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CFC (g): Estudios griegos e indoeuropeos 57 ISSN: 1131-9070 2014, 24 57-79 http://dx.doi.org/10.5209/rev_CFCG.2014.v24.44721 Theoria e praxis política em Heródoto Carmen SOARES Universidade de Coimbra – Faculdade de Letras Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos [email protected] Recibido: 10-09-2013 Aceptado: 6-12-2013 RESUMEN Las líneas generales de mi investigación (historia) tienen como nalidad hacer evidente la relación intrínseca que existe entre las reexiones (theoriai) de los personajes y del autor, y las formas de actuar (praxeis), presen- tes en la obra herodotea en el ámbito de las “formas de gobierno político”, también llamadas, como veremos, pragmata. Como resulta del análisis pormenorizado de los capítulos 80-82 del Libro III y su diálogo con dife- rentes episodios de actuación política, nos damos cuenta de que ya en Heródoto encontramos los antecedentes lógicos (en forma de logos) de algunos de los argumentos presentes en aquella que es, a mi entender, dentro del conjunto de las obras de Platón, la más próxima al texto de nuestro autor (el diálogo del Político) en términos de denición de categorías todavía hoy difíciles de delinear y generadoras de controversia: el hombre político y los regímenes en los que actúa. Palabras clave: regímenes políticos, discurso teórico, prácticas políticas, tiranía, monarquía, democracia, oli- garquía, Heródoto, Político de Platón. SUMARIO 1. Introducción: el contexto autorial; 2. El ‘diálogo de los persas’: cha de lectura del discurso político hero- doteo; 3. La tiranía y el gobierno de las masas: contrastes y semejanzas; 4. Oligarquía: un régimen discreto en el discurso político herodoteo; 5. Monarquía: la posibilidad de un gobierno perfecto monocrático; 6. Conclu- siones. ABSTRACT The main goal of my research (historia) is to make clear the intrinsic relationship between the thoughts (theo- riai) of the characters and Herodotus’ own about different “forms of political rule” (also called, as we shall see, pragmata), and the ways of acting (praxeis) present in the Histories. As a result of a detailed analysis of chapters 80-82 of Book III and of the dialogue between these theories and several episodes of political action, we realize that already in Herodotus we can nd the logical background of some of the arguments present in Plato’s Statesman (in my opinion, among the works of Plato, the closest to the text of our author). Both works have common goals: to dene categories today still difcult to delineate and generating controversy, i.e. the politician and the regimes in which he operates. Keywords: Political regimes, theoretical discourse, political practices, tyranny, monarchy, democracy, oligar- chy, Herodotus, Plato’s Statesman.

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  • CFC (g): Estudios griegos e indoeuropeos 57 ISSN: 1131-90702014, 24 57-79 http://dx.doi.org/10.5209/rev_CFCG.2014.v24.44721

    Theoria e praxis poltica em Herdoto

    Carmen SOARESUniversidade de Coimbra Faculdade de Letras

    Centro de Estudos Clssicos e [email protected]

    Recibido: 10-09-2013Aceptado: 6-12-2013

    RESUMENLas lneas generales de mi investigacin (historia) tienen como fi nalidad hacer evidente la relacin intrnseca que existe entre las refl exiones (theoriai) de los personajes y del autor, y las formas de actuar (praxeis), presen-tes en la obra herodotea en el mbito de las formas de gobierno poltico, tambin llamadas, como veremos, pragmata. Como resulta del anlisis pormenorizado de los captulos 80-82 del Libro III y su dilogo con dife-rentes episodios de actuacin poltica, nos damos cuenta de que ya en Herdoto encontramos los antecedentes lgicos (en forma de logos) de algunos de los argumentos presentes en aquella que es, a mi entender, dentro del conjunto de las obras de Platn, la ms prxima al texto de nuestro autor (el dilogo del Poltico) en trminos de defi nicin de categoras todava hoy difciles de delinear y generadoras de controversia: el hombre poltico y los regmenes en los que acta.

    Palabras clave: regmenes polticos, discurso terico, prcticas polticas, tirana, monarqua, democracia, oli-garqua, Herdoto, Poltico de Platn.

    SUMARIO1. Introduccin: el contexto autorial; 2. El dilogo de los persas: fi cha de lectura del discurso poltico hero-doteo; 3. La tirana y el gobierno de las masas: contrastes y semejanzas; 4. Oligarqua: un rgimen discreto en el discurso poltico herodoteo; 5. Monarqua: la posibilidad de un gobierno perfecto monocrtico; 6. Conclu-siones.

    ABSTRACTThe main goal of my research (historia) is to make clear the intrinsic relationship between the thoughts (theo-riai) of the characters and Herodotus own about different forms of political rule (also called, as we shall see, pragmata), and the ways of acting (praxeis) present in the Histories. As a result of a detailed analysis of chapters 80-82 of Book III and of the dialogue between these theories and several episodes of political action, we realize that already in Herodotus we can fi nd the logical background of some of the arguments present in Platos Statesman (in my opinion, among the works of Plato, the closest to the text of our author). Both works have common goals: to defi ne categories today still diffi cult to delineate and generating controversy, i.e. the politician and the regimes in which he operates.

    Keywords: Political regimes, theoretical discourse, political practices, tyranny, monarchy, democracy, oligar-chy, Herodotus, Platos Statesman.

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    SUMMARYThis study is comprised of several sections, namely: 1. Introduction: the Authors context; 2. The debate of the Persian Grandees: Herodotus reading tab for the political discourse; 3. The tyranny and the rule of the masses: contrasts and similarities 4. Oligarchy: a discrete regime of Herodotus political discourse; 5. Monarchy: the possibility of a perfect government of one man; 6. Conclusions.

    1. INTRODUO: CONTEXTO AUTORAL

    A compreenso de um qualquer documento nunca resulta apenas de uma anlise de per se, isto , que considere, num caso como o presente, to s o contedo e forma do texto, mas ter, necessariamente, de abordar o seu contexto autoral. No h obra (seja ela qual for), sem a sua circunstncia.

    Felizmente para ns, a composio das Histrias e a vida do seu autor, embora envoltas em algumas incertezas, no originaram uma Questo Herodotiana, ima-gem do sucedido com a Ilada e a Odisseia. Se bem que no possamos falar, a respeito dessas matrias, de verdades absolutas, os comentadores contemporneos1 assentaram em consensos que importa relembrar, uma espcie de verdades muito provveis, por forma a produzirmos uma anlise histrica sria sobre o objecto do nosso estudo.

    As Histrias, se bem que se possam rotular de histria do passado (brbaro e grego), no se prestam apenas a uma leitura fechada nesse tempo. Contm, como j notaram alguns dos mais conceituados estudiosos da obra herodotiana2, em forma de subtexto3, no s aluses histria recente (a Pentecontaetia e a Guerra do Pelopo-neso), como at a um presente indeterminado (o tempo do ns, os leitores dos sculos subsequentes sua composio)4.

    Em termos de relao do historiador com os acontecimentos seus contemporneos, a tendncia de muitos analistas da obra para, de forma mais cautelosa ou assertiva5, defender que, na narrao da histria dos reinos brbaros e das poleis gregas (Stadter 1992, 2006) at ltima Guerra Medo-persa (479 a. C), esto reflectidos desenvolvi-mentos polticos ocorridos desde ento at meados do ltimo quartel do sc. V a. C.

    Alm do tempo do historiador, outro factor modelador do seu discurso so os es-paos scio-culturais do historiador6. Halicarnasso, terra natal de Herdoto, cumpria os requisitos genticos, geogrficos e culturais, para ver aparecer um investigador

    1 Para uma reviso das questes da autoria e do perodo de composio das Histrias, vd. Asheri (1997: IX-XVII), Ferreira-Silva (1994: XXVI, introd. geral de M. H. Rocha Pereira) e os estudos mais recentes sobre o prlogo da obra, pois necessariamente abordam estas questes e contm indicao sobre a bibliografi a especializada no assunto: Bakker (2002). Ainda sobre a data, vd. Moles (2002: 34, n. 13, com extensa bibliografi a sobre o assunto); Thomas (2006: 61) indica como perodo alargado de composi-o ca. 450-420 a. C.

    2 Thomas (2000, 2006), Moles (1996, 2002), Stadter (2006). 3 Moles (2002: 50) afi rma que o universo poltico contemporneo funciona nas Histrias como um

    subtexto importante e um contexto dominante na recepo do texto. 4 R. Conner (apud Raafl aub 2002: 179-180). 5 Cf. Raafl aub 2002: 164-183 (Historical and Political Thought). 6 Sobre o contributo que as origens de Herdoto deram para o seu interesse pelo mundo que o rodeia

    (grego e brbaro), vd. Thomas (2000: 9-16) e Raafl aub (2002).

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    (algum que faz pesquisa, historia) capaz de pr em dilogo o universo multicultural da poca Clssica grega.

    Alm de ser uma polis cuja populao resultara da fuso de elementos gregos (d-rios) com brbaros (da Cria), Halicarnasso est implantada numa zona dominada pelos pensadores inios, responsveis pelo florescimento da filosofia e a cincia no Mundo Grego. As numerosas viagens que Herdoto ter feito7, bem como as suas experincias de exilado (em Atenas8) e de colono (em Trios) ajudam tambm a com-preender melhor a forte presena na sua escrita da tolerncia diferena e o esforo de identificao de universais do comportamento humano. Fazem, pois, sentido, os eptetos de outsider do Mundo Grego, meio-Grego e meio-Brbaro que justamente lhe atribuiu um dos principais estudiosos da sua obra, Ph. Stadter (2006: 265).

