividade de sensações e

sentimentos; mas esta se reduz a uma relatividade do

tempo, que é a unidade de todas as antíteses da vida

sensível, é o único material do sentimento. Relatividade

de gostos significa, em última instância, diferença de

tempo, diferença de desenvolvimento emocional.

Eu gosto disto, ou daquilo, de que aliás tu não

gostas, são expressões que querem dizer: nós nos

achamos em períodos diversos da evolução sensível.

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A divergência de dois espíritos sobre a beleza de

um objeto quase sempre pode ser traduzida nas

seguintes proposições: eu ainda sinto, como sentiram os

nossos mais remotos antepassados, e tu já sentes, como

talvez hão de sentir os nossos mais longínquos pósteros.

A humanidade é como o céu, cujo espetáculo,

segundo a frase de A. von Humboldt – Ungleichzeitiges

darbietet – isto é, apresenta ao mesmo tempo diferentes

pontos do tempo.

Nós vemos o sol, como e onde porventura ele se

achava a 8 minutos; vemos a estrela alfa da lira, como e

onde ela esteve há 12 anos; as mais distantes nebulosas

mostram-se alguma coisa que existiu há 20 mil séculos.

Muito quadro interessante, que hoje contemplamos no

céu da noite, desapareceu talvez bem antes dos tempos

da primeira dinastia egípcia.

A humanidade culta, em qualquer instante de sua

atual existência, também apresenta esse – Ungleichzei-

tiges – se não em sua totalidade, pois é impossível

observá-la, ao menos nos diversos grupos, que a

compõem.

As diferentes fases do desenvolvimento da

espécie, desde a época paleolítica até o presente,

coexistem no fundo da vida emocional de qualquer

moderna sociedade.

Assim como ainda há indivíduos civilizados, que

pela sua organização podem oferecer assunto para uma

página de morfologia pré-histórica, assim também há

outros, no seio mesmo da maior cultura, que pelo lado

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íntimo, sobretudo pelo lado sensível, fornecem matéria à

psicologia das épocas de pedra.

Todo mundo sabe de cor a velha máxima: os

grandes homens são contemporâneos dos séculos fu -

turos, por seus pensamentos. Bem modernos glosar e

dizer que os pequenos homens são contemporâneos dos

séculos passados, por seus sentimentos.

Há ainda quem opine que a vida sentimental da

humanidade não tem sido progressiva. Conquanto,

porém, esta opinião possa mencionar em seu favor a

autoridade de um Buckle, todavia ela não merece que se

lhe reste atenção. Não conheço modo de ver que vá mais

de encontro aos fatos.

Indubitavelmente uma análise ligeira de certos

sentimentos e paixões leva a crer que não tem havido

progresso. Há mesmo algumas emoções, das quais não

só se pode dizer que o progresso é nulo, como até que o

regresso é bem sensível.

A emoção religiosa, a fé que fazia aos santos,

está nesse caso. O próprio patriotismo de hoje, medido

pela bitola histórica de gregos e romanos, é uma

degeneração.

Mas a questão me parece ser outra. O

enfraquecimento dessas paixões, que é para elas,

consideradas em si mesmas, um defeito, uma pobreza,

não será para a vida total uma vantagem, um passo de

avançada? Se nos dão é lícito afirmar, a simples dúvida

basta para obstar que se assente qualquer teoria em

contrário.

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Quanto à fixidade e permanência aparente de

certos sentimentos, a ilusão é mais fácil de dissipar. E

previno logo que se me acuse de contraditório, por haver

dito que há espíritos que pertencem, por seu modo de

sentir, a velhas e longínquas eras. Importa não confundir

o estado atual deste ou daquele indivíduo com o estado

da humanidade, contemplada em suas alturas.

Com efeito, qual é o sentimento, que na realidade

tenha permanecido completamente idêntico, indife-

renciado, inevolúvel? Nenhum. Quando mesmo fosse

exato, como muitos ainda crêem, que nos monumentos e

na literatura dos povos espelha-se toda a sua vida

psíquica, e pudéssemos aceitar, como outras tantas

pinturas d’après nature, o sem-número de quadros, mais

ou menos idealizados, de antigos tempos, ainda assim as

diferenças entre o outrora e o hoje seriam assaz

visíveis.

Os exemplos são numerosos, mas limito -me a um

só. Ainda é questão indecisa saber se os antigos,

principalmente os romanos, tiveram aquilo que hoje

chamamos o senso da natureza, o gosto e compreensão

das belezas naturais.

Sem aderir de todo à opinião negativa, re-

presentada por Schiller, entendo também que não é

aceitável a opinião oposta, na extensão que lhe dá, entre

outros, Alfredo Biese.

A alma da poesia antiga era o senso mítico, pelo

qual a natureza se povoara de seres imaginários; o que

repousa no pressuposto de que, sem esses seres, a

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natureza não tinha encantos, não podia, por si só, nutrir

e engrandecer o espírito poético.

Alguns versos de Lucrécio, Catulo e Virgílio,

provam tanto que a intuição dos últimos tempos da

república e princípio do império era naturalística, como

pode porventura um clássico dos nossos dias, que ainda

ache prazer em Júpiter e seu séquito, provar que a

intuição presente continua a ser mítica e politéica. A

soma disto é que o sentimento poético desenvolveu -se e

alterou-se.

Na gama das emoções, quero crer que o amor é a

nota mais agradável. Não terá ele também cedido à lei

do progresso? Sem dúvida alguma. O amor de outrora

não era o amor atual.

Nem isto está em contradição com idéias já por

mim enunciadas. Eu disse uma vez que há um amor

superior a todas as diferenciações de raças e costumes –

é o amor-morbus, o amor que invade o homem, sem

pedir licença, à maneira de cólera ou de febre, como

opinava Iwan Turguenieff.C

Mas esse amor, quando hoje aparece, por efeito

mesmo da sua raridade, já tem direito a ser classificado

entre os casos de atavismo.

Em geral ao amor hodierno falta o momento

trágico, produzido pelo conflito de uma paixão

indomável com a idéia da impossibilidade de qualquer

união sexual, ainda que esta se reduza ao mínimo de um

beijo. Com o nivelamento das classes sociais, realizado

ou mesmo só pretendido, a democracia matou a

primit iva poesia do amor.D

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V

A propósito da evolução emocional e mental,

importa ainda não esquecer que os dois desenvol-

vimentos não se dão separadamente.

Qualquer que seja o grau de inferioridade em que

o homem se ache na esfera evolutiva, ele não pode

emocionar-se, sem que esta emoção seja acompanhada,

consciente ou inconscientemente, de uma qualquer

atividade mental.A primeira forma do homem pré -

histórico, o homem da época de pedra talhada, já tinha

dado um primeiro passo na evolução intelectual, desde

que pôde imaginar um modo de aumentar a própria

força, armando-se de um instrumento, por ele mesmo

afeiçoado e acomodado às necessidades da vida.

Vai decerto uma imensa distância entre a mão que

talhava pedras, como armas, como utensílios, e a mão

que hoje cinzela o mármore, para fazer objetos de luxo –

mais do que isso, para fazer objetos de pura

contemplação estética.

Mas releva observar que qualquer escultor dos

nossos dias, ainda mesmo que ele traga o nome de

Canova, é um herdeiro do homem primitivo, desse

homem que já sabia dar à pedra, por assim dizer, uma

feição humana, adaptando-a de qualquer modo a lhe

prestar serviços na luta pela existência.

Aqui vejo que há um fundo de verdade histórica

nestas palavras, que uma vez escrevi: “antes que a arte

apareça sob a forma de um passatempo, de um brinco do

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espírito, ela deve aparecer sob a forma de uma atividade

prática, ela deve entrar na categoria do trabalho”.É

altamente provável que os Fídias e os Praxíteles, os

gênios da escultura em geral, que animam o mármore

com o gracioso espírito da beleza, são descendentes

diretos do selvagem das cavernas, que animava o sílex

com o grosseiro espírito da utilidade; até porque é de

supor que lá mesmo, na primeira fase do período pré-

histórico, a adaptação da pedra ao serviço humano não

foi obra de todos ao mesmo tempo, mas descoberta de

gênio.

Não suponhamos, portanto, que a evolução

emocional encerre alguma coisa de mais antigo, de mais

primit ivo, que a evolução mental. Esta não é uma fase

sucessiva daquela, mas apenas uma outra forma do

desenvolvimento humano.

O que há, porém de mais seriamente ques-

tionável, está em saber, ou procurar saber, qual das duas

evoluções tem sido mais rápida – o que quer dizer, qual

dos dois lados da psique humana: sensível e intelectual,

tem passado por mais transformações, ou se ambas se

acham no mesmo grau evolucional.

Que esta segunda questão só pode ser resolvida

de modo negativo, os fatos o atestam. O caráter da

evolução emocional em relação à mental é quase sempre

anacrônico, só raras vezes e excepcionalmente,

sincrônico.

As idéias de um indivíduo podem ter a última

feição, a frescura da atualidade, e todavia as suas

emoções quase sempre regularem-se pelo ritmo de uma

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época anterior. O coração é um relógio, que de ordinário

anda atrasado.

Todo mundo conhece, entre outros, o fato de

homens, que têm idéias assentadas sobre a não-exis-

tência de Deus, praticarem atos de veneração e respeito,

que revelam a crença em contrário.

A um tal fenômeno poder-se-ia chamar –

predomínio da filogênese sobre a ontogênese, na esfera

emocional, como também o ateísmo, a negação de Deus,

é uma espécie de reação da ontogênese sobre a

filogênese, na esfera intelectual.

É aqui ocasião de tornar mais claro o sentido das

palavras filogênese e ontogênese, dando a fórmula da

lei, que Haeckel diz ser a lei suprema da bio logia.

Ele mesmo enunciou-a em latim, nos seguintes

termos: ontogenesis est summarium phylogeneseos,

tanto integrius, quanto hereditae palingenesis conser-

vatur, tanto minus integrum, quanto adaptatione

cenogenesis introducitur.

Eis aqui: a ontogênese, isto é, o desenvolvimento

do indivíduo, é uma recapitulação da filogênese, quero

dizer, o desenvolvimento da série, geração, tronco,

povo, raça ou espécie, tanto mais completa, quanto pela

herança conserva-se a palingênese, isto é, o renas-

cimento, e tanto menos completa, quanto pela adaptação

se introduz a cenogênese, quero dizer, o desvio ou

falseamento da evolução.

Expliquemo-nos agora. Um homem herda de seus

pais uma crença feita sobre Deus e as coisas de além-

túmulo. Esta crença divide-se em duas partes: uma parte

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mental, que se compõe de juízos, raciocínios, afir -

mações ou negações categóricas, e outra emocional, que

se compõe de aspirações e estremecimentos, de dores e

prazeres, de esperanças do céu e terrores do inferno.

Sucede, porém, que esse homem, pelos estudos

que faz, pelos livros que lê, pelo ambiente social em que

se move, adquire uma intuição diversa da intuição

herdada, e chega a negar aquilo, que seus pais, que seus

avós afirmavam. Aí temos a ontogênese, reagindo contra

a filogênese.

Mas como, por outro lado, sentimentos novos não

se bebem nos livros, nem o meio é capaz de transformá-

los de repente, daí resulta uma certa desproporção entre

o mental e o emocional, ou o que chamei predomínio da

filogênese sobre a ontogênese, e o pensador libérrimo

não está livre de curvar o joelho, como qualquer dos

seus avoengos, aos idola tribus da simpleza popular.

Só isto é que bem explica a chocante anomalia,

pela qual materialistas convictos sentem um alafrio

horripilante, ao entrarem de noite numa casa escura e

solitária; e nós outros, que lemos Darwin, que nos

lisonjeamos de um pouco de cultura filosófica, não

estamos muito longe de espavorir -nos ainda por almas

do outro mundo e quejandas visões fantásticas.

É esta mesma falta de sincronismo ou homo-

cronismo dos dois desenvolvimentos, que pode dar a

razão de muito fenômeno esquisito, para o qual não se

acha melhor explicação, do que um apelo à hipocrisia, à

simulação e ao cálculo.

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Semelhantes motivos dão a razão de alguma

coisa, porém não dão razão de tudo.

Assim, no mundo político, não é raro ver liberais

e até republicanos, qualidades estas que significam um

estado mental determinado, praticarem ações dignas do

mais atrasado conservador e monarquista.

No mundo social, democratas de idéias firmes

não duvidam tomar de repente uma atitude respeitosa e

submissa em presença do aristocrata.

No mundo religioso, homens instruídos vão aos

templos, munidos de saltérios e livros de orações; o que

fez um daí Carl Vogt perguntar a si mesmo, para que

fim, diante de um tal espetáculo, gastava mais as suas

forças em escrever e pensar!...

Mas a razão é uma só: a diferença de tempo, a

falta de homocronismo entre as duas evoluções.

O que se observa nos indivíduos, dá-se também

nos povos, quer considerados em si mesmos, quer

comparados uns com outros.

Entre as nações cultas existe na hora presente

uma relação sincrônica, no domínio das idéias, não

assim porém no domínio dos sentimentos, onde cada

uma delas ocupa uma posição diferente.

Há quem conteste que nos povos, considerados

em si mesmos, nos diversos estádios de sua história, os

dois desenvolvimento deixem de ser homócronos.

Mas isto só pode sustentar-se ou por capricho, ou

por ignorância. Por capricho, se a tese, não obstante ser

errônea, todavia presta auxílio a qualquer s istema de

especulação sociológica. Por ignorância, se realmente

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crê-se afirmar uma verdade de fato, quando os fatos

estão a dar-lhe o mais solene desmentido.

Quem estuda, por exemplo, a história do século

XVI na Itália, vê justamente a maior desarmonia ent re o

sentir e o pensar.

Como diz Settembrini, os sacerdotes, os homens

de Estado, os escritores, poetas, artistas, enfim todos os

homens daquele tempo, não eram mais que inteligências,

sem paixões grandes, sem sentimento religioso e o que é

pior, sem moral; poristo viam, mas não sentiam os males

da pátria; viam mas não aborreciam a corrupção

religiosa, antes chamavam-na esplendideza: poristo

também fizeram na arte obras inimitáveis pelo engenho,

mas sem afeto.

E que homocronismo poder-se-ia realmente

conceber entre o fulgor intelectual da corte de um Leão

X, ou mesmo de um Luís XIV, e os baixos sentimentos,

que lhe ferviam no íntimo?

Se a respeito de todos os homens, sobre quem se

emprega a frase comum – belo talento, porém mau

caráter – nas raras ocasiões em que esta frase é ver-

dadeira, se pudesse fazer um estudo genético, profundo

e detalhado, ver-se-ia que tal desproporcionalidade é

redutível a uma desarmonia entre a herança e a

adaptação, isto é, a uma simples diferença cronológica.

Nesses casos o belo talento é sempre um parvenu

em relação ao mau caráter. Verdade, quanto aos in-

divíduos, que também pode ser aplicada às nações.

A nossa questão se reduz enfim a esta fórmula

geral: na ontogênese dos indivíduos e dos povos, qual

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das duas evoluções ressente-se mais da influência da

herança, qual das duas abre mais fácil caminho à

introdução da cenogênese?

Parece-me incontestável que a evolução emo -

cional é mais lenta, mais sujeita à conservação

palingenética. Daí, portanto, um primeiro corolário: as

atavizações são menos raras na ordem dos sentimentos

do que na das idéias.

É mais fácil um homem bruto do começo do

século passado contar hoje descendentes de gênio, do

que um ladrão da mesma época ter atualmente o seu

nome ligado a uma descendência honrada.

Costumamos chamar os mais velhos nossos

maiores; os que hão de vir depois de nós, serão os

nossos melhores. Isto pode ser afirmado em qualquer

momento da história. Porém esse melhoramento é

sempre mais largo, mais compreensivo pelo lado

intelectual.

Não se me objete com o que disse anteriormente a

respeito do amor. Ali travava-se de comparar um sen-

timento de hoje com o mesmo sentimento de outrora;

aqui, porém, a confrontação é entre fenômenos dife -

rentes. Se, entretanto, quisermos sujeitar o amor a igual

apreciação, teremos igual resultado.

Como em todos os tempos da cultura humana, o

amor em nossos dias também tem um ideal; mas

também, como em todos os tempos, está muito aquém

desse ideal, seja ele qual for, cavalheiresco ou român-

tico, filosófico ou naturalíst ico.

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A paixão é sempre diversa dos últimos moldes da

idéia.

É possível que um dia se acabe de todo com a

metafísica da cabeça; mas me parece que nunca poder -

se-á extinguir de todo a metafísica do coração... Sim!...

O coração também é um metafísico: Estremece por formas invisíveis, Anda a sonhar uns mundos encantados. E a querer umas coisas impossíveis.

Tudo isto conseqüência da maior lentidão do

desenvolvimento emocional. Por isto mesmo, e porque o

mecanismo social não repousa, como queria A. Comte,

sobre opiniões, mas sobre sentimentos, o progresso das

sociedades é igualmente lento; ele fica sempre atrás de

todos os programas e corpos de doutrina, que pretendem

reformá-las.E

NOTAS DO AUTOR

(1) Philosophische Monatshefte – IX Band. pág. 442.

(2) Quanto à circuncisão, Haeckel confessa que a influência da herança não se há sentir entre todos os povos, que a praticam, há milhares de anos. Porém aqui levanta-se uma objeção mais embaraçosa do que a proveniente da incorrigibilidade do prosaico tegumento; é a que provém da rebeldia da mais interessante das membranas. Com receio de ofender ouvidos castos, exprimo o meu pensamento na própria língua de Haeckel: Seit Jahrtausenden schmuecken sich die Maedchen mit derselben jungfraeulichen Blume, die

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der rohe Mann immer wieder entblaetert: und doch ist das Jungfern – Haeutchen im Lauf der Zeit nicht nur nicht verschwunden, sondern vielmehr, wie es scheint, je hoeher sich die Menschheit entwickett hat, desto mehr haertlich und widerstrebend geworden.(*) (*) Desde milhares de anos, as moças se adornam com as mesmas flores virginais que os homens grosseiros desfolham sempre de novo. E assim é a virgindade – membraninha que no correr do tempo nunca desaparece, porém, antes, quanto mais alto evolui a humanidade, mais dura e resistente se torna. (T. do E.). (3) Unsere Zeit. Neue Folge. Fuenfter Jahrgang. Erste Haelfte, pág. 615.

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III

RELATIVIDADE DE TODO CONHECIMENTO

(1885) F

A primeira proposição do programa pretende

estabelecer como verdade a relatividade dos conhe-

cimentos humanos.

Parece à primeira vista que nenhuma dúvida se

pode levantar sobre tal ponto. Desacreditada a

pretensiosa ontologia metafísica e quase reduzida a

proporções de velha mitologia, que tem perdido o seu

primit ivo encanto poético, é explicável que a idéia da

relatividade de todo o saber humano viesse substituir o

antigo prejuízo dos princípios absolutos e absolutas

verdades.

Mas é mister que nos entendamos e tratemos logo

de prevenir-nos contra um grande erro, que pode

resultar de uma má interpretação do programa.

Ele começa por dizer que os conhecimentos

humanos são relativos. Se com isto quis apenas signi-

ficar que os nossos conhecimentos estão da dependência

de certas condições, sem cujo preenchimento eles não

podem ser completos, e porque tais condições nunca

serão perfeitamente preenchidas, também eles nunca

estarão no caso de se chamarem perfeitos, se esta é a

idéia visada pelo programa, nenhuma contestação.

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Não é crível, porém, que a isto se quisesse

restringir a proposição mencionada.

A idéia da relatividade de todo o saber não é uma

idéia nova; pelo contrário é quase tão velha como a

filosofia. Entretanto, neste século, e mesmo em nossos

dias, ela parece ter tomado um caráter novo. Pelo menos

é certo que filósofos notáveis não se têm designado de

consumir, por amor dela, muito papel e muita tinta,

posto que nenhum proveito sensível nos tenha advindo

de semelhante gasto.

É na Inglaterra principalmente, que, nos últimos

tempos, a teoria da relatividade do saber tem sido

professada e discutida com particular predileção. Quem

primeiro ali apresentou-a com uma certa insistência

(refiro-me aos tempos atuais) foi Hamilton, que aliás

não teve coragem de sustentá-la em todas as suas

conseqüências.

Na obra de Stuart Mill sobre a filosofia de

Hamilton há dois capítulos (I e II) consagrados à

elucidação desta doutrina.

Sobretudo interessante é o capítulo II, porque

nele vêm expostas concisa e claramente todas as

diversas nuanças da teoria em questão.

Porém é de supor que este distinto pensador, a

despeito de sua grande sagacidade, deixou despercebido

um ponto essencial na afirmação da relatividade dos

nossos conhecimentos.

Mill opina que essa relatividade consiste no fato

de que nós só podemos conhecer as nossas próprias

afecções e nossos estados íntimos. Por isso, para ele, os

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extremos relativistas são aqueles que afirmam que nós

não só nada conhecemos além dos nossos próprios

estados, como também que nada mais temos, nada mais

há a conhecer.

Mas isto envolve um engano. Com a relatividade

do saber admite-se um elemento de inverdade, de

imperfeita validade objetiva.

Afirmar que os nossos conhecimentos são

relativos só tem sentido sob o pressuposto de que as

coisas em si não são tais, quais são para nós, e que só

podemo-las conhecer tais quais elas nos aparecem.

Negando-se desta distinção, todo o saber é

decerto relativo a nós, mas esta relatividade não implica

então nenhuma inverdade dos conhecimentos, nenhuma

limitação da sua validade.

O saber seria então absolutamente verdadeiro,

Mas quando se diz que os conhecimentos humanos são

relativos, o que se quer afirmar é justamente o contrário

daquilo, é que absolutamente verdadeiro não é o nosso

saber.

Esta teoria da relatividade formou-se em oposição

à consciência comum, e este ponto não deve ficar

esquecido.

O homem, que não reflete, crê: primeiro, que ele

conhece as coisas exatamente como elas são em si;

segundo, que estas coisas existem justamente como são

conhecidas, independentes do conhecimento; são objetos

em si, absolutos, sem relação a nós.

Foi a inconciliabilidade destas duas asserções que

provocou os primeiros escrúpulos cépticos.

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Já na Grécia, Protágoras dissera que o homem é a

medida de todas as coisas, das que são, como elas são,

das que não são, como elas não são; e por este modo

levou a doutrina da relatividade aos seus extremos

limites.

Porém é de notar que quando assim se leva tão

longe esta teoria, ela converte-se no seu contrário e dá

aos nossos conhecimentos uma validade e verdade

ilimitadas, que de todo se opõem aos fatos.

A tese de Protágoras implica necessariamente que

os objetos cognoscíveis não se distinguem do conhe-

cimento que temos deles, pois que a não ser assim, o

sujeito cognoscente não poderia ser medida de tudo, se o

conhecimento e seu objeto não são duas, mas uma só

coisa, então não se pode mais falar de relatividade. Uma

relação, se esta palavra tem um sentido, não é concebível

sem duas coisas, entre as quais a relação exista, e sem

relação, naturalmente, não é possível relatividade alguma.

Os relativistas modernos aproximam-se de

Protágoras. Porém nós acabamos de ver onde pára o

protagorismo.

A doutrina da relatividade só tem senso racional,

nas duas seguintes hipóteses: primeira, que os objetos

cognoscíveis são determinados pela própria natureza do

sujeito cognoscente; segunda, que eles, justamente por

causa desta sua relatividade, não representam a ver -

dadeira, absoluta essência da realidade.

Que se deve entender, quando se diz que os objetos

cognoscíveis são relativos a sujeito, estão em necessária

relação com ele? Somente isto: que na essência dos mês-

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mos objetos há alguma coisa que os prende ao sujeito,

uma originária adaptação daqueles às leis deste.

A relatividade do saber encerra dois momentos,

diz A. Spir: primeiramente, o conhecimento dos objetos,

dados como coisas externas no espaço, só é valioso com

relação ao ponto de vista da consciência comum, mas

objetivamente, ou em si, inexato, não verdadeiro. Con-

forme a expressão de Kant, as coisas têm no espaço só

uma realidade empírica, nenhuma realidade transcen-

dental. Em segundo lugar, os objetos empíricos são

simples fenômenos, não apresentam a realidade em sua

essência originária, absoluta, porém na forma estranha

da pluralidade da mudança e da antítese ou dualidade de

sujeito e objeto de conhecimento.

E eis aí o que se pode dizer em nome da filosofia

ainda que em ligeiros traços a respeito da afirmação que

os nossos conhecimentos são relativos.

Entretanto, dou-me pressa em confessar que a

questão da relatividade, assim concebida, e só assim é

que regularmente deve sê-lo, não tem muito cabimento

na ciência, de que nos ocupamos. Mal se descobre a

ligação que possa haver entre esta tese e as demais que

lhe sucedem no encadeamento lógico do sistema.

Para ter alguma razão-de-ser é mister considerá-

la no sentido de limitação. Todos os nossos conhe-

cimentos são limitados. E dois são estes limites, diz

Dubois Reymond: um consiste em que nós não podemos

saber o que é força e matéria; o outro em que não

podemos saber, como dos átomos e seu movimento pode

nascer uma sensação...

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IV

GLOSAS HETERODOXAS A UM DOS MOTES DO

DIA, OU VARIAÇÕES ANTI-SOCIOLÓGICAS

(Concluído em 1887) G

Nur durch die innigste Wechselwirkung und gegenseitige Durchdringung von Philosophie und Empire entsteht das unerschuetterliche Gebaeude der Wahren, monistischen Wissenschaft.(

*)

E. HAECKEL

I

Eu não creio na existência de uma ciência social.

A despeito de todas as frases retóricas e protestos em

contrário, insisto na minha velha tese: a sociologia é

apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão

pouco realizável.

Além deste caráter de simples postulado do

coração, que vê ou quisera ver na sociedade humana um

(*) Somente através da mais íntima ação mútua e da recíproca

penetração entre a filosofia e a empiria surge o inabalá vel edifício da verdadeira ciência monista. (T. do E.).

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todo orgânico, subordinado, como os demais organis -

mos, a certas e determinadas leis, a palavra não tem

outro sentido, que mereça ser investigado.

Logo em princípio, salta aos olhos que o estudo

dos fenômenos sociais, considerados em sua totalidade e

reduzidos à unidade lógica de um sistema científico,

daria em resultado uma estupenda pantosofia, eviden-

temente incompatível com as forças do espírito humano.

Se nem mesmo como ciência descritiva, que aliás

envolve, na opinião de Haeckel, uma contradictio in

adjeto, a ciência social é construtível, pois que não

podem ser descritos, todos os fenômenos da sua alçada,

por que razão sê-lo-ia como ciência de princíp ios, como

ciência de leis, que têm de ser induzidas da observação

desses mesmos fatos?

Desconheço uma tal razão. Entretanto, não se

suponha que eu tenha jurado aos meus deuses fazer uma

guerra à sociologia. Não estou disposto a afrontar o

martírio na luta contra ela. Porém julgo ter o direito de

exigir dos seus sectários alguma coisa de mais sério do

que meia dúzia de estribilhos e convenções da escola.

Exijo pouco, mas esse pouco é tudo.

Enquanto pois, assim como a velha astrologia dos

Apolônios de Tiana, dos magos da Caldéia, passou a ser

astronomia dos Copérnicos, dos Galileus e dos Keplers,

a nova sociologia dos Spencers e outros sociólogos e

magos do Ocidente, não passar também a ser socionomia

de sábios, de estadistas e políticos, estou firme na minha

convicção: a sociologia é uma frase.

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E isto parece tanto mais admissível, quanto é

certo que, bem ponderado, nem sequer já nos achamos

no período propriamente sociológico, mas no período

sociolátrico. A religião da humanidade, o semideísmo

dos grandes homens, que é sem dúvida mais honroso,

porém não menos inexplicável que o semideísmo dos

Césares, pertencem a esta fase.

Entretanto a sociolatria, ainda mesmo que lhe

sirvam de objeto as mais altas manifestações da gran-

deza humana, é inconciliável com uma ciência social,

qualquer que seja o grau do seu desenvolvimento.

Desde que conhecemos, por exemplo, a natureza,

a órbita e a marcha dos cometas, não há mais lugar de

contemplá-los com admiração e terror. Assim também,

se é conhecida a lei da formação dos gênios, pois qe os

gênios são fenômenos sociais, como todos da mesma

ordem, segundo pretende a sociologia, redutíveis a leis,

para que engrandecê-los e deificá-los?

A contradição é palpável; e destarte a sociolatria,

que ainda reina nos próprios domínios da chamada

sociologia positiva, encarrega-se, por si só, de combatê-

la e aniquilá-la.

Não me é estranho que sociólogos mais coerentes

com os pressupostos apriorísticos da sua ciência, negam

o mérito e importância dos grandes personagens. Mas

também é certo que o que eles assim revelam de senso

lógico, não compensa-lhes a falta de senso histórico.

A pequenez das grandes, como a grandeza das

pequenas individualidades, é um paradoxo, apenas

tolerável na esfera religiosa, onde o valor das idéias não

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é determinado pela verdade delas, mas sobretudo pela

sua capacidade de iludir e consolar.

Debemur morti nos nostraque: é um bonito

princípio este, da igualdade perante a morte, porém

ainda mais estéril que o axioma democrático da

igualdade perante a lei, e como tal só tem um sentido –

no pórtico dos cemitérios. Fora daí, dentro das raias da

vida, no vasto laboratório das idéias e das ações, a dupla

categoria de grandes e pequenos homens é a expressão

de um fato, que nenhum sofisma poderá jamais destruir.

É incalculável o gasto que se tem feito de papel e

tinta em proclamar o alto valor da sociologia. Porém

mais incalculável me parece a falta de senso, com que,

ainda hoje, os sociólogos se julgam obrigados a de-

monstrar com argumentos de todo gênero a realidade

desse ramo de indagação e sistematização científica.

Como se isto não fosse bastante para provar

justamente o contrário. Uma ciência, que é realmente

tal, não tem necessidade de fazer de sua própria

existência a primeira questão, que lhe cumpre resolver.

Se ela de fato existe, os seus resultados incumbir -

se-ão de defendê-la. Insistir na demonstração de uma

ciência social, no sentido positivo da palavra, não é

mais, por conseguinte, do que um aprova indireta, ou

uma confissão inconsciente da sua inexistência.

II

Os sociólogos têm um certo número de teses

favoritas. Não é meu intuito referi-las todas aqui e batê-

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las uma por uma, até porque já me vai parecendo uma

inútil perda de tempo, semelhante à que se dá com a

refutação de qualquer tema teológico, refutar a

sociologia.

Em geral os sociólogos pertencem à ordem dos

crentes; e crenças não se refutam.

Mas entre os pressupostos da pretendida ciência

há um, sobretudo, que ainda merece ser apreciado, não

tanto porque ele importa para a sociologia uma questão

de vida e morte, como porque é o ponto principal, se

não o único, no qual os sociólogos têm de seu lado a

opinião de filósofos mais sérios, de espíritos mais

elevados. Quero falar da questão do determinismo.

Já uma vez declarei, e não há muito tempo, que

ao estava longe de crer serem as leis da liberdade as

mesmas leis da natureza; e permaneço nesta opinião.

Mas importa não confundir coisas distintas. Dizer

que a liberdade tem leis, não é negá-la, e bem assim

afirmar que essas leis são as mesmas da natureza, não é

reduzir o processo da vida moral à pura mecânica dos

átomos, a ações e reações químicas.

Dado porém que assim fosse, e a idéia da

liberdade não se conciliasse com a idéia de lei, nada

seria mais simples do que confessar a inexatidão do meu

asserto, pois neste assunto, como em todos os mais, é o

caso de repetir com Moritz Carrière: graças a Deus, nós

podemos errar. A pretensão de infalibilidade é sempre

ridícula, quer emane de uma cadeira de papa, quer de

uma cadeira de mestre; ou venha de uma assembléia de

bispos, ou de uma escola de sábios.

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Mas me parece que não estou em erro. A

liberdade humana é um fato da ordem natural, que tem a

sua lei, porém não se deixa explicar mecanicamente.

Os filósofos costumam distinguir no conceito da

liberdade dois momentos diversos: o momento empírico

e o momento racional, ou, a liberdade de poder e a

liberdade de querer.

A liberdade empírica é um fato de consciência;

para reconhecê-lo não há mister de tomar o partido de

um espiritualismo fantástico e impossível. Que o homem

pode o que quer, é uma verdade experimental; e tanto

basta para traçar a linha de separação entre duas ordens

de fenômenos, que pertencem a um mesmo tronco, mas

não se reduzem a um só ramo.

Se, porém, o que ele quer, é sempre o resultado

necessário da sua organização, é um ponto este, que

sendo admitido, como aliás o admito, não traz todavia

luz alguma para a solução do problema; porquanto, nem

destrói o fato da liberdade empírica, objeto de obser -

vação imediata, nem deixa esclarecido que a depen-

dência, em que o homem se acha, da sua organização,

seja realmente de natureza mecânica.

Semelhante identificação do psíquico e do físico

é, quando muito, o que se questiona, o que se pretende

provar; e afirmá-la não basta para torná-la incontestável.

Entretanto em que consiste, o que quer o

determinismo? Negar a liberdade sob o pretexto de que

as ações humanas são todas motivadas. A lei da

motivação, diz ele, é uma das formas da lei geral da

causalidade. Os motivos são causas mecânicas, a que

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sucedem efeitos com a mesma necessidade, com que os

fenômenos se sucedem no mundo exterior.

E não é exato que a todo e qualquer esforço

consciente, a toda volição e ação, precedem certos

motivos? Ou há um esforço imotivado, puramente

espontâneo, que existe de si mesmo e por si mesmo?

Muitos defensores da liberdade ainda crêem que a

lei da motivação exclui o livre querer, isto é, que a

liberdade da vontade só é possível, quando esta não é

determinada por motivo algum.

Uma tal opinião só podia ser favorável à causa do

determinismo. Desde que se faz assim do acaso e do

capricho irracional a essência da liberdade, desde que o

verdadeiro ato livre se considera aquele que se pratica

sem motivo, sem razão alguma, não é muito que os

deterministas achem provas de sua teoria em todos os

círculos da atividade humana, onde se nota uma certa

ordem.

Uma vez associada à idéia de liberdade e de

confusão e desarmonia, é fácil demonstrar pela esta-

tística dos crimes, dos casamentos e outros fatos, onde

os números exercem uma função aproximadamente

igual, que a vontade não é livre.

Mas este modo de pensar, admitido por alguns

filósofos, é o mesmo velho ponto de vista dos espíritos

incultos, que ainda hoje, nas relações polít icas, não

cansam de falar de um partido da ordem e de um partido

da liberdade, como de duas antíteses dificilmente

conciliáveis, quando não afirmam que a verdadeira

liberdade está na ordem, para outros redargüirem que a

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verdadeira ordem está na liberdade. Em suma, como se

vê, uma série de tolices.

Destarte, obscurecida a idéia da coisa, fazendo-se

do caos e da desordem na vida individual e social o

característico da liberdade, os deterministas, por um

lado, descobrem fatalismo e necessidade, onde quer que

apareça um regular encadeamento dos atos humanos, e

os parvos, por outro lado, estão de acordo que a mais

alta expressão do liberalismo, é o domínio do cacete, do

barulho, do rebuliço eterno.

Assim, e de conformidade, por exemplo, com os

princípios da sociologia nacional brasileira, como ela é

cultivada por vadios e vagabundos, é um despotismo

clamoroso, quando a autoridade, invadindo a terra santa

da liberdade, quebra a viola do ocioso cantor popular e

põe um limite aos excessos da bebedeira.

Da mesma forma, os deterministas entendem que

o governo da natureza, em relação ao homem, é sempre

despótico, e que não há vontade livre, desde que os atos

só se realizam em virtude de motivos.

Singular doutrina esta, pela qual as manifestações

da liberdade entrariam de direito na categoria da

loucura!...

Com efeito, se o pressuposto da motivação exclui

o livre querer, é lógico admitir que se são possíveis atos

humanos imotivados, onde quer e como quer que eles se

executem, aí, pelo menos, aparece a liberdade.

Mas esses atos são justamente aqueles que os

psiquiatras designam como característicos de qualqu er

perturbação mental.

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Para Trousseau, por exemplo, quase sempre que

se dá um assassinato sem motivo, sem alvo de interesse,

sem premeditação, sem ponderação de tempo, lugar e

meios, trata-se do ato de um epiléptico.

Eis aí, pois, a falta de motivação entrando como

elemento na diagnose de um caso de insensatez. E se

aquele quase sempre, em vez de sempre, é para dar

conta das exceções, não vejo que os casos excetos

possam ser explicados, senão por uma reversão

atavística às épocas de pura ferocidade humana. Porém

entre um homem de hoje, que perde a razão, e um

homem de hoje, que de repente asselvaja-se e torna-se

fera – qual é a diferença?

Como quer que seja, o certo é que a livre vontade

não é incompatível com a existência de motivos; pelo

contrário, eles são indispensáveis ao exercício normal

da liberdade.

Estas últimas idéias, posto que em parte me sejam

próprias, contudo já não são inteiramente novas. Eugène

Véron, na sua Moral, publicação recente da Biblio-

théque des sciences contemporaines (1884), assenta a

sua teoria da liberdade sobre uma ordem de

considerações análogas.

Eis aqui como ele se exprime: “Quanto a nós

que... não vemos na frase – obedecer à razão – mais do

que uma metáfora nascida sem dúvida da crença imbecil

na realidade distinta dessa mesma razão, crença que por

felicidade tende a desaparecer; quanto a nós que

pensamos que isto significa obrar racionalmente e por

conseguinte obedecer a s mesmo, logo eu se está na

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plenitude da própria inteligência, depois de um estudo

atento e profundo dos motivos, que nos solicitam a agir,

declaramos que o fato de obedecer à razão é, a nossos

olhos, a prova mesma da superioridade intelectual do

homem, o sinal mais evidente do seu verdadeiro valor

moral, e que, se a liberdade existe em qualquer parte, no

domínio da atividade humana, é aí só que se pode

descobri-la”.

De perfeito acordo. A verdade não se externa

somente em alemão; ela fala e escreve também francês.

Os galômanos, como chamava Alfieri e todos os frené-

ticos entusiastas do francesismo, podem agora rir-se da

ingenuidade, com que me confesso adstrito a uma

autoridade filosófica francesa – eu que em tantos pontos

ainda não fiz nem faço segredo do meu Franzosen-

fressenthum!(*) A coisa é realmente merecedora de riso.

Mas... não me tomem ao sério!... Isto é gracejo. Véron

tem o ar de quem oferece uma novidade, que saiu há

pouco da béante fournaise do cérebro parisiense; e

todavia as suas idéias se me apresentam com o caráter

platônico de verdadeiras reminiscências, não de uma

vida anterior, porém esta mesma vida, onde já li coisa

igual.

E foi em alemão. Em um dos Philosophische

Monatshefte, de 1874 (dez anos antes), Henrique von

Struve, professor de filosofia em Varsóvia, disse

seguinte:

(*) Ao pé da letra “qualidade de devorador de franceses”, francofobia. (T. do E.).

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“Não posso representar-me nenhum esforço,

nenhuma ação racional, que não seja motivada pela

razão. Qualquer que seja o alvo do meu esforço, por

mais independente que ele seja, ele só será racional,

associando-se à consciência de que tenho bons motivos

para obrar assim... Por isso a motivação não só não

exclui a ação autônoma e livre, como até, pelo contrário,

é uma das condições dela... Porventura a nossa atividade

torna-se livre, pelo fato de associar-se ao despropósito,

a ausência completa de qualquer motivo razoável? Não,

decerto; ela entrega-se por esse modo ao curso natural

das coisas, demite-se do poder de determinar-se

racionalmente e subordina-se à ordem de fatos, que do

ponto de vista subjetivo designamos como acaso,

porém, que deve ser objetivamente compreendida como

pertencendo à mesma ordem da natureza. Ficamos, pois,

colocados na seguinte alternativa: ou obrar segundo a

razão, ou ceder passivamente à necessidade psíquica.

Salta aos olhos que a liberdade, se em geral ela existe,

só pode ser procurada no primeiro membro dessa

alternativa...”(1)

Não é o mesmo pensamento de Véron? A

identidade é manifesta. Nenhum demérito resulta daí

para o autor francês; nem foi este o alvo da citação. Mas

o ensejo era ótimo, para dar ainda uma prova de que a

minha germanomania não é de todo um fenômeno

psiquiátrico, pois que baseia-se em muito boas razões.

Eis uma delas: os pensadores alemães, em quase

todos os domínios da inteligência, andam dez anos, pelo

menos, adiante dos franceses.

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Não sei se deva excetuar o domínio político. A

política alemã não me é totalmente simpática. Olhada

por este lado, a minha cara Alemanha assemelha-se a

uma linda mulher, em quem aliás a enormidade das

mamas diminui a beleza das outras formas. Por isso

limito-me a contemplá-la só pelo rosto. Mas também a

république française não está no meu programa. Sou

pouco afeiçoado ao cancan, em qualquer de suas

manifestações. Isto destoa, bem sei, da intuição comum,

ainda que ela não seja das mais seguras. O

republicanismo brasileiro é um belo pedaço de literatura

francesa. Com razão dizia eu, há pouco, a um amigo

tedesco: - in Brasilien treibt man Republik, wie man die

Lektüre der Romance, Zola’s treibt: ohne Kritik oder

Ueberzeugung, nur aus bewusster oder unbewusster

Liebe zu Frankreich.(*) Porém não importa; é a verdade

tal qual sinto, e aproveito a ocasião para repeti-la.

III

É digno de nota: os modernos contraditores da

liberdade, os que pretendem mecanizá-la e destrui-la,

filiam-se em geral à escola de Hume. Ora, este filósofo,

como é sabido, contestava que a idéia de causa fosse

mais que um resultado do hábito de ver certos fatos

sempre juntos, pelo qual chegamos a crer na união

(*) No Brasil, procede-se com a República como se procede com

a leitura dos romances de Zola: sem crítica ou convicção, somente pelo consciente ou inconsciente amor à França. (T. do E.).

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necessária desses mesmos fatos: mas essa crença não

tem realidade objetiva!

Já se vê que, sendo assim, ao menos para os

deterministas sectários de Hume, a causalidade e a

liberdade duas grandes ilusões metafísicas, não há

justiça nem lógica em submeter a liberdade à causa-

lidade, em sacrificar uma ilusão a outra.

Sustentando deste modo a livre vontade, até onde,

e só até onde ela é, não um postulado da razão prática,

mas um simples fato de consciência, bem pode parecer

que eu me coloque em posição divergente da filosofia

monística, da qual me confesso decidido sectário. Mas é

somente aparência; no fundo não há contradição.

E não é difícil demonstrá-lo. Com efeito: a idéia

fundamental do monismo, diz Ludwig Noire, é que o

universo compõe-se de átomos inteiramente iguais, que

são dotados de duas propriedades, uma interna – o

sentimento, e outra externa – o movimento. Bem como

os átomos, o sentimento e o movimento, que lhes são

inerentes, são também originariamente iguais. Destas

duas propriedades originárias, inseparáveis, resulta o

desenvolvimento, ou, antes, o que se chama desen-

volvimento é a soma, ou o produto de ambas; de modo

que todo e qualquer desenvolvimento é redutível a uma

modificação do movimento, mas também, e ao mesmo

tempo, todo e qualquer desenvolvimento é redutível a

uma modificação do sentimento(2)

.

Schopenhauer diz: - tudo é vontade. O idealismo

e o materialismo dizem: - tudo é força; para aquele –

força e espírito; para este – força e matéria. O monismo

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porém responde – tudo é ao mesmo tempo vontade e

força. como força aparece, como vontade, é; ou, para

falar a língua de Kant, como força é fenômeno, como

vontade, noumenon.

A filosofia tradicional afirmava que tudo provém

de causas. Schopenhauer distingue causas, atrações e

motivos. O monismo redargúi: - tudo é causa e motivo

ao mesmo tempo. Como causa, aparece; como motivo,

existe nos seres mesmos. Daqui resulta que não há em

parte alguma do universo puro mecanismo; qualquer

movimento é determinado simultaneamente por causa e

motivo.

Estas idéias, que muitos acharão de acre sabor

metafísico, isto é, um pouco acima da compreensão

humana, por estarem além dos limites da própria

compreensão, vão de encontro ao determinismo. A lei da

motivação não exclui a liberdade, pois que não é uma lei

de causalidade mecânica.

Mas importa observar – e este ponto merece

atenção – que o monismo filosófico de Noiré não é o

monismo naturalístico de Haeckel. O grande professor

de Jena, que é um dos mais ilustres próceres da ciência

moderna, parece-me deixar-se levar por um preconceito

do tempo, quando identifica a intuição mecânica e a

intuição monística do mundo. Uma coisa não é

exatamente a outra.

O monismo filosófico é conciliável com a

teleologia, não tem horror às causas finais, cujo

conceito não é sempre, como querem os materialistas

sistemáticos, um meio cômodo da razão preguiçosa, para

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furtar-se à pesquisa das causas eficientes, ao passo que

o monismo naturalístico só admite estas últimas, e crê

poder com elas fazer todas as despesas de explicação

científica.

Para o monismo filosófico, o movimento e o

sentimento sendo inseparáveis, dá-se entre eles somente

uma questão de grau: onde mais domina o movimento,

aparece então a causa efficiens; onde mais o sentimento,

prepondera também a causa finalis. O mundo não é só

uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo

acanhado, mas ainda uma cadeia, uma série de para-

quês, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apóiam,

se limitam, que saem uns dos outros. A intuição

mecânica, porém não quer saber do que vai além da

simples concatenação de causas e efeitos. O monismo

naturalístico, que representa a unidade de vistas

adquiridas no domínio das ciências naturais, está preso,

com elas, à exclusiva consideração da causalidade, que é

a lei capital da empiria, o princípio gerador de toda

experiência.

O Professor Haeckel, cedendo talvez àquela

predileção, de que falava Helmoltz no prólogo da sua

Optica – a predileção... zu unmittelbar mechanischen

Erklaerungen(*) – decidiu-se a apoiar com a força de

sua autoridade o monismo naturalístico, sem levar em

conta, nem sequer dignar-se de submeter a uma crítica

mais séria tudo o que, além desses limites, ainda parece

reclamar a nossa atenção.

(*) ... para explicações excessivamente mecânicas. (T. do E.).

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Assim, para ele, o venerando sábio, não só a

verdadeira intuição monística é a intuição mecânica,

mas também, quem quer que se coloque acima deste

ponto de vista – ciente ou inconscientemente – é vítima

de uma ilusão, a ilusão do dualismo. Nem mesmo Kant

pôde evitar semelhante escolho.

Esta condenação do grande filósofo (tanto

importa o juízo de Haeckel), relegado para o meio dos

dualistas e teólogos, em nome do monismo, quando o

monismo, pelo órgão de Noiré, se confessa ligado, por

mais de um laço, à filosofia de Kant, quando o

monismo, que não é um princípio constitutivo, mas um

princípio regulador, quase diria – um princípio arqui-

tetônico do pensamento filosófico moderno, assenta em

bases kantescas – esta condenação do grande filósofo,

repito, devia naturalmente provocar a impugnação.

