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  Qual era o projeto econômico varguista? Pedro Paulo Zahluth Bastos Texto para Discussão. IE/UNICAMP n. 161, maio 2009. ISSN 0103-9466 

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O artigo discute a formação do projeto econômico do segundo governo de Getúlio Vargas, a partir doEstado Novo. Argumenta-se que o projeto enquadrava-se na ideologia nacional-desenvolvimentista queVargas defendia desde 1928, mas que o detalhamento do conjunto integrado de políticas praticado nadécada de 1950 foi antecipado durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, defendido no período dareação liberal; proposto na campanha presidencial de 1950; e fiscalizado durante o segundo governo.Palavras-chave: Getúlio Vargas; Nacional-Desenvolvimentismo; Trabalhismo; Liberalismo.AbstractThe paper studies the formation of development strategy in Vargas’ second term, since the Estado Novo’sregime. The argument is that this strategy was embedded in the national-developmentalist ideology whichVargas embraced since 1928, but its further unfolding in the coherent set of policies executed in the1950´s was anticipated during the Second World War, and advocated in the postwar period of neo-liberalpredominance and during the electoral campaign of 1950, before undertaken in Vargas´ second term.

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  • Qual era o projeto econmico varguista?

    Pedro Paulo Zahluth Bastos

    Texto para Discusso. IE/UNICAMP n. 161, maio 2009.

    ISSN 0103-9466

  • Texto para Discusso. IE/UNICAMP, Campinas, n. 161, maio 2009.

    Qual era o projeto econmico varguista?

    Pedro Paulo Zahluth Bastos

    Resumo

    O artigo discute a formao do projeto econmico do segundo governo de Getlio Vargas, a partir do Estado Novo. Argumenta-se que o projeto enquadrava-se na ideologia nacional-desenvolvimentista que Vargas defendia desde 1928, mas que o detalhamento do conjunto integrado de polticas praticado na dcada de 1950 foi antecipado durante a Segunda Guerra Mundial e, depois, defendido no perodo da reao liberal; proposto na campanha presidencial de 1950; e fiscalizado durante o segundo governo. Palavras-chave: Getlio Vargas; Nacional-Desenvolvimentismo; Trabalhismo; Liberalismo.

    Abstract

    The paper studies the formation of development strategy in Vargas second term, since the Estado Novos regime. The argument is that this strategy was embedded in the national-developmentalist ideology which Vargas embraced since 1928, but its further unfolding in the coherent set of policies executed in the 1950s was anticipated during the Second World War, and advocated in the postwar period of neo-liberal predominance and during the electoral campaign of 1950, before undertaken in Vargas second term.

    JEL G28, O16, O19.

    Este artigo entra na controvrsia sobre o projeto do segundo governo Getlio Vargas, apresentando documento e discursos onde este projeto foi apresentado pelo prprio Vargas. Embora se considere, aqui, que a ao poltica de Vargas se enquadrava, em linhas gerais, na ideologia nacional-desenvolvimentista desde 1928 (Fonseca, 2004; 2005), argumenta-se que os contornos precisos de um planejamento de governo envolveram o detalhamento de um conjunto coerente de polticas que, pela primeira vez, foi antecipado no final do Estado Novo. A seguir, na oposio ao governo Dutra, estas polticas foram apresentadas explicitamente como um legado a ser valorizado contra a virada liberal que o pas experimentava, e como um programa a ser executado para recuperar o desenvolvimento social e econmico perdido. A elaborao deste programa foi aperfeioada em pronunciamentos lidos por Vargas no Congresso Nacional e na campanha presidencial.

    O comprometimento do presidente a este projeto pode ser atestado pela reiterao integral de seus temas na Mensagem Anual apresentando iniciativas executivas e projetos de lei ao Congresso Nacional, em 1951, e pela nomeao de uma equipe econmica cujas tarefas foram estipuladas programaticamente. Embora no seja possvel afirmar que o programa tenha sido implementado pela equipe com correspondncia integral, pode-se afirmar que o presidente procurou fiscalizar as

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    polticas para corrigir desvios maiores ou menores, recorrendo aos mesmos fiscais que contriburam, sob sua direo e finalizao, para escrever e publicar o programa nacional-desenvolvimentista.

    O primeiro item, a seguir, discute algumas interpretaes sobre o projeto varguista, e mostra como foi antecipado pela formao gradual de um conjunto integrado de polticas anunciadas e/ou executadas no final do Estado Novo. O segundo item apresenta o detalhamento do programa at 1951, e o ltimo item faz consideraes finais.

    1 O projeto nacional-desenvolvimentista em primeira verso A memria histrica do segundo governo Vargas esteve muito preocupada em

    explicar sua crise. O que entrou em crise neste governo? Como o desenvolvimento econmico e social do pas seria afetado? De certo modo, esta era tambm a preocupao da carta-testamento de Vargas. Segundo ela, o presidente suicida sacrificara-se como um mrtir contra os inimigos que bloqueavam o desenvolvimento nacional-popular: trustes e cartis, filiais estrangeiras, os Estados Unidos, as oligarquias locais e camadas mdias conservadoras, que rejeitavam a colaborao necessria seja para financiar o desenvolvimento nacional, seja para melhorar a vida dos trabalhadores pobres.

    As interpretaes acadmicas do governo e sua crise no poderiam deixar de reagir prpria verso de Vargas, para referend-la ou critic-la. Alguns autores vinculados esquerda poltica referendaram a interpretao de Vargas: Octvio Ianni, por exemplo, considerou que, at 1954:

    total o antagonismo entre os que desejam o desenvolvimento internacionalizado (ou associado com organizaes externas) e os que pretendem acelerar o desenvolvimento econmico independente. a poca em que se impunha o aprofundamento das rupturas com os setores externos e com a sociedade tradicional, se se desejava entrar em novo estgio de aplicao do modelo getuliano. O suicdio de Vargas revela a vitria daqueles que queriam reformular e aprofundar as relaes com o capitalismo internacional.1

    verdade que Vargas era nacional-desenvolvimentista, ou seja, relacionava o interesse nacional ao desenvolvimento, ativado pela vontade poltica concentrada no Estado, de novas atividades econmicas, particularmente industriais, superando: 1) a especializao primrio-exportadora, e 2) a valorizao ufanista das riquezas naturais, associada ideologia da vocao natural (passiva) do Brasil para explorao primria de suas riquezas. Contraposto ideologia ufanista tradicional, o nacionalismo

    (1) Ianni (1968, p. 68). Com algumas diferenas, esta tambm a interpretao de Nelson Werneck Sodr (1967, 1997).

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    econmico varguista defendia interveno para o desenvolvimento, ou seja, no era apenas nacionalismo, mas nacional-desenvolvimentismo.2

    No obstante ser um nacional-desenvolvimentista, no parece adequado identificar, como fez Ianni, o nacionalismo de Vargas a formas particulares de interveno estatal e de associao com o capital estrangeiro: ele no era xenfobo nem entreguista, e sim flexvel, pragmtico e politicamente realista. Mesmo no segundo governo, Vargas no deixou de buscar um desenvolvimento associado com organizaes externas, pois continuava carecendo contornar a escassez de reservas cambiais (cada vez mais grave), e obstculos que adversrios conservadores colocavam centralizao de recursos financeiros locais. Parece mais rigoroso afirmar que o objetivo de Vargas no era rejeitar a associao externa, mas lutar por termos de associao que atendessem a finalidades nacional-desenvolvimentistas, em barganhas que maximizassem interesses nacionais, em circunstncias econmicas e polticas restritivas (Bastos, 2006).

    No plo oposto de Ianni e Sodr, outros autores rejeitam no apenas que o segundo governo tivesse como alvo um desenvolvimento econmico independente, mas tambm que tivesse sequer um projeto coerente de industrializao pesada do pas. Para Carlos Lessa e Jos Luiz Fiori (1984), os investimentos planejados nos ramos bsicos (sobretudo energia eltrica, transporte, siderurgia e petrleo) tinham natureza meramente reativa percepo de pontos de estrangulamento setorial, que surgiram medida que o processo de industrializao se expandia espontaneamente nos ramos de bens finais. Segundo os autores, por serem meramente parciais e reativos, os investimentos no teriam relao com qualquer projeto mais geral de desenvolvimento do pas.

    Esta concluso tambm parece equivocada, ao exagerar a natureza reativa e obrigatria, quase espontnea, dos projetos governamentais de investimento nos ramos bsicos, e subestimar a importncia que teriam, se executados, para superar o estgio de industrializao restringida caracterstico do perodo. Dada a sua escala produtiva e financeira, seus requisitos de insumos e seu longo tempo de maturao, esses projetos no poderiam ser realizados isoladamente, de modo parcial e reativo, sem previso de seus impactos inter-industriais e sem mudanas institucionais significativas. De fato, os projetos envolviam encadeamentos de demanda, para frente e para trs das cadeias produtivas, que exigiam um planejamento integrado de diferentes setores, nos quais

    (2) Pedro Fonseca (2004, 2005) discute a diferena entre o nacional-desenvolvimentismo de Vargas e as tradies nacionalistas anteriores, alegando convincentemente que a ideologia desenvolvimentista sintetizou inspiraes positivistas, papelistas e nacionalistas modernizadoras, iniciando-se com intervenes econmicas de Vargas no governo gacho em 1928. A propsito, Marilena Chau (2000) analisa sinteticamente o ufanismo tradicional agro-exportador (denominado verdeamarelismo), alegando ser ideologia adequada especializao primrio-exportadora ps-colonial.