    Em termos de metodologia cientfica de estudo de um texto terico inaugural, como o caso do Dilogo dos Persas (3. 80-82)9, cerne da nossa reflexo, importa munirmo-nos de princpios tambm eles clssicos, precisamente oferecidos por Pla-to, mestre exmio em matria de investigao e ensino (diramos ns em terminologia moderna). Como o prprio aconselha, por exemplo no seu Poltico, no so as pala-vras mas os sentidos verdadeiros que elas encerram aquilo a que um investigador se deve ater. Esta uma regra de ouro da metodologia do trabalho cientfico, consagrada de forma lapidar no conselho dado, nesse dilogo, pelo Estrangeiro de Eleia, mestre em dialctica, a um aprendiz de filsofo, Scrates, o Moo. Evoco aqui as suas pala-vras, pela autoridade indiscutvel que conferem minha argumentao10: se fizeres um esforo por no te prenderes aos nomes, medida que caminhares para a velhice, hs-de mostrar-te cada vez mais rico em sabedoria (261 e 5-7).

    2. O DILOGO DOS PERSAS: FICHA DE LEITURA DO DISCURSO PO-LTICO HERODOTIANO

    A anlise que me proponho fazer para o trecho em questo (3. 80-82) servir de centro nevrlgico para uma reflexo mais ampla. Ou seja, em termos de metodologia, proponho que o comentrio ao texto v sendo complementado com informaes per-tinentes oriundas de outros passos da obra.

    O Dilogo dos Persas introdu-lo Herdoto com a indicao do tema em debate: sobre todas as formas de governao ( , 3.80.1). Se o que se vai discutir so todos os pregmata (na forma tica pragmata, que de ora em diante adoptarei), ou seja coisas feitas, actos, formas de agir, importa precisar que esse sentido genrico11 adquire no contexto em que usado o valor conotativo

    7 Redfi eld (1985) e, mais recentemente, Thomas (2000: 9-16). 8 Moles (2002: 33) situa essa estada volta dos anos 40. 9 Bibliografi a principal sobre o episdio: Romilly (1959), Lasserre (1976), Evans (1981), Lateiner

    (1984), Rocha Pereira (1981, 1990), Pelling (2002). 10 Para a traduo portuguesa, comentrio e notas ao dilogo platnico, vd. Soares (2008). 11 O que explica que pragma tenha na lngua grega por sinnimo chrema. Alis essa sinonmia que

    autoriza que Herdoto empregue este ltimo em 3.80. 3, estando, naturalmente, a referir-se, como fi cou claro na abertura desse mesmo captulo, a coisa pblica (pragma, equivalente em latim a res publica).

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    de feitos/negcios polticos, por oposio a privados12. Assim pragmata pode, num sentido mais amplo, dentro do domnio concreto das coisas feitas pelos indivduos no exerccio da cidadania, traduzir-se em portugus por acto ou modo de governar, go-vernao, e, em contextos mais especficos, assumir o sentido abstracto de governo, regime, constituio.

    Identificado o assunto de uma discusso, se no real (tida na Prsia em 522/21 a. C.), pelo menos verosmil (na Grcia contempornea de Herdoto) 13, passemos anlise de todas essas formas de governao. As perguntas a que procurarei responder so as seguintes: que conceitos-chave estruturam os regimes e que tipologia de regimes e governantes so descritos?

    3. A TIRANIA E O GOVERNO DAS MASSAS: CONTRASTESE SEMELHANAS

    A tirania e a democracia so os pragmata que primeiro Otanes introduz na discus-so e com grande razo, se tivermos em conta que, no subtexto do imperialismo persa, devemos ler reflexes sobre o imperialismo ateniense, o grande bastio da de-mocracia ao tempo de composio da obra14.

    12 Cartledge (2009: 4) explica este sentido genrico. 13 Sobre a historicidade do episdio, vd. Pelling (2002: History). 14 Este paralelo entre o passado e o presente evidencia-se tanto em episdios da histria dos Brba-

    ros, como dos Gregos. Vejamos, a ttulo exemplifi cativo, algumas destas situaes. Moles (2002: 35-6) considera que a entrevista entre Slon e Creso (1. 5-33) permite uma comparao com a Atenas imperia-lista de Pricles. Assim, Creso, senhor de um imenso tesouro e de um poderoso imprio, que subjuga os prprios Ldios (1. 5-6, 27), ou seja, comunidades da mesma origem tnica, considerado uma fi gurao de Pricles (que teria conseguido mudar o tesouro da Liga da ilha de Delos para Atenas e impor tributos monetrios s poleis aliadas) e a advertncia contida em 1. 32. 9 (de que se deve ver o fi m de todas as coisas, antes de avaliar uma situao) um aviso para o perigo da ascenso ateniense resultar em queda (como alis veio a acontecer, no desfecho da Guerra do Peloponeso). Sobre a fi gura de Pricles e medi-das para reforar os direitos dos cidados (o que signifi cava, muitas vezes, extorso dos aliados), vd. Ferreira-Leo (2010: 183-207). Rhodes (2007) apresenta, igualmente, uma excelente sntese sobre as controvrsias envolvendo o regime democrtico em Atenas. Tambm a Esparta do sc. VI a. C., com o seu expansionismo no Peloponeso (vd. 1.65-68, contra Tgea; 1.82, disputa de Trea com Argos; 5.98.4, contra a Arcdia; 6.76-84, contra Argos), serve no s para confi rmar o estatuto de prostates Hellados de que gozava ainda no incio do sc. V, quando estala o confl ito com o Persa (e que Herdoto lhe reconhece em 1. 69. 2), mas tambm uma fi gurao da Esparta aguerrida contempornea do historiador. Quando Temstocles responde, em tom ameaador, oposio do general corntio Adimanto sua interveno na defi nio da estratgia a seguir no confronto contra os homens de Xerxes, afi rmando a supremacia naval ateniense e invencibilidade da sua armada (8. 61. 2), pode entender-se nessas palavras uma aluso velada ao imperialismo ateniense (Rhodes 2007: 46). Tambm as vrias campanhas militares movidas por Esparta contra a tica, primeiro para ajudar expulso de Hpias e mais tarde para reconduzi-lo ptria, ecoariam aos ouvidos dos Atenienses as invases recentes. J tive ocasio de discutir noutro lugar (Soares 2007) a questo do expansionismo espartano na regio do Peloponeso e as vrias tentativas frustradas de controlar a tica.

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    Carmen Soares Theoria e praxis poltica em Herdoto

    Estes dois regimes15 pautam-se pela presena ou ausncia dos seguintes valores:

    a) uns verbalizados, como: a participao equitativa dos governantes no poder, ou seja, a governao partilhada (isonomia) da polis, o que implica a igualdade;

    b) outros implcitos, e que so o reverso (3.80.6) do modelo criticado da actuao do homem que tirano (3.80.4), a saber: a governao bem ordenada, a mode-rao, a liberdade, a legalidade e a justia.

    3. 1. Igualdade vs. despotismo

    Comecemos pela questo da governao partilhada equitativamente entre os cida-dos/governantes, colectivo este identificado:

    1. ora pelo nome que denuncia tratar-se de um grupo to numeroso que, sendo chamado de multido (plethos, 3.80.6 bis, 81.1, 82.1 e 2) ou maioria (pollos 3.80.6) compreende-se que seja considerado o todo (como se l nas palavras finais de Otanes: que na maioria que reside o todo, 3.80.6);

    2. ora pelo substantivo demos (nas falas de Megabizo e Dario16, mas no na fala de Otanes, omisso a meu ver propositada, como explicitarei mais adiante), nome revelador da origem social humilde dos detentores do poder.

    De facto a primeira vantagem ou princpio nobre do regime, enunciado por Her-doto, ao introduzir o discurso de Otanes, justamente o facto de os pragmata serem colocados no meio (es meson) dos Persas, i. e., a uma distncia/proximidade igual de todos (da a traduo que proponho para 3.80.2: defendia que a governao fosse en-tregue aos Persas de forma equitativa). J o ttulo escolhido para denominar esse tipo de gesto da polis, isonomia, aponta para um valor decorrente da partilha da gover-nao: a igualdade. De facto, na sequncia do texto, especifica-se o modus faciendi poltico que justifica a atribuio do mais belo dos nomes (ounomakalliston, 3. 80. 6) ao governo popular. porque os cidados acedem aos cargos por tiragem sorte, porque so obrigados a prestar contas do uso de fundos pblicos e porque tomam as decises em comum, graas a estas trs formas de funcionamento que se pode falar de governao partilhada, i. e. de isonomia.