E de fato, Ed. von Hartmann, na última parte do

seu notável opúsculo – Wahrheit und Irrthum im

Darwinismus, entendeu-se com Haeckel sobre o pre-

tenso dualismo de Kant. O resultado foi ficar

estabelecido que o naturalista fora injusto para com o

filósofo. Como se depreende de várias passagens da

Kritik der Urtheilskraft, melhor utilizadas por

Hartmann, muito ao invés de ser Kant um dualista,

firmou ele a doutrina de que a explicação mecânica e a

explicação teleológica dos fenômenos naturais repre-

sentam momentos diversos de uma unidade superior. Em

próprios termos: “O princípio, que torna possível a

conciliabilidade dos dois modos de julgar a natureza,

deve ser posto naquilo que repousa fora de ambos, mas

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entretanto encerra o fundamento deles, isto é, no

hipersensível, e qualquer das duas maneiras de expli-

cação deve sempre referir-se a esse princípio”.

Isto é claríssimo; porém não é tudo. Kant ainda

diz que não podemos saber a priori, quanto contribui o

mecanismo da natureza para a realização de qualquer

intuito final, que nela exista, nem até onde chega o

modo de explicação mecânica dos seus fenômenos, e

que por isso as ciências naturais têm o dever de levar o

mais longe possível esta mesma explicação. Mas

também logo assegura que o simples mecanismo não é

suficiente para dar a razão dos produtos orgânicos, isto

é, que em relação à forma dos organismos há sempre um

resto mecanicamente inexplicável.

Puro conceito monístico. A ele prende-se o

pensamento de Noire, quando afirma que em todo e

qualquer fenômeno, tanto o mais simples, como o mais

altamente complicado, há sempre um resto incalculável,

que representa a parte do sentimento no mesmo

fenômeno. Entre o resto, de que fala Kant, e este de que

fala Noire, não há diferença alguma. O mecanicamente

inexplicável da teoria kantesca quer dizer em linguagem

monística: a parte do sentimento que o movimento não

explica. Vê-se, pois, que Kant não foi, nem podia ser,

um dualista. As aparências enganam; e desse engano não

estão livres nem mesmo os gênios da estatura de

Haeckel.

Ed. von Hartmann, como já disse, utilizou-se de

passagem da Crítica do Juízo, para demonstrar o não-

dualismo do arquifilósofo alemão. Entretanto, as fontes

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de uma tal demonstração não se limitam aos pedaços pro

ele citados. Na Crítica da Razão Prática encontra-se

uma passagem, onde Kant fala de um automaton

materiale e de um automaton spirituale, não como duas

coisas distintas, mas somente como dois pontos de vista

de uma mesma coisa, dois modos de observar e julgar a

natureza. (Kritik der p. Vernunft – edição “Kehrbch”,

pág. 117.)

O pendor materialístico do tempo, a que

corresponde o gosto pelas explicações mecânicas, tem

levado muitos espíritos ao extremo das afirmações e

negações categóricas, porém sem base nos fatos.

Felizmente já há mais de um exemplo de sobriedade

científica por parte de naturalistas, outrora inebriados de

seu próprio vinho, mas hoje convencidos de que a

ciência tem limites, além dos quais ainda existe alguma

coisa que ela não pode sujeitar aos seus processos de

observação e esclarecimento. O primeiro, o mais valioso

sinal desta mudança, foi dado por Du Bois Raymond.

Este sábio fora ao princípio um materialista, que

estava de acordo com a opinião lacunosa e parcial de

Moleschott: - der Gedanke ist eine Bewegung des

Stoffes.(*) Em suas Untersuchungen weber thierische

Elektricitaet, do ano de 1848, ainda ele comungava a

idéia de que... wenn nur unsere Methoden ausreichten,

eine analytische Mechanick sa emmtlicher

(*) - o pensamento é um movimento da matéria. (T. do E.).

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Lebensvorgaenge moeglich waere.(**

) É esta a mesma

idéia, que vinte e quatro anos depois o grande Strauss

repetiu, dizendo: - “De dia em dia aumenta a

possibilidade de mostrar as condições, sob as quais a

vida se desenvolveu do que não tem vida, a consciência

do inconsciente”.

Mas releva ponderar que a esse tempo já Du Bois

Raymond tinha reconhecido a inanidade dos seus

esforços. Na célebre conferência Ueber die Grenzen des

Naturerkennens(***

) ele afirma terminantemente: “Com

mecânica, não saímos de mecânica; não podemos

compreender, como nasce a consciência, como nasce o

sentimento”. Uma sentença de morte contra o

materialismo míope dos Moleschotts e dos Buechners,

ao qual Strauss se aliara; sentença que o fez então

humildemente dizer: “Se esta palavra do mestre é a

última na questão, só o tempo afinal poderá dec idir”.

Já é uma grande concessão esperar que o tempo

decida a questão capital do materialismo. Esperemos

portanto.

O Ignorabimus de Du Bois Raymond e o

Audeamus de Haeckel não são tão inconciliáveis, como

se supõe. Eu os concilio a meu modo.

Rejeitando a primeira fórmula, se ela pretende ir

além de um simples conselho de temperança espe-

culativa, e aceitando a segunda, só até onde envolve um

(**) ...somente quando dispomos de um método eficiente, é

possível uma mecânica analítica do conjunto dos acontecimentos

vitais. (T. do E.). (***) Os limites do conhecimento da vida. (T. do E.).

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grito de animação, sem propósito assentado de romper

todas as barreiras e entrar no conhecimento natural de

Tudo – entendo que elas se completam, se harmonizam,

se corrigem uma a outra.

Mas o nobre professor de Jena seria talvez o

primeiro a recusar esta conciliação. Para ele tudo é

suscetível de explicação mecânica – fora daí, não há

mais que o velho domínio dos dualist as e teleólogos.

É com pesar que deixo de subscrever, neste

ponto, a opinião do mestre. O dualismo é realmente uma

ilusão; mas também o mecanismo não está no caso de

satisfazer todas as exigências e interpelações da razão.

A verdade ainda permanece do lado de Kant: o resto de

problemas, que a mecânica não resolve, continua a ser o

mesmo.H

E não somente quanto à forma dos organismos,

mas ainda e sobretudo quanto às suas funções, cres-

cendo assim a inexplicabilidade mecânica, à proporção

que os organismos são mais desenvolvidos, e as funções

mais complicadas. O mecanismo ainda não é suficiente

para dar conta, entre outros, por exemplo, do fenômeno

da beleza. Quem foi que já traçou a fórmula, segundo a

qual executa-se o movimento de uns bonitos olhos

femininos?

A beleza que, no dizer de Hartmann, divide-se em

fisiológica e morfológica, eu me permito aumentar de

uma seção superior: a beleza psicológica, sem aliás

pressupor um sujeito novo para este novo atributo, e

dentro dos limites da intuição monística. É a parte

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devida àquele resto, mecanicamente inexplicável, de

que já nos temos ocupado.

Ora, pois – nem a beleza arquitetônica de uns

quadris de Vênus, que não é debalde que assemelham-se

ao arqueamento de ebúrnea lira, como lembrança ou

indício de que este será sempre o alaúde dos poetas,

nem a beleza ornamental de uns bastos e longos

cabelos, despoticamente sacudidos por mulher moça e

formosa, poderão jamais ser reduzidas a puros

fenômenos mecânicos.

Os movimentos, que formam a arte da dança,

ninguém dirá que deixem de ser redutíveis a número e

medida, isto é, a fórmulas de mecânica; mas entre duas

pessoas, principalmente mulheres, que com a mesma

regularidade executam esses movimentos, não se nota

muitas vezes uma enorme diferença? É que a beleza

fisiológica dos requebros e ademanes graciosos não se

explica, não se resolve pelas leis do mecanismo.

Ainda mais decisivo: todos nós falamos e

ouvimos falar de uma expressão na música; na execução

artística de qualquer peça musical, distinguimos as duas

categorias da quantidade e da qualidade, a técnica e a

estética, tão bem caracterizadas, que não nos passa

desapercebida a mais ligeira preponderância de uma

sobre a outra, e só das justas proporções entre ambas é

que resulta a perfeição do artista. Ora, a técnica de um

virtuose, ainda que seja a mais bem acabada possível,

reduz-se, em última análise, a uma questão de mecânica,

a uma questão de movimento. Mas – costumamos dizer

– que nos importam todos os prodígios técnicos deste ou

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daquele instrumentista, deste ou daquele cantor, se ele

não tem estética, se não nos toca, não nos fala na alma?

E isto se traduz monisticamente do seguinte modo: que

nos importam todas essas maravilhas de movimento, se

não existe sentimento em grau correspondente? Eis aí,

pois, ainda uma prova da insuficiência do mecanismo.

Não conheço ramo algum de atividade e

indagação humana, onde a filosofia monística possa

encontrar maior riqueza de argumentos em seu favor, do

que no domínio da música; porquanto em nenhum outro

se manifestam com tanta viveza as duas propriedades

originárias, de que fala Noiré. A combinação de sons,

que objetiva e mecanicamente apreciada é uma

combinação de movimentos, tem o poder de evocar o

que existe de mais puro e elevado, como também de

mais misterioso, no mundo psíquico, a emoção, o

sentimento do belo musical.

O assunto presta-se a muito estudo, mas não é

aqui a ocasião de empreendê-lo. Com os exemplos

indicados, quis somente ilustrar a minha tese da não -

identidade entre o monismo filosófico e o monismo

naturalístico; donde é fácil de compreender que não

aceito em certos pontos, ainda que poucos, a doutrina de

Haeckel, doutrina que não se mostra, no que diz respeito

à liberdade, em perfeita harmonia consigo mesma.

IV

O sábio professor e pensador intrépido, em mais

de uma passagem dos seus escritos, diz afoutamente que

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a vontade humana nunca é livre – niemals frei. Mas

também em muitos outros lugares afirma que a vontade

é um princípio seletor. Estas duas asserções, me parece,

não são feitas para se unirem; elas produzem a

impressão do antinômico e inarmonizável.

Com efeito, se a liberdade é alguma coisa, ela

consiste na capacidade, que tem o homem, de realizar

um plano por ele mesmo traçado, de atingir um alvo,

que ele mesmo se propõe. Eu não sei, nem cabe aqui

indagar, se o conceito da finalidade deve ou não ser

inscrito na tábua das categorias, segundo a doutrina de

Kant; mas esse conceito, que nada significa no mundo

físico, tem toda significação no mundo psicológico. A

causalidade da natureza e a causalidade da vontade não

tem o mesmo caráter.

Assim, ao passo que as causas naturais se

traduzem num porquê, a causa voluntária se exprime

num para-quê. A idéia deste fim aparece como motivo, e

os motivos, já nós vimos, não excluem a liberdade.

É bem sabido o papel que representa no

darwinismo a seleção artificial, ou antes – artística.

Prefiro o segundo epíteto, que corresponde melhor aos

resultados por ela obtidos. Na idéia de artifício não

entra racionalmente a idéia da vida; e a seleção é

sobretudo um processo vital, pois que ela tem por alvo

modificar funções e qualidades dos seres orgânicos,

quer no domínio da zoologia, quer no da botânica. Ora,

o jardineiro que se propõe produzir uma nova forma de

flor ou planta, o criador de pássaros, que se incumbe da

produção de uma plumagem nova, são dotados da

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faculdade de atingir um fim, por eles preconcebido. Eis

o que é todo inegável. Mas esta faculdade é a liberdade

mesma, tal qual se faz precisa para opor ao deter -

minismo um obstáculo invencível.

Falando da seleção artística, aplicada à espécie

humana, Haeckel menciona três formas: a espartana,

que se praticava na Lacedemônia com as crianças

doentes, fracas, ou aleijadas, as quais eram votadas à

morte; a militar, que produz efeito contrário, escolhendo

e destinado a constituir exércitos permanentes e a

perecer nas batalhas o que há de mais robusto no seio

das nações; e, finalmente, a seleção medical, que muitas

vezes prolonga a vida de organismos imperfeitos, con-

correndo assim para que saia deles, uma descendência

enfezada e originariamente mórbida.

Estas três categorias não abrangem a totalidade

dos expedientes artísticos, seletores do gênero humano.

Com a mais importante forma de eliminação consciente

das anomalias da vida social, que é a verdadeira vida do

homem, podemos ainda falar, e eu já tenho pro vezes

falado, de uma seleção jurídica, a que se pode adicionar

a seleção religiosa, moral, intelectual e estética, todas

as quais constituem um processo geral de depuramento,

o grande processo da cultura humana. E destarte, a

sociedade que é o domínio de tais seleções, pode bem

ser definida: um sistema de forças que lutam contra a

própria luta pela vida(3)

.

Semelhante definição, que tenho como verda-

deira, não está todavia de acordo com a doutrina de

certos pensadores – Gustave Le Bom, por exemplo.

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Realmente, eu digo que o característico da sociedade e

lutar contra a luta natural pela existência, tratando

sobretudo de corrigir seus maus efeitos; Le Bom, porém,

opina que é um mal subtrair os membros da comunhão

aos resultados dessa luta. Em apoio da sua opinião ele

cita Darwin, o qual na verdade acha em algumas

instituições sociais, como asilos para mentecaptos e

doentes, leis de socorro aos indigentes, etc... um motivo

de degenerescência da mesma sociedade.

Mas não aceito esta teoria, que considero

estranha e errônea. Com efeito, se é um mal interromper

a marcha da eliminação natural dos fracos diante dos

fortes, dos enfermos diante dos sadios, não vejo razão

plausível, por que se deva punir o homem robusto e

vigoroso que, em luta com o raquítico e inválido, chega

a matá-lo. Isto também é eliminar... Mas ninguém, por

certo, admitirá uma tal conseqüência, que escandaliza

pelo absurdo.

Não é menos inadmissível a proposição

darwínica. Entregar os míseros à sua própria miséria,

deixar que morram de fome os que não podem

conquistar pelo trabalho os meios de subsistência, e

deste modo concorrer para o depuramento da sociedade,

se isto é seleção, seria mil vezes mais bárbara do que a

velha seleção espartana; e como precisa de um nome

que a caracterize – pois que Esparta já não existe – bem

pudera qualificar-se de seleção inglesa.

O conceito da sociedade, assim representada

como um sistema de forças combatentes contra o pró -

prio combate pela vida, me parece dar a chave para a

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solução de muito problema velho, que continua a fazer

ao mesmo tempo o tormento e as delícias de mais de um

espírito sério. Na verdade, ainda hoje há quem apele

para a natureza como uma autoridade suprema. O

argumento da naturalidade de uma coisa, ou de um fato,

tem honras de irrefutável.

Nada, porém, mais desponderado. Ser natural não

livra de ser ilógico, falso e inconveniente. As coisas que

são naturalmente regulares, isto é, que estão de acordo

com as leis da natureza, tornam-se pela mor parte outras

tantas irregularidades sociais; e como o processo geral

da cultura, inclusive o processo do direito, consiste na

eliminação destas últimas, daí o antagonismo entre a

seleção artística da sociedade e as leis da seleção

natural.

Assim, por exemplo, se alguém hoje ainda ousa

repetir com Aristóteles que há homens nascidos para

escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim, é natural

a existência da escravidão; há até espécies de formigas,

como a polyerga rubescens, que são escravocratas;

porém é cultural que a escravidão não exista.

Maudsley disse uma vez que o ladrão é como o

poeta: nasce, não se faz. Subscrevo esta opinião, mas

pondo-a em harmonia com a minha doutrina. Sim,

senhor, a existência de ladrões é um produto da

natureza; que eles, porém, não existam, é um esforço,

um produto da cultura social, sob a forma ética e

jurídica.

Do mesmo modo, é um resultado natural da luta

pela vida que haja grandes e pequenos, fortes e fracos,

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ricos e pobres, em atitude hostil uns aos outros; o

trabalho cultural consiste, porém, na harmonização

dessas divergências, medindo a todos por uma só bitola.

Um naturalista alemão, democrata e radical, já

usou das seguintes palavras, segundo refere Treitschke,

a quem elas foram dirigidas: “O nosso darwinismo, bem

refletido e logicamente ponderado, é pouco favorável às

idéias da pura democracia”. Sem dúvida alguma, se a

seleção artística não existisse para corrigir os efeitos

naturais da concorrência vital.

Outrossim: é natural que a mulher, por sua

fraqueza, seja sempre uma escrava do homem; mas é

cultural que ela mantenha-se em pé de igualdade,

quando não lhe seja até superior. A ginecocracia, que os

poetas não estão longe de admitir, exprimiria uma das

mais altas vitórias ganhas pela cultura sobre a natureza.

E aqui importa assinalar um fato importante. A

sociedade, que é, como já disse, o domínio de todas

estas seleções artísticas, de todos estes processos

culturais, compõe-se de grandes e pequenos círculos;

quanto maiores, tanto mais independentes da seleção

natural e vice-versa. Por isso é que ainda vemos no

pequeno círculo da família, que é mais produto da

natureza do que da cultura, a mulher representar um

papel subordinado e bem diverso do que ela representa

nos grandes círculos da vida.

A falta de compreensão desta luta pela existência

social contra a mesma luta pela existência naturall

torna explicáveis um sem-número de despropósitos, que

é comum cometer-se. Assim, ainda hoje, há quem faça

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do naturam sequi de antigos filósofos a base da moral.

Porém isto não passa de uma velha consagração do erro.

A moral, como o direito, é um sistema de regras.

Toda regra é uma limitação; o que fica fora, ou sai

desses limites, é o irregular, o imoral por conseguinte.

Mas os limites da moral ou sejam traçados pelo

indivíduo mesmo, ou pela sociedade a que ele pertence,

são sempre posteriores a um estado de ilimitação e

irregularidade, que no todo, ou em parte, é o primitivo

estado natural. Logo, o seguir a natureza, em vez de ser

o fundamento da moral, pelo contrário, é a fonte última

de toda imoralidade.

Eis o que diz a lógica. Vejamos, porém, se os

fatos dão-lhe apoio. Para isso bastam as seguintes

perguntas: - Quem ensinou ao homem que as mais vivas

provocações da beleza feminina devem contudo ceder ao

respeito da pudicícia? Seria a natureza? Não, decerto. -

Quem disse a Fedra que o seu amor a Hipólito é

criminoso, e quem disse a Mirra que ainda mais

criminosa é a paixão que ela nutre por seu pai? Seria a

natureza? Não; foi a cultura. Religiosa ou oral jurídica

ou política, pouco importa; é sempre alguma coisa, que

corrige, que resiste aos ímpetos naturais.

A natureza não é a santa que se supõe; pelo

contrário, ela come, bebe e peca. Imaginai um salão

aristocrático, cheio de todos os encantos a fulgores, que

produz a civilização. Dentre as mulheres, que perfumam

o ambiente, escolhei a mais formosa, aproximai-vos dela

e conversai... Aposto que podeis levar bem longe a

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vossa conversação, sem que a mais ligeira idéia de gozo

sensual venha perturbar a serenidade do vosso espírito.

Mas agora imaginai também que vos achais frente

a frente dessa mesma beleza, à margem de sonoro e

cristalino regato, onde se miram palmas e folhagens;

aqui e ali moutas sombrias, em cuja copa escondem-se

ninhos de aves, e embaixo parece que mão oculta

preparou leitos de amantes – sereis capaz de não ter um

pensamento mau? É dubitável. Se entretanto a esta

sugestão do amor, que surge de todos os lados em sua

forma primit iva, em sua primitiva nudez, sem regras,

nem convenções, impetuoso, estúpido e voraz, levanta-

se uma idéia, que opõe barreira invencível, donde

nasceu essa idéia?

Só e só do seio da cultura. Ela é tão pouco uma

filha da natureza, quão pouco pode esta produzir o vosso

frack, todo o vosso trajo, e até a luva que porventura

aperta a mãozinha da deusa da vossa hipótese.

A sociedade, que é o grande aparato da cultura

humana, deixa-se afigurar sob a imagem de uma teia

imensa de relações sinérgicas e antagônicas; é um sis -

tema de regras, é uma rede de normas, que não se

limitam ao mundo da ação, chegam até os domínios do

pensamento. Moral, direito, gramática, lógica, civili-

dade, polidez, etiqueta, etc., etc., são outros tantos

corpos de doutrina, que têm de comum entre si caráter

normativo.

Não basta obrar ou proceder corretamente, é

preciso sentir corretamente, e, ainda mais, pensar

corretamente, falar corretamente, escrever correta-

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mente... Como se vê, um vasto sistema de correções – o

que vale dizer – um vasto sistema de seleções. Corrigir

é selecionar.

E tudo isto obra da cultura em luta com a

natureza. Adolfo Schmidt nos fala de um tear da

civilização, em que a humanidade trabalha desde a sua

origem(4)

. Pura verdade. Todos nós vivemos a tecer

sempre de novo os laços que nos prendem.

O direito é o fio vermelho, e a moral o fio de

ouro, que atravessa todo o tecido das relações sociais.

Um direito natural tem tanto senso, como uma moral

natural, uma gramática natural, uma ortografia natural,

uma civilidade natural, pois que todas estas normas são

efeitos, são inventos culturais(5)

.

Rousseau deixou escrito que em assunto de

educação – tout consiste à ne pas gâter l’homme de la

nature en l’appropriant à la société . Neste princípio,

que se lê na quinta carta do 4º livro da Nouvelle

Héloïse, culmina-se o edifício de suas idéias re-

formadoras. Entretanto a verdade está do lado contrário.

O processo da cultura geral deve consistir precisamente

em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem da

natureza, adaptando-o à sociedade.

O que importa sobretudo é conhecer bem o valor

e extensão deste último conceito. A sociedade, que

como gênero não tem organização, existe organizada em

espécies e subespécies, que se arrogam, cada uma em

seu tempo e a seu modo, o direito de representar e

subordinar a mesma sociedade ou o grupo social de que

fazem parte.

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Isto explica a impossibilidade, que tem havido até

hoje, de uma cultura propriamente humana; porquanto

dentro da humanidade, diferenciam-se as raças, dentro

da mesma raça... os povos, dentro do mesmo povo... as

classes, terminando sempre a luta, que acompanha estas

diferenciações, pelo predomínio de um dos contendores,

que encarrega-se do trabalho cultural e imprime-lhe o

seu caráter.

Daí o podermos falar de uma cultura militar, de

uma cultura religiosa ou sacerdotal, de uma industrial,

de uma outra intelectual, literária, artística, mas não

ainda de uma cultura moral, que seria então sinônima de

cultura humanitária.

Já se vê que, quando se gasta o homem da

natureza, não é para apropriá-lo à sociedade, mas

somente a uma classe dela. Tem sido sempre assim, e

esta é a fonte do mal.

A cepa rija da organização física e psíquica

humana tem sido e continua a ser desbastada, para dela

se fazerem, ou soldados, ou devotos, ou simples

trabalhadores, ou mesmo sábios, literatos, poetas,

artistas... porém nunca e nunca para se formar o homem,

o homem social, no mais amplo e compreensivo sentido

da palavra, mais ou menos adequado àquele ideal, que

Napoleão tinha em mente, quando disse de Goethe: voilà

um homme.

Estou bem longe de negar a qualquer desses

modos de cultura parcial o seu lado vantajoso. Entendo

mesmo que dá-se às vezes entre eles uma tal relação de

simpatia, que um serve de preparativo ao outro. Assim,

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o povo romano, e este fato é bem significativo, o povo

romano, que dominara o mundo pela cultura militar,

passou depois a dominá-lo pela cultura jurídica. A

educação dos campos de batalha preparou o espírito

nacional para os combates do forum.

Tanto é certo, que a luta faz parte essencial do

direito”... Mas isto não infirma a verdade das

proposições anteriores.

V

Quer o homem seja, conforme a velha definição,

um animal racional, um animal que pensa, quer se

chame um animal que faz trocas, ou um animal que

reza, ou, como o definia o fisiologista Graves, um

animal que cozinha – de modo que, segundo este sábio,

a idéia de fogo, de vasos e utensílios culinários, entra na

compreensão da idéia geral de homem – seja como for, o

certo é que cada uma dessas definições indica alguma

coisa de contrário e superior à pura animalidade,

marcando assim um momento da evolução cultural do

mesmo homem.

Mas nenhuma delas envolve o verdadeiro carac-

terístico do ente humano, que todas aliás pressupõem,

com exceção talvez da primeira, por isso mesmo a

menos aceitável, isto é, nenhuma delas envolve a

capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as

próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de

proceder.

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Nem pensar, nem trocar, nem rezar, nem

cozinhar – nada disto exclui, por si só, a ferocidade

original. Quem, pois, definisse o homem – um animal,

que prende-se, que doma-se a si mesmo – daria por certo

a melhor definição.

Todos os deveres éticos e jurídicos, todas as

regras da vida considerada em sua totalidade, acomo-

dam-se a esta medida, que é a única exata para conferir

ao homem o seu legítimo valor.

O indivíduo prendendo-se a si mesmo – é o puro

domínio da moral. Mas o homem não é só indivíduo – é

ainda e principalmente – sociedade. Revela, portanto,

que também todos se prendam vis-à-vis de todos, cada

um a cada um, e este é então o domínio do direito. Daí

nasce a diferença entre essas duas órbitas da vontade

humana.

A moral, como o direito, tem três momentos: a

regra, a luta e a paz. Porém ao passo que, na moral, a

regra é a do próprio indivíduo (autonomia), a luta é a

que ele trava consigo mesmo (automaquia), e a paz é a

paz íntima, a paz da consciência – no direito a regra não

é individualmente própria, vem de fora (heteronomia), a

luta é travada com os outros (heteromaquia), e a paz é a

paz externa, a paz social, a harmonia da vida comum.

Falei da moral e do direito, como os mais

importantes processos de seleção artística, em opo sição

à chamada marcha natural das coisas, sem que aliás, no

que diz respeito aos outros processos, o homem deixe de

ser sempre o animal que doma-se a si mesmo. Em todos

eles aparece, pois, como essencial o momento da luta.

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As palavras – lide, contenda, demanda, pleito,

discussão, controvérsia, polêmica... todas encerram a

idéia de um encontro de forças, que se dão combate nas

diversas esferas da atividade humana.

Mas há isto de notável – só na esfera da moral é

que se trava realmente conflito psicológico, só nela a

consciência é campo de batalha.

Estas idéias não deixam de ter um certo ar de

novidade. Rudolf von Jhering, que introduziu na ciência

jurídica um dos conceitos capitais do darwinismo,

fazendo a crítica da escola histórica, estranha-lhe

sobretudo o ter afirmado que a formação do direito dá-

se lentamente, sem trabalho, sem dor, sem combate, tal

como a formação da língua. Deste modo qualquer

princípio do velho direito romano ter-se-ia originado

com a mesma placidez com que estabeleceu-se, por

exemplo, a regra pela qual a preposição cum rege o

ablativo; e é isto que von Jhering não admite.

Acho, porém, que o erro da escola histórica não

está em inserir o desenvolvimento do direito na mesma

categoria do desenvolvimento da língua, mas em

desconhecer o que é comum a ambos, isto é, a parte da

luta. A regra de gum reger o ablativo e todas as outras

de igual gênero custaram tanto esforço, como, exempli

gratia, o princípio jurídico de que o senhor da coisa

pode reivindicá-la do poder de qualquer.

A esfera da gramática é tão tumultuosa como a do

direito. Se a história não nos instrui bastante sobre o

seus primitivos combates, também não lança muita luz

sobre as contendas jurídicas dos primeiros tempos.

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Entretanto há épocas e espíritos gramaticalmente

conformados, em que as questões pelo mais correto

modo de dizer tomam a frente de tudo, e os contendores

não recuam diante das maiores imoralidades, na defesa

de uma regrinha, de uma qualquer futilidade idiomática.

Os séculos XVI e XVII, os tempos da bela mania

helenizante e latinizante, oferecem bons exemplos.

Assim, entre outros, é para ver ainda hoje o espetáculo

de um Agostinho Satúrnio, descompondo a Prisciano, e

um Sanches por sua vez injuriando a Satúrnio, no intuito

de assentarem, como se fosse uma verdade salvadora do

gênero humano, a personalidade, ou a impersonalidade

das expressões verbais – curritur, vivitur – todos eles

com o mesmo fogo, e quiçá com o mesmo talento, com

que um atual abolicionsita prega e defende a libertação

dos escravos. Por conseguinte, aí, como em geral,

sempre o combate, sempre o choque de forças

antagônicas.

Também o direito não aparece em todos os

momentos da sua evolução com o mesmo caráter

primit ivo de titânico escalador do Céu e domador de

monstros. Conforme as influências das épocas e a

energia dos espíritos, as suas pelejas são mais ou menos

serias, mais ou menos grandiosas.

Homero e Leopardi escreveram a batracomioma-

quia, isto é, a luta das rãs com os ratos. Esta palavra me

serve. Quer povos, quer indivíduos, mostram-se às vezes

adequados a um semelhante conceito.

A prova, podemos tirá-la de nós mesmos, quero

dizer, de nós brasileiros. Todos os nossos combates

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quotidianos – jurídicos, políticos, religiosos, literários,

científicos – são outras tantas batracomiomaquias so-

ciais. Nem mais nem menos do que roer de ratos e

coaxar de rãs.

Mas este fato, que aliás é comum a certas épocas

e a certos povos, não altera o caráter selecional e

artístico do direito.

É verdade – e aqui retomo o pensamento de

Rousseau – é verdade que os diversos processos de

seleção social estão sujeitos à degenerescência, não só

por desleixo, mas também por excesso de rigor nas suas

aplicações. É o caso, quando a religião degenera em

puritanismo, a gramática em purismo, o direito em

fornalismo, o próprio amor em galanteio, a ciência em

pedanteria... Então importa apelar para a natureza,

como meio de reação e salvação única possível.

Foi assim que originou-se a teoria de um direito

natural, em oposição ao estéril empirismo dominante, e

o conceito mesmo de um estado de natureza não surgiu,

senão como reativo contra um péssimo estado social.

Porém ainda aí vai uma prova das relações antitéticas,

em que se acham quase sempre os dois sistemas de

forças, a natureza e a sociedade – de modo que muitas

vezes um tem necessidade de ser corrigido pelo outro.

Se, pois, o aparato social da cultura não é mais do

que um imenso arsenal de armas diversas para vencer e

subjugar a natureza, não é menos certo que esta sabe

também, por sua vez, reagir indômita e fazer valer a sua

onipotência. Grande número de fatos da vida humana

podem explicar-se por meio dessa reação.

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Não poucas regras de etiqueta e até de mo-

ralidade, que entretanto são perfeitas violações da

natural coexistência e sucessão dos fenômenos, têm

dado lugar a uma desafronta da Physis contra os

caprichos da Psyché(6)

.

Não obstante, a sociedade continua a multiplicar

os seus liames e a criar óbices ao império fatal das leis

naturais. É certo que nem todas as regras, que ela

impõe, merecem respeito; muitas são como cordas de

filisteus, prendendo a Sansão; um espírito superior as

arrebenta sem grande esforço.

Mas o princípio permanece firme – a sociedade é

uma série de combates contra o geral combate pela

existência, é um conjunto de seleções artísticas, que

melhoram, modificam, alteram a grande lei da seleção

natural.

Agora, porém, é tempo de perguntar: tudo isto

não deixa bem patente que a vontade humana, sendo o

princípio seletor, a causa de todos esses melhoramentos,

modificações e alterações da vida social, revela por isso

mesmo um caráter antinômico das necessidades e fata-

lidades da natureza, e que é justamente esse caráter que

nós entendemos, que devemos entender por liberdade?

Sem dúvida alguma.

Quando, pois, Ernesto Haeckel nos diz que o

querer humano aperfeiçoado é uma... auslesende,

zuchtende Kraft(*), desde que não explica-nos, como

esta força, que de propósito opõe obstáculos a forças e

(*) ... força selecionadora e disciplinadora. (T. do E.).

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tendências naturais, está sujeita às leis comuns, às leis

mecânicas da mesma natureza, nos dá o direito de supor

que aí vai de sua parte – bom-grado ou mau-grado seu –

uma enorme concessão ao princípio da liberdade(7)

.

VI

Ainda uma vez convém repetir, para que fique

bem assentado: eu só me ocupo da liberdade empírica,

de que dá testemunho a consciência. Se por detrás da

vontade, que se sente livre, esconde-se força estranha,

que a impele, sem ela saber, para este ou para aquele

lado, é questão que entrego de todo à meditação dos

teólogos.

A liberdade, de que falo, não é a deusa que

aparece em sonho aos metafisicos de antigo estilo , não é

uma graça, nem um dom do céu, mas simplesmente uma

conquista, um hábito ou um jeito, que o homem adquire,

de dirigir seus atos para um alvo real ou ideal, por ele

prefigurado, e quase sempre em oposição ao pendor da

natureza, da mesma forma que se pode adquirir o hábito

de nadar contra as correntes.

Assim compreendida, a liberdade tem graus de

aperfeiçoamento, que correspondem a outros tantos

graus de desenvolvimento, no duplo sentido da onto-

genesis e da phylogenesis, segundo a própria doutrina de

Haeckel.

Destarte me parece tão explicável que um des-

cendente de heróis não ache dificuldade em encaminhar

seus atos, isto é, uma ordem de sentimentos e movi-

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mentos, na direção seguida por seus avós, quanto é

explicável que o oriundo, por exemplo, de uma família

de pianistas facilmente acomode uma outra ordem de

movimento e sentimentos às duras exigências ddo

teclado.

A liberdade, que é costume definir como uma

faculdade, melhor definir-se-ia como uma facilidade,

disciplinar e artisticamente adquirida.

Em face destas idéias, ainda achar inconcebível

que o homem seja livre, é o mesmo que não com-

preender como pode um maquinismo, um artefato

qualquer, levar vantagem a outro no arranjo e harmonia

de suas partes, trabalhar e funcionar melhor do que

outro. Ser livre, pois, é um produto da arte, tanto mais

perfeito, quanto mais elevado é o escopo da atividade

humana, e em tais condições o homem vem a ser o

artista de si mesmo.

Ainda limitado por este modo o conceito da

liberdade, reduzida ela a este minimum de realidade

positiva – e é o que basta – o problema sociológico

torna-se impossível.

No empenho de demonstrar a validade da

sociologia, Gustave Le Bom apresenta quatro hipóteses,

únicas possíveis, de explicação dos fenômenos sociais, e

excluindo as três primeiras, que julga inaceitáveis, só

deixa de pé a última, que é justamente a sua tese.

Ei-las aqui: primeira, um poder superior,

chamado Deus ou Providência, dirige a seu bel-prazer as

ações dos homens; segunda, os acontecimentos são o

resultado do acaso; terceira, os acontecimentos são a

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conseqüência das vontades humanas; quarta, os acon-

tecimentos representam uma cadeia de necessidades

estreitamente ligadas, e trazem em si mesmos as causas

de sua evolução fatal.

Dividida assim a questão em quatro pontos de

vista, aparentemente inconciliáveis, nada mais fácil do

que escolher um deles e tirar então, por meio da lógica,

as conseqüências desse pressuposto. Foi o que fez Le

Bom.

Mas o erro é evidente. A separação exclusiva dos

membros da divisão não tem assento nos fatos; é puro

trabalho especulativo, um resultado de análise, que

procede por abstração.

Concedendo-se mesmo ao espírito científico, ao

chamado espírito do tempo, que Deus seja banido da

história, que seja um ingrediente inútil na mecânica

social, nem por isso os outros três fatores deixam de

poder coexistir. A quem disser, pois, que a sociedade se

dirige pela combinação de uma tripla ordem de fe -

nômenos – como dirige pela combinação de uma tripla

ordem de fenômenos – como provar o contrário?

E enquanto se não provar que o acaso é de todo

palavra sem sentido, e que as vontades humanas são

forças naturais, são simples forças motrizes, como o

calor ou a eletricidade, o que vale a sociologia? Nada.

Quanto ao acaso, a questão é mais série do que se

supõe. Pensadores de primeira grandeza ainda meditam

sobre este conceito, que aliás pequeninos espíritos

consideram sem realidade.

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Carlos Ernesto Baer define o acaso: um acon-

tecimento, que coincide com outro, sem achar-se preso a

ele por nenhum nexo causal.

Lazarus Geiger, que consagra a este assunto

algumas linhas bem interessantes, e as primeiras, ao

certo, que foram por mão de mestre escritas a tal

respeito, não hesita em dizer: “Não podemos pôr de lado

a questão do acaso, pois ele se acha entretecido e

indissoluvelmente ligado com tudo que se desenvolve...

Em geral costuma-se negar o acaso, ou afirmar que nada

sucede casualmente. Este erro se origina de uma falsa

apreciação do conteúdo real inerente a qualquer

conceito”.

E depois de mostrar com exemplos que não é

exata a opinião os que descobrem nessa idéia uma

negação de relações causais, proveniente da ignorância

das causas, ele acrescenta: “A intuição do acaso

pressupõe a da causalidade – ainda mais, só a convicção

da verdadeira causa de um fato é que pode decidir sobre

sua real causalidade(8)

.

Para Geiger existem, pois, fenômenos – como ele

mesmo se exprime, ursachlos (sem causa) – fenômenos,

que se dá um verdadeiro e absoluto acaso.

Bem ponderado, é difícil não seguir a opinião de

Geiger. O mundo e a natureza apresentam quotidianas

coincidências, cuja explicação não pode ser dada por

nexos causais. Como, porém, o espírito humano sente a

necessidade de ligar a todo fenômeno uma causa, ele

transporta muitas vezes esta lei do pensamento a

domínios, onde ela não vigora; e daí resulta uma porção

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de contra-sensos, que ainda hoje perturbam a marcha

regular da indagação científica.

A superstição e a crença no milagre descendem,

em grande parte, dessa conversão arbitrária do casual

em causal.

Porque um eclipse do sol ou da lua sucede ao

mesmo tempo, em que se dá na terra um fato horrível –

o massacre de uma família, ou o martírio de um justo –

o homem observando esta coexistência de fenômenos,

que aliás pertencem a duas séries independentes de

causas, confere-lhe também o caráter de efeito, que deve

então ser produzido por um poder superior; e daí a velha

idéia dos sinais celestes, das ameaças divinas, que põem

em agitação o mórbido espírito dos crentes.

O paralogismo conhecido sob a fórmula – post

hoc, ergo propter hoc – não consiste, em última análise,

senão justamente nessa transformação do casual em

causal.

É bem sabido como a lógica do povo continua a

amarrar à cauda dos cometas a peste, a guerra, e em

geral todas as calamidades, que porventura depois deles

apareçam na terra. Quanto, porém, são infundadas estas

e outras semelhantes crenças, basta a seguinte

consideração para mostrá-lo.

Suponhamos que uma estrela – e a hipótese não é

gratuita – que a estrela Alcione, por exemplo, de repente

desaparecesse do céu, mas também suponhamos que

esse fato viesse imediatamente depois, um ou dois dias

depois de um grande acontecimento humano – a des-

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truição de um vasto império, a queda do papado, ou

outro qualquer sucesso notável.

Proclamada a morte da estrela pela extinção da

sua luz, qual seria o crente, que não visse no desa-

parecimento do astro um indício da cólera divina,

motivada ou causada pelo fato dado no mundo?

Entretanto é certo que, se isto porventura acon-

tecesse no correr do ano vigente, a estrela em questão

nada tinha que ver com os negócios, que figurei, pela

simples razão de já haver morrido há séculos.

O último alento vital, exalado por ela, teria sido

em 1314, pois que a sua luz gasta não menos de 573

anos para chegar até nós. Não haveria portanto nenhuma

relação de causalidade; e a aparente sucessão imediata

dos dois fenômenos seria um mero acaso.

Como é fácil de compreender, o acaso figura

legitimamente na ordem das idéias, que têm um

conteúdo positivo.

Ludwig Noire, que adota a doutrina de Geiger,

escreveu por sua vez o seguinte: “A razão pode somente

sondar o geral das coisas; o particular se subtrai ao

cálculo. Quando mesmo o nosso conhecimento se

alargasse o mais possível; quanto mesmo toda a matéria,

todos os movimentos do nosso sistema solar fossem

conhecidos, e a menos pequenineza, como a maior

grandeza, pudesse ser prevista com exatidão astro -

nômica – seria por isso todo o acaso transformado em

necessidade? Não, decerto. Restariam sempre sem

solução científica estas questões: por que razão a terra e

os demais planetas, por que razão o sol, se acham

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exatamente agora no grau de desenvolvimento, em que

vemo-los, e por que exatamente nesta parte do espaço, e

não antes em uma outra?...”(9)

Como se vê, o acaso está escondido por detrás de

tais perguntas.

Ora, de acordo com a intuição monística, a

preponderância do movimento ou do sentimento deter-

mina também o predomínio da causa efficiens ou da

causa finalis. Se, pois, no império das causas eficientes,

há fenômenos ursachlos (sem causa), que são os que

têm caráter casual – no domínio da s causas finais, há

fenômenos swecklos (sem alvo, sem fim, sem plano),

que trazem também o caráter de casualidade.

Deste modo o acaso não pode ser banido, nem da

esfera da natureza, onde imperam as causas mecânicas,

nem da esfera social, onde a finalidade tem o seu

predomínio.

As quatro hipóteses de Le Bon me parecem

quatro pés, indispensáveis todos à marcha da sociedade.

Se dentre eles algum se mostra manco e pesado, é a tal

cadeia de necessidade, pois até hoje, no que toca a vida

social, não tem passado de um conceito a priori, donde

a dialética pode tirar bonitas conseqüências teóricas,

mas a prática nada tem haurido de útil e aproveitável.

Estabelecendo esse número determinado de pres-

supostos – nem mais nem menos – o sociólogo francês

cedeu talvez a uma velha mania, que nos leva a

representar certas coisas misteriosas sob a imagem

simétrica do quadrado.

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Assim, quatro eram os rios que banhavam o

Éden, como quatro eram as faces da visão de Ezequiel,

que depois serviram de símbolo dos quatro evangelistas,

e ainda quatro as bestas, que Daniel sonhou, prefi-

gurando quatro impérios.

Também quatro foram as hipóteses, que apare-

ceram ao espírito de Le Bon como únicas concebíveis

para explicar a ordem social. Não dir-se-ia uma espécie

de quadrupedismo da razão profética, do qual também

às vezes se ressente a razão socióloga, que é uma digna

irmã da razão teóloga? Pergunto apenas.

Deus mesmo, o obscuro e incognoscível Deus!...

Com o devido respeito: eu o ponho fora do templo da

ciência, ainda que o admita como objeto de poesia e de

amor no templo da religião. Dá-se com Deus, na esfera

científica, pouco mais ou menos, o que se dá, na esfera

política e social, com os poderosos da terra: assim como

estes fazem pender para o seu lado a balança da ju stiça,

ele faz a lógica ser indiferente ao sacrifício da verdade.

Desde que Deus é hóspede da ciência, como pode ela

dizer coisa que o ofenda, ou tomar atitude contrária ao

Senhor dos exércitos? Sobre isto nenhuma dúvida.

Mas também, por outro lado, será certo que ele

não deve ser levado em conta alguma pelos arquitetos

do edifício sociológico? A parte que cabe a Deus no

mecanismo da sociedade, é tão nula, como a que lhe

cabe no mecanismo da natureza? Excluído Deus como

poder, como força criadora dos fenômenos naturais, é

fácil também excluí-lo como poder, como força

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motivadora de fenômenos sociais? Estas questões me

parecem de algum valor.

Não é decerto em nome de Deus, que os planetas

giram em torno do sol, e as falenas em torno da luz, que

vai queimá-las; não é decerto em nome de Deus que o

mar se quebra na praia, ou os rios caem dos montes, ou

a chuva estraga as searas, ou a peste mata os rebanhos.

Mas é incontestável que o homem, em nome de Deus,

fazendo muita coisa má, também faz muita coisa boa.

Não é preciso ser devoto para afirmá-lo; a sinceridade

científica obriga a reconhecê-lo.

Se, pois, Deus pode ser banido do universo

inteiro, como força real, mediata ou imediatamente

eficaz, não pode sê-lo da sociedade como força ideal,

que, sob a forma psicológica do motivo, concorre para

um sem-número de ações elevadas, como também para

um sem-número de ações indignas, mas é sempre força,

aliás não suscetível de explicação mecânica, e como tal

destinada a perturbar os cálculos de qualquer ciência,

que pretenda reduzir os movimentos da dinâmica social

à exatidão das fórmulas da dinâmica celeste.

E aqui importa observar que não estou longe de

subscrever a terrível opinião de F. von Hellwald

(Culturgeschichte): “Um dos problemas da ciência, diz

ele, consiste em destruir todos os ideais, provar a sua

inanidade, o seu nada, e mostrar enfim que a fé em

Deus e a religião não passam de um engodo; que

moralidade, amor, liberdade e direitos do homem, não

são mais do que mentiras”.

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Mas é bom que nos entendamos. Há verdadeiros,

como há falsos ideais, e só estes últimos é que podem, é

que devem ser destruídos. Todo ideal – eu creio –

envolve uma ilusão, mas nem toda ilusão envolve uma

mentira.

Nada de mais ilusório, por exemplo, do que a

eterna felicidade, que se prometem dois corações

amantes; entretanto nada de mais verdadeiro do que o

amor, que lhes arranca lágrimas, ainda que lágrimas

risonhas – dakrya gelasasa, como diria Homero – o

amor insubordinado, sempre menino e ignorante, que

não sabe lógica nem retórica, que não o bedece à lei

alguma, porque ele mesmo julga-se uma lei.

Que a humanidade se iluda, acreditando na

realidade dos seus sonhos, ou, como disse Feuerbach,

convertendo os seus desejos em outros tantos deuses –

pensamento este, que já tinha germinado no espírito de

Virgílio (Eneida – IX, 184), quando fez Niso perguntar

a Euríalo... an sua cuique deus fit dira cupido?... que a

humanidade se iluda por sua própria conta – é seu

destino, e ela cumpri-lo-á. Que ninguém, porém,

pretenda mais iludi-la, nem impor-lhe cadeias, que ela

mesma não se impõe – este, sim, é um dos grandes, um

dos maiores problemas, que à ciência incumbe resolver.

Quero crer que Deus, para o comum dos homens,

não passa de uma palavra. Mas a palavra também é uma

força, que não só na história das religiões, porém ainda

em todos os distritos da história humana em geral,

continua a representar um importante papel.

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Esta palavra, pois, que não perdeu nem sei se

perderá jamais de todo a sua velha magia, ainda quando

seja reduzida a um simples conceito gramatical, ao

conceito mesmo de um nome, que só tem vocativo, de

uma interjeição, de um grito da alma, constitui, por si

só, para a sociologia, um embaraço invencível(10)

.

VII

Se para justificar o nome de ciência, atribuído a

esta ou àquela espécie de conhecimentos, bastasse

alegar que desde antigos, antiquíssimos tempos,

filósofos e pensadores de primeira grandeza tentaram

dar a esses conhecimentos um caráter científico,

procurando organizá-los e reduzi-los a sistema, a

sociologia ou a ciência da sociedade seria ao certo uma

das mais autorizadas.

Porquanto, com a primeira reflexão que o homem

fez sobre a origem das coisas, surgiu também a primeira

reflexão que ele fez sobre a ordem das coisas. É o

começo de toda a filosofia.

Diz bem Eduardo Lasker: “uma genética e uma

ética são as formas primitivas do saber humano”. A

mesma necessidade que levou o homem a indagar as

causas geradoras do universo, o impeliu também para a

pesquisa de regras ou de princípios diretores da vida

social.

Pode-se mesmo afirmar que a ética precedeu a

genética, no sentido de que, bem antes que os espíritos

reduzissem à forma científica os seus conhecimentos

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sobre a natureza, já havia uns vislumbres de ciência

prática. A época dos Anaxágoras e dos Demócritos veio

depois da dos Cleóbulos e dos Tales. A sabedoria

gnômica dos sete sábios antecedeu às especulações das

escolas gregas. As sentenças ou máximas, que se lhes

atribui, são induções baseadas na observação dos fatos e

relações sociais.