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    deveria estimar-se uma ampliao da oferta alm do ritmo de crescimento da demanda prvia, para acomodar as novas demandas geradas pela prpria criao dos novos empreendimentos. Isto exigia criar novas instituies de controle e assessorias para formulao e acompanhamento de projetos, novos fundos fiscais e financeiros, e mesmo novas empresas estatais em ramos tradicionalmente explorados por concessionrias estrangeiras. Esta tarefa era custosa financeira e politicamente, e envolvia uma vontade poltica nada trivial, nem automtica. No preciso se alongar sobre a experincia de outros pases da regio para mostrar que, diante de estrangulamentos setoriais e cambiais semelhantes, no reagiram como Vargas. Mesmo no Brasil, Dutra e Jnio Quadros tinham uma postura no mnimo ambgua em relao ao planejamento pblico e, sobretudo, ao investimento estatal. Dizer que o planejamento era imposto pela emergncia de estrangulamentos envolve algum economicismo, ou seja, desconsidera que era uma escolha poltica como outras, enraizada em um conjunto de possibilidades abertas historicamente. Ademais, o desenvolvimento industrial no era visto apenas como um fato econmico: desde os primeiros anos da dcada de 1930 (antes que estrangulamentos bsicos fossem pressionados pelo crescimento industrial espontneo), Vargas considerava que o radicalismo poltico de massas seria um resultado inevitvel de uma postura governamental que deixasse a estrutura econmica decadente (legitimada pela noo de vocao agrria do Brasil) sua prpria sorte, deixando tambm milhares de trabalhadores famintos fora do mercado de trabalho. Era preciso reformar o capitalismo e a rede de proteo social antes que o povo fizesse a revoluo.3

    verdade, porm, que os estrangulamentos na oferta de energia e insumos bsicos indicavam concretamente o caminho que deveria ser seguido para retirar o processo de industrializao brasileiro de sua natureza restringida. O conceito de industrializao restringida foi proposto por Maria Conceio Tavares (1974) e Joo Manuel Cardoso de Mello (1975), e buscou caracterizar a dinmica contraditria de um padro de industrializao tardia que tendia a esgotar-se, sem decisiva interveno estatal. Desde 1933, a recuperao econmica brasileira diante da crise internacional se fazia em bases qualitativamente novas, estimulada pela expanso e diversificao industrial e urbana, mais do que por investimentos em ramos exportadores primrios e nos setores secundrio e tercirio correspondentes. Este movimento de expanso e diversificao, porm, se deparava com limites, pois no induzia espontaneamente investimentos em servios de infra-estrutura e ramos industriais bsicos pesados (associados s inovaes tcnicas da Segunda Revoluo e seus desdobramentos) necessrios pela expanso industrial. Essa industrializao restringida se concentrava

    (3) Sobre as trajetrias de desenvolvimento possveis naquela conjuntura, porque economicamente viveis, e enraizadas concretamente no choque de interesses entre grupos scio-econmicos com expresso poltica, ver Draibe (1985).

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    em itens de bens finais e alguns insumos e bens de capital mais leves, cujos investimentos tinham requisitos de financiamento, tecnologia e escala de produo menores, e adequados aos limites do mercado brasileiro, da capacidade de financiamento e da base tecnolgica das empresas privadas brasileiras. Filiais estrangeiras tambm resistiam a ampliar a oferta de energia eltrica, material de transporte, insumos pesados (como ao e petrleo), e seus respectivos ramos de bens de capital, seja por motivos externos (contrao dos investimentos externos entre a Grande Depresso e a Segunda Guerra, atrao do IDE estadunidense para a recuperao europia no ps-guerra), seja internos (incerteza de mercado, de fornecimento de insumos e de reservas cambiais para importaes e remessas de lucros). Com isto, a expanso dependia de oportunidades de diversificao fcil que tendiam a se esgotar, e da frgil capacidade de importar propiciada pelas exportaes tradicionais e crditos comerciais.

    claro que os estrangulamentos crescentes de energia, insumos bsicos e reservas cambiais no passariam despercebidos por algum que, como Vargas, era adepto do nacional-desenvolvimentismo: desenvolver economicamente a nao dependia, com urgncia crescente, da reduo de sua dependncia de insumos importados.4 Mas as iniciativas estratgicas visando desenvolver ramos bsicos no precisaram esperar e reagir ao aprofundamento das restries na dcada de 1940, se iniciando em 1931 com a criao da Comisso Nacional de Siderurgia, dentre outros aparelhos de Estado em vrias reas. Dados os limites financeiros e polticos existentes, porm, o escopo e profundidade da interveno nos ramos bsicos no poderiam ampliar-se seno de modo gradual (mas no reativo), avanando desde a tentativa de regular/incentivar empresas privadas at a criao de empresas estatais, no s na siderurgia, como tambm nos ramos do petrleo e da energia eltrica.

    Tambm no de surpreender que a conjuntura da Segunda Guerra Mundial aguasse a conscincia industrializante e exigisse maior refinamento nos meios de interveno. A reconverso dos pases centrais para a economia de guerra e os limites ao comrcio exterior provocaram desabastecimento de insumos estratgicos, limitaram o crescimento urbano e induziram significativa acelerao da inflao. A necessidade de administrar recursos escassos e priorizar linhas de produo e investimento, por sua vez, aumentou o controle do Estado sobre atividades econmicas, por exemplo por meio da Coordenao de Mobilizao Econmica (CME). Um pouco antes da guerra, o

    (4) Nas palavras de Vargas, em 1943: O que representa as instalaes da Usina Siderrgica de Volta Redonda, aos nossos olhos deslumbrados pelas grandes perspectivas de um futuro prximo, bem o marco definitivo da emancipao econmica do pas... O problema bsico da nossa economia estar, em breve, sob novo signo. Pas semicolonial, agrrio, importador de manufaturas e exportador de matrias-primas, poder arcar com as responsabilidades de uma vida industrial autnoma, provendo as suas urgentes necessidades de defesa e aparelhamento. J no mais adivel a soluo. Mesmo os mais empedernidos conservadores agrrios compreendem que no possvel depender da importao de mquinas e ferramentas... (apud Fonseca, 1987, p. 270-271).

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    esforo de racionalizao dos investimentos pblicos contou com a criao do Plano Especial de Obras Pblicas e de Aparelhamento da Defesa Nacional (PEOPADN), substitudo em 1943 pelo Plano de Obras e Equipamentos (POE) para os cinco anos seguintes. Alm disto, a experincia de guerra sedimentou o caminho que poderia ser seguido para resolver estrangulamentos: criar fundos fiscais vinculados a necessidades especficas de infra-estrutura e insumos bsicos, e complementar o esforo local com fundos externos barganhados diplomaticamente, transferidos para instituies pblicas. Nos ramos bsicos, empresas privadas que resistiam a se arriscar poderiam ser substitudas por empresas estatais como a Companhia Siderrgica Nacional, a Companhia Vale do Rio Doce, a Companhia Nacional de lcalis, a Fbrica Nacional de Motores, a Companhia de Aos Especiais Itabira (Acesita) e a Companhia Hidreltrica do So Francisco, criadas no perodo.

    Alm do esforo para interveno direta nos ramos bsicos, durante a guerra ampliou-se a poltica de induo seletiva de investimentos privados, atravs de instrumentos cambiais, fiscais e creditcios. Em primeiro lugar, a guerra propiciou a acumulao de reservas cambiais que poderiam ser usadas para reaparelhar a indstria quando o comrcio internacional de bens de capitais fosse normalizado, se houvesse planejamento adequado. Em setembro de 1942, a criao do Servio de Licenciamento de Despachos de Produtos Importados, na CME, visou priorizar licenas de importao de bens de capital e insumos.5 Em janeiro de 1945, a Portaria Interministerial n 7 (PI-7) estabeleceu restries importao de produtos sunturios e dispensveis, criando listas de classificao de produtos (dos suprfluos aos essenciais) e propondo a criao de uma agncia para orientar o regime de licenciamento de importaes. O objetivo era claro: garantir o uso seletivo das divisas acumuladas na guerra, quando o comrcio internacional se normalizasse. A renegociao da dvida externa no final de novembro de 1943 tambm foi saudada como uma iniciativa necessria para liberar divisas para o reaparelhamento industrial no ps-guerra. Vargas diria em 21/12/1943, em discurso proferido na FIESP, que o maior proveito da operao consiste, porm, na possibilidade de realizarmos o plano de industrializao progressiva do pas, no imediato aps-guerra (apud Corsi, 1997, p. 250). Em memorando endereado a Vargas no incio do processo de renegociao da dvida (06/02/1943), o Ministro da Fazenda Souza Costa, s vezes retratado como um representante da ortodoxia liberal no governo, sintetizava o objetivo desenvolvimentista da iniciativa:

    A reduo da dvida externa se impe como a mais imperiosa e urgente necessidade nacional. Inteis sero todos os esforos no sentido de modificar a nossa economia, elevando-a do plano agropecurio em que se tem desenvolvido para o industrial, se no for afastado este peso morto O Brasil carece de utilizar o seu crdito em novas

    (5) Para as memrias de um diplomata brasileiro que procurava licenas para importar nos EUA, ver Roberto Campos (1994, p. 72-74).

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    operaes para o reaparelhamento de sua indstria e utilizao de todo o potencial econmico que temos para desenvolver (Arquivo GV 43.02.06).6

    O governo no apenas procurou evitar que as reservas cambiais acumuladas fossem gastas com finalidades suprfluas, mas buscou forar empresrios a utiliz-las para investimentos novos que substitussem importaes, e que para isto adiassem mesmo decises de consumo corrente de produtos sunturios em moeda local. A poltica tributria foi usada para isto, pouco depois da renegociao da dvida externa (23/11/1943). Dois decretos simultneos (DLs n. 6224 e 6225, de 24/01/1944) criavam o Imposto sobre Lucros Extraordinrios (que taxava excedentes eventualmente alocados para consumo corrente) e permitiam canalizar os impostos devidos para a compra de Certificados de Equipamentos: ao invs de pagar o imposto, os empresrios poderiam adquirir certificados no valor correspondente ao dobro do imposto devido, os quais renderiam 3% ao ano e seriam passveis de resgate em moeda internacional, exclusivamente para a importao de bens de capital segundo prioridade definidas pelo Estado. Praticamente um ano depois (22/01/1945), a citada Portaria Interministerial n. 7 (PI-7) normatizou as prioridades de importaes. Com isto, a administrao impunha um fundo compulsrio que forava a canalizao da acumulao interna de lucros (estimulada pelo contexto inflacionrio) para financiar futuramente a reposio de capital fixo desgastado e novos investimentos do setor privado, assim que as dificuldades de fornecimento fossem normalizadas com a reconverso das economias de guerra.

    Isto era uma interveno desenvolvimentista sem precedentes sobre as decises de investimento e consumo, afetando diretamente as rendas dos empresrios mais ricos do pas. Cabe lembrar que a taxa de cmbio foi fixada nominalmente em 1939, tendo o efeito de subsidiar as importaes necessrias pelos investimentos por causa da inflao interna (que por sua vez facilitava a acumulao extraordinria de lucros dos industriais). Deste modo, criava-se um mecanismo de financiamento dos investimentos adequado ao estgio de diferenciao da estrutura industrial que ainda mantinha os investimentos parcialmente dependentes da capacidade de importar bens de capital. claro que, como j vinha sendo feito, os fundos privados podiam ser complementados por crditos pblicos, oriundos particularmente da Carteira de Crdito Agrcola e Industrial do Banco do Brasil. Assim, embora o plano de industrializao progressiva do pas no imediato ps-guerra de que falara Vargas no fosse formalizado, um conjunto de mecanismos cambiais, tributrios e creditcios foi

    (6) E no I Congresso Brasileiro de Economia (25/11/1943): A regularizao definitiva da dvida externa abre assim ao Brasil uma era nova de verdadeira liberdade de ao e de movimentos, permitindo-lhe as iniciativas que interessam ao seu desenvolvimento Somente agora podemos considerar que o Brasil adquiriu a liberdade real, que incompatvel com a falta de recursos para agir. O fardo dos compromissos financeiros tornava a independncia nacional uma fico angustiante (apud Corsi, 1997, p. 244-246).