    A propsito do uso e sentido do nome isonomia, h que sublinhar a importncia de ponder-lo luz do seu contexto autoral, pois s assim evitamos incorrer na interpre-tao, a meu ver redutora e descontextualizada, de faz-lo corresponder simplesmente a igualdade perante a lei. Se no, atentemos no seguinte: isonomia usa-se como o mais belo dos nomes (3.80.6) para um regime que, no resto do trecho, nunca se de-nomina de democracia, mas significativamente de governo da multido (Otanes:

    15 Vrios estudiosos tem-se centrado no estudo da representao da tirania e da democracia nas Histrias de Herdoto, de que destacamos, sobre a primeira: Waters 1971, Ferrill 1978, Gammie 1986, Parker 1988, Dewald 2003, Dewald 2008, Moles 2007, Condilo 2010; sobre a segunda: Rosivach 1988, Forsdyke 2002, Rhodes 2007, Sealey 2007.

    16 Cf. respectivamente: 3. 81. 2-3 e 3. 82. 4-5.

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    3.80.6 bis), de poder entregue multido (Megabizo: 3.81.1) e de a multido ter o governo (Dario: 3.82.1). Dessa omisso, por certo intencional, fica implcito que o outro nome por que era conhecido o regime da igualdade, demokratia, e que o nosso Autor tambm usa, conforme veremos mais adiante, possua uma conotao pejora-tiva17.

    Aduzo a favor da baixa conta em que, poca, o povo continuava a ser tido nas fontes (alis maioritariamente redigidas pela mo de aristocratas) dois aspectos for-mais evidentes no texto em discusso:

    tratando-se Otanes de um defensor do regime, natural que elegesse de entre os dois termos disponveis para design-lo (isonomia e demokratia), o que era sentido como um elogio;

    por outro lado, esse porta-voz do governo popular nunca emprega a palavra de-mos, cuja baixa conotao ressalta de forma inequvoca do uso que lhe do os dois outros intervenientes, opositores a esse regime da igualdade para a maioria. Veja-se a referncia de Megabizo ao povo indisciplinado ( , 3.81.2) e a observao de Dario, de que Quando o povo governa, inevitvel o apareci-mento da vilania! (passo em que se associa a , 3.82.4). Tambm a ideia de violncia, tpica do governo popular, reconheo-a na comparao (em Megabizo: 3.81.2) do modus actuandi do povo a um rio de torrentes invernosas, que, como sabemos, constituem uma fora indomvel e destruidora da natureza.

    Em termos de igualdades, h uma outra que se destaca como prerrogativa do go-verno das massas, a isegoria, equivalente em terminologia moderna a liberdade de expresso, ou seja, ao reconhecimento de que o estatuto de cidado confere aos in-divduos que o detm o direito de usar da palavra, no s no exerccio dos cargos nos vrios rgos polticos, mas at na condio de acusadores e rus em tribunal. O passo em que esse direito vem apresentado como factor do aumento de projeco de Atenas no panorama poltico do Mundo Grego (5.78) precisamente aps a destituio da tirania de Hpias (510 a. C.). Comeamos, pois, a perceber que, em favor da imagem da democracia, esta pode ser, e , diversas vezes, apresentada como reverso da tirania.

    Tomando em considerao o logos smio de Mendrio (mais precisamente 3.142), tido como um dos muitos ensaios polticos da obra Herodotiana (MacGlew 1993:131), o ento regente da ilha, aps o exlio e morte do tirano Polcrates, procura apresentar-se aos seus sbditos como paladino da liberdade e da justia, ao anunciar a sua renncia ao poder tirnico, em favor de uma democracia, contexto em que se emprega, uma vez mais, o nome bem quisto do regime popular, isonomia. Alm disso, ao mesmo tempo (como acabmos de ver para 3.80.2, na fala de Otanes), o Smio acentua tambm aquela que a caracterstica fundamental dos pragmata em questo:

    17 Alis, como j notou Cartledge (2009: 6), este ltimo termo, que o que haveria de fi car para a histria, tinha, na maioria das fontes antigas, um sentido negativo visceral, a que chamou de full-bloo-ded sense. Ao passo que, na opinio do mesmo helenista, o nome isonomia adquiria um sentido geral de igualdade poltica (Cartledge 2009: 8). Tambm Sealey (2007: 250-251) enfatizara que o evitar-se o uso do nome democracia em Herdoto derivaria do facto de kratos implicar um exerccio violento do poder.

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    a equidade (cf. em 3.142.3 a expresso : colocando no meio de vs o poder, anuncio-vos a isonomia)18.

    Ainda sem sairmos deste domnio genrico das vrias formas da igualdade (iso-tes), Herdoto coloca o termo isokratie (5.921) na boca de Socles, general corntio presente no conselho de guerra da Liga do Peloponeso que antecede um novo ataque tica (506 a. C.)19, destinado a restituir o poder ao mesmo tirano que, cerca de meia dzia de anos antes, os Espartanos haviam ajudado a expulsar, Hpias. Agora a igualdade de poderes que tomada por sindoque do prprio regime. Entende-se muito bem essa preferncia do Autor em eleger este termo e nenhum dos outros, se con-siderarmos dois aspectos:

    primeiro: que na fala imediatamente anterior de Socles (5.91.2), os Espartanos sublinharam aquele que j sabemos (pelas acusaes de Megabizo, 3.81.1-3) ser um defeito comum ao governo do povo e do tirano, a hybris (cf. ), o orgulho manifestado em elevar alto demais a cabea (cf. do passo do Livro V). Esses Atenienses so, pois, pejorativamente chamados pelos Espar-tanos de povo ingrato ( ); mais, a liberdade () que lhes veio da expulso da tirania (que, sempre, implica servido/douleia), porque traz poder (arche), nas mos de governantes insolentes, transforma-os em verdadeiros tiranos20;

    18 H uma terceira ocorrncia da expresso es meson (4. 161. 3), s que a diz-se claramente que os destinatrios da governao equitativa so o povo, neste caso os Cireneus (durante o reinado de Bato II, entre 550-530 a. C.). Ao rei fi caram apenas reservados poderes religiosos, passando os restantes para o demos. No entanto Giraudeau (1984: 107) prefere ver nesta reforma governativa de Cirene a transio de uma monarquia para uma oligarquia, pois seria um anacronismo aceitar uma revoluo democrtica na regio, em pleno sc. VI a. C. Os verdadeiros benefi cirios desse regime de igualdade seriam, por conse-guinte, uma aristocracia fundiria. Alis esta hiptese parece-me fortemente provvel, se aproximarmos o sucedido em Cirene (e descrito no livro 4), dos acontecimentos a que estar sujeita Mileto (5. 92), tambm por interveno de mediadores externos (aqui os Prios; em Cirene, Demnax de Mantineia).

    19 Para uma anlise pormenorizada deste discurso, vd. Moles 2007. Dewald (2003: 31) interpreta a fala de um Corntio em favor de Atenas como um verdadeiro discurso irnico, na medida em que, ao tem-po de composio das Histrias e no contexto da Guerra do Peloponeso, as duas cidades se haviam tor-nado inimigas declaradas. Alm do mais, esse dilogo entre Espartanos e os aliados contm ecos ntidos do Dilogo dos Persas, no s do ponto de vista formal, mas tambm do contedo, conforme observou Forsdyke (2002: 542), que no se limitou a chamar a ateno para esse paralelo, mas estabeleceu uma distino de fundo entre ambos os logoi. Ou seja, o episdio do livro V no constitui um dilogo aberto, como o dos nobres persas em 3. 80-82, mas sim fechado, pois resulta no elogio da democracia contra a tirania, sem qualquer margem para outras interpretaes.

    20 Alm do mais, Herdoto estar muito provavelmente a pensar nesse uso da fora/violncia de um povo (os Atenienses de fi nais do sc. VI e tambm os do sc. V, ps-Guerras Medo Persas, com a sua crescente hegemonia imperial), ao escrever uma histria passada que fala do presente. A passagem que passo a transcrever em traduo, do conselho dos Peloponsios (5. 91-92), assume-se como verdadeiro memento homo da corrupo que o exerccio do kratos exerce sobre ethoi frgeis (como o do povo e o de alguns monarcas como aqueles lembrados no Dilogo dos Persas, no livro 3, por Megabizo e Otanes): Senhora de si [Atenas] , cresce em poder, conforme j se aperceberam sobretudo os vizinhos, os Becios e os Calcidenses, e em breve perceber mesmo quem no estiver atento (5.912).

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    segundo: apesar de ser indesmentvel que, na sua fala, Socles visa denunciar a injustia e os actos cruis perpetrados por Cpselo e Periandro de Corinto, senhores absolutos (logo verdadeiros tiranos) de um regime oligrquico bas-tante fechado (governado por um nico cl familiar, os Baquadas), a verdade que o leitor/ouvinte atento das Histrias j percebeu que vrias so as vozes que se elevam contra o despotismo e que este no propriedade exclusiva de pragmata especficos (pois aparece tanto associado a tiranias e oligarquias, como a democracias), mas resulta do ethos do(s) governante(s), seja ele um indivduo (um tyrannos) ou um colectivo (uma demokratia ou uma oligar-quia)!

    No entanto, esta ideia de que, teoricamente, a tirania se ope a isonomia surge, como acabmos de perceber, associada a operaes de charme de tiranos que, para conquistarem o favor do povo, fingem abdicar da tirania, substituindo-a por regimes assentes na igual parte, i. e., na governao participada. Na verdade buscavam prolongar a sua governao no tempo, dando-lhe formas mais atraentes, isto , menos susceptveis de despertar a revolta dos sbditos. Assim age, alm de Mendrio (j considerado), tambm Aristgoras de Mileto (5. 37), num esforo de se destacar da imagem do antecessor, o sogro Histieu21. Falta ainda lembrar Cadmo de Cs (7.164), herdeiro natural da tirania de seu pai. O que o aproxima de Mendrio o discurso poltico empregue por Herdoto. Tambm deste escreve o Autor que foi em nome da justia que tomou a iniciativa de colocar o poder nas mos do povo de Cs ( letra no meio, cf. 7.164.1: ).