Assim, quando Pítaco dizia: pondera bem o

tempo; ou Cleóbulo aconselhava: moderação em tudo;

ou Periandro de Corinto: refletir, antes de obrar; eram

os primeiros lineamentos de uma ciência futura, que,

sob o nome de política, ou de sociologia, ou sob outro

qualquer título, havia ainda de pretender entr ar no

conhecimento das leis que regem a sociedade humana, e

assim contribuir para a sua melhor direção(11)

.

Entretanto a cultura helênica prosseguiu na sua

marcha. Com a revolução operada por Sócrates, a

ciência da natureza ou a física isolou-se da ciência do

homem ou filosofia propriamente dita, que passou a ser

metafísica. A esta incorporou-se a ciência de Deus, bem

como a da sociedade.

Todos os grandes sistemas filosóficos fizeram

sempre a sua parte da sociologia. Platão e Aristóteles

foram também sociólogos. Mas o que há enfim de

realmente assentado, depois de tantos séculos de

observação e de estudo, no que toca a uma verdadeira

ciência social? – Coisa nenhuma.

Os sociólogos modernos não desconhecem esta

verdade; porém buscam enfraquecê-la pela consideração

da impropriedade do método, até hoje aplicado à socio -

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logia, que eles julgam dever sujeitar-se aos mesmos

processos lógicos das ciências naturais, para tornar -se

então efetivamente capaz de resolver o seu problema.

Não deixam de ter razão os que assim acusam as

velhas tentativas sociológicas de vaguidão especulativa

e inanidade metafísica; mas nem por isso é menos

censurável a ilusão em que laboram, quando pensam

remediar o antigo mal com a simples mudança de

método.

A questão principal não é de método, mas de

objeto. A sociologia não tem um, que possa ser

regularmente observado. Se ela pretende alguma coisa

séria, é sem dúvida abranger no seu círculo de obser -

vação a totalidade dos fenômenos sociais e descobrir as

respectivas leis.

É pelo menos o que diz Lilienfeld, um sociólogo

alemão: “Estado, igreja, ciência, arte, vida comunal,

direito, força, liberdade social, não são especulações,

porém realidades, como a forma e o movimento dos

corpos. A sociologia não pode negar, nem deixar desa-

percebidas essas realidades; ela deve procurar inquiri-

las e explicá-las”(12)

.

Mas isto será possível? Não nos paguemos de

palavras vãs. O positivismo, que criou a bárbara

expressão de sociologia, aliás bem adaptada à esdrúxula

idéia da coisa, nos fala de uma estática e uma dinâmica

social, aquela compreendendo as leis da existência, e

esta as leis do desenvolvimento da sociedade; porém a

pergunta surge espontânea: que sociedade? A humana,

por certo.

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Mas a rase – sociedade humana – ou não passa

mesmo de uma frase, ou é simplesmente a soma dos mil

e quatrocentos milhões de terrícolas. Como tal, entre-

tanto, no sentido jurídico, moral, religioso, político e até

econômico e comercial, não tem valor nenhum.

Se, porém, o objeto da ciência não é a sociedade

em geral, mas esta ou aquela geográfica e

historicamente determinada, não diminuem por isso as

dificuldades de observação, e acresce que teríamos

tantas sociologias, quantos são os grupos sociais, que

mostram um caráter distinto e um desenvolvimento mais

ou menos homogêneo – ou sejam raças, ou povos, ou

Estados, províncias, municípios, etc. – o que aliás não

merece uma refutação.

Não a merece decerto. Os próprios sociólogos

estão de acordo em que a humanidade não apresenta a

mesma feição nos diversos pontos da terra, isto é, não

tem obedecido por toda parte, com igual sucesso, à lei

do desenvolvimento.

Povos, até ainda existem, que nem sequer já

passaram pela primeira forma da evolução humana, que

é puramente mecânica, e consiste na simples mudança

de lugar – a evolução geográfica, a emigração. E pelo

que toca à evolução morfológica, fisiológica e psico-

lógica, ou melhoramento de formas, de funções orgâ-

nicas e atividades espirituais, a diversidade é também

ainda tão pronunciada, que mal se compreende a reunião

de coisas tão heterogêneas sob um só conceito, sob a

idéia geral de gênero humano.

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Este fato, que é incontestável, é que tem mesmo

determinado alguns prógonos e epígonos da sociologia a

dividir e classificar os povos do globo em diferentes

grupos, correspondentes às diversas fases da ascensão

evolucional da espécie inteira. Assim, Littré dividiu-os

em sete classes, começando, de cima para baixo, pelas

nações cultas da Europa e da América, e terminando

pelos selvagens da Nova-Holanda. Gustave Le Bon,

porém, fez uma divisão de quatro membros, princi-

piando, de baixo para cima, pelos homens da idade de

pedra talhada, e acabando pelos povos civilizados(13)

.

Como se vê, o célebre discípulo de Comte

encarou a espécie humana em seu estado atual, ao passo

que o outro sociólogo observou-a em sua marcha

histórica, no imenso decorrer dos tempos. Littré fez uma

classificação estatística; Le Bon, porém, procurou fazer

uma classificação filogenética(14)

. Mas ambas têm o

mérito comum de tornarem ainda mais patente a

impossibilidade da sociologia.

Com efeito, se é inconcebível uma ciência capaz

de abranger em seu vasto círculo, a totalidade dos

fenômenos de uma societas gegneris humani, que nunca

existiu, que não existe, que é uma concepção meramente

subjetiva, um sonho de ambição política, ou de êxtase

religioso – não o é menos uma porção de ciências

particulares, esgalhos de um mesmo tronco, que se

incumbissem de estudar separadamente os diversos

pontos de partida e pontos de parada do desen-

volvimento humano.

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Como sujeitar a leis sociológicas a vida dos

selvagens da Nova Holanda – e ainda menos admissível

– a dos homens da idade de pedra talhada?... A coisa é

realmente digna de riso.

Mas é possível que me redarguiam: a sociologia

só se ocupa, só quer se ocupar da humanidade

considerada em suas alturas, como ela se manifesta

entre as nações cultas. Mesmo assim, porém, o problema

continuaria insolúvel.

A sociologia, que deste modo não seria mais do

que uma irmã bastarda das velhas histórias da

civilização e filosofias da história, nada teria a

apresentar de próprio e novo: poderia até, nas fecundas

sínteses de um Guizot, ou nos prodigiosos fragmentos

de um Herder, ir beber muita idéia que a esclarecesse e

chegasse a convencê-la da sua impertinência.

Deixemo-nos de cerimônias, e digamos toda a

verdade. Em geral os sociólogos não são homens com

quem se possa falar sério; são espíritos incompletos ou

doentes. Não é em vão que esta nova raça de

filosofastros tem tido maior incremento nos países

atrasados, como Brasil, Portugal e outros, diminuindo o

seu número na razão inversa da cultura dos povos entre

os quais eles aparecem.

Sim – digamos toda a verdade. Augusto Comte

foi sem dúvida um grande homem, mas fez à filosofia

um grande mal. A história não oferece exemplo de

sistema algum, que tanto abrisse caminho ao diletan-

tismo filosófico, como a chamada escola positiva.

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Nem há asserto mais inexato do que o de Littré,

quando diz que... “a filosofia positiva é severa e árdua;

que ela sujeita os seus discípulos à rude lei de

aprender...”. A experiência mostra o contrário. Entre

nós, pelo menos, com a sua pretendida lei dos três

estados e com a sua sociologia, o positivismo dispensa

quaisquer outros estudos.

A expressão: eu sou positivista – não quer so-

mente significar uma nobre qualidade, ou um título

honorífico; é muitas vezes também uma razão decisiva,

um argumento peremptório. Os discípulos e subdiscí-

pulos da célebre seita pertencem pela mor parte à ordem

dos malucóides (mattoidi), de que fala Lombroso.

Augusto Comte era um espírito grave; mas nem

por isso deixa de afigurar-se-me às vezes como uma

espécie de Fallstaff da filosofia, que poderia também

dizer de si mesmo: I am not only witty in myself, but the

cause, that wit is in other men. (Tradução livre: “eu não

sou somente um homem alienado, mas também a causa

de que outros percam a cabeça...”).

Bem pode parecer que, assim me exprimindo, eu

obedeça à minha velha predileção pela Alemanha e a um

tal ou qual desagrado que em geral me causam os

produtos do espírito francês. Completo engano.

É certo que não faço segredo do meu

germanismo. Na questão suscitada por Lord Dunsany –

se gaulês ou teutônico – não duvidaria tomar, em todo

caso, o partido do nobre inglês e pronunciar -me pela

preferência do segundo.

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Mas isto não me veda reconhecer que a Alemanha

também pagou a sua quota de papel e tinta à mania da

época. Os seus positivista, que aliás contam-se nos

dedos, não me são menos antipáticos do que os

franceses, posto que sinta-me obrigado a confessar-lhes

um pouco de gratidão, por haverem eles indiretamente,

com a maior robustez dos seus argumentos e a maior

profundeza das suas indagações, melhor assentado a

insustentabilidade do positivismo e sobretudo a inani-

dade da sociologia.

Não é uma afirmação gratuita; vou dar a prova.

Em um artigo dos “Anais prussianos”, intitulado –

Positivistische Regungen in Deutschland – diz Hugo

Sommer: “Por muito tempo o positivismo celebrou

somente em França e Inglaterra os seus principais

triunfos, ao passo que a Alemanha se mantinha para com

ele em posição um pouco desdenhosa. Entretanto

ultimamente o professor de filosofia Ernesto Laas, em

Estrasburgo, fez a séria tentativa de introduzi-lo também

entre nós; razão pela qual, à vista da profunda

influência, com que semelhante doutrina ameaça o nosso

pensar e o nosso sentir, não será destituído de um certo

interesse geral sujeitar essa tentativa a uma análise

crítica”(15)

.

Esta crítica foi realmente exercida, e de um modo

magistral. Os pontos fracos do positivismo, ainda que

protegidos por uma nova e mais forte camada de

considerações científicas, foram todavia postos a des-

coberto sem a mínima reserva, sem piedade alguma. O

positivista alemão não atingiu o alvo que visara. A

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pátria de Kant não se deixou influenciar pela doutrina

de Comte.

E releva notar que Hugo Sommer não deu uma

idéia exata dos fatos, quando asseverou que Ernesto

Laas foi o primeiro a querer introduzir o positivismo na

Alemanha. A obra de Laas é de 1882(16)

, e bem antes

dessa época, em 1873, Lilienfeld, a quem já citei, havia

aparecido com o primeiro volume dos seus – Pensa-

mentos sobre a ciência social do futuro – no qual se

ocupou da sociedade humana como organismo real, e

pretendeu mostrar que é tão possível uma ciência deste

organismo, como dos outros organismos da natureza.

É verdade que Lilienfeld não se colocara no

mesmo terreno de Laas. O seu positivismo é mais

modesto, mais reservado, e quase que se limita

exclusivamente à questão da sociologia, ao passo que o

professor de Estrasburgo, para quem o ideal da ciência

é... “poder um dia, das propriedades imutáveis dos

agentes elementares, levada pela mão da lei da

causalidade, depreender a razão por que acontece isto

ou aquilo, exatamente neste ou naquele lugar, e neste ou

naquele tempo...”, o professor de Estrasburgo, dizemos,

toma uma posição decididamente agressiva e hostil à

filosofia alemã.

Nem um nem outro, entretanto, acharam eco no

espírito público do seu país. Devo, porém, observar que

o livro de Lilienfeld não é todo para pôr-se à conta de

uma escola opiniática e atrasada; há nele um certo

número de vistas novas, que certamente merecem

alguma atenção. Além disto, o escritor não caiu no erro

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comum a todos os mais sociólogos, de dar a sociologia

como feita e acabada por Comte. Ele teve a cautela de

falar somente de uma ciência social do futuro; o que

importa reconhecer, ao invés do que pensam os

sociólogos franceses e seus discípulos, que atualmente,

pelo menos, a sociologia não existe. Já é uma grande

concessão, que convém deixar assinalada(17)

.

Acresce ainda que Lilienfeld foi o primeiro a

enunciar a idéia de uma embriologia social, paralela à

embriologia individual, e capaz de prestar os mesmos

serviços que esta última tem prestado nas mãos de um

Baer e de um Haeckel – idéia que não veio decerto

diminuir as dificuldades do problema, como teremos

adiante ocasião de ver, mas entretanto não deixou de

dar-lhe uma nova aparência de seriedade científica, e

talvez por isso mesmo foi aproveitada e repetida, anos

depois, pelo francês G. Le Bon.

A menção que fiz dos dois positivistas e

sociólogos alemães foi simplesmente exemplificativa.

Anteriormente a eles, em 1860, duas grandes nota-

bilidades, Moritz Lazarus e Heinrich Steinthal, já ti-

nham feito a seu modo, quero dizer, em mais vasto

plano, com proporções grandiosas, um tentame do gê-

nero, criando o célebre Zeitschrift Voelkerpsychologie.

Ora, o conceito da psicologia dos povos é irmão, se não

o mesmo que o de uma ciência da sociedade humana.

Mas o fiasco foi completo; o jornal não pôde

durar muito tempo. E se os dois sábios editores não

tivessem, para firmar a sua reputação, outros trabalhos,

senão os que se acham no pretensioso Zeitschrift, é bem

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dubitável que alguém hoje se lembrasse de pronunciar -

lhes os nomes, com aquele respeito que sóem infundir

os legítimos representantes da ciência alemã.

VIII

A idéia da possibilidade e realidade de uma

sociologia procede de duas fontes distintas: o

predomínio das ciências naturais, por um lado, e um

certo número de aberrações políticas, por outro,

características do nosso século.

As ciências naturais, com efeito, têm podido por

seus triunfos cativar o espírito público, e esses triunfos

são sobretudo devidos à simplicidade e rigor do seu mé -

todo, bem como à importância prática dos seus resul-

tados. Daí o seguinte fenômeno geralmente observado:

tudo que de qualquer modo e em qualquer domínio

pretende chegar a um verdadeiro conhecimento,

endireita logo a sua marcha pelo caminho das ciências

naturais.

Daí também, portanto, o geral esforço que se nota

até em filósofos e literatos, para construírem uma

intuição mecânica do mundo, na qual antes de tudo só se

trata da relação de causalidade, do assinalamento de

causas e efeitos, da indicação de leis, que dominam os

acontecimentos. E esta exagerada apreciação traz como

conseqüência atirar-se para o segundo plano, como uma

superfluidade, aquela ânsia que há no espírito humano,

de conhecer também o que não lhe é imediatamente

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atingível, nem lhe chega pela senda de exata

investigação.

Não serei eu, por certo, quem condene a

aplicação do método naturalístico a assuntos que até

hoje pareciam não comportá-lo. Não serei eu quem

condene a intuição e explicação mecânica do mundo

inorgânico e orgânico, até onde essa explicação é

cabível.

Mas ainda aqui estou agarrado ao manto de Kant,

para quem, como já vimos anteriormente, em relação à

forma dos organismos, há sempre um resto que a

mecânica não explica – aumentando esta inexplicabi-

lidade na medida do maior desenvolvimento dos mesmos

organismos e maior complicação de suas funções. Por

conseguinte, quando se atravessa toda a série de seres

organizados e chega-se a formações superiores, como o

homem, a família, o Estado, a sociedade em geral, o

mecanicamente inexplicável já não é um resto, mas

quase tudo. O que há de restante, exiguamente restante,

é a parte do mecanismo, a parte do movimento.

Aí está, pois, a origem do mal. Os sociólogos,

que em regra são espíritos tomados de admiração pelos

progressos e conquistas das ciências naturais, entendem

que nada há mais fácil do que construir a sua sociologia,

aplicando-lhe unicamente o método naturalís tico, isto é,

observando e induzindo. A ilusão é compreensível, mas

não desculpável.

A outra fonte da mania dominante, disse eu que

devia procurar-se nas extravagâncias políticas do nosso

tempo, em virtude das quais chegou-se ao ponto de

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conceber o Estado e a sociedade como dois seres

diferentes, ainda que de igual posição, colocados vis-à-

vis um do outro, sendo que as suas pretendidas relações

recíprocas são julgadas diversamente pelos partidos

políticos e escolas filosóficas, conforme o ponto de

vista prático ou teorético de qualquer desses partidos ou

escolas.

Assim, para o liberalismo, o Estado é o criado da

sociedade, um criado, porém, que sabe ser indispensável

e não pode ser despedido, e que por isso é um pouco

inclinado a se mostrar arrogante e inconveniente. A

relação da sociedade com o Estrado é julgada, como a

de um empresário com os seus trabalhadores, que têm de

executar a sua tarefa, mas nada ordenar nem tomar para

si liberdade alguma.

Politicamente falando, a sociedade é para o

liberalismo o soberano, que já existia antes do Estado, e

só criou este para o seu serviço.

O socialismo por sua vez encara a relação das

duas entidades de um ponto de vista, em parte

semelhante, em parte contrário. Ele exige o arredamento

da concorrência por meio de uma ordem social positiva,

que indique a cada indivíduo o seu lugar e os seus

afazeres. Uma tal ordem parece tornar o Estado supér -

fluo e resolvê-lo de todo na sociedade. A sociedade

organizada não precisa de criado porque ela serve-se a

si própria; não precisa de senhor, porque é senhora de si

mesma.

Aos olhos da democracia – em geral não existe

sociedade. Este conceito, ela o substitui pelo de povo. O

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povo é para ela o que é a sociedade para o socialismo,

isto é, o soberano – ou este se deixa servir pelo Estado,

ou sirva-se a si mesmo.

E, com efeito, no seu ponto de vista, a demo -

cracia não deixa de ter razão de rejeitar o conceito da

sociedade e em seu lugar colocar o de povo. Aos

característicos daquela pertence a desigualdade dos seus

elementos, entretanto que no conceito do povo, como

soberano místico, abstrai-se de toda e qualquer

desigualdade.

Por isso também é que a aristocracia separa-os

um do outro. A sociedade, no sentido aristocrático, é

aquela parte da nação, em cujo conjunto são per -

ceptíveis e sabem fazer-se valer elementos desiguais de

notável significação, ao passo que o povo como resíduo

apresenta uma massa indistinta.

Ambos os conceitos, aristocrático e democrático,

coincidem no modo comum de considerar o povo com

um místico-elementar, com a diferença de que para a

democracia, além dessa entidade, politicamente nada

existe, ao passo que para a aristocracia ainda existe a

sociedade, da qual o povo não faz parte.

“Em harmonia com tais idéias, ou errôneas, ou

incompletas – diz F. Froebel, de quem são tomadas

algumas destas últimas considerações – surgiu a pre-

tensão de fundar com uma teoria da sociedade uma nova

ciência especial, quando é certo que essa teoria não

pode ser senão uma parte da teoria política em geral,

composta de elementos histórico -naturais e ético-

tecnológicos, pois que o pensamento diretor dos fatos e

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juízos nela reunidos outro também não pode ser senão o

pensamento político.

É bem compreensível que numa época de

fermentação das idéias morais possa surgir semelhante

bolha de sabão teorética; porquanto uma tal nova

ciência seria o cânon, felizmente descoberto, do

socialismo, cujo conteúdo bastaria somente ser ensinado

nas escolas para tornar o Estado supérfluo em relação

aos negócios internos, e ao mesmo tempo animar a

esperança de que, com a final abolição dos limites entre

as nações e o estabelecimento de uma geral sociedade

humana, desapareceria também a necessidade dos

aparatos de defesa nacional...

As viagens projetadas para o país desta ciência

nova, são por isso tão sedutoras para uma fantasia

impolítica, como para uma impolítica especulação...”(18)

.

Perfeitamente bem. É assim que se rende preito à

verdade. O célebre companheiro de Roberto Blum, que

foi ao princípio uma vítima de ilusões políticas e

científicas, sabe hoje tirá-las com mãos de mestre. A

teoria, que ele qualifica de tonteira (Schwindel), de uma

sociologia ou ciência da sociedade, distinta da política,

não tem razão de ser, como não a tem a concepção

fantástica da sociedade e do Estado, como dois

organismos diversos e coordenados, mas não

subordinados um ao outro.

Entretanto o mais admirável é que filósofos da

estatura de Eduard von Hartmann e espíritos nota-

bilíssimos, como Lorenz Stein e muitos outros, tenham

prestado o apoio da sua autoridade e semelhante des-

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propósito. E alguns não se limitam à díade do Estado e

da sociedade, associam-lhe ainda a velha Igreja, e

tratam de estudar a natureza desta tríade e descobrir as

leis da sua coexistência.

É verdade que Hartmann não comete os desatinos

comuns ao liberalismo e ao socialismo; pelo contrário,

ele vê com exatidão que a sociedade sai do Estado antes

do qual ela não pode existir, nem é ela que o cria para

os seus fins. O conceito da vida privada não pode surgir

senão por meio da consciência de uma vida pública.

Os primeiros impulsos que reúnem os homens e

mantêm-nos reunidos, são impulsos físicos, e os seus

efeitos históricos naturalmente apreensíveis e darwinis-

ticamente explicáveis. Mas também a reunião não vai

além da família natural, e um rebanho de homens não é

menos indigno do nome de sociedade, do que um

rebanho de animais.

Ouçamos ainda Júlio Froebel: “O Estado é quem

sujeita a sociedade aos seus desígnios, dando -lhe um

arranjo finalístico e pondo o seu movimento numa

direção metódica. Dentro deste arranjo e deste método, a

vida privada, de cujas relações compõe-se a mesma

sociedade, conserva a sua liberdade individual; somente

deve-se notar que é fácil a ilusão sobre a medida dessa

liberdade, ainda quando exista a maior parcimônia da

parte da legislação e do governo em todas as relações

sociais.

“No seio mesmo da mais livre sociedade a

vontade do Estado só deixa francos e abertos à vida

privada certos e determinados caminhos, que não lhe

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concedem mais espaço, do que as veredas que

atravessam pelo meio de uma bem cultivada paisagem, e

não lhe é permitido tomar outra direção. Acontece que o

hábito, em mil casos contra um, não consente que as

restrições cheguem ao domínio da consciência. Na

realidade a vida social é um movimento executado por

caminhos, de antemão traçados e contidos dentro de

estreitos limites...”(19)

.

Lorenz Stein, de quem também fiz menção, ano é

um filósofo, mas um economista, e como tal não é de

esperar que vá muito além do ponto de vista econômico.

Entretanto ele vê no Estado a unidade de certo número

de homens, elevada à altura de uma personalidade, que

se rege e se move por si mesma; vê nele uma comunhão,

que aparece como vontade e como ato, não mais

dependente do capricho e interesse dos indivíduos.

Por sociedade entende ele, porém, a unidade

orgânica da vida humana, determinada pela distribuição

das riquezas, regulada pelo organismo do trabalho, posta

em movimento pelo sistema das necessidades, assim

como duradouramente ligada a certas gerações por meio

da família e seus direitos(20)

.

O erro de Stein, como se vê, consiste em abstrair

a sociedade do Estado, formando de uma e de outro dois

conceitos, que aliás não se excluem. No seu conceito do

Estado já está contido o da sociedade, e vice-versa. Isto

é tanto mais estranhável, quanto é exato que para ele as

duas coisas são na realidade inseparavelmente unidas,

para que, pois, com aquela dupla definição de uma

mesma idéia, auxiliar a vertigem de uma nova ciência

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social – que nunca formar-se-á – ao lado da do Estado,

que ainda não está feita?

X

Eu sinto que tenha aqui de estranhar também a

um homem, a quem voto a mais profunda admiração, o

grande jurista e professor von Jhering, algumas das suas

idéias sobre o assunto que nos ocupa. Com efeito, na

última de suas obras – Der Zweck im Recht – prin-

cipalmente no segundo volume, onde o pensamento

diretor tomou novas e mais largas proporções, não

prometidas, nem sequer dadas a conjeturar no primeiro,

o ilustre autor esquematiza por demais a sociedade

como sujeito à parte, com suas próprias leis e seu

próprio desenvolvimento – contribuindo assim para re-

forçar a crença na ciência de um organismo autonômico

e autocinético, justaposto, se não antes superposto ao

organismo do Estado(21)

.

Não se faz preciso dizer que este não é realmente

o intuito do célebre jurista; mas há uma tal ou qual

aparência de Sê-lo, e tanto basta para perturbar o juízo

de leitores menos despreocupados. Não posso pois

deixar de sujeitar a uma crítica alguns pontos do escrito

de von Jhering, ainda que esta crítica seja feita, e só

deva ser feita... de joelhos.

É sabido que Herder, quando atacou a obra de

Kant, observou humoristicamente que a Crítica da

Razão Pura, em seu esquematismo, coordenava todos os

conceitos humanos de modo a formarem uma dualidade

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simétrica, e que o próprio autor muitas vezes se

admirava de como eles se punham em ordem por si

mesmos e sem o seu intermédio...

Igual observação poder-se-ia fazer a respeito do

livro de von Jhering, com as suas esquematizações e os

seus grupos de conceitos coordenados em díades e

tríades sistemáticas, mas não de todo correspondentes à

realidade dos fatos.

Assim, entre outras, e como frisante exemplo do

que acabo de notar, limito-me a referir à dupla divisão

tripartida de uma ordem jurídica, uma lei jurídica e uma

coação mecânica do poder do Estado, por um lado, e

por outro lado, uma ordem moral, uma lei moral, e uma

coação psicológica da sociedade(22)

.

A coisa não é tão simples, como parece. A ordem

jurídica, não é mais do que a parte melhor acentuada da

mesma ordem moral. Elas são complementos, não

antíteses, uma da outra. Os fatores da primeira são mais

patentes – os da segunda mais latentes. A ordem moral,

que para von Jhering se confunde com a ordem social, é

a atmosfera da ordem jurídica – não podendo valer em

contrário a objeção das revoluções, que parecem querer

destruir esta última para melhorar a primeira.

Porquanto, antes de tudo, não se deve confundir

ordem jurídica com governo, nem também perder de

vista, que em tais condições, quero dizer nos casos de

revolução, o que se pretende é acabar com um estado de

desordem, restabelecendo a ordem jurídica em harmonia

com a ordem moral.

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Quanto à lei ética, defrontando com a lei do

direito, é mister que nos entendamos. Se trata -se de uma

lei moral autonômica, a lei que o indivíduo impõe-se a

si mesmo – salta aos olhos que ela nada tem que ver

com a sociedade, pois tem o seu fundamento na

consciência individual.

Se trata-se ao contrário de uma lei moral

heteronômica, isto é, de uma lei imposta pela sociedade

em geral, ou por uma religião, por uma igreja em

particular – então... reconheçamos a verdade: aqui já

não se cogita de moral, porém de alguma coisa que não

é propriamente direito, mas como tal funciona.

Essa moral heteronômica é que dá lugar à coação

psicológica, de que fala o nosso autor, em oposição à

coação mecânica da ordem jurídica. Entretanto releva

notar que as duas formas de coação não se excluem;

nem psicológica é estranha ao direito, nem a mecânica é

incompatível com a moral.

Um indivíduo, por exemplo, que só deixa de

praticar um crime, formidine poenae, não é mais do que

um coagido da primeira espécie. Por outro lado, aquele

que abandona a prática de uma ação, juridicamente

indiferente, mas, entretanto, capaz de provocar a

indignação geral, que súbito se manifesta e à força de

pedradas o obriga a não continuar, obedece unicamente

a um meio mecânico. A história dos teatros dá

testemunho de não poucos casos desta natureza.

Nem de outro modo seria compreensível que aquele

alguém, de quem dizia Talleyrand ser mais sagaz que

Bonaparte, mais sagaz que todos os pilotos do mundo,

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passados e futuros, isto é, a opinião pública, tivesse tanto

poder, e fosse mesmo, como pensava Palmerston, a única

força movente dos negócios políticos.

A opinião pública, assim considerada, é uma

espécie de organização da moral heteronômica, produto

da sociedade, no sentido iheringiano; moral que, como o

direito, também tem a sua mecânica, o seu aparato

material de compelir os remissos e propelir os afoitos.

A própria moral autonômica, a verdadeira moral,

não pode dispensar de todo os meios mecânicos. De

acordo com a filosofia monística – é a parte do movi-

mento, ainda que mínima, inseparável do sentimento.

Para melhor compreensão, basta lembrar as palavras –

benevolência e beneficência. Uma benevolência que se

limita somente a querer o bem dos outros, sem realizá-

lo em qualquer grau ou ao menos tentar realizá -lo, não

constitui moralidade. Mas também a beneficência –

ainda quando manifestada pelo simples fato do estender

a mão, que leva o óbolo oferecido ao pobre – obje-

tivamente apreciada, é um fenômeno cinético.

De tudo isto – eu creio – facilmente se depreende

que o grande jurista tedesco não andou bem na dupla

construção de uma ordem jurídica e uma ordem moral,

que levada com lógica pode chegar ao errôneo dualismo

do Estado e da sociedade, como entidades autônomas e

independentes; donde procede a idéia de uma

sociologia, filiada às ciências naturais, segregada da

política e superior a ela.

Este descuido é tanto mais sensível, quanto é

certo que von Jhering, na primeira parte de sua obra,

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desenvolvendo a bela teoria das alavancas da mecânica

social, deixou ver bem claramente que o seu conceito da

sociedade não se presta à formação de uma ciência

particular, com ares de ciência exata, no sentido da

escola positiva.

Porquanto, uma vez estabelecido que quatro são

as forças que põem em movimento o mecanismo social,

isto é, a coação, a paga ou o lucro, o estrito cum-

primento do dever e a abnegação, ou, em outros termos,

o direito, o comércio, a moral prosaica da vida comum

e a moral poética das grandes dedicações e dos grandes

sacrifícios – uma vez isto estabelecido, não há mais

porta aberta para dar entrada a um quinto fator, que sob

o pomposo título de leis naturais, sem que resolva coisa

alguma, vem não só perturbar, como até um certo ponto

inutilizar os outros.

Já era esta, pouco mais ou menos, a teoria de

Robert von Mohl, segundo a qual o Estado, no mais

amplo sentido da palavra, se dirige por três categorias

de leis: leis jurídicas, leis éticas e leis de prudência o u

de conveniência; o que provocou uma injusta crítica de

Constantino Franz, para quem o Estado se origina por

meio de forças naturais; é em seu fundamento um

produto da natureza(23)

.

Mas afinal este mesmo autor reconhece que, ao

lado das leis naturais, existem leis ideais, que regulam a

vida das nações, operando ou devendo operar com

recíproca independência. O modo como isto se dá, é o

que ele não dignou-se de explicar-nos.

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Convençamo-nos uma vez por todas. A imagem

não é nova, mas pode ainda ser empregada com van-

tagem: o Estado é uma nau, em frase moderna, um vapor

imenso, com a sua inúmera tripulação de funcionários e

soldados, e ainda maior número de passageiros. Os

passageiros representam a sociedade, isto é, aquela parte

da nação, que se pretende que tenha uma existência

própria.

Ora, assim como pode suceder que muitas

pessoas, durante o trajeto de uma longa viagem, nunca

vejam o comandante do navio que as conduz – assim

também há indivíduos, que levam toda a sua vida, sem

recorrerem aos poderes do Estado, e até sem terem

consciência das garantias que ele oferece.

Mas daí é tão pouco dedutível que esses

indivíduos não precisem de um governo, como que

aquelas pessoas dispensem um comandante. A verdade,

porém, é que às ordens desde se acham tripulantes e

passageiros, ainda quando não o procurem nem o vejam;

e ele, por sua vez, está às ordens do mar e do vento,

cujas leis entretanto lhe são desconhecidas. O mesmo se

dá com a sociedade e o Estado.

X

Além destas e outras aberrações, os sociólogos

ainda são vítimas de uma ilusão, característica do

tempo, quero dizer, a ilusão, a mania da lei – de cujo

conceito se pode afirmar o que Brinz disse do de pessoa

jurídica, isto é, ser apenas um espantalho

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(Vofelscheuche), uma figura de palha para afugentar as

aves, respectivé, confundir os tolos.

Porque a palavra lei – diz John Fiske – é

empregada para designar igualmente as generalizações

de Kepler e os estatutos do parlamento britânico, infe -

riu-se daí que o que é verdade a respeito de uns, deve

ser também verdade a respeito das outras. Mas uma tal

ilação da comunhão de nome para a comunhão de

natureza, é dificilmente escusável.

Que as leis de Justiniano tenham emanado de um

legislador, não é razão bastante para supor-se o mesmo

da lei da gravitação. As primeiras eram editos, que

impunham obediência, ao passo que a segunda não é

mais do que uma expressão generalizada do modo por

que ocorrem certos fenômenos(24)

.

Talvez aqui os sociólogos sintam-se um pouco

satisfeitos, por não serem alcançados pelas palavras de

Fiske, visto que eles não crêem em Deus e como tais

não admitem um legislador pessoal, antropomórfico, da

lei da gravitação. Nenhuma dúvida; mas nem porisso o

erro é menos notável. O que recusam a Deus, conferem

à natureza, que é então para eles a grande legisladora,

com um código tão crescido e variado, que já vai se

parecendo com a coleção de leis do Brasil.

Destarte fala-se, por exemplo, de uma lei que

regula, em uma época dada, o número dos nascimentos,

e outra lei que norma o número dos óbitos; de uma lei

que determina a quantidade dos crimes, e outra lei que

prescreve a repetição dos incêndios, e assim por diante.

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Porém tudo isto – palavreado tosco e vão. Não

tenho motivos de pôr em dúvida a ciência dos

Schloezers, dos Niemanns e Quételets; mas acho-a

demasiado pretensiosa; promete muito e dá pouco. Há

cerca de cinqüenta anos, em 1840, dizia Dufau, um dos

seus cultores: “a estatística tem por alvo responder

questões, não descrever um país”, e ainda hoje a

verdade parece estar na afirmação contrária.

Seriamente, não me consta que ela se tenha

elevado muitos graus acima de um apêndice da

geografia, nem que haja perdido o seu primitivo caráter

de mera ciência descritiva, para assumir o de uma, “cujo

problema é reunir sistematicamente dados, por meio dos

quais, antes de tudo, certos fatos da vida da humanidade

mesma podem ser explicados, segundo o seu nexo

causal, e remontado às leis que o determinam”, confor -

me a fofa pretensão de Quételet.

Os sociólogos costumam pôr a estatística a seu

serviço e alegar que uma tal ou qual regularidade, com

que os números funcionam em certas ordens de fenô-

menos da vida social, é uma prova em favor da

existência das leis sociológicas. Eu, porém, sou mais

exigente; não vejo semelhante prova.

O criador de gado, o fazendeiro bucólico dos

nossos sertões, que apanha, segundo a própria ex-

pressão, os seus cinqüenta bezerros por ano, sabe

perfeitamente que aí não se trata de um número exato,

mas de uma média mais ou menos constante.

Se duas vacas geral anualmente dois bezerros, é

provável que quem possui o décuplo dessas forças

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producentes, também tenha anualmente o décuplo dos

produtos.

Mas este fenômeno, que é tão simples, tão

facilmente compreensível, ninguém ainda se lembrou de

decorar – e seria até ridículo – com o título de lei; para

que, pois, qualificá-lo de tal, quando observado na

sociedade humana?

Já o disse no princípio, e não canso de dizê-lo: a

sociologia é uma frase. Não há um só dos seus

pressupostos, que, bem examinado, não se manifeste

errôneo.

Dificilmente pode-se conter um riso de desdém,

ao ler tiradas como a seguinte, escrita por Lilienfeld, a

quem cito de preferência, por me parecer o sociólogo

mais sério, mais convencido, e que dispõe de mais rica

bagagem científica – “As ciências naturais, diz ele, não

só tem esclarecido e alargado o horizonte espiritual do

homem em face da natureza, mas servem também de

alavancas poderosíssimas do desenvolvimento industrial

e do conforto material da humanidade. Do mesmo modo

deve a sociologia, sobre sólido terreno real, não só dar -

nos uma idéia exata da sociedade, como ainda tornar-se

o instrumento mais eficaz do progresso social, a mais

forte protetora do movimento civilizatório, e um dos

meios principais de elevação da prosperidade geral, do

bem-estar e da felicidade do gênero humano”(25)

.

Porém isto não produz uma certa impressão

cômica? Era em 1873, há quatorze anos, que o sociólogo

assim falava; e de então para cá, o que há feito a

sociologia em favor do progresso e do bem-estar da

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humanidade?... Se porventura nos respondem que ainda

não é tempo de vermos realizadas tão importantes

promessas, temos o direito de perguntar, como os

discípulos de Jesus: praeceptor, quando haec erunt...

(quando é que enfim chegará esse tempo?). Ora!...

deixemo-nos de visões escatológicas; basta de palavras

retumbantes(26)

.

Ainda mais característica é a seguinte proposição:

“A estrutura jurídica da sociedade é completamente

análoga à estrutura morfológica dos organismos, e a

perfeição relativa, quer da mesma sociedade, quer dos

mesmos organismos da natureza, é determinada por um

só princípio, isto é, pela maior especialização

possível”(27)

.

Se ao me engano, estas palavras envolvem um

grande contra-senso. Com efeito: uma sociedade, tant0

mais perfeita, quanto mais especializados são os órgãos

que a compõem, é assunto para sérios reparos. A

especialização dos organismos da natureza consiste em

que os órgãos se vão diferenciando, à medida que as

funções se diferenciam, e de tal modo, que aquilo que

uma vez separou-se, não se reúne mais; o que deixou de

ser perna para ser braço, não volta mais a exercer a

primit iva função.

Mas a sociedade não está no mesmo caso. O

maior grau possível de especialização do seu organismo

daria um resultado, que mal se compreende, isto é, fazer

de cada indivíduo o órgão próprio de uma função social

particular. O individualismo, que já perdeu há muito a

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sua razão de ser, entraria de novo na ordem do dia, com

mais crescida dose de exageração e dislate.

Se, porém, a especialização, de que fala

Lilienfeld, não se refere aos indivíduos, mas às classes,

não diminui por isso a dificuldade da questão. As clas -

ses especializadas, no sentido do nosso autor, acabariam

por ser outras tantas castas, tão impossibilitadas de

entrar, de dissolver-se uma na outra, quão impos-

sibilitados, por exemplo, estão os olhos de tornarem-se

ouvidos. E ainda mais impossível seria ordená-las e

hierarquizá-las, de modo a constituírem um organismo

uno e compacto.

Estes e outros erros de Lilienfeld são oriundos do

falso pressuposto, que estraga pela base todos os seu s

argumentos; É a idéia fixa de uma analogia real entre a

sociedade e a natureza – idéia que o conduz a extremas

e absurdas conseqüências, ou fá-lo cometer estranhos

paralogismos.

Assim diz ele confiadamente: “Se a sociedade

humana é um organismo, como os demais organismos,

ela deve mostrar também as mesmas fases evolutivas,

que em geral se dão em todos os fenômenos naturais...”

Mas justamente uma tal seriação do organismo

social nos organismos da natureza é pelo menos o que se

questiona. As palavras citadas encontram-se em um dos

primeiros capítulos do volume(28)

.O leitor não descobre

nas páginas anteriores nenhuma prova da tese que se dá

como assentada; o autor cai, portanto, em uma redonda

petição de princípio.

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Quando à analogia real entre os dois domínios,

ele se exprime em termos bem positivos, que eu me

permiti repetir no original: “Die reale Analogie zwischen

der Gesellschaft und der Natur muss, unserem innersten

Ueberzeugung zufolge, allem wissenschaftlichen Folge-

rungen im socialen Gebiete als Fundament dienen; sie

muss den Ausgangpunkt fuer die Erforschung der

Gesetze der socialen Entwicklung abgeden”(*)

(29).

Mas é precisamente essa analogia, que a pé firma

repelimos, os que não estamos pelos adjetivos dos

senhores sociólogos. Tomá-la, pois, como base, como

princípio diretor de indagação científica, no domínio

social, é o cúmulo do ilogismo.

Não fica somente aí. Em virtude dessa caprichosa

assimilação da sociedade à natureza, Lilienfeld esforça-

se por criar uma nova teoria se não antes uma nova

ciência – a embriologia social – a que já me referi; e

apostando consigo mesmo que esse conceito corresponde

a uma realidade, reúne fatos, acumula argumentos, e

acaba por tomar ares de quem saiu vencedor. Não o

contesto. Em tais condições, é facílimo ganhar a aposta.

Entretanto encaremos mais de perto a nova teoria,

que não deixa de ser um pouco engenhosa.

A lei geral da embriologia de todos os craniotas,

isto é, de todos os animais armados de crânio e cérebro,

(

*) A analogia real entre a sociedade e a natureza deve servir

como fundamento a todas as conclusões científicas no domínio

social, segundo a nossa mais íntima convicção. Ela deve fornecer o

ponto de partida para a pesquisa das leis da evolução social. (T. do E.).

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é a seguinte: o desenvolvimento embrional de cada

indivíduo é paralelo ao desenvolvimento paleontológico

do respectivo tronco. É esta lei que Lilienfeld, Le Bom e

outros querem aplicar à sociedade, sem notar que ela

encontra logo um primeiro embaraço, não muito fácil de

arredar, que é saber qual seja o embrião social, cuja

ontogênese mostre precisamente uma rápida repetição

da filogênese(30)

.

Não vejo razão plausível para supor que esse

embrião seja o menino. Parecia mais acertado, mais

simétrico, pelo menos, que fosse a família. Mas dado,

por hipótese, que o menino represente esse papel,

vejamos o que resulta.

A embriologia propriamente dita nos descobre

que em um certo período da evolução embrional, o

homem, o cão, a tartaruga, a ave, são iguais, porém logo

depois diferenciam-se, e cada um segue o caminho

traçado pelas leis morfológicas da sua espécie. Ela ainda

nos ensina que, entre os caracteres idênticos dos

diversos embriões, figura uma pequena cauda que

Haeckel chama – das Schwaenzchen des Menschen(*) –

esta cauda porém desaparece, bem antes mesmo de

completar-se a época da gestação(31)

.

Eis aí. Partindo agora do pressuposto de uma ana-

logia real e positiva da sociedade com a natureza, como

opina o sociólogo, a primeira confrontação a estabelecer

entre os dois ramos da embriologia, deve ser nestes

termos: assim como, nos estádios superiores da evolução

(*) - a cauda dos homens. (T. do E.).

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embrional do indivíduo, desaparece a causa do primeiro

período – assim também, nos estádios superiores da vida

do embrião social, desaparece... o que?... Hic haeret aqua.

O que é com efeito que neste segundo embrião

corresponde à pequena causa, ao rabinho do homem, e que

em seguida acaba-se de todo? Ninguém o sabe.

Lilienfeld não hesita em dizer que o menino

apresenta em forma real o grau de desenvolvimento, em

que se achava a humanidade histórica na sua meninice,

do mesmo modo que o embrião humano atravessou as

fases evolutivas da simples célula, de um molusco, de

um peixe...

Mas isto não passa de pura retórica. A com-

paração é só para embelecer; não esclarece nada. “O

menino...”, diz ele; porém... que menino? Qualquer

menino?... É inexato. De que idade?... de qualquer que

seja?... Horrivelmente falso.

Ainda mais decisivo. Diz o nosso autor: “Su -

ponhamos que existam na terra atualmente repre-

sentantes de todas as épocas da evolução do gênero

humano, e comparemos meninos destas épocas uns com

outros, como se comparam os embriões de todos os

organismos. Isto feito, a embriologia social comparada

daria um resultado inteiramente análogo à embriologia

orgânica comparada.

“Na primeira fase evolucional, as qualidades

intelectuais, morais e estéticas de todas as crianças,

mostrar-se-iam, pouco mais ou menos, iguais entre si.

Dado, porém, o segundo passo para diante, as raças

inferiores já ficarão atrás, no que diz respeito à

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formação dos órgãos nervosos superiores, ainda que o

resto do organismo possa atingir o seu completo

desenvolvimento...”(32)

.

A teoria é bonita demais, para ser verdadeira.

Efetivamente: um menino de cinco anos, nascido em

uma das nossas grandes cidades, que brinca sobre o

tapete dos nossos salões, não pode apresentar os

mesmos sinais de rudeza mental, que apresenta a pobre

criança da mesma idade, filha do alto sertão, ainda meio

alalus, que mal começa a conhecer e distinguir seus

pais. Igualá-los – é um disparate, que repugna à

observação e ao bom-senso.

Quando ao ponto relativo às raças – isso é apenas

o efeito de uma outra mania do nosso tempo; a mania

etnológica. Eu quisera que Lilienfeld viesse ao Brasil,

para ver-se atrapalhado com a aplicação de sua teoria ao

que se observa entre nós. As chamadas raças inferiores

nem sempre ficam atrás. O filhinho do negro, ou do

mulato, muitas vezes leva de vencida o seu coevo de

puríssimo sangue ariano.

Demais... a embriologia orgânica comparada

ocupa-se de embriões de espécies diversas, ao passo que

essa pretendida embriologia social refere-se a objetos da

mesma espécie. Há nisto alguma coisa de manco e

defeituoso que, de antemão, e só por si, inutiliza as

conseqüências do seu emparelhamento.

Vamos concluir. A sociologia tem a pretensão de

incorporar-se às ciências naturais e, mediante o emprego

do mesmo método que as assinala, obter iguais resultados.

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Mas esquece que não existe uma ciência da natureza,

como ela pretende ser uma ciência da sociedade.

As ciências naturais são resultados de análise,

que não precisam de uma síntese; são diferenciações do

conceito da natureza, que correspondem a outras tantas

diferenciações da viva realidade dos fatos. Admitida,

por hipótese, uma perfeita analogia entre os dois

grandes objetos de indagação científica, seria con-

cludente que se incorporasse ao grupo das ciências

naturais, não uma sociologia ou pretendida ciência da

sociedade, mas um grupo de ciências sociais, tão bem

definidas e diferenciadas como elas.

Este plural de ciências particulares, relativas ao

cosmos social, não é uma idéia nova; pelo contrário, é

uma velha idéia, que já teve o seu tempo de domínio.

Mas começou a cair em descrédito; e o único meio, que

parece capaz de salvá-la, foi substituir o plural pelo

singular, criando, em vez de muitas, objetivament e

especializadas, uma só ciência universal e completa!...

Procedimento igual ao de quem porventura, não

podendo quebrar, uma por uma, as varas de um grosso

feixe, tentasse então, como coisa mais fácil, partir de

uma vez o feixe inteiro; o que só poderia explicar-se por

gracejo ou por loucura.

Vem aqui ainda a propósito uma rápida obser-

vação. Note-se bem: a palavra fisiologia que etimolo-

gicamente significava ciência da natureza está hoje

muito longe de semelhante conceito pois é o nome de

uma ciência especial, que tem por objeto uma ordem

especial de fenômenos, as funções orgânicas dos seres

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vivos. Não será possível que igual destino esteja

reservado à sociologia?

Quero crer que sim. Da mesma forma que do

conceito de uma desapareceu a idéia da natureza,

considerada em sua totalidade, para limitar-se a estudar

somente uma ordem particular de fenômenos naturais,

assim também é provável que desapareça do conceito da

outra a idéia da sociedade em geral, para restringir-se ao

estudo único de uma classe particular de fenômenos

sociais, respective, de funções – ou jurídicas, ou eco-

nômicas, ou políticas, ou de outra qualquer classe.

Deste modo, com este grande encurtamento de

diâmetro, a sociologia pode ter um futuro; e ao duvido

mesmo que, assim limitada, seja ela ainda divisível,

para melhor clareza, em dois pontos de vista distintos,

que serão designados por sociogenia e sociofilia,

segundo a doutrina e tecnologia de Haeckel.

Não posso melhor encerrar o presente trabalho do

que repetindo as palavras do insigne mestre de Jena, que

lhe serviram de epígrafe: “Só por meio da mais íntima

recíproca influência e penetração recíproca de filosofia

e empiria, é que se ergue o inabalável edifício da

verdadeira ciência monística”. A sociologia, como

temo-la, é simplesmente um produto de especulação

filosófica; o elemento empírico lhe falece de todo.

