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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA
MÁRIO AUGUSTO CARDOSO JUSTO
Os legados e as heranças do regime militar de
1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro
São Paulo
2015
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA
Os legados e as heranças do regime militar de
1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro
Mário Augusto Cardoso Justo
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Geografia Humana do Departamento de Geografia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para a obtenção
do título de Mestre em Geografia Humana.
Orientador: Professor Dr. André Roberto Martin
São Paulo
2015
4
Agradecimentos:
Este trabalho é a realização de um sonho, desde a conclusão do meu curso de
Graduação em Geografia, no final de 2001. Eu desejava e almejava fazer a Pós-
Graduação para a obtenção do Título de Mestre, porém muitas coisas aconteceram e
alguns percalços também. Após uma espera relativamente longa e de algumas tentativas
frustradas, finalmente iniciei a Pós-Graduação em Geografia Humana em agosto de
2012.
O processo de elaboração deste trabalho não foi fácil. Vivemos em um país
onde a pesquisa ainda não é devidamente valorizada. Não é nada fácil conciliar a
pesquisa e os empregos. Isso mesmo, empregos no plural. Como professor na Educação
Básica, atuando no Ensino Fundamental, tanto no regular (na rede estadual de São
Paulo), como na Educação de Jovens e Adultos – EJA (na rede municipal de Taboão da
Serra - SP), eu tenho uma rotina em muito semelhante à esmagadora maioria dos
docentes de Educação Básica no Brasil, atuando em salas de aula por duas escolas.
Conciliar pesquisa e o atendimento às suas necessidades básicas continua a ser um
desafio aqui no Brasil.
Agradeço ao meu professor orientador, Dr. André Roberto Martin, porque ele já
havia sido o meu orientador no Trabalho de Graduação Individual (TGI), quando da
conclusão de minha Graduação. Em todos esses anos em que estive distante da
Universidade até retornar à Pós-Graduação sempre o tive como orientador em minha
mente, apesar das dificuldades enfrentadas no processo de ingresso para o programa do
Mestrado. Agradeço ao professor André pela colaboração e as sugestões preciosas para
o desenvolvimento do trabalho. Isso não se restringe só agora no Mestrado, porque
como o conheço de longa data, as ajudas, as conversas e os diálogos com o professor
orientador, desde os tempos da Graduação e do TGI, nunca foram esquecidas ao longo
desses anos e, obviamente, foram aproveitadas.
Agradeço também aos professores Dr. Wanderley Messias da Costa e à Dra.
Maria Aparecida de Aquino com os quais tive aulas em disciplinas cursadas na Pós-
Graduação e que também redundaram em importantíssimas contribuições para a
realização deste trabalho.
5
Resumo:
A presente pesquisa trata sobre alguns dos principais legados e heranças que o
regime militar de 1964-1985 trouxe ao Brasil. Num primeiro momento abordou-se a
formação sócio-política da América Latina, se restringindo mais especificamente à
América do Sul, chegando-se ao período que genericamente conhecemos por
populismo. E, na sequência, um panorama histórico dos regimes militares que
permearam a vida política de várias nações sul-americanas, como Peru, Chile e
Argentina, a partir da década de 1960. A análise torna-se centrada no Brasil, a partir da
exposição da participação dos militares na política nacional, desde a proclamação da
República, em 1889, passando-se pela República Velha, a Era Vargas (1930-1945) e
pelo período democrático, iniciado em 1946, até a renúncia de Jânio Quadros, em 1961.
Ao chegar-se no período de João Goulart (1961-1964), a análise se torna mais detalhada
por aquele ter sido o governo derrubado pelo golpe de 1964. Segue-se um panorama
histórico bastante abrangente dos cinco presidentes-generais que governaram o Brasil
entre 1964 a 1985: Castelo Branco; Costa e Silva; Médici; Ernesto Geisel; e João
Figueiredo. Naquele momento, o trabalho se detém num exame mais acurado do
“milagre econômico”; dos “anos de chumbo”; da “distensão” ou abertura; e da transição
democrática, com o movimento das “Diretas-Já” e o Colégio Eleitoral que elegeu
Tancredo Neves, presidente da República, em 1985. Após esta longa retomada
histórica, são abordados os legados e as heranças do regime militar ao espaço
geográfico-territorial brasileiro tomando-se como “fio norteador” o conceito e o
processo de modernização conservadora/centralizadora. Este processo é analisado desde
as suas raízes, na Revolução de 1930 e início da Era Vargas, destacando-se o Estado
Novo varguista (1937-1945), prosseguindo-se pelo período democrático pós-1946,
tratando-se, em especial, do outro governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e o de
Juscelino Kubitschek (1956-1960). E chega-se ao regime militar iniciado em 1964. O
foco desta parte do trabalho são as políticas territoriais adotadas e implementadas pelo
governo federal ao longo dessas diferentes fases político-institucionais do Brasil e que
afetaram o território nacional trazendo reflexos até hoje, bem como a implantação,
estruturação e a consolidação de redes por parte dos governos militares pós- 1964 como
a de transportes, a urbana, a de telecomunicações, a elétrica, etc., procurando-se
salientar que essa modernização autoritária, imposta pelo governo central brasileiro,
apresentou notória continuidade apesar das mudanças político-institucionais que o
Brasil experimentou naquelas décadas, fazendo-se então um balanço dos legados e das
heranças que esse modelo modernizante, reforçado sobremaneira pelo regime militar,
trouxe ao espaço geográfico e território brasileiro, em nome da unificação e da
integração nacionais. Finalmente, este trabalho faz uma breve retomada histórica da
Geografia Política e da Geopolítica,desde o século XIX até ao século XX,
posteriormente adentrando-se no pensamento geopolítico brasileiro, desde a década de
1930 até a visão “triunfalista” do “Brasil-Potência” dos anos 1970, com especial
destaque ao pensamento de Golbery do Couto e Silva. E depois, as críticas à esta visão
“triunfalista” e ao pensamento geopolítico no Brasil, com a necessidade de se repensar a
Geografia Política em nosso país.
Palavras-chave: regime militar de 1964, militarismo no Brasil, modernização
autoritária, modernização conservadora
6
Abstract:
The present research about some major legacies to the 1964-1985 military regime
brought to Brazil. At first approached the formation social and policy of Latin America,
if restricting more specifically to South America, the period generally known as
populism. And, as a result, a history of the military regimes that permeated the political
life of several South American Nations, such as Peru, Chile and Argentina, from the
early 60’s. The analysis becomes centered in Brazil, from the exposure of military
participation in national politics, since the proclamation of the Republic in 1889,
passing by the old Republic, the Vargas Era (1930-1945) and the democratic period,
which started in 1946, until the resignation of President Jânio Quadros in 1961. Upon
arriving in the period of João Goulart (1961-1964), the analysis becomes more detail for
that have been the Government overthrown by the coup d’état of 1964. Below is a
comprehensive historical overview of the five Presidents-generals who ruled Brazil
between 1964 to 1985: Castelo Branco; Costa e Silva; Medici; Ernesto Geisel; and João
Figueiredo. At that time, the work comes to a halt in a more accurate examination of the
"economic miracle"; the "years of lead"; the "bloating" or opening; and the democratic
transition, with the movement of the "direct" and the electoral college that elected
Tancredo Neves, President of the Republic, in 1985. After this long historical resume,
are covered and the legacies of the military regime to the geographical space-Brazilian
territorial taking as "guiding wire" the concept and the conservative modernization
process/centering. This process is analyzed from its roots in the revolution of 1930 and
early Vargas highlighting New Vargas State (1937-1945), continuing the democratic
period post 1946, dealing, in particular, of another Government of Getúlio Vargas
(1951-1954) and the Juscelino Kubitschek (1956-1960). And arrive at the military
regime started in 1964. The focus of this part of the job are territorial policies adopted
and implemented by the federal Government over these different political and
institutional stages of Brazil and that affected the country bringing reflections until
today, as well as deployment, structuring and consolidation of networks by military
governments post 1964 as urbanization, transports, telecommunications, electric , etc.,
should be noted that this authoritarian modernization, imposed by the central
Government of Brazil, presented notorious continuity despite political and institutional
changes that Brazil experienced in those decades, doing a legacy and balance of the
legacies that this model of modernization greatly reinforced by the military regime,
brought to the geographical space and Brazilian territory, in the name of national
integration and unification. Finally, this work makes a brief resumption of political
geography and Geopolitics since the 19th century until the 20th century, later entering
in the Brazilian geopolitical thinking, since the 1930 until the vision "triumphalist" of
"Brazil-power" of the 70´s, with special emphasis on thought of Golbery do Couto e
Silva. And then, the criticism of this vision "triumphalist" and geopolitical thinking in
Brazil, with the need to rethink the political geography in our country.
Keywords: the military regime in 1964, militarism in Brazil, authoritarian
modernization, conservative modernization
7
Índice:
Agradecimentos............................................................................................4
Resumo........................................................................................................5
Abstract......................................................................................................6
Apresentação ............................................................................................12
Introdução.................................................................................................16
1- Estrutura de poder e formação sócio-política da América Latina.............34
1.1 – As ditaduras regressivas ou regimes militares autoritários na América
Latina...................................................................................................................45
1.1.1- Ditaduras regressivas ou regimes militares autoritários na América do
Sul.........................................................................................................................48
*Peru....................................................................................................................48
*Chile....................................................................................................................51
*Argentina............................................................................................................55
*Uruguai e Paraguai............................................................................................60
2- A participação dos militares na história republicana brasileira.................63
2.1- De 1889 a 1961: a participação dos militares, desde a República Velha até ao
governo Jânio Quadros................................................................................63
2.2- De 1961 a 1964: período Jango - o governo que, ao ser derrubado, daria lugar
ao regime militar.........................................................................................76
2.3 – O golpe de 1964..................................................................................104
8
3 – O Regime Militar Brasileiro (1964-1985).....................................................137
3.1- Governo Castelo Branco (1964-1967). Uma “ditabranda”?........................137
3.2 – Governo Costa e Silva (1967-1969)..........................................................157
3.2.1- Embate Sucessório...................................................................................171
3.3- Governo Médici (1969-1974). O milagre em anos de chumbo......................182
3.3.1- Milagre econômico..................................................................................201
3.3.2- Anos de chumbo.....................................................................................223
3.4- Governo Geisel (1974-1979). Fim do “milagre”, manutenção do estatismo e
início da “distensão”.........................................................................................241
3.4.1 – Distensão, abertura e democracia “relativa”..........................................259
3.5- Governo Figueiredo (1979-1985). O regime militar caminha para o seu
final.................................................................................................................288
3.5.1- “Diretas-Já” e Colégio Eleitoral. O Brasil entre a abertura e a
redemocratização..............................................................................................303
4- Modernização conservadora e centralizadora................................................325
4.1- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: desde as suas raízes
(Revolução de 1930 e Estado Novo de 1937) até a construção de Brasília (década
de 1950)...........................................................................................................330
4.2- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: o regime militar de
1964.................................................................................................................338
4.3 Heranças e legados da modernização conservadora e centralizadora para o
Brasil...............................................................................................................355
9
5- Geografia Política e Geopolítica: suas evoluções e diferenciações...................387
5.1- Clássicos do pensamento geopolítico brasileiro:
de Backheuser a Golbery (das décadas de 1930 até a de 1970)...........................393
5.2- O pensamento geopolítico brasileiro: do “triunfalismo” da década de 1970 às
críticas atuais... ...............................................................................................406
Considerações Finais........................................................................................413
*O estatismo na história brasileira. De Vargas à Lula......................................418
*Cultura nacional-estatista no Estado Novo (1937-1945).................................420
*Cultura nacional-estatista nos anos de JK (1956-1961)..................................421
*Cultura nacional-estatista no regime militar (1964-1985)..............................423
*Cultura nacional-estatista nos anos de Lula (2003-2010)...............................424
Referências Bibliográficas..............................................................................432
10
Índice de tabelas:
Tabela 1... .........................................................................................................222
Tabela 2.............................................................................................................367
Tabela 3.............................................................................................................368
Tabela 4.............................................................................................................369
Tabela 5.............................................................................................................369
Tabela 6.............................................................................................................370
Tabela 7.............................................................................................................371
Tabela 8.............................................................................................................376
11
Índice de mapas:
Mapa 1................................................................................................................346
Mapa 2...............................................................................................................347
Anexo 1..............................................................................................................430
Anexo 2..............................................................................................................431
12
Apresentação:
O presente trabalho realiza o estudo e a análise das transformações acarretadas
ao espaço geográfico, e ao território, brasileiros. Tais mudanças foram decorrentes do
processo de modernização autoritária comandada pelo governo central, durante os anos
do regime militar, que governou o país de 1964 a 1985. Também foram pesquisados e
analisados os legados e as heranças desse modelo de modernização que os governos
militares deixaram ao Brasil e que, em muitíssimos casos, persistem até aos dias atuais,
já com três décadas após o fim daquele regime autoritário.
Na introdução são apresentados o objetivo e as justificativas para a realização
deste trabalho, que consiste em se estudar este processo de modernização autoritária do
Estado brasileiro, processo este sobremaneira reforçado pelo regime militar de 1964,
bem como as heranças e os legados de tal modernização ao espaço territorial brasileiro.
Também são discutidos os conceitos de abertura e de redemocratização. Bem como se o
que ocorreu em 31 de março de 1964, tratou-se de uma revolução ou de um mero golpe
para que nada pudesse mudar.
No capítulo 1 é feita uma breve retomada da formação sócio-política da América
Latina, restringindo-se, em especial, à América do Sul. É tratada a época que
genericamente ficou conhecida por populismo, com destaques ao Brasil, de Getúlio
Vargas; e à Argentina, de Perón. A seguir, em um subtópico específico, são abordados
os regimes militares autoritários que marcaram a vida política de várias nações sul
americanas, tratando-se aqui principalmente sobre o Peru, o Chile e a Argentina.
A partir do capítulo 2 a análise se volta ao Brasil. Fez-se toda uma retrospectiva
histórica da participação dos militares na vida política nacional, desde a proclamação da
República, em 1889, até o ano de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros,
perpassando-se por todas as fases e períodos políticos-institucionais que o Brasil
passou: a “Era Vargas” (1930-1945) e o período democrático iniciado em 1946. Ao se
chegar no governo de João Goulart (1961-1964), a análise se torna mais aprofundada no
tocante à este período por se tratar do governo que foi deposto pelo golpe de 1964,
dando lugar ao regime militar. Na sequência, é feita uma discussão mais aprofundada
sobre o golpe de 1964, mostrando as visões de diferentes autores sobre aquele episódio
de 31 de março.
13
No capítulo 3, entra-se no regime militar brasileiro, tratando-se dos principais
aspectos e fatos ocorridos nos governos de cada um dos presidentes-generais. Primeiro,
o governo de Castelo Branco (1964-1967), discutindo-se também sobre o significado do
termo “ditabranda”. Segundo, o governo de Costa e Silva (1967-1969), o avanço das
oposições, as manifestações ocorridas, sobretudo em 1968, e a elaboração e implantação
do Ato Institucional nº5. Depois, o embate sucessório, em 1969, para a Presidência da
República diante do afastamento de Costa e Silva decorrente de gravíssima
enfermidade. O terceiro governo foi o de Médici (1969-1974), marcado pelo ufanismo e
pelo clima de otimismo, num contexto em que o excepcional crescimento econômico
estava lado a lado com a fase mais brutal de repressão do regime. Para tanto, foram
abordados, em um subtópico, o “milagre econômico”, onde foi esboçado um panorama
econômico de todo o período militar, desde a política recessiva de Castelo Branco até a
grave crise econômica que permeou o governo de João Figueiredo. E, em seguida, num
outro subtópico, os “anos de chumbo”, com um outro panorama, a do aparato
repressivo, também ao longo de todo o período do regime. O quarto governo, o de
Ernesto Geisel (1974-1979) traz os seus aspectos mais gerais, seguido por um
subtópico, mais pormenorizado, voltado ao tema da “distensão” ou abertura do regime,
em seus avanços e percalços. E, no quinto governo, o de João Figueiredo (1979-1985),
também os aspectos gerais daquela gestão, em que caminharam juntamente abertura, os
ímpetos nos esforços da sociedade civil pela redemocratização e a situação de
deterioração econômica que o Brasil vivia. Foi feito também um subtópico, voltado aos
anos finais do governo de Figueiredo, abordando-se mais acuradamente o movimento
das “Diretas-Já” e após a não realização do objetivo daquele movimento, os
acontecimentos e as campanhas visando à eleição indireta para presidente da República,
através do Colégio Eleitoral de 1985, com a vitória do candidato Tancredo Neves sobre
Paulo Maluf. E, após a morte de Tancredo, a posse do seu vice, José Sarney, o primeiro
civil a assumir a Presidência da República, após mais de duas décadas, marcando-se o
fim do regime militar.
No capítulo 4, foi realizada uma discussão do conceito de modernização
conservadora e centralizadora. É mostrado, num primeiro subtópico, que este processo
de modernização autoritária, comandada pelo Estado brasileiro, não se restringiu
somente ao regime militar de 1964. Suas raízes vêm de antes, a partir da Revolução de
1930 quando Getúlio Vargas chega à Presidência. Foi dada uma ênfase à modernização
14
comandada pelo governo central, durante o Estado Novo (1937-1945), apontando-se as
suas iniciativas e políticas territoriais daquela época. No período democrático de 1946, é
tratada a continuação desse processo modernizante, destacando-se as medidas tomadas
por Getúlio Vargas, novamente presidente (1951-1954), e o governo de Juscelino
Kubitschek (1956-1960), realçando-se o Plano de Metas, em especial a transferência da
capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. No segundo subtópico, é tratada a
modernização conservadora e centralizadora, durante os governos militares iniciados em
1964. Foram enumeradas as transformações, muitas delas na verdade não eram inéditas,
mas foram continuadas pelos militares que intensificaram e aprofundaram o processo de
modernização autoritária trazendo importantes, duradouras e persistentes
transformações ao espaço geográfico nacional e ao território brasileiro. Como na
estruturação e consolidação definitivas de uma rede urbana, de telecomunicações, de
energia elétrica, de transportes, etc., além da busca pelo domínio do vetor científico-
tecnológico e as preocupações estratégicas e geopolíticas quanto ao papel do Brasil no
cenário geopolítico mundial. São realçadas e sublinhadas as políticas territoriais
desenvolvidas pelo regime autoritário de 1964, como o PIN (Programa de Integração
Nacional) e o primeiro e o segundo Planos Nacionais de Desenvolvimento (I e II PNDs)
no referente em como tais políticas acarretaram profundas transformações ao território
brasileiro, nos aspectos políticos, econômicos e sociais. É reforçada a importância do
planejamento naquele contexto, exemplo disso foi a estruturação de um sólido sistema
de superintendências regionais, como a SUDAM, a SUDENE, a SUDECO e a
SUDESUL. Na verdade, as superintendências da Amazônia (SUDAM) e a do Nordeste
(SUDENE) já existiam antes do regime, mas o Estado autoritário incrementou a lógica
do planejamento em suas políticas, inclusive as territoriais. E, em um terceiro subtópico,
têm-se os legados e as heranças deste longo processo de modernização conservadora e
centralizadora deixadas ao Brasil atual e que, até hoje, têm afetado aspectos políticos,
econômicos, sociais, culturais e até comportamentais em nosso país. Obviamente, o lado
negativo da modernização autoritária não foi negligenciada, sobretudo nos aspectos
sociais, como na persistência da má distribuição da renda, a concentração fundiária, a
urbanização e as migrações rural-urbanas que se deram de uma forma muitas vezes
caótica, gerando a expansão das submoradias e da violência, sobretudo nas periferias
das grandes cidades.
15
No capítulo 5, segue-se um breve histórico da evolução da Geografia Política e da
Geopolítica, desde o século XIX, com Ratzel, até meados do século XX. Num primeiro
subtópico, é trilhado o pensamento geopolítico brasileiro, passando-se por autores
como, Backhauser, Travassos e Golbery, chegando-se até ao discurso triunfalista dos
anos 1970. No subtópico seguinte, é percorrido desde este “triunfalismo” até às críticas
ao mesmo junto à desconstrução do mito do “Brasil-potência” finalizando-se com a
necessidade da Geografia Política (e não da Geopolítica) rever e retomar, nos dias
presentes, o seu papel no mundo atual.
Nas considerações finais, optou-se em discorrer sobre as diferentes formas de
nacional-estatismo, ao longo da história brasileira, desde Getúlio Vargas até ao
presidente Lula e, depois, o trabalho é finalizado com uma brevíssima menção à
memorialística sobre o regime.
16
Introdução
Em 2014, completaram-se 50 anos dos fatos ocorridos em 31 de março de
1964 que marcaram o início do regime militar no Brasil. Também se passaram 30
anos do movimento das “Diretas-Já” e da não aprovação daquela reivindicação de
eleições diretas para presidente. Para acrescentar, em 2015, terão transcorrido
também 30 anos: do Colégio Eleitoral; do fim do regime autoritário de 1964 (se
tomarmos como referência a transferência do poder presidencial para um civil, pela
primeira vez em quase 21 anos); e da morte de Tancredo Neves.
Após todo este tempo, ainda existem dúvidas, lacunas, discussões, além do
despontar de novos olhares e perspectivas sobre os fatos que marcaram o regime de
1964, reforçados agora nesse contexto de meio século completado do movimento de
31 de março, mais os recentes trabalhos de apurações da Comissão da Verdade - e de
outras comissões e grupos similares - nos últimos anos. Este trabalho, obviamente,
não tem a pretensão de investigar (num sentido meramente passional do termo) o que
foi o regime de 1964, nem em julgar ou sentenciar, baseado puramente na emoção e
no sentimentalismo, personagens e fatos daquele período, muito menos em adentrar a
fundo em temas que seriam de competência mais da Ciência Política e da História.
Porém, a distância temporal de cinco décadas em relação ao início do regime traz
excelente possibilidade de se colocar um olhar muito mais analítico, e menos
emotivo, do que seria se o mesmo fosse exercitado, por exemplo, logo após o fim
daquela fase autoritária quando se revigoravam o cenário político-ideológico e
também o fervor (talvez até precipitado) em se julgar acontecimentos e personagens
daquela época, na metade da década de 1980, misturando-se com um
sentimentalismo vulnerável à determinadas manipulações - como no caso do
falecimento de Tancredo Neves – que poderiam acarretar em eventuais distorções e
compreensões incompletas e estereotipadas do regime.
Este é um trabalho ligado à Geografia Política, mas o que significaria ser um
trabalho deste sub-ramo da ciência geográfica? Conforme COSTA (2000), a
Geografia Política já traria uma problemática quanto ao seu objeto de atuação: sua
delimitação seria rígida quanto ao seu objeto? Ou trabalharia com um conjunto de
17
processos inseridos num contexto interdisciplinar, com o foco centrado no que seria
específico da Geografia Política? Sem aprofundar essa discussão no momento,
procurarei abordar os referidos processos dentro da segunda opção: a de não escapar
do viés interdisciplinar, mas sem perder de vista o objeto de análise.
O presente trabalho, assim, procurará focar, sobretudo, as heranças legadas
pelos governos militares, que perduraram de 1964 a 1985, ao espaço geográfico-
territorial brasileiro. Isto posto, não há como negligenciar as relações de poder
estabelecidas no período, bem como os aspectos políticos, institucionais,
econômicos, sociais, históricos e, ainda, os regionais - em especial no que concerne
às regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Percebe-se que as interligações e
conexões com outras áreas do conhecimento, sobretudo as citadas anteriormente
serão inevitáveis. Tratar do regime militar brasileiro somente do ponto de vista
geográfico é importante, sem dúvida, porém não se pode pensar e analisar este
período autoritário sem se considerar um contexto maior relacionado a fatos
correspondentes aos aspectos já citados anteriormente, englobando a gênese e o fim
deste período institucional marcado pelo autoritarismo.
O regime de 1964 deixou para o Brasil diversas marcas em seu espaço
geográfico-territorial. Exemplo disso foram os novos arranjos políticos-territoriais
impostos à federação brasileira, como na criação de novos estados (casos do Mato
Grosso do Sul, em 1975; e de Rondônia, em 1981) e na fusão de entes federativos
(em 1974, houve a fusão do estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro); também
as consequências ambientais e sociais dos projetos concebidos naquele período, por
exemplo, na Amazônia (rodovia Transamazônica e a busca de uma real e efetiva
integração nacional); ou das grandes obras como a ponte Rio-Niterói e a usina
hidrelétrica de Itaipu. Mais ainda, a estruturação de redes em todo o território
nacional como as redes urbana, a rodoviária e a de telecomunicações. Foi um
momento em que a tônica - ou no mínimo, a retórica - do planejamento esteve em
evidência, face à elaboração, pelo governo central da época, de uma grande
quantidade não só de projetos em si, mas destes inseridos em programas e em planos
elaborados pelo poder central, visando transformar o espaço geográfico brasileiro, na
busca de uma integração territorial-nacional verdadeiramente consolidada, nos
moldes de uma fase mais moderna da acumulação capitalista.
18
Assim apresenta-se um ponto-chave neste trabalho, o processo e as políticas de
modernização implantadas a partir de 1964 que não podem ser negligenciadas, e
muito menos subestimadas. Trata-se da modernização de cunho centralista e
conservadora imposta pelo Governo Federal daquele tempo. Ao contrário de seus
vizinhos sul-americanos, o regime militar brasileiro se destoou por conta da
modernização da infraestrutura (alguns exemplos disso são as obras e modificações
citadas no parágrafo anterior) trazendo reflexos e repercutindo na economia,
comunicações, ciência e tecnologia. Se, de um lado, o regime de 1964 colocou-se
contra o trabalhismo e o nacionalismo, inspirados em Getúlio Vargas, de uma fase
anterior da República brasileira, por outro, o mesmo regime autoritário trouxe um
novo estatismo e a “sua” própria visão nacionalista e estratégica como será visto, por
exemplo, no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Claro que tal estatismo foi diferente do anterior, principalmente na exclusão
das classes subalternas da sociedade. Antes estes atores, como as classes
trabalhadoras, ainda que manipuláveis e sujeitas a controles, tiveram um papel
bastante ativo nas lutas pelos seus direitos e pela ampliação de sua participação
política e de sua cidadania, num momento genericamente caracterizado pelo termo
“populismo” (décadas de 1930 a 1960), cujo principal representante foi Getúlio
Vargas. A partir do período militar, tais atores foram explicitamente descartados
durante o processo modernizante do regime, diga-se explicitamente, se for pensado
na violenta imposição do Ato Institucional n° 5 (AI-5, de dezembro de 1968) que,
entre outras coisas, sufocou as mobilizações oposicionistas como os movimentos
estudantil e operário que vinham numa crescente naquele ano; estabeleceria um
verdadeiro amordaçamento da sociedade; e, por fim, até a aniquilação de opositores
radicais, como os adeptos da luta armada, através de uma máquina repressiva
reestruturada. Além disso, a incorporação de segmentos mais afortunados entre os
populares, os ganhos da classe média como foi no “milagre econômico” do início dos
anos 1970 e o controle total dos projetos de desenvolvimento pelos militares e pela
tecnocracia civil, vão consolidar uma modernização conservadora.
Então, qual o contexto histórico e político que servia de “pano de fundo” para
todas estas e outras alterações no espaço geográfico-territorial brasileiro, para essa
modernização “do alto para baixo”? O regime era autoritário, hoje temos um regime
19
que seria formalmente democrático. O que isso significa? Há clareza entre o que são
democracia, redemocratização e abertura política?
O Brasil, a partir do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), começava
a entrar em processo de uma lenta, complexa e gradual abertura do regime militar,
então vigente no País, através da política que ficou conhecida como "distensão".
Porém, antes de se tratar especificamente da abertura democrática nacional, se faz
necessária uma breve menção do seria uma redemocratização dentro do atual
contexto que tem assumido a palavra democracia.
A redemocratização é um termo que à primeira vista parece não ser muito
complicado, pois indicaria o retorno a um sistema democrático, que esteve
temporariamente suspenso, onde se dá a transferência de poder do Estado autoritário
para a sociedade e para um sistema regido pelos partidos, segundo Aspásia Camargo
in:CAMARGO & GÓES(1984)1 Contudo, analisando-se mais a fundo este termo, vê-
se que a redemocratização está vinculada ao conceito de democracia, conceito este
que sofreu alterações em seu conteúdo essencial caminhando de uma matriz
igualitária (Aristóteles e Rosseau) para apenas um simples método político e
formalista vinculada à máquina governamental e contrária aos atributos substantivos
da cidadania, conforme assinala BORON (1994). Para tanto, o referido autor remonta
a exemplos do passado, colocando que as revoluções burguesas criaram apenas um
Estado Liberal, mas não uma autêntica democracia como afirmavam suas ideologias.
Assim sendo, o avanço democrático foi um mérito das lutas populares que iriam
desembocar no Estado Keynesiano (do bem-estar social). Todavia, nas últimas
décadas do século XX, este modelo deparou-se com o crescimento de elites
neoconservadoras que apontariam um prejuízo que a democracia de massas ocasiona
ao sistema capitalista e, em nome do capital e da acumulação, argumentariam a favor
de cortes sociais e até em conter exigências populares para se atingir um
1 GÓES, Walder de. & CAMARGO, Aspásia. O Drama da Sucessão e a Crise do Regime. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1984 (Coleção Brasil século 20). Este livro se constitui de dois ensaios
autônomos: o primeiro, de autoria de Aspásia Camargo, com o título: As Sucessões Presidenciais e as
Lições da História; e o segundo, de autoria de Walder de Góes, com o título: A Crise do Regime e a
Sucessão de 1985.
20
reaquecimento da economia e tirar a "sobrecarga" do Estado. Tudo isto veio então a
se inserir dentro do contexto neoliberal, que marcou o final do século XX.
Este "endurecimento" da democracia nos países centrais do capitalismo
também é assinalada por Fernando Henrique Cardoso (1979) em que é mencionada
um enfraquecimento da liberal-democracia onde uma pluralidade política, através da
conivência dos Estados Unidos em suas relações com diversos regimes autoritários
na América do Sul, se fazia em nome do desenvolvimento e da "segurança
hemisférica" ligada à Guerra Fria. Contudo, em meados dos anos 1980, a América do
Sul passaria por um período de redemocratização, ou transição democrática, que
consistiu no fim de regimes autoritários substituídos pelos formalmente
democráticos, vindo trazer à tona essa discussão da proposta democrática com seus
principais dilemas atuais.
Adentrando-se ao conceito de abertura, temos que este corresponderia a um
gradualismo controlado de cima para baixo, dentro de um processo comandado pelo
próprio Estado que orientaria e limitaria a conversão de um modelo político para
outro, conforme assinala CAMARGO in: CAMARGO & GÓES (1984), em que a
autora deixa claro uma diferenciação entre os conceitos de abertura e de
redemocratização em que esta última corresponderia, como já foi dito, à
transferência de poder do Estado autoritário para a sociedade e a um sistema
pluripartidário.
Estes dois conceitos ganhariam força então a partir da política de "distensão",
referente à abertura, iniciada no governo Geisel, e que culminou nos anos de governo
do general João Figueiredo (1979-1985), em que a abertura ficaria restrita ao Colégio
Eleitoral impedindo-se o ímpeto renovador da redemocratização (que se relacionaria
às pressões da sociedade civil sobre o Estado, em busca do fortalecimento da
democracia, como no movimento das "Diretas-Já") afastando-se assim, naquele
momento, o eleitorado da participação direta na escolha do novo presidente.
O Brasil, neste último contexto, atravessava a fase final dos governos militares
iniciados em 1964. Foi uma fase de grande efervescência política e social que
tiveram seu começo a partir da já citada "distensão" no período de Geisel e que
prosseguiu no governo Figueiredo , quando se teve, entre outros fatos, a anistia de
1979 a diversos presos e exilados, além das eleições diretas de 1982 para os governos
21
estaduais, chegando-se finalmente à escolha de um civil para a presidência da
República através do Colégio Eleitoral, de 15 de janeiro de 1985, que apontaria
Tancredo Neves como vitorioso. Isto após a emenda das "Diretas- Já" não ter sido
aprovada pelo Congresso Nacional no ano anterior.
Assim se consolidaria a abertura democrática brasileira, dentro das esferas do
poder num jogo muito sutil de manipulação política e social ao lado de um quadro de
grave crise econômica, sobretudo no governo Figueiredo, relacionada a um quadro
extremamente negativo no decorrer da década de 1980, com inflação cada vez mais
alta, desemprego, pauperização dos setores menos favorecidos e até da classe média
com os arrochos salariais, além da crise da dívida externa que assolou os países
latino-americanos em que, somada à sua renegociação, permitiu o avanço neoliberal
que se estendeu pela década de 1990. Como esse processo de abertura afetou o
projeto geopolítico militar, e as implicações disso sobre a estrutura territorial
nacional e a dinâmica regional (tanto na escala das regiões brasileiras, como até
numa escala mais ampla: a nível de América do Sul e América Latina) em seus
aspectos político, econômico, social e até ambiental é uma outra questão também
aqui colocada.
O objetivo deste trabalho, ligado à Geografia Política, é o de procurar apontar
algumas das principais heranças espaciais, legadas ao espaço geográfico-territorial
brasileiro pelos governos militares, que persistem até aos dias atuais, e que afetaram -
entre outras - as estruturas urbana, industrial, agrária, energética, de
telecomunicações e de transportes do país. Uma modernização assumida pelo
governo federal através de seus quadros militares e tecnocráticos. E imposta para
todo o corpo da sociedade e do território nacional. Já foi salientado que os governos
militares trouxeram importantes modificações na estrutura espacial-territorial
brasileira: como nos projetos de usinas hidrelétricas (Itaipu); no fortalecimento às
políticas de expansão da ocupação territorial e econômica, sobretudo na Amazônia
(cita-se aqui o PIN- Programa de Integração Nacional, de 1967, destacando-se a
abertura de estradas, como a Transamazônica, ligando aquela região ao resto do
País); políticas de colonização; projetos de grandes empresas; exploração de recursos
minerais com capitais estrangeiros e nacionais; o projeto Calha Norte; e sem se
deixar de mencionar, os planos globais de desenvolvimento, como o I PND e o II
22
PND (Planos Nacionais de Desenvolvimento). Tudo isso sem a devida preocupação
com as conseqüências ambientais e sociais como a expropriação dos menos
favorecidos, face ao avanço da empresa capitalista.
Aliás, somando-se a isso, o trabalho buscará mostrar os diferentes focos que as
políticas territoriais apresentaram dentro do regime, já que o Plano Decenal de
Desenvolvimento Econômico e Social (1967-1976), que não foi implementado, trazia
a perspectiva da integração nacional vinculada à questão regional - em especial para
o Norte ou a Amazônia; e o Centro-Oeste – atrelada à teoria dos pólos de
desenvolvimento de Perroux, através de pólos regionais ou regiões-programa,
segundo assinala COSTA (2000). Um exemplo prático dos “pólos de
desenvolvimento” foi a criação das “Regiões Metropolitanas”, decorrente do I PND
(Plano Nacional de Desenvolvimento), para o período de 1972 - 1974. Tais diretrizes
estiveram mantidas no Programa Estratégico de Governo (1968 a 1970) e no I PND,
em que a integração nacional – formulada no PIN – era buscada através da expansão
da fronteira econômica do país. Em contrapartida o II PND, lançado em 1974, para o
período de 1975-1979, descartou projetos de colonização (que eram previstos no
PIN) e objetivou uma expansão econômica que viesse de encontro ao aumento das
exportações, necessária ao novo cenário da política econômica global da 2ª metade
da década de 1970 (após a 1º crise do petróleo em 1973), com medidas mais intensas
voltadas aos “espaços vazios” do território, na expansão da fronteira econômica em
setores que pudessem contribuir às exportações, contemplando o grande
empreendimento capitalista monopolista, de capitais privados nacionais e
estrangeiros, tendo ao fundo os estímulos governamentais e os investimentos em
infraestrutura também do próprio governo.
Citam-se também as modificações causadas na representação política dos
estados, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, por conta do
“Pacote de Abril” de 1977, trazendo implicações de representatividade e ao jogo de
interesses tendo como palco o espaço territorial brasileiro; as modificações no
arranjo federativo, como na criação de novos estados; mencionam-se ainda os
projetos de usinas nucleares em Angra dos Reis, obras como a ponte Rio-Niterói,
etc., aumentando-se a importância de se compreender tanto as consequências ao
espaço geográfico-territorial nacional, como também as consequências políticas e
23
sócioeconômicas destes projetos para o Brasil. Houve assim a consolidação de uma
organização espacial com redes nacionais, entre outras, a de circulação de
mercadorias (como as malhas rodoviárias), a de distribuição de energia elétrica
(relacionada à construção de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão) e a de
telecomunicações (com a constituição de redes nacionais de televisão, conectando
ricos e pobres, ditando ideologias e comportamentos), só para detalhar alguns
exemplos dessas redes. Até no nosso cotidiano sentimos a herança deixada pelo
período militar, após o fim do regime, como na permanência de uma estrutura de
polícias estaduais em Civil e Militar. Daí a importância de se estar levantando, com
maior clareza, as heranças que o regime militar de 1964 deixou como legados à
sociedade, e ao território, brasileiros.
No aspecto regional, destaca-se a reformulação feita pelo IBGE (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística) nos limites das regiões brasileiras, em 1967,
ou seja, nos primeiros anos do período militar. O Norte recebeu o então território de
Rondônia, transformado em estado já nos últimos anos dos governos militares, em
1981; a Bahia e o Sergipe passaram a integrar a região Nordeste; a região Sudeste é
datada dessa reformulação, reunindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Espírito Santo; e o Centro-Oeste se compunha apenas de dois estados: Goiás e Mato
Grosso, sendo que deste último foi desmembrado o Mato Grosso do Sul, em 1975,
ainda no regime militar. Essa nova divisão regional acabaria por servir de base às
políticas territoriais desenvolvidas, pelo regime autoritário, sobretudo na década de
1970, tendo como focos principais as regiões Norte e o Centro-Oeste. No caso da
Amazônia, a SPVEA (Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia) já
existia desde a década de 1950 sendo transformada na SUDAM (Superintendência de
Desenvolvimento da Amazônia) no final dos anos 1960. Mas as outras regiões não
foram negligenciadas: casos da manutenção da SUDENE (Superintendência do
Desenvolvimento do Nordeste), que já existia também desde o final da década de
1950; da SUDECO, voltada ao Centro-Oeste; e da SUDESUL, voltada à região Sul.
Caracterizava-se então a configuração do Sistema Nacional de Planejamento
Regional e Urbano, sob o governo federal, que reunia estes e os demais órgãos do
setor, numa época marcada por forte centralização voltada ao governo central, em
detrimento de princípios federativos.
24
Na década de 1970, em decorrência do I PND, foram contempladas estratégias
de planejamento urbano, em âmbito nacional também, com a instituição das Regiões
Metropolitanas. A estratégia de buscar o desenvolvimento regional a partir de “pólos
de desenvolvimento” foi reforçada e, exemplo disso, foi a fusão dos estados da
Guanabara com o do Rio de Janeiro. Segundo Marieta de Moraes Ferreira in:
CASTRO & ARAÚJO (2002)2: tal posição foi destacada nos relatórios do SNI da
época. Por fim, em documentos analisados pela referida autora no arquivo Geisel,
reforça-se a tese de que a fusão teve um caráter mais técnico, na ideologia do
desenvolvimento nacional, objetivando a emergência de um pólo de
desenvolvimento de grandes dimensões, como o de São Paulo, diversificando-se
pólos industriais e reduzindo desequilíbrios regionais. Buscava-se diluir a identidade
carioca (ancorada num passado de capital do país) em prol da identidade fluminense,
ancorada no passado colonial da velha província fluminense. Mais do que controlar
as eleições de 1974 e frear a oposição emedebista, estaria consumando-se a
transferência da capital para Brasília, já que esta última era vista como uma espécie
também de “pólo avançado”, para as políticas projetadas para o Norte e o Centro-
Oeste. Aliás, soa um tanto estranho, nos dias atuais, o regime militar ter buscado
objetivos de desenvolvimento econômico através de uma fusão entre entes
federativos, isso porque tal argumento é, e sempre foi, largamente utilizado, inclusive
no presente, só que para desmembrar um ente federativo, visando-se criar uma nova
unidade político-administrativa. O “argumento do desenvolvimento” foi, com
certeza, um dos pilares para a consulta ao eleitorado do Pará em desmembrar duas
das partes do território paraense para a criação dos novos estados do Carajás e do
Tapajós, em 2011, proposta que não foi aprovada pelo eleitorado daquele estado.
Pelo menos, de positivo, fica registrada a ocorrência da consulta da população
estadual envolvida, fato completamente novo, não só em relação ao regime militar de
1964, mas na história do nosso país.
2 FERREIRA, Marieta de Moraes. O arquivo Geisel e os bastidores da fusão. In: CASTRO, Celso;
D’ARAÚJO, Maria Celina (org); ABREU, Alzira Alves de...[et al.]. Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: Editora
FGV,2002. p. 160-168. A obra compõe-se de vários artigos produzidos por diferentes autores. O artigo
de Marieta de Moraes Ferreira, sobre a fusão entre os estados da Guanabara e o do Rio de Janeiro é um
deles.
25
Durante o regime que perdurou de 1964 a 1985, os militares desenvolveram
uma política não inédita, mas, com certeza, explícita, para o Norte e o Centro-Oeste,
implantando programas de abertura de estradas, ligando estas regiões ao restante do
país, incentivando políticas de colonização, projetos de grandes empresas,
intensificando-se a exploração mineral e o povoamento, sem se preocupar então com
as conseqüências sócio-ambientais para essas regiões. Contando já com a capital do
país em Brasília, os governos militares abriram numerosas estradas como a
Perimetral Norte, a Porto Velho-Manaus, a Cuiabá- Santarém, a Cuiabá-Porto Velho,
a Transamazônica, etc., tendo-se São Paulo como o principal eixo econômico do
país, mais Cuiabá e Brasília como pólos avançados para a abertura destas estradas.
Além da exploração de minérios em Rondônia e no Amazonas (cassiterita) e no Pará
(bauxita, ferro, manganês, ouro, etc.) onde foi implantado o Complexo Carajás,
ligado à Companhia Vale do Rio Doce, maior mineradora de ferro do mundo,
privatizada não há muito tempo atrás.
Segundo ANDRADE & ANDRADE (1999), julgou-se, inicialmente, que os
governos militares tenderiam a abandonar Brasília e fazer do Rio de Janeiro
novamente a capital nacional. Todavia, os militares compreenderam que, devido à
pequena concentração populacional, ficariam menos sensíveis às pressões da
sociedade nacional e implementariam mais facilmente a sua política, incluindo-se aí
as políticas territoriais. Com o objetivo de firmar o Brasil no grupo capitalista,
liderado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria, procuraram abrir grandes
rodovias e desenvolver uma agricultura empresarial no Centro-Oeste, com o intuito
de ocupá-lo, além de desenvolver a mineração.
Embora a tendência de ocupação dos “espaços vazios” já estivesse presente,
principalmente desde o Estado Novo de 1937, tal tendência seria sobremaneira
reforçada no decorrer das décadas seguintes, com destaque para o regime iniciado em
1964, através de uma clara política de expansão das fronteiras econômicas e
preocupando-se com a criação de uma infraestrutura que favorecesse a implantação
de empresas nesses “espaços vazios”. A Amazônia tornou-se prioridade e alvo de um
processo de modernização, de caráter conservadora, que vinha em curso, sem
realizar-se as reformas necessárias para o seu desenvolvimento, procurando-se o
fortalecimento da grande empresa agropecuária através de incentivos fiscais. A
26
Amazônia passaria por uma grande transformação, pois até o final dos anos 1950,
seu acesso se restringia ao transporte fluvial, a partir de Belém. A construção da
rodovia Belém-Brasília, ainda no período democrático anterior, tornou-se um marco
para o processo de integração da Amazônia à economia nacional e também para o
avanço dos impactos ambientais, comandados por mineradoras e madeireiras, em que
os maiores prejudicados foram as nações indígenas, os habitantes locais dependentes
das atividades extrativistas, e os posseiros que seriam expulsos de suas terras pelo
avanço da empresa capitalista na região.
A pertinência do tema a ser pesquisado, no âmbito da Geografia, é aqui
reforçado - o de apontar algumas das principais heranças espaciais, que os governos
militares legaram ao território nacional, e que marcaram as diferentes estruturas
(urbana, industrial, agrária, energética, de telecomunicações, de transportes, etc.) no
Brasil - e que vêm persistindo até a atualidade e, certamente, ainda pelas próximas
décadas. Os governos militares procuraram implantar, reordenar e organizar a
estrutura territorial brasileira nos projetos, ora regionais, ora nos planos globais a
nível nacional (como o I e o II PNDs) com políticas, muitas vezes explícitas, de
expansão, de ocupação territorial e de desenvolvimento econômico, sobretudo na
Amazônia.
Além dos projetos, políticas e planos de caráter predominantemente territorial e
econômico, ou ainda os de caráter regional, também não se pode deixar de lado as
consequências ou os legados do regime de 1964 no referente à questão ambiental
como, por exemplo, os impactos sobre a floresta amazônica, em uma época em que a
questão ecológica e ambiental não era tão forte e, muito menos, debatida a nível
oficial. Também as implicações e as decorrências do regime sobre o conjunto da
população brasileira: por exemplo, na problemática da concentração de renda; para
os níveis de rendimento dos diferentes segmentos da sociedade nacional; na dinâmica
das migrações internas inter- regionais e intra- regionais; na questão da segurança
pública bem como no funcionamento das forças policiais estaduais; e tantas outras
repercussões como até sobre o comportamento da população brasileira, que se
estendem aos dias atuais, decorrentes do rápido avanço da urbanização e dos meios
de comunicação (em especial as telecomunicações) no território nacional, que
27
trouxeram influência na queda da natalidade e nas mudanças ocorridas no perfil das
famílias brasileiras.
Contudo para uma melhor compreensão de todo esse processo e vislumbrando
uma melhor visão da totalidade dessas modificações será necessário um recuo na
História nacional, não se restringindo somente ao período militar do pós-1964, mas
retrocedendo-se a 1930, ano da Revolução que pôs fim à República Velha e que
marcaria a fase final dos chamados “arquipélagos mercantis” na estrutura espacial
brasileira. Também este recuo se dará no sentido de se examinar a história do
pensamento geopolítico brasileiro, desde o final daquela 1º fase republicana até à
fase final do regime de 1964, percorrendo autores como Backheuser, Mário
Travassos e Golbery do Couto e Silva, devidamente situados no contexto da
evolução da Geopolítica pelos séculos XIX e XX.
A tendência de ocupação dos “espaços vazios”, já defendida e levantada por
geopolíticos brasileiros da época, ganha maior força a partir do Estado Novo de 1937
e se constituirá na raiz do que foi chamada de modernização centralizadora3
(COSTA, 2000) ou de modernização conservadora4 (BECKER e EGLER, 1998). No
Brasil, esse processo, segundo diferentes autores, estaria embrionado na garantia da
integridade territorial da antiga colônia, que manteve os seus limites, e não se
estilhaçou numa multiplicidade de repúblicas como na América espanhola.
A modernização conservadora, conforme MOTTA, REIS & RIDENTI (2014)
seria a síntese da combinação entre o “moderno” e o “arcaico”. Citando a famosa
frase do romance O Leopardo, de Lampedusa, os referidos autores escrevem: “Tudo
deve mudar para continuar como está.” Júlio José Chiavenato (2006), como
veremos adiante, aponta que o ocorrido em 1964 não foi uma “revolução” mas um
3 COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,
2000. O autor utiliza o termo Modernização Centralizadora, para tratar do processo de modernização
do Estado brasileiro.
4 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º
ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. Os autores utilizaram o termo Modernização Conservadora, ao
abordarem a modernização do Estado brasileiro.
28
“cisco” (termo este, usado pelo autor) na História. Um golpe civil e militar que nada
mudou, fazendo-se um forte contraponto com o ideal de “revolução” propugnado
pelo discurso oficial do regime. Tratou-se então de uma modernização conservadora,
autoritária, centralizadora e não negociada com a sociedade, mas a ela imposta. Uma
modernização que efetivamente ocorreu sem, contudo, mudar radicalmente com a
ordem vigente.
Esse processo de construção do Estado e do território brasileiros estaria
inserido dentro da geopolítica de lógica militar, favorecida pela grande
disponibilidade de terras para os latifúndios e pelo projeto da transferência da capital
federal para o interior do país, mais precisamente no Planalto Central, que seria uma
base logística no interior5.
Essa modernização conservadora e centralizadora se cristalizaria e se
consolidaria no regime militar de 1964, manifestando-se através do território
brasileiro por meio dos projetos, planos, políticas, estruturas, redes e fluxos que
foram implementados, organizados e reordenados. Na realidade, o regime militar não
teria, sob esse aspecto, provocado uma ruptura radical do processo de modernização
e centralização do Estado, mas reforçado isso com a enorme concentração do poder
por esse mesmo Estado pela via autoritária, nas mãos do governo central. Aliás, no
período militar foi notória tal concentração na esfera federal do governo, em
detrimento das esferas estadual e municipal. Assim teria havido uma sequência e
uma lógica, em todo esse processo, desde a Era Vargas (1930-1945), passando pelo
governo Juscelino Kubitschek e o Plano de Metas (1956-1960), até ao regime
autoritário de 31 de março de 1964, a despeito das diferenças político-ideológicas
entre estes distintos momentos da história nacional.
Porém, neste trabalho serão inevitáveis as interligações com a Ciência Política
e a História, como já ocorreu em outro momento desse trabalho. A análise de fatores
políticos-históricos-institucionais, sócioeconômicos, e de relações de poder serão
necessários para uma melhor compreensão da gênese do regime militar e dos anos
que levaram ao fim deste período institucional autoritário. Procurar-se-ão focar nas
consequências territoriais e espaciais do projeto militar para o Brasil, mas sem deixar
5 Id., Ibid., p.35.
29
de fora os outros fatores já aqui enumerados. Assim, este trabalho seguirá pela
direção em se trazer alguma reflexão sobre: a formação sócio-política e econômica
brasileira; ao fundo, esta mesma formação a nível latino e sul-americano, e como o
Brasil se insere neste contexto mais amplo; na evolução do pensamento geopolítico
brasileiro, desde o final da República Velha; nas condições, conjunturas e fatores
políticos-históricos-institucionais que conduziram os militares ao poder (se teria sido
uma revolução ou um golpe de Estado) e o que teria levado à saída dos mesmos do
poder em 1985; e, finalmente, como esse período institucional (que prolongou-se por
praticamente 21 anos) afetou o espaço geográfico e territorial brasileiro.
Conforme BARROS (1998), os governos militares têm confundido o imaginário
e a memória dos brasileiros pelo fato de serem associados a uma sequência de
generais-presidentes "ávidos pelo poder", e a isso se somam as versões escolares no
que se refere ao movimento de 1964. Antecipando-se aqui sobre o que foi o golpe de
1964, Fernando Henrique Cardoso, em seu livro O Modelo Político Brasileiro
(1979), procura assinalar as principais causas que explicariam o movimento de 1964
como a intensa mobilização da classe média acomodada e setores politicamente
ativos do empresariado e das oligarquias, colocando a questão se o que ocorreu foi
uma revolução ou um golpe de Estado. Mas o fato, segundo o autor, é que houve
uma intervenção militar com um caráter de contenção das tensões geradas pelo
regime nacional-populista encaminhando assim um modelo de desenvolvimento que
subordinou o País às formas modernas de acumulação capitalista e de dominação
econômica dentro de um sistema que trazia repressão política e a busca de
desenvolvimento econômico.
O autor já citado anteriormente, Júlio José Chiavenato, em O Golpe de 64 e a
Ditadura Militar (2006), propõe uma discussão sobre o que seria uma “revolução”,
em que esta seria a ruptura radical da ordem estabelecida. Pode originar-se de um
processo violento, de uma longa luta armada, ou até surgir de um golpe de Estado.
Não é raro que venha do voto direto e democrático. Pode ser uma revolução popular,
que resgate o povo de uma miséria social ou da opressão política. Ou, ao contrário,
uma ação para subverter a ordem democrática e instalar um regime fechado e
30
autoritário”6 Dentro deste raciocínio, citam-se a Revolução Cubana (1959) que
venceu pela luta armada; a soviética de 1917, que se originou praticamente de um
golpe de Estado, impondo-se após uma guerra civil; e por fim, o nazismo que chegou
ao poder através das urnas e do voto democrático, a partir de 1933. Assim sendo, as
revoluções alterariam tão radicalmente a vida das nações e dos povos que acabariam
por influir nos destinos da humanidade. Segundo uma definição de Marx e Engels,
em CHIAVENATO (2006), “se é revolução, é um cataclismo”7. Assim sendo, o autor
conclui com uma opinião que alguns até considerariam severa e polêmica; em 31 de
março de 1964, não houve uma revolução no Brasil, mas sim, um “cisco”8 (termo do
autor) na História. Um golpe civil e militar que nada mudou. Chiavenato admite que
o ocorrido em 1964 realmente teria dado um poder enorme aos militares, ao ponto de
que eles poderiam ter realizado uma revolução de verdade, mas as Forças Armadas
teriam preferido se aliar aos interesses das elites da alta hierarquia sócioeconômica.
Ao contrário de uma revolução, bastaria um pequeno “cisco” para que nada
acontecesse. O processo do “nada acontecer” seria sempre traumático, poderia se
aplicar a algum exemplo de golpe político não-revolucionário, mas este também não
seria o caso do Brasil. Concluindo, o máximo que teria ocorrido no Brasil seria uma
“contra-revolução preventiva.”9 Perpetuaria-se, então, uma ordem pequeno-
burguesa.
Mas seria possível afirmar que “nada aconteceu” diante de tantos projetos,
obras, estruturas e redes montadas ou consolidadas pelos militares no território
brasileiro como os já mencionados anteriormente? E as alterações a nível de divisão
6 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. 2 ed. reform. São Paulo. Ed Moderna, 2004
(Coleção Polêmica), p. 9.
7 Id., Ibid., p.10.
8 Id., Ibid., p.11.
9 Id., Ibid., p.11.
31
regional e a nível político-administrativo como a criação de novos estados?
Realmente não ocorreu nada no período militar? Não se questiona aqui as perdas
humanas e todos os transtornos, crueldades, desrespeitos e terrores acarretados pelo
regime de 1964, mas, dentro de um trabalho acadêmico, é importante ter clareza e
analisar todas as faces daquele regime.
Aliás, não existe só a discussão sobre diferentes visões, análises e
interpretações do golpe de 31 de março, mas também acerca do próprio governo de
João Goulart - o Jango – presidente do Brasil entre 1961 e 1964. Qual teria sido a
importância, o significado, o papel e até a eventual responsabilidade (se é que
existiu) do governo deposto pelos militares que possa ter estimulado o movimento
golpista de 1964. Estas são algumas das outras questões colocadas neste momento.
Esses assuntos serão abordados e vários outros autores serão citados numa retomada
a ser feita mais adiante neste trabalho, de forma pormenorizada.
Parece que, ao completarem-se 50 anos do início do regime de 1964, ainda há
muito a ser discutido, analisado e revisado sobre este período e suas repercussões até
hoje. Um dos exemplos disso é que, no plano político atual, temos ainda figuras com
um passado ligado ao regime militar; ou que lutaram contra ele. No primeiro caso, no
espectro político, ainda persistem agremiações político-partidárias herdeiras do
regime autoritário, casos dos Democratas (DEM) e do Partido Progressista (PP),
cujas raízes remetem ao antigo PDS (Partido Democrático Social), herdeiro direto da
Arena (Aliança Renovadora Nacional) que era o partido governista naqueles tempos
do autoritarismo militar; no segundo caso, sobre a atual presidente – Dilma Roussef -
que esteve presa à época daquele regime. Mencionam-se ainda outros fatos, um dos
herdeiros da Arena, o PFL (Partido da Frente Liberal), hoje Democratas (DEM),
elegeu em 2008, o prefeito de São Paulo. Mais recentemente, talvez a principal
figura ligada àquele regime, Paulo Maluf (ex-governador de São Paulo e atualmente
em mais um mandato como deputado federal), um dos afilhados políticos do regime,
deu o seu apoio ao candidato do PT, Fernando Haddad, nas eleições municipais da
capital paulista de 2012, com direito a uma cena inimaginável há 15, 20, 30 anos
atrás – o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e Paulo Maluf – juntos - como
aliados naquelas eleições. Por fim, coloca-se também a importância geopolítica
adquirida por Brasília como capital federal que veio de encontro aos projetos de
32
expansão territorial e de investimentos no Centro-Oeste e Norte do País por parte dos
governos militares.
Algumas das principais questões apresentadas para este trabalho, que aqui vêm
a se adicionar a outras levantadas anteriormente, são concernentes a essa
modernização traçada pelo Estado brasileiro no período. Consistem em qual terão
sido os resultados do projeto geopolítico militar; das políticas territoriais; das redes
implantadas a nível nacional; dos grandes projetos do período; do novo arranjo
regional feito na época - para a organização espacial brasileira. Como estes
resultados vieram a acarretar as mudanças legadas pelo regime de 1964 às estruturas
político-administrativa, urbana, industrial, agrária, energética, de telecomunicações e
de transportes, entre outras, do país. Como as contradições que se materializaram
durante o regime de 1964, no que concerne à Região Norte e os variados interesses
em jogo na Amazônia; e a expansão, sobretudo das fronteiras da agropecuária, no
Centro-Oeste brasileiro – repercutem ainda hoje em questões territoriais em nosso
país. Quais interesses daquela época, ainda têm reflexos hoje, como, por exemplo,
nas propostas de criação de novos estados da Federação. E por que, mesmo após a
redemocratização e de grandes vitórias eleitorais das oposições ao regime militar,
como ocorreu nas eleições de 1982, ainda temos figuras políticas no cenário nacional
e na mídia em geral, que foram ligadas àquele regime militar e disputam o voto de
eleitores agora dentro de um regime formalmente democrático. Colocam-se ainda a
questão dos impactos sociais e ambientais, mais a problemática da manutenção de
certas estruturas advindas do regime militar, como do caráter dos projetos territoriais
e estratégicos atuais e até dos serviços de inteligência do Governo Federal dentro de
um regime de liberdades democráticas, além dos êxitos e fracassos de um modelo
que combinou repressão política, desenvolvimentismo econômico e limitadíssimos
avanços sociais.
Este trabalho realizou-se principalmente através da leitura de bibliografia a
respeito do tema estudado. Primeiramente foi feito um levantamento da mesma
existente sobre o assunto tratado que viesse em encontro ao objetivo do trabalho,
bem como permitisse uma reflexão face aos problemas e hipóteses apresentados pelo
mesmo. Também foram consultados, em alguns momentos, trechos e artigos de
jornais e periódicos, especialmente os citados na bibliografia levantada, juntamente
33
com tabelas, gráficos e materiais cartográficos com dados relevantes para serem
apresentados aqui, procurando complementá-los com outros dados obtidos. Claro que
o acesso a trechos, notícias e artigos de jornais e periódicos através da internet fez
parte desse processo.
Esta análise fará então a abordagem do momento histórico brasileiro em que
os militares estiveram no poder, de 1964 a 1985. O que se segue agora, é uma breve
retomada histórica da formação da estrutura sócio-política latino-americana e em
como transcorreu o processo que levou à constituição de diversos regimes militares
na América Latina, no século XX. Optou-se ora em se tratar da porção latino-
americana do continente, por ser historicamente uma área da esfera de influência
norte-americana; ora em abordar a porção meridional do continente, que terá maior
visibilidade nesse trabalho, por conta da própria localização geográfica do Brasil e as
suas relações com os seus vizinhos na América do Sul.
34
1- Estrutura de poder e formação sócio-política
da América Latina
Antes de retornarmos aos governos militares no Brasil, faz-se necessário
situarmos alguns elementos gerais da formação social e política da América Latina,
bem como das diferentes estruturas de poder que se configuraram ao longo da
história desta porção do Novo Mundo e que, obviamente, também afetaram o Brasil,
bem como os contextos que vêm acarretar o surgimento de regimes ditatoriais
militares. Claro que esta análise específica não será completa e profunda. Ela irá
abarcar em especial a fase imediatamente anterior aos regimes autoritários latino-
americanos que, a grosso modo, em alguns países, foi marcada pelos governos
genericamente agrupados no que se chamou de “populismo” (como o foi no Brasil e
na Argentina – com Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, respectivamente). Na
sequência vêm-se os regimes autoritários e militares que corresponderiam,
novamente de um modo geral e em algumas nações, ao período que se seguiu com a
derrubada dos governos da fase anterior e marcada pelo autoritarismo político e pelas
rígidas amarras da repressão e de controle social.
A denominação América Latina, discutida por PRADO & PELLEGRINO
(2014)10
, teve a sua origem no século XIX trazendo, desde aquele momento, disputas
de ordem política e ideológica. As polêmicas podem ser situadas em dois lados: os
sentidos atribuídos a ela por parte dos franceses e ingleses (século XIX); e de outro,
por parte dos próprios latino-americanos e também pelos norte-americanos (séculos
XIX e XX).
Assim sendo, a origem precisa deste termo apresenta controvérsias. Há
uma corrente que atribui aos franceses a criação desse nome para justificar as
ambições da França sobre a parte da América situada ao sul dos Estados Unidos,
10 PRADO, Maria Lígia & PELLEGRINO, Gabriela. A História da América Latina. São Paulo:
Contexto, 2014, p.7-10. As duas autoras realizam na parte da Introdução, a discussão sobre a origem do
conceito de América Latina, apresentando as duas correntes que procuraram explicar a origem deste
termo.
35
procurando-se afirmar uma identidade latina para tal porção do continente. Uma
outra corrente defende que os próprios latino-americanos conceberam essa expressão
para defender a ideia de uma unidade regional frente ao expansionismo e
imperialismo estadunidense.
Detalhando um pouco mais a primeira - a corrente francesa - o autor da
criação do termo de uma América latina teria sido o intelectual francês Michel
Duvalier, em 1836. Tinha-se como pressuposto de que as populações que viviam ao
sul dos Estados Unidos teriam aceitado com passividade e de forma acrítica a
imposição do conceito de América Latina, vindo do exterior. Chevalier havia viajado
aos Estados Unidos e interpretava a história do mundo ocidental a partir dos embates
entre “civilizações” ou “raças”. O autor transpôs isso ao campo da oposição ou
choque entre “latinos católicos” e “anglo-saxões protestantes”, algo já presente no
continente europeu. Para Chevalier, a França, como “líder” das nações latinas, teria a
missão, algo predestinado, para estar à frente das demais nações irmãs, tanto
europeias como americanas na luta contra os países de origem saxônica. Essa
interpretação e visão da época acabaram por coincidir com os projetos expansionistas
de Napoleão III, com relação ao México, pelos idos do século XIX, na década de
1860.
Na segunda corrente, contrária, o uruguaio Arturo Ardao discordava
dessa visão. Defendendo a outra perspectiva, no artigo de 1965, “A ideia de Latino-
América”, publicado no semanário uruguaio Marcha, ele demonstrou que o termo
América Latina foi usado pela primeira vez pelo ensaísta colombiano José Maria
Torres Caicedo, em “As duas Américas”, poema publicado em 1857, que já defendia
uma integração entre os países latino-americanos. Mais recentemente a argentina
Monica Quijada sintetizou esse debate sobre a origem da expressão América Latina,
criticando a autoria francesa e endossando a segunda opção. Ela analisou a origem e
a difusão do termo e, segundo ela “América Latina não é uma denominação imposta
aos latino-americanos em função de interesses alheios, e sim um nome cunhado e
adotado conscientemente por eles mesmos e a partir de suas próprias
36
reinvidicações11
”. E assim foi se consolidando uma identidade latino-americana em
oposição aos anglo-americanos dos Estados Unidos.
Sabe-se que uma imensa parcela da área hoje correspondente aos
países da América Latina foi colonizada pelos espanhóis. Os portugueses também
dominaram um extenso território que daria origem ao Brasil atual, mas a despeito de
sua estrutura econômica e industrial, bem como a busca pela sua afirmação como
potência regional e o fato de ser o país mais industrializado da América Latina, é
verdadeiramente chamativo a multiplicidade de países na América Latina que
tiveram colonização espanhola. Alguns desses Estados-Nações apresentam uma
economia mais consistente e industrializada, casos do México e da Argentina. Outros
convivem com sérios problemas de miséria, pobreza e de uma maior fragilidade
econômica, como a Bolívia, o Paraguai e praticamente todos os países da América
Central continental – Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Também na parte
central do continente, em especial, na sua porção insular (o Caribe), houve a
presença da colonização francesa, inglesa e holandesa. Aliás foi o Haiti, colonizado
por franceses, a primeira colônia, na atual América Latina, a se libertar de sua
metrópole e ao mesmo tempo a abolir a escravidão negra.
De qualquer maneira, a denominação América Latina foi e é uma
realidade reconhecida e adotada internacionalmente por historiadores, cientistas
sociais, geógrafos, geopolíticos, estudiosos de diversas áreas, políticos e pela
imprensa em geral.
No que se refere à formação sócio-política latino-americana, a mesma se
atrela à um caráter monolítico das estruturas de poder caracterizadas pela unidade
dos interesses das classes dominantes onde, apesar de surgirem tensões entre elas,
não se concretiza o fim da ordenação social vigente, devido à coesão dessa estrutura
implantada. Já as referidas tensões, por não se solucionarem e não terem saída por
meio da revolução liberal-burguesa, irão acarretar sempre o possível questionamento
da ordem vigente e da legitimidade do grupo que está no poder. Assim, os governos
impostos irão depender do apoio militar que se torna o meio de repressão contra os
11 Id., Ibid., p. 9.
37
levantes populares, isso sem contar o temor aos golpes militares criando condições
para sérias instabilidades políticas.
Segundo Darcy Ribeiro (1983), há três estilos latino-americanos de lideranças
políticas: primeiro as elites tradicionais que englobam o patriciado político, as
autocracias patriarcais e as ditaduras regressivas; em segundo lugar as anti-elites e
os nacionalistas modernizadores; e em terceiro lugar as vanguardas revolucionárias,
tendo-se os esquerdistas, os comunistas e os insurgentes12
.
Porém como este trabalho, busca tratar mais especificadamente dos governos
militares, iremos nos restringir apenas ao primeiro estilo de liderança que são as
elites tradicionais.
No caso da América espanhola, os movimentos de independência,
assim como se deu na América portuguesa, ocorreram basicamente nas três primeiras
décadas do século XIX. Em 1830, praticamente todo o Império Espanhol na América
havia dado lugar à países independentes. No centro desse processo podemos citar as
divergências entre a elite colonial local, os criollos, que desejavam ascensão social e
política, bem como o livre-comércio – e de outra parte, os “peninsulares” (os
nascidos na Espanha) que não queriam abrir mão de seus privilégios. Os criollos
teriam sido inspirados: a) pelas novas ideias atreladas ao Iluminismo; b) pela
Revolução Francesa com o lema da “liberdade, igualdade e fraternidade” do final do
século XVIII; c) pela independência dos Estados Unidos, em 1776. De outra forma,
pode-se considerar os imperativos da Revolução Industrial Inglesa, também a partir
de meados do século XVIII, que necessitava de mercados consumidores em outras
partes do mundo e cujos interesses eram incompatíveis com os sistemas coloniais
12 Para este trabalho, trataremos a formação sócio-política latino-americana com base em Darcy
Ribeiro, em seu livro O Dilema da América Latina (1983). Claro que esta breve análise da estrutura de
poder da América Latina não é a única interpretação existente sobre o assunto, pois diversos autores
escreveram sobre isto, e existem assim diversas formas de interpretação sobre esse tópico. Dessa
forma, este trabalho não têm a pretensão de colocar apenas um ponto de vista sobre a estrutura de
poder latino-americana, ficando aberto à outras reflexões sobre esse tópico, que não serão
mencionadas neste trabalho, pois haveria o inconveniente de se escapar ao tema central proposto
aqui.
38
existentes e até com o escravismo. Daí podemos começar a pensar no que foi
chamado por RIBEIRO (1983) de patriciado político.
O patriciado político é o grupo político cuja origem corresponde à burocracia
civil, militar e clerical que administrava a colônia. Durante as lutas pela
independência, eles "abraçaram" os ideais liberais como ideologia tendo-se, contudo,
outra realidade prática. Esta realidade era a de uma sociedade escravista cuja
desigualdade foi regulamentada em termos "liberais", por este patriciado, durante o
transcorrer dos anos após a emancipação política dentro de um pacto com as velhas
oligarquias. O patriciado permaneceu no poder basicamente até as vésperas da crise
de 1929. No Brasil, o poder patricial usufruiu de grande estabilidade entre 1821 e
1889.
As autocracias patriarcais apresentam os seguintes subtipos: o primeiro
corresponde aos caudilhos unificadores que após a luta pela independência
empreenderam a unificação nacional sob um governo central e após isso abriram o
caminho para a ascensão do patriciado no cenário dos governos. Citam-se, neste
caso, os governos militares pós-independência como o de Rosas, na Argentina (1835-
1858); o de Artigas, no Uruguai; e os de Francia (1814-1840) e Solano Lopez (1862-
1870) no Paraguai.
O segundo subtipo corresponde às autocracias nacional-sindicalistas,
presentes, sobretudo, a partir de 1930, oriundos do desgaste do patriciado. Estas
autocracias apresentaram um papel renovador e progressista nos casos do Brasil
(com Getúlio Vargas) e da Argentina (Perón). Em outros foram representados por
tirânicos para se subjugar processos renovadores como Somoza, na Nicarágua; e
Batista, em Cuba. O posicionamento dos grupos militares dependerá das conjunturas
nacional e internacional tendendo a movimentos emancipadores ou a esforços de
regressão. As autocracias nacional-sindicalistas se apóiam no crescimento das classes
médias urbanas, guardando assim certas reservas para com o patriciado (que é visto
como "entreguista"), mas ao mesmo tempo, respeita as velhas oligarquias ao não
tocar na estrutura fundiária.
Contudo com o desenvolvimento industrial e até de uma política exterior
independentes, há uma reação do patronato urbano mais o patriciado articulados com
grupos estrangeiros e as altas hierarquias militares dispostas ao golpe criando-se uma
39
crise política sanada pelas restaurações patriciais, cujo exemplo no Brasil
corresponderia ao governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Estas
"restaurações" apresentam um ideal "desenvolvimentista" com abertura ao capital
estrangeiro encaminhando o aumento da dívida externa e da inflação gerando
reinvidicações populares e tornando-se praticamente impossível a sustentação destes
governos numa sucessão eleitoral. Dentro desta crise, temendo o retorno das
lideranças nacional-sindicais vistas como ameaça iminente, têm-se a união do
patriciado reacionário com os militares anunciando o golpe que implantará a
autocracia regressiva.
As denominadas autocracias nacional-sindicalistas correspondem à fase
conhecida genericamente como populismo. O populismo também foi objeto de
diversos estudos e, nesse trabalho, cita-se CHAUÍ13
in: DAGNINO (org) (1994), que
trata o populismo a partir de uma matriz teológico-política, do ponto de vista da
classe dominante (ideologia populista), e do lado dos dominados através do
messianismo como forma de expressão de política popular. Seria um poder que
procura realizar-se sem mediações de instituições políticas (partidos políticos, formas
de organização da sociedade civil, estruturas do Estado, etc.), assim teríamos uma
relação direta entre governantes e governados dentro de uma tutela em que o
governante tem o saber social e sobre a lei.
O governante também se apresentaria “fora” do social, como detentor do
poder, mas ao mesmo tempo teria que se encaixar no corpo social devido à ausência
de mediações. Chauí cita a ideia de dominação carismática de Weber, para ilustrar
que o poder não se distingue de seu ocupante, num governo populista, em que a fonte
de poder seria “extra-social”, próximo à divindade, em que um governo populista
seria autocrático, despótico e até teológico. O caso clássico deste populismo se aplica
à era Vargas, num tempo que ele ficaria conhecido como o “Pai dos pobres”. No
lado dos dominados, teria-se a visão do governante como “salvador” dando margens
13 CHAUÍ, Marilena. Raízes Teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominantes, messianismo
dos dominados. In: DAGNINO, Evelina (org.). Anos 90: Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: 1994. p.
19 -30.
40
à personalização do poder, reforçando-se o autoritarismo na sociedade e impedindo
as mediações dentro de instituições políticas solidamente consolidadas.
Seguindo-se ainda pela discussão do conceito de populismo, PRADO &
PELLEGRINO (2014)14
, optam explicitamente em sua análise em não utilizar tal
conceito preferindo seguir a perspectiva de Maria Helena Capelato, em que se
considera um Estado forte, comandado por um líder carismático, capaz de manter a
ordem, ao mesmo tempo em que as classes populares almejavam ganhar espaço
político e conquistar reformas sociais.
As autoras citam nesse contexto, os casos da Guatemala, com os governos de
Juan José Arévalo (1945-1951) e, sobretudo, o de Jacobo Arbenz (1951-1954) que
chegou a por em prática uma Lei da Reforma Agrária, causando feroz atrito com o
governo norte-americano e a United Fruit Company.
No México, o governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940), em cujos escritos
buscava ser o “tradutor” das massas mexicanas, mas que considerava também
imprescindível a contribuição da classe capitalista rumo a um crescimento
econômico sólido e duradouro. Com uma política conciliatória e moderada, a seu
tempo, com uma reestruturação do Estado, nacionalização de alguns setores da
economia e satisfação social garantida graças às políticas que iam de encontro às
aspirações operárias e camponesas, o México não assistiu antes de 1994 (com a
aparição do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN) ao surgimento de
grupos guerrilheiros, como tinha ocorrido na Guatemala e também na Colômbia.
Na Argentina, tem-se o nome de Juan Domingo Perón (1946-1955). Membro
do GOU (Grupo de Oficiales Unidos), grupo este que era simpático ao nacionalismo
e ao nazifascismo, o então coronel Perón, tomou parte ativa no golpe militar de 1943,
que se propunha a restaurar a democracia no país, mas que, na verdade, trazia as
posições antiliberais e nacionalistas de seus chefes militares advogando a hegemonia
argentina na América do Sul, através de um documento secreto. Em 1944, Perón, no
governo do general Farrell, acumulou os cargos de vice-presidente, ministro da
Guerra e do recém-criado cargo de secretário de Trabalho e Previdência. Nesta
14 PRADO, Maria Lígia & PELLEGRINO, Gabriela. Op.cit. p.131.
41
Secretaria, Perón deu uma guinada nas relações sociais entre governo e
trabalhadores, concedendo aumentos salariais, unificando a previdência, instituindo
tribunais do trabalho e concretizando o Estatuto do Peão, para as relações entre
patrões e empregados no campo. Com os sindicatos mais combativos (anarquistas,
socialistas e comunistas), Perón ora procurava cooptá-los, ora partia para a repressão.
Tal aproximação com os trabalhadores gerou apreensão nos meios militares no poder
e Perón foi preso e enviado para a ilha de Martín Gárcia, em 12 de outubro de 1945.
Todavia, cinco dias depois, uma série de manifestações dos trabalhadores, na
Praça de Maio, pediam a soltura de Perón, o que ocorreu à noite do dia 17. Naquele
mesmo momento, Perón falou à multidão já como candidato à presidência e para
sustentar a sua candidatura foi criado o Partido Laborista, que pouco tempo depois
se transformaria no Partido Peronista. O programa de Perón propunha criar um
imposto sobre a renda, melhorias previdenciárias e combater o latifúndio. Seus
inimigos eram basicamente representados pelos interesses do grande capitalismo
nacional e estrangeiro – latifundiários, industriais, banqueiros e rentistas.
Vencedor nas eleições de 1946, Perón se beneficiou do quadro econômico
favorável para a Argentina, no pós-Segunda Guerra Mundial, devido às divisas
acumuladas no exterior. O crescimento econômico argentino se deu nos setores leves
das indústrias (alimentícias e têxteis), mas não tanto na indústria pesada. Tomaram-
se medidas nacionalistas com a nacionalização das empresas elétricas, de telefonia,
de estradas de ferro que, na sua maior parte eram inglesas, além de uma frota aérea
estatal – as Aerolinhas Argentinas. Contudo, ao contrário do Brasil e do México, o
petróleo não foi nacionalizado, e as grandes companhias internacionais de petróleo
continuaram a ter o seu campo de ação bastante ampliado.
A Constituição foi reformulada com o objetivo de permitir a reeleição do
presidente, gerando grande tensão, envolvendo o Congresso, por conta de um levante
militar fracassado contra o governo, em setembro de 1951. Apesar disso, Perón
conseguiu seu objetivo reelegendo-se em novembro daquele ano para um segundo
mandato. Ele montaria também um formidável sistema de propaganda política – em
jornais, revistas, rádio, cinema e até no ensino escolar - aliada à repressão, em que
seus opositores políticos não tinham espaço algum. Ao seu lado, o presidente
argentino tinha na sua primeira-dama, Eva Perón, uma forte aliada política. Ela
42
assumiu as mediações com as classes trabalhadoras argentinas e seus sindicatos,
conduzindo a Secretaria do Trabalho e, por meio da Fundação Eva Perón, foram
realizadas várias ações de caridade com escolas, orfanatos, asilos e, obviamente, às
mulheres que conquistaram o direito ao voto em 1947. Eva morreria precocemente
aos 33 anos de idade, em 1952, de câncer no útero. Juan Domingo Perón marcou
toda uma época na Argentina, mesmo após a sua renúncia, em 1955, decorrente de
um outro levante militar, e depois da sua morte, em 1974. O peronismo é uma
realidade no espectro político-ideológico argentino sendo um de suas principais
forças políticas, até hoje, naquele país.
Como já dito, no caso brasileiro, sem dúvida alguma, o maior expoente do que
ficou conhecida como a fase do “populismo” foi Getúlio Vargas, que governou o
Brasil ininterruptamente por 15 anos (1930-1945), e retornaria para novo mandato
presidencial, a partir de 1951, tragicamente finalizado com seu suicídio em 1954. A
manifestação mais explícita de fortalecimento do Estado brasileiro se dará no período
do “Estado Novo” (1937-1945) em que o velho tema da “integração nacional”, já
presente no Brasil Império será retomado a todo vigor com as políticas oficiais do
governo brasileiro visando à ocupação do Norte e do Centro-Oeste do Brasil,
trazendo em seu bojo uma busca por ocupação dos “espaços vazios” do território
nacional ainda persistentes, em especial, nessas duas regiões. Era a chamada
“Marcha para o Oeste” que já delineia uma modernização centralizada e
conservadora a partir do governo central, fortemente personalizado em seu ditador,
contando também com um forte aparelho de propaganda fazendo de Getúlio Vargas
o líder absoluto deste período. Bom salientar novamente que, ao contrário da
Argentina peronista onde as indústrias de alimentos,têxteis e de metalurgia cresceram
bastante, mas não houve a criação de uma indústria de base, no Brasil este último
setor foi contemplado com a criação da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional –
em Volta Redonda (RJ). Também faltou à Argentina a estruturação de uma
companhia nacional petrolífera de peso, similar à Petrobrás.
Alijado do poder, em 1945, por um golpe militar, Getúlio Vargas, ainda se
manteve como a principal figura do cenário político brasileiro nos anos seguintes.
Teve influência na formação de dois dos principais partidos da nova fase republicana
brasileira, iniciada em 1946, montados e organizados a partir da máquina
43
estadonovista – O PSD (Partido Social Democrático); e o PTB (Partido Trabalhista
Brasileiro) – o primeiro a partir da ação de Vargas com os interventores; e o segundo
a partir da estrutura sindical corporativista montada por Vargas na década de 1930.
Também elegeu para presidente o candidato que apoiava, o marechal Eurico Gaspar
Dutra (1946-1951).
Getúlio seria reconduzido ao posto presidencial, nas eleições de 1950, nos
“braços do povo”, através do voto. Tomando posse em 31 de janeiro de 1951, Vargas
acentuou mais ainda uma política econômica nacionalista, industrialista e de
intervenção estatal. Quanto à “Marcha para o Oeste”, houve a criação da SPVEA
(Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), em 1953. Ao
contrário de Dutra, optou por uma política externa independente e não alinhada às
potências da época, num contexto de menos de 10 anos transcorridos do final da II
Guerra Mundial e polarizado pelos Estados Unidos e a União Soviética no cenário da
Guerra Fria. Na verdade, conforme DIOGO (2012), Getúlio era flexível quanto à
política externa. O que ele não aceitava era o alinhamento completo e incondicional
aos Estados Unidos, desejado por estes últimos. Vargas apenas buscava um modelo
de desenvolvimento próprio, com a criação de empresas estatais (o que realmente
ocorreu, casos da Petrobrás, da Eletrobrás e da Companhia Vale do Rio Doce, entre
outras), num claríssimo contraponto à Venezuela que, naquela época, deixou seu
petróleo a cargo das companhias internacionais e se aproximaria do modelo russo de
estatização da produção, transporte e refino do petróleo. Por fim, a aproximação
entre Vargas e o argentino Perón, similares em suas políticas nacionalistas e
desenvolvimentistas, e avessos ao alinhamento automático, irritavam ainda mais a
superpotência capitalista. A modernização conservadora e centralizadora já delineada
desde o Estado Novo e que seguirá por todo o período democrático de 1946 a 1964
adentrando por anos a fio no período militar é um assunto que será retomado ainda
neste trabalho.
44
Getúlio Vargas, presidente do Brasil de 1930 a 1945; novamente entre 1951 a 1954.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Get%C3%BAlio_Vargas
Juan Domingo Perón, militar e político, foi presidente da Argentina de 1943 a 1955; e em 1973-1974.
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/juan-domingo-peron/
45
1.1 – As ditaduras regressivas ou regimes militares
autoritários na América Latina
Por fim têm-se, o que Darcy Ribeiro (1983) denominou de autocracias ou
ditaduras regressivas. Elas se constituíram no fruto do esforço das oligarquias e do
imperialismo em defesa de seus privilégios, em que a deterioração de classes
dominantes obsoletas, incapazes de solucionar os problemas nacionais em sua
complexidade se apegam ao Estado e às instituições republicanas com o apoio de
Washington, ainda que implícito. As ditaduras regressivas se diferem do
nazifascismo, pois este último buscou o desenvolvimento industrial integrando suas
populações em um desenvolvimento autônomo enquanto que, no referente às
ditaduras regressivas, teve-se o favorecimento a uma política econômico-estrangeira,
segundo o mesmo autor, sendo um ponto comum entre ambos o caráter anti-
comunista e até terrorista. Embora, no caso do regime militar brasileiro iniciado em
1964, como será visto adiante, tal favorecimento a uma política econômico-
estrangeira será mais evidente no governo de Castelo Branco (1964-1967). Em
outros momentos do mesmo regime apresentou clara nuance nacionalista e estatista,
como nos governos de Médici (1969-1974) e de Geisel (1974-1979), com a
estruturação e a consolidação de redes como a rodoviária, a energética, a de
telecomunicações, entre outras.
As ditaduras regressivas proíbem a militância que poderia levar a um
despertar de consciência política na sociedade, mas permitem até uma certa
participação no âmbito político, referente ao burocratismo composto basicamente por
militares e tecnocratas. Neste regime, as empresas nacionais e estrangeiras, ligadas a
esses grupos tecnocráticos, remetem recursos para o exterior podendo contribuir para
o agravamento do problema da corrupção. Aumentam-se também os recursos para as
Forças Armadas, que foram se transformando em "polícias anti-comunistas" na
América Latina, sendo doutrinadas em escolas de estratégia militar influenciadas por
Washington, dentro do contexto da Guerra Fria.
Isso vem a se relacionar com o declínio da ideologia democrática e com a
aceitação, pelos Estados Unidos, de valores distintos da liberal democracia nos países
46
de sua área de influência, conforme assinalou CARDOSO (1979), em que o
autoritarismo buscaria sustentabilidade no desenvolvimentismo com concentração de
renda, sem participação das massas, onde tais regimes enrijecem o centro de decisão
para que seu modelo de desenvolvimento seja incontestável, reduzindo-se o nível de
informação da sociedade em geral. Já o caráter repressivo destes governos decorreria
da natureza de seu próprio funcionamento, e não da pressão de inimigos "internos"
(como as esquerdas), infiltrados na sociedade e propagador de ideias “subversivas”,
fazendo-se do "ideal democrático" uma ideologia voltada ao combate do inimigo
"interno", onde a sociedade aceitaria então o aumento dessa repressão que reduziria a
capacidade criadora nacional, separando as elites políticas das culturais e ambas, das
camadas populares.
Caracterizava-se, conforme definiu Samuel Huntington15
(in: PRADO &
PELLEGRINO, 2014), um novo profissionalismo nas Forças Armadas, ampliando
seu campo de atuação para a segurança interna, entremeando a política, a economia,
a sociedade, a cultura, a ideologia. “Defesa nacional” e “política geral do Estado” se
confundiam. Seguindo-se pelas duas autoras citada acima, tem-se que os cientistas
políticos foram os primeiros a trazerem o tema dos regimes militares na América
Latina procurando um parâmetro generalizante para os mesmos que se deram em
uma mesma época histórica.
Um cientista político também aqui citado é Stepan16
que em suas análises sobre
os regimes militares na América Latina, mais especificamente na América do Sul,
apresentou que o caso peruano foi diferente em sua estrutura política, com um
programa “inclusivo”, durante o governo do general Velasco Alvarado, em que o
regime procurou pautar-se em princípios que em outros países foram marcas, em
escala até bem maior, da fase das autocracias nacional-sindicalistas – o período
“populista”: – estatismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, autonomismo,
corporativismo, reformas sociais, e até o humanismo e a justiça social.
15 Id., Ibid., p.168.
16 Id., Ibid., p.169.
47
De acordo com o sociólogo Hebert de Souza (in: BARROS,1998)17
, no ano de
1964 o Brasil recebeu um “tiro no peito” em que a vítima foi o regime constitucional
e democrático anterior, que apesar dos diversos defeitos, manipulações,
conservadorismos e clientelismos, dava brechas para as camadas populares
mobilizarem-se em busca de maior participação política e de real cidadania. E para
piorar, não foi um caso isolado em se tratando de América Latina, foi uma verdadeira
sequência de “assassinatos em série” contra regimes democráticos que, ainda que
questionáveis em alguns pontos, pelo menos davam significativo espaço às classes
trabalhadoras e subalternas manifestarem-se. Foi o que ocorreu em países mais
distantes, como a Guatemala que pouco ouvimos falar, e também em vizinhos sul-
americanos como Argentina, Chile, Uruguai, etc. E, numa época marcada pelas
tensões da ordem bipolar da Guerra Fria, do que aconteceu em Cuba com a ascensão
de Fidel Castro e das crescentes mobilizações populares em busca de maior espaço
político e social (ainda que estas últimas fossem potencialmente manipuláveis pelos
governos ditos “populistas”), os interesses do capitalismo representados
especialmente pelas empresas multinacionais ou transnacionais acabaram por serem
prejudicados. Assim, é praticamente impossível imaginar que os Estados Unidos não
tivessem os seus interesses em “patrocinar” ou em dar um apoio, ainda que implícito,
aos golpes militares que ocorreram na porção latino-americana do continente. Neste
caso, é como se os Estados Unidos tivessem sido o “mandante” destes “assassinatos
em série” de vários regimes democráticos na América Latina.
A exemplo disso, na América Central, retomemos o caso da Guatemala. Após
implementar uma lei para a reforma agrária, em 1952, o presidente Jacobo Arbenz,
assustou conservadores, proprietários rurais, as companhias estrangeiras e os Estados
Unidos. A tensão com o governo norte-americano cresceu a tal ponto que, conforme
PRADO & PELLEGRINO (2014), o presidente Dwight Eisenhower autorizou a CIA
a desencadear o golpe com o apoio da United Fruit Company. Deposto, o presidente
Arbenz exilou-se no México, abrindo caminho para mais de três décadas de governos
militares e de uma guerra civil que durou 36 anos.
17 BARROS, Edgard Luiz de. Os Governos Militares. 6.ed. São Paulo: Contexto, 1998 (Repensando a
História). p. 13.
48
1.1.1- Ditaduras regressivas ou regimes militares
autoritários na América do Sul
Restringindo-se à América do Sul, seguem-se alguns casos do que RIBEIRO
(1983) denominou de ditaduras regressivas e que foram analisadas mais
detalhadamente por PRADO & PELLEGRINO (2014): Peru, Chile e Argentina. E
finalizando esta seção, breves referências ao Uruguai e ao Paraguai.
Peru
Juan Velasco Alvarado, presidente do Peru entre 1968 a 1975.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Juan_Velasco_Alvarado#/media/File:Juan_Velasco_Alvarado.jpg
No Peru, as Forças Armadas eram aliadas e coniventes com a tradicional elite
peruana realizando diversas intervenções, ao longo do século XX, em nome da
garantia da “ordem social”, conforme seus pontos de vista hegemônicos com relação
às camadas populares. Mas num processo de incubação de um novo papel político,
desde os anos 1950, as Forças Armadas viriam a tomar o poder em 1968, através do
49
“Plano Inca” que serviu de diretriz para o governo golpista, com seus princípios,
objetivos e estratégias que já vinham sendo discutidas a partir do Centro de Altos
Estudos Militares (Caem) e do Serviço de Inteligência do Exército (SI). Estabelecido
o golpe, toma o poder o GRFA (Governo Revolucionário da Força Armada), tendo
como presidente Velasco Alvarado.
Conforme STEPAN in; PRADO & PELLEGRINO (2014), o Peru, como já
apontado, tomou um caminho diferente em comparação com outros regimes
autoritários latino e sul-americanos. No Brasil e na Argentina, diversas reformas
sociais e de cunho trabalhista foram levadas a cabo pelos governos de Getúlio Vargas
e Juan Domingo Perón, respectivamente. Soma-se a isso uma alta politização de
sindicatos e de grupos ou partidos à esquerda, em especial naqueles dois países,
como já exposto. O Peru não viveu, conforme Stepan um período similar e, assim,
este autor apresenta o regime militar peruano com uma estrutura política diferenciada
dos demais.
A transformação que as Forças Armadas objetivavam ao Peru era o
desenvolvimento integral da nação atrelado às reformas sociais. Superar o
subdesenvolvimento a partir do trabalho de uma tecnocracia, constituída por
especialistas, numa pretensa neutralidade para reordenar a sociedade, apagando-se
disputas políticas e construindo-se uma identidade e integração nacionais com
medidas voltadas à Amazônia para sua ocupação demográfico/social, com a melhoria
do padrão de vida da população indígena e ribeirinha locais; e ocupação econômica,
com a proteção aos recursos naturais, combate à dependência e aos privilégios do
capital externo representado pelas empresas estrangeiras.