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    mobilizado para induzir investimentos nas prioridades desenvolvimentistas do governo, complementando os investimentos estatais nos ramos bsicos.7

    Como se sabe, o golpe militar que derrubou o Estado Novo e o sucesso da campanha liberal barrou a execuo do programa, e levou a iniciativas de retrao da interveno estatal e a um movimento de abertura comercial e financeira iniciado no governo provisrio e acentuado no governo Eurico Gaspar Dutra (ver Saretta, 2000; Bastos, 2004). Mas o liberalismo mostrou-se invivel: o aumento de importaes e remessas de lucro provocaria uma crise cambial que forou o governo Dutra a um recuo. Restaurou-se, no final de 1947, o licenciamento seletivo de importaes to criticado antes, e evitou-se uma desvalorizao cambial de efeitos previsveis sobre a inflao (considerando, como Gudin, que nossas exportaes eram preo-inelsticas). O efeito da restaurao conhecido: uma nova rodada de substituio de importaes, orientada para o ramo de bens de consumo durvel. Mas uma vez iniciado este processo espontneo de substituio de importaes, o governo Dutra, ao contrrio das prescries liberais, procurou atacar alguns estrangulamentos de infra-estrutura e financiamento. O Plano Salte, com grandes debilidades financeiras e administrativas, foi anunciado em 1948 para definir investimentos pblicos essenciais, enquanto o Banco do Brasil passou a realizar poltica de crdito mais acomodatcia. Deste modo, se restaurava, em escala limitada, a combinao entre plano de investimentos, poltica cambial seletiva, cmbio fixo e poltica acomodatcia de crdito visualizada no final do Estado Novo.

    A reviravolta do governo foi capitalizada, sobretudo, por Vargas, cujas crticas parlamentares apontavam para o carter liberal, anacrnico e omisso da administrao que intermediaria seus dois mandatos presidenciais. No surpreende que Vargas, preparando-se para um retorno triunfal, elaborasse nos discursos parlamentares, na campanha presidencial e em memorandos com assessores, um programa que combinava planos setoriais de investimentos e polticas macroeconmicas (no terreno cambial, monetrio e fiscal) semelhantes ao final do Estado Novo, adaptando-os ao novo contexto e evitando as resistncias ideolgicas ao anncio de um plano formal. Surpreende, sim, que, luz dos escritos e discursos de Vargas, seu novo programa de governo, naquele contexto rico de debates, possa ser caracterizado como meramente reativo, ou at, no limite, ortodoxo.

    (7) Novamente, uma conferncia do Ministro da Fazenda Artur de Souza Costa, em 27 de julho de 1945, revela claramente a inteno de canalizar lucros acumulados para a modernizao industrial atravs de mecanismos cambiais e tributrios heterodoxos: Os produtos manufaturados acusam alta violenta que ultrapassa de muito o custo de produo. Da a enorme margem de lucros. So esses lucros acumulados que devem propiciar o reaparelhamento industrial depois da guerra, permitindo baixa acentuada nos preos em ateno a esse programa de racionalizao da indstria que o governo vem insistindo tanto no congelamento de tais lucros, quando da criao do imposto sobre lucros extraordinrios (da) o acerto da poltica econmica do governo, no sentido de proporcionar indstria a formao de reservas destinadas renovao das instalaes (Arquivo Souza Costa CPDOC-FGV, sries SC42/44.00.00/1pi e 2pi, e SC45.07.27pi). Para o texto dos decretos, ver E. Carone (1976, p. 192-196).

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    2 O projeto desenvolvimentista: mecanismos de financiamento e gesto macroeconmica

    Os temas presentes na agenda do final do Estado Novo continuaram relevantes, mas Vargas saiu da posio defensiva quando passou para a oposio, disputando no s a forma de resolver como interpretar os problemas em questo. Seu objetivo declarado era aprofundar a interveno industrializante, garantir o pleno emprego e combater a carestia sem sacrificar o crescimento, ou melhor, desacelerar a inflao exatamente por meio do crescimento da oferta. No se pode entender como se conciliavam no pensamento de Getlio Vargas a importncia de projetos estatais de investimento, de oramentos equilibrados, e da expanso do crdito na resoluo simultnea de problemas de desenvolvimento, inflao e bem-estar social, sem entender seu posicionamento crtico frente s crises que, segundo ele, teriam sido produzidas pelas polticas liberais do governo Dutra.

    O primeiro sinal de oposio no esperou sequer o fim do auto-exlio em So Borja. Quando apoiou publicamente a candidatura de Dutra presidncia, em discurso de 28/11/1945, Vargas fazia questo de frisar que seu apoio no seria incondicional, colocando-se na posio de um fiscal do novo presidente, em nome do povo e do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB):

    A absteno um erro O momento no de nomes, mas de programas e de princpios... aconselhei aos trabalhadores que cerrassem fileiras em torno do programa do Partido Trabalhista Brasileiro, representante e defensor de seus interesses. O general Eurico Gaspar Dutra, candidato ao PSD, em repetidos discursos e, ainda agora, em suas ltimas declaraes, colocou-se dentro das idias do programa trabalhista e assegurou a esse partido garantias de apoioEle merece, portanto, os nossos sufrgios. Sempre procurei atender aos interesses dos pobres e dos humildes, amparar os direitos dos trabalhadores e do povo brasileiro em geral, desse povo sempre bom, bravo e generoso. Estarei ao vosso lado para a luta e acompanhar-vos-ei at a vitria. Aps esta, estarei ao lado do povo, contra o presidente, se no forem cumpridas as promessas do candidato (A poltica trabalhista do Brasil, p. 15-16).

    Com esta declarao, Vargas buscava se afastar da classe poltica e justificar que a influncia que o PTB teria na indicao do novo ministro do Trabalho no resultava de mera barganha fisiolgica, mas se vinculava a um programa a que o candidato havia se comprometido: garantir os direitos trabalhistas consolidados por Vargas no Estado Novo; e respeitar o direito ao trabalho na gesto da poltica econmica, como o ex-presidente no iria demorar a cobrar.8 A atitude de fiscalizao,

    (8) Alm de direitos como salrio mnimo, frias remuneradas, representao sindical, 13 salrio, limitao da jornada e aposentadoria, o programa do PTB sublinhava aquilo Vargas chamava de direito ao trabalho, ou seja, o repdio ao desemprego: Oportunidade a todo indivduo para trabalhar em emprego til e regular, mediante salrio razovel que lhe permita, em um mximo de oito horas de jornada, obter os meios necessrios ao sustento prprio e de sua famlia de maneira condigna (apud Carone, 1980, p. 433-436).

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    desde uma postura programtica diferente, marcaria gradualmente os posicionamentos de Vargas. Pouco depois de manifestar oposio na sede do PTB gacho em setembro de 1946 (elogiando o planejamento econmico contra o desmonte liberal das autarquias e institutos que amparavam produtores e consumidores), e de criticar os partidos que defendem a velha democracia liberal que afirma a liberdade poltica e nega a igualdade social em comcio de novembro, Vargas realizou um longo balano de seus quinze anos de governo no Senado (13/12/1946), enumerando realizaes sociais (direitos trabalhistas) e econmicas (financiamento de investimentos), e defendendo-se das crticas do final do Estado Novo. Finalmente, saindo da defensiva em comcio da campanha de Bias Fortes ao governo de Minas Gerais (06/01/1947), sublinharia frontalmente as diferenas entre seu governo e o atual, enfatizando a forma de conduo da poltica de crdito:

    Transportei para estas montanhas, como glria, a acusao de que dei ordem ao Banco do Brasil para que fizesse o financiamento da pecuria mineira. Sim, dei essa ordem e novamente a daria, se tivesse podido faz-lo. Jamais deixaria os trabalhadores rurais de Minas, os fazendeiros, os que criaram a grandeza de nosso interior nas vascas da agonia de uma falncia ou moratria (Id., p. 122).

    O objetivo era defender um legado (ter iniciado a batalha da produo e defendido o direito ao trabalho) e afirmar que seu desmonte deixava de atender s aspiraes nacionais e populares, sob a alegao duvidosa de combater a inflao. Seu posicionamento tornou-se claro, e vigorosamente oposicionista, em meados de 1947. O ltimo dos cinco discursos no Senado (03/07/1947) concluiu o desagravo em pouco mais de um semestre, em que acertava contas com o passado e passava oposio aberta ao intitular-se defensor dos interesses do povo contra a ditadura econmico-financeira que est funcionando como um garrote contra todas as foras da produoditadura mais rgida, mais severa, mais inabalvel e irredutvel do que a que se derrubou (idem, p. 267-268).

    Antes de abordar o modo como Vargas tratou no perodo das relaes existentes entre poltica monetria e creditcia, inflao, dficit pblico e desemprego, cabe frisar que a ideologia trabalhista de Getlio Vargas sempre procurou enfatizar 1) a existncia de interesses convergentes entre trabalhadores e empresrios, em um esforo de neutralizao dos comunistas; 2) que esta convergncia se faria garantindo direitos trabalhistas regulados por lei, mas tendo como condio a expanso dos frutos do progresso econmico a serem divididos entre as classes. De fato, repetidas vezes durante seus quinze anos de governo, Vargas afirmara que o desenvolvimento econmico era necessrio para garantir a coeso social interna, permitindo elevao dos salrios reais (valorizao do trabalho) graas oferta de empregos de produtividade maior e elevao do piso salarial. Coerentemente, agora fora do governo, Vargas buscava se apresentar no apenas como patrono das leis sociais no

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    Brasil, mas tambm como campeo da batalha da produo, condio de conciliao de interesses entre as classes e anteparo contra o comunismo. Quanto a isto, ele seria muito claro no referido discurso na campanha de Bias Fortes em Minas: Um dos nossos mais notveis espritos liberais, o eminente Antnio Carlos, disse: Faamos a revoluo antes que o povo a faa. E hoje vos exorto a fazer a evoluo antes que o povo faa a revoluo (idem, p. 120). Ou seja: reformismo (poltico-social) e progresso (econmico) estavam intimamente articulados na ideologia trabalhista de Vargas, em geral, assim como estariam particularmente presentes em suas crticas poltica econmica do governo Dutra. O ltimo dos cinco discursos no Senado no deixaria dvidas:

    Sr. Presidente, a industrializao o anseio de todos os povos, porque a indstria representa a fase mais elevada da civilizaoComo se combater o pauperismo sem a valorizao do trabalho? Como se valorizar esse trabalho sem (garantir) eficincia? Como se alcanar eficincia sem a multiplicao do valor do homem pela energia da mquina? Como justificar, em face desse conceito, a indiferena com que se fala em fechar fbricas e despedir milhares de operrios? Se o plano monetrio tem a conseqncia do desemprego de dezenas de milhares de operrios, pode estar certo, financeiramente, mas socialmente est errado. E errado est sob o ponto de vista da solidariedade humana (Idem, p. 252-253; 297-298).