    No obstante o tom das suas palavras (da theoria), no fundo, nenhum destes go-vernantes busca para si um lugar de paridade entre o povo. Mendrio chamado por Herdoto tyrannos (3.145.1). Quanto a Aristgoras usou essa estratgia para encontrar aliados noutras cidades da Inia, que, em lugar de tiranos, passam a ser governadas por generais. A nica isonomia da resultante para essas gentes seria poderem eleger o seu general, que continuaria a ter poderes mais ou menos absolutos e, por conse-guinte, idnticos aos do tirano que os antecedera.22 E Cadmo, exilando-se de Cs, opta por iniciar uma nova vida, longe da influncia pouco benfica do pai, em termos de imagem pblica. Tal afastamento no significa renncia ao poder, que continua a estar associado opresso exercida contra os novos sbditos, a populao de Zancle, toma-da fora por um novo senhor, Cadmo, que assim se revela um autntico herdeiro do modus operandi poltico de seu pai, o tirano de Cs!

    Note-se, ainda, que, tanto no logos de Mendrio como no de Aristgoras, possvel detectar indcios de que ser intencional o uso do nome de sentido favorvel, isono-mia, em vez do termo pejorativo democracia. De Mendrio, Herdoto d a entender

    21 Histieu, de facto, vem apresentado como um tirano apoiado pelos Persas e inicialmente deles cola-borador. No entanto, a tirania vigente em poleis gregas da sia Menor, porque dominada pela infl uncia desses soberanos brbaros, conotava-se com falta de patriotismo, i.e. com fi lobarbarismo.

    22 Este episdio parece retomar o topos do afastamento deliberado do fi lho sucessor relativamente ao poder que poderia herdar do pai, devido imagem desgastado do progenitor, como sucedera tambm em Samos, com o herdeiro de Polcrates, Lcofron (cf.3.50-53), episdio que j tratei com algum pormenor em Soares (2003: 442-448).

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    que a sua estratgia s aparentemente se poderia chamar de altrusta e preocupada com o bem do povo. Tudo no passava de pura demagogia, pois promete-se o melhor para o povo (da falar-se de isonomia), quando a razo verdadeira para a inverso de marcha poltica de um potencial tirano (seja ele Mendrio, Aristgoras ou outros Inios) era manter-se no poder a qualquer custo. Nem que fosse numa democracia-fantoche, governada por generais, soluo confirmada pela evoluo a que se assistiu com o fim das tiranias inicas apoiadas pelos Persas, depois do desastre da coligao inio-espartana contra Naxos (5. 38). De facto, o retrato que Herdoto nos d da praxis de Aristgoras, descrita em 5. 37, revela que a democracia no passa de uma escolha poltica oportunista. O seu desgnio ntimo, para mudar de regime, era no perder a participao no governo. No contexto geral de insurreio de muitas pleis vizinhas, inicas, contra os tiranos no poder, apoiados pelo rei persa, o que o regente de Histieu percebera foi que a maneira de no acabar expulso ou morto consistia, precisamente, em tomar a iniciativa de liderar uma substituio de regime, ganhando a simpatia dos conterrneos e das comunidades gregas prximas. Eis, diante do pblico antigo e do presente, encarnados em Mendrio, Aristgoras e Cadmo, trs retratos intemporais do politiqueiro, indivduo oportunista e venal.

    Uma vez mais, Herdoto destaca, neste domnio da hipocrisia poltica, a sua universalidade em termos de comportamento humano. De facto o estabelecimento de democracias em vrias cidades inicas (6. 43), por iniciativa do general persa Mardnio, denota que os prprios Persas teriam percebido, numa tentativa de manu-teno das influncias e domnios estabelecidos, que uma forma de evitar os riscos de dissenso era no conter os desejos de reforma, que se haviam tornado evidentes com a Revolta da Inia, mas tomar a iniciativa de os viabilizar23. Assim sendo, pode dizer-se que as cidades da Inia em causa mudam de regime poltico, mas no de senhor, o Persa.

    Alis, quando no livro I (131.1) se usa o nome demokratie (nica vez aplicada a Atenas), no livro VI (43. 3), alm do substantivo, tambm o verbo demokrateesthai (a propsito da actuao do general Mardnio) ou apenas este ltimo (demokratees-thai), no livro IV (137.2), uma vez mais a respeito das cidades da Inia, em particular a Mileto de Histieu e o Quersoneso de Milcades, j no se hesita em preferir demo-cracia e derivados, em vez de isonomia. Essa escolha vocabular tanto pode apontar j para o sentido vazio que a palavra acabar por adquirir24 ou simplesmente decorrer do facto de, nesses passos, j no estar subjacente a ideia de que h destinatrios in-ternos (Megabizo e Dario, no Dilogo dos Persas, os Milsios e os Smios, diante de Aristgoras e Mendrio, respectivamente) que se deseja convencer de que esse pragma (i. e. o governo da multido) agradvel () e bom () como faz Otanes no incio da sua fala (3.80.2).

    Passemos, de seguida, anlise dos restantes bons princpios da governao popu-lar, que, numa estratgia propagandstica, que se pode suspeitar de origem anti-tir-

    23 Forsdyke (2002: 530) j notou essa ligao entre a Revolta Inica e a iniciativa de Mardnio de estabelecer democracias nessa regio do Mundo Grego, fortemente controlada pelo poderio persa.

    24 E de que d testemunho Plato, uma vez mais no Poltico, ao admitir que se d o nome democra-cia tanto forma melhor como pior do governo do povo (292 a).

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    nica e pr-democrtica, decorrem desse esforo claro de desenh-la como reverso da tirania, como faz Otanes25.

    3. 2. Boa Ordem vs. desordem

    Assim, ao mesmo tempo que retomamos o elenco dos valores da isonomia, dese-nham-se os vcios do tirano e das suas formas de governar (pragmata). Vejamos o que esta ltima (a tirania) no , para sabermos os atributos da primeira (a isonomia). O primeiro alicerce do regime , como vimos, a boa ordenao (cf. o uso do adj. bem ordenada, , 3.80.3), que no contexto da fala de Otanes significa que os governantes exercem o poder no sem nenhuma limitao (), i. e. ao correr dos seus caprichos, mas no cumprimento de regras estabelecidas. Estas regras esto claramente identificadas linhas abaixo, e consistem no s nos modi fa-ciendi determinantes da isonomia (a tiragem sorte, a prestao de contas e a tomada de decises em assembleia, 3.80.6), mas tambm no respeito pelas leis (ou legalidade, oposta anomia ou ilegalidade promovida pelo tirano: quer contra os costumes an-cestrais, quer exercendo violncia contra as mulheres) e na recta aplicao da justia (reverso da injustia de condenar morte sem julgamento, atributo do dspota).

    Repare-se que desordem, anomia e injustia so, dentro do panorama geral da go-vernao no recta26 do tirano, os piores defeitos, uma vez que, Otanes os introduz nos seguintes termos: Vou mas falar do que mais importa (, 3.80.5). Mas ser que esta boa ordenao das coisas, no conjunto das Histrias, vem confir-mada? As massas limitam-se a exercer a gesto do bem comum sempre norteadas pelo estrito cumprimento das leis/costumes fundadores do regime, praxeis de que derivar a aplicao da justia ()?

    Acabmos de perceber como legalidade (conformidade ao nomos) e justia so, a par de igualdade e da boa ordenana, valores estruturais de uma concepo terica do bom regime popular. Porm, porque estamos a considerar o regime das massas em articulao com o do tirano, seguindo a sugesto da prpria fonte (o Dilogo dos Persas, em particular na fala de Otanes), convm sermos cautelosos e no aceitarmos como verdades absolutas, ou pelo menos inquestionveis, nenhuma destas argumen-taes.

    Assim, mesmo sem sairmos do Dilogo, deparamos com a confirmao do direi-to inegvel de Herdoto ao ttulo de historiador, uma vez que no se limita a produzir uma propaganda acrtica de qualquer um dos regimes (muito em particular do demo-

    25 Para um retrato negativo da tirania, Herdoto deve ter-se igualmente inspirado em tradies orais anti-tirnicas, que tinham por reverso natural, como alerta Forsdyke (2002: 525), legitimar os sistemas polticos no-tirnicos.

    26 Embora possa parecer abusivo retirar das duas opinies de Dario (expressas em 3.82.1) sobre Me-gabizo falar rectamente ( ) e no rectamente ( ), primeiro a propsito da conde-nao da isonomia, depois do elogio da oligarquia, um conceito-chave da conceptualizao platnica, que o de constituio recta ( ), a verdade que, o contexto em que estamos precisamente o do debate constitucional, logo de alguma forma defensvel que, tambm aqui, percebamos como a re-fl exo terica herodotiana pode conter indcios de uma hermenutica fi losfi ca estrutural no pensamento poltico de Plato.