Tal potencial nacional foi almejado através da Lei da Reforma Agrária, de
1969, visando fortalecer o mercado interno e a indústria nacional no governo de Juan
Velasco Alvarado (1968-1975). E também a Lei Geral das Indústrias, de 1970, em
que o Estado toma à frente do projeto de desenvolvimento industrial da nação, claro
que convivendo com a iniciativa privada e corporativa, porém o Estado assumiu esse
papel dirigente no setor fabril. Procurava-se melhorar a renda e o nível de vida dos
trabalhadores em uma “terceira alternativa” de progresso e desenvolvimento, ao
invés da polarização capitalista ou socialista. Este nacionalismo estatista seguido
50
pelo regime militar peruano retomava a procura por um desenvolvimento adequado à
realidade específica peruana, algo que já vinha presente na cultura política daquele
país desde meados do século XX, dada à identidade indígena e ao glorioso passado
representado pelo Império Inca.
Contudo, tais políticas geraram tensões entre os militares e outros grupos tais
como:
as empresas estrangeiras, no caso da desapropriação da mineradora
Marcona Mining;
as elites agrárias, pela desapropriação das grandes fazendas de açúcar
do norte peruano;
as camadas populares, por causa das dificuldades econômicas
enfrentadas pelas cooperativas de trabalhadores rurais e as normas
rigorosas impostas pelo governo a elas;
e nas “barriadas” – favelas urbanas em que a população lutava pela
ampliação de seus direitos, atritando-se com o governo.
A “revolução peruana” encontrava seus limites. Em 1975, o general Velasco
Alvarado foi destituído. Seu sucessor, o general Morales Bermúdez, governou até
1980, ao mesmo tempo que o reformismo perdia força e encerrava-se o regime
militar peruano. As expectativas frustradas seriam um terreno propício para a
articulação do grupo Sendero Luminoso, de orientação maoista, que protagonizaria
ações violentas pelo país ao longo da década de 1980.
51
Chile
General Augusto Pinochet, ditador do Chile entre 1973 a 1990, em revista às tropas no ano de 1980.
Fonte: http://www.theguardian.com/world/2014/jul/23/pinochet-chile-thatcher-arms-sales
O Chile, também foi um outro caso peculiar. Marcado pela estabilidade política
após a sua independência da Espanha, aquele país passou por reformas políticas e
sociais, ao longo do século XIX e na primeira metade do XX, com partidos políticos
e instituições bem consolidadas. Ali não é possível identificar uma fase similar ao
“varguismo” brasileiro ou ao “peronismo” argentino. No Brasil, os ventos da
Revolução Cubana de 1959 sopravam para uma maior radicalização das esquerdas,
fato que ocorreu no governo João Goulart (1961-1964), onde a busca por uma
conciliação entre as esquerdas, a plataforma reformista do governo e os interesses
conservadores das direitas terminaram por criar um impasse e uma inviabilização
tamanha que desembocariam no golpe de 31 de março de 1964, que derrubaria Jango
e colocaria os militares no poder, fato este que será pormenorizado e analisado
posteriormente ao se abordar especificamente o golpe de 1964.
No Chile, o que se deu foi uma espécie de junção entre a esquerda socialista e
o reformismo. As balizas da “reforma” e da “revolução” entremearam a cena
52
chilena.18
No mesmo ano da queda de Jango no Brasil, em 1964 o Chile elegia
Eduardo Frei, do Partido da Democracia Cristã (PDC), para presidente com o apoio
de grupos conservadores contra a candidatura socialista de Salvador Allende, que
assustava conservadores devido ao que ocorrera em Cuba cinco anos antes.
Frei procurou promover uma “revolução em liberdade”. Reformas
modernizantes, desenvolvimentistas e antioligárquicas foram tocadas adiante, como
já vinha ocorrendo desde o final da década de 1930, quando a Frente Popular,
contraposta às ideologias fascistas, esteve no poder. O projeto do governo Frei
almejava uma terceira via independente do capitalismo e do comunismo. Reformas
estruturais ocorreram (agrária, bancária e urbana), a extração do cobre foi
nacionalizada e setores populares foram contemplados pelas políticas
desenvolvidas.19
Em 1970, com as disputas entre a Democracia Cristã e o conservador Partido
Nacional, abriu-se caminho para a vitória de Salvador Allende pela Unidade Popular
(UP), que reunia partidos de esquerda – o Socialista, o Comunista, o Radical e o
MAPU (Movimento da Ação Popular Unitário) -, sendo que este último vinha de
uma cisão da Democracia Cristã. A plataforma era a implantação de uma via chilena
para o socialismo dentro da legalidade democrática.
Enquanto o Brasil, já vivia os “anos de chumbo” do pós AI-5 de 1968, o Chile
vislumbrava a possibilidade de uma concreta mudança política concebida de dentro
da esfera governamental. Mas aí viria o fatídico 11 de setembro - não o do ano de
2001 que atingiu e destruiu as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York,
no maior ataque terrorista de todos os tempos - mas o do ano de 1973 quando o
general Augusto Pinochet, comandante em chefe do Exército, bombardeou o Palácio
de La Moneda, onde Salvador Allende procurou se defender com uma arma em
punho, por sinal um presente que fora dado por Fidel Castro. Independente da forma
como Allende morreu (após exumação em 2011, a Justiça chilena referendou a
hipótese de suicídio), pode-se afirmar, partindo-se da fala já citada do sociólogo
18 PRADO & PELLEGRINO. Op.cit. p. 159.
19 Id., Ibid., p. 159.
53
Betinho, que a democracia chilena recebeu não só um tiro no peito, mas vários
outros num verdadeiro “bombardeio” que vitimaram a mesma, numa alusão ao
ataque feito ao Palácio de La Moneda.
Mas, por que, apesar da elevada inclusão política e social da população chilena,
a democracia daquele país foi solapada de uma forma tão arrasadora? PRADO &
PELLEGRINO (2014), colocaram a resposta nas mazelas acarretadas pela
dependência econômica. Algo que a Unidade Popular objetivava combater para
reduzir o peso do capital estrangeiro, promover a justiça social, oferta de empregos e
melhores salários. O Estado, assim como o foi em outras nações latino-americanas,
seria o protagonista destas ações.
Mas o Partido Nacional, da direita, já vinha agindo contra o governo Allende.
A posse de Allende quase foi impedida por uma ala do Exército e só foi desbaratada
pela ação de generais legalistas. Houve questionamentos também ao resultado
eleitoral da eleição presidencial. Salvador Allende enfrentou fortes pressões e se
manteve no poder graças à Democracia Cristã, maioria no Legislativo da época. Mas
com a aproximação destes últimos com o Partido Nacional, a Unidade Popular ficou
isolada. Chegou-se a um momento de radicalização dos principais atores políticos: de
um lado, a mobilização popular e os grupos ligados à Unidade Popular que
desejavam acelerar as reformas; de outro, os setores conservadores afetados por
medidas como a expropriação de algumas empresas, a ocupação de terras no campo e
a nacionalização do cobre.
As tensões se agravaram com os “comandos comunais”, alguns focos de
guerrilha e o movimento operário. Na repressão a esses comandos e guerrilhas,
Allende se indispôs também com seus aliados. Para o historiador Alberto Aggio20
, o
caminho chileno para o socialismo – de forma pacífica e democrática – não se
sistematizou numa teoria e política sólidas para tal. O plano governamental e as
manifestações populares espontâneas foram se afastando e o governo perdeu as
rédeas do processo. Havia cisões dentro da própria Unidade Popular: entre os mais
radicais, sintonizados com o que ocorria nas ruas; e os moderados, alinhados com
Allende. Para piorar, a direita se fortalecia com o apoio das classes médias e com a
20 Id., Ibid., p.161.
54
crise econômica, em muito decorrente do boicote de setores empresariais ao governo.
A ameaça de um poder popular, segundo Aggio21
, “feria o padrão de
institucionalização dos conflitos que havia sido a tônica do desenvolvimento
chileno”.
Com a conspiração golpista crescendo, por parte do Partido Nacional, Allende
procurou uma estratégia conciliatória com os militares. Vieram as eleições para o
Parlamento chileno, em 1973, e a Unidade Popular conseguiu 44% dos votos,
possibilitando um novo fôlego ao poder Executivo, cujas relações com o Legislativo
vinham deterioradas por conta da implantação das APS (Área de Propriedade
Social). O Congresso queria restringir o número de expropriações, mas o Executivo
vetou esta intenção do Parlamento.
Após as eleições e dos resultados negativos na eleição legislativa, a direita
oposicionista partiu para a violência, com atentados, sabotagens, etc. Ela
argumentava com a “fraqueza” do governo em lidar com os movimentos populares e
assim ganhava espaço na opinião pública. Como não podia deixar de ser, os Estados
Unidos, atentos ao que acontecia, endossavam, através de suas agências de
inteligência, a necessidade de um “governo forte” para evitar uma “nova Cuba” -
agora na América do Sul. Em nome da “segurança hemisférica” era válido o
enfraquecimento do ideal democrático, o combate visceral ao inimigo “interno” (as
esquerdas, sobretudo as comunistas). O caminho estava pavimentado para o golpe,
dado em 11 de setembro de 1973, que inauguraria a era de Pinochet, que se
estenderia até 1990.
Um “tiro no peito”, como já escrito, no caso da derrubada do governo de
Salvador Allende, seria muito pouco para adjetivar o movimento, talvez o mais
violento e brutal do continente, com o bombardeio do palácio presidencial e a
ascensão do general Augusto Pinochet ao poder. Além do ocorrido, milhares de
pessoas foram tratadas com a pior arbitrariedade imaginável, com interrogatórios,
torturas e execuções sumárias. Toque de recolher, suspensão dos direitos civis,
invasões das casas de suspeitos e uma série de desaparecimentos foram
caracterizando o regime militar chileno.
21 Id., Ibid., p.162.
55
Além de tudo o que ocorria dentro do Chile, Pinochet foi um dos principais
responsáveis pela estruturação da “Operação Condor”. Entre 1973 e 1980, a
Operação era o canal de cooperação entre os regimes autoritários da América do Sul,
visando combater os “subversivos”. O nome do pássaro andino, ironicamente,
combinava bem com o título da Operação já que aquela ave se alimentava de carniça.
Neste seleto “clube do condor”, contavam-se ainda Brasil, Argentina, Uruguai,
Paraguai e Bolívia (sobretudo durante o governo do coronel Hugo Banzer entre 1971
e 1978).
Argentina
A situação política da Argentina teve vários sobressaltos e instabilidades no
decorrer do século XX - se formos nos restringir de 1930 até aos dias atuais - e os
militares, obviamente, foram um dos principais protagonistas destes momentos
cruciais.
Partindo-se de 1930, houve na Argentina um golpe militar decorrente da crise
que afetou o sistema capitalista mundial a partir de 1929. Era mais uma entrada das
Forças Armadas na política portenha. Em 1943, intervenções militares abriram as
portas para a ascensão de Perón e do próprio peronismo que se constituiu numa força
política e ideológica cada vez mais poderosa, como já colocado antes. Em 1955, a
ação militar levaria à queda de Perón, contudo o peronismo cada vez mais se
fortaleceria como uma corrente político-ideológica, mesmo sem o seu mentor, e
aproximava-se dos grupos radicais, com matriz revolucionária. Exemplo disso foi o
grupo conhecido como Montoneros que montariam uma verdadeira estrutura de
guerrilha, mais tarde ferozmente combatida pelos militares.
Na década de 1960, o presidente democraticamente eleito, Arturo Frondizi, da
União Cívica Radical Intransigente, foi deposto pelos militares, em1962, substituído
por um governo civil de fachada até outubro de 1963, quando Arturo Illia (União
Cívica Radical Del Pueblo) venceu as eleições. Mas três anos depois, novo golpe,
56
com a deposição de Illia pelo general Juan Carlos Onganía, em junho de 1966. Era a
“Revolución Argentina”.
Com a sua “Revolução”, o governo militar argentino invalidou princípios
constitucionais, dissolveu partidos políticos e intervieram nas universidades. Graças
à propaganda e campanha golpistas, a imagem que havia se criado dos governos
democráticos era a da fraqueza e da inoperância. Porém, o governo de Onganía
frustrou expectativas por conta dos péssimos resultados na sua política econômica. A
retórica “revolucionária” era o de sempre – desenvolver e modernizar o país com
base na “eficácia técnica” dos militares - mas o que se viu não correspondia ao que
foi teorizado. A reação popular cresceu. O governo ficou dividido e a harmonia
social tornou-se algo cada vez menos viável, apesar da preocupação moralizante dos
setores governamentais - afinados com o catolicismo conservador e anticomunista - e
também pela busca por uma organicidade social imposta de cima para baixo, algo
típico, aliás, dos regimes autoritários da época nessa região do continente. A queda
de Onganía se deu em 1970, com novo golpe militar.
General Juan Carlos Onganía, presidente da Argentina entre 1966 a 1970.
Fonte: http://historiaybiografias.com/azul_colo/
57
No Brasil, o governo de João Goulart (Jango) representava o trabalhismo de
Getúlio Vargas e, uma vez consumada a deposição de Jango, derrubado pelo golpe
de 31 de março de 1964, o trabalhismo varguista seria praticamente silenciado. Os
militares brasileiros procuraram o “seu” projeto desenvolvimentista, muito dele já
concebido na Escola Superior de Guerra (ESG), e aplicaram a “sua” visão
estratégica para o espaço geográfico-territorial brasileiro contando com um governo
forte e centralizador, uma sociedade com a maior organicidade possível, fazendo-se o
contraponto com Goulart que era visto como um governante sujeito às manipulações
e maquinações das esquerdas, dos comunistas e de outros grupos radicais afins. Já
na Argentina, pelo contrário, aconteceu algo que seria inimaginável no Brasil, por
exemplo, entre Jango e os governos militares brasileiros das décadas de 1960 e 1970.
O começo dos anos 1970 trouxe de volta a figura de Perón (que verdadeiramente se
diferenciava de Jango por conta da origem militar do então ex-presidente argentino),
na época, exilado na Espanha. Seu retorno foi possível por meio de negociações entre
ele e o próprio poder militar. Em março de 1973, foi eleito para presidente Héctor
José Cámpora, com o apoio de Perón e dos peronistas. Cámpora renunciou apenas
três meses depois para que Juan Domingo Perón, antes impedido, pudesse se
candidatar para a presidência.
Mais uma vez presidente, Perón não se alinhou a movimentos ou grupos
radicais, seguindo uma postura conservadora, mas o seu governo chegou ao fim com
a sua morte em 1º de julho de 1974. Sua viúva e vice, Maria Estela Martínez Perón, a
Isabelita, assumiu a presidência. No seu período, uma organização paramilitar, a
Triple A, cometeu ações violentas contra os movimentos de esquerda e, para piorar,
em 24 de março de 1976, um novo golpe militar daria início a uma nova fase
repressiva que deixaria marcas na sociedade argentina até o presente.
As justificativas para o golpe foram: a necessidade de se reprimir os
movimentos guerrilheiros; superar a ineficiência e a desordem administrativa; e a
impotência e a incapacidade das forças políticas de encontrarem uma solução dentro
das regras institucionais e democráticas para a crise instalada. Com o título de:
“Processo de Reorganização Nacional”, o programa de governo foi elaborado
reunindo os comandantes das três armas, em uma Junta Militar, sob o comando de
Jorge Rafael Videla, atualmente condenado à prisão perpétua por crimes contra os
58
direitos humanos. Videla esteve à frente do governo argentino até 1981, quando foi
sucedido pelo general Roberto Marcelo Viola, substituído ainda no mesmo ano, pelo
também general Leopoldo Fortunato Gualtieri, que foi o último militar no poder
argentino já que a sua renúncia, em 1982, abriria o caminho à redemocratização.
General Jorge Rafael Videla. Presidente da Argentina entre 1976 a 1981
http://en.wikipedia.org/wiki/Jorge_Rafael_Videla#/media/File:Jorge_Rafael_Videla_1976.PNG
Os discursos dos militares argentinos não apresentavam novidades – como já
foi assinalado – em relação aos discursos dos regimes militares de seus vizinhos sul-
americanos: salvar a sociedade do caos e da deterioração política; colocarem-se
como vigilantes da “moral e dos costumes”, através da disciplina, da hierarquia, do
distanciamento em relação às questões particulares no plano social; promover a
centralização e a eficácia do governo em “moldes técnicos”; e o combate contra os
“inimigos internos” em nome do interesse nacional.
Todavia, o governo militar argentino carecia de projetos efetivamente
concretos, contrastando com o regime militar brasileiro (que apresentava projetos de
modernização econômica visando aprimorar a integração nacional e a estrutura
urbana e energética, por exemplo). O caso argentino também se diferencia do que
ocorreu no Chile, onde houve forte desnacionalização da economia. Na Argentina, o
vazio de projetos governamentais fez os militares sobrevalorizarem a repressão que
59
cada vez mais se soltava do controle do Estado, ficando à mercê até de interesses
privados. A repressão argentina coibiu e silenciou até os grupos mais combativos ao
regime acarretando, para seus militantes, a mudança do foco de luta: ao invés das
plataformas revolucionárias, esses grupos voltaram-se à causa da redemocratização e
à dos direitos humanos. As atrocidades do regime vieram à tona por meio do
sofrimento pessoal das mães de desaparecidos políticos, cujo principal exemplo é o
das Mães da Praça de Maio, no centro de Buenos Aires, ao pressionarem a ditadura a
reconhecer seus crimes.22
Com a legitimidade seriamente deteriorada, o regime militar argentino, em
1982, recorreu ao argumento de recuperar o arquipélago das Malvinas – ocupadas
pela Grã-Bretanha desde o século XIX. O discurso anti-imperialista envolveu a
esquerda argentina e os países vizinhos latino-americanos. A Guerra das Malvinas
durou de abril a junho de 1982 e, com a rendição portenha, apenas serviu para
apressar a deterioração política do regime. A redemocratização do país ganhou vulto
com a vitória do candidato do Partido da União Cívica Nacional - Raúl Alfonsín -
que aglutinou o apoio dos meios universitários, intelectuais e de defesa dos direitos
humanos. Vitorioso em outubro de 1983, Alfonsín enfrentaria uma situação de grave
crise econômica (com alta da inflação, produção industrial fraca e desemprego)
somada às chagas e feridas sociais decorrentes do período autoritário anterior. Em
1984, foi criada a Conadep – Comissão Nacional para o Desaparecimento de
Pessoas, dirigida pelo escritor Ernesto Sábato. Na busca em se confrontar a verdade,
a sociedade argentina tomou contato com a abertura de arquivos secretos do regime e
militares e torturadores têm sido julgados e condenados por crimes contra a
humanidade.
22 Id., Ibid., p.176.
60
Uruguai e Paraguai
O Uruguai, na primeira metade do século XX, se firmara pelos elevados
índices de educação, uma classe média consolidada e uma infra-estrutura urbana. A
década de 1950 trouxe a crise econômica com o desgaste do seu modelo de
desenvolvimento baseado exportação de seus produtos básicos – a carne e a lã – que
se desvalorizaram no mercado internacional. O padrão de vida da população
começou a declinar paralelamente ao aumento da dívida externa. Na década de 1960,
a guerrilha urbana, através dos tupamaros, integrantes do Movimento de Libertação
Nacional (MLN-T), obtiveram ações bem sucedidas, mas também crescia a
militarização do país. O regime autoritário no Uruguai teve início com Juan María
Bordaberry (1972-1976), do Partido Colorado. Em 1973, o Parlamento e os partidos
políticos foram dissolvidos, além da suspensão dos direitos civis. Bordaberry foi
destituído em 1976, por conta de divergências na alta cúpula das Forças Armadas.
Mesmo assim, os militares dominaram a cena política uruguaia, apesar da parcial
“aparência civil” do regime, até 1985.
O Paraguai viveu 35 anos sob a ditadura do general Alfredo Stroessner, entre
1954 a 1989. Ele tomou o poder ao derrubar o presidente constitucionalmente eleito
em 1950, Federico Chávez, do Partido Colorado do Paraguai. Um aspecto desta
ditadura é que como membro do Partido Colorado, Stroessner elegeu-se sete vezes
para presidente. Afastou do partido os seus integrantes moderados e incentivou uma
espécie de clientelismo com a filiação de quadros dependentes dos serviços públicos.
Sua queda se deu, em 1989, por meio de uma rebelião militar conduzida pelo general
Andrés Rodríguez, que elegeu-se presidente em março daquele ano. O Paraguai
ainda seguiria por um caminho de tentativas de golpes e de sérias instabilidades
políticas até o início da década de 2000.
***
61
Em meados dos anos 1980, com o fim dos regimes militares em países como
Brasil, Argentina e Uruguai, manifestaram-se as esperanças de uma democracia
sólida e autêntica na América Latina, com a reativação do processo eleitoral e do
pluripartidarismo. SAES 23
in: DAGNINO (org.) (1994), trata sobre a questão de que
os regimes políticos democráticos da América Latina poderiam ser qualificados
como democracias populistas. O autor aponta a vitória de Carlos Menem na
Argentina, em 1989; o personalismo de Fernando Collor, também eleito em 1989,
com suas apelações ao povo em seus discursos referindo-se aos “descamisados”; o
personalismo e superexposição do presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari, do
PRI, cujo mandato de governo foi entre 1988 e 1994; a permanência de Leonel
Brizola, líder dos anos 1950 e 1960, no cenário político brasileiro dos anos 1990; e o
discurso paternalista de Itamar Franco, presidente do Brasil em 1993 e 1994. O autor
coloca que uma das consequências do desenvolvimento do capitalismo, que foi a
expansão da mídia eletrônica, favoreceria a personalização na política.
Estamos assim, diante do que costuma ser chamado de “populismo
neoliberal”, em que o Estado seria o responsável pelas desigualdades vigentes, vindo
daí a necessidade, conforme tal ponto de vista, das privatizações procurando-se
“enxugar” o papel do Estado. Com base em BECKER & EGLER (1998), Fernando
Collor não apresentava bases partidárias sólidas e assumiu um discurso neoliberal,
antiestatista (ao prometer “combater os marajás”) e a favor dos milhões de
descamisados. Têm-se então que: “essa nova retórica populista neoliberal reinvidica
a restauração do mercado e a liquidação do Estado intervencionista, cartorial e
parasitário, que, ao resultarem na liquidação dos maus capitalistas, antes
protegidos pelo Estado, e no aumento da produtividade econômica global, acabarão
tendo efeitos redistributivos.” 24
(grifo meu)
23
SAES, Décio de Azevedo Marques de. A reemergência do populismo na América Latina. in: DAGNINO,
Evelina (org). Anos 90: Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense,1994. p. 41- 48.
24 Id., Ibid., p. 47.
62
Retornando-se à atuação dos militares no poder, esta, então como foi visto,
variou de acordo com certas especifidades de cada país. Porém esta retomada
histórica geral da formação sócio-política latino-americana e, em especial do
contexto da América do Sul, serviu para se visualizar toda a trajetória que
desembocou nos governos militares, as chamadas ditaduras regressivas, de acordo
com Darcy Ribeiro (1983). Também se apresentou, ainda que muito
superficialmente, o final destas ditaduras ou regimes autoritários - dentro de
transições democráticas - em meados dos anos 1980, em países como Brasil,
Argentina e Uruguai. O que será feito agora é nos restringirmos ao caso brasileiro,
apontando a participação dos militares ao longo da história republicana de nosso país
até chegarmos ao momento histórico nacional em que os militares estiveram no
poder - entre os anos de 1964 a 1985 - passando-se por cada um de seus generais-
presidentes, que ocuparam a presidência da República, durante todos aqueles anos.
63
2- A participação dos militares na história
republicana brasileira
2.1- De 1889 a 1961: a participação dos militares, desde a
República Velha até ao governo Jânio Quadros
A participação e a influência dos militares na política brasileira não se
restringem somente ao movimento de 1964. A proclamação da República em 1889
foi feita pelo marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República no
Brasil, sendo seguido pelo governo do também militar e marechal Floriano Peixoto.
O primeiro civil a ocupar a presidência da Nação seria Prudente de Morais, a partir
de 1894, iniciando o ciclo da hegemonia de São Paulo e Minas Gerais que
caracterizaria a "República do café-com-leite". Durante esta mesma fase,
correspondente à República Velha, podemos ainda citar a ascensão, na presidência,
de Hermes da Fonseca (1910-1914), que possuía uma identidade militar contando
com o apoio do Rio Grande do Sul, anunciando as novas alianças que permeariam a
Revolução de 1930. Houve ainda o movimento tenentista de 1922, defendendo a
centralização política em contraposição ao clientelismo das oligarquias provincianas.
Podem-se citar, naquele contexto, a Revolta do Forte de Copacabana, também
conhecida como “Os 18 do Forte”, ocorrida em 5 de julho do mesmo ano, no Rio de
Janeiro; a insurreição de 1924, em São Paulo; e ainda, a Coluna Prestes (1924-1927)
que percorreu vários estados brasileiros.
Esta posição dos tenentistas foi de encontro com a visão predominante do
pensamento geopolítico brasileiro que, adaptando-se às visões de outros centros -
como o da Alemanha - procurou adaptar e reformular, a seu modo, os pressupostos
existentes lá no exterior para pura e simplesmente “transportá-los” e “transferi-los”,
sem maiores preocupações com as especificidades do Brasil, na busca por análises e
“soluções” para a realidade geopolítica brasileira, operacionalizando ideologias e
políticas, visando a unidade e a integração nacional e territorial de nosso país,
trazendo-se modelos teóricos e analíticos já prontos de fora, como colocado por
COSTA (1992). No Brasil, os estudos geopolíticos sempre tiveram a hegemonia do
pensamento e das instituições militares permeando a história política brasileira, em
especial, a partir da Revolução de 1930.
64
Em 1930, a República Velha e a política do “café-com-leite”, que previa a
alternância de paulistas e de mineiros na Presidência da República, chegariam ao
fim. Washington Luiz estava no poder e, de acordo com o acerto político existente há
décadas, o próximo presidente deveria ser de Minas Gerais. O estado de São Paulo
quebrou o acordo e foi lançada a candidatura de Júlio Prestes, para a sucessão de
Washington Luiz. O outro candidato, encabeçando a Aliança Liberal, era Getúlio
Vargas, presidente (na época, o equivalente a governador) do Rio Grande do Sul,
cuja chapa tinha como vice, o presidente da Paraíba, João Pessoa, e que agora
contava com o apoio de Minas Gerais.
As eleições foram realizadas em março de 1930, com a vitória de Júlio Prestes.
Porém a Aliança Liberal questionou os resultados, denunciando uma série de fraudes
no pleito. Faltava ainda muito tempo para a posse do próximo presidente, que
ocorreria somente em 15 de novembro. A isto, somaram-se as acusações de fraudes
nas eleições e o assassinato de João Pessoa, em 26 de julho daquele ano. O país
passava por uma delicada situação econômica, decorrente da crise do próprio sistema
capitalista mundial, iniciada em 1929. O café, principal produto de exportação
brasileiro, estava afetado por uma crise de superprodução. O descontentamento
popular era enorme devido às dificuldades econômicas. Assim o terreno estava
preparado para uma revolução, deflagrada em outubro de 1930, que depôs
Washington Luiz a apenas um mês de findar o seu mandato. Como não poderia
deixar de ser, os militares depuseram o presidente, formando uma junta militar, a
Junta Governativa. Ela era formada pelos generais Augusto Tasso Fragoso e Mena
Barreto, mais o almirante Isaías de Noronha, comandante da Marinha. Eles
assumiram o poder provisoriamente e o entregaram a Getúlio Vargas, segundo
colocado nas eleições.
Iniciava-se a Era Vargas, que se prolongaria por 15 anos (1930-1945).
Especificamente no período do governo constitucional de Getúlio (1934-1937),
ocorreria a chamada Intentona Comunista, uma tentativa de golpe militar frustrada
pelo governo. A ANL (Aliança Nacional Libertadora), fundada em 1935,
organização de tendência socialista/ comunista - que reunia, além obviamente dos
quadros comunistas e socialistas, também os “tenentes” liberais e católicos -
procurava combater o nazifascismo que, no Brasil, em especial no referente ao
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fascismo italiano, havia inspirado a criação da AIB (Ação Integralista Brasileira), em
1932. A AIB reunia classes médias urbanas, intelectuais (na maioria, católicos),
profissionais liberais, funcionários públicos e militares, sob a liderança de Plínio
Salgado e sob o lema “Deus, Pátria e Família”.
O quadro político tornou-se tenso. O governo Vargas - distante da extrema
direita, dos grupos mais radicais da esquerda, e também dos políticos de centro -
tinha suas bases de apoio especialmente nos sindicatos de trabalhadores e operários
que eram as novas forças da sociedade industrial que se encorpava. Em abril de
1935, o Congresso aprovou uma lei de Segurança Nacional devido à onda de greves,
e em 11 de julho daquele ano, apenas quatro meses depois de fundada, a ANL foi
colocada na ilegalidade. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), em retaliação ao
fechamento da ANL organizou uma insurreição político-militar, em novembro. Seu
objetivo era retirar Getúlio do poder e implantar um governo socialista no Brasil,
semelhante ao da União Soviética. O movimento ficou restrito ao Nordeste, tendo
início em Natal, prolongando-se até ao Recife, mas não se alastrou pelo restante do
país. Os líderes do movimento foram severamente punidos com prisões, torturas e
mortes. Luís Carlos Prestes, a figura mais ilustre do PCB jamais se envolveu no
movimento, mesmo assim permaneceria preso até 1945. O episódio entrou para a
história como a Intentona Comunista, uma tentativa malograda de golpe militar,
restrito aos quartéis dominados por militares comunistas, uma “quartelada” ocorrida
principalmente no Rio Grande do Norte e, que fora do Nordeste, só teve alguns
reflexos menores no Rio de Janeiro.
Seguindo a sequência das participações dos militares na vida política brasileira,
lembremo-nos do Plano Cohen, supostamente uma conspiração golpista dos
comunistas que foi largamente alardeado pelo governo potencializando a campanha
anticomunista na imprensa e na sociedade. Supostamente apreendido pelas Forças
Armadas, o Plano Cohen foi apresentado em setembro de 1937 numa reunião da alta
cúpula militar com as presenças do general Góis Monteiro – chefe do Estado-Maior
do Exército; do general Eurico Gaspar Dutra – ministro da Guerra; e de Filinto
Muller – chefe de Polícia do Distrito Federal (que na época correspondia à cidade do
Rio de Janeiro). Já transcorria toda uma série de disputas entre civis e militares
dentro do clima de tensão da sucessão presidencial, em que as eleições estavam
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previstas para janeiro de 1938. Todavia, o desfecho deu-se antes, no golpe de 10 de
novembro de 1937, que implantaria o Estado Novo. Naquele dia, o Congresso
Nacional foi fechado e iniciava-se um novo período político, que duraria oito anos,
até 1945. Tinha-se uma nova ditadura, com um presidente que gozava de grande
popularidade e que permanecia no poder através de um golpe, devidamente
patrocinado pelas Forças Armadas, e com uma nova Constituição que ficou
conhecida como “Polaca”, devido às semelhanças em suas disposições com as
constituições de regimes fascistas europeus, como o da Polônia.
Se os militares apoiaram o golpe de 1937 iniciando o período ditatorial
estadonovista, o fim do Estado Novo, com a deposição de Getúlio Vargas, em
outubro de 1945, foi feita através de um golpe com a participação das mesmas Forças
Armadas e das oposições a Vargas. A partir de 1943, Getúlio preparou um processo
de abertura política ampliando suas bases de apoio e sustentação constituídas
principalmente pelas camadas populares urbanas, como os trabalhadores e os
operários das indústrias, representados nas estruturas sindicais. Por outro lado, já em
1944, as forças de oposição a Vargas, começaram a pressionar pela redemocratização
formatando a candidatura presidencial de um militar, o brigadeiro Eduardo Gomes.
Tem-se então um processo de distensão política (isto trinta anos antes do governo de
Ernesto Geisel, mas neste caso, é a distensão do regime do Estado Novo). Getúlio
marca para dezembro de 1945 as eleições presidenciais e também para o Congresso
Nacional, deixando para maio de 1946 as eleições para os Executivos e Legislativos
estaduais. Para a viabilização das eleições são criados partidos políticos sendo que a
oposição aglutina-se na UDN (União Democrática Nacional). De outro lado - da
parte de Getúlio – originaram-se: o PSD (Partido Social Democrático), a partir dos
interventores estaduais, que lança como candidato à presidência, o também militar,
general Eurico Gaspar Dutra (ex-ministro da Guerra de Getúlio); e o PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro), atrelado ao sindicalismo e ao fortalecimento da ideologia do
“trabalhismo”.
As camadas populares estavam ausentes e não contempladas nas manifestações
opositoras a Getúlio. Aliás, a mobilização popular se deu a favor de Getúlio, através
do movimento “queremista” (com as frases: “Queremos Getúlio; “Constituinte com
Getúlio”) e o ditador dava mostras de querer continuar no poder, com a disposição de
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antecipar as eleições estaduais para junto das federais. Daí viria um outro movimento
que retirou Getúlio do poder. Os setores oposicionistas, capitaneados pela UDN se
aproximaram das Forças Armadas e os militares concretizaram a deposição do
presidente em outubro de 1945, após quinze anos consecutivos de Vargas no poder.
Na ocasião, o ministro do Supremo Tribunal Federal, José Linhares assume o cargo
máximo da Nação até que o vencedor das eleições tomasse posse na Presidência da
República.
Por seguinte teve-se a disputa eleitoral para a presidência, no clima da nova
Constituição de 1946, entre dois líderes militares: Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD; e
o brigadeiro Eduardo Gomes, pela UDN. A vitória coube ao candidato do PSD, que
foi empossado em 31 de janeiro de 1946. Derrotada, a UDN lançará candidatos
militares nas duas eleições seguintes: em 1950, o mesmo brigadeiro; e em 1955, o
general Juarez Távora. Em 1960, o PSD e as forças getulistas lançam como
candidato presidencial o marechal Henrique Teixeira Lott, militar que comandou a
manobra ou o movimento de novembro de 1955 que garantiu a posse de Juscelino
Kubitschek em janeiro do ano seguinte. Ou seja, em todas as eleições presidenciais
do período chamado por SCHMITT (2000) de Terceira República (1946 a 1964)
sempre houve um candidato militar (em 1945 foram dois) e, conforme Marco
Antônio Villa (2014), excetuando-se 1945 em que o general Dutra, candidato da
situação, obteve a vitória, desde 1950, todos os presidentes eleitos eram da oposição:
Vargas contra Cristiano Machado, apoiado por Dutra (1950); Juscelino contra Juarez
Távora, apoiado por Café Filho (1955); e Jânio Quadros contra Lott, apoiado por
Juscelino (1960).
Ainda de acordo com Villa, e também se considerando o exposto acima, é
notória a quantidade de momentos em que o Brasil enfrentou graves tensões
políticas, considerando-se apenas o tempo compreendido entre os anos de 1930 até
1964. Mas, paradoxalmente, a economia nacional não foi grandemente afetada. O
PIB (Produto Interno Bruto) cresceu a altas taxas no decorrer de todos esses anos
que englobam a era de Vargas entre 1930 a 1945 (governos provisório e
constitucional, mais o período estadonovista); e todo o período democrático liberal
da terceira fase republicana de 1946 a 1964. Recapitulando, no que se refere à Era
Vargas, alguns fatos foram tratados acima - outros não - mas listando-os houve: a
68
Revolução de 1930, a Revolução Constitucionalista de 1932, a Intentona Comunista
de 1935, o golpe do Estado Novo de 1937, o fracassado levante integralista de 1938 e
a queda de Vargas em 1945. Nestes eventos os militares estão ali, sempre como um
dos principais (senão o principal) entre os protagonistas - ora na defesa, ora na
derrubada da ordem vigente.
Por outro lado, conforme Walter Diogo (2012), o Brasil da década de 1920 era
uma nação economicamente frágil e pouco industrializada, dependente sobretudo das
exportações de café. Mesmo mais populoso do que a Argentina, o PIB brasileiro era
menor que a do país vizinho. O Brasil viria a ter um PIB maior que o da Argentina na
década de 1950, por conta também do Brasil se tornar a nação latino-americana que
recebia mais investimentos externos, enquanto a Argentina era “punida” por sua
postura de neutralidade durante a Segunda Guerra. Mas não há como negar o papel
de liderança assumido pelo Estado brasileiro, a partir de 1930, no processo de
industrialização nacional. As camadas populares urbanas tornaram-se também atores
no jogo político (ainda que manipuláveis) e as cidades experimentaram, a partir de
então, um expressivo processo de urbanização, caminhando às mãos dadas com a
industrialização e a expansão econômica. Pode-se considerar que a partir daquele
momento, o Brasil já ia tomando um rumo em direção a uma modernização
conservadora e centralizadora que, após 1964, continuaria por grande parte do
regime militar.
Entrando-se especificamente no decênio anterior ao golpe de 1964, uma
grave crise política é deflagrada após o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto
de 1954. Seu vice, Café Filho torna-se o presidente para cumprir o restante do
mandato que seria concluído em 31 de janeiro de 1956. No ano seguinte à morte de
Vargas – 1955 - ocorre a eleição presidencial, realizada em outubro, com as vitórias
de Juscelino Kubitschek (JK) e de João Goulart (Jango), para presidente e vice
respectivamente. Os setores civis e militares anti-getulistas e os ligados à UDN
argumentaram que houve fraude nas eleições buscando impedir a posse de JK. Um
desses argumentos, de acordo com DIOGO(2012), era que JK e Jango tinham
recebido cerca de 500 mil votos dos comunistas, cujo partido - o PCB - estava na
ilegalidade desde 1947.
69
Nova tensão política em curso, o presidente da República à época, Café Filho,
vice de Getúlio, sofre forte pressão das oposições, novamente capitaneadas pela
UDN. Por conta de um problema sério de saúde (um distúrbio cardiovascular), Café
Filho é internado em 03 de novembro. O presidente da Câmara, Carlos Luz, assume
o cargo de presidente, mas a solução estava longe de ser alcançada, pois um
movimento militar golpista estaria sendo preparado. A falta de uma atitude punitiva
por parte de Carlos Luz aos militares que explicitamente defendiam um golpe para
impedir a posse de JK agravou a situação e gerou um desentendimento entre o
general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, e o presidente interino Carlos
Luz. De novo, os militares estão em cena e a “salvação” da democracia se daria
principalmente através de um militar, o próprio general Lott. A intensificação da
crise política levou o Exército a intervir, mas para garantir a posse do presidente
eleito. Depois de apenas três dias no poder, Carlos Luz foi afastado.
Prevalecia a posição dos militares legalistas que defendiam a Constituição em
contraposição aos contrários à posse de Juscelino e Jango. A renúncia de Carlos Luz
deu-se após o cerco do palácio presidencial (o Palácio do Catete). O dia 11 de
novembro foi marcado pela manobra do I Exército, determinada pelo general Lott,
que ocupou a capital federal – o Rio de Janeiro - cercando o Congresso, o Palácio do
Catete e os portos. A democracia acabou "preservada" pela mobilização militar
chefiada por Lott, figura-chave entre os que eram a favor da legalidade, garantindo a
posse dos eleitos, da aliança PSD/PTB – o presidente Juscelino e o vice João
Goulart, respectivamente. O episódio, por ter ocorrido em novembro de 1955, um
mês após as eleições e a dois meses da tomada da posse, ficou conhecido como
“Novembrada”. Naquele momento, os militares contrários à Constituição e à posse
dos eleitos tiveram que recuar. Nereu Ramos, 1º vice-presidente do Senado Federal,
assumiu a Presidência da República, no mesmo dia 11, para completar a transição até
a posse do novo presidente.
Tal fato faz denotar claramente a fragilidade do conceito democrático no
Brasil correspondendo ao que RIBEIRO (1983) denominou de restaurações
patriciais associada mais precisamente ao governo de Juscelino Kubitschek. Contudo
os problemas e as crises não terminariam por aí.
70
O sucessor de JK, Jânio Quadros, não completaria seu mandato previsto em
cinco anos porque renunciou em 25 de agosto de 1961, após apenas quase sete meses
de governo, trazendo nova e grave crise política em que os ministros militares, e a
direita em geral, se colocaram contra a posse de João Goulart (o Jango) que era, de
novo, o vice-presidente (naquele tempo, o eleitor votava em separado para escolher o
presidente e para escolher o vice). Ressurge a iminência de golpe que só não se
concretizou devido à mobilização democrática dos sindicatos, estudantes e
governadores de estado (como Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul). O impasse foi
resolvido com a posse de Jango como presidente dentro de um regime
parlamentarista em setembro de 1961 (o presidencialismo retornaria mediante
plebiscito em janeiro de 1963).
Voltando-se um pouco, a vitória de Jânio Quadros nas eleições presidenciais de
1960, representou uma verdadeira turbulência à “dobradinha” PSD-PTB, partidos
criados à sombra do getulismo e que procuraram, juntos, garantir relativa estabilidade
à ordem institucional vigente pós-1946, em especial, após o suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954. No caso, o PSD procurou se firmar como o principal fiador da
ordem republicana pós Estado-Novo, atrelando-se ao PTB que vinha numa crescente
eleitoral constante e representava o trabalhismo identificado às massas trabalhadoras
das cidades, numa época em que a urbanização e a industrialização já se expandiam
com vigor, em especial nas maiores aglomerações urbanas, como as cidades de São
Paulo e do Rio de Janeiro.
Com uma carreira política meteórica, entre 1947 a 1960, passando pela
prefeitura da capital paulista e depois como governador de São Paulo, Jânio Quadros
derrotou máquinas partidárias mais fortes candidatando-se por partidos pequenos – o
PDC (Partido Democrata Cristão) e o PTN (Partido Trabalhista Nacional). De
estilo personalista, apartidário e com discurso moralizante, Jânio soube também se
aproximar das massas populares e sindicais, sobretudo na prefeitura de São Paulo. A
UDN (União Democrática Nacional) não tinha carisma e força eleitoral para derrotar
o getulismo, mas viu em Jânio a oportunidade para galgar a presidência do país. Com
a brecha da legislação da época, que permitia o voto separado para presidente e para
vice-presidente, algumas lideranças populares e sindicais lançariam a campanha pela
eleição da chapa “Jan-Jan” (Jânio – Jango) para presidente e vice, respectivamente,
71
sendo que ambos não reagiram em contrário a tal movimentação. Segundo
CHIAVENATO (2006), o cabeça de chapa de João Goulart, o marechal Henrique
Teixeira Lott, apesar da mobilização realizada a favor da posse do presidente
Juscelino Kubitschek, não agregava apelo popular. Enquanto Jânio Quadros também
estava desconfortável: concorria como cabeça de uma chapa que representava uma
corrente política impopular e derrotada em eleições anteriores, liderada pela UDN.
Ele teria que conquistar votos entre os “nacionalistas” e os “populistas”. A solução a
este imbróglio foi a bizarra dobradinha “Jan-Jan”.
A vitória de Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960 foi relativamente
fácil. Primeiro presidente a tomar posse na recém-inaugurada capital federal –
Brasília – Jânio recebeu a faixa presidencial de JK, em 31 de janeiro de 1961. Sua
política e equipe econômicas indicavam para um governo austero, inclinado a cortar
e a reduzir gastos, em sintonia com os grupos capitalistas multinacionais ou
transnacionais, dentro do contexto de uma política ortodoxa, numa clara
contraposição aos vultosos gastos e investimentos dos anos JK. O que se apresentava
na época era um quadro preocupante de inflação e aumento da dívida externa.
Porém, logo Jânio manifestaria seu lado personalista e avesso às amarras
partidárias. E os grupos políticos da direita que o apoiaram, em especial a UDN,
descontentaram-se, sobretudo com a política externa. Jânio defendeu a
autodeterminação de Cuba, palco da revolução socialista ocorrida apenas dois anos
antes, em 1959; reatou relações diplomáticas com os países do Leste europeu;
mandou representantes às conferências do Cairo (Egito) e de Belgrado (Iugoslávia); e
apoiou o ingresso da China Popular na ONU (Organização das Nações Unidas).
Percebe-se então que Jânio não restringiu sua política externa somente às regiões
geográficas do mundo capitalista ou aos Estados Unidos. Ele estimulou os tentáculos
da política externa brasileira em direção também às regiões geográficas dominadas
pelo comunismo e também àquelas que se libertavam do jugo colonial, como o
continente africano. Em sua política externa “independente”, Jânio Quadros não se
curvou às pressões dos Estados Unidos, descontentando a imprensa conservadora, a
Igreja Católica e as Forças Armadas (marcadas pelo anticomunismo incondicional),
chegando a condecorar o cosmonauta soviético Iúri Gagárin. E fez o mesmo com o
símbolo da Revolução Cubana, Ernesto “Che” Guevara, trazendo contra si, conforme
72
Marcos Napolitano (2014), a imagem de um político contraditório, oportunista e
ideologicamente ambíguo.
Com seu perfil, classificado por muitos, como demagógico, personalista,
apartidário e populista, Jânio Quadros perdeu sua base política de sustentação. Seu
principal crítico era Carlos Lacerda, governador da Guanabara, estado que
correspondia à cidade do Rio de Janeiro, que recém deixara de ser a capital federal
do Brasil. Mas ali ainda se contava com o “grosso” das repartições públicas federais
e dos quartéis e bases das Forças Armadas. Carlos Lacerda era um crítico e inimigo
de longa data do getulismo e o atentado que sofrera no início de agosto de 1954
precipitaria de vez a crise política que culminou no suicídio de Getúlio Vargas
Preso às suas contradições e sem base estável para sustentar-se no poder, Jânio
renunciou com menos de sete meses no cargo, a 25 de agosto de 1961. Assim,
entende-se porque CHIAVENATO (2006), se referiu a Jânio (e também a Jango) com
o título de “Os presidentes da contradição”25
no específico capítulo de sua obra, por
conta do exposto antes. Para ele, a renúncia de Jânio foi, ou uma tentativa fracassada
de golpe, ou então ele contasse retornar ao poder com plenos poderes. Para
NAPOLITANO26
, Jânio calculava que com um vice odiado pela direita civil e militar
teria mais manobra para fortalecer seu poder pessoal. Afinal, os conservadores
temeriam um ato de renúncia e a posse de seu vice, João Goulart. O autor aponta
para um consenso entre historiadores de que foi uma tentativa de “autogolpe”, mas o
motivo de sua renúncia não é o objetivo principal desse trabalho.
Para completar o cenário, no dia em que Jânio Quadros renunciou, João
Goulart encontrava-se em Cingapura, voltando de uma missão diplomática-comercial
na China Comunista. Imediatamente, os ministros militares de Quadros aqui no
25
CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. 2 ed. reform.São Paulo. Ed Moderna, 2004
(Coleção Polêmica), p. 13 a 40. O capítulo 1 desta obra traz o título: “Os presidentes da contradição”, em
referência aos governos de Jânio Quadros (1961) e de João Goulart (1961-64).
26 NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Ed.Contexto,2014, p. 32-33.
73
Brasil, por sinal, pertencentes ao grupo de coronéis do “Memorial” de 1954 (que
levou à queda de Goulart à frente do Ministério do Trabalho durante o governo de
Getúlio Vargas) e ao chamado grupo da “linha dura” das Forças Armadas, vetaram
a posse de João Goulart como presidente. A junta militar tentou dar andamento a um
processo golpista, notificando o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
Mazzili (sucessor legal na presidência no caso da ausência do presidente e do vice-
presidente) e arquitetando o impeachment de Jango. Mas a junta deparou-se com a
oposição da Câmara dos Deputados, tanto dos setores nacionalistas e esquerdistas;
como de várias lideranças conservadoras. O Legislativo federal não abriu mão do
cumprimento da Constituição. Até mesmo a UDN e a ala conservadora do PSD,
apesar da oposição a Goulart, não estavam dispostos à ruptura institucional,
respeitando a Constituição (naquele momento) e temerosos de que uma alternativa
golpista poderia empurrar o país a uma situação política muito instável e gerar uma
escalada exponencial de conflitos. Para Argelina Cheibub Figueiredo (1993), as
elites conservadoras queriam manter o jogo político-eleitoral visando as eleições
presidenciais de 1965.
A isso, somou-se a resistência popular ao veto que teve no Rio Grande do Sul,
governado pelo cunhado e correligionário de Jango – Leonel Brizola – seu principal
expoente, agregando a multidão e organizando a milícia estadual para um eventual
combate contra as tropas militares. Em 27 de agosto, Brizola apoderou-se das
instalações da Rádio Guaíba, de Porto Alegre, fazendo ali sua base para a campanha
radiofônica em defesa da Constituição e da posse, na chamada Rede da Legalidade.
Os discursos foram retransmitidos para outras partes do país em ondas curtas. Até 31
de agosto, de acordo com NAPOLITANO27
, a possibilidade de uma guerra civil era
concreta devido às movimentações de tropas entre São Paulo e o Rio Grande do Sul e
as ordens de bombardear a sede do governo gaúcho - o que só não ocorreu - pois
além da postura do governador Brizola, o general Machado Lopes (comandante do
III Exército) e os sargentos, ficaram ao lado da legalidade e da Constituição.
27
Id., Ibid., p. 34.
74
Também aderiram à campanha a favor da legalidade o governador de Goiás,
Mauro Borges, setores da sociedade civil como a imprensa (exceto O Globo e a
Tribuna da Imprensa, este último de propriedade de Carlos Lacerda). Sindicatos
fizeram manifestações e greves pelo país, A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil),
a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a UNE (União Nacional dos
Estudantes) também se posicionaram a favor da legalidade.
O marechal Henrique Teixeira Lott, candidato derrotado por Jânio, em 1960, e
personagem fundamental na “Novembrada” que garantiu a posse de Juscelino, em
1955, volta à cena novamente, ao lançar um manifesto à Nação defendendo a
legalidade. Lott seria preso em seguida, mas a sua declaração expôs as divisões
existentes nas Forças Armadas. O general do III Exército, sediado no Rio Grande do
Sul, Machado Lopes, aderiu a Brizola. Caso o III Exército obedecesse às ordens dos
ministros militares de bombardear a sede do governo gaúcho - o Palácio Piratini - o
Rio Grande do Sul se tornaria palco de uma luta fratricida. Mas não foi só ali. As
manifestações populares nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, junto às
articulações do Congresso Nacional - em Brasília - na busca por uma solução
conciliatória, contribuíram para o isolamento dos ministros militares e para a
chegada de João Goulart, que entraria ao Brasil pelo Rio Grande do Sul, após passar
pela Ásia e pela Europa, devidamente informado sobre o desenrolar dos
acontecimentos no Brasil, naqueles dias de agosto/setembro de 1961.
Se os ministros militares fracassaram na tentativa de um golpe e em impedir a
posse de Jango pelo menos conseguiram, desde os primeiros momentos após a
renúncia de Quadros, encaminhar os diálogos na direção de se mudar o sistema de
governo do presidencialismo para o parlamentarismo, limitando-se os poderes
presidenciais de Jango. A solução parlamentarista foi conseguida com facilidade,
afastando-se o fantasma da guerra civil. João Goulart finalmente chegara ao Brasil no
aeroporto de Porto Alegre, aguardado pela multidão, porém Jango não correspondeu
entusiasticamente à euforia popular. Seguiu para Brasília, sendo empossado
presidente em 08 de setembro de 1961. Aceitou a solução parlamentarista
demonstrando o que podemos considerar um traço do seu perfil: conciliatório e dado
75
ao diálogo. Segundo VILLA28
, Jango tomou posse por puro oportunismo, ele desejava
a presidência a qualquer modo. Ao contrário de alguns de seus aliados políticos,
como o próprio Leonel Brizola, que se opôs com mais veemência ao
parlamentarismo. De qualquer forma, interesses políticos foram acomodados e a
direita mais radical ficou isolada. Para VIEIRA,29
Jango chegou à Presidência da
República através da pressão exercida por certos deputados e senadores, pelo apoio
sindical de São Paulo, pela manifestação da Igreja Católica em Porto Alegre e em
São Paulo e, por fim, pela mobilização dirigida pelo governador gaúcho Leonel
Brizola. Conforme o mesmo autor, o Congresso Nacional tornara-se um centro de
decisões, fabricando o recurso institucional do parlamentarismo, cuja vontade foi
prontamente aceita por parte dos três ministros militares. Com a emenda do
parlamentarismo, as Forças Armadas garantiram o desembarque de João Goulart em
solo nacional. Em um país com forte tradição de centralização no Poder Executivo, o
fato do Legislativo federal ter sido tão protagonista na crise da renúncia de Jânio
chega a chamar a atenção.
28
VILLA, Marco Antônio. Ditadura à brasileira – 1964 a 1985: A democracia golpeada à esquerda e à
direita. São Paulo: Leya, 2014. p. 28.
29 VIEIRA, Evaldo. A ditadura militar: 1964-1985: (momentos da República brasileira). 1.ed. São Paulo:
Cortez, 2014, p.22 e 23.
76
2.2- De 1961 a 1964: período Jango - o governo que, ao ser
derrubado, daria lugar ao regime militar
João Goulart - o Jango. Vice-presidente do Brasil entre 1956 a 1961 (durante o governo
Juscelino Kubitschek. Novamente eleito vice- presidente para o governo de Jânio Quadros. E
presidente do Brasil entre 1961 a 1964, após a renúncia de Jânio.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Goulart
Para o governo de João Goulart será feita aqui não só uma análise da
participação dos militares durante o tempo de seu governo no sentido strictu-sensu,
mas uma abordagem mais geral e ampla, contemplando aspectos políticos,
econômicos e sociais do período. Isso porque é fundamental ter uma visão mais
completa do período Jango para melhor compreender o contexto, os fatores e os
processos que levariam à queda daquele presidente.
77
O governo Jango caiu em 31 de março de 1964, através de um golpe articulado
por vários setores militares e civis, sendo sucedido por um regime autoritário que
perduraria por praticamente 21 anos até 1985. O regime militar instaurado teve
sucessivamente a passagem de cinco generais-presidentes ocupando o cargo máximo
da Nação sem a participação da sociedade no processo de escolha. Toda a dinâmica
eleitoral de disputa de eleições presidenciais, com candidatos e diferentes partidos
políticos, que vinha ocorrendo desde 1945, foi destruída. Foram, na verdade, quase
três décadas em que o eleitorado brasileiro esteve impedido de escolher o chefe do
Executivo federal, fato este que viria a acontecer de novo somente em 1989.
O período de João Goulart como presidente pode ser dividido em duas fases
principais (DIOGO, 2012): a parlamentarista – entre setembro de 1961 a janeiro de
1963; e a presidencialista - entre janeiro de 1963 a março de 1964.
Todavia, indo-se além dos fatos históricos e entrando numa discussão mais
acadêmica, o governo de João Goulart tem sido sempre apresentado nos trabalhos,
estudos, pesquisas e análises, em que há como foco a abordagem do regime militar
brasileiro de 1964, como o principal ponto de partida para a compreensão do período
marcado pelo protagonismo militar no poder central da Nação, que se estendeu por
aqueles 21 anos, e deixou profundas marcas no Brasil até o presente. Isso não é por
acaso, pois Jango tomaria medidas que desencadeariam reações da direita
conservadora, que em nome de uma verdadeira “paranóia” anticomunista, evocavam
os valores da moral, da família, dos bons costumes e dos hábitos cristãos-ocidentais,
que também serviriam de “combustível” para o golpe de 1964.
Isso não será diferente neste trabalho. Após apresentar o histórico da
participação dos militares ao longo das diferentes fases da República brasileira, a
partir de 1889, chega-se ao ano de 1961. O mandato de Jânio Quadros, eleito
presidente nas eleições de 3 de outubro de 1960, se inicia com a previsão de durar
cinco anos, como determinava a Constituição da época. Jânio deveria governar até o
início de 1966. Mas ocorre a precoce renúncia deste, ainda em agosto de 1961.
Em seguida, criou-se uma complicadíssima situação política, que além dos
riscos de desfecho através de um golpe militar também, verdadeiramente, poderia ter
levado o país a uma guerra civil, que só foi evitada pela solução parlamentarista,
permitindo a posse do vice João Goulart (com poderes reduzidos) após uma
78
verdadeira “odisséia”, desde a Ásia, passando pela Europa, até que ele finalmente
pudesse entrar no Brasil (pelo Rio Grande do Sul, estado natal de Jango e principal
baluarte da resistência legalista de então, governado pelo seu cunhado Leonel
Brizola).
Empossado presidente, em setembro de 1961, como determinava a
Constituição de 1946, inicia-se o período de Jango no governo do Brasil. Para
NAPOLITANO (2014)30
, o sucesso eleitoral da chapa “Jan-Jan” (Jânio-Jango), para
presidente e vice, respectivamente (já que os votos de ambos os cargos eram em
separado), trouxe um efeito colateral bastante sério: foi a “porta de entrada” para a
crise instalada após a renúncia de Jânio. O presidente eleito em 1960, provavelmente
deve ter apostado em seu poder pessoal, em seu sucesso eleitoral e na antipatia que
Jango, seu vice, causava à direita conservadora. Rompido com Jango desde os
primeiros momentos de seu governo, Quadros apostava nos fatores acima e, com sua
renúncia, provavelmente acreditava que seria reconduzido ao poder. Porém tal não
ocorreu e Janio Quadros estava fora da presidência.
O drama estava longe do fim, a aliança golpista, englobando civis e militares,
que já tinha tido um papel relevante na crise política que levou ao suicídio de Getúlio
Vargas, em 1954, e que procurara tumultuar novamente o cenário político ao tentar
impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, levantava suas garras novamente.
O que eles não conseguiriam em agosto/setembro de 1961, finalmente obtiveram em
março de 1964, através de um golpe, que apesar dos arranjos e desarranjos, encontros
e desencontros, imprevistos e improvisações, tinha articulação e apoio suficientes,
inclusive fora do país, para alijar Jango do poder.
Algumas perguntas colocadas por NAPOLITANO(2014),31
também são aqui
estabelecidas neste trabalho ainda que com uma ou outra palavra diferente:
30 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 31.
31 Id., Ibid., p. 13.
79
a) O governo Jango teve algum diferencial político e ideológico
marcante para a história do Brasil?
b) Se positivamente, com que intensidade, grau e importância?
c) Houve verdadeiramente uma possibilidade real de se mudar o Brasil,
marcado pela exclusão política e desigualdade social?
d) Ou seu governo foi apenas um jogo de cena demagógico e populista
(na pior acepção deste termo) em que uma pretensa ofensiva das esquerdas só serviu
para alimentar o autoritarismo reacionário das direitas?
Muitas são as questões e pretende-se aqui procurar discuti-las, aprofundá-las
um pouco, porém responder e divagar sobre tais perguntas também não é o objetivo
principal deste trabalho, mas as questões aqui apresentadas sobre o governo Jango
poderão servir a futuros trabalhos e análises sobre aquele momento da história
brasileira que, apesar de relativamente curto (foram dois anos e meio com João
Goulart na presidência, somando-se as fases parlamentarista e presidencialista) ainda
traz muitas indagações por conta de que seu fim se deu através de um golpe que
inauguraria um período de duas décadas de regime militar. Então não há pretensão
de se aprofundar e esgotar tal debate aqui, mas não será deixado de se adentrar nesta
discussão.
Alguns títulos de capítulos das obras, que trataram sobre o regime militar
brasileiro, ao abordarem o governo Jango podem ser bastante sugestivos. Marcos
Napolitano traz, no mesmo livro, o seguinte título para o capítulo referente à João
Goulart: “Utopia e agonia do governo Jango”32
, levantando várias questões,
elencadas acima, sobre o governo anterior ao regime de 1964, para depois tratar
sobre o período. O autor aponta as diferentes concepções e interpretações sobre o
governo de João Goulart. No campo da Ciência Política de viés historiográfico há a
confirmação de uma falta de consistência política que parecem ter sido mais
determinantes para a queda de Jango do que a conspiração de seus opositores
direitistas. Para Napolitano:
32 Id., Ibid., p. 13 - 42.
80
“Desde a teoria da “paralisia decisória”, fruto das coalizões partidárias
frágeis propensas a crises políticas fatais, até a teoria da “radicalização dos
atores”, no debate sobre as reformas, alimentada pela inapetência do presidente
Jango e do seu governo como um todo, os veredictos dos cientistas políticos desviam
o foco da luz do golpe em si, iluminando as inconsistências políticas anteriores que o
alimentaram. Em suma, o “estado da arte” desta discussão parece apontar para a
(ir)responsabilidade das esquerdas na crise que culminou com o golpe das direitas.
Nesta perspectiva, se houve alguma importância histórica no governo Jango
ancorada em um projeto minimamente coerente e consistente, ela se diluiu na
fragilidade política da governabilidade, palavra sempre cara à ciência política” 33
Ou seja, o fim do governo João Goulart foi causado fundamentalmente por
erros do próprio governo, erodindo as possibilidades de qualquer tipo de conciliação,
ou solução, como ocorrera em 1961 após a renúncia de Jânio Quadros. É como se o
governo Jango tivesse adotado uma tática “suicida”, a tal ponto que o papel dos
conspiradores da direita seja até minimizado.
Marco Antônio Villa (in: NAPOLITANO, 2014, pág.15), apresenta uma grave
definição sobre Jango e seu governo, comparando-o a uma “ópera bufa” que dividiu
o país e destruiu vinte anos de conquistas democráticas. Sem o final “grandioso” de
Getúlio Vargas, seu padrinho político, Jango saiu de cena pela “porta dos fundos”,
através da fronteira com o Uruguai. VILLA (2014), em sua obra: Ditadura à
brasileira – 1964 a 1985 – A democracia golpeada à esquerda e à direita, abordou o
regime militar brasileiro partindo, desde a breve estada de Jânio Quadros no poder e
o início do governo de João Goulart - em 1961 - até o final do regime militar
brasileiro, em 1985. O autor desenvolve o livro na sequência cronológica dos anos.
Obviamente, os anos de Goulart (1961-1964) são tratados no início da obra, no
capítulo 1, entre as páginas 16 a 55. Pelo título do livro, já se percebe nitidamente
que o autor não responsabiliza somente a direita conservadora, mas também as
esquerdas pela queda da democracia brasileira. Como não podia deixar de ser, a
figura do presidente João Goulart não foi redimida pelo autor. Pelo contrário, durante
33 Id., Ibid., p. 16.
81
a abordagem dos anos de Jango, Villa destacou um lado negativo daquele presidente,
como sendo um político oportunista (se distanciando da visão predominante de que
Jango era um político moderado e conciliador), que aceitou a solução parlamentarista
de 1961 para tomar posse de qualquer jeito. Depois, durante a fase parlamentarista,
Villa destaca que desde o princípio do parlamentarismo, Jango procurou esvaziar o
novo sistema, de olho em vantagens políticas futuras que pudesse obter. Assim foi,
pelo decorrer de 1962, em que gabinetes enfraquecidos, por interesse de Goulart,
selaram a sorte do parlamentarismo e precipitaram a antecipação do plebiscito sobre
a escolha do sistema de governo para janeiro de 1963.
Uma vez reestabelecido o presidencialismo após o plebiscito, Villa ressaltou
que Jango não teria mais desculpas para enfrentar a crise econômica de então. No
referente à reforma agrária, foi apontada uma nova crítica à Goulart que teria
começado a culpar os produtores rurais pela alta da inflação, pois a produção de
alimentos era insuficiente para abastecer as cidades, em franco crescimento
populacional, devido às migrações inter-regionais. O latifúndio era a causa da
carestia e do desabastecimento, aumentando os preços e a inflação (o que era
verdade). O governo argumentava que o aumento na produção de alimentos forçaria
à queda dos preços (o que também procede). A crítica, para Marco Antônio Villa, é
que uma mudança estrutural de tal magnitude não levaria, a curto prazo, à queda dos
preços dos alimentos. Por fim, outras ressalvas do autor foram: a do “sonho”, por
parte de Jango, de poder concorrer à reeleição; e a manobra, vista também como
oportunista, no episódio da tentativa da decretação do Estado de Sítio, em outubro de
1963, em que Jango teria a possibilidade de se livrar de adversários políticos, como o
governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e promover uma espécie de “autogolpe”,
similar ao que ocorrera em 1937.
Júlio José Chiavenato(2006)34
, como já indicado, trouxe como título de
capítulo: “Os presidentes da contradição” referindo-se a Jânio Quadros e a João
Goulart em seu livro. No que concerne a Jango, o autor indica, como a marca
principal de seu governo, as tentativas de reformas. Por ter sido ministro do Trabalho
34
CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p. 13 a 40. No capítulo 1: “Os presidentes da contradição”,
especificamente sobre Jango é dedicado a maior parte do mesmo, p.17 a 40.
82
durante o último governo Vargas (1951-1954), por ter patrocinado um aumento de
100% no salário mínimo e pelo trato paternalista dado aos movimentos sindicais,
Jango era visto como uma esperança às classes trabalhadoras, ainda que seu discurso
fosse um tanto demagógico. A situação crítica do país em 1961 potencializava a
imagem de um novo “pai dos pobres”, herdeiro político de Getúlio Vargas. O Brasil
tinha 80 milhões de habitantes quando Jango chegou à presidência e 15 milhões de
eleitores. Mais de 80% da população não votava. A televisão era incipiente, a
imprensa bastante regionalizada e maioria do povo era despolitizada e sem acesso às
informações. Eram nas grandes crises, que abalavam o país, que se esboçava uma
participação. As circunstâncias de sua posse despertariam mais a população para a
política. A resposta do presidente foram as Reformas de Base. As Reformas
abarcavam quase toda a sociedade: áreas eleitoral, urbana, tributária, administrativa,
bancária, cambial, universitária e a mais polêmica e famosa – a agrária.
Chiavenato reforça, porém, que seria ingenuidade esperar medidas efetivas ou
radicais para atenuar a crise brasileira. Era um governo de conciliação, liderado por
um latifundiário, rico criador de gado que, no máximo, seria classificado como um
“humanista social-democrata”35
Mesmo no papel, devido ao crescimento das forças da esquerda, tais reformas
assustaram as elites. Por exemplo: no Rio de Janeiro havia 40 mil apartamentos
vazios que os donos se recusavam a alugar, aguardando a liberação dos aluguéis. A
Reforma Urbana propunha, entre outras medidas, a desapropriação dos imóveis
excedentes desocupados. Cada proprietário poderia ter um número limitado de
imóveis, sendo o excedente desapropriado e entregue a novos donos, que o pagariam
através de financiamento do Estado. Jango não contava com apoio político suficiente
para tal reforma, mas gerava “calafrios” nos proprietários e especuladores. Já a
Reforma Bancária previa a nacionalização de todos os bancos estrangeiros e a
participação dos bancários na sua direção36
35
Id., Ibid., p. 22.
36 Id., Ibid., p. 22.
83
As Reformas de Base estavam bem longe de “socializar” ou “comunizar” o
Brasil. Na verdade, Chiavenato, assim como vários outros autores, salienta que tais
reformas pretendiam inserir o capitalismo nacional em uma nova etapa de
desenvolvimento que trouxesse mais benefícios ao povo. A reforma agrária tinha um
caráter nitidamente burguês, pois o próprio sistema lucraria com a ampliação do
mercado interno. O que havia, para o governo, era que a péssima distribuição da terra
baixava a produtividade. Somente 2% da população possuíam terras e, destes 2%,
quase 60% eram latifundiários. 37
A Reforma Agrária de Goulart não era anticapitalista. Continuava claramente a
privilegiar a propriedade privada e muito menos ia contra o direito à propriedade. A
realização do processo de reforma agrária não previa “confiscos”, o que seriam
utilizados eram títulos públicos de valor reajustável. A expropriação da terra estava
prevista somente para as terras improdutivas ou inexploradas, estando assim dentro
da lei.
O problema é que o Brasil tinha toda uma herança histórica – escravista e
colonial – baseada em enormes latifúndios que, ao invés de se voltarem à produção
de gêneros agrícolas e alimentos, se tornaram símbolos do poder político e
econômico. Então, não é que a reforma agrária ameaçasse o próprio sistema
capitalista brasileiro, o imbróglio era a possibilidade de se liquidar um privilégio
político de poucos. Para o governo este privilégio era o que restava do coronelismo
no Brasil, em especial nas regiões mais atrasadas do Norte, do Nordeste e de Minas
Gerais38
. Lembremo-nos que Juscelino Kubitschek era mineiro e, seu partido - o PSD
- contava com importantes bases de apoio entre os grandes proprietários rurais. Aliás,
eram daquelas partes do Brasil que vinham grande número dos “caciques” políticos.
E a burguesia financeira e industrial? Estes setores das elites se posicionariam
contra o governo Jango por receios às alterações que pudessem ocorrer no modelo
dependente da economia brasileira. Muitos de seus temores vinham da possibilidade
37
Id., Ibid., p. 25.
38 Id., Ibid., p. 26.
84
da nacionalização de vários setores, pavimentando uma guinada nacionalista na
política externa e mexendo nas relações com o capital norte-americano. A burguesia
enxergava em Goulart um “amigo dos comunistas” que pretendia fazer do Brasil uma
“república sindicalista”.
Edgard Luís de Barros em: “Os governos militares” (1998) 39
não chega a
dedicar um capitulo ao governo Jango, mas coloca uma interessante interpretação
sobre as “reformas de base” que, para o autor, em si mesmas não tinham caráter
revolucionário e muito menos socialista. O que ocorria era que, por conta da urgente
necessidade do desenvolvimento nacional, o Brasil necessitava de medidas
inadiáveis para rever seu projeto de modernização e, ao mesmo tempo combater a
inflação e às dificuldades econômicas do início da década de 1960. Um crescimento
sólido e passível de sustentar-se passava pela redistribuição da renda e da estrutura
fundiária. Esta agenda de mudanças necessárias e inadiáveis agregou as esquerdas e
também as reivindicações da sociedade por maior participação política,
democratizando a sociedade. Barros também fez críticas ao período anterior a 1964
argumentando que o jogo político-partidário era altamente manipulatório, sujeito a
clientelismos, permitindo a manutenção de certos privilégios e estruturas arcaicas,
mas havia brechas para as reivindicações democráticas, por conta da urbanização e
da industrialização em curso, em que, sobretudo, as classes trabalhadoras urbanas
(apesar das manipulações a que estivessem sujeitas), dentro de um período que
genericamente pode ser chamado de “populismo”, buscavam maior participação
política e menor desigualdade social. Ainda que a democracia brasileira daquele
tempo padecesse de não poucas debilidades, práticas liberalizantes favoreciam a
efervescência e a expansão do pensamento democrático.
Seguindo-se pelo mesmo autor, o cenário eleitoral para a corrida presidencial
de 1965, traria como principais adversários – Carlos Lacerda, da UDN (União
Democrática Nacional), governador da Guanabara; e de outro lado – o ex-presidente
39 BARROS, Edgard Luiz de. Os Governos Militares. 6.ed. São Paulo: Contexto, 1998 (Repensando a
História). p.12,13,17 e 18.
85
Juscelino Kubitschek, do PSD (Partido Social Democrático), partido que além de não
ter nada de revolucionário, era herdeiro da máquina governamental do Estado Novo
varguista e contava com importante base eleitoral na zona rural. O PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro) completava o quadro, com sua herança também varguista,
assentada no trabalhismo e no nacionalismo, com respeitável base nas camadas
operárias e trabalhadoras urbanas. Os privilégios das camadas dominantes, ao que
tudo indicava, não seriam rompidos de uma hora para outra, mas havia brechas para
a ampliação da participação democrática das camadas populares.
Entretanto, Barros ainda que muito rapidamente, salienta o triste fim do
governo Jango que não impôs uma resistência significativa contra o golpe que o
derrubou. Ele fez menção a um “acovardamento”, de cunho institucional, por parte
de Jango que contribuiu para a rápida derrocada de seu governo. Em suas palavras:
“A covardia institucional de João Goulart, a desorganização das esquerdas, a
falta de uma verdadeira consciência democrática e a passividade da população
permitiram a tragédia”.40
A tragédia foi o golpe de 1964.
Argelina Cheibub Figueiredo (1993), que aborda por inteiro o governo Jango,
e não o regime militar posterior, tem como título de sua obra: “Democracia ou
Reformas? Alternativas democráticas à crise política” , trazendo uma outra questão,
o leque de escolhas e de possibilidades na época: o governo Jango deveria ter talvez
“recuado” um pouco nas reformas para garantir um mínimo de consenso político e a
manutenção do próprio sistema democrático?; Ou ter ido mesmo “à fundo” nas
reformas? Isso porque, segundo ela, democracia e reformas se tornaram em objetivos
políticos conflitantes durante o governo de Goulart, ao ponto de um excluir o outro,
conforme os interesses das coalizões formadas.
O que a referida autora indica traz uma nova luz sobre o significado do
governo Jango: as escolhas que podiam ser feitas e o contexto da época. Hoje é
muito fácil para nós culpar ou inocentar, maximizar ou minimizar, a importância de
determinados atores políticos num certo momento histórico. Afinal, são mais de
cinquenta anos que se passaram do governo Jango e do golpe de 1964. Se voltarmos
40 Id., Ibid., p. 18.
86
às reflexões de Napolitano, de Villa, de Chiavenato, de Barros, e de outros autores,
temos que tentar imaginar a “atmosfera” política daqueles inícios dos anos 1960 e
quais as alternativas e possibilidades que poderiam ter dado um desfecho diferente ao
governo de João Goulart.
Voltando-se à NAPOLITANO (2014),41
existiam diversos pontos ainda
difusos, e até confusos, no referente à história e a memória do governo Jango.
Segundo o autor, quando o regime militar entrava numa fase não só de distensão e de
abertura, mas também de desgaste e erosão de legitimidade, entre o final da década
de 1970 e início dos anos 1980, a esquerda nacionalista, derrotada em 1964, tentou
recuperar a imagem de João Goulart destacando o seu projeto reformista e a sua
vitimização frente uma feroz conspiração militar e civil articulada dentro do país e
também fora dele. Tal iniciativa da esquerda nacionalista, porém seria criticada pela
“nova esquerda” do final da década de 1970, que reunindo intelectuais e militantes,
serviria como base para a formação do PT (Partido dos Trabalhadores), partido este
que não apresentava um agrupamento político correspondente no período anterior a
1964 (o antigo PTB originara-se do nacionalismo e do trabalhismo getulista). Na
verdade, o partido que melhor corresponderia ao “velho” PTB na “Nova República”,
iniciada em 1985, seria o PDT (Partido Democrático Trabalhista), fundado por
Leonel Brizola, nos inícios dos anos 1980. A nova esquerda apresentava uma visão
negativa do governo Jango assinalando uma ilusão histórica, na qual as esquerdas
acreditavam em mudar o país, sem apresentar bases sociais sólidas para tanto.
O saldo então parece ser negativo para Jango, porque as próprias esquerdas
não apresentam um consenso quanto à avaliação de seu governo. Há a ideia de uma
grande ilusão, de uma mudança que poderia ter ocorrido, mas não ocorreu.
Napolitano argumenta que, por este viés, chegar-se-ia à conclusão de que o governo
Jango só serviu para a direita autoritária justificar seu golpismo e apertar o controle
social sobre os trabalhadores. E também porque o modelo dito “populista” estaria
ficado ultrapassado devido à necessidade do desenvolvimento capitalista e ainda da
falta de consistência política e ideológica para as reformas.
41 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 14.
87
Interessante que há uma interpretação contrária a esta - no que se refere
especificamente não ao governo Jango, mas ao golpe de 1964 - em que as esquerdas
do início dos anos 1960, segundo Jacob Gorender (“Combate nas trevas” 1987 - in:
FICO, Carlos. Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura
militar. 2004, pag.34), teriam tido uma real oportunidade de vitória, dentro do
contexto que a luta de classes assumiu na época, com as mobilizações dos
trabalhadores e das massas em geral contra a ordem burguesa dominante,
encontrando ecos nas propostas das reformas de base. Gorender desenvolveu uma
bastante conhecida análise marxista do golpe de 1964, em que a luta de classes
assume um protagonismo nos episódios daquela época, salientando que o núcleo
burguês industrializante, somado aos setores ligados ao capital estrangeiro, via nas
reformas de base um risco para os seus objetivos e, por isso, viriam a formatar dentro
da coalização golpista militar e civil, a via da “modernização conservadora” para
que o Brasil trilhasse uma nova etapa em seu desenvolvimento capitalista, sem os
“embaraços” das lutas populares e trabalhadoras, e das disputas eleitorais. Aliás, a
discussão sobre o golpe de 1964 em si será retomada mais adiante. FIGUEIREDO
(1993) não trata sobre uma possibilidade de vitória das esquerdas, mas apontou que
as mesmas, adotando a bandeira reformista, procuraram maximizar seus objetivos,
através do retorno do sistema presidencialista, após plebiscito de janeiro de 1963,
enxergando no presidente João Goulart, com seus poderes plenos, a possibilidade de
avanços concretos em direção às reformas e a uma maior redemocratização do país.
O problema é que no decorrer dos meses seguintes, a situação política só viria a se
agravar e, nos inícios de 1964, as esquerdas criticavam Jango por sua postura de
conciliação com os grupos mais conservadores, enquanto estes últimos viam em
Jango um presidente que estaria a fomentar uma revolução comunista. O resultado,
conforme a autora, foi o de nenhuma democracia e nem reformas, e sim um golpe
que instauraria um regime militar.
Ao se retomar a questão de qual seria a importância do governo João Goulart
para o Brasil, é citada a famosa frase de Darcy Ribeiro em que Jango caiu “não por
defeitos do governo que exercia mas, ao contrário, em razão das qualidades dele”
42. Assim sendo, o governo Jango teria apresentado o mérito de trazer para a agenda
42 Id., Ibid., p. 16.
88
política brasileira um processo de revisão rumo à democratização da cidadania e da
propriedade, reiterando-se que estava mais para uma agenda do que para um sólido
projeto político de inclusão social, nacionalismo econômico e democratização
política.
Entretanto, o ambiente político profundamente conservador e excludente, a
tradição liberal-oligárquica elitista e antipopular, trouxe contra o governo Jango,
através dessa agenda política reformista, um consenso entre os grupos golpistas: o
golpismo histórico das direitas que já vinha desde o início dos anos 1950, marcado
pela obsessão anticomunista da Guerra Fria; assim como o golpismo de ocasião no
calor da situação política do governo janguista43
. No momento em que as esquerdas
buscaram transformar tal agenda em projeto político, a conspiração golpista, tanto a
de matriz histórica, como a de ocasião, se uniram de vez, solidificando uma aliança,
com componentes civis e militares, no final de 1963. O jogo de posições, tanto à
direita como à esquerda, inviabilizou eventuais acordos, coalizões e arranjos
políticos dentro das regras institucionais, tornando também praticamente impossível
uma saída democrática por conta de valores inconciliáveis. As questões que estavam
em jogo – o voto do analfabeto, nacionalismo econômico, a legalização do Partido
Comunista Brasileiro - não davam margens aos conchavos e soluções conciliatórias
ao estilo do que acontecera em 1961. Nota-se que, ao contrário de outros autores,
Marcos Napolitano não atribui à radicalização dos grupos o desfecho do governo de
Jango, mas sim à impossibilidade de entendimento dentro das regras do jogo político
daquele tempo. A interrupção violenta do debate político, dentro de uma agenda
reformista e com traços democratizantes deu lugar à afirmação, estabelecida a partir
do golpe civil-militar de outro modelo político e ideológico de sociedade e de
Estado, esboçado desde bem antes do golpe (podemos citar a ESG - Escola Superior
de Guerra, nesse sentido): a modernização socioeconômica do país e a construção, a
longo prazo, de uma democracia plebiscitária, tutelada pelos militares em nome do
43 Id., Ibid., p. 17.
89
“partido da ordem”44
. Em outras palavras, uma modernização conservadora e
centralizadora que traria e deixaria marcas profundas no território, nas paisagens, e
enfim no espaço geográfico nacional.
Dentro da questão da propriedade, FIGUEIREDO (1993) assinala que havia
consenso sim, e em um grande espectro de grupos, de que o latifúndio improdutivo
constituía um grande obstáculo ao desenvolvimento da agricultura e ao crescimento
econômico. Também havia consenso quanto à expansão do mercado interno que
seria acarretada pela reforma agrária. O problema era qual o grau de mudança? A
reforma agrária foi uma das principais, senão a principal, frente de luta institucional
do governo Goulart no Congresso, no ano de 1963. Havia uma colossal distância
entre a reforma possível no plano institucional e a desejada pelos movimentos
sociais.
Formalmente, nenhuma força política era contrária à reforma agrária (pelo
menos até o início de 1963)45
e tal reforma aceita pelo Congresso favoreceria
também a especulação. E não poucos membros do Congresso Nacional eram
latifundiários, ou ligados a eles. O impasse era que a maioria do Legislativo federal
não aceitava o pagamento em títulos da dívida, mas sim em dinheiro, invocando o
artigo 141º da Constituição de 1946. Algumas alas do PSD aceitavam a proposta
presidencial, mas exigiam um maior percentual de reajuste dos títulos para as
desapropriações (o limite era de 10%, defendido pelo PTB). Oliveira Brito, do PSD,
lançou a proposta de correção entre 30% a 50% dos títulos da dívida utilizados na
compra da terra pelo governo e o proprietário ficaria ainda com metade da terra
desapropriada. Na proposição de reforma agrária do PSD, as propriedades com mais
de quinhentos hectares só seriam desapropriadas se fossem improdutivas ou
exploradas em condições antieconômicas, além de prever o pagamento de
indenizações a títulos da dívida pública (este último um pré-requisito indispensável
44 Id., Ibid., p. 18.
45 Id., Ibid., p. 40.
90
para a reforma agrária), o que gerou reações do PTB. Mas em agosto de 1963, a
Convenção Nacional do PSD minaria a proposta de seu próprio deputado.
O PTB não abriu mão de seu projeto de emenda constitucional em realizar uma
reforma agrária abrangente, contrariando grupos centristas. Porém, em outubro de
1963, seu último projeto fora rejeitado. As esquerdas e grupos mais radicais
reformistas desejavam maximizar essa e outras reformas (SANTOS, 1981 in:
FIGUEIREDO, 1993, pag 196) Expressava-se a recusa do PTB através do que
denominou de lógica da ideologia de não aceitar nada menos do que a solução
“ótima”, ou seja, jamais fazer concessões (por exemplo, numa reforma um pouco
mais restrita, mas com possibilidades de ganhos e mudanças a médio e longo prazos).
Grupos da esquerda e reformistas radicais não estavam dispostos a ceder e, de forma
intransigente, as propostas de reforma agrária do Plano Trienal (concebido durante o
governo Jango) ou as apresentadas pelo Congresso, em especial a do PSD, foram
repelidas por tais grupos. A UDN, para variar, através de sua Convenção Nacional,
em abril de 1963, definiu-se contra a reforma agrária com o argumento de que a
Constituição é “intocável”.
O final do embate já sabemos – o golpe de 31 de março de 1964 – e a
aprovação do Estatuto da Terra, ainda naquele mesmo ano, sob o governo de Castelo
Branco (o primeiro general-presidente do regime militar), com o voto de
parlamentares do PTB e do PSD, após o 1º expurgo sofrido pelo Congresso. Ainda
que o Estatuto previsse o pagamento das desapropriações com títulos da dívida
pública, ele era muito mais moderado do que a proposta do moderadíssimo PSD,
privilegiando as grandes empresas agrícolas, e não o redistributivismo no campo. A
UDN - que só parecia saber ser “do contra” em quase tudo - se no governo Jango era
contrária às propostas de reformas, já no governo Castelo Branco, a despeito do
golpe que apoiara meses antes, colocou-se contrária à emenda constitucional da
reforma agrária que, aliás, estava longe, muito longe, daquela aspirada por boa parte
da sociedade anteriormente. Pode-se afirmar que o espaço geográfico brasileiro, em
cuja zona rural, é notória a histórica presença do latifúndio, poderia ter sido
modificado, até de forma substancial, dando lugar às propriedades menores
familiares, mas com potencial para abastecer o mercado interno em expansão e,
quem sabe, diminuído um pouco a velocidade da urbanização e das migrações inter-
91
regionais principalmente, do campo para a cidade, em especial do Nordeste para o
Sudeste. O triste final do governo Jango sepultou também a possibilidade de o Brasil
constituir geograficamente um espaço com paisagens marcadas por um campo
caracterizado por uma estrutura fundiária menos injusta e cidades com crescimento e
expansão menos caóticos, ou seja, enterrava-se a possibilidade de uma geografia que
pudesse refletir uma sociedade mais democratizada e menos desigual.
Tratar com certo descaso e negativismo o governo de João Goulart seria um
juízo precipitado e injusto. Voltando-se à questão levantada anteriormente sobre a
importância histórica do período janguista para o nosso país, há também de se prestar
atenção às outras esferas da sociedade, além da política: como a esfera cultural
(música, teatro e cinema). O Estado Novo varguista, pelo espectro da direita, já
iniciara a busca pela modernidade do Brasil sem perder a sua identidade cultural.
Esta almejada “brasilidade” no campo cultural também foi abraçada pelas esquerdas,
a partir da década de 1950, na tônica do “nacional- popular”. Exemplos disso foram a
Bossa Nova engajada, o Cinema Novo e a proposta já existente do Teatro de Arena.
Infelizmente não serão aprofundados os aspectos culturais à época do presidente
Jango, mas salienta-se que a efervescência no campo da cultura e das artes era uma
realidade concomitante ao cenário político.
O cinema, por exemplo, vivia o dilema de como se comunicar com as massas
populares e se relacionar com as elites. De um lado teve-se o filme O Pagador de
Promessas, de Anselmo Duarte, que ganhou o prêmio máximo no Festival de
Cannes, em 1962, que não “chocava” as plateias, já que ali a violência era
“simbólica”, em que o padre impedia o personagem principal – Zé do Burro – de
entrar na igreja com a sua cruz para agradecer ao salvamento de seu animal de
trabalho e estimação; de outro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha,
em 1964, que já trazia uma proposta de “chocar” o público (dentro da chamada
“estética da fome”), mostrando a dura realidade do Nordeste, da pobreza e miséria
nas zonas rurais e, em outros filmes, a realidade das favelas cariocas46
. Percebe-se,
neste último caso, a busca do Cinema Novo em retratar as mudanças que vinham
46 Id., Ibid., p. 25-26.
92
ocorrendo no espaço geográfico, nas paisagens e no território brasileiro – tratando de
temas como a realidade do Nordeste, ou a expansão crescente das periferias nas
bordas das maiores e principais cidades do país.
Voltando-se à política, se retrocedermos na linha do tempo, dez anos antes do
golpe militar, João Goulart havia sido ministro do Trabalho no segundo governo de
Getúlio Vargas (1951-1954). Getúlio já vinha sendo alvo constante das oposições,
representadas principalmente pela UDN, que nunca abrira mão da possibilidade de
uma ação golpista. Em 1953-54, o então ministro João Goulart mudou as relações
entre o Estado e os sindicatos, procurando mediar os conflitos entre capital e
trabalho. O acesso pleno de representantes dos sindicatos ao Ministério, somado ao
substantivo aumento dado ao salário mínimo (de 100%) pouco tempo após a “greve
dos 300 mil”, em 1953, fez com que Jango, em apenas seis meses que permaneceria
no Ministério, fosse visto como um dos maiores inimigos das direitas (atrás somente
do próprio Getúlio) e como um homem identificado como amigo dos comunistas
devido às suas intenções, de acordo com seus adversários, de transformar o Brasil
numa “República sindicalista”, assemelhando-se a algo feito pelo presidente Perón
na Argentina. Em fevereiro de 1954, João Goulart foi demitido do Ministério do
Trabalho após o já citado “Memorial dos Coronéis”, que contava com 82 signatários,
com o argumento que o aumento dado aos operários se distanciava da remuneração
dos militares, especialmente a dos soldados e das baixas patentes podendo levar a
uma subversão nas Forças Armadas. A direita se manifestava com os interesses
contrariados dos altos escalões militares.
Após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, João Goulart, mesmo já
afastado do governo, ainda contava com um respeitável capital político. Foi um dos
que receberam os originais da “Carta-Testamento” de Getúlio e concebeu a partir do
legado do falecido líder um projeto trabalhista e nacionalista que, apesar de genérico,
trazia pontos importantíssimos47
: defesa dos interesses da economia nacional;
melhoria do padrão de vida dos trabalhadores com ampliação da cidadania dos
mesmos; e a reforma agrária. Junto a esse projeto, o PTB foi ganhando cada vez mais
47 Id., Ibid., p. 29.
93
espaço nas eleições legislativas para o Congresso ocorridas no período republicano
de 1946 a 1964. O PSD, nascido também à sombra do getulismo procurou assumir
seu papel como fiador da ordem republicana, iniciada em 1946. Nasce a
“dobradinha” PSD - PTB que elegerá em 1955, Juscelino Kubitschek (PSD) para
presidente; e João Goulart (PTB) para vice-presidente.
Buscava-se uma maior estabilidade política que, mesmo assim, passaria por
tensões nos episódios de 1955; depois seguiu-se uma relativa tranquilidade nos anos
JK; a “dobradinha” sofreria um revés com a vitória de Jânio Quadros no pleito
presidencial de 1960, um político vindo de fora das grandes máquinas partidárias da
época; e, passados os episódios da renúncia de Jânio e a conturbada posse de João
Goulart, em 1961, a dobradinha viria a erodir de vez, em 1964, com a
“esquerdização” crescente do PTB e a articulação golpista das direitas, que minaria o
peso conciliador e moderado do PSD.
A fase parlamentarista de seu governo já traz uma indagação. João Goulart foi
empossado através de um golpe de Estado civil para evitar um golpe militar, em
nome da conciliação política. Os setores mais à esquerda se referiram à manobra
parlamentarista como um “golpe branco”48
. Da forma como foi implantado, na base
do casuísmo e da improvisação, o novo sistema prontamente seria sabotado, tanto
pela direita como à esquerda, a começar pelo próprio presidente. Jango foi
solapando o sistema parlamentarista: não se esforçou na indicação de San Tiago
Dantas, do PTB para chefiar o novo gabinete de ministros, após a saída do antigo,
chefiado por Tancredo Neves, para a disputa das eleições para o Congresso, em
1962. E depois, com gabinetes propositadamente fracos – o de Auro de Moura
Andrade, o de Brochado da Rocha e Hermes Lima – o parlamentarismo entrava
numa rota de liquidação. Em 6 de janeiro de 1963, o plebiscito (que fora antecipado)
realizado apontou uma vitória arrasadora do sistema presidencialista. Jango, com
poderes presidenciais plenos, iniciava a 2º fase de seu governo tendo, entre outros
desafios, o de enfrentar a crise econômica e alavancar um programa de cunho
reformista.
48 Id., Ibid., p. 35.
94
Com a volta do presidencialismo, a pressão da esquerda não-parlamentar
cresceria, organizada na Frente de Mobilização Popular (FMP), pela aprovação das
reformas de base, entre elas a agrária. Lançada por Brizola em 1963, a FMP buscava
por uma pressão popular ao Congresso e não por uma revolução sangrenta. O
Partido Comunista Brasileiro (PCB) era mais moderado ainda, apostando no
gradualismo das reformas. Talvez a ala esquerda mais radical, que poderia prever até
o uso da guerrilha, seriam as Ligas Camponesas, cujo principal líder era Francisco
Julião, deputado pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). Julião, no discurso de
encerramento do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores do Campo,
ocorrido em Belo Horizonte (novembro de 1961), cunhou a famosa palavra de ordem
que seria utilizada pelas direitas para ilustrar o radicalismo das esquerdas: “A
reforma agrária será feita na lei ou na marra, com flores ou com sangue”.49
Em 1963, o governo Jango lutava na frente político-parlamentar pela
aprovação das reformas, contra um Congresso essencialmente conservador. No
campo econômico, no combate à inflação e pela retomada do crescimento. Perdeu
ambas as lutas.