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NOTAS DO AUTOR

(1) No Brasil, procede-se com a República como se procede com a leitura dos romances de Zola: sem crítica ou convicção, somente pelo consciente ou inconsciente amor à França. (T. do E.)

(2) A palavra sentimento é aqui empregada no sentido genérico de manifestação sensível.

(3) A seleção artística da humanidade não compreende somente o psíquico, mas também o físico. No domínio da morfologia sobretudo, a seleção natural, por si só, seria incapaz de produzir certos fenômenos. Assim, e no que toca ao sexo feminino, a existência das cinturas finas, por exemplo, é ainda uma prova do que pode a cultura contra a natura. O espartilho é um fator cultural de evolução da beleza morfológica, talvez mais digno de nossas atenções, do que muito sistema de religião e filosofia, destinado a apertar cabeças e fazer, não belas almas, porém belos idiotas.

(4) Epochan und Katastrophen, pág. 2.

(5) Aqui poderiam objetar-me que não é balda de senso a expressão de lógica natural, da qual se costuma usar; sucede até que muitas vezes o lógiuco e o natural se identificam na linguagem. Quando se diz, por exemplo: quem combate a escravidão, é natural que não tenha escravos – aí decerto o natural é sinônimo do lógico, regulador da harmonia entre princípio e conseqüências. Mas justamente porque os fatos, em semelhantes casos, quase sempre exprimem o contrário, vê-se bem claro, quanto é infundada essa identificação. Para mostrar que as diversas formas de disciplina e seleção artística, acima referidas, se acham relacionadas entre si pela fonte comum, donde todos nascem, basta um exemplo, no qual se encontra violada, de uma só vez mais de uma regra da vida social. Imaginemos o seguinte quadro: um campônio é nosso comensal em um banquete festivo; erguem-se brindes, trocam-se ditos espirituosos, e cem bocas se abrem para sorrir. De repente o rústico franze o

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sobrolho e prorrompe nestas palavras: “vocês estão se rindo; logo isto é com eu”; e fazendo esforço para se mostrar bem falante, acrescenta: “vós todos sodes uma súcia de ladrãos”. Eis aí, de um só arranco, partida toda a madeira de liames da sociedade: moral, direito, polidez, gramática, lógica, sem excluir a própria religião, que no caso não deixaria de assinalar um pecado, isto é, um quebramento dos laços da caridade e mansuetude evangélica.

(6) Entre vários casos ilustradores da minha tese, basta lembrar o da civilidade que condena o franco e público exercício de certas funções excretivas, em completa oposição ao naturam sequi dos filósofos. Quantas vezes não sucede que uma retenção, um leve desrespeito a ordens, que vêm de dentro, provoque um retrocesso? É a vingança da natureza, que parece dizer: só me subordino até um certo ponto; cerras-me uma, eu saio por outra porta.

(7) Até aqui o presente ensaio tem o valor de uma segunda edição, pois que já foi publicado em vários numeros do Diário de Pernambuco do princípio de agosto de 1884, como também já o fora todo o ensaio sobre a evolução emocional e mental do homem, em julho do mesmo ano. Para o leitor inteligente, para o crítico imparcial deste meu livro, a apreciação das datas não é coisa indiferente.

(8) Ursprung und Entwicklung der menschlichen Sprache und Vernunft, págs. 232 e 287.

(9) Der Monistische Gedanke, págs. 314 e 315.

(10) Esta idéia de Deus representado como um nome, que só tem vocativo, como uma interjeição, posto que me seja própria, todavia não é nova. Eu a exprimi pela primeira vez em um escrito polêmico publicado no “Americano” em 1870. Julgo dever declará-lo, não por vanglória, mas tão somente para fugir ao perigo de passar por plagiário de quem quer que, depois de mim, tenha usado de igual expressão.

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(11) Não há exagero em dizer que ainda hoje a paremiologia ou ciência dos provérbios é a mais alta expressão da sociologia. Em matéria de experiência da vida social, o espírito humano não pode ir além dessas fórmulas, que encerram, por assim dizer, a quinta essência da observação quotidiana de inúmeras gerações. Fora das parêmias própriamente ditas, pode-se afirmar quase todas as proposições gerais. que se referem à vida dos homens em sociedade, e que não pertencem a uma ciência já organizada e reconehcida, são outras tantas teses sociológicas; de modo que, ainda atualmente, os órgãos natos, os maiores representantes da sociologia, são os oradores públicos, os tribunos populars. Não é preciso mais nada, para bem caracterizar a pretendida ciência. Quando o jornalista diz, por exemplo: “os povos têm o seu dies irae, que faz os tronos e as coroas rolarem no pó”, ou o orador e tribuno popular: “a liberdade é como o Cristo, morre, mas ressuscita” – onde acham eles todos esses princípios, todas essas proposições dogmáticas? Numa ciência feita? Não; numa ciência sempre por fazer, e que cada um vai fazendo a seu modo: a sociologia. Eu tenho o arrojo de crer que, se os senhores sociólogos fossem homens sérios, capazes de se deixarem convencer de uma verdade, ao resistiriam a considerações da ordem da que contém a presente nota. Mas eles não se curvam; na falta do talento preciso para refutá-la, tê-lo-ão bastante para me insultarem. Conto com isso.

(12) Gedanken ueber die Socialwissenschaft der Zukunft. Erster Theil, pág. 29.

(13) Segundo Littré: 1º, as nações cultas da Europa e da América; 2º, os muçulmanos; 3º, os índios, chineses, tártaros e japoneses; 4º, os peruanos e mexicanos; 5º, as populações negras; 6º, os caboclos da América; 7º, finalmente, os selvagens da Nova-Holanda. Segundo Le Bom: 1º, os homens da idade de pedra talhada ; 2º, os povos selvagens, tais como hoje ainda se encontram em algumas partes do globo, os quais representam as diversas fases, por que passaram os povos pré -histórico;

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3º, os bárbaros, como os citas, os germanos, etc.; 4º, enfim, os povos civilizados. É sabido que também Haeckel dividiu a humanidade, segundo os dados de sua teoria, em 12 espécies e 36 raças, começando as espécies pelo homo papua, e acabando pelo homo mediterraneus; principiando as raças pelos negritos, e terminando pelos indogermanos. Não mencionei esta divisão do célebre professor, porque ele não é um sociólogo, e eu não tinha, portanto, necessidade de pô-lo em contradição consigo mesmo, como creio ter feito com os dois sábios franceses. (14) Felizmente este meu livro não é destinado a ter ingresso na Faculdade, onde a maioria dos meus colegas, professores de direito, declarou guerra de morte às expressões phylogenesis, ontogenesis e outras, de sabor grego-alemão, que eles não caem na patetice de quererem compreender. Pode, pois, passar desassustada a minha classificação filogenética.

(15) Preussische Jahrbuecher Zweindfunfzigster Band, 1883, pág. 134.

(16) Idealismus und Positivismus... Zwei Baende. Berlim.

(17) Os nossos positivistas, por exemplo, não têm a menor dúvida sobre a realidade da grande ciência. Se algumas graves questões européias ainda não foram sociologicamente resolvidas, a culpa não é de A. Comte – opinam eles – mas de Guilherme e Bismarck, ou da Alemanha, que não quer desarmar-se, para que a França possa esmagá-la e fazer então então reinar a paz e a felicidade na terra. Aqueles dois bárbaros, com os seus soldados, têm tido força de retardar a solução do problema da república universal!... Já se vê: isto é dito com todo o sério. Mas também isto e o cúmulo da sandice humana; e o que mais espanta, é que estes senhores, a quem falta o senso comum, não trepidam de pretender os foros de homens de talento, de espíritos superiores”... É singular!

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(18) Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, págs. 72 e 73.

(19) Gesichstspunkte, etc... pág. 77.

(20) Geschichte der Socialen Bewegung, III, págs. 104 e seguintes.

(21) Confesso que já laborei por algum tempo na ilusão desse dualismo, semelhante ao de corpo e alma; porém, felizmente, livrei-me dela.

(22) Der Zweck im Recht, II, pág. 179.

(23) Die Naturlehre des Staates..., pág. 15.

(24) The laws of History – Fortnightly Review, 1868, pág. 282.

(25) Gedanken…, pág. 338.

(26) A escatologia dos judeus é a seu modo uma sociologia. Se hoje rimo-nos da primeira, por que tratar a segunda cmo uma coisa séria? Note-se bem: o que se lê em Paulo, Epístola prima ad Tessalonicenses, cap. IV – secunda-idem, cap. II, e mais em Mateus, cap. XXIV, Marcos, XIII, e Lucas, XXI, são belos pedaços de prognose sociológica, nem mais nem menos fantástica, do que os produtos similares dos escatólogos hodiernos. Já se vê que não é de hoje, mas há séculos que a sociologia faz uma má figura.

(27) Gedanken..., pág. 84.

(28) Gedanken..., pág. 82.

(29) Gedanken..., pág. 392. É aqui ocasião de observar que algumas asserções lançadas no correr do presente artigo parecem estar em contradição com idéias já por mim uma vez enunciadas, como por exemplo, as que se lêem na introdução do meu livrinho – Menores e loucos – e que mais não fazem do que repetir uma prova escrita de concurso acadêmico. Tenho convicção de que não sou contraditório; modifiquei apenas, acentuei melhor a doutrina que professo. Se, porém, me julgarem tal, pouco me importa. Chacun a les défauts de ses vertus, disse Goerge Sand. A minha maior virtude literária é

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não ter idéias preconcebidas, sem afagar um sistema querido; o defeito dessa virtude é viver constantemente em busca de novas e melhores teorias; donde resulta uma certa aparência de contradição.

(30) Gedanken..., pág. 245. L’homme et les sociétés, I, pág. 218.

(31) Natürliche Schöpfungsgeschichte. Fünfte Auflage, pág. 274.

(32) Gedanken..., pág. 249.

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V

RECORDAÇÃO DE KANT

(1887) I

Was man treffend von Lessing gesagt hat, das gilt ebensosehr von Kant: auf Kant Zurueckgehen heisst Fortschreiten.(

*)

HERMAN HETTNER La negatività è l’alfa e l’omega dell’alfabeto razionale: che, a simiglianza di quello degli Etruschi, è il noto segno d’um idioma ignoto.(

**)

ANTÔNIO TARI

I

Não há domínio algum da atividade intelectual,

em que o espírito brasileiro se mostre tão acanhado, t ão

frívolo e infecundo, como no domínio filosófico.

É certo que todas as outras manifestações da

nossa vida espiritual dão também testemunho de uma

singular e incomparável fraqueza. Mas é sempre dar

(

*) Aquilo que se diz acertadamente de Lessing, vale também

para Kant: retornar a Kant é progredir. (T. do E.).

(**) A negatividade é o começo e o fim do alfabeto racional: que,

à semelhança daquele dos etruscos, é o sinal conhecido de um idioma desconhecido. (T. do E.).

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testemunho de alguma coisa. Um certificado de doença é

em todo caso menos triste que um certificado de morte.

Assim, não temos poetas nem artistas de

merecimento; mas a poesia e as artes se cultivam entre

nós. Não podemos lisonjear-nos de possuir um só jurista

de estatura européia, como o Chile possui o seu Calvo, e

os Estados Unidos o seu Dudley-Field; porém, ao

menos, é certo que o direito possui uma das nossas mais

constantes ocupações intelectuais.

Ciência, história, literatura – tudo isto é fútil;

mas seria uma injustiça, querer exprimir tudo isto por

meio de uma fórmula absolutamente negativa. No fundo

da crítica fica sempre algum resíduo, que ainda pode

servir de fermento a mais sérias e mais dignas

produções futuras.

Com a filosofia o caso é bem diverso. Se nas

outras esferas do pensamento, somos uma espéc ie de

antropóides literários, meio-homens e meio-macacos,

sem caráter próprio, sem expressão, sem originalidade –

no distrito filosófico é ainda pior o nosso papel: não

ocupamos lugar algum; não temos direito a uma

classificação.

Este meu modo de ver não é novo. Há treze anos

(1874), escrevendo um ligeiro artigo sobre Eduard von

Hartmann, e depois de bem acentuar a nossa absoluta

ignorância em assunto de filosofia, já eu ousava dizer o

seguinte:

“Posto que pareça, não exagero; não altero, nem

numa vírgula, a objetividade dos fatos. Nas verdade, o

que é a filosofia entre nós? Simplesmente o nome de um

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preparatório, que a lei diz ser preciso para fazer -se o

curso de certos estudos superiores.

Fora disto, ninguém há que se interesse, que tome

ao sério qualquer esforço de aplicação e cultura filo -

sófica. O ensino dessa disciplina – público ou particular

– é uma coisa mísera, e frívola em sua miséria. Um

exemplo basta para confirmá-lo; mas esse é decisivo:

por que título se distingue o lente de filosofia do

Colégio Pedro II? Sob que forma já se manifestou a sua

ciência? Quem sabe como ele pensa? Indubitavelmente

estas perguntas e suas respostas põem a descoberto, de

modo irremediável uma das faces negras do nosso

estado de mendicidade espiritual”(1)

.

Não ficou aí. Um ano depois, na redação do

curioso jornalzinho intitulado – “Deustscher Kaempfer”

– que tanto deu que fazer à confraria dos parvos, ainda

escrevi estas palavras:

“O que de melhor se pode dizer a tal respeito, é

afirmar que o ponto de vista filosófico do nosso

pretendido mundo sábio é caduco e imprestável. Nem há

dúvida que até as estrelas de primeira grandeza, os

célebres pensadores e escritores, só se assinalam pela

sua fé implícita no velho Deus da teologia e da igreja.

Nada sabem, nada compreendem do desenvolvimento da

vida espiritual da atualidade...

Uma coisa somente resta a observar: é que com

essa enorme ignorância caminham emparelhados o

orgulho e o desprezo dos grandes feitos científicos

estrangeiros, principalmente alemães...”

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O fim do meu escrito fora contribuir para elucidar

a questão de saber, se já tínhamos chegado ao ponto de

considerar a metafísica inteiramente morta, como então

pretendiam e ainda hoje pretendem os positivistas de

todos s feitos. Neste sentido continuei:

“Se atualmente nenhum homem culto pode

desconhecer que o dogmatismo da filosofia moderna, ou

a metafísica, foi espedaçado por Hume, cuja crítica

inexorável coube a Kant concluir em mais larga

extensão e com maior profundeza, não deixa de causar

admiração o grande espanto, que estas verdades triviais

ainda estão no caso de despertar entre nós.

Com efeito, bem antes que Augusto Comte, o

fundador do positivismo em França, enxotasse o

absoluto para o país das quimeras, já Hume tinha

derrubado todo o edifício metafísico:

Turrim in praecipiti stantem, summisque sub astra Eductam textis ......

E desde esse tempo, como diz Hermann Hettner, é

geralmente reconhecido que a proeza intelectual de

Hume constitui uma das fases mais importantes do

pensamento humano. Realmente foi a dúvida do grande

filósofo escocês sobre a validade dos juízos sintéticos

em geral, que tornou-se o móvel e o foco das profundas

indagações de Kant. Este filósofo mesmo confessava

que a lembrança de Hume fora quem primeiro o des-

pertara do seu sono dogmático...”(2)

.

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Eis aí. Há tanto tempo qu estas linhas foram

traçadas, e contudo, no que diz respeito à nossa

ineptidão para o estudo da filosofia, ainda conservam o

frescor da atualidade. É um velho diagnóstico, hoje

reforçado e confirmado por um novo exame do doente.

Mas é um trabalho supérfluo querer demonstrar

que o sol não é frio, ou que o Brasil não tem cabeça

filosófica. Renuncio ao prazer e à glória de uma tal

demonstração(3)

.

II

Ainda não há muito tempo que a filosofia, nos

países mesmos do seu maior cultivo, e onde mais rica se

mostra a sua história, se ressentia de um geral

descrédito.

Não aparecia uma nova obra filosófica, que a

crítica não tratasse logo de confrontar com essa

indiferença pública, já tida em conta de uma verdade

axiomática, ou para fazer-lhe a censura de vir aumentar

o sentimento dominante, ou para tecer-lhe o elogio de

que ela seria capaz de arredá-lo, capaz de reanimar o

interesse pela velha e abandonada filosofia.

Este fato, que é incontestável, prende-se a duas

causas principais: por um lado, o fiasco imenso do sis-

tema de Hegel que em sua pretensão satanicamente

orgulhosa de construir e compreender o universo, segun-

do a dialética do conceito, acabou por destruir a si

mesmo, dividindo-se em escolas e direções antagônicas,

em que os discípulos, depois de terem rasgado e par-

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tilhado entre si a capa do mestre, tornaram ainda mais

patente a insustentabilidade da sua doutrina; por outro

lado, o surto que tomaram as ciências naturais, filhas da

observação e da experiência, e como tais quase sempr e

avessas a todo e qualquer apriorismo especulativo.

O hegelianismo, sobretudo, que chegara a assumir

o caráter de uma filosofia, o remate e a coroa de todos

os sistemas anteriores, concorreu em grande escala para

desviar os espíritos da senda filosófica e infiltrar-lhes

um novo gosto e uma nova direção.

Com efeito: a filosofia de Hegel, superficial-

mente apreciada, se apresentara como um harmonismo

universal, que não admitia fora de si antítese alguma,

que tinha pelo contrário vencido e conciliado em si

mesmo todas as antíteses.

Na realidade, porém, e depois de uma análise

mais exata, ela se mostrou um perfeito modelo de

contradições, um exemplar de confusão caótica.

A filosofia de Hegel queria ser uma conciliação

absoluta do pensamento e da realidade; mas acabou por

ser uma volatilização espiritualista do real e uma

corrupção metódica do puro pensamento. Ela pretendia

ser medianeira entre a liberdade e a necessidade, entre a

intuição antiga e a intuição moderna, entre todas as

coisas enfim, que até então haviam passado por

absolutamente inconciliáveis; porém, no fundo, nada

conciliou. Todos os seus processos de harmonização são

outros tantos brinquedos de um espírito que se diverte

em excitar a guerra de tudo contra tudo, só para ter o

prazer de propor e formular a paz.

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Já se vê que, chegando a este ponto, sendo esta a

última fase da sua evolução multissecular, a filosofia

estava exausta, a sua bancarrota era inevitável. Ela

devia dissolver-se, e efetivamente a dissolução deu-se

dentro da escola mesma por meio das próprias forças

inerentes ao sistema.

Foi assim que, depois da morte de Hegel (1831),

a especulação filosófica na Alemanha perdeu quase de

todo o seu valor de outrora. Os espíritos estavam presos

de uma pendência bem diversa. As obras de filosofia

que foram publicadas daquela época em diante, ou

passaram inteiramente desapercebidas, ou só mui

posteriormente, quando há havia começado o novo

período de relações harmônicas entre as ciências

naturais e os estudos filosóficos, puderam despertar a

atenção geral.

O quarto, quinto e sexto decênios deste século

contam ali bem poucos filósofos de velho cunho – e

esses poucos mesmos são todos de caráter episódico,

sem influência notável sobre os destinos da filosofia.

Predominava então a crítica soberana. Não er am

Hegel e Schelling, nem Herbart e Krause, mas eram

Strauss e Bauer, Fuerbach e Arnold Ruge, que estavam

na ordem do dia.

Entretanto por esse tempo o ecletismo na França

ainda conservava a cabeça erguida e ao lado dele, posto

que principalmente volvida contra ele, a filosofia

católica, pelo órgão dos Bautain, Guiraud e consortes,

acumulava tolices sobre tolices, que então valiam por

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verdades preciosas, porém atualmente só podem causar

riso a qualquer leitor desprevenido.

Augusto Comte ainda não se tinha fe ito notar. A

revolução que ele produziu ou pretendeu produzir contra

as teorias filosóficas vigentes, só depois de sua morte

principiou a tomar um certo incremento.

De modo que justamente ao tempo em que na

França – de 1857 em diante – a filosofia especulativa ou

a metafísica entrou a ser posta no número das coisas

peremptoriamente acabadas, já a Alemanha havia

atravessado o período da desconsideração e menospreso

das indagações filosóficas, e tratava agora de

estabelecer uma nova e duradoura aliança entre a mesma

filosofia e as ciências naturais.

O que há, porém, de mais notável, é que, para

entabularem essa aliança, as ciências aceitaram de

preferência a filosofia de Kant. Os sistemas, que evolu -

tivamente saíram do kantismo, tornaram impossível

qualquer acordo neste sentido. Todas as questões que

hoje se suscitam e discutem no terrenos das ciências

naturais, inclusive a matemática, defrontando com a

filosofia, conduzem necessariamente aos fundamentos

do sistema kantesco, como um campo de operação

comum.

E dos chefes reconhecidos das escolas científicas

nenhum empenhou-se mais cedo, nem com mais

perseverança, do que Helmholtz, para que se fizesse

justiça à memória de Kant, como também nenhum outro

mostrou mais interesse pela reanimação dos esforços

filosóficos que são dignos deste nome, e não de todo

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imprestáveis, como os desvarios dos chamados filósofos

da natureza, Hegel, Schelling e seus aventurosos

caudatários.

Assim, quando ele primeiro deu público teste-

munho do seu respeito para com o mestre de Koenigs-

berg – nos anos de 1854 e 55 – não pertencia ao

costume geral fazer reverência à filosofia, em qualquer

das suas manifestações; e Helmholtz mesmo tinha bem

consciência de ir de encontro ao pensamento da moda,

como o demonstraram as palavras introdutórias da sua

conferência – Ueber das Sehen des Menschen(*) (1855).

No seu Handbuch der physiologischen Optik

(1867), ainda ele fala da... “negação da nossa época para

as pesquisas filosóficas e psicológicas”. O protesto la -

vrado naquela conferência de que não eram conside-

rações exteriores ou um oculto antagonismo, mas com-

pleto reconhecimento e alto respeito, os móveis que o

impeliam a dar expressão à sua veneração para com

Kant – esse protesto foi suficientemente confirmado por

meio das publicações científicas posteriores. A Óptica

Fisiológica, por si só, oferece muito mais do que

simples testemunhos oratórios em prova de que era com

efeito a própria disposição do assunto, que ao lado do

interesse naturalístico despertava igualmente o interesse

filosófico.

O reconhecimento não só da capacidade de Kant,

mas também dos resultados a que ele chegou, no tocante

à faculdade de conhecer, aparece de novo na Óptica

(*) Sobre a visão do homem. (T. do E.).

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assim como nos outros escritos do grande naturalista, de

caráter mais popular, que mais tarde foram publicados.

E destarte, quando se trata das relações entre a filosofia

e a exata indagação, não há injustiça em considerar

Helmholtz como o mais apropriado representante da

última, em frente de Kant, que ainda é quem melhor e

mais dignamente representa a direção filosófica.

É mister todavia observar que a palavra filosofia

deve ser aqui tomada em sentido restrito, significando

unicamente aquela parte da ciência, que se ocupa da

teoria do conhecimento. Não se trata da estética, nem da

ética, mas somente da primeira das três questões

formuladas por Kant, nas quais se concentra, segundo

ele mesmo se exprimiu, todo o interesse da razão, ranto

especulativa, como prática; e a questão é a seguinte: o

que posso eu saber?...(4)

Ora, o problema desta parte da filosofia kantes-

ca, bem como de qualquer verdadeira filosofia, foi

excelentemente assinalado por Helmholtz na mencio -

nada conferência com as seguintes palavras:

“A filosofia de Kant não teve em mira aumentar o

número dos nossos conhecimentos por meio do puro pen-

samento; porquanto o seu princípio supremo é que toda e

qualquer noção da realidade deve ser bebida na

experiência; mas o seu único intuito foi o de inquirir as

fontes do nosso saber e o grau da sua legitimidade;

trabalho este, que há de sempre pertencer à filo sofia, e ao

qual nenhuma época poderá impunemente subtrair -se”(5)

.

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A perfeita conciliabilidade da filosofia com as

ciências naturais aí se acha claramente formulada pela

limitação dos dois domínios, vis-à-vis um do outro.

Mas essa conciliabilidade e essa limitação não

querem dizer, nem que a filosofia deva conformar-se

com todas as induções das ciências naturais ou que estas

devam girar somente dentro do plano traçado por

aquela, nem também que seja vedado ao naturalista

lançar um olhar filosófico sobre o seu campo de

observação, ou ao filósofo penetrar, como indagador,

nos reinos da natureza.

III

Neste pé se achavam na Alemanha as relações

entre os dois grandes ramos do saber, quando uma das

primeiras autoridades nas ciências exatas, o professor de

astronomia física, Frederico Zoellner, em Leipzig,

publicou o seu célebre livro – Ueber die Natur der

Kometen – Beitraege zur Geschichte und Theorie der

Erkenntniss, (1872).

Nesta obra o notável professor mostrou ser

indeclinável o íntimo acordo, o consórcio da exata

investigação com a filosofia, semelhante, como ele

mesmo diz, à reconciliação de dois amantes, que

estavam há tempo arrufados e separados, em

conseqüência de recíproco erro.

Zoellner coloca em eterno laurel na fronte da

filosofia, provando que ela, por caminho puramente

especulativo, pressentiu e antecipou as mais importantes

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descobertas, que as ciências naturais só muito mais

tarde vieram a fazer pela indagação experimental. O

apriorismo especulativo da lei da causalidade, admitido

por Schopenhauer, acha a sua confirmação empírica na

Fisiologia da Óptica de Helmholtz; e o naturalista

Wallace reforçou por meio de fatos, o que Schopenhauer

havia estabelecido pela demonstração metafísica sobre

matéria, força e vontade.

Em um capítulo especial, o último de seu livro,

Zoellner se ocupa de “Immanuel Kant e sua

benemerência para com as ciências naturais”: “Por meio

da prova do verdadeiro espírito científico e gênio “quase

profético do filósofo de Koenigsberg...”, deve -se tirar

da moderna geração de naturalist as o prejuízo que se

lhes inoculou contra tudo que se chama filosofia, e

incutir-lhes de novo a fé, que já vai perdida, na

fecundidade e necessidade de uma cultura filosófica

racional, até em bem do progresso nas ciências

naturais”.

Com esta obra de Zoellner, que fez época, não se

esgotam entretanto os documentos em favor da atual

significação da filosofia, em favor do novo reconhe-

cimento da sua indispensabilidade.

Cientificamente talvez de não maior importância,

mas em todo caso de ainda maior influência sobre a

cultura geral, poderia considerar-se o resultado

surpreendente, a que chegou, antes mesmo de Zoellner,

o mais avultado dentre os sábios materialistas dos novos

tempos, Ernesto Haeckel, em sua Natuerliche

Schoepfungsgeschichte, (1868).

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Esse resultado culmina-se no arrendamento do

dualismo, até então mais ou menos dominante, de

espírito e matéria; e não decerto pela subordinação de

um princípio ao outro; por conseguinte, nem em favor

do materialismo, nem em favor do espiritualismo. O

corpo mesmo é o espírito desconhecido, o espírito,

porém, é o desconhecido no corpo, e a natureza com o

espírito que nela impera, uma unidade metafísica.

Tornar compreensível esta unidade, construir o seu

conceito, é o problema que Haeckel entrega a uma nova

filosofia, sob o título de monismo.

Mas não devo deixar inobservado que o ilustre

professor de Jena não foi sempre coerente consigo

mesmo no desenvolvimento da sua doutrina.

Antecipando a filosofia no modo de compreender a

unidade metafísica da natureza, ele acabou por eliminar

o espírito em proveito da matéria, e o seu monismo

degenerou em puro mecanismo(6)

.

Falando deste sábio e dos seus trabalhos

naturalísticos, diz Eduard von Hartmann: “Haeckel era

bastante alemão, para reconhecer francamente que a

nova teoria da procedência das espécies, umas das

outras, e da unidade do trono genealógico do reino

inorgânico, não pertence mais às ciências naturais, que

ela já é propriamente filosofia da natureza, e só pode

sair de uma mistura de base empírico-científica e

especulação filosófica. Ele honrou de novo perante as

ciências naturais a filosofia há tanto tempo desdenhada,

e forneceu mesmo em sua Generelle Morphologie

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preciosíssimas contribuições, em diversos sentidos, para

a filosofia da natureza.

Infelizmente, porém, este aco lhimento da

filosofia não chegou até o ponto de desviá -lo do

prejuízo do tempo – a intuição mecânica do mundo – e

este prejuízo domina-o por tal modo, que até hoje o tem

impedido de se apropriar as restrições e ratificações,

cuja necessidade o mesmo Darwin tem confessado com

uma admirável abnegação em puro amor da verdade”(7)

.

São palavras magistrais, a que nada se pode

acrescentar, pois encerram a mais perfeita característica

do sábio naturalista. Além disto, elas servem ainda de

prova da verdade anteriormente enunciada, de que ao

filósofo não é vedado medir com olhos de investigador

os domínios da natureza. O exemplo de Hartmann é

eloqüentíssimo.

Entretanto, e por maior que seja a veneração que

tributo ao grande autor da Philosophie des

Unbewussten, não posso concordar com Heinrich

Landsmann, a quem aliás sou devedor de alguns

esclarecimentos sobre o presente assunto, quando diz

que o primeiro sistema de filosofia monística, reclamado

como uma necessidade para completar o edifício das

ciências naturais, de que Haeckel pode ser considerado

o genial arquiteto, foi o sistema de Hartmann.

É uma falsa apreciação esta, que se complica de

um agrave injustiça. Sem falar de filósofos anteriores,

como Schopenhauer, que teve a mais viva intuição da

unidade do espírito e da natureza, ou como Lazarus

Geiger, que pressentiu mais de uma verdade hoje

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corrente e assentada entre os naturalistas, importa ainda

assim reconhecer que a filosofia do inconsciente não é a

mais apta para formar a cúpula do edifício.

É certo que ela se vangloria de proceder, segundo

o rigoroso método científico; mas acho um pouco

infundada semelhante pretensão. Pelo contrário: o hipo -

tético, o inverificável, o fantástico mesmo representam

nela um papel assaz considerável e de nenhum modo

adequado ao rigor e exatidão da ciência.

O próprio Haeckel, que rendeu preito às

excelentes observações e profundas idéias do autor, não

duvidou apoiar a crítica que fizeram à filosofia de

Hartmann, acusando-a de confundir sob a expressão de

inconsciente uma porção de coisas as mais diversas, que

necessitam de uma análise discriminadora; e afinal, para

ele, essa filosofia, considerada em sua totalidade, não

tem força para sustentar-se, ainda que nela existam

preciosos germes, que podem produzir riquissímos

frutos(8)

.

É, pois, evidente que o sistema de Hartmann não

resolve o problema que lhe destinou Heinrich

Landsmann. Posto que viesse primeiro, e como tal

pareça ter com efeito a prioridade no mérito, quando

somente lhe cabe a estéril prioridade no tempo, ele

desaparece diante de um outro sistema, de vistas mais

elevadas e mais sólidos fundamentos. É o monismo

filosófico de Noire. Só este realmente está no caso de

completar e corrigir o monismo científico de Haeckel.

Assim me exprimindo a respeito da Philosophie

des Unbewussten, é supérfluo advertir que não faço coro

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com críticos da têmpera de um J. Fischer na Alemanha,

ou de um Stiebeling nos Estados Unidos, para ambos os

quais o trabalho de Hartmann é a mais alta expressão da

insensatez do espírito filosofante.

O ponto de vista destes dois escritores é o do

materialismo nu e descarnado; e eu não ando por esse

caminho. O que julgo dever contrapor à filosofia de

Hartmann, não é um programa completo, uma espécie de

tábua, que não se pode aumentar, nem diminuir, de

verdades feitas e acabadas, como têm-na os materialistas

e positivistas; mas é uma outra filosofia, bebida nas

mesmas fontes, animada do mesmo espírito, e que

apenas me parece mais segura em seus princípios, mais

certeira em suas conseqüências.

E um dos melhores predicados do sistema de

Noire é que ele não se presta, como o de Hartmann, a

despeito de todo o seu aparato científico, a uma

chamada popularização das doutrinas filosóficas.

Será sempre digna de menção a verdade expressa

por Goethe: “Há um mistério na filoso fia. Deve-se

dispensar o povo de sondá-lo, e o menos que for

possível atrai-lo com força para a indagação de tais

matérias. O povo contenta-se com repetir bem alto, o

que bem alto lhe foi ensinado. Deste modo originam-se

os mais estranhos fenômenos, e as fátuas pretensões não

têm mais fim”.

Um homem simplesmente esclarecido, mas um

tanto rude e grosseiro, muitas vezes embebido em seu

falso saber, zomba de objetos, diante dos quais um

Jacobi, um Kant inclinar-se-iam com respeito. Os

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resultados da filosofia devem vir em proveito do povo;

não se deve, porém, querer elevar o povo à altura de

filósofo.

Mas voltemos ao centro do nosso assunto.

IV

Quando se trata de pôr um termo à inimizade, que

até Schiller aconselhara se mantivesse ainda por algum

tempo entre a filosofia e as ciências naturais, e apela-se

para Kant, como o órgão mais sadio da especulação

filosófica, ao passo que foi também o filósofo mais

chegado ao naturalismo científico – muita gente toma-se

de espanto, não compreendendo como se possa conferir

semelhante honra ao maior dos metafísicos, sem dúvida,

como o chamou Augusto Comte, mas sempre um

metafísico, e como tal representante de um ponto de

vista atrasado, decrépito, inaproveitável.

Felizmente essa muita gente é balda de todo

critério, e não tem voto para decidir em coisas sérias.

Não obstante, aceito a observação, como se fosse feita

por pessoas competentes, para aproveitar o ensejo que

melhor se me oferece, de elucidar uma questão in-

teressante, da qual os positivistas fazem grande alar de, e

que é para eles a verdadeira linha divisória entre o

antigo e o moderno filosofar.

Refiro-me à questão da metafísica em geral.

Efetivamente: não há frase mais corriqueira na boca dos

discípulos e subdiscípulos de Comte, do que o epíteto de

metafísico desdenhosamente assacado a quem quer que

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ousa ter uma idéia não de todo contida no cânon

positivista.

Mas entendamo-nos uma vez por todas: o que é

um metafísico? O sentido desta expressão se acha

determinado na história da filosofia; não era lícito a

Comte, nem a Littré, nem a outro qualquer conferir -lhe

uma significação que ela nunca teve.

Metafísico de velho estilo se diz aquele que

pretende sondar o que está fora de toda a experiência,

sem ter-se de antemão certificado de que um tal saber

seja possível, bem como do valor e aceitação que ele

possa ter.

Com uma admirável confiança os metafísicos

costumam afirmar e definir o absoluto, o ultra-

experimental; mas todas as suas teorias não passam de

simples hipóteses e conjeturas; isto se prova até pela

diversidade e contradição recíproca dessas mesmas

teorias.

Um filósofo alemão contemporâneo, A. Spir, faz

a seguinte notável observação: “Se um astrônomo

quisesse levantar hipóteses sobre os habitantes de Marte

e Júpiter, seus costumes, seus hábitos de vida, suas

instituições políticas e sociais – todo o mundo teria esse

procedimento por um gracejo e um ocioso passatempo;

entretanto a metafísica ainda é considerada por muitos

como uma ciência real e elevada.

Mas eu pergunto: quem está em condições mais

favoráveis e tem melhores razões em seu favor – o

pretensioso astrônomo, ou o pretensioso metafísico? Os

habitantes de Marte e Júpiter não podem decerto entrar

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jamais no círculo da nossa experiência; mas ao menos

eles repousam – caso existam – no domínio da expe-

riência em geral; e destarte o arrogante astrônomo tem

um longínquo vislumbre de autorização e competência,

para concluir do que se passa entre nós o que se passa

entre eles, e dar assim um livre vôo à sua fantasia.

Quais são, porém, os pontos de apoio do

metafísico, que quer pôr-se acima de toda a experiência,

e que deve também por conseguinte deixar atrás de si

todas as analogias do mundo experimental? Entretanto o

artifício dos metafísicos consiste exatamente em

transportar a experiência comum para as regiões do

absoluto. Eu devo confessar que julgo a direção

metafísica na filosofia uma espécie de doença, que não

se pode arredar por meio de argumentos...”(9)

.

Nada mais claro. Aí está perfeitamente delimitada

a carta da velha metafísica. Releva agora perguntar

afoutamente: o que foi que Kant afirmou sobre o

absoluto, sobre aquilo que repousa além da experiência?

Que hipóteses construiu, que conjeturas formu-

lou, que possam equiparar-se às gratuitas suposições do

astrônomo, de que fala Spir?

Ninguém poderá apontá-las. Pelo contrário: bem

longe de ser Kant um arquiteto de castelos aéreos, foi

ele quem acabou de arrasar por uma vez o palácio

encantado da velha fada, que seduzira e perdera mais de

um espírito superior. E fê-lo ciente e conscientemente.

A filosofia crítica, obra exclusiva de Kant, não surgiu

senão como antítese da filosofia dogmática, até então

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dominante; e o dogmatismo filosófico é justamente a

metafísica.

Nos escritos do filósofo encontra-se a cada passo

os mais claros certificados da sua intuição inteiramente

nova e diametralmente oposta ao modo de ver comum.

Assim, por exemplo, ele diz: “a asserção dos metafísico

deve ser ciência, ou então é nada”(10)

.

Em outro lugar: “uma hipótese transcendental, na

qual uma simples idéia da razão fosse empregada para

explicar a natureza das coisas, não seria uma explicação,

pois aquilo que não é bastante compreendido em virtude

de princípios empíricos conhecidos, seria assim ex-

plicado por alguma coisa, de que absolutamente nada se

compreende”(11)

.

Mais ainda: “fora do campo da experiência,

qualquer opinião é um brinquedo do pensamento”(12)

.

Há muitas outras passagens, em que o filósofo

não hesita mesmo em reconhecer os direitos do

empirismo, até onde ele não se torna dogmático, mas

somente se opõe “à indiscreta curiosidade e audácia da

razão desconhecedora do seu destino, que se gaba de

penetração e de saber, lá onde cessam propriamente o

saber e a penetração, que confunde os interesses

práticos e teoréticos, para cortar, onde lhe convém, o fio

das indagações físicas”(13)

.

À vista de tais documentos, não há, pois, razão de

rir na cara dos positivistas, quando ousam afirmar que

Kant foi um metafísico no sentido de um visionário?

Não é o caso de mandá-los todos bugiar, desde os leões

da seita até os gatos dos nossos telhado s, isto é, desde

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Comte e Littré até a récua de crétins brasileiros,

amarelos, empanturrados, de leque na mão e cigarrinho

na boca, fazendo filosofia positiva – que é uma espécie

de filosofia dos pobres – nas calçadas e confeitarias da

Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro?...

A coisa é realmente singular; e seria até capaz de

fazer rir o próprio Heráclito, de quem entretanto se diz

que só sabia chorar das misérias humanas. Mas há, aí,

sobretudo um ponto que merece especial atenção.

Que Augusto Comte não tivesse senso bastante

para compreender a reforma de Kant – ele que, além de

não conhecê-la de perto, julgava-se mesmo dispensado

desse conhecimento, pois estava convencido de que a

única valiosa só era a sua doutrina – é facilmente

explicável. Porém o mesmo não sucede com relação a

Littré.

Este sábio, que era familiarizado com a ciência

alemã, que estava nas melhores condições de entrar no

fundo da filosofia kantesca, não tem desculpa de haver

deixado sem correção o erro de seu mestre a tal respeito,

limitando-se a formar dessa filosofia a mesma idéia de

Comte, que a considerou do ponto de vista estreito e

sistemático de um crente, para quem não há outra

religião senão a sua.

Tenho plena consciência da impressão de horror,

que vou produzir; mas não importa; aventuro-me a

adiantar o juízo da história, que será este: Littré foi um

profundo lexicógrafo, um grande lingüista, um escritor

primoroso, mas um filósofo medíocre. Não lhe coube e

partilha a suprema faculdade filosófica de dar ao mundo

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uma dessas verdades, que geram verdades, que são

sementes do futuro, atiradas no chão da história, donde

rebentam novos pensamentos e novas aspirações.

Não tivesse ele nascido francês, não houvesse

florescido em uma época, na qual a mania do france-

sismo havia atingido a sua maior altura, e talvez que o

seu nome não fosse hoje conhecido.

Nem há nisto exageração alguma. É uma verdade

deduzida da ordem natural dos fatos, quando não surgem

circunstância particulares, que neutralizam a sua ação.

Realmente, um homem que concebia a filoso fia

positiva como “o conjunto do saber humano (note-se

bem: do saber humano!)” e este por sua vez como “o

estudo das forças pertencem à matéria e das condições

ou leis que regem essas forças” – um homem que assim

pensava e acreditava seriamente que esse conjunto e

esse estudo existiram na cabeça de A. Comte, como

existiam na sua própria, pois um foi o criador e o outro

o propagador da célebre teoria; um espírito de tal

quilate é um espírito incompleto, adoentado mesmo, que

posto em outro meio e cercado de outras relações,

poderia até passar por um ridículo fanfarrão(14)

.

Entretanto, quero crer que, se não fosse a falsa

direção tomada por Littré, se ele se tivesse limitado a

cultivar o terreno da ciência, livre dos pressupostos

forçados da estéril e acanhada filosofia, de que se fez

apóstolo, muito maior seria o seu merecimento e muito

mais compreensíveis os motivos do seu renome.

Quanto a nós, porém – é o que resta a liquidar –

quanto a nós, os que não sujeitamos o pensamento à

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disciplina claustral da filosofia positiva, só existe uma

razão de se nos ter em conta de metafísicos: é

justamente o não jurarmos pelo santo nome de Comte, é

o não sermos positivistas”

Para um católico de lei, o acatólico de qualquer

espécie é sempre um herege, um réprobo, um demônio.

É o mesmo ponto de vista dos sectários do comtismo,

que movem-se na névoa de idéias preconcebidas e frases

consagradas.

Em geral os positivistas não querem compreender

que o materialismo, do qual o seu sistema é uma das

últimas formas, sempre se ressentiu do defeito de

satisfazer-se com uma explicação do mundo, que

termina precisamente no ponto onde começam os

problemas da filosofia. Pôr de lado esses problemas, a

título de enigmas inextricáveis ou bolhas de sabão da

fantasia de espíritos enfermos, que se nutrem de

bagatelas, como certos animais se nutrem de palha, é um

procedimento cômodo, sem dúvida; porém pouco

filosófico.

Os positivistas não querem compreender que uma

coisa é a metafísica dogmática, que converte sonhos em

realidades, que fecha os olhos para melhor ver, que

desdenha da experiência, quando esta vai de encontro

aos seus oráculos, e outra coisa é a metafísica reservada

e consciente, que há de sempre existir, se não como

ciência, como disposição natural e inerradicável do

espírito, segundo Kant.

E mesmo como ciência – por que não? – A

matemática explica as grandezas no espaço e no tempo,

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a física os fenômenos da natureza, a experiência

científica em geral os fatos existentes. Mas justamente

por meio desta experiência realiza-se um novo fato: o da

explicação científica mesma.

Ou será porventura o matemático um fato menos

real do que as suas figuras, o físico menos real do que

os corpos, que ele observa, a experiência enfim menos

real do que os seus objetos? As ciências exatas não

podem negar que elas têm uma existência, cujo

reconhecimento aumenta de dia em dia. Estes fatos

seriam os únicos, que não necessitam de uma

explicação? Não deve portanto haver uma ciência, que

faça da explicação deles o seu alvo: uma ciência, que

considere a matemática, a física, a experiência, como

seus objetos, da mesma forma que a matemática tem por

objeto as grandezas, a física os corpos, a experiência as

coisas em geral?

Ou dá-se porventura que a matemática, a física, a

experiência, expliquem-se a si mesmas? Ser não se

explicam, deve haver então uma ciência distinta e

autônoma, que esteja para a matemática, como esta para

as grandezas, que esteja para a física, como esta para os

corpos, que esteja enfim para toda a experiência, como

esta para os fenômenos dados.

Esta ciência, tão necessária como as outras, é a

filosofia crítica, é a metafísica, no bom sentido da

expressão(15)

.

Tratando de explicar a experiência, ela se eleva

muitas vezes além deste limite, e então é a teoria, não

do absoluto, que não pode ser objeto de ciência, mas do

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conceito do absoluto, da origem, da significação e do

valor objetivo desse mesmo conceito.

Já se vê que, assim compreendido, o caráter

metafísico é inerente a toda pesquisa filosófica, pois,

como diz Edmond Scherer, a filosofia menos a

metafísica, é a filosofia menos a filosofia(16)

.

Antônio Tari, o célebre professor de estética da

universidade de Nápoles, reportando-se a Schopenhauer,

diz que no Tibete costumam representar uma pequena

comédia teológica, na qual o Dálai-Lama disputa com o

arquidiabo sobre a realidade ou a idealidade do mundo

Satã, realista, desavergonhado, declama sobre o in-

falível testemunho dos sentidos. O Lama, respondendo,

raciocina sonre a vaidade fenomenal do conhecimento.

Depois de um torneio cômico de razões pró e contra, os

disputantes, de comum acordo, entregando ao azar a

decisão da contenda, jogam a dados a solução metafísica

do enigma do universo; e o diabo perde a vaza(17)

.

É esta, pouco mais ou menos, a sorte reservada ao

positivismo, que é também a seu modo um realista

impudente.

V

O grande feito filosófico de Kant foi a indagação

do órgão do conhecimento, o estudo da razão humana. O

que é que a esta razão se pode atribuir como próprio,

originariamente próprio, antes de toda e qualquer

experiência? A filosofia dogmática tinha respondido até

então: Deus, liberdade, imortalidade, eternidade, etc. A

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filosofia sensualista atalhava dizendo: não há tal; só

existem formas sensíveis, que a razão recebe do mundo

exterior.

Kant, porém, respondeu: - nenhuma outra coisa

senão espaço e tempo. São estas as formas puras e

originais, em que a razão funde todas as matérias da

sensibilidade externa, e com cujo auxílio pomos em

ordem o mundo inteiro. A atividade ordenadora da

inteligência (Verstand), que é quem eleva ao grau de

efetivo conhecimento o material fornecido pela

sensibilidade, se exerce por meio das categorias, que

Kant admitia em número de doze.

Entretanto, como Kant mesmo não atribuía a estas

categorias um valor apriórico absoluto, não foi muito

que Schopenhauer, segundo a sua própria expressão,

atirasse-as todas pela janela, reservando somente a

causalidade, em sua quádrupla raiz, isto é, como

fundamento ou razão da existência, do desenvolvimento,

do pensar e do querer.

Tal é a simples mecânica do nosso conhecimento .

Apreciando a grandiosa descoberta de Kant,

Schopenhauer se confessa sectário do idealismo

levantado sobre ela, com a seguinte declaração:

“Espaço, tempo e causalidade não são propriedades das

coisas, mas são puramente ideais, isto é, existem

somente em nossa cabeça. Nós não estamos no tempo e

no espaço, mas o tempo e o espaço estão em nós. A

essência da coisa em si, fora destas formas da intuição,

é imperscrutável”.

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Já aqui se depreende quanta razão tinha o

chamado Buda da Alemanha em dizer orgulhosamente

que de Kant até ele, a despeito de toda a gritaria, a

filosofia não dera um passo para diante.

Foi ele quem melhor sondou o fundo da filosofia

crítica; e podemos repetir com Hans Kleser que, ainda

quando Schopenhauer nada mais tivesse feito, senão

desviar os alemães de Schelling e Herbart, Fichte e

Hegel, para obrigá-los a recuar e voltar a Kant, cuja

pura língua ele tornou ainda mais lúcida e mais bela –

só por isso mereceria um lugar importante na história da

ciência alemã(18)

.