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    crtico27), antes lhe aponta foras e fraquezas. Os defeitos do governo do povo tam-bm nesse trecho ficam bem claros. Megabizo denuncia o desregramento ou indisci-plina que pode pautar os actos desse povo (chamado de , 3.81.2), a sua falta de inteligncia28 e instruo (3.81.1), bem como a forma irracional com que gerem os pragmata. Esta falta de ponderao, podemo-la tambm ler na metfora, j atrs evocada, da precipitao incontrolvel do caudal dos rios no inverno (3.81.2). Ou seja mais uma nota negativa que ajuda a explicar as muitas semelhanas que, nas fontes crticas ao regime popular, sobressaem entre democracia e tirania. Ambos podem ser pragmata despticos, de poderes irreprimveis e dominadores. J quando Dario critica a cumplicidade (as alianas, philiai, referidas em 3.82.4) que se estabelece entre tais governantes, como forma de se desculparem mutuamente das decises erradas (os actos de vilania) tomadas contra o interesse comum (es ta koina), deduz-se que, aci-ma do interesse comum, mesmo numa democracia, esto os interesses individuais! Repare-se que, no ter sido, a meu ver, ocasional o facto de tanto Megabizo como Dario, por estarem a descrever uma forma kakos do governo das massas, nunca deno-minarem esses pragmata de isonomia e repetirem vrias vezes o substantivo demos de preferncia a plethos (que, no entanto, continuam a utilizar: 3.81.1, 82.1).

    Mas recuperemos as marcas de vilania associadas ao regime e aos governantes29. O referido erguer-se acima das normas, que estabelecem uma ordem, leva a actos excessivos, de hybris (ou falta de moderao). No entanto, do confronto entre as falas de Otanes (3.80.3) e Megabizo (3.81.1), confirmamos que democracia e tirania so ambos regimes em que se admite existirem esses abusos de poder. Alm da questo da insolncia, imputada a ambos os pragmata, tambm a vilania mina as duas formas de governao (cf. acusaes de Otanes, em 3.80.4, e de Dario, em 3.82.4). De facto, basta lembrar que tanto uma como a outra tm em comum a concesso de poderes ab-solutos a quem governa. A grande diferena est em que num caso estes se concentram nas mos de um nico indivduo (o tyrannos), ao passo que no outro so partilhados por uma multido de cidados.

    Consideremos, agora, situaes concretas (praxeis) dessa sobreposio, no mbito da democracia, dos interesses particulares aos comuns, abordagem que confirma, uma vez mais, que theoria e praxis so polos complementares na anlise do pensamento poltico em Herdoto. Limitar-me-ei a exemplificar a questo atravs de um caso paradigmtico, o do ateniense Temstocles (8.4-5), homem democrata que sucumbe ao ganho, porque se deixa comprar por 30 talentos, para convencer uma assembleia (neste caso de aliados gregos) a aprovar determinada estratgia (no decurso da batalha de Artemsio), estadista que j retratei como um verdadeiro poltico dos mil artifcios (Soares 2002: 33).

    27 Forsdyke (2002: 534). 28 Entre as crticas ao poder do povo est a estupidez, ou seja a falta de conhecimento/sabedoria

    (por contraste com a inteligncia do monarca como refere Dario, um Persa, e d conta Herdoto com a histria da recusa de Clemenes, um Grego, em aceitar o desafi o de Aristgoras (5. 97), contrastando com a facilidade de persuadir/ludibriar o povo ateniense, tanto pelo Milsio, como por duas vezes por Pisstrato (1. 59-60).

    29 Veja-se o uso insistente de vocabulrio da raiz kak- (vil, mau): kakos (3.81.3, 3.82.4), kakistos (3.80.4), kakeo (3.82.4) e kakotes (3.82.4 bis, 3.80.3).

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    3. 3. Liberdade vs. escravido

    Antes de evocarmos o aparente paradoxo, luz da theoria de Otanes, mas no das opinies (gnomai) de Megabizo e Dario, de considerar a democracia ateniense tirnica ( imagem do que veio a fazer Tucdides30), completemos a anlise do elenco das qualidades e defeitos de ambos os regimes e respectivos governantes, com a refe-rncia liberdade vs. escravatura. No Dilogo dos Persas, fica evidente no uso do verbo servir (, 3.80.5) que os cidados de uma polis esto para o seu tirano na condio de servos. Claro que o caso mais emblemtico, de ntidos contornos irnicos para os contemporneos de Herdoto, o de Atenas, que, aps a expulso dos tiranos, atinge a liberdade (eleutheria), subentendendo-se, naturalmente, que antes era escrava (5.65.5). Alis, so sobretudo os feitos polticos (pragmata) democrticos que, segundo o texto, tornam os Atenienses mais poderosos (cf. mezones, 5.66.1). Este passo do livro 5 serve, pois, de mote para equacionarmos o papel que jogam na governao o trptico de princpios eleutheria-douleia-arche (liberdade-escravi-do-poder).

    Primeiro h que compreender que o sentido de liberdade se define por referncia ao seu oposto. I. e., eleutheria significa deixar de ser escravo, adquirindo o poder (que no se tinha, uma vez que se estava subordinado a um outro). No entanto, e neste aspecto reside a perverso da aliana entre poder e liberdade, uma polis/povo/reino, para se tornar uma potncia (literalmente: possuir arche), tem que reduzir outros a dependentes/sbditos/escravos. No contexto do Dilogo dos Persas, Dario apresenta a liberdade como uma ddiva do governante nico (3.82.5). De facto, os Persas libertaram-se dos Medos, que reduziram escravatura, pela mo de um ho-mem, Ciro. A liberdade, pode e deve, neste sentido, ser uma virtude da governao monrquica.

    No obstante, noutras circunstncias, como as j consideradas de Atenas e de ou-tras poleis inicas sob tiranos, veio-lhes da isonomia. Ainda assim, nesses discursos, em primeira instncia, a eleutheria no deixa de ser apresentada como uma ddiva de um homem (seja ele o Clstenes ateniense, ou os tiranos, que, com uma hipcrita generosidade, a oferecem aos seus concidados).

    Mas, o quadro da nossa anlise no se pode restringir, como alertei no incio da minha reflexo, a uma leitura fechada, circunscrita a seces bem delimitadas das Histrias. Tambm os Medos, por intermdio de Djoces, se libertam do jugo de outro povo, os Assrios (1. 96. 1), mas apenas para se verem reduzidos condio de escra-vos de um novo senhor, da sua etnia certo, Djoces, que, com a mudana de homem privado (sbio/sophos e justo/dikaios, qualidades que lhe mereceram ser eleito juz da sua aldeia meda, 98.1) para a de primeira figura do estado, assume comportamentos de tyrannos . de reter que o que os Medos queriam era um rei (basileus, 1.97.3), mas a forma abusiva como esse eleito por eles (1.98.1) exerce o poder leva a que os respectivos pragmata venham classificados por Herdoto de tyrannis (1.100.1). De

    30 Repare-se que Tucdides coloca na boca de Pricles e Clon a admisso de que o imprio ateniense era uma tyrannis (2. 63. 2, 3. 37. 2).

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    facto verifica-se que uma mesma pessoa, esse tal soberano-salvador, tanto pode dar a liberdade como submeter escravido aqueles que governa31.

    Vejamos outros dois contextos idnticos, envolvendo agora personagens gregas, pois nesta comunho greco-persa de actuar confirma-se a viso universalista de Her-doto em matria de pensamento poltico. Diz-se, ora do arconte polemarco ateniense, Calmaco de Afidna, antes da batalha de Maratona (6.109.3), ora do almirante ate-niense Temstocles (8. 60 ), antes de Salamina, que, perante a escolha da estratgia a seguir no combate ao Persa, ambos tm nas mos o poder de escravizar (caso optem por medidas que levem derrota) ou libertar/salvar (da escravido) quem lhes deu o poder (se tomarem uma deciso que traga a vitria)32.

    No fundo trata-se de retratar as cidades segundo os mesmos padres ticos com que se delineou o perfil dos governantes. Ou seja, assim como um monarca (governan-te nico, dotado de virtudes), pode degenerar num tirano (veja-se o uso da construo de sentido potencial: an+predicado no optativo aoristo, 3.80.3, na fala de Otanes), mas no obrigatrio que isso acontea (da Dario afirmar, usando o presente do indicativo, que, na teoria, h um monarca aristos, 3.82.1), tambm uma polis pode trilhar idntico percurso, passando de libertadora a tirana. Esta a theoria que expli-ca os acontecimentos (praxeis) sucedidos em Atenas, que, depois de libertar cidades inicas do jugo persa, as transformou em aliadas-dependentes ou verdadeiras escravas (caso de Clcis, 5. 77)33. Pelo que, aos ouvidos dos contemporneos das Histrias e do pblico que assistiu ao desfecho da guerra do Peloponeso, de aceitar que os vrios retratos que fazem de Atenas a grande defensora do pan-helenismo e da democracia libertadora na Grcia Antiga34 possam encerrar uma certa ironia.