No campo econômico, o ilustre economista Celso Furtado elaborou o Plano
Trienal, pensado em dois tempos:50
o primeiro seria o controle da inflação e das
finanças públicas numa receita ortodoxa, até em sintonia com o FMI (Fundo
Monetário Internacional), com restrição salarial, restrição ao crédito e controle das
despesas públicas, embora Celso Furtado fosse ligado ao keynesianismo
desenvolvimentista. Com as reformas estruturais realizadas: administrativa, fiscal,
bancária e agrária - viria o segundo tempo do Plano Trienal com a retomada do
crescimento e do desenvolvimento a passos sólidos.
Contudo, não se concretizou um pacto social pelo Plano. Os sindicatos, em
especial a CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), se colocaram contra o Plano
desde o início. O empresariado, através de suas associações e representações
49 Id., Ibid., p. 37, 38 e 39.
50 Id., Ibid., p. 39.
95
comerciais, não gostou da iniciativa governamental de controle de preços, algo visto
como “socializante” demais. Os industriais deram algum apoio de início, mas as
reivindicações salariais foram crescendo gerando inquietações nas associações
patronais. De acordo com SKIDMORE, 1971, pag. 359, in: FIGUEIREDO, 1993,
pag. 106): “embora a maioria dos brasileiros quisesse evitar a hiperinflação,
nenhum grupo – empresários, trabalhadores, funcionários públicos, militares –
queria começar a estabilização cortando suas próprias demandas”. Resultado: o
governo cedeu às pressões com a liberação do crédito e aumento de salários. O Plano
Trienal era abandonado definitivamente.
A crise militar e política teve um episódio com a rebelião dos sargentos
decorrente da negativa do STF (Supremo Tribunal Federal) em dar a posse aos
militares eleitos para deputados e vereadores nas eleições de 1962 (sobretudo os da
Força Aérea e da Marinha). Os rebelados tomaram conta das ruas e prédios públicos
de Brasília. O movimento foi controlado e os rebeldes presos, porém trouxe à tona
uma situação de insubordinação militar causando desconforto nos altos escalões das
Forças Armadas que desconfiavam das posições muito conciliatórias de Jango e o
viam como um caudilho golpista, que pretendia uma “República sindicalista”,
conforme apontou o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em entrevista ao Los
Angeles Times, em outubro de 1963, insinuando uma eventual ação golpista de Jango
e a influência brizolista nos setores subalternos das Forças Armadas, sugerindo uma
intervenção norte-americana no Brasil para “salvar” a democracia brasileira. Para
agravar mais a situação, João Goulart, ainda que hesitante51
, protocolou um pedido
de Estado de Sítio ao Congresso para possibilitar a prisão do governador Lacerda a
pedido de seus ministros militares. Contudo, a medida foi mal recebida pelo
Congresso. As direitas viam nisso a repetição dos episódios de 1937, que
implantaram o Estado Novo, e interpretaram como se fosse um “autogolpe”. As
esquerdas reagiram mal também, porque viam em Jango alguém que poderia se
afastar dos grupos reformistas e esquerdistas mais radicais através de tal medida
emergencial.
51 Id., Ibid., p. 42.
96
VILLA(2014), em sua obra destacou negativamente a tentativa de decretação do
Estado de Sítio por parte de Jango. Para o autor, apesar da nota dos ministros
militares de Goulart repudiando as declarações de Lacerda, os planos do presidente
eram, através do Estado de Sítio, em aproveitar a oportunidade para intervir em
alguns estados, substituir governadores, prender opositores e impor ao Congresso a
mudança constitucional que viabilizaria a sua reeleição. Em 4 de outubro, enviou o
pedido ao Congresso. Para Marco Antônio Villa, era a ocasião ideal para se desviar o
foco das greves e da escalada da inflação. Jango pretendia substituir os governadores
de São Paulo (Adhemar de Barros), da Guanabara (Carlos Lacerda) e de Pernambuco
(Miguel Arraes), decretando a intervenção daqueles estados. Assim Goulart se
mostraria “isento” tanto à esquerda como à direita. Seriam de novo os episódios de
1937 se repetindo? Em várias reuniões o Estado de Sítio teria sido exposto como um
primeiro passo rumo a um golpe de Estado, agora substituindo a linguagem fascista
pela esquerdista. De qualquer forma - sendo verossímil, ou não, tal versão do pedido
do Estado de Sítio - o fato é que, assim como Napolitano também havia colocado,
houve reações contrárias dos dois lados: pela esquerda - a União Nacional dos
Estudantes (a UNE), diversas organizações sindicais, os comunistas, a maioria dos
deputados federais do PTB e o governador Arraes; pela direita - a UDN e vários
outros governadores, principalmente Lacerda e Ademar. 52
Uma esquerda tida com revolucionária e agitadora, cada vez mais mobilizada.
Um Congresso conservador e as direitas militares e civis se mobilizando. Um
presidente se equilibrando num tênue fio pressionado pelos dois lados. Era o início
de 1964 no Brasil.
Revisando: no poder desde setembro de 1961, Jango propunha reformas
sociais, econômicas e políticas, que poderíamos aglutinar genericamente em um
conjunto que ficou conhecido como as “reformas de base”. De base porque eram
necessárias, àquele tempo, realizar reformas estruturais que seriam indispensáveis e
que dariam o pré-requisito necessário para que o Brasil encontrasse um caminho
firme e sólido rumo ao desenvolvimento, conciliando-se com a ampliação do
conceito de democracia e cidadania para a nação - saindo apenas da retórica -,
buscando-se um país menos desigual e mais democrático, sobretudo para as camadas
52 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 39 e 41.
97
populares. Mas Jango enfrentaria graves crises políticas, que remontam desde a sua
conturbada posse, já que os setores da direita conservadora enxergavam nas suas
propostas, um populismo em sua pior acepção, que prometia mais à população do
que realmente poderia dar. Além disso, Jango era visto como um administrador
incompetente, um político irresponsável, aliado dos comunistas e conivente com a
quebra da hierarquia que estaria “corroendo” as Forças Armadas ao longo daquele
tempo. O que muitos autores chamaram de “radicalização” se manifestava tanto na
direita reacionária, contrária às medidas que, na verdade, poderiam ampliar a
participação das camadas populares na cena democrática nacional e reduzir
privilégios de setores da elite; tanto na esquerda, em que principalmente seus setores
mais combativos, também desconfiavam das intenções de Jango.
O governo de João Goulart trilhava um caminho cada vez mais incerto e
imprevisível. Polarizações se cristalizavam. O período Jango foi marcado por uma
elevada politização: tanto nas cidades (casos das fábricas e indústrias, com os
sindicatos e outros movimentos dos trabalhadores buscando maior participação
política); e, no meio rural, com as Ligas Camponesas e a questão da concentração
fundiária que trazia empecilhos ao desenvolvimento do país. Nos quartéis, os
militares foram se dividindo entre os adeptos da legalidade; e aqueles que iam
desconfiando cada vez mais de Jango, dentro de uma visão anticomunista e também
de uma eventual ameaça à quebra da hierarquia e da disciplina militares. Um
programa amplo de reformas, as Reformas de Base: agrária, tributária, eleitoral e
universitária, estavam no centro da discussão política, entre os diversos atores
envolvidos, defendidas pelo presidente, sobretudo, no grande comício de 13 de
março de 1964, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que contou grande
mobilização popular fazendo as esquerdas acreditarem em um governo nacionalista e
democrático.
Ao mesmo tempo, os conservadores, sob o signo de um anti-comunismo
visceral decorrente da Guerra Fria, da religião cristã, da moral, da família e dos bons
costumes, começaram a articular um movimento golpista com a participação dos
governadores da Guanabara - Carlos Lacerda, da UDN; o de Minas Gerais,
Magalhães Pinto – também da UDN; e o de São Paulo - Adhemar de Barros, contra o
governo federal. A "Marcha pela Família com Deus pela Liberdade", realizada em
98
São Paulo, seis dias depois, no dia 19 de março, com cerca de 500mil pessoas, foi a
principal resposta conservadora ao comício da Central do Brasil. Finalmente, em 31
de março viria o golpe que depôs o presidente João Goulart, dando fim a um período
democrático, que durou menos de 20 anos, e que traria novos protagonistas ao
cenário do poder no Brasil. Jango não conseguiria evitar o que muitos chamariam de
uma radicalização militar para a direita, que enxergava seu governo como
demagógico e populista. Contribuiria para isso, de acordo com CAMARGO in:
CAMARGO & GÓES (1984), o fato dos aliados de Goulart terem erodido, aos
poucos, a bases de apoio militar de centro, construídas pacientemente por JK que,
durante seu governo (1956-1960), havia atraído com habilidade alguns líderes
militares de alta patente que haviam participado do Manifesto dos Coronéis e das
campanhas do Clube Militar contra Vargas e os nacionalistas, refazendo-se assim
alianças e pacificando o Exército. A perda das bases de apoio militar a Jango
desfizeram-se de vez com a Revolta dos Marinheiros, também em março de 1964,
vista como uma subversão da hierarquia pela alta oficialidade de então.
Imagem da grande concentração de pessoas para o comício da Central do Brasil, realizado em
13/03/1964.
Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/comicio-central-do-brasil?context=latest
99
Manchete do jornal Última Hora, de 14/03/1964, sobre o comício realizado na Central do
Brasil, no Rio de Janeiro, no dia anterior, que contara com a presença do presidente João Goulart,
entre outros.
Fonte: https://blogdotarso.files.wordpress.com/2015/03/ultima-hora-jango.jpg
100
A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, São Paulo, 19/03/1964
Fonte: https://historiativanet.files.wordpress.com/2011/11/marcha-da-familia.jpg
Uma outra imagem da mesma marcha de 19/03/1964
http://operamundi.uol.com.br/media/noticias/Marcha+da+familia+2.jpg
101
Assim, encaminhava-se uma situação que desembocaria no golpe militar de 31
de março de 1964. Nesta época o Exército, ao contrário de 1955, era uma corporação
preparada para tomar o poder, de acordo com a referida autora, devido à existência
da ESG (Escola Superior de Guerra) além da aproximação de civis e militares se
preparando para funções públicas e políticas, função esta realçada pelo IPES
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) cristalizando um projeto baseado em
"segurança-desenvolvimento" de orientação anti-populista.
Em março de 1964, o clima de agitação e tensão políticas era nítido. A
identificação dos dois lados em confronto estava mais do que explícita. Muitos
autores utilizaram o termo “radicalização” - em relação aos grupos ou aos atores
(políticos, econômicos e sociais) envolvidos - para descrever e explicar tal processo.
Com certeza, seguindo-se por CHIAVENATO (2006), havia uma polarização: de um
lado, o governo, apoiado por nacionalistas e pelas esquerdas, esperançoso na força do
povo e confiante na capacidade de mobilização dos sindicatos; de outro, as elites
econômicas e a direita política, juntas, patrocinadas pelo capital estrangeiro. No
meio, estava a classe média: os seus setores mais politizados alinhavam-se com a
plataforma reformista: os mais conservadores, temerosos da “comunização” do país,
aceitavam o discurso da Igreja e a propaganda direitista. Os militares seriam o “fiel
da balança” nesta crise.
O presidente João Goulart estava isolado politicamente, mas ainda dispunha de
popularidade. Após os insucessos na frente parlamentar na luta pela implementação
das reformas e do fracasso no pedido de decretação do Estado de Sítio, Jango não
tinha muitas opções a não ser o de se aproximar da “política das ruas”, o que foi
recebido por entusiasmo pelos setores esquerdistas. O maior exemplo deste
movimento de Jango foram os comícios pelas reformas, realizadas em 13 de março,
na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Apesar de não ser mais efetivamente a
capital federal, a metrópole carioca era ainda um centro vital na política brasileira.
Naquele comício, subiram ao palanque o próprio João Goulart, além de Leonel
Brizola e Miguel Arraes. Foi um extraordinário sucesso popular: o presidente assinou
os projetos da Reforma Agrária e da nacionalização do restante das refinarias
estrangeiras.
102
A reforma agrária que Jango propunha considerava passível de expropriação as
propriedades rurais improdutivas de mais de 500 hectares localizadas a até 10
quilômetros das margens das rodovias e ferrovias. E também propriedades situadas
num raio de 10 quilômetros das represas federais. Não havia dúvidas quanto ao
projeto. A intenção de Jango era viabilizar a reforma agrária a partir das terras mais
valorizadas, próximas aos principais centros de consumo, para facilitar o escoamento
da produção de alimentos. Ou seja, ela começaria a ser realizada basicamente nas
regiões Sudeste e Nordeste, e não pelos estados amazônicos da região Norte.
Durante o comício, Leonel Brizola, ao tomar a palavra sugeriu a convocação de
uma Assembléia Nacional Constituinte, para compor um Congresso formado por
“camponeses, operários, sargentos e oficiais nacionalistas.”
Outras reformas que foram lançadas no comício e que causariam mais reações
às elites eram: a Eleitoral, com a extensão do direito de voto aos analfabetos e aos
soldados, incomodando a alta hierarquia militar; e a da Constituição, que daria
poderes ao presidente para legislar e ainda estabelecia o plebiscito popular para que,
se necessário, o povo referendasse as propostas que o Congresso bloqueasse.
O comício provocou reações imediatas dos dois lados. As reformas propostas
foram encaminhadas por Jango ao Congresso em 15 de março. O presidente conhecia
a dimensão da terrível crise política e institucional que o Brasil atravessava. Ele
próprio disse ao jornalista Antônio Callado que “o máximo que me pode acontecer é
ser deposto. Não renunciarei nem me suicidarei”53
. A referência era com relação a
Jânio Quadros e a Getúlio Vargas. Todavia se Jango sabia do perigo que o seu
mandato corria, avaliou mal a sua capacidade de resistência. Contando que poderia
obter amplos poderes no Congresso, não acreditava que as oligarquias pudessem de
fato depô-lo do poder. Conforme CHIAVENATO (2006): “(...) nada me acontecerá
porque meu dispositivo militar é excelente. Assis Brasil me garantiu que, ao meu
comando, o Exército me seguirá (...) governarei somente com o apoio do povo”54
.
53
In: CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p. 27.
54 Id., Ibid., p. 27.
103
Assis Brasil era o chefe do Gabinete Militar de Jango. Ambos sabiam os riscos que o
governo sofria, mas aparentemente se enganaram. Ou superestimaram o “dispositivo
militar”, ou subavaliaram a conspiração golpista.
Naquele “idos para os fins” de março, somados aos ataques veiculados pela
imprensa e a pressão de grupos políticos conservadores, os militares se uniram pela
“defesa da legalidade”. Quase uma centena de generais reformados assinaram um
manifesto que expressava que os militares tinham o dever de defender o presidente
“dentro da lei”, ou seja, as Forças Armadas já não davam garantias de que ainda se
sentiam obrigadas a defender e preservar o governo. Tanto que o general Castelo
Branco, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, suposto homem de confiança do
governo, fez circular um manifesto entre os oficiais, preparando o Exército para
cumprir o “papel histórico das Forças Armadas”.55
55 Id., Ibid., p. 29.
104
2.3 – O golpe de 1964
Capa do jornal O Globo, de 01/04/1964 sobre o episódio ocorrido no dia anterior. O jornal trata o golpe
com a queda de Goulart como sendo o reestabelecimento da democracia.
Fonte: https://capitalismoemdesencanto.files.wordpress.com/2014/03/o-globo-golpe-de-1964.jpg
Em 2014, completaram-se 50 anos do golpe, do movimento militar de 31 de
março. E, após meio século, não há um consenso único sobre este momento histórico
do Brasil. Foram muitas as análises, explicações, interpretações, versões,
contraversões, etc,... – procurando-se esclarecer esse episódio da história nacional. A
dificuldade está em se estabelecer qual foi o principal (ou os principais) motivo(s)
do golpe. O fator (ou os fatores), que tiveram maior peso ou maior relevância, que
podem ter sido primordiais e fundamentais para a consumação do movimento de
1964. Aquilo que, se talvez não tivesse ocorrido, daria ao Brasil uma trajetória
histórica diferente.
Até em termos de nomenclatura, há uma importante questão, aqui retomada,
quanto ao se referir ao período de 1964 a 1985 da história brasileira. Foi uma
ditadura? Este termo estaria realmente correto? Segundo a professora Dra. Maria
Aparecida de Aquino, durante aula ministrada, em fevereiro de 2013, no curso de pós
105
Graduação de História:“O Estado Autoritário Brasileiro Pós-64: A Imprensa e os
Instrumentais de Repressão”, o termo ditadura é diferente de Estado Autoritário. O
caso brasileiro de 1964 não se aplicaria ao conceito tradicional de ditadura, pois não
ocorreu a ausência de partidos políticos. Na verdade, houve dois deles (embora seja
possível contra argumentar que estes dois partidos foram, por imposição, criados
artificialmente de “cima para baixo”): a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o
MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Além disso, ao contrário do Estado
Novo (1937-1945), em que Getúlio Vargas poderia ser qualificado como ditador
(pois foi o único mandatário do Brasil naquele período de oito anos), no regime de
1964, não ocorreu uma ditadura, no sentido de que só teve um mandatário, ou que o
Legislativo estivesse permanentemente fechado, ou ainda em um partido único ou na
ausência de partidos. O que ocorreu no Brasil, a partir daquele ano, foi um período
marcado por um regime que restringiu e mutilou severamente: as liberdades; direitos
políticos; princípios federativos (com a exacerbação da esfera federal, em detrimento
das estaduais e das municipais; e as relações entre os três Poderes na federal
ressaltou em enorme peso ao Executivo), mas que, concomitantemente, teve os
seguintes fatos:
a) A passagem de cinco generais-presidentes, ao longo de praticamente 21
anos (no Chile, o general Augusto Pinochet permaneceu no poder seguidamente por
17 anos, de 1973 a 1990; no Paraguai, o general Alfredo Strossner, governou de 1954
até 1989 – 35 anos no total);
b) Dois partidos políticos- um governista (a ARENA); e um outro que seria
uma frente oposicionista “consentida”, que não poderia contestar frontalmente o
regime, o MDB, a partir do Ato Institucional nº 2, de 1965. Por mais que seja,
verdadeiramente, e sinceramente, criticável esta estrutura bipartidária e artificial, que
destruiu a dinâmica partidária do período democrático anterior (1946-1964), a
simples existência formal de um partido oposicionista, ainda que severamente
“engessado” já nos fornece alguma peculiaridade ao caso do regime militar brasileiro
dos anos 1960/70/80. Porque, em outros casos na história mundial, as ditaduras
levaram a um sistema sem partidos; ou a um partido único.
c) Por fim, o Legislativo, o Congresso Nacional, esteve funcionando durante
a maior parte deste período. Claro que o Congresso foi expurgado com a cassação de
106
mandatos e de direitos políticos. Também é inegável a descomunal preponderância
do Poder Executivo, restringindo grandemente o papel do Legislativo federal, que
muitas vezes serviu para “ratificar” decisões pré-estabelecidas pelo Executivo
federal. BARROS (1998), apontou que a existência de um Congresso, do Judiciário e
de eleições periódicas, foi uma “farsa” institucional mantida com vistas à
manutenção de uma imagem interna e externa do país, visando preservar a própria
instituição militar, que segundo alguns ufanistas do período, tinha a missão de
desempenhar o papel de “Poder Moderador”, numa alusão à prerrogativa restrita e
característica do monarca brasileiro durante o Período Imperial (1822-1889). Com
todas estas verdades, porém, o fato é que em outros regimes que ocorreram ao longo
da História, nem isso teve. O poder ficou centrado numa só pessoa, sem quaisquer
outras instituições, dando uma estranha peculiaridade ao caso brasileiro.
Assim sendo, Maria Aparecida de Aquino prefere utilizar o termo “Estado
Autoritário”, que iria mais de encontro ao que ocorreu no Brasil, e não o termo
“Ditadura Militar”. Mas as Forças Armadas “ditaram” as regras durante duas décadas
de nossa História. Então, se poderia falar numa ditadura, não de uma pessoa única,
mas na ditadura de uma instituição única, que foram os militares em seu conjunto?
Aliás, de acordo com Carlos Fico (2004) não há um consenso claramente definido se
os militares deveriam ser estudados separadamente como uma instituição autônoma,
isolada e marcada pela unidade; ou se os mesmos, inseridos na sociedade,
expressariam as contradições e as clivagens deste mesmo tecido social, refletindo
também a hierarquia social. O termo mais adequado seria Regime Militar ou Estado
Autoritário? Não pretendo aqui dar a solução definitiva, mas acredito que tais
questões, ainda que sejam de nomenclatura, devem ser refletidas sim, num contexto
de meio-século do que ocorreu em 1964. Para este trabalho, a preferência foi pelos
termos: regime militar ou; período/Estado autoritário, para designar essa fase
estendida entre 1964 a 1985.
Ainda de acordo com FICO(2004), os episódios que marcaram o golpe de
1964 são bastante conhecidos e não se caracterizaram por combates cruentos. O que
o autor destaca é o fato de que o golpe iniciou-se contra a vontade de seus
conspiradores. Neste rol estavam: oficiais-generais, oficiais superiores,
governadores, parlamentares e empresários. Já vinha de algum tempo a campanha de
107
desestabilização do governo de João Goulart, através de propaganda política,
sobretudo as do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto
Brasileiro de Ação Democrática), que viam o governo Jango como incompetente e
esquerdista.
Porém, o golpe dependia de uma iniciativa propriamente militar, mas
algumas evidências apontariam uma certa relutância por parte dos oficiais-generais
mais importantes (teria sido o caso, por exemplo, do general Castelo Branco), que
esperavam um erro de Jango, marcadamente ilegal, para convencer os comandantes a
marcharem sobre o Rio de Janeiro e Brasília. Claro, que haveriam os oficiais mais
arrebatados, com falas mais exaltadas a favor de uma “revolução”, além de políticos
que acorriam aos quartéis para deixar os militares a par da situação “gravíssima” do
país.
O golpe estaria marcado para alguns dias depois, mas, no dia 31 de março
de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Divisão Militar,
marchou com suas tropas de Minas Gerais, com o apoio do governador Magalhães
Pinto, partindo de Juiz de Fora (MG) em direção à cidade do Rio de Janeiro, tendo
rapidamente a adesão dos principais comandantes do país já no dia seguinte.
Contudo, num primeiro momento, o general Carlos Luís Guedes, comandante da
Infantaria Divisionária, em Belo Horizonte, preferiria deflagrar uma sublevação em
Minas Gerais. Percebe-se que o movimento golpista teve início efetivo em um dos
principais estados da federação brasileira: Minas Gerais. Além disso, outros dos dois
estados mais importantes do Brasil vinham se articulando contra o governo federal:
São Paulo, de Adhemar de Barros; e a Guanabara, de Carlos Lacerda. Neste último,
se localizava a cidade do Rio de Janeiro, que deixara de ser a capital do país quatro
anos antes. Então, o principal núcleo político-civil do golpe, deu-se em estados que
estavam entre os mais importantes do país, no que concerne ao seu peso econômico,
político e demográfico. Aparentemente, não houve nenhuma resistência
marcadamente significativa, por parte de algum outro governador, ou em outro
estado brasileiro.
À medida que Mourão marchava com suas tropas, os principais
conspiradores fizeram como movimento principal, uma série de telefonemas e
acertos, para impedir a ordem de prisão do general Castelo Branco, chefe do Estado-
108
Maior do Ministério da Guerra, emitida pelo próprio Jango. Apesar do predomínio de
uma postura discreta, até o golpe, o general Castelo Branco despontava, tardiamente,
como líder do movimento, em decorrência da aglutinação dos conspiradores em
torno dele, já que era necessária uma figura que retratasse uma liderança ao
movimento (tal projeção se deu também face à uma circular reservada do general,
criticando o governo Jango).
Ante a ofensiva de Mourão, Goulart caiu sem resistência, não acionando o seu
“dispositivo militar”, que supunha-se resistiria a iniciativas golpistas da direita.
Conforme FICO (2004), Jango teria tomado com facilidade o Palácio Guanabara,
onde a defesa do governador Carlos Lacerda era precária. Poderia ter dispersado as
tropas de Mourão, através do uso de poucos aviões bombardeiros. Mas o presidente
deposto, provavelmente, optou em evitar uma guerra civil ou avaliou que era inútil
resistir.
Aqui é especulado, especialmente numa eventual “guerra civil”, que a operação
“Brother-Sam” deveria entrar em ação - oferecendo apoio material, logístico e
militar aos conspiradores (CASALECHI, 2002) - sendo difícil prever as
consequências de uma ação mais direta dos Estados Unidos, apoiando os golpistas
num cenário de um conflito mais generalizado. Talvez o receio de um grande
derramamento de sangue, a falta de um apoio político e militar mais consistente a
Jango, ou um eventual conhecimento por parte do presidente sobre a orquestração da
operação “Brother-Sam”, levaram Jango a capitular tão rápido. Mas aqui isto são
apenas conjecturas. Muito se falou e já se citou sobre esta operação dos Estados
Unidos e sua participação no golpe de 1964, o que é perfeitamente possível sim,
devido ao contexto da ordem bipolar da Guerra Fria e ao fato da Revolução Cubana,
de 1959, ainda estar fresca à memória daquele tempo. Assim não há como imaginar
que os Estados Unidos se fizessem de “cegos e surdos” ao que acontecia no Brasil do
governo Jango, por conta da América Latina ser uma área de influência direta
estadunidense, face aos múltiplos interesses em jogo do período da Guerra Fria. Para
não ficar só nas palavras deste trabalho, cita-se, de novo, CASALECHI (2002), que
na sua obra, aponta que antes mesmo que Goulart deixasse o Brasil e Castelo Branco
tomasse posse, como presidente, a 11 de abril de 1964, o presidente norte-americano,
Lyndon Johnson, saudava o novo governo brasileiro. Para o mesmo autor, a presença
109
norte-americana na conspiração golpista era efetiva, assim como verdadeiramente a
existência da operação “Brother Sam”. Mais ainda, contrariando as previsões da
CIA, que acompanhava atenciosamente o governo Jango, não houve a temida “guerra
civil”, para a alegria do embaixador Lincoln Gordon:
“Vocês fizeram uma coisa formidável! Essa revolução sem sangue e tão
rápida! E com isso pouparam uma situação que seria profundamente desagradável
[sic] e de consequências imprevisíveis no futuro de nossas relações; vocês evitaram
que tivéssemos de intervir no conflito.”56
Na madrugada de 2 de abril, numa sessão bastante tumultuada, o presidente do
Senado, o senador paulista do PSD, Auro de Moura Andrade, presidia o Congresso
Nacional e formalizaria a declaração de vacância do cargo de presidente da
República a partir de uma comunicação enviada pelo chefe da Casa Civil de Goulart,
Darcy Ribeiro, que na verdade tratava exatamente do oposto: João Goulart ainda
estava em território nacional, tendo se dirigido ao Rio Grande do Sul, à frente de
tropas legalistas e ainda no exercício constitucional de suas funções. O deputado do
PTB da Guanabara, Sérgio Magalhães ainda tentou evitar a declaração de vacância.
Também o líder do PTB, Doutel de Andrade, no dia anterior, tentou convencer a
Câmara dos Deputados, para que Goulart tivesse tempo de reagir. Mas nada disso
aconteceu. As ações foram se precipitando de tal forma e Goulart seguiria para o
exílio no Uruguai. Reforça-se a sensação de que Jango aparentemente evitou um
confronto maior, saindo do país.
Aliás, alguns autores fizeram um julgamento severo do final do governo Jango:
BARROS (1998) utilizou - como já apontado antes no tópico anterior deste capítulo -
o termo “covardia institucional” ao citar rapidamente a postura de Jango com o
golpe. A isto, o autor somou também a desorganização das esquerdas, a falta de uma
verdadeira consciência democrática e a passividade da população que permitiram a
tragédia institucional. Gostar-se-ia aqui de acrescentar que a passividade da
população também foi decorrente da força, nada desprezível, de setores mais
conservadores da imprensa, em especial com relação às classes médias que vinham
perturbadas pela situação econômica e levadas pelo medo anticomunista. Além da
56 CASALECHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo. Contexto, 2002 (Repensando a
História), p.108.
110
atuação de organizações empresariais, que podem não ter sido decisivas sozinhas,
mas que deram sua contribuição nas articulações conservadoras ao incrementar uma
propaganda política e desestabilizadora do governo Jango, tendo importante apelo
nos estratos médios da sociedade através do IPES e do IBAD, identificados por
DREIFUSS (in: FICO, 2004, pag.35), como representantes dos interesses de um
“bloco multinacional e associado”, que não encontrava, à época, uma
correspondente liderança política.
No dia 2 de abril, uma junta militar denominada de "Comando Supremo da
Revolução", composta pelos ministros da Marinha, da Aeronáutica e o da Guerra
(que era o general Artur da Costa e Silva), assumiu o controle da nação brasileira
sendo a Presidência da República entregue a Ranieri Mazzili, presidente da Câmara
dos Deputados. O poder de fato, estava no Rio de Janeiro, ex-capital federal havia
quatro anos. Costa e Silva, a despeito de Mazilli, autonomeou-se, ainda no dia 1º,
comandante do “Exército Nacional”, assumindo a chefia do Comando Supremo da
Revolução. O Comando teria uma decisiva reunião com os governadores que
apoiaram o golpe, precisamente no dia 3 e, à tarde do mesmo dia, no Palácio
Guanabara, chegaram a um acordo pela escolha do general Castelo Branco. Costa e
Silva rejeitou a escolha, mas acabou convencido, sendo o ministro da Guerra de
Castelo Branco.
Vê-se já uma primeira clivagem dentro dos meios militares, que costuma ser
classificada, por diferentes autores, entre o grupo dos “castelistas” e o grupo da
“linha-dura”. Em 9 de abril, o Comando Supremo da Revolução, que de fato exercia
o controle do país baixou o Ato Institucional nº 1, redigido pelos advogados Carlos
Medeiros da Silva e Francisco Campos (o mesmo que elaborou a Constituição
ditatorial de 1937) onde o Executivo ganhava diversos poderes como o de cassar
mandatos e suspender direitos políticos por até dez anos sendo, em 10 de abril,
cassados uma centena de pessoas entre os quais: João Goulart, Leonel Brizola, Darcy
Ribeiro, Luís Carlos Prestes e outros. Várias outras pessoas foram presas, residências
invadidas, usou-se a tortura, os sindicatos sofreram intervenção, as Ligas
Camponesas nordestinas foram desorganizadas e a UNE foi colocada na
clandestinidade.
111
Sem maiores resistências, em 4 de abril, Jango seguiu para o exílio no Uruguai,
enquanto que os democratas e a esquerda ficaram perplexos e impotentes diante da
violência militar. Assim as classes privilegiadas empreenderam este esforço para
manterem-se no poder e instalava-se o regime militar no Brasil, que daria ênfase a
uma modernização conservadora e centralizadora, afastando-se das massas
populares, e priorizando um crescimento econômico pautando por um rígido controle
social, medidas ortodoxas para recompor as finanças e controlar a inflação com
maior exploração das classes trabalhadoras e estimulando a concentração do capital,
voltando- se ao capital externo e também aos latifúndios.
FICO (2004)57
, apresenta em seu trabalho: Além do Golpe: Versões e
Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, uma discussão acadêmica um pouco
mais abrangente sobre o golpe de 1964, segundo diferentes olhares e versões, teorias
e métodos, tanto na História como na Ciência Política.
Partindo da historiografia, o autor apontou que os estudos propriamente
históricos sobre o golpe de 1964 tardaram a aparecer. A dificuldade seria as
peculiaridades da “história do tempo presente” e as carências de fontes documentais.
Os primeiros a abordarem o tema foram os cientistas políticos. Exceção feita ao
historiador Thomas Skidmore que lançou a obra: Brasil: de Getúlio a Castelo (1966).
Em 1988, Skidmore, um “brasilianist” (estudioso norte-americano voltado aos
estudos referentes à temática brasileira), lançaria a obra The politics of military rule
in Brazil (1964-1985), em que o golpe de 31 de março foi superficialmente tratado,
mas Skidmore58
indica que a destituição de Goulart, apesar do forte apoio dos civis,
foi uma operação de caráter militar. Dando uma endossada na visão dos militares
como “benfeitores patriarcais”, Skidmore interpretou que somente a intervenção dos
altos oficiais poderia salvar o Brasil de uma guerra civil, face à relativa fraqueza dos
setores civis de oposição ao presidente.
Na contramão, menosprezando as narrativas e sequências históricas vêm os
jornalistas, sociólogos e cientistas políticos, os dois últimos com marcante tendência
57 FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Editora Record.
Rio de Janeiro/São Paulo, 2004, p. 14 a 67.
58 Id., Ibid., p. 29.
112
a se debruçar apenas sobre o tempo presente. Um outro fator relevante no campo
acadêmico foi o predomínio do marxismo, a partir de meados do século XX, que
serviria como um “posto avançado ideológico” para marcar posição contra o regime
militar, acirrando posições e produzindo deturpações maniqueístas e até
preconceituosas. Um pesquisador da temática militar na época poderia ser taxado de
reacionário, apenas se não fosse marxista.
Pouco tempo após o lançamento do livro de Skidmore, um outro
“brasilianist”, o cientista político Alfred Stepan, finalizava sua tese de doutoramento
na Universidade de Colúmbia, em 1969. Seu trabalho foi publicado no Brasil, em
1975. O título: Os militares na política: mudanças de padrões na vida brasileira. A
obra quase foi censurada pelo governo Geisel por conta da ação do ministro do
Exército, Sílvio Frota, que havia solicitado uma análise mais detalhada da mesma.
Para Stepan, “a instituição militar não é um fator autônomo, mas deve ser
pensada como um subsistema que reage a mudanças no conjunto do sistema
político”. Segundo ele, as razões imediatas do golpe decorreram da falta de
habilidade de Goulart em retomar o equilíbrio do sistema político.59
Para Stepan,
teria havido até 1964 um padrão “moderador” no que tange às relações entre
militares e civis. Mais especificamente, os militares entravam em cena para depor um
governo e transferi-lo para outro grupo de políticos civis, não permanecendo no
poder, pois os próprios militares teriam dúvidas quanto à sua capacidade de
governar.60
O que 1964 trouxe de novidade é que os militares alteraram tal “padrão
moderador”, pois teriam tido a percepção de que as instituições civis estavam
bastante falhas e também porque se sentiam ameaçados pela “sombra” da quebra da
hierarquia e da disciplina.61
De acordo com FICO (2004), o problema em Stepan é o próprio “padrão
moderador”, quanto à sua análise. Como confirmar cabalmente tal padrão, se já
haviam ocorrido interferências diretas dos militares antes, em outros momentos da
59 STEPAN, Alfred C. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro:
Artenova, 1975, p.140. In: FICO, Carlos. Op. cit. p. 30 e 31.
60 Idem, p.50. In: Id., Ibid., p. 31.
61 Id., Ibid., p. 31.
113
história brasileira. Outro ponto complicado seria o de se enxergar o “subsistema
militar” como uma “variável dependente” no conjunto do sistema político. Por fim, a
análise de Stepan não cobre satisfatoriamente a heterogeneidade política dos
militares: os “internacionalistas liberais” (os moderados); e os “nacionalistas
autoritários” (os duros).62
Mas o mérito de Stepan foi o de apontar a necessidade de
se estudar os militares, tanto em suas interações com a sociedade, bem como em suas
características de um grupo específico.63
Voltando-se para os intelectuais marxistas, a determinação da base econômica
sobre as estruturas jurídicas, políticas e ideológicas sempre foi o ponto fundamental
para suas análises. Então, os aspectos econômicos-estruturais levariam
inevitavelmente ao golpe. Análises marxistas mais generalizantes apontavam as
necessidades de rearranjo decorrentes da relação entre o capital internacional e o
nacional-associado. Este ponto de vista, também foi reforçado por economistas que
indicavam o esgotamento da etapa “fácil” de substituição de importações e a
necessidade de um novo tipo de inserção do Brasil no sistema capitalista mundial. O
marxismo teve o mérito de chamar a atenção, então, para as determinantes
econômicas. Isso entra em choque com uma visão tradicional de parte da
intelectualidade brasileira de que o golpe de 1964 corresponderia ao colapso de um
suposto padrão político, conhecido como “populismo”, alçado ao patamar de
conceito, embora nunca plenamente esclarecido. O populismo trazia um componente
altamente ambíguo combinando manipulação política e autonomização das massas
que demandaria, naquele momento histórico, por maior participação política, o que
levaria a soluções radicais como golpes militares.
A análise marxista mais conhecida sobre o golpe que depôs o presidente
Goulart, já citada neste trabalho, foi Combate nas Trevas, de Jacob Gorender64
, de
1987. O autor assinala que o golpe direitista foi contra-revolucionário preventivo.
62 Id., Ibid., p. 31.
63 Id., Ibid., p. 32.
64 Id., Ibid., p. 33,34 e 35.
114
Para ele, a burguesia e as elites conservadoras perceberam, em inícios de 1964, uma
situação pré-revolucionária, com as esquerdas tendo uma maior possibilidade de
vitória, num contexto marcado pelo ápice da luta de classes e das aspirações dos
trabalhadores brasileiros. Gorender interpretou as razões do golpe a partir: 1º) do
estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro, em que a crise econômica de
1962-1965 foi a primeira crise cíclica interna do sistema capitalista brasileiro e
demandava uma receita preceituada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), com
governos fortes e capazes de comprimir os salários e o padrão de vida dos
trabalhadores. Esta não era a receita prescrita pelas reformas de base fazendo com
que a burguesia industrial e os setores ligados ao capital estrangeiro formulassem a
alternativa da modernização conservadora, que seria abraçada pelos golpistas como
um todo; 2º) o caráter preventivo da ação golpista, pois para Gorender, havia reais
ameaças revolucionárias provindas da esquerda.
À luz da modernização conservadora, os militares, obviamente, com base na
evolução do pensamento geopolítico brasileiro, também tinham a sua interpretação e
pensavam um projeto de Brasil que ficou consonante ao das elites civis. Quanto ao
caráter revolucionário das esquerdas, isso é um ponto controverso e a maioria dos
autores não percebem a probabilidade de uma revolução. Claro que foi inegável a
mobilização das esquerdas, em especial no governo Jango, e as pressões que elas
conseguiram impor ao presidente, bem como a força de grupos como o das Ligas
Camponesas, ou os ligados ao nacionalismo trabalhista de Leonel Brizola, mas não
há consenso sobre a possibilidade da ocorrência de uma “revolução das esquerdas”
aqui no Brasil. De qualquer modo, mesmo não ocorrendo uma revolução à esquerda,
e caso o golpe direitista também não tivesse ocorrido, certamente teríamos um país
diferente, aí sim, talvez com a renda melhor distribuída, mais justiça social e um
espaço geográfico e paisagens com cidades menos caóticas e um meio rural mais
justo com uma estrutura fundiária muito mais equilibrada. Enfim, pensa-se aqui que
o medo; uma verdadeira “paranoia” e “histeria” direitista e conservadora, no
contexto da ordem mundial bipolar; a cooptação da classe média nesta ótica
anticomunista, por conta de amplos setores da imprensa; a falta de entendimento e
de diálogo, pelo menos entre alguns setores das elites no que tange à realização da
reforma agrária, ainda que não fosse a “dos sonhos”, mas a que fosse possível no
Congresso; e a superestimação da força das esquerdas - levaram ao fim, talvez
115
deprimente, do governo Jango. Se as esquerdas conjugassem tal força, teriam elas
capitulado tão facilmente diante do golpe? Eis a questão.
Já citado neste trabalho, o cientista político e também historiador uruguaio,
René Armand Dreifuss65
, apresentou sua tese de doutoramento na Universidade de
Glasgow, em 1980. Sua tese se transformaria no livro - 1964: a conquista do Estado.
Ação política, poder e golpe de classe – publicado no Brasil em 1981. Ele partiu do
pressuposto que o capital multinacional não encontrava uma correspondente
liderança política, apesar de seu crescimento ao longo do governo Juscelino,
principalmente. Então este grupo procurou organizar segmentos de pressão,
federações profissionais de classe, escritórios técnicos e ramificações burocrático-
empresariais para fazer frente à proeminente política “populista” procurando valer os
seus interesses. A análise de Dreifuss discorda significativamente da de Gorender
colocando mais ênfase, não na conquista do poder pela burguesia multinacional-
associada, mas sim pela substituição do esquema “populista” por outro mais
coercitivo com relação às classes populares. Dreifuss coloca uma fundamental
importância também no “complexo IPES/IBAD”, que teria apresentado um
protagonismo apontando o caminho do golpe para o chamado “bloco multinacional e
associado”, já que este não dispunha de um conteúdo ideológico-programático e não
contava com as teias do clientelismo e do apelo eleitoral-popular. Incapaz de se
impor à sociedade brasileira, o “bloco modernizante-conservador” (termo usado por
DREIFUSS, 1981 in: FICO, 2004, pág. 36) realizou uma campanha ideológica
cooptando, por exemplo, as classes médias em sua propaganda antigovernista. Só
esta trama ideológica não seria suficiente e esse bloco modernizante-conservador se
articulou a uma rede junto às Forças Armadas, tanto que alguns oficiais e civis
influentes pertenciam ao “complexo IPES/IBAD”. Também se realça a política
econômica de Castelo Branco, com um receituário recessivo e saneamento financeiro
que interessavam ao capital internacional. Este é o argumento-chave de Dreifuss, a
construção de uma rede conspiratória e golpista civil-militar, indicando que muitos
dos cargos do primeiro governo do regime militar, do presidente Castelo Branco,
foram ocupados por figuras importantes dos grandes empreendimentos industriais e
financeiros e dos interesses das multinacionais componentes do “bloco multinacional
65 Id., Ibid., p. 35,36 e 37.
116
e associado”. Dreifuss ressaltou a importância dos empresários, minimizando o
papel das Forças Armadas e da doutrinação da ESG (Escola Superior de Guerra)
fazendo uma análise marxista clássica de como um setor de classe se embrenhou na
luta política para fazer valer seus interesses e alçar o poder.
Daniel Aarão Reis Filho66
concorda com o pensamento de Dreifuss em relação
à conquista da hegemonia do capital internacional no bloco de poder. Para ele, o
golpe de 1964 só foi possível mediante uma heterogênea e ampla frente social e
política anti-Jango. Esta frente, ou aliança, reuniu banqueiros, empresários,
latifundiários, industriais, comerciantes, políticos, magistrados e classe média, tendo
condicionado uma unidade no interior das Forças Armadas adversas aos crescentes
movimentos dos trabalhadores no pós-1945. Mas Reis Filho chama a atenção para o
maior problema da análise de Dreifuss: a superestimação e a sobrevalorização
daquelas associações, predominantemente civis, no processo histórico.
Primeiramente a classe média não só era afetada passivamente por uma propaganda
ideológica anti-governista do “complexo IBES/IBAD”. Diversos setores das classes
médias temiam perder alguns privilégios caso as propostas de distribuição da renda
fossem levadas adiante, dentro das propostas reformistas. E, segundo, não há como
negar a importância de outros setores civis, como: o núcleo empresarial e industrial
na articulação do golpe; os políticos descompromissados com a ordem democrática e
sempre prontos para o golpismo (em especial, alguns da UDN) no caso de revés ou
de resultados desfavoráveis; e os interesses específicos do capital internacional.
No entanto, sublinha-se aqui, o golpe foi essencialmente militar, ou coloca-se
somente aqui, propositadamente, nesta ordem: militar-civil, ao invés de civil-militar.
O argumento é, pelo que parece, se não entrassem em cena os militares, mesmo com
toda esta oposição de setores civis ao governo Jango, pareceria extremamente difícil
a ocorrência de um golpe de Estado.
A necessidade de busca de apoio militar por parte dos setores anti-getulistas,
em 1954 e 1955. O veto dos ministros militares à posse de João Goulart, após a
renúncia de Jânio Quadros, em 1961. O risco de uma guerra civil, naquele ano,
advindo de uma ordem vinda do comando militar, no Rio de Janeiro, para
66 Id., Ibid., p. 37.
117
bombardear o palácio do governo gaúcho. Se retrocedermos no tempo, o fim do
Estado Novo, com a deposição de Vargas, em 1945, se deu através de um movimento
militar (os setores civis não depuseram Getúlio naquela ocasião). Os mesmos
militares também depuseram o presidente Washington Luís, em outubro de 1930,
marcando o final da República Velha e o início da era Vargas. Realmente parece
bastante complicado colocar um destaque exacerbado aos setores civis no golpe de
31 de março de 1964, pois se os militares não agiram sozinhos, eles tiveram, sem
dúvida, um diferencial importantíssimo para o desfecho do governo janguista. Com
certeza a ação golpista foi desencadeada por eles e também assumiram um
protagonismo incontestável pelos 21 anos seguintes. Lembremo-nos da primeira
movimentação do general Olympio Mourão Filho e das ações e articulações militares
para que o golpe (de início acontecido até de uma forma precipitada, a partir de
Minas Gerais) que foram sedimentando o estabelecimento de uma nova (e triste)
etapa da história brasileira.
Outro argumento é que mesmo na tensão ocorrida no seio das Forças Armadas,
após o afastamento de Costa e Silva, e o embate sucessório que se seguiu quando o
Brasil foi governado por uma Junta Militar, durante alguns meses de 1969, em
nenhum momento os militares cogitaram que o vice de Costa e Silva - o civil Pedro
Aleixo - assumisse a Presidência. Ainda que empresários e tecnocratas tivessem
acesso e estivessem presentes nas estruturas governamentais, é notória que a “última
palavra”, os ditames da Nação, estivessem nas mãos dos militares. Prova disso é a
quantidade de Atos Institucionais e outros instrumentos jurídicos de que o regime se
fez valer.
Marcos Napolitano67
salienta que o golpe não foi apenas uma rebelião dos
quartéis, com movimentação de tropas, cerco da sede do poder constitucional,
depoimentos raivosos de lideranças militares “carrancudas”, deposição forçada de
um presidente eleito, coerção das forças civis resistentes aos golpistas. Para o autor,
67
NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 43 a 67. Em sua obra - 1964: História do Regime Militar Brasileiro,
Napolitano usa o título “O Carnaval da Direitas: o Golpe Civil-Militar”, para abordar o tema do golpe de
31 de março, realçando, além obviamente do viés militar, o componente civil da conspiração, que
desembocaria no ocorrido em 31 de março daquele ano de 1964.
118
o golpe teve tudo isso e ainda mais: uma verdadeira teia e trama de engenharia
política.
A partir de outubro de 1963, cerca de seis meses antes do golpe, a crise política
virara em impasse institucional. Novos e velhos conspiradores foram se aglutinando
contra Jango e o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários, empresários e
políticos, classe média e a burguesia. Unidos pelo anticomunismo, diagnosticado por
Napolitano, como “a doença infantil dos antirreformistas”68
. Derrotado nas
“batalhas” travadas na frente parlamentar, Jango cada vez mais estava pressionado,
tanto à direita, como à esquerda, ficando numa situação mais complicada que o
levaria a se aproximar mais das ruas, na luta pela reformas. O ápice desta tática de
Jango foi o comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de
1964.
Se for analisada a componente político-militar da crise, em setembro de 1963
houve uma greve generalizada em Santos, coordenada pelo CGT (Comando Geral
dos Trabalhadores), em solidariedade ao movimento dos enfermeiros e funcionários
hospitalares e também aos que foram presos pela polícia paulista, sob o comando do
conspirador Adhemar de Barros, numa reunião sindical. Jango apresentou uma
atitude conciliatória, sem procurar inflamar os ânimos, em discurso realizado no
feriado de 07 de setembro, elogiando a participação das classes populares na política,
sem mencionar o CGT. Mas ali ficava evidente que o Exército, como instituição,
poderia até apoiar uma reforma pelo alto, mas jamais toleraria a ação da classe
operária, ainda mais se fosse de uma organização sindical de influência comunista.
Outro episódio foi a rebelião dos sargentos em Brasília já mencionada de forma
superficial no período Jango. A partir de uma decisão do STF de considerar
inelegíveis os sargentos eleitos a cargos legislativos no ano anterior. Em 12 de
setembro de 1963, os sargentos rebelados tomaram, entre outras instalações, a Base
Aérea, o Ministério da Marinha e até bloquearam as estradas que davam acesso para
Brasília. E ainda os rebelados invadiram o Congresso Nacional e o STF, detendo um
de seus ministros. Na tarde do mesmo dia, o movimento seria controlado. As
68 Id., Ibid., p. 44.
119
esquerdas da época, como o PCB, as Ligas, o CGT, a UNE e o FPN, na verdade, não
organizaram tal movimento sendo até surpreendidos pelo mesmo, mas ainda assim
pediram pela anistia dos rebelados (o saldo havia sido o de 536 presos e 2 mortos).69
João Goulart, como era de seu perfil, teve uma atitude conciliatória e um discurso
moderado garantindo a preservação da ordem e a tranquilidade do país. Porém, para
os conspiradores, tal postura de Jango dava margem a dúvidas quanto às intenções do
presidente.
Os grandes jornais, até então divididos em relação à figura do presidente João
Goulart, começaram a se embrenhar na articulação golpista contra Jango, em nome
da (ironicamente) chamada “Rede da Democracia” que reunia enorme fatia da grande
imprensa brasileira contra o governo. A luta pela reformas era vista pela imprensa
liberal da época como a desculpa para a subversão da ordem social, da propriedade e
da economia de mercado. Jango era apresentado como “refém” dos movimentos
sociais mais radicais como o de Leonel Brizola, ou como uma “marionete” do PCB.
Jango era colocado nos jornais como uma pessoa de fraca liderança (na verdade, um
juízo induzido e artificializado por causa da personalidade marcadamente moderada
e conciliatória de Jango). Napolitano, aponta que, a exemplo de muitíssimos outros
episódios de nossa História, havia uma diferença entre o que ele chamou de “opinião
publicada” e a “opinião pública majoritária”.70
A despeito da múltipla natureza da
crise vivida pelo governo Jango, o presidente, em março de 1964, ou seja, às
vésperas do golpe, contava com uma aprovação da opinião pública em “ótimo” ou
“bom”, em torno de 45% nas grandes cidades brasileiras, 49% das intenções de voto
para 1965 (embora o presidente, pela Constituição, não poderia disputar a reeleição).
De qualquer forma, seu governo era “ruim ou péssimo”, para apenas 16% dos
69 Id., Ibid., p. 45.
70 Id., Ibid., p. 47.
120
entrevistados e 59% eram a favor das reformas anunciadas no Comício da Central do
Brasil de 13 de março.71
Ainda que não houvesse a possibilidade de um segundo mandato consecutivo,
Jango era ainda um candidato forte para 1965. Alarmada com isso, os grupos
conservadores começaram a alardear que Jango pretendia dar um “autogolpe” ao
mesmo estilo que Getúlio Vargas fizera em novembro de 1937. Obviamente, o
discurso antirreformista encontrava seus ecos em segmentos da sociedade brasileira,
mas o detalhe é que estes segmentos não eram majoritários como se alardeava. A
“opinião publicada” de grandes jornais potencializavam e sobrevalorizavam a rede
de tramas contra o governo. A trama existia e não era nada desprezível, mas ganhou
exponencialidade graças, em muito, aos jornais. Os grandes empresários, associados
ao capital multinacional não acreditavam que o governo pudesse criar as condições
de um ambiente seguro e estável para os seus negócios. A classe média vivia o medo
da “proletarização”, do descenso social, decorrente das lutas proletárias e
camponesas. O fato da classe média estar mais “próxima”, no edifício social, das
camadas populares (já que as camadas mais elevadas da sociedade teriam como se
“defender” melhor de tal “investida” dos setores subalternos da sociedade), fez com
que esta fosse facilmente levada pelos ventos da “opinião publicada”, dos discursos
anticomunistas e de várias entidades civis e religiosas reacionárias que pregavam o
perigo do Brasil ser conquistado por Moscou, ameaçando os valores cristãos, da
liberdade e do modo de vida ocidental.72
Isso nos ajuda a entender a mobilização
71 Dados do Ibope in: NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:
Ed.Contexto,2014, p. 47. Conforme a nota de rodapé nº52, na página 338 da mesma obra de
Napolitano, foram realizadas duas pesquisas do Ibope entre 9 e 26 de março, apenas alguns dias
antes do golpe, com a crise política aguda na época. A pesquisa de intenção de voto foi realizada em
oito capitais e a pesquisa sobre a popularidade do presidente foi encomendada pela Federação de
Comércio do estado de São Paulo, em que foi ouvida a população de três cidades do estado de São
Paulo (capital, Araraquara e Avaí). Tais pesquisas nunca foram divulgadas pela imprensa, e foram
descobertas em 2003 no acervo do arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp. Folha de São Paulo, 9 de
março de 2003 (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasilfc0903200307.htm, acesso
em:17 set. 2013
72 Id., Ibid., p. 47-48.
121
obtida em episódios como a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, ocorrida
menos de uma semana após os comícios da Central do Brasil. Reações e investidas
ao comício sufocaram o entusiasmo popular nos fins daquele mês de março,
mostrando a força da “opinião publicada” impregnada em vários veículos da
imprensa, como os jornais mais conservadores.
Além da grande imprensa, organizações como o IPES (Instituto de Pesquisa e
Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro da Ação Democrática), atuavam
firmes nas críticas ao governo, fazendo materiais de propaganda negativa e
articulando setores antitrabalhistas e anticomunistas. Aliás, o IPES foi fundado em
1962, pelo general Golbery do Couto e Silva, um dos coronéis do “Memorial” anti-
Jango, de 1954, e que se tornou uma das figuras mais importantes do regime militar
posteriormente implantado, além de ter dado não poucas contribuições ao
pensamento geopolítico nacional. Voltado mais inicialmente em produzir materiais
antigovernistas, o IPES também teve a intenção de formar uma nova elite política
ideologicamente orientada para uma modernização conservadora do capitalismo
brasileiro, e teve importante papel em articular civis e militares, com o agravamento
da crise política, a partir do final de 1963.
A consolidação desse discurso antigovernista e antirreformista conservador
disseminados através de veículos, como os da grande imprensa, serviram para
sedimentar os velhos interesses de sempre: o dos grandes proprietários de terra que
se sentiam ameaçados pela reforma agrária; e o dos interesses multinacionais que
sentiam também o mesmo em relação ao nacionalismo econômico das esquerdas
trabalhistas e comunistas. Com a força propagandista, os interesses conservadores
apelavam para uma realidade econômica e social desfavorável, falta de perspectivas
e de uma liderança política reformista contundente. E, para piorar, o jogo político
tradicional brasileiro – especialmente as relações entre o Executivo federal e o
Congresso - não parecia funcionar mais com a mesma eficiência de antes. Começava
a ganhar espaço a tese do “golpe preventivo”, argumento utilizado pelas direitas para
barrar um golpe da esquerda que estaria sendo gestado.
Um eventual golpe da esquerda teria como alvos: silenciar o Congresso
Nacional, impor as reformas por decreto presidencial e, mais longe ainda, reformar a
Constituição de 1946. O fato de que parte das esquerdas, como os brizolistas e os
122
“ligueiros”, não descartarem tais soluções para o impasse político, dava argumentos
à direita sobre a iminência de um golpe das esquerdas. A possibilidade real das
esquerdas realizarem algum tipo de processo revolucionário vitorioso chegou a ser
considerada pelo autor Jacob Gorender, em sua obra: Combate nas Trevas (1987),
como já colocado aqui antes, em que a situação da luta de classes e as aspirações das
classes trabalhadoras chegaram a tal ponto que teria havido uma possibilidade
concreta das esquerdas serem vitoriosas e, assim então, o golpe de 1964 teria sido
contrarrevolucionário e preventivo para retirar as esquerdas de cena.
As esquerdas, apesar de alguns pontos em comum, dividiam-se entre o
reformismo e a revolução:
Para a Frente de Mobilização Popular (FMP), as reformas
consolidariam a democracia social e o nacionalismo econômico.
Todavia defendia para a viabilização das reformas de base, caso
necessário fosse, a dissolução do Congresso Nacional e a convocação
de uma Assembléia Nacional Constituinte eleita pelo voto popular. A
Frente contava ainda com a presença de alguns componentes de
organizações inspiradas pelo PCB, como o Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), setores das Ligas Camponesas, associações de
suboficiais, soldados e marinheiros, etc.;
Para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a política pautada em
alianças era uma condição necessária em que as reformas eram vistas
como uma etapa para a construção do socialismo. O PCB, nesta visão
aliancista, apostava também na burguesia nacional.
De qualquer forma, ambas as vertentes da esquerda criticaram a postura
excessivamente conciliatória de Jango nas frustradas tentativas de se aprovar as
reformas no Congresso Nacional, abraçando então a implantação das reformas “via
Executivo”.
Essas diferentes vertentes das esquerdas sofreram terrível derrota com a
consumação do golpe, sem impor maiores resistências, talvez por subestimarem a
força da coalizão golpista. Dado o golpe, seguindo-se pela análise de FICO (2004), o
regime foi se militarizando posteriormente. Os militares se envolveram diretamente
123
na atividade de polícia política, inseridos na Doutrina da Segurança Nacional, em
especial no combate aos inimigos “internos” (em especial, os militantes da esquerda
armada – os “subversivos”). Além da repressão pura e simples, os militares foram
ocupando cargos importantes em agências governamentais. E, em governos
seguintes, especialmente o de Ernesto Geisel, o regime incrementou o
intervencionismo e a estatização, abandonando a cartilha liberal e se distanciando do
núcleo empresarial. Assim, conforme o autor,é verossímil se falar de um golpe civil-
militar, todavia implantou-se um regime militar.
A necessidade de se trazer o foco da análise do golpe de 1964 precisamente no
papel dos militares foi apontada por Gláucio Ary Dillon Soares. Segundo ele (in:
FICO, 2004, pág. 38): “As interpretações iniciais do golpe militar enfatizaram suas
causas econômicas, em parte devido à predisposição genérica de aceitar explicações
econômicas, em parte devido à relativa simultaneidade do fim da etapa fácil da
substituição de importações e da eclosão de regimes militares na América Latina. O
economicismo do pensamento político e social na América Latina fez com que se
fosse buscar nas elites econômicas os responsáveis pelo golpe. O golpe, porém foi
essencialmente militar: não foi dado pela burguesia ou pela classe média,
independentemente do apoio que estas lhe prestaram.”
Soares concorda com Dreifuss em que as elites, em especial a burguesia
econômica, apoiaram em peso o golpe militar, contudo o ato golpista, a ação efetiva
de derrubada do governo Jango, foi essencialmente militar, dando origem a um
regime também militar. Soares critica então a tradição marxista, fortemente
enraizada na sociologia política latino-americana, presente até na vertente mais
conservadora da ciência social, que enfatiza mais os aspectos econômicos e
subestima os demais.
Tais críticas seriam os argumentos no que tange às análises de autores, como
Fernando Henrique Cardoso (sobre a necessidade de privilegiar o processo de
acumulação em detrimento dos mecanismos de pressão popular) ou de Guillermo
O’Donnel (que enfatizou a passagem da etapa de industrialização de substituição de
importações para outra seguinte, mais competitiva, que exigiria regimes
burocráticos-autoritários).
124
Aliás, detalhando-se sobre CARDOSO73
(1979), o que se discutiu foi o caráter
do movimento de 1964, em como se teria dado a ruptura do sistema político
brasileiro, ao se questionar se teria ocorrido um "golpe" ou uma "revolução". O
autor coloca que os perdedores sustentavam a versão de "golpe" por se tratar de uma
contra-ofensiva política que era contrária ao aumento do apoio das massas às
reformas de Jango. Enquanto que os articuladores do movimento de 1964 alegavam
uma mobilização da classe média e setores ativos do empresariado e da oligarquia
agrária. O que o autor salienta é que a intervenção militar teve um caráter de
contenção com a implantação de um padrão de desenvolvimento baseado na livre-
empresa e não no estatismo econômico atribuído ao governo deposto, alterando-se os
modelos social e econômico que prevaleciam anteriormente. As bases sociais e
políticas de sustentação ao regime populista já não correspondiam aos setores de
classe que controlavam as forças produtivas. Modificações no eixo econômico do
sistema convergiram para os grupos sociais que expressam o capitalismo
internacional e a ascensão das Forças Armadas e da tecnocracia. Estes dois últimos
grupos, segundo hipótese da mesma obra, teriam se fortalecido com a liquidação das
pressões das massas e do regime populista pela interferência militar, favorecida pela
ausência de organização e pressão política, que ainda reduziu a possibilidade de
manobra da burguesia e da classe média.
Após esta exposição da análise de Fernando Henrique Cardoso, o que SOARES74
acaba por criticar é a diferença entre: o se analisar um suposto papel de rearranjos
estruturais do sistema capitalista mundial (multinacional e associado); ou se
considerar um foco mais restrito ao Brasil em si, com a conjuntura inflacionária do
governo Jango. Soares reforça que o golpe foi uma conspiração dos militares que
protagonizaram o movimento tendo, obviamente o apoio dos grupos econômicos
73 CARDOSO, Fernando Henrique. O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1979. O autor discute no Capítulo III, que apresenta o mesmo título da obra, o caráter
do movimento de 1964.
74 FICO, Carlos. Op.cit. p. 39.
125
brasileiros, e não o contrário. Os militares foram os personagens principais do ato
golpista de 31 de março.
Gláucio Ary Dillon Soares reforça a necessidade de se estudar especificamente
os militares, considerando certas características que os diferenciariam em relação aos
outros grupos sociais. Segundo ele, não se pode transferir modelos teóricos prontos
válidos para outras classes e segmentos sociais, e simplesmente aplicá-los aos
militares, já que estes teriam uma especificidade própria, sendo necessário analisá-
los isoladamente em sua peculiar dinâmica.
Indo pela contramão de Dreifuss (que enfatizou o papel dos empresários,
articulados no IPES, representando os interesses do capital multinacional e
associado), Soares aponta o que motivou os militares, como um grupo específico, ao
golpe:
1. O caos administrativo e a desordem política;
2. O perigo comunista e esquerdista em geral;
3. Os ataques à hierarquia e à disciplina militares.75
Assim sendo, Soares concluiu que o que houve foi um “caos conspiratório”,
pois a coordenação entre os diferentes grupos conspiratórios em diferentes pontos do
país era pequena e, até numa mesma cidade, não havia articulação entre os próprios
grupos militares. Prova disso, segundo Soares, foi a iniciativa de Mourão, mostrando
a falta de uma coordenação centralizada e de um líder efetivo orquestrando a
conspiração.
As avaliações de Soares levaram à uma iniciativa de pesquisa sobre o golpe de
1964, realizada pelo CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil), da Fundação Getúlio Vargas. As entrevistas realizadas
confirmaram a percepção militar majoritária acerca do anticomunismo e a suposta
ruptura da hierarquia e da disciplina. A despeito das ligações entre os militares e o
IPES, a decisão de se movimentar as tropas (o que deflagraria o golpe),
condicionava-se a uma atitude especificadamente militar, em que era vital, além de
75 Id., Ibid., p. 40.
126
tirarem as tropas dos quartéis, obter-se o apoio de outros comandantes militares.
Exemplo disso foi a importância do comandante do II Exército, Amaury Kruel, de
aderir ou não ao movimento. E, para os militares em suas entrevistas, ao contrário de
vários autores que escreveram sobre o golpe de 31 de março, a conspiração existia
sim, mas era bastante desarticulada, colocando–se em discussão o grau de
importância que setores civis - como a burguesia econômica, empresarial e industrial,
tanto os nacionais como os representantes dos interesses multinacionais e associados
– tiveram para o golpe. A pesquisa do CPDOC, também aponta a pouca importância
que os militares deram à operação “Brother-Sam”. Não há dúvidas quanto ao apoio
logístico estadunidense - obviamente pelo contexto na ordem bipolar da Guerra Fria
e, também, da ainda recente na época, Revolução Cubana, ocorrida em 1959 -
dispondo de um porta-aviões, seis contratorpededeiros, um porta-helicópteros e
quatro petroleiros que poderiam chegar à Santos, entre 8 e 13 de abril. Porém o que
não há, conforme FICO (2004,) são evidências documentais da disposição dos
Estados Unidos se envolverem diretamente num conflito armado prolongado.
Todavia, aqui se pode pensar que a relativa facilidade da tomada de poder pelos
golpistas, a rápida saída de João Goulart do país e a falta de uma resistência
organizada, realmente pode ter diluído o papel estratégico efetivo que os Estados
Unidos teriam caso o cenário de resistência ao golpe fosse outro. Assim os militares
brasileiros não precisaram contar efetivamente com uma intervenção prática norte-
americana, daí a pouca importância atribuída por esses mesmos militares à operação
“Brother-Sam”. Isso acabou por reforçar algumas críticas de Soares ao fato de alguns
autores supervalorizarem o apoio militar norte-americano. Não se nega que tal
existiu, muito pelo contrário, mas o que precisa ser pesquisado e avaliado é até que
ponto ou grau teve importância este apoio norte-americano. Por exemplo: se a
movimentação do general Mourão tivesse falhado, se o “dispositivo militar de Jango
efetivamente existisse, se a conspiração civil e a militar tivessem articulação ainda
insuficientes, até que ponto os EUA estariam dispostos a uma ação mais direta no
Brasil? Os militares brasileiros teriam algum tipo de “constrangimento” para recorrer
a uma ajuda militar externa? Afinal tratava-se de um país extenso, populoso e muito
mais complexo em suas estruturas sociais, econômicas e políticas, do que a grande
maioria das nações latino-americanas.
127
Retornando-se à algumas das camadas civis da sociedade (especialmente as
altas e as médias), não se nega a importância de tais setores civis na participação
conspiratória visando um movimento golpista. O problema parece que se não fosse
por uma ação efetiva militar, como a movimentação de tropas, o golpe não teria se
concretizado. Mas gostaria de acrescentar que, apesar das entrevistas dos militares
aos pesquisadores do CPDOC, apontadas no primeiro volume produzido por estes
mesmos pesquisadores, aqueles militares destacaram a falta de uma efetiva liderança
militar no período conspiratório, uma virtual inexistência de um projeto de governo
(a meu ver, um projeto de curto prazo) em que o objetivo imediato seria a “limpeza
das instituições” com a remoção de Jango do poder.76
Contudo, ao contrário de outros momentos da história brasileira, gostaria de
salientar que o movimento golpista de 1964 galgou os militares ao centro do poder
nacional e os mesmos contavam com um substrato ideológico extremamente
relevante, advinda, por exemplo, da ESG (Escola Superior de Guerra), calcada na
Doutrina de Segurança Nacional, num binômio de segurança e desenvolvimento,
sufocando e barrando avanços das camadas populares e impondo à sociedade civil,
como um todo, um projeto autoritário de modernização conservadora e
centralizadora, potencializando o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, mas, ao
mesmo tempo, sem dar brechas ao protagonismo isolado dos setores empresariais e
industriais - nacionais e multinacionais (lembremo-nos de um outro protagonismo,
estatizante, que ocorreu, por exemplo, no governo Geisel). O que se quer dizer é que
os militares sempre tiveram a “última palavra” nas decisões finais durante o tempo
em que permaneceram no poder. E o regime, ainda que houvesse divergências no
seio das Forças Armadas (“linhas-duras” x “castelistas”) contava com tal alicerce e
substrato ideológico, a ponto dos militares terem permanecido na chefia do
Executivo federal por praticamente 21 anos.
Carlos Fico retoma a questão: Houve conspiração articulada? O que ele faz é
amarrar o papel dos civis, ao papel dos militares, juntando as peças da ação
desestabilizadora ao governo constitucional de Goulart causada por setores civis,
76 Id., Ibid., p. 43.
128
com as ações propriamente militares. O autor assinala que a atuação dos empresários
para a desestabilização do governo Jango foi essencial juntamente às conspirações
dispersas advindas dos quartéis. A junção dos dois fatos não os contrapõe,
salientando que um complementa o outro. Sem a desestabilização (propaganda
ideológica, mobilização da classe média, etc.) o golpe seria bastante difícil; sem a
iniciativa militar, impossível. O que se ressalta também é diferenciar essa ação
desestabilizadora civil: entre a meramente retórica radical do IPES e de outras
agências; e a articulação mais forte desses setores civis às vésperas do golpe. E, de
outro lado, as ações militares marcadas pelo imprevisto, improvisações e não
necessariamente articuladas.
“Espalhavam-se as conspirações, de norte a sul do país. Num primeiro
momento, fragmentadas; mais tarde unificando-se numa rede complexa, não de todo
centralizada, mas com certo nível de coordenação. Com propósitos aparentemente
defensivos, começaram a propor um bote ofensivo”77
Em concordância com Carlos Fico, argumenta-se que não se deve considerar
uma fragilidade teórica apontar a explicação do golpe através de aspectos
macroestruturais (as demandas do capital internacional), decorrências políticas destas
demandas (mobilização política organizada dos empresários), funcionamento das
instituições (sistema político) ou a leitura singular de alguns agentes históricos (os
militares preocupados com a quebra da hierarquia e da disciplina). É um problema
antigo, tanto da História como das Ciências Sociais, estabelecer ligações entre nexos
causais tão diferentes, que não consideraram a avaliação de todos estes aspectos, mas
só exclusivamente um ou outro. Para um fenômeno complexo, como foi o golpe de
1964, poder-se-ia enfatizar um aspecto sem simplesmente descartar todos os outros.
Prosseguindo-se na análise das diferentes visões e interpretações do golpe tem-
se aquela que privilegia a ocorrência do movimento de 1964 devido à uma paralisia,
ou um desgaste, do sistema político precedente. Wanderley Guilherme dos Santos,
em: O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira,é a principal
avaliação do autor sobre o assunto.78
Sua crítica consistiu basicamente numa não
77 REIS FILHO, Daniel Aarão. In: FERREIRA, Jorge (org.), 2001. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 42
78 FICO, Carlos. Op.cit. p. 44.
129
consideração devida às variáveis políticas. Para ele, estas variáveis e os próprios
processos políticos quase sempre estão colocados como subprodutos de tendências e
estruturas macrossociais e macroeconômicas. Indo de contraponto às tradicionais
análises, de cunho ou de influência mais marxista, Santos (2003)79
optou em focar os
processos políticos como variáveis independentes. Ele concordou com a avaliação de
Stepan quanto ao funcionamento do sistema político dos anos anteriores a 1964,
reforçando que o padrão fragmentado de apoio afetou a governabilidade do período
de Goulart, mas por outro lado, Santos discorda de Stepan ao apontar que a
associação parlamentar entre o PSD e o PTB foi o único fator responsável pela
estabilidade do governo JK.
A hipótese central do modelo de Santos, tratando então das variáveis políticas
como independentes e abordando o papel do Legislativo - do Congresso Nacional -
entre 1959 e 1966, foi que teria existido uma crise de paralisia decisória, decorrente
de um sistema altamente polarizado, quando os recursos se dispersam nas mãos de
atores radicalizados em suas posições. Ou seja, uma incapacidade do sistema político
em tomar decisões em situações de marcados conflitos, não conseguindo fazer o
processamento dos mesmos, acarretando uma paralisia política e também jurídica.
Assim, o modelo de Santos está calcado no que foi chamado de paralisia
decisória. Um tipo de imobilismo que acometeu o governo de Jango, em que o golpe
de 1964 foi fundamentalmente o resultado do emperramento do sistema político
precedente, uma reação às iniciativas governamentais. Tal imobilismo foi primordial
para a consumação do golpe do que propriamente uma política explícita e deliberada
por parte de João Goulart. Para Santos, o diferencial dessa paralisia não foram as
coalizões eleitorais, mas sim as coalizões parlamentares. As trocas constantes de
ministérios e as dificuldades enfrentadas com o Congresso para o andamento das
reformas corroborariam com esta interpretação.
79 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira.
Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora UFMG; Iuperj, 2003. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 45.
130
Obviamente, o trabalho de Santos gerou algumas críticas. Para Fábio
Wanderley Reis80
como poderia ter havido uma paralisia de decisões se um dos
atores da época - as Forças Armadas - tiveram o poder de decisão no golpe de 1964?
Para o próprio Wanderley Guilherme dos Santos, a intervenção das Forças Armadas
foi decorrente da paralisia parlamentar. Outro problema, desta vez apontado por
FICO (2004), foi a não clareza, por parte de Santos, do que era o “sistema político”.
Tratava-se somente do plano institucional? Ou era algo mais amplo, englobando as
ações dos sindicatos e das Forças Armadas? Ou a crítica às análises anteriores era
com relação ao “populismo”, termo este que até hoje traz certas dificuldades para sua
conceitualização? Por fim, até que ponto pode-se falar numa estabilidade no governo
JK, se o mesmo enfrentou dois levantes militares em seu mandato, e quase não
tomou posse? Pelo menos, quanto ao período JK, gostaria de acrescentar que tal
estabilidade deve ter decorrido da habilidade e do tato político que Juscelino teve
com o Congresso e com os militares aparando arestas, tocando os seus projetos
através de “grupos de trabalho” de ordem técnica e não se detendo muito nas amarras
burocráticas do Legislativo. De qualquer forma, a grande contribuição de Santos,
verdadeiramente, foi o de apresentar dados do desempenho do Legislativo Federal,
desde o final do chamado período democrático de 1946 até aos anos iniciais do
regime militar que se instalou a partir de 1964.
Entre outros trabalhos, que não colocando a ênfase somente no papel dos
empresários ou dos militares, mas que consideram as dimensões político-
institucionais das crises no plano parlamentar, cita-se, primeiramente, Maria Celina
D’Araújo para a qual a “a capacidade do PTB teve de influenciar setores militares
ou de interagir com eles foi certamente um dos principais fatores para a eclosão do
golpe”. 81
80 REIS, Fábio Wanderley. “O golpe e o cálculo”. Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 10 mai 2003.
p.1. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 48.
81 D’ARAÚJO, Maria Celina. “Raízes do golpe: ascensão e queda do PTB”. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon,
D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro.
Fundação Getúlio Vargas, 1994. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 49.
131
Na sequência, menciona-se Argelina Cheibub Figueiredo, que no seu trabalho
referido anteriormente, que foi tese de doutoramento na Universidade de Chicago,
em 1987, avalia que a ênfase de Santos nos aspectos políticos-institucionais
acabaram por diminuir a relevância do caráter socioeconômico, em especial no
concernente às “reformas estruturais”. De acordo com FICO (2004), Figueiredo
procurou recusar paradigmas deterministas que afirmavam a inevitabilidade do golpe
a partir somente de fatores econômicos, ou apenas em fatores políticos-institucionais.
Também recusa o protagonismo isolado da burguesia, tão valorizada por Dreifuss, já
que só a existência da conspiração sozinha não levaria necessariamente á derrubada
do governo Jango. Ela concordou, em parte, com a leitura de Stepan argumentando
que Goulart, ao final de seu governo, radicalizou suas posições erodindo de vez seus
possíveis apoios. Mas, ao contrário de Stepan, Argelina Figueiredo defende que as
escolhas erradas que foram feitas antes trouxeram consequências mais para frente,
estreitando o “leque” de opções à Jango no decorrer de seu governo. Por enfatizar o
aspecto das escolhas, pode-se compreender melhor o significado do título do trabalho
da autora: Democracia ou reformas?
Já BECKER & EGLER (1998) apontam três visões diferentes sobre o golpe de
1964. A primeira se refere à influência da Escola Superior de Guerra (ESG) que teria
sido fundamental na caracterização de um “novo profissionalismo” nas Forças
Armadas. A segunda aponta, como elemento distintivo do golpe de 64, a crescente
capacidade técnica de controle e repressão por parte dos militares, e não os aspectos
ideológicos. Uma terceira visão sugeriria que não se tratou de um “regime”
plenamente instituído, mas sim de uma “situação” autoritária construída nas formas
de busca de legitimação apresentando dilemas e fissuras. Os dois autores finalizam
que a Doutrina de Segurança Nacional teria propiciado uma certa legitimidade e uma
estrutura intelectual e política aos militares, “cimentando” o regime.
Salienta-se, baseando-se em DEL VECCHIO (1992), que há uma certa
dificuldade de se atingir um conceito unificador acerca do regime militar visto que
houve variações de país para país quanto, por exemplo, ao tempo de duração do
regime em cada nação, seus graus de repressão sobre a população, seus impactos
sobre os Legislativos nacionais,etc. Isso já foi demonstrado no 1°capítulo referente
às chamadas ditaduras regressivas (RIBEIRO, 1983) ou regimes militares da
132
América Latina. Relembrando: PRADO & PELLEGRINO (2014) apontam que o
governo militar argentino carecia de projetos efetivamente concretos, contrastando
com o regime militar brasileiro que apresentava projetos de modernização econômica
visando aprimorar a integração nacional. Na Argentina, a ausência de um sólido
projeto de modernização, ainda que autoritária e imposta, fez o regime militar
argentino, da década de 1970, concentrar suas energias na repressão brutal aos
setores oposicionistas, massacrando adversários, e no campo econômico esteve
sujeito a interesses privados numa escala maior do que o do caso brasileiro. E ainda
mais: se no Chile, houve forte desnacionalização da economia nos anos do regime
comandado pelo general Pinochet, por outra lado, no Peru, os militares chegariam ao
poder defendendo um nacionalismo estatista.
No campo das memórias, as primeiras descrições mais detalhadas sobre o
movimento de 31 de março de 1964 viriam de uma memorialística cada vez mais
enriquecida em detalhes. Revelações factuais do tipo começariam a aparecer no
período da chamada “distensão”, ocorrida a partir do governo do general Ernesto
Geisel (1974-1979). De outro lado, na virada das décadas de 1970 para 1980, foram
sendo publicados alguns dos primeiros depoimentos de ex-militantes da “luta
armada”, em especial os da “guerrilha urbana”. Os livros de Fernando Gabeira e de
Alfredo Sirkis foram grandes sucessos editoriais.
Continuando pelo campo dos depoimentos e das entrevistas, a partir da década
de 1980, à medida que a História se distanciava mais do marxismo e seu
determinismo economicista, aparece um novo padrão de narratividade, muito focada
na percepção dos indivíduos, dos atores envolvidos nos processos analisados, e não
em macroestruturas muitas vezes até generalizantes, daí decorrendo um destaque
maior ao campo cultural da época do regime. E um jornalista acabou se destacando:
Elio Gaspari, que, conforme FICO (2004), não se preocupa em discorrer por
modelos teóricos-metodológicos e acadêmicos. Seus volumes: A Ditadura
envergonhada e A ditadura escancarada (2002); A Ditadura derrotada (2003); e A
Ditadura encurralada (2004), foram produzidos a partir de documentos que o
próprio Gaspari obteve por conta da confiança que ele tinha por parte de alguns
militares, como Geisel e Golbery, e da ajuda de Heitor Ferreira de Aquino que
organizara o arquivo de Ernesto Geisel e produzira um diário que abordava as
133
impressões de mais de trinta anos do cotidiano do poder no Brasil, somadas às horas
de entrevistas com Geisel, e com Golbery. As criticas de Carlos Fico procedem
dessa visão “uma” do período, somente a partir de um ponto de vista - ora dos
entrevistados, ora do acervo de Heitor Ferreira de Aquino – induzindo o leitor à
ausência de uma análise crítica e “desconstrutiva” deste acervo documental.
A obra de Gaspari não aprofunda a queda de Goulart, e apesar do peso
excessivo de importância dados à Geisel e Golbery para o regime, em especial para o
processo de abertura/distensão, foram apontados três problemas (FICO, 2004): 1) o
pouco espaço dado a ambos, nos poucos capítulos (apenas dois) voltados à derrubada
de Jango; 2) a falta de interconexões com diferentes trabalhos que privilegiaram
outros atores, como os empresários ou o próprio sistema político; e 3) se os dois
militares entrevistados eram tão astutos e sagazes, porque teriam escolhido o general
João Figueiredo como o último presidente do regime, avaliado, não por poucos,
como um dos piores mandatários que o país já teve? Mas sobre o governo Figueiredo
será tratado mais adiante neste trabalho. Todavia, Carlos Fico indica que a nova
documentação apresentada expôs as heterogeneidades no seio do regime. As
divergências entre a polícia política, a espionagem, a censura e a propaganda política.
Ou seja, seria altamente questionável uma unidade dos “porões da ditadura”, pois
vieram à tona grandes diferenças e conflitos entre os órgãos de informações e os de
segurança, entre o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Centro de Informações
do Exército (CIE); ou entre a Assessoria de Relações Públicas (Aerp), responsável
pela propaganda política, e toda a “linha dura” dos militares.
Deve-se colocar ainda que no Brasil houve importantes discrepâncias e
descontinuidades entre os cinco generais-presidentes. O golpe de 1964 não formou
de imediato um novo regime político por apresentar um substrato institucional tímido
que se reforçaria com os insucessos da política econômica e com as derrotas
eleitorais de outubro de 1965. Diante deste quadro, o regime editou o Ato
Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, que:
Suspendeu as eleições diretas para presidente da República e para os
governos estaduais até 15 de março de 1967;
Extinguiu os partidos políticos e reiterou a capacidade de suspensão dos
134
direitos políticos por parte do presidente. A estratégia, conforme BARROS (1998),82
era sacramentar a supremacia do Executivo, destruir a organização partidária liberal
do período anterior e reforçar o bloco civil governista dando um novo ânimo ao
núcleo udenista que, não pela primeira vez em sua história, havia se saído mal no
voto popular. Foram criados a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido
governista; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), um partido ou frente
oposicionista (consentida pelo regime), tendo à frente veteranos do PSD, como
Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, mas sem contestar frontalmente o regime.
Para BARROS (1998),83
o AI-2 não foi o início do regime militar. Para o autor,
o começo ocorrera com o golpe de 1964, mas o AI-2 foi ali apontado como um
momento em que o regime tomou corpo e criou uma feição mais sólida. Para
NAPOLITANO (2014),84
“se o golpe foi o batismo de fogo da ditadura, o AI-2 é a
sua certidão de nascimento definitiva”. O último autor acrescenta que o AI-2, em
grande parte, foi o fim das boas relações entre os militares no poder e os políticos
conservadores que apoiaram o golpe, mas queriam conservar seus interesses
eleitorais intactos, casos de Adhemar de Barros e de Carlos Lacerda. Inconformado
com a prorrogação do mandato de Castelo Branco para até março de 1967 com o
adiamento das eleições presidenciais de 1965, para novembro de 1966 (eleições que,
por sinal nunca se realizariam), Lacerda romperia definitivamente com o governo
militar, em fins de 1965.
Outro episódio fundamental no processo de consolidação do regime militar foi
o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, que precedeu o ápice da
repressão política e do desenvolvimentismo econômico característicos do governo
Médici (1969-1973) que trataremos um pouco mais adiante. Contudo, antecipando-se
outro exemplo das discrepâncias do regime temos, segundo DEL VECCHIO (1992),
que principalmente durante o governo Médici, a Aerp (Assessoria de Relações
82 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.28.
83 Id., Ibid., p.27.
84 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 97.
135
Públicas da Presidência da República) foi um importante canal para a criação de um
"Brasil Grande" dentro da ideologia desenvolvimentista do período. O governo
Médici valeu-se da boa performance econômica do regime em busca de uma maior
legitimação através deste órgão. Porém, o governo Geisel praticamente desmontou o
aparato da Aerp tirando-lhe seu status de órgão de divulgação do governo. Estes são
apenas alguns dos aspectos concernentes à problemática referente às diferenças
presentes entre os governos militares, originando uma dificuldade de se atingir um
conceito unificador, no que concerne a cada um dos governos dos generais-
presidentes tratados daqui em diante.
Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, no dia 31/03/1964
Fonte:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/imagens/dossies/nav_jgoulart/fotos/Modulo7/ph_fot_5609_
18.jpg
136
Castelo Branco sobe a rampa, em Brasília, ladeado por Ranieri Mazilli e Ernesto Geisel.
Arquivo: 15 de abril de 1964. O que era para ser um governo que terminasse em janeiro de 1966 se
prolongaria até março de 1967. E o regime militar iniciado em 1964 se estenderia por praticamente
21 anos, até 1985.
Fonte:
http://acervo.oglobo.globo.com/incoming/9772970-6ad-ac0/imagemHorizontalFotogaleria/foto6.jpg
137
3 – O Regime Militar Brasileiro (1964-1985)
3.1- Governo Castelo Branco (1964-1967). Uma “ditabranda”?
Humberto de Alencar Castelo Branco, 1º general-presidente do regime militar. Governou o
Brasil de 15/04/1964 a 15/03/1967.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_de_Alencar_Castelo_Branco
Em 2009, a Folha de São Paulo, referiu-se aos quatro primeiros anos do regime
militar como uma “ditabranda”, ou seja, uma ditadura não muito convicta de sua
dureza.85
Para um jornal que, lá no passado, se colocou numa postura de resistência
ao regime, o termo “ditabranda” causou grande polêmica.
85 “Limites a Chavez”. Folha de São Paulo, Editorial, 17 fev.2009 (disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm). In: NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 69.
138
O que está por trás deste debate é o fato de que existe uma linha de raciocínio,
sobretudo, por parte do que Marcos Napolitano (2014) denominou de memória
liberal86
do regime, que o período compreendido entre o golpe de 31 de março de
1964, até o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, não teria sido uma ditadura. No
máximo, uma ditadura “envergonhada”87
, “encabulada”, que se “sentia mal” ao
tomar certas medidas e atitudes, especialmente contras seus adversários, tal como as
cassações e os primeiros Atos Institucionais (mas não deixando de fazê-los e
executá-los). Os defensores da tese de uma ditadura “suavizada”, ou de um regime
“brando” é que nos primeiros anos do regime ainda existia o habeas corpus,
mobilizado na defesa de muitos presos, por ocasião do golpe, somada a uma certa
liberdade de imprensa, de expressão e de manifestação.
Antes já foi apresentada a conceituação sobre o significado de “ditadura” e de
“regime militar”. Talvez possamos falar em “ditadura militar” porque se não foi a
ditadura de um único indivíduo, pelo menos houve um incontestável protagonismo
militar, com cinco generais-presidentes e, de fato, os militares sempre tiveram a
“palavra final” nas decisões mais importantes e cruciais da fase compreendida entre
os anos de 1964 a 1985. Os atos mais importantes, por parte dos civis, neste período
autoritário só foram possíveis porque certamente eles contavam com o aval dos
militares em suas ações e medidas. Refiro-me especialmente aos civis que ocuparam
ministérios durante o período, além dos tecnocratas presentes na aparelhagem
governamental. De qualquer forma, procurarei utilizar mais o termo “regime militar”,
mas algumas vezes, a palavra “ditadura” estará presente, no caso específico de um
determinado governo militar em questão, ou sobre a corporação militar em conjunto
que, como personagem principal, fez a sua “ditadura” (a dos militares vistos em sua
unidade corporativa).
Esses quatro anos iniciais do período militar abrangem os anos do seu primeiro
governo – o de Castelo Branco - na Presidência da República entre abril de 1964 a
março de 1967. E basicamente a metade inicial do segundo governo – o de Costa e
Silva – que durou de março de 1967 a agosto de 1969, em cujo período teve-se a
86 Id., Ibid., p.69.
87 Id., Ibid., p.69.
139
promulgação do Ato Institucional nº5 (AI–5), em dezembro de 1968. Mas a ditadura
“branda” está centrada principalmente no governo Castelo Branco em que alguns de
seus biógrafos apontaram um general/marechal “constrangido” em exercer o poder
buscando apenas “sanear” e “limpar” o ambiente político brasileiro com promessas
para logo devolver o poder aos civis.88
Um exemplo apresentado para isso foi o auge cultural das esquerdas, no
período de 1964 a 1968. NAPOLITANO (2014) argumenta que, ao contrário do que
uma (chamada por ele) “memória liberal” do regime tenta apregoar sobre uma
ditadura “envergonhada”, é que a relativa liberdade de expressão nesse 1º período
anterior ao AI-5 foi decorrente da razoavelmente ampla base social que apoiou o
golpe, como as classes médias, setores liberais da imprensa e partidos conservadores.
Assim a repressão se apresentou seletiva e o que ocorreu foi a construção de uma
ordem institucional autoritária e centralista, blindando-se o Estado brasileiro contra
algumas possibilidades indesejáveis, tais como as pressões da sociedade civil
paralelamente à desarticulação política dos movimentos operários e camponeses.
O autor então procura questionar que o regime só se “fechou” devido a uma
onda crescente de manifestações de opositores e de contestações por parte até de
aliados de primeira hora do regime, como Carlos Lacerda e o jornal carioca Correio
da Manhã. Castelo Branco, não poucas vezes, chegou a ser apresentado como um
mandatário bem intencionado que teve que aceitar, a contragosto, a imposição do
nome de Costa e Silva, representante da “linha-dura”, para a sua sucessão.
Napolitano, em sua obra, realiza uma verdadeira “desconstrução” da figura de
Castelo Branco, apontando que o mesmo foi, sim, o verdadeiro construtor
institucional do regime autoritário. Foram 4 Atos Institucionais, a Lei da Imprensa, a
nova Constituição (que sacramentou o princípio da segurança nacional). Também se
teve mais de 700 Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Nas sanções legais a
opositores, fundamentadas nos Atos Institucionais, 65% dos 5.517 cidadãos que
sofreram punição durante todo o regime, o foram no governo Castelo, totalizando-se
3.644 punidos. O mesmo governo se destacou enormemente nas sanções aplicadas
88 Id., Ibid., p.69.
140
especialmente contra militares, 90% do total ao longo dos mais de 20 anos de
autoritarismo.
Humberto de Alencar Castelo Branco foi o primeiro general-presidente,
escolhido em 11 de abril. Tinha influência entre os golpistas militares e civis, sendo
líder do grupo de oficiais ligados à Escola Superior de Guerra - ESG, de influência
norte-americana e anti-comunista pregando contra o "inimigo interno" (o
comunismo) dentro do modelo de "segurança-desenvolvimento". Este grupo era
conhecido como o "grupo da Sorbonne" em que se destacavam Castelo Branco, os
generais Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel e outros que se diferenciavam da
chamada "linha dura", que defendia o controle armado sobre os civis e aos
nacionalistas de direita. O "grupo da Sorbonne" buscava soluções técnicas e formas
institucionais de governo que englobassem civis (como os empresários) e "opositores
moderados". Junto a um governo forte procuravam aprofundar a relação com o
capital internacional e a livre iniciativa.
A ESG fez acertos com outros militares e políticos, principalmente do PSD.
Teve até o apoio de Juscelino Kubitschek que estava de olho em sua candidatura à
Presidência para as eleições de 1965, previstas no AI-1 - Ato Institucional nº1 - (mas
JK acabaria cassado já em 8 de junho de 1964). Castelo Branco, escolhido por
eleição indireta no Congresso, assumiu a presidência em 15 de abril. No Ministério
organizado foi dado maior peso à UDN e o Ministério da Guerra foi dado à Costa e
Silva, porta-voz da "linha-dura".