Schopenhauer dizia de Kant que o seu principal

mérito consistia em ter derrubado a filosofia escolástica

com as suas pretensas provas da existência de Deus.

Pode-se também dizer de Schopenhauer que o seu maior

merecimento foi lançar do trono os imediatos discípulos

de Kant, e elevar de novo o grande filósofo à sua

verdadeira altura. É um fenômeno, ainda hoje digno de

estudo, a diversidade de sentido a que se prestou o

kantismo entre os filósofos do tempo, sendo aliás

incontestável que o mesmo autor da Crítica da Razão

Pura, além de ser claro na exposição da sua filosofia,

não perdeu posteriormente ocasião alguma que se lhe

oferecesse para melhor acentuar o seu pensamento(19)

.

Entretanto os discípulos divergiram entre si na

maneira de compreender o mestre. Além de Reinhold e

Fries – que fundaram, aquele a primeira, e este a

segunda escola kantesca em Jena – os nomes de Fichte,

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Schelling, Hegel, Oken, Herbart e Krause, indicam

outras tantas direções da evolução do kantismo.

Mas esta divergência não provinha das

dificuldades inerentes ao sistema, porém, sobretudo, da

abundância de idéias novas, da riqueza de pontos de

vista, dos quais cada um dos discípulos tomava o seu, e

acreditava poder, somente daí, dominar todo o horizonte

do mundo filosófico.

Ainda em vida do filósofo, e logo depois mesmo

da publicação da Crítica, foram tais as falsificações da

sua doutrina, interpretada por alguns em um sentido

exageradamente idealístico, que ele viu-se obrigado a

protestar. Vale a pena referir um desses protestos.

Ei-lo aqui: “O princípio de todos os verdadeiros

idealistas, desde os eleáticos até o bispo Berkeley, está

contido na seguinte fórmula: todo conhecimento

adquirido por meio dos sentidos não é mais do que

simples aparência, e só nas idéias do entendimento e da

razão pura existe a verdade. Pelo contrário, o princípio

que dirige e determina o meu idealismo, é o seguinte:

todo conhecimento das coisas por meio do puro

entendimento ou da pura razão é simplesmente aparente,

e a verdade só existe na experiência”.

Como se vê, uma completa antítese entre um e

outro modo de pensar. Nada mais falso, portanto, do que

a opinião que ainda hoje vigora entre nós, de ter sido

Kant um perfeito idealista, e de formar o seu sistema um

dos mais belos triunfos do racionalismo moderno.

É certamente um erro clamoroso, que só se

explica por total ignorância da obras do filósofo. Esse

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lado realístico da sua teoria, Kant esforçou-se por tornar

cada vez mais saliente, quer nos Prolegômenos escritos

para esclarecer a Crítica da Razão Pura, quer nas

reformas e correções da segunda edição da mesma

Crítica.

Se todo o nosso saber pressupõe a intuição dos

sentidos, como seria possível uma ciência do que está

acima dessa esfera? Uma psicologia, uma cosmologia e

uma teologia racionais são três brincos do pensamento,

são três ciências fantásticas, sobre as quais não há, nem

pode haver certeza de que correspondam a alguma coisa

de real e objetivo.

Kant demonstrou uma vez por todas a

impossibilidade de uma ciência do hipersensível. Se a

sua cabeça tivesse sido vasada no mesmo molde da de

Augusto Comte, pode-se dizer afoutamente que o

positivismo, com a sua estreiteza de âmbito e a sua fátua

pretensão de eliminar do espírito humano o elemento

metafísico, sem dar-se ao trabalho de inquirir e estudar

a sua fonte – o positivismo, como hoje vemo-lo, teria

primeiro aparecido com Kant.

Mas o grande filósofo alemão, antes de tudo, era

um homem sério, além de ser um espírito sadio. Re-

conhecendo o que havia de ilusório no velho dog-

matismo filosófico, não se deu todavia por satisfeito

com a simples declaração de que o mundo objetivo da

metafísica tradicional é uma falsa aparência; ele foi

muito mais adiante, para deixar peremptoriamente

assentado que a razão humana, por si só, a chamada

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razão pura, não fornece o conhecimento da coisa

nenhuma.

Neste sentido são dignas de especial menção as

seguintes palavras do filósofo, tão apertadas, tão cheias

de um frescor atual, que dir -se-iam dirigidas ao

positivismo dos nossos dias:

“Só a temperança de uma crítica rigorosa e justa

pode livrar-nos dessa fantasmagoria, que a tantos

conserva presos pelo atrativo, de imaginária felicidade,

e restringir todas as nossas pretensões exclusivamente

ao campo da experiência possível, não por meio de

insípida zombaria das tentativas tantas vezes

malogradas, ou por meio de pios lamentos sobre os

limites da nossa razão, mas mediante uma demarcação

dos seus domínios, executada segundo princípios certos,

a qual com a maior segurança inscreve o seu – não mais

adiante – nas colunas hercúleas, que a natureza mesma

levantou, para continuar a viagem da razão somente até

onde se estendem as plagas da experiência, que nós não

podemos abandonar, sem aventurarmo-nos a um oceano

sem margens, que sob aspectos sempre enganadores

afinal nos obriga a abrir mão de todo o penoso e

demorado esforço, como incapaz de nutrir a mínima

esperança(20)

.

Em outro lugar ainda ele disse com mais clareza:

“Para instigar a razão contra si mesma, fornecer -lhe

armas de ambos os lados e assistir então tranqüilo e

desdenhoso ao seu violentíssimo combate, parece um

ato da malignidade. Querer recomendar a convicção e

confissão da própria ignorância, não só como remédio

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contra a presunção dogmática, mas também como o

único modo de terminar a luta intestina da razão, é um

propósito inteiramente inútil, que não pode de modo

algum contribuir para dar à mesma razão um completo e

definitivo repouso”.

Perfeitamente. Sem querer e sem saber, Kant

talhou uma carapuça, que assenta em cheio na cabeça

dos positivistas hodiernos.

Estes senhores, que vivem sempre a falar de uma

disciplina mental, a que o seu sistema os subordina, e

pela qual não lhes é lícito transpor uma certa ordem de

idéias, ignoram duas coisas: primeira, que essa

disciplina, tomada no sentido de só dever-se estudar e

aprender o que Comte mandou que se estudasse e

aprendesse, é uma dogmática de novo gênero, e, como

todas as dogmáticas, um processo de encurtamento e

atrofia cerebral; a segunda, que uma vez admitida a

necessidade de uma disciplina da inteligência, em

sentido mais elevado, é preciso reconhecer que foi Kant

quem a criou.

Em mais de uma passagem das suas obras o

filósofo insiste na idéia de que a utilidade da crítica da

razão pra é de caráter negativo, pois que ela não serve

de órgão para aumentar o nosso saber, porém de

disciplina para determinar os seus limites; em lugar de

descobrir verdades, tem apenas o merecimento de

prevenir erros.

Assim como o mister da filosofia em geral

consiste mais em cortar do que em fazer brotar

luxuriosos rebentos, assim também a crítica da razão é o

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meio de arredar a ôca presunção de sabedoria. Ela

mantém-se para com a metafísica escolástica exatamente

como a química para com a alquimia, ou como a

astronomia para com a divinatória e predizente

astrologia(21)

.

Não ficamos aí. Segundo o nosso filósofo, há dois

modos de conhecimento racional: por intuição e por

conceitos. O conhecimento por intuição é matemático; o

conhecimento por conceitos é filosófico. Todos os puros

juízo da razão ou princípios apodícticos, no primeiro

caso, são mathemata; no segundo, são dogmata.

Mas não há uso dogmático da razão, não há

conhecimento racional, que se retira imediatamente à

essência da natureza das coisas. Os dogmas filosóficos

provocam sempre as suas antíteses. O domínio

metafísico, dogmaticamente cultivado, enche-se logo de

contradições; ao juízo afirmativo opõe-se o negativo

com a mesma pretensão à validade, e em lugar de uma

ciência acabada e irrefutável, como é a matemática, a

metafísica torna-se o campo de batalha de opiniões e

sistemas contrários.

Nesta luta, quem toma partido por uma das

opiniões opostas, mantém-se dogmaticamente. A quem

não quer assim proceder, só restam dois caminhos a

seguir: ou atacar e refutar uma das duas afirmações, sem

por isso defender a outra, ou negar igualmente ambas.

Na primeira hipótese, tomamos uma atitude polêmica;

na segunda, uma atitude céptica.

Mas a atitude polêmica é sempre mais ou menos

falsa; e afinal toda polêmica degenera em dogmática. O

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ponto de vista céptico nega todo o conhecimento

racional, e em lugar de uma imaginária e pretendida

ciência das coisas, coloca a convicção da nossa

ignorância. Mas sobre que se apóia esta convicção do

céptico? Com que fundamentos quer ele conhecer e

provar a ignorância da razão humana? Ou com

fundamentos da experiência, ou com fundamentos da

razão mesma. No primeiro caso, ela é simples

percepção; no segundo, ela é ciência real.

Suponhamos o primeiro caso, que efetivamente

tem lugar no céptico, e veremos que o cepticismo não

repousa sobre nenhuma base geral e necessária, não

descansa em nenhum princípio, é simplesmente uma tese

empírica, que, incerta e vacilante, como todas do mesmo

gênero, está por sua vez sujeita à dúvida, e deste modo

facilmente se dissolve.

Se, porém, a convicção céptica é haurida no

estudo que se faz da natureza da razão humana, se ela é

baseada em princípios, então é uma ciência dos limites

da mesma razão, um verdadeiro e real conhecimento. O

cepticismo pois, ou o incientífico e por isso infundado,

ou, se é científico, não é mais céptico, porém crítico.

Esta diferença do ponto de vista cépt ico e crítico

pode tornar-se ainda mais saliente por uma comparação

tirada do geógrafo e do observador comum. Este

conhece somente os limites do seu horizonte, ao passo

que aquele conhece os limites da terra e da geografia em

geral. Como o empírico e o geógrafo mantêm-se entre si

relativamente à explicação do horizonte humano, assim

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mantém-se o filósofo céptico e crítico no tocante à

explicação do conhecimento.

O filósofo crítico é o geógrafo racional; ele

conhece o diâmetro da razão, sua extensão e seus

limites, ao passo que o céptico só presta atenção aos

seus términos exteriores, e tem da sua verdadeira

constituição uma idéia tão pouco desenvolvida, como

aquele empírico, que só sabe explicar os limites do

horizonte pela experiência sensível, sem conhecer a

verdadeira forma da terra.

Que o nosso horizonte é limitado em todos os

casos – nisto estão de acordo a percepção empírica e a

ciência geográfica, mas as razões explicativas são

diferentes. Assim podem também o filósofo céptico e o

crítico harmonizar-se na mesma afirmação, que aliás

eles fundamentam de modo mui diverso.

Compare-se por exemplo Kant com Hume, a

quem o mesmo Kant considerava – “o mais talentoso de

todos os cépticos”. Para ambos a causalidade é um

conceito, que só tem valor empírico. Mas o fi lósofo

céptico afirma que o conceito da causalidade é formado

por meio da experiência, ao passo que o crítico sustenta

que a experiência é formada por meio desse conceito.

Eis aí. É preciso não conhecer de Kant, senão o

nome, para comungar a errônea idéia de ter sido ele um

metafísico, um racionalista, um vidente de coisas

transcendentais e invisíveis, como tantos outros, que têm

enchido de sonhos e disparates a história da filosofia. A

verdade está na afirmação contrária.

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A obra decisiva de Kant consiste justamente em

que por meio dele a filosofia dogmática tornou-se

filosofia crítica, ou, como disse Schiller, em ter ele, da

razão filosofante, restabelecido a sã razão.

Há mais de trinta anos (1857) Rudolf Haym

falava de uma filosofia do futuro, que deveria ser de

novo uma filosofia crítica. Chegou enfim essa época de

renovação filosófica, que já foi dignamente iniciada

pelos trabalhos de Hartmann, Noire, Spir, Fortlage e

outros. Resta somente que os espíritos, para quem a

filosofia é assunto de entretenimento banal, mas uma

das mais nobres ocupações do pensamento humano,

saibam aproveitar-se do exemplo e da lição dos

mestres.L

NOTAS DO AUTOR (1) Um sinal dos tempos, nº 7. Escada, 1874. É preciso entretanto observar que nessa época o Colégio Pedro II ainda não contava no seu corpo docente o insigne talento de Sílvio Romero, que é ali presentemente professor de filosofia. Mas também aproveito a ocasião para dizer que Sílvio Romero mesmo ainda me serve de prova do nenhum valor, que têm no Brasil os estudos filosóficos. A influência mesológica foi perniciosa ao ilustre professor. Reconhecendo a impossibilidade de uma reação benéfica, ele viu-se obrigado a ser rotineiro, a ensinar somente pelo esterilíssimo programa da filosofia oficial. O resultado era inevitável – das matérias que ele cultiva, é hoje a filosofia a que talvez menos preocupe o seu elevado espírito.

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(2) “Deutscher Kaempfer”, nº 1. Recife, 1875, Vide Menores e Loucos, 2ª edição, pág. 130 (nota).

(3) Em honra da verdade, é preciso confessar que o Brasil já teve um filósofo extraordinário: foi aquele menino insigne, filho do autor dos Fatos do Espírito Humano, de quem este se ocupa em um dos últimos capítulos da sua obra; criança maravilhosa, de um gênio filosófico muito superior ao seu pai, que na t enra idade de oito anos já sabia dar uma definição de Deus, capaz de fazer impallidir i filosofii, como diria Gallupi. Realmente esse menino prodigioso, se não tivesse morrido, seria hoje a maior glória literária do Brasil; como também sê-lo-iam alguns outros, que por aí andam, já maduros e experimentados, se não tivessem vivido; deixando então aos pais filosóficos o cuidado de nos contarem as maravilhas da sua precocidade filosófica.

(4) Merece aqui uma apreciação particular o modo por que o chefe do posit ivismo francês julgou o autor da Crítica da Razão Pura. No primeiro volume do Cours (pág. 112), Augusto Comte, que certamente nunca tinha lido Kant, pois os termos da sua crítica mesma dão a conhecer que ele falava de outiva, atribuiu ao filósofo alemão a divisão geral das idéias humanas segundo as duas categorias da quantidade e da qualidade!... Mas é uma falsa atribuição, proveniente sobretudo da ignorância de Comte sobre o conceito da categoria na linguagem filosófica de Kant. Com efeito: eu ouso perguntar, já não a Comte, porém aos seus mais fanáticos discípulos de aquém e de além do mar: em que parte das obras do filósofo tedesco está escrito que as idéias humanas se dividem daquele modo? Vamos lá; respondam; quero ver isso. E se é certo que Kant nunca fez semelhante divisão, que juízo deve-se formar da seriedade científica do tal Sr. Augusto Comte?... Mas o melhor é o seguinte. Em uma das últimas lições (vol. 6, pág. 619), Comte diz: “Le plus grand des métaphysiciens modernes, l’illustre Kant, a noblement mérité une éternelle admiration en tentant, le premier,

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d’échapper directement à l’absolu philosophique par sa célèbre conception de la double realité, à la fois objective et subjective, qui indique um si juste sentiment de la saine philosophie”. É um pedaço interessantíssimo. Salta aos olhos a falta de compreensão da reforma de Kant. Dizer que este filósofo foi o primeiro que tentou escapar do absoluto, é um erro pueril, já porque antes dele outros tinham feito a mesma tentativa, já porque Kant não se limitou a querer evitar o absoluto; ele o eliminou totalmente do domínio da filosofia, como objeto de conhecimento. E além disto, ainda afirmar que esse grande mérito de Kant proveio da sua célebre concepção da dupla realidade, ao mesmo tempo objetiva e subjetiva – é um disparate inqualificável. É imputar ao filósofo alemão um dualismo, que está em perfeita oposição com a idéia capital da sua teoria; dualismo que, entretanto, não exclui o absoluto. Os filósofos dogmáticos, os metafísicos propriamente ditos, que fizeram do mundo hipersensível objeto de sérios estudos, foram pela mor parte dualistas. De tudo isto se depreende que Augusto Comte falou de Kant, como falou de muitas outras coisas, ignorando-as completamente; mas julgava poder apreciá-las por uma espécie de intuição profética, própria do seu caráter de salvador do espírito humano!...

(5) Ueber das Sehen des Menschen, pág. 5.

(6) Vide acima, pág. 46.J

(7) Wahrheit und Irthum im Darwinismus, pág. 150.

(8) Natuerliche Schoepfungsgeschichte. Vierte Auflage, pág. XXXIX.

(9) Denken und Wirklichkeit, I, págs. 5 e 6.

(10) Prolegomena, pág. 28.

(11) Kritik der reinen Vernunft, (edição “Kirchmann”), pág. 600.

(12) Kritik der Urtheilskraft, (idem), pág. 357.

(13) Lange – Geschichte des Materialismus – I, pág. 21.

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(14) Realmente o velho sábio francês já era vítima de uma espécie de monomania positivista, e como tal produzia muitas vezes uma impressão de bobice, que causava dó. É assim que já tinha chegado ao ponto de enviar urbi et orbi a benção papal do comtismo, dirigindo cartas consoladoras a todos os que nele viam o seu diretor espiritual e descobrindo por toda a parte, até nas Farpas do escritor português Ramalho Ortigão, quelques directions positivistes! O vulto histórico de Littré é semelhante a certas montanhas, que vistas por um lado mostram-se altíssimas, inacessíveis, sublimes, ao passo que do lado oposto apresentam um declívio tão suave, que pode-se galgar o cima até a cavalo. O colaborador de Robin, o autor do dicionário, o tradutor de Hipócrates, é o lado escarpado e majestoso da montanha; o discípulo de Comte, porém, é a parte prosaica e rasteira, que não desperta nem merece atenção.

(15) Kuno Fischer – Geschichte der neuern Philosophie – III, págs. 15 e 16. Releva aqui advertir que é este pelo menos o sentido que a metafísica tem na Inglaterra, isto é, o da teoria de conhecimento, ou de um ramo dela. Assim, por exemplo, M’Cosh em sua obra The Laws of discursive Thought (1870) diz: “The science which treats of the intuitive operations of the mind, is called Metaphysics (pág. 1)”. Mas também, segundo Lewes (Hist. of Phil., I, pág. XXIII), Metaphysics “sometimes means Ontology. Sometimes it means Psychology. Sometimes it means the highest generalities of Physics”.

(16) Études critiques sur la littérature contemporaine – I, pág. 302.

(17) Appendice in lettere quattro alla monographia – Ente, Spirito e Reale – pág. 63.

(18) Koelnische Zeitung, 1888 – nº 8. Betrachtung zu Schopenhauers 100 Geburtstag am 22 Februar 1888. (*) (*) Jornal da Colônia, 1888, nº 8. Considerações sobre o centenário do nascimento de Schopenhauer, em 22 de fevereiro de 1888. (T. do E.).

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(19) Isto distoa do modo de ver mais seguido, que é atribuir a Kant uma obscuridade insuperável. Porém, tal obscuridade não passa de uma história de franceses, criada e fomentada por V. Cousin, qu não era um filósofo, que achava, portanto, incompreensível tudo que ia além do chamado senso comum.

(20) Saemmtliche Werke (Rosenkranz u. Schubert) – III, pág. 314.

(21) Saemmtliche Werke, II, págs. 384 e 613; III, pág. 143; VII, pág. 352.

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VI

A IRRELIGIÃO DO FUTURO

(1888) M

Die aufgeklaerte Meinung dass die Gemeinsamkeit und Oeffentlichkeit der Religionsuebung einer ueberschrittenen Kulturstufe angehoere, und dass der hoeher gebildete Mensch seine religioesen Beduerfnisse, wenn er noch solche habe, fuer sich allein befriedige, ist theils ein Irrthum, theils eine Ausflucht der Indifferenz, weiche sich der Gemeinschaft zu entziehen sucht.(

*)

JULIUS FROEBEL

I

Acabo de ler o livro de Guyau – L’Irréligion de

l’Avenir – que dizem ter causado um certo ruído no

mundo literário. Bem entendido: no mundo literário

francês, porque fora daí é muito provável que esse livro

tenha passado e continue a passar desapercebido(1)

.

É um grosso volume de cerca de quinhentas

páginas, no qual o autor se propôs resolver, segundo ele

(

*) A opinião liberal de que a comunidade e publicidade do culto

religioso pertence a uma fase ultrapassada da cultura e que os

homens mais cultos, quando ainda o têm, satisfazem-se por si sós, é

em parte um erro, em parte um subterfúgio com que procura se afastar da comunidade. (T. do E.).

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crê, a seu modo e com os seus próprios dados, o velho

problema do destino ulterior da religião.

O velho problema – digo eu – porque velho

realmente ele é; mas Guyau está convencido de que deu-

lhe uma face nova, nunca sequer pressentida pelos que

anteriormente se ocuparam do assunto.

A pretensão é burlesca, porém ao certo

legitimamente francesa. É um dos distintivos dessa

gente o querer recomeçar tudo, sempre no intuito de

fazê-lo melhor que os outros. Para o francês não há

continuidade histórica em coisa alguma. Qualquer

questão, já muito elucidada e debatida, ele a encara e

discute com uma seriedade ridícula, dando como

inexistentes todos os seus antecessores, e tomando para

si a glória da solução do pretendido enigma.

Isto quer dizer que todo francês, sem a menor

cerimônia, reputa-se u gênio, pois que só ao gênio e às

vezes concedido derramar um certo frescor de novidade

sobre assuntos gastos e cediços.

Mas a genialidade não é fenômeno comum. Em

regra, pois, os franceses, que fazem cara de quem abre

novos caminhos, não passam de uns pobres desco -

bridores de mundos descobertos, ou exploradores de

terras exploradas. Guyau está neste caso.

O célebre israelita Ludwig Boerne disse uma vez

que o alemão em geral só escrevia ouro, ou cobre, ao

passo que o francês ordinariamente escrevia prata. A

expressão não é somente espirituosa, porém justa e

verdadeira, no sentido de que os livros alemães quase

sempre se distinguem, por um uma profundeza admi-

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rável, ou então por uma esterilidade sem igual, enquanto

que os franceses mantêm-se numa tal ou qual mediania,

eqüidistantes dos dois extremos, sempre à vista de terra,

sem ousarem jamais lançar-se ao alto mar...

Releva, porém, observar que o critério estabe-

lecido por Boerne era talhado para um certo e

determinado tempo. Os alemães, é verdade, continuam a

escrever ouro ou cobre, mas os franceses já não

escrevem prata. Deles disse com razão Johannes Sherr

que, depois da guerra de 1870, não perderam somente os

milliards, mas perderam também o espírito.

Com efeito: não há injustiça em afirmar que

depois da queda do segundo império e da criação da

república, os franceses têm mostrado uma espécie de

exaurimento intelectual, que contrasta abertamente com

o seu belo passado e provoca sérias dúvidas sobre o seu

futuro. Em mais de uma face da vida espiritual, o

império apresentara vivos sinais de regresso; a república

porém importou, por assim dizer, uma decadência na

decadência, piorando sobremodo os vícios e defeitos da

época anterior(2)

.

Qui dit Paris, dit tout la France. Os filhos mais

moços de Madame Lutetia não produzem coisa alguma

que seriamente mereça ser lida e meditada. Em geral o

proveito que se aufere da leitura de qualquer dos seus

trabalhos científicos e pouco mais ou menos o mesmo

que pode resultar da de um romance de Zola. Nenhuma

idéia nova, nenhuma excitação para indagar e refletir.

Na maioria dos casos, somente vox, vox, praetereaque

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nihil – é a impressão que resta ao leitor desabusado e

ávido de aprender.

No estrito domínio literário mesmo, a decadência

se faz sentir de um modo bem notável. Ainda não há

muito tempo, um dos mais sisudos e conscienciosos

críticos franceses, De Vogüé, dizia o seguinte: “O

começo do século XIX trouxe-nos novas necessidades.

Mas todos os fundos apresentaram-se exaustos. Tivemos

então de tomar emprestado à Inglaterra e à Alemanha, e

a literatura reanimou-se. Atualmente, porém, surgiu de

novo para a França uma época de fome e de anemia”.

É isto mesmo, exatamente isto. O honrado crítico

confessa sem rebuço a falta de originalidade do seu país,

e leva a sua despreocupação ao ponto de reconhecer que

chegou também a vez dos russos, a quem agora cabe a

missão de vir em socorro da indigência literária dos

franceses.

Esta idéia, que vinte anos antes teria provocado

um grito de espanto, ou uma gargalhada de desdém,

presentemente nada encerra de estranho e contestável. é

uma verdade que transluz das atuais condições da

França e suas relações com a Rússia. O eslavofilismo

hodierno dos franceses não exprime somente, como é

crível à primeira vista, uma necessidade de coadjuvação

e reforço intelectual(3)

.

Mas não percamos de vista o objeto da nsosa

crítica. Nenhuma obra francesa da atualidade oferece

uma prova mais cabal da infecundidade da França, do

que o livro de Guyay. É um livro sintomático da última

fase mórbida do francesismo em dissolução. Se nisto vai

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uma hipérbole, e com a hipérbole uma injustiça da

minha parte, é o que passamos a ver.

II

Logo em princípio vem a pêlo observar que a

obra de Guyay deve uma grade parcela da sua nomeada

ao ar de novidade e estranheza do seu título. Realmente:

suponhamos que ele a tivesse intilutado – A religião do

futuro, ou mesmo O futuro da religião: estudo filosófico

– podemos afianças que ninguém ter-se-ia dado ao

trabalho de lê-la. Já de antemão se sabia o conteúdo do

livro. Era uma velha cantiga, que o leitor se dispensaria

de ouvir pela milésima vez.

Não assim, porém, com o retumbante nome – A

irreligião do futuro: estudo sociológico . As duas frases

– irreligião e sociológico – foram de um efeito

prodigioso; a primeira, por conter um certo sabor de

impiedade, e a segunda, por estar de acordo com a folie

raisonnante do positivismo, que é hoje o característico,

pelo menos entre nós, da semicultura frívola e

pretensiosa(4)

.

Por minha parte, declaro que não precisava de

outro critério para determinar o quilate do espírito de

Guyau. Conheci-o logo na pinta: o homem é sociólogo,

sem o que não se explicaria o subtítulo que conferiu ao

seu livro. Mas não é a sua socio logia o que aqui me

proponho analisar e combater. A nossa questão é

diferente.

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Acompanhar o autor em todas as voltas e

sinuosidades do seu extenso livro é um trabalho, para o

qual há mister de uma coragem não comum. O fio

vermelho, o pensamento capital de toda a obra perde-se

muitas vezes nas meadas inextricáveis de uma retórica

estéril e impertinente.

A um espírito superior, a um espírito mais

profundo, teria bastado um livro de cem páginas, ao

muito, para discutir e resolver o problema de que se

trata. Porém Guyau é dos tais que preferem os rodeios

aos atalhos, e tem a certeza de escrever para leitores,

que em geral não acreditam em livretes; o volumaço é o

distintivo da alta sabedoria.

Entretanto ele nos fez o obséquio de dar aqui e ali

uma vista sintética da sua doutrina; e este favor não é

para ser rejeitado. Por uma única linha, em que o autor

define a religião, avalia-se o livro inteiro, como por uma

só gota, que se prova, conhece-se a ruindade da água de

um imenso lago.

Como diz ele na introdução: “A religião é um

sociomorfismo universal. A sociedade com os animais, a

sociedade com os mortos, a sociedade com os espíritos,

com os bons e maus gênios, a sociedade com as forças

da natureza, com o princípio supremo da natureza, não

são mais do que formas diversas desta sociologia

universal, em que as religiões têm procurado a razão de

todas as coisas, tanto dos fatos físicos – como o trovão,

a tempestade, a doença, a morte, como das relações

metafísicas – origem e destino, ou das relações morais –

virtudes, vícios, lei e sanção”.

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Não há dúvida: isto é bonito; ma sé bonito demais

para ser verdadeiro. Guyau labora numa ilusão pueril. O

sociomorfismo universal, de que ele fala, não constitui a

essência da religião. A tese é falsíssima. Para prová-lo,

basta lembrar que a história nos dá testemunho de

religiões nacionais, exclusivamente nacionais, que são

incompatíveis com esse universalismo.

A religião dos hebreus, por exemplo, com o seu

Deus guerreiro e solitário, nada tem de sociológico, no

sentido de Guyau.

O cristianismo mesmo, não obstante o seu pendor

cosmopolítico, não podia elevar-se, com a sua intuição

maniquéia de céu e inferno, de eleitos e precitos, à

concepção de uma sociabilidade, que envolve todos os

seres, que “vai até as estrelas”.

Esta idéia de um sociomorfismo universal,

refletida e esclarecida, como ela hoje nos aparece, é de

data bem recente. Ela se prende à filosofia de

Schopenhauer.

Ao passo que o próprio cristianismo olha com

indiferença para os outros seres, considera este mundo

como pecaminoso, dominado pelo diabo, e dirige as suas

vistas para um outro mundo, puro e espiritual, a nova

teoria alarga o círculo das criaturas, que merecem a

nossa simpatia, ensina a compaixão, não só para com as

classes humanas estigmatizadas pela doutrina da Igreja

com o desprezo terreno e com a eterna condenação, mas

também para com os animais que estão muito abaixo do

homem, procura tornar mais suportáveis os seus

sofrimentos, e destarte, por assim dizer, expurgar uma

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velha culpa da humanidade, pela qual ela r eclamou para

si esta terra como sua posse exclusiva, e sujeitou

tiranicamente aos seus fins todos os outros seres(5)

.

O espanhol com a sua feroz paixão pelas

tauromaquias, o francês com o seu provérbio: on n’est

pas cheval pour rien, e o italiano, que desapiedado

martiriza o seu burro e se justifica dizendo: non é

cristiano, non crede a la santa Madonna, são os

representantes populares deste antiquíssimo grosseiro

egoísmo humano, que tira mesmo o seu alimento da

pura doutrina do cristianismo.

É indubitável, acrescente Noire, que a consciên-

cia da humanidade, que começa a reconhecer parentes

em todos os seres, anuncia ao mesmo tempo uma nova

época de mais alta nobilitação, e deste modo podemos

também alegremente saudar a propaganda, que se torna

cada vez mais geral, da filosofia de Schopenhauer (não

obstante o seu verniz budístico) e da teoria de

evolucionismo como verdadeiramente favorável à

cultura e capaz de conduzir à realização da pua

humanidade, que aumenta de dia em dia.

Porquanto essa consciência há de vir em proveito,

não só dos animais, como também de uma grande parte

dos nossos irmãos. Quanto sangue, quantos tormentos

não têm custado a uma infeliz raça humana o fato de

parecer ela ter a maior semelhança com o orang!...(6)

.

Não há, pois, idéia mais falsa do que a de Guyau.

“Se fôssemos obrigados – continua ele – a encerrar a

teoria deste livro em uma definição necessariamente

estreita, diríamos que a religião é uma explicação física,

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metafísica e moral de todas as coisas por analogia com a

sociedade humana, sob uma forma imaginativa e

simbólica. Ela é, em duas palavras, uma explicação

sociológica universal, de forma mítica”.

Será preciso dizer que tudo isto não tem senso? O

diabo da sociologia transtornou a futrica filosófica do

francês, e levou-o até o terreno do galimatias e do

disparate ridículo. Efetivamente: a religião considerada

como uma explicação sociológica do universo, em

forma mítica – é coisa que mal se compreende, que dá

tratos à cabeça de qualquer mortal não iniciado nos

mistérios da sociologia comtesca.

O proton pseudos do nosso autor está em falar da

religião, como os demagogos falam da república, isto é,

não desta ou daquela, nem mesmo de todas elas, mas da

religião em abstrato, uma religião ideal, uma religião

que não existe. E é o que basta para ferir de morte a sua

teoria.

Guyau esquece que o conceito da religião não é

filosófico, porém histórico. Isto posto, e aplicando -se a

qualquer das religiões conhecidas à medida da sua

definição, evidencia-se o erro dela. E, se não, vejamos.

O cristianismo pretendeu, é verdade, difundir -se

pelo mundo inteiro, mas esbarrou diante do impossível.

Uma vez organizado, teve de obedecer à lei do

polimorfismo ou da divergência do caráter, pela qual os

indivíduos orgânicos, chegando a um certo grau de

desenvolvimento, cindem-se e multiplicam-se em for-

mas heterogêneas, saída de base homogênea.

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A igreja grega e o protestantismo constituem

essas formas, que separando-se do tronco primit ivo, e

tomando direções diferentes, ainda tornaram mais difícil

o problema do unum ovile et unus pastor.

Não é só isto. O caráter sociológico de Guyau

atribui à religião, está em perfeita contradição com os

fatos, no que diz respeito ao cristianismo, principal-

mente em sua forma católica. Monaquismo, ascetismo,

misticismo – são palavras que tornam bem patente o

lado anti-social e egoístico da religião cristã.

Não são melhores as condições da fonte precípua,

donde ela derivou. Refiro-me ao judaísmo. Á primeira

vista parece que a idéia-mater da religião judaica se

harmoniza com a teoria do nosso filósofo, atento que os

judeus representavam a sua vida religiosa sob a imagem

imponente de uma aliança com Deus. Mas é inexato.

“A concepção, diz Michel Nicolas, ao mesmo

tempo tão simples e tão elevada, de uma aliança de

Jeová com a família de Israel, de uma teocracia que era

no fundo, posto que sob uma forma imperfeita, o que

depois se chamou a cidade de Deus, tinha ficado,

durante séculos, no meios dos filhos de Israel, um ideal

geralmente desconhecido, acima da inteligência de um

povo, de quem ela não pudera vencer os hábitos

inveterados, enraizados provavelmente em reminiscên-

cias e instintos de raça.

Se não havia caído em um completo olvido, ela o

devia a uma sucessão não interrompida de homens que,

desde a época dos juízes até a volta do cativeiro de

Babilônia, constantemente pugnaram pelo seu triunfo.

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Estes ardentes defensores da obra, cuja primeira

idéia a tradição faz remontar a Moisés, não conseguiram

levar os filhos de Israel a tom arem a concepção

mosaica por base e regra de sua vida social e religiosa;

eles tinham-na pelo menos conservado como um pre-

cioso depósito, e haviam-na transmitido – engrandecida

e espiritualizada – à posteridade que devia enfim sentir

a sua grandeza e a sua verdade”(7)

.

Já se vê que o judaísmo em seu pr incípio nada

menos foi que uma explicação sociológicos universal,

em forma mítica. O sábio crítico religioso cita em apoio

de sua doutrina um outro sábio francês Edouard Reuss,

em sua Histoire de la Theologie Chrétienne – que

comunga a mesma idéia.

É verdade que mais tarde, quando os judeus

voltaram do cativeiro babilônico, uma grande modifi-

cação se havia operado em seu espírito. O jeovismo ou a

concepção mosaica de Deus e do mundo tinha ganho

todo o terreno, para ficar, como ficou sendo desde então

a única religião desse povo.

Mas ainda assim seria um erro dar ao jeovismo o

predicado de sociológico, visto que, mesmo depois de

geralmente aceito e depurado pelos sofrimentos dos seus

sectários, ele não perdeu a primitiva feição de

exclusivismo nacional. A bitola de Guyau não lhe

assenta, pois, de modo algum; e o que se diz do

judaísmo, é aplicável em igual escala a todas as outras

religiões orientais.

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III

O palavroso autor da Irréligion tem uma idéia

fixa, que se deixa facilmente ler entre as linhas do seu

grosso livro. É contribuir com o seu melhor para provar

que ces cochons d’allemands, que se dão por criadores

da ciência da religião e da mitologia comparada, não

merecem o preito que se lhes rende. Tudo que tem

produzido, é errôneo, ou pelo menos incomple to. Há

mister de que o francês venha sempre escrever uma

adenda e corrigenda aos trabalhos do alemão.

Ele não se exprime precisamente assim; mas é o

que se depreende do seu escrito, o que se deduz da sua

pretensão. Nem se julgue que essa idéia fixa é

propriedade de Guyau; pelo contrário, ela é hoje bem

comum de todos s franceses mais ou menos cultos. Já

um pouco desesperançados da revanche pelas armas,

afagam a ilusão de uma revanche pelas letras! É justo

não perturbá-los no gozo de tão belo sonho.

Entretanto, ponde de parte a ilusão que o obceca,

devo observar que o livro do nosso autor não contribui

bastante para elevar os créditos científicos da França.

Uma questão, como a que ele empreendeu resolver, não

é com frases e declamações que se chega a elucidá -la, se

é que ela, depois de tão batida e tantas vezes manu -

seada, ainda contém algum atrativo.

Anteriormente, e dentro mesmo dos dois últimos

decênios, religião do futuro já tinha sido tratada por

vários escritores. Assim, La Religion, de Vacherot

(1869), La Religion de l’Avenir, de Laurent (1869), Der

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alte und der neue Glaube, de Strauss (1872), Die

Religion im Zeitalter Darwin’s, de Heinrich Lang

(1873), Die Selbstzersetzung des Christenhums und die

Religion der Zukunft, de E. von Hartmann (1874) –

todas estas obras – sem falar de outras, procuraram dar

solução, cada uma a seu modo e sob o seu ponto de

vista, ao mesmo problema de que se ocupa o livro que

analisamos.

Estava, pois, determinado pela própria natureza

do assunto que o autor da Irréligion de l’Avenir nada

trouxesse de novo e original. Nada trouxe realmente. É

certo que a sua tese destoa da de Laurent, da de Lang e

da de Hartmann; mas bem pouco se distingue da tese de

Vacherot, que ele discute com muito mais retórica,

porém também com muito menos talento.

A pretensão de novidade da parte de Guyau não

pode ser mais infundada. “É essencial – diz ele – não se

enganar sobre esta irreligião do futuro, que nós

quisemos opor a tantos trabalhos recentes sobre a

religião do futuro. Pareceu-nos que esses diversos es-

critos repousavam sobre muitos equívocos. Primei-

ramente, confunde-se a religião propriamente dita, ora

com a metafísica, ora com a moral, ora com ambas

reunidas, e é em virtude dessa confusão mesma que se

sustenta a serenidade necessária da rel igião”.

Aqui há um acerta falta de sinceridade. Além de

Vacherot, cujo livro também foi consagrado à religião

do futuro, no intuito de mostrar que há de extinguir -se

com o tempo o sentimento religioso, que para ele

constitui um estado psicológico provisório, e não

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perene, o ponto de vista de Strauss em sua Velha e nova

fé é exatamente este mesmo.

Há somente uma diferença, que aliás não altera a

identidade: é que para Vacherot o sub-rogado da religião

será a filosofia com o seu absoluto e o seu infinito, ao

passo que para Strauss serão as ciências naturais, cujos

resultados vão pouco a pouco revelando os segredos do

universo, o qual existe por si só, cheio de vida e de

inteligência, independente de um Deus.

Para que, pois, essa pacholice de vir “submeter a

questão a um novo exame” quando tudo que diz, é coisa

velha, e afinal a questão não adianta um passo?

A anomia religiosa, o individualismo religioso,

de que fala o fofo crítico, está contido, intimamente

contido na doutrina dos dois escritores há pouco

mencionados.

Porquanto desaparecida a religião, cujo domínio

na alma humana, como pensa Strauss, é semelhante ao

dos caboclos na América, que de ano em ano vai

recuando e diminuindo pela conquista e ocupação da

raça branca – é tão inconcebível que ela continue a

inspirar e dirigir as ações do homem, como é

inconcebível que os caboclos, depois de extintos,

continuem a ocupar este ou aquele pedaço de terra

americana. Um completo estado, por conseguinte, de

anomia ou de falta de lei religiosa.

Não é só isto. A idéia do individualismo

religioso, como ausência de qualquer religião, mas ainda

assim operando e influindo religiosamente, verdadeira

ou falsa, esta idéia vem de mais longe. Foi um poeta

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alemão, educado na filosofia de Kant, foi Schiller, quem

primeiro a formulou nos seguintes versos:

Welche Religion ich bekenne? Keine von allen, Die Du mir nenmst. Und warum keine? Aus

Religion (*)

Já se vê que a obra de Guyau, bem examinada,

não apresenta um só traço de originalidade. Além do

conceito esdrúxulo da sociologia, que a golpes de

martelo ele fez entrar como um prego no âmago de

religião, não há mais nada que produza a impressão da

descoberta(8)

.

Durante a leitura do livro, sentimo-nos por vezes

obrigados a parar a perguntar a nós mesmos, se já não

lemos coisa igual em outra parte; tal é a riqueza de

idéias alheias que, não sei se consciente ou incons -

cientemente, o autor dá como próprias.

Mas o pior é que ele, convencido como se acha de

que o seu trabalho vem suprir uma lacuna, se não antes

fazer uma revolução, é o primeiro a não saber ao certo o

assunto de que se trata. Neste estado de vacilação,

cambaleia algumas vezes e cai em contradições.

Eis uma delas: “Não é por um abuso de

linguagem – diz Guyau – que Spencer, por exemplo, dá

o nome de religião a toda especulação sobre o

incognoscível, donde lhe é fácil deduzir a perpetuidade

(*) Que religião professo? – Nenhuma das que você indica. E por que razão, nenhuma? – Por religião. (T. do E.).

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da mesma religião, assim confundida com a

metafísica?”(9)

Primeiramente é bom notar que esta confusão da

religião com a metafísica não é própria de Herbert

Spencer.

O autor não devia ignorar que a idéia de perfeita

identidade entre os dois sentimentos, formando ambos

uma só necessidade humana, pertence a Schopenhauer(10)

.

Mas seja de quem for, o certo é que nas linhas

citadas Guyau repele essa identificação. Entretanto isto

não o inibe de, oito páginas adiante, asseverar o

seguinte: “No sentido filosófico da palavra, só é

religioso aquele que investiga, que pensa, que ama a

verdade”.

Porém isto quer dizer outra coisa senão que, no

sentido filosófico da palavra, só é religioso quem é

filósofo, quem é metafísico em qualquer grau? Não,

decerto; a contradição é portanto incontestável.

Apreciado com justiça, o livro todo é um ato de

contradição. Porquanto, se o autor está convencido da

morte inevitável de todas as religiões, se já vem perto,

muito perto, a futura anomia religiosa, que há de reinar

sobre as ruínas das velhas crenças – para quem foi enfim

que escreveu o seu volumaço? – Quem é que pode ter

prazer ou interesse em lê-lo? O povo inculto não abri-

lo-á; e a pequena parte culta do mundo civilizado só

pode ser-lhe indiferente ou hostil.

Nada existe por conseguinte de mais burlesco no

gênero do que as palavras iniciais da obra de Guyau

combinadas com os resultados a que ela chega. “A

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gênese das religiões – diz o crítico – tem uma impor-

tância maior que qualquer outra questão histórica: não é

somente a verdade de fatos e acontecimentos passados,

que aí se acha empenhada; é o valor de nossas idéias e

de nossas crenças atuais. Cada um de nós tem alguma

coisa em jogo neste debate”.

É um garganteio de velho romantismo religioso.

A gênese das religiões, mais importante que outra

qualquer questão histórica, é simplesmente uma frase de

estouro para prender a atenção do leitor. Quando Guyau

afirma que cada um de nós tem alguma coisa em jogo

neste debate, não se lembra que no meio desse nós vai

muita gente, para quem a questão da origem das

religiões não envolve interesse de ordem alguma.

Ele mesmo, o grão profeta da irreligião ou a-

religião do futuro, que também faz parte daquele plural,

dado o caso de ser sincero não pode achar no assunto

outro atrativo, senão o atrativo comum a todos os

assuntos científicos, e como tal, tanto lhe importa ocu-

par-se da gênese das religiões, quanto lhe importaria,

por exemplo, tratar da gênese das estrelas, das

montanhas, ou das minas de carvão-de-pedra. O inte-

resse é um só.

Como se vê, o autor francês cedeu a uma ilusão

de que Hartmann mesmo não se mostrou isento. Em seu

precioso opúsculo – Die Selbstzersetzung des Chris-

tenthums – o filósofo alemão também começa por uma

proposição, que provoca sérias dúvidas. Ele diz com

efeito: “Bem raras vezes tem havido uma quadra mais

irreligiosa do que a nossa, e todavia as questões reli-

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giosas não têm muitas vezes agitado uma época mais

profundamente do que vemos nos nossos dias”.

A primeira asserção é verdadeira; mas a segunda

é falsa. Por nada menos se distingue a época presente do

que por uma paixão particular pelos chamados pro -

blemas religiosos. Para que uma quadra se diga

religiosamente agitada, não basta que meia dúzia de

teólogos e igual número de filósofos, ainda que sejam

da estatura de um Hartmann, escrevam grandes ou

pequenos livros sobre o assado, o presente e o futuro da

religião. Faz-se preciso muito mais do que isso.

Faz-se preciso que o público tome ao sério tais

questões, que leve o seu entusiasmo por elas até o

sacrifício, até o martírio. Mas onde é que este fenômeno

se dá nos dias atuais? Qual é no tempo hodierno, já não

digo o jovem inexperiente, mas o homem feito mesmo,

que ponha em jogo a favor da religião um cabelo

branco, sequer, dos que começam a encanecê-lo, e que

aliás ele bem quisera ver arrancados, para parecer

menos velho do que realmente é?

Não é mais cabível nem desculpável qualquer

ilusão neste sentido. Um dos grandes vultos da escola

crítica de Heidelberg. Adolf Hausrath, escreveu estas

palavras notáveis, que julgo adaptadas ao nosso tema:

“Está determinado pela própria ordem da vida

espiritual que os seus órgãos não sejam todos aptos ao

mesmo tempo, nem todos em igual medida, para

apreender os fatos do mundo externo e sujeitá-los ao

trabalho interior. Às épocas de recolhimento, em que

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repousaram os problemas práticos, sucedem outras, nas

quais o espírito só a eles se consagra.

A gerações inteiras aparece como o alvo supremo

da vida realizar o ideal artístico, andar no encalço da

verdade teorética, estabelecer claramente as regras do

pensamento e da ação – e ao seguinte decênio já se

mostra insípido e indiferente tudo o que não tem uma

relação imediata com a vida, com as instituições do

Estado, com a disciplina jurídica das realidades

existentes.

É difícil dizer, como se opera uma tal mudança.

Ela se prepara em ocultos laboratórios, é impelida para

adiante pelos acontecimentos, que ela mesma produziu,

arrasta consigo as pessoas, que também por sua vez

reagem poderosamente sobre ela. Deste modo sucede

que um povo de pensadores torna-se um povo de

políticos, uma nação de conquistadores, uma nação de

industriais, e que a um país nada parece mais longínquo,

mais estranho e indiferente, do que aquilo que uma

geração antes absorvia toda a sua atividade”(11)

.

Exatamente. Mas ninguém dirá com acerto que a

época vigente, ou os dois a três últimos decênios, que

podem ser designados como tal, se caracterizam por

qualquer sinal de verdadeiro interesse religioso. Pelo

contrário, ela é uma daquelas, de que fala Hausrath, nas

quais os problemas práticos tomaram a frente dos

especulativos, A preocupação da vida, que se manifesta

em todos os domínios por um sôfrego movimento, por

um trabalho incessante, atirou para a beira dos túmulos,

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a preocupação da morte, com os seus associados: Deus,

a imortalidade, o céu e o inferno.

Cada tempo tem o seu demônio. O demônio do

nosso tempo não é religioso, mas político e social, se é

que não basta dizer – político – para exprimir uma e

outra coisa.