    H, ainda, que equacionar as relaes entre poder, liberdade e servido sob outro prisma, o dos condicionalismos do interesse individual e da sede de poder a qualquer preo. Esta lgica j a encontramos enunciada na fala de Otanes sobre o tirano, de quem se diz que o poder corrompe (3.80.3-4). De facto esse desejar ardentemente a tirania ( , como se l a propsito do primeiro monarca medo, Djoces, em 1.96.2) que determina que, diante da ponte erguida sobre o Danbio, os tiranos inicos escolham trocar a liberdade dos que governam e a sua (4.136-9) pelo seu lugar no poder, que lhes assegurado pelo senhor persa (Dario), a quem preferem, por isso mesmo, manter-se fiis. Uma vez mais o grande motor da aco poltica no o interesse comum, mas o individual35. Um outro exemplo de mais um tirano grego que opta por esta via Polcrates. A este, o nobre persa Oretes, governador de Sardes, lana uma armadilha fatal, tendo por engodo a promessa de lhe oferecer riquezas que o ajudariam a concretizar as suas aspiraes hegemnicas sobre as ilhas do Egeu e a

    31 Este episdio indicia, quanto a mim, a opo que Plato claramente faz no Poltico, quando divide a monarquia em duas (291 e 1-5), sendo que a forma melhor a realeza (, palavra formada da mesma raiz do substantivo basileus) e a pior, tal como em Herdoto, a tyrannis.

    32 Cf. ... (6.109.3) e (8.60). 33 Um primeiro indcio desse movimento descendente de Atenas surge nas Histrias na referncia a

    que Temstocles, por iniciativa prpria, mas mesmo assim escudando-se no nome da sua cidade, usou da fora militar para extorquir dinheiro a vrias ilhas do Egeu (Andros, Caristo, Paros e outras, cf. 8. 111-112).

    34 Cf. 7.138-139, 8.2-3, 8.143-144, 9.4, 6-11. 35 Raafl aub (2002: 184) destaca o papel desse factor na dinmica poltica da historiografi a herodotiana.

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    Inia (3. 122). A ambio imperialista das poleis gregas motiva, pois, os pactos que os lderes gregos assumem com os Persas.

    Mas como Herdoto produz um discurso de natureza historiogrfica, o mesmo dizer que se pauta pela iseno e objectividade, no deixa de revelar posies contr-rias a esse egosmo poltico, nomeadamente na recusa dos mensageiros espartanos em aceitarem a submisso a Xerxes, negando-se a trocar a liberdade pela servido (7. 135.3) e, a um nvel colectivo, na deciso dos Foceenses e do povo de Teos, ni-cos Inios que, para evitar a escravatura decorrente da sujeio ao Persa, durante as invases de Dario, deixaram as suas ptrias para fundarem colnias, com o intuito de a poderem continuar a viver livres (1.16.1).

    4. OLIGARQUIA: UM REGIME DISCRETO NO DISCURSO POLTICOHERODOTIANO

    Alm das ocorrncias no Dilogo dos Persas, na restante obra do nosso his-toriador apenas encontramos mais duas referncias e reflexes tericas, breves, ao governo da minoria. Da anlise conjunta daquele episdio e dos passos referentes aos casos de Mileto (5. 28) e de Corinto (5. 92) percebemos como as situaes das cidades gregas confirmam as teses defendidas ora por Megabizo (a favor), ora por Dario (contra) o regime oligrquico. O argumento do nobre persa (3.81.3) de natureza tica, por um lado, quando defende que as melhores decises ( ) nascem da deliberao dos melhores dos homens ( ), ou seja daqueles que possuem em grau mximo a excelncia (). No entanto, e como j vimos supra (quer a propsito do governo popular quer do gover-nante nico, neste caso desptico), um mbil que no se pode desprezar em nenhu-ma dessas formas de agir (pragmata) o proveito pessoal. No caso da oligarquia, encontramos de forma despudorada a evocao desse oportunismo poltico, quando Megabizo declara mas ns, ao invs, escolhido um grupo de homens dos melhores, confiemos-lhe o poder! Realmente, entre esses, tambm ns estaremos includos (ibidem).

    Tal como temos percebido (nomeadamente pelo episdio de Djoces e pela imple-mentao de democracias, tanto em Atenas como noutras cidades da Inia) tpico da concepo herodotiana e posterior o princpio da sucesso dos regimes. Essa mudana de regime nasce de climas de descontentamento interno dos cidados, traduzveis, frequentemente, em revoltas sangrentas (as conhecidas staseis). Da que, por vir sanar as perturbaes sociais vigentes, se reconhea oligarquia, que se instalou em Mileto, entre a queda de Trasibulo (590 a.C) e a tirania de Histieu (525 a. C.)36, esse efeito de governo regenerador, ainda que temporariamente.

    36 A virtude da boa ordenao recupera-se neste passo, atravs do uso do verbo , aqui sob as formas e , e que vimos atrs empregue, a respeito da democracia, na fala de Otanes, sob a forma de particpio perfeito passivo . Cartledge (2009: 53) considera este caso provavelmente uma fi co, com o intuito de explicar a forma como muitas cidades gregas teriam resolvido as situaes de desordem intestina.

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    A nova constituio, e a inerente pacificao da desordem, dada aos Milsios por um grupo de aristocratas prios (precisamente chamados aristoi, 5.29.1), que confiam o governo participado da polis ( ) a uns poucos (, 5.29.2). Estabelecendo de novo o paralelo com a fala de Megabizo, verificamos que o pr-prio defensor da oligarquia que a reconhece, ao aplicar ao povo e aos oligarcas (ambos com o sentido de assembleia), que estaremos, nos dois casos, pe-rante exerccios partilhados da governao, radicando a diferena apenas no nmero de governantes.

    Uma outra aproximao devemos estabelecer entre estes dois passos do livro 3 e o do 5, em termos de valores alicerantes de um bom regime, a qual se prende com o peso que assume na tomada de decises o interesse privado. Quando Herdoto fala na terceira pessoa, como o caso da descrio que faz da forma como a soluo da crise foi temporariamente conseguida para Mileto, ele tem o cuidado de dizer, to s, que essa elite governaria to bem as questes do povo como as suas37. No podemos da deduzir que esses aristocratas alguma vez equacionariam prejudicar os seus interesses pessoais em nome do bem comum popular, nada disso (tal deduo seria um anacro-nismo absurdo).

    De facto, enquanto que na oligarquia aristocrtica, chamemos-lhe ns assim, de que fala Megabizo, supomos que, pelo que Dario no diz, no haveria um desequi-lbrio entre os interesses pblicos e os privados (dessa elite governativa, claro), na oligarquia degenerada, a corrupo e disputa entre os pares pela liderana originaria um grave desajuste entre as ambies de cada um e os do grupo governativo enquanto comunidade (i. e. koine). Alis, o prprio exemplo de Corinto (5.92 b 1), cidade em que Socles diz que uma famlia, a dos Baquadas, mantinha uma forma de oligarquia radical e dinstica, aponta para a realidade, teorizada no Dilogo dos Persas, de que um dos poucos se ergue acima dos outros, podendo transformar a praxis governativa oligrquica numa tirania, como sucedeu nessa mesma polis (cf. 5.922; 5.921; 5.924) 38.

    Uma questo final se impe a respeito da oligarquia: por que razo ser to bre-ve o tratamento reservado nas Histrias quele que, nos crculos intelectuais gregos aristocrticos, era, de um modo geral, o regime mais querido e o adoptado por mais cidades? Tem-se explicado essa quase omisso com o argumento de que, na sua obra, o Autor privilegia, como de facto faz, as praxeis de governos e governantes que no os da oligarquia (Lateiner: 168-9). Na opinio de Dewald (2002: n. 18, p. 52) essa discri-

    37 cf. 5.29.2: . 38 Esta evoluo de pragmata oligrquicos para tirnicos impele os estudiosos de histria da Grcia

    Antiga a considerar fontes arcaicas anteriores ao nosso Autor, em que se exprimiu o receio do surgimento de um tyrannos para pr termo a governos oligrquicos em crise veja-se a Atenas de Slon: F 34 W, vv, 6-8 e F 36 W, vv. 20-22 (trad. portuguesa de Leo 2001: 450 e 452) e a Mgara de Tegnis: vv. 39-52 (trad. portuguesa de Ferreira 1995: 81). Ou, no caso das Histrias, ainda o facto de o momento em que Pi-sstrato toma o poder coincidir, precisamente, com o enfraquecimento da oligarquia plutocrtica herdada das reformas de Slon (Hdt. 1. 59). Tambm os governos populares, igualmente com governantes subju-gados a interesses privados, seus e de lderes populares, j o analismos largamente, vem-se submergir em confl itos, que s uma revoluo poltica ser capaz de controlar.

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    o prender-se-ia, ainda, com as dificuldades que o historiador teria em negociar com vrias famlias aristocrticas o acesso e o tratamento a dar aos seus passados.

    Penso, no entanto, que, se tivermos em linha de conta o facto incontestvel de que o Autor produto e produtor de uma tradio de pensamento poltico clssico, e se aproximarmos esta fonte daquela que em matria de sistematizao de politeiai consi-dero ter dado, no domnio da filosofia platnica, o passo decisivo para uma construo de um mundo possvel dos pragmata, o Poltico39 mundo esse possvel que tambm encontro teorizado na fala de Dario, conforme de seguida demonstrarei ob-temos a confirmao de que, oligarquia, estes dois pensadores reservaram um papel marginal. Entenda-se, claro, essa marginalidade, em sentido literal. Ou seja, ao con-trrio das formas de governo popular e monocrtico, que originam reaces extremas entre os intelectuais, porque, como diria Herdoto, originam praxeis que so verda-deiros thomasia (prodgios), o governo das elites, antecipando a proposta platnica, podemos encar-lo como uma forma intermdia de governao40.