    Desta maneira, Vargas explicitava como nunca a motivao ideolgica de seu repdio poltica anti-inflacionria seguida pelo governo Dutra: o direito ao trabalho deveria sobrepr-se ortodoxia monetria de velho tipo, pois o plano monetrio no poderia ter como conseqncia o desemprego em massa; financiar a industrializao, por sua vez, seria meio de superao do pauperismo e condio para a coeso social. Mais que isto, para Vargas a poltica de contrao creditcia de Dutra no era errada somente luz das conseqncias sociais que trazia; ela no seria correta sequer como meio para combater a inflao. No ser ocioso sublinhar esta questo, porque a heterodoxia revelada por Vargas notvel no modo como concebia as relaes entre oferta de moeda, dficit pblico e inflao, e crucial para que se entenda seu projeto de governo posterior. De fato, seu ataque poltica econmica centrou-se na questo do crdito como meio de combate inflao. Para ele, o pas no se encontrava em uma situao saturada em que a produo no pudesse aumentar sob o estmulo da poltica creditcia. Isto ficaria muito claro no apenas nos documentos preparatrios de seus discursos, mas nos prprios discursos, como a seguir, em 30 de maio de 1947:

    Parece lgico que a soluo para o problema (de assegurar que meios de pagamentos estejam em relao conveniente com o volume total de bens e servios) no restringir crditos e, sim, aumentar a nossa produo e riqueza, aumentando, portanto, os bens, as mercadorias e os servios. Creio at que, se bem no me engano, esta a opinio de vrios ilustres membros desta Casa Mas no esta a opinio do ilustre Presidente do Banco do Brasil, orientador geral da economia e das finanas nacionais. A produo, declara sua senhoria em seu Relatrio no se pode desenvolver de modo ilimitado. E

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    continua dizendo mais ou menos o seguinte: que, existindo excesso de meios de pagamento e no existindo possibilidade de aumento de produo, indispensvel reduzir os meios de pagamento. Doutrinariamente, esse ponto de vista estaria certo, se no houvesse mais possibilidade de aumento de produo, isto , se o Brasil tivesse alcanado a saturao econmica. O grande mal de ler muitos livros estrangeiros, sem traduzir os problemas, limitando-se traduo das palavras, reside precisamente nisso. Irving Fisher escreveu dentro do problema norte-americano e ns nos encontramos num pas onde podemos verificar um sub-consumo e uma sub-produo. Muito longe de alcanarmos o ilimitado, precisamos produzir, e produzir muito, para a grandeza de nosso Pas e bem-estar de nosso povo Se h falta, bens, mercadorias e servios ainda se podem desenvolver, estando, assim, muito longe do limite de saturao (Idem, p. 230-231).9

    Vivendo-se em uma situao em que a produo podia aumentar se o crdito estivesse disponvel, uma poltica de expanso do crdito no seria absorvida por elevaes de preo. Por outro lado, uma poltica de contrao do crdito afetaria diretamente os nveis de produo e emprego. Mas sem necessariamente reduzir nem as emisses nem os preos: a contrao do crdito seria acompanhada pela ampliao do dficit pblico (e das emisses fiducirias), e pela reduo da oferta de bens e pela elevao dos custos de produo. Criticando Dutra, Vargas tambm defendia a orientao financeira seguida antes por seu prprio governo, no seu principal e mais polmico discurso no Senado, em 3 de julho de 1947:

    Desde 1930 at 1944, os meios de pagamento passaram do ndice 100 para o ndice 720 A emisso de papel-moeda no tem uma relao to estreita com os preos, conforme se afirmaOs que falam em baixa de produo em relao ao aumento de meios de pagamento, preciso que reflitam sobre o ndice de aumento de volume no s dos gneros alimentcios como das matrias primas, que, de 100 em 1929, passou para 354 em 1944, e o ndice de produo industrial bsica, que, de 100 em 1929, passou para 1.217 em 1944. Relativamente produo industrial brasileira, no existe uma estatstica completaTemos, porm, possibilidades de chegar a uma estimativa bem superior ao ndice de 700, considerando-se produo industrial a atividade de construo civil. No h um desequilbrio to violento entre os meios de pagamento e os bens de consumo. E este ponto , precisamente, o calcanhar de Aquiles da orientao monetria do governo. E precisamente devido a esse erro que a produo nacional se reduzir na proporo da reduo dos meios de pagamento, porque inegavelmente tivemos (no

    (9) Em um estudo de 1946 que orientaria seus discursos no Senado (GV 46.00.00/13), l-se: A concepo financeira do Brasil coloca todos os males como consequncia da emisso de papel moeda. Mas na realidade essa emisso de papel moeda s prejudicial quando a produo no a acompanha. Mais tarde, em carta a A.J. Rener de 19/10/1949, parabenizando-o pelo teor de suas opinies econmicas nos Dirios Associados, Vargas escrevia, em sua quase ilegvel caligrafia, que reforou-me a opinio de que devemos voltar a um nacionalismo econmico moderado mas eficiente. preciso fomentar a produo principalmente, agrcola e industrial: fornecer crditos a juros mais baratos e maiores prazos, amparar indstrias novas, enfim criar riquezas. Mas no basta incrementar a produo nacional. preciso, como medida correlata, garantir-lhe o mercado interno e favorecer a exportao. O aumento da produo acarretar o barateamento da vida e a indstria florescente poder remunerar melhor o salrio dos trabalhadores (GV 49.10.18).

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    governo anterior) um forte aumento no s no meio circulante como na moeda escritural. Mas isto representava apenas a mdia geral das necessidades de desenvolvimento de um pas. Numa situao de economia j saturada, esse aumento de meios de pagamento pode determinar grandes crises. Numa nao como o Brasil, de economia em evoluo, o aumento dos meios de pagamento, acompanhado pelo aumento de bens de consumo que, como se est verificando, se efetuou e ainda por uma elevao proporcional da tributao, que retira os excessos da circulao pelo meio fiscal, no representa o menor perigo. Perigo, sim, a reduo dos meios de pagamento. E tanto mais grave quando vai alcanar toda a estrutura do Estado e no somente a vida econmica do pas (Idem, p. 259-261).

    A contrao creditcia alcanaria toda a estrutura do Estado porque, segundo Vargas, implicaria elevao do dficit pblico por conta da contrao das receitas fiscais (dependentes do nvel de atividade econmica) e, assim, no implicaria reduo das emisses primrias. Em outras palavras, uma poltica creditcia contracionista acabaria sendo acompanhada por uma poltica monetria de direo inversa. Tudo se passaria como se a reduo da moeda escritural de crdito acabasse compensada (pelo menos em parte) pela expanso no-programada da moeda fiduciria por causa do dficit pblico, em prejuzo de nveis de renda, emprego e arrecadao tributria:

    Pensvamos todos, no Brasil, que o louvvel esforo em se controlar o ritmo emissionista no significaria a drenagem de todos os recursos destinados produo para o Banco do Brasil poder atender a despesas do governo Quem est defendendo o governo? Eu, que chamo a ateno para a gravidade da reduo dos meios de pagamento, afetando as possibilidades de recursos financeiros da administrao pblica, ou quem efetua essa reduo de meios de pagamento, destri todas as possibilidades dos oramentos Federal, Estaduais e Municipais, e coloca o governo na impossibilidade de dispor de meios (Idem, p. 249, 261).

    O problema de um mix de poltica creditcia contracionista e poltica monetria expansionista era que a expanso da produo dependia do crdito. Vargas diferenciava o impacto das emisses fiducirias derivadas do dficit fiscal, do impacto da expanso da moeda por meio do crdito bancrio: enquanto o crdito bancrio podia vincular-se a uma expanso da oferta, um dficit oramentrio no o fazia se a poltica de crdito estrangulasse a expanso da produo. Para Vargas, a inflao devia ser combatida pelo aumento da oferta de bens, apoiado pela expanso do crdito. Vargas concordava com a necessidade de uma poltica oramentria equilibrada (... ainda no aprendi como fazer efetiva e eficientemente deflao sem se alcanar o equilbrio oramentrio), mas alegava que o efeito da poltica creditcia contracionista era, de um lado, o de reduzir a oferta de bens, e, de outro, ampliar o dficit oramentrio e, por esta via, as emisses fiducirias sem contrapartida produtiva: Iremos reduzir os meios de pagamento e a produo, sendo que esta em proporo muito maior do que a dos meios de pagamento, porque o governo, na proporo que fr desenvolvendo seu programa, ser obrigado a emitir cada vez mais (p. 264). O impacto inflacionrio

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    seria reforado porque a elevao das taxas de juros criava presso inflacionria ao forar custos de produo:

    Nega-se ao trabalhador uma parcela de dinheiro para reajustamento de seus salrios, alegando-se que isso afetar o custo de produo. Mas aumenta-se a parcela de juros do dinheiro, que hoje s circula em cmbio negro. O custo de produo no baixa. Antes pelo contrrio: com a reduo de meios para desenvolver-se, esse custo aumenta cada vez mais (Idem, p. 283-284).10

    O ponto importante a frisar que, para Vargas, o resultado oramentrio e, portanto, a emisso de moeda fiduciria para atender s necessidades do Tesouro, dependeria diretamente de uma poltica de crdito que no estrangulasse a expanso do ritmo de atividade econmica e o desempenho da arrecadao tributria. Assim, a expanso do crdito seria favorvel ao combate inflao seja pela conteno da demanda do Tesouro por emisses fiducirias (atravs de seus efeitos sobre as receitas tributrias), seja pela expanso da oferta de bens (atravs do financiamento da produo e do investimento), seja, ainda, pela reduo dos custos de produo (atravs do controle dos custos de crdito). Isto : um mix de oramentos equilibrados e expanso creditcia no era, segundo Vargas, incoerente, mas sim obrigatrio no combate inflao. Para Vargas, no parecia apenas possvel reduzir a inflao e crescer ao mesmo tempo isto era imperativo. Ademais, no limitava suas crticas questo da eficcia da poltica anti-inflacionria do governo Dutra: atacava diretamente a hierarquia de interesses scio-econmicos propostos por ela. Segundo ele, alm de ser contraproducente no combate inflao, esta poltica estaria promovendo uma grande redistribuio de poder e riqueza, prejudicando trabalhadores, empresrios e instncias de governo para favorecer a alta finana; diante disto, Vargas se apresentava como porta-voz dos grupos atingidos e forte crtico do grupo beneficiado, sugerindo reverter esta hierarquizao perversa:

    Nada mais estou fazendo do que isto: provar que esto errados e evidenciando at que um dos erros maiores o do cerceamento do crdito Sr. Presidente, a criao do monoplio do dinheiro, que se est efetuando no Brasil, representa uma das mais impressionantes ofensivas do poder financeiro contra a produo e contra os valores do trabalho e de iniciativaA alta finana, que tinha perdido o controle sobre a economia brasileira devido ao do governo (anterior), que facilitava aos produtores os recursos necessrios todas as vezes que os grupos financeiros os negavam, domina o Presidente da Repblica e est governando o pas. As foras de produo esto sendo subjugadas e aniquiladas (p. 283-284).