Devo aqui, entretanto, prevenir um engano. Não

se pretenda deduzir deste meu modo de ver que eu esteja

de acordo com a tese positivista da provisoriedade da

religião. Há dezoito anos que protestei contra ela,

combatendo as idéias de Vacherot, cuja filiação no po-

sitivismo não me passou então desapercebida: demons-

trei-a cabalmente(12)

.

E hoje não tenho opinião diversa, continuo a

pensar da mesma formaN

. O que porém não admito, é

que se tome, como pretexto para fazer livros, o falso

pressuposto de que a nossa época, ainda que com-

pletamente ímpia, aprecia em alta escala o estudo

genético das religiões, que se qualifica de um dos mais

importantes, porque vem determinar “o valor de nossas

idéias e de nossas crenças atuais”. Isto não tem senso.

É claro, pois, que o livraço de Guyau, além do

mais, se ressente de uma absoluta falta de acomodação e

correspondência às necessidades do tempo. Quem o lê,

quem tem a coragem de lê-lo com atenção, não fica mais

nem menos instruído, mas acaba enfastiado, e a única

impressão que lhe resta, depois da enfadonha leitura, é

que o autor não passa de um genial borrador de papel ;

fenômeno que aliás não é raro entre os escritores da

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França hodierna. Penetremos todavia um pouco mais no

interior da obra.

IV

O escritor francês, tomando ao sério a tarefa

inútil, que se impôs, começa por passar em revista a

doutrina de diversos autores sobre a gênese religiosa.

Max Mueller, E. von Hartmann, E. Renan, H. Spencer –

todos lhe fornecem ocasião e motivo para uma refutação

em regra, isto é, para alargar demasiado as proporções

do seu livro.

É tal o abuso de detalhes e a abundância de

episódios, de que o livro se acha entumecido, que a

idéia central do autor, como já fiz notar, não se deixa

bem aperceber. Há no volume um grande número de

passagens, em que ela poderia dizer como Voltaire: on

m’étouffe de fleurs. E o leitor não se sente menos

asfixiado de frases banais e exalações pedantescas.

Em geral Guyau produz a impressão de um desses

maus cavaleiros, que têm um porte garboso e um bonito

sofrear de corcel. Mas ninguém se iluda: ao primeiro

arranco do animal, tombam por terra como um fruto

podre.

O autor da Irréligion também se distingue por um

certo garbo e sabe perfeitamente acabar os seus

períodos. Porém é só isso. Quando entra a criticar e

filosofar, que para espíritos da sua têmpera são dois

movimentos bruscos, a queda é infalível.

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Mal se pode conter o riso diante da arrogância do

francês, que pretende passar um traço em tudo que de

melhor até hoje se tem escrito sobre a matéria, e dar a

verdadeira fórmula para a solução do problema. Esta

ousada pretensão, por si só, provoca a antipatia contra o

livro e seu autor; tanto mais, quanto é exato que esse

livro não encerra novidade nem verdade alguma – ou, o

que tem de novo é coisa ruim, e o que tem de verdadeiro

é coisa velha – para ainda servir-me da bela expressão

de Lessing, de que já uma vez me aproveitei em ocasião

análoga.

A ciência não pode ser semelhante à teia de

Penélope, que desmanchava durante a noite o que fizera

durante o dia. A crítica científica não deve tomar para si

o trabalho noturno da rainha de Ítaca. A sua função –

sou o primeiro a reconhecer – é principalmente

destrutiva; mas isto mesmo tem seus limites. Só se deve

destruir por necessidade; e é uma prova de insensatez a

destruição por luxo.

Os críticos franceses atuais, sobretudo quando se

ocupam de obras alemãs, não raras vezes lembram a

fúria de Napoleão III em derrubar quarteirões inteiros de

casas novas em Paris, para reedificá-los e aformoseá-los

melhor. Mas o que era possível ao déspota, não o é

igualmente ao crítico. Não se destroem teorias mais ou

menos firmes e assentadas com a mesma facilidade com

que se derrubam edifícios.

Guyau dividiu a sua obra em três partes, que se

intitulam: primeira, A gênese das religiões nas socie-

dades primitivas; segunda, Dissolução das religiões nas

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sociedades atuais; terceira, A irreligião do futuro. Cada

uma destas partes subdivide-se em várias seções,

conforme os diversos pontos de vista da análise do

autor.

É assim, por exemplo, que a primeira parte se

compõe de três capítulos. A física religiosa, a metafísica

religiosa e a moral religiosa, recortando-se cada um

deles por sua vez em diferentes assuntos.

A idéia de cada física religiosa, o autor tirou-a

visivelmente da física social do positivismo. Há

somente a lastimar que não levasse mais longe o

paralelo, e que assim como Comte nos fala de uma

estática e uma dinâmica social, Guyau não nos falasse

também de uma estática e uma dinâmica religiosa.

Não basta mostrar – se tal demonstração é

possível – como nascem as religiões; é preciso também

mostrar, como elas se desenvolvem. Entre a sua gênese

e a sua dissolução medeia o imenso período do seu

desenvolvimento, que é sem dúvida o mais importante

para o historiador e o filósofo.

Nem se diga que na passagem de uma física à

metafísica e à oral religiosa já existe um certo processo

evolutivo. Não há tal. Esses três conceitos não repre-

sentam fases sucessivas, mas momentos que coexistem

na prática de qualquer religião.

A física religiosa, que primitivamente se mani-

festa no feitichismo, no sabeísmo, e em todas as outras

formas rudes de adoração à natureza, continua a formar

o corpo do sentimento religioso em todos os graus da

cultura humana.

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O protestante ortodoxo dos nossos dias, que

acredita na sua bíblia, que nela nutre a sua crença, ainda

está dentro dos limites de uma física religiosa. Dir -se-á

talvez que o que ele aí adora, não é a parte exterior e

material do livro, porém a força oculta da palavra

divina, que este livro encerra(13)

.

Mas também o homem primitivo, que se curva

diante do seu fetiche, não o faz pelo fetiche mesmo,

porém somente pelo poder misterioso que lhe atribui; de

modo que no ato mais grosseiro da física religiosa já se

deixa ver uma tal ou qual concepção metafísica.

Aqui são dignas de menção estas palavras de

Schopenhauer: “Os materialistas se esforçam por mos-

trar que todos os fenômenos, até os espirituais, são

fenômenos físicos. Com razão; somente eles não vêem,

por outro lado, que tudo que é físico, é ao mesmo tempo

metafísico”.

Um dos erros capitais de Guyau consiste pre-

cisamente em procurar separar, como independentes um

do outro, os elementos físico e metafísico da religião.

Com uma ingenuidade infantil ele chega mesmo a

lisonjear-se de havê-lo conseguido. É assim que ousa

dizer no final do primeiro capítulo da gênese:

“Acabamos de ver que o nascimento da religião

não é uma mudança de vista teatral no seio da natureza,

que tudo a prepara entre os animais superiores, que o

homem mesmo aí chega gradualmente e sem abalo.

Nesta gênese rápida das religiões primit ivas não tivemos

necessidade de introduzir as idéias de alma, espírito,

infinito, causa primeira, nem mesmo nenhum sen-

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timento metafísico. Essas idéias se desenvolveram

posteriormente, elas são mais um efeito do que uma

causa das religiões...”(14)

.

Há nisto completo engano. Que Guyau tenha

apostado consigo mesmo não introduzir nas primeiras

cinqüenta páginas do seu livro as idéias de alma,

espírito, infinito, causa primeira e quantas mais lhe

hajam parecido dignas de excluírem-se, e na sua própria

opinião tenha ganho a aposta – nenhuma dúvida. Mas a

questão é outra: saber se realmente essas idéias foram

excluídas, ou se mau grado do autor entraram por

alguma fenda, por algum interstício da prisão, em que

ele emparedara a sua teoria.

A segunda hipótese é a verdadeira. Eu abro o

livro ao acaso em uma das páginas da primeira parte, e

leio as seguintes linhas:

“Quem de nós não tem por vezes perguntando a si

mesmo, se uma vida poderosa e oculta não circula, sem

que o saibamos, nas grandes montanhas levantadas para

o céu, nas árvores imóveis, nos mares eternamente

agitados, e se a natureza muda não pensa em alguma

coisa de desconhecido para nós? Pois que, ainda hoje,

nos achamos neste pé, crê-se porventura que ser-nos-ia

fácil convencer de seus erros um desses homens

primit ivos, que creram sentir palpitar aquilo que os

alemães chamam coração da natureza? Depois de tudo,

este homem era destituído de razão?

Tudo vive em torno de nós; nada existe

inanimado senão em aparência, e a inércia é apenas uma

palavra; a natureza é uma tensão, uma aspiração

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universal. Só a ciência moderna pode medir mais ou

menos os graus desta atividade espalhada em tudo,

mostrar-nos que ela é aqui difusa, ali concentrada e

consciente, fazer-nos conhecer a diferença que separa os

organismos superiores dos organismos inferiores, e estes

dos mecanismos das reuniões rudimentares da matéria.

Para o homem primitivo, a quem todas estas

distinções, todas estas graduações são impossíveis, só

há uma coisa evidente: é que a natureza inteira vive; e

ele concebe naturalmente esta vida sobre o tipo da sua,

como acompanhada de uma consciência, de uma

inteligência tanto mais estupenda, quanto mais mis -

teriosa; ainda uma vez ele é homem e humaniza a

natureza; ele vive em sociedade com outros homens, e

estende a todas as coisas as relações sociais de amizade

e inimizade”.

Nada mais claro. Essa vida que se adivinha

existir em toda a natureza, e que já o homem primit ivo

adivinhava – essa vida que permanece eternamente in-

sondável – é uma idéia puramente metafísica. O homem

primit ivo já a possuía.

Mas o autor ainda vai adiante. “Daí a divinizar a

natureza – continua ele – há apenas um passo... Quem

diz um Deus, diz um ser vivo e forte, particularmente

digno de temor, de respeito ou de reconhecimento. Já

temos a noção da vida; nos é mister agora a de poder,

que só é capaz de infundir respeito no homem primit ivo.

Esta noção não parece difícil de obter, porque aquele

que coloca vida e vontade no fundo da natureza, não

pode tardar em reconhecer em certos grandes fenômenos

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a manifestação de uma vontade muito mais poderosa que

a dos homens, e por conseguinte mais terrível e mais

respeitável.

Em resumo, a concepção mais simples e mais

primit iva que o homem pode formar da natureza, é ver

nela, não fenômenos dependentes uns dos outros, mas

vontades mais ou menos independentes e dotadas de um

poder extremo, podendo agir umas sobre as outras e

sobre nós”(15)

.

Eis aí. Para quem sabe ler entre as linhas, tudo

isso que Guyau atribui ao homem primit ivo, importa

reconhecer que ele já tem confusamente as idéias da

alma, espírito, etc. E o que é um poder extremo, de que

são dotadas as vontades animadoras e diretoras da

natureza, senão um poder infinito?

Não teria peso algum a consideração de que a

idéia do infinito na cabeça do selvagem é muito

diferente do que ela é na cabeça do homem culto.

Porquanto, se ainda hoje os espíritos superiores mesmos

não são capazes de isolar completamente essa idéia dos

dados da imaginação, como sê-lo-ia o homem primit ivo.

É bem certo que o pensamento hodierno tem uma outra e

muito mais diferenciada idéia do infinito, porém sempre

uma idéia mais negativa do que positiva, justamente

como a do selvagem.

Para este o infinito é uma coisa, que ele mal pode

imaginar; para o homem culto uma coisa, que ele mal

pode conceber. O selvagem se espanta de tudo que não

sabe nos moldes da sua imaginação; o homem culto já

não tem motivo para tal espanto, pois aquilo que

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ultrapassa as proporções de uma imagem, ele pode

apreender sob o esquema de um conceito;

A diferença é digna de nota. Nós outros, homens

de hoje, podemos perfeitamente representar-nos na

imaginação polígonos de três até cinco ou seis lados; daí

para cima já se torna dificílima a figuração interna; de

modo que, quando chega-se ao decágono ou

dodecágono, não há mais nada de imaginativo; só fica

no espírito o conceito do polígono; a figura desa-

pareceu. Mas não pasmamos por isso, como sucede com

o selvagem, em quem o número excedente de dez já

produz a impressão da miríada, do inumerável do

imensamente grande e horroroso...

Nos pedaços acima citados, que não deixam de

ser bonitos, não se faz somente notar uma tal ou qual

inconseqüência da parte do autor; há também aqui e ali

um ou outro testemunho de verdadeira leviandade

francesa. É assim que ele nos fala de alguma coisa “que

os alemães chamam coração da natureza”. Mas onde

achou isto? Por que motivo especial adjudica aos

alemães o invento dessa expressão?

Se ela fosse realmente uma criação germânica, a

íngua atestá-lo-ia, e os dicionários dariam conta da

palavra – Naturherz – visto que não se trata de uma

idéia deste ou daquele alemão, porém dos alemães; uma

idéia saída da mesma fonte, donde saíram outras, que de

fato lhes pertencem como – Weltanschauung, Moment,

Ding and sich, etc. etc. Mas uma tal palavra não existe.

Só Guyau é quem sabe desse alemanismo. O francês é

impagável!...

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Cabe aqui ainda observar que a teoria de um

período pré-humano da religião, existindo em germe nos

animais superiores, é legítima darwínica. Há vinte e seis

anos, em um belo artigo sobre Darwin’s Auffassung des

geistigen und sittlichen Lebens des Menschen(*), dizia

Júlio Frauenstaedt:

“O sentimento de devoção religiosa, que é um

misto de dependência, veneração, reconhecimento, te-

mor e esperança, só pôde aparecer, quando as facul-

dades intelectuais e morais já se tinham desenvolvido

até uma certa altura. Não obstante, nós vemos uma

espécie de aproximação deste estado espiritual no

íntimo amor de um cão para seu senhor, associado a

uma completa subordinação, alguma coisa de temor, e

talvez ainda outros sentimentos. Um cão olha para o seu

dono de certo modo como para um Deus...

Destarte, segundo Darwin, está provado que até a

fé religiosa não separa radicalmente o homem do

animal, que este, pelo contrário, já apresenta um esboço

de religiosidade. A fé religiosa nos selvagens só bem

pouco se distingue do sentimento de dependência e

devotamento observado nos animais(16)

.

Há no livro de Guyau algumas páginas, que são

apenas variações deste velho tema.

(*) A concepção darwinista do espírito e a vida moral do homem. (T. do E.).

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V

O autor francês tem a pretensão de haver es-

tabelecido um novo ponto de vista no modo de apreciar

e resolver o problema religioso. Mas o seu engano é

manifesto. As palavras de Júlio Froebel, que me ser -

viram de epígrafe, revelam claramente, quanto essa

pretensão é infundada.

Com efeito: a tese racionalista de que a co -

munhão e publicidade dos exercícios religiosos pertence

a um grau atrasado da civilização humana, e que o

homem de cultura superior satisfaz por si só a sua

religiosidade, se ele ainda a tem – Froebel considera em

parte um erro, e em parte um subterfúgio da indiferença,

que procura retirar-se das vistas da comunhão(17)

.

Não há dúvida que o que só se combate, é o

pretendido individualismo religioso, do qual Guyau faz

tanto alarde; e o robusto pensador alemão não podia ir

de encontro a uma doutrina fantástica; só podia

impugnar uma teoria, uma opinião existente.

Mas não se limita a isto. Ele diz positivamente:

“É um grande erro, muito espalhado em nosso tempo, e

que aliás se tem na conta de uma vista mais profunda da

marcha da história, supor que a humanidade se

encaminha para um estado a-religioso (religionlos).

Este modo de ver seria errôneo, ainda quando a religião

não fosse mais do que a metafísica da grande massa dos

homens, incapaz de reflexão filosófica.

Porquanto nem é destino do gênero humano

compor-se todo de filósofos, nem a necessidade

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metafísica pode extinguir-se naqueles, que filósofos não

são, e tampouco alimentar-se com os resultados do

materialismo científico, que apenas toca na superfície

das coisas, admitindo mesmo que esses resultados

pudessem ser acessíveis à inteligência comum(18)

”.

Não parece uma prévia refutação do livro de

Guyau? É inegável. Acresce porém que, combatendo a

idéia de uma religião do futuro, Froebel d irigiu-se

principalmente contra Hartmann; e alguns pontos fracos

da doutrina deste filósofo, que o francês critica, já

tinham sido, dez anos antes (1878), apontados pelo

autor alemão.

Como se vê, a admissão de um estado ulterior da

humanidade, que se distinga de todos os precedentes

pela completa eliminação do sentimento religioso, é

uma tese desacreditada; tanto mais, quanto é certo que

ela não se apóia num regular processo lógico de

observação e indução.

Efetivamente: os seus sectários não dispõem, nem

podem dispor de dados suficientes para traçar a lei do

acabamento de todas as religiões. É certo que a vid da

alma vai sendo cada vez ais sobrepujada pela vida da

inteligência e as necessidades religiosas vão em

constante decrescimento. Mas é preciso ponderar, como

diz Hartmann, que aí, em parte, confunde-se um

passageiro fenômeno do tempo com uma duradoura

tendência evolucional, e, em parte, interpreta-se

inexatamente esta mesma tendência, até um certo ponto

concessível, na sua reação sobre a religiosidade e o

sentimento em geral(19)

.

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Os apóstolos da futura anomia religiosa não têm

o direito de inferir o seu advento do fato ocasional e

transitório da descrença que lavra em todos os domínios

do espírito na época vigente. É um fenômeno que se tem

muitas vezes repetido no decurso da história. A única

indução cabível seria atribuir ao senso religioso um

desfalecimento periódico; nunca, porém, condená-lo a

uma total extinção.

O que Guyau chama dissolução das religiões nas

sociedades atuais, que corresponde à Selbstzersetzung

des Christenthums(*) de Hartmann, com a notável

diferença de que o filósofo alemão limita-se ao cris-

tianismo, e o francês refere-se indistintamente a todas as

religiões em todas as sociedades hodiernas, posto que

não se tenha ocupado, como o título do livro fazia

esperar, do atual movimento religioso dos povos do

Oriente, o que Guyau assim qualifica é uma série de

fatos, que constituem a sintomatologia de uma velha

doença moral, cujo aparecimento sempre se dá com

intermitências seculares.

Eu não sei que grande distância medeia entre o

ponto de vista do homem do povo, que observando um

terremoto, uma inundação, ou a passagem de um

cometa, conclui logo que o mundo vai acabar-se, e o

ponto de vista de certos filósofos, que diante da

incredulidade e da indiferença religiosa dos nossos dias,

induzem como lei o fim da religião. O erro no primeiro

não é maior do que no segundo caso.

(*) - a autodissolução do cirstianismo. (T. do E.).

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Além disto, releva advertir que, segundo atesta a

história, todas as épocas malsinadas de impiedade se

caracterizam também por excessos de superstição. São

duas ordens paralelas de fenômenos diferentes, dos

quais se pode tirar, com igual direito, conclusões intei-

ramente opostas.

“É uma infelicidade dos homens que a razão

mesma afinal lhes causa enjôo e a ciência torna -se

fastidiosa. As imagens e idéias fantásticas voltam de

novo e agradam, porque têm o atrativo do maravilhoso.

Acontece no domínio da filosofia o que aconteceu no

domínio da poesia: o público fatigou-se da leitura de

romances inteligíveis e desde algum tempo voltou aos

contos de fadas”.

Esta observação de Leibnitz – diz Karl Frenzel –

pode ser feita em qualquer época, em que o curto das

ciências naturais, da filosofia materialista e da arte

realista, provoca a contradição nas almas melancólicas,

nas cabeças sonhadoras, nos corações descontentes.

O século de Voltaire, de Diderot e La Mettrie, foi

também o de Casanova e Cagliostro, de Swedenborg e

Saint-Germain. A quadra na qual vivemos não é diversa

de todas as mais em que a ilustração intelectual e a

crença nos milagres existem sempre ao lado uma da

outra, e a força do entendimento desperta por sua

parcialidade a força da fantasia.

A sociedade romana dos últimos anos da

república, do tempo do império, e mesmo dos primeiros

séculos da era cristã, ainda fornece uma prova do fato

que apreciamos.

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Nas assembléias populares e nas discussões do

forum, Cícero ousava negar o inferno, o Cérbero e os

Manes. Ovídio cantava e ridicularizava as metamorfoses

dos deuses. O poema de Lucrécio, que bania os numes

deste mundo visível e se esforçava por livrar os homens

de qualquer temor e respeito diante do hipersensível e

da morte, formava o estudo e o tácito entusiasmo dos

espíritos cultos de então. O cauteloso Virgílio não se

atreve a proferir o nome do temerário poeta, mas julga -o

feliz, por ter conhecido as causas das coisas: felix qui

potuit rerum cognoscere causas. Exatamente como o

Système de la nature andava de mão em mão na

sociedade parisiense do século passado.

Porém esses romanos que em nada criam –

continua Frenzel – que julgavam pueril, deixar-se

amedrontar do inferno e do seu Cérbero tripícite, eram

os mesmos que interrogavam ao astrólogos ascerca do

futuro; regulavam o horóscopo dos recém-nascidos e

queixavam-se de filtros e feitiçarias. A qualquer amante

da literatura clássica são bem conhecidos os versos de

Horácio contra a feiticeira Canídia. Como irrompe de

todas as maldições e esconjuros do poeta o íntimo e

indeterminado terror do feitiço!

Tácito está cheio de milagres, profecias e

inauditos fenômenos da natureza. Roma se achava

obstruída de padres de Ísis e Serápis, de taumaturgos de

todo gênero. A história de Apolônio de Tiana e a

veneração quase divina, que lhe tributavam igualmente

grandes e pequenos, deixam atrás tudo o que se conta de

Swedenborg e de Mesmer(20)

.

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É a mesma idéia de Th. Mommsen, quando diz:

“Superstição e descrença, que são refrações diversas de

um só fenômeno histórico, andavam também associadas

no mundo romano de então, e não faltavam indivíduos,

que em si reuniam ambas, que com Epicuro negavam os

deuses, e todavia oravam e sacrificavam diante de

qualquer capela...

Quando o Senado (no ano 50 antes de Cristo)

ordenou a destruição dos templos de Isis erigidos dentro

dos muros que cercavam a cidade, nenhum trabalhador

ousou começar um tal serviço e o cônsul Lúcio Paulo

deveu mesmo dar o primeiro golpe do acha. Podia-se

apostar que, quanto mais devassa era a prostituta

romana, com tanto mais piedade adorava a sua Ísis(21)

.

Entretanto qual foi o resultado? Nem a descrença

nem a superstição mataram os velhos deuses. Um Guyau

daquele tempo teria dito: a religião está morta; é a

filosofia, são os sistemas metafísicos, que devem ocupar

o seu lugar, conforme o gosto e disposição dos

indivíduos. Porém assim não sucedeu. As divindades

continuaram a banquetear-se no Olimpo; mais eis que de

repente, como diz Heirich Heine, apareceu cansado e

anelante um judeu pálido e ensangüentado, com uma

coroa de espinhos na cabeça e uma cruz de pau sobre os

ombros, e atirou a cruz em cima da mesa do banquete:

as taças de ouro tremeram, os deuses emudeceram e

descoraram, e cada vez se tornaram mais pálidos, até

que enfim desapareceram na névoa...

É difícil afirmar que a revolução operada por

Jesus seja um intermezzo, como tantos outros, na vida

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religiosa da humanidade. Em todo caso, é altamente

provável que, desaparecendo o cristianismo, não será a

filosofia e a ciência, que virá substituí-lo.

Há para as idéias uma espécie de metempsicose,

em virtude da qual elas tomam, no decurso do seu viver

histórico, novas formas e novos nomes, ao passo que

deixam de lado, como destituídas de espírito, as velhas

formas e instituições anacrônicas. O cristianismo mesmo

deve a sua existência a essa metempsicose.

Não é muito, pois, que dele venha também a

brotar um novo ramo, mais fresco e verdejante, capaz de

dar as flores e os frutos, que ele já não está em

condições de fornecer.

Não é fácil apontar o motivo, pelo qual o

cristianismo não possa comportar um depuramento, uma

clarificação a um avanço, por cujo efeito se adapte a

tornar-se a religião de um novo período cultural. A

transição para isso necessária não é um rompimento da

continuidade histórica, mas um antecedente da evolução

logicamente fundada.

Os indícios da dissolução deste sistema religioso

tão intuitivamente expostos por Hartmann provam a sua

queda, como os fenômenos da metamorfose de um inseto

podem provar a morte do animal.

VI

Passo a ocupar-me dos últimos pontos da minha

crítica; e parece que vou acabar por onde devia ter

começado.

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O grandioso título de Gênese das religiões nas

sociedades primitivas, com que se decora a primeira

parte do livro de Guyau, é por si só suficiente para fazer

compreender que aí não se trata de um estudo sério, não

se trata de um nobre esforço de indagação consciente,

mas de um produto ordinário da bombástica francesa;

O homem é de um desplante admirável. Em-

preende tratar da gênese das religiões, e não vê que tem

pela frente uma questão insolúvel. Com efeito: quem

fala de uma tal gênese, só pode compreendê-la, ou no

sentido psicológico de uma pesquisa das causas e do

modo por eu surge o sentimento religioso, ou no sentido

histórico de uma determinação da época, bem como do

grau de cultura, em que a religião aparece.

Mas ambas as posições do problema são

igualmente inacessíveis. Se é um trabalho improfícuo

pretender assistir ao primeiro ímpeto, ao primeiro vôo,

que atualmente a alma humana ensaia em demanda do

céu, não o é menos – e talvez até que seja mais – fazer-

se contemporâneo dos povos primitivos e observar a

origem das suas crenças e das suas superstições.

Os que se têm metido em semelhante empresa, só

têm chegado no melhor dos casos a longínquas pro -

babilidades e vaguíssimas conjeturas. Nada existe até

hoje definitivamente assentado, e há motivos para crer

que não existirá jamais.

A gênese das religiões, conforme Guyau pretende

explicá-la, tem o defeito capital de dar como líquido e

incontestável aquilo que constitui o fundo mesmo da

questão. Porquanto é lícito perguntar: de que religiões aí

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se cogita? De todas elas, sem dúvida. Mas todas elas

terão a mesma gênese? Quem foi que já mostrou essa

identidade? E dado mesmo que ela exista, será possível

mostrá-la?

É preciso que nos convençamos uma vez por

todas: o conceito de uma gênese das religiões é um

daqueles, de que fala Kant, que formando uma síntese,

devem ter-se na conta de palavras sem sentido, se tal

síntese não pertence à experiência. Ora, um

conhecimento empírico das religiões pode somente ser

obtido dentro dos limites da história; porém a gênese

delas fica sempre além desses limites. Qualquer

conceito, pois, que se forme da genética religiosa, não

passa de um flatus vocis, a que nada corresponde de real

e positivo.

Suponhamos que Guyau, tratando de resolver a

questão proposta, em vez de se entregar a vagas

generalidades, tomasse por objeto das suas indagações

uma religião histórica, o judaísmo por exemplo, e

procurasse mostrar a sua origem. Tê-lo-ia conseguido?

Indubitavelmente, não.

Para limitar-me a alguns pontos: antes de

professar o monoteísmo, os hebreus tinham sido

politeístas? Como se originou, quer uma, quer outra

destas formas religiosas? O jeovismo, que marca um

grau superior no desenvolvimento da religião hebréia, já

estava contido na mente dos patriarcas, ou foi um

resultado da influência egípcia?

São questões que ainda esperam uma solução

decisiva. Entretanto elas se agitam num terreno muito

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menos escabroso do que a questão da gênese das

religiões em geral.

Pode-se dizer da religião o que Guilherme de

Humboldt disse da língua: “Como um verdadeiro e

inexplicável milagre, ele rebenta da boca de uma nação,

e, como coisa não menos pasmosa, do balbuciar de uma

criança”. É igualmente digno de menção este conselho

de Ewald: “Quanto mais difíceis de conhecer são os

fatos espirituais de remotíssimos tempos, tanto mais

deveríamos acautelar-nos de juízos precípites e

infundados, e com tanto maior diligência reunir as

verdadeiras faíscas de plausível conhecimento, que

ainda hoje podemos encontrar”(22)

.

Infelizmente, porém,para o esclarecimento da

questão que se ventila, nem essas mesmas faíscas

podiam ser encontradas. A despeito de um tal ou qual

aparato de erudição moderna, o autor francês não tratou

do seu problema, nem como naturalista, nem como

historiador, nem mesmo como crítico, mas simplesmente

como filósofo. A sua obra é em última análise uma

filosofia religiosa, como tantas outras que por aí

existem, que podem agradar pelo palavreado, mas não

têm substância nutritiva.Para dar um ajusta medida da

estéril abundância de Guyau, eu cito entre muitas a

seguinte passagem: “A grande oposição que existe entre

a religião e a filosofia, não obstante semelhança ex-

teriores, é que uma procura e a outra declara ter achado;

uma presta atenção, ao passo que a outra já ouviu; uma

ensaia provas, a outra formula afirmações e conde-

nações; uma crê de seu dever levantar objeções e

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respondê-las, a outra não fazer para o seu espírito sobre

objeções, fechando os olhos às dificuldades”.

Não contente com esta variedade de proposições,

que repetem pouco mais ou menos o mesmo

pensamento, ainda ele insiste e diz: “O filósofo, o

metafísico pretende agir sobre os espíritos pela

convicção, o padre pela inculcação; um ensina, o outro

revela; um procura dirigir o raciocínio, o outro suprimi-

lo, ou pelo menos desviá-lo dos dogmas primitivos e

fundamentais”(23)

.

Que leitor não se sente tentado a atalhar com o

Nero de Pietro Cossa: Basta, buffone, e vieni all’ar-

gomento?... Para que exprimir por muitas formas uma só

idéia; para que fotografar em posições diversas uma

mesma teoria? Um legítimo pensador teria dito: “A

grande oposição que existe entre a religião e a filosofia,

é que uma procura e a outra declara ter achado”. Ou isto

somente: “O filósofo pretende agir sobre os espíritos

pela convicção, o padre pela inculcação”. Tanto bastava

para produzir, e até mais profundamente, a impressão da

verdade.

A este pendor para a tautologia associa-se um

outro defeito, igualmente incompatível com a seriedade

da ciência. É o abuso de uma espécie de intuição

profética, com que o autor analisa em todas as suas

particularidades, sob o ponto de vista religioso, os

tempos que hão de vir.

É inegável que o próprio título e natureza da obra

determinavam um certo entretenimento em domínio

desconhecidos; a indução devia somar os dados da

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observação. Mas este mesmo processo tem seus limites;

e Guyau não os conhece. Em muitas páginas do livro,

não se lê um sábio que induz, mas um vidente que

domina com o seu olhar o passado e o futuro da

humanidade.

Alguns exemplos para confirmá-lo. Assim diz o

autor: “Pelo progresso do pensamento humano, chegar -

se-á a conhecer melhor as direções, que é preciso tomar

para aproximar-se da verdade...

O ângulo dos olhares humanos, dirigido para as

diversas figuras do ideal, irá diminuindo cada vez mais;

porém à medida que as inteligências forem assim menos

divergentes, tornar-se-ão mais penetrantes. Então produ-

zir-se-á esta conseqüência inesperada, que as hipóteses

sobre o mundo e seus destinos, por serem mais vizinhas

uma das outras, não ficarão menos numerosas nem

menos variadas.

O pensamento humano poderá mesmo tornar-se

mais pessoal, mais original e nuanceado, tornando-se

menos contraditório de indivíduo a indivíduo. À

proporção que melhor se lobrigar a verdade, os pontos

de vista, em lugar de permanecerem uniformes,

adquirirão mais diversidade nos detalhes e mais beleza

no conjunto”.

Ainda mais: “Segundo nós, a religião deve ser

não somente humana, mas também cósmica. E é com

efeito o que terá lugar pela força das coisas, ou antes

pela força da reflexão humana. O teísmo será obrigado,

para subsistir, a encerrar-se na afirmação mais vaga

possível de um princípio análogo ao espírito com

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misteriosa origem do mundo e do seu desenvolvimento.

Este princípio terá por caráter essencial não ser

verdadeiramente separado do mundo, nem oposto ao seu

determinismo”...

E assim por diante, sempre com este desembaraço

e segurança de profeta, com os verbos no futuro, como:

chegar-se-á, irá, tornar-se-ão, produzir-se-á, ficarão,

poderá, adquirirão, terá, será etc., etc. Mas onde e

como descobriu que tudo isto tem de acontecer? Quem

foi que lhe revelou todos estes arcanos? Ninguém o

sabe, e o autor ainda menos.

Proposições de tal ordem são tanto mais

censuráveis, quanto é exato que Guyau mesmo declara

que “sendo o dever da ciência não ultrapassar jamais,

quer nas suas afirmações, quer nas suas negaçõ es, o que

ela pode estabelecer ou demonstrar, importa não

estender sem prova a todo o futuro o que só o passado

verificou”. E não obstante, ele estende ao porvir, sem

prova alguma, não somente o que o passado só ve-

rificou, mas também aquilo de que esse mesmo passado

não teve nenhuma idéia, como no caso das profecias

citadas.

Na terceira e última parte do volume, que é o

ponto culminante do edifício, o autor se espraia em

considerações de todo gênero, a fim de deixar fora de

dúvida a tese da sua oposta, isto é, que a religião vai

morrer, que o espírito humano se dirige para um estado

de completa irreligiosidade. Não demorar-me-ei em

refutar ainda uma vez, o que já foi precedentemente

refutado. Mas não posso prescindir de sujeitar a uma

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ova apreciação o baldado esforço, o délit manqué

filosófico do guapo escritor francês.

Antes de tudo, convém não esquecer de Guyau é

um semi-positivista, ou um positivista apóstata. De

acordo com o comtismo admite a transitoriedade do

estado teológico ou religioso do espírito humano, mas

em oposição à doutrina do mestre, estabelece a

perpetuidade do estado metafísico. Acho nisto uma certa

incoerência. Os positivistas inteiros são mais lógicos,

sustentando a identidade dos dois estados, dos quais o

segundo é para eles apenas uma transformação do

primeiro(24)

.Efetivamente: quem não crê que a religião

seja eterna, por que razão deve crer na eternidade da

metafísica? Se esta é inerente ao espírito humano, por

que razão aquela não sê-lo-á? O objeto e fundamento de

uma é o mesmo que o da outra, se não convém antes

dizer com Schopenhauer que a necessidade metafísica é

uma só, manifestada sob duas formas ou espécies

diversas – a religião e a filosofia. O que importa, é não

confundir essa necessidade com os monopolistas dos

meios de satisfazê-la – de um lado, os padres, e, de

outro lado, os filósofos professores, os que fazem da

filosofia um modo comum de manter a vida, como

pensava o mesmo Schopenhauer.

“A necessidade religiosa – são palavras de Carl

Du Prel – é somente uma especialidade da metafísica,

que serve de fundamento à filosofia. Se o valor de um

homem deve ser medido segundo o grau de uma tal

necessidade, é claro que ela não lhe deve ser atribuída,

somente quando ele resolve de um modo determinado os

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problemas comuns, religiosos e filosóficos, como por-

ventura por meio dos dogmas da igreja católica, porém

também quando esses problemas são por ele sentidos

como tais, quando ele tem consciência da sua im-

portância, quando lhe é ingênuo o desejo de resolvê -los.

Quer encontre esta ou aquela solução, quer não

encontre mesmo nenhuma, ele possui em todo caso esta

disposição de espírito aproximada da religiosidade, que

os crentes erradamente reclamam para si sós. O

incrédulo nega unicamente uma certa maneira de

responder às questões religiosas, mas não diz por isso

que tais questões sejam supérfluas. Ele não nega os

problemas em si, mas somente não pode tranqüilizar -se

com a solução que lhe foi incutida na meninice...”(25)

.

Delineando o quadro da futura vida religiosa,

Guyau declara que os profetas, como os padres, serão

então substituídos pelas grandes individualidades de

todas as ordens do pensamento humano, da poesia, da

metafísica e da ciência. Mas esta idéia é a mesma de

Strauss, no seu notável escrito: Ueber das Vergaenliche

und Bleibende im Christenthum, de 1837. É a teoria do

culto do gênio, como sub-rogado do culto religioso, que

nada encerra portanto de novo e original.

O próprio fundo da obra de Guyau, isto é, a idéia

de uma transformação religiosa do espírito humano,

antes mesmo dos autores que trataram do assunto, de 69

para cá, já tinha sido objeto das indagações de Daumer.

Este ilustre visionário, em um dos seus trabalhos, Die

Religion des neuen Zeitalers (1847, escreveu o seguinte:

“Diante de nós, em um futuro provavelmente pró ximo,

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está uma nova religião, que há de dar ao homem os mais

puros contentamentos, há de abranger toda a hu -

manidade na unidade pacífica de um império universal,

e transformar a sua desgraça, as suas queixas, em júbilo

e felicidade...”

Uma religião só de prazer, uma religião sem

momento negativo, é uma contradictio in adjecto, é uma

religião irreligiosa. A futura religião de Daumer é a

mesma irreligião de Guyau, o qual, por vir mais tarde, é

ainda mais ridículo do que o autor alemão.

Tratando das hipóteses metafísicas, que segundo

a sua opinião têm de substituir os dogmas religiosos, o

nosso filósofo acaçapa-se até a parvoíce. Afigura-se-lhe

a coisa mais simples deste mundo que a humanidade

inteira passe a dirigir a sua vida moral, de conformidade

com os princípio desta ou daquela filosofia; e neste

ponto de vista discorre largamente, sem notar que todo o

seu dispêndio de palavras repousa no chato paralogismo

de dar como assentado o que aliás constitui o âmago da

questão: saber se o povo será um dia capaz de reflexão e

compreensão filosófica. Não sê-lo-á jamais.

Assim como a última expressão do indivi-

dualismo político é sonhar uma época, em que cada

indivíduo seja o seu próprio legislador e juiz, assim

também a última expressão do individualismo religioso

é conceber um tempo, em que cada indivíduo seja o seu

próprio padre, como pretende Guyau; e de ser o seu

próprio padre a ser o seu próprio Deus, vai apenas um

passo. Mas o individualismo político é tido como uma

loucura; o que é, pois, o religioso?

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Dado mesmo de barato que o gênero humano,

indistintamente, se eleve à altura que lhe vaticina o

escritor francês, ainda assim resta um pouco duvidoso,

que é preciso liquidar.

Apoiando-se nos trabalhos de Roskoff, Réville e

Girard de Riálle, Guyau aceita como verdade que não

existem hoje, sobre a superfície da terra, povos

absolutamente destituídos de senso religioso, posto que

se lhe pudesse opor a opinião contrária de Lubbock,

Burton, Hearne, Bath e alguns outros. Sem fazer questão

sobre qual dos dois modos de ver seja o mais auto-

rizado, admitamos também como certo esse inatismo da

religião, e vejamos o que daí resulta.

Se o homem é naturalmente religioso, se a sua

religiosidade é um produto da natureza, de duas uma: ou

ela importa uma qualidade má, alguma coisa de

semelhante à ferocidade primit iva, que o processo da

cultura tem por fim eliminar e extinguir – ou importa

uma boa qualidade, que o mesmo processo cultural

aperfeiçoa e melhora.

Nesta segunda hipótese, não é compreensível que

a religião se dissolva, à força de aperfeiçoamento; pode

bem modificar-se, depurar-se, tomar mil formas di-

versas, mas nunca desaparecer. Na selvática, essa garra

ou essa cauda original, ainda mesmo desaparecendo por

tempos, não esteja sujeita a reversões atavísticas?

Ninguém, por certo; e tanto seria bastante,

quando ouras razões não houvesse, para contrariar a

teoria do nosso autor. Um dos ideais da cultura humana

é a libertação da lei do atavismo, quase no mesmo

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sentido em que o poeta falou de uma libertação da lei da

morte; porém esse ideal nunca será completamente

realizado. O homem cultíssimo hodierno, o mais desa -

busado e isento de preconceitos religiosos, ainda não

está livre de ser de repente agredido por um sentimento

invencível, que o obrigue a joelhar -se e adorar o ídolo

de pau ou de pedra dos espíritos mais incultos. Há bons

motivos de crer que no futuro o fenômeno será o

mesmo.

NOTAS DO AUTOR (1) L’Irréligion de l’Avenir. Étudo sociologique. 1887.

(2) Convém aqui lembrar que não é justo atribuir, como se costuma, ao governo de Napoleão III todas as aberrações literárias da França dos últimos tempos. La Dame aux Camélias e Le Roman d’une Femme, de Dumas Filho, as Scènes de la Vie de Bohéme, de Murger, e La Crise, de O. Feuillet – apareceram antes da eleição presidencial de Luís Napoleão; e nessas obras já se achavam representadas todas as direções da literatura devassa, que atualmente ali vigora. (3) Assim falando, posso também passar por um eslavófilo. Não me envergonho do epíteto; pelo contrário, aceito-o de bom-grado. Há somente a ponderar que o eu entusiasmo pela Rússia refere-se exclusivamente à Rússia literária; quanto à política, esta me é antipática, sobretudo no que diz respeito ao seu ódio estúpido contra a Alemanha. Se me engano na minha apreciação da cultura espiritual dos russos, consola-me a lembrança de estar ao lado de Juliano Schmidt, George Brandes, De Gubernatis e inúmeros outros corifeus da crítica européia, para quem a literatura russa é um tesouro digno do maior apreço.

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(4) Com efeito: a chamada sociologia é uma das manias da nossa época, que provavelmente a história literária ainda designará,para bem assinalá -la e distingui-la, por época sociológica. Não há presentemente fenômeno algum, nem ordem de fenômenos da vida política e social, que não se faça logo entrar na categoria da moda. A sociologia abrange tudo; hoje tudo é sociológico, inclusive a toleima dos que falam e crêem em semelhante coisa.

(5) Noire. Der Monistische Gedanke, pág. 237.

(6) Devo confessar que acho mais atestador de um bom coração a compaixão para com certos irracionais, do que mesmo para com certos indivíduos humanos. A meu ver, as sociedades de proteção aos animais, como elas existem fundadas em alguns países da Europa, encerram muito mais senso ético e religioso, do que, por exemplo, as sociedades abolicionistas entre nós. Não é motivo de espanto; reparem bem. O escravo, até um certo ponto, sofre porque quer, desde que pode reagir, ou evitar o martírio pela fuga. Mas os pobres animais não estão no mesmo caso.

(7) Des doctrines religieuses des Juifs pendant les deux siècles antérieurs à l’ère chrétienne, pág. 13.

(8) O autor é somente original em criar expressões pomposas e retumbantes, mas se difícil compreensão. É assim que ele nos fala de uma mitologia sociológica, que podia muito bem ser trocada, e sem mudar de sentido, por uma sociologia mitológica. Quer de um, quer de outro modo, a parvoíce era a mesma.

(9) L’irréligion, etc., pág. XI.

(10) Die Welt als Wille und Vorstellung , II, pág. 175.

(11) Neutestamentliche Zeitgeschichte, II, pág. 3.

(12) O “Americano”, nº 6 e seguintes. Recife, 1870.

(13) O selvagem que transubstancia uma pedra em divindade, está muitíssimo distante do católico hodierno, que transubstancia pão e vinho no corpo e

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sangue de um Deus? É difícil afirmá-lo. Aqui, bem como ali, é uma operação de física religiosa.

(14) L’irréligion, etc., pág. 51.

(15) L’irréligion, págs. 43, 44 e 46.

(16) Unsere Zeit. Achter Jahrgang. Erste Haelfte, 1872, pág. 543.

(17) Die Gesichtspunkte und Aufgaben der Politik, pág. 276.

(18) Die Gesichtspunkte etc., págs. 245 e 246.

(19) Die Selbstzersetzung des Christenthums , etc., pág. 95.

(20) Renaissance und Rococo, págs. 333 e 334.

(21) Roemische Geschichte, III, cap. 12.

(22) Geschichte des Volkes Israel, pág. 455 (nota).

(23) L’irréligion, etc., págs. 226 e 227.

(24) A infidelidade de Guyau para com o positivismo é tanto mais estranhável, quanto é certo que ele aceitou do sistema a sua maior extravagância, isto é, a visão sociológica. Bem como o Deus de São Tomás, que vê todas as coisas numa só idéia, idêntica ao seu próprio ser, os positivistas vêem tudo na sociologia e através da sociologia. O nosso autor não faz exceção; pelo contrário, pode-se dizer que neste ponto ele foi adiante dos genuínos comtistas; como se explica, pois, que não os tivesse acompanhado no abandono da metafísica, que é um dos pressupostos da sociologia? Não o compreendo.

(25) Citado por M. Conrad. Humanitas, pág. 48.

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VII

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

(1887/1888)O

I

Idéias propedêuticas. Posição do homem

em a natureza.

A ciência do direito, bem como outro qualquer

ramo do saber humano, não existe isolada. Na imensa

cadeia de conhecimentos, logicamente organizados, que

constituem as diversas ciências, ela figura também como

um elo distinto, ocupa um lugar próprio, e tem a sua

função específica.

Mas seja qual for esta função, e quaisquer que

sejam os limites assinalados à ciência do direito, ou se

aumente ou se diminua seu campo de observação e de

estudo, o que fica sempre fora de dúvida é que ela trata

de uma ordem de fatos humanos, tem por objeto um dos

traços característicos da humanidade, faz parte por

conseguinte da ciência do homem.

E por mais independentes que as verdades

jurídicas pareçam dos dados de tal ciência, que se lhe

mantenha o clássico nome de filosofia quer se lhe dê o

de antropologia, basta um pouco de reflexão para

convencermo-nos de que o direito, sob a forma

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científica, isto é, como sistema de conhecimentos. deve

ter uma verdade primeira, uma primeira proposição, a

que se prendam todas as proposições e verdades

ulteriores.

Ora, dado de barato que o direito não tenha como

princípio diretor senão o que se acha contido na sua

própria definição, é claro que esta só pode ser bebida

em fonte estranha, em um domínio científico mais largo

e mais compreensivo.

Já se vê que o estudo do direito está subordinado

ao de outra ciência que logicamente o precede. Esta

subordinação, este laço de dependência é que dá lugar

ao que no meu programa designei por idéias pro-

pedêuticas, e que também pode se chamar propedêutica

jurídica.

São idéias introdutórias, iniciais, preliminares.

Não há ciência que não as tenha. O que importa é que,

para expô-las, não se comece de muito longe, não se

tome tamanha distância, que afinal possa perder-se de

vista o objeto a estudar.

Se o direito, como disse, faz parte da ciência do

homem, não lhe é decerto indiferente saber de antemão

o que seja esse mesmo homem e qual a sua posição na

natureza.

Mas para isso não há mister de recapitular idéias

que pertencem exclusivamente ao círculo das ciências

naturais. E nós outros que reclamamos para o direito,

como ramo científico especial, um caráter autonômico,

seríamos contraditórios, se o quiséssemos reduzir às

mesquinhas proporções de uma seção da zoologia e da

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botânica, fazendo depender o seu conhecimento do

conhecimento da célula, da morfologia e fisiologia

celular!...

Não é preciso remontar à época tão longínqua,

indo além do período pré-histórico, e, entrando até no

período pré-humano da evolução do mundo orgânico.

Uma introdução regular ao estudo do direito não quer

isto, não carece disto. O seu entroncamento na

antropologia não impõe a necessidade de cavar até as

últimas raízes. O contrário é cair numa espécie de gnose

jurídica, ou numa oca pantosofia, que aliás não está

contida no pensamento do programa.

O que se quer, e o que importa principalmente, é

fazer o direito entrar na corrente da ciência moderna,

resumindo, debaixo desta rubrica, os achados mais

plausíveis da antropologia darwínica. E isto não é

somente uma exigência lógica, é ainda uma necessidade

real para o cultivo do direito; porquanto nada há mais

pernicioso às ciências do que mantê-las inteiramente

isoladas.