Em seu discurso de posse, Castelo Branco, fez menção da palavra
“democracia” por cinco vezes. Insistiu que seu governo consolidaria “os ideais do
movimento cívico da nação brasileira nestes dias memoráveis de abril, quando se
levantou unida, esplêndida de coragem e decisão, para restaurar a democracia e
libertá-la de quantas fraudes e distorções que a tornavam irreconhecível. Não por
meio de um golpe de Estado, mas como uma revolução. (...) Nossa vocação é a da
liberdade democrática”89
89 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 58.
141
“Caminharemos para a frente com a segurança que o remédio para os
malefícios da extrema esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária,
mas o das reformas que se fizerem necessárias”90
Foi criado, em 13 de junho de 1964, o SNI - Serviço Nacional de Informações,
no âmbito da Segurança Nacional. Sob a orientação do general Golbery do Couto e
Silva, segundo CHIAVENATO (2006), o SNI recebia verbas secretas e
supervisionava outros “departamentos de segurança”, inclusive o DSI (Divisão de
Segurança e Informação), que se incorporou a todos os ministérios. Como as DSIs
informavam o SNI sobre o funcionamento dos ministérios, investigavam candidatos
a cargos públicos e vetavam ou puniam aqueles que eram considerados subversivos.
Percebe-se que os ministros estariam sujeitos a pressões por parte do SNI.
O SNI só prestava contas ao CSN (Conselho de Segurança Nacional) e ao
presidente da República. Controlava os serviços de segurança do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica. A nível estadual, trabalhavam para o SNI a Delegacia
Estadual de Ordem Política e Social (Deop) e o Departamento de Ordem Política e
Social (Dops).
Ao tomar posse, Castelo Branco garantiu que entregaria o cargo em 31 de
janeiro de 1966, mas não foi isso o que aconteceu, como será mostrado depois.
Na política externa, Castelo Branco - ao contrário de Getúlio Vargas, na década
de 1950, e também de Jânio Quadros e de João Goulart - foi (em muito) alinhado
com os Estados Unidos, como retribuição ao apoio dado ao golpe e pela confiança
“yankee” na liderança castelista. Dentro da visão geopolítica dos conspiradores
militares e civis, o Brasil tomava um posicionamento explicitamente favorável à
superpotência capitalista dentro do contexto da Guerra Fria. Da anterior política
externa independente, o Brasil, já em 1965, tomava outro rumo no campo externo, ao
enviar tropas à Republica Dominicana favorecendo à implantação de uma ditadura
pró-EUA naquele país.
90 Id., Ibid., p.58 e 59.
142
Ao se consolidar no poder, o novo governo assentou suas bases econômicas no
combate à inflação fazendo-se aumentar a recessão, "calculada" pelo governo, com
uma política de contenção de créditos e dos salários acarretando o arrocho salarial,
explorando-se os trabalhadores e concentrando-se as empresas e o capital,
potencializados pelo Estado como resultado do PAEG (Plano de Ação Econômica do
Governo).
Na área econômica, o Brasil se abriu ao capital internacional, em nome do
liberalismo econômico. Roberto Campos e Otavio Bulhões se tornaram os principais
expoentes na área. Buscou-se a modernização da economia e do Estado, para que o
Brasil melhor se inserisse no capitalismo mundial. Contava-se que com a
modernização econômica, velhas estruturas arcaicas se readaptariam. O governo
federal precisava recuperar a sua capacidade de financiamento, equilibrar suas contas
e combater a inflação. A receita para isso foi simples: conter os gastos públicos e
impor um arrocho salarial.
O sistema fiscal foi reorganizado, disciplinando a malha complexa de
interesses locais e regionais. Dava-se uma nova lógica ao sistema tributário nacional,
procurando-se aumentar a eficiência arrecadatória, removendo-se empecilhos, até de
natureza federativa, para se racionalizar a dinâmica tributária. Claro que isso
beneficiaria especialmente a União, em detrimento aos estados e aos municípios. No
plano macroeconômico, o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foi
lançado ainda em 1964, para balizar as mudanças em curso. Pela imposição o novo
regime buscaria o crescimento da economia, mas sem perspectivas redistributivistas,
o que faria aumentar mais ainda a concentração da renda e a distância entre ricos e
pobres, apesar do crescimento da classe média. Para o empresariado e o patronato em
geral, houve vantagens. A nova política de reajustes salariais, certamente prejudicava
os trabalhadores (também afetados pelo rígido controle aos sindicatos, amarrados à
CLT e à repressão). O fim da estabilidade de emprego e a criação do FGTS (Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço) flexibilizaram o mercado de trabalho,
possibilitando demissões a custos baixos. As “pressões distributivistas” da fase
republicana anterior, iniciada em 1946 ficaram amordaçadas.91
91 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.75.
143
Outro item a se destacar foi a criação do INPS (Instituto Nacional da
Previdência Social), em novembro de 1966. Resultou da fusão de seis institutos de
aposentadoria existentes: o dos industriários (Iapi), o dos comerciários (IAPC), o dos
marítimos (IAPM), o dos bancários (IAPB), o dos empregados em transportes e
cargas (Iapetec) e o dos ferroviários e empregados em serviços públicos (Iapfesp).
Com unificação de tal magnitude, o objetivo era o de conferir melhor
operacionalidade ao sistema, além de controlá-lo com mais eficiência. Nesta lógica,
o INPS ficou vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência Social.
Quanto ao meio rural, era preciso que o governo Castelo encontrasse algum
tipo de solução “técnica” para a questão fundiária. Reforma agrária - nem pensar -
pois a mesma se tornou como um sinônimo de comunismo para os golpistas. As
elites agrárias, obviamente, haviam saudado o golpe, mas como mexer com essa
questão? Era sabido que a terra, como fonte de renda imobiliária, estava sendo um
entrave ao desenvolvimento capitalista. Também era conhecida que uma das causas
da inflação era a crônica falta de alimentos para uma população urbana cada vez
maior. Havia também a situação de êxodo rural, com massiva migração campo-
cidade, alterando rapidamente o espaço geográfico e as paisagens brasileiras,
especialmente nas grandes cidades.
Contrários a qualquer tipo de reforma fundiária, ainda que moderada, Castelo
Branco propôs o “Estatuto da Terra”, já citado antes. Consistia, segundo
NAPOLITANO (2014,) em três eixos: imposto progressivo, conforme o tamanho da
propriedade; desapropriação com indenização; e a ocupação de terras ociosas. A
proposta enfrentou a resistência da UDN e de setores da imprensa ligadas à
oligarquia agrária mais tradicional, como O Estado de São Paulo.92
Votado já por um
Congresso bastante expurgado, devido às cassações, com a posição contrária dos
udenistas, o Estatuto foi aprovado após ter o seu texto original bastante alterado e
quase não foi posto em prática. A União ficaria autorizada a desapropriar terras
pagando indenização por meio de títulos da Dívida Pública. Foi também criado o
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra). Carlos Lacerda foi uma das vozes
que criticou o Estatuto: “Reformas de base são pretextos para todo governante que
92 Id., Ibid., p.76.
144
não sabe governar”.93
Desnudavam-se as diferenças entre os autoritários desejosos
de reformar o capitalismo brasileiro e, de outro lado, as velhas oligarquias agrárias.
Na década de 1970, a própria dinâmica econômica inseriu o latifúndio no
sistema capitalista, sem reforma agrária e sem traumas para os grandes proprietários.
Para os pequenos e médios proprietários, já não era tão bom assim, pois eles
dependiam dos preços mínimos garantidos pelo governo e dos empréstimos
bancários. Para os trabalhadores do campo, a mecanização (por causa principalmente
da soja) e a possibilidade de melhores empregos e salários nos setores da indústria e
dos serviços na cidade potencializou o êxodo rural. Ainda que milhões destes
migrantes acabassem morando nas periferias, especialmente nas favelas, devido à
especulação imobiliária existente especialmente nos grandes centros urbanos. Mesmo
assim, tais pessoas poderiam dispor, ainda que na periferia, de alguns serviços
impossíveis ao campo.
O regime autoritário ainda estimularia a migração para os “espaços vazios”,
como as fronteiras agrícolas, com fluxos humanos advindo de outras regiões do
Brasil para a Amazônia, em especial. A mata era devastada para a chegada do
“progresso” e do “desenvolvimento” representados por grandes pecuaristas e
mineradoras que desalojavam os primeiros migrantes, agravando-se a grilagem de
terras. A modernização do campo brasileiro criou uma geografia marcada pelo
agravamento das tensões e dos conflitos fundiários, em especial na Amazônia.
Voltando-se à economia, no combate à inflação foram aumentadas as tarifas
dos serviços públicos, ampliadas as taxações indiretas e o reforço da incidência de
impostos como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o ICM (Imposto
sobre Circulação de Mercadorias) favorecendo àquelas empresas cuja produtividade
garantia preços unitários abaixo dos demais em detrimento das pequenas empresas,
monopolizando assim o setor econômico. Com a benevolência dos Estados Unidos e
do FMI (Fundo Monetário Internacional) a economia brasileira passou a ancorar-se
em três setores, segundo BARROS (1998): o de bens de capital vinculados ao Estado;
93 In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p.70.
145
o de bens duráveis multinacionais; e o de bens de consumo baseados no capital
nacional.94
Assim a orientação econômica do governo Castelo Branco, coordenada pelos
ministros Roberto Campos – no Planejamento e Coordenação Econômica; e Otávio
Gouveia de Bulhões - na Fazenda - foi o de uma política econômica recessiva. Toda
essa política contribuiu para o agravamento dos problemas sociais com forte
crescimento das favelas, fome, violência da marginalidade, etc. Hélio Jaguaribe (in.
DEL VECCHIO, 1992) enunciou, em trabalho elaborado em fins de 1966, que a
política econômica ortodoxa do governo Castelo Branco seria um traço estrutural do
regime onde haveria três objetivos programáticos complementares: o controle da
inflação; a subordinação da economia brasileira aos centros hegemônicos,
especialmente aos Estados Unidos; e o predomínio da "livre-empresa". Isto na
perspectiva do desenvolvimento nacional versus imperialismo onde o total
engajamento do Brasil aos EUA se refletiu na participação brasileira no auxílio à
ocupação da República Dominicana em 1965. Daí viria o termo "colonial- fascismo",
citado por CARDOSO (1979), que Hélio Jaguaribe aplicou ao modelo político que
enxergava no momento com as suas três características: 1º) um maior poder de
coerção decorrente de um fortalecimento do Estado; 2º) a já mencionada
subordinação aos EUA; e 3º) a existência de livres mecanismos de mercado
(empresas privadas que controlariam e dirigiriam a economia) sob a supervisão
estatal. Contudo têm-se a incapacidade da burguesia nacional em imprimir o
dinamismo requerido pela economia, algo este que diferenciaria o Brasil, tanto da
Itália fascista, como da Alemanha nazista.
Já Celso Furtado (in DEL VECCHIO, 1992) na mesma época, também a
partir da contraposição desenvolvimento nacional versus imperialismo, aborda, como
Jaguaribe, a natureza do regime a partir da estabilização social, onde o modelo
adotado implicaria numa solução "pastoril" em que os dados do PAEG foram
interpretados com ênfase na agricultura devido aos investimentos destinados a esse
setor no período de 1964-1966 simultaneamente à uma forte recessão do setor
industrial. Porém Furtado reconheceu, mais tarde num ensaio de 1973, o caráter
dinâmico do regime militar brasileiro. Na verdade tanto o termo "colonial-fascismo"
94 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p.25
146
de Jaguaribe como a "pastorização da economia" de Furtado resultaram das
influências conjunturais do início do regime militar, que ainda estavam num processo
de consolidação, referente às críticas à política econômica de Castelo Branco. Dentro
de uma nova linha de interpretação, as relações de dependência se atrelariam a uma
nova divisão internacional do trabalho onde parte do sistema industrial de países
hegemônicos, sob controle das corporações internacionais, são transferidos para as
economias periféricas que previamente alcançaram certo desenvolvimento industrial
constituindo-se na chamada "internacionalização do mercado", segundo CARDOSO
(1979).
Tem-se que: "O período recessivo de 1964-1967 cumpriu plenamente a sua
função, para os idealizadores do PAEG. A concentração hegemônica do grande
capital e o extraordinário achatamento salarial limparam as altas taxas de inflação,
criando o patamar inicial de um crescimento econômico sem precedentes que se
verificaria nos anos seguintes. A partir de 1967, a política econômica governamental
mudaria significativamente, com a liberação do crédito e a ampliação dos gastos
estatais" 95
.
O regime continuava a fazer outras reformas econômicas indispensáveis para
um novo ciclo de desenvolvimento. Em dezembro de 1964 era criado o Banco
Central, substituindo a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), vinculada
ao Banco do Brasil. Entre as atribuições exclusivas do Banco Central estava a de
emitir papel-moeda, regular o câmbio, controlar o capital estrangeiro e a política
creditícia (funções que foram anteriormente do Banco do Brasil durante décadas).
Instituiu-se também o Conselho Monetário Nacional, responsável pelas diretrizes da
política da moeda e do crédito. Nota-se a busca pelo governo de alicerçar
solidamente uma nova inserção para o capitalismo brasileiro. Todavia, os resultados
destas ações não seriam sentidas a curto prazo. Em 1965, os preços dos gêneros de
primeira necessidade continuavam subindo.
Com o objetivo de enfrentar uma questão, premente na época, que atingia
sobretudo as camadas populares, o déficit habitacional, que motivara mobilizações
95 Id., Ibid., p.25 e 26.
147
políticas no governo Goulart, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), para
enfrentar a demanda por moradia, agravada pelas migrações em direção aos grandes
centros urbanos.
A política ortodoxa e recessiva da equipe econômica de Castelo Branco
acarretou em fissuras na vertente do apoio civil ao movimento de 1964, pois Carlos
Lacerda, governador do estado da Guanabara, e Magalhães Pinto, governador de
Minas Gerais, se colocaram contra os rumos da política econômica. Nas eleições de
1965, o PSD bateu os candidatos oficiais nestes estados (com Negrão de Lima na
Guanabara e Israel Pinheiro em Minas Gerais).
O mau resultado na eleição motivou Lacerda, que vinha criticando a política
econômico-financeira da União, pois os resultados positivos da dupla ministerial
“Campos-Bulhões” ainda não haviam se mostrado, a se afastar de Castelo mantendo-
se próximo aos coronéis ainda simpáticos ao lacerdismo.
O regime, ao sofrer estes resultados negativos, começa a revestir sua inicial
fragilidade institucional com a cristalização efetiva em regime militar, em que o
"grupo da Sorbonne" se encontrava comprimido pelas oposições de um lado e pela
"linha dura" do outro (constatando-se a não unidade do regime naquele momento). O
presidente Castelo Branco cede então às pressões da "linha dura" materializando a
declaração do AI-1, onde "a Revolução legitima-se a si própria" através do AI-2, de
27 de outubro de 1965, que suspendeu eleições diretas para Presidente e
governadores de estado até 15 de março de 1967, e extinguiu os partidos políticos
dando-se um duro golpe no PSD que, de início tinha uma tenra aliança com os
golpistas de 1964, mas rompeu-a justamente por querer se manter como ator
privilegiado da condição tradicional dentro da coalizão "nacional-populista".
Lançava-se a semente do bipartidarismo com a Arena (Aliança Renovadora
Nacional) como o partido governista; e o MDB (Movimento Democrático
Brasileiro), uma frente de oposição controlada. Com isso o regime consolidava sua
legitimação institucional aniquilando o sistema partidário anterior, enquanto que o
AI-3 tornava indiretas as eleições para governadores estaduais.
Se em seu discurso de posse, Castelo Branco havia declarado que sairia da
presidência em janeiro de 1966, os militares, na verdade, tinham intenção de
permanecer no poder. Castelo Branco deixou sua "complacência" com os civis como
148
na cassação de Juscelino Kubitschek, em 8 de junho de 1964, e prolongou seu
mandato presidencial por 14 meses, até 15 de março de 1967.
No campo jurídico e institucional, o presidente Castelo Branco lançou os
fundamentos do novo regime autoritário, a despeito de suas intenções
“democratizantes”. A economia vinha em crise e não tardou para que as classes
médias se desiludissem com o governo. Carlos Lacerda, entre outras lideranças
políticas, que haviam apoiado o golpe também demonstraram descontentamento com
Castelo Branco. Para o presidente militar, sua sustentação estava nos quartéis e
também na institucionalização do regime.
Mas uma parte dos quartéis exigia maior endurecimento do regime, sem
maiores sutilezas jurídicas. Castelo Branco prorrogaria seu mandato por mais um
ano, mas foi perdendo o controle da sua sucessão, em especial, com a emergência de
Costa e Silva que atuava abertamente para ser o próximo presidente da República.
A política econômica implantada foi tornando-se cada vez mais difícil de se
sustentar à medida que cresciam as oposições - não só da esquerda, mas também da
direita mais “liberal”, na sociedade civil. Nos quartéis, Costa e Silva vinha ganhando
uma maior projeção, colocando-se como o principal nome para a sucessão de Castelo
Branco. O detalhe é que, a obstrução e o bloqueio a quaisquer tipos de “pressões
distributivistas” requeria um período autoritário de longo prazo que ia contra as
expectativas da coalizão que apoiou o golpe de 1964. Esta acreditava numa
“intervenção saneadora” dos militares para, após curto espaço de tempo, o poder
retornar aos civis. Então o governo cada vez mais ia se distanciando das suas
intenções “moderadoras”.96
Nesta trilha em que o governo - antes visto pelos quartéis como
excessivamente “moderado”, “conciliatório” e “complacente” com relação ao seus
opositores - seguiu para um caráter mais autoritário, sem maiores sutilezas,
merecem destaque os Atos Institucionais.
96 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.78.
149
O primeiro Ato Institucional não teve número, pois acreditava-se seria o único.
Mas a história foi bem diferente. O cenário em 1965, trazia a insatisfação dos
quartéis e a dissolução da coalizão anti-Jango, decepcionada com os rumos tomados
pelo governo de Castelo. Isso ficou mais claro com os resultados das eleições de
1965, onde o novo regime sofreu derrotas em dois importantes estados, que haviam
apoiado o movimento dos quartéis no ano anterior, a Guanabara e Minas Gerais. Daí
viria a sequência dos Atos Institucionais seguintes.
Para NAPOLITANO (2014),97
estes Atos traziam como principal objetivo o
reforço do Poder Executivo, particularmente da figura do presidente da República. Se
o poder presidencial se pautasse apenas nas Forças Armadas, poderia haver sérias
divergências e conflitos entre lideranças militares, jogando umas contra as outras, e
quem tivesse acesso direto à tropa estaria em vantagem. Para se evitar uma
fragmentação ou a formação de verdadeiras “facções” que poderiam erodir com a
unidade das Forças Armadas (unidade esta tão propalada durante o governo Jango,
que foi visto por muitos oficiais como uma “ameaça” que poderia trazer a quebra da
disciplina e da hierarquia na corporação), os Atos consolidaram uma forma de
“normatização autoritária”. Isto para repelir tais riscos, dando amparo jurídico à
tutela da sociedade civil e do sistema político através do Estado, evitando-se a
personalização do poder político que colocaria em xeque o caráter militar do regime.
Buscava-se rotinizar a autocracia, através da figura do presidente.
Então isso ajuda a entender porque, no Brasil, o regime não foi a ditadura de
um só homem (general), mas se teve a passagem de cinco generais-presidentes, em
nome de uma “rotina normatizada” em que havia todo um processo de “articulação
sucessória” que levaria ao nome do próximo presidente, criando-se uma estranha
lógica amparada por normas, em que o regime era autoritário, mas mantinha-se uma
“fachada democrática” com um Congresso Nacional mantido em funcionamento
(com exceção de alguns períodos). Era assegurado e “legitimado” tal sistema com o
Legislativo federal “referendando” o próximo presidente, já devidamente escolhido
pelos militares.
97 Id., Ibid., p.79 e 80.
150
Claro que aí não havia nenhuma democracia, nem participação popular nisso
que está sendo exposto, porém o emaranhado de legislações que basilavam o sistema
autoritário, mais toda a retórica magistratural, davam uma máscara de “legitimidade”
ao regime. Talvez este embrenhado sistema político, que dava abertura ao cidadão
para votar em cargos Legislativos, por exemplo; a existência de partidos políticos
(não um, mas dois, sendo um deles de oposição – consentida – mas de oposição);
toda essa normatização política e jurídica; e a elaboração de macroplanos de
desenvolvimento para o país (ou para determinadas regiões, como a Amazônia) -
entre outros fatores, possam ser o cerne que ajudaria a explicar porque o regime
militar brasileiro se diferenciaria de outros congêneres da América do Sul, na mesma
época.
O revés eleitoral foi respondido pelo regime com a promulgação do Ato
Institucional n°2. O AI-2 pode ser visto, como já mostrado antes, como um marco na
mudança de um governo que se considerava transitório para um regime autoritário
solidamente estabelecido. Foi a cisão, praticamente definitiva, entre os militares e os
políticos conservadores que queriam assegurar seus interesses partidários e eleitorais,
como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. O AI-2 fora a definitiva certidão de
nascimento do regime autoritário se rememorarmos a colocação de Marcos
Napolitano.
Para BARROS (1998), o AI-2 não representou o nascimento do regime militar,
(para ele, o começo foi com o golpe de 1964), mas o AI-2 foi ali apontado como um
momento em que o regime encorpou tornando-se mais sólido e explícito quanto às
suas intenções.
Em fevereiro de 1966, vem o AI-3, estabelecendo as eleições indiretas para
governadores e nomeação de prefeitos para as capitais. Em março são criados, por
imposição do Ato Complementar nº4: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), como
partido da situação; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), como partido da
oposição consentida.
O AC-4 exigia que as organizações partidárias registrassem no mínimo 120
deputados e 20 senadores. Na época, a Câmara Federal contava com 409 deputados,
e o Senado com 66 membros. Pela matemática seria possível organizarem-se três
partidos. Mas, não era o que o regime queria. O objetivo aí era duplo: 1º) evitar um
151
sistema de partido único; e 2º) barrar a fragmentação partidária do período
precedente. Assim restava-se a alternativa do bipartidarismo, inspirado nas
democracias anglo-saxãs (Estados Unidos e Reino Unido).O grande problema do
sistema bipartidário estabelecido em 1965-66 era o seu artificialismo (SCHIMITT,
2000). Colocado de cima para baixo, este sistema não foi fruto de uma dinâmica das
preferências eleitorais da opinião pública ao longo do tempo.
Segundo a cientista política Maria D’Álva Kinzo (in :SCHIMITT, 2000), o
propósito estratégico do regime era montar um sistema partidário organizado em
termos de apoio ou oposição ao governo. Uma única legenda com todos os
congressistas, de diferentes tendências políticas, mas favoráveis ao regime. E um
modesto partido de oposição reunindo o restante.
O problema deste artificialismo é que toda a classe política da época, ainda que
apresentasse muitíssimos defeitos e fosse passível de diversas críticas, ficou
comprometida. Isso porque para os parlamentares da oposição, quais seriam os
limites para uma atuação efetiva em um regime militar, e como poderia afetar o
desempenho da agremiação em eleições realizadas dentro de um período autoritário.
Para o núcleo que reunia os apoiadores do regime, restava a dúvida se a reunião de
diferentes grupos políticos, numa única legenda, poderia afetar as disputas políticas
regionais, em que tais grupos eram frequentemente rivais.
O teste, pelo governo militar, desse sistema bipartidário nas eleições seguintes,
e os resultados favoráveis ao governo, permitiu a manutenção de tal sistema pelo
regime até onde lhe fosse conveniente.
Ao todo foram, entre 1964 a 1977, 17 Atos principais, 104 Atos
Complementares e os “decretos secretos”, que constituíram este emaranhado de leis.
O governo Castelo baixou 4 Atos Institucionais e, no ano de 1967, foi criado o
Conselho de Segurança Nacional, amparado por nova Lei de Segurança Nacional,
tornando virtualmente todo cidadão um vigilante e um suspeito, ao mesmo tempo,
dada a variedade de crimes políticos. É como se cada cidadão fosse um potencial
perigo à “segurança interna”.
Todo este sistema de segurança pautava-se numa rígida divisão de tarefas: uns
coletavam informações, outros analisavam e outros reprimiam. Segundo
152
CHIAVENATO (2006), o trabalho mais “sujo”, relacionado às torturas e
interrogatórios, ficavam a cargo do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e
do Dops (utilizando-se a estrutura das secretarias de segurança estaduais). Os
encargos da Polícia Federal eram a repressão e a censura.
Chiavenato também aponta que o SNI não foi somente legalizado e
reconhecido apenas três meses após o golpe. Também afirma que o general Golbery
já vinha organizando a estrutura do SNI, ainda na fase de conspiração. Sua base
foram os arquivos do Grupo de Levantamento de Conjuntura, do Ipes. Do Ipes para o
SNI foram transferidas as fichas de 400 mil cidadãos “suspeitos”.
Era como se fosse um “Estado policial” (termo de Chiavenato). A rotina de
interrogatórios, torturas e até de perda de empregos atormentavam os suspeitos.
Quando não era uma propaganda “ufanista” do regime, o medo era disseminado à
população estimulando-se a delação. Mais adiante, já em 1969, verdadeiras “cartilhas
de segurança” foram distribuídas pelos Dops nas portarias de prédios, fábricas,
escolas, etc., com orientações do tipo:
“Antes de formar uma opinião, verifique várias vezes se ela é realmente sua,
ou se não passa de influência de “amigos” que o envolveram. Não estará sendo você
um inocente útil numa guerra que visa destruir você, sua família e tudo mais o que
você ama nesta vida?” (CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a Ditadura
Militar, Ed. Moderna, São Paulo, 2006 – Coleção Polêmica – págs 152 e 153)
Lembremo-nos que naquele ano a opção pela luta armada, por parte de alguns
setores das esquerdas, estava numa maior evidência.
Em junho de 1964, foi aprovada a Lei de Greve que tramitava há 14 anos no
Congresso. Seu relator foi o deputado Ulysses Guimarães (PSD), que, segundo
Roberto Campos, se encontrava bastante entrosado com o sistema revolucionário.98
A nova lei criou dificuldades para a eclosão de greves. Proibia a paralisação dos
servidores públicos, os “piquetes ofensivos” e as greves “por motivos político-
partidários, religiosas, sociais, de apoio ou solidariedade. Ou seja, a conclusão é que,
na prática, as greves estavam proibidas. O mesmo Ulysses Guimarães foi o autor do
substitutivo da nova lei de Remessa de Lucros, substituindo a anterior, de 1962.
98 VILLA, Marco Antônio. Op.cit.p.62.
153
Foram retirados os artigos que criavam dificuldades à livre circulação do capital
estrangeiro
O governo ainda preservava algumas liberdades como a de opinião e
expressão, evitando uma ruptura frontal com valores liberais que também tinham
apoiado o golpe de 31 de março de 1964. Generalizando, pode-se incluir entre os
liberais: a grande imprensa, os grandes empresários e suas associações, políticos
udenistas, os inimigos do trabalhismo e do getulismo, profissionais liberais e muitos
dos velhos políticos do PSD.
Exemplo disso foi o próprio Juscelino Kubitschek, que se em 1961, ficara um
tanto contrariado com a solução parlamentarista para a posse de Jango, acreditando
que aquilo era apenas uma forma de adiar o enfrentamento de uma grave crise que
realmente viria depois, no período janguista. No entanto, mostrara-se neutro no
episódio do golpe de 1964, mas em seguida, ajudara a eleger Castelo Branco, por
acreditar que a deposição de Goulart fosse a melhor opção naquela ocasião, para
talvez, o próprio JK voltar em 1965 disputando as eleições para presidente. Não foi o
que aconteceu. Apenas dois meses após o golpe, JK foi cassado para a satisfação dos
quartéis, desejosos de se livrarem de políticos vistos como populistas e identificados
com a fase anterior da República brasileira. Via-se que as cassações já não se
restringiriam às esquerdas, mas também atingiriam até políticos conservadores da
fase precedente. Carlos Lacerda, que articulara pela cassação de Juscelino, visando
sua própria candidatura à presidente em 1965, romperia com Castelo naquele mesmo
ano, insatisfeito com os rumos econômicos que o governo vinha trilhando.
Desde o início do governo militar, a esquerda, como não podia deixar de ser,
foi perseguida em todas as suas matizes. Políticos identificados com a velha ordem
foram cassados nos primeiros dias de abril e tiveram que sair do país. Entre a
liderança nacionalista, o principal alvo foi Leonel Brizola, que buscou exílio no
Uruguai, assim como ocorrera com Jango.
Na verdade, um sistema partidário e os políticos “de ofício” eram um entrave
para os militares que, à luz do pensamento geopolítico brasileiro, desejavam uma
ditadura republicana, em que os mais capazes tutelariam os conflitos de classe de
uma forma técnica. Dentro desta influência positivista, o regime ideal para os
militares seria aquele sem contestações ou conflitos. Por isso, um caminho para isso
154
era a repressão e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) se adequava à essa
tradição militar.
Carlos Lacerda, ironicamente, se aproxima de Juscelino e até de João Goulart,
procurando articular a Frente Ampla. O momento parecia propício, já que Castelo
Branco enfrentava dificuldades em colocar o Brasil no rumo do crescimento. O
Executivo federal vinha em atrito com o Congresso Nacional que se recusara em
confirmar a cassação de seis parlamentares. Tal impasse levou ao fechamento do
Legislativo federal por 32 dias, em 1966. O regime atingia a marca de 67 cassações
parlamentares desde o seu início.
A Frente Ampla, em seu manifesto, criticava a política recessiva de Castelo e
defendia o processo democrático, interrompido em 1964 (e que Carlos Lacerda, aliás,
tanto trabalhara para interrompê-lo também), apelando para empresários,
trabalhadores, estudantes e até aos sentimentos patrióticos dos militares contra a
“traição” antinacional e antidemocrática do regime. Mas, buscava-se o diálogo, e não
uma luta armada.
Quanto às esquerdas, o PCB procurava se articular com alguns liberais,
arrependidos de terem apoiado o regime, e apregoava por uma resistência civil (não
armada) ao mesmo regime. Esta postura de procurar se unir a outros grupos
contrários ao regime, denunciando o governo como “entreguista” e subserviente aos
Estados Unidos sem, contudo, radicalizar o discurso em prol da revolução socialista,
seria a brecha para que alguns de seus quadros se desligassem do “Partidão” e
partissem para a luta armada.
O espaço para a resistência democrática – e com forte presença da classe média
urbana – era a cultura em seu sentido mais amplo (VILLA, 2014): a literatura, a
música popular, o cinema e o teatro, que tematizavam os dilemas do país. Apesar da
repressão e da censura, ocorreram os primeiros festivais de música popular. Primeiro
na TV Excelsior (1965), depois na TV Record e na TV Globo (1966). No teatro, as
peças politizadas dos teatros Oficina e Arena, a poesia e a prosa engajadas, e vários
filmes da conjuntura política e com foco especialmente no mundo rural.
No ano de 1966, Carlos Lacerda, buscando o apoio de antigos inimigos
políticos como João Goulart e Juscelino Kubitschek, articula a Frente Ampla. O
155
movimento estudantil foi ganhando corpo sendo combatido pela polícia. Ainda neste
ano editou-se o AI-4 convocando-se o Congresso para discutir e aprovar a nova
Constituição, promulgada em 24 de janeiro de 1967, reforçando sobremaneira o
Poder Executivo e, dentro deste período, também seriam impostas a Lei de Imprensa
(prevendo sérias punições aos jornalistas transgressores) e a Lei de Segurança
Nacional.
O Ato Institucional nº 4 foi o fechamento com “chave de ouro” da “ditabranda”
de Castelo Branco. O Congresso havia sido convocado para apreciar o projeto da
Constituição, num prazo de 33 dias corridos, entre 12 de dezembro de 1966 a 24 de
janeiro de 1967, descontando-se os dez dias de recesso das festas de fim de ano. O
projeto teve a redação final do ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. Pode
parecer piada mas, de acordo com o ministro Medeiros, os parlamentares deveriam
se adequar aos “novos tempos”:
“A Revolução não se fez somente para extirpar a Carta Magna preceitos que,
no curso do tempo, se tornaram obsoletos; tinha de inovar e o fez, através de Atos e
Emendas Constitucionais, com o objetivo de consolidar a democracia e o sistema
presidencial de governo.” (grifo meu) (VILLA, 2014. Op.cit. pág. 95)
A eleição direta para presidente foi eliminada. Foi estabelecido o Colégio
Eleitoral. Destacável foi a justificativa do ministro da Justiça:
“ O traumatismo da campanha pela eleição direta ou degenera o processo
eleitoral ou impede o vencedor de governar em clima de paz e segurança. É preciso
mudar o processo de escolha do presidente da República, instituindo-se a eleição
indireta, por um colégio eleitoral restrito.” (grifo meu) (Id.,Ibid., pág. 96)
E vem mais: “Com isso, a campanha dos candidatos ficará limitada no tempo
a um eleitorado qualificado. A agitação e o traumatismo, que a escolha do
presidente tem provocado, cessarão por falta de ambiente e ressonância” (grifo
meu) (Citado por SARASATE, Paulo. A Constituição do Brasil ao alcance de todos.
Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1967, pág 103 in: VILLA, 2014. Op. cit. pág. 96)
Para completar, a nova Carta deu ao presidente da República a iniciativa
legislativa através do decreto-lei.E os atos praticados pelo “Comando Supremo da
Revolução” seriam excluídos de apreciação judicial e automaticamente aprovados.
156
Gustavo Capanema, experiente deputado da época, definiu: “Vocês da UDN, que
tanto combateram a Polaca de 1937, aparece-nos agora defendendo esta
Superpolaca” (grifo meu) (VILLA, 2014. Op.cit. pág. 98, nota de rodapé nº34)
Em 15 de março de 1967, Castelo encerrava seu governo. A sua “ditabranda”
legou ao país uma herança política de 4 atos institucionais, 37 atos complementares,
312 decretos-leis e milhares de atos punitivos (muitos já citados antes). Porém, a
economia começava a reagir: a inflação caiu de 92% (em 1964) para 39% (em 1966).
O PIB voltara a crescer – da taxa de 0,6% (em 1963), registrou uma média de
crescimento de 4,2% (entre 1964 a 1967). O Estado brasileiro foi reformado. O
sistema fiscal e tributário, idem. Buscou-se uma maior integração à economia
mundial.99
Mas, no plano político não conseguiu harmonizar a “fúria” dos quartéis, dos
grupos que podemos aglutinar na chamada “linha-dura” militar, com a manutenção
de algum espaço para a política. Não fez o sucessor do seu agrado. Prometeu
entregar o governo em janeiro de 1966, mas só sairia 14 meses depois. A meu ver,
não tem como chamar tal período de “ditabranda”, com tantas medidas autoritárias
realizadas, com uma nova Carta Magna que desnudava a cara do regime, e com uma
cimentação e alicerces tão solidamente institucionalizados para a construção do
regime. Mas, o aparecimento do termo “ditabranda” pode significar também que o
pior estava para vir (se tomarmos, em especial, o aspecto político-institucional do
regime). E veio, com o AI-5 e os Anos de Chumbo”.
99 Id., Ibid., p.102.
157
3.2 – Governo Costa e Silva (1967-1969)
Arthur da Costa e Silva, o 2º general-presidente do regime militar. Governou o Brasil de
15/03/1967 a 31/08/1969
http://pt.wikipedia.org/wiki/Costa_e_Silva
O general Artur da Costa e Silva tomou posse como presidente em 15 de março de
1967. Golpista desde o início e anti-comunista, era ligado à "linha-dura". Em seu
discurso de posse, conforme VILLA (2014),100
utilizou o vocábulo “revolução” por
quatorze vezes; e o vocábulo “democracia” por oito vezes. Como não podia deixar de
ser, defendeu o regime com entusiasmo, fruto de uma “Revolução” e não de um mero
golpe de Estado. Reforçou que o regime tinha “profundas origens populares” já que as
Forças Armadas estiveram ao lado do povo na luta pelos mesmos ideais.
Reforçando-se os argumentos de Costa e Silva vem a seguir um trecho de seu
discurso:
100 Id., Ibid., p.106.
158
“Há, todavia, quem fale em ditadura, como se nós não a tivéssemos conhecido
jamais. O desmentido está no fato de ser possível formular e divulgar a crítica injusta,
que se manifesta, sem obstáculos na imprensa, na tribuna pública, nos movimentos
políticos. E o desmentido mais flagrante está precisamente nesta hora em que o
Congresso Nacional, como representante autêntico do povo brasileiro, elege um
presidente da República. Numa ditadura, o ditador não se deixa substituir. Entre nós, o
escrúpulo republicano foi de tal monta, que o mesmo presidente Castello Branco, num
gesto altamente democrático, estabeleceu, em Ato Institucional, o preceito proibitivo de
sua reeleição”101
Percebe-se aqui que o regime militar brasileiro verdadeiramente se diferenciou de
outros regimes militares latino-americanos (basta lembrar que, no Chile, o general
Pinochet permaneceu no poder por dezessete anos ininterruptos, entre 1973 a 1990).
Tanto que Costa e Silva argumentou com a não perpetuação de Castelo Branco na
Presidência da República, reforçando que um Congresso Nacional em funcionamento,
eleito pelo povo, referendava a posse do segundo mandatário do regime de 1964. Por
outro lado, na Argentina e no Peru, por exemplo, não tivemos um único ditador, em
seus respectivos regimes militares. Todavia, a caracterização de um presidente
transferindo o poder a um sucessor, com um Legislativo em funcionamento, realmente
confunde a cabeça de um cidadão mais “desatento” dando uma maquiagem
“democrática” ao grupo que está no poder. Daí que, relembrando a fala da professora
Maria Aparecida de Aquino, o termo “ditadura”, para ser aplicado no caso da situação
político-institucional do pós-1964 seria bastante controverso. Assim repito, prefiro me
referir ao período como “regime militar” ou “Estado autoritário”. Quando muito poderia
referir-se à uma “ditadura militar”, no sentido de ser a ditadura, não de um único
governante, mas de um determinado grupo – os militares, as Forças Armadas – que
ditaram as regras durante aqueles 21 anos, como relembrei mais de uma vez. Embora
seja digno de nota que o Exército teve mais preponderância do que a Marinha e a
Aeronáutica. É só lembrar que os cinco presidentes deste período autoritário eram todos
generais, com carreiras no Exército, e mais ainda, os militares que ocuparam cargos
importantes durante o período, como no primeiro escalão sendo titulares de pastas de
101 Id., Ibid., p.107.
159
Ministérios, vinham do Exército. O único momento em que teremos uma repartição do
poder entre as três Forças será na formação da Junta Militar que, durante poucos e
decisivos meses de 1969 (entre agosto e outubro) e a despeito das disputas sucessórias
após a grave enfermidade de Costa e Silva, conseguiu assegurar um processo sucessório
para a posse do general-presidente seguinte: Emílio Garrastazu Médici.
No governo Costa e Silva, o planejamento ganharia importância nas práticas do
governo privilegiando o capital privado e fortalecendo o aparelho estatal. Na equipe
ministerial destacavam-se entre os civis: Antônio Delfim Neto - da Fazenda; Hélio
Beltrão - do Planejamento; e Magalhães Pinto (ex-governador mineiro) - nas Relações
Exteriores. Aliás, Magalhães Pinto foi o último titular daquela pasta vindo dos quadros
de fora do Itamaraty. A sua indicação foi uma forma de ter um político civil influente no
governo para evitar de tê-lo numa oposição, ainda que moderada, como ocorrera no
governo Castelo Branco.
Contudo, havia o predomínio de figuras militares como: os coronéis Mário
Andreazza - nos Transportes; Jarbas Passarinho - na pasta do Trabalho e Previdência
Social; e o general Emílio Garrastazu Médici que se tornou chefe do SNI (Serviço
Nacional de Informações).
Como uma forma de se popularizar a figura do presidente e o próprio regime, o
discurso e a ação eram voltados a evitar uma valorização da forma ditatorial do governo
como sendo positiva. Isto porque, indiretamente, seria manifestar apoio ao Estado
Novo, e 1964, na leitura dos militares, tinha que ser uma resposta ao varguismo102
Mas nem todos estavam “desatentos”. O líder da oposição na Câmara Federal, o
deputado Mário Covas, afirmara que o presidente fora bastante superficial nas propostas
para combater os principais problemas nacionais e reestabelecer a democracia. Mais
adiante será visto que foi a partir de um episódio ocorrido na Câmara que o regime terá
o pretexto para a implantação do AI-5.
Na economia, a política recessiva de Campos e Bulhões, colocada em prática
durante a gestão de Castelo Branco, provocava críticas até do médio empresariado
102 Id., Ibid., p. 109.
160
nacional que tinha apoiado o regime. Delfim Neto acreditava que o problema
inflacionário já havia sido equacionado e, com o objetivo de se recuperar o crescimento,
a sua equipe, junto com a de Hélio Beltrão, participaram da elaboração do Plano Trienal
de Governo para o período de 1968 até 1970. Contudo, antes deste Plano, Hélio Beltrão
havia lançado o Programa Estratégico de Desenvolvimento que procurava solucionar os
problemas referentes aos financiamentos para a comercialização dos alimentos; fazer
crescer a produtividade econômica; e combater pontos de estrangulamento através do
desenvolvimento infra-estrutural. Mantinha-se a custo disso o arrocho salarial aos
trabalhadores. Com Delfim Neto, seriam adotadas medidas de redução dos juros
facilitando o crédito para empresas multinacionais buscando-se acelerar o crescimento
da economia e tirá-la da recessão.
No governo Costa e Silva, a Frente Ampla foi se tornando o verdadeiro órgão
civil de oposição ao regime atraindo até os militares descontentes. O ano de 1968 seria
marcado por esta e outros setores oposicionistas ganhando força nas manifestações,
pronunciamentos, greves, bem como o avanço da guerrilha urbana. Estes doze meses
foram de esperança, que se defrontaria com o aumento da repressão culminando com o
Ato Institucional nº5, de dezembro de 1968.
Oficialmente formalizada em 4 de setembro de 1967, a Frente Ampla pode ter
consideradas como suas “certidões de nascimento”: o Manifesto da Frente Ampla,
redigido por Lacerda e publicado no jornal Tribuna da Imprensa, em 28 de outubro de
1966; e a Declaração de Lisboa (de 19 de novembro de 1966) em que Lacerda, após
inicialmente conversar com JK, divulgou a declaração se comprometendo a reunir
forças contra o regime. A Frente era resultado de uma ação do ex-governador da
Guanabara, Carlos Lacerda, em se aproximar dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e
João Goulart, procurando se constituir em uma frente política mais fortemente
estruturada contra o regime militar.
Não seria tarefa fácil reunir lideranças tão díspares e de projetos tão distintos. O
programa mínimo da Frente era a da defesa de uma anistia geral, uma nova
Constituição, o reestabelecimento de eleições diretas e um programa de reformas. A
aliança entre Lacerda, JK e Jango contava com o apoio de parlamentares da Arena e do
MDB, além de numerosos políticos que não aderiram ao bipartidarismo.
161
Lacerda era o único daqueles três que ainda contava com direitos políticos. Sua
intenção era retornar ao primeiro plano do cenário político. Lacerda, como de praxe,
atacava e criticava, agora, o segundo governo militar, assim como fizera com Castelo
Branco, e antes do golpe: com Jango, com Getúlio... Foi o primeiro político a utilizar a
televisão para as suas mensagens, mas os tempos eram outros e, em 28 de agosto de
1967, estava proibido de falar na TV.
Não se dando por vencido, no mês seguinte, Lacerda anunciou que se encontraria
com João Goulart no Uruguai. Tal encontro e possibilidade de diálogo seriam
inimagináveis quatro anos antes. Porém, tal anúncio desgastou Lacerda com os militares
que o apoiavam. Se Carlos Lacerda recebeu críticas dos militares simpáticos a ele,
Goulart também seria criticado por outro exilado no Uruguai, Leonel Brizola.
A Frente, além das divergências entre seus principais expoentes, também não
conseguiu deslanchar. A força de Jango se restringia somente ao Rio Grande do Sul, seu
estado natal, e ele já não tinha o controle dos antigos trabalhistas. Juscelino, agora
desprovido da máquina partidária do PSD, escorava-se no seu prestígio de ex-
presidente. O único que ainda conseguia fazer algo efetivo era Carlos Lacerda, através
de seus pronunciamentos públicos criticando o militarismo, a política econômica e a
corrupção (o que não era novidade em se tratando de Carlos Lacerda).
Geograficamente, a Frente teve maior expressão no Rio de Janeiro. Somente
Lacerda havia nascido lá, mas seus principais líderes residiam na cidade que antes era a
antiga capital federal. Ali, a Frente encontrou maior ressonância, porém não conseguiu
aglutinar uma mobilização das massas. Faltava uma estrutura permanente, quadros
políticos ativos e objetivos a serem alcançados. Já em São Paulo, a Frente Ampla foi
bastante tímida, talvez pelo tradicional conservadorismo paulista, mas principalmente
porque suas principais lideranças políticas – Jânio Quadros e Adhemar de Barros –
estavam com os direitos políticos cassados e não foram efetivamente procurados para tal
iniciativa. Além disso, nos cenários políticos paulista e paulistano, novos líderes
apareciam, dando à cidade e ao estado de São Paulo, uma feição peculiar, produto da
expansão capitalista e da formação de uma sociedade burguesa.
A Frente Ampla teve suas atividades proibidas em abril de 1968. Foi a última
tentativa de uma oposição civil, marcadamente contando com políticos da ordem
162
institucional anterior. O seu fracasso representaria praticamente o fim da história
política de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e de João Goulart.
1967 foi o ano do anúncio dos estudos realizados para a construção da primeira
usina nuclear no Brasil. Esse projeto estava associado a uma política que englobava o
sonho de se construir uma bomba atômica brasileira. O argumento era que a Argentina
estava à frente do Brasil no domínio da tecnologia nuclear. Para tanto, o Brasil não
apoiou as primeiras iniciativas que levariam ao Tratado de Não Proliferação de Armas
Nucleares. Pelo menos, nesse ponto, que podemos considerar até crucial por conta do
contexto da ordem internacional da bipolaridade (Guerra Fria), o Brasil apontava para
uma política externa distinta da que fora adotada nos tempos de Castelo Branco,
buscando guardar certa independência com relação aos Estados Unidos naquele
momento.
O ano de 1968 se inicia com a emersão de um novo desgaste no regime militar:
havia certo “cansaço”103
com a presença dos militares em todas as esferas do governo.
Nesta atmosfera, o governo encaminhou para o Congresso uma lista com 234
municípios para transformá-los em “áreas de Segurança Nacional”, o problema é que a
lista apresentava, em sua maioria, municípios com forte oposição do MDB, como era o
caso de Campina Grande, na Paraíba, onde a oposição era majoritária. O projeto
enfrentou resistência até de políticos da Arena. Por fim, a lista caiu para 68.
O movimento estudantil acabou capitalizando a insatisfação com o regime. A
agitação estudantil também deixaria suas marcas em outras partes do mundo – como na
Europa Ocidental e na própria América Latina (no Mexico, por exemplo, no mesmo dia
em que ocorreu a “Batalha da Maria Antônia”, em São Paulo, ocorreu o massacre dos
estudantes na Praça das Três Culturas, na Cidade do México. As manifestações estavam
mais concentradas no Rio de Janeiro. A 28 de março ocorreria o assassinato do
secundarista Édson Luís gerando inúmeras manifestações de protesto. Em 1º de abril
103 Id., Ibid., p. 118. Marco Antônio Villa (2014), em sua obra usou o vocábulo “cansaço” para se
referir ao desgaste, que se acentuava, por conta da combinação, dentro do regime militar, entre
caracterísiticas autoritárias (como a legislação “revolucionária” que já trazia 4 Atos Institucionais; e
características ditas “liberais”, como o funcionamento do Congresso Nacional. Para Villa, esta
estranha combinação tinha chegado ao limite.
163
mais um estudante seria morto em uma passeata, desta vez em Goiânia. Seguiram-se
protestos não no tocante à situação política, mas também contra a má qualidade do
ensino.
Os setores mais “duros” do regime desejavam fechá-lo ainda mais. Aproveitando-
se de uma certa tibieza de Costa e Silva, usavam como argumento ao “fechamento” do
regime o exemplo, visto como positivo, da ditadura de Juan Carlos Onganía, na
Argentina.104
A tensão se agravava. Em 19 de março, os grupos da esquerda que optaram pela
luta armada davam seus sinais de fôlego: uma bomba explodiria no consulado
americano, em São Paulo. Há duas versões: uma atribui o ato à VPR (Vanguarda
Popular Revolucionária); uma outra à ALN (Aliança Libertadora Nacional). Bombas
também explodiram, no mês seguinte, no jornal O Estado de São Paulo e outra na sede
da Bolsa de Valores.
O MDB estava dividido: uma ala do partido desejava um enfrentamento mais
contundente e direto contra o regime; outra ala defendia a manutenção de uma política
conciliatória e de diálogo com o governo.
Para apimentar mais a situação, após quatro anos se inicia a primeira greve de
trabalhadores do período autoritário. Foi em Contagem (MG), centro de indústrias
metalúrgicas. A greve teve a liderança de vários grupos de esquerda oriundos da
fragmentação do PCB. A cidade chegou a ser ocupada pela polícia. Jarbas Passarinho,
então ministro do Trabalho, chegou a falar pessoalmente com os operários. O
movimento seria encerrado pelo menos com uma vitória: os trabalhadores conseguiram
um aumento de 10% sem desconto na data base oferecido pelo governo. Se não era
muito, pelo menos, rompeu-se naquele episódio o arrocho salarial.
Enquanto isso, em São Paulo, o governador Abreu Sodré, compareceu a um ato do
1º de maio, na Praça da Sé. Ele tentava articular um movimento para ser o sucessor de
Costa e Silva. O problema é que havia lideranças de esquerda ali também e os discursos
se radicalizaram. A presença do governador paulista naquele ato, após os
104 Id., Ibid., p. 120.
164
acontecimentos de Contagem só agitaram os ânimos. No final das contas, atingido por
um pedrada, Abreu Sodré teve que ser retirado.
Se o governo ia conseguindo frear os políticos, mudando o status de 68 cidades
declaradas “áreas de Segurança Nacional”, podendo assim impedir que o MDB tivesse a
possibilidade de eleger 90 prefeitos, inclusive das 22 capitais, o regime também
aproveitava a oportunidade para aprimorar o controle arenista no Legislativo Federal e
nos estaduais. Contudo, com os estudantes a situação era muito mais complicada.
Violentos confrontos ocorreram nas ruas da antiga capital federal entre estes e a polícia.
Negrão de Lima era o único governador da oposição (ultramoderada, por sinal) naquela
época. Mesmo assim, o governo federal não deu brechas ao impor um novo secretário
de Segurança Pública.
Em 26 de junho, no Rio de Janeiro, ocorreria uma passeata com mais de 100 mil
pessoas com presença de universitários, políticos, professores, intelectuais, etc., mesmo
após a proibição, no dia anterior, através de uma portaria do Ministério da Justiça. A
célebre passeata foi o ápice do movimento contra os arbítrios do Estado Autoritário. As
bandeiras estudantis deram o tom da passeata, mas as reivindicações por liberdades
democráticas e o fim da censura estavam também na pauta. A manifestação levou o
presidente Costa e Silva a receber uma comissão constituída por manifestantes lá em
Brasília. Contudo um diálogo e uma negociação pareciam cada vez mais impossíveis e
nenhum avanço foi obtido.
165
Momento da “Passeata dos 100 mil”, Rio de Janeiro, 26 de junho de 1968
Fonte: http://www.estudopratico.com.br/wp-content/uploads/2014/07/passeata-dos-cem-mil.jpg
Outro momento da “Passeata dos 100 mil”, em 26/06/1968, na cidade do Rio de Janeiro. Naquele dia, as
oposições ao regime militar mostraram a sua força. Mas o sonho de um Brasil diferente, com liberdades
políticas e redemocratizado, seria desfeito no final daquele ano com o AI-5
Fonte: https://palavrastodaspalavras.files.wordpress.com/2008/06/1968-passeata-do-cem-mil-rj-sem-
credito-1998-009917_pop.jpg
166
Ainda que o movimento estudantil estivesse a todo o vapor, o aumento da
repressão fez a classe média recuar no apoio aos movimentos de resistência. Outro
problema era a indiferença popular que não se identificava com os estudantes. O
cotidiano dos trabalhadores e dos segmentos médios da sociedade era diferente e os
sinais de crescimento econômico deixavam estes últimos grupos mais acomodados e
ajudavam a legitimar o regime. Exemplo disso foi a “Batalha da Maria Antônia” em
que alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo (FFCL-USP) entraram em violento confronto com estudantes da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Nesta batalha, um aluno secundarista, José Carlos
Guimarães, foi morto com um tiro na cabeça. Porém, ao contrário da morte do
secundarista Edson Luís, apenas seis meses antes, esta morte ocorrida em 2 de
outubro de 1968 passou quase despercebida. De acordo com BARROS (1998), os
alunos da Universidade Mackenzie eram ligados ao CCC (Comando de Caça aos
Comunistas) e com a ajuda da polícia, tomaram a FFCL-USP, na época localizada
justamente na rua Maria Antônia. Ao tomar a Faculdade, o CCC incendiou o prédio
após a expulsão de seus defensores.
Infelizmente os estudantes estavam ficando cada vez mais isolados e a opção
pelo extremo da luta armada vinha se tornando a única alternativa para grupos mais
radicais da esquerda que, num contexto de recuperação da economia e de futuras
possibilidades para as classes médias, também ficaram cada vez mais isolados. Era
isso que o regime queria. Para completar, ainda em outubro, o XXX Congresso da
UNE em Ibiúna (SP) teve um desfecho péssimo com a prisão de todas as principais
lideranças do movimento estudantil nacional, entre eles José Dirceu.
Ao mesmo tempo, em São Paulo, pequenos grupos da esquerda iam à ação. Em
22 de junho foram roubados onze fuzis do Hospital Militar, na capital paulista. E,
quatro dias depois, quando se desenrolava a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro,
a cidade de São Paulo foi palco de um ataque perpetrado pela VPR (Vanguarda
167
Popular Revolucionária). Um carro carregado de explosivos foi lançado contra o
alojamento dos oficiais do II Exército causando a morte do sentinela Mário Kozel
Filho, de apenas 18 anos. Episódios como esse têm sido citados por críticos aos
trabalhos das Comissões da Verdade e aos Direitos Humanos, apontando que haveria
uma excessiva “vitimização” com relação aos guerrilheiros e membros de tais grupos
da luta armada (aliás, um grande número deles estão entre os mortos ou
desaparecidos da época do regime) querendo também trazer o foco da discussão para
os soldados e policiais que foram abatidos por tais grupos, procurando-se igualar tal
“vitimização” entre os dois lados. Porém, mais adiante, será tratada esta discussão.
Até porque, de outro lado, apareceriam também os grupos paramilitares, como o
CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e o MAC (Movimento Anticomunista) que
promoveriam o terrorismo e acabariam por ser um apoio à repressão policial do
governo na luta contra os "subversivos". Interessante que esses grupos paramilitares
não são mencionados por tais críticos dos trabalhos realizados pelas Comissões da
Verdade e nem as violências que esses grupos possam ter cometido (é só lembrarmos
da morte do secundarista na “Batalha da Maria Antônia”).
Menos de um mês após a passeata dos 100 mil é em Osasco (SP) que estoura
uma nova greve. Semelhantemente a de Contagem, a greve foi deflagrada fora da
estrutura sindical (que se encontrava engessada pelo governo) e ainda contava com o
envolvimento de setores à esquerda do PCB. Mas ali o resultado não foi bom. Após a
ocupação das fábricas, o exército foi chamado para retirar os operários, o que foi
feito à base da força, e a cidade de Osasco viveu dois dias de pura repressão.
Na esfera política, o clima entre o governo e a oposição, mais precisamente
entre o Executivo e o Legislativo federais foi piorando. Em setembro de 1968, o
discurso do carioca e jornalista, deputado Márcio Moreira Alves, na Câmara, em que
referiu ao Exército como um “valhacouto de torturadores”, acirrou a ira da linha mais
dura do regime que há muito vinha pressionando Costa e Silva. A Câmara Federal
168
não permitiu que Moreira Alves fosse processado por injúria às Forças Armadas,
garantindo assim a imunidade parlamentar. Era o pretexto que faltava ao Estado
autoritário. Em 13 de dezembro, Costa e Silva realizou uma primeira reunião só com
os ministros militares no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Depois reuniu-se
com todo o ministério. Foi apresentado o AI-5 em sua versão mais “branda”. A outra
versão, do ministro da Justiça, Gama e Silva (que se tornou a principal figura
representante dos mais extremistas do regime), previa nada menos do que o
fechamento permanente do Congresso, colocava o STF em recesso e intervinha em
todos os estados, depondo os governadores, ao pior estilo do Estado Novo de 1937.
Foi aprovada a versão “branda”.
Segundo o ex-ministro, Jarbas Passarinho, o AI-5 era um mal necessário, uma
licença jurídica para que a linha dura pudesse agir para prender os comunistas. Para
ele a ordem legal anterior dificultava o combate aos grupos armados de esquerda que
promoviam até “atos terroristas” (violência contra alvos civis). Dentro de seu
argumento, Jarbas Passarinho aponta a prisão de Carlos Marighella, em 1964, depois
solto através de um habeas corpus. Segundo as palavras do ex-ministro, só com o
amparo do AI-5 os militares conseguiram atacar.105
Por parte do ministro Jarbas
Passarinho veio um dos votos mais célebres à implantação do AI-5: “(...)às favas,
senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.106
O mau desfecho de 1968 se caracterizaria pela promulgação do Ato
Institucional nº 5, em 13 de dezembro daquele ano, fechando o enrijecimento da
ditadura, que entre outros artigos permitia: o fechamento indiscriminado do
Congresso, assembléias estaduais e câmaras municipais; estabelecia cassações de
direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de até dez anos; suspensão do
105 Revista Aventuras na História. 50 anos do golpe: a ditadura militar no Brasil. São Paulo: Ed Abril,
2014. p.68 e 69.
106 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 42.
169
habeas corpus na infração da Lei de Segurança Nacional; a não apreciação judicial
dos atos praticados de acordo com o AI-5, bem como os seus respectivos efeitos, etc.,
sendo ao todo doze artigos. Fortalecia-se a perseguição aos opositores e oficializava-
se o terrorismo de Estado. O Congresso foi expurgado de vários parlamentares, o
Judiciário também foi outro alvo onde três ministros do Supremo Tribunal Federal
foram forçados a se aposentarem. A censura foi regularizada em março de 1969
proibindo-se críticas ao governo e notícias sobre manifestações de estudantes e
trabalhadores. No ensino foram criados os cursos de Educação Moral e Cívica,
obrigatório para os alunos. Os setores ultra-autoritários do regime estavam
contemplados. Centenas de opositores foram presos: líderes políticos, sindicalistas,
jornalistas, intelectuais, artistas, etc. De acordo com VILLA (2014), não houve sequer
uma manifestação ou ato público. O AI-5 foi recebido em silêncio. Preso, Carlos
Lacerda iniciou uma greve de fome, mas logo foi desestimulado por seu irmão.
Segue-se nas palavras do autor Marco Antônio Villa a fala do irmão de Lacerda:
“Os jornais não estão noticiando nada disso; as praias estão repletas; está um
sol maravilhoso e está todo mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento
isso! Então você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra de
Dercy Gonçalves?”107
Com tudo isso, parece comédia, mas não é. Em 27 de dezembro, Costa e Silva
declarava que o seu governo “não almeja nem tolera a ditadura”108
. Não vou
discutir aqui se 1968 realmente foi o ano que não terminou – conforme o título da
obra de Zuenir Ventura – mas o final daquele ano trouxe estes dois episódios para se
107 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 132.
108 Id., Ibid., p. 133.
170
refletir sobre aquele ano: a fala do irmão de Carlos Lacerda; e a declaração de Costa
e Silva a cinco dias do ano-novo.
Num quadro desses, a única forma de contestação foi a luta armada que
abrangiam organizações de esquerda como a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e
o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Todavia as suas ações repetitivas
de assaltos a bancos fez com que a população, já alienada pela propaganda do
governo, os confundisse como assaltantes comuns e esbarraram ainda também no
fortalecimento dos órgãos militares de repressão e tortura. Tal crescimento dos
mecanismos repressores e sua autonomia com o AI-5 fez com que Costa e Silva fosse
perdendo o comando sobre as Forças Armadas devido ao seu isolamento
político.109
O então presidente procurou então uma reforma constitucional, porém
teve que se afastar do cargo em virtude de uma trombose cerebral, assumindo o
governo uma Junta Militar.
Na trilha do AI-5, Costa e Silva decretou em 7 de fevereiro de 1969 o
fechamento de cinco Assembléias Legislativas – as de São Paulo, Rio de Janeiro,
Guanabara, Pernambuco e Sergipe – por contrariarem os princípios da Revolução e
cassou ainda 33 parlamentares. No mês anterior já haviam sido cassados os mandatos
e suspendidos os direitos políticos de 28 deputados federais, um senador e um
vereador. E outras cassações foram ocorrendo nos meses seguintes, como a do
diplomata Vinícius de Moraes. O Decreto nº477 era direcionado ao movimento
estudantil. Estabelecia as infrações disciplinares praticadas por alunos, professores,
funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares.
O governo estava cada vez mais isolado. Não havia diálogo com a sociedade
civil. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que manifestara apoio
109 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 53.
171
ao regime, em maio de 1964, mudava o seu tom e posição um pouco menos de cinco
anos depois, assumindo uma postura de crítica ao regime. A falta de um espaço
político de luta fez com que a Igreja Católica cobrisse esse espaço não só com as
declarações de seus principais líderes, mas com o trabalho pastoral que começou a
ser desenvolvido, bem como uma guinada da juventude católica para a centro-
esquerda.
Costa e Silva estava há algum tempo desejando algumas alterações na
Constituição de 1967, preparando o país para uma transição para a democracia.
Tratava-se de uma emenda constitucional que não prometia trazer algo de novo, e
muito menos de bom. Tratava-se de incluir o AI-5 nas disposições transitórias, com
revogação prevista pelo presidente da República após consulta ao Conselho de
Segurança Nacional, assim como revogar ou comutar as sanções dos atos
institucionais, previa ainda a liberdade de associação e alguns direitos individuais.
Mas naquele tempo, com Congresso fechado; supressão das liberdades democráticas;
e violações gravíssimas dos direitos humanos, isso poderia representar uma pequena
“freada” na onda repressiva. O general-presidente apresentaria sua proposta em
setembro, quando viajaria ao Rio de Janeiro e assinaria a nova Constituição.
3.2.1- Embate Sucessório
Se forem considerados alguns prognósticos anteriores, não foi uma
completa surpresa a enfermidade que levaria ao afastamento de Costa e Silva de suas
funções presidenciais. Desde 1966, as condições de saúde daquele general-presidente
eram bastante precárias. Seu médico afirmara a um colega no momento da posse, em
março de 1967, que o presidente, até por já ter sofrido um enfarte, não resistiria por
172
mais do que dois anos (GASPARI, Elio. in: VILLA. Marco Antônio. Op.cit. p.140,
nota 33).
Costa e Silva cairia enfermo de vez em 29 de agosto de 1969, após dois dias
dos primeiros sinais de um derrame cerebral. Na época, o diagnóstico foi o de uma
“trombose na região parietal direita” ( Revista Veja, nº53, de 10 de setembro de 1969,
in: VILLA, Marco Antônio. Id., Ibid.,.p.144, nota 1º), afastando-o definitivamente de
suas funções, vindo a falecer em 17 de dezembro daquele mesmo ano. No momento
em que sofreu esta trombose, Costa e Silva finalizava a reforma constitucional que
desencadearia um processo de abertura política com a reabertura do Congresso,
reorganização partidária e o fim do AI-5. Os militares estavam muito divididos
acerca desta Constituição a ser aprovada, pois a principal alegação era a necessidade
de um Executivo forte. Daí resulta o impacto que teve o embate sucessório,
mobilizando o interior das Forças Armadas na época, acerca da sucessão de Costa e
Silva.
O embate, entretanto, era diferente do período democrático anterior, chamado
por CASALECHI (2002), de República Liberal ou de República Populista; e por
SCHIMITT (2000) de Terceira República.
O Estado autoritário de 1964 acarretou a saída de cena, especialmente do PTB
(identificados com Jango), desde os primeiros momentos do regime, em que a
maioria de seus quadros já haviam sido cassados. Posteriormente, as antigas
lideranças do PSD e da UDN (especialmente após o AI-5) perderam o seu espaço. A
elite política foi desaparecendo e figuras que poderiam ser consideradas até
medíocres - que num cenário democrático dificilmente teriam uma sobrevida
eleitoral - ganharam espaço à sombra do poder militar. A política tornara-se
sinônimo de algo ruim e parasitário. Para os militares muitas vezes a “velha” política,
era um empecilho, um embaraço. À medida que o jogo político estava manietado, a
oposição principal era agora a luta armada e as suas ações classificadas de
173
“terroristas”. Era o inimigo que os militares se sentiam mais à vontade para
combater, pois se tratava de uma guerra contra os “inimigos internos”, contra a
“subversão”, indo de encontro ao gosto dos militares que se sentiam muito menos
constrangidos em impor uma repressão cada vez mais feroz que asfixiava de vez a
oposição legal. O MDB carecia de maior legitimidade junto à população e muitas das
suas lideranças eram identificadas ao apoio dado ao golpe de 1964 e à eleição de
Castelo Branco.
O apoio popular poderia ser melhor expressada por essa indiferença à política,
conforme assinala VILLA(2014). No raciocínio do autor o regime se desembaraçava
de vez dos apoiadores civis do golpe e poderia agir sem as restrições do liberalismo.
A indiferença da maioria se pautava nos primeiros sucessos econômicos do regime,
que abrirão o período do “milagre econômico” – com queda da inflação, aumento do
emprego, crescimento do PIB e expansão do consumo, trazendo novas
possibilidades, sobretudo à classe média. É como se os êxitos econômicos, deixando-
se a crise enfrentada nesta área, não só por Jango (como no fracasso do Plano
Trienal), mas também por Castelo Branco (com sua política recessiva), tivessem
ficado para trás, abrindo-se as portas de um “Brasil Grande” para a nova década que
se aproximava.
Por outro lado, no verão de 1969, junto com o calor da estação, BARROS
(1998), assinalou que também havia o pânico e o medo para os adversários do
regime. O que as oposições conheceram como ditadura até o AI-5 não podia se
comparar com o que ocorreu depois. Nas palavras do autor, a sociedade brasileira
encontrava-se esmagada pelo Estado e desestruturada institucionalmente. É como se
a sociedade fosse um “conglomerado” de indivíduos amedrontados, vítimas do
tratamento dado pelos chefes militares à Nação. O regime militar se comportava
como um “exército de ocupação” que subjugou toda uma sociedade..110
110 Id., Ibid., p. 44.
174
Desde 1968, o ministro do Interior, general Albuquerque Lima, vinha
desejando se impor como o candidato à sucessão de Costa e Silva. Aproveitando-se
do desgaste o Executivo e do Legislativo federais, por conta do episódio envolvendo
o deputado Márcio Moreira Alves, ele se serviu do cargo para viajar por todo o país e
não perdia a oportunidade de fazer declarações em entrevistas sobre a situação
política do país. Em atrito com o presidente e alguns dos ministros, como Delfim
Netto, Albuquerque Lima sairia do governo em janeiro de 1969.
Com a doença de Costa e Silva assumindo um quadro irreversível, o “partido
militar” começou a se mexer. O Alto Comando das Forças Armadas se reuniu no Rio
de Janeiro, secretamente, e decidiram não dar posse ao vice-presidente – Pedro
Aleixo, um civil. O que ocorreria seria a formação de uma Junta Militar de três
membros e o aguardo da evolução do quadro clínico de Costa e Silva. A “Regência
Trina”, se é que podemos chamar assim foi composta pelos ministros das Três
Armas: Aurélio Lyra Tavares (Exército), Augusto Rademarker (Marinha) e Márcio
de Souza e Mello (Aeronáutica). Toda essa situação ocorreu sem a presença de Pedro
Aleixo, que constitucionalmente deveria assumir o posto presidencial. A cúpula
militar do regime tratou de se garantir legalmente através da elaboração de Ato
Institucional impedindo a posse do vice-presidente e assegurando a posse da Junta
Militar pelo bem da “segurança” do país e em se evitar o “caos”. A posse de Pedro
Aleixo jamais seria aceita pelos militares por conta de uma forte oposição dos
mesmos visto que Aleixo não concordara com o AI-5 na reunião onde o Ato fora
aprovado.
A Junta exerceria os poderes presidenciais até a plena recuperação de Costa e
Silva. Mas as notícias, apesar de otimistas quanto à saúde do presidente, não eram
vistas assim pelos militares que começaram a se movimentar, não para uma guerra no
sentido tradicional do termo, e sim nos bastidores do poder político. Eles não
175
acreditavam na melhora do presidente-general acamado e hospitalizado. O tema da
sucessão presidencial fermentava de vez, pois havia também um temor, por parte de
alguns militares, que a Junta ficaria no poder até o final do mandato de Costa e Silva,
em 1971.
Entretanto outro fato dominou a cena política. Um total de quinze prisioneiros
foram libertos pelos ministros militares que compunham a tríplice Junta com a
intenção de preservar a imagem do Brasil no exterior, em virtude do seqüestro do
embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, pela ALN
e MR8. O fato gerou controvérsias em muitos comandos militares que não admitiam
a hipótese de diálogo com comunistas. Estes prisioneiros foram enviados para o
México no dia 6, estando entre eles José Dirceu. Em seguida, elaborou-se o AI-13
que estabelecia a pena de "banimento perpétuo do País".
A respeito dos órgãos encarregados da repressão política tinham-se o SNI
(Serviço Nacional de Informações) e o Centro de Informações da Marinha
(Cenimar), existentes desde 1964 e ligados à estrutura das Forças Armadas. Visando
o combate à guerrilha urbana, o regime empregava instituições da Polícia Federal (o
Departamento de Ordem Política e Social - Dops) e os Departamentos Estaduais de
Ordem Política e Social (Deops), ligados às secretarias de Segurança Pública dos
estados. Com a intensificação das ações da guerrilha de esquerda, foram criados o
Centro de Informações do Exército (CIE), que conforme BARROS (1998), teve
equipamento fornecido pela CIA e oficiais treinados nos EUA. E, por fim, em junho
de 1969 foi criada a Oban (Operação Bandeirantes) que continha oficiais e
subalternos das Três Armas e da Polícia Militar do Estado de São Paulo, somados
aos delegados, investigadores e pessoal burocrático que recebiam ainda o apoio
financeiro de empresários paulistas através de equipamentos e dinheiro ganhando,
estes últimos, em troca, a proteção contra trabalhadores "subversivos".
176
A Polícia Militar paulista foi criada no governo de Abreu Sodré (1967-1970),
primeiro "biônico" escolhido na Assembléia Legislativa, através da unificação da
Força Pública e da Guarda Civil, em obediência às imposições do regime de 1964
que subordinou as polícias estaduais às Forças Armadas. O comando dessas polícias
também ficou sob a responsabilidade de um oficial do Exército, o mesmo ocorrendo
com a Secretaria da Segurança Pública.
A Oban obteve grande êxito em São Paulo sendo, em setembro de 1970,
incluída no organograma legal com a denominação de Doi-Codi II (Departamento de
Operações de Informações, Centro de Operações de Defesa do II Exército). Em
1971, a Aeronáutica também criaria o seu "órgão", o Cisa (Centro de Informações e
Segurança da Aeronáutica).
A Junta não perdeu o hábito de editar Atos Institucionais: além do AI-13
viriam: o AI-14 (impondo a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento); e o AI-
15 (transformando ao município de Santos, onde o MDB era majoritário, em área de
segurança nacional).
Um dos objetivos da Junta era a de um presidente investido de plena autoridade
dentro de um processo sucessório, o mais restrito possível, para se evitar a divisão
das Forças Armadas em grupamentos políticos. O que na verdade estava ocorrendo.
Coronéis e oficiais de patentes mais baixas estavam num clima de insurreição. A
agitação maior vinha dos partidários do general Afonso Albuquerque Lima.
Identificados à uma vertente dita “nacionalista”, no plano econômico, e desejosa de
mudar os rumos do regime. Na visão de Albuquerque Lima: “A Revolução deveria
prosseguir por dez anos, se necessário, para realizar tudo aquilo que não soube ou
simplesmente não teve coragem de fazer”111
111 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 151-152.
177
Uma vez que estava claro que Costa e Silva jamais teria condições de retornar
à Presidência, faz-se necessário a definição dos critérios de sucessão, como a duração
do tempo de mandato pelo Alto Comando visando a legitimação do regime, junto a
um Congresso em funcionamento, que daria tal legitimação ao presidente e ao vice-
presidente. A Junta Militar tratou de impedir a ascensão do general Alburqueque
Lima (de três estrelas) que representava o nacionalismo de direita e a oficialidade
jovem que criticavam a política econômica do governo, voltada aos interesses
estrangeiros.
Rapidamente foi-se desenvolvida uma “eleição”. Cada “eleitor” escolhia três
oficiais generais do Exército. Estes “eleitores” foram:112
Na Aeronáutica, 61 brigadeiros (37 lotados na Guanabara). Os três
candidatos escolhidos foram: Médici, Orlando Geisel e Albuquerque Lima;
Na Marinha, 69 almirantes (50 serviam na Guanabara). Albuquerque
Lima teve mais da metade dos votos;
No Exército, 118 generais (82 lotados na Guanabara). Divididos em
onze “seções eleitorais”, Médici venceu em dez delas. Depois de Médici, os
mais votados foram, Orlando Geisel e Muricy.
Nota-se que o equilíbrio federativo foi completamente inexistente, sendo
flagrante o peso do estado da Guanabara, que abrigava a cidade ou o município do
Rio de Janeiro, capital do país até 1960. Mas o foco da controvérsia foi o resultado
da eleição no Exército. Os partidários de Albuquerque Lima argumentavam que a
criação das “seções eleitorais”foi feita de forma artificial. E que muitos generais não
112 Id., Ibid., p. 154.
178
haviam consultado os oficiais de patente inferior. Albuquerque Lima estava fora da
“lista tríplice” do Exército.113
Uma vez escolhido o general Emílio Garrastazu Médici, em 7 de outubro de
1969, era feita a comunicação oficial pelo Alto Comando das Forças Armadas,
também era necessário orquestrar o “ritual” para dar uma “maquiagem democrática”
à posse do general-presidente escolhido. O Congresso foi convocado para, em 25 de
outubro, “escolher” o presidente já escolhido. A Arena aclamou a “chapa” Médici-
Augusto Rademarker.
O AI-16 regulamentou o “processo eleitoral de candidato único” como se
tratasse de uma eleição, e não uma imposição. O AI-17, o último da “saga” iniciada
em 9 de abril de 1964, era especialmente direcionado aos militares que viessem a
atentar contra a coesão, a unidade e o papel constitucional das Forças Armadas. O
recado era para o que VILLA (2014) chamou de “afonsistas”114
– os partidários de
Albuquerque Lima.
Segundo CARDOSO(1979), o equilíbrio do regime, com a eleição do
presidente Médici, se deu através da definição dos critérios sucessórios, que
afastaram a candidatura de Alburqueque Lima, colocando as seguintes
características: que só poderiam ser indicados os generais de quatro estrelas, que
correspondem ao estrato superior da burocracia militar; deveria-se obedecer a
critérios burocráticos de hierarquia e de representação corporativa; impedir a
desagregação do Exército em tendências e facções, acarretados por um predomínio
113 Id., Ibid., p. 154.
114 Id., Ibid., p. 157.
179
da tendência nacionalista e de cristalização de uma oposição; e, por último, conciliou
correntes dentro do Exército, em nome da unidade das Forças Armadas.
Não se pode esquecer que a tríplice Junta, em 17 de outubro, editou a Emenda
Constitucional nº1, que reformou a Constituição de 1967. Tratava, entre outras
coisas, da ampliação do estado de sítio (de 60 para 180 dias), podendo ser prorrogado
por tempo indeterminado; no caso da chamada “guerra interna”, admitia as penas de
morte, banimento e prisão perpétua; restringiu mais ainda a inviolabilidade dos
mandatos legislativos, incluindo aí crimes contra a segurança nacional e as
instituições militares, podendo ainda enquadrar civis; também restringia, mais ainda,
a liberdade de associação.
Oito dias depois, no dia 25, o Congresso voltava a se reunir, sem os 81
deputados e quatro senadores cassados desde o 13 de dezembro de 1968. Médici foi
candidato único: a Arena seguiu os ditames da Junta; o MDB se absteve. Votação,
apuração e discursos ocorreram em menos de uma hora e meia. O deputado Ulysses
Guimarães sempre se referiu aos três membros da Junta como os “três patetas”, mas
é melhor analisar isso um pouco mais a fundo.
Se, por um lado, houve enorme tensão dentro das Forças Armadas durante o
curto período que a Junta comandou a Nação, com respeito a quem sucederia Costa e
Silva, somada às articulações que o general Albuquerque Lima e seus partidários
fizeram tentando viabilizar a ascensão do mesmo à Presidência da República, mais a
espiral de sequestros por parte de grupos da esquerda armada, em especial do
embaixador norte-americano - Charles Burke Elbrick – que resultou na libertação de
presos políticos, enviados para fora do país. De outro lado, a Junta realizaria
modificações na legislação, com mais Atos Institucionais e uma reforma
constitucional mais expressiva através da Emenda nº1, dando a sua contribuição para
um maior enrijecimento do regime nos anos seguintes. Agora, a melhor manobra que
o trio das três Armas realizou foi o de gerenciar um processo de escolha do novo
180
presidente, com procedimentos “democráticos” de votação, escolhendo um novo
mandatário com mandato determinado. O Brasil se distanciava de outros casos como
o do caudilhismo militar platino. Mas foi uma sucessão calculada e devidamente
encaminhada para evitar qualquer “surpresa”, ou um “incoveniente”, de se ter um
vitorioso indesejável como Albuquerque Lima.
De qualquer forma, o sucesso de se “manter as aparências” era também
decorrente do Brasil estar experimentando um crescimento econômico, com
expansão do crédito, do consumo, da possibilidade de ter uma casa própria e até de
alguma ascensão profissional, principalmente por parte da classe média. Enfim, por
que a maioria da população se preocuparia com a política se a economia ia cada vez
melhor, a seleção brasileira também (nas Eliminatórias para a Copa do México de
1970), se a censura ou até a conivência de parte da imprensa estavam a serviço do
governo contribuindo para influenciar (e até alienar) importantes segmentos da
sociedade? A luta armada contra o regime parecia estar cada vez mais distante do
cidadão comum que a confundia meramente com as ações dos ladrões de banco.
Então já que a política era um “estorvo” na época, e na área econômica o Brasil
progredia, a grande maioria da população nacional parecia seguir normalmente sua
vida, também porque o medo imposto pelo AI-5 desencorajava qualquer tipo de
contestação ao regime.
Parece então, que a tríplice Junta, pelo menos no aspecto político, teve sucesso,
apesar dos não poucos improvisos, em garantir a sucessão de Costa e Silva e a
eleição de Médici. Entretanto, e as ações de sequestros de embaixadores estrangeiros,
assaltos a bancos, etc., por parte dos grupos que se armaram para desafiar o regime?
E os presos que foram soltos e saíram do Brasil? A resposta do regime para estas
duas questões foi efetiva e cruel. Uma vez alicerçado no AI-5 e em toda a legislação
autoritária, o governo revidaria nada menos do que com a aniquilação dos grupos
armados opositores e a morte de seus principais líderes, como Mariguella e Lamarca.
181
Afinal, a Oban (Operação Bandeirantes), símbolo maior da repressão já existia desde
meados de 1969, articulando quadros das Forças Armadas e do Exército, mais os
delegados e policiais das estruturas estaduais. Os “anos de chumbo” e o “milagre
econômico” caminharão juntos, eis o cenário para o terceiro governo militar do
regime.
182
3.3- Governo Médici (1969-1974). O milagre em anos de
chumbo.
Emílio Garrastazu Médici, 3º general-presidente do regime militar brasileiro. Governou de
30?10/1969 a 15/03 1974
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Garrastazu_M%C3%A9dici
Após forte debate sucessório nas Forças Armadas emergiu o nome do
general Emílio Garrastazu Médici, que toma posse como presidente em 30 de
outubro de 1969, procurando-se garantir, naquele momento, um mínimo de unidade
nas Forças Armadas. Na verdade Médici era um pouco mais que um elemento
decorativo,115
já que alguns ministros mais poderosos exerceram realmente o
115 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p.56.
183
governo. Delfim Neto foi conservado no Ministério da Fazenda, junto com seus
tecnocratas; Mário Andreazza também continuaria no Ministério dos Transportes
cuidando assim das obras e concorrências envolvendo empresas privadas; Orlando
Geisel, o 2º melhor cotado para a sucessão de Costa e Silva, ocupou o Ministério do
Exército tendo a complicada tarefa de administrar os conflitos presentes dentro da
corporação militar; e o coronel Jarbas Passarinho ocuparia a pasta de Educação e
Cultura.
A partir de 1970, o Brasil conheceu um esplendoroso crescimento
econômico que durou pelos três anos seguintes consolidando o tripé: Estado;
multinacionais; e o grande capital nacional. A classe média emergente começou a
usufruir do ascendente mercado de consumo. A economia brasileira cresceu mais de
10 % ao ano, no período de 1971-1973.116
Um grande fluxo de dólares entrava no
país alimentando a especulação financeira com os primeiros passos da Bolsa de
Valores. Era o "milagre econômico", que tanto marcou o governo Médici, em que o
espaço geográfico brasileiro sofreria importantes alterações, com as cidades
ganhando seus contornos definitivos de metrópoles, onde a especulação imobiliária
acarretaria a substituição da tranquilidade das ruas e das residências dando lugar à
construção de viadutos e à abertura de grandes avenidas, somadas às chegadas dos
supermercados e shopping-centers. Ainda citam-se os eletrodomésticos e os carros
luxuosos mexendo com as "fantasias" consumistas da população, sobretudo no
Sudeste e no Sul do país. Houve melhoria nos salários de técnicos e profissionais de
nível superior (embora o salário mínimo mantivesse os mesmos patamares de 1967)
além de crescimento nos níveis de emprego, beneficiando até o operariado mais
qualificado e os técnicos de maior especialização da produção fabril.
116 Id.,ibid., p. 59.
184
O Brasil também emergia como um dos mercados mais dinâmicos de TV
do Terceiro Mundo sendo que, em 1970, 40 % das residências urbanas possuíam o
aparelho117.
Assim a TV foi entrando nos lares brasileiros, com especial destaque à
Rede Globo, fundada em 1965, que se tornaria uma emissora poderosíssima e em
cuja programação, principalmente o Jornal Nacional, pautava-se nos elogios às
realizações do governo e incutia hábitos culturais muito associados às novelas da
emissora. Tomando-se as palavras do teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho:
" Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25
milhões exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso
embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos
meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano
que disfarça a favela, que esconde as coisas".118
Se considerarmos em especial os aspectos sociais, apesar de todas as
transformações ocorridas na sociedade brasileira, até com a ascensão social e salarial
de alguns setores, como a classe média e a classe trabalhadora mais qualificada, algo
que permaneceu foi a elevada desigualdade social e a má distribuição da renda. A
propósito, não só nos anos do “milagre”, mas no período militar como um todo, o
quadro da concentração de renda só se agravou.
A propaganda de governo era realizada, sobretudo, pela Aerp (Assessoria
de Relações Públicas da Presidência da República) fazendo surgir os famosos
slogans ufanistas da época "Prá frente Brasil", "Brasil ame-o ou deixe-o", criados
após a promulgação do AI-13 que previa o "banimento perpétuo do país". Com a
máquina publicitária a população identificava o autoritarismo com as realizações
117 Id.,ibid., p. 60.
118 Id., ibid., p.60.
185
econômicas e esportivas, dentro do clima da conquista da Copa de 1970, fazendo
crescer uma euforia relacionada com despesas virtuosas em obras públicas como a
Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói. A importância da Aerp durante o governo de
Médici é perceptível desde o discurso de posse do general, elaborado pelo coronel
Octávio Costa, chefe da Aerp. Diga-se que, no aspecto econômico, havia uma certa
confirmação de certos detalhes do primeiro discurso do novo presidente: naquele dia
da posse, 30 de outubro de 1969, a palavra “desenvolvimento” foi citada sete vezes;
enquanto que “democracia” foi mencionada por quatro vezes; e “liberdade”, apenas
em duas.
Paralelamente ao "milagre", a repressão atingia o seu ápice com a verdadeira
aniquilação dos guerrilheiros, que procuravam utilizar o sequestro de diplomatas
estrangeiros para trocá-los por companheiros presos. Merece destaque, pelo tempo
decorrido, a luta no Araguaia, cuja base guerrilheira, implantada a partir de 1967, no
sul do Pará, resistiu ao cerco dos contingentes das Três Armas durante alguns anos
até ser aniquilada em 1974, através de operações bastante custosas ao governo.
O ano de 1969 se encerrava com um ótimo horizonte econômico: o PIB cresceu
9,5 %; a inflação caiu de 25,7% (1968) para 20,1%; e crescimento nas exportações e
nas reservas internacionais. A crise política ficou restrita ao aparelho de Estado, não
atingindo a sociedade119
.
Para o ano de 1970, a conquista da Copa do Mundo era vital ao regime, para
reforçar a legitimação da “Revolução”. Médici soube representar bem o seu papel de
torcedor. Esteve presente na inauguração do estádio Cícero Pompeu de Toledo – o
Morumbi. O técnico da seleção brasileira – João Saldanha – simpático ao PCB
classificara o Brasil para a Copa, com seis vitórias em seis jogos. Entretanto, a três
119 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 169.
186
meses do início do Mundial de futebol, Saldanha acabaria demitido e, em seu lugar, a
CBD (Confederação Brasileira de Desportos) indicaria para técnico o ex-jogador
Mário Jorge Lobo Zagallo.
O presidente da CBD, em 1970, era João Havelange, que quatro anos mais
tarde se tornaria presidente da FIFA, a principal entidade do futebol mundial. A CBD
era subordinada ao Ministério da Educação através do Conselho Nacional de
Desportos. Havelange se encontraria com o ministro da Educação, com os chefes da
casa Civil (Leitão de Abreu) e da Casa Militar (João Baptista Figueiredo). Após este
encontro ficou acertado que Havelange enviaria um relatório detalhado da CBD para
Médici.
No clima do ufanismo nacional foi estabelecido, em 25 de março de 1970, o
mar territorial de 200 milhas. O Brasil era o oitavo país latino-americano a adotar
essa medida. Em abril e maio, Médici escolheria todos os governadores estaduais,
inclusive o da Guanabara – estado dominado pelo MDB na Assembléia Legislativa –
com o nome de Chagas Freitas para o cargo, líder emedebista daquele estado, mas
que nunca fizera oposição formal ao regime.
Entretanto nem tudo ia de “vento em popa” nos tempos de Médici. Mais uma
vez uma forte seca atingia a região Nordeste. Cidades foram ocupadas, comércios
saqueados e proliferavam doenças epidêmicas. A SUDENE (Superintendência para o
Desenvolvimento do Nordeste) agiu como sempre fazia, segundo VILLA (2014),
abrindo frentes de trabalho, sem ter um projeto e um cronograma elaborado para o
que era realmente prioritário em termos de obras. Além da ampliação daquelas
frentes, o governo federal intensificou a transferência de flagelados para a Amazônia,
sem ter um projeto viável de assentamentos rurais, muito menos de reforma agrária.
Apenas se retirava o excedente da força de trabalho, evitando tensão social naquele
momento, mas, a longo prazo, o resultado foi o de apenas mudar o problema de um
lugar para o outro, porque tais populações deslocadas continuariam sem uma sólida
187
assistência e com más condições de vida. É dessa época que vem talvez a mais
famosa frase de Médici, numa conferência na ESG – Escola Superior de Guerra:
“Apesar desse esforço revolucionário de seis anos, quando nos voltamos para
a realidade das condições de vida da grande maioria do povo brasileiro, chegamos à
pungente conclusão de que a economia pode ir bem, mas a maioria do povo ainda
vai mal”120
O interesse popular, contudo, estava voltado à Copa do Mundo e não para a
seca ou para a política. E o Mundial foi conquistado pela seleção, com seis vitórias
em seis jogos, em junho de 1970. Na consagração do retorno da seleção ao Brasil,
mais de 1,5 milhão de cariocas foram às ruas. Foi notório o fato do prefeito nomeado
da cidade de São Paulo – Paulo Maluf – ter dado um automóvel a cada um dos
integrantes da seleção com verbas públicas. No palácio presidencial, Médici, deu
prêmios em dinheiro no valor de milhares de dólares. O regime soube usufruir desse
momento. Cada brasileiro se sentia “campeão” também. A marchinha “Prá frente
Brasil”, era tocada em todos os eventos públicos. Depois foi feito um cartaz,
espalhado em diferentes pontos do território nacional, mostrando Pelé em seu
característico salto após fazer um gol e o slogan ao seu lado: “Ninguém mais Segura
este País”
120 Id., Ibid., p. 175-176.
188
O presidente Emílio G. Médici segurando a taça Jules Rimet, junto ao capitão da seleção brasileira
campeã mundial de 1970, Carlos Alberto Torres.
Fonte: http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/copaditadura.html.
A estratégia da máquina publicitária deu ótimos resultados. A população
identificava o autoritarismo com as realizações esportivas e econômicas. Para
BARROS (1998) estruturava-se um pacto social, inspirada numa adaptação que a
ESG e sua doutrina de segurança nacional fizeram do pensamento de Thomas
Hobbes (autor de O Leviatã). O indivíduo abre mão, conscientemente, de suas
prerrogativas de cidadão, como a liberdade e do direito de opinião, recebendo em
troca a paz e a segurança para si e a sua família, bem como ganha algum patrimônio
dentro de uma economia dirigida. O indivíduo se retrai em favor do poder absoluto e
do Estado.121
121 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 61-62.
189
O otimismo e o cenário econômico bastante favorável foram impulsionando
grandes projetos governamentais. A Amazônia foi alvo do seguinte lema do regime:
“Integrar para não entregar”. Em outubro de 1970 se iniciaram as obras para a
construção da rodovia Transamazônica, que deveria chegar até ao Acre.
A rodovia era ponto fundamental para o processo de ocupação da Amazônia.
Buscava-se a facilitação da exploração mineral e desenvolver a agricultura e a
pecuária. A proposta, não inédita, pois já vinha desde o final do século XIX, de
transferir populações do semi-árido nordestino para a região Amazônica ganhava
força novamente. A ideia era a da criação de agrovilas à margem da estrada, o que
seria um embrião para a criação de novas cidades. A Transamazônica deveria ter
5.296 quilômetros de extensão, cortando oito estados das regiões Nordeste e Norte.