    (10) Vargas abordou a questo tambm em seu discurso anterior, em 30/05/1947: O custo da produo, sr. Presidente, nada mais , dentro do sistema capitalista em que vivemos, do que o resultante da soma de duas parcelas: o custo do dinheiro e o custo do trabalho. O que se visa fazer aumentar o custo do dinheiro e diminuir o custo do trabalho, isto , reduzir, pelo desemprego, as possibilidades dos trabalhadores pleitearem reajustamento de salrios. No me parece que esta seja a melhor forma de se baratear a produo, nem, tampouco, a melhor maneira de se estimular a produo (Idem, p. 233).

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    Era ento para combater este aniquilamento que Vargas sara do exlio, respondendo aos clamores de seus eleitores, que apenas pediam como cidados brasileiros, que no se lancem suas famlias ao desespero do desemprego. Pedem que no se transforme em misria o que era esperana de bem-estarEsto pedindo a esta Casa que reconhea o direito de trabalhar (p. 288).

    inegvel que o posicionamento pblico de Vargas o recolocava no centro do cenrio poltico, visando interpelar os grupos sociais prejudicados e questionar a competncia tcnica e as opes polticas dos responsveis pela poltica econmica exatamente como a campanha liberal fizera antes. Vargas acertava contas com o passado: no foco das crticas, a poltica de crdito; por trs dela, uma ordenao hierrquica que subordinava as foras da produo e o direito ao trabalho ditadura econmico-financeira dos ambiciosos intermedirios do dinheiro, sob a alegao falaciosa de buscar um interesse geral, o combate inflao. Combate que, segundo Vargas, estaria fadado ao fracasso caso no se apoiasse na expanso da produo e no equilbrio oramentrio, ambos possveis apenas com uma poltica creditcia que, ao mesmo tempo, no boicotasse a coeso social com a difuso da misria, do desemprego e da desesperana. E, sobretudo, que no alimentasse o espectro do comunismo e da agitao social (segundo argumentaria em 11/11/1946, antes do banimento do PCB): A evoluo poltica do Brasil se deve processar em ordem, com disciplina e respeito s autoridades. No precisam nem precisaro os trabalhadores do Brasil recorrer a greves, porque a bancada trabalhista, na Cmara e no Senado, defender intransigivelmente as frmulas mais prticas para a soluo dos seus problemas (idem, p. 45) como, ao que parece, Vargas pretendia fazer ao criticar a poltica econmica do governo Dutra.

    Alm de reforarem a identificao de Vargas com os pobres e humildes, seus argumentos sensibilizavam empresrios, prejudicados pela poltica de contrao creditcia desde a gesto Pires do Rio, e exacerbada no incio da gesto de Guilherme da Silveira no Banco do Brasil (1946-1949), antes que este assumisse o Ministrio da Fazenda e rompesse com as polticas do chamado grupo sumoqueano (Lago, 1982). No perodo, documentos e declaraes de organizaes e congressos empresariais propunham, como Vargas, que o combate inflao seria contraproducente caso acompanhado da retrao do crdito, pois estrangularia a expanso da oferta agregada. Agora na oposio, Vargas culpava a ditadura econmico-financeira que teria se instalado no pas para sugar os esforos da produo, chegando a afirmar que o presidente do Brasil no era Dutra mas, sim, Guilherme da Silveira, assim como Joaquim Murtinho fra no lugar de Campos Salles.11

    (11) A poltica trabalhista do Brasil (p. 268-270). Sobre a posio dos empresrios, ver Bielschowsky (1985, p. 363-365).

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    evidente a linha de continuidade entre o posicionamento de Vargas na oposio ao governo Dutra e a plataforma eleitoral que defendeu na campanha presidencial de 1950. Era o prprio Vargas que se esforaria para frisar esta continuidade em seu primeiro discurso da campanha de 1950:

    No desconheo a gravidade da situao econmica e financeira em que se debate o pas. Fui o primeiro a denunci-la da tribuna do Senado e a de ns meus vaticnios saram infelizmente certos Durante minha administrao mantive, quando necessrio, o regime de controle cambial estritamente para regular as importaes, regime abolido pelo governo Linhares e s restabelecido pelo atual quando a invaso de mercadorias, muitas delas suprfluas, e a fuga de nossas disponibilidades cambiais deixaram o pas endividado com os exportadores estrangeirosAtribuindo-me a pecha de inflacionista, entregou-se, no comeo, o governo a uma restrio de crdito sbita e perigosa, que arrastou casas de comrcio, fbricas e at bancos moratria ou falncia, e paralisou, j no direi o surto de novas indstrias, mas a estabilidade das existentes, contribuindo assim mais para atrelar-nos dependncia estrangeira em muitos ramos de produo em que j triunfara o similar brasileiro No esta hoje, uma plataforma de governo no desacreditado estilo dos tempos passados Homem de governo, no descurarei, igualmente, os meus deveres para com as foras hoje combalidas da produo nacional em qualquer de seus ramos, estabelecendo uma poltica orgnica de assistncia aos interesses do comrcio, da indstria e da agriculturaUrge retomar o programa de amparo industrializao progressiva do pas, dando prioridade s indstrias de base (A Campanha Presidencial, p. 23-29).12

    A campanha repetiu um mesmo ponto: ... retomar o programa de amparo industrializao progressiva do pas, dando prioridade s indstrias de base, mas sem se limitar a elas, recuperando programas de fomento da produo (agrcola e

    (12) Vargas voltaria ao tema logo depois, em seu primeiro discurso em So Paulo: Sobrevinda a (Segunda) Guerra, prestou-se, imediatamente, por intermdio da Carteira de Crdito Agrcola e Industrial do Banco do Brasil, larga assistncia financeira ao produtor conhecida de todos a poltica posteriormente adotada. O governo abandonou a lavoura e a indstria algodoeira sua prpria sorteAs desastrosas conseqncias dessas e de outras medidas, quando apenas se esboavam, fizeram com que erguesse a minha voz, no Senado da Repblica, clamando por providncias que evitassem a crise, como desfecho natural e desenlace lgico da orientao governamental contrria ao desenvolvimento da produoA minha advertncia no foi, porm, ouvida. Mas as minhas previses se confirmaram no doloroso cortejo das desalentadoras realidades atuais (A Campanha Presidencial, p. 59-61). E em seu primeiro discurso no Rio de Janeiro: Assisti aos trabalhos da Constituinte e, logo depois de promulgada a Constituio, ocupei o meu lugar no Senado. Proferi, pouco tempo depois, um longo discurso de defesa do meu governo, de justificativa de minha atitude. Pronunciei, ainda, mais trs discursos de colaborao com o governo. Discursos de crtica sua poltica econmica e financeira, mas de crtica serena, sem ataques pessoais. Previ o que ia acontecer. AviseiE o que devia acontecer, aconteceu. As nossas reservas no exterior, 700 milhes de dlares, volatilizaram-se na importao de inutilidades luxuosas e em transaes ruinosas para os interesses do Brasil. A inflao, a verdadeira inflao, veio pelas emisses a jato contnuo para cobrir dficits oramentriosA falta de crdito produo provocou a estagnao desta (idem, pp. 98-9). E, ainda, falando sobre a crise da carnaba no Piau: Embora se pretenda atribuir este fato cessao da guerra, a verdade que no foi essa circunstncia a responsvel pelo ocorrido, mas, sim, a grave retrao de crdito verificada em todos os setores da atividade mercantil, como decorrncia da orientao governamental, e que atingiu, em particular, a indstria da carnaba. No Senado, em 1947, lancei uma advertncia ao governo, assinalando os danos acarretados economia do Nordeste pelas medidas postas em prtica. Clamei contra a falta de financiamento (Idem, p. 160).

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    industrial) que haviam sido negligenciados, corrigindo erros da poltica de crdito e cmbio e aprimorando o planejamento e financiamento da expanso industrial para novos setores. Ainda que em cada regio Vargas apontasse gargalos especficos (suprimento de energia, meios de transporte, armazenamento etc.), a questo do financiamento era central. Para regies agrcolas, a superao de problemas de infraestrutura deveria ser complementada de poltica de preos mnimos e, sobretudo, financiamento barato aos produtores; para a indstria, vrios gargalos seriam enfrentados, particularmente a carncia de crditos a maior prazo e menor custo. Era Vargas quem apontava a centralidade da questo financeira:

    Julgo que o ponto alto da maioria dos problemas que nos defrontam est no crdito acessvel, reprodutivo e suficiente. No ser demais insistir em que sem crdito abundante, sem juros mdicos, sem permanente e estimuladora assistncia financeira, ser impossvel levar a economia nacional plenitude de suas realizaes. Na soluo do problema da madeira, do mate, do caf e de tantos outros, a minha concepo se enquadra principalmente em um enunciado singelo: crdito, porque sem crdito morreremos de inanio (Idem, p. 508).13

    O tema da coeso social e da convergncia de interesses entre proprietrios e trabalhadores tambm continuou crucial em sua concepo a respeito da conduo da poltica de crdito; ela deveria assegurar que os proprietrios aplicassem sua riqueza em funes reprodutivas em vez de gozarem da funo de usurrios, pois assim estaria preservado tambm o direito ao trabalho, central ideologia trabalhista e sua proposta em defesa do compromisso de classes. Para isto, seria fundamental inverter finalidades e meios de ao no trato do dinheiro:

    (13) Para no deixar dvidas, afirmaria que ser esse o financiamento produo o ponto a que consagrarei a maior ateno se voltar ao governo, levado pelo voto popular (idem, p. 246). Cabe frisar que Vargas associava a importncia do crdito prpria institucionalidade de economias modernas caracterizadas pela complexidade da diviso social do trabalho; nelas, ao contrrio da economia de uma sociedade embrionria (que) repousa em pequenas iniciativas individuais, tomadas isoladamente, as relaes de crdito deixariam de assumir carter meramente subjetivo, individual e espordico, de modo que o crdito torna-se, ento institucional. Neste contexto institucional, a oferta de crdito deveria preservar uma alta relao com o valor agregado na agricultura, na indstria e no comrcio: No se verificam mais as relaes simples e arbitrrias entre o banqueiro de um lado e o lavrador, o industrial, o comerciante e o trabalhador do outro. Estamos diante de relaes complexas, entre o sistema bancrio e a lavoura, a indstria, o comrcio e os trabalhadores em geral. Agora, a contrao da confiana no crdito teria necessariamente conseqncias gerais (e no individuais) indesejveis, pois o crdito tornara-se elemento permanente e indispensvel para a ampliao da produtividade e de desenvolvimento da riqueza, fontes de orientao e organizao da poltica de expanso do crdito. Caberia, logo, rejeitar concepes atrasadas de gesto da poltica creditcia e colocar o crdito a servio da expanso da produo: A mentalidade bancria do nosso tempo, que se deve caracterizar por um sentido eminentemente social, no pode, portanto, ficar tolhida por mtodos arcaicos, oriundas de concepes contemporneas de estgios econmicos h muito superados (p. 279-280). O tema, na verdade, no era novo no pensamento de Vargas, tendo sido antecipado mesmo antes de 1930: cf. P. C. Fonseca (1987, p. 99 e segs); nem seria esquecido, sendo repetido na passagem da Mensagem Presidencial de 1951 em que se afirmava que o volume de crdito destinado aos agregados econmicos indstria e agricultura, graas carncia de recursos da CREAI-BB e falta de habilidade dos bancos privados, era insignificante em vista das necessidades institucionais: (Vargas, Mensagem, 1951, p. 83-84).