Eis porque se torna preciso animar o direito, que

já tem ares de ciência morta, como a teologia ou a

metafísica de antigo estilo, pelo contato com a ciência

viva, com a ciência do tempo, com a última intuição de

espíritos superiores. Mas é possível que se objete: a que

propósito elucidar aqui a posição do homem da

natureza, se o direito nada tem que ver com o homem

natural, mas somente com o homem social, tal como ele

se mostra aos olhos do historiador e do filósofo?

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A resposta surge de pronto. A questão do

programa não é ociosa. Conforme o lugar preferido ao

homem no meio dos outros seres, conforme o papel que

se lhe distribui entre as espécies animais, o direito

assume também uma feição diferente.

Destarte, se ainda estamos em tempo de prestar

ouvidos à velha filosofia dualista, que nunca passou de

um comentário mal feito do símbolo dos apóstolos(1)

; se

ainda estamos em tempo de beber todos os nossos

conhecimentos na covinha de pedra, onde bebem as aves

do céu e as almas dos santos, isto é, no mito hebreu de

uma criação teológica do universo; em uma palavra, se o

homem continua a ser um dioscuro, o filho mais moço

do criador e o rei da criação, então não há dúvida que o

direito deve ser ressentir dessa origem; a ciência do

direito deve encolher-se até tomar as dimensões de um

capítulo de teologia.

Não há meio termo. A controvérsia só tem hoje

um sentido entre estes dois extremos: ou a criação

natural, conforme a ciência, ou a divina, conforme o

Gênesis; e os resultados não são os mesmos para quem

toma um ou outro caminho.

Mas o homem é realmente um ser à parte, uma

obra da mão de Deus? Ainda há lugar para esta

crença?... Um espírito sério só pode responder que não.

Enquanto, pois, o homem, este fidalgo de ontem, não

sustentar com melhores dados as suas pretensões de

celígena pur sang, há boas razões de tê-lo somente em

conta de um fenômeno natural, como outro qualquer.

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E o homem do direito não é diverso do da

zoologia. O antropocentrismo é tão errôneo em um como

em outro domínio. Admira mesmo que esta verdade

ainda hoje precise abrir caminho a golpes de martelo.

Desde que dissipou-se a ilusão geocêntrica, desde que a

terra, soberana e grande aos olhos de Ptolomeu, foi

empalmada e comprimida pela mão de Copérnico, até

fazer-se do tamanho de um grão de areia perdido no

redemoinho dos sistemas siderais, a ilusão antropo -

cêntrica tornou-se indesculpável. Porquanto, com que

fundamento pode o homem considerar-se rei da

natureza, se o planeta que ele habita é tão insignificante

na vastidão do universo? Se a terra poderia desaparecer

do concerto imenso dos corpos celestes, despercebida

para muitos e sem a mínima quebra da harmonia de

todos, por que também não poderia o homem extinguir -

se com o seu planeta, sem lançar a mínima perturbação

na ordem dos seres criados? Onde está, pois, a sua

supremacia?

A vaidade ou o orgulho inspirou ao homem a

singular idéia de ser o mais perfeito dos entes da terra.

O certo, porém, é que ele é um animal distinto, nem

mais perfeito, nem mais imperfeito do que o menor

infusório. Qual é, portanto, a medida segundo a qual ele

gradua a escala da perfeição? Será porventura a

chamada luz divina, faísca celeste, e todas as mais

frases do uso?

Er nennt’s Vernunft und braucht’s allein Um thierischer als jedes Thier zu sein.

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(Ele a chama razão, e contudo só a emprega para

ser mais animal do que outro qualquer animal.)

Importa enfim atirar para o meio dos ferros-

velhos estas doutrinas que cheiram a incenso...

A crença na origem divina do homem é um dos

muitos resíduos, que existem dos primórdios da cultura

humana; é um survival, como diria Tylor, semelhante ao

do dominus tecum, ainda hoje inconscientemente

repetido, no ponto de vista antiquíssimo dos que

acreditavam que o espirro importava sempre a entrada

de um bom ou a saída de um mau espírito no corpo do

indivíduo. Sobre qual seja, porém, a sua verdadeira

procedência, as pesquisas modernas não são unânimes;

mas isto não embaraça a marcha das ciências, que têm

base antropológica, às quais só interessa deixar

estabelecido que o homem não é “um anjo decaído, que

se lembra do céu”.

Quando à questão ardente da origem piteciana,

não é aqui o lugar de apreciá-la. Em todo o caso,

pensamos com Schleiden que a indignação moral com

que muitas pessoas repelem qualquer parentesco da

nossa espécie com a dos macacos, é altamente cômica.

II

Lei geral do movimento e desenvolvimento

de todos os seres.

O largo e fecundo estudo das ciências naturais

tem exercido sobre os nossos tempos uma influência

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poderosa. Steffens disse: “as idéias religiosas do homem

descansam em última análise sobre as suas intuições a

respeito da natureza”. Ele podia ter dito: não só as

religiosas, como também as filosóficas, políticas,

sociais, em uma palavra, todas as que tocam, de longe

ou de perto, a direção da vida.

Com efeito, que favores não são devidos à

geologia, à astronomia, à química e à ótica, por suas

imponentes e significativas conquistas!... Elas nos

ensinaram a encarar de sangue frio as mais vertiginosas

alturas do pensamento, e nos habituaram às conjeturas

mais ousadas. Com razão diz Émerson: “o religionário

acanhado não pode impunemente estudar astronomia,

pois que o credo da sua igreja se desfaz como uma folha

seca ante a porta do observatório; um ar novo e sadio

refresca o espírito e eleva a sua capacidade inventiva”.

Perguntando agora a que se devem atribuir

tamanhos progressos das ciências naturais, a resposta

não é duvidosa: ao rigor do seu método, à simplificação

das suas leis.

É possível, é mais plausível, mais científico

mesmo, que o universo não tenha sido, como disse

Newton, feito de um jacto; mas o certo é que tudo

parece dominado por uma só força. A massa é como o

átomo: a mesma química, a mesma gravitação, as

mesmas condições. Os asteróides são fragmentos de uma

velha estrela, e um meteorito o fragmento de um

asteróide. Um espírito sagaz, por uma única observação,

descobre a lei com seus limites e suas harmonias, como

o pastor, por meio de um só rasto, conhece o seu

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rebanho. explicando-se o Sol, explicam-se os planetas, e

vice-versa.

Toda pluralidade quer resolver-se em unidade.

Tudo mostra uma tendência ascensional. A forma

inferior aponta para a superior, a superior para a

suprema, desde os mais exíguos portadores da vida,

desde o radiolado, o molusco, o anfíbio, o vertebrado,

até o homem, como se todo o mundo animal fosse

somente um museu destinado a apresentar a gênese da

humanidade.

E neste ponto de vista, unicamente nele, é que o

velho bastão do sábio, a nua realidade, o ramo seco dos

fatos, reverdece e deita flores; a ciência assume um

caráter poético. Quando ela tinha a pretensão de

explicar um réptil ou um molusco, isolando-o, era como

se pretendesse achar a vida dos cemitér ios. Molusco,

réptil, homem, anjo mesmo, se quiserem, só existem, no

sistema, no parentesco. Toda forma animal ou vegetal é

um passo inevitável pelo caminho da força criadora.

O atrativo da química repousa principalmente na

convicção de ter da matéria uma massa igual, mas sem o

mínimo vestígio da forma primitiva. O mesmo sucede

com as transformações animais, por exemplo, com a

larva e a mosca, o ovo e a ave, o embrião e o homem.

Destarte vemos que todas as coisas se desvestem, e da

sua antiga forma escorregam para uma nova; que nada

permanece estável senão aqueles fios invisíveis, que

chamamos leis e a que tudo se acha ligado.

Como a língua se encerra no alfabeto, assim a

natureza, o jogo das suas forças, encerram-se no átomo.

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Que significação tem tudo isto? Qual a moralidade que

transluz deste imenso apólogo do universo?

É a questão eterna da metafísica, da poesia e da

religião. Não nos incumbe resolvê-la. O único sentido

superior que se nos depreende da observação do mundo,

é que todo parece penetrado de um pensamento

homogêneo; e quase podíamos afirmar com o Carlyle

americano acima citado: “Há somente um animal, uma

planta, uma matéria, uma força. Pesando esta

monstruosa unidade, o indagador nota que todas as

coisas na natureza, animais, montanhas, rios, estações,

árvores, pedras, ferro, vapor, se acham em misteriosa

relação com o seu próprio pensamento e com a sua

própria vida”.

Assim é certo que tudo se transforma, exceto a

transformação mesma, que tem a constância da lei; e

como o processo transformístico se reduz, em última

análise, à passagem de um estado a outro estado, há

razão para dizer que também tudo se move. Mas que é o

movimento? É a mudança original, que repousa no

fundo das demais mudanças da natureza. Todas as forças

elementares são forças moventes, e o alvo supremo das

ciências naturais consiste justamente em achar os

movimentos ou os princípios motores, que servem de

base a todas as outras mudanças.

Pelo caminho da análise, procurando remontar às

simples causas fundamentais, pode tudo na natureza ser

induzido sob o conceito do movimento. Até hoje, é

verdade, só em poucos domínios científicos tem sido

possível reduzir os fenômenos naturais a vibrações e

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abalos de um caráter determinado. Chegaram a esse

ponto somente a astronomia, a acústica e a óptica. Nada

obsta, porém, que a conquista vá mais longe.

Os fenômenos do universo, ao menos os que caem

sob os nossos sentidos, por mais inco ngruentes que

pareçam entre si, são todos redutíveis, como frações

diferentes, a um mesmo denominador. Este denominador

é o movimento, Uma ligeira prova, e a tese será

facilmente compreendida. Eis aqui: os astros brilham, as

flores desabrocham, o vento silva, o mar estua, o raio

fuzila, o leão ruge, as aves cantam, o sol abrasa, o

sangue circula, o coração palpita – tudo isto: brilhar,

desabrochar, silvar, fuzilar, rugir, cantar, abrasar,

palpitar, e o mais que não se sujeita a uma enumeração

– é um complexo de fenômenos cinéticos ou formas de

motilidade.

Que influência não exercem sobre os seres

telúricos a luz e o calor solar?!... Tyndall disse: “as

forças inerentes ao nosso mundo, os tesouros repletos

das nossas minas de carvão, nossos ventos e nossos rios,

nossas frotas, exércitos e canhões são produzidos por

uma pequena parte da força viva do sol, que aliás não

monta, nem sequer 1 da força inteira”

2.300.000.000

Que é porém, essa força viva? Ou seja luz, ou

calor, ou magnetismo, ou eletricidade – unicamente

força motriz.

O conceito do movimento, considerado assim

como a expressão mais simples da imensa variedade dos

fenômenos naturais, dá lugar a uma intuição científica

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do mundo, que é exata no seu princípio, no seu ponto de

partida – a existência de uma só lei – mas torna-se

inaceitável, quando antecipa as suas conclusões e

pretende sustentar que a explicação mecânica abrange a

totalidade dos fatos, e que não há exceção possível.

É a doutrina haeckeliana, o monismo naturalístico

do sábio professor de Jena. Mas não podemos confor -

mar-nos com ela. À intuição monística de Haeckel

achamos preferível a do filósofo Noire, que nos parece

dar melhor conta da realidade das coisas.

Com efeito, o monismo de Noire, que pode ter o

nome de monismo filosófico em oposição ao na-

turalismo de Haeckel, assenta em base mais larga. A sua

idéia diretora é que o universo compõe-se de átomos,

inteiramente iguais, que são dotados de duas pro -

priedades: uma interna, o sentimento; e outra externa, o

movimento. Bem como os átomos, o sentimento e o

movimento, que lhe são inerentes, são também

originariamente iguais. Destas duas propriedades origi-

nárias, inseparáveis, resulta todo o desenvolvimento, ou

antes, o que se chama desenvolvimento, é a soma ou

produto de ambas; de modo que todo e qualquer

desenvolvimento é redutível a uma modificação do

movimento, mas também, e ao mesmo tempo, todo e

qualquer desenvolvimento é redutível a uma modi-

ficação do sentimento(2)

.

A coisa não é fácil como a tabuada; mas nem por

isso deixa de ser compreensível e digna de aceitação. O

que o monismo, em falta de expressão mais apropriada,

chama sentimento, não é diverso do que Schopenhauer

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chamou vontade, nem mesmo estaria longe de se poder

substituir pela palavra espírito, se a velha filosofia não

nos tivesse habituado a formar do espírito uma idéia

falsa, na qual assenta o erro do dualismo.

As duas propriedades referidas, posto que

inseparáveis – com o andar dos tempos, isto é, dos

séculos de séculos, ou milênios de milênios – chegam ao

ponto de manterem-se entre si numa razão inversa; ao

maximum de movimento corresponde o minimum de

sentimento, e vice-versa. É a diferença que vai do

mundo anórgano ao mundo orgânico superior.

O monismo filosófico é conciliável com a

teleologia, não tem horror às causas finais; ao passo que

o naturalístico só admite as causas eficientes, e crê

poder com elas fazer todas as despesas da explicação

científica.

É aí que nos separamos do grande mestre de Jena.

O mecanismo, já o dissera Kant, não é suficiente para

dar a razão dos produtos orgânicos; em relação à forma

dos organismos há sempre um resto mecanicamente

inexplicável. Ora, esta inexplicabilidade mecânica

aumenta gradualmente, à proporção que os organismos

são mais desenvolvidos e as funções mais complicadas;

por conseguinte, quando se atravessa toda a série de

seres organizados, e chega-se a formações superiores,

como o homem, a família, o Estado, a sociedade em

geral, o mecanicamente inexplicável já não é um resto,

mas quase tudo. O que há de restante, exiguamente

restante, é a parte do movimento.

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Eis porque, tratando-se da lei geral do movi-

mento, importa adicionar-lhe a do desenvolvimento. A

tese – tudo se move – é verdadeira, porém de uma

verdade parcial, que é preciso completar e esclarecer

por esta outra: tudo se desenvolve. E o caminho que leva

o desenvolvimento dos seres, diz Noire, é a constante

elevação do sentimento, da propriedade interna dos

mesmos seres. Esse caminho nos conduz da primeira

esfera de névoa do nosso sistema solar à formação da

terra; daí aos primeiros elementos da matéria animal:

daí ao primeiro homem, para chegar enfim à hu -

manidade hodierna, que é propriamente o que interessa

ao nosso estudo. Um imenso caminho, sem dúvida, mas

o moderno pensamento filosófico não conhece outro(3)

.

III

A sociedade é a categoria do homem, como o espaço

é a categoria dos corpos.

Na linguagem filosófica, a palavra categoria é

empregada no sentido de uma forma, um esquema do

pensamento, ou uma condição a priori, sem a qual não

há conhecimento possível.

Em rigor, e de acordo com a filosofia kantesca, o

espaço não entra propriamente na tábua das categorias:

é uma das duas formas puras e originais, em que a razão

molda todo o material sensível. A outra é o tempo. Mas

não havemos mister desse rigor. O que serve aqui ao

nosso fim, é a idéia de que, assim como os corpos que

não podem ser percebidos, quer em todas, quer em parte

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das suas propriedades, senão ocupado um espaço, do

mesmo modo o homem, o homem do direito, da ciência

que nos ocupa, não pode ser pensado, estudado,

analisado, senão sob o esquema social, como membro de

uma sociedade.

Não nos interessa, nem viria a propósito, agitar o

problema da idealidade ou realidade do espaço, e saber

quem tem razão – se Helmoltz, de um lado, ou Stuart

Mill e Bain, de outro; se os nativistas ou os empiristas;

porém dado que entrássemos nesse assunto, o termo de

comparação não perderia o seu valor. Segundo Kant o

espaço tem ao mesmo tempo uma idealidade

transcendental e uma realidade empírica. Sob uma

semelhante dupla face, também a sociedade se oferece à

nossa apreciação: a face real, que entra no domínio da

ciência, que pode ser objeto de estudo, e a face ideal,

que é mera condição formal, apriorística de todos os

fenômenos éticos e jurídicos. Isto não é indiferente para

a questão da existência ou não-existência de uma so-

ciologia, que entretanto pomos de lado, por ser alheia a

este ponto(4)

.

Parece, à primeira vista, que a tese do programa

desta das antecedentes, e quase que se ressente de um

pouco de anacronismo. Não é somente o homem que

apresenta caráter social; a sociabilidade pode tão pouco

servir de diferença específica na definição do ente

humano, quão pouco pode, por exemplo, a faculdade de

respirar por pulmões, que é comum a todos os

mamíferos, como é comum a muitos animais o viverem

associados.

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Mas a questão é outra. A sociedade, de que se

trata, ao é a natural, cuja observação e análise pertence

à zoologia.

Quando ainda no estado primitivo, o homem

procedia em tudo como animal, só obedecendo ao

princípio da luta física pela existência. É certo que já

nesse estado originário da sociedade humana, qualquer

grupo social, ou fosse composto de uma família, ou de

um tronco, logo que os indivíduos se reuniam a formar

um todo, portava-se como um organismo, dotado de

forças comuns, e buscando atingir um alvo comum.

Mas também o reino animal nos mostra uma igual

reunião de indivíduos, que vivem uns com os outros e se

nutrem, sob a observação da lei da divisão do trabalho.

Semelhantes aos homens associados, esses animais

desenvolvem, por meio de recíprocos reflexos e sim-

patias nervosas, instintivos impulsos, conceito e neces-

sidades comuns, Em monstruosas corpos do exército

eles emigram, sustentam guerras entre si, com inimigos

externos, aniquilam os seus adversários com as suas

habitações, ou reduzem à escravidão das abelhas, e

particularmente das formigas, chegaram, neste assunto,

às mais surpreendentes descobertas.

Entretanto, não exageramos o sentido dos fatos.

No reino animal, todos esses fenômenos não se elevam

acima do estado primitivo. Depois que o desen-

volvimento social tem atingido um certo grau, aí fica

estacionado, se não é que algumas vezes toma uma

marcha regressiva. Entre os vertebrados superiores

mesmos, o combate pela vida não passa de um combate

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puramente físico a um social. As simpatias permanecem

instintivas; as guerras têm sempre como resultado,

mediato ou imediato, a completa destruição do inimigo.

A sociedade do homem tem outro aspecto. Ela é

ao mesmo tempo uma causa e um efeito da própria

cultura humana. No reino animal, os indivíduos, quase

exclusivamente, só podem reunir -se uns com os outros

pelo caminho das relações sexuais, e isto mesmo nos

graus mais próximos de procedência congênere. Ao

contrário, o homem pode unir -se com os seus iguais,

sem atenção às distinções de raça ou de nacionalidade,

não só por aquele caminho, mas também e sobretudo

pela reciprocidade social.

Não raras vezes, em um mesmo lugar, convivem

duas, três e mais nacionalidades, falando línguas

diversas e até pertencendo a religiões diferentes, sem

que por isso deixem de formar um todo político firme e

compacto. Isto, porém, só é próprio da espécie humana.

O instinto do trabalho, da atividade econômica,

leva algumas espécies animais a constituírem asso -

ciações, que aos olhos do naturalista parecem miniaturas

de monarquias ou de república. É o que se observa, por

exemplo, nos formigueiros e nas colméias. Mas é digno

de nota que só a sociedade não reage beneficamente

sobre os seus membros. A abelha de hoje não sabe

compor o seu mel com ais habilidade do que a abelha de

Virgílio. O caráter distintivo da associação humana está

justamente nessa reação do todo sobre cada um a das

partes donde resultam as mudanças e melhoramentos

ulteriores.

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Goethe já tinha dito: “O olho é um produto da

luz”. A verdade desta sentença a respeito de todos os

órgãos vegetais e animais tem sido plenamente

demonstrada pelos progressos da biologia moderna.

Com igual justeza pode-se também dizer que os órgãos

nervosos superiores do homem são o produto da

sociedade. Tudo que constitui o homem de hoje, o

homem do direito, da moral, da religião... é um produto

social.

Assim, quando Lazarus Geiger disse: “A língua

criou a razão”, poder-se-ia acrescentar: e a sociedade

criou a língua. Mas sem língua e sem razão ao se

concebe a vida humana; logo esta só é tal, só pode ser

tal o seio da sociedade.

IV

Impossibilidade de uma sociologia como ciência

compreensiva de todos os fenômenos da ordem social.

Se para justificar o nome de ciência, atribuído a

esta ou àquela espécie de conhecimentos, bastasse

alegar que desde antigos, antiguíssimos tempos, filó -

sofos e pensadores de primeira grandeza tentaram dar a

esses conhecimentos um caráter científico, procurando

organizá-los e reduzi-los a sistema, a sociologia, ou a

ciência da sociedade seria ao certo uma das mais

autorizadas.

Porquanto, com a primeira reflexão que o homem

fez sobre a origem das coisas, surgiu também a primeira

reflexão que ele fez sobre a ordem das coisas. É o

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começo de toda a filosofia. Diz bem Eduardo Lasker:

“uma genética e uma ética são as formas primit ivas do

saber humano”. A mesma necessidade que levou o

homem a indagar das causas geradoras do universo, o

impeliu também para a pesquisa de regras ou de

princípios diretores da vida social.

Pode-se até afirmar que a ética precedeu à

genética, no sentido de que, bem antes que os espíritos

reduzissem à forma científica os seus conhecimentos

sobre a natureza, já havia uns vislumbres de ciência

prática. A época dos Anaxágonas e dos Demócritos veio

depois da dos Cleóbulos e dos Tales. A sabedoria

gnômica dos sete sábios antecedeu às especulações

metafísicas das escolas gregas. As sentenças ou

máximas, que se lhes atribui, são induções baseadas na

observação dos fatos e relações sociais. Assim, quando

Pítaco dizia: pondera bem o tempo ; ou Cléobulo

aconselhava: moderação em tudo; ou Periandro de

Corinto: refletir antes de obrar, eram os primeiros

lineamentos de uma ciência futura, que sob o nome de

política, ou de sociologia, ou sob outro qualquer título,

havia ainda de pretender entrar no conhecimento das leis

que regem a sociedade humana, e assim contribuir para

a sua melhor direção.

Entretanto a cultura helênica prosseguiu na sua

marcha. Com a revelação operada por Sócrates, a

ciência da natureza ou a física; isolou-se da ciência do

homem ou filosofia propriamente dita, que passou a ser

metafísica. A esta incorporou-se a ciência de Deus, bem

como a da sociedade. Todos os grandes sistemas

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filosóficos fizeram sempre a sua parte de sociologia.

Platão e Aristóteles foram também sociólogos. Mas o

que há enfim de realmente assentado, depois de tantos

séculos de observação e de estudo, no que toca a uma

verdadeira ciência social? Coisa nenhuma.

Os sociólogos modernos não desconhecem esta

verdade; porém buscam enfraquecê-la pela consideração

da impropriedade do método, até hoje aplicado à

sociologia, que eles julgam dever sujeitar-se aos

mesmos processos lógicos das ciências naturais, para

tornar-se então efetivamente capaz de resolver o seu

problema.

Não deixam de ter razão os que assim acusam as

velhas tentativas sociológicas de vaguidão especulativa

e inanidade metafísica; mas nem por isso é menos

censurável a ilusão em que laboram, quando pensam

remediar o antigo mal com a simples mudança de

método. A questão principal não é de método, mas de

objeto. A sociologia não tem um, que possa ser regu-

larmente observado. Se ela pretende alguma coisa séria,

é sem dúvida abranger no seu círculo de observação a

totalidade dos fenômenos sociais e descobrir as

respectivas leis. É pelo menos o que diz Lilienfeld, um

sociólogo alemão: “Estado, igreja, ciência, arte, vida

comunal, direito, força, liberdade social, não são

especulações, porém realidades, como a forma e o

movimento dos corpos. A sociologia não pode negar,

nem deixar despercebidas essas realidades; ela deve

procurar inquiri-las e explicá-las”.

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Mas isto será possível? Não nos paguemos de

palavras vãs. O positivismo nos fala de uma estática e

de uma dinâmica social: aquela compreendendo as leis

da existência, e esta as leis do desenvolvimento da

sociedade; porém a pergunta surge espontânea: que

sociedade? A humana, por certo.

Mas a frase – sociedade humana – não passa de

frase, ou simplesmente a soma dos mil e quatrocentos

milhões de terrícolas. No sentido jurídico, moral,

religioso, político e até econômico ou comercial mesmo,

não tem valor nenhum.

Se, porém, o objeto da ciência não é a sociedade

em geral, mas esta ou aquela, geográfica e histo ri-

camente determinada, não diminuem por isto as difi-

culdades de observação, e acresce que teríamos tantas

sociologias, quantos são os grupos sociais, que mostram

um caráter distinto e um desenvolvimento mais ou

menos homogêneo, ou sejam raças, ou povos, ou Estado,

o que aliás não merece uma refutação.

A divisão das condições da vida social em

estáticas e dinâmicas é belamente simétrica, e não deixa

de ter o seu fundo de verdade. Mas a ciênc ia não vive de

simetria, do arquitetônico das suas divisões; antes de

tudo, ela vive de fatos. O saber que tais condições

existem, é um bom princípio regulador; mas nada

aproveita, enquanto não se sabe quais e quantas são

elas, como se determinam o seu valor e a sua recíproca

influência.

Este conhecimento é impossível.

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Não obstante a improficuidade dos seus esforços,

os sociólogos continuam a gastar papel e tinta. Um

insigne dentre eles, o fisiologista francês Gustave Le

Bom, não tem a mínima dúvida sobre as justas

pretensões de tal ciência. No empenho de sustentá-las

ela apresenta quatro hipóteses, únicas possíveis, de

explicação dos fenômenos sociais, e excluindo as três

primeiras, que julga inaceitáveis, só deixa de pé a

última, que é justamente a sua tese. Ei-las: primeira, um

poder superior, chamado Deus ou Providências, dirige a

seu bel-prazer as ações dos homens; segunda, os acon-

tecimentos são o resultado do acaso; terceira, os acon-

tecimentos são a conseqüência das vontades humanas;

quarta, os acontecimentos representam uma cadeia de

necessidades estreitamente ligadas e trazem em si as

causas de sua evolução fatal.

Dividida assim a questão em quatro pontos de

vista, aparentemente irredutíveis, nada mais fácil do que

escolher um deles e tirar então, por meio da lógica, as

conseqüências desse pressuposto.

Mas o erro é evidente. A separação exclusiva dos

membros da divisão não tem assento nos fatos; é puro

trabalho especulativo, um resultado de análise, que

procede por abstração. Concedendo-se ao espírito

científico, ao desabusado espírito do tempo, que Deus

seja banido da história, que seja um ingrediente inútil na

mecânica social, nem por isso os outros três fatores

deixam de poder coexistir. A quem, pois, dissesse que a

sociedade se mantém pela combinação de uma tríplice

ordem de fenômenos, como provar o contrário?

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E enquanto não se demonstrar que o acaso é de

todo uma palavra sem sentido, e que as vontades

humanas são forças naturais, são simples forças

motrizes, como o calor ou a eletricidade, que vale a

sociologia? Certamente nada.

A questão do acaso é mais séria do que se supõe.

Carlos Ernesto Baer o define: um acontecimento que

coincide com outro, sem achar-se preso a ele por

nenhum nexo causal. Lazarus Geiger dz que o acaso está

entretecido e indissoluvelmente ligado com tudo que se

desenvolve. Noire é desta mesma opinião, E, bem

ponderado, é difícil não abraçá-la.

Com efeito, a sociedade e a natureza apresentam

quotidianas coincidências, cuja explicação não pode ser

dada por nexos causais. Como, po rém, o espírito

humano sente a necessidade de ligar todo fenômeno a

uma causa, ele transporta muitas vezes esta lei do

pensamento a domínios, onde ela não vigora, e daí

resulta uma porção de contra-sensos, que ainda hoje

perturbam a marcha regular da indagação científica. A

superstição e a crença no milagre descendem, em

grande parte, dessa conversão arbitrária do casual em

causal.

É bem sabido como a lógica do povo continua a

amarrar à cauda dos cometas a peste, a guerra, e em

geral, todas as calamidades, que porventura depois deles

apareçam na terra. Quantos são, porém, infundadas estas

e outras iguais crenças, basta a seguinte consideração

para mostrar. Suponhamos que uma estrela, e a hipótese

não é gratuita, que a estrela Alcione, por exemplo, de

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repente desaparecesse do céu; mas também suponhamos

que esse fato viesse imediatamente depois de um grande

acontecimento humano: a destruição de um vasto im-

pério, a queda do papado, ou outro qualquer sucesso

notável. Proclamada a morte da estrela pela extinção d a

sua luz, qual seria o crente que não visse no desa-

parecimento do astro um indício da cólera divina,

motivada ou causada pelo fato dado no mundo?

Entretanto, é certo que, se isto porventura

acontecesse no correr do ano vigente, a estrela em

questão nada tinha que ver com as coisas que figuramos,

pela simples razão de já haver morrido há séculos. O

último alento vital exalado por ela teria sido em 1312,

pois que a sua luz gasta não menos de 573 anos para

chegar até nós. Não haveria portanto nenhuma relação

de causalidade, e a aparente sucessão imediata dos dois

fenômenos seria um mero acaso.

Como se vê, o acaso figura legitimamente na

ordem das idéias que têm um conteúdo positivo. Não

pode, pois, ser de todo eliminado, para deixar imperar

somente o puro causalismo das forças naturais.

Deus mesmo, o obscuro e incognoscível Deus!...

Merece ele com efeito não ser levado em conta pelos

arquitetos do edifício sociológico? A parte que lhe

compete no mecanismo da sociedade, é tão nula, como a

que lhe cabe no mecanismo da natureza? Excluído Deus

como poder, como força criadora de fenômenos

naturais, é fácil também excluí-lo como poder, como

força motivadora de fenômenos sociais? Estas questões

parecem ter algum valor.

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Não é decerto e nome de Deus, que os planetas

giram em torno do sol, e as falenas em torno da luz, que

vai queimá-las; não é em nome de Deus, que o mar se

quebra na praia ou os rios caem dos montes, ou a chuva

estraga as searas, ou a peste mata os rebanhos. Mas é

incontestável que o homem, em nome de Deus, podendo

fazer muita coisa ruim, também faz muita coisa boa.

Não é preciso ser devoto para o afirmar; a sinceridade

científica obriga a reconhecê-lo.

Se, pois, Deus pode ser posto fora do universo,

como força real mediata ou imediatamente eficaz, não

pode sê-lo da sociedade, como força ideal, que sob a

forma psicológica do motivo concorre para um sem-

número de ações elevadas, como também para um sem-

número de ações indignas. Ainda que ideal, é sempre

força, aliás não suscetível de explicação mecânica, e

com tal destinada a perturbar os cálculos de qualquer

ciência, que pretenda reduzir os movimentos da di-

nâmica social à exatidão das fórmulas da dinâmica

celeste.

Em última análise as quatro hipóteses de Le Bom

me parecem quatro pés, indispensáveis todos à marcha

da sociedade. Se dentre eles algum se mostra manco e

pesado, é a tal cadeia de necessidades, pois até hoje, no

que toca à vida histórica dos povos, não tem passado de

um conceito a priori, donde a dialética pode tirar

bonitas conseqüências teóricas, mas a prática nada tem

haurido de sério e aproveitável.

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V

O direito é um produto da cultura humana.

Conceito de direito.

Dizer que o direito é um produto da cultura

humana importa negar que ele seja, como ensinava a

finada escola racionalista e ainda hoje sustentam os seus

póstumos sectários, uma entidade metafísica, anterior e

superior ao homem.

A proposição do programa é menos uma tese do

que uma antítese; ela opõe à velha teoria, fantástica e

palavrosa, do chamado direito natural, a moderna dou-

trina positiva do direito oriundo da fonte comum de

todas as conquistas e progressos da humanidade, em seu

desenvolvimento histórico.

Faz-se, porém, preciso deixar logo estabelecido o

que se deve entender por cultura, em que consiste o

processo cultural.

Antes de tudo: o conceito da cultura é mais amplo

que o da civilização. Um povo civilizado não é ainda

ipso facto um povo culto. A civilização se caracteriza

por traços, que representam mais o lado exterior do que

o lado íntimo da cultura. Assim, ninguém contest ará,

por exemplo, aos russos, aos turcos mesmos, a muitos

outros povos do globo, relativamente florescentes, o

nome de civilizados. Eles têm ais ou menos ordenadas

as suas relações jurídicas; possuem, pela mor parte,

constituições e parlamentos; aproveitam-se dos pro-

gressos da ciência, da técnica e da indústria moderna;

seus altos círculos sociais falam diversas línguas, lêem

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obras estrangeiras, vestem-se conforme a moda no-

víssima de Paris, comem e bebem, segundo todas as

regras da polidez. Porém não são povos cultos.

Estas últimas idéias, que nos parecem exatas,

tomamo-las de empréstimo a Cristiano Muff, um

escritor alemão, mas alemão insuspeito para os espíritos

devotos, por ser um dos que trazem sempre na boca o

nome de Deus. Já se vê que o conceito da cultura é

muito mais largo e compreensivo do que se pode à

primeira vista supor. Sem uma transformação de dentro

para fora, sem uma substituição da selvageria do homem

natural, pela nobreza do homem social, não há

propriamente cultura.

Quando, pois, dizemos que o direito é um produto

da cultura humana, é no sentido de ser ele um efeito,

entre muitos outros, desse processo enorme de constante

melhoramento e nobilitação da humanidade; processo

que começou com o homem, que há de acabar somente

com ele, e que aliás não se distingue do processo mesmo

da história.

Determinamos melhor o conceito da cultura. O

estado originário das coisas, o estado em que elas se

acham depois do seu nascimento, enquanto uma força

estranha, a força espiritual do homem, com a sua

inteligência e a sua vontade, não influi sobre elas, e não

as modifica, esse estado se designa pelo nome geral de

natureza.

A extensão desta idéia é constituída por todos os

fenômenos do mundo, apreciados em si mesmos,

conforme eles resultam das causas que os produzem, e o

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seu característico essencial é que a natureza se

desenvolve segundo leis determinadas e forças que lhe

são imanentes; não se afeiçoa de acordo com fins

humanos. Quando isto porém acontece, quando o

homem inteligente e ativo põe a mão em um o bjeto do

mundo externo, para adaptá-lo a uma idéia superior,

muda-se então o estado desse objeto, e ele deixa de ser

simples natureza.

É assim que se costuma falar de riquezas naturais

e de produtos naturais, significando alguma coisa de

anterior e independente do trabalho humano(5)

. Mas o

terreno em que se lança a boa semente, a planta que a

mão do jardineiro nobilita, o animal que o homem

adestra e submete a seu serviço, todos experimentam um

cultivo ou cultura refreadora da indisciplina e selvageria

natural. A cultura é, pois, a antítese da natureza, no

sentido de que ela importa uma mudança do natural, no

intuito de fazê-lo belo e bom. Esta atividade nobilitante

tem sobretudo aplicação ao homem. Desde o momento

em que ele põe em si mesmo e nos outros, c iente e

conscientemente, a sua mão aperfeiçoadora, começa ele

também a abolir o estado de natureza, e então aparecem

os primeiros rudimentos da vida cultural.

Vem aqui muito a propósito as seguintes palavras

de Júlio Froebel: “A cultura em oposição à natur eza é o

processo geral da vida, apreciado, não segundo a relação

de causa e efeito, mas segundo a de meio e fim. Ela é o

desenvolvimento vital, pensado como alvo, e até onde

chegam os meios humanos, tratados também como

alvos; é a vida mesma considerada no ponto de vista da

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finalidade, como a natureza é a vida considerada no

ponto de vista da causalidade”.

Eis aí. No imenso mecanismo humano, o direito

figura também, por assim dizer, como uma das peças de

torcer e ajeitar, em proveito da sociedade, o homem da

natureza, bem ao contrário do que pensava Rousseau,

para quem tudo consistia ... à ne pas gâter l’homme de

la nature, en l’appropriant à la société.

O direito é, pois, antes de tudo, uma disciplina

social, isto é, uma disciplina que a sociedade impõe a s i

mesma na pessoa dos seus membros, como meio de

atingir o fim supremo – e o direito só tem este – da

convivência harmônica de todos os associados. Daí vem

o dizer de von Jhering que o fim ou o alvo é o criador de

todo o direito. Nenhum intuito jurídico, por mais

elevado que seja na escala evolucional, que não tenha

um caráter finalístico, ou um resto da forma primitiva

do interesse e utilidade comum.

Este modo de conceber o direito como um

resultado da cultura humana, como uma espécie de

política da força que se restringe e modifica, em nome

somente da sua própria vantagem; esta concepção do

direito, não como um presente divino, mas como um

invento, um artefato, um produto do esforço do homem

para dirigir o homem mesmo – esta concepção ainda

conta presentemente decididos adversários.

São aqueles que viciados por uma péssima

educação filosófica habituaram-se a ver no direito e na

força duas coisas de origem inteiramente diversa, ou

dois poderes, como Arimã e Ormuz, que disputam entre

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si o primado sobre a terra; quando a verdade é que o pio

Ormuz do direito e o fero Arimã da força constituem um

mesmo ser; Ormuz não é mais do que Arimã nobilitado

Disse-o também Rudolf von Jhering.

E é digno de ponderar-se: os sectários de um

direito, filho do céu ou obra da natureza, os que não

podem compreender que o homem tenha podido forjar a

sua própria cadeira, criando regras de convivência

social, estão no mesmo pé de simplicidade e lastimável

pobreza de espírito, em que se acha o povo ignorante,

quando atribui a causas divinas muita coisa que afinal se

verifica ser efeito de causas humanas.

Um exemplo basta para confirmá-lo. É sabido

como ainda hoje, nas ínfimas camadas da rudeza

popular, mantém-se a velha crença nas pedras do trovão

ou do corisco, qu se entranham pela terra sete braças, e

no fim de sete anos voltam à superfície, onde é feliz

quem as encontra, porque tem nelas um talismã

inestimável...

Entretanto, o progresso dos estudos pré-históricos

já chegou a estabelecer como verdade incontestável que

essas pedras são instrumentos de que se serviram os

homens primitivos. Ainda no começo do século assado

(1734), quando Maüdel, na academia de Paris, atribuiu -

lhes uma tal procedência, foi objeto de escárnio público.

Mas de que se tratava então?... Não era de dar uma

origem humana àquilo que se supunha, sem exceção dos

próprios sábios da época, formado nas nuvens e caído

do céu?... Que diferença há, pois, entre este e o atual

espetáculo em relação ao direito, que o rebanho dos

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doutores ainda tem na conta de uma ordenação divina?...

O futuro responderá. Bem entendido: o futuro para nós,

visto como em outros países já o futuro é o presente.

Convençamo-nos portanto: o direito é um insti-

tuto humano; é um dos modos de vida social, a vida pela

coação, até onde não é possível a vida pelo amor; o que

fez Savigny dizer que a necessidade e a existência do

direito são uma conseqüência da imperfeição do nosso

estado. O seu melhor conceito científico é o que ensina

o grande mestre de Goettingen: “O conjunto de

condições existenciais da sociedade coativamente

asseguradas”. Se ao epíteto existenciais adicionarmos

evolucionais – pois que a sociedade não quer somente

existir, mas também desenvolver-se – aí temos a mais

perfeita concepção do direito.

VI

O direito como idéia e sentimento: psicologia do direito.

O direito como força: fisiologia e morfologia do direito.

Há muito que se costuma dividir o direito em

objetivo e subjetivo: mas nunca se refletiu bastante

sobre o valor de cada um destes membros da divisão.

Designa-se por direito objetivo o conjunto de

regras ou de princípios, estabelecidos e manejados pelo

Estado, que têm por fim a ordem legal da vida; e por

direito subjetivo o cunho da regra abstrata, constituindo

uma autorização concreta da pessoa.

São exatas estas definições. Mas dado até de

barato que se definam de outra maneira aquelas duas

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faces do direito, aqueles dois únicos modos de

compreendê-lo e apreciá-lo, o que fica fora de dúvida é

que o direito subjetivo indica sempre alguma coisa de

pessoal, de característico e inerente à personalidade

humana.

E quando bem se entende que o termo – subjetivo

– foi tomado de empréstimo à tecnologia filosófica,

onde ele tem um sentido determinado, significando tudo

que pertence ao mundo interior, ao mundo da cons-

ciência, facilmente se chega a perguntar, se tal

subjetividade não vai até aos domínios da psicologia

propriamente dita; se além da facultas agendi ou do

“cunho da regra abstrata que constitui uma autorização

concreta da pessoa”, o direito não é ainda objeto de

observação interna, uma forma ou um dado psicológico,

emocional e mental, que abrange muito mais do que uma

simples faculdade de agir.

Tal foi e tal é o pensamento do programa. Assim

como se fala de uma psicologia da música, de uma

psicologia da religião, e até mesmo de uma psicologia

do amor, no sentido de estabelecer o que se passa no

espírito a propósito de amor, de religião ou de música,

assim também pode-se falar, e com igual significação,

de uma psicologia do direito(6)

.

Ainda hoje se diz dos antigos romanos, que eles

tinham em alto grau o senso jurídico da mesma forma

que se atribui aos italianos o senso musical, o senso

artístico, aos judeus o senso religioso, etc. O que é

verdade a respeito dos povos ainda mais se acentua a

respeito dos indivíduos.

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O senso jurídico individual é um fato psicológico,

de observação quotidiana. Ele se manifesta de dois

modos: pelo sentimento do próprio, e pelo sentimento

do direito alheio. O primeiro é uma das bases do caráter;

o segundo, uma das fontes da virtude. Ser justo não é

mais do que sentir o direito dos outros e proceder de

acordo com um tal sentimento. Mas este sentimento, que

aliás pode elevar-se até a paixão e o entusiasmo, não

existe isolado. Verdadeira ou falsa, clara ou obscura, há

sempre uma idéia que o acompanha.

Já se vê que não se inova coisa alguma em tratar

da psicologia do direito, como nada haveria de novo em

tratar, por exemplo, da psicologia da arte. O direito não

é só uma coisa que se conhece, é também uma coisa que

se sente.

Mas estes dois momentos psicológicos não

esgotam o seu conteúdo; não basta apreendê-lo como

idéia e sentimento nos limites da vida interior; o que

importa sobretudo é encará-lo como função, como

atividade, como força. É o que dá lugar a uma fisiologia

e uma morfologia do direito.

São expressões estas capazes de provocar séria

estranheza. Como se compreende tal fisiologia e

morfologia jurídicas? A pergunta é natural, e a resposta

ainda mais. Comprometo-me a dá-la completa, exigindo

apenas um pouco de atenção.

É geralmente sabido que a palavra fisiologia

sempre foi aplicada com a significação de ciência que se

ocupa das funções vitais, assim como a palavra

morfologia, que é de data mais recente, emprega-se no

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sentido de ciência das formas orgânicas. E qualquer que

seja a extensão que se dê a uma e out ra, o fundo

permanece o mesmo. A fisiologia pressupõe a morfo-

logia, como a função pressupõe o órgão.

Isto é incontestável. Pois bem; vejamos agora o

que sai daí.

Não é de hoje, mas há muito tempo que as frases

organização social, organização política, organização

judiciária, e outras semelhantes existem até na lin-

guagem do vulgo. Todo mundo está de acordo sobre o

sentido que se lhes atribui. Não são metáforas vãs. Se

elas querem dizer alguma coisa, é exatamente que a

sociedade, o Estado, a justiça se nos afiguram como

seres, como todos orgânicos, análogos aos demais orga-

nismos da natureza.

E essa analogia foi sempre reconhecida pelas

melhores cabeças pensantes. Além de Platão e

Aristóteles, que são ricos de paralelos a tal respeito,

basta lembrar na antiguidade romana Menênio Agripa,

que por ocasião da celebre secessio in montem sacrum,

fez o povo voltar ao cumprimento dos seus deveres por

meio da frisante comparação das diversas camadas e

classes sociais com os diversos órgãos e aparelhos do

corpo humano.

Ora, onde quer que haja uma função, onde quer

que ele fale de função, aí há uma fisiologia; mas no

grande organismo da sociedade as funções precípuas,

essencialmente vitais, são as funções jurídicas; a vos

organisatrix do Estado é justamente o direito. Como

pois, não compreender que o direito tenha uma fisio -

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logia, quando se compreende que ele tenha as suas

funções? E se a toda fisiologia corresponde uma

morfologia, como a todo funcionalismo corresponde um

organismo, por que achar inconcebível uma morfolo gia

do direito? É muita opiniaticidade(7)

.

A psicologia, a fisiologia e a morfologia do

direito mantêm entre si uma certa relação hierárquica,

de modo que a primeira não existe sem a segunda, e esta

não existe sem a última. Mas a recíproca não é

verdadeira. É possível a existência do órgão jurídico,

separado da respectiva função, como também a

existência da função independente da idéia e sentimento

do direito.

As coisas em geral, enquanto apropriadas e

acomodadas às necessidades do homem, são outros

tantos órgãos, por meio dos quais ele funciona. Até o

seu cão e o seu cavalo são projeções da sua atividade,

são órgãos do seu direito. A abelha da minha colméia,

que não trabalha para si, mas para mim, é uma

irradiação jurídica da minha personalidade. Isto é

aparentemente estranho, mas no fundo, verdadeiro.

A criança no berço, o próprio feto no seio

maternal, já não é somente um órgão, porém um

funcionário do direito, ainda que a sua única atividade,

a sua única função jurídica, seja a de viver. Entretanto,

faltam-lhe os momentos psicológicos, mental e emo-

cional; ausência esta que é a base filosófica da

necessidade, reconhecida por todas as nações cultas, da

representação tutelar dos menores e desassisados(8)

.

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Nada mais simples. Desde o martelo do operário,

mais abaixo ainda, desde o machado do pobre campônio

até o pincel ou o cinzel do grande artista, estende-se a

rica variedade do aparelho morfológico do direito, como

função da vida nacional. A própria pena do escritor é

um instrumento jurídico, é um órgão de igual função. A

terra mesma, com todo o seu armazém de forças, faz

parte desse aparelho.

Há, porém a ponderar uma circunstância notável.

A ordem natural do valor e importância das coisas, que

servem de meios à atividade humana, não é a mesma que

a ordem jurídica. Assim, a natureza estabelece a série

das coisas imóveis, móveis e semoventes, para empre-

garmos a expressão consagrada, pouco mais ou menos

como: 1,2,3; mas o direito a estabelece, em sentido

inverso como: 3,2,1. É certo o que disse Börne que, só

pelo fato de viver, um boi é melhor do que o mais rico

brilhante; porém em face do direito, como órgão de

função econômica ou de trabalho, que é também função

jurídica, o brilhante vale mais do que o boi.

Adiante voltaremos a este assunto, que os parece

mais fecundo do que talvez se suponha.

VII

Ciência do direito: definição e divisão.

Uma vez concebido o direito como o complexo de

princípios reguladores da vida social, estabelecidos e

manejados pelo Estado, importa averiguar o que é e em

que consiste a respectiva ciência.

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A vida do direito no seio da humanidade, diz

Pessina, requer duas grandes condições para o seu

aperfeiçoamento, isto é, a arte e a ciência. Crono-

logicamente a arte antecede a ciência, porém vai

melhorando com o surgir e progredir da ciência mesma,

assim como na vida econômica do gênero humano, a

arte transformadora da natureza precedeu o conhe-

cimento científico dos fenômenos naturais, para depois

aproveitar-se das vitórias alcançadas com o surgir e

progredir de uma ciência da natureza.