Seus pontos de partida: Recife, em Pernambuco; e João Pessoa, na Paraíba. O ponto
de chegada seria Cruzeiro do Sul, no Acre.
Contudo encontra-se uma séria ressalva com relação à rodovia
Transamazônica. A estrada recebeu muitas críticas, na época, até de políticos da
Arena, como João Agripino, governador da Paraíba. Segundo o governador: “A
Transamazônica não tem projeto. Além do paralelo 10 não tem sequer fotografia
aérea até agora levantada [ou seja- naquele tempo -1970], nem estudo de topografia.
Diz-se que cortará terras de grande fertilidade e com isso se deslocará a população
do Nordeste para áreas úmidas e de boa produtividade. É possível que essas terras
existam, mas onde estão, não sabemos ainda, pois não há estudos topográficos”122
A despeito da política ser colocada, a grosso modo, em segundo plano, naquele
tempo, a Arena não encontrou nenhuma dificuldade em obter uma expressiva vitória
nas eleições de novembro de 1970, levando 41 das 46 cadeiras para o Senado. Dos
apenas cinco eleitos pelo MDB, três o foram pela Guanabara, um por São Paulo
122 MORAIS, Fernando et al. Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970. P.56. In: VILLA, Marco
Antônio. Op. cit. p.179.
190
(Franco Montoro), e um pelo Rio de Janeiro (Amaral Peixoto). A Arena passou a
controlar também todas as Assembléias Legislativas, exceto a da Guanabara.
Contribuiu para isso a boa fase econômica do regime e da figura do presidente
Médici. A economia seguia bem, a propaganda oficial era eficiente em louvar as
realizações governamentais, a censura, a despolitização (decorrentes do clima
altamente repressivo instaurado pelo AI-5 e do distanciamento da luta armada com a
população, que realmente não se identificava com a causa de seus militantes,
aumentando a indiferença com a política em geral).
O ano de 1971 foi marcado pela intensificação no ritmo das grandes obras de
infraestrutura. Para incentivar as exportações a Aerp, mostrando a importância do
papel que adquiriu durante o período Médici, criaria um outro slogan: “Exportar é o
que importa”. Paralelamente, o crédito foi sendo ampliado visando à consolidação de
um mercado interno de consumo. Naquele tempo a Aerp criava um slogan para cada
ano do governo – uma “idéia-força” para um determinado ano: por exemplo: “Você
constrói o Brasil”; “Em tempo de construir”; “Brasil, ame-o ou deixe-o”;
“Ninguém segura este país”. Podemos afirmar que, especialmente no governo
Médici, músicas foram compostas para exaltar o regime. Da dupla Don e Ravel teve-
se: “Eu te amo meu Brasil” – louvando as belezas do país; e “Você também é
responsável” – tratando sobre o Mobral (Movimento Brasileiro de
Alfabetização),criado em 1967, voltado para a alfabetização de jovens e adultos.
Claro, não podia deixar de ser aqui citada a marchinha “Pra frente Brasil”, de
Miguel Gustavo.
As primeiras redes nacionais de supermercados surgiam. A indústria
automobilística batia recordes de produção. Era criada a EMBRATEL (Empresa
Brasileira de Telecomunicações) – uma estatal que viabilizou a modernização das
telecomunicações, a unificação e a integração do país pelas transmissões da
televisão, constituindo-se uma rede a nível nacional no referente às
191
telecomunicações, permitindo a integração das diferentes regiões do país. Destaque
especial para a Rede Globo, criada em 1965, que se consolidou com uma
programação nacional, simbolizada pelo Jornal Nacional (que foi ao ar pela 1ºvez em
1969, com uma tônica de jornalismo afiadíssima com o regime, ajudando a espalhar
os “ventos” da modernização e das grandes realizações governamentais), bem como
com as suas telenovelas, que a despeito de contar com alguns autores e artistas não
necessariamente simpáticos e afinados ao regime, permitiram a disseminação de
hábitos, modas, falas, bordões de personagens e costumes, que foram levando à uma
espécie de “massificação” cultural.
Se nós podemos associar o governo Médici imediatamente, e ao mesmo tempo,
com o “milagre econômico” e os “anos de chumbo”, tal associação é decorrente do
êxito alcançado no período pelo binômio “segurança-desenvolvimento”, gestado pela
ESG. Em 1970, o PIB ultrapassara os 10% em seu crescimento. As exportações e as
reservas internacionais do Brasil aumentaram, apesar do crescimento da dívida
externa. A pauta das exportações havia se modificado, cada vez mais os produtos
semimanufaturados e manufaturados iam ganhando espaço. E os anos seguintes dos
tempos de Médici (até o ano de 1973) seguiram do mesmo jeito, com o PIB
crescendo acima dos 10%. Paralelamente, o número de desaparecidos não cessava de
crescer. Em 1971, o ex-deputado Rubens Paiva foi preso, torturado e assassinado.
Apenas em fevereiro de 2013, com as revelações da Comissão Nacional da Verdade,
é que o governo finalmente reconheceria a sua morte, sob a custódia do DOI-
Codi.123
O Congresso seguia controlado pela Arena, através de mecanismos como o
voto de liderança onde o parlamentar votaria, sobretudo nos projetos mais
importantes, conforme determinasse o líder do partido. Também eram proibidos os
123 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 184.
192
pronunciamentos contrários de acordo com os acertos destes líderes com o governo e
citam-se ainda os "decretos-secretos" que tinham de ser aprovados pelo Congresso,
apesar de totalmente desconhecidos por este. Tais decretos eram publicados no
Diário Oficial com numeração especial e sem texto.
A atuação parlamentar se resumia no máximo aos discursos. Havia muito
receio em se fazer uma oposição mais incisiva ao governo. Num cenário em que a
variável da atuação política estava tolhida, com a luta armada cada vez mais
reprimida e esmagada pelo aparelho governamental, a Igreja Católica se torna um
importante campo de críticas ao regime, com os pronunciamentos de alguns padres,
bispos e cardeais.
O papel da Igreja é (como não podia deixar de ser) bastante complexo. Ela
havia apoiado o golpe de 1964 e abraçado o discurso anticomunista contrário ao
governo Jango. Porém a Igreja, no decorrer do regime esteve fortemente dividida.
Aos poucos ela vai caminhando em direção á oposição. Se não apoiava a luta armada
e o terrorismo, também começou a se posicionar contra a tortura e a repressão e
muitos de seus altos quadros eclesiásticos não fecharam os olhos ao quadro
extremamente autoritário. Muitos bispos da CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil) que, em 1970, elogiaram as realizações econômico-sociais do
governo e condenaram o terrorismo, também apresentavam várias ressalvas com
relação à tortura de presos políticos. Grande parte destes eclesiásticos vai começando
a pregar contra a violência do Estado e ainda contra a injustiça social. Ativistas
católicos acionavam contatos no exterior como a Anistia Internacional, voltada aos
direitos humanos, e os protestos vindos da imprensa estrangeira começaram a
aparecer. Salienta-se que entre 1968 e 1970, foram presos 29 padres. Em 1969, o
padre Henrique Pereira Neto, assistente de dom Hélder Câmara, foi morto a tiros e
pendurado numa árvore no campus da Universidade Federal de Pernambuco.124
124 Id., Ibid., p. 186.
193
Muitos padres estrangeiros foram presos e torturados. Alguns foram expulsos do
Brasil. O quadro mais tenso era na Amazônia e no Nordeste por conta do avanço
capitalista nestas regiões.
Por outro lado, havia bispos que apoiavam as torturas. Dom Geraldo Sigaud,
bispo de Diamantina, Minas Gerais, teria declarado que: “confissões não se
conseguem com bombons”.125
De qualquer forma, a Igreja foi preenchendo um vazio
deixado pela política, podada pela legislação autoritária, e dali em diante vai
assumindo um papel fundamental na crítica ao regime, algo que vai ganhar mais
força ainda durante os anos de Geisel.
Entretanto, no campo político, aos poucos Ulysses Guimarães foi se firmando
como líder do MDB. Deixou para trás alguns vínculos com o regime como quando
relator da Lei de Greve de junho de 1964126
, ou quando quase se tornou secretário de
Abreu Sodré, em troca de apoiar o governador paulista para a sucessão de Costa e
Silva.127
. O MDB vivia uma disputa interna entre os grupos “moderado” (de oposição
mais serena) e “autêntico” (de oposição mais incisiva).
Em dezembro de 1971, Médici fez a sua primeira viagem internacional como
presidente. Foi aos Estados Unidos. Recebido pelo presidente Nixon, o mandatário
125 Id., Ibid., p. 187.
126 Id., Ibid., p. 62-63.
127 Id., Ibid., p. 121 e 185.
194
norte-americano disse a famosa frase: “Para onde se inclinar o Brasil, se inclinará
toda a América Latina.” e “O gigante despertou”.128
Tais declarações marcariam o início de problemas diplomáticos entre o Brasil e
a Argentina, receosa do “imperialismo brasileiro” na América do Sul. Estes atritos
irão aumentar nos anos seguintes com o projeto da Hidrelétrica de Itaipu, num acordo
bilateral entre Brasil e Paraguai sobre o aproveitamento do potencial do rio Paraná,
gerando severas críticas por parte do governo argentino, além de levantar a sombra
da “disputa nuclear” entre os dois rivais da América do Sul.
Mas o Brasil vinha em projeção. Buscava seu crescimento utilizando a
poupança externa, inserindo o país no capitalismo mundial, fortalecendo o setor
industrial associando-o às grandes empresas estrangeiras, criando condições para a
expansão das fronteiras agrícolas no Centro-Oeste e na Amazônia. O regime também
deu andamento a uma contrapropaganda contra a luta armada, divulgando através da
televisão os depoimentos de militantes presos, agora arrependidos, que após
cumprirem as suas penas iriam colaborar para o “desenvolvimento” do país.
Era o cenário perfeito para 1972. Ano do Sesquicentenário da Independência.
O 7 de setembro foi recheado de comemorações. Em São Paulo, na trilha do I PND
(Plano Nacional de Desenvolvimento), Médici inaugurava a primeira linha de metrô,
no Jabaquara, na capital paulista. O presidente estava cada vez mais popular, sem
abrir mão do uso da legislação autoritária e dos órgãos de repressão, mas por outro
lado com o país crescendo a dois dígitos. As Forças Armadas estavam sob controle e
assim Médici teria todas as condições para controlar a sua sucessão.
O cenário foi incrementado com a Emenda Constitucional nº 2, que tornava
indiretas as eleições para os governos estaduais. De acordo com o governo: a
128 Id., Ibid., p. 190.
195
realização de um processo eleitoral era inconveniente: “Para preservar o clima de
tranquilidade, confiança e trabalho indispensável à consolidação de nossas
instituições sociais e políticas”.129
Também pudera, a legislação repressiva e o medo
impediam qualquer tipo, ainda que fosse tímido, de contestação ao regime. Era a
política sendo tratada como um “estorvo” pelo Estado autoritário.
Conforme VILLA (2014), Médici foi um presidente que no cargo comandava o
Brasil como se fosse um batalhão. Não tinha apego ao poder. Usava o AI-5 como um
regulamento militar aplicado a um quartel. Teria sido o presidente brasileiro que
menos se interessou pela política. Isso porque delegou poderes. A máquina
administrativa ficava a cargo de Leitão de Abreu (chefe da Casa Civil); a economia
com Delfim Netto (no Ministério da Fazenda); e o controle das Forças Armadas foi
possível através da atuação de Orlando Geisel (no Ministério do Exército).
Para BARROS (1998), Médici foi adjetivado de “decorativo”, no que o autor
denominou de loteamento do poder distribuído entre os principais comandantes
militares, em fins de 1969. Foi qualificado ainda pelo mesmo de: “obscuro,
despreparado, desconhecido do público e de boa parte dos políticos civis”130
Médici
teria sido uma escolha emergencial para que os chefes militares garantissem um
pouco de unidade nas Forças Armadas, face ao avanço do nome do general
Albuquerque Lima, na época de governo da “tríplice Junta”. Um ponto de
concordância mais explícita entre os dois autores - Villa e Barros - foi a de que o
governo foi realmente exercido por alguns dos ministros mais poderosos.
129 Id., Ibid., p. 194.
130 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.57.
196
Na esteira da expansão econômica, o Brasil foi tomando uma atitude cada vez
mais incisiva com relação à América do Sul. Era a geopolítica, de inspiração militar,
vinda desde as décadas de 1920 e 1930, tomando corpo e assumindo contornos
práticos. A rivalidade Brasil e Argentina ganha novo vigor. As editoras do país
vizinho publicavam livro tratando sobre o expansionismo brasileiro, estabelecendo
correlações entre a política brasileira da época e a do Império do Brasil, no referente
à hegemonia da bacia do Prata. O principal ponto da discórdia era a exploração dos
recursos hídricos.
O governo argentino se sentia prejudicado desde o início da construção da
usina hidrelétrica de Ilha Solteira, em 1967, também no rio Paraná. O argumento
portenho era o risco de mudanças no regime fluvial do rio Paraná, prejudicando a
economia argentina, dificultando a navegação e impedindo a construção de outras
usinas em território argentino. E, por fim, - no campo das conspirações e da
geopolítica - a abertura de todas as comportas de Itaipu levaria à inundação de várias
cidades argentinas, inclusive Buenos Aires. Em visita oficial ao Brasil, o presidente
argentino – general Alejandro Lanusse – conseguiu obter uma declaração conjunta de
que os dois países atuariam juntos no aproveitamento dos recursos naturais. Para
VILLA (2014), foi uma aparente vitória portenha, pois desde meados da década de
1960, as negociações entre Brasil e Paraguai para a construção de uma usina
hidrelétrica, na região de Sete Quedas, no rio Paraná, já vinham bastante avançadas.
Porém não foi o fim do atrito. Em abril de 1973, apesar das pressões do
governo argentino, Brasil e Paraguai assinaram o acordo para a construção de Itaipu,
a maior hidrelétrica do mundo na época. Sua construção se iniciaria já no governo
Geisel, em 1975, e a inauguração, em 1984, no governo Figueiredo.
No aspecto cultural, apesar da censura, o trabalho de cantores e compositores
adversários do regime não cessou completamente. A perseguição oficial, atrelada à
censura, paradoxalmente, resultou num apelo comercial mais forte, favorecendo a
197
ampliação das vendas de discos e de públicos nos shows. Comprar um disco ou ir a
um show tornou-se uma forma de resistência. A resistência tornara-se uma
mercadoria bastante lucrativa por sinal. Em 1972, Chico Buarque, Caetano Veloso e
Gilberto Gil haviam encerrado os seus autoexílios. O uso da metáfora e da ironia
tornou-se comum nas críticas ao regime. Estas mudanças eram potencializadas pela
própria urbanização, que vinha e continuou avançando a passos largos.
Por outro lado, um efeito colateral desta urbanização atrelada à grande
migração do Nordeste para o Sudeste e das pequenas para as grandes cidades, foi a
insuficiência na produção de alimentos – manifestadas ora pela falta de um produto
no mercado, ora pela elevação dos preços. Mesmo com o tabelamento de algumas
mercadorias, os preços continuaram subindo.
A expansão do mercado de trabalho, a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores urbanos, em especial entre os mais especializados e nos setores médios
do tecido social, aumentou a demanda por alimentos. O problema era do lado da
oferta, ainda insuficiente para a população urbana que no censo demográfico de 1970
ultrapassara a população rural. Contudo, novamente não dá para se esquecer que
todas essas transformações sociais foram acompanhadas pelo aumento na
concentração da renda.
O conservadorismo da censura, por outro lado, agravava cada vez mais o
distanciamento existente entre governo e as mudanças comportamentais da sociedade
brasileira, em muito influenciadas pela própria dinâmica social do Ocidente. O Brasil
era sacudido pela “revolução sexual” da década de 1960, pela contracultura e pelos
novos padrões morais.
As palavras que o presidente norte-americano - Richard Nixon - usou para se
referir ao Brasil e a sua importância na América do Sul começavam a se cumprir,
mas da pior forma possível. Após nove anos de regime militar no Brasil, o Chile era
198
atingido pelo golpe que depôs o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de
1973. Após o bombardeio do palácio presidencial chileno e a ascensão do general
Augusto Pinochet naquele país, o governo brasileiro foi o primeiro a reconhecer a
Junta Militar chilena. E mais ainda, policiais e militares brasileiros teriam ido ao
Chile colaborar com o regime autoritário de lá.131
A Argentina vivia as instabilidades
decorrentes das alternâncias entre militares e civis: depois de um período militar viria
o retorno de Perón ao poder, em 1974, sendo seguido pelo de sua mulher – Maria
Isabel Martinez de Perón, sua vice-presidente, para na sequência se iniciar um novo
período militar, em 1976. O Uruguai também era sacudido com o fechamento do
Parlamento, suspensão da Constituição e dos partidos políticos, e o início da ditadura
civil de Juan Maria Bordaberry, em cujo governo cresceu a repressão, especialmente
contra os guerrilheiros urbanos do Tupamaros. E o Brasil vivia a “paz de chumbo” se
formos pensar na situação político-econômica do nosso país. Verdadeiramente os
ventos anti-democráticos sopravam forte na América do Sul no decorrer da década de
1970.
A situação para Médici aparentemente era bastante tranquila. Facilmente ele
chegou ao nome do general Ernesto Geisel, presidente da Petrobrás, para a sua
sucessão. Diferente das situações anteriores, o indicado para vice-presidente foi o
também general, Adalberto Pereira dos Santos, caso único na história do regime. De
acordo com BARROS (1998), algumas figuras políticas, como o ministro Delfim
Netto, o governador de São Paulo Laudo Natel, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid,
teriam procurado articular um continuísmo para Médici, reforçando a imagem de um
mito, de um grande “líder nacional”. Mas ao que parece, Médici não tinha esse
objetivo, não era muito interessado e afinado com a política e, principalmente,
131 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 204.
199
faltava-lhe condições e o atrevimento de querer se enraizar no poder. Não era um
caudilho, ou uma figura que nem Pinochet no Chile.
Médici era um desconhecido do grande público antes de se tornar presidente e
uma vez que saiu do poder aparentemente voltaria à obscuridade, vivendo em sua
cidade natal - Bagé, no Rio Grande do Sul – raramente fazendo aparições públicas.
Como ex-presidente, ainda que setores mais radicais das Forças Armadas tenham se
levantado e criticado o projeto de abertura e distensão, iniciados por Geisel, Médici
vivia em quase anonimato, reforçado por sua personalidade retraída e pouco dada à
oratória. Nos últimos anos de sua vida (Médici faleceu em outubro de 1985) se dizia
“injustiçado” por ter passado à História como o presidente-general dos “anos de
chumbo” e da “herança maldita”. Queixava-se pelo fato da sociedade ter esquecido
da sua “obra”, que se refere basicamente às realizações econômicas e aos projetos de
empreendimentos de infraestrutura.132
No final do período Médici, o MDB que vivia o dilema entre a linha dos
moderados e a dos autênticos se uniu com o lançamento da “anticandidatura” de
Ulysses Guimarães para a Presidência da República, tendo como vice em sua chapa,
Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Não havia chances de vitória, mas era uma oportunidade do MDB marcar posição, o
que no futuro demonstrou ser uma estratégia acertada, pois realmente, já nas eleições
de 1974, o MDB conseguiria triunfos eleitorais, como na vitória de Orestes Quércia
para o Senado. A “anticandidatura” serviria, conforme o próprio Ulysses, para
denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição, que submete o Legislativo e o
Judiciário ao Executivo, que permite prisões sem o direito do habeas corpus e a
condenação sem defesa. Ulysses e Lima Sobrinho percorreriam quatorze estados e
132
CORDEIRO, Janaína Martins. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a
ditadura em Bagé in: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org). A
ditadura que mudou o Brasil – 1ed – Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.186-187
200
dezenas de cidades. Foram barrados, ironicamente, por Chagas Freitas de falar no
Rio de Janeiro. Mas a mensagem oposicionista foi levada pelo país e com cobertura
da imprensa. “Navegar é preciso / Viver não é preciso”, declarou Ulysses em um
discurso.
O ano de 1973 registraria o maior crescimento do PIB brasileiro na História até
hoje (14%), mas no mesmo ano, a Guerra Árabe-Israelense levou ao súbito aumento
do petróleo. Com a crise energética e a recessão mundial, o "milagre" estava
chegando ao fim. Delfim Neto, ministro da Fazenda, para não admitir fracassos, de
acordo com BARROS (1998)133
ainda teria manipulado os índices do custo de vida
sendo também proibida qualquer crítica pelos meios de comunicação. O que vinha
irritando o ministro era alta dos preços em geral e não só os dos importados cuja
matéria-prima era o petróleo. Geisel seria escolhido presidente da República no
Colégio Eleitoral de 15 de janeiro de 1974 dentro de um processo sucessório
relativamente tranquilo, apesar da "anticandidatura" do deputado Ulysses Guimarães,
pelo MDB, que a partir dali se firmaria como uma das vozes liberais mais críticas ao
regime militar, destoando do tom moderado dos políticos ditos “liberais” no
Brasil.134
Médici encerraria o seu governo com alguns indicadores impressionantes: no
campo político, não abriu mão de utilizar o AI-5 (foram 579 vezes135
), contudo o
número de cassações que fora alto nos anos de Castelo Branco e de Costa e Silva,
caiu nos tempos de Médici (28 cassações entre outubro de 1969 até 1973). Também
133
BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.71.
134
NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 236.
135
VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 209.
201
pudera: todos os principais adversários políticos do regime já estavam alijados do
cenário político. As vítimas do AI-5 nos anos Médici foram servidores públicos,
militares, policiais, funcionários do Judiciário, do Legislativo e do Ministério
Público, entre outros. No campo econômico, o crescimento médio do PIB foi de
11%, a inflação recuou substancialmente, entraram investimentos estrangeiros,
cresceram as exportações e as reservas internacionais. Porém a dívida externa
líquida, entre 1967 a 1973 saltou de US$ 3,2 bilhões para US$ 8,4 bilhões.136
E o
“fantasma” da dívida externa iria continuar a assombrar, com cada vez mais
intensidade, nos governos de Geisel e de Figueiredo, e pelo período democrático
posterior por um longo tempo.
3.3.1- Milagre econômico
“Nunca fomos tão felizes”137
Este era um dos slogans oficiais da propaganda do governo, difundido através
da televisão, nos anos 1970, em pleno “milagre econômico”. A frase dava a entender
sobre um clima de felicidade coletiva e prosperidade inédita, somadas ao
desenvolvimento e à expansão capitalista. É como se toda a população brasileira
desfrutasse de algo novo, um tempo de prosperidade nunca experimentado antes.
Daria até para se fazer uma analogia com o que está escrito na Bíblia, nos tempos de
prosperidade do rei Salomão, em Israel, mais de 900 anos antes de Cristo:
136 Id., Ibid., p. 212.
137 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 147.
202
“Judá e Israel habitavam confiados, cada um debaixo da sua videira e debaixo
da sua figueira, desde Dã até Berseba, todos os dias da vida de Salomão” (II Reis
4:25)”
Que coisa estranha. Porque aqui cito um versículo bíblico? Isso foi proposital
já que a Igreja Católica apoiou o golpe de 1964 e uma das “bandeiras” não só da
Igreja, mas daqueles que pregavam contra o comunismo e a subversão, era a defesa
da família, da moral e dos valores cristãos. Se formos fazer uma analogia, na virada
dos anos 1960 para os anos 1970, correspondendo principalmente ao governo do
general Médici, aquele slogan governista sendo readaptado na passagem bíblica
poderia ficar assim:
“ E os brasileiros habitavam confiados, cada um debaixo de seu teto, desde o
Oiapoque até ao Chuí, todos os dias do governo Médici”138
Então Médici aqui está sendo comparado ao rei Salomão? Não, de forma
nenhuma. O rei de Israel entrou para a História pela sua sabedoria e pelos livros que
teria escrito como, Provérbios, Eclesiastes e Cantares, na Bíblia Sagrada. O general
Médici estava longe disso. BARROS (1998)139
, em seu livro já aponta algo negativo
sobre o general, ele lia mal, conforme falou um comentarista político da época. É que
pensou-se que fosse a emoção do momento. De qualquer forma, o discurso da posse
de Médici (texto preparado pelo coronel Octávio Costa, chefe da Aerp) teve citações
literárias do poeta Augusto Meyer e paráfrases de trechos de discurso proferido por
Ruy Barbosa.
138 Aqui eu coloco do Oiapoque, no Amapá, até ao Chuí, no Rio Grande do Sul, para destacar os
extremos norte ao sul do nosso país, conforme expressão que resistiu por bastante tempo. Somente
muitos anos depois, constatou-se que o ponto mais setentrional do Brasil é o monte Caboraí, em
Roraima.
139 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 57.
203
Mesmo com todo o ufanismo e recursos literários, a realidade foi que a maior
parte da sociedade brasileira “não esteve tranquilamente debaixo da videira e da
figueira”. Ou seja, a maioria dos brasileiros não pôde desfrutar os resultados
materiais deste processo de forma equânime e sustentável.
Muitos são os saudosistas do regime militar que argumentavam que em 1964, o
Brasil tinha a 64º economia do planeta e, em menos de uma década, tinha o 10º PIB
mundial. Os críticos, desde os primeiros anos do Estado autoritário, retrucavam que
tal salto de crescimento foi à custa do arrocho salarial, aumento da concentração de
renda e reforço dos laços de dependência estrutural com relação ao capital
internacional. O problema foi que após o fim do período autoritário, em 1985, a
persistência e o agravamento da crise econômica na época da redemocratização, não
só no Brasil, mas em países vizinhos, como a Argentina, com inflação elevadíssima,
dívida externa exponencial e pauperização das camadas populares, fez crescer o
saudosismo com relação ao período dos militares, em especial dos anos do “milagre
econômico”.
Neste debate haveria um consenso, conforme NAPOLITANO (2014). O regime
militar teria sido um momento de afirmação do grande capital no Brasil,
completando uma reestruturação já em andamento desde antes de 1964. Medidas
econômicas específicas e a ausência de democracia impostas a partir do golpe de
1964 facilitaram as tarefas dos tecnoburocratas em programar estas medidas e
mudanças, pois estes estavam ali, junto ao poder, comandado pelos militares.
Assim, o Brasil vinha numa trajetória de modernização conservadora e
autoritária, desde - na verdade - a década de 1930, com Getúlio Vargas. E este
percurso modernizante teve sequência no período democrático advindo
posteriormente, após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. O nosso país fo i
dando passos importantes na sua inserção no sistema capitalista mundial. A diferença
era como esses passos seriam dados. Getúlio, por exemplo, priorizou um viés
desenvolvimentista de cunho mais nacionalista, não implicando num alinhamento
automático com os Estados Unidos, ainda que o mundo vivesse o contexto da Guerra
Fria. O presidente Juscelino Kubitschek optou por um tipo de desenvolvimentismo
de “50 anos em 5”, com uma maior abertura ao capital estrangeiro. Desde a década
de 1930, a partir da Revolução daquele ano e o fim da República Velha,
204
paralelamente à industrialização foi ocorrendo a urbanização. O Brasil cada vez mais
deixava sua feição de país rural agroexportador, para se tornar um país urbano em
ascendente industrialização, tendo o Estado como principal protagonista, em especial
nas indústrias de base.
Os militares, a partir do golpe de 1964, não romperam com isso. O que o
governo Jânio Quadros sabia que precisava fazer e não fez, talvez pela sua curta
existência, e o governo João Goulart também não faria devido aos diversos interesses
em conflito - entre uma direita conservadora e dada ao golpismo; e uma esquerda que
acreditava cada vez mais na mudança que as reformas de base poderiam trazer – o
regime militar acabou fazendo, que foi um ajuste e um reequilíbrio fiscal. Percebe-se
então que ajuste fiscal não é um assunto “novo”. O dilema que o atual governo de
Dilma Roussef enfrenta neste ano de 2015, já se repetiu antes em outros governos.
No caso de Jango, foi até elaborado o Plano Trienal, por parte de Celso Furtado, que
poderia após um primeiro momento de se “apertar os cintos” preparar o cenário para
uma futura retomada do crescimento. Infelizmente, o Plano Trienal foi abandonado
porque os atores envolvidos (à direita e à esquerda) não estavam dispostos a fazer
concessões ou recuos naquela época e o presidente Jango teve que tocar seu governo
e agir conforme os leques de possibilidades com que contava naquele momento.
Os ajustes fiscal e tributário, mais o reequilíbrio das finanças públicas,
acabaram sendo feitos no governo de Castelo Branco, levando o país a um quadro
recessivo, com arrocho salarial, contenção de reivindicações trabalhistas e populares
e supressão das liberdades democráticas . O grande problema é que uma vez que os
militares estavam no poder não haveria mais a possibilidade de diálogo e discussões.
A esquerda estava desbaratada pela nova situação político-institucional e a falta de
democracia e a eliminação do diálogo com diferentes grupos antes ativos, impôs ao
Brasil uma nova etapa nesse processo conservador de modernização e inserção no
capitalismo mundial.
Ao se analisar as realizações econômicas do regime militar, nesta perspectiva
histórica mais longa, há quase que um empate entre democracia e regime autoritário.
Entre 1948 e 1963, o crescimento médio do PIB foi de 6,3%. Entre 1964 e 1985 foi
de 6,7%. A exuberância do crescimento através do “milagre” dos anos Médici, e da
“marcha forçada” de crescimento dos anos Geisel foi, em grande parte anulada pela
205
política recessiva do governo Castelo e pela profunda crise econômica que, estouraria
de vez no governo Figueiredo, na primeira metade dos anos 1980.140
Outra questão eram as similaridades e algumas conexões entre o período
democrático pós 1946 e o regime pós 1964 no campo econômico. Os governos
militares deram sequência ao modelo de desenvolvimento implantado por JK sem
criar embaraços. Tanto nos anos de Juscelino, como no período dos militares, o
maior beneficiário do desenvolvimento foi o capital internacional, seguido pelo
capital nacional. Havia mais complementaridades do que conflitos nas políticas
econômicas implementadas durante aqueles dois períodos e as esquerdas não
contavam com isso.141
Foram pegas num “contrapé”, como no caso do PCB, que na
década de 1950, apostava por demais na burguesia nacional e na receita aliancista,
para o caminho das transformações sociais do Brasil.
Juscelino era um político hábil, driblava a lentidão das discussões políticas no
Congresso Nacional, dando andamento ao seu plano desenvolvimentista através de
grupos técnicos/executivos movidos pela lógica tecnocrata dos resultados. Estes
grupos reuniam governo, técnicos e empresários para implementarem políticas
voltadas à industrialização. Nos países periféricos, o tempo da política e o da
economia são díspares. A necessidade do desenvolvimento econômico não poucas
vezes levava ao travamento da política e da liberdade democrática. Por isso, muitos
empresários eram inclinados a soluções golpistas e autoritárias para frear as pressões
distributivas e acelerar o desenvolvimento capitalista.142
O modelo desenvolvimentista, mas sem democracia, imposto pelos militares
deixou um alto custo social. O salário mínimo teve perda real de 25% (entre 1964 a
140 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 148.
141 Id., Ibid., p. 148 e 149.
142 Id., Ibid., p. 149.
206
1966); e de 15% (entre 1967 a 1973).143
A mortalidade infantil decaiu em ritmo lento
(100,1 por mil nascidos vivos no ano no período de 1965-1970; para 90,5 por mil, no
período de 1970-1975)144
, continuando mais elevada no Nordeste em comparação
com o Sudeste e o Sul, agravando não só as desigualdades sociais, mas as regionais
também. Em 1980, a mortalidade infantil na região Nordeste (118 por mil nascidos
vivos) era quase o dobro da taxa verificada no Sul e no Sudeste (59 por mil; e 57 por
mil respectivamente).145
O que mascarava a situação era ampla oferta de emprego e a
inflação alta (mas controlada) que atenuavam os efeitos da concentração de renda.
Conforme NAPOLITANO (2014)146
, o regime militar brasileiro passou, por
pelo menos, quatro fases distintas no aspecto econômico:
Uma política dura de ajuste fiscal e monetário, ao gosto da
ortodoxia liberal. Menos dinheiro, menos crédito, menos gastos.
Controle salarial e mais impostos. Eis a política econômica do governo
Castelo Branco (1964-1967);
A exuberância do “milagre econômico” ou “milagre brasileiro”,
coincidindo basicamente com o governo Médici (1969-1974) e os “anos
de chumbo” – o ápice repressivo do regime. A média de crescimento do
PIB brasileiro foi de 11% ao ano, chegando aos 14%, em 1973. A crise
do petróleo, a partir de 1973, fez com que o governo, até antes da
sociedade, despertasse para as fragilidades do modelo adotado, tanto no
aspecto financeiro, como na dependência de insumos básicos (petróleo);
143 Id., Ibid., p. 149.
144 Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”, in: LUNA, Francisco Vidal & KLEIN,
Herbert S. Mudanças sociais no período militar. In: REIS FILHO, Daniel Aarão. RIDENTI, Marcelo. MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.87
145 Fonte: IBGE., in: LUNA, Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Op.cit. p. 88
146 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 150-151.
207
Correspondendo basicamente ao governo Geisel (1974-1979).
Numa nova perspectiva, procurou-se inibir o crédito farto e a onda
consumista anterior. O governo impôs uma planificação normativa,
reforçando as estatais (ligadas à siderurgia, petroquímica e energia),
mudando algumas das diretrizes do “milagre”, como o foco na indústria
de bens de consumo duráveis. A atenção governamental vai para o
investimento no setor de bens de capital, procurando-se evitar
“gargalos” energéticos e de bens intermediários fundamentais para a
produção dos bens de consumo. Paralelamente buscou-se o reforço ao
mercado interno, protecionismo setorial, autossuficiência energética e
captação de recursos às custas do endividamento estatal.
Por fim, a questão da dívida externa estouraria de vez com o
segundo choque do petróleo, em 1979, e a crise financeira
internacional, em 1982, ano em que o México decretaria a moratória de
sua dívida externa. Os últimos anos do regime, correspondendo ao
governo Figueiredo, foram de recessão, desemprego e inflação
altíssima.
O que Napolitano realça após diferenciar estes quatro momentos da política
econômica do regime militar é que todas tais políticas convergiram para o reforço
dos laços do Brasil com o sistema capitalista mundial, priorizando o capitalismo
monopolista e a industrialização. Para a sociedade como um todo: (empresários,
classe média, trabalhadores em geral, etc.), a maior ou menor adesão e simpatia
política ao regime era condicionada pelos efeitos da política econômica sobre os
cotidianos dos negócios do consumo e da sobrevivência. A sociedade esteve atrelada
ora aos bons momentos da economia interna, ora aos ditames do sistema capitalista
mundial. As oportunidades profissionais que apareceram e se ampliaram para a
formação superior, em especial para a classe média, podem ser consideradas reflexo
disso.
No governo de Castelo Branco priorizou-se o controle da inflação e a
reorganização institucional do quadro macroeconômico do Brasil. O controle salarial
ajudou a derrubar a inflação (que também foi uma das razões alegadas para a queda
208
de João Goulart, manifestada na crise econômica) e paralelamente ocorreu a inibição
da atividade econômica refletindo-se nos preços e criando um cenário recessivo. Tal
cenário levaria setores da classe média e da burguesia a ficarem desapontados e até a
criticarem o primeiro governo do novo regime. Esta demora na superação do quadro
recessivo decorreu do fato de que aquele governo priorizou reformas estruturais,
reorganizando o sistema tributário e eliminando as lacunas do sistema financeiro, por
exemplo. Era a visão dos responsáveis pela política econômica do governo Castelo –
Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen. O governo renegociou a dívida
externa que, na época, era de US$ 3,8 bilhões147
, reformou a Lei de Remessas de
Lucros de 1962 (cujo substitutivo foi de autoria de Ulysses Guimarães, do PSD) para
favorecer a livre circulação do capital estrangeiro e estimulou as exportações
oferecendo até isenções fiscais.
No plano trabalhista elaborou-se um novo cálculo de reajuste salarial
considerando-se a inflação passada. Só que a incorporação salarial era parcial, e não
total, levando ao arrocho. A previdência social foi unificada reunindo-se no INPS
(Instituto Nacional de Previdência Social). Uma nova Lei de Greve (cujo redator
também foi Ulysses Guimarães, em junho de 1964) foi criada para afastar focos de
atrito e embaraços criados pela legislação trabalhista. Por esta nova lei o direito de
greve foi limitado às questões salariais votada em assembléia pelo sindicato
oficialmente reconhecido. Greves de servidores da União, por motivos político-
ideológicos, de apoio ou de solidariedade, bem como a ocupação dos locais de
trabalho e piquetes “ofensivos” foram proibidos.
De acordo com NAPOLITANO (2014),148
o Paeg (Plano de Ação Econômica
do Governo), não tinha um caráter de planejamento estratégico da economia, mas de
intervenção através de medidas tomadas por diversos órgãos governamentais na
forma de políticas setoriais. Um dos pilares do Paeg foi a reestruturação do sistema
fiscal, cortando gastos, inclusive com a proibição do Legislativo de aumentar as
147 Id., Ibid., p. 152.
148 Id., Ibid., p. 153.
209
despesas do orçamento da União. A Emenda Constitucional nº18 serviu de base para
a formatação de um Sistema Tributário Nacional. Por esta emenda, foram criados
impostos podem-se chamar de “ancestrais” dos atuais IPI, ICMS, IOF e ISS. O
primeiro governo militar procurou “disciplinar” o sistema tributário, reorganizando
uma estrutura de carga tributária relativamente caótica do período anterior. Todas
essas ações, somadas às criações de novos impostos fez com que o governo federal
fosse aumentando as suas arrecadações e reduzindo os déficits.
Na estruturação do sistema financeiro, também priorizada pelo Paeg, foi criado
já em 1964, o Banco Central que substituiu o Sumoc (Superintendência da Moeda e
do Crédito), organizando as regras cambiais e a emissão de moeda.
Para o problema da moradia e da habitação, que perturbava a classe média e
afligia muito mais as camadas populares, o governo criou o SFH (Sistema Financeiro
de Habitação), integrando o BNH (Banco Nacional da Habitação), a Caixa
Econômica Federal e caixas estaduais. Para gerar recursos ao sistema habitacional
foi criado o FGTS (Fundo de Garantia por tempo de Serviço), em 1966, uma
poupança compulsória que incidia sobre o salário dos trabalhadores na ativa,
flexibilizava a relação patrão-empregado e funcionava como uma espécie de “seguro-
desemprego” desde que o trabalhador não tenha sido demitido por justa causa.
Se para o cotidiano da população, da classe média e até de setores da
burguesia, o que era perceptível era o quadro recessivo e negativo na economia, por
outro lado, o Estado brasileiro assumia assim um papel regulador e normativo nas
relações socioeconômicas no plano fiscal, tributário e trabalhista, viabilizando uma
“otimização” para a inserção do Brasil no sistema capitalista mundial.
Aqui foi antes discutida a “militarização” do regime. O golpe de 1964 foi
principalmente um golpe militar. Os militares foram os atores decisivos para o
desfecho que teve o governo Jango. E uma vez iniciado o regime, ele foi de caráter
militar. Ainda que houvesse civis e toda uma burocracia tecnocrata a serviço do
Estado autoritário, a última palavra era dos militares. Porém, se em alguns setores a
presença dos militares foi marcante, como na energia, transportes e comunicações
(sem falar obviamente da segurança – pautada na Doutrina de Segurança Nacional -
DSN). Na economia teve-se a notória presença burocrática e corporativa dos civis em
órgão e cargos de planejamento. Intelectuais foram recrutados do mundo acadêmico,
210
e também membros do setor empresarial, para compor quadros comissionados ou de
assessoramento nos diversos conselhos de Estado. Era a tecnoburocracia de carreira.
Ao contrário do plano social e político. No aspecto econômico o regime
procurou flexibilizar as tomadas de decisões, para dar um aspecto de “livre-
iniciativa”, que teria sido uma das “bandeiras” do golpe contra a “ameaça”
comunista. Então o regime evitou fazer do CMN (Conselho Monetário Nacional),
uma estrutura burocrática centralizada. No CMN houve espaço para debates,
consultas, mediação de interesses e trocas de informações, antes de tomar decisões.
Ali atuavam os ministérios, agências executivas, o Banco Central, o Banco do Brasil,
a Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento), entre outros. O CNM, na
prática, foi o órgão que gerenciava as políticas econômicas até 1974.149
.
Ao deixar o poder, em 1967, Castelo Branco não conseguiu deixar uma
imagem de um presidente que superou a crise. Seu governo entrou para a História,
claro que pelas reformas estruturais visando à inserção do Brasil no sistema
capitalista mundial, mas também pela recessão econômica que atritou o governo com
as suas bases de apoio da época do golpe, como a classe média e o empresariado. No
segundo governo militar, o de Costa e Silva, procurando-se uma maior legitimidade
ao regime, o país é direcionado a uma nova trajetória na economia, até para agradar
aos setores nacionalistas do Exército também. Parte dos objetivos do Paeg haviam
sido atingidos e Costa e Silva chama para o Ministério da Fazenda, Delfim Netto, um
jovem professor de economia da Universidade de São Paulo. A política econômica
foi se afastando da ortodoxia prescrita pelo Paeg. Médios empresários nacionais mais
fiéis ao regime acreditavam que o problema da alta inflação estava superado e que
era necessário sair da recessão e acelerar o crescimento.
Delfim Netto pensava do mesmo modo, mas sem desconsiderar a vigilância à
inflação. Com a situação fiscal favorecida pelo duríssimo arrocho salarial e pelos
financiamentos de capitais externos, o ministro da Fazenda reduziu os juros, facilitou
o crédito e criou subsídios para as empresas multinacionais. Juntamente com Hélio
Beltrão, a equipe de Delfim elaborou o Plano Trienal de Governo fixando as metas
149 Id., Ibid., p. 157.
211
para o período de 1968-1970. Antes, ainda em 1967, Hélio Beltrão – ministro do
Planejamento - apresentara o PED (Programa Estratégico de Desenvolvimento) que
constava de três pontos: solucionar os problemas ligados à estrutura e ao
financiamento da comercialização de alimentos (cuja carência no mercado interno
era um dos fatores que pressionava a inflação); aumento da produtividade
econômica; e eliminação dos principais pontos de estrangulamento, com
investimentos em infraestrutura.150
O governo contava com o aumento no consumo de bens duráveis pelas
camadas mais abastadas da classe média (cerca de 20 % da população brasileira da
época). Enquanto que o Estado investiria em grandes obras de infraestrutura,
estimulando o mercado da construção civil.
Se o Brasil, após o governo de Castelo Branco estaria “pronto para crescer”,
apesar da política recessiva e das críticas que o primeiro governo militar veio a
enfrentar, depois de 1968 começavam a aparecer os primeiros efeitos do crescimento
econômico. O setor privado canalizou o crédito, as exportações de manufaturados
cresceram junto às importações de petróleo e de máquinas. Delfim estimulou a
geração de recursos próprios pela iniciativa privada, reduzindo as pressões sobre os
juros e a inflação. A partir de 1970, o governo percebia a relativa solidez de um
crescimento sustentável. A recessão, os ajustes e o controle da inflação no governo
Castelo puderam sedimentar o quadro para o “milagre brasileiro” e o ufanismo em
especial nos anos de Médici. Ao que parece, o ministro Delfim teve a percepção de
que, no início do governo de Costa e Silva, havia espaço para medidas além das
“amarras” do Paeg e delinear uma trajetória de crescimento, que deu certo até o final
do período Médici, quando em 1973, a primeira crise do petróleo acabará expondo os
limites do “milagre”. O clima de euforia, entusiasmo e ufanismo dos anos do milagre
foram incrementados pelas derrotas da guerrilha armada, na virada das décadas de
1960/70, por conta da brutal repressão e eliminação de seus principais líderes,
criando o que chamo ironicamente de “anos dourados de chumbo”; e pela superação
150 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit., p. 34 e 35.
212
da crise sucessória que ameaçou a unidade militar, em 1969, com a enfermidade de
Costa e Silva.
Por outro lado, face à maquina governamental propagandística e ufanística,
com a proliferação de slogans como: “Pra frente Brasil”, a euforia
desenvolvimentista - no clima da conquista da Copa de 1970 pela seleção brasileira -
a censura imposta aos meios de comunicação ou a explícita conivência destes com o
regime, fez criar na população como um todo, mais despolitizada e alheia às questões
ideológicas e da luta armada, a sensação de bem-estar - o de cada um habitar seguro
“debaixo da sua videira e da sua figueira” – ou seja, no contexto brasileiro, era o
pleno emprego, consumo farto, crédito abundante, obras grandiosas (como a ponte
Rio-Niterói, a usina de Itaipu e a Transamazônica), “migalhas” para os pobres
iludidos com o tamanho do “bolo”. Era o “Brasil Grande Potência”, nada ou
ninguém poderia segurar o Brasil dali para frente. Grande parte da população e da
mídia estavam seduzidos pelo “milagre econômico”.
O presidente Médici não alterou o modelo administrativo de Costa e Silva. O
CMN, presidido por Delfim Netto geria o desenvolvimento, ouvindo vozes do
empresariado. De outra parte, tinha-se a gestão da segurança nacional, através do
SNI e o CSN (Conselho de Segurança Nacional), inteiramente militarizados. A
mediação entre a instância desenvolvimentista e a da segurança era realizada através
da Casa Civil. E esta última fazia a mediação entre as duas referidas instâncias e os
quadros políticos do regime (a Arena e os governadores de estado).
Sustentando-se no extraordinário crescimento obtido no período entre 1968 e
1973, este modelo administrativo que a gestão de Costa e Silva e o de período Médici
teve êxito. Era o período do “milagre econômico” que perfeitamente casou com o
auge repressivo dos “anos de chumbo”. Esta correlação não pode deixar de ser feita.
Foram os “anos de chumbos dourados”, um país do Terceiro Mundo emergindo no
cenário internacional e se afirmando nos cenários latino e sul-americano, uma
sensação de “felicidade geral”, de prosperidade, de tempos “dourados” (com o
amarelo do Brasil, que representa as suas riquezas, em evidência por conta do
tricampeonato mundial da seleção). Prosperidade que acobertava, atrás da espessa
capa da censura, da legislação autoritária, da imprensa e da mídia (amordaçadas pela
censura ou simplesmente a serviço das realizações do regime), os terrores e os
213
horrores dos seus “porões” com repressões, perseguições, torturas, mortes por
assassinato e desaparecimentos. Uma ilustração do período poderia ser descrita
assim: uma lápide ou um sepulcro muito belo – dourado, lindo e resplandecente -
que representaria a pujança econômica do Brasil daqueles tempos, mas por dentro
daquele túmulo tão belo - a morte e a podridão que representariam os aparatos
repressivos do regime e as suas ações implacáveis contra os seus adversários. E, se
formos rememorar, o que o sociólogo Betinho afirmou, de que em 1964 a
democracia nacional recebeu um “tiro no peito”, podemos considerar que o nome
escrito na lápide era a da democracia brasileira.
As duas charges de Ziraldo também ilustram estas duas situações que apesar de
tão diferentes, se complementaram. Ao mesmo tempo que o governo reprimia e
sufocava qualquer tipo de oposição, apregoava a conquista da Copa de 1970 com a
intenção de mascarar as desigualdades sociais e a crescente concentração de renda:
Charges de Ziraldo sobre os anos do governo Médici.
Fonte: http://mestresdahistoria.blogspot.com.br/2012/09/saiba-mais-sobre-rotinizacao-
do.html.
214
Outro fator que favoreceu o “milagre brasileiro” foi a situação internacional do
pós-Segunda Guerra Mundial. O que Napolitano chama de os “trinta anos gloriosos”
do sistema capitalista mundial terminariam com a crise do petróleo em 1973. No
exterior, o dinheiro era abundante entre investidores e banqueiros. O Brasil precisava
captar recursos para financiar as grandes e caras obras estruturais. Os capitais
investidos, obviamente, buscavam por países e locais seguros. Como o Brasil não
contava com abundante poupança interna, esses recursos eram excelente alternativa
para os grandes projetos de hidrelétricas, portos e estradas que o governo queria
executar para resolver os problemas dos “gargalos” que poderiam travar o
desenvolvimento e o crescimento nacional.
Por que, principalmente após 1968, o Brasil se tornaria um local “seguro” para
o capitalismo financeiro? O que deve ter ocorrido é que a receita ortodoxa de
recessão prescrita nos anos de Castelo Branco, com medidas duras e impopulares
através do Paeg, criaria as condições para tal ambiente favorável aos capitais
externos posteriormente. O ambiente de negócios estava tranquilo, do jeito que o
investidor gosta, com o solapamento do reformismo distributivista e do “exorcismo”
do fantasma da “revolução socialista/comunista”, colocados fora da cena política
legal através das cassações, atos institucionais e outras medidas políticas do Estado
autoritário.
Delfim Netto, apontado por mais de um autor como o “czar”151
da economia,
mantido no Ministério da Fazenda no período Médici, aprofundou o modelo de
crescimento combinando a expansão da agricultura com as exportações
(principalmente de manufaturados) que levariam ao fortalecimento do mercado
interno; ao estímulo das indústrias de bens de consumo duráveis (como
eletrodomésticos); e as de bens intermediários (as siderúrgicas). Os índices de
crescimento do PIB registrariam dois dígitos entre 1970 e 1973. Delfim era adepto a
medidas de caráter pontual e não com metas e ações de longo prazo. O I PND (Plano
Nacional de Desenvolvimento) com as metas para 1972-1974 foi lançado neste
151
NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 162
BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit., p. 58.
215
cenário com um PIB crescendo a mais de 10% ao ano. Ao contrário do ministro da
Fazenda, o Ministério do Planejamento tinha ressalvas e receio quanto ao percurso de
crescimento que o Brasil vinha seguindo, principalmente com a inflação
relativamente alta nos anos do ”milagre”. A preocupação inflacionária tinha
fundamento, pois na ótica de determinados segmentos políticos e econômicos, num
país de graves desigualdades como o Brasil, a alta da inflação poderia erodir com a
legitimidade do próprio regime e foi o que realmente aconteceu, sobretudo na
primeira metade da década de 1980, no governo Figueiredo. Isso ajuda a entender
porque os índices de inflação foram manipulados em 1973, ano da escolha para a
sucessão presidencial e quando a crise do petróleo afetaria o sistema capitalista
mundial.
A classe média durante o período do apogeu de crescimento do PIB brasileiro
foi tendo acesso aos bens duráveis graças à expansão do crédito. Os setores mais
baixos desta mesma classe média (como os comerciantes, escriturários e pequenos
funcionários) viviam o sonho da casa própria, financiada pelo BNH, e do carro
popular, como o Volkswagen Fusca. Tudo financiado à longo prazo.
Mas o “milagre” trazia o seu outro lado. A poupança interna era deficitária e o
país era dependente do capital estrangeiro, as exportações estavam concentradas em
setores de baixa tecnologia, a concentração de renda e o arrocho salarial foram
mantidos. Quando o problema da inflação, que já vinha de antes, estourou de vez
após a segunda crise do petróleo, em 1979, as classes populares foram as mais
atingidas porque não tinham despesas a cortar. O regime optou pela concentração de
renda em nome do controle dos salários e do custo da mão-de-obra. O salário mínimo
perdeu poder de compra. A indústria nacional não tinha como atender a um aumento
da demanda por bens de consumo duráveis e moradias. Assim, o governo evitava
favorecer uma melhor distribuição da renda para preservar os segmentos mais
abastados da classe média.
Algo que ocorria antes e que se manteve durante o regime e, logicamente
também, nos anos do ápice de crescimento de meados da década de 1970, foi a
migração inter-regional, em especial do Nordeste para as grandes metrópoles do
Sudeste. O meio rural expulsava trabalhadores, por conta do domínio do latifúndio,
fazendo com que esta mão-de-obra, pouquíssimo qualificada, encarasse qualquer tipo
216
de trabalho nas grandes cidades, mesmo ganhando péssimos salários. Para estes
trabalhadores, principalmente vindos das zonas rurais nordestinas, o pouco de
serviços e infra-estrutura que eles tinham acesso na cidade grande, ainda que de
péssima qualidade, eram melhores ainda do que a situação que os mesmos viviam no
campo. O setor da construção civil se torna um setor-chave para absorver este
contingente de mão-de-obra. Estes migrantes, fugidos da especulação fundiária no
campo, enfrentarão a especulação imobiliária das cidades, e acabarão por se
estabelecer em áreas periféricas, distantes das regiões mais centrais da cidade,
melhor servidas de equipamentos e bens públicos. Paralelamente ao estabelecimento
das regiões metropolitanas, em meados dos anos 1970, no contexto do I PND, o
problema da expansão das periferias e das favelas, com suas carências ali existentes
serão um fiel retrato do descaso do regime militar com a distribuição da renda.
Deixa-se bem claro aqui que a urbanização, o processo de êxodo rural, bem
como as migrações inter-regionais, sobretudo do Nordeste para o Sudeste, não
começaram no período autoritário do pós-1964. Estes processos não eram inéditos no
Brasil dos tempos do “milagre”. Mas o Estado autoritário os incrementou sem tomar
as devidas medidas na área social. A partir do censo de 1970, passa a haver mais
brasileiros nas cidades do que no campo. O país terminava de mudar a sua feição
para um país urbano, metamorfose esta que já vinha se delineando desde a década de
1930.
O próprio presidente Médici declarou nos tempos da prosperidade econômica:
“o Brasil vai bem, mas o povo vai mal”. A pobreza, miséria e subdesenvolvimento
incomodavam até um certo ponto os idealizadores da Doutrina de Segurança
Nacional porque este quadro negativo poderia reforçar os movimentos “subversivos”
e das esquerdas. Mas, ainda que tenha havido no seio das Forças Armadas, propostas
nacionalistas e reformadoras para enfrentar a miséria e a desigualdade, tal grupo foi
podado durante o regime, em especial no momento da sucessão de Costa e Silva. A
visão conservadora que prevaleceu no coração do poder nacional fez com que os
aspectos sociais e de distribuição da riqueza fossem enormemente negligenciadas
pelos militares.
O que se pode chamar de uma política social do regime foram medidas
relativamente superficiais e compensatórias. Entretanto, no meio rural, durante o
217
governo Médici, foi elaborado um plano de previdência, assistência e reforma
agrária, materializado em maio de 1971 no Prorural (Programa de Assistência ao
Trabalhador Rural) E, em julho daquele ano, o Proterra (Programa de
Redistribuição de Terras). Ambos os programas propunham a desapropriação de
grandes propriedades improdutivas com indenização para venda a pequenos e médios
agricultores, concessão de créditos e preços mínimos para produtos de exportação.
Para os trabalhadores urbanos, foi criado o Pis-Pasep, em 1970, servindo como uma
poupança forçada para a indústria, sem recorrer a empréstimos bancários. E para
injetar recursos para o consumo dos assalariados.152
Entretanto, o arrocho salarial
inviabilizou uma real política previdenciária, para a verdadeira superação da miséria
e concentração de renda.
Em termos de políticas habitacionais, o governo lançaria, em 1973, o Plano
Nacional de Habitação Popular (Planhap), com objetivo de eliminar o déficit
habitacional em dez anos, atendendo famílias que tivessem renda de até cinco
salários mínimos. Previa-se a construção de dois milhões de moradias, criando-se
também milhares de empregos diretos e indiretos para a aplicação do Plano. Porém,
os resultados ficaram longe do que havia sido inicialmente colocado como meta. Os
programas de habitação popular seriam atingidos também pela especulação,
submetendo-se à lógica do mercado, voltando-se para as classes médias.
Na educação, em 1968, o governo impôs a reforma universitária. Em 1971 era
a vez do ensino básico, com a integração do primário ao ginásio, mais a alteração da
grade do ensino médio. Para as populações adultas ainda analfabetas seria criado o
Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que até hoje é lembrado por muitas
pessoas que viveram aqueles tempos. Entretanto, o Mobral serviu mais para “fazer
propaganda do governo” do que para verdadeiramente erradicar o analfabetismo das
camadas adultas da população nacional, devido também à sua metodologia
tecnicista.153
152 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 167.
153 Id., Ibid., p.168.
218
Além da ênfase compensatória, com pequenas transferências de renda e
ampliando alguns serviços públicos (como os de assistência social e de saúde) para
populações que estavam completamente sem amparo, especialmente no meio rural
brasileiro, o regime procurou dar uma lógica tecnicista em suas políticas sociais
pautando-se numa palavra muito forte naqueles tempos: o planejamento. O governo
procurou racionalizar, normatizar e regular o meio social, procurando solucionar seus
conflitos, para dar andamento aos seus programas e agências, num paradigma técnico
e racional. Todavia, se formos imaginar que em algum momento o regime militar
brasileiro procuraria oferecer alguma estrutura de assistência social, em especial na
educação e na saúde, tal disposição do regime esbarraria nos governos locais, do
âmbito municipal, onde todo o tecnicismo e racionalidade dos programas seriam
engolidos por más administrações e pela corrupção por parte dos poderes locais,
embora não há como redimir também as esferas superiores do governo – as estaduais
e a federal.
NAPOLITANO (2014)154
aponta que uma das razões para a questão dos
menores abandonados e da explosão da criminalidade nas periferias das grandes
cidades foi decorrente da migração desenfreada e do inchaço urbano advindo deste
processo. Ainda que, num primeiro momento pareceu haver melhorado a situação
destas pessoas, vindas do meio rural e de outras partes do país, em especial do
Nordeste em direção às grandes metrópoles do Sudeste – sobretudo São Paulo e Rio
de Janeiro, pois no campo elas não contavam praticamente com assistência nenhuma,
o efeito colateral logo manifesto foi a desorganização familiar, com a oferta
insuficiente de escolas e creches públicas. Assim teve-se o “caldo” para o aumento
no número de menores abandonados e infratores, bem como a elevação da
criminalidade, com episódios até de violência banal – ora entre vizinhos, ou por parte
da truculência das forças policiais. A ausência do poder público e as brechas
deixadas por este acabarão por ser preenchidas por atividades ilegais como, por
exemplo, o tráfico de drogas e o crime organizado. Outro fator que contribuiu para o
154 Id., Ibid., p.169.
219
problema foi a retração do crescimento econômico brasileiro e a crise que se abateria
no país, em especial após 1979. Se nos anos do “milagre” nenhuma atitude sólida foi
tomada pelos donos do poder do Estado autoritário em termos de distribuição de
renda, melhorias salariais, etc., a situação se tornaria mais dramática, em especial
para as camadas populares, com a terrível crise econômica que o Brasil viveu nos
anos finais do regime, já no governo Figueiredo. Mas, nem tudo foi ruim nas
periferias. Ali também surgiriam novas formas de sociabilidade, criando novos laços
políticos, como nos movimentos sociais, que ganharão seu espaço no decorrer do
período democrático posterior ao regime.
Se formos pensar na Geografia, ela teve o seu papel decisivo para o fim do
“milagre brasileiro”. Afinal, o Brasil estava inserido dentro da geografia do sistema
capitalista mundial. No distante Oriente Médio, países árabes – liderados pelo Egito e
a Síria – resolveram recuperar os territórios perdidos para Israel, em 1967. Seis anos
depois, em 1973, ocorria a ofensiva árabe contra Israel, na Guerra do Dia do Perdão
(data comemorada em Israel). Em desvantagem no início, Israel conseguiu revidar
aos ataques por conta da ajuda recebida pelos seus aliados do Ocidente, em especial
os Estados Unidos. Com o fracasso militar, os países árabes produtores de petróleo
conseguem sua retaliação no campo econômico, sendo maioria na OPEP
(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) impondo a elevação do preço do
barril de petróleo, afetando bastante o mundo ocidental. A economia européia
dependente das importações de petróleo passou a conviver até com racionamentos de
energia. Os Estados Unidos também foram afetados, ainda que com menos
intensidade. O Brasil, situado na periferia do sistema capitalista, obviamente, sofre os
impactos disso na importação do petróleo. Era o fim dos “anos dourados” do
capitalismo pós-Segunda Guerra.
O Brasil importava na época cerca de 90% do petróleo consumido e sentiu os
efeitos do “choque do petróleo”. Contudo, o país ainda podia contar com o dinheiro
que - agora em posse dos árabes, os “petrodólares” – ainda encontrava-se nos
bancos ocidentais e assim o Brasil ainda poderia recorrer aos empréstimos do
exterior.
O fim do “milagre” coincide com o início do governo Geisel, em 1974.
Procurou-se, mesmo diante da nova realidade desfavorável, o crescimento
220
econômico. Isto era vital para Geisel poder dar andamento ao projeto da “distensão”
e em preservar a legitimidade do regime. O II PND (Plano Nacional de
Desenvolvimento) tinha metas neste contexto, buscando a superação de “gargalos” às
indústrias de base e à rede de energia. A dependência das importações levou a
constantes déficits, porém a disponibilidade de dólares no exterior puderam financiar
o desenvolvimento e os projetos do governo Geisel. Em seus tempos, foi criado o
CDE (Conselho de Desenvolvimento Econômico) e a Seplan (Secretaria de
Planejamento da Presidência da República), em 1974. Presidida pelo próprio Geisel,
as orientações da macroeconomia previstas no II PND, seriam executadas a partir
destes órgãos.
O efeito desenvolvimentista do II PND, desconsiderando os aspectos sociais,
teve êxito até 1976155
. Depois a inflação, a retração do consumo nas classes médias e
o arrocho salarial foram gerando grande descontentamento da população. O regime
começava a enfrentar dificuldades quanto à sua própria manutenção e legitimidade,
dificuldades estas que só vão aumentar nos anos do governo Figueiredo (1979-1985).
O regime militar chegou ao fim ao sabor de uma ironia, no plano econômico.
Os golpistas de 1964 utilizaram, entre vários outros argumentos, a situação de crise
econômica do governo João Goulart para derrubá-lo do poder. Todavia, uma situação
econômica mais complicada, advinda do “choque” do petróleo de 1973, agravada
pelo segundo “choque do petróleo” de 1979, fez com que o regime perdesse as suas
bases sociais por conta da crise econômica. No ano do golpe – 1964 - a inflação foi
de 92,1%, porém o regime passou a dominar o poder a partir de abril. No primeiro
ano por inteiro do regime – 1965 - a inflação foi de 39,1%. Nos anos seguintes,
seguiu abaixo dos 40% por todos os governos de Castelo Branco, Costa e Silva e de
Médici. Nos anos do general Médici (1969-1973) esteve abaixo dos 20%. A inflação
ultrapassou os 40% em 1978, já no governo Geisel. E passou dos 100% no governo
Figueiredo (110,2%, em 1980).
O regime militar fecharia seu ciclo com índices de inflação inimagináveis nos
anos de Jango: 211% (em 1983). No último ano completo, que Jango esteve no poder
– 1963 - (pois em 1964 ele seria derrubado em março), a inflação foi de 79,92%. Em
155 Id., Ibid., p.171.
221
1984, último ano por inteiro do regime militar (em 1985, o general Figueiredo sairia
da Presidência da República, a 15 de março), a inflação foi de 223,9%. Praticamente
três vezes maior. 156
Outro dado. O PIB sempre apresentou crescimento positivo nos anos de Jango.
O índice mais baixo foi um crescimento de 0,6% de crescimento do PIB, em 1963.
No último governo de um general-presidente, o de João Figueiredo, houve números
negativos do PIB (crescimento negativo: retração de 3,1%, em 1981; e nova retração
de 2,9%, em 1983).157
Claro que o período Figueiredo foi mais longo (seis anos).
Jango não permaneceu nem três anos no poder (na verdade, no sistema
presidencialista foi um pouco mais de um ano). Devido à diferença de tempo de
duração entre o governo Jango e o do general Figueiredo, bem como as diferenças
nos contextos gerais, tanto brasileiro como mundial, de épocas diferentes (anos 1960
versus anos 1980), esta comparação pode não ser pertinente. Contudo, fazendo-se
esta menção espero que o leitor, pelo menos, possa refletir e aprofundar futuras
pesquisas com novos números e perceber que, nos tempos dos militares, nem sempre
a economia foi próspera. A maior parte da população brasileira, ao invés de
“descansarem debaixo da figueira, ou da videira”, como mencionado no trecho
bíblico aqui citado, continuaram à margem das políticas oficiais e vítimas da
perversa concentração da renda e do arrocho salarial. O “milagre” foi econômico,
mas não social, e muito menos político e democrático (vide tabela 1).
156 Fonte: FGV/IBGE, in: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit, p.172
157 Id., Ibid., p.172.
222
Tabela 1:
Dados econômicos do Brasil 1960-1984
Ano Inflação (em %) Crescimento do PIB (em %)
1960 30,5 9,4
1961 47 8,6
1962 51,6 6,6
1963 79,92 0,6
1964 92,1 3,4
1965 34,3 2,4
1966 39,1 6,7
1967 25,02 4,2
1968 25,4 9,8
1969 19,3 9,5
1970 19,3 10,4
1971 19,5 11,3
1972 15,7 11,9
1973 15,6 14
1974 34,5 8,2
1975 29,3 5,2
1976 46,3 10,3
1977 38,8 4,9
1978 40,8 5
1979 77,3 6,8
1980 110,2 9,2
1981 95,2 -3,1
1982 99,7 0,8
1983 211 -2,9
1984 223,9 5,4
Fonte: FGV/IBGE. In: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 172.
223
3.3.2- Anos de chumbo
Se tentarmos estabelecer um marco cronológico para o que teria sido os “anos
de chumbo”, poderíamos escolher a imposição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.
Se analisarmos o regime como uma “ditabranda”, no período compreendido entre
1964 e 1968, perceberemos que, apesar de ser um termo altamente controverso, a
“ditabranda” não se restringe somente ao período castelista, mas abrange até a
metade do segundo governo militar – o do general Arthur da Costa e Silva.
Agora, considerando-se os “anos de chumbo”, eles se estenderam basicamente
pela segunda metade do governo de Costa e Silva, passando pela Junta Militar de
1969, todo o período Médici (1969-1974), terminando com a chegada de Geisel à
Presidência, naquele mesmo ano de 1974. Todavia esta periodização, que aqui estou
apontando, é controversa porque: primeiro, ao se qualificar o regime desta forma
(“ditabranda”, “anos de chumbo” e “distensão”, sendo que este último termo
praticamente se tornou sinônimo do governo Geisel) cria-se, a meu ver, uma falsa
impressão de que o regime militar não foi um período uno, que afetaria seriamente o
Brasil por 21 anos ininterruptos, em que a população ficou proibida de escolher o
presidente da República por quase três décadas e sem escolher os governadores
estaduais por 17 anos. Não só isso, o golpe de 1964 destruiria toda uma dinâmica
política e partidária precedente, prejudicando toda uma geração de figuras políticas
(que apesar de todas as críticas e defeitos existentes não só com relação a estas, como
ao sistema do período democrático anterior) poderiam abrir leques, brechas e
possibilidades para uma maior democratização do país. Também foi paralisado todo
um processo de conscientização e de politização de, pelo menos, algumas camadas
subalternas da sociedade nacional.
Então, esta visão do regime militar de 1964, como algo uno - a unidade de uma
corporação - que dominou o país por duas décadas, fica fracionada e segmentada por
tal periodização como a apontada acima. Isso pode prejudicar uma análise do período
militar autoritário, havendo riscos de se responsabilizar por demais determinados
personagens, ou “demonizar” em excesso outros atores. Por exemplo, ficou até aos
dias atuais, a imagem de Castelo Branco como um presidente-general “bem
intencionado”, que não queria ou tinha certo receio de tomar medidas discricionárias;
224
com relação à Médici, primeiro como o símbolo da onda de prosperidade e otimismo
(“o milagre econômico”) da época de seu governo, mas depois de terminado o
período do Estado autoritário, teria a sua imagem associada à da repressão e ao auge
da tortura (“os anos de chumbo”); Geisel, como o general da abertura e da
“distensão”, às vezes elevado até a um certo “pedestal” por conta disto, como se seu
governo não tivesse apresentado torturas, mortes e, principalmente, contradições,
com avanços e retrocessos permeados por medidas autoritárias.
Voltando-se ao AI-5, este não apresentou, de imediato, uma nova máquina
repressiva já pronta. Mais ainda, com relação à Costa e Silva, não há um consenso
quanto à responsabilidade daquele general-presidente quanto ao AI-5. Costa e Silva
não queria entrar para a História como “mais um general sul-americano que golpeou
as instituições”.158
No rastro deste receio do presidente, uma hipótese é que Costa e
Silva, já com a saúde debilitada, tentou realizar uma “abertura” do regime, na
verdade, constitucionalizar a nova situação político-jurídica, chegando a solicitar um
projeto para procurar, na ótica militar e da magistratura conservadora, normatizar as
leis de exceção e legitimar o arcabouço jurídico-institucional, constitucionalizando,
na ótica de ambos os grupos, uma “normalidade democrática”. Para NAPOLITANO
(2014)159
a hipótese seria plausível dada à “obsessão” dos militares e dos
magistrados em normatizar, regulamentar e organizar um dado sistema dando a ele
uma fachada “legitimante”.
Costa e Silva, afastado provisoriamente do cargo em agosto de 1969, e em
definitivo no mês seguinte, foi substituído por uma junta militar que impediu a posse
do civil Pedro Aleixo, o vice-presidente. Neste mesmo ano, o sequestro do
embaixador norte-americano forneceria a ocasião perfeita para aprimorar o sistema
de repressão.
Havia uma crise política após o derrame de Costa e Silva. A Junta Militar
não conseguiu acalmar os ânimos entre os diferentes grupos existentes nas Forças
158 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 120.
159 Id., Ibid., p.120.
225
Armadas. A guerrilha com as suas ações de sequestros, assaltos a bancos, etc.,
ganhava espaço e o nome de Carlos Marighella crescia como o símbolo do
guerrilheiro temido e admirado. Dentro das Forças Armadas, a jovem oficialidade,
tendo como porta-voz o general Albuquerque Lima, candidato à Presidência da
República, propunha um novo direcionamento à “Revolução de 1964” voltado a um
nacionalismo autoritário reformista, com reforma agrária, centralização do poder e
combate às oligarquias, algo aliás presente no pensamento geopolítico brasileiro –
centralização e um certo desprezo ao regionalismo oligárquico. O que estava por trás
disso era uma concepção de integração nacional, acima das diferenças regionais e
locais, na busca da consolidação do projeto de “Brasil Grande”. O clima deste
projeto, fortemente presente nos quartéis, foi habilmente captado pelo governo
Médici, com a “proeza” de não radicalizar contra as velhas estruturas.
O general Emílio Garrastazu Médici, foi escolhido para a Presidência da
República, em 1969, numa eleição “direta”, restrita aos generais obviamente. Os
militares, para legitimar uma verdadeira farsa institucional, reabriram o Congresso
após 312 dias, em outubro de 1969, para a ratificação do novo presidente escolhido.
Embora Médici tivesse feito, em seu discurso de posse, menção a uma
aspiração nacional pelo regime democrático, o clima era outro: o de uma guerra
contra a guerrilha. Não era o momento de se falar em democracia, muito menos em
abertura e redemocratização. Daí o fato do discurso do presidente recém-empossado
ter sido mal recebido pelas Forças Armadas. Havia a necessidade de se estruturar
uma máquina repressiva mais eficiente e citando-se a declaração do general Fiuza de
Castro (in: NAPOLITANO,2014, pág 121, nota de rodapé 168): “ Certa vez, eu disse
a um entrevistador que, quando decidimos colocar o Exército na luta contra a
subversão – que praticamente foi estudantil e intelectual [...] -, foi a mesma coisa
que matar uma mosca com um martelo-pilão”
Mas uma mosca, ainda que pequena, incomoda o ambiente. Para Napolitano,
a guerrilha no Brasil nasceu dos impasses e cisões ocorridas na esquerda após o
golpe militar. A luta armada já era vista como uma possibilidade antes de 1964, mas
as esquerdas acreditavam que a “revolução” ocorreria de qualquer forma, como se
fosse algo inerente ao próprio processo histórico. Porém, com a rapidez da queda do
governo Jango, a frustração da luta pelas reformas e o endurecimento político pós-
226
golpe, fizeram com que as esquerdas debatessem a situação sobre o que teria dado
errado. Rapidamente foram apontados dois culpados: o presidente Goulart, que tinha
sido frágil, conciliador e hesitante; e o PCB, que apostara numa solução moderadora,
pacífica e democrática. Nos primeiros anos do regime o PCB se viu em meio a tal
debate após o golpe e quando, já em pleno regime militar, reforçou sua opção pela
luta pacífica, as cisões no seio do “Partidão” foram inevitáveis.
As primeiras reações armadas partiram de militares nacionalistas,
expurgados após o golpe. Inspirados na Revolução Cubana, tendo como liderança
política, Leonel Brizola, eles constituíram o “Movimento Nacional Revolucionário”
e procuraram fazer da serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e o Espírito
Santo, a sua “Sierra Maestra”. Mas o grupo acaba desbaratado sem dar um único
tiro, em abril de 1967, preso por policiais mineiros.
Também em 1967, se formaria um dos grupos mais atuantes da guerrilha de
esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em janeiro de 1969, a VPR
ganharia a presença do capitão Carlos Lamarca. Militar profissional e experiente, ele
desertou do Quartel de Quintaúna levando uma Kombi com 63 fuzis automáticos. No
mesmo ano, a VPR se juntaria a um pequeno grupo mineiro – o Colina (Comando de
Libertação Nacional) – formando a Vanguarda Popular Revolucionária – Palmares
(VAR- Palmares).
A VPR, depois VAR - Palmares ficou conhecida por três ações de grande
repercussão: O atentado ao QG do II Exército em São Paulo (junho de 1968); o
roubo do cofre do ex-governador paulista Adhemar de Barros (julho de 1969); e a
fuga de um grupo de guerrilheiros, chefiados por Lamarca, que conseguiram romper
um grande cerco das forças de segurança no Vale do Ribeira, ao sul do estado de São
Paulo (abril e maio de 1970).
Todavia, duas destas ações deram margem à propaganda “anti-guerrilha” do
regime, tendo o seu “soldado-mártir”: a morte do recruta Mario Kozel Filho por
ocasião da explosão do caminhão-bomba enquanto estava de sentinela; e também a
execução a coronhadas do tenente da PM paulista Alberto Mendes Júnior, no Vale do
Ribeira.
227
1967 ainda foi o ano do surgimento de outra organização guerrilheira: a
Ação Libertadora Nacional (ALN), uma dissidência do PCB que contava com
lideranças históricas do partido: Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.
Marighella tinha a simpatia de Cuba, na iniciativa do regime de Fidel de
implantar guerrilhas que pudessem obter êxito na América Latina. Após a crise dos
mísseis de 1962, Cuba se afastou da União Soviética, pois se sentiu manipulada pelo
jogo das duas superpotências. Assim o governo cubano procurou incentivar ações
guerrilheiras na porção latino-americana do continente, colocando-se como uma
alternativa às alas mais revolucionárias da esquerda do Terceiro Mundo face à
postura excessivamente moderada da política soviética na região. Prova disso foram
as ações guerrilheiras na Bolívia que terminaram com a morte da lendária figura de
Ernesto “Che” Guevara.
As ações guerrilheiras no Brasil, segundo NAPOLITANO (2014), tiveram
dois objetivos:
a) arrecadar dinheiro para montar suas redes de infraestrutura e custeio: b)
fazer propaganda para as massas. Quase todos os grupos, num segundo momento,
buscariam desenvolver uma “guerrilha rural” para, aí sim, derrotar definitivamente o
regime. Em setembro de 1969, em meio ao período da Junta Militar no poder, no
intervalo entre os períodos de Costa e Silva e de Médici, as ações guerrilheiras se
intensificaram. Fato notório foi o sequestro do embaixador norte-americano, Charles
Elbrick, trocado por 15 prisioneiros políticos, entre eles o ex-dirigente da UNE e
futuro ministro no primeiro governo Lula (2003-2006), José Dirceu. Mas a resposta
do Estado autoritário não tardaria. Dois meses após o sequestro, Marighella foi morto
em São Paulo, numa operação chefiada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury,
expoente da Operação Bandeirantes (Oban), que trataremos daqui a pouco. Em
1971, foi a vez de Carlos Lamarca, cercado e morto no interior da Bahia.
Longe do barulho das ações promovidas pela ALN e VAR – Palmares), o
PCdoB (Partido Comunista do Brasil) implantava, sem alarde, sua unidade
guerrilheira na região do Araguaia, interior do Pará. O modelo seguido não era o
cubano (baseado no foquismo guevarista), mas o chinês. O PC do B não havia
participado da luta armada urbana. Seus membros apostavam numa guerrilha
prolongada e, pensando nessa possibilidade, procuraram ganhar a confiança da
228
população local para depois iniciar a guerrilha, como o que ocorreu na China de
Mao-Tsé-Tung. Iniciada em 1967, os militantes foram encaminhados para uma área
extensa (6.500Km2), pouco povoada e de difícil acesso. Os guerrilheiros começaram
a enfrentar as forças de segurança em abril de 1972. Apesar do pequeno número (no
máximo uns 70 guerrilheiros), as vitórias obtidas por estes contra as tropas formadas
por jovens recrutas animaram os guerrilheiros. Contudo, a partir de 1973, com o
Exército enviando tropas mais experientes, a guerrilha no Araguaia foi desmantelada
em outubro daquele ano. Um dos poucos sobreviventes foi José Genoíno, depois
deputado federal pelo PT durante vários mandatos e candidato derrotado ao governo
paulista em 2002.
VILLA (2014)160
, faz uma análise bastante negativa da guerrilha do Araguaia.
Para ele, a mesma foi um grande fracasso. No final, os combatentes ficaram isolados
das lideranças urbanas do partido sem poder receber armas e novos combatentes.
Parte deste fracasso também é creditado ao fato do PC do B ter perdido mais de seis
dúzias de militantes, com décadas de vida partidária. No plano militar, os combates
foram mínimos – apenas seis – e quase todos defensivos. Ele ainda acrescenta que os
episódios do Araguaia não tiveram nenhuma relevância para o enfraquecimento do
regime. Foi uma aventura fadada ao fracasso. A dimensão histórica dessa guerrilha
teria sido por conta da censura imposta sobre ela pelo governo e não propriamente
pela ação militar empreendida.
Contudo há controvérsias. Para BARROS (1998)161
, aquela guerrilha rural foi
relativamente a experiência mais bem-sucedida da História recente do
Brasil.Instalados nas selvas amazônicas do sul do Pará,eles estavam agrupados em
três colunas. Na cobertura de uma densa floresta tropical, os 69 militantes do PC do
B teriam resistido ao cerco de 12 mil homens, entre os mais bem treinados das Três
Armas (Exército, Marinha e Aeronáutica). A guerrilha foi exterminada através de
uma operação custosa que, porém, passou quase que despercebida pela imprensa,
160 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 208-209.
161 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.65- 66.
229
exceto por duas matérias publicadas na Folha da Tarde e O Estado de São Paulo, em
setembro de 1972. A população só iria saber da luta no Araguaia em 1978. O
governo Médici proibiu que nos processos judiciais dos poucos sobreviventes, como
José Genoino, constassem os conflitos armados do sul do Pará. Interessante foi a fala
do coronel Jarbas Passarinho, conforme o mesmo autor, que explicou que o governo
se empenhou tanto em esconder o que ocorria na região do Araguaia porque, para
ele, o movimento do Araguaia foi: “o único bem preparado e importante, e o povo
não deveria saber que o governo estava sendo desafiado com algum sucesso”162
Os grupos de esquerda que optaram pela luta armada permaneceram
independentes. Pouquíssimas foram as ações conjuntas entre dois ou mais desses
grupos. A esquerda brasileira, nessa época, manteve a tendência à fragmentação e ao
sectarismo, até porque em busca de respostas diante dos erros cometidos,
dissidências foram ocorrendo. Diante de uma repressão governamental cada vez mais
compacta e estruturada, a esquerda nacional encontrava-se repartida em diversos
grupos quase sempre divergentes entre si.
O “martelo de pilão” da repressão não apenas matou “moscas”, mas tudo o
que ousasse voar.163
A máquina repressiva montada pelo regime de 1964 recaiu sobre
a sociedade brasileira da época baseada em um tripé: censura – vigilância –
repressão.164
A eficácia desse tripé tornou-se mais evidente no final da década de
1960, ancorado em uma legislação que englobava a Lei de Segurança Nacional, as
leis de censura, os Atos Institucionais e os Complementares e a própria Constituição
de 1967. Este tripé não foi uma invenção do regime de 1964. Em parte ele foi
herdado do passado até porque o Brasil vivera uma ditadura antes – a de Getúlio
Vargas, no Estado Novo, de 1937 a 1945 – mas o regime de 31 de março deu uma
162 Id., Ibid., p. 65-66.
163 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 128.
164 Id., Ibid., p. 128.
230
reestruturada nesse tripé, criando novas agências e funções, deixando uma marca
duradoura na sociedade nacional que ainda tem muitos reflexos hoje.
No tocante à censura, a legislação básica era de 1946, advinda do período
anterior. O regime ampliaria o alcance da censura através de leis e decretos, no
período entre 1968 a 1970. A censura assumiu um caráter mais político, embora o
argumento fosse o de sempre: a defesa da moral e dos bons costumes. Em 1972, com
a criação da Divisão de Censura do Departamento da Polícia Federal, a censura seria
centralizada burocraticamente. Todavia, a prática da censura manteve, pelo menos
aparentemente, uma ação muito arbitrária, pouco sistematizada e variável conforme a
área de expressão. Exemplo disso é que a censura era fortemente presente no rádio,
na televisão e no teatro, aproveitando-se da lei que a embasava vinda ainda de 1946.
De outro lado, verdadeiras trapalhadas ocorreram como a proibição do livro O
Cubismo, por terem achado se tratar de uma propaganda de Cuba.
A censura criou seus embaraços ao regime. Ao mesmo tempo em que este
buscava o crescimento da indústria cultural e da diversão, que movimentava dinheiro
e era parte da modernização industrial, e também conservadora, que o regime
sonhara; por outro lado a censura prévia poderia “asfixiar” tal processo de
modernização e indispor o governo autoritário com os segmentos sociais mais altos
da sociedade e afetar a legitimidade do regime perante tais setores. Era necessário,
então, evitar novas trapalhadas da censura, em especial com relação ao cinema (uma
indústria ainda frágil na época, mas que já tinha certo reconhecimento no exterior) e
ao teatro (espaço de resistência intelectual e política, mas ao mesmo tempo
necessário à política cultural do regime).
Quanto à censura à imprensa, houve momentos de censura prévia rígida à
alguns dos grandes veículos como o jornal O Estado de São Paulo (1972-1975) e à
revista Veja (1974-1976). Mas a preferência governamental era pela censura indireta,
“sugestiva”, ou ainda a autocensura aos órgãos de imprensa. A dificuldade em se
normatizar e assumir a censura prévia à grande imprensa comercial, apoiadora do
golpe que destituiu Jango em 1964, se devia na preservação da própria imagem do
regime que se via como a antítese do getulismo, que durante o Estado Novo, aplicara
severo controle aos jornais. Era um tipo de censura que incomodava os castelistas em
especial. Eles até eram favoráveis em processar jornalistas, mas bastante reticentes,
231
em uma ação efetiva contra grandes jornais.165
Já para a imprensa alternativa de
esquerda, não havia nenhum constrangimento aos vetos parciais ou totais, além da
prisão de jornalistas.
O fundamento teórico para a montagem de uma monumental máquina
repressiva era o conceito de guerra interna ou guerra revolucionária, aprendido pelos
franceses quando estes últimos enfrentavam os movimentos de independência de
suas colônias na África e na Ásia. Neste pressuposto, o inimigo seria invisível, oculto
e chamado de “subversivo”, podendo ser qualquer um em meio à população civil.
Por essa lógica, a princípio todos seriam suspeitos até provar-se o contrário. As
forças militares teriam que mudar o seu foco. Não mais de defesa do território
nacional contra uma agressão militar estrangeira ou de invasão do território inimigo,
mas adotar uma ação tipicamente policial, complementada com operações de
guerrilha contrainsurgente.
No Brasil, várias agências operativas realizavam as ações do tripé repressivo
e trocavam informações entre si, embora raramente suas ações fossem coordenadas a
partir de uma estrutura comum e integrada. Esta característica pode fazer pensar que
o sistema repressivo fosse disfuncional, e talvez o fosse mesmo. Mas também evitava
que as lideranças políticas do regime, com visão mais ampla e estratégica, ficassem
“reféns” de um aparato super-repressivo. Assim estabeleceu-se durante o regime
autoritário uma relativa distância entre o seu “palácio” e o “porão”.166
Tratando-se do funcionamento da vigilância, sua função primordial era
produzir informações, criar uma rede delas, que pudesse até chegar a culpabilidade
dos vigiados. O eixo do sistema de informações era o SNI (Serviço Nacional de
Informações), criado apenas dois meses após o golpe. O SNI respondia basicamente
só ao presidente da República. O SNI tinha ramificações através das DSIs (Divisões
de Segurança de Informações) e a ASI (Assessoria de Segurança e Informação),
165 Id., Ibid., p. 131.
166 Id., Ibid., p. 129.
232
instalada em cada órgão importante da administração pública. Era uma estrutura
informativa, mas não operativa.
Os ministérios militares contavam com seu próprio sistema de informação,
com serviços de inteligência das três forças, que além de informativos eram também
operativos.
O Cenimar (Centro de Informações da Marinha) era o mais antigo, criado
ainda em 1955. O Cisa (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica) foi
criado em 1968. O CIE (Centro de Informações do Exército), criado em 1967, se
tornou um dos mais importantes e letais entre os serviços de segurança do regime.
Estes três serviços das três armas também compuseram o aparato repressivo.
Para NAPOLITANO (2014), a repressão deve ser “entendida como conjunto
de operações de combate direto às ações civis e armadas do regime”. 167
Até o final
da década de 1960, as polícias estaduais e os Dops (Departamento de Ordem Política
e Social) eram responsáveis pelas operações policiais de repressão política. Não
havia um sistema nacional de repressão policial. O crescimento da guerrilha trouxe
uma nova sigla: os Doi-Codi (Destacamentos de Operações de Informações – Centro
de Operações de Defesa Interna). Antes dos Doi-Codi, cada força militar tinha seu
próprio serviço de informação e de combate à guerrilha, sob responsabilidade de seu
respectivo ministro militar.
Do ponto de vista geográfico, a superposição de agências e comandos no
combate à guerrilha, uma Polícia Federal não estruturada nacionalmente, mais o
limite dos Dops estaduais tornaram o combate à guerrilha não muito eficiente nos
primeiros anos do regime militar. As trocas de informações eram incompletas, as
metodologias empregadas variavam, minando uma ação nacional integrada dos
órgãos de repressão e de segurança. O divisor de águas se deu com a criação da Oban
(Operação Bandeirantes), predecessora dos Doi-Codi.
O modelo da Oban era o esquadrão da morte que atuava na cidade de São
Paulo desde inícios dos anos 1960, extorquindo e dizimando criminosos comuns, até
167 Id., Ibid., p. 132.
233
com requintes de crueldade. Dada à inexperiência dos militares em atividades
policiais, logo se destacaria um delegado da polícia civil de São Paulo, Sérgio
Paranhos Fleury, que chefiou a ação que terminou com a morte de Carlos Marighella,
em novembro de 1969. A Oban concentrou-se em todos os tipos de “subversivos” –
desde os combatentes da luta armada, passando pelas redes de apoio direto e indireto
às organizações clandestinas, até aos militantes de esquerda e de movimentos sociais
que não tinham aderido à luta armada. Com uma estrutura bastante flexível, a
Operação englobava militares, policiais civis e policiais militares, contando com
bastante liberdade de ação, sem os constrangimentos jurídicos-burocráticos, atuando
praticamente à margem da lei. Justamente por causa disso, estes “bandeirantes do
século XX”, voltados à caça implacável especialmente de membros da guerrilha da
luta armada, não podiam contar com verbas oficiais governamentais. As
necessidades financeiras da Oban eram bancadas por empresários e alguns grupos
privados.
A despeito de sua eficiência, a Oban não agradava a cúpula militar por
contar em seus quadros com policiais tidos como assassinos e corruptos. Por isso, em
1970, procuraram abarcar o modelo flexível da Oban ao âmbito militar, seria criado o
sistema Doi-Codi, sob o controle direto dos comandos de cada região militar.
A repressão à base da tortura não foi exclusividade dos “anos de chumbo”,
ou só de determinado governo de um dos generais-presidente. Na verdade, seria
extremamente equivocado associar a tortura e a repressão somente ao governo de
Médici (1969-1974), por exemplo, embora os chamados “anos de chumbo”
coincidam basicamente com o governo daquele general. Episódios assombrosos e
denúncias de tortura já haviam ocorrido na “ditabranda” de Castelo Branco. E depois
apareceram casos no governo “distencional” de Geisel (as mortes do jornalista
Wladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho).
Voltando-se ao governo Castelo, um exemplo disso, colocado por
CHIAVENATO (2006),168
foi a prisão do líder comunista Gregório Bezerra, já nos
primeiros dias após o golpe, em abril de 1964. Gregório contava, na época, 63 anos
de idade, sendo preso pela “polícia particular” do usineiro Zé Lopes, no interior de
168 CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p.176.
234
Pernambuco. Transferido para o Recife, Gregório foi espancado pelo coronel Villocq
Viana e pelos seus soldados, no quartel do Exército. Obrigaram-no a caminhar com
os pés descalços sobre ácido jogado no chão. Com os pés em carne viva, foi
amarrado pelo pescoço com três cordas puxadas pelos soldados e foi obrigado a
desfilar pelas ruas do Recife.
Os primeiros meses após o golpe foram marcados pela detenção de
aproximadamente 50 mil pessoas. Líderes sindicais e estudantis foram os principais
alvos. Nas primeiras semanas após o golpe, a imprensa noticiava pouco as violências,
apesar da censura ainda não estar na sua plenitude. Mas a revista Time informou ao
mundo a operação limpeza, assegurando que se prendiam em média 10mil pessoas
por semana. Em setembro de 1964, a imprensa internacional divulgou a situação do
Brasil e as entidades internacionais de defesa dos direitos humanos começavam a
denunciar o regime militar brasileiro, apenas seis meses após o golpe. Se para os
saudosistas do regime que gostam de reforçar que o caso brasileiro foi mais “brando”
do que, por exemplo, o caso chileno, em que milhares de pessoas foram levadas ao
Estádio Nacional de Santiago durante o governo de Pinochet, aponta-se aqui que o
Maracanã também teve os seus dias de “presídio”, navios da Marinha ficaram
abarrotados de “subversivos”, assim como os quartéis do Exército. O uso da tortura
já se fazia presente. A imprensa brasileira também começou a denunciá-la. O
governo Castelo Branco prometia investigá-las, mas nada efetivamente de concreto
foi feito.169
As violências do primeiro governo militar também ocorreram em nome da
“limpeza” das Forças Armadas. Já se mencionou aqui e relembremos; foram 122
oficiais expulsos com a acusação de serem contra-revolucionários. Os militares
punidos eram considerados oficialmente “mortos”, perdiam os seus direitos e as suas
esposas ganhavam a pensão de “viúva”.170
169
Id., Ibid., p. 178.