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    A poltica econmica e financeira do governo atual tem sido a poltica da valorizao do dinheiro e da desvalorizao do trabalho a valorizao do dinheiro na mo dos que tm dinheiro e que no aplicam este dinheiro com finalidades sociais. No sendo capazes de criar uma indstria e empregar esse capital em qualquer atividade produtiva, eles se reservam, no momento em que o governo nega crdito s foras produtivas para, na sua funo de usurrios, emprestarem o dinheiro a 12, 14, 18 e 20 por cento. isto o que eu denomino de valorizao do dinheiro. Desde que o dinheiro seja concentrado nas mos de poucos, desde que o governo no fornea crdito para o desenvolvimento da iniciativa privada, o trabalho vai rareandoPortanto a poltica que se est seguindo, da valorizao do dinheiro, a da desvalorizao do trabalho, precisamente a poltica da perseguio do trabalhador e da produo; ao passo que a poltica que ns devemos fazer a do barateamento do dinheiro para que todos tenham trabalhoE para que todos tenham oportunidade de trabalhar preciso que no lhes falte o necessrio crdito, sempre que tenham uma boa idia a executar. exatamente o inverso do que se est fazendo atualmente, o que preciso fazer para o futuro (p. 555-556).

    Rejeitando o enriquecimento artificial das elites intermedirias do dinheiro, de um lado, e as infeces ideolgicas exticas e dissolventes, de outro, Vargas propunha um caminho do meio fundamentado na inverso produtiva do capital e na garantia do direito ao trabalho: Nem a ditadura do proletariado, nem a ditadura das elites. O que a sociedade moderna aspira o trabalhismo ou seja a harmonia entre todas as classes, a democracia com base no trabalho e no bem-estar do povo (p. 419). Nos termos deste compromisso de classes, o fomento da produo atravs do crdito seria um forte anteparo contra a elevao do custo de vida e contra o comunismo, assegurando o bem-estar coletivo e a paz social por meio do crescimento da renda e do emprego.14

    A poltica cambial era outro foco de crticas, e no poderia deixar de ser diferente: vimos como, no Estado Novo, foi montado esquema de financiamento de investimentos, atravs de regime de licenciamento prvio e seletivo de importaes (a PI-n. 7) articulado constituio de fundos compulsrios de investimentos (Decretos-Lei 6224 e 6225) e oferta de crdito subsidiado pela CREAI-BB. Com este esquema, a administrao Vargas buscava canalizar a acumulao interna de lucros do setor privado, apoiado pelo Banco do Brasil, para financiar a reposio de capital fixo desgastado e novos investimentos, usando seletivamente as reservas cambiais acumuladas durante a guerra assim que as dificuldades de fornecimento fossem normalizadas com a reconverso das economias industrializadas. Como Vargas fazia

    (14) Isso ser, apenas, a contribuio de qualquer governo bem intencionado, que se coloque ao lado do povo, e compreenda que o amparo produo e ao trabalho, alm de beneficiar o Brasil, do ponto de vista econmico, diminuir a nossa inquietao social, causada pelo preo exorbitante da vida que cada vez mais se eleva e permitir levar s classes menos favorecidas a poro de alegria e conforto a que tm direito (Idem, p. 410). A vinculao de crescimento econmico e coeso social seria reafirmada na campanha, reforada pela defesa dos direitos trabalhistas adquiridos (Idem, p. 49, 142, 148, 419, 490, 533, 587, 595, 629).

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    questo de lembrar em seu primeiro discurso na campanha presidencial, o regime de licenciamento de importaes foi abolido no governo Linhares e retomado, no governo Dutra, apenas depois que a perda de reservas exigiu seu contingenciamento. Ao longo da campanha, Vargas no perdeu oportunidades para sublinhar a imprevidncia de seus sucessores e reafirmar que a utilizao das divisas deveria ser feita priorizando a importao de bens reprodutivos e recusando pedidos de importaes de bens com similar nacional:

    Tendes experimentado surpreendentes e profundos golpes, oriundos da nossa poltica comercial externa, a qual permite, sem maior cuidado, a importao de similares estrangeiros. Cumpre-nos regular esse comrcio internacional, de forma que ele no venha a prejudicar nossas prprias indstrias. Se merecer a maioria dos sufrgios do pas, retificarei a orientao que vem sendo seguida a esse respeito pelos responsveis pela administrao pblica, s abrindo o mercado interno produo estrangeira, quando assegurado o inteiro consumo da nacional (p. 574).

    Assim, Vargas reafirmava o compromisso com a batalha da produo e o estendia para o campo da poltica cambial e comercial.15 Rejeitando polticas ortodoxas de restrio generalizada da oferta de moeda (o desacreditado estilo dos tempos passados, os mtodos arcaicos), a Vargas parecia impossvel reduzir a inflao sem crescer ao mesmo tempo de modo que aumentar a produo e reduzir o custo de vida no seriam metas a realizar em diferentes fases de um mesmo governo. O combate inflao deveria ser realizado em duas frentes, simultneas e complementares: ampliar a produo com o apoio decidido das polticas cambial e de crdito, e assegurar o equilbrio oramentrio. Segundo ele, exatamente o inverso do mix de poltica creditcia e fiscal-monetria do governo Dutra criticado como desastroso (Idem, p. 281, 363).

    Na nica vez em que tratou mais longamente da questo oramentria durante sua campanha (e, no, ao contrrio do que afirmaria Vianna, 1987, p. 35, no nico

    (15) Vargas voltaria questo outras vezes durante a campanha presidencial, esclarecendo suas prioridades no uso das divisas: Quando deixei o governo, logo depois do conflito mundial, o Brasil era, pela primeira vez na sua histria, credor internacional, atravs de divisas que tinham valor ouro Que fizeram desse dinheiro? Por qu no compraram material para o reaparelhamento dos nossos transportes? Por qu no adquiriram mquinas, sondas e perfuratrizes para incrementar a pesquisa e desenvolver a produo de petrleo? Por qu fundiram nossas reservas em quinquilharias, automveis, em objetos de luxo, em coisas que no aproveitam comunidade, que no criam riqueza? (p. 257); ou na seguinte passagem: Durante a segunda guerra mundial, atravs de sacrifcios sem conta, trabalhamos todos para acumular riqueza pblica. Em nossa j longa vida independente, pela primeira vez, chegamos ao fim da guerra na situao de credores das grandes naes industriais do mundo. Mais de seiscentos milhes de dlares estavam nos Estados Unidos, na Inglaterra e noutros pases, aguardando o momento oportuno em que pudssemos aplic-los no reequipamento das nossas indstrias bsicas. Era a forma de pagar os sacrifcios comuns, ampliando a eletrificao ferroviria, comprando teares de maior e melhor produo com menor esforo, desenvolvendo, enfim, uma indstria metalrgica que suprisse as necessidades do pas. Sabeis o destino melanclico dessas vultuosas reservas? Transformaram-se em bugigangas, em ouropis e enfeites, como no tempo dos ndios. Em lugar de bens reprodutivos, compramos contas e miangas (p. 474-475).

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    discurso em que se detm sobre os problemas econmicos do pas), diria que todo e qualquer programa de desenvolvimento econmico ser fadado ao fracasso irremedivel, como o foram os ultimamente ensaiados, desde que no contem com o amparo de uma poltica que oriente, equilibradamente, as finanas pblicas (A Campanha Presidencial, p. 65). Mas foram freqentes as referncias necessidade de conjugar, ao equilbrio oramentrio, uma poltica de expanso do crdito.16

    Se verdade que Vargas propunha, de um lado, assegurar crdito fcil e barato junto ao Banco do Brasil e, de outro, destinar divisas para atividades complementares (no competitivas) s indstrias aqui instaladas, o retorno ao que chamara de um nacionalismo econmico moderado, mas eficiente no deveria envolver uma recusa cooperao internacional para o financiamento de investimentos industriais. Embora Vargas frisasse a necessidade de regular a entrada de capitais, no prescindia de financiamento externo, desde que se preservasse o controle nacional dos recursos naturais imprescindveis defesa nacional, como o petrleo (a ser explorado por brasileiros com organizaes predominantemente brasileiras: idem, p.258); e caso se assegurasse a vinculao dos investimentos estrangeiros s necessidades de desenvolvimento do pas:

    No sou, como tendenciosamente afirmam foras reacionrias, inimigo da cooperao do capital estrangeiro. Ao contrrio, convoquei-o muitas vezes a cooperar com o Brasil durante os anos de minha administrao. Sou adversrio, sim, da explorao do capitalismo usurrio e oportunista, visando exclusivamente o lucro individual e fugindo funo mais nobre de criar melhores condies de vida para todos. Por isso, sempre preferi e continuo a preferir, como mtodo de ao, o sistema das sociedades de economia mista (p. 303).