    5. MONARQUIA: A POSSIBILIDADE DE UM GOVERNO PERFEITOMONOCRTICO

    Na anlise que produzi sobre o governo da multido, julgo ter j deixado suficien-temente clara a ideia de que o poder de um s (traduo literal de monos+archia) deriva, ele prprio, de a sua arche assentar em dois alicerces fundamentais: a ausncia de mecanismos que restrinjam o exerccio do poder do monarca (cf. uso do adjectivo aneuthunos em 3.80.3) e o ethos excepcional (leia-se repleto de virtudes) desse homem (cf. , ibidem). Verdadeiramente a tica (boa ou m) que determina a praxis poltica.

    Claro que, conforme fomos constantando, tanto pelas observaes de Otanes (que fala de , 3.80.3), como pelas de Megabizo (que emprega , 3.81.2), do ponto de vista do intelecto, um aristos (seja ele um grupo de aristocratas ou um mo-narca) potencialmente reuniria condies para governar bem. Mas o que se busca, em Herdoto, nesta reflexo terica, no apenas o regime e o governante excelentes,

    39 A questo de no dilogo em apreo termos bem desenhados trs mundos para as politeiai con-ceptualizadas por Plato um universo ideal (o das ideias, intelegvel, logo inalcanvel por todos aqueles que no sejam fi lsofos ou polticos verdadeiros), um universo possvel (por ser aquilo que dentro das suas possiblidades, leia-se, dos seus limites, os homens podem alcanar) e que pode tambm ser verosmil (por se assemelhar a essa verdade absoluta, onde existir a verdadeira e recta politeia), e um universo real (o do presente histrico da Atenas contempornea do fi lsofo), j foi por mim discutido em duas ocasies. Primeiro no mbito do I Colquio PRAGMA/CECH: Politea e Utopia no pensamento antigo (3 a 6 de Setembro de 2012), Instituto de Filosofi a e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com a designao: O Poltico de Plato e o fi m da politeia utpica? (Soares 2013). Posteriormente no Seminrio da Sociedad Ibrica de Filosofi a Griega (SIFG), realizado na Universidade Complutense de Madrid (16 de Novembro, 2012), sob o ttulo: O mundo possvel da politeia utpica n O Poltico de Plato.

    40 Assim haveria de propor Plato, ao afi rmar, pela boca do Estrangeiro: Quanto ao governo que no das massas tratando-se de uma minoria intermdia entre um s indivduo e a maioria vamos consider-lo do seguinte modo: como um meio termo entre essas duas formas de constituio (Poltico 303 a 1-3).

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    pois estes at existem, uma vez que Dario usa o presente do indicativo (3.82.1)41, quando esclarece:

    Dos trs regimes que temos nossa disposio, afirmo que apesar de todos eles serem os melhores ( o melhor o governo do povo, a oligarquia e a monarquia ) este ltimo de longe superior aos outros.

    Demanda-se, sim, como suceder mais tarde no texto platnico, que permanentemen-te temos trazido colao ao longo do nosso estudo, os pragmata e o(s) governante(s) perfeito(s). Esta adjectivao (perfeito), uma interpretao minha e no surge empre-gue por Herdoto. A sua atribuio deve-se ao facto de o Autor considerar que entre os melhores regimes h um que os supera em muito ( , ibidem).

    Passo, de seguida, a explicar em que me fundamento para propor esta hermenutica e respectiva conceptualizao. Algo, para ser perfeito, tem que ser identificado como o cmulo da excelncia. isso que Herdoto faz aqui, como mais tarde tambm, de forma diversa, bvio, o h-de fazer Palto. Ou seja, pela voz de Dario, admite-se que os trs regimes tradicionalmente colocados disposio dos homens (o governo do povo, a oligarquia e a monarquia) todos so excelentes (aristoi, 3.82.1). No obstante, de entre esses trs h um (o do governante nico aristos) que Dario admite ter possibilidade de se revelar (veja-se novamente o uso de an+optativo: , 3.82.2) o melhor () e a possibilidade de [o respectivo governante] zelar ( , ibi-dem) de forma irrepreensvel (, ibidem) pela multido. Sublinho o facto de o historiador optar por modalizar o seu discurso, remetendo esse regime e esse governante para a esfera de um mundo que no real, que no o do seu tempo (da no termos, nestas circunstncias, o emprego das formas verbais no modo indicativo), mas sim um mundo da possibilidade (expressa pelo recurso ao modo optativo).

    Faz todo o sentido, luz do que as Histrias nos legam como fonte do pensamento poltico-histrico do sc. V a. C., que assim seja. Efectivamente o que testemunham praxeis dos governantes nicos descritos na obra que nenhum deles corresponde, de facto, a formas de governao e a homens polticos que preencham os requisitos enunciados de um nvel de excelncia verdadeiramente irrepreensvel.

    Claro que h um outro argumento de fundo, evocado por Dario, para defender que monarquia se reconhea o mrito de poder ser (cf. supra, optativo em 3.82.2) o me-lhor dos melhores regimes. A seu favor jogava, na boca do monarca persa, a vantagem de esses pragmata restaurarem a ordem civil (pondo termo inclusiv a homicdios de cidados). Repare-se, no entanto, que, do ponto de vista da praxis dos acontecimentos histricos reais, tanto a isonomia como a oligarquia podem ser pragmata regenerado-res de crises de sistemas polticos diversos, que entretanto se haviam revelado incapa-zes de controlar a stasis.

    Mas, na opinio de Dario, apenas a monarquia que goza dessa graa. Ateno que as circunstncias exactas por ele apresentadas para o regime em questo surgir como governo regenerador da oligarquia so diversas das que indica para quando salva o povo da falncia da democracia. Assim:

    41 .

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    No primeiro caso (da oligarquia), julgo eu, como o monarca originrio do grupo social dos aristocratas desavindos, tratar-se-ia de uma soluo natural, i. e. tomada entre pares (alis, um pouco semelhana do que sucede com a estratgia assumida pelos sete conspiradores persas que depuseram o Mago Gaumata).

    No segundo caso (da democracia), o monarca apresentado como o tutor ( ) do povo, algum que, por merecer a admirao das massas, foi de livre vontade aceite para pr termo stasis42.

    Os ecos que iremos encontrar no Poltico de Plato sobre os critrios tradicionais de diferenciar a monarquia dos outros regimes (e que acabmos de destacar) so mais que evidentes. Lembremos apenas que a se afirma que a constituio verdadeira-mente autntica a do governante nico ( , 301 a 1, com a preciso de que este tem de possuir a politike episteme) e de que estamos perante uma realeza, quando o governo consentido (ao contrrio da tirania, que se impe pela fora aos sbditos, tanto povo como nobres, indiferenciadamente, 291 e 1-5).

    Contudo, se quisermos, agora, procurar nas Histrias figuras e regimes que mate-rializem a theoria de Dario, esbarramos com a inexistncia de uma nica figura inc-lume. Quando muito, e como j observaram estudiosos vrios, desde Waters (1971) a M. Ftima Silva43, mesmo aquelas figuras, de reis persas ou senhores gregos que tm um incio de governo auspicioso (como Dario, alm de Ciro e Cpselo), acabam por degenerar, bem como os seus governos, segundo o processo inevitvel de que o poder pode corromper o ethos dos governantes.

    6. CONCLUSES

    Retomemos as advertncias metodolgicas que teci no incio deste estudo. Refiro-me necessidade de empregar com sabedoria os nomes, o que no caso da minha an-lise significa estabelecer uma tipologia de regimes e governantes. No devemos, pois,

    42 Ou como se l no texto: ele admirado pelo povo e , certamente, por ser admirado que se torna um monarca ( , , 3.82.4). signifi cativo que, para chamar esse governante regenerador, se empregue a expresso , e no, como sucede na verso degenerada da monarquia, despotes ou tyrannos. Insiste-se, uma vez mais, que a superioridade moral desse indivduo a justifi cao para que o povo se entregue aos seus cuidados. Dewald (2003: 30), no entanto, considera o episdio do Dilogo dos Persas profundamente irnico porque a argumentao de Dario em favor da monarquia s aceitvel, se ante-ciparmos a argumentao platnica, e aceitarmos que existe um ser humano perfeito, i. e., que merea o estatuto de aristos. A meu ver, s poderemos interpretar como irnico o passo, se identifi carmos Dario como porta-voz de Herdoto, o que seria difcil de sustentar. S porque na obra no encontramos nenhu-ma fi gura que encarne o monarca dotado de excelncia, tal no signifi ca que esse no tenha sido sempre, pelo menos j desde a Odisseia (conforme demonstarei no termo deste estudo), o modelo buscado. A meu ver, nas Histrias, o retrato elogioso da monarquia e do rei so, por conseguinte, o produto de uma longa tradio grega.

    43 In Ferreira-Silva 1994: 21-49; Silva 1995; Silva 2007: 26-32.

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    e espero ter conseguido demonstr-lo, cair na tentao de confiar nos nomes-rtulos usados nas Histrias para os regimes.