170 Id., Ibid., p. 178 e 179.
235
Relembremos que o SNI (Serviço Nacional de Informações) foi criado apenas
pouco mais de dois meses após o golpe de 1964, voltado à alçada da Segurança
Nacional. Estas duas palavras “segurança nacional” foi algo incessantemente
buscado pelo regime, até de forma obsessiva, se assim podemos dizer. Em nome
destes dois vocábulos, a subversão era combatida pela manutenção da paz, da lei e da
ordem requeridos pelo regime. Sob a orientação do general Golbery do Couto e
Silva, o SNI recebia verbas secretas e supervisionava outros “departamentos de
segurança”, inclusive o DSI (Divisão de Segurança e Informação), que se incorporou
a todos os ministérios. Assim não só os “subversivos”, mas também os quadros
burocráticos do regime e do aparelho estatal eram devidamente monitorados e
vigiados pelo Serviço. Pode-se pensar aqui que, antes de estruturar e aprimorar uma
rede de comunicações, transportes, energia, urbana, etc., para todo o território
nacional, o regime militar, desde os seus primeiros instantes, e com participação
efetiva de Golbery do Couto e Silva como na criação do SNI, estruturaria uma
verdadeira rede de informações e de vigilância aos opositores e aos quadros do
próprio governo e de seus apoiadores.
O SNI prestava contas ao CSN (Conselho de Segurança Nacional) e ao
presidente da República. Controlando os serviços de segurança do Exército, da
Marinha e da Aeronáutica, o SNI se articulava ao nível estadual com os Deops
(Delegacia Estadual de Ordem Política e Social) e o Dops (Departamento de Ordem
Política e Social).
Num momento, faz-se necessário voltar aos anos do governo Juscelino (1956-
1960). É que foi nos anos de JK, e não após o golpe de 1964, que o serviço de
inteligência ganhou proporção e qualidade. Desde 1927, já existia o Conselho de
Defesa Nacional voltado à repressão política interna. Porém, no governo de JK se
concretizaria o SFICI (Serviço Federal de Informação e Contrainformação),
idealizado antes pelo presidente general Eurico Gaspar Dutra, em 1946. O SFICI foi
o embrião do SNI.171
171 VIEIRA, Evaldo. Op. cit. p.23.
236
Foi na administração de JK que funcionários brasileiros foram treinar e estudar
nos órgãos de informações dos Estados Unidos. Muitos desses quadros brasileiros
ocupariam cargos importantes no regime militar, casos do coronel Ednardo D’Ávila
Mello, do coronel Golbery do Couto e Silva e do futuro presidente, na época,
tenente-coronel, João Baptista Figueiredo.
O SNI foi organizado pelo general Golbery ainda durante o processo
conspiratório. Os arquivos do Grupo de Levantamento de Conjuntura do Ipes
(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) serviram para formatar os alicerces do SNI
com fichas de quase meio milhão de cidadãos tidos como “suspeitos” ou como
“potenciais ameaças” aos interesses do Estado autoritário. Ou seja, o Ipes teve
importância primordial para a formação do SNI. E o SNI teve tanta importância no
regime de 1964 que, entre os seus chefes: os generais Emílio Garrastazu Médici e
João Figueiredo, se tornariam depois presidentes da República.
O que parece ter ocorrido é que, com a imposição do AI-5, ainda no final do
governo de Costa e Silva, e em nome do combate implacável à guerrilha e à luta
armada de alguns grupos da esquerda contra o regime, a repressão e a tortura se
despojaram de todo e qualquer embaraço, ou “pudor”, nos anos imediatos ao AI-5. A
repressão à base de tortura extrapolou os limites jurídicos e humanitários, indo contra
até a ética militar de tratamento digno aos prisioneiros. Para burlar o controle dos
comandantes e o sistema oficial da repressão, muitas equipes de tortura possuíam
centros clandestinos – o que podemos chamar, em seu conjunto, de “porões do
regime”. Após o episódio do sequestro do embaixador norte-americano, em fins de
1969, e a libertação de presos políticos em troca do sequestrado, o regime instaurou
novas leis: o Ato Institucional nº13 (Banimento) e o nº14 (Pena de Morte).
Paralelamente à esta institucionalização da tortura como princípio da ação do
Estado, sua operação assumia um caráter bastante autônomo, com prisões e mortes
clandestinas. Mas, para NAPOLITANO (2014), essa autonomia não significava um
descontrole do sistema repressivo. Em nenhum momento, para o autor, o regime,
comandado pela cúpula militar, perdeu o controle sobre a repressão. A criação dos
Doi-Codi ilustra isso. Entretanto, para que o regime futuramente mantivesse o
controle da transição, era necessário ter as rédeas deste sistema que realmente esteve
muito autônomo.
237
Percebe-se que o ano de 1969, foi o ano-chave da guinada do sistema
repressivo e da tortura. O aparecimento da Oban, a implantação de seu modelo para a
criação dos Doi-Codis, combate à guerrilha, os “porões” à plena atividade, mortes de
Marighella e de Lamarca,artistas exilados, etc. O ápice da tortura e da repressão não
só coincidiram com o governo Médici, mas também com o “milagre econômico” – a
fase de expansão da economia brasileira, do “Brasil Grande”, do “país do futuro”,
da seleção nacional de futebol tricampeã na Copa de 1970. E, talvez por
coincidência, a derrota e o extermínio das guerrilhas de esquerda, e o total
desbaratamento da luta armada contra o governo, ocorrem basicamente em 1974,
início do governo seguinte: o de Ernesto Geisel.
Onde se quer chegar aqui? É o seguinte. Ficou-se na memória da sociedade
nacional a imagem do governo Médici como sendo os dos “anos de chumbo”, da
fúria do regime em aniquilar seus opositores e do governo Geisel, como o governo
que iniciou a “distensão”, a abertura do regime, a tal ponto que Geisel (juntamente
com Golbery) passaram à História como os “arquitetos” de um processo de
flexibilização, de abertura do regime, procurando colocar um controle mais rígido
nos “porões” do regime, podando a autonomia dos órgãos repressivos e tocar, com
pleno controle, todo este processo gradualista “de cima para baixo”. E as mortes de
Wladimir Herzog e de Manuel Fiel Filho, em 1975 e 1976, respectivamente? É como
se tivessem sido “percalços”, excessos cometidos nos “porões”, mas fatos que
costumam ser tomados de forma mais isolada, talvez para não diluir a imagem que se
criou de Geisel como o “artífice” da abertura.
O fato do regime militar brasileiro ter apresentado características e nuances
diferentes de seus congêneres na América do Sul tem dado margem à algumas
interpretações até absurdas. A tortura, aqui no Brasil, às vezes é justificada pela
presença de indivíduos sádicos, que cometeram excessos, mas, conforme
NAPOLITANO (2014), é esquecido que a tortura foi um sistema. É o sistema que fez
o torturador, e não o contrário. Ou ainda, que a repressão no Brasil foi branda e
restrita. Matou e prendeu pouco. Como se o aspecto quantitativo de vidas humanas
afetadas e dizimadas pelo regime de 1964 fosse uma outra justificativa para
desculpar o regime militar brasileiro. Isso porque, no Chile e na Argentina, por
exemplo, os militares prenderam e mataram mais do que aqui no Brasil. Como se a
238
vida do ser humano fosse uma “coisa”, como se as pessoas fossem apenas números e
estatísticas, e os sofrimentos das famílias das vítimas não significassem nada.
A manutenção de uma máquina repressiva dessa era inviável, a longo prazo.
O custo político era grande e fazia-se necessário enquadrar este sistema dentro da
nova conjuntura política da “distensão”. Seu desmonte se torna mais efetivo a partir
de 1976, não porque os torturadores não tinham mais “o que fazer” (se dependesse
deles, o “martelo de pilão” continuaria atacando não só as “moscas” mais quaisquer
outros “insetos”, inclusive opositores mais moderados). Todavia, para viabilizar a
abertura e a distensão era necessário o desmonte dessa estrutura, em nome de uma
futura transição democrática, pouco custosa aos militares.
No que a tortura tenha sido eficaz, foi em se construir um “círculo de medo e
de terror” que pode ter tido influência num arrefecimento da juventude brasileira, no
início dos anos 1970, na busca pela sua revolução e combate entusiasta aos
reacionários. O aumento no número de desaparecidos políticos, a imagem de que o
resultado final do engajamento contra o governo seria de prisão, tortura e morte,
podem ter esfriado o ímpeto de setores da sociedade contra o regime, em especial na
primeira metade da década de 1970, somadas às oportunidades de ascensão
profissional e social através do “milagre econômico”. Mas não há um claro consenso
quanto a isso, até porque o movimento estudantil ainda se manteve ativo, até nos
“anos de chumbo”.
A primeira “vitória” no campo repressivo no governo Médici se deu poucos
dias após a sua posse. Em 4 de novembro, Carlos Marighella, líder e fundador da
ALN, foi abatido numa emboscada na região dos Jardins, na capital paulista. A
operação fora organizada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista.
O presidente, por meio de seus porta-vozes, teria dito que não toleraria as
torturas. Nesta época já existiam denúncias por parte da imprensa internacional sobre
a barbárie repressiva do regime. No Brasil, Hélio Fernandes publicou uma carta
aberta na Tribuna da Imprensa, dirigida ao presidente Médici: “Esvazie as prisões,
determine o fim da tortura aos presos, liberte as esperanças do povo brasileiro”172
172
VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 168.
239
Denúncias de torturas e violação dos direitos humanos não eram uma novidade.
Elas já haviam aparecido na imprensa internacional durante os anos de Castelo
Branco em que o governo prometeu investigá-las, mas não chegou a resultado algum.
Porém, a base fornecida pelo AI-5 provocaria uma escalada da repressão que, se
formos pensar que teria sido em resposta a uma escalada das ações classificadas de
“terroristas” das esquerdas armadas, cairíamos em um equívoco, pois ainda que a
guerrilha urbana tenha também produzido vítimas, o revide do Estado autoritário foi,
em muito, desproporcional quantos às torturas, mortes e desaparecimentos
produzidos contra tais grupos. E, mais ainda, o senso comum tem se esquecido das
ações realizadas por grupos paramilitares e de extrema-direita e das vítimas de seus
atos, colocando-se a situação como se tivesse sido uma guerra entre o Estado
autoritário contra os guerrilheiros comunistas, como se ambos os grupos tenham
estado, em algum momento (ou sempre), em pé de igualdade.
De acordo com VILLA (2014), a luta armada, já em 1970, dava seus sinais de
fracasso. Os sequestros estariam mais para ações defensivas com o intuito de libertar
militantes, do que propriamente um confronto frontal ao Estado autoritário. A
desigualdade era latente: de um lado um regime agora mais sólido, em relação ao seu
início, reforçado por um poderoso aparelho propagandista elaborado pela Aerp
(Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República), pela aparelhagem
repressiva cada vez mais azeitada no pós AI-5, pelo impacto positivo dos indicadores
econômicos, por importantes setores da imprensa afinados ao governo e pela própria
censura; de outro, a luta armada cada vez mais acuada, procurando obter recursos
financeiros através de assaltos a bancos, por exemplo, e com isso cada vez mais
confundida com o crime comum; a falta de apoio popular; e a caçada implacável e o
extermínio de seus quadros e principais líderes – como Marighella e Lamarca –
mortos em 1969 e 1971, respectivamente.
A repressão aos grupos armados, opositores ao regime, não chegou a
concentrar as ações oficiais. Mas servia para justificar o endurecimento do regime. O
que era prioritário ao governo era o estabelecimento de uma política econômica que
desse legitimidade ao regime. E relacionada aos objetivos nacionais permanentes em
que um Estado forte e centralizador era um dos pontos fundamentais.
240
O ano de 1970 foi marcado por alguns sequestros em que foram capturados o
cônsul-geral japonês, em São Paulo e ainda os embaixadores da Alemanha e da
Suíça. Depois eles foram soltos pela troca de reféns.
O chefe do sequestro do embaixador suíço, no Rio de Janeiro, foi o ex-capitão
Carlos Lamarca, da VPR. Campeão de tiro no Exército, ele deserdaria em 1969,
ajudando muito a guerrilha com seu conhecimento tático. Odiado pelos militares,
teve seu nome cuidadosamente difamado pela imprensa até ser caçado e morto no
sertão do interior da Bahia, em Brotas de Macaúbas, numa megaoperação. Lamarca
foi abatido pelas tropas do major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe do Doi-
Codi de Salvador. Junto como ele, foi morto Zequinha, ex-líder da greve operária de
1968, em Osasco.
241
3.4- Governo Geisel (1974-1979). Fim do “milagre”,
manutenção do estatismo e início da “distensão”.
Foto 1
Foto 2
Fotos 1 e 2 : Ernesto Beckmann Geisel, 4º general-presidente do regime militar. Governou o Brasil de
15/03/1974 a 15/03/1979
Foto 1: Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ernesto_Geisel#/media/File:Ernesto_Geisel.jpg
Foto 2: Fonte: http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/141364.jpg
242
A imagem que nos chega de Ernesto Geisel costuma ser a de um homem
determinado a realizar um objetivo: a abertura do regime. Tal abertura conhecida
como “distensão” deveria se dar de uma forma lenta gradual e segura. E Geisel
passou para a História como o artífice da distensão, com uma atuação firme em frear
e botar um controle nos “porões da ditadura” fazendo com que o 4º general-
presidente ocupe a memória coletiva com um saldo positivo a seu favor. E, muitas
vezes esta imagem “afirmativa” de Geisel pode nos levar a alguns equívocos. FICO
(2004)173
dirige uma crítica ao jornalista Elio Gaspari que, na época, já havia escrito:
A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, em 2002; e a Ditadura
Derrotada, em 2003. A obra de Gaspari mostra como Geisel e Golbery “fizeram a
ditadura e acabaram com ela”. Daí vem uma das críticas de Carlos Fico: A dupla
Geisel- Golbery ocupam um pequeno espaço no que se refere em “fazer a ditadura” e
não há um diálogo acerca da participação dos setores civis, como o empresariado e
figuras do sistema político, ou seja, passa ao largo da análise feita por Dreifuss, por
exemplo.
Uma segunda crítica, dentro do que coloquei acima, e ainda com base em
Carlos Fico, se refere talvez à um certo “endeusamento” da dupla Geisel- Golbery. É
que a obra de Gaspari acaba por contribuir na construção mítica de Geisel como o
“estadista” – o homem que na sua genialidade e contando com a sabedoria de
Golbery - resolver decidir as datas para o “fim da tortura”, quando do episódio da
demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, ou até divagando um pouco mais,
para o fim do regime lá na frente. Enfim, Carlos Fico acrescenta: “Curiosamente,
embora tão sagazes, Geisel e Golbery escolheriam como último general-presidente
da ditadura militar um dos piores mandatário que o país conheceria.”174
. Mas aí
levanto a questão: não foi isto proposital? Contudo, para não nos restringirmos às
críticas feitas a Gaspari, Carlos Fico aponta como aspecto positivo da obra do
jornalista, a revelação do acervo documental a que ele teve acesso graças à confiança
173 FICO, Carlos. Op.cit. p. 53 a 58.
174 Id., Ibid., p.57.
243
que ele obteve junto à Geisel e Golbery. Estes documentos foram organizados por
Heitor Ferreira de Aquino e trouxeram luzes para fatos reveladores como a falta de
uma unidade dos “porões da ditadura”. Havia divergências entre a polícia política, a
espionagem, a censura e a propaganda política. Também entre o SNI, o CIE, a Aerp e
toda a “linha dura”
Claro que o general Ernesto Geisel teve os seus méritos e acertos durante o seu
governo no que se refere a alguns aspectos político-institucionais iniciando a
trajetória da distensão do regime, bem em aspectos estratégicos, econômicos e de
política externa. Porém, não podemos perder o foco que a abertura ou distensão não é
algo que se inicia imediatamente quando Geisel chega ao poder. Na verdade, trata-se
de um processo tão complexo, com avanços e recuos, idas e vindas, que, a exemplo
do que foi com o governo de João Goulart, com o golpe de 1964, com o governo de
Castelo Branco, com o AI-5, com o “milagre econômico” e os “anos de chumbo”,
faz-se necessário uma análise um pouco mais aprofundada desta “guinada” do
regime que se deu durante o período Geisel, mostrando os acertos mas também os
contratempos que ocorreram, sobretudo, no “xadrez político” da época.
A posse do general Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, representava o
retorno dos "castelistas" ou o grupo da "Sorbonne" ao comando do poder, grupo este
que tinha como uma de suas principais figuras o general Golbery do Couto e Silva,
Chefe do Gabinete Civil. Muito dos integrantes do novo governo haviam participado
do governo de Castelo Branco considerando-se que o próprio Geisel havia sido chefe
da Casa Militar no 1º governo do regime. Ernesto Geisel e Golbery procurariam
institucionalizar o regime combatendo os grupos paramilitares, os torturadores e o
desrespeito à hierarquia das Forças Armadas, iniciando-se assim a chamada política
de "distensão".
Contudo, a presença dos ditadores Augusto Pinochet, do Chile; Hugo Banzer,
da Bolívia; e Juan María Bordaberry, do Uruguai – não representavam um bom
presságio para os supersticiosos. Outros detalhes interessantes: ao contrário de seus
antecessores, Geisel não mencionaria no seu discurso de posse o compromisso com a
democracia e, na verdade, muitos foram os elogios que ele fez à Médici. E, por fim,
voltando-se um pouco, para setembro de 1973, para quem tem a imagem de um
244
Geisel altivo e determinado em realizar a transição, VILLA (2014)175
, aponta que na
convenção da Arena que homologou a candidatura de Geisel, o futuro presidente fez
um discurso na Câmara dos Deputados, não tão vibrante e mal tirou os olhos do
texto, foi um discurso mais próximo ao estilo de Médici que, segundo consta,
também não era tão bom na oratória. E aquela fala de Geisel em 1973 ainda traria
bordões bem ao perfil de seu antecessor como: “construção nacional” e “clima de
tranquilidade social e política”.
Como presidente, um dos primeiros atos de Geisel foi o desmembramento da
Previdência Social do Ministério do Trabalho, aumentando o arco de proteção
previdenciária para as pessoas acima dos 70 anos e os inválidos com uma renda
mensal vitalícia.
Para atenuar os efeitos da inflação, o governo limitou determinados reajustes
de serviços públicos. Procurava-se manter o clima de otimismo na área econômica. O
novo ministro da Fazenda – Mário Henrique Simonsen – declarou que o país
manteria o mesmo ritmo de crescimento, do governo anterior, também pelos
próximos cinco anos seguintes. Mas veremos que com a crise do petróleo e os limites
do “milagre econômico”, a realidade foi ficando diferente para a economia.
O problema da carência de alimentos, causada também pelo ritmo intenso da
migração campo-cidade persistia e pressionava o índice inflacionário. O tabelamento
dos preços e a Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) não
conseguiram a eficácia necessária.
Entretanto é digno de nota que o Ministério das Comunicações decidiu que as
compras de equipamentos de comunicação deveriam ser nacionalizadas em 90%, isto
é, produzidas nacionalmente. E mais, o governo criou empresas vinculadas ao BNDE
- Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico - com o objetivo de assessorar e
oferecer colaboração ao empresariado nacional. Isto é chamativo porque apesar de
Geisel ser do grupo “castelista”, o Brasil não tomou necessariamente uma postura
subserviente com relação à superpotência capitalista como ocorrera no governo
Castelo Branco. Embora no primeiro governo militar o contexto fosse diferente, por
conta da necessidade de um ajuste fiscal, que trouxe uma série de efeitos colaterais
175 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 207
245
como o arrocho salarial, e talvez também pela necessidade de se mostrar a “gratidão”
aos EUA por conta do apoio dado ao golpe de 1964, o governo Castelo Branco
manteve-se mais distante de um estatismo, até para fazer contraponto com o
nacionalismo varguista. Em termos de política externa, o governo Geisel não se
alinharia automaticamente a nenhum país. Os tempos do ministro das Relações
Exteriores de Castelo Branco – Juracy Magalhães – com a frase: “O que é bom para
os Estados Unidos é bom para o Brasil”, ficaram para trás.
Este estatismo se manifestaria de uma forma já mais explicíta nos tempos de
Médici, no impulso dos slogans ufanistas do período que se aproveitaram inclusive
da conquista da Copa de 1970 pela seleção brasileira. Já o governo Geisel não ficou
marcado pelas marchinhas e músicas ufanistas do governo de seu antecessor, até
porque em seu governo, a Aerp perdeu bastante de seu espaço. Mas Geisel seguiu
com esse protagonismo estatal, procurou dar andamento ao desenvolvimento
econômico ainda que numa “marcha forçada”. Se teve o ponto positivo de não se
tornar num governo subserviente ao estrangeiro (ao contrário de outros governos na
história brasileira, inclusive após o fim do regime, como o de Fernando Henrique
Cardoso [1995-2002], pautado no neoliberalismo e no “encolhimento” do Estado
com a realização de privatizações de empresas estatais), teve como consequência o
aumento da dívida externa, que já vinha crescendo havia algum tempo. Quando
aumentava a dívida externa, mas a economia crescia, o problema ficava escondido.
Porém, a partir do momento que a economia entra em crise, mas a dívida externa
continua subindo exponencialmente, e junto com a inflação elevadíssima, haverá o
cenário econômico do governo seguinte, o de João Figueiredo, que dilapidará cada
vez mais com a legitimidade do regime. E inflação e dívida externa vão fazer parte
de vez dos assuntos do brasileiro pelas décadas de 1980, 1990 e 2000.
Dentro deste viés estatizante, em julho de 1974, o governo divulgou o II PND
(Plano Nacional de Desenvolvimento), com objetivos ousados no campo energético
(com busca de fontes alternativas ao petróleo, como o etanol e a energia nuclear),
estímulos à indústria de bens de capital, de alimentos e de insumos básicos. O
reequipamento das Forças Armadas, como a criação de 750 navios em estaleiros
nacionais. Tudo isso com preferência às empresas aqui do Brasil. A descoberta de
246
petróleo no litoral de Campos, estado do Rio de Janeiro, foi uma boa notícia no final
do mesmo ano.
Voltando-se à política externa, novamente por uma linha mais independente,
priorizando os interesses nacionais, o Brasil reataria relações diplomáticas com a
China comunista e romperia com Taiwan. Em 1971, os próprios EUA haviam
reconhecido a República Popular da China. Obviamente houve dificuldades, como a
resistência do ministro do Exército, Sylvio Frota. Com os países vizinhos, Geisel
viajou ao Paraguai onde formalizou a criação da Itaipu Binacional – e à Bolívia onde
assinou acordo referente à compra de gás.
Em novembro de 1975, o Brasil foi a primeira nação a reconhecer a
independência de Angola. Indo em sentido contrário aos interesses norte-americanos
lá fora, e dos da linha dura aqui dentro. O impacto disso decorre do fato de que o
Brasil por décadas esteve alinhado à política colonialista de Portugal na África.
Ainda em 1974 ocorreriam as eleições para os Legislativos estaduais e o
Federal. A “anticandidatura” de Ulysses Guimarães deu novo ânimo ao MDB. Uma
parte da oposição extraparlamentar que defendeu o voto em branco ou nulo, em
1970, resolve optar em aproveitar o espaço que se abria para a oposição emedebista.
A legislação eleitoral permitiu o uso de rádio e televisão em condições de igualdade
para os dois partidos, chegando até a ocorrer um debate, transmitido pela TV, entre
os candidatos ao Senado pelo Rio Grande do Sul: Nestor Jost (da Arena); e Paulo
Brossard (do MDB).
Nas eleições para o Congresso e Assembléias Legislativas, em novembro de
1974, o MDB aumentaria sua bancada, mas não incomodaria tanto o governo devido
aos novos ditames da "distensão", delineada por Geisel desde o início daquele ano,
pois em abril venceria o tempo de cassação por dez anos dos atingidos pela primeira
onda de arbitrariedades, ainda em 1964. Para VILLA (2014), o fracasso da luta
armada trouxe a necessidade de se atuar no âmbito eleitoral. E a queda de fôlego na
economia e a elevação do custo de vida favoreceram o MDB nas eleições. Destaque
para a vitória de Orestes Quércia, pelo MDB, que na disputa pelo Senado, bateu o ex-
governador Carvalho Pinto, da Arena, que buscava a sua reeleição. Agora, o partido
da oposição era maioria em cinco assembléias estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul, Amazonas e Acre), que de acordo com as regras elegeriam de
247
forma indireta os governadores desses estados. E o MDB cresceu no Congresso
Nacional, indicando que o governo já não contaria com as mesmas facilidades que
teve no Legislativo federal durante os anos de Médici. Por outro lado, durante a
campanha, os novos governadores estaduais, que assumiriam em março de 1975,
foram referendados pelos Legislativos estaduais. Escolhidos em consonância com a
ótica governista, todos esses governadores seriam arenistas, após ocorrida a fusão
entre os estados da Guanabara e o do Rio de Janeiro.
Ao atingir dez anos, o regime militar se defrontava com um Brasil diferente.
Um país que agora contava com uma população urbana superior à rural. A
consolidação de algumas grandes cidades constituindo verdadeiras regiões
metropolitanas. A televisão atrelada à existência de uma rede nacional de
telecomunicações, com transmissões a nível nacional, fez com que hábitos e
consumos ditados especialmente pela TV fossem dando uma certa uniformidade ao
conjunto do país. Não deixava de ser uma espécie de “integração nacional” através
da TV, em especial a Rede Globo que foi assumindo a condição de principal
emissora televisiva do país. E junto, as contradições de um desenvolvimento
econômico relativamente rápido que gerava novas demandas e questões sociais. O
regime para se “abrir” teria que saber lidar com as transformações em curso na
sociedade e com visões e opiniões divergentes. Geisel aceitou os resultados
eleitorais, não houve súbitas alterações de regras na última hora, a “distensão”
iniciava sua caminhada, mas a diferença entre os passos do governo e os da
sociedade viriam a gerar diversas tensões.
A forte presença do Estado na economia gerava debates e discussões. O
ministro da Fazenda – Mário Henrique Simonsen – argumentava que desestatização
não poderia implicar numa desnacionalização. A empresa privada nacional precisava
ser priorizada e fortalecida.
“Em 1974, o Estado controlava 68,5% das ações na mineração, 72% na
siderúrgica, 96,4% na produção de petróleo e 38,8% na química e petroquímica. O
Estado monopolizava o transporte ferroviário, o serviço de telecomunicações, a
geração e a distribuição de energia elétrica e nuclear, e outros serviços públicos”
[KRISCHKE, Paulo J. (org). Brasil: do ‘milagre’ à ‘abertura’. São Paulo: Cortez,
248
1982. p.129. in: VILLA (2014, p.226)]. A estimativa era de que empresas e bancos
estatais controlassem 46% da economia segundo estas mesmas fontes.
A “ameaça subversiva” principal agora era o PCB – o “bode expiatório do
momento”. O ministro da Justiça, Armando Falcão, insinuava ligações do MDB com
o PCB nas eleições de 1974. A “linha dura”, representada principalmente pelo
ministro do Exército, Sylvio Frota, atacava a oposição emedebista estendendo as
críticas à própria política de “distensão” e ao ministro da Casa Civil, Golbery do
Couto e Silva.
Em junho de 1975, o Brasil assinou um acordo nuclear com a Alemanha
Ocidental para a equipagem da usina nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.
Previa-se a construção de oito reatores para a geração de eletricidade e o
desenvolvimento de uma indústria nacional para a fabricação de equipamentos para a
usina. Havia um estudo que previa a construção de quinze usinas até o ano 2000. A
comparação feita pela ministro, Azeredo da Silveira, com o acordo feito para a
construção da Usina de Volta Redonda, na década de 1940, não deixa de ser
ilustrativo. Temos aqui duas faces de um estatismo: o da época de Getúlio; e o dos
tempos do regime militar. São momentos institucionais diferentes, mas que podem
ser inseridos num projeto de modernização conservadora que permeava o Brasil
desde a década de 1930, apesar de tantos sobressaltos e rupturas políticas e
institucionais que vinham ocorrendo há quatro décadas.
O acordo com a Alemanha Ocidental gerou reações dos Estados Unidos.
Políticos e imprensa norte-americanas denunciavam que por trás do tratado havia o
projeto militar brasileiro de se desenvolver a bomba atômica, pois o Brasil não havia
assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares ainda nos anos de Costa
e Silva. Para o plano externo, era uma mostra do não alinhamento automático do
Brasil com relação aos Estados Unidos. No plano interno, a discussão estava centrada
sobre a necessidade de se adotar a energia nuclear em um país de enorme potencial
hidroelétrico, como o Brasil.
Em outubro de 1975, era criado o Programa Nacional do Álcool – o Proálcool
– com a meta de representar 20 % do consumo de combustíveis. Foi uma
interessantíssima alternativa à crise do petróleo, aqui no Brasil, face ao aumento do
249
preço da gasolina. Porém, a prioridade dada ao Proálcool levaria à uma queda na
produção de açúcar e ao sumiço do produto nas prateleiras dos supermercados.
Em janeiro de 1975 foi retirada a censura ao jornal O Estado de São Paulo
(mas manteve-se a censura a outros jornais e revistas), em contrapartida houve dura
repressão ao PCB, já que durante o governo Médici, os organismos repressores
estavam com as suas atenções voltadas para a esquerda armada e não para o
“Partidão”. O que não é de se espantar face às acusações por parte do governo das
relações entre emedebistas e os comunistas. Grande parte do Comitê Central do PCB
foi atingida pela repressão. Só em São Paulo o número de supostos militantes do
PCB presos, naquele ano, foi superior a 300.
Fatos marcantes do período ocorreriam nas dependências do Doi-Codi do II
Exército em São Paulo, com as mortes do jornalista Wladimir Herzog em 25 de
outubro de 1975, e em 17 de janeiro do ano seguinte a de Manuel Fiel Filho, operário
metalúrgico e militante sindical. Num sinal de uma mudança de postura da Igreja e
da sociedade civil, ainda naquele mês, o cardeal Evaristo Arns liderou a celebração
de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo. Mesmo assim, no final de
1975, a linha dura se sentia confiante, colocando limites à distensão, controlando os
porões e o aparato da segurança estatal, e sonhando com a possibilidade de ter o
ministro-general Sylvio Frota, como candidato à sucessão presidencial.176
De acordo
com BARROS (1998): “No final de 1975, não eram poucos os que achavam que a
“distensão” estava condenada. Mesmo os que se declaravam entusiasmados com a
pretensa política de “descompressão” temiam, agora, que Geisel fosse fraco demais
para enfrentar a linha dura e que a flexibilização não poderia ser implementada.”177
Entretanto, a morte do metalúrgico Manuel Fiel Filho no mesmo Doi-Codi
onde ocorrera a morte de Herzog levaram Geisel a demitir Ednardo D'Ávila (um
expoente da "linha dura") do comando do II Exército, colocando em seu lugar o
general Dilermando Gomes Monteiro. Isso acarretaria ações terroristas da "linha
176 Id., Ibid., p. 233.
177 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 78.
250
dura" como as bombas atiradas contra as sedes da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), em São Paulo, e da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de
Janeiro em agosto de 1976. Em setembro, um outro atentado ocorreria no Centro
Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), em São Paulo. Para completar,
houve o sequestro do bispo de Nova Iguaçu (RJ), D. Adriano Hipólito, defensor dos
direitos humanos, sendo torturado e abandonado nu, o seu carro foi explodido em
frente à sede da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
Algo que poderia ter um peso decisivo para o sucesso ou o fracasso, tanto da
“distensão” como na figura do próprio presidente, seriam os indicadores econômicos.
O Brasil já não ostentava o crescimento do PIB em dois dígitos, como nos anos de
Médici. Geisel, em suas próprias palavras: “Como é que eu iria justificar uma
recessão depois da euforia, do desenvolvimento do governo Médici?” [D’ARAÚJO,
Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p.
288. in: VILLA (2014, p.234)].
Geisel também seguia utilizando o AI-5 para cassar mandatos de parlamentares
em algumas situações que denotavam contestação ao regime. Isso com dois anos
decorridos de seu governo – ano de 1976- quase a metade do mandato presidencial.
Anos depois, Geisel daria a seguinte justificativa sobre as necessidades das cassações
em certos momentos: “(...)para dar um pouco de pastos às feras”. “Se eu não agisse
contra a oposição com determinadas formas de repressão, inclusive com a cassação,
eu perderia terreno junto à área militar.”178
Geisel vivia numa situação política
bastante desconfortável, pois de um lado havia uma oposição insatisfeita com o ritmo
extremamente lento da distensão; de outro, os ultra-conservadores autoritários que
achavam que a mesma distensão estava muito rápida. Era uma situação complicada
porque quando João Goulart se viu numa tênue linha entre as direitas e as esquerdas,
o cenário se complicou a tal ponto que o desenrolar dos acontecimentos foram
desembocar no golpe de 1964. Verdadeiramente Ernesto Geisel necessitaria ter muito
tato estratégico para conseguir conduzir seu governo nessas condições. Claro que as
diferenças entre o governo Geisel e o de Jango são enormes, mas, naquele 1976, o
futuro político do país era bastante incerto.
178 D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Op. Cit. p.390 in: VILLA (2014, p. 237)
251
A inflação não parava de subir e o governo chegou a proibir a importação de
artigos considerados supérfluos para tentar conter a alta dos preços. Por outro lado,
na política externa, Geisel dava novas demonstrações de uma política externa
independente (que, aliás, não era inédita, basta lembrarmos do curto governo de
Jânio Quadros). O presidente visitou o Reino Unido e a França. Ao contrário de
Médici e de Costa e Silva, ele não visitou os Estados Unidos. Mas, na Europa, Geisel
enfrentaria protestos contra as violações dos direitos humanos no Brasil. No plano
interno, às vezes a questão das torturas vinha à tona.
Com um cenário econômico complicado, e ainda com as lembranças vivas do
mau desempenho da Arena nas eleições de 1974, Geisel sancionaria a Lei nº 6.339,
chamada de “Lei Falcão”, em que os partidos políticos só exporiam, na televisão e
na rádio, a sigla, o número, e o currículo sumário de seus candidatos (com fotografia
no caso da TV). A nova lei valeria já para as eleições municipais de 1976 em que a
Arena obteve a maioria dos votos nas contagem geral. Porém, nos cem maiores
colégios eleitorais, o MDB venceu em 59, fazendo nas cidades de São Paulo e do Rio
de Janeiro, a maioria nas Câmaras Municipais. Com isso, o presidente ganhou um
fôlego novo nas articulações para as eleições de 1978 que também preocupavam o
governo.
Se os anos de 1974 e 1975 mostraram uma feroz ação repressiva contra o PCB.
O ano de 1976 foi marcado ainda por uma perseguição voltada ao PC do B que, após
o desmantelamento da guerrilha no Araguaia, estava mais voltado às ações em
cidades. Três dirigentes do partido foram mortos na Lapa, em São Paulo, numa
reunião do Comitê Central do Partido. A luta urbana, há algum tempo bastante
debilitada e sem oferecer riscos concretos ao regime, sofria a fúria repressiva dos
“porões” – ainda operantes, naqueles tempos.
No campo político, houve a morte de dois ex-presidentes: Juscelino
Kubitschek, em acidente automobilístico, na via Dutra, em agosto; e João Goulart,
em dezembro, em decorrência de um enfarte, na Argentina.
Depois do relativo alívio após as eleições municipais, o governo colhe alguns
frutos do forte intervencionismo estatal. Em 1976, a economia recuperou os dois
dígitos em seu crescimento – 10,3% - o dobro em relação a 1975. Mas a inflação foi
252
a maior desde 1965 – 46,3%. E a dívida externa continuava sua trajetória cada vez
mais ascendente.179
O ano de 1977 é o marco do início de um novo paradigma dos Estados Unidos
em suas relações com os regimes autoritários na América Latina. O novo presidente,
Jimmy Carter, enfatiza a questão dos direitos humanos desde os inícios de seu
governo. Assim foi em discurso nas Nações Unidas, em que o presidente norte-
americano realçou que os direitos humanos não tinham fronteiras políticas e nenhum
país poderia utilizar a soberania em assuntos internos para se furtar a tal questão. O
governo Carter condicionaria a ajuda militar anual ao Brasil ao respeito aos direitos
humanos. Isso gerou tensão entre os governos dos dois países, que vinha desde o
episódio do acordo nuclear feito com a Alemanha Ocidental. A resposta de Geisel
não justifica em nada as ações repressivas, autoritárias, arbitrárias e de desrespeito a
esses direitos, mas nos faz pensar na situação interna dos Estados Unidos daqueles
meados da década de 1970 e na postura norte-americana de se colocarem como os
“verdadeiros defensores da liberdade”:
“(...) quando assinamos o acordo não havia nenhuma cláusula que fizesse sua
execução depender da aprovação do Senado americano relativamente à situação
interna do Brasil. Da mesma forma, o Brasil nunca se arrogou o direito de examinar
a situação interna dos Estados Unidos, com o problemas dos negros, dos porto-
riquenhos, dos índios, etc.”180
Por outro lado, o Brasil realmente estava longe de ser um modelo de diálogo
com outras forças políticas. Já que encontrava dificuldades com o Congresso, em
abril de 1977, Geisel o fecharia por quinze dias, devido às discordâncias com o
MDB, implantando o chamado "pacote de abril" que incluía principalmente: o
aumento do mandato presidencial de cinco para seis anos; a criação da figura do
senador "biônico", indicados pelas Assembléias Legislativas; a alteração da
composição das bancadas estaduais para a Câmara dos Deputados (com o mínimo de
179 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 242.
180 D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Op. Cit. p.350 in: VILLA (2014, p. 447)
253
seis e o máximo de 55 deputados por estado); e a manutenção da Lei Falcão para as
eleições de 1978 que, por sinal, seriam indiretas para governador; além de outras
medidas. O objetivo das mexidas na composição do Senado e da Câmara federais era
claro: alterar a composição do Colégio Eleitoral para garantir a maioria quando da
escolha do sucessor de Geisel.
Estas alterações na composição do Congresso persistem até hoje, trinta anos
após o fim do regime. No período em que tivemos, na Presidência da República,
governos de partidos políticos com raízes assentadas na oposição ao regime militar
(ou seja, de 1995 até a atualidade): primeiramente, o PSDB (Partido da Social
Democracia Brasileira), com o presidente Fernando Henrique Cardoso - partido
criado a partir de uma ruptura com o PMDB (Partido do Movimento Democrático
Brasileiro) - herdeiro do antigo MDB; e em seguida, o PT (Partido dos
Trabalhadores), com o presidente Luís Inácio Lula da Silva - representando uma
nova esquerda, diferente daquela getulista, janguista e brizolista, das décadas de 1950
e 1960, ainda persiste esta terrível distorção, mais especificamente, na Câmara dos
Deputados, e que perdura até hoje no atual governo petista, chefiado por uma ex-
guerrilheira que esteve presa na época dos “anos de chumbo”, a presidente Dilma
Roussef.
Atualmente, o mínimo é de oito deputados por estado e o máximo é de 70.
Estados mais populosos e com peso econômico mais expressivo - como São Paulo –
na prática estão sub-representados, enquanto estados menos expressivos
economicamente e pouco populosos estão na verdade super-representados. Diante
dos impasses que o nosso país enfrenta no presente, as cobranças e as manifestações
se voltam apenas contra a atual presidente e o partido político que está no poder. Não
há como negar os erros cometidos pelo atual governo, os casos de corrupção, etc.
Mas isso, infelizmente, não é inédito. O presidente Fernando Collor de Mello sofreu
o impeachment, em 1992, por conta de todo um esquema de corrupção envolvendo
principalmente o tesoureiro de sua campanha presidencial de 1989, Paulo César
Farias. O mesmo Congresso Nacional que votou o impedimento do presidente Collor
esteve mergulhado em problemas de corrupção, em 1993, com o episódio dos “anões
do Orçamento”. E, não são poucas as dúvidas que pairam sobre o processo das
privatizações realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso, bem como sobre a
254
implantação da reeleição para cargos do Poder Executivo. E, voltando-se mais atrás,
no regime militar, a corrupção esteve presente. Basta citar como Paulo Maluf
conseguiu se impor como o candidato governista para a sucessão do presidente
Figueiredo.
Aonde eu quero chegar é que o problema não está em um indivíduo, ou um
partido político. As questões mais profundas, como uma reforma política visando
extirpar o que chamo aqui dessa “herança maldita” gerada pelas medidas tomadas em
abril de 1977, por Ernesto Geisel, não são cobradas, nem reivindicadas, lançando
sérias dúvidas sobre a legitimidade dos grupos que tanto cobram o governo federal
nestes meados da década de 2010. A pergunta paira no ar: os desejos da “opinião
pública” são os mesmo da “opinião publicada?”, tomando-se emprestadas as palavras
de Marcos Napolitano. Voltarei à esta questão no final do trabalho.
De volta ao período Geisel, a oposição não se abateria por completo. A
sociedade civil se organizaria com a participação da Igreja, o renascimento dos
movimentos estudantil e operário-sindical emergindo a figura de Luís Inácio "Lula"
da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e
Diadema, no primeiro movimento grevista organizado desde 1968. No ano de 1977,
com dados rigorosos fornecidos pelo Departamento Intersindical de Estatística e
Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), Lula comprovaria a falsificação dos índices
inflacionários por Delfim Neto levando ao início de uma grande campanha por
reposições salariais.
Depois de nove anos, o movimento estudantil reapareceria novamente. Em 22
de setembro de 1977, o campus da PUC-SP foi invadido. Ali realizava-se o III
Encontro Nacional dos Estudantes, com vistas para a recriação da UNE. A polícia
reprimiu e invadiu o campus em frente ao Teatro Tuca. O secretário de Segurança
Pública do estado, coronel Erasmo Dias, lançou contra os universitários contingentes
da tropa de choque da polícia. Conforme BARROS (1998), 2 mil pessoas ficaram
encurraladas na universidade e muito do patrimônio do campus foi destruído.
A "linha-dura" queria marcar seus movimentos já pensando na sucessão
presidencial de Geisel. O ministro Sylvio Frota, de acordo com VILLA (2014), queria
“emparedar” o presidente no jogo sucessório, assim como ocorrera com Castelo
Branco que teve de ceder à Costa e Silva como seu sucessor. Mas os ultra-
255
autoritários começaram a perder terreno. O ministro Sylvio Frota seria demitido pelo
presidente em 12 de outubro de 1977. Frota preparara um documento criticando
acontecimentos como: o restabelecimento das relações diplomáticas com a China
comunista; o reconhecimento da independência de Angola; a forte presença do
Estado na economia. Geisel permitiu a divulgação do documento para ganhar a
simpatia da oposição que, naquela altura dos acontecimentos, preferiria a
descompressão lenta do regime com Geisel ao invés de uma liderança,
provavelmente caudilhista de Frota, ao pior estilo do que ocorria, por exemplo, na
Argentina, da Junta Militar comandada por Jorge Videla. O documento preparado
pelo general Frota com ataques ao marxismo, ao capitalismo de Estado e defendendo
a livre iniciativa estava mais próximo da linha autoritária que vigorava na Argentina
e no Chile do que com as propostas de cunho mais nacionalista do general
Albuquerque Lima, do final da década de 1960. Os “porões da ditadura” sofreriam
um duro revés e não encontraram tempo de reagir ante a atitude de Geisel. Frota que
assumira o Ministério do Exército após a morte do também “linha dura”, mas homem
de confiança de Geisel - Dale Coutinho – era inimigo das idéias e concepções de
Golbery e os ultra-reacionários encontraram nele um eficiente porta-voz. Frota
perdia de vez a “queda de braço” com Geisel, ao não conseguir o apoio do Alto
Comando. Segundo VILLA (2014), o Brasil era salvo de se adentrar em uma ditadura
ao estilo platino. Exagero ou não, o fato é que o Brasil, com certeza, trilhava o
caminho da “distensão” e da “descompressão”, o panorama de uma abertura política
poderia se tornar viável e Geisel teria as condições para escolher o seu sucessor.
Não sabemos por completo se, em 1964, Jango poderia ter interposto uma
sólida resistência ao movimento de tropas iniciada pelo general Olympio Mourão
Filho, e se não o fez por receio de uma guerra civil. Se de fato o “dispositivo militar”
de Jango era apenas uma retórica, ou se não foi efetivamente preparado por conta
talvez de uma subestimação da força dos golpistas. Mas parece verossímil que os
partidários de Frota não teriam como desencadear algum movimento, ou um tipo de
“golpe” contra os partidários de Geisel. Não havia a possibilidade de um embate
frontal entre os “frotistas” e os partidários do presidente. De qualquer forma, Frota
estava fora do governo e não teve como revidar a isso.
256
À medida que Geisel levava adiante a "distensão", ele impôs o seu sucessor -
o general Figueiredo - após a derrota do general Sylvio Frota, um dos principais
representantes da "linha-dura",
Quanto à economia, a pasta da Fazenda, ocupada por Mário Henrique
Simonsen, procurou manter as taxas de desenvolvimento elevadas (mas não como no
"milagre econômico"), junto à adaptação do país frente à primeira crise do petróleo
(1973-74) que afetou o setor energético. O lançamento do II PND (Plano Nacional de
Desenvolvimento) visava a substituição das importações e à busca da auto-
suficiência brasileira no setor de insumos básicos - como nos grandiosos projetos
das hidrelétricas de Itaipú e de Tucuruí - e as obras da usina atômica de Angra I, após
o mencionado acordo nuclear com a Alemanha Ocidental. Acarretavam-se assim
novos impactos ambientais e importantes alterações no espaço geográfico brasileiro.
Foi marcante também o crescimento das empresas estatais que infelizmente
contribuiriam para o aumento da corrupção com uso indevido do dinheiro público
(infelizmente a corrupção não era algo inédito, já vinha de antes). O
desenvolvimento, nos anos Geisel, se nortearia num forte processo de intervenção
estatal dentro de uma estratégia industrializante tentando-se sequenciar a linha do
"Brasil, Grande Potência" do governo Médici.
Apesar de Castelo Branco e Geisel terem pertencido ao chamado grupo
"castelista" tem-se que o primeiro centralizou seu governo numa política recessiva,
até anti-industrializante, enquanto que o segundo buscou uma dinâmica
industrializante com grandes inversões públicas ocorridas através do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico - BNDE, visando o crescimento industrial para o
setor de bens de capital mostrando-se, com isso, as diferenças existentes entre os
presidentes militares do movimento de 1964, constatando-se a não unidade do regime
(DEL VECCHIO, 1992). Relembre-se ainda que a Aerp, principal órgão de
divulgação do governo Médici, perderia seu "status" no governo Geisel.
Em 1978, embora o senador Magalhães Pinto desejasse ser o candidato à
sucessão presidencial,.Geisel optaria pelo nome do general João Figueiredo. De cara,
o chefe da Casa Militar, Hugo Abreu, pediu demissão por discordar da indicação de
Geisel. Mas, o nome de Figueiredo foi homologado na sede da Arena, tendo o
governador mineiro, Aureliano Chaves, como vice. O MDB intensificou suas
257
articulações para lançar como candidato à presidência, o general Euler Bentes
Monteiro. O vice na chapa seria o senador Paulo Brossard. O programa de governo
do general Euler apresentava propostas avançadas se comparada ao ritmo mais
vagaroso da “distensão” de Geisel. Abrangia a revogação da legislação de exceção; o
retorno à Constituição de 1967; a convocação, dentro de dois anos de uma
Assembléia Constituinte; anistia ampla e irrestrita; redução do mandato presidencial
para quatro anos; eleições diretas para presidente e governadores estaduais para
1982; e garantia do direito de greve e da liberdade sindical. 181
.
O tema da anistia se torna o principal assunto no país. O Comitê Brasileiro pela
Anistia foi criado em fevereiro de 1978. O presidente norte-americano, Jimmy Carter
viria ao Brasil, a questão dos direitos humanos e da anistia aos reprimidos pelo
regime foi se colocando na ordem do dia.
O movimento sindical ressurge em maio daquele ano. Após dez anos, ocorre
uma greve, a de 2 mil metalúrgicos em Diadema (SP), na fábrica Scania. Depois o
movimento atingiu a Ford. E chegaria a São Paulo, na fábrica da Toshiba.
Na frente parlamentar, o governo procurava garantir a aprovação da reforma
política de Geisel, em que a revogação do AI-5 era a peça principal e também a
eleição de Figueiredo. Especialmente no Exército, alguns dissidentes apoiavam a
candidatura presidencial de Euler, mas o governo obteria no Congresso (sem a
presença do MDB), em 15 de outubro de 1978, a aprovação da reforma política. Dois
dias depois, Figueiredo era vitorioso no Colégio Eleitoral.
Nas eleições do mês seguinte, a Arena, beneficiada pela Lei Falcão e pelo
“pacote de Abril” venceria as eleições, mas com uma vantagem apertada para a
Câmara (15 milhões de votos contra 14,8 milhões do MDB). A Arena faria a maioria
das Assembléias Legislativas e venceria nas principais cidades. Porém, para o
Senado, o MDB receberia 17,4 milhões de votos contra 13,1 milhões da Arena.182
181
CHAGAS, Carlos. 113 dias de angústia. Porto Alegre: L&PM, 1979, p.310 – 311., in: VILLA, Marco
Antônio. Op.cit. p. 256
182 GUTEMBERG, Luíz. Moisés, codinome Ulysses Guimarães: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 172 -174., in: VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 258
258
Em 13 de outubro de 1978, Geisel promulga a Emenda Constitucional nº11. As
“salvaguardas do Estado” (medidas de emergência, estado de sítio e estado de
emergência) foram incorporadas à Constituição. Restabelecia-se também a
imunidade parlamentar, extinguiam-se as penas de morte, a perpétua e a de
banimento.
Por fim, o AI-5 foi arquivado em 31 de dezembro de 1978 junto com suas
arbitrariedades, mas permaneceriam o "pacote de abril", a chamada "Lei Falcão" e
outras dezenas de leis e atos institucionais ligados à face autoritária do regime. Geisel
e Golbery formataram concessões liberalizantes do governo, superando a luta da
sociedade pela conquista de seus direitos, provocando assim uma certa diluição do
movimento social emergente, pois a "distensão" teria que ser "lenta, segura e
gradual", enfim, um processo comandado pelo próprio Estado, dentro de uma
abertura, que caracterizaria a conversão gradual de um modelo político para outro.
Na ótica de Geisel, quando o governo revogou o banimento dos 126 brasileiros nessa
condição, o ciclo autoritário encerrara-se.183
Mesmo considerando essa ótica do presidente um tanto exagerada,
verdadeiramente, o general Figueiredo assumiria a presidência encontrando o regime
numa situação institucional e jurídica bem diferente do que era em 1974. Não há
como não reconhecer o avanço obtido, porque a revogação do AI-5, por si só, já se
constituiu num grande passo da descompressão/distensão do regime, principalmente
se compararmos o final de 1978 com o final do segundo ano de Geisel no governo
(1975) quando se parecia caminhar para o fracasso do processo de “distensão” face
às barreiras que o presidente vinha enfrentando, em especial por parte da “linha
dura”, cujo principal expoente era o ministro do Exército, general Sylvio Frota.
O ano de 1979 trazia novidades e esperanças. O ex-deputado Davi Lerer, do
MDB era o primeiro exilado a retornar ao país, em 1º de janeiro de 1979, após a
revogação do AI-5. O projeto da anistia começava a ser formatado. O antes sisudo
chefe do SNI, João Figueiredo aparece agora como o simpático “presidente João” ou
o “amigo João” – o presidente que no linguajar popular falava as “verdades”, com
183 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p.259
259
frases de efeito e “bravatas”, aberto ao diálogo e com as mãos estendidas para a
oposição.
3.4.1 – Distensão, abertura e democracia “relativa”
Ernesto Geisel entrou para a História como o presidente que, efetivamente, e de
forma intencional, deu início à abertura do regime, desencadeando um processo de
transição política chamada de “distensão”. Ainda que tenha apresentado recuos e
reveses, principalmente nos dois primeiros anos daquele que era o 4º general-
presidente do regime, a “distensão” - mais precisamente o processo de abertura do
regime - passa a constar nas políticas oficiais da agenda governamental daquela
época. Porém ela teria que ser “lenta, segura e gradual”, ou seja, um processo desde
sempre controlado pelo Estado. A “descompressão” teria que vir a partir do governo
para a sociedade - e não o contrário. O governo central não poderia “se dar ao luxo”,
na visão de Geisel e de Golbery, de perder as rédeas da abertura decorrente da
“distensão”. Relembre-se que, como já colocado na Introdução deste trabalho, o
conceito de abertura se refere, conforme Aspásia Camargo, a um processo gradual e
controlado de cima para baixo, em que o próprio Estado impõe, comanda, gerencia,
limita e orienta a conversão (a mudança de rumo) de um modelo político rígido, com
as liberdades suprimidas, para outro em que muitas destas tais liberdades vão
passando por uma “descompressão” e retornando gradativamente na vida política do
país, mas sempre com o poder estatal evitando de perder o prumo desse processo. A
abertura é diferente de redemocratização, conceito este que trata sobre a
transferência de poder do Estado autoritário para a sociedade e a um sistema regido
por partidos políticos. O processo de redemocratização já seria algo mais dinâmico,
em que pode ocorrer uma real e efetiva pressão da sociedade em direção a uma maior
democratização do Estado. Estes dois conceitos viriam à tona durante o governo
Geisel, e foram ganhando mais força nos anos de governo do general João
Figueiredo (1979-1985).
260
A abertura de um modelo político não era algo inédito na história brasileira. O
final do Estado Novo também se caracterizou por um processo de abertura, orientado
pelo então ditador Getúlio Vargas, no ano de 1945, permitindo-se a formação de
partidos políticos naquela época: a UDN reunindo as oposições antigetulistas; e o
PSD e o PTB, que foram criados à sombra do varguismo. Getúlio marcou as eleições,
mas a despeito das dúvidas geradas nos adversários do regime estadonovista, por
conta do “movimento queremista”, mais o temor da continuidade do ditador no
poder, as oposições daquela metade da década de 1940 se uniriam, não ao povo (que
se sentia fortemente identificado à Getúlio, que gozava ainda de enorme
popularidade), mas às Forças Armadas. Getúlio foi deposto através de um golpe e o
Estado Novo chegava ao fim. Daí, numa certa medida, poderia-se falar numa
redemocratização, com a realização das eleições, apesar de vitória do general Eurico
Gaspar Dutra, ex-ministro de Vargas e apoiado por este. Tudo isso três décadas
antes do governo de Ernesto Geisel.
Na década de 1970, o regime militar vivenciava a sua fase mais rígida e
repressiva. Os anos de Médici caminharam entre o “milagre econômico” e o
“chumbo”. E Ernesto Geisel chega ao poder, em 1974, sucedendo Médici. Junto com
Golbery, ministro da Casa civil, o novo presidente articulara um projeto político mais
amplo. Precisavam institucionalizar o regime autoritário, inclusive buscando colocar
“freios” e limites aos “porões” repressivos do regime, em nome da disciplina e da
hierarquia militar, procurando-se deixar claro a primazia da Presidência da República
sobre as Forças Armadas. Deixar clara a unidade e o comando do presidente sobre as
instituições representadas pelas três Forças, para viabilizar o seu governo e os
projetos a serem postos em prática. A tarefa não foi nada fácil. Ao contrário do final
do Estado Novo, em que o processo de abertura e de redemocratização mal durou
dois anos [se considerarmos CASALECHI (2002)184
], no caso do regime de 1964, a
abetura/transição/redemocratização duraria 11 anos, um pouco mais da metade do
184 CASALECHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo: Contexto, 2002, p.13-14. O autor
cita o Manifesto dos Mineiros, em outubro de 1943, como o primeiro grande momento da transição do
autoritarismo para a democracia no Estado Novo varguista. Também aponta o momento em que o Brasil
entra na Segunda Guerra Mundial, em 1943, contra o fascismo, em que Getúlio procura preparar-se
para a “abertura democrática”. Getúlio seria deposto em outubro de 1945.
261
regime (se considerarmos como o seu final, 15 de março de 1985, quando o general
Figueiredo passa a faixa presidencial novamente a um civil, José Sarney).
Sarney, vice-presidente da chapa encabeçada por Tancredo Neves, tomaria
posse como presidente, devido ao grave quadro de enfermidade deste último (que
faleceria em 21 de abril de 1985). O fato da chapa Tancredo/Sarney ter sido eleita
através do Colégio Eleitoral, realizado em janeiro de 1985, denota a vitória da
transição comandada pelo Estado. A “distensão” de Geisel coroava com êxito o seu
projeto de abertura que ficaria restrita ao Colégio Eleitoral impedindo-se o ímpeto
renovador da redemocratização (que se relacionaria às pressões da sociedade civil
sobre o Estado, em busca do fortalecimento da democracia, como no movimento das
"Diretas-Já", ocorrido nos primeiros meses de 1984) afastando-se assim, o eleitorado
da participação direta na escolha do novo presidente, adiando–se o sonho das diretas
para pleitos presidenciais por mais cinco anos.
Analisar o governo Geisel é uma tarefa bastante complicada. No caso do que
foi o governo João Goulart, existem dificuldades em se estabelecer consensos sobre o
que tal período representou para o Brasil. Às vezes, as análises oscilam entre o que
foi o governo Goulart e como era a personalidade daquele presidente. Na fase de
Geisel, há a sensação, bastante disseminada por sinal, de que Geisel foi o “artífice”
da abertura do regime, contando com a preciosa colaboração de Golbery. No entanto,
apesar de ter um lado verdadeiro nisso com relação à dupla Geisel/Golbery, há toda
uma série de contradições relacionadas àquele período da década de 1970 no Brasil.
Nas palavras de Elio Gaspari, Geisel assumiu quando: “havia uma ditadura sem
ditador. No fim do seu governo, havia um ditador sem ditadura.”.185
Ainda que
altamente questionável esta frase, ela pode refletir tais contradições. Marcos
Napolitano aponta que (...) “Geisel passou para a História como o presidente
autocrático, que iniciou o processo de abertura e, consequentemente, da transição
política.”186
185
NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 229.
186 Id., Ibid., p.229.
262
BARROS (1998)187
, usa em seu livro o seguinte título de subtópico, dentro do
capítulo dedicado aos anos Geisel: “Geisel e Golbery: O sacerdote e o feiticeiro”. O
autor descreve Geisel como uma espécie de “centralizador monárquico”, que
subordinou inteiramente sob suas ordens o Alto Comando das Forças Armadas. Para
o general-presidente o fundamental era remover os militares do envolvimento
rotineiro na política nacional, para preservar a própria unidade da corporação. Era
básico que os militares continuassem a ter cargos de prestígio, mas fora dos
“holofotes” da política e da prática presidencial. Para Edgard Luiz de Barros, a
“democracia relativa” imaginada por Geisel e Golbery previa a necessidade de se
perder uns poucos anéis, porém preservando outros tantos, e obviamente, as próprias
mãos. Assim, o mais “militar” dos militares e o mais autoritário entre os generais que
chefiaram o Executivo federal no período, seria aquele que também começaria a
mandar os militares de volta aos quartéis.188
Ao falecer em 1996, a imagem de Geisel foi tratada - pela imprensa e pela
memória liberais189
- à luz de um mandatário que legou ao país um saldo positivo
como o idealizador da abertura, o presidente que tocou o processo de “distensão”
contribuindo para o retorno da democracia no Brasil.
A Folha de São Paulo trouxe a manchete:
“Geisel, que fez a abertura, morre aos 88”190
E mais:
187 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.92 e 93
188 Id., Ibid., p.93.
189 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 230. O autor faz o uso, não poucas vezes, do adjetivo “liberal”, para
se referir à imprensa e à memória (liberais) , procurando mostrar as importâncias destas na construção
e na consolidação de uma dada memória, nos dias de hoje, sobre a época do regime militar.
190 Folha de São Paulo, 13 set. 1996, capa. In: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 230.
263
“Pode-se dizer que foi a ação firme de Geisel que permitiu o turning point
definitivo rumo à democracia”191
(O grifo é do jornal)
Na revista Veja:
“Geisel tinha uma característica incomum entre os presidentes militares:
mandava. Foi assim que, com mão de ferro, inviabilizou a ditadura”192
No artigo principal da mesma revista, Marcos Sá Correia apresenta a ditadura
(embora eu prefira utilizar o termo regime) como se fosse algo anárquico e com a
ordem subvertida, não pela esquerda, mas pela chamada “tigrada” dos quartéis:
“Antes de Geisel, havia um sistema que, apesar das aparências, era um regime
de presidentes fracos, generais submetidos de baixo para cima à tutela dos quartéis.
Para acabar com esta subversão hierárquica Geisel não precisou de pruridos
liberais [...] encarando a anarquia militar, ele personalizou o autoritarismo que,
antes, era exercido pelos fantasmas das Forças Armadas e pelas legiões quase
clandestinas da repressão política.”193
Para Thomas Skidmore, tido como um dos intérpretes liberais da história
republicana brasileira:
“Será lembrado como o soldado austero que deu outra chance para a
democracia.”194
191 Idem. Id., Ibid., p.230.
192 Veja, nº 1.462, 18 set. 1996, p. 42. In: Id., Ibid., p.230.
193 Idem, p.44. In: Id., Ibid., p.230.
194 Thomas Skidmore, em Folha de São Paulo, 13 set. 1996, p.6. In: Id., Ibid., p.230.
264
Talvez, um exemplo bastante ilustrativo do “sucesso” da política de abertura de
Ernesto Geisel tenha sido a homenagem que o então presidente, Fernando Henrique
Cardoso, lhe prestou em 1995, reconhecendo a “chance para a democracia”, em um
almoço no Palácio das Laranjeiras. Na década de 1970, FHC era seu opositor.195
A seguir, uma capa da revista Veja, de outubro de 1977 que pode muito bem
ilustrar a “ação firme”, a “mão de ferro”, e a “personificação do autoritarismo” de
Geisel:
Capa da Revista Veja, de outubro de 1977, com o presidente Geisel na capa. Era a época da demissão do
ministro do Exército Sylvio Frota.
Fonte: http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/wp-content/uploads/2014/05/ernesto-geisel-
veja.jpg
195 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 231.
265
Verdadeiramente, Ernesto Geisel foi uma figura complexa. Não é simples
compreendê-lo, em suas contradições, como um importante personagem da história
recente nacional. Há ainda outras contradições existentes naqueles tempos da
segunda metade da década de 1970. O fim do “milagre brasileiro”, juntamente ao
primeiro “choque do petróleo”, marcaram decisivamente o governo Geisel e
influenciariam nas diretrizes econômicas e no próprio processo de “distensão” ou
abertura política do regime.
Eis algumas das contradições de Geisel. Anticomunista convicto, foi o primeiro
a reconhecer o governo comunista de Angola, em 1975. Se até aos dias atuais
apontam-se e procuram-se novas evidências do apoio dado pelos Estados Unidos ao
golpe de 1964, como na operação “Brother Sam”, e cita-se também a postura
bastante subserviente do governo Castelo Branco em relação à superpotência
capitalista, o presidente Geisel, que também era do grupo “castelista” e participara no
primeiro governo do regime como chefe da Casa Militar, irritaria os Estados Unidos
por conta do acordo nuclear com a Alemanha e por causa da questão dos direitos
humanos, levantada pelo presidente norte-americano Jimmy Carter, a partir de 1977.
Permeou entre a censura contra a oposição e os estímulos à uma política cultural que
beneficiava até artistas adversários do regime. Nestas políticas, Geisel procurava
reforçar a autoridade do Estado, como o único agente a controlar, com pulso firme, a
transição para um governo civil.
A memória liberal construiu em torno de Geisel o seguinte perfil: um “liberal
de farda”, mas sem dúvida, autoritário. Porém, ele usou o seu autoritarismo para o
“bem”, ao começar o fim do regime militar. Com sua postura autocrática, afastou o
reformismo e a revolução socialista representada pela luta armada de um lado; bem
como a extrema-direita que influenciava os quartéis, de outro.196
É como se Geisel tivesse recolocado o Brasil na trilha de uma dada lógica que
fora interrompida a partir do momento em que Castelo Branco perdeu o controle do
processo sucessório, quando se impôs o nome de Costa e Silva. O caráter saneador,
redentor e cívico da “Revolução” estava em jogo. O segundo governo do regime
196 Id., Ibid., p.232.
266
traria o AI-5. E, no terceiro governo, o de Médici, vieram os “anos de chumbo”,
marcados pelo avanço da guerrilha de esquerda que seria combatida pelas forças de
repressão que, nos tempos do “chumbo” agiam praticamente de forma autônoma e
independente, “espremendo” a sociedade civil aterrorizada, num círculo de medo, em
meio a esta guerra “interna”. Então, com a ascensão de Geisel ao poder presidencial,
a trilha original traçada desde os tempos de Castelo Branco, e interrompida pelas
pressões da “linha-dura”, é retomada. O governo central reassume o seu
protagonismo para conduzir a transição para a democracia. Assim a “distensão” e a
“abertura” foram ações de governo, capitaneadas pela dupla Geisel-Golbery. Ao
escolher seu sucessor, o general Figueiredo, Geisel teria dado sequência à distensão,
que se tornou em abertura, completando a transição de um modelo político para
outro. E os processos sociais, as pressões e os movimentos da sociedade civil
organizada ficam assim negligenciados. A explicação de todo um processo se torna
maniqueísta e simplista demais: A democracia versus a ditadura. Os “porões” versus
a normalidade jurídico-institucional, com algumas liberdades (como a de expressão).
E Geisel se tornou, na memória de cunho liberal, sinônimo da abertura.197
NAPOLITANO (2014)198
procura, em seu trabalho, também desmistificar a
figura de Geisel como o “bom autoritário” que implantou uma política de distensão
que redundaria na abertura do regime. O autor aponta que, tanto a distensão como a
abertura, foram processos inseridos em um projeto que, primeiramente, visava à
institucionalização do regime. Geisel sabia dos riscos de contar somente com o
aparato repressivo para gerenciar o sistema político, e precisava evitar que o governo
ficasse isolado da política e da sociedade. Até 1977, a “abertura” era na concepção
governamental a busca em se institucionalizar o que era exceção, uma retirada dos
militares aos quartéis a passos bem lentos e calculados, uma descompressão pontual.
De fato, nos dois primeiros anos do período Geisel (1974-1975), a distensão
pouco avançou, como já apontado antes. A linha dura, representada principalmente
197 Id., Ibid., p.232-233.
198 Id., Ibid., p.234.
267
pelo ministro Sylvio Frota, sentia confiança em se contrapor ao presidente,
propagando os riscos da “infiltração marxista” e do avanço comunista no Brasil. O
reconhecimento da independência de Angola e o estabelecimento de relações
diplomáticas com a China comunista eram usados como argumentos para tanto.
É, sobretudo, a partir de outubro de 1977, com a demissão de Sylvio Frota,
principal representante da linha mais dura dos segmentos militares, do Ministério do
Exército, que a distensão ganha maior impulso, com Geisel assumindo o controle do
xadrez político no que se refere à escolha de seu sucessor.
Contudo, não podemos considerar isoladamente a demissão do ministro Frota,
como o fato que irá desencadear a abertura. Em 1977, os movimentos sociais
articulados nas ruas, trazendo novas demandas políticas, econômicas e sociais,
somados ao próprio sistema político, em que o MDB vinha se encorpando nas
disputas eleitorais, colocou o governo diante da necessidade de lidar com fatos
novos. O movimento estudantil reaparecia. As mobilizações de trabalhadores e
operários também, junto às greves. A Igreja vai assumindo um papel na defesa dos
direitos humanos. Entidades da sociedade civil, como a OAB (Ordem dos Advogados
do Brasil), começam a cobrar por uma mudança jurídico-institucional. O regime
defrontava-se com uma nova realidade que ganhava espaço no país.
O diferencial no processo de transição (aqui incluo distensão, abertura e a
redemocratização) foram os atores liberais, apoiados por parte da esquerda (PCB e
PC do B) e reunidos na oposição partidária consentida (MDB/PMDB); e também a
grande imprensa, dona dos principais meios de comunicações do país, com grande
circulação (jornais, revistas, além da própria televisão). O processo final da transição,
a partir de 1982, quando são realizadas, após quase duas décadas, eleições diretas
para os governos estaduais, será hegemonizada pelos liberais, em negociação com os
militares.
A negociação foi vantajosa para ambos. Os militares retornaram aos quartéis,
com garantias de que não seriam perseguidos pelo “revanchismo”. Por outro lado, as
elites civis, devidamente capitaneadas pelos seus segmentos liberais, obtiveram a não
ruptura do modelo econômico, podendo retomar o cenário do poder político com
seus privilégios e interesses contemplados, ao mesmo tempo que o país voltava para
o jogo eleitoral e para as liberdades civis. Se a morte de Tancredo, um opositor
268
moderado, mas coerente, atrapalhou um pouco este projeto das elites civis, a
transição democrática fecharia este ciclo com José Sarney, como presidente. Um
homem que tinha feito a sua carreira política, até então, sob a tutela e a sombra do
regime militar.
Esse tipo de retirada “calculada” dos militares da cena política nacional não foi
exclusividade do Brasil. Foi comum nos regimes militares que governaram
sociedades mais complexas, como no Chile e no Uruguai, pois um regime autoritário
não poderia se manter infinitamente sem a necessidade de se institucionalizar o
Estado autoritário e negociar um progressivo retorno às casernas. Na Argentina, este
modelo de abertura não ocorreu e ali o regime se tornou um desastre político, com
violência em graus elevadíssimos, baixa institucionalização e desgaste severo da
imagem do Exército, sobretudo após a derrota na Guerra das Malvinas (1982),
selando a sorte do regime portenho.
A agenda da transição do regime militar brasileiro dentro de um processo de
abertura previa uma passagem gradual do modelo político rumo a um governo civil,
ainda tutelado pelos militares. O modelo de abertura teve o seu embrião, conforme
NAPOLITANO (2014)199
, em 1972, ainda no governo Médici para designar a vontade
do regime em se institucionalizar. Após a indicação de Geisel para a sucessão
presidencial, o Ipeac (Instituto de Pesquisas, Estudos e Assessoria do Congresso)
patrocinou uma palestra do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos,
seguida por debate entre os parlamentares, na qual foi apresentada a tese da
“descompressão política gradual” para evitar o retrocesso. O debate, obviamente e
como não podia deixar de ser, até por conta do momento político do governo Médici,
ficou restrito aos âmbitos mais centrais do poder. A questão primordial era como os
militares se retirariam, de uma forma estratégica, do coração do poder estatal sem
prejudicar os ideais da “Revolução” de 1964: “segurança e desenvolvimento.”
Isso significava institucionalizar um quadro institucional de exceção
encaixando-o em princípios constitucionais, abrandar o controle da sociedade civil e
devolver - a prazo não curto – o poder aos civis, normalizando a vida política.
199 Id., Ibid., p.237.
269
Concomitantemente seria conservada a manutenção da tutela militar sobre o sistema
político-institucional da nação, contando com políticos e elites não hostis aos
princípios e doutrinas apregoadas pela “Revolução de 31 de março” e não fazendo
concessões excessivas à sociedade para que ela pudesse influenciar o processo
político e decisório. Os militares almejavam um partido oficial hegemônico,
legitimado pelo jogo político-eleitoral com a participação da sociedade civil e um
Estado “blindado” contra as pressões tanto da extrema-direita como das esquerdas e
dos movimentos sociais.200
Esta fórmula, um tanto híbrida, que combinava tanto a tutela militar do sistema
político, ainda que tal tutela não fosse necessariamente explícita, face à necessidade
dos militares não se perpetuarem no coração do Estado, mas ao mesmo tempo se
manterem como fiadores de um certo jogo democrático, eleitoral e com partidos
políticos, contando com governos civis que compactuassem com esse projeto
estratégico, teria sido inspirada no modelo político mexicano em sua bem-sucedida
longevidade. Ali ocorreu a primazia de um partido único durante décadas – o PRI
(Partido Revolucionário Institucional) – e a história política mexicana transcorreria
sem golpes e ditaduras militares, em que presidentes eleitos através do voto popular,
num sistema eleitoral e de estruturas partidárias, seguiu por décadas, com a sucessão
de diferentes presidentes exercendo mandatos de seis anos de duração, sem direito à
reeleição.
O caso político mexicano foi citado por Samuel Huntington, cientista político
norte-americano, no texto: “Approaches to Political Descompression” (“Abordagens
para a Descompressão Política”).201
No início do governo Geisel, ele veio ao Brasil
e participou do seminário: “Legislaturas e Desenvolvimento”, aconselhando pela
opção da descompressão lenta e gradual do regime brasileiro, para se evitar um novo
ciclo repressivo ou o aumento da participação popular no processo político. Contudo,
o ilustre visitante (professor de Havard), com o seu famoso artigo, não empolgou
200 Id., Ibid., p.238.
201 Id., Ibid., p.238.
270
Golbery. O “mago” ou o “feiticeiro” Golbery acreditava que a abertura era algo já
existente no movimento de 1964 e que fazia parte da plataforma “castelista”.202
De qualquer forma, pode-se dizer que a abertura foi pautada num outro
binômio: “lentidão e gradualidade”.203
Uma democracia mais outorgada do que
conquistada. Aqui já foi colocado que, ao contrário de seus três antecessores, Geisel
não fez menção à volta da democracia em seu discurso de posse. Mas, desde o início
de seu governo a palavra “distensão” foi entrando na ordem do dia da nação. A
estratégia da distensão seria a do gradualismo sem abrir mão do arcabouço
institucional de exceção para se evitar o desvio da rota traçada. Se a distensão, no
princípio, carecia de uma agenda política, a tônica deste processo seria a combinação
de um gradualismo, como na possibilidade de diálogo com setores selecionados das
elites e da sociedade, junto a estratégias de contenção para manter as rédeas do
processo. A segurança vinha antes do diálogo.
O grande desafio do governo para aquela metade dos anos 1970 em diante seria
em como enfrentar a nova realidade econômica, marcada pela subida da inflação e
por recuos no PIB (em 1975, cresceu 5,2%, quase três vezes menos que a histórica
marca de 14%, de 1973). Era o fim do “milagre” e o primeiro “choque” do petróleo.
O planejamento econômico seria reorientado através do II PND, porém procurando-
se manter altas metas de crescimento pelo decorrer dos anos seguintes.
A aniquilação da luta armada traria à tona o debate em torno do que
NAPOLITANO (2014) denominou de “questão democrática”. Geisel falou em
democracia “relativa” durante o seu governo. Também pudera. O governo militar
considerava o Brasil um país democrático argumentando pela liberdade individual e
da livre iniciativa em contraponto ao “totalitarismo da esquerda”, reforçados pelos
valores e ideais cristãos e ocidentais. Esta era a visão de “democracia” do regime.
Algo que poderia muito bem estar em simbiose com a legislação repressiva e uma
202 Id., Ibid., p.238.
203 Id., Ibid., p.238.
271
oposição controlada, sem aprofundar canais de participação e de debates profundos
incluindo a sociedade civil.
A esquerda armada - derrotada pela feroz repressão do regime; isolada e
distante do apoio popular, por conta do medo e do terror impostos à população pelo
Estado autoritário; sem maiores espaços por conta da censura e de outros controles
disseminados aos meios de comunicação (ou ainda pela conivência destes últimos
com o regime); e, para finalizar, em desvantagem diante da lógica propagandística do
governo pautada pelo ufanismo e pela boa fase econômica - teve que repensar os seus
ideais de luta armada e revolução. A autocrítica foi a escolha que restou aos
sobreviventes da luta armada da esquerda. A questão da política de massas, ou
democracia “participativa” passou a ser considerada, movimentos sociais
diferenciados pautados pela vizinhança e em comunidades religiosas, avessas ao
leninismo, estavam ganhando espaço naqueles idos da segunda metade dos anos
1970. Buscava-se uma alternativa entre o projeto elitista da abertura em uma
democracia liberal e a afirmação dos movimentos sociais e a luta por uma ampliação
participativa na vida política do país.
Os debates sobre a questão democrática adentraram no MDB. Na época de
Geisel, o MDB conquistaria importantes vitórias eleitorais, como na eleição de
Orestes Quércia para o Senado, em 1974. Fortalecido pelo lançamento da campanha
de “anticandidatura” para a eleição presidencial indireta de 1974, Ulysses Guimarães,
que poderia ser visto como uma figura política até dúbia, nos anos de Castelo Branco
principalmente, se firmaria como a principal liderança emedebista a partir de 1974,
tornando-se uma importante voz contrária ao regime naquele cenário político. O
MDB captou essa tônica revisionista e de autocrítica da esquerda e transformou isto
em plataforma política.
Muitos eleitores passariam a votar no MDB, após o partido ter tido uma
quantidade de votos inferior ao de nulos nas eleições de 1970. A orientação de se
votar nulo nas eleições e não no MDB era decorrente da percepção da “farsa”
eleitoral e da “fachada” democrática do regime por parte de alguns segmentos do
eleitorado. Mas o MDB se reciclou com a atuação dos deputados “autênticos”, em
contraposição aos “moderados pessedistas”. O partido da oposição encampou a
questão dos “desaparecidos” políticos, que o governo se furtava a reconhecer. A
272
tortura também incomodava os liberais, junto com a questão dos desaparecidos. O
que NAPOLITANO (2014) chama de “liberais” são aqueles mesmos que, na
imprensa, pediram, aclamaram e apoiaram o golpe de 1964. Os mesmos que pediram
rigor no “combate aos terroristas”, em 1968, mas que depois se assustariam com os
“efeitos colaterais” de tamanha repressão e do peso dos “anos de chumbo”.
A Igreja, que lá atrás apoiou o golpe, também sofreu com a violência
repressiva em seus quadros mais progressistas. A relação da Igreja Católica e o
regime militar arrefeceu-se bastante por conta de alguns episódios: os frades
dominicanos presos e torturados na caçada à Mariguella; o assassinato do padre
Henrique Pereira Neto, assessor do bispo do Recife, dom Helder Câmara; e a morte
do estudante Alexandre Vanucchi Leme, nas dependências do DOI-Codi II em São
Paulo, em 1973.
Estudante de Geologia da USP, líder do movimento estudantil e membro de
uma tradicional família católica do interior paulista, Alexandre foi enterrado como
indigente no cemitério de Perus e o governo demorou a reconhecer sua prisão e
morte (a versão era a de fuga e atropelamento). A missa realizada na Catedral da Sé
ficou marcada pelo coro da música Caminhando, de Geraldo Vandré, e a frase do
arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns:
“Só Deus é o dono da vida. D’Ele a origem e só ele pode decidir seu fim.” 204
A missa, realizada a 30 de março de 1973, às vésperas do 9º ano de aniversário
do regime foi importante porque foi o primeiro ato público das massas desde 1968 e
após o AI-5. Salienta-se que era o último ano do governo Médici e a distensão ainda
não havia se iniciado. Daí a importância deste ato.
A relação entre o governo e a Igreja já não era boa, quando da posse de Geisel,
em março de 1974. O pouco avanço da distensão e a atuação repressiva ainda
presente mostravam que o quadro estava longe de mudar. Em 1975, somada à
cobrança pelo destino dado aos desaparecidos políticos, os atritos entre a Igreja
204 Id., Ibid., p.245.
273
Católica e o governo encontraram novo capítulo com a implantação do divórcio.
Defendida durante décadas pelo senador Nelson Carneiro, a proposta de emenda
constitucional prevendo o divórcio seria aprovada. Não deixa de ser um símbolo das
mudanças sociais e das transformações de costumes que o Brasil vinha trilhando. A
OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que aprovara o golpe de 1964, mas
distanciara-se do regime por conta do AI-5 de 1968, volta à cena como um outro ator
liberal a criticar o governo.
A distensão que Geisel formatara ainda era muito tímida, contudo a revisão do
modelo político existente, a oposição da Igreja e a questão dos direitos humanos
permearam as eleições de 1974. O regime deu relativa liberdade à dinâmica eleitoral
para testar até que ponto a sociedade havia internalizado os valores e os ideais da
“Revolução de 1964”. O MDB teve espaço para expor e debater o seu programa, no
horário eleitoral e nos meios de comunicação. O partido da oposição consentida
aproveitou-se do cenário. Naquelas eleições, que foram legislativas, o MDB ganhou
da Arena nos votos para o Senado (50% contra 40%); praticamente teve um empate
técnico nos votos para a Câmara (37% contra 40% dos votos dados à Arena). Venceu
nas grandes cidades e fez maioria nas Assembléias Legislativas nos estados de São
Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Amazonas e Acre, levando assim alguns
dos estados mais importantes da federação. Ultrapassando um terço do Congresso, o
MDB poderia bloquear emendas constitucionais e complicar o projeto de distensão
do governo.205
O governo reconheceu os resultados não favoráveis. Num primeiro momento
não promoveu casuísmos. Mas, depois das eleições de 1974, Geisel teria que fazer
uso do sistema de exceção para não perder o controle da distensão. O avanço da
oposição teve um duplo sentido, era algo que podia ser relacionado à predisposição
do governo em gerenciar uma abertura, de “cima para baixo”, chancelando os
resultados eleitorais, porém implicaria numa maior necessidade de o Estado não
deixar a abertura virar de “baixo para cima”, com a sociedade civil e a oposição
ditando as regras a tal ponto que a distensão gradual e a abertura controlada se
205 Id., Ibid., p.246.
274
tornassem em uma redemocratização “desenfreada”, caracterizando uma transição
sujeita à imprevistos na ótica governamental.
Na esteira deste “papel duplo”, esta deveria ser também a característica da
grande imprensa liberal (mas dotada de recortes conservadores), agora livre da
censura prévia (caso do jornal O Estado de São Paulo, em 1975). O papel da
imprensa seria o de ajudar o regime em sondar como se encontrava a opinião pública
em relação a insatisfações e demandas e, por outro lado, veicular a resposta do
governo a esta mesma opinião pública, em especial a classe média devoradora da
“opinião publicada”, para se preparar para as dificuldades econômicas que pintavam
no horizonte após o fim do “milagre”. O governo voltava as suas atenções
repressivas ao PCB que era apontado como a “má influência” que pesou no avanço
eleitoral do MDB. Com a luta armada destruída e aniquilada, o PCB tornou-se a
“bola da vez” no alvo da repressão. Para a linha dura, os comunistas se articularam
ao MDB devido à hesitação de um governo “liberalizante”. A confirmação disto seria
a descoberta de uma gráfica clandestina do PCB, estabelecendo a influência do
“Partidão” sobre o processo eleitoral de 1974. A Operação Radar e a Operação
Jacarta estavam voltadas especificamente contra o PCB. Naquele ano de 1975,
Geisel descartava, por exemplo, a revogação do AI-5, mostrando que a distensão
estava condicionada a limites rigidamente estabelecidos.
As eleições de 1974 mostraram que o Estado e a sociedade tomavam caminhos
distintos. A sociedade civil, com a “questão democrática” em pauta, procurava
mover-se por novas trilhas, potencializando o isolamento do regime autoritário.
Face à dura repressão ao PCB, que incomodava os setores mais críticos da
sociedade, o clima se deterioraria de vez, no campo da tortura e da repressão, com a
morte do jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975. A versão inicial de
suicídio não foi aceita pela sociedade que, de novo, se mobilizou na Catedral da Sé,
no culto ecumênico, que reuniu 8 mil pessoas, liderado pelo arcebispo dom Paulo
Evaristo Arns, contando com as presenças do pastor James Wright e do rabino judeu
Henry Sobel. A morte de Herzog, que se apresentara voluntariamente ao Doi-Codi de
São Paulo, trouxe complicações nas relações entre o governo e a imprensa.
Naquele momento, Geisel não tomaria uma medida mais séria que ficou restrita
a uma reprimenda de que o comando do II Exército controlasse seus agentes.
275
Somente com a morte do sindicalista, Manuel Fiel Filho, em fevereiro de 1976,
houve a demissão do comandante do II Exército – general Ednardo D’Avila Mello -,
mas nenhuma outra punição efetiva foi aplicada a algum membro do “porão”.
Até aquele momento, o governo Geisel teria priorizado uma distensão imbuída
daquele duplo sentido citado antes. Abrir canais institucionais de diálogo com vozes
e setores selecionados (não com qualquer tipo de ator social, mas somente aqueles
com quem o governo estaria disposto a dialogar), sem abrir mão da repressão que
assolava o PCB, e que, em 1976, mesmo depois da troca do comando do II Exército,
voltaria-se contra o PCdoB (não mais no contexto da Guerrilha do Araguaia- já
aniquilada dois anos antes - mas na perseguição aos militantes urbanos do PC do B).
O governo procurava manter sua atenção ao “porão”, como um ator útil no processo
de distensão do regime, como um agente a contribuir para o controle de adversários
“subversivos” mais exaltados e como uma forma de garantir o lentíssimo
gradualismo das mudanças. Porém, a morte de Manuel Fiel Filho foi um primeiro
acontecimento crucial que fez Geisel agir numa primeira vez em direção a aprimorar
o controle e o comando sobre os setores repressivos. A demissão do general Ednardo
D’Ávila Mello exponenciou as tensões entre Geisel e o ministro do Exército, general
Sylvio Frota. Primeiro porque Frota era próximo a Mello. Segundo porque, a
princípio, caberia a Frota tomar a decisão de demitir o comandante do II Exército.
Mas a situação ainda não estava resolvida. Os ultra-reacionários da linha dura
continuaram ativos em 1976, promovendo até algumas ações terroristas [daí um
parêntese: é um absurdo que alguns, nos dias atuais, associem os terroristas somente
àqueles quadros da luta armada da esquerda e esquecem, talvez de forma proposital,
as ações terroristas da extrema direita, como nas bombas atiradas contra as sedes da
ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e da OAB, no Rio de Janeiro; e o atentado
contra o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo]. As
Forças Armadas vinham apresentando uma aparente divisão entre os duros que
queriam recrudescer o arbítrio; e os que acreditavam no aprofundamento das medidas
democratizantes.
A linha dura, em 1977, com a aproximação do jogo sucessório presidencial,
procurava impor como sucessor, o general Sylvio Frota, ministro do Exército,
principal representante do grupo dos “duros” na época. Frota tentou fazer o que
276
Costa e Silva fez com êxito na sucessão de Castelo Branco; e o que Albuquerque
Lima não conseguiu na sucessão de Costa e Silva. Procurou se colocar como o
sucessor de Geisel, mas o presidente contra-atacou, demitiu Frota, e substituiu
comandos na Infantaria, dando uma enfraquecida na linha dura. Era a segunda vez
em que o governo agia na direção de restabelecer o comando e o controle sobre os
setores repressivos do regime.
Algo que realmente pode ser pesado a favor de Geisel foi a forma como ele não
só demitiu, como verdadeiramente anulou qualquer reação do general Sylvio
Frota.206
Este último estava no Ministério do Exército desde 1974, por conta do
falecimento do indicado de Geisel para o Ministério – general Dale Coutinho. Frota
era contra a distensão, pois esta enfraqueceria o governo diante do combate à
“subversão” comunista. Em 1977, o ministro do Exército mandava constantemente a
Geisel relatórios sobre os avanços da “infiltração” comunista no Brasil. Em eventos
públicos, Frota não perdia a oportunidade de realizar pronunciamentos, buscando-se
apresentar-se como candidato a sucessão presidencial. O nome de Sylvio Frota para a
Presidência da República encontrava seus ecos no Congresso, cerca de 90 políticos
da Arena apoiavam seu nome para suceder a Geisel, como sendo a melhor alternativa
para preservar o espírito da “Revolução de 1964”.
Em outubro de 1977, Frota já esperava por sua demissão. Uma vez comunicado
do fato, pela manhã de 12 de outubro, Frota retirou do seu gabinete um manifesto
que acusava o governo de ser complacente com os comunistas. O manifesto, de oito
páginas, seria distribuído à imprensa e aos quartéis. Sylvio Frota apostava no apoio
que teria de grande parte do Exército, dos oficiais da ativa e de alguns políticos que
estavam ao lado do regime. Com a intenção de deflagrar um golpe, um levante
militar contra o governo, ele convocaria o Alto Comando das Forças Armadas numa
reunião de emergência.
No entanto, Geisel e Golbery já haviam se antecipado. Todo o procedimento
burocrático para a demissão de Frota já estava encaminhada, com direito à edição
extra do Diário Oficial para publicar a demissão. A data de 12 de outubro era a de
206 Id., Ibid., p.269-271.
277
um feriado nacional, em que Brasília estaria praticamente vazia, sem o
funcionamento das repartições públicas e das funções burocráticas que poderiam
agitar um levante golpista. O manifesto frotista não chegou aos quartéis que assim se
mantiveram tranquilos. Uma curta nota sobre a demissão foi lida pelo ministro Hugo
Abreu, com as tropas mais fiéis ao presidente em regime de prontidão.
A única brecha para Frota poder reagir era a reunião com o Alto Comando, mas
os emissários de Geisel chegaram antes e encaminharam os generais ao Palácio do
Planalto, antes da aparição dos emissários de Frota. O decreto estava publicado na
edição extra do Diário Oficial. Sylvio Frota não era mais o ministro do Exército. Para
completar, Geisel trocou o comando de dezenas de batalhões, afastando qualquer
representante do “frotismo” que, dali em diante, ficaria mais enfraquecido. E Geisel,
em 1978, indicaria o general João Baptista Figueiredo, como seu sucessor, sem
maiores percalços. O maior deles, foi o pedido de demissão do general Hugo Abreu,
chefe da Casa Civil, em março de 1978, que se sentiu preterido por Geisel para a
indicação do seu nome para sucedê-lo e discordava da indicação do general João
Figueiredo para a Presidência da República.
Na política externa, o governo deu sinais mais claros, porém não inéditos (se
formos nos lembrar dos governos de Jânio Quadros – 1961 - e de Getúlio Vargas- no
período entre 1951 a 1954) da distensão através da retomada de uma política externa
independente. O acordo nuclear com a Alemanha Ocidental que previa a construção
de vários reatores, uma usina de enriquecimento de urânio e o domínio do ciclo
completo da energia nuclear. O nacionalismo econômico de Geisel, como na
indústria de armamentos, através da criação, pelo governo, do trust chamado Imbel
(Indústria de Material Bélico do Brasil), de olho no mercado do Terceiro Mundo. O
reconhecimento da ex-colônia portuguesa de Angola, na África, como país
independente. O reconhecimento à OLP (Organização para a Libertação da
Palestina), contrariando os Estados Unidos, aliados tradicionais de Israel.207
O troco norte-americano veio, sobretudo, com a administração do presidente
Jimmy Carter (1977-1980), criticando as violações aos direitos humanos no Brasil,
207 Id., Ibid., p.253.
278
somadas às campanhas dos exilados, e da esquerda marxista e católica, contra o
regime brasileiro no exterior que teria de lidar com a possibilidade de um maior
isolamento no plano internacional, atrapalhando os objetivos do Brasil em se firmar
no exterior com uma dinâmica geopolítica própria. Pressionado pelos Estados
Unidos, o governo brasileiro rompeu unilateralmente o acordo militar com a
superpotência da América do Norte, datado de 1952.