Quando o programa fala de uma ciência do

direito, nem é no sentido das vagas especulações,

decoradas com o nome de filosofia, nem no sentido de

um pequeno número de idéias gerais, que alimentam e

dirigem os juristas práticos. A ciência do direito, a que

o programa se refere, tem o cunho dos novos tempos;

não consiste em saber de cor meia dúzia de títulos do

Corpus Juris, e tampouco em repetir alguns capítulos de

Ahrens, ou qualquer outro ilustre fanfarrão da metafí-

sica jurídica.

A ciência do direito é uma ciência de seres vivos;

ela entra por conseguinte na categoria da fisiologia, ou

filogenia das funções vitais. O método que lhe assenta é

justamente o método filogenético, do qual diz Eduard

Strasburger ser o único de valor e importância para o

estudo dos organismos viventes(9)

.

Quando Alexandre de Humboldt define a vida –

uma equação de condições – a definição é verdadeira,

não só quanto à vida dos indivíduos, mas também

quanto a dos povos. Ora, entre as condições cuja

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equação forma a vida destes últimos, o direito ocupa um

lugar distinto, pois ele é o conjunto orgânico dessas

mesmas condições, enquanto dependentes da atividade

voluntária e como tais asseguradas por meio da coação.

A ciência do direito vem a ser, portanto, o estudo

metódico e sistematizado de quais sejam essas formas

condicionais, de cujo preenchimento, ao lado de outras,

depende a ordem social ou estado normal da vida

pública.

Mas assim considerada, a ciência do direito

assume feição histórica e evolutiva, apresentando por

conseguinte dois únicos lados de observação e pesquisa.

São os dois pontos de vista da filogenia e da ontogenia,

conforme se estuda a evolução do mesmo direito na

humanidade em geral, ou nesta ou naquela individua -

lidade humana, singular ou coletiva(10)

.

Assim como existe, segundo Haeckel, uma

ontogenia glótica, pelo que toca ao desenvolvimento

linguístico do menino, e uma filogenia glótica,

relativamente ao mesmo desenvolvimento dado no

gênero humano, assim também se pode falar de uma

ontogenia e de uma filogenia jurídica. Se é certo que a

humanidade em seu começo tinha tão pouco o uso da

linguagem, como ainda hoje a criança o tem, não deve

haver dúvida que, no domínio jurídico, a ontogenia

também seja uma repetição da filogenia. A humanidade

em seu princípio não sentia nem sabia o que é direito,

como não o sabe nem o sente o menino dos nossos

dias(11)

.

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Entretanto, não convém parar aí. A ciência do

direito pode ainda ser considerada sob outro ponto de

vista. Como ciência que indaga as relações dos homens

entre si, ela se divide em várias partes, segundo as

diferentes formas sociais, dentro das quais a ação do

homem se desenvolve.

Assim, costuma-se mencionar um direito interno

e outro externo, conforme se trata das relações do

Estado com a humanidade, o que até hoje não passa de

mera aspiração, ou das relações do Estado com os

indivíduos e com as sociedades dentro dele organizadas.

O direito interno e ramifica em privado e público.

Este, por sua vez, quando limitado ao modo de orga-

nização política, forma o direito constitucional; e

aplicado à indagação das leis de coexistência das

comunas e das províncias com o Estado, dá origem ao

direito administrativo. Tratando-se, porém, da segurança

pública e das mais eficazes garantias da sociedade vê-se

nascer o direito e o processo criminal.

É por uma análoga diferenciação que brotam do

mesmo tronco o direito comercial e o direito ecle -

siástico. Mas releva advertir que todas estas divisões

não alteram a natureza do direito, que pelo lado formal

permanece sempre o mesmo, ainda que varie pelo lado

material. O direito é um todo orgânico; as diferentes

divisões a que ele se presta, não desmancham a

harmonia do sistema. São resultados da análise, que

entretanto ainda esperam a síntese ulterior.

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VIII

Como se deve compreender a teoria de um dire ito

natural, que não é a mesma coisa que uma lei

natural do direito.

A idéia capital do programa está na combinação

das duas seguintes proposições: não existe um direito

natural; mas há uma lei natural do direito.

Isto é tão simples, como se alguém dissesse: não

existe uma linguagem natural, mas existe uma lei

natural da linguagem; não há uma indústria natural, mas

há uma lei natural da indústria; não há uma arte natural,

mas há uma lei natural da arte. Coisas todas estas que

qualquer espírito inteligente compreende sem esforço,

no sentido de que, perante a natureza não há língua nem

gramática, não há semítico nem indo-germânico; o

homem não fala nem falou ainda língua alguma, não

exerce indústria, nem cultiva arte de qualquer espécie

que a natureza lhe houvesse ensinado. Tudo é produto

dele mesmo, do seu trabalho, da sua atividade.

Entretanto a observação histórica e etnológica

atesta o seguinte fato: todos os povos que atravessaram

os primeiros, os mais rudes estádios do desenvolvimento

humano, têm o uso da linguagem; todos procuram meios

de satisfazer às suas necessidades, o que dá nascimento

a uma indústria; todos enfim são artífices das armas com

que caçam e pelejam, dos vasos em que comem e

bebem, dos aprestos com que se adornam, e até dos

túmulos em que descansam.

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Particularmente a cerâmica, a arte do oleiro,

oferece neste ponto um precioso ensinamento.

Encontram-se vasos por toda a parte: nos míseros

tapumes que constroem os indígenas da Austrália, para

os protegerem contra os ventos do mar, assim como nas

choças dos cafres e betjuanos, e nos wigwams dos

selvagens da América do Norte. Encontram-se vasos nas

habitações dos primeiros íncolas da Grécia, da Itália e

da Alemanha, bem como nas dos antigos americanos e

nas dos asiatas(12)

. Encontram-se vasos por toda a parte:

sobre a mesa dos sábios, no toilette das damas, nas

choupanas, nos templos, nos palácios, em todas as fases

da cultura, desde a bilha de Rebeca até o lindo

frasquinho de cristal, ou o ovóide de prata, que entorna

pingos de essência no seio da moça hodierna.

Como se vê, são fenômenos repetidos, que,

submetendo-se ao processo lógico da indução, levam o

observador a unificá-los sob o conceito de uma lei, tão

natural, como são todas as outras que se concebem, para

explicar a constante repetição de fatos do mundo físico.

Assim, pode-se falar de uma lei natural da

indústria, ou de uma lei natural do fabrico de vasos, ou

de uma lei natural do uso do fogo, tendo somente em

vista a generalidade do fenômeno, em os primeiros

momentos da evolução e nos mais separados pontos da

habitação da família humana; do mesmo modo que se

fala de uma lei natural da queda dos corpos, ou do

nivelamento das águas.

Mas nunca veio ao espírito de ninguém a singular

idéia de uma indústria, de uma cerâmica, de uma arte

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natural, no sentido de um complexo de preceitos,

impostos pela razão, para regularem as ações do homem,

no modo de exercer o seu trabalho, ou de fabricar os

seus vasos, ou de construir os seus artefatos. Seria esta

uma idéia supinamente ridícula.

É isto mesmo, porém, o que se dá com relação ao

direito. Como fenômeno geral, que se encontra em todas

as posições da humanidade, desde as mais ínfimas até as

mais elevadas, em forma de regras de conduta e

convivência social, o direito assume realmente o caráter

de uma lei. Mas esta lei, que se pode também qualificar

de natural, não é diversa das outras mencionadas.

Se o direito é um sistema de regras, não o é

menos qualquer mister, qualquer arte, ou qualquer

indústria humana. Se as regras do direito são des-

cobertas pela razão, não deixam de ser também oriundas

da mesma fonte as normas dirigentes da atividade do

homem em outro qualquer domínio.

A razão que entra na formação de um código de

leis, ainda que seja perfeito e acabado como o Corpus

Juris, é a mesma, exatamente a mesma, que assiste ao

delineamento de um edifício, ou à confecção de um par

de sapatos(13)

. Dizer, portanto, que o direito é um

conjunto de regras, descobertas pela razão, importa

simplesmente uma tolice, visto que se dá como

característicos exclusivo das normas de direito, o que

aliás é comum à totalidade das regras da vida social.

Assim, para limitar-nos a poucos exemplos, a

civilidade tem regras; quem se descobriu? A dança tem

regras, que as descobriu? Não há arte que não as tenha,

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quem as descobriu? Ninguém ousará negar a presença da

razão em todas elas; mas também ninguém ousará

afirmar que haja um conceito a priori da civilidade, nem

um conceito a priori da dança, ou de outra qualquer

arte. De onde vem, pois, o apriorismo do direito?

A pergunta é séria. Uma razão que, por si só, sem

o auxílio da observação, sem dados experimentais, é

incapaz de conceber a mais simples regra técnica, é

incapaz de elevar-se à concepção, por exemplo, de uma

norma geral de fabricar bons vinhos, ou de preparar

bons acepipes, como pode tal razão ter capacidade

bastante para tirar de si mesmo, unicamente de si, todos

os princípios da vida jurídica?

Os teimosos teoristas de um direito natural são

figuras anacrônicas, estão fora de seu tempo(14)

. Se eles

possuíssem idéias mais claras sobre a história do tal

direito, não se arrojariam a tê-lo, ainda hoje, na conta

de uma lei suprema, preexistente à humanidade e ao

planeta que ela habita.

Como tudo que é produzido pela fantasia dos

povos, ou pela razão mal-educada dos espíritos diretores

de uma época determinada, como a alma, como os

deuses, como o diabo mesmo, do qual já houve em

nossos dias quem se aventurasse a escrever a crônica(15)

o direito natural também tem a sua história. Não é aqui

lugar próprio para apreciar o processo da formação

desse conceito, desde o seu primeiro momento na antiga

filosofia grega; mas podemos estudá-lo entre os

romanos, cujo alto senso jurídico é uma garantia em

favor dos resultados da nossa apreciação.

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Antes de tudo, é um fato incontestável que a idéia

de um direito natural foi inteiramente estranha aos

romanos, durante muitos séculos. Como todas as nações

da antiguidade, Roma partiu, em seu desenvolvimento

político, do princípio da exclusividade nacional, em

todas as relações sociais.

Mas pouco a pouco, e à medida que o povo

romano foi se pondo em contato com outros povos,

abriu-se caminho a uma ova intuição oposta àquelas

tendências de exclusivismo nacional, e como resultado

dessa intuição apareceu, na esfera jurídico-privada, o

conceito do jus gentium.

O velho direito romano, o orgulhoso jus civile

romanorum era uma espécie de muralha inacessível ao

estrangeiro. Mudaram-se, porém, os tempos, as con-

dições de existência do grande povo, e fez-se então

preciso dar entrada a novos elementos de vida. A idéia

do jus gentium foi o primeiro passo para uma

desnacionalização do direito. A exigência fundamental

do jus civile fazia depender da civitas romana a

participação de suas disposições. Era uma base muito

estreita, que só podia agüentar o edifício político de um

povo guerreiro e conquistador.

Mas essa base alargou-se, e em vez da civitas, o

senso prático de Roma lançou mão do princípio da

libertas como fundamento da sua nova vida jurídica. Já

não era preciso ser cidadão romano – bastava ser homem

livre – para gozar das franquias e proventos do direito.

Não ficou, porém, aí. A cultura romana, tor-

nando-se cultura greco-latina, pela invasão e influência

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do helenismo, cuja mais alta expressão foi a filosofia,

recebeu em seu seio grande número de idéias ent ão

correntes sobre a velha trilogia: Deus, o homem e a

natureza. Este último conceito, principalmente, mostrou-

se de uma elasticidade admirável. A filosofia de Cícero

lhe deu feições diversas. Não só a natura, mas também a

lex naturae, a lex naturalis, a ratio naturalis, a ratio

naturae, representam nos seus escritos um importante

papel.

Nas obras dos juristas posteriores estas frases

assumiram proporções assustadoras. Na falta de outro

fundamento, a natura era o último refúgio de qualquer

explicação filosófica. Não deixa até de produzir

atualmente uma certa impressão cômica o sério

inalterável, com que grandes jurisconsultos faziam as

despesas de suas demonstrações, só à custa de uma

chamada ratio naturalis(16)

.

Nada mais simples, portanto, do que marcha

evolucionária do direito, mediante o influxo da filo -

sofia, dar ainda um passo adiante e construir mais

amplas doutrinas, tomando por base o conceito da naura

hominis, de onde originou-se o jus naturale, não

somente aplicável aos homens livres, mas aos homens

em geral.

Era a última forma da intuição jurídica do povo

rei. Era um direito novo, sem dúvida, mas também um

direito de escravos. E por uma dessas notáveis coin-

cidências da história, esse direito dos pobres, dos

míseros de todo o gênero, aparecia ao mesmo tempo que

começava a ganhar terreno a religião dos desvalidos(17)

.

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Tudo isto, porém, foi resultado do espírito

particular de uma época. A desnacionalização do direito,

começada com a idéia do jus gentium e concluída com a

dos jus naturale, foi apenas aparente. A grande

naturalização de Caracalla, ou concessão da civitas a

todos os habitantes do Império, fez que os domínios

deste coincidissem com os do mundo culto de então. A

humanidade formava, segundo a frade de Prudêncio, ex

alternis gentibus uma propago. O direito romano era

direito humano. Os princípios do jus naturale, como um

direito quod naturalis ratio inter omnes homines

constituit, tiveram um valor prático. A grandeza e

unidade do Império suscitaram a idéia de uma societas

humana, à qual se aplicassem esses mesmos princípios.

A ilusão era desculpável. O que, porém, não

merece desculpa é a cegueira de certos espíritos que,

virando as costas à história e desprezando o seu

testemunho, insistem na antiga e errônea doutrina de um

direito natural.

Com efeito, na época de Darwin, ainda haver

quem tome ao sério a concepção metafísica de um

direito absoluto, independente do homem; ainda haver

quem tome ao sério os chamados eternos princípios do

justo, do moral, do bom, do belo, outros muitos

adjetivos substanciados, que faziam as despesas da

ciência dos nossos avós, é realmente um espetáculo

lastimável.

Nós temos a infelicidade de assistir a esse

espetáculo. A despeito de todos os reclamos do espírito

filosófico moderno, os homens da justiça absoluta e do s

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direitos inatos ainda ousam erguer a voz em defesa das

suas teorias. E ninguém há que os convença da

caducidade delas. É tarefa que só ao tempo incumbe

desempenhar.

Nem nós outros que os combatemos, aspiramos a

tal glória; assim como não queremos, digamo -lo fran-

camente, não queremos que se nos tenha em conta de

inovadores. A negação de um direito natural é coeva da

tese que primeiro o afirmou. Seria um fenômeno

histórico bem singular que, havendo em todos os tempos

cabeças desabusadas protestado contra as aberrações da

especulação filosófica, somente a oca teoria do direito

natural nunca tivesse encontrado barreira. Esse fenô -

meno não se deu.

Já na Grécia, e entre outros Arquelau, um jovem

contemporâneo de Heráclito, havia contestado a

procedência divina das leis humanas. Particularmente

Carnéades, o céptico de gênio, negou a existência de um

direito natural, e reconheceu somente como direito o

direito positivo. Jus civile est aliquod, naturale nullum.

Este seu princípio corresponde exatamente à intuição

dos nossos dias(18)

.

Mas a questão não está em saber se já houve na

antiguidade quem contradissesse a doutrina de um

direito estabelecido pela natureza. O que deve hoje ser

tomado em consideração, é o modo de demonstrar a

invalidade dessa mesma doutrina, são os novos

argumentos deduzidos contra ela; e isto basta para

legitimar as pretensões da teoria hodierna.

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NOTAS DO AUTOR

(1) Bem pudera dar-lhe o nome de filosofia do passaporte. Ela ensina com todo o sério que são três os seus problemas capitais: Que é o homem?... Donde vem ele?... E para onde vai?... São justamente os pontos mais importantes de qualquer salvo-conduto policial.

(2) Qualquer senhor, mestre ou discípulo, que não tiver cultura ou pelo menos leitura filosófica suficiente, faria bem em abster-se de dar juízos decisivos sobre tais assuntos, com que tem tido a felicidade de não estragar o seu talento. Aceite in limine, como um crente, ou rejeite in limine, como um descrente; não lhe cabe outro direito.

(3) O autor destes estudos ousa perguntar: se os novos Estatutos das Faculdades de Direito exigem como preparatório o estudo da zoologia, se a zoologia está cheia de nomes de Darwin e Haeckel, se a filosofia, sem abdicar a sua independência, procura utilizar -se dos dados zoológicos, naturalísticos, em geral, não é pôr-se de acordo até com o pensamento do governo, fazer preceder ao estudo do direito essa nova ordem de idéias?...

(4) Ainda outra analogia, que se pode tirar da definição do espaço dada por Herschel: “space in its ultimate analysis is nothing but an assemblage of distances and directions”. A sociedade será também, em última análise, outra coisa mais do que uma reunião de distâncias e direções? Que é, no fundo do seu conceito, a chamada sociedade humana, senão isto mesmo?

(5) Os fabulistas do direito natural mal compreendem que fazem dele um irmão dos frutos que se colhem nas selvas, ou do ouro e prata que se extraem das minas, ou até dos mariscos que se apanham na praia!... O direito natural vem a ser, segundo eles, o direito sem mistura de realidade positiva, considerado em sua pureza

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original; uma espécie de direito em pó ou de direito em barra, que vai sendo pouco a pouco reduzido a obra... Não há maior contra-senso.

(6) Não vão porventura supor que fazemos o direito irmão da música. É uma simples comparação de que nos servimos para esclarecer o nosso pensamento. Entretanto, permita-se-nos observar que não deixaria de ser um problema histórico muitíssimo importante a indagação das causas, pelas quais o povo do Corpus Juris, o povo donde saíram os Pompônios e os Paulos, passou a ser o povo dos Palestrinas, dos Lattis, dos Cherubinis e outros. Mas repetimos que não queremos igualar o direito à música ou religião. Os ilustres voluntários da ignorância, que riem-se de tudo que eles não compreendem, não desperdicem o seu desdém; reflitam um pouco e verão que a coisa é muito simples.

(7) Para maior clareza, lembramos ainda as expressões corriqueiras – órgão da justiça pública, funcionário público, função pública. Os espíritos desprevenidos acharão nelas mais um argumento em favor de nossas idéias.

(8) Estas idéias terão mais largo desenvolvimento no programa número 13, onde se trata do direito como uma função da vida nacional. O leitor inteligente não precisa de maiores minúcias para compreender a justeza das expressões do programa. No entanto importa observar que podíamos ir muito adiante, e, além de uma fisiologia e morfologia, admitir até uma mecânica do direito. Isto seria de causar espanto; mas nós perguntaríamos apenas: que é uma forca ou gu ilhotina: Um instrumento jurídico, ninguém contestá-lo-á; porém de que natureza? A resposta é decisiva.

(9) Se o leitor entende, tanto melhor para si; caso, porém, não entenda, não é culpa nossa. Talvez nos perguntem: quem é esse senhor Eduard Strasburger? Só podemos responder que não é lente da nossa Faculdade, nem candidato à deputação geral; mas é professor universitário de Jena, e o escrito dele, ao qual nos

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reportamos, intitula-se: Uber die Bedeutung phylogenetischer Methode für die Erforschung lebender Wesen.(*)

(*) A significação do método filogenético na pesquisa da essência da vida. (N. do E.).

(10) Consultem-se as obras de Haeckel, principalmente a História da Criação e os Alvos e Caminhos da História Evolucional. Aí melhor compreender-se-á o profundo sentido das ominosas expressões – ontogenia e filogenia.

(11) Os doutores que pretendem felicitar a mocidade brasileira com a conservação dos cacaréus de direitos naturais, direitos inatos, originários, etc., têm um exato pressentimento da própria derrota, quando se insurgem contra estas e outras aplicações de dados naturalísticos à esfera jurídica, pois elas põem bem patente a inanidade das velhas doutrinas. E é digno de nota que ainda hoje há quem fale com todo o sério de um direito primigênio, sem refletir que esta última expressão foi tomada de empréstimo à história natural, em cuja tecnologia latina é que se encontra a frase elephas primigenius. Mas quão distante o sentido de uma da outra expressão! Aqui significando um dos maiores fósseis, um quadrúpede da época diluvial, cuja espécie desapareceu; ali, porém, querendo significar um primeiro direito, um direito gerador de todos os direitos humanos, o direito da liberdade, que aliás ainda não é de todo nascida, e que na genealogia dos direitos segundo promete a história, há de ser o último nato. Que disparate de tais senhores!

(12) Gustav Klemm – Westermann’s Monatshefte – VI, 259.

(13) Reflitam, e verão que a verdade é esta. A razão é tão necessária para escrever-se, por exemplo, um compêndio de direito natural, como é necessária para fazer-se, por exemplo, um par de botas, ou um par de tamancos. A prova é que se os chamados animais irracionais não têm compêndios de direito natural, também não têm tamancos nem botas.

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(14) Vale a pena fazer aqui a seguinte observação. O leitor note bem: ao profundo conhecedor do direito civil, dá-se o nome de civilista; ao do direito criminal, o nome de criminalista; ao do direito público, o de publicista; ao do comercial, o de comercialista; etc., etc.; que nome dá-se, porém, ao sábio do direito natural? A nossa língua não o conhece. Isto é significativo.

(15) Por exemplo, Die Naturgeschichte des Teufels(*) – von Dr. Karsch.

(*) A História Natural do Diabo. (T. do E).

(16) Basta lembrar os seguintes textos: ...naturalis ratio

efficit (Dig. 41, i-L, 7, § 7); naturalis ratio permittit

(Dig. 8, 2-L, 8); naturali ratione communist est (Dig 9,

2-L, 4); naturali ratione pertinet (Dig. 13, 6-L, 18, § 2);

naturalis ratio suadet (Dig. 3, 5-L, 39); naturali ratione

inutilis est (Dig. 44, 7-L, 1, § 9) ... e assim inúmeros

outros.

(17) Releva aqui dar conta de um fato pouco notado. O

primeiro protesto contra a desnaturalidade da escravidão

não partiu de filósofos, nem de fundadores de religiões,

porém de juristas. Foram decerto os jurisconsultos romanos

que, ao fecharem o período do seu maior esplendor, deram

àquela desnaturalidade um fundamento teórico,

estabelecendo como princípio que, segundo o jus naturale,

todos os homens são livres e iguais; pelo que a escravidão é

contra o direito. Princípio este atualmente estéril, mas

naqueles tempos fecundo e admirável.

(18) O estudo superficial e quase nulo, que s costuma

fazer da filosofia grega não dá uma idéia exata do

importante papel histórico do cepticismo. Entretanto os

cépticos eram todos espíritos superiores, os quais

rompendo com as tradições recebidas declaravam guerra

de morte às verdades convencionais do seu tempo. E a

prova do quanto eles valiam, é que a própria filosofia de

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Sócrates, propondo-se combater o cepticismo dos

sofistas, acabou por destruir as bases da velha intuição

filosófica, de um modo ainda mais decisivo, do que

fizeram-no os sofistas mesmos. Os cépticos eram antes

de tudo homens sinceros, que não acreditavam nas

frivolidades então ensinadas, e tinham a coragem de o

declarar. Carnéades foi um desses.

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NOTAS DOS ORGANIZADORES

DA PRESENTE EDIÇÃO

A – O tema da dissertação era o seguinte:

“Conforma-se com os princípios da ciência social a

doutrina dos direitos naturais e originários do homem?”.

O manuscrito consta das páginas 61v. a 65 do

correspondente livro de registro, no arquivo da

Faculdade. Foi também divulgado na “Revista

Acadêmica” daquele estabelecimento de ensino. Seu

autor usou-a como “introdução” ao volume Menores e

loucos em direito criminal, tanto na primeira (1884)

como na segunda edição (1886).

B – Apareceu originariamente, na forma de

artigos, em diversos números do “Diário de

Pernambuco”, do mês de junho, figurando também na

primeira edição de Questões Vigentes de Filosofia e

Direito (1888).

C – Refere-se ao artigo “Ensaio de pré-história da

literatura clássica alemã”.

D – Idéias desenvolvidas no artigo “Traços de

literatura comparada no século XIX”.

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E – Ao reeditar, no livro Estudos Alemães (2ª

edição, 1892), este ensaio, Sílvio Romero adicio nou-lhe

a seguinte nota: “Releva ponderar que o que o autor diz,

neste período, de A. Comte, reporta-se à primeira fase

da evolução deste filósofo, porquanto, na Política e na

Síntese, ele mudou de pensar. Este assunto de Tobias

Barreto é, na opinião dos competentes, o seu mais

completo trabalho, e das melhores coisas escritas sobre

o assunto até hoje. É de 1884”.

F – Divulgado por Sílvio Romero que, ao fazê-lo,

informa: “Estes apontamentos para uma lição num dos

cursos da Faculdade de Direito são de 1885” .

G – Os cinco capítulos iniciais foram divulgados

no “Diário de Pernambuco” (agosto, 1884). A parte

restante foi elaborada durante o ano de 1887, segundo se

pode ver da correspondência que o autor mantinha com

Sílvio Romero. Tobias Barreto incluiu-o nas Questões

Vigentes (1888).

H – Para o perfeito entendimento da interpretação

do kantismo por Tobias Barreto, transcrevemos a seguir

o capítulo dedicado ao filósofo de Koenigsberg no

trabalho “Traços de literatura comparada do século

XIX” – elaborado em 1887, a partir de anotações para

um curso sobre o tema, ministrado no ano anterior –

divulgado por Sílvio Romero na segunda edição dos

Estudos Alemães. Apareceu inicialmente, em artigos

parcelados, no “Jornal do Recife”.

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Compõe-se o estudo de 10 capítulos e abrange

113 páginas. Não chegou a ser completado. O confronto

será estabelecido entre as literaturas alemã, francesa,

inglesa e italiana. Seu conceito de literatura é bem mais

amplo que o aceito comumente. Diz: “A literatura, como

ciência, é a história da vida espiritual de uma nação,

total ou parcialmente considerada, no que esta vida

encerra de mais nobre e elevado, acima dos interesses

materiais, pela inspiração dos gênios, pelo esforço dos

talentos”. Na verdade, a tarefa a que se lança é a de

delimitar os aspectos principais da história da cultura

daquelas nações européias.

O capítulo que a seguir se transcreve vem

precedido de uma esquematização dos principais fatos

históricos e culturais da época moderna, na Alemanha,

que divide em nove períodos. No sétimo (1720/1770),

apenas aponta os fatos mais importantes, como por

exemplo a criação da Universidade de Gotinga (1735).

Somente a partir do oitavo período (1770/1830), é que

procederá à análise mais detida de suas principais

figuras: Lessing, Herder, Klopstock e Wieland.

Eis o seu texto integral:

IV

Ao lado de todos estes egrégios representantes do

heroísmo intelectual da Alemanha levanta-se também a

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não menos esplendida e singular figura de Emanuel

Kant(1).

Parece à primeira vista que a apreciação de um

sistema filosófico, ainda limitada aos seus princípios,

aos seus pontos capitais, não entra de pleno direito no

quadro de um ensaio de história literária. Mas dado

mesmo que assim fosse, o que não é aceitável, haveria

mister de abrir aqui uma exceção a respeito do filósofo

genial de Koenigsberg, cuja doutrina foi uma espécie de

roble viçoso, com o qual abraçou-se e confundiu-se a

hera do pensar e do poetar alemão, desde o fim do

passado até muito além do primeiro quartel do século

vigente.

“Um dos mais maravilhosos paralelos, que a

história pôde mostrar-nos, diz Johannes Scherr, é o que

se dá entre os dois seguintes fatos.

Ao passo que além do Reno começava a pôr-se

em cena a tragédia revolucionária, cá bem longe, em

uma velha cidade da Alemanha, no gabinete de estudo

do mais pacífico dos professores, excetuava-se também

a mais ousada revolução do pensamento.

(1) Para que não me julguem exagerado, por causa desse

heroísmo intelectual , que confiro à pátria de Kant, seja-me lícito

observar que o grande romancista inglês Eduardo Bulwer,

dedicando aos alemães uma das suas obras, chamou-os um poco de

pensadores e de críticos. Ainda mais: o notabilíssimo escritor

americano Ralph Waldo Emerson, agradecendo a Augusto Auerbach

a lembrança que tivera de traduzir em alemão os seus Ensaios, disse

que muito se honrava de ver as suas idéias expostas na língua da

mais inteligente das nações... the most intellectual of nations. – Já

se vê que estou em boa companhia.

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Um homenzinho, de aparência vulgar, tímido e

cauteloso, sempre lépido e bem penteado, com uma

regularidade de vida, que tocava à monotonia do

relógio, tão embebido nas suas meditações, que nunca

avançou um passo fora dos subúrbios da sua terra natal,

este homem fez surgirem idéias, que escalaram o céu e

organizadas no sistema do idealismo crítico transtor-

naram a concepção teológica do mundo(2)...”

Entre todos os sistemas de filosofia nenhum nem

tão pouco de comum com os precedentes, como o

sistema kantesco. Nunca a linha de separação entre o

antigo e o moderno foi tão clara e vivamente acentuada.

Quaisquer que sejam as comparações que se façam, as

afinidades que se descubram, a antítese é sempre maior

do que a analogia.

É certo que também Bacon e Descartes, os dois

fundadores da filosofia moderna, mantêm-se com o

passado em decidido antagonismo, ambos querem

reformar a obra da ciência, recomeçando-a, fazendo-a

voltar sobre seus passos; mas afinal o que eles

produzem, encontra nos velhos tempos uma espécie de

parentesco.

A explicação mecânica de Bacon, Descartes,

Spinoza, em oposição à que se funda sobre o conceito

das causas finais, acha exemplos na antiguidade. A

antinomia entre a intuição mecânica e a intuição

teleológica não é nova.

(2) Schiller und seine Zeit. (Schiller e seu tempo), pág. 397.

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Basta lembrar que Bacon mesmo, tão inimigo da

antiga filosofia, torna-se entretanto defensor da doutrina

atomística de Demócrito; e Leibnitz, que sustenta o

princípio da finalidade, não faz mais do que continuar

Platão e Aristóteles.

É isto, porém, o que não se dá com Kant. Ele não

é reformador, nem aperfeiçoador de nenhum sistema

precedente. Para ele não se trata de saber, se a verdade

está no mecanismo, ou no finalismo do universo. A sua

questão é muito diferente, quer no modo de propô-la,

quer no modo de resolvê-la. O que importa,

principalmente, é compreender com exatidão este novo e

diferencial da revolução kantesca.

Antes de tudo, é inegável que a filosofia só pode

ter uma feição definida, como ciência, se ela se

distingue claramente de todas as outras, se ocupa-se de

assuntos de que as outras se não ocupam, que as outras

lhe não disputam. Só assim o seu domínio está seguro e

fundada a sua posição. Esta firme posição, ela não

chegou a assumir, senão por intermédio de Kant.

A filosofia antiga e a teologia medieval podiam

falar de boca cheia. As ciências ainda eram menores e se

achavam sob tutela. Mas desde a Reforma e as grandes

descobertas, que a precederam, elas emanciparam-se

depressa, e a filosofia ficou colocada na dura alternativa

de entregar-se-lhes de corpo e alma, ou de morrer

esuriente, inanida, à falta de alimentação.

Kant achou o meio de salvá-la; foi dar-lhe um

novo objeto, um objeto próprio, um objeto seu. Est e

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objeto é o conhecimento mesmo, estudado em sua fonte;

é a faculdade de conhecer, sua extensão e seus limites.

Eis aqui, pouco mais ou menos, os traços gerais

do kantismo. Todo e qualquer conhecimento compõe-se

de matéria empírica e de forma intelectual, aplicada a

essa matéria; não há, pois, conhecimento algum tirado

do puro pensamento; conhecer o que está acima dos

sentidos, entra no reino da impossibilidade. Não passa,

portanto, de um tatear nas trevas, quando deixamos a

esfera dos fenômenos, para elevarmo-nos ao mundo

hipersensível.

As nossas idéias desse mundo são quimeras; são

afirmações caprichosas sobre coisas, que tanto se podem

provar que existem como que não existem(3).

O alvo e o resultado da Crítica da Razão Pura

foram expressos pelo próprio Kant em uma carta a seu

amigo Tieftrunk: “Objetos sensíveis, nós só os

conhecemos como eles nos aparecem, e não como eles

são em si mesmos, objetos supra-sensíveis não

(3) É a bela teoria, que o filósofo qualificou de ... tética e

antitética da razão pura. Infelizmente não foi para nós que Kant operou tal revolução. A respeito de filosofia ainda estamos em

plena Idade Média, o atqui e o ergo da escolástica fazem todas as

nossas despesas de argumentação. Ainda hoje, até ilustres

professores do ensino superior oferecem como teses, seriamente

discutíveis, verdadeiros motes ou bouts-rimés filosóficos, para os

estudantes, para os doutores mesmos glosarem, e discorrerem, quer

neste, quer naquele sentido, ora no pró, ora no contra, com o

mesmo senso da verdade e profunda observação dos fatos, com que,

por exemplo, um exímio poeta dos nossos dias, o vate de Jaboatão,

sobre o mote, emblema da simpatia, construiu aquela mimosa

décima, em que vem mencionada a espada da sua bola. É triste, mas é verdade.

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constituem para nós matéria de conhecimento”. É uma

formal condenação da metafísica, mas da metafísica

como ciência, e não como disposição natural

(Naturanlage) e indestrutível do espírito.

De tudo isto se depreende que Kant foi realmente

o Copérnico da filosofia; não o Copérnico do erro,

segundo a tola expressão de um Sr. Edouard Manec,

tradutor francês da Filosofia Fundamental de Balmés,

mas o descobridor da verdadeira arquitetônica do

pensamento humano. Há somente a lastimar que o

filósofo tenha sido muitas vezes combatido por gente

que nunca o leu.

Os teólogos, sobretudo os fedeístas de grande e

de pequeno estilo, ainda continuam a fundibular contra

ele, na errônea persuasão de apedrejarem assim o maior,

o mais perigoso racionalista, quanto aliás é certo que foi

justamente Kant, quem matou por uma vez o racio -

nalismo de todos os tempos e de todos os tamanhos.

A proposição é nova e arriscada; mas basta

refletir um pouco, para compreender a sua exatidão.

Com efeito, nada mais simples: se a pura razão, sem

base experimental, não é capaz de produzir senão

quimeras, com que direito se fala de um conhecimento

racional de Deus e das coisas que lhe dizem respeito,

desde que Deus não é objeto sensível, e como tal, tanto

pode ser afirmado, como pode ser negado, com

argumentos igualmente lógicos, igualmente vigorosos?

Quem quer, pois, que sinta a necessidade de um Deus

pessoal, de uma vida ulterior, e todos nós sentimo -la,

não tem de apelar para a sua razão, que no caso é nula,

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mas somente de atirar-se nos braços da fé que vivifica,

nos braços de uma religião, de uma Igreja, cujo credo

melhor corresponda a essa necessidade.

A emenda que o filósofo, no seu livro posterior,

segundo a opinião corrente, parece ter feito em sua

primit iva doutrina, não é uma tal. Entre as visões

quiméricas da razão pura e os postulados da razão

prática não vai uma longa distância; e afinal, tudo bem

examinado, o resultado é que há tão pouco direito de

afirmar-se, só em nome da razão, um Deus remunerador,

condição e garantia de eterna felicidade, como há de

admitir-se, pelo mesmo processo, um criador, uma causa

suprema do universo. Para chegar a esta altura e nela

permanecer tranqüilo, sem correr o risco de entontecer e

cair, o homem necessita de tomar outro caminho.

Já se vê que o sistema de Kant, conforme se

deduz de um estudo mais sério das suas bases, não

prestou, nem podia prestar apoio algum às chamadas

teorias racionalísticas. Certamente as suas idéias, como

disse Johannes Scherr, desbarataram a intuição teológica

do mundo; mas isto só é exato, e só deve compreender -

se no sentido da teologia como ciência, não menos

fantasmagórica e impossível do que a metafísica, que é a

teologia da razão, como a teologia é a metafísica da fé.

A Crítica da Razão Pura, o primeiro manifesto

revolucionário do filósofo, saiu à luz em 1781, um mês

depois da morte de Lessing (15 de fevereiro), e dois

meses depois da primeira representação do Idomeneu, de

Mozart, ópera em que o jovem componista (25 anos)

rompera com as tradições recebidas. Coincidência

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notável: nesse ano também surgiu Le mariage de

Figaro, de Beaumarchais, la révolution déjà en action,

como mais tarde exprimiu-se Napoleão a respeito da

célebre comédia, que entretanto só começou a ser

representada em 1784.

Era o tempo do maior fulgor do classicismo

alemão. Winkelmann, que morrera em 1768, estava na

ordem do dia.

Em 1787 apareceu o Ardinghello, de Heinse; em

1788, os Deuses da Grécia, de Schiller, e a Crpítica da

Razão Prática, de Kant; em 1789, Os Artistas, de

Schiller; em 1790, as Elegias Romanas, de Goethe, e a

Crítica do Juízo, de Kant; em 1795, os Prolegômenos,

do mesmo Kant, bem como a Educação Estética, de

Schiller; e assim por diante até Hermann e Dorothéa, de

Goethe (1797), e outras criações do gênero. A seriação

diz tudo. Era uma bela embriaguês; as melhores

esperanças da humanidade tinham acordado vívidas e

impetuosas.

Convém agora apreciar o modo por que os

contemporâneos receberam a filosofia de Kant.

“Esta nova filosofia, escrevia Staendlin em 1784,

exerceu uma encantadora influência sobre todas as

ciências e ganhou amigos e sectários entre aqueles

mesmos, que não se consagram a estudos filosóficos.

Ela é de tal natureza, que ainda em um remoto futuro

novos germes de conhecimento daí se podem

desenvolver”.

No mesmo ano dizia também Fichte: “A filosofia

de Kant é por hora ainda uma pequena semente; porém

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esta semente há de e deve tornar-se uma árvore capaz de

cobrir com a sua sombra a humanidade inteira”. O

vaticínio cumpriu-se.

“As idéias fundamentais da filosofia ideal, é

Schiller quem fala, em 1805, são um eterno tesouro; e

só por causa delas devemos julgar-nos felizes de ter

vivido nesta época”.

“A grandeza e a força da fantasia, disse então W.

de Humboldt, comentando as palavras de Schiller, a

grandeza e a força da fantasia existem em Kant, ao lado

da profundeza e rigor do pensamento”.

Da harmonia de todos esses nobres espíritos, só

um destoou, com desvantagem para o seu renome: foi

Herder. Entretanto Kant teve a singular fortuna de que

depois, logo depois do seu alto feito filosófico, não

houve, em geral, pensador notável, que não quisesse

pôr-se de acordo com ele, subordinar-se, filiar-se a ele.

Reinhold, o velho, foi que tomou a frente. A

teoria da ciência (Wissenschaftslehre), de Fichte, veio e

completou o que Reinhold começara. Da teoria da

ciência saiu imediatamente a filosofia da natureza de

Schelling, e desta desenvolveu-se o sistema de Hegel.

Jena foi o ponto de partida da evolução kantesca.

Ali se acharam numa mesma quadra, como professores

universitários, e professores de filosofia, primeiramente:

Schiller, Fichte, Schelling; depois, Schelling, Hegel,

Fries; depois: Hegel, Fries e Oken.

Os filósofos que seguiram-se a Kant, podem

dividir-se em quatro classes. A primeira é a dos

kantistas pur saang, que agarraram-se à letra do mestre

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e tomaram a crítica da razão por um sistema completo

da mesma razão. A segunda é a dos que procuraram tirar

todas as conseqüências do kantismo; a esta pertencem

Fichte, Schelling e Hegel. A terceira é a dos que

trataram de acomodar essa filosofia às necessidades da

vida, como Reinhold e Jacobi. Na quarta, finalmente,

estão compreendidos os semikantistas, que buscaram

abrir novos caminhos, um pouco desviados da direção

do chefe. Foram eles: Fries, Herbart, Shopenhauer,

Benecke, Reinhold Filho, Trendelenburg e outros

modernos.

Destas quatro classes, só a segunda e a quarta

mostraram-se fecundas, e foram além da época do seu

aparecimento.

Os kantistas pur sang não tiveram descendência

filosófica. Os da terceira classe, Reinhold e Jacobi na

frente, posto que se entregassem à popularização do

sistema, não puderam todavia levar muito longe os

resultados dos seus esforços.

A razão disto está em que Reinhold havia

recebido uma educação jesuítica. Ele compreendeu e

procurou desenvolver a filosofia do mestre, no sentido

de uma teoria religiosa, ou uma espécie de religião

racional.

Jacobi, porém, fez-se medianeiro entre o seu

tempo e as idéias kantescas. O seu mérito consiste em

ter promovido o reconhecimento dessas idéias e a sua

propaganda em mais largos círculos. Mas teve medo de

chegar até os extremos que a lógica exigia.

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Todavia estes dois popularizadores prepararam o

terreno, em que os kantistas sistemáticos e conseqüentes

deviam lançar a semente frutífera. Destarte, quando

Kant morreu (1804), já a sua filosofia, encarada

sobretudo pelo lado prático, a sua teoria da virtude, o

imperativo categórico do dever, tinham ganho a maior

influência. A prova é que três anos depois da morte do

grande pensador (1807), o seu discípulo Fichte, nos

famosos Discursos à nação alemã, já encontrava um

povo predisposto para entusiasmar-se e transformar-se

por força de tais idéias.

E aqui releva tomar nota de um fenômeno

excepcional. Fichte, que foi e ainda hoje é considerado

o mais difícil, o mais obscuro dos filósofos alemães, foi

também ao mesmo tempo o mais claro, o mais

convincente, o mais popular dos oradores dessa nação.

A antítese é singular, mas não deixa de ser

explicável. Como filósofo, Fichte teve a pretensão de

dar mais largas dimensões ao kantismo; o resu ltado foi

torná-lo menos puro e menos acessível a inteligência

geral. Como orador, porém, ele não fazia mais do que

tirar, diante da miséria nacional, os corolários práticos

do imperativo categórico de Kant, que já era então bem

comum entre as classes cultas do país.

Além disto, é bom não esquecer que a eloqüência

está sujeita a condições cronológicas em muito maior

grau do que a poesia e a música.

Demóstenes, S. Paulo, Savonarola, Lutero,

Bernardino Ochino da Siena, Mirabeau, etc., etc., foram

todos produtos da sua época, dos sucessos que nela

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influíram, dos fatores que a determinaram. Fora daí, tais

homens teriam sido impossíveis. Mas esses sucessos e

esses fatores não se evocam à vontade. Eis a razão por

que, em geral, a oratória da atualidade não tem mais o

sério e a força de outrora. O orador hodierno, o grande

orador mesmo, e eu só me refiro aos grandes,

assemelha-se a um genial tocador de viola; admirável,

estupendo, sublime, mas sempre anacrônico, sempre

fora de seu tempo, e como tal um pouco ridículo.

A Fichte não faltaram as condições necessárias

para o desenvolvimento da verdadeira eloqüência. Era o

estado excepcional da sua nação. E é por isso que os

Discursos constituem um feito heróico: levantaram-na

do abatimento e humilhação em que se achava. A

palavra do orador contribuiu para que em 1813 se

vingassem as afrontas dos anos anteriores.

Os Discursos foram proferidos em Berlim, onde

Fichte morreu em 1814, passando logo depois (1818) a

sua cadeira de professor da universidade a ser ocupada

por Hegel. Desde então o hegelianismo começa a ganhar

uma certa preponderância, e torna-se filosofia oficial.

Quanto a Kant, resta-me observar que poste-

riormente à sua obra capital, ele não foi sempre fiel a si

mesmo, sobretudo nos pequenos escritos, como Zum

ewigen Frieden(*) (1796), Metaphysische Anfangs-

gruende der Rechtslehre(**

) (1796), Streit der

Fakultaeten(***

) (1798), etc., etc., nos quais a razão re-

(*) Sobre a paz perpétua. (T. do E.).

(**) Fundamentos metafísicos da teoria do Direito. (T. do E.). (***) Luta das Faculdades. (T. do E.).

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presenta, às vezes, um papel, que não está muito de

acordo com os princípios da Crítica.

Mas isto se explica, não só como um efeito da

velhice, mas também como resultado do fanático

entusiasmo, de que o filósofo se deixou possuir pela

revolução francesa, a ponto de pretender pôr a sua

filosofia a serviço das chamadas idéias de 89, que aliás

são outras tantas afirmações gratuitas, em frente de

outras tantas gratuitas negações.

Por exemplo: o domínio dos pretendidos dir eitos

eternos, absolutos, inalienáveis, imprescritíveis , e como

quer que mais se qualifiquem, entra no reino do

hipersensível, não pode ser matéria de conhecimento.

Como foi, pois, que Kant caiu na contradição de querer

dar uma aparência filosófica a esses e quejandos

produtos abortivos do espírito revolucionário? São

fraquezas humanas.

Felizmente para ele, a posteridade já não lê

semelhantes desvarios de um septuagenário cansado e

aborrecido da brutal reação, que o sucessor de Frederico

II, fizera praticar-se contra as luzes e as generosas

tendências de período anterior, e continua a ligar o seu

nome e a sua glória quase exclusivamente à Crítica da

Razão.

Em todo o caso é certo o que disse Hermann

Hettner, que a palavra de Kuehne sobre Lessing aplica -

se a Kant com igual direito: “voltar a ele é um

progresso”.

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I – Escrito especialmente para figurar no livro

Questões Vigentes de Filosofia e Direito , cuja

impressão começou no início de 1887 para só se achar

concluída em junho do ano seguinte.

J – Refere-se à primeira edição de Questões

Vigentes, tendo em vista o capítulo III das “Variações

anti-sociológicas”.

L – Ao incluir a “Recordação de Kant” na edição

dos Estudos Alemães, que promoveu em 1898, Sílvio

Romero acrescentou-lhe a seguinte nota: “Este artigo, de

1887, assim como o seguinte, “A irreligião do futuro”,

de 1888, e mais os dois: “A evolução emocional e

mental do homem” (de 1884), e “Variações anti-

sociológicas” (1887), devem ser considerados a

profissão de fé última do pensador sergipano”, repetindo

a sua nota inclusa na edição do mesmo volume em 1892,

M – Elaborado, em 1888, para o livro Questões

Vigentes de Filosofia e Direito.

N – O artigo citado no parágrafo anterior e

indicado em nota denomina-se “A religião perante a

psicologia” e figura na Parte I deste volume. Sobre esse

estudo, dedicado à análise do livro La Religion de

Vacherot, Sílvio Romero deixou-ns a seguinte

indicação: “É trabalho capital na vida intelectual de

Tobias Barreto. Por três vezes diversas, e com longos

intervalos, ele voltou ao problema religioso, e sempre se

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reportava àquele estudo: em 1878, nas notas ao

“Discurso em Mangas de Camisa”; em 1881, nos

“Traços Sobre a Vida Religiosa no Brasil”, e,

finalmente, neste estudo sobre Guyay, em 1888”.

O – Sílvio Romero informou haver encontrado as

anotações para aulas – que divulgou com o nome de

“Introdução ao Estudo do Direito” – entre os papéis de

Tobias Barreto que chegaram às suas mãos. Apesar de

que vários trechos são tomados aos ensaios “Variações

anti-sociológicas” e “Nova intuição do direito”, decidiu

divulgá-las por achar que continham “páginas intei-

ramente novas, que deviam aparecer, que não era lícito

ocultar, por um lado, e, por outro, não nos atrevemos a

alterar o trabalho do autor, fazendo-lhe cortes”. Ao

incluí-lo na edição que promoveu dos Estudos de

Direito, Sílvio Romero não indicou a data de sua

elaboração. A julgar pelo teor das idéias, deve ter sido

em 1887/88, quando ainda desenvolveu intensa

atividade e acalentou ambiciosos planos em matéria

editorial.