    No dilogo frequente que fui estabelecendo entre Herdoto e Plato, esses dois grandes nomes da koine intelectual dos scs. V-IV a. C.44, procurei dar conta de que uma leitura em profundidade da obra do primeiro (necessariamente intra e extra-die-gtica) deixa perceber que o Autor no aplica nomes autonomizados para um regime bem definido. Alis, o fundador da Academia advertiu, de forma lapidar, a propsito do termo democracia para o perigo da rotulagem diferenciadora de constituies distintas45.

    Se nos ativssemos exclusivamente aos nomes, quais jovens imaturos iniciantes na reflexo hermenutica, concluiramos que, das falas dos trs nobres persas, ressaltam apenas quatro tipos de constituies, com base nos nomes que a surgem: monarquia, tirania, oligarquia e isonomia (sendo que os primeiros dois, numa leitura superficial da fala de Otanes, at poderiam parecer sinnimos). No entanto, o que verificmos foi que o primeiro regime (monarquia) empregue por Otanes para uma forma de actuar/governar completamente diversa daquela que, sob o mesmo termo, caracteriza Dario46.

    Quanto ao uso dos nomes tyrannis (3.81.1) e tyrannos (3.80.4), sempre que apare-ce (ora na boca de Otanes, ora na de Megabizo, respectivamente), serve para epitetar a verso degenerada do governo de um s. Se acrescentarmos, ainda, que, conforme j notmos, no logos do primeiro rei Medo, Djoces (1. 96-101), se diz que o governante da boa monarquia, se chama basileus, torna-se, uma vez mais, evidente o paralelo com o Poltico, onde se l, a propsito da diviso em dois de cada um dos trs regimes arquetpicos: s metades provenientes da monarquia atribuem-se as designaes ti-rania e realeza (291 e 5).

    Quanto ao governo da minoria, embora se empregue apenas o termo oligarquia, procurei evidenciar as razes que no texto de Herdoto permitem, no caso da verso melhor, falarmos de oligarquia aristocrtica, por contraste com a forma degene-rada, cujo nome no sofreria alterao (i.e., seria simplesmente oligarquia). Alis, esta tambm a tipologia proposta por Plato, no dilogo em apreo (291 e 6-7), pois, como a se l: Todavia, sempre que uma cidade governada por uma minoria, chama-se ao seu regime aristocracia ou oligarquia.

    J o governo da multido, em Herdoto, recebe o nome isonomia para etique-tar o regime da excelncia, ao passo que ao da vilania, percebemo-lo, preferia-se

    44 Raafl aub (2002: 161) defende que a discusso sobre a melhor forma de governo aparece em vrios escritos contemporneos de Herdoto (de que destaca as Suplicantes de Eurpides), pelo que no se deve falar na dependncia do historiador em relao a outros pensadores, mas sim considerar que esse tema fazia parte do que chama de koine intelectual do fi nal do sc. V a. C. na Hlade (idem: 154).

    45 O fi lsofo (uma vez mais no Poltico, 292 a) faz essa observao a propsito do governo do povo, ao afi rmar: No respeitante democracia, quer as massas exeram o poder sobre os detentores da riqueza pela fora ou livremente, quer respeitem escrupulosamente ou no as leis, no h, em absoluto, o hbito de lhe mudar o nome.

    46 Como o que tm em comum serem pragmata de um governante nico (mounarchos), em ter-mos estritamente etimolgicos, essa confl uncia onomstica compreende-se, j que tanto se pode chamar mounarchia a um poder monocrtico de tipo desptico assim procede Otanes (3.80.3) como ao poder exercido por um homem dotado de excelncia realidade a que se reporta Dario (3.82.2).

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    chamar democracia ou governo do povo (atendendo m fama de que gozava, no sc. V, o substantivo identificador do extracto social humilde dessa maioria).

    Ainda nessa linha de fonte concatenadora de uma tradio que haveria de se apri-morar no pensamento filosfico poltico posterior, Herdoto indicia que, entre as trs formas consideradas melhores, h uma delas que melhor que as outras duas, tam-bm elas melhores. Claro que, no Poltico, essa forma perfeita no corresponde a uma pertencente a um grupo de trs melhores, como aqui. Est, antes, para alm des-sas. Ou seja uma forma recta, verdadeira e legtima, perfeitamente autonomizada das outras seis47 de que o filsofo fala, as constituies-imitao dessa tal, nica48. Assim, em Plato deparamos com uma stima constituio (303 b 1-5), ao contrrio de todas as outras (302 b 6), livre do qualificativo penosa (, que em Her-doto tambm encontramos aplicado ao governo de Djoces, quando este deixou de aplicar a justia de forma recta, mas tornou-se implacvel cf. 1.100.1: ).

    Postas de parte as enormes diferenas epistemolgicas evidentes entre o discurso histrico de Herdoto e o filosfico de Plato, a verdade que ambos foram homens do seu tempo, atentos aos temas polticos que agitavam a vida dos seus contempo-rneos. E, quando quiseram colocar na boca de alguma das suas personagens ( ir-relevante e inconclusiva a discusso de fazermos concidir a voz destas com as dos respectivos Autores), uma proposta de regime e governante perfeitos, o que fizeram?

    Pragmaticamente verificaram (conforme percebemos pela leitura do que escreve-ram) que a perfeio ainda no se atingira, estando remetida para um universo pos-svel e desejado.

    Do ponto de vista terico, intuimos que os pragmata que, aparentemente, melhor correspondem a essa busca da perfeio, no fundo, derivam das mais remotas fontes literrias de apologia do monarquia, forma de governo que mais aproxima o homem da divindade, o mesmo dizer da perfeio. No esqueamos que a crena na origem divina do poder monrquico tambm razo para se considerar o rei senhor da justia. Tal como Zeus no Olimpo, o rei o senhor do ceptro na terra. Alis, no Poltico, quan-do se fala desse forma ainda por atingir de governao perfeita, curioso notar que a monarquia com leis, tal como no discurso de Dario, merece o ttulo de governo real (i.e., com existncia histrica) de eleio ou imitao do governo perfeito.

    Tambm uma longussima tradio grega de revestir de uma aura divina o governo monrquico poder, de algum modo, justificar essa posio de destaque que cabe ao governo de um s, numa hierarquia de pragmata que queiramos estabelecer com base nas fontes consideradas.

    Lembremos, uma vez mais, o texto do fundador da Academia, na medida em que aclara o pensamento terico poltico de Herdoto:

    47 De passagem Cartledge (2009: 21, 75) chama a ateno para o papel percursor de Herdoto rela-tivamente s seis constituies de que fala Plato.

    48 Ou seja as seis politeiai de que fala Plato so formas do mundo real, que no devem ser chamadas legtimas ( ) nem verdadeiras ( ), mas to-s imitaes ( ) daquela [a nica constituio perfeita] (293 e 3-4), por isso denominadas constituies no perfeitas ( , cf. 302 b 5).

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    No entanto o prmio da excelncia e o lugar de destaque cabe primeiramente referida49 exceptuando a stima50. Realmente esta deve ser distinguida das restantes constituies, tal como deus se distingue dos homens (Poltico 303 b 4-5).

    Se o que pretendi demostrar com esta anlise de Herdoto (terico e prtico), em dilogo com o pensamento filosfico que lhe julgo mais prximo (o do Poltico de Plato), foi que a busca incessante da excelncia poltica faz oscilar os pensadores entre o entusiasmo da esperana na mudana para melhor e o desnimo de ver ruir (quase sempre) a concretizao desses anseios, queria relembrar que temos de re-montar, como sempre, tambm fonte escrita mais antiga que possumos da literatura ocidental, os Poemas Homricos (Odisseia XIX), para nos darmos conta de como, apesar dos seus pelo menos quase 30 sculos de idade, esse texto continua a ser ma-triz fundadora universal da busca da excelncia poltica (aquela que leva o povo arete, cf. v. 114: ). Para ns, pblico do sc. XXI, o passo encerra uma mensagem de elevao tica e material (porque tambm deste ltimo aspecto se trata) de governantes e governados, independentemente da forma de regime que possa vir a proporcion-la (conforme percebemos do texto de Herdoto), tendo por desgnios maiores promover a boa administrao da justia (cf. , Od. XIX, v. 111) e a prosperidade (logo a felicidade) dos povos. Escutemos, o elogio desse bom governo (, idem, v. 114), exercido pelo rei irrepreensvel ( , idem, v. 109)51, nas palavras que o mendigo Ulisses dirige sua esposa Penlope, em traduo de Frederico Loureno (2003):

    Respondendo-lhe assim falou o astucioso Ulisses:Senhora, no h homem mortal em toda a terra ilimitadaque te pudesse censurar. A tua fama chegou j ao vasto cu, semelhana do rei irrepreensvel que, temente aos deuses, reina sobre muitos homens valentes e promulga decisesque so justas: a terra escura d trigo e cevada, as rvoresficam carregadas de fruta e os rebanhos esto semprea parir crias; o mar proporciona muitos peixes em consequnciado bom governo. Sob a sua alada o povo prospera.(Odisseia XIX 106-114)

    49 Ou seja, monarquia. 50 Isto , a constituio perfeita. 51 Qual o rei da fala de Dario (3. 82. 2).

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