A sociedade civil se encontrava, por um lado, fortemente reprimida e amarrada
no clima de medo e de repressão instaurado após o AI-5, reforçado por todo o
arcabouço institucional autoritário, que simplesmente eliminou da cena nacional os
movimentos grevistas, estudantis e as reivindicações por liberdades democráticas, a
partir do final de 1968; ou, por outro lado, uma sociedade civil que se sentia talvez
até “acomodada”, especialmente no tocante à alguns de seus segmentos que até
vinham desfrutando das benesses e conquistas materiais do milagre econômico e, de
uma certa forma, recebendo de bom grado os ventos ufanistas dos inícios da década
de 1970. Eis um perfil da sociedade civil brasileira daqueles anos 1970.
Os “anos de chumbo” basicamente coincidiram com os do “milagre
econômico” e aqui repito o termo: “anos dourados de chumbo” o período
compreendido, a grosso modo, entre dezembro de 1968 a março de 1974, abrangendo
desde a imposição do AI-5 até o final do governo Médici (porque repressão e tortura
ocorreram também nos períodos de Castelo Branco e de Geisel). De qualquer forma a
sociedade civil estava legada a um plano mais secundário, ora amordaçada pelo ciclo
de repressão e medo; ora depositária de um “onda” de prosperidade e ufanismo
potencializados.
Se voltarmos à 1976, o governo parecia ter o controle ideal sobre a distensão,
considerando-se a troca de comando no II Exército, e a promulgação da “Lei Falcão”
que engessaria qualquer probabilidade de expansão do debate político nas eleições
municipais de 1976, restringindo a campanha eleitoral á simples veiculação da foto e
um breve currículo do candidato. Naquelas eleições a Arena elegeu quase 30 mil
vereadores contra cerca de 5,8 mil do MDB. Mesmo tendo relativa força em todas as
279
capitais, somente em Porto Alegre, Manaus e Natal, a oposição tinha mais vereadores
do que o partido do governo.208
Com esta força e anteparo institucional, o governo, a seu modo tentou retomar
o seu diálogo com a oposição para encaminhar a institucionalização do regime,
prevendo até a revogação do AI-5. Para isso foi escolhido o senador Petrônio Portella
(Arena-PI), que tinha respaldo e certo prestígio para circular entre governo e
oposição, fazendo ligação entre ambos. O problema é que nem sempre as questões e
discussões são encaminhadas rapidamente no Congresso. Impaciente com o
Legislativo, o governo, não obtendo o diálogo que desejava, simplesmente resolver
dar as suas cartadas autoritárias. Geisel, fazendo uso do AI-5, fechou o Congresso,
em 1º de abril de 1977, e propôs a Emenda Constitucional nº 7, centrada na reforma
do Judiciário. Por tabela, impôs também vários decretos-lei. Foram os “pacotes de
abril”.
Os “pacotes de abril” sem dúvida alguma constituem uma das piores heranças
do regime militar, legadas ao Brasil, que persistem até aos dias atuais. Refiro-me ao
aumento da representatividade das bancadas estaduais para a Câmara Federal
(beneficiando estados menos populosos onde a Arena era o partido dominante). Além
disso, foi criada a figura do “senador biônico” ( a eleição indireta para um terço do
Senado, indicados pelas assembleias estaduais de maioria governista), estabeleceu-se
eleições indiretas para governadores estaduais, ratificavam-se as modificações
estabelecidas para as campanhas eleitorais (já existentes na “Lei Falcão”) e
alteravam-se o quórum para a aprovação de emendas constitucionais na Câmara (de
dois terços para maioria simples). Se Geisel não utilizou um casuísmo imediatamente
após as eleições de 1974, agiria com rigor através da cartada do fechamento do
Congresso e dos “pacotes de abril” de 1977.
E o inconveniente da distorção de representatividade na Câmara Federal
persiste até hoje (com estados super-representados como Roraima, e sub-
representados como São Paulo). Se hoje, não há mais os senadores “biônicos”, o que
ficou foi a permanência de três senadores por estado (unidade da federação). Nos
208 Id., Ibid., p.256.
280
Estados Unidos são 50 estados (unidades da federação), e 100 senadores (dois
senadores por estado). No Brasil são 81 senadores (três por estado). Considerando-se
que os Estados Unidos são mais populosos que o Brasil, caberia ao nosso país ter
dois, ao invés de três senadores, por estado? Não seria uma forma de se racionalizar
os gastos com as despesas do Senado?
Mas, voltando-se ao governo Geisel, o grande objetivo do “pacote” era
favorecer o partido governista nas eleições de 1978. Frase memorável do presidente
Ernesto Geisel, naqueles tempos:
“Nossa democracia não é igual às outras (...). Democracia é relativa.”209
O que o governo não contava é que atores sociais voltariam à cena, melhor, nas
ruas. Em 1º de maio de 1977, o prefeito de São Paulo – Olavo Setubal, indicado pelo
regime - exaltava o clima de “paz, música e alegria” nas comemorações oficiais do
Dia do Trabalho, sem as badernas e agitações de um passado não tão distante assim.
Mas, cinco dias depois, sete mil estudantes se concentravam na Faculdade de Direito
do Largo São Francisco pedindo por “liberdades democráticas” e pela libertação de
colegas presos por panfletagem nas proximidades das fábricas da região do ABC.
Desde 1968, não havia numa grande cidade brasileira protestos públicos do
movimento estudantil.
Na verdade, o movimento estudantil, com muito sacrifício, procurou
permanecer na cena política. Ainda que a repressão fosse feroz, os estudantes
procuram manter passeatas e até greves contra as mudanças na política universitária,
atuando principalmente de dentro das universidades ou em diretórios acadêmicos e
eventos afins. Em 1973, a morte do estudante Alexandre Vanucchi Leme levou a
uma mobilização, um ato público, que não se via a cinco anos contra o regime. O
revigoramento do movimento estudantil, especificamente no final da década de 1970,
pode ter sido acarretado pela mudança do foco da luta. Ao invés de apostar na
proposta e revolução socialistas, até com a luta armada contando com contingentes
209 Id., Ibid., p.257.
281
pequenos, a ressurgência dos estudantes para fora das universidades, foi pautada até
numa autocrítica com relação às escolhas do passado e se voltou às ações políticas
que englobassem contingentes amplos destes com os trabalhadores, operários, igreja
e cidadãos em geral.210
Mesmo com a imprensa liberal, de cunho mais moderada, fazendo certo coro
ao discurso governamental da não radicalização das manifestações e em manter um
ambiente político “tranquilo” para uma “distensão” que seguia lentíssima num futuro
incerto, os estudantes não pararam. Isso porque a lembrança de 1968 ainda estava
viva quando a onda de manifestações levou ao fechamento do regime através do AI-
5.
Depois do ocorrido em maio, quando os estudantes barrados pela tropa de
choque da PM paulista sentaram-se no Viaduto do Chá e receberam apoio dos
populares e dos prédios (com chuva de papéis picados) vieram as manifestações do
“Dia Nacional de Luta pela Anistia”, em junho. A greve da UnB (Universidade de
Brasília) se estendeu por dois meses. Vários estudantes que tentavam realizar um
encontro nacional foram presos em Belo Horizonte. No III Dia Nacional de Luta os
estudantes promoveram vária minipasseatas que a PM paulista inutilmente tentou
impedir. Outros protestos estudantis ocorreram em Salvador e em Porto Alegre.
Logo, o movimento era uma realidade nas principais cidades do país.
O episódio mais emblemático ocorreria em 22 de setembro. O III Encontro
Nacional dos Estudantes foi anunciado para a Cidade Universitária. Mas era para
despistar a polícia. O encontro ocorreria, na verdade, na PUC (Pontifícia
Universidade Católica). A PUC de São Paulo então acabaria sendo palco da invasão
policial quando esta descobriu o verdadeiro local da reunião. Mil estudantes foram
detidos, noventa encaminhados ao Dops e quatro ficaram gravemente feridos. Cerca
de trinta salas de aula ou administrativas foram destruídas pela ação da polícia
comandada pelo Secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias.
Se as manifestações estudantis não transformaram a distensão em um autêntico
processo de redemocratização, elas tiveram o mérito de ter tido a coragem de colocar
210 Id., Ibid., p.258.
282
os “pés” nas ruas e trazer a discussão da chamada “questão democrática” para além
dos diálogos e das conversas frias e retóricas dos gabinetes e palácios. E a causa
democrática seria um importante elo de ligação entre os estudantes com os outros
setores sociais.
As ações da sociedade civil não foram em vão. Em setembro de 1978, o
governo mais isolado e sofrendo críticas mais intensas de diferentes atores sociais e
políticos, encaminhava a Emenda constitucional nº11 que revogava o AI-5, acabava
com a prerrogativa do Executivo em cassar mandatos de deputados, encerrava a
censura prévia, extinguia as penas de morte e a prisão perpétua, e restabelecia o
habeas corpus.
Na reta final do mandato de Geisel, a distensão ou abertura que estava mais
para uma retórica devido ao ritmo de lentidão das mudanças no regime até 1977,
sofre uma guinada. O que antes estava mais para uma institucionalização da
“Revolução de 1964”, torna-se, a partir de 1978, em uma efetiva agenda de transição
democrática. Um “divisor de águas” para tal guinada foi, sem dúvida, a demissão do
ministro Sylvio Frota, enfraquecendo os ultra-reacionários da linha dura, mas as
vozes das ruas – com manifestações, passeatas, greves e atos – também teriam a sua
influência na modificação da distensão em direção à um processo mais vigoroso de
abertura e transição. Se não levaram à queda do regime e à redemocratização,
aceleraram com o processo de abertura e transição. Era a sociedade civil de volta à
cena.
Em fevereiro de 1977, a Igreja Católica, antes mesmo dos estudantes irem às
ruas, apresentava o manifesto lançado pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil), fazendo críticas ao regime, que entre outras coisas, afirmava que os
direitos naturais do ser humano não podem ser outorgados pelo Estado, eles são
inerentes à pessoa humana. Um regime de exceção não pode utilizar-se da força e da
violência contra tais direitos naturais. A ABI (Associação Brasileira de Imprensa)
também divulgaria um manifesto em defesa das liberdades democráticas. Apesar de
todos os investimentos do regime na pós-graduação e no ensino universitário, a
SBPC (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência) também se manifestava a
favor das liberdades democráticas. Mesmo proibida pelo governo, a Reunião Anual
da SBPC ocorreria na PUC-SP. Por fim, a “Carta aos brasileiros”, lida em ato
283
público em frente à faculdade de Direito da USP, em agosto de 1977. Numa
passagem o texto criticava o binômio “segurança e desenvolvimento”, propalado
pelo regime, traduzindo-o em “terror contra o cidadão, e desenvolvimento, miséria e
ruína.”211
Ao fim do ato, houve uma passeata de cerca de 10 mil pessoas pelo centro
da capital paulista. A oposição de caráter mais liberal ganhava terreno.
Com a OAB, SBPC e a CNBB levantando voz contra o regime. Grupos que
representavam a intelectualidade e setores da classe média, o governo procurou
retomar o diálogo, agora com a sociedade civil. A “Carta aos brasileiros” foi
cooptada pelo MDB que, entre outras coisas, defendia uma Assembléia Nacional
Constituinte. Diga-se que estas três palavras voltavam ao cenário das discussões, o
que não acontecia desde os tempos de Jango e de Brizola (quando este foi deputado
federal na década de 1960).
No entanto, a proposta de Assembléia Nacional Constituinte não foi avante. O
MDB esbarrava na divisão entre os “moderados” (não dispostos a se vincular às ruas)
e os “autênticos”. O entendimento entre Ulysses Guimarães e Petrônio Portella, em
junho de 1978, selaria a campanha pela Constituinte às portas fechadas. Na verdade,
o Brasil teria que esperar mais nove anos – até 1987 – para ter uma Assembléia
Nacional Constituinte em funcionamento, cuja nova Constituição seria promulgada
em 5 de outubro de 1988, pelo mesmo Ulysses Guimarães, então presidente da
Câmara Federal. O problema também foi que o MDB ainda não contava com a plena
confiança da sociedade civil para ser o fiador da luta contra o regime.
O empresariado também se manifestava com críticas ao excessivo estatismo.
Desejavam o liberalismo econômico sem as “asfixiantes” amarras estatizantes do
governo. Eles assim juntaram a defesa do liberalismo econômico com a democracia
política. As liberdades democráticas eram fundamentais para a livre iniciativa e o
desenvolvimento econômico. Certamente, o fim dos anos de “milagre” descontentava
uma grande maioria (mas não todo) o empresariado que também buscava mais
espaços de interferência nas esferas governamentais. O governo estava mais isolado,
agora pelos setores produtivos e econômicos.
211 Id., Ibid., p.264.
284
O ano de 1978 seria marcado, sobretudo, pela sucessão presidencial. Foi feito
todo um esforço publicitário em se transformar a imagem do candidato general João
Figueiredo. O antes chefe do SNI, de óculos escuros e semblante fechado, dava lugar
a um senhor simpático: “o presidente João” ou o “amigo João”. Apesar da não
existência de eleições diretas para presidente, Figueiredo, em sua nova imagem mais
agradável e simpática ao povo, viajou país inteiro, com comícios e tudo mais. A
oposição emedebista escolheu como candidato, o general Euler Bentes, um militar
nacionalista.
A vitória de Figueiredo no Colégio Eleitoral não foi acachapante (foram 355 a
266). O MDB, apesar da Lei Falcão, poderia se animar com o bom desempenho
eleitoral nas eleições gerais de 1978. Os novos ares das ruas, fábricas e as
universidades deram mais ânimo às campanhas dos candidatos da oposição.
Mas, qual foi a origem desses “novos ares” que marcaram a ressurgência dos
movimentos sociais? Apontar que foi apenas a política da “distensão” de Geisel
poderia ser um equívoco. O contexto da distensão pode realmente ter favorecido um
ganho em visibilidade e espaço para estes movimentos, atrelados a outros que
vinham ocorrendo, como o estudantil. Contudo, lembremo-nos de que nem sempre a
“distensão” foi um movimento vigoroso e uniforme. Ela só ganhou maior
intensidade, na verdade, em 1977. A raiz do processo que possibilitou a presença de
novos movimentos sociais se dá antes da “distensão” do governo Geisel, como já
apontado. Na periferia da grande metrópole paulistana, em bairros distantes, carentes
de transportes, unidades de saúde, escolas, habitação e segurança, haviam muitos
trabalhadores que há pouco tempo haviam migrado, vindos de zonas rurais de várias
regiões do país, em busca de trabalho e de uma vida melhor. Comparada à miséria no
campo, a vida era um pouco menos dramática na periferia da cidade grande. Tinham-
se ali as empregadas domésticas, trabalhadores da construção civil e o operariado. A
precariedade de serviços públicos e a falta de opções de lazer contribuíam para a
explosão da violência, mas por outro lado, a falta de assistência por parte do Poder
Público, também forçava a criação de novos laços de solidariedade. As cidades, cada
vez maiores, contavam com um centro tradicional apresentando espaços vazios à
espera de valorização; circundados por bairros de classe média, com enclaves ricos
de alto padrão e ruas arborizadas; e finalmente, na borda mais exterior do centro
285
urbano, os bairros operários e as partes de ocupação caótica e desordenada, que vão
se constituir nas favelas, por exemplo.
É nesta borda mais afastada que vão aparecer os embriões dos movimentos
sociais. A tradição associativa dos bairros populares não era algo inédito, já vinha
desde as décadas de 1940 e 1950, sendo cooptados por políticos populistas
conservadores, como Jânio Quadros, em relação ao bairro paulistano da Vila Maria.
Sem a figura política, devido à situação discricionária do regime militar, é a Igreja
Católica que irá capitalizar, através das comunidades eclesiais de base, este novo
fôlego dos movimentos sociais. A tradição associativa popular, somada à
precariedade da vida cotidiana, fez surgir um certo movimento de politização, que se
voltava à resolução dos pequenos problemas do cotidiano, e não às grandes causas
ideológicas que perpetraram a luta armada. Aliás, muitos dos militantes das
esquerdas armadas, face ao fracasso do embate direto contra o regime, foram viver
nestes bairros populares e afastados. Era uma forma de se cultivar a consciência de
classe.
A concentração de grandes indústrias multinacionais, ou transnacionais, na
região do ABC paulista, se consolidou na década de 1970. Muitos dos operários que
trabalhavam nessas fábricas viviam na periferia da capital paulista. O Estado
autoritário, preocupado com a luta armada, não se voltou com relação aos
movimentos populares que iam se articulando. Na verdade, o regime contava com a
Igreja para manter um certo controle sobre isso. Se o regime militar chegou a traçar
grandes metas e projetos estratégicos, como na ocupação dos “espaços vazios” (como
a Amazônia); na construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica e
outras estradas interligando regiões do país; na criação e reorganização de toda uma
estrutura de órgãos de planejamento (Sudam, Sudene,etc.); na construção de
hidrelétricas; etc., ... a “Revolução de 64” não traçou nenhuma política para as
periferias urbanas em expansão. Pode-se argumentar que isso seria tarefa dos
governos locais, mas o que pesa sobre o governo central da época é que este nunca
cedeu condições adequadas para um papel mais efetivo dos governos locais, como as
prefeituras. Até porque o Brasil era uma federação só no nome. O nome oficial do
Brasil, a partir de 1967, passou a ser República Federativa do Brasil, no entanto, o
governo central aspirou para si o “grosso” do montante das verbas e das arrecadações
286
tributárias. Para agravar a situação no aspecto federativo, a esfera estadual estava
amarrada pelas nomeações dos governadores estaduais feitas pela União e as
prefeituras das capitais estaduais, quase que todas as maiores cidades do país,
também eram administradas por pessoas indicadas, não eleitas através do voto
popular.
Então a população das periferias, não só da capital paulista, mas de várias
cidades brasileiras buscaram a sua própria alternativa de lutar pela melhoria do custo
de vida, por melhores salários e condições sobrevivência. Daí nasceria o MCV
(Movimento do Custo de Vida),em 1975, transformado em 1979 no Movimento de
Luta contra a Carestia, com a ascensão de integrantes do PC do B na liderança do
movimento.
A semente do movimento popular e social brotaria de vez com a eclosão da
greve operária em São Bernardo do Campo, começando por 2 mil operários da Saab-
Scania e alastrando-se por outras montadoras. Não houve piquetes. Os operários
entravam, batiam o cartão e... não começaram a trabalhar. Foi um movimento tão
espontâneo dos operários que o sindicato não estava à frente da articulação da greve,
tal articulação se deu entre os operários.
Desnorteado, o governo não podia intervir nos sindicatos. Sem piquetes e
planfetagem, a polícia não poderia agir, pois poderia destruir o patrimônio dos
patrões. Era uma greve sem agitadores “comunistas” e agentes sindicais
“subversivos”,212
deixando o regime e até a própria sociedade em perplexidade.
Depois das greves de 1968, em Osasco (SP) e em Contagem (MG), o
movimento operário voltava á cena. Alimentados pela crescente politização dos
movimentos sociais, mais o novo contexto de estudantes, intelectuais, setores liberais
da sociedade e boa parte da classe média estarem cada vez mais insatisfeitos com o
regime. Os operários eram um importante “imprevisto” que a política “distensional”
de Geisel não contava.
212 Id., Ibid., p.276.
287
Os metalúrgicos de São Bernardo, paralelamente ao movimento estudantil de
1977, lançaram uma campanha de reposição salarial de 34%, baseada nas perdas
decorrentes da manipulação das taxas de inflação de 1973. O chamado novo
sindicalismo, entrou em rota de colisão com a estrutura oficial verticalizada do
sindicalismo brasileiro, herança ainda do Estado Novo varguista. Buscava-se um
sindicalismo combativo e independente, sem as amarras do Ministério do Trabalho e
com liberdade de organização.
O símbolo do novo sindicalismo - foi o migrante nordestino, que se tornou
torneiro mecânico e iniciou a sua militância sindical por influência do irmão, frei
Chico - era Luís Inácio da Silva, o Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos
de São Bernardo, desde 1975. Ao contrário do seu irmão, filiado ao PCB, Lula nunca
militou no “Partidão”. De postura mais pragmática, influenciado pelo catolicismo
progressista, a esquerda representada pelo “novo sindicalismo” se diferiu
completamente do PCB. Por fim, o operariado se auto-organizaria em um partido
novo, em 1980, o PT (Partido dos Trabalhadores), dentro do retorno ao
pluripartidarismo, já nos anos do governo Figueiredo.
Luís Inácio da Silva – o Lula – liderando a 1º greve de operários do ABC paulista, em 1978
Fonte:
http://www.dsc.ufcg.edu.br/~pet/jornal/dezembro2009/images/materias/o_mundo/lula_greve.jpg
288
3.5- Governo Figueiredo (1979-1985). O regime militar
caminha para o seu final.
O general João Baptista de Oliveira Figueiredo tomou posse como
presidente da República em 15 de março de 1979. Ele havia sido chefe do Gabinete
Militar de Médici, e do SNI no governo Geisel. Imposto pelo seu antecessor, o
general Figueiredo teve a incumbência de acelerar a flexibilização política e
promover reformas, mantendo, ao mesmo tempo, a unidade nas Forças Armadas. No
seu discurso de posse citou a palavra democracia apenas duas vezes. Mas tal palavra
estava na principal passagem de seu discurso:
“É meu propósito inabalável – dentro daqueles princípios (os princípios
democráticos de 1964 – grifo meu) – fazer de país uma democracia.”213
João Baptista de Oliveira Figueiredo, o 5º e último dos generais-presidentes do regime militar
iniciado em 1964. Governou o Brasil de 15/03/1979 a 15/03/1985. Seu sucessor, eleito no Colégio
Eleitoral de 15/01/1985, foi o civil Tancredo Neves. Por conta da enfermidade que pouco depois
acarretaria a morte de Tancredo, o empossado na Presidência da república foi o vice da chapa
213 BONFIM, João Bosco Bezerra. In: VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 264.
289
vitoriosa do PMDB/ Frente Liberal: o também civil, José Sarney. O presidente Figueiredo se recusou a
transmitir a faixa presidencial para Sarney naquele 15/03/1985, mas de qualquer forma, se
considerarmos como critério o retorno de um civil a ocupar o cargo máximo da Nação após 21 anos,
podemos pensar que o regime militar chegava ao seu final.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Figueiredo
Segue-se uma pertinente descrição sobre a figura do general-presidente
Figueiredo e do seu governo em BARROS (1998)214
. Com as incubências
mencionadas acima, Figueiredo bem que tentou manter a imagem que os
publicitários criaram em torno dele, nos primeiros meses de seu governo. Uma de
suas mais famosas frases sobre a abertura: “Se alguém for contra, eu prendo e
arrebento.”215
Mas a duríssima realidade da situação econômica bateu à porta. Seis
anos depois, em 1985, ele deixaria o governo de forma melancólica. As finanças
nacionais estavam falidas, a maior dívida do mundo, o maior índice de inflação até
então na história brasileira, dois anos que registraram crescimento econômico
negativo e o fim, também melancólico, do próprio regime militar. Em poucos meses,
a imagem do general-presidente já estava desgastada, problemas de saúde em seu
mandato, o equilíbrio psicológico abalado, perda de popularidade e de colaboradores.
Sairia do poder pela “porta dos fundos”, de forma obscura, muito distante daquela
imagem do “presidente João” de meados de 1979.
Se a retirada de João Goulart, deposto pelo golpe de 1964, poderia ser
classificada de um “fim melancólico” e até “deprimente” para o governo Jango,
principalmente por conta da quase total ausência de resistência ao golpe, por parte
dos militares fiéis a Goulart ou dos setores da esquerda que vinham mais mobilizados
pelas reformas, o final do governo de Figueiredo e do próprio regime militar não foi
muito diferente em termos de “deprimência”. Claro que o general Figueiredo não foi
deposto como ocorrera com Jango. Mas se a “saída dos fundos” para Goulart foi o
214
BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 95.
215 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 268.
290
Uruguai. Para João Figueiredo, foi pelos “fundos” do ambiente palaciano rumo ao
obscurantismo.
O problema é que Jango não nos deixou tantos legados e heranças porque
simplesmente “não teve tempo” para viabilizar, costurar sólidos compromissos
políticos e implantar efetivamente o seu programa reformista. Já os militares, apesar
de saírem da “luz dos holofotes” em baixa, com os tempos do “milagre econômico”
cada vez mais para trás, não foram para o exílio, somente voltaram aos quartéis e não
responderiam pelos seus atos repressivos ou por terem patrocinado grupos que
atuaram na repressão. Mais ainda, devido ao grande período de tempo -21 anos - os
legados e as heranças dos militares estão à nossa volta até hoje – na segurança
pública, na educação básica, no ensino superior, nos aspectos monetários e
financeiros, desigualdades sociais, conflitos de terra, redes de transportes, de
comunicações, urbana, elétrica, etc.
A equipe ministerial conservaria muitos dos nomes das quatro gestões
anteriores como Mário Henrique Simonsen como ministro do Planejamento; Mário
Andreazza, no do Interior, que mantinha ligações com os grandes empreiteiros, para
financiar grandes obras públicas; Delfim Neto, (estranhamente) na pasta da
Agricultura; e Karlos Rischbieter, na Fazenda. E logo de início surgiriam
divergências na equipe ministerial em que Simonsen defendia o combate à inflação
com restrições aos empréstimos externos, enquanto Delfim e Andreazza primavam
pelo desenvolvimento sem preocupações de se conter a inflação.
O ano de 1979 seria marcado por diversas greves, a maior delas no ABC,
liderada por Luís Inácio "Lula" da Silva, enfrentando as violentas ações da polícia
paulista orientadas pelo governador Paulo Maluf, aliado da "linha-dura" militar.
A greve dos metalúrgicos, iniciada em São Bernardo do Campo, espalhou-se
pelo interior paulista – Campinas, Jundiaí e São José dos Campos. Apenas oito dias
após a posse do novo presidente da República, em 23 de março, o ministro do
Trabalho – Murilo Macedo – decretou intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC, destituindo suas lideranças. Mas a greve prosseguiu, por conta do apoio dado
pela Igreja Católica e de pelo menos parte da sociedade civil paulista. Com
realização de um grande ato público em São Bernardo, no dia 1º de maio, e de uma
missa campal também. Para completar o Dia do Trabalho, os oradores não perderam
291
a oportunidade de festejar a morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury (por
afogamento em Ilhabela, litoral de São Paulo). Ao que se parece, a morte do
delegado Fleury foi para evitar futuros aborrecimentos à algumas das figuras
importantes do Estado autoritário e do aparato repressivo. Fleury seria um “arquivo
ambulante” que, obviamente, sabia demais e foi eliminado. Quanto à greve, ela
chegaria ao fim em 13 de maio. Os ganhos econômicos dos metalúrgicos podem não
ter sido os almejados, porém a greve consolidou de vez a liderança de Luís Inácio
Lula da Silva.
Somente nos primeiros sete meses de governo seriam 203 greves. Três vezes
mais do que em todo o governo Goulart (66 greves).216
O governo recorreu até ao
arcabouço jurídico que vinha do Estado Novo para tentar por um freio a esta onda
grevista, intervindo em diversos sindicatos. Mas as reivindicações prevaleceram.
Em 30 de outubro, começou a greve dos metalúrgicos de São Paulo, o maior
sindicato do Brasil, cujo líder, desde 1965, era Joaquim dos Santos Andrade, o
“Joaquinzão” – símbolo do sindicalismo conservador e moderado. Joaquim só sairia
da entidade em 1987.
Com o AI-5 revogado. O tema da anistia ganha a atenção. Sinais da abertura e
da liberalização no horizonte. Esse clima era reforçado pela morte do delegado
Fleury. Em Salvador, realizou-se no mesmo mês de maio o Congresso da UNE, em
Salvador. E não houve repressão, pela primeira vez desde 1964. A legislação
repressiva voltada contra o movimento estudantil já havia sido revogada.
O tema da anistia era controverso, mas teria que ser enfrentado pelo governo,
para viabilizar a transição democrática. O governo enviou um projeto que excluía
cerca de duas centenas de brasileiros condenados por atos terroristas. A emenda do
deputado arenista, Djalma Marinho, tornando a anistia ampla, geral e irrestrita foi
derrotada por apenas cinco votos no Congresso Nacional (206 a 201), em 22 de
agosto de 1979. Seis dias depois, o presidente Figueiredo sancionaria a Lei nº 6.683,
que concedia a 48º anistia da nossa história.
O desafio colocado depois foi a reintegração dos atingidos pelos atos de
exceção. 1261 militares; 160 professores (22, só da Universidade de São Paulo).
216 Id., Ibid., p.272.
292
Sobre mortos e desaparecidos o problema existe até aos dias atuais. A anistia acabou
não sendo ampla porque não beneficiava guerrilheiros que se envolveram nas lutas
armadas e proibia qualquer investigação dos órgãos de segurança implicados em
violências, torturas e nos desaparecimentos.
Um total de 53 presos foram libertos das prisões em seis estados; São Paulo,
Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia e Pernambuco.217
Milhares de
exilados começaram a regressar ao país. Eram aguardados os retornos de Leonel
Brizola, que do exterior já articulava a formação de um novo partido. Miguel Arraes
e Luís Carlos Prestes também retornaram ao Brasil. Com as chegadas do ex-exilados,
logo viriam a se aflorar as divergências políticas entre eles.
Numa complicada trama política, com Golbery à frente, visando reabilitar a
imagem dos militares, foi reimplantado o pluripartidarismo em novembro de 1979.
No dia 30, após três meses da Lei da Anistia, a reforma política era aprovada pela Lei
nº 6.767, sancionada pelo presidente em 20 de dezembro. Abria-se o caminho para a
reorganização partidária e o fim do bipartidarismo, imposto em 1965.
O objetivo primordial do governo com o retorno ao pluripartidarismo era o de
manter intacto o bloco governista/arenista e dividir o MDB que, ao ser fracionado,
poderia originar uma oposição bastante moderada e confiável. Também era
importante isolar as oposições mais fortes em um ou dois partidos e se evitar a
criação de partidos nanicos.
Da Arena surge o PDS (Partido Democrático Social). Oficializado a 31 de
janeiro de 1980, era o herdeiro da antiga Arena e contava com alguns quadros do
MDB. O governador paulista, Paulo Maluf, conseguiu a adesão de vários deputados
oposicionistas no processo de reorganização do partido governista.
A maior parte do MDB se reagrupa no PMDB (Partido do Movimento
Democrático Brasileiro). Ulysses Guimarães tentou manter o partido unido evitando
a sua fragmentação. Naquele momento, as intenções de se criar um partido seguindo
o viés da social-democracia européia não deram certo. O PMDB ainda continuaria
217 Id., Ibid., p.271.
293
unido e com força suficiente para se colocar como o principal partido político após o
fim do regime militar. Somente, em 1988, por conta de divergências com o então
governador paulista, Orestes Quércia, muitos dos quadros que estavam no PMDB –
como Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique Cardoso –
fundariam o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).
São criados também o PDT (Partido Democrático Trabalhista), fundado por
Brizola, com um perfil semelhante ao PTB dos anos 1950 na velha mística populista.
O novo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) ficaria com a deputada direitista Ivete
Vargas, sobrinha de Getúlio.
As lideranças conservadoras do anterior MDB, como Tancredo Neves, os
dissidentes da Arena e veteranos golpistas como Magalhães Pinto criaram o PP
(Partido Popular) que, por ser mais moderado, poderia ser um ponto importante para
o governo dentro da distensão. Primeiro partido saído do MDB, o PP (Partido
Popular), contava com a liderança de duas figuras políticas antigas de Minas Gerais -
Tancredo Neves e Magalhães Pinto - o primeiro foi do PSD, e o segundo da UDN,
tendo se enfrentado nas eleições para o governo mineiro, em 1960, com vitória do
udenista. O PP era forte não só em Minas, como também no Rio de Janeiro, por
conta da adesão do governador Chagas Freitas. Contava ainda com quadros tanto da
Arena, como do MDB.
O PT (Partido dos Trabalhadores) seria o único partido originado da base
popular, tendo Lula como seu presidente. Resultado de uma união entre os
sindicalistas da nova geração, militantes das comunidades eclesiais de base,
remanescentes da luta armada, intelectuais, estudantes e agrupamentos trotskistas. O
PT defendia um programa socialista e uma organização interna que estimulava a
participação dos seus afiliados nos órgãos decisórios.
O PCB (Partido Comunista Brasileiro) e o PC do B (Partido Comunista do
Brasil), por não terem condições de se reorganizarem como partidos efetivamente
legalizados, por conta da legislação existente, optaram em permanecer dentro do
PMDB.
A situação econômica do país só se agravava. Em agosto de 1979, Mário
Henrique Simonsen, ministro do Planejamento e homem forte da área econômica
294
pediu demissão. Não obteve êxito em frear os gastos públicos, reequilibrar as contas
governamentais e combater a inflação desaquecendo a economia. Para o seu lugar,
foi nomeado Delfim Netto, que optou por um discurso altamente otimista e de
desenvolvimentismo, vislumbrando um novo “milagre econômico”. Nomeando
pessoal de sua confiança, Delfim foi assumindo a primazia da área econômica,
isolando o ministro da Fazenda, Karlos Rischbieter. Mas 1979 não era 1967.
Os preços não paravam de subir e crescia a insatisfação popular. Apesar de
tudo, o PIB brasileiro cresceu 6,8% em 1979. No entanto, a taxa de inflação atingiu
77%.
Neste novo cenário político, o governo modificaria a legislação eleitoral
visando beneficiar o PDS nas eleições de 1982. E principalmente de olho no Colégio
Eleitoral de 1985, para a sucessão de Figueiredo.
O otimismo com a abertura se defrontava com o temor da contenção das
reivindicações democráticas. O governo sempre recorria à Lei de Segurança
Nacional. Com muitos sindicatos sob intervenção, muitos dos líderes sindicais se
reuniam nas igrejas. O presidente Figueiredo chegou a acusar o cardeal dom Paulo
Evaristo Arns de incitar os grevistas, aumentando de novo a tensão Estado x Igreja.
Para incrementar este quadro de apreensão sobre os rumos e o futuro da
abertura, vários atentados, vinculados à “linha dura”, foram realizados contra
advogados que se destacaram na defesa de presos políticos e que exerciam mandatos
parlamentares. Bancas de jornais, que vendiam publicações independentes, foram
atacadas. Em 27 de agosto de 1980, ocorreu o assassinato de Lyda Monteiro, na sede
da OAB, no Rio de Janeiro. Lyda era secretária do então presidente da entidade
Seabra Fagundes e morreu ao abrir uma correspondência que continha uma bomba
sendo que a vítima nem era militante, chocando o país.
O ano de 1980 se encerra neste paradigma: A abertura versus as ações do
governo recorrendo à legislação autoritária, agravada pelas ações terroristas da “linha
dura”. O restabelecimento das eleições diretas para governadores estaduais e o fim da
eleição indireta para um terço do Senado, cristalizando um avanço democrático
promissor versus os impasses gerado pelos movimentos grevistas e os sérios
problemas econômicos.
295
O PIB cresceu 9,2 % em 1980, número assombroso até para os dias atuais (em
1963, ainda no período de Jango, o PIB brasileiro crescera apenas 0,6%). Mas a
inflação chegou aos 110,2%, em 1980 (uma cifra inflacionária bem acima da maior
alta do governo Jango - 79,92% em 1963).218
E lembremo-nos que a crise econômica
e a alta inflacionária estiveram dentre os vários motivos que levaram à queda de João
Goulart. Isto poderia ser tema de uma reflexão.
Na esteira pela aceleração da abertura/descompressão do regime almejada pela
sociedade e a contrapressão de setores reacionários identificados com os “porões” do
regime. Acontece, em 30 de abril de 1981, o atentado ao pavilhão do Riocentro.
Dois agentes do Doi-Codi carioca pretendiam um atentado no ginásio do
Riocentro, durante um show de comemoração ao 1º de maio, e culpar grupos
guerrilheiros. No entanto a bomba explodiu em um carro estacionado matando um
dos agentes, - o sargento Guilherme - e ferindo outro, o capitão Wílson. A intenção
para esse atentado, planejado por militares de extrema direita, era a explosão de
várias bombas durante o show, levando os espectadores a entrarem em pânico. As
investigações não produziram resultados e punições efetivas. Inocentado, o capitão
Wilson seria promovido. 219
Pressionado e até acuado, Figueiredo contemporizou com as Forças Armadas e
com o resultado do IPM (Inquérito Policial Militar). A corporação não queria que a
discussão viesse a público e Figueiredo se deixou levar pela pressão dos quartéis.
Conforme o IPM, esquerdistas teriam colocado as bombas no veículo Puma, dirigido
pelo capitão Wilson. Os dois militares - o sargento e o capitão foram vítimas de uma
armadilha. Difícil de acreditar, mas o governo “abafou” o caso. Conforme BARROS
(1998), dez anos depois o general Figueiredo comentaria: “dizem que foi o SNI, mas
o Riocentro foi coisa do CIE. Foi coisa de sargento, tenentinho, no máximo,
capitão.”220
Entretanto, em maio de 1981, Figueiredo, conforme VILLA (2014),221
218
Fonte; FGV/IBGE in: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.172
219 GRAEL, Dickson M. In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit.p.283.
220 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 102.
296
até teria chegado a chorar, demonstrando forte descontrole emocional, ao saber do
apoio que estava recebendo de parlamentares de todos os partidos, em diversos
pronunciamentos no Senado, para combater o terrorismo. Assim, Figueiredo teria
recebido o relato do líder do PDS no Senado e caiu em lágrimas. Mas não fez nada
efetivamente. Manteve-se omisso diante das vontades dos quartéis e aos setores
“duros” do regime. Desgastado com seus opositores militares, Golbery se retira de
um governo verdadeiramente rachado, em agosto do mesmo ano. Para o grupo de
Geisel, aceitar as conclusões daquele inquérito era um retrocesso no processo de
abertura. Para Figueiredo, a demissão de Golbery deixaria o seu governo num rumo
ainda mais confuso pela perda do principal operador da abertura. O que era ruim
ficou pior, porque com a morte do ministro da Justiça - Petrônio Portella - ocorrida
no início de 1980, o governo já perdera a sua principal figura de articulação política e
uma liderança civil de muito respaldo desde os tempos de Geisel. Portella era até
cogitado para a sucessão de Figueiredo.
Crise política e crise econômica caminhavam lado a lado, em 1981. Delfim
Netto ainda tentava exponencializar um certo otimismo , prevendo para 1982 uma
obra federal em cada município. Mas não havia mais ufanismo, propaganda política
ou algo do gênero que disfarçasse a situação econômica. O desemprego e a inflação
disparavam. O salário dos trabalhadores vinha cada vez mais defasado e os sindicatos
procuravam se organizar nacionalmente, mas havia sérias divergências entre o novo
sindicalismo, as lideranças comunistas e os antigos dirigentes sindicais.
Naquele mesmo 1981, Figueiredo sofreria um enfarte, em 18 de setembro.
Mas, ao contrário de 1969, desta vez o vice-presidente, o civil Aureliano Chaves
assume a Presidência. Fato histórico já ocorrera antes. Em 6 de novembro de 1979,
em viagem oficial à Venezuela, Aureliano já assumira interinamente a Presidência, o
que não ocorria desde 1964. Oriundo de Minas Gerais, assim como Tancredo e
Magalhães Pinto, Aureliano aproveitou o seu período como presidente interino para
viajar pelo país, articular conversações políticas com oposicionistas e estabelecer um
221 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 284.
297
ritmo administrativo mais intenso, ao contrário do que vinha fazendo Figueiredo
antes.
Preocupado com a influência da crise econômica nas eleições a serem
realizadas em 1982, o governo encaminhou novas regras eleitorais. Entre elas, a
vinculação de voto. O eleitor deveria escolher – para vereador e prefeito (nas cidades
com pleitos municipais), e para deputado estadual, governador, deputado federal e
senador – candidatos do mesmo partido.
Os pequenos partidos ficaram seriamente prejudicados porque ainda não
estavam devidamente estruturados nos principais municípios de cada estado. A
intenção óbvia era favorecer o PDS. E, num plano secundário, o PMDB. Com
dificuldades de se organizar desta forma, o PP começou a negociar a sua
incorporação ao PMDB. Esta junção do PP ao PMDB teve um efeito negativo para o
governo que objetivava em dividir as oposições, mas acabou agregando-as com o
voto vinculado, nesse caso.
O ano de 1981 não poderia fechar pior na economia. O PIB decresceu 4,3%, o
que não ocorria há mais de meio século. A média mundial foi de crescimento
positivo de 2,2%. O setor industrial encolheu 5,5%. A inflação, de 95,2% superara a
marca de 1964 (92,1%).222
A dívida externa já ultrapassara os US$ 70 bilhões de
dólares. O crescimento negativo do PIB seria uma fonte de preocupações quanto ao
desempenho nas eleições de 1982. A classe média, em 1981, perdera 15% de seu
poder de compra.223
222 Id., Ibid., p.289.
223 Id., Ibid., p.290.
298
Charge da época do governo Figueiredo, relacionada à difícil situação das camadas menos
favorecidas da sociedade brasileira. Esta charge foi a vencedora do VI Salão Internacional de Humor
de Piracicaba. Data: 1979. Fonte: GAUDENCI JÚNIOR, Heitor. Piracicaba 30 anos de humor.
Fonte:
http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/galerias/imagem/0000001344/md.000003
1422.jpg
Em São Paulo, desenhava-se uma polarização entre o PDS e o PMDB. Este
último lançou uma chapa com Franco Montoro, para governador; e Orestes Quércia,
como vice. O PDS lançou Reinaldo de Barros, prefeito da capital paulista. Antes
mesmo do lançamento de suas candidaturas, Montoro e Barros participaram de um
debate, transmitido pela televisão, o que não ocorria em São Paulo há duas décadas.
Em Minas Gerais também haveria uma polarização, ao velho estilo “UDN-
PSD”. O PDS lançou Eliseu Resende, presidente do Departamento Nacional de
Estradas de Rodagem; o PMDB contaria com o senador Tancredo Neves.
No Rio de Janeiro, único estado governado pelo PMDB, Chagas Freitas lança
pelo partido o deputado federal, Miro Teixeira. O PDS entra com Moreira Franco,
ex-MDB. E também havia Leonel Brizola do PDT, aquele que o regime considerava
como seu principal adversário.
299
No Nordeste, assolado pela pior seca do século XX, o governo esperava por
vitórias mais fáceis até porque votar no PDS representaria a continuidade das frentes
de trabalho no combate à seca. Votar no PMDB representaria, ao contrário, o corte
das verbas federais para o combate ao flagelo da seca. Era o coronelismo falando
mais alto e milhões de sertanejos lutando por sua sobrevivência.224
A eleição era decisiva para o regime. Era uma etapa importantíssima da
abertura, gestada desde a “distensão” de Geisel. Mas era primordial assegurar a
maioria dos representantes no Colégio Eleitoral para a sucessão de Figueiredo.
Com vistas a isso, o governo conseguiu a aprovação do chamado “Emendão”
em junho de 1982 que, entre outras coisas, colocou como limite máximo às bancadas
estaduais, 55 representantes para a Câmara Federal; e ampliou de dois para quatro o
número de deputados dos territórios federais. De acordo com SALLUM Jr.(1996) (in:
VILLA, 2014, pag.293), o regime já encontrava dificuldades em conduzir uma
liberalização controlada. Havia contradições internas no interior da estrutura
governamental. Forças políticas novas tomavam impulso junto com as mudanças da
sociedade e o regime militar não tinha mais como gerenciar ou se reciclar face aos
novos cenários e atores que se apresentavam no horizonte político nacional.
Depois de 17 anos sem ocorrer eleições diretas para os governos estaduais, o
interesse popular pelo pleito de novembro de 1982 era obviamente imenso.
O PDS venceu nos nove estados do Nordeste. No Sudeste, venceu o PMDB
com Tancredo Neves, em Minas Gerais; e Franco Montoro, em São Paulo. No Rio de
Janeiro, Leonel Brizola venceu por uma pequena margem de 3%, aproveitando-se da
sua oratória e da imagem de perseguido pelo regime militar.
As oposições avançariam nas eleições de 1982 para deputados federais e
estaduais, senadores, governadores, prefeitos e vereadores. A vinculação de votos,
em candidatos de um mesmo partido, foi uma das manobras do governo para
beneficiar o PDS, mas o grande beneficiado seria o PMDB, que agora contava com
Tancredo Neves (que descontente com a vinculação de votos, incorporara o PP ao
224 Id., Ibid., p.290.
300
PMDB antes das eleições). O PMDB elegeu nove governadores em estados
fundamentais e, no Rio de Janeiro, sairia vitorioso o velho populismo com Leonel
Brizola.
Apesar disso, o PDS vencera as eleições para 12 governos estaduais e
conseguiu assegurar uma maioria no Congresso Nacional. A vinculação de votos
prejudicaria o PT que elegeu somente 8 deputados federais (seis deles por São
Paulo).
O ano de 1982 se encerraria com uma situação sombria na economia. Em
setembro, o México declarara a moratória de sua dívida externa. Especulava-se que o
Brasil iria pelo mesmo caminho. O PIB brasileiro em 1982 cresceu pouco, mas
cresceu: 0,8%. No entanto a inflação praticamente atingiu os três dígitos: 99,7%.
Com uma dívida externa em US$ 85,4 bilhões, o Brasil solicita formalmente um
programa de ajuda ao FMI (Fundo Monetário Internacional).
Em março de 1982, entrara em funcionamento o reator da Usina Nuclear de
Angra I, iniciando o processo de fissão nuclear. O governo paulista tinha projetos
para a construção de mais um complexo de usinas nucleares, no litoral sul do estado,
entre Peruíbe e Iguape, na região da Juréia. Porém, a situação de crise econômica
levaria ao cancelamento do início da construção de uma usina no litoral sul paulista.
No plano econômico, o ministro do Planejamento Delfim Neto, não podia mais
esconder a realidade, como nos tempos de Médici. Apesar de apresentar o III PND
(Plano Nacional de Desenvolvimento), Delfim começaria a admitir a possibilidade de
recessão com restrições aos investimentos. O Brasil estava na sua pior crise
econômica até então, numa somatória que abrangia a dívida externa, déficit na
balança de pagamentos, inflação e desemprego. O Brasil vivia, na verdade, uma
recessão no período de 1981-1983. Estimava-se o desemprego em torno de 7 a 8% da
PEA (População Economicamente Ativa) brasileira - cerca de 3,6 milhões de
desempregados. A classe média começava a perder empregos e sofria também com a
diminuição de seus salários com queda do seu nível de vida, isto sem se mencionar as
classes mais baixas da população. Em 1982, o Brasil ainda passou por um momento
de investimentos e absorção da mão-de-obra (que explicaria em parte o pálido
crescimento de 0,8% no PIB).
301
Entretanto, em 1983, a inflação chegaria aos 211% e o crescimento negativo do
PIB foi da ordem de 2,9% (contra uma média de crescimento positivo de 3% da
economia mundial). Revelaram-se desastrosas as intervenções do governo no
processo inflacionário. Se Delfim Netto usufruiu de elogios e colheu muitos dos
méritos pelo “milagre” da primeira metade da década de 1970, desta vez não
conseguiria fazer uma manobra bem-sucedida na economia como ocorrera a partir de
1967, quando o Brasil saiu da recessão dos tempos de Castelo Branco em direção ao
ápice do crescimento e do ufanismo econômico. Caía por terra a utopia do "Brasil
Potência" dos anos 70.225
Para completar, a indústria encolheu, em média, 8%. A
dívida externa caminhava rumo aos US$100 bilhões de dólares (mais precisamente
era de US$ 93,7 bilhões de dólares).
Charge sobre Delfim Netto – Charge de Ziraldo (pág.64 do arquivo Governo Castelo Branco)
Fonte : http://mestresdahistoria.blogspot.com.br/2011/10/confira-correcao-da-prova-de-historia.html.
E, em 1982, não chegaria o título da Copa do Mundo, disputada na Espanha,
para os brasileiros festejarem como os campeões, apesar da seleção brasileira ter
encantado o mundo naquela Copa.
225 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 103-104.
302
Em 1983, com o desgaste econômico, se iniciaria a questão da sucessão
presidencial de Figueiredo. Os principais nomes governistas eram o de Mário
Andreazza, o preferido entre os adeptos do regime; o de Paulo Maluf, ex-governador
de São Paulo; seguidos um pouco mais ao longe pelo vice-presidente Aureliano
Chaves. Não faltavam propostas. Mário Andreazza, ministro próximo a Figueiredo,
ensaiou a ideia da reeleição, mas o presidente recusou tal proposta. O governador do
Rio de Janeiro, Leonel Brizola, pensava em estender o mandato de Figueiredo por
mais dois anos, com o compromisso de eleições diretas para 1986, quando ele
próprio poderia ser candidato. Tancredo Neves, recém-empossado governador de
Minas Gerais, também se articulava para a sucessão presidencial.
Greves se multiplicaram pelo país, em 1983. Saques a supermercados também
ocorreram. Penúria econômica, graves dificuldades sociais, mas avanços em outras
áreas. Dentro deste clima de abertura política, em agosto daquele ano, era fundada a
CUT (Central Única dos Trabalhadores), reunindo propostas de aprofundamento das
lutas políticas pela melhoria das condições de vida dos assalariados. De outro lado,
as tradicionais lideranças sindicais, como o “Joaquinzão”, do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo, se reuniram na CGT (Central Geral dos Trabalhadores),
consolidando-se a reorganização do movimento operário-sindical.
Tratando de seus problemas do coração nos Estados Unidos, Figueiredo afasta-
se novamente da Presidência da República, em julho de 1983. Mais uma vez, o vice
Aureliano Chaves assume interinamente o cargo. A disposição de Aureliano para o
trabalho, o tato administrativo e as facilidades de articulação política, em
contraposição ao general-presidente cada vez mais desgostoso da política e não
muito afeito às questões administrativas, gerariam um certo “mal-estar”, com
Figueiredo se indispondo várias vezes com o seu vice.
O governo federal, diante de um cenário tão complexo e novo, não estava
acostumado a lidar com a oposição no Congresso e nas ruas. O Congresso já não era
mais a personagem subserviente dos tempos de Médici. Agora, o regime teria que
saber negociar, dialogar. E assuntos, como a política salarial, eram espinhosos. De
um lado, os trabalhadores reivindicando melhores salários e a classe média também
sofrendo com o achatamento salarial; de outro a “receita” de austeridade prescrita
pelo FMI, como condição para receber os recursos do Fundo.
303
O governo, seguindo as recomendações do FMI, reduziu o crédito. Os
governos estaduais não contavam com recursos suficientes em seus caixas. As
demandas sociais não eram atendidas, levando também os governadores da oposição
à baixos índices de popularidade, caso dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio
de Janeiro.
3.5.1- “Diretas-Já” e Colégio Eleitoral. O Brasil entre a
abertura e a redemocratização
O ano de 1984 se iniciava com a já habitual e triste rotina dos anos
imediatamente anteriores: crise econômica de mãos dadas à crise política.
Figueiredo, ao longo de seu governo foi se desinteressando pela política e
obviamente não teve a capacidade de coordenar a sua sucessão. O bloco governista
vinha rachado e isso reduzia o leque de ações para o presidente.
Desde 1979, o tema da sucessão presidencial era sussurrado nos corredores do
poder e no seio das lideranças oposicionistas. Afinal para onde caminharia a
“distensão” que deflagrou a abertura do regime, especialmente a partir da reta final
do governo Geisel? A “linha dura” não deixou de sonhar com algum general mais
truculento, mas o esgotamento e desgaste do regime inviabilizaria uma solução
“fardada”. Na metade de 1983, Mário Andreazza, ministro do Interior, aparecia à
frente entre os adeptos do regime, nas convenções do PDS. O segundo colocado era
Paulo Maluf, ex-governador paulista que, de olho no Colégio Eleitoral, disputara e se
elegera deputado federal pelo PDS. Em terceiro vinha o vice-presidente, Aureliano
Chaves.
Em março de 1983, o deputado Dante de Oliveira propôs uma emenda de
eleições diretas para presidente da República que não teve grande repercussão,
naquele instante. No entanto, a idéia iria atrair diversos setores sociais nos meses
seguintes resultando na maior mobilização popular já ocorrida no Brasil - a
campanha das "Diretas-Já". Em março o cardeal Arns e o secretário-geral da CNBB,
Dom Ivo Lorscheider, manifestaram total apoio ao movimento. Em novembro,
304
praticamente todos os segmentos da sociedade não comprometidos diretamente com
o regime militar estariam reunidos e coordenados por um comitê suprapartidário
formado pelo PT, PTB, PDT e PMDB.
As “Diretas-Já” sacudiria o país entre novembro de 1983 a abril de 1984.
Naquele novembro, a primeira manifestação pública ocorreu na Praça Charles Miller,
em São Paulo. Reuniu 10 mil pessoas tendo ficado restrito ao PT e às entidades
ligadas ao mesmo partido.
Em 12 de janeiro de 1984, realizou-se o lançamento da campanha pelas
eleições diretas para presidente, em Curitiba. O comício contou com 60 mil pessoas.
Em 25 de janeiro, mais de 300 mil pessoas compareceram à Praça da Sé, em São
Paulo. O ato teve enorme repercussão pelo país. Dali em diante, vários comícios
ocorreriam pelo Barsil contando com a participação de todos os partidos
oposicionistas, juntos, numa atmosfera de raríssima unidade.
O governo considerava a campanha pelas diretas uma forma de emparedar e
inibir os membros do Colégio Eleitoral. O PDS se encontrava dividido, dentro do
partido havia uma facção “Pró-Diretas”. Por outro lado, Paulo Maluf criticava
severamente os comícios, de olho no lançamento de sua candidatura no Colégio
Eleitoral, ignorava também a necessidade de um consenso dentro do PDS.
Os comícios, entre 25 de janeiro a 25 de abril de 1984, foram realizados em 50
cidades. O amarelo era a cor da campanha. Dos líderes oposicionistas destacaram-se
Ulysses Guimarães (conhecido como o "Senhor Diretas"), Lula, vários artistas,
intelectuais e até parlamentares e governadores do PDS, como Espiridião Amin, de
Santa Catarina. Tancredo Neves, governador de Minas Gerais, apesar de projetar sua
candidatura para o Colégio Eleitoral, também incentivaria bastante o movimento
pelas diretas.
O governo encontrava-se sem reação e surpreso diante do movimento em que a
sociedade civil pressionaria o Estado, fortalecendo assim a luta pela democracia e
levando o governo a perder o apoio até da Rede Globo, abalando a seriedade das
Forças Armadas. Na verdade, a “Diretas-Já” se constituiu num esforço de
redemocratização, por parte da população, buscando-se a transferência de poder do
Estado autoritário para a sociedade e os partidos políticos.
305
O encerramento da campanha se deu através da realização de dois
megacomícios, os maiores da história nacional. O do Rio de Janeiro, na Cinelândia,
reuniu cerca de 1 milhão de participantes. O de São Paulo, no Vale do Anhangabaú,
reuniria aproximadamente 1,2 milhão de pessoas.
Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio “Lula” da Silva, dividindo o mesmo espaço, em 1983,
em manifestação pelas eleições diretas para presidente, a campanha das “Diretas-Já”. Ambos
estiveram do mesmo lado, contra o regime militar. Futuros presidentes do país, Fernando Henrique
(PSDB) derrotaria Lula (PT) nas eleições presidenciais de 1994, e novamente em 1998, se reelegendo
para o cargo. Lula daria o troco, derrotando em 2002 o candidato apoiado por FHC, José Serra
(PSDB). Em 2006, Lula se reelegeria presidente derrotando Geraldo Alckmin (PSDB), ex e atual
governador de São Paulo. Na sequência Lula lançaria para a sua sucessão a ex-ministra Dilma Roussef
(PT), para o pleito presidencial de 2010 (que estivera presa na época do regime militar). Dilma
derrotou José Serra em 2010 e se reelegeria presidente nas eleições de 2014 derrotando o ex-
governador e atual senador mineiro, neto de Tancredo, Aécio Neves (PSDB).
Fonte: http://maristelafarias6.blogspot.com.br/2014/03/diretas-ja-queremos-votar-para.html
306
Manifestação em Brasília, diante do Congresso Nacional pelas “Diretas-Já”.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1#/media/File:Diretas_J%C3%A1.jpg
Protesto pelas “Diretas-Já”, em São Paulo, 16/04/1984.
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1#/media/File:Diretas_ja_2.JPG
Nos dias que antecederam a votação, o governo federal decretou medidas de
emergência no Distrito Federal e em mais dez municípios de Goiás. Era uma forma
de impedir manifestações públicas no dia da votação da emenda. As tropas das
Forças Armadas estavam nas ruas.
307
A Emenda Dante de Oliveira foi votada em 25 de abril de 1984 e, apesar de
obter a maioria dos votos, não foi aprovada por falta de quórum parlamentar
(faltaram 22 votos para a aprovação). Foram 298 votos a favor da emenda e 65
contrários. Houve ausência de 112 deputados do PDS na Câmara. O quórum
necessário era de dois terços (320 votos).
A alteração deste quórum, para a aprovação de emendas constitucionais, foi
realizada naquele “Emendão” de 1982. Antes do “Pacote de abril” era de dois terços.
Com o “pacote”, em 1977, passou a ser por maioria simples. E retornou à situação
precedente em meados de 1982. Os governos militares, ao longo do regime e como
não podia deixar de ser, nunca hesitaram em promover alterações casuísticas, por
exemplo, no jogo eleitoral ou no funcionamento do Legislativo, conforme a sua
conveniência. A “Lei Falcão” serviu para atrapalhar a oposição nas eleições
municipais de 1976 e nas posteriores eleições de 1978 para cargos legislativos
federais e estaduais , estas últimas já afetadas pelo também “Pacote de abril”, face
aos resultados que o MDB obtivera nas eleições de 1974 que, por sinal,
transcorreram sem sobressaltos e manobras casuísticas porque convinha ao governo
(na época chefiado por Ernesto Geisel) “testar” o grau de legitimidade do regime
junto à população e encaminhar passos futuros para a política de “distensão” que
acabara de ser implantada.
308
Vigília popular no Rio de Janeiro, durante votação da Emenda Dante de Oliveira, ocorrida em
25/04/1984.
Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-03/12golpe-insatisfacao-com-
ditadura-eclode-nas-manifestacoes-das-diretas-ja
No início da década de 1980, à medida que o regime dava claros sinais de
esgotamento e diante do risco de perder as rédeas do processo de abertura política
que poderia se transformar numa redemocratização com resultados imprevisíveis
para o governo e as elites, o regime agiu dois anos antes das Diretas-Já através do
“Emendão” que faria a diferença naquela histórica votação da Emenda Dante de
Oliveira. O governo também tentara manobrar nas eleições de 1982 para beneficiar o
PDS através da vinculação de votos, para todos os cargos em disputa, indo para o
mesmo partido. Mas ali o regime jogou contra si próprio porque, como já apontado
antes, um partido moderadíssimo, que podia “pescar” votos do PMDB – neste caso o
PP (Partido Popular), com Tancredo Neves à frente – optou por se incorporar ao
PMDB e o efeito colateral foi um expressivo avanço das oposições nas eleições de
novembro de 1982, com o PMDB ganhando em alguns dos mais importantes
estados- São Paulo e Minas Gerais. Porém o “Emendão” de 1982 ajudaria o regime a
garantir, dois anos depois, uma abertura e transição democráticas da forma almejada,
através do Colégio Eleitoral, conseguindo frear a grande onda de redemocratização
que sacudiu o país – a campanha das “Diretas-Já”.
309
Enquanto o povo chorava nas ruas, os grupos sociais mais comprometidos com
as Diretas não tiveram força suficiente para mostrar as implicações acarretadas pela
rejeição da Emenda ao futuro do país. A mais imediata, foi o adiamento da eleição
direta para presidente da República, o que só ocorreria em 1989.
Charge de Henfil, publicada na revista ISTO É, de 25/01/1984.
Fonte: https://f5dahistoria.files.wordpress.com/2010/09/henfil_-1984.jpg
Como já assinalado, Tancredo Neves, mesmo tendo se envolvido na campanha
das “Diretas-Já”, projetava e articulava, na verdade, desde quando foi empossado
governador de Minas Gerais em 1983, a sua provável candidatura às eleições
indiretas através do Colégio Eleitoral. Tancredo não era um oposicionista radical e
intransigente, muito pelo contrário. Quatro dias antes da votação da Emenda Dante
de Oliveira, Tancredo condecorara com mais de duas centenas de Medalhas da
Inconfidência, entre outros, 43 militares, dois governadores do PMDB e dois
310
governadores do PDS. Era a cerimônia comemorativa dos 195 anos da Inconfidência
Mineira. Havia ali uma clara demonstração do caráter conciliatório e moderado de
um possível candidato à presidência da República, pelo PMDB, não disposto a um
enfrentamento ou revanchismo com relação às Forças Armadas.226
O cenário do Colégio Eleitoral era desfavorável a um candidato da oposição.
De um total de 686 componentes, o PDS tinha 358; o PMDB tinha 276; o PDT com
30; o PTB com 14; e o PT com apenas 8. Se os outros quatro partidos lançassem um
candidato de consenso, o total seria de 328 votos, 30 a menos do total de integrantes
do PDS. Assim, era necessário dividir o PDS. Caso estivesse unido, o partido
governista lançaria o sucessor de Figueiredo.227
O que dava algum alento à oposição, em especial ao PMDB, era a forte divisão
interna do PDS principalmente por conta das movimentações de Paulo Maluf. O
agora ex-governador paulista e deputado federal adotou uma política que poderia ser
considerada agressiva, ampliando a bancada do PDS com a cooptação de deputados
federais e estaduais, prefeitos e vereadores. Maluf, desde os tempos de governador
do estado de São Paulo (1979-1982) viajou pelo país, com enormes comitivas,
entregando ambulâncias a prefeitos de outros estados, condecorando e bajulando
possíveis aliados com comendas estaduais, como a Ordem do Ipiranga.228
Durante os
meses de junho, julho e agosto de 1984, Maluf suplantaria Andreazza, com
favorecimentos e dinheiro a membros do PDS. Afilhado de Costa e Silva, protegido
por Médici (que o apoiava em 1984 incondicionalmente), Maluf ao traçar esta
estratégia agressiva para se impor como o candidato do PDS à sucessão de
Figueiredo, não teria avaliado o repúdio que o governo já vinha experimentando e
tornou-se o símbolo de um regime desgastado e esgotado, repúdio este que atingiu a
sua imagem (ao ponto de Maluf ser rejeitado por praticamente toda a alta cúpula
militar) e de quebra levaria à implosão definitiva no interior do PDS.229
226 VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.308
227
Id., ibid., p. 310.
228
Id., ibid., p. 310.
229
BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 115.
311
Mario Andreazza, a princípio, contava com a maior simpatia do governo. Já
tinha sido ministro dos Transportes nos governos de Costa e Silva, e de Médici. Era
conhecido como o ministro das grandes obras públicas, como a Transamazônica e a
Ponte Rio-Niterói. No período de Figueiredo era o ministro do Interior.
Aureliano Chaves, civil e originário das Minas Gerais era um outro forte
candidato. Não no partido, nem entre os militares. Era forte na sociedade civil. Um
liberal também moderado que poderia ser uma alternativa em relação à Maluf e
Andreazza.
O PDS dividido, com nenhuma de suas facções disposta a aceitar
pacificamente a imposição de outra. O PMDB sabia que teria de negociar, mas tinha
receio de ficar com a pecha de “traidor” pelos defensores mais intransigentes das
Diretas, ficando com a imagem de um partido que pensou somente em eleger o
presidente a qualquer modo (ainda que pelo Colégio Eleitoral).
O PDT estava atrelado aos interesses de Leonel Brizola, sem dúvida, o
principal nome do partido e de olho em alguma possibilidade que pudesse vir a
beneficiar o então governador do Rio de Janeiro, como a do “mandato-tampão” e de
fazer coincidir as eleições de 1986. O PT, se for usada a expressão de Argelina
Cheibub Figueiredo, procurava a estratégia maximalista, ou seja, só a solução
“ótima” interessaria, o que seria as eleições diretas para presidente. O PT não
aceitava negociações e nem estava disposto a fazer concessões. O cálculo do Partido
dos Trabalhadores era o de colher os frutos dessa estratégia no futuro.
O presidente Figueiredo, em 2 de maio, uma semana após a votação da emenda
das Diretas, revogou as medidas de emergência adotadas antes no Distrito Federal e
em mais dez municípios goianos. Um dia depois, Figueiredo se encontrava com
Tancredo em Uberaba, se algo caminhava agora era a tese da conciliação.
Mas Tancredo Neves encontrou algumas resistências no PMDB,
principalmente por parte de Ulysses Guimarães que reforçaria a necessidade da
aprovação da instância partidária para viabilizar a candidatura de Tancredo ao
Colégio Eleitoral. Em contrapartida, outros quadros do PMDB, como o senador
Fernando Henrique Cardoso, pensavam que após a derrota da campanha das Diretas,
312
o caminho seria almejar as mudanças através do que havia de alternativa naquele
momento – o Colégio Eleitoral.
Fato significativo ocorreu em Florianópolis. Em dezembro de 1979, o
presidente Figueiredo, com ainda menos de um ano na Presidência, ainda “vendia”
aquela imagem do “presidente João”, simpático e bonachão. Mas ali na capital
catarinense, a imagem do “bom João” ruiu de vez após Figueiredo ter sido
intensamente vaiado quando caminhava ao Palácio do Governo estadual para assinar
convênios. Irritado, ao sair do Palácio para tomar um café em um bar vizinho,
resolveu partir para a luta corporal com os manifestantes, envolvendo também os
seguranças do presidente e outros acompanhantes. E Figueiredo voltou à velha
imagem fria e formal de antes. Quase cinco anos depois, é Tancredo que segue para
Florianópolis. É maio de 1984. E o governador mineiro é recebido com festa no
estado governado por Espiridião Amin,do PDS, que apoiara as Diretas e era
adversário da candidatura de Maluf. A frase de Tancredo é bastante ilustrativa sobre
a atmosfera de conciliação e de acordo que poderiam também permear pelo menos
grande parte do PMDB e importante ala do PDS:
“...devemos ir ao Colégio Eleitoral para ganhar, com a certeza da vitória. Se
isso não for feito será um crime, pois representa a entrega do poder para o senhor
Paulo Maluf.”230
Por aí, percebe-se um prenúncio do que ocorreria num futuro bem próximo. O
PMDB, com Tancredo Neves, candidato à Presidência da República pelo Colégio
Eleitoral, com apoio de dissidentes do PDS, derrotando o cada vez mais isolado
Paulo Maluf.
Porém, a oposição ainda encontrava-se dividida. Havia integrantes do próprio
PMDB que compunham o grupo “Só Diretas”. O PDT estava receoso do
fortalecimento do PMDB e Brizola não queria ter seus interesses prejudicados. O PT
não toparia de jeito nenhum participar do Colégio Eleitoral.
230 VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.317.
313
Pelo lado governista, também estava complicado. O PDS, herdeiro da Arena,
sempre vivera na esteira das vontades do Executivo federal. O partido carecia de uma
dinâmica própria e individualizada. Em junho de 1984, o que era para ser a reunião
do partido virou um pandemônio de gritos, ameaças, empurra-empurra. Resultado:
reunião não realizada e a renúncia do presidente do PDS, o senador José Sarney. Era
a divisão do PDS que poderia abrir caminho para a vitória da oposição no Colégio
Eleitoral.
O governador de São Paulo, Franco Montoro, defendia o lançamento de uma
candidatura única, no Colégio Eleitoral, que agregasse - ao mesmo tempo – além da
oposição, os quadros do PDS ligados ao regime militar que se sentiram preteridos
face às manobras de Paulo Maluf. Mas para Montoro era fundamental que a
candidatura fosse lançada por Ulysses Guimarães, que tinha enorme peso político e
seria vital para manter o PMDB unido.
Tancredo Neves, como governador de Minas Gerais, não tinha tantas
facilidades em seu estado natal no campo político. Em Minas, o PDS era forte e, no
interior do próprio PMDB, havia o senador Itamar Franco, vindo de uma geração um
pouco mais nova de políticos mineiros, e que apoiava as diretas e não a realização do
Colégio Eleitoral. Tancredo não queria se precipitar para sair candidato à Presidência
da República.
Assim, foi em São Paulo, e não em Minas, que houve um passo decisivo do
PMDB. O governador Montoro, no Palácio dos Bandeirantes, recebeu todos os
governadores da oposição, inclusive Leonel Brizola do Rio de Janeiro. No final da
mesma foi produzida uma “Declaração dos Governadores” (não assinada só por
Brizola por razões de compromissos políticos), que estabelecia um programa mínimo
para a candidatura a ser lançada. Tancredo estava disposto ao desafio.
O PDS estava irremediavelmente dividido. Sete governadores do partido que
apoiavam o nome de Mário Andreazza, descartaram o apoio à Paulo Maluf, caso ele
saísse vencedor da convenção do PDS. O presidente do partido governista que
sucedeu José Sarney foi Jorge Bornhausen (PDS-SC) por apenas alguns dias. Ele
também renunciou ao cargo. O veterano político fluminense, senador Amaral
Peixoto, assume a presidência do PDS em meio à crise que o partido atravessava. O
vice de Figueiredo, Aureliano Chaves, também engrossava a lista dos dissidentes.
314
Em 1º de julho de 1984, no encontro entre Tancredo e Aureliano, ficaria
decidido que os dissidentes indicariam o vice-presidente da chapa oposicionista. Um
dia depois Aureliano encontraria Geisel. Tudo parecia apontar para o apoio dos
dissidentes do PDS à candidatura do PMDB231
Em 3 de julho, Aureliano Chaves e
Marco Maciel abriam mão de suas candidaturas na convenção que indicaria o
candidato do PDS. A ruptura seria o surgimento da chamada Frente Liberal cujos
membros não compareceriam à convenção do PDS.
Dias depois, Geisel se encontraria com Figueiredo tentando persuadir o
presidente a coordenar a sua sucessão. No entanto, o general Figueiredo não parecia
ter tato político e continuou um tanto distante dos bastidores do jogo sucessório. O
PDS, como afilhado da antiga Arena, era um partido daqueles tempos em que a
última e decisiva palavra vinha do Executivo federal e carecia, talvez, de uma
dinâmica, de um jogo político, típicos de democracias melhor assentadas, e assim
encontrava-se sem rumo. Na verdade, a idéia de Geisel, dentro da proposta original
da “distensão” era a de fazer um presidente civil do PDS para coroar o processo de
abertura e de transição democrática. Para Geisel o candidato ideal era Aureliano,
mas seu nome já se tornara inviável e o ex-presidente tinha dúvidas quanto à opção
de apoiar Tancredo Neves.
Em 14 de julho, era formalizada a Aliança Democrática, chegava-se a um
acordo entre o PMDB e a Frente Liberal. Um dia depois, Ulysses Guimarães deu
entrevista à Folha de São Paulo, em que deixou claro que optava pelo caminho do
Colégio Eleitoral para derrotar o candidato do PDS. Ele abdicou de sua candidatura e
o PMDB rumava rumo às indiretas. O grupo “Só Diretas” do partido era derrotado. O
“Senhor Diretas” chegou a ser chamado ironicamente de “Senhor Indiretas”. A
seguir, um trecho de sua entrevista:
(...)“Nem sempre nos é permitido escolher o rumo que a nave deve tomar. Se
não conseguirmos aprovar no Congresso Nacional o restabelecimento da eleição
231 Id., Ibid., p.323.
315
direta, não teremos outro caminho a seguir senão o do Colégio Eleitoral. (...) Vamos
matar a cobra com seu próprio veneno”232
Para o PMDB, articular uma união com os dissidentes do PDS, não foi tarefa
fácil. Estes dissidentes, integrantes da Frente Liberal, tinham todo um passado
identificado ao regime militar e até com os quartéis. Tão difícil também foi a
definição do nome de José Sarney para vice-presidente na chapa de Tancredo.
A indicação de José Sarney foi muito mal recebida pela oposição. Sarney havia
feito grande parte de sua carreira política na sombra do regime militar. Quando
senador pela Arena, em agosto de 1975, Sarney se destacou na defesa do AI-5 e nas
críticas a Ulysses Guimarães (onde se cogitou até a sua cassação) devido ao fato de
Ulysses ter comparado Ernesto Geisel ao ditador Idi Amin Dada, de Uganda, na
África. Foi indicado por Figueiredo, na ocasião de sua posse em 1979, para ser
presidente da Arena e permaneceu até junho de 1984 na presidência do PDS, partido
originário da Arena. Foi publicamente contra a Emenda Dante de Oliveira pelas
“Diretas-Já”. E menos de dois meses depois, a 2 de agosto de 1984, Sarney era o
indicado para vice na chapa da Aliança Democrática.
Tancredo, de tom conservador, mas moderado e conciliatório não tinha
simpatia ou amizade por Sarney. O político mineiro fizera carreira no antigo PSD,
enquanto que o maranhense Sarney o fez na UDN. Durante o regime, Tancredo
permaneceu sempre no MDB (com breve passagem no PP). Sarney não só esteve ao
lado do regime, sempre na Arena, como foi um de seus principais líderes. Os dois, no
Senado Federal, chegaram a trocar “farpas”, em fevereiro de 1983, quando Tancredo
saía do Senado para o governo de Minas Gerais.
Ulysses e Tancredo, pelo PMDB; Aureliano e Marco Maciel, pela Frente
Liberal. Era firmado o “Compromisso com a Nação”, por parte da Aliança
Democrática defendendo: eleições diretas para todos os cargos executivos;
Assembléia Nacional Constituinte, em 1986; independências dos poderes Legislativo
e Judiciário; mas, por fim, trazia propostas vagas no campo econômico e social.233
232
Id., Ibid., p.325.
233 Id., Ibid., p.333.
316
Quatro dias após a divulgação do “Compromisso”, em 11 de agosto de 1984 é
realizada a convenção do PDS em que Paulo Maluf venceu Mário Andreazza por 493
a 350 votos. Isso acabou sendo positivo para Tancredo. O ex-governador paulista
Maluf rachara o PDS, não tinha a simpatia dos militares, não conseguiria captar
votos da oposição, contava com forte rejeição da sociedade civil e muito menos
desfrutaria do apoio do presidente Figueiredo.
Em 12 de agosto, era a vez da convenção do PMDB. Em clima de festa,
Tancredo discursou por quase uma hora. Havia ali uma platéia formada por
integrantes da Frente Liberal, bem como dos partidos de esquerda ainda abrigados no
PMDB (casos do PCB, PCdoB e do MR-8). Tancredo usaria as palavras: povo (13
vezes), liberdade, Constituição, oposição e respeito à diversidade. Tratou sobre os
direitos humanos e a necessidade de uma nova Constituição. Chamava a oposição
para uma unidade através da Frente Liberal, o PDT, o PTB e o PT234
Em seu discurso, também abordou a questão econômica. Tranquilizou credores
internacionais negando qualquer tipo de moratória e que procuraria honrar os
compromissos assumidos para o pagamento da dívida externa desde que houvesse
diálogos e negociações viáveis. Abordou os problemas sociais, enfatizando os
conflitos de terra, propondo não o radicalismo de reformas, mas o uso e o
aprimoramento da legislação já existente no Estatuto da Terra. Quanto aos
fazendeiros, a manutenção dos subsídios rurais. Defendeu a autonomia dos
sindicatos. Falou em prol do pacto social e do não revanchismo. E, por fim, reforçou
a importância das empresas estatais com a necessidade de se aprimorar o seu controle
social, mas mantendo a defesa da forte presença do Estado na economia (herança de
sua visão varguista), evitando a sua excessiva desnacionalização em nome das
privatizações.235
234 Id., Ibid., p.335-336.
235 Id., Ibid., p.336-337.
317
O discurso acalmou os setores mais duros do regime que se sentiam receosos
de que a transição democrática resultasse num período institucional marcado pelo
revanchismo, caso o PMDB galgasse à Presidência. É que na Argentina, após o fim
do regime militar portenho e a posse de Raúl Alfonsín, em 1983, foi instalada uma
comissão voltada ao assunto das pessoas desaparecidas durante o período autoritário
argentino (1976 a 1983). Ali foram elencados os crimes de sequestros, torturas,
desaparecimentos e assassinatos ocorridos naquele período, redundando na
publicação de um livro e no julgamento dos integrantes das juntas militares que
governaram a argentina naqueles tempos.236
Aqui no Brasil, procurou-se fazer da Aliança Democrática a opção para todos
os opositores e descontentes com o regime, desde os antigos aos mais recentes
adversários do Estado autoritário. Que agregasse dos mais radicais aos apoiadores de
última hora da chapa PMDB - Frente Liberal. Tancredo conseguiu envolver o PMDB
num clima de unidade, cortar as iniciativas dos grupos que ainda acreditavam nas
diretas, como o PT, o PDT e a ala “Só Diretas” do PMDB. Garantir a unidade, nesse
caso, implicaria até em evitar “anticandidaturas” ao estilo do que fora a de Ulysses
Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho no Colégio Eleitoral que elegeu Ernesto Geisel.
Foi dado sinal de que o governo Tancredo não seria um governo meramente de
transição ou “tampão”. Mas sim um mandato de quatro anos com eleições diretas
para 1988, aplacando assim a desconfiança de Leonel Brizola.
A chapa da Aliança Democrática procuraria realizar alguns atos públicos,
passeatas e comícios pelo país para conquistar mais apoio popular. Embora Tancredo
tivesse larga vantagem sobre Maluf, em pesquisa realizada pela Folha de São Paulo
em algumas capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba e
Porto Alegre), a margem de rejeição às duas candidaturas estava acima dos 20%. Em
Porto Alegre, tal rejeição era de 43,3%. Sinal de que o acordo entre o PMDB e a
Frente Liberal carecia de maior apoio popular.
Ainda havia algumas pálidas movimentações pelas eleições diretas. A Emenda
Teodoro Mendes (PMDB-SP) poderia ser votada. No entanto, o interesse parlamentar
236 Id., Ibid., p.338.
318
era praticamente inexistente. O principal argumento era de que as diretas fosse
“matéria vencida” porque a Emenda Dante de Oliveira tratara do mesmo tema, no
mesmo ano, e não havia sido aprovada. Tancredo tinha receio de que se a proposta
vingasse poderia perturbar o andamento da campanha para o Colégio Eleitoral e
agitar setores da linha dura dos militares que, volta e meia, levantavam o discurso da
“infiltração comunista e esquerdista” que ocorreria caso Tancredo vencesse.
Porém, o que é verdadeiramente lamentável, não foram as articulações políticas
em si, acatando as eleições indiretas. Foi a falta de uma reação popular efetiva à não-
aprovação da Emenda Dante de Oliveira. Os atos que o grupo das “Diretas Já”
organizariam após a derrota da Emenda foram um fracasso: em setembro de 1984, na
possibilidade (remotíssima, é verdade) da votação da Emenda Teodoro Mendes, o ato
no Largo São Francisco não reuniu mais de trezentas pessoas; na Cinelândia, no Rio
de Janeiro, não teria comparecido ninguém237
; em Belo Horizonte, um ato público
pelas Diretas não reuniu mais de 10 mil pessoas Realmente foi lamentável o
desânimo, a acomodação e a falta de mobilização popular após aquele histórico dia
de 25 de abril de 1984.
Por outro lado, o regime não tinha condições de impor um candidato militar.
Walter Pires, ministro da Guerra, não conseguiu o apoio do Alto Comando das
Forças Armadas para lançar a si próprio como candidato. Não havia uma figura da
linha dura, como o ex-ministro Sylvio Frota, nos dias de Geisel, que pudesse agregar
os ultra-reacionários do regime e importantes lideranças civis que estiveram ao lado
do Estado autoritário. Um golpe militar era improvável, não havia aquela
“atmosfera” específica que levaria à queda de Jango e ao seu isolamento, nem havia
apoio popular e da imprensa, como também o interesse político dos militares para um
golpe (como acontecera em 1964). E o próprio Ernesto Geisel, ainda tinha importante
liderança no Exército, somada ao prestígio de ex-presidente, garantindo juntamente
com o Alto Comando o respeito às regras do jogo em andamento.
Pelo contrário, na Bahia, a candidatura de Tancredo Neves ganhava um grande
reforço com o apoio da principal figura política daquele estado, Antônio Carlos
237 Id., Ibid., p.342.
319
Magalhães (o ACM). Rompera de vez com o PDS - após a não indicação de
Andreazza como candidato - e ACM juntava-se agora à Frente Liberal. Mais ainda, o
comício de Tancredo, dessa vez em Goiânia, teria reunido mais de 200 mil
pessoas238
, em setembro de 1984, ressaltando a importância de aproximar-se da
população mesmo com a eleição sendo indireta.
Tancredo Neves e José Sarney – a chapa para presidente e vice da Aliança Democrática (PMDB mais a
Frente Liberal)– em campanha antes das “indiretas” do Colégio Eleitoral de 1985. A foto
especificamente é de 1984, num momento após a não aprovação da Emenda das Diretas-Já, e antes da
eleição a ser disputada num Colégio Eleitoral com menos de 700 membros. No palanque também estão
o deputado Ulysses Guimarães (à esquerda de Sarney na foto) e o narrador esportivo Osmar Santos (à
direita de Tancredo na foto). Agência Estado.
Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/files/2012/07/Sarney-na-campanha-de-Tancredo-
1984-Foto-Agência-Estado.jpg
Ao mesmo tempo, Paulo Maluf enfrentava uma série de problemas. Na
inauguração de uma estrada em Rondônia, acompanhou o presidente Figueiredo e
238 Id., Ibid., p.345.
320
ouviu sonoras vaias. No Nordeste, apesar dos governadores pertencerem ao PDS,
somente o governador da Paraíba, Wilson Braga, esteve ao lado de Maluf. Os
demais, que apoiavam Andreazza, não apoiaram o ex-governador paulista. O apoio
de tais governadores estava vinculado ao ministro do Interior – Mário Andreazza. A
não adesão do ministro à campanha malufista prejudicou de vez as possibilidades de
Maluf no Nordeste.
O caminho para a vitória de Tancredo Neves estava pavimentado. A influência
de Geisel também pesava a favor. O Alto Comando do Exército em que parte dos
oficiais tinha sido promovida por Geisel garantiu a continuidade do processo de
abertura do presidente João Figueiredo. Já se discutia, em dezembro de 1984, a
formação da equipe ministerial de Tancredo. E não se pode deixar de mencionar - o
presidente Ronald Reagan convidara Tancredo para visitar os Estados Unidos após a
eleição.
Em setembro de 1984, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado do governo
norte-americano, visitou o Brasil. Mesmo não tendo cargo oficial naquela época, ele
ainda mantinha muitos contatos com Washington. Ele se encontrou com o presidente
Figueiredo e também com Tancredo Neves. As bravatas e ameaças dos militares
mais reacionários não surtiam mais efeito. O discurso da infiltração de comunistas e
de esquerdistas na campanha e num quase certo governo do PMDB não convencia
mais ninguém.
A candidatura de Maluf decrescia cada vez mais. Os argumentos da fidelidade
partidária para anular os votos dos dissidentes do PDS não convenceram o TSE
(Tribunal Superior Eleitoral). O voto no Colégio Eleitoral seria aberto, assim como
desejava Tancredo. Maluf perdera o apoio dos governadores do PDS, dos
parlamentares do Congresso Nacional, não teve o governo federal a seu lado e estava
sem o apoio da sociedade. Conforme BARROS (1998)239
, o político paulista que já
havia sido presidente da Caixa Econômica Federal, prefeito (nomeado) da capital
paulista, governador (indicado) de São Paulo, afilhado dos generais-presidentes:
Costa e Silva e de Médici, não teria tido a real noção da rejeição ao seu nome. Sem
contar com a cobertura de proteção dos militares, rejeitado por praticamente todo o
239 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 115
321
alto escalão dos mesmos, sem o apoio do presidente Figueiredo e de Geisel, Paulo
Maluf seguiu rumo à derrota no Colégio Eleitoral.
Mas, tudo isso não foi o fim da sua carreira política, Paulo Maluf até hoje está
presente, atualmente na Câmara Federal, como deputado, ainda que envolvido numa
série de problemas que o enquadraram na “Lei da Ficha Limpa”, ele atualmente
exerce o seu mandato. Nas eleições municipais paulistanas, em 2012, apoiou o
candidato do PT, Fernando Haddad, que sairia vitorioso. Fato notável foi a foto em
que Maluf cumprimentava o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, para oficializar
o apoio do atual PP (Partido Progressista) à candidatura petista da cidade de São
Paulo. Porém, como brasileiro tem costuma ter memória curta, se voltarmos dezoito
anos antes, Maluf, quando prefeito de São Paulo, apoiou Mário Covas (PSDB) para
governador em 1994. E em 1998, apoiou a reeleição de Fernando Henrique Cardoso
(PSDB) para a Presidência da República, chegando a declarar que se não fosse o seu
apoio, FHC (que recebera 51% dos votos) iria ao segundo turno daquelas eleições
contra Lula240
O último ano por inteiro do regime militar brasileiro foi 1984. A inflação
chegara a 223,8%, a dívida externa manteve-se na casa dos US$ 90 bilhões de
dólares. Pelo menos, o PIB havia crescido positivamente em 5,4%.
Na sequência de tantas siglas e abreviaturas que houve durante o regime
militar. Tancredo, há poucos dias do Colégio Eleitoral, criaria a Copag (Comissão do
Plano de Ação do Governo), para traçar metas e objetivos diante da situação
econômica. A comissão era muito heterogênea e encontrou dificuldade no ritmo de
seus trabalhos. Entre outros, eram membros da Copag: Celso Furtado, Hélio Beltrão,
e como coordenador-geral - o secretário paulista do Planejamento - José Serra.
Tancredo, de caráter moderado, conservador e conciliatório estabelecera
diversos acordos nos meios militares se comprometendo a impedir inquéritos sobre
desaparecimentos e corrupções do regime militar241
. Em 15 de janeiro de 1985, na
votação do Colégio Eleitoral, menos de 700 pessoas decidiram o destino de um 240
DORIA, Palmério. O Príncipe da Privataria. 1.ed. São Paulo. Geração Editorial, 2013. p. 138.
241 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 117
322
Brasil que contava, na época, mais de 133 milhões de habitantes. Dos 676 votantes:
69 senadores; 479 deputados federais; e 138 delegados das Assembléias estaduais.
Apenas nove ausências, sendo cinco do PT. Foi fácil a vitória de Tancredo sobre
Maluf (que era rejeitado, como já dito, até nos meios militares com poucas
exceções). Foram 480 à Tancredo, contra 180 para Maluf e 17 abstenções. Entre os
cinco partidos já legalizados, o PT foi o único partido que não compareceu ao
Colégio Eleitoral. Dos oito parlamentares do PT, três deles compareceram ao
Colégio Eleitoral e votaram em Tancredo Neves. E acabaram expulsos do partido.
Após a vitória, Tancredo Neves tomou a palavra. Colocou-se como o “presidente das
mudanças”. Declarou que aquela foi a última eleição indireta da história do país e
que a sua vitória era a culminação do processo da campanha pelas “Diretas-Já”.
Tratou sobre o combate à inflação, criticou a recessão como mecanismo para
combater a elevação dos preços, a necessidade de retomar o crescimento econômico
e de criar empregos. Sinalizou implicitamente para a reforma agrária, criticando que
o acesso à propriedade seja usado na manutenção de privilégios. E, num claro sinal
de mudança institucional, do fim do regime para a retomada da democracia, que “o
objetivo básico da segurança nacional é a garantia de alimento, saúde, habitação,
educação e transporte para todos os brasileiros”242
242 Trecho do discurso de Tancredo Neves, no Congresso nacional, após a sua vitória no Colégio
Eleitoral, em 15/01/1985. In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.365.
323
Capa da Revista Manchete, sobre a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (janeiro de
1985)
Fonte: https://albenisio.wordpress.com/category/noticias-e-politica/page/2/
Porém, na véspera da sua posse na Presidência da República, Tancredo Neves
seria internado e operado, primeiramente em Brasília, e depois em São Paulo, devido
a um tumor intestinal, agonizando por um pouco mais de um mês. Tancredo faleceria
em 21 de abril de 1985 sendo a sua agonia muito bem trabalhada pela televisão
influindo no emocional da população desinformada. Tomaria posse como presidente
da República o vice José Sarney, um ex-udenista que sempre fora ligado ao regime
militar. Coroava-se assim a distensão (abertura) "lenta, segura e gradual" do regime
militar, iniciada no governo Geisel. João Figueiredo sairia discretamente e Sarney
assumiria em um contexto com usos menos coercitivos e mais consensuais de
324
controles sociais e favorecimentos econômicos.243
Era o fim do regime militar de
1964 e o início da chamada "Nova República".
Capa da revista Manchete, de abril de 1985, sobre a morte de Tancredo Neves.
A capa traz entre os dizeres “O mártir da democracia”, até porque Tancredo faleceria em 21
de abril, o mesmo dia da morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mártir da
Inconfidência Mineira.
Daí levanta-se uma questão: Tancredo foi o “mártir da democracia” ou o “mártir” da
distensão/abertura do regime?
Fonte: http://memoriaviva.tumblr.com/post/21908060898/manchete-tancredo-neves-1985
243 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.120.
325
4- Modernização conservadora e centralizadora
Na América Latina, o processo de construção do Estado se deu à frente da
construção da nação. A manifestação deste processo deu-se através da formulação de
uma via autoritária para a modernidade, que foi denominada, para este trabalho, de
modernização conservadora e centralizadora, com base em Wanderley Messias da
Costa244
(2000); e em Bertha Becker & Cláudio Egler245
(1998). No Brasil, esse
processo estaria embrionado na garantia da integridade territorial da antiga colônia,
que manteve os seus limites, e não se estilhaçou numa multiplicidade de repúblicas
como na América espanhola.
A idéia de um Brasil, país de grandes proporções, dono de um inesgotável
potencial de expansão, já deve ter sido repetida e ouvida, não poucas vezes, por cada
brasileiro. Trata-se de uma imagem que verdadeiramente se arraigou entre nós e que
já vinha das gerações passadas. Desde meados do século XIX, a perspectiva da
grandeza brasileira está presente nos projetos governamentais.246
A seguir reproduz-
se um alerta do conselheiro D. Pedro Marques Alorna, a serviço do príncipe regente
D. João, em 1801, sobre a virtualidade expansiva do Brasil:
“V.A.R. tem um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora
com tanta vantagem, talvez que trema e mude de projeto, se V.A.R. o ameaçar de que
se dispõe a ser imperador naquele vasto território adonde facilmente conquistar as
Colônias Espanholas e aterrar em pouco tempo todas as Potências da Europa.
(citado por Lima Fo., 1993:30. In: DEL VECCHIO,1992. p. 1)
244
COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,
2000. O autor utiliza o termo Modernização Centralizadora, para tratar do processo de modernização
do Estado brasileiro.
245 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º
ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. Os autores utilizaram o termo Modernização Conservadora, ao
abordarem a modernização do Estado brasileiro.