    Neste sentido, sua postura era coerente quela que esposava em relao ao trato do capital interno: era necessrio, sobretudo atravs de joint ventures, garantir a inverso produtiva (e no usurria) do capital para articul-lo s novas diretrizes do desenvolvimento industrial do pas. Estas joint ventures deveriam desenvolver os

    (16) Diria de improviso em Rio Grande (RS): Ns precisamos defender o produtor estabelecendo um preo mnimo para a venda de seus produtos e permitindo-lhe o financiamento oportunoNo se pode baratear a vida sem aumentar a produo e no se pode aumentar a produo fazendo uma guerra de morte contra os produtores (Idem, p. 598). O que seria uma guerra de morte? Todos sabem que a vida encarece cotidianamente e que no se pode promover o barateamento da vida sem aumentar a produo. Mas como aumentar a produo, se o governo faz uma guerra de morte, negando crdito produo, lavoura, ao comrcio, indstria e pecuria?, conforme perguntaria dois dias depois (p. 636). Voltaria questo no penltimo discurso da campanha, dando-lhe um sentido geral: A campanha que estamos desenvolvendo e a pregao que vimos fazendo atravs de vrios Estados do Brasil, so no sentido da recuperao econmica da Ptria e da valorizao do trabalho. A recuperao econmica tem em suas finalidades principais, conseguir o barateamento da vida. Mas para conseguir o barateamento da vida necessrio aumentar a produo, e no se aumenta a produo fazendo, como faz o atual governo, uma guerra de morte contra a indstria, o comrcio e a lavourao que se torna necessrio a fim de aumentar a produo amparar o produtor com crdito barato e fcil, com crdito a juros baixos e a prazo longo (p. 652).

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    ramos pesados de bens de produo que Vargas dizia ser necessrio fomentar (e cujos requisitos financeiros mostraram-se bastante superiores acumulao de lucros do setor privado nacional, ainda quando apoiado pela CREAI-BB).

    O problema mais emergencial visualizado por Vargas na campanha, porm, era a possibilidade de deflagrao de um novo conflito militar em escala mundial:

    O futuro do Brasil est hoje em jogo, mais do que em qualquer oportunidade semelhante. Dos pases estrangeiros hoje chegam os rudos ameaadores de conflito, prximo ou distante. Que ser de nosso povo, em face de uma possvel terceira guerra mundial? A ltima teria sido para ns verdadeiramente calamitosa, no fossem as precaues tomadas pelo meu governo. Agora, desfalcados de matrias-primas industriais, se irromper uma conflagrao mundial, soobraremos como embarcao sem bssola. Tudo ou quase tudo ficar paralisado e regrediremos meio sculo. Esse o panorama do futuro se errarmos na escolhano possvel que nos faamos co-responsveis pelos dias sombrios que o futuro nos reserva (p. 546).

    Vargas no incorria em veleidade retrica, ao afirmar ser urgente reagir deflagrao de uma guerra mundial que desfalcasse o pas de insumos essenciais: se antecipando aos acontecimentos, j recebera em setembro um relatrio elaborado por Walder Sarmanho, ministro de segunda classe da Embaixada Brasileira em Washington (ex-chefe de gabinete de Vargas, por mais de dez anos), a ser promovido primeira classe por Vargas um ano depois. Neste relatrio, intitulado Sugestes para a defesa econmica do Brasil em situao de emergncia (GV 50.09.03), vrias iniciativas emergenciais para assegurar o abastecimento do pas eram analisadas e sugeridas.17

    Na Mensagem Presidencial de 1951, as sugestes de Sarmanho eram transformadas em pea de programa de governo: afirmava-se que o governo devia defender a sustentao dos altos preos do caf, do algodo e do cacau (sem excluir uma poltica de ampliao da exportao de outros produtos), porque se esta j seria

    (17) Na verdade, o debate na imprensa sobre a necessidade de estocagem de produtos essenciais e materiais estratgicos j era intenso desde o incio da campanha eleitoral (coincidindo aproximadamente com o incio das hostilidades na Coria): ver O Globo (08/08/1950), O Jornal (01 e 10/09), Correio da Manh (08/09) e O Economista (26/09). Diante da possibilidade de deflagrao de um conflito mundial, a poltica que Sarmanho recomendava a Vargas era a de se antecipar aos acontecimentos. Tratava-se de acelerar o ritmo de formao de estoques de insumos essenciais em detrimento de importaes no-essenciais, antes da imposio de cotas para exportao de produtos estadunidenses ou, antes disto, de aumento ainda maior das cotaes internacionais, que acompanharia a escassez de suprimentos trazida por nova mobilizao de guerra. Como forma de financiamento externo das compras (sempre que as nossas disponibilidades cambiais no permitirem o pagamento com nossos prprios recursos), deveria apelar-se ao BIRD, ao Eximbank e formao de um pool de bancos privados estadunidenses. E, internamente, deveria ampliar-se o crdito seletivo para conferir recursos tanto a iniciativas subsidirias do esforo de estocagem, quanto acelerao de investimentos voltados a substituir as importaes mais caras de produtos manufaturados, pela importao de insumos ou matrias-primas a serem manufaturadas internamente, apressando a construo de novos silos, refinarias de petrleo, destilarias de lcool etc. (GV 50.09.03).

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    uma poltica aconselhvel em tempos normais, justifica-se de maneira especial na presente conjuntura, em que o suprimento de artigos essenciais manuteno da atividade nacional deve ser procurado em qualquer pas que seja capaz de atend-lo (G. Vargas, Mensagem, 1951, p. 90). Pois, em meio sua escassez generalizada, o aumento dos preos dos bens essenciais importados podia at inverter o resultado favorvel das contas externas, devendo orientar uma rpida poltica de estocagem antes que isto acontecesse:

    As perspectivas so, alis, de uma nova inverso da balana comercial externa, e, mesmo, do balano de pagamento, falta de disponibilidades exportveis de bens essenciais ao Brasil, nos mercados tradicionalmente fornecedores. Sob esse aspecto, o grande saldo verificado na balana comercial, em 1950, constitui mau pressgio para o ano em curso. Cumpre, portanto, incrementar as aquisies externas de bens essenciais, at mesmo com a conseqente acumulao de estoques daqueles que se vo tornando escassos, assegurando-se ao pas, por outro lado, atravs de acordos internacionais, o suprimento regular das mercadorias estrangeiras imprescindveis nossa economia, em face da conjuntura mundial (Idem, p. 90-91).

    significativo que, na Mensagem de 1951, a meno ameaa de guerra fosse acompanhada pela advertncia de que, antes de assumir, Vargas havia encomendado estudos que indicavam as polticas emergenciais diante do cenrio ameaador. Vargas acreditava que a adaptao ao contexto internacional no podia ser lenta e gradual, mas tomada em carter de urgncia:

    Os recentes acontecimentos comeam a refletir-se no comrcio mundial... Os preparativos de defesa das naes vm alterar as condies de oferta e procura nos mercados mundiais. de presumir que, num prazo relativamente curto, a situao do balano de pagamentos do pas tenda a inverter-se. Antes mesmo de iniciar o mandato, atribui importncia primordial ao estudo dos problemas e das medidas relacionadas com as perspectivas internacionais, para, tomadas em tempo oportuno as providncias cabveis, como j o vm sendo, compensar os impactos negativos das novas condies sobre a economia nacional (Idem, p. 95).

    A poltica de importaes estava em meio a um dilema: quanto mais demorasse a constituir estoques essenciais, o risco era maior em vista do possvel de corte da oferta mundial; mas se a concesso de licenas para a formao de estoques fosse rpida demais frente s disponibilidades de divisas, o risco de ficar sem divisas para realizar compras futuramente tambm existia. Entre ficar sem divisas por acelerar as compras, ou economizar divisas e ser incapaz de us-las posteriormente, a opo do governo era pelo primeiro dos dois riscos: a prioridade era impedir que, pela falta de insumos, tudo ou quase tudo fique paralisado, em uma regresso de meio sculo, nos termos da campanha eleitoral. Mas para prevenir de forma mais duradoura ambos os riscos, Vargas propunha acelerar o processo de substituio de importaes em simultneo constituio dos estoques de bens intermedirios, conseguindo recursos externos que ajudassem a financi-lo:

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    No plano interno, alm das providncias monetrias e fiscais, indicadas noutra parte, diligenciarei no sentido de promover uma poltica de estocagem de produtos essenciais: ampliar a capacidade de armazenagem; apressar a concluso dos empreendimentos de relevante interesse para a economia do pas, dependentes de financiamentos externos, obtendo para esse fim as prioridades para as importaes indispensveis (p. 96).

    Embarcar em um processo acelerado de substituio de importaes que modificasse a prpria estrutura produtiva era muito arriscado naquela circunstncia, pois as importaes necessrias para os investimentos concorreriam com as exigncias de divisas para formar estoques de bens intermedirios que fizessem funcionar a estrutura produtiva j existente. Mas o risco estava sendo calculado, exigindo a rpida concluso de acordos internacionais para suprimento de bens essenciais e financiamento de projetos que viabilizassem a produo interna. De fato, a proposta de fomentar investimentos nas indstrias de base era reforada, naquela conjuntura internacional, pela necessidade de evitar o impacto desfavorvel da interrupo do fornecimento de insumos bsicos sobre a estrutura produtiva j existente, at ento concentrada em bens de consumo:

    A dificuldade de aquisio de matrias primas e maquinaria estrangeiras, em virtude da situao nacional, um desses empecilhos que tende a agravar-se. s restries adotadas pelos pases fornecedores que j se fazem sentir no Brasil, principalmente nas indstrias que consomem metais no-ferrosos, produtos qumicos essenciais, ferro e ao, folha-de-flandres, ao mesmo tempo em que se acentuam as dificuldades para obteno de equipamentos. Como medida destinada a evitar maiores entraves expanso das indstrias nacionais de bens de consumo, cumpre fomentar a criao das indstrias de base destinadas a garantir suprimentos regulares (Idem, p. 129).

    Em suma, a ameaa de guerra exigia acelerar o processo de adaptao do Brasil a choques externos (guerras, crises cambiais) que lhe impossibilitavam, regularmente, suprir-se de importaes essenciais, induzindo obter suprimentos bsicos atravs de projetos locais. De todo modo, frente grande instabilidade internacional, caberia CEXIM se ajustar rapidamente s mudanas de conjuntura, mas sem se afastar dos princpios definidos no sentido de selecionar prioridades inequvocas no uso das divisas. Ou seja, no sentido de evitar que a importao de bens de consumo concorresse com as importaes de bens intermedirios e de capital fixo:

    A natureza extremamente dinmica dos problemas econmicos exige que a atuao da referida Carteira se ajuste s exigncias das conjunturas que lhe cumpre atender, mas sem que se afaste ela de suas diretrizes essenciais. Tenho, entretanto, a lamentar que ultimamente, interpretando com otimismo os efeitos dos melhores preos alcanados pelo caf e outros produtos, a Carteira tivesse afrouxado a aplicao dos critrios que deveriam orient-la, invertendo, em aplicaes no essenciais ou simplesmente especulativas, disponibilidades exigidas por setores bsicos Louvando-se na gravidade da situao internacional, a execuo do controle permitiu importaes macias de produtos no-essenciais, sob os mais variados pretextos, inclusive o de estocagem (Idem, p. 96).

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    A defesa de uma poltica de seletividade cambial que limitasse a importao de bens de consumo no-essenciais ou com similar nacional no era, entretanto, uma deciso induzida apenas, naquela circunstncia internacional emergencial, pela necessidade de economizar divisas para propiciar as importaes mais essenciais de bens intermedirios e de capital sem similar no pas. Como nas propostas da campanha presidencial, a poltica cambial seletiva tambm era justificada pela necessidade de resguardar o crescimento das indstrias nacionais de bens de consumo, protegendo-as da competio internacional assim como fizeram os pases industrializados no fomento de suas indstrias nascentes.18

    Houve grande linha de continuidade entre as preocupaes manifestas na campanha presidencial e as propostas sistematizadas na Mensagem de 1951, em todos os temas acima abordados. O programa de governo era claro: orientar investimentos na direo de um novo perfil industrial ancorado na produo de insumos bsicos e bens de capital, superando as restries ao desenvolvimento econmico, que tambm era considerado uma condio para a conciliao de classes sociais. Para isto, o Estado devia realizar ou induzir investimentos para superar pontos de estrangulamento, com planos setoriais bem definidos.19 A coerncia entre o programa de investimentos reestruturantes e as polticas macroeconmicas era bvia: estas deveriam contar com expanso do crdito para fomentar a produo e combater a inflao; com poltica cambial seletiva para fomentar a substituio de importaes; com poltica fiscal que

    (18) O impacto sofrido por essa indstria (de bens de consumo), em 1947, por motivo das importaes indiscriminadas e em massa de manufaturas j fabricadas no Pas, no arrefeceu o animo dos industriais brasileiros que, no obstante a concorrncia externa, mantiveram o ritmo de produo em quase todos os setores e empreenderam a renovao e ampliao de equipamentos, grandemente desgastados pelo esforo de guerra. Contudo, a experincia demonstrou, ento, que a indstria nacional no pode prescindir de uma sadia poltica de comrcio exterior, tendente a pr as empresas instaladas para produo de artigos essenciais a coberto de surpresas resultantes de liberalidades excessivas em relao concorrncia externa. A falta de poltica aduaneira e, mais que isso, a situao cambial exigem a instituio daquela poltica, que dever ser seguida pelo menos enquanto no se achar devidamente consolidada a posio industrial do pas em face das naes industrialmente desenvolvidas. Preconizando tal orientao adotamos to s a diretriz seguida por todas essas naes, durante o seu desenvolvimento (Idem, p. 128).

    (19) O programa acelerado de substituio de importaes de insumos bsicos e bens de capital deveria envolver investimentos na produo siderrgica, incluso a de aos especiais (p.120 e segs.); na produo de produtos qumicos bsicos, como ao sulfrico, lcalis, barrilha e soda custica (p. 124 e segs.); na produo de motores (p. 127); de equipamentos de transporte e comunicao (p. 151 e segs.); alm de investimentos que superassem os estrangulamentos na infra-estrutura de transportes e comunicaes (p. 143 e segs.) e no fornecimento de energia eltrica, a partir de usinas hidreltricas (p. 156 e segs.). Ainda no havia qualquer referncia industria de materiais eltricos, mas Vargas conferia uma especial nfase realizao de projetos de investimento voltados ao refino interno de petrleo. O objetivo bsico era economizar divisas com a substituio das importaes de petrleo j refinado por importaes de petrleo bruto a ser manufaturado internamente, em conjunto com o fomento construo nacional de navios petroleiros (para reduzir custos de frete e ameaas de interrupo de fornecimento por escassez de praa martima) e de novos silos para estocagem (Idem, p. 162-166). A mesma lgica seria vlida para fomentar a produo interna de carvo (p. 167-168).

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    evitasse dficits, mas tambm aumentasse recursos para investimentos pblicos nos ramos bsicos.20

    Este programa no era ortodoxo (como sugerido por Vianna, 1987), nem meramente reativo ao agravamento das restries externas gerado pela abertura liberal do governo Dutra e, depois, por mais uma rodada de substituio de importaes concentrada no setor de bens de consumo. Na verdade, a Mensagem de 1951 adaptava, a um novo contexto, o programa de interveno desenvolvimentista j delineado durante a guerra, mas barrado pelo avano liberal. Agora, a justificativa ideolgica desenvolvimentista para a interveno estatal era exatamente a de que era mais conforme a tendncias manifestadas no processo de substituio de importaes no Brasil, ao contrrio das iluses liberais quanto suficincia de capitais externos e exportaes tradicionais:

    O desenvolvimento econmico requer crescentes importaes de bens de produo e, de vez que os rendimentos se elevam, tambm maiores volumes de importao de bens de consumo. Mas a ampliao das importaes supe um incremento da procura internacional para nossos produtos de exportao ao lado da entrada de capitais estrangeiros. Nossas exportaes, entretanto, no se tm expandido numa taxa equivalente demanda de importaes e, de outro, no tm sido ponderveis, nem estveis, os influxos de capitais. Em conseqncia, tende a balana de contas do pas a ser cronicamente desequilibrada, coartando o progresso econmico Nessas condies, a economia nacional, atravs de lento e descontnuo processo de adaptao, vem sofrendo uma transformao estrutural, que consiste essencialmente na substituio de importaes pela produo domstica e na diversificao das exportaes. Esse processo, que se iniciou pela substituio das importaes das manufaturas destinadas ao consumo, se prolonga na fase mais recente pelo crescimento de produo interna de bens de capital, antes importadosUm dos objetivos fundamentais da poltica econmica do governo deve residir na criao das condies que facilitem o referido processo de adaptao, em conformidade com as tendncias manifestadas, como a soluo naturalmente indicada para assegurar no s o desenvolvimento econmico como o equilbrio das relaes internacionais. A correo do desequilbrio permanente do balano de pagamentos importa em defender as iniciativas nacionais, para garantia da

    (20) A Mensagem de 1951 reproduzia, s vezes textualmente, as proposta de campanha nas crticas s polticas de Dutra (p. 13-4, 81-83, 94, 96-97); na importncia da expanso do crdito para fomentar a produo e combater a inflao (Idem, p. 12, 83-84, 86-87); no papel de uma poltica cambial seletiva para fomentar a substituio de importaes, em conjunto com a poltica de crdito (Idem, p. 84, 89-92, 95-96, 128); na importncia do equilbrio oramentrio para combater a inflao e financiar grandes empreendimentos bsicos de carter pblico (Idem, p. 12, 67-68, 77, 81-83, 185-186); na necessidade de orientar investimentos na direo de um novo padro industrial ancorado na produo de insumos bsicos e bens de capital, com nfase na interveno do Estado para superar pontos de estrangulamento (Idem, p. 91-92, 122, 129, 133, 143, 151, 156-159, 162, 168); no papel da cooperao internacional para complementar a carncia interna de capitais (Idem, p. 187-189); no papel do crescimento econmico como condio de conciliao de classes (Idem, p. 12-13, 222-224); na nfase nas condies externas desfavorveis a serem esperadas com a Guerra da Coria, exigindo a realizao de uma poltica emergencial de estocagem de bens essenciais cuja escassez futura era provvel e uma acelerao da substituio de importaes apoiada em financiamento interno e externo (Idem, p. 90-91, 95-97).

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    expanso da produo substitutiva de importaes, sempre que economicamente vivel; em expandir as receitas de exportao e em assegurar um influxo estvel de capitais estrangeiros (Idem, p. 91-92).

    Os programas da Mensagem de 1951 no ficaram no papel, mas orientaram de fato a conduo do governo. Isto talvez seja mais claro nos projetos de investimentos priorizados pela alocao de recursos fiscais e financeiros, embora no tenham sido coordenados por alguma agncia central de planejamento, a no ser pelo prprio presidente e sua assessoria, de modo pouco formalizado. Isto foi enfatizado por vrios membros da assessoria econmica do presidente, o corpo burocrtico informal que o assessorava na redao de programas e no acompanhamento das polticas: a crer no depoimento de Jesus Soares Pereira (membro original da Assessoria e seu segundo coordenador), vrios dos programas parciais elaborados pela assessoria at 1954, e no foram poucos, seguiram as diretrizes bsicas (ainda gerais e vagas) do que chamou de Mensagem Programtica de 1951 (J. S. Pereira, 1976, p. 89 e segs). Cleantho de Paiva Leite, outro importante assessor direto de Vargas, foi ainda mais longe ao afirmar que essa integrao de vrios projetos isolados a caracterstica principal, dominante, do segundo governo Vargas. Em vez de projetos isolados, voc tem, no segundo governo, esse quadro, esses parmetros, dentro dos quais vo se inscrevendo os problemas prioritrios do pas (apud V. Rocha et al., 1986, p. 251). Para Rmulo de Almeida, embora houvesse unidade de diretriz entre os projetos parciais elaborados, vincul-los a um plano de metas era visto pelo presidente como politicamente oneroso e at tecnicamente ineficaz, mas envolvia o risco de dificultar a coordenao pela ausncia de um organismo formal de centralizao.21

    (21) Agora, no se falava em plano, em planejamento no se falava, por uma razo: havia primeiro um bombardeio contra essa idia de planoainda continuava no ar aquela polmica do Gudin contra o Simonsen e o grande bombardeio de Gudin contra o livro de Von Mises e de Hayek e tal, e ento havia um certo receio. Por outro lado o presidente, como era um homem muito ligado a uma idia de Estado atuante e tinha uma grande resistncia contra ele a maioria no Congresso, suspiccias internacionais, alguns elementos do setor privado e tudo mais , ento ele teve muita preocupao de evitar que ostensivamente se adotasse esse nome, pelo menos na fase inicial. (R. Almeida, 1980, p. 7, 10). Depois que vrios programas parciais amadureceram, porm, o risco poltico em admitir a existncia de um planejamento central implcito aos projetos foi assumido, particularmente na Mensagem de 1953, sujeito ressalva, porm, de que o plano no nascera pronto e acabado mas vinha sendo atualizado constantemente: Como acentuei no discurso do segundo aniversrio da atual gesto, os programas que o governo tem lanado, ou cujos estudos esto em andamento, pela sua coerncia e unidade fundamental, apresentam, em conjunto, o caracterstico de um plano de governo. No era, entretanto, possvel retardar o incio dos programas parciais to desprovido estava e ainda est o pas de recursos bsicos e to carente de tcnicos at que se elaborasse um plano global. A integrao formal e informal dos programas parciais de energia, transportes, agricultura, indstrias de base, de obras sociais e de poltica monetria, na unidade de um plano, com as retificaes recprocas que se impuserem, tarefa que j determinei e est sendo realizada em coordenao com os rgos prprios. Para elaborao definitiva do plano e de sua permanente atualizao, torna-se cada vez mais notria a necessidade da criao de um Conselho de Planejamento e Coordenao contando com servios tcnicos suficientemente equipados (O Governo Trabalhista do Brasil, v. III, p. 277). Algo similar agncia proposta (o Conselho de Desenvolvimento Econmico) foi criado no governo J