246 DEL VECCHIO, Ângelo: “O golpe de março e o regime militar”. Mimeo (Ciência Política - UNESP- FLC-
Araraquara) - 1992. p. 1
326
O Brasil, contando com enorme dimensão territorial, incontrastável em relação
aos países fronteiriços e também com relação às extensões dos países europeus, tinha
nisso o mais evidente elemento da projeção de um “Brasil potência” ainda no
contexto colonial. O “gigante adormecido” pronto a despertar na América do Sul.247
Constata-se que a idéia de um Brasil “grande”, “potência”, de “gigante
adormecido” e de um “país do futuro” vem de longe. É um reflexo de uma visão
geopolítica que, na verdade, teria suas raízes gestadas ainda no período colonial.
Esse processo de construção do Estado e do território brasileiros se insere
dentro da geopolítica de lógica militar, favorecida pela grande disponibilidade de
terras para os latifúndios e pelo projeto da transferência da capital federal para o
interior do país, mais precisamente no Planalto Central, que seria uma base logística
no interior do território nacional.248
A participação dos militares no poder político se firmou através do controle
interno do território. Priorizaram o desenvolvimento dos setores de transportes e de
comunicações, como ao estenderem a rede telegráfica a fim de manterem o controle
sobre uma mesma base física do país. Os militares procuraram romper com o
isolamento do sertão, visando a exploração do território e a valorização das terras do
interior. As Forças Armadas entendiam que à elas caberiam promover a integração
territorial, pois dispunham de conhecimento técnico, já que os capitais privados
internacionais investiram, principalmente, em infraestrutura de transportes e serviços
urbanos das cidades litorâneas, enquanto que os capitais privados nacionais estavam
preocupados em investimentos com retorno a curto prazo.249
Nos dias atuais, uma enorme gama de materiais, contendo memórias, escritos
de jornalistas, cientistas políticos e historiadores, tem enriquecido os estudos
voltados aos tempos do regime militar brasileiro. Isto decorreu basicamente da
democratização de alguns dos documentos sigilosos, da abertura de arquivos e do
próprio desenvolvimento dos cursos de pós-graduação, possibilitando estudos e
análises mais completas e precisas sobre o período autoritário de 1964-1985. Antes
247
Id., Ibid., p.1
248 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p.35.
249 Id., Ibid., p.70-71.
327
havia poucos materiais disponíveis e as interpretações políticas sobre o golpe de
1964 eram mais escassas fazendo-se crescer a importância dos estudos realizados por
alguns brasilianists, como Thomas Skidmore e Alfred Stepan. Mais um outro
aspecto a se salientar: a distância temporal em relação aos eventos que são objetos
de estudo e de pesquisa pode trazer novas visões sobre os mesmos, impossíveis de
se perceber talvez pelo “calor” da ocasião ou do tempo presente.
O regime militar brasileiro de 1964 foi modernizador. Isto o distingue dos
outros regimes autoritários do Cone Sul. Ocorreu-se um desenvolvimento acelerado
da economia durante o “milagre econômico”, intensa industrialização e urbanização
da sociedade brasileira, reorganização do Estado e a emergência de uma tecnocracia
que regulou e dinamizou as forças produtivas, viabilizando a consolidação de um
capitalismo de caráter tardio.250
A modernização conservadora e centralizadora não é a única maneira -mas
sim- uma das formas de se explicar esse processo que traz, concomitantemente,
expansão e controle, sendo um conceito frequentemente utilizado na literatura
voltada ao tema do regime militar.
O conceito de modernização conservadora deriva de um estudo de Barrington
Moore Jr sobre as origens sociais da ditadura e da democracia.251
Moore queria
compreender o papel político desempenhado pelas elites agrárias na passagem da
sociedade rural para a sociedade industrial. E, na sequência, ele realizaria um estudo
comparativo entre, de um lado, as sociedades capitalistas onde se desenvolveu um
regime democrático parlamentar (casos da Inglaterra, França e Estados Unidos); e,
por outro lado, países como a Alemanha, a Rússia e o Japão, que experimentaram
uma modernização conservadora.
Estes três últimos países experimentaram uma “revolução pelo alto”. De
“cima para baixo”, em que se cristalizou uma aliança entre elites agrárias e novos
250 ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 1.ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 2014. p. 113
251 Id., Ibid., p.113.
328
atores sociais (no caso, as novas elites urbanas e industriais). Nessa aliança, os
oligarcas agrários mantiveram o controle sobre a força de trabalho rural e o uso da
terra conseguindo articular os seus objetivos aos da elite urbana dirigente. E para
garantir a existência e manutenção dessa aliança ou pacto, o autoritarismo da classe
dirigente seria peça fundamental.252
A rigor, a idéia de modernização conservadora no Brasil se aplicaria ao
surgimento da modernidade como um todo, e não só restrita ao período autoritário do
pós 1964. Abrangeria desde a Primeira República ao Estado Novo. Sua base seria
um modelo político conservador, em que nem sempre os valores democráticos foram
prioridade. Para Renato Ortiz (2014), o fato do conceito de modernização
conservadora ser bastante aplicado ao período posterior a 1964, decorreria do fato de
que houve mudanças substanciais no período, o que alguns economistas chamaram
de a “segunda revolução industrial” do Brasil, decorrente do aprofundamento das
medidas tomadas desde o governo de Juscelino Kubitschek visando à reorganização
do capitalismo brasileiro. O que o período militar trouxe foi a combinação de
repressão política com expansão econômica, ação policial com modernização do
Estado e incentivos às atividades empresariais.253
Que ocorreram mudanças substanciais durante o regime militar no Brasil não
há dúvidas. Realmente é durante o regime que a população urbana suplanta a
população rural do país; que a configuração de grandes redes nacionais - como a de
telecomunicações, a de transportes (sobretudo, pela matriz rodoviária), a de energia
elétrica, etc., irão se consolidar de vez; e algumas das grandes cidades brasileiras se
tornariam em verdadeiras metrópoles, entre algumas outras mudanças. Porém, o
ineditismo não é a marca do regime de 1964. O próprio Renato Ortiz menciona que
os militares deram continuidade em algo que vinha desde os anos de JK – a
transformação e consolidação do capitalismo brasileiro em uma nova etapa. No
próximo capítulo, onde se discutirá o pensamento geopolítico brasileiro, será visto
252 Id., Ibid., p.114.
253 Id., Ibid., p. 114.
329
que o próprio Golbery chegou a elogiar e a avaliar positivamente a conjuntura que o
Brasil experimentava durante o período de JK.
Na verdade, a meu ver, o Brasil já vinha dando passos importantíssimos em
direção à sua inserção no capitalismo mundial, desde a Revolução de 1930, com o
início da “Era Vargas” (1930-1945), algo que se torna explícito durante a ditadura
do Estado Novo varguista (1937-1945). Lembre-se que, naquela época, o Brasil
vinha se industrializando dentro de um processo comandado pelo Estado nacional,
voltado às indústrias de base. Exemplo disso, a criação da CSN (Companhia
Siderúrgica Nacional), em Volta Redonda (RJ). O período democrático de 1946,
iniciado após o fim do Estado Novo, praticamente não rompeu o processo.
Novamente com Vargas no poder, vem a criação da Petrobrás (1953) e no governo
de Juscelino, parcelas maiores da população, nas cidades, vão tendo maior acesso aos
bens de consumo duráveis, como televisores e automóveis e, ao mesmo tempo,
quilômetros de rodovias são abertas e tem-se a primeira ligação terrestre da
Amazônia com o restante do Brasil - a rodovia Belém-Brasília. Também, desde
anteriormente a 1964, o Brasil já vivenciava um processo de urbanização. Então,
reforça-se aqui que, sim, ocorreram importantes e fundamentais mudanças em nosso
país durante o Estado autoritário de 1964, mas o que se ressalta é que enorme parcela
de tais mudanças não foram inéditas.
O mérito de Moore, conforme Renato Ortiz, seria o de se desfazer a
perspectiva teórica de que a evolução dos sistemas políticos se dá de uma forma
linear, ou pré estabelecida. Isto quer dizer que, se o Brasil tomasse um determinado
rumo, ou um modelo inspirado na Europa ocidental e nos Estados Unidos, ter-se-ia
uma sociedade industrial moderna, um capitalismo maduro e democracia sólida. Mas
não é assim. De acordo com Moore haveria um hiato entre democracia e
modernidade. “Para ser preservada, a democracia necessita ser incessantemente
renovada, não basta sermos modernos.”254
254 Id., Ibid., p.116.
330
4.1- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil:
desde as suas raízes (Revolução de 1930 e Estado Novo de 1937) até a
construção de Brasília (década de 1950)
Para se tratar das heranças e legados dos governos militares de 1964 para o
Brasil, temos que não somente nos restringir ao regime iniciado em março daquele
ano, mas retrocedermos a 1930, ano da Revolução, que pôs fim à chamada República
Velha, e que conduziu Getúlio Vargas ao poder, em que permaneceria por quinze
anos consecutivos.
Basicamente, antes de 1930, a estrutura espacial do Brasil se constituía de
“arquipélagos” mercantis, formando verdadeiras “bacias de drenagens”, com
centros em grandes cidades portuárias, como na região mercantil-escravista do Rio
de Janeiro, principal área da produção cafeeira até o último quartel do século XIX.
Embora esta matriz escravista da economia do café limitasse o comércio interno
entre as regiões mercantis, vinculadas diretamente ao mercado mundial, havia o
tráfico interno de escravos e um mercado interno em potencial que gradativamente
foi sendo ocupado pela produção manufatureira e agropecuária nacionais.
Segundo FURTADO (1959)255
, na época do Império, o Brasil poderia ser
dividido em cinco grandes regiões mercantis: o Centro cafeeiro, com núcleo no Rio
de Janeiro; o Nordeste açucareiro e algodoeiro, centrado em Recife; a Bahia, como
produtora de açúcar, fumo e depois de cacau; o Sul, voltado à pecuária e fabricação
do charque; e a Amazônia que, a partir de 1870, torna-se grande exportadora de
borracha natural, centrada em Belém e seguida por Manaus.
A conformação de um mercado nacional rompeu esta estrutura em
“arquipélago” herdada do passado agrário exportador em que parte significativa dos
produtos industrializados eram importados. A articulação regional entre as diversas
áreas produtoras do espaço nacional se deu com a expansão da cafeicultura baseada
no trabalho assalariado em São Paulo. Com o impulso da industrialização, o vetor
dinâmico da expansão territorial, ligada, sobretudo, à fronteira agrícola, passou a
255 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 103.
331
atender, em grande parte, às necessidades do centro industrial em expansão, no caso
a cidade de São Paulo, e não exclusivamente ao mercado externo.
Foi a partir de 1930 que iniciou-se um processo de modernização do Estado,
sem ocorrer sua democratização, e cada vez mais centralizado, combinando-se em
seu seio um autoritarismo tradicional com certas funções típicas de um Estado
capitalista (COSTA, 2000).
A modernização do Estado começa a se cristalizar com a Constituição
promulgada em 1934, atendendo às pressões constitucionalistas vindas
principalmente de São Paulo, palco da Revolução de 1932. Esta foi, conforme o
referido autor, a primeira Constituição liberal e modernizante do país, rompendo com
antigas tradições, com a instauração do voto universal e secreto (agora também para
as mulheres), a separação dos Poderes, a introdução de uma legislação trabalhista e a
promoção de reformas no Judiciário. Naquela década são também criados o
Ministério do Trabalho, da Indústria e Comércio, da Educação e Saúde, além de
assessorias técnicas permanentes para cada ministério. Também empresas foram
estatizadas (tanto nacionais como estrangeiras) e o subsolo do território nacional
passou a ser de propriedade da União.
Contudo o caráter autoritário e centralizador do aparelho estatal vão se
manifestar mais fortemente a partir do golpe de 1937, que instituiu o chamado
Estado Novo, que perduraria até 1945. Naquele regime, a vida e a sociedade
nacionais iriam girar em torno do governo central, personificado no poder Executivo,
através do agora ditador Getúlio Vargas. Para o regime de 1937, o Estado teria que
ser forte, acima das regiões, classes, partidos, etc. Busca-se a unidade nacional, a
partir da esfera central e não das partes do todo nacional, sendo isto refletido
espacialmente no território nacional através de políticas territoriais por parte do
governo central. A modernização capitalista do país ganha uma forma acelerada,
procurando impor a unidade nacional. É também a partir de 1930, mas especialmente
após 1937, que ganha impulso a era do planejamento econômico no país, com a
edição de “planos de desenvolvimento”, incluindo-se o manejo das questões
territoriais. Cita-se a criação do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
em 1942, para se desenvolver o conhecimento do território nacional, que organizou e
racionalizou o serviço de coleta dos dados estatísticos, fez o levantamento da carta
332
do Brasil ao milionésimo, dividiu o país em regiões geográficas e desenvolveu
estudos de caráter regional.
BECKER & EGLER (1998) tratam, na perspectiva da chamada economia-
mundo, do processo de inserção do Brasil no sistema capitalista mundial e
simultaneamente o individualizam como região. Os autores utilizam para o Brasil, o
conceito de semiperiferia, onde o Estado assumiu o papel de financiador como motor
do crescimento econômico e da atividade produtiva. Porém, o Estado assumiu
também o passivo da economia e se tornou um grande devedor. Esse processo de
aumento do papel do Estado na economia fez com que, a crise econômica
subseqüente, já em inícios dos anos 1980, se transformasse em crise política.
Estes referidos autores também apontam a Revolução de 1930 como o marco
da consolidação de um moderno aparelho de Estado, numa via autoritária, que mais
tarde, em 1937, se tornaria no Estado Novo. A desorganização econômica, política e
ideológica levam à centralização maior do Estado, fortalecendo seu poder de
intervenção, sem prejuízo dos grupos dominantes.
O caráter autoritário do capitalismo tardio na América Latina faz parte desse
contexto em que o Estado engajou amplos segmentos sociais em sua proposta de
desenvolvimento nacional, numa relação direta entre líderes carismáticos e o “povo”,
sem a intermediação de estruturas políticas representativas bem consolidadas. Essa
forma de exercício do poder estatal se constituiu no chamado populismo, que
corresponde às chamadas autocracias nacional-sindicalistas (RIBEIRO, 1983),
características da América Latina entre as décadas de 1930 e 1960. A
industrialização e o proletariado urbano forçaram o Estado a adotar um novo papel
nas relações capital-trabalho, pois se tornou inviável a manutenção de estruturas
políticas advindas do passado agroexportador colonial.
No Estado Novo, as políticas territoriais, por parte do governo central, vão
ganhar impulso, mas as atenções governamentais para as questões territoriais serão
mais explícitas nos anos 1950. Até então, as medidas governamentais eram apenas de
caráter pontual e emergencial.
A primeira preocupação era com a chamada “questão nordestina”, já presente
no Império quando da criação da “Comissão de Açudes” em 1881. Em 1906, os
333
órgãos deste tipo foram agrupados na “Inspetoria Federal de Obras Contra as
Secas” - o IFOCS. Em 1946, é estruturada uma autarquia especial com o objetivo de
”combater permanentemente a seca”, o DNOCS (Departamento Nacional de Obras
Contra as Secas).
A Amazônia também era alvo de preocupação governamental. Já em 1912, foi
criada a Superintendência de Defesa da Borracha (SDB), pois este era, na época, o
segundo produto em exportação, atrás apenas do café. Em 1942, a transformação
desta Superintendência no Banco de Crédito da Borracha (BCB) abriu oportunidades
para futuras ações governamentais na região amazônica, na década de 1950.
Dentro desse contexto, o vale do São Francisco também foi alvo dos interesses
governamentais, com objetivos de se estimular a agricultura comercial e de se
aproveitar o potencial hidrográfico e hidroelétrico daquele rio, complementando o
combate às secas do sertão nordestino, com a criação da CHESF (Companhia Hidro
Elétrica do São Francisco), em 1945, e o estabelecimento da VASF (Comissão do
Vale do São Francisco).
O Estado Novo trouxe a chamada “Marcha para o Oeste”, rearranjos na
divisão territorial do Brasil e a modernização econômica e política. A Marcha para o
Oeste foi uma das grandes preocupações do Estado Novo. Foram desenvolvidos
programas de colonização, como o de Ceres (no Mato Grosso), o de Goiás e, em
1943, foram criados cinco territórios federais: Amapá, Rio Branco (que se tornaria
Roraima), Guaporé (depois denominado Rondônia), Ponta Porã e Iguaçu (estes dois
últimos territórios foram extintos em 1946). A criação destes novos territórios, em
áreas fronteiriças do país, tinha a finalidade de propiciar maior segurança às
fronteiras, promover o povoamento e viabilizar uma nova divisão territorial do
Brasil.
Com o retorno de Getúlio Vargas ao governo federal (1951-1954), a questão
regional ganha maior destaque tendo como alvos o Nordeste e a Amazônia. O
Nordeste por seus problemas históricos: a seca e o atraso de seu desenvolvimento; e
a Amazônia por sua necessidade de ocupação, povoamento e valorização. Foi
naquele governo que seria criada a SPVEA (Superintendência do Plano de
Valorização Econômica da Amazônia), em 1953. A SPVEA procuraria desenvolver
uma política semelhante à que Roosevelt desenvolvera no vale do Tennesse.
334
Preocupava-se em integrar a Amazônia ao processo de desenvolvimento nacional,
com as suas riquezas e os riscos relacionados à sua pouca ocupação. Com a SPVEA
começaria a serem definidas as linhas econômicas para essa parte do território
brasileiro. Também naquele ano seria definida, por decreto-lei, a Amazônia Legal,
como área de intervenção para políticas econômico-regionais numa área de
5.057.490 Km2, mais da metade do território brasileiro. Ainda seria formulado um
primeiro Plano Quinquenal para a região que nortearia as atividades da SPVEA.
Assim teve prosseguimento o processo de modernização do Estado (em que cita-se
também a criação do BNDE, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), em
que paralelamente às políticas territoriais, a industrialização continuaria
impulsionada pelo Estado nos setores básicos da estrutura industrial, como as
indústrias pesadas.
No governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), seria elaborado o Plano de
Metas, para o período de 1957 a 1960. Houve, neste período, uma alteração da
estrutura econômica do país, nesse curto período de quatro anos. Conforme COSTA
(2000), esse Plano era voltado aos setores de ponta da estrutura industrial, mas
afetaria o conjunto produtivo do país, a partir dos setores básicos, além dos
transportes, energia e da estrutura territorial como um todo.
O setor dos transportes apresentou um crescimento notável no período, com a
constituição dos chamados “eixos viários de penetração”, como a rodovia Belém-
Brasília, buscando-se a integração norte-sul do país. As rodovias, de acordo com o
mencionado autor, tiveram um papel de “conquista interna do território”, papel este
que foi exercido pelas ferrovias nos Estados Unidos. A construção da Belém-Brasília
promoveu a interligação da Amazônia com o Sudeste-Sul do país, já que, até então,
todas as comunicações com a Amazônia eram feitas por via marítima através da
navegação de cabotagem onde Belém era a porta de entrada para a região.
O Plano de Metas trouxe efeitos à estrutura territorial nacional e se insere na
expansão capitalista do país, em sua etapa industrial, pelo fato dos capitais
precisarem se geografizar para reproduzir-se, daí a importância da reestruturação do
território, que será base para a reprodução desse capital. Com os avanços das formas
típicas do capitalismo em sua fase atual, as políticas regionais e urbanas vão aparecer
submetidas aos grandes planos nacionais de desenvolvimento. Isto quer dizer que os
335
macroplanos de desenvolvimento, que incluem as questões setoriais e regionais,
constituem-se em subestratégias de uma política econômica maior, dentro de uma
estratégia válida para o país como um todo. Nesse contexto destaca-se a criação da
SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), em dezembro de
1959, recentemente extinta, dando-se um novo tom às políticas públicas nacionais
para a região, com propostas de industrializá-la para se minimizar seu atraso
econômico em relação ao Sudeste industrializado.
A transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília concretizou-
se em 21 de abril de 1960. Este assunto merece uma certa atenção neste capítulo,
pois a construção de Brasília era a “meta-síntese” do Plano de Metas, dentro do
bojo do processo de unificação econômica do espaço geográfico nacional que se
estruturava e se consolidava no final dos anos 1950. Baseando-se em José William
Vesentini, (1986), havia a ocorrência de uma divisão inter-regional do trabalho, fruto
de uma industrialização concentrada espacialmente, cristalizando-se uma nova
regionalização com o coroamento da integração nacional, gestado a partir da
industrialização de São Paulo. Assim as regiões se estruturam assumindo o seu papel
na economia nacional, dentro de uma nova divisão territorial do trabalho. É
justamente a época em que a questão regional ganha ênfase no atraso do Nordeste em
relação ao Sudeste.
O assunto da transferência da capital têm suas raízes ainda em meados do
século XIX. VESENTINI (1986),cita o historiador Varnhagen, sócio eminente do
IHGB (Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro, criado em 1838) e também
diplomata, que teria influenciado a Comissão chefiada por Luís Cruls e os
parlamentares que colocaram, na Constituição de 1891, o artigo que trata da
mudança da capital do país para o Planalto Central. Este historiador teria fixado o
local ideal para a nova capital, uma área em Goiás onde havia as cabeceiras, quase
juntas, das bacias Amazônica, da Platina e a do São Francisco.
Com a proclamação da República, ganha força a idéia da transferência da
capital, pois o Rio de Janeiro era identificado, na época, com o governo imperial que
havia sido derrubado. Daí o dispositivo do artigo 3º da Constituição de 1891. As
ambigüidades do novo regime federativo (mais descentralizado), que perduraria pela
336
República Velha, também traz de volta o debate sobre a necessidade de se centralizar
o poder.
A “Marcha para o Oeste”, normalmente identificada com o Estado Novo,
denota a preocupação governamental de se povoar efetivamente imensas áreas do
Brasil Central e da Amazônia. A interiorização da capital federal seria então
colocada na ótica do desenvolvimento econômico do Brasil Central, procurando-se
“irradiar” o progresso.
No governo Juscelino Kubtschek, com o slogan “50 anos em 5" e o Plano de
Metas, a construção de Brasília torna-se a “meta-síntese”, dentro da já referida
estruturação do espaço geográfico nacional, na concretização de uma nova fase de
acumulação capitalista no país. Inaugurada em 1960, no final do governo JK, Brasília
simbolizaria a unificação do espaço nacional, no interior do desenvolvimento
capitalista a nível territorial e da questão regional.
A construção de Brasília é um assunto relativamente polêmico até os dias
atuais: VESENTINI (1986), assinala que a transferência da capital federal estaria
embuída no discurso geopolítico nacional. A fixação deste discurso foi no chamado
“retângulo Cruls”, demarcado na comissão chefiada por Luís Cruls, de 1892, uma
área de 14.440 Km2, que se constituiria no verdadeiro “Planalto Central”, segundo a
ótica geopolítica. Este discurso apoiava a interiorização da capital federal com base
nos seguintes argumentos: maior integração do espaço nacional; ocupação do interior
do país (a “Marcha para o Oeste”); estabelecer uma divisão territorial
(administrativa) mais racional para o país; elaborar-se uma rede de transportes densa
e eficaz, para a interiorização da economia e da população; preocupação com as
fronteiras do país; e o uso do conceito de “segurança nacional”, em que a defesa do
território seria mais facilitada no interior (embora o mundo já se encontrasse na era
atômica). O mesmo autor ainda assinala o contexto “democratizante” de 1946 com
medidas autoritárias, visando impedir o crescimento dos movimentos populares,
relacionadas às greves inúmeras que ocorreram no final do Estado Novo, dando base,
a alguns parlamentares da época, de que as grandes metrópoles (São Paulo e Rio de
Janeiro) seriam inadequadas à uma função político-administrativa. Por conseqüência,
com a transferência da capital, o Governo poderia ficar acima de “pressões sociais”.
337
Também não teria havido, na época, críticas quanto ao distanciamento da capital
federal em relação aos maiores centros de aglomeração populacional do país.
Em contrapartida, a construção de Brasília, é vista por COSTA (2000), dentro
das estratégias das mudanças territoriais em curso, como parte de um projeto
explicitamente econômico, como um “posto de vanguarda”, direcionado ao norte e a
oeste do país como um “nó” de articulação inter-regional, de onde partiriam a
abertura de vias de acesso e vias de penetração para o norte e oeste do país (a rodovia
Belém-Brasília, a Fortaleza-Brasília, a Belo Horizonte-Brasília, a Acre-Brasília e a
Goiânia-Brasília). O autor também argumenta que não há nenhuma novidade no fato
da capital de um país centralizar geograficamente a estrutura político-administrativa
nacional. Ele coloca ainda que o Estado brasileiro sempre foi autoritário na História,
independentemente da localização da sua capital, assinalando que o golpe de 1964
teria também ocorrido se a capital fosse o Rio de Janeiro. Também o autor discorda
de que Brasília apenas distanciou os governantes do povo. Para ele, se isso fosse
verdade, só poderíamos democratizar o país e o Estado quando o Planalto Central se
tornasse superpovoado.
Finalizando o período democrático, que durou de1946 a 1964, no governo João
Goulart foi elaborado o Plano Trienal (1962), que não alavancou devido às
divergências de interesses em jogo naquele tempo. Dentro do contexto da criação da
SUDENE, este Plano também procurava corrigir as disparidades regionais no
desenvolvimento econômico do país e, para isso, previa lançar mão das políticas
tributárias através de incentivos fiscais.
No contexto das políticas regionais - voltadas para o Norte, o Nordeste e o
Centro-Oeste (onde ocorreria a construção da nova capital federal) - as alterações
político-territoriais ocorridas naquele período democrático foram a extinção dos
territórios federais de Ponta Porã e do Iguaçu (1946) que foram reincorporados aos
seus estados de origem. Mais adiante, a transformação do Acre – de território para
estado, em 1962 - ao atingir o nível de arrecadação fiscal exigido pela Constituição de
1946. O território do Guaporé teve o nome alterado para Rondônia (1956). Este último
território se tornaria em estado somente em 1981, no final do regime militar.
338
4.2- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: o
regime militar de 1964
O regime de 1964 não trouxe, para o Brasil, uma ruptura radical do processo de
modernização e centralização do Estado. Ao contrário, essa tendência foi
sobremaneira reforçada com a concentração do poder pelo Estado por via autoritária.
Exemplo cabal disso foi a cidade de Brasília. Conforme ANDRADE &
ANDRADE (1999), a princípio pensou-se que os militares tenderiam a abandonar
Brasília e retornar a capital federal para o Rio de Janeiro (até porque o “grosso” das
repartições, dos quartéis e dos comandos das Três Armas se concentravam na cidade
do Rio de Janeiro. Basta lembrar-se do processo da “eleição” que levou à vitória do
general Médici, para a sucessão de Costa e Silva, em 1969. Enorme parcela dos
“eleitores” militares estava sediada no antigo estado da Guanabara). No entanto, o
que aconteceu é que os militares rapidamente compreenderam que em Brasília, onde
havia uma baixa concentração demográfica, eles ficariam menos vulneráveis às
pressões da opinião pública e poderiam desenvolver sua política com maior
facilidade. Preocupados em promover o capitalismo e em inserir o Brasil no grupo
dos países ligados aos Estados Unidos (no contexto da Guerra Fria), os governos
militares priorizaram a abertura de grandes rodovias e o desenvolvimento de uma
agricultura empresarial no Centro-Oeste, área que vinha em ocupação, além de
estimular a exploração mineral.256
O fato de o governo militar ter se iniciado com a capital federal já localizada
no Planalto Central foi uma importantíssima vantagem para o regime. Afinal,
Brasília vinha de encontro, e em consonância, ao pensamento geopolítico brasileiro
que se desenvolvia há algumas décadas, entre cujos autores, podemos citar o próprio
Golbery do Couto e Silva.
VESENTINI (1985) aponta que o plano urbanístico de Brasília buscaria uma
“harmonia”, uma “divisão do trabalho” com cada parte tendo a sua funcionalidade, uma
256 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. A federação brasileira: Uma
análise geopolítica e geo-social. São Paulo: Contexto, 1999 -(repensando a geografia). p.41 e 42.
339
“hierarquia”, e isso pode ser exemplificado na paisagem através da Esplanada dos
Ministérios. Segundo o mesmo autor, Brasília não teria sido planejada como uma
“utopia socialista” e os governos estabelecidos, a partir de 1964, não desvirtuaram a
concepção original da nova capital. Muito pelo contrário, no projeto do Plano Piloto a
ideia de “ordem” e “hierarquia” foi de encontro aos propósitos do regime, que viu ali
um espaço adequado ao funcionamento dos órgãos decisórios de um Estado autoritário.
Especialmente, a partir do presidente Médici (1969-1974), procurou-se consolidar
Brasília como a nova capital.
Tal consolidação definiu-se entre 1968-1970. A mobilização popular, que vinha
ganhando corpo, com a formação da chamada “Frente Ampla” de oposição - já reunindo
antigos adversários, como Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda - e a passeata dos cem
mil no Rio de Janeiro, acabou derrotada pelo AI-5, de 1968. Nesse mesmo período,
ocorreram alguns atos de guerrilha urbana, levando o governo a pressionar certos órgãos
públicos e embaixadas que ainda funcionavam no Rio de Janeiro, a se transferirem para
a nova capital.
O Brasil, nos anos 1970, emergiria como semiperiferia e se tornaria uma
potência regional.257
Esta transformação do Brasil, se relaciona com a reestruturação
dos padrões de acumulação do sistema capitalista mundial, antes baseados no
taylorismo e no fordismo, dando lugar à revolução tecnológica, principalmente a
microeletrônica e a informática. Na nova Divisão Internacional do Trabalho, imposta
pelas corporações multinacionais e grandes bancos transnacionais, os Estados
nacionais perdem sua força como unidades econômicas, mas ainda se mantém como
importantes entes políticos condicionando tal reestruturação da economia. Dentro
dessa realidade - a recessão global, a descentralização industrial, os créditos
abundantes dos grandes bancos e determinadas condições internas específicas,
vieram a cristalizar a diferenciação no setor periférico da economia-mundo. Países
que preenchiam estes pré-requisitos como o Brasil, México, China, Índia e Tigres
Asiáticos, experimentaram ciclos de crescimento econômico entre 1967-1982, às
custas do endividamento externo e de crescente intervenção estatal.
257 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 123.
340
O Brasil apresenta um grande território, mercado interno significativo, sólida
base industrial advinda da fase democrática anterior e também foi palco de uma
política deliberada por parte de um regime autoritário. Os militares formularam um
projeto geopolítico para a modernidade em concordância com o desenvolvimento do
capitalismo brasileiro. Este projeto geopolítico alavancou o processo conhecido
como modernização conservadora e centralizadora que levaria o Brasil à condição de
potência regional.
O projeto geopolítico para a modernidade continha a intenção de se obter o
domínio do vetor científico-tecnológico moderno, para o controle do tempo e do
espaço, para a constituição do Estado-Nação na nova era mundial, e para a
modernização acelerada da sociedade e do espaço nacionais visando o crescimento
econômico e sua projeção internacional. Este projeto já se manifestou implicitamente
no Plano de Metas do governo JK e, mais tarde, esse projeto seria parte integrante do
governo, gerido pelos militares, na busca de autonomia tecnológica e da
instrumentalização do espaço, com base para a acumulação e legitimação do Estado.
Aliás, a modernização conservadora e centralizadora viu o espaço territorial como
parte integral e fundamental da base técnica do modelo do tripé (Estado, capitais
privados nacionais e capitais privados internacionais).
O novo autoritarismo, em que os militares dominaram como instituição, se
diferencia do autoritarismo tradicional (como a dos caudilhos), que se caracterizava a
nível individual. O novo autoritarismo se manifestou no nível tecno-burocrático e foi
típico dos países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile), onde o fator
decisivo foi a militarização do Estado (CARDOSO,1979)258
, em que as Forças
Armadas tomaram o poder para se reestruturar a sociedade, intervindo contra
movimentos populares, para garantir o progresso e o desenvolvimento segundo a
ideologia da “segurança nacional”.
Há controvérsias, no tocante às explicações deste novo autoritarismo. Uma
delas é a de caráter econômico em que “os governos repressivos foram uma resposta
às dificuldades de se aprofundar o processo de industrialização, isto é, de
desenvolver a produção de insumos intermediários e bens de capital, promovendo o
258 Id., ibid., p. 127.
341
crescimento industrial acelerado através da ampliação das desigualdades de renda e
impondo uma forma de desenvolvimento social e político excludente e
concentrador” (O’ DONNEL, 1973)259.
Na implantação do novo autoritarismo no
Brasil teve-se de um lado: os fatores políticos-ideológicos como no aumento das
reivindicações populares (na época do lançamento das Reformas de Base), o clima da
Guerra Fria, a Revolução Cubana de 1958-59, o medo da disseminação das táticas de
guerrilha e a influência dos Estados Unidos (SERRA,1979; CARDOSO,1979;
HIRSCHMAN, 1979)260
; por outro lado, os fatores organizacionais e de oportunidade,
referente à capacidade de organização dos militares, que dispunham de um projeto e
conquistaram o Estado, frente à debilidade ideológica de grupos e classes civis e à
fraqueza das organizações populares (CARVALHO,1985)261.
A criação da ESG (Escola Superior de Guerra), em 1949, se insere na doutrina
de Segurança Nacional, explicitada na obra do general. Golbery do Couto e Silva262
,
tendo como objetivo acelerar o desenvolvimento e alcançar um novo “status” no
sistema capitalista mundial. A estratégia de Golbery, nos termos da análise do espaço
e posições brasileiros, é apresentada da seguinte forma: “1º- articular firmemente a
base ecumênica de nossa projeção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo
central do país; ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade da vasta extensão
despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração;
2º- impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da
plataforma central- a atual região nuclear do país-, de modo a integrar a península
centro-oeste no todo ecumênico brasileiro; e 3º- inundar de civilização a Hiléia
Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada
constituída do Centro-Oeste, em ação coordenada com a progressão leste-oeste,
segundo o eixo do grande rio.”
259 Id., ibid., p. 127.
260 Id., ibid., p. 128.
261 Id., ibid., p. 128.
262 Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil in: COSTA, Wanderley
Messias da. Op.cit. p.65 e 66.
342
De fato, tais idéias vieram a se concretizar já no final da década de 1950, com a
construção de Brasília que permitiria a penetração para Centro-Oeste e também a da
Belém-Brasília que abriria o caminho para a cooptação da porção setentrional do
país.
No processo de modernização conservadora e centralizadora, o Estado elevou
seus níveis de investimento aumentando os gastos governamentais. Ocorreu uma
dinâmica de intervenção no aparato produtivo da economia à custa do endividamento
com o sistema bancário nacional e internacional, acompanhados de um projeto
territorial, dentro do ideário da integração nacional do Brasil. A modernização
autoritária buscou a revigoração da atividade econômica através da compressão
salarial e o do controle sobre o mercado de trabalho estimulando a mobilidade da
força de trabalho. O Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e o Estatuto da Terra
(1964) contribuíram para incrementar o deslocamento das massas trabalhadoras,
concomitantemente com a exploração dos camponeses e a concentração fundiária.
A transição demográfica esteve permeada pelo aumento da população
economicamente ativa (PEA) nos setores secundário e terciário. Os trabalhadores
móveis serviram para atender as necessidades dos novos pólos de investimento e nas
fronteiras de expansão econômica, simultaneamente houve a elevação das
desigualdades sociais.
O II PND, Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), “ foi o mais
importante e concentrado esforço do Estado desde o Plano de Metas para promover
mudanças estruturais, justamente quando a economia mundial estava em sua mais
severa crise desde os anos 30. O projeto da potência estava explícito no Plano. A
estratégia para alcançá-lo, inspirado no modelo japonês, teve como núcleos
centrais: o fortalecimento das firmas nacionais, a industrialização comandada pela
produção de bens de capital, a crescente autonomia tecnológica, o apoio aos
conglomerados financeiros, e a mudança das relações externas para ampliar o grau
de independência econômica nacional, tirando vantagens das condições da crise
internacional. A política social, entretanto, não mudou na sua essência.”263
263 LESSA, 1979 in: BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 139-140.
343
Na verdade, a adequação da estrutura territorial à uma proposta de
industrialização, estão contidos no Plano de Metas (1957-1960), no I PND (1972-74)
e no II PND (1975-79). Ambos traziam a preocupação de se ordenar o território
nacional segundo a lógica do projeto geopolítico. Com o desenvolvimento científico-
tecnológico, o Estado passou a ter capacidade para tratar o espaço em grande escala.
A “malha programada” se cristalizou na extensão de diversos tipos de redes: viária,
urbana, de comunicações, etc., e também na criação de novos territórios à divisão
político-administrativa do país.
O II PND refletiu as orientações do governo Geisel face ao primeiro “choque”
do petróleo (1973). Neste cenário, o Estado confirma seu papel de impulso à
industrialização dentro da chamada “marcha forçada”.
Quanto à urbanização, ela se tornou permanente com o crescimento industrial.
O I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), para o período de 1972 a 1974,
definia uma estratégia de planejamento urbano a nível nacional a partir da criação
das Regiões Metropolitanas.
O II PND continha políticas de urbanização, que envolveram um conjunto de
estratégias para o desenvolvimento do capitalismo no país. Eram políticas de
expansão do ambiente construído abrangendo transportes, comunicações internas e a
unificação do mercado nacional. Também havia planos setoriais para investimentos
em projetos hidroelétricos, aeroportos, barragens, usinas, portos, etc. e para a
expansão do sistema de transportes terrestres, marítimos e aéreos, bem como dos
meios de comunicação, redes de energia..., tudo dentro de um esquema de redes de
articulação territorial (urbanização num sentido mais amplo). O aumento do
movimento do capital e do trabalho fez do Brasil, um país urbano. A difusão dos
valores sociais urbanos reproduziu as desigualdades sociais do país ao nível sub-
regional e local, ampliando o potencial de conflitos.
Nas estratégias de regionalização, o Ministério do Interior institucionalizou as
macrorregiões sendo que, na segunda metade da década de 1960, foram criadas as
superintendências regionais: SUDAM, para a Amazônia; SUDECO, para o Centro-
Oeste; e SUDESUL, para o Sul do país. Somadas à SUDENE, essas
superintendências buscavam a modernização e a neutralização das oligarquias
regionais, cooptadas pelo sistema federal de incentivos fiscais.
344
Através da Emenda Constitucional nº18, de 1º de dezembro de 1965, a SPVEA
foi transformada na SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), e
o Banco de Crédito da Amazônia passou a ser o BASA (Banco da Amazônia S.A). A
mesma Emenda estendeu os incentivos fiscais que já haviam sido concedidos antes
ao Nordeste. Soma-se também a criação do Fundo de Investimento Privado do
Desenvolvimento da Amazônia (Fidam), que passou a atuar junto à SUDAM e ao
BASA para promover o desenvolvimento da região.264
Na visão de MARTINS (1986), in: ANDRADE&ANDRADE (1999):
“(...)a política de incentivos fiscais consistiu basicamente em conceder isenção
de 50% no imposto de renda das grandes empresas estabelecidas em outras regiões,
particularmente no Sul-Sudeste, desde que tais recursos fossem investidos na região
Amazônica, na proporção de 75% de capital subsidiado das novas empresas e 25%
de capital próprio. A partir desse momento, o ritmo e a forma de ocupação da região
pelo grande capital alteraram-se radicalmente. Antes, de um modo geral, era
possível observar uma progressiva invasão das terras indígenas por pequenos
agricultores expulsos pelo avanço das grandes fazendas, basicamente na direção
leste-oeste, ou sua invasão por grandes fazendas de gado, seringalistas e donos de
castanhais. Com os incentivos fiscais, o avanço da grande fazenda foi enormemente
acelerado. A grande empresa passou a expulsar ao mesmo tempo camponeses e
índios, como forma de se livrar dos dois. Do mesmo modo, com os incentivos fiscais,
terras que estavam fora do circuito e que, portanto, praticamente não tinham preço,
puderam ser obtidas com poucos recursos, o que permitiu a aquisição de imensas
glebas pelas empresas do Sul. Outras vezes, terras públicas ou terras indígenas
foram transformadas em terras particulares, mediante a falsificação de documentos,
corrupção de funcionários governamentais ou simples expulsão violenta dos
ocupantes da terra.”265
264 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. Op.cit. p.40 e 41.
265 MARTINS, José de Souza. Não há terras para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes, 1986. p.19. In:
ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. Op.cit. p.41
345
Continuando-se a tratar sobre as superintendências regionais, seguem-se dois
mapas: O mapa 1 mostra a atual divisão regional do Brasil, elaborada pelo IBGE,
que são as cinco regiões administrativas – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e
Sul.
O mapa 2 retrata a divisão do Brasil em regiões geoeconômicas ou complexos
regionais, feita pelo geógrafo Pedro Pinchas Geiger, em 1967 (época do regime
militar). Nesta proposta, o Brasil foi dividido em três grandes regiões: Amazônia,
Nordeste e Centro-Sul.Seus critérios foram baseados no processo de formação
territorial brasileira considerando os arranjos espaciais resultantes da industrialização
do país (de acordo com FERREIRA, Graça Maria Lemos. Atlas geográfico: espaço
mundial. Visualização cartográfica de Marcello Martinelli. 4.ed.rev.e ampl. São
Paulo: Moderna, 2013, p. 152.)
346
Mapa 1
Fonte: http://www.geografia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/uploads/5/134regioesbrasilibge.jpg
(Acessado em 22/06/2015)
347
Mapa 2
Fonte:
http://www.joseferreira.com.br/blogs/geografia/2014/abril/complexos-regionais-
regionalizacao-geoeconomica/emean1unigeoc009001.jpg
(Acessado em 22/06/2015). As informações na parte inferior do mapa são da própria fonte
acessada na internet.
348
Comparando-se os mapas 1 e 2 com o mapa maior do Anexo 1 (Órgãos Oficiais
Responsáveis pelo Desenvolvimento, localizado no final deste trabalho),266
há um
melhor entendimento das áreas de atuação das diferentes superintendências regionais,
naqueles idos da década de 1970. A SUDAM tem a sua área de atuação
correspondendo coincidentemente à Região Geoeconômica ou Complexo Regional da
Amazônia, conforme a divisão de Pedro Pinchas Geiger, de 1967, mostrada no mapa
2.
A SUDAM incluía naquela época, em seu espaço de atuação, o norte do antigo
estado de Goiás, correspondendo quase que exatamente ao atual estado do Tocantins
que, após ser criado em 1988, não permaneceu na Região Centro-Oeste, mas foi
alocado na Região Norte (conforme a regionalização atual do IBGE no mapa 1). O
norte do antigo estado mato-grossense, devido às suas características amazônicas,
também estava na área da SUDAM, abrangendo até Cuiabá e praticamente coincide
com os limites atuais do Mato Grosso.
Interessante notar que a SUDECO, a superintendência do Centro-Oeste, tinha a
área de atuação abrangendo a metade sul do antigo estado de Goiás (que praticamente
coincide com os atuais limites políticos do estado goiano com o Tocantins); mais
ainda, o sul do antigo estado mato-grossense também era área da SUDECO e, esta
última parte basicamente corresponde ao atual estado do Mato Grosso do Sul,
desmembrado do antigo território mato-grossense, na metade da década de 1970.
Comparando-se os mapas, as partes da Região Centro-Oeste, sob a atuação da
SUDECO (no caso, o que seria o atual Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal e a
parte meridional do atual estado do Mato Grosso - incluindo-se aí - Cuiabá), se
localizavam no Complexo Regional ou Região Geoeconômica do Centro-Sul o que se
explica pelo fato de a cidade de Cuiabá estar localizada nas esferas de influências
metropolitanas tanto de São Paulo, como de Brasília.
Por fim, enorme parcela do estado do Maranhão, também está na parte de
atuação da SUDAM. Quase que coincidindo com a parcela maranhense incluída na
266 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das
Edições Melhoramentos, 1974. p.130 e 131.
349
Região Geoeconômica da Amazônia. Ressalta-se que o Maranhão concomitantemente
está no raio de ação tanto da SUDAM, como da SUDENE - a superintendência do
Nordeste. Atualmente, se considerarmos os Complexos Regionais, o Maranhão
apresenta sua parte ocidental na Região Geoeconômica da Amazônia, e sua metade
oriental no Complexo Regional ou Região Geoeconômica do Nordeste (conforme o
mapa 2).
A SUDENE, de acordo com o mapa do Anexo 1, tem a sua área de atuação
delimitada aos nove estados que compõem a Região Nordeste, conforme o IBGE.
Porém, se analisarmos, ao lado, os dois mapas menores do Anexo 1 - o espaço de
atuação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) - percebe-se
que este atinge até a parte setentrional de Minas Gerais, que por sinal localiza-se no
Complexo Regional ou Região Geoeconômica nordestina. O mesmo ocorre com
relação à SUVALE (Superintendência do Vale do São Francisco), que obviamente
além de atuar no interior dos estados nordestinos abrangidos pelo vale do São
Francisco, a sua atuação se estende por grande parte do território mineiro também.
O mapa maior do Anexo 2 apresenta a estrutura de planejamento e coordenação
econômica existentes no âmbito estadual, em 1970.267
Ao lado, no mesmo anexo, o
espaço de atuação do GEGRAN (Grupo Executivo da Grande São Paulo); e o da
SUDELPA (Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista). Com isso
demonstra-se o nível de articulação dos órgãos de planejamento que não estavam
restritos somente ao nível federal do governo, mas faziam-se presentes também no
âmbito estadual, voltados para a questão do planejamento e da coordenação
econômica.
Dentro do âmbito das políticas territoriais, o avanço da centralização se deu de
forma simultânea à “necessidade” do governo em coordenar as suas políticas
econômicas e a sua ação estatal, através da montagem de “superórgãos”, que
integrassem órgãos e políticas territoriais menores. Assim, em paralelo com as
iniciativas do Ministério do Interior, foi criado no governo Castelo Branco (1964-67),
267 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das
Edições Melhoramentos, 1974. p.134 e 135.
350
o Ministério de Planejamento e Coordenação Econômica. Em novembro de 1964, é
elaborado o Paeg (Programa de Ação Econômica do Governo), para o período de
1964 a 1966, que trazia propostas idênticas a do Plano Trienal de João Goulart,
referindo-se à correção das disparidades regionais e à ocupação econômica da
Amazônia. Também trazia a proposta de subordinar as superintendências regionais ao
Ministério Extraordinário para a Coordenação de Organismos Regionais, que de fato
seria criado em 1965.
O Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social, abrangeria o período
de 1967 a 1976, mas não chegou a ser implementado. Este Plano procuraria tratar a
questão regional do ponto de vista da integração nacional, propondo a ocupação
econômica do Nordeste e do Centro-Oeste, na consolidação de um mercado nacional.
Outro aspecto desse Plano era a aplicação, no Brasil, da “Teoria dos Pólos de
Desenvolvimento”, de Perroux (in: COSTA, 2000, p.63.) com o estabelecimento de
“Regiões-Programa”, em que estes pólos seriam os centros urbanos capazes de
concentrar investimentos. O plano seguinte foi o Programa Estratégico de Governo
(1968-1970), que nas políticas territoriais, tinha também como objetivo a integração
nacional, com a caracterização de pólos selecionados (industriais), para garantir a
intercomplementaridade dentro da estrutura industrial.
A integração da Amazônia era uma prioridade por razões de acumulação e de
legitimação. Buscava-se o “equilíbrio” geopolítico interno e externo, como em
incrementar a predominância do Brasil na América do Sul. Com o PIN (Programa de
Integração Nacional), o governo federal assumiu o processo de ocupação da
Amazônia, somadas à implantação de grandes redes transversais para a integração
espacial da região (rodoviária, urbana, de comunicações, hidroelétrica, etc.), que
recortou a floresta e expôs a riqueza de seu subsolo. Cita-se principalmente a
construção da Transamazônica, que seria um imenso corredor de exportação entre o
Atlântico e o Pacífico. Foram criados pelo governo federal novos territórios,
superpostos ao dos Estados, que teriam total jurisdição da União. Os subsídios aos
fluxos de capital privilegiariam a apropriação privada da terra por empresas
agropecuárias e mineradoras. E a indução de fluxos migratórios complementaria a
ocupação das terras à frente da fronteira móvel, antes restrita às bordas da floresta.
351
O PIN, lançado em 1967, possuía objetivos globais e setoriais para o Nordeste e
Amazônia. Baseando-se em COSTA(2000), viu-se que este Programa objetivava a
integração da Amazônia e também do Centro-Oeste à economia nacional. Exemplos
disso foram a Transamazônica e ainda a Cuiabá-Santarém, ao lado de outras rodovias
já existentes, para se completar a estrutura territorial de circulação dentro do alvo da
“integração nacional”. Ilustra-se então as importantes alterações no espaço geográfico
brasileiro que pretendia o PIN. Em linhas gerais, o I PND, dentro das políticas
territoriais, tinham seus objetivos baseados no PIN.
A partir de 1973, após a primeira crise do petróleo, a estratégia governamental se
tornou mais seletiva, sub-regional, com a implantação dos pólos de crescimento. O II
PND valorizaria as vantagens comparativas das diversas regiões do Brasil encorajando
as especializações regionais. Foram criados os “pólos regionais”, como o
POLAMAZÔNIA, o POLOCENTRO e o POLONORDESTE, que permitiram uma
maior concentração dos recursos em determinadas áreas e setores selecionados,
“mega-empreendimentos” que propiciassem retorno à curto prazo. Esses pólos foram
definidos procurando-se aproveitar a estrutura básica de circulação, principalmente as
rodovias, privilegiando áreas que já tinham uma certa concentração econômica e
populacional, como o leste e sudeste do Pará. De acordo com COSTA(2000), o PIN
trazia objetivos de povoamento da Amazônia, através de “projetos de colonização”.
No II PND, tais objetivos são colocados de lado e, se prioriza, o grande
empreendimento da fase monopolista do capitalismo, com capitais privados nacionais
e estrangeiros, sob estímulos governamentais relacionados a investimentos em
infraestrutura, dentro de um contexto de declínio dos investimentos e da nova política
econômica global da época.
A segunda crise do petróleo, em 1979, traria então um aumento nas taxas de
juros internacionais e a política econômica nacional passou a ser de contenção de
gastos, redução de financiamentos e elevação da dívida externa. Era a “marcha
forçada”. A política regional das agências burocráticas convencionais foi substituída
pela implantação de grandes projetos de exploração mineral e tentativas de se atrair
investimentos estrangeiros e de se transnacionalizar empresas estatais. Aqui merece
menção o Projeto Grande Carajás (PGC), gestado pela Companhia Vale do Rio Doce,
352
incluindo minas, ferrovia (900Km), porto e um território de 2 milhões de hectares,
dentro deste projeto.
Na busca da autonomia tecnológica, o objetivo foi o de se ultrapassar a etapa de
substituição de importações, estimulando a manufatura doméstica de novos produtos.
A ambição das Forças Armadas era o de ter domínio do vetor científico-tecnológico
moderno especialmente em quatro setores estratégicos268
:
Na Aeronáutica, a criação do CTA (Instituto Tecnológico
da Aeronáutica), em 1951, cujos projetos desenvolvidos foram
transferidos para a EMBRAER (Empresa Brasileira de Aeronáutica). Em
1961, o CTA seria pólo de atração para o que seria mais tarde o INPE
(Instituto de Pesquisas Espaciais). Houve também a constituição do
Centro Técnico Aeroespacial, em 1971, com apoio governamental;
Na pesquisa nuclear, teve-se a criação do CNPq (Conselho
Nacional de Pesquisas), em1951. Em busca de uma política atômica
independente dos Estados Unidos, foi assinado em 1975 um acordo entre
Brasil e Alemanha Ocidental. A implementação do acordo ficou a cargo
da NUCLEBRÁS, uma “holding” estatal que não teve o sucesso
esperado devido à inadequação de tecnologia de enriquecimento e a
erros de construção e operação do projeto. Pelo menos até o início do
século XXI, haveria um Programa Nuclear Brasileiro “paralelo”, por
parte da Marinha em colaboração com o CNEN (Conselho Nacional de
Energia Nuclear) e a USP (Universidade de São Paulo), iniciado em
1979, que prosseguiria independentemente do acordo entre Brasil e
Alemanha;269
Na indústria bélica, com o conflito no Vietnã, os Estados
Unidos restringiram o volume de exportações de armas e facilidades de
268 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 130-134.
269 Id., Ibid., p. 132.
353
crédito. Os militares brasileiros procuraram então a independência de
forças estrangeiras na tentativa de se suprir as Forças Armadas e adaptar
seus equipamentos para as ameaças internas ao regime autoritário.
Destaques para a ENGESA, associada ao Exército e a criação da IMBEL,
em 1975, na produção de equipamentos para as forças terrestres;
Finalmente, na indústria da computação, o governo
negaria permissão à IBM e a outras empresas transnacionais para
fabricarem mini e microcomputadores no Brasil. Foi criada a SEI
(Secretaria Especial de Informática), em 1979, subordinada ao Conselho
Nacional de Segurança em Brasília, na tentativa de se ter uma política
nacional para o setor.
No II PND, a política de apropriação tecnológica, concentrou os esforços em
ciência e tecnologia para os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), estatais e
militares. As empresas estatais dos setores de exploração mineral, energia nuclear,
aeroespacial, petroquímica e de telecomunicações (TELEBRÁS), se associaram às
pesquisas desenvolvidas em empresas privadas e/ou centros universitários. O locus do
projeto geopolítico moderno iria se localizar no Vale do Paraíba, por sua localização
estratégica dentro do “corredor” entre as duas maiores metrópoles do país, São Paulo e
Rio de Janeiro, próximo aos centros de decisões militares destas duas metrópoles,
contando com a presença de pessoal técnico graduado nas instituições militares aí
localizadas e mais os técnicos treinados na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional).
No tocante ao cenário internacional, o Brasil, desde o final dos anos 1960 e
sobretudo, após 1974, adota uma linha de “recusa” ao “alinhamento automático” com
os Estados Unidos, dentro do quadro de crise econômica mundial e nacional e ao
relativo declínio da hegemonia norte-americana (se pensarmos na expansão econômica
japonesa e na expansão européia também, potencializada pelo Mercado Comum
Europeu).
Entre 1964 e 1974, o Brasil buscou um papel hegemônico regional em troca de
sua aliança com os Estados Unidos. No campo ideológico, os interesses do Brasil e
dos Estados Unidos na América Latina se deu através do apoio logístico secreto aos
golpes militares, como na Bolívia, e na repressão aos movimentos de esquerda. Não
podemos deixar de mencionar ainda a chamada “Operação Condor”, sistema de
354
repressão que contava com a colaboração conjunta dos regimes militares de Brasil,
Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, que recentemente foi investigada acerca
da morte do ex-presidente João Goulart.
No campo econômico, procurou-se neutralizar a influência da Argentina e
ampliar-se a influência brasileira na bacia do Prata, através do aparelhamento dos
portos do sul do país (como no de Rio Grande); pela omissão face à ocupação da terra
por colonos brasileiros, plantando-se soja no Paraguai ou pela penetração de
seringueiros em matas bolivianas; e no controle da exploração de recursos naturais,
monopolizando o potencial hidrelétrico brasileiro do rio Paraguai, através do
financiamento, construção e utilização da barragem de Itaipu. O Brasil tinha como
objetivo, a ocupação do vácuo de poder no Atlântico Sul, através de uma aliança
Brasil- Estados Unidos- África do Sul270
. Também foi dado apoio brasileiro à política
colonialista de Portugal (com a criação da Comunidade Afro- luso- brasileira em 1971,
aproveitando laços históricos e culturais), buscando-se a aproximação com economias
africanas.
A partir de 1974, o governo Geisel adotaria uma política externa conhecida
como “pragmatismo responsável”, no contexto da crise econômica mundial, advinda
do primeiro “choque” do petróleo, somados à decadência da hegemonia dos Estados
Unidos, relacionada à guerra do Vietnã, e um “vácuo” de poder na América Latina.
Exemplos deste processo de afastamento comercial e militar do Brasil, em relação aos
Estados Unidos, foi a não-assinatura do Tratado de Não- Proliferação de Armas
Nucleares pelo Brasil, em 1969 ; e o tratado feito com a Alemanha Ocidental em
1975, no setor nuclear, junto à ruptura do acordo militar com os Estados Unidos, em
1977, que estava em vigor desde 1952. Dentro ainda do âmbito global, citam-se o
reconhecimento aos governos de Angola, Moçambique e Guiné- Bissau, desligando-se
da política de Portugal e a expansão dos laços comerciais com a Europa Ocidental e o
Japão, e finalmente, na atuação em organismos internacionais como o GATT, contra o
protecionismo dos Estados Unidos.
A nível regional, o Brasil, em suas relações continentais, voltou-se para a Bacia
Amazônica, com o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), de 1977. Procurava-se
270 Id., ibid., p. 155.
355
ampliar as relações comerciais com os países andinos como Colômbia, Venezuela, e
também, de se tirar a Guiana e o Suriname do isolamento.
Acrescenta-se o processo de multinacionalização das empresas estatais em que o
governo brasileiro comprou parte da produção de aço da Bolívia, em troca do petróleo
e gás natural daquele país. No Paraguai, através de uma organização binacional,
seriam construídas a barragem de Itaipu e a “Ponte da Amizade” na rodovia que liga
Assunção ao porto de Paranaguá, no estado do Paraná.
A elevação da dívida externa foi a base para a modernização acelerada, contudo
fez parte também do fenômeno ligado às mudanças estruturais na economia-mundo e
dos empréstimos “empurrados” pelos grandes bancos na década de 1970. A eclosão da
crise da dívida, no começo dos anos 1980, já no governo Figueiredo, seria um “marco”
para o fim do processo de modernização conservadora e centralizadora, comandada
pelo Estado, e daria sua contribuição para o fim do regime autoritário de 1964.
4.3 Heranças e legados da modernização conservadora e
centralizadora para o Brasil
Trataremos agora sobre as heranças e os legados desse processo de
modernização conservadora e centralizadora pela qual o Brasil passou por mais de
quatro décadas.
Comecemos pela televisão. A TV chegou ao Brasil em 1950 e, por este motivo,
não foram poucas as comemorações dos 50 anos da TV brasileira, durante o ano
2000 (simultaneamente a TV Globo, festejava seus 35 anos. Atualmente em 2015, a
Globo comemora os seus 50 anos). Contudo, foi durante os anos do regime militar,
que a televisão foi ganhando projeção nacional, especialmente a TV Globo, durante
os anos do “milagre econômico” do governo Médici, que coincidem com os
primeiros anos do Jornal Nacional e de sucesso das telenovelas.
356
Relembremos a frase já citada lá atrás de Renato Ortiz: “Para ser preservada,
a democracia necessita ser incessantemente renovada, não basta sermos
modernos.”271
Controle e expansão são dois componentes que vivem numa tensão constante,
mas não são necessariamente antagônicos. No caso brasileiro, os militares tinham
uma visão sistêmica das relações sociais, das suas disparidades e de suas
divergências. Mantê-las articuladas, e de uma forma orgânica, exigia uma visão
totalizadora, um poder centralizado e um aparato repressivo forte.272
A criação do
SNI (Serviço Nacional de Informações) vinha de encontro a atender essa
necessidade.
Na esfera cultural, entre os mecanismos repressivos, o regime fez uso dos IPMs
(Inquéritos Policiais Militares), com objetivo de identificar e punir “subversivos”
(professores universitários, intelectuais e editores – no campo cultural - além de
também ter atingido políticos, sindicalistas e indivíduos considerados corruptos). Em
segundo lugar, fez o uso da censura, utilizando o arcabouço jurídico já existente
somando-o à criação de outras normas e decretos.
Os militares eram especialmente atentos aos meios de comunicação, pois neles
transitava a informação, que poderia ser “perigosa” à ótica do regime. Aspectos
políticos, como o controle e combate a partidos políticos e sindicatos, bem como
aspectos culturais, como o meio universitário, eram alvos da atenção autoritária. A
universidade era o local da insatisfação, da resistência e do questionamento ao
regime.
271 ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 116
272 Id., Ibid., p.116.
357
Por outro lado, o manual básico da Escola Superior de Guerra assinalava que a
cultura não deveria ser reprimida, mas desenvolvida, desde que em consonância à
doutrina da segurança nacional. O controle do aparelho estatal é necessário, mas
conjuntamente com o estímulo para se desenvolverem as produções culturais. Por
isso, a política governamental do regime no setor cultural foi dinâmica. Entre 1965 e
1979 foram criados vários órgãos voltados para o incentivo à cultura: Embratel,
Conselho Federal de Cultura, Embratur, Ministério das Telecomunicações,
Embrafilme, Telebrás, Funarte, Fundação Pró-Memória, Radiobrás,etc. A Embratel
realizaria a implantação do sistema de integração nacional por TV, completando o
sistema de comunicação.273
A modernização da sociedade brasileira implicou em uma mudança drástica do
cenário cultural. Paralelamente à integração econômica das diversas regiões do país,
consolidou-se também um mercado de bens simbólicos a nível nacional. O advento
da indústria cultural coincidiu com o período do regime militar, momento este em
que a televisão transforma-se num veículo de massa, o cinema consolida-se como
atividade financiada pelo Estado e desenvolve-se, em larga escala, a indústria
fonográfica, editorial e publicitária.274
A televisão ilustra bem o processo de expansão da indústria cultural. Nos anos
1950, ela é regional, concentra-se apenas em algumas cidades, a maioria delas
capitais estaduais: São Paulo (1950), Rio de Janeiro (1951), Belo Horizonte (1955),
Porto Alegre e Ribeirão Preto (1959), Recife, Salvador e Fortaleza (1960). Os
programas são apresentados ao vivo e, com o advento do videoteipe podem ser
comercializados entre os estados (em 1963, aparece a telenovela diária), mas
273 Id., ibid., p. 118.
274 Id., ibid., p. 119.
358
somente com os grandes investimentos tecnológicos feitos pelo Estado é que o sinal
televisivo passa a integrar um sistema nacional de telecomunicação.275
Se em 1959, havia 434 mil aparelhos de televisão em todo o país, no ano de
1980 seriam mais de 19,6 milhões de unidades. Em 1959, na cidade do Rio de
Janeiro, apenas 7% da classe popular assistia televisão. Em 1982, 73% dos
domicílios daquela cidade contavam com aparelhos de TV.276
Assim, durante o regime, a censura não se pauta pelo veto a qualquer bem
cultural. Ela age de forma seletiva: atinge peças de teatro, filmes, livros e artigos de
jornal, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato repressor se volta
contra a especificidade de algumas obras, mas não com a generalidade da produção.
Consumam-se então duas tendências aparentemente excludentes: controle e expansão
modernizadora. Contrastam-se os valores do pensamento autoritário com a lógica da
indústria cultural emergente, trazendo-se uma contradição ao processo de
modernização no Brasil, mas que mesmo assim não se deixou de realizar.
O regime militar procurou tratar a sociedade como uma totalidade que
gravitava em torno de um núcleo central. Nesse sentido, a nação, unidade territorial e
moral, coincide com o Estado, lugar de uma única vontade de poder. Como assinala
Joseph Comblin (in: ORTIZ, 2014)277
, a nação não se difere do que se constitui
formalmente o Estado e toda contestação ao Estado é uma ameaça aos seus
fundamentos.
O Estado militar passa a atuar como o defensor do caráter nacional, conjunto
de valores que vão se constituir na essência da “verdadeira” identidade brasileira.
Este também se vê como o promotor do desenvolvimento e torna-se fundamental
275
Id., ibid., p. 119.
276 Id., ibid., p. 119 e 120.
277 Id., ibid., p. 120.
359
“resguardá-lo” dos conflitos políticos, estimulando mais um sistema de dissuasão do
que necessariamente de coerção. Um exemplo disso foi a criação da Assessoria
Especial de Relações Públicas (Aerp), agência de propaganda do governo, com o
objetivo de produzir uma imagem positiva e otimista do país. A concepção de mundo
da elite militar era tradicional e conservadora com aversão a tudo que a
contradizia.278
A mencionada contradição no processo de modernização brasileiro se
manifestou através da lógica diferenciada que a indústria cultural apresentou. A
produção dos bens culturais não se encontrava articulada a uma ideologia de
contenção, mas de expansão do mercado. O ato repressivo, muitas vezes, era visto
como um entrave ao mercado. E a tensão entre a lógica do governo e a do mercado
só foi crescendo à medida que também se expandia a sociedade de consumo. As
décadas de 1960 e 1970 trouxeram uma liberalização dos costumes, fenômeno este
que se fez presente, sobretudo, tendo como pano de fundo o cenário da Guerra Fria,
nos países do Ocidente capitalista (Estados Unidos, Europa ocidental e em
sociedades latino-americanas mais complexas, como a brasileira). Temas como o
consumo de drogas, a liberdade sexual e a emancipação feminina, ganham espaço
sendo praticamente impossível a sua contenção por algum tipo de ideologia. E, para
completar, a lógica do mercado se aproxima da questão da resistência ao regime. Já
foi assinalado, lá atrás que especialmente no governo de Castelo Branco, e depois no
de Costa e Silva (antes do AI-5, de 13 de dezembro de 1968), houve, no Brasil, uma
relativa hegemonia cultural da esquerda nos quatro primeiros anos do regime (1964-
1968), motivo este que até serviu para que o jornal Folha de São Paulo alcunhasse o
nome de “ditabranda” à tal período.
Mesmo depois do AI-5, a despeito da feroz repressão às esquerdas envolvidas
nas lutas armada contra o regime, a lógica do mercado não seria por completo
278 Id., ibid., p. 121.
360
aniquilada. Pelo contrário, tal tensão se atenua bastante. No decorrer da década de
1970, a indústria fonográfica continua a se consolidar no Brasil, as transformações
técnicas na gravação vão ocorrendo e o disco em LP se torna em algo disseminado
em uma sociedade de consumo em expansão. O exemplo dos festivais de MPB é
bastante ilustrativo. Eles eram vigiados de perto pelo Estado autoritário, reunindo a
inquietude e a contestação política. Mas, também era uma estratégia de mercado para
integrar o público universitário nos circuitos de consumo. A “juventude” se torna em
um segmento a ser comercialmente explorado.
ORTIZ (in: REIS FILHO, RIDENTI & MOTTA, 2014), destaca que se o regime
militar trouxe algo de novidade, esta foi a inauguração de uma nova etapa da
modernidade que atingiu as diversas regiões do país e as diferentes dimensões da
vida em sociedade.279
A ideologia eletrônica da televisão se constituiu num instrumento de política
social e de formação de opinião, conectando ricos e pobres, no mundo das ilusões e
utopias das novelas e dos noticiários programados. Ocorre então, um processo
complexo de fusão da modernidade com a pobreza.
A “modernidade da pobreza”280,
engloba as quedas nas taxas de natalidade, e
de mortalidade, no Brasil, a denominada “transição demográfica”, processo este que
teve um padrão “tradicional” na Europa, levando de um a dois séculos. No Brasil, tal
processo ficou restrito a poucas décadas, incluindo a queda brusca dos índices de
fecundidade (de 4,35 para 3,53 no período de 1980 a 1984) reduzindo-se o
crescimento vegetativo281.
A transição demográfica não trouxe melhorias às grandes 279 Id., ibid., p. 126.
280 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 170-180.
281 Id., ibid., p. 171.
361
parcelas da população. Houve aumento da pobreza, queda da remuneração não
qualificada e elevação da remuneração de serviços técnicos e gerenciais. Também
ocorreu uma elevação da concentração de renda e das desigualdades regionais.
Todavia, as políticas de telecomunicações, saúde, transportes e educação
possibilitaram a difusão de valores, conhecimentos e novas práticas culturais que
estimularam o controle da natalidade e métodos anticoncepcionais.
A concentração de capital e o crescimento econômico foram viabilizados pela
repressão salarial e pela mobilidade histórica dos trabalhadores. O processo
migratório, que possibilitou uma maior mobilidade espacial e social, relaciona-se à
modernização das firmas e a determinadas políticas trabalhistas. Tal atração foi
exercida por pólos dinâmicos, com novas oportunidades de emprego, ou de acesso à
terra, sobretudo no Sudeste, nas metrópoles e, secundariamente, nas novas fronteiras
do Centro-Oeste e da Amazônia. Aliás, a modernização da agricultura liberou mão-
de obra rural em todo o país, não só no Nordeste. Houve ainda o crescimento dos
setores secundário, terciário e do aparelho do Estado, com a expansão e
diversificação da classe média. Assim a sociedade brasileira transformou-se nos anos
1960 e 1970, adquirindo um maior caráter consumista.
Como a transição demográfica, a urbanização brasileira se deu em ritmo
acelerado, como resultado das políticas governamentais, somados aos efeitos não
previstos e ajustes espontâneos da sociedade. A urbanização se constituirá no eixo
que articula o Brasil à economia mundial. Nos núcleos urbanos apareceram as sedes
das novas instituições e são onde ocorrem com maior intensidade a circulação de
bens, capitais e informações. São os lugares onde a força de trabalho expulsa pela
modernização agrícola reside, circula e é ressocializada, ingressando na modernidade
da pobreza. É importante relembrar que foi no I PND (1972-1974) que se teve a
criação das Regiões Metropolitanas, sendo que tais regiões não estão restritas
somente ao Sudeste e Sul do país, pois além de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo
362
Horizonte, no Sudeste; e de Curitiba e Porto Alegre, no Sul; têm-se ainda Salvador,
Recife e Fortaleza, no Nordeste; e Belém, na região Norte; enquanto que no Centro-
Oeste há a presença da capital político-administrativa, Brasília, e o importante
núcleo urbano de Goiânia. Isto em um primeiro momento.
Detalhando-se mais este tema das Regiões Metropolitanas, voltemos pouco
mais de 40 anos atrás, à um material chamado Atlas das potencialidades brasileiras:
Brasil grande e forte, produzido em 1974. Ali, no contexto do I PND, há uma
descrição completa sobre a institucionalização das Regiões Metropolitanas:282
“O IBGE identificou 8 regiões metropolitanas de caráter nacional,
caracterizadas e delimitadas segundo critérios dinâmicos, de três tipos diferentes:
1- Critérios demográficos: Os municípios devem apresentar uma densidade
demográfica superior a 60 hab./Km2, e crescimento de população superior ao
crescimento vegetativo.
2- Critérios estruturais: Os municípios devem ostentar elevada proporção da
população dedicada a atividades urbanas (não agrícolas).
3- Critérios de integração: Relacionam-se com os movimentos da população e
as necessidades de serviços comuns do ponto de vista metropolitano. Atualmente são
os mais importantes.
A partir desse estudo, o Congresso Nacional estabeleceu a Lei Complementar
que, na forma do artigo 164 da Constituição, criou as seguintes regiões
metropolitanas:
1- São Paulo, que engloba 37 municípios(...)
2- Belo Horizonte, com 15 municípios (...)
282 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das
Edições Melhoramentos, 1974. p.23
363
3- Porto Alegre, com 14 municípios (...)
4- Recife, com 8 municípios(...)
5- Salvador, com 8 municípios(...)
6- Curitiba, com 9 municípios(...)
7- Belém, com 2 municípios(...)
8- Fortaleza, com 3 municípios(...)”
Aqui cabe uma observação. Onde há as reticências (...) é onde são listados, um
a um, os municípios de cada uma das Regiões Metropolitanas, o que optei por não
fazer aqui.
Quando foram citadas antes as Regiões Metropolitanas, o total foi de nove
(sem considerar-se Brasília e Goiânia). No Atlas estão colocadas oito delas. Isto
porque a cidade do Rio de Janeiro não havia sido contada, pois ainda correspondia ao
estado da Guanabara. Logo no ano seguinte, 1975, ocorreria a fusão entre os estados
da Guanabara e o do Rio de Janeiro.
O governo Geisel (1974-1979), na sua versão oficial, alegava que a fusão
dessas duas unidades da Federação tinha por objetivos a criação de um estado forte,
tanto política como economicamente, trazendo equilíbrio à Federação, reforçando-se
argumentos geoeconômicos. A fusão era apresentada do ponto de vista técnico,
inserida num plano estratégico de desenvolvimento nacional, buscando-se criar um
novo pólo dinâmico de desenvolvimento, trazendo efeitos benéficos à própria
segurança nacional.
As elites empresariais cariocas se mostravam favoráveis à fusão. Uma outra
linha de interpretação, tanto do senso comum como dos políticos de oposição ao
regime militar, credenciam a fusão à tentativa de conter a seção carioca do MDB
(Movimento Democrático Brasileiro) e privilegiar o partido governista, a Arena
(Aliança Renovadora Nacional). Pois com a vitória de Chagas Freitas, em 1970, a
364
Guanabara era o único estado da Federação governado pela oposição emedebista,
que poderia se enfraquecer e se dividir entre seus dois principais líderes políticos: o
carioca Chagas Freitas e o fluminense Amaral Peixoto.
Marieta de Moraes Ferreira, in: CASTRO & ARAÚJO (2002), ao analisar os
documentos no arquivo de Geisel, que incluíam relatórios do SNI (Serviço Nacional
de Informações), reforça o raciocínio de que a fusão teria um caráter mais técnico, na
ideologia do desenvolvimento nacional, objetivando a emergência de um pólo de
desenvolvimento de grandes dimensões, como o de São Paulo, diversificando-se
pólos industriais e reduzindo desequilíbrios regionais. Não há como se desconsiderar
aspectos políticos, relacionados às disputas entre o MDB e a Arena, porém tal
raciocínio é perfeitamente plausível.
Poucos anos antes, no final da década de 1960, havia sido elaborada uma nova
divisão regional do Brasil, pelo IBGE, com a criação da Região Sudeste e a supressão
da Região Leste em que, pela primeira vez, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro
passaram a integrar a mesma região, ao lado de Minas Gerais e Espírito Santo.
Em ANDRADE & ANDRADE (1999) é utilizado o termo territorialização para
se designar a transformação do espaço brasileiro em território, através do povoamento,
da introdução de atividades econômicas e da conformação de uma estrutura social.
Enfim, a produção do território brasileiro iniciada pelos colonizadores portugueses.
Os autores, assinalando que a Região Centro-Oeste estaria ainda em um processo
de territorialização, afirmam que a mesma região apresentaria uma forte tendência à
fragmentação. O desmembramento do Mato Grosso, com a criação do território de
Ponta Porã, em 1943 (e que seria extinto já em 1946), não satisfez à população da parte
meridional. Mas, em 1975, foi criado o estado do Mato Grosso do Sul, também durante
o governo Geisel. Após o regime de 1964, houve a criação do estado do Tocantins, do
desmembramento de Goiás, em 1988 (reivindicação esta que vinha desde os tempos do
Império). Há outras propostas, com relação ao Mato Grosso (com a criação do estado do
Mato Grosso do Norte ou do Aripuanã) e também do território do Araguaia.
Na Região Norte, ocorreu a criação dos territórios do Amapá, do Rio Branco
(atual Roraima) e o do Guaporé (atual Rondônia) no período do Estado Novo. Este
365
último foi transformado em estado em 1981, no final do período autoritário, durante os
anos de Figueiredo.
Amapá e Roraima tornaram-se estados posteriormente ao fim do regime, com a
Constituição de 1988. Nos dias atuais, os movimentos de criação de novos estados e
territórios têm a sua força com o desenvolvimento agropecuário e da mineração, casos
das propostas para os estados do Carajás e do Tapajós, em que o Pará seria
desmembrado. Porém, em votação realizada em 2011 entre a população paraense, o não
ao desmembramento, ou seja, o não à criação dos novos estados foi opção vitoriosa na
consulta popular.
No contexto do I PND, na área do planejamento urbano, a nível nacional, foi
concebida a criação das Regiões Metropolitanas e a estratégia de desenvolvimento
regional focou-se nos “polos de desenvolvimento”, tanto nas áreas mais dinâmicas
como nas áreas mais atrasadas do país.
As duas estratégias: primeiro, o estabelecimento das Regiões Metropolitanas; e
por último, os estímulos à formação e consolidação dos pólos de desenvolvimento
viriam de encontro aos objetivos do governo militar em se concretizar a fusão dos
estados da Guanabara com o do Rio de Janeiro. Uma vez que, após a fusão, estabeleceu-
se somente o estado do Rio de Janeiro, e a capital fluminense seria agora a cidade do
Rio de Janeiro, teríamos a conformação de mais uma Região Metropolitana no Sudeste,
encabeçada pela segunda maior cidade do país.
Nos dias atuais, em conformidade com o IBGE havia em 2010 quinze Regiões
Metropolitanas no Brasil, ordenadas da seguinte forma (considerando-se a população
total da área metropolitana e não somente a do município principal):
1)São Paulo; 2)Rio de Janeiro; 3)Belo Horizonte; 4)Recife; 5)Porto Alegre;
6)Salvador; 7)Brasília; 8)Fortaleza; 9)Curitiba; 10)Campinas; 11)Goiânia/Anápolis;
12)Belém; 13)Manaus; 14)Grande Vitória; e 15)Baixada Santista.
Vê-se desta forma que a urbanização brasileira foi um fenômeno de caráter
nacional, daí a afirmação de que hoje o Brasil é, sem sombra de dúvidas, um país
urbano. Nesse processo, São Paulo se torna uma cidade mundial, ou seja, desponta
como um dos centros de controle e acumulação de capital em escala planetária.
366
A urbanização foi sustentada, em grande parte, por uma esmagadora maioria de
mão- de-obra barata e pobre. Nos últimos tempos, as metrópoles têm sido o lugar
principal da crise urbana, das carências sociais, dos “sem-teto” e loteamentos
clandestinos. Surgem problemas de gestão complexa, relacionados ao potencial de
conflitos reivindicatórios de direito à cidadania. As aglomerações urbanas se tornaram
também o palco principal da luta pela redemocratização da sociedade e pela preservação
do parque industrial nacional.
Com o deslocamento da população do campo para as aglomerações urbanas, os
brasileiros mudaram radicalmente de atitude com relação à fertilidade. A introdução da
pílula anticoncepcional, a esterilização em massa e outros métodos contraceptivos, na
década de 1960, foram levando ao declínio da fecundidade, iniciado discretamente no
período pré-militar nos centros urbanos mais desenvolvidos economicamente, e depois
espalhou-se por todo o país, inclusive para a área rural. Nas décadas de 1940-1960 as
brasileiras apresentavam uma média superior a seis filhos por mulher em idade fértil.
Em 1970 baixou para 5,8. No final da década de 1970, a redução foi dramática,
considerando-se que num intervalo de apenas vinte anos, as mulheres já geravam em
média quatro filhos a menos. A tendência seguiu-se após o fim do regime militar
ficando inferior a três filhos por mulher em 1991. 2,4 filhos em 2000. E 2,1 filhos por
mulher em idade fértil, em 2010, valor mínimo necessário para a reposição da
população.283
(vide tabela 2)
283 LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS
FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 79 e 80.
367
Tabela 2:
Brasil - Taxa de Fertilidade (1940-1980)
Número de filhos por mulher em idade fértil
1940 6,2
1950 6,2
1960 6,3
1970 5,8
1980 4,4
Fonte: IBGE, “Estatísticas do século XX”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais
no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. Op.cit. p. 82.
O controle da fertilidade começou nos estados mais ricos do Sudeste e do Sul. E
também entre a elite econômica do país. No final da década de 1970, o Nordeste
apresentava uma fertilidade natural superior a sete filhos por mulher em idade fértil.
Naquela época a diferença de fertilidade das mulheres do Nordeste e do Sudeste era de
praticamente três filhos. Mas na década de 1980, essa diferença foi se atenuando à
medida que as mulheres do Nordeste começaram a praticar de uma forma mais
sistemática alguma forma de controle da natalidade. A redução no número de filhos,
sobretudo a partir dos anos 1970, trouxe alterações à estrutura da pirâmide etária da
população. As camadas mais jovens da população (a base da pirâmide) sofreram, a
partir dali, uma redução no final do século XX, se compararmos com a metade daquele
mesmo século.284
(vide tabela 3)
284 Id. Ibid. p.81 e 82.
368
Tabela 3:
Brasil - Taxa de Fertilidade (1940-1980)
Número de filhos por mulher em idade fértil
Sudeste Nordeste
1940 6 7,1
1950 5,7 7,6
1960 5,8 7,5
1970 4,6 7,5
1980 3,5 6,1
Fonte: IBGE, “Estatísticas do século XX”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais
no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. Op.cit. p. 82.
A taxa de mortalidade infantil reduziu-se pela metade, passando de 135 óbitos de
crianças para cada mil nascidas vivas, em 1950-1955, para 63 óbitos por mil nascidos
vivos em 1980-1985285
(vide tabela 4). Mas havia enorme desigualdade regional. Em
1980, a mortalidade infantil no Nordeste era o dobro da taxa verificada no Sul e no
Sudeste. A disparidade entre as taxas foi maior em 1980 do que em 1950, pois a queda
destas taxas nas regiões economicamente mais avançadas foi muito mais rápida do que
a verificada nos estados mais pobres do Nordeste.286
(vide tabela 5)
285 Id. Ibid. p.85 e 86.
286 Id. Ibid. p.86.
369
Tabela 4:
Brasil - Mortalidade Infantil de 1950-1955 a 1980-1985
Mortes abaixo de 1 ano por 1000 nascimentos no ano
1950-55 134,7
1955-60 121,9
1960-65 109,4
1965-70 100,1
1970-75 90,5
1975-80 78,8
1980-85 63,3
Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert
S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 87.
Tabela 5:
Brasil - Mortalidade Infantil - Regiões Nordeste, Sudeste e Sul
1950-1980
Mortes abaixo de 1 ano por 1000 nascimentos no ano
Nordeste Sudeste Sul
1950 175 122 109
1960 164 110 96
1970 146 96 82
1980 118 57 59
Fonte: IBGE. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-
1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 88.
370
Quanto à expectativa de vida, no período compreendido entre 1950 a 1980, os
homens experimentaram uma adição de 11,1 anos; e as mulheres de 14,1 anos na
expectativa de vida (vide tabela 6)287
. O problema de novo era a das disparidades
regionais, que refletiam também as diferenças de classe social e de cor ao acesso aos
recursos materiais, fazendo com que as taxas do Nordeste fossem bem inferiores às do
Sul e Sudeste. E, em 1980, havia uma diferença de 14,8 anos na expectativa de vida
entre as pessoas que recebiam apenas um salário mínimo e os que recebiam cinco ou
mais salários mínimos, refletindo cabalmente as desigualdades sociais.288
Tabela 6:
Brasil - Expectativa de Vida ao nascer, 1950-1955 a 1980-
1985
Homens Mulheres
1950-55 49,3 52,8
1955-60 51,6 55,4
1960-65 54 57,8
1965-70 55,9 60
1970-75 57,6 62,2
1975-80 59,5 64,3
1980-85 60,4 66,9
Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert
S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 88.
287
Id. Ibid. p.88.
288 Id. Ibid. p.89.
371
A rápida mudança no crescimento natural relacionava-se às mudanças ocorridas
nas taxas brutas de mortalidade e de fecundidade. O exponencial crescimento do
período 1940-1960 caracterizou-se por uma queda mais rápida da mortalidade em
relação à fertilidade. Em 1960-1980, houve queda mais acentuada da fertilidade e a
partir da década de 1970 se inicia uma fase de redução do crescimento populacional que
prossegue até aos dias atuais (vide tabela 7).
Tabela 7:
Brasil - Taxa geométrica de crescimento anual da população
1940-2010 (em %)
1940-50 2,39
1950-60 2,99
1960-70 2,89
1970-80 2,48
1980-90 1,93
1990-2000 1,64
2000-10 1,17
Fonte: IBGE, 2010. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais
no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 90.
Apesar dos militares serem avessos aos movimentos populares iniciados ainda na
época de Vargas, eles deram continuidade ao seu projeto de consolidação de um Estado
industrial moderno. Embora, as políticas postas em prática votadas ao estímulo da
economia, tenham causado sérios desequilíbrios como o déficit público, inflação e
endividamento externo, o regime militar deu uma enorme contribuição para que o Brasil
se tornasse de vez o líder industrial da América Latina. Mais importante ainda foi a
consolidação de um mercado interno, estimulado pela mesma industrialização e pelos
inúmeros programas destinados a proteger a produção nacional e aumentar a escala de
produção (especialmente nos bens de consumo duráveis). O processo resultou na
criação de um mercado de massas e na consolidação de uma classe média, em
372
contraposição à classe trabalhadora em expansão.289
Isto apesar do aumento das
desigualdades sociais, concentração de renda e da exclusão de parcelas da população
mais pobre. Porém, tais mudanças não podem ser ignoradas porque tal expansão do
mercado e do consumo, bem como a cristalização de uma classe média, ocorrem
concomitantemente à industrialização e urbanização nacionais que vinham em curso há
algumas décadas.
No regime militar, a rápida industrialização e a intensa urbanização
acarretariam mudanças sociais como o surgimento de uma nova elite industrial e
gerencial, a partir de uma sociedade com características ainda rurais e com baixo padrão
educacional. A industrialização resultou em intensas migrações das áreas pobres para as
zonas mais ricas do Brasil, com rápido e desordenado crescimento das regiões
metropolitanas. A incapacidade de atender de forma adequada à forte demanda por
habitação e saneamento explica parte dos assentamentos precários encontrados ainda
hoje na periferia das grandes cidades brasileiras.290
Por outro lado, os governos militares, pela necessidade de melhorar a qualidade
da mão-de-obra e como forma de obter o apoio da classe média emergente, promoveram
um significativo aumento na oferta de educação primária e secundária, e expandiram o
ensino técnico e tecnológico de forma significativa. Embora não tenha sido suficiente e
não tenha obtido um verdadeiro sucesso completo, o regime militar implantara um
programa de habitação e saneamento, por intermédio do BNH (Banco Nacional da
Habitação), passível de críticas por conta de seu modelo tecnocrático e autoritário.291
Paralelamente, como já discutido antes, foram ocorrendo transformações
demográficas radicais na estrutura da população nacional. No início do regime tinham-
se taxas elevadíssimas de fertilidade e de mortalidade e baixa expectativa de vida.
289 Id. Ibid. p.66.
290 Id. Ibid. p.66-67.
291 Id. Ibid. p.67.
373
Durante as duas décadas de regime militar, até por conta de transformações exteriores
ao território brasileiro, foi ocorrendo uma acentuada queda da fertilidade, influenciada
pela mudança radical do comportamento das mulheres brasileiras quanto ao tamanho da
família, processo este que se verificava nos países da Europa e nos Estados Unidos.292
A transformação do Brasil em uma sociedade predominantemente urbana
representou uma característica fundamental do período. Junto ao crescimento
exponencial das cidades, houve redução da população rural pela primeira vez. As
oportunidades que surgiram nas cidades em crescimento e a modernização da
agricultura geravam as forças de atração populacional pelas cidades e as de expulsão
pelo campo. Isto intensificou o processo de migração interna para as cidades,
suplantando as fronteiras estaduais e as regionais.293
O modelo de crescimento trouxe também a ampliação das desigualdades de
acordo com a classe social e pela cor, pois as pessoas com nível educacional mais
elevado e os brancos tiveram mais oportunidades de ascensão social do que os não-
brancos e aqueles de baixo nível educacional. Aumentaram-se assim as disparidades
conforme o grau de instrução, o grupo étnico, bem como as disparidades regionais,
agravando-se as mesmas já existentes, por exemplo, do Norte e do Nordeste do Brasil
com relação ao Sudeste e ao Sul do país.294
Para LUNA e KLEIN (in: REIS FILHO, RIDENTI e MOTTA, 2014),295
o núcleo
essencial da política governamental do período militar de 1964 a 1985 foi a criação de
uma sólida base industrial. Os instrumentos adotados para se estimular os investimentos
na indústria foram o controle salarial, a proteção ao mercado nacional e o fortalecimento
292 Id. Ibid. p.67.
293 Id. Ibid. p.68.
294 Id. Ibid. p.68-69.
295 Id. Ibid. p.69.
374
da infraestrutura. Houve a reorganização do mercado financeiro e de capitais, formação
de fundos compulsórios de poupança, um amplo conjunto de incentivos e subsídios,
estímulo à produção agrícola, controle de preços e arrocho salarial. O crescimento
econômico acelerou-se, mas a desigualdade também.
Os incentivos e subsídios ao setor produtivo, a contenção dos movimentos dos
trabalhadores e o arrocho salarial foram ampliando o abismo distributivo e
concentravam os ganhos obtidos com o crescimento e o aumento da produtividade.296
O crescimento substancial do crédito rural, os mecanismos de proteção à produção
nacional, os estímulos às exportações, bem como a intensa pesquisa e a difusão do
conhecimento, promoveram uma verdadeira revolução na tecnologia agrícola. Uma
significativa parcela da mão-de-obra rural foi liberada do campo por conta da utilização
de insumos modernos e da mecanização. Por outro lado, a área plantada e a produção
agrícola aumentaram. Apesar de todo este processo de modernização experimentada
pela agricultura brasileira, a estrutura da propriedade fundiária não foi substancialmente
alterada.297
A migração maciça de, sobretudo, nordestinos pobres para as fazendas e fábricas
dos principais estados do Centro-Sul do país, continuou a ser o principal movimento
migratório no país, deslocamento esse que já vinha de antes do regime. Os estados de
São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná absorveram 2 milhões de brasileiros na década de
1950, nos anos 1980 atingiram os 7,2 milhões após três décadas de crescimento
contínuo. Por outro lado, os estados da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais [estado que
apesar de se localizar na Região Sudeste (de acordo com o IBGE), apresenta a sua
porção setentrional na Região Geoeconômica do Nordeste, conforme a divisão de
Geiger (1967), estando aí incluído entre os estados que mais “exportaram” mão-de-obra
para outras partes do Brasil], estes três estados perderam cerca de 1,5 milhão de
residentes nos anos 1950 e alcançariam a cifra de 5,8 milhões de pessoas “exportadas”
nos anos 1980. Para completar, é fundamental assinalar um outro movimento migratório
296 Id. Ibid. p.69.
297 Id. Ibid. p.76.
375
expressivo: o de agricultores do Rio Grande do Sul para as novas áreas, ou “fronteiras
agrícolas”, do Norte e do Centro-Oeste, contribuindo significativamente para o
crescimento demográfico dessas regiões.298
O período de 1940 a 1980, que compreenderia mais precisamente desde meados
do período do Estado Novo de Getúlio Vargas, até à fase final do regime militar (o ano
de 1980 já tinha como presidente da República, o general Figueiredo, o último do
período militar), representou a fase da transformação do Brasil em uma sociedade
majoritariamente urbana, pois no Censo de 1970, a população urbana ultrapassou a
rural. Nos primeiros anos da década de 1970 houve relativa estabilidade da população
rural, mas na segunda metade da mesma década a população no campo começou a cair
em termos absolutos, ao mesmo tempo que a população urbana crescia aceleradamente,
muito acima do padrão mundial. Em 1980, a população urbana era mais de três quartos
da população brasileira.299
(vide tabela 8)
298 Id. Ibid. p.76.
299 Id. Ibid. p.77.
376
Tabela 8:
Tamanho da população urbana e rural no Brasil
Em milhões de habitantes (1940-1980)
Pop. Urbana Pop. Rural
1940 13 28
1950 19 33
1960 31 39
1970 52 41
1980 80 39
Fonte : IBGE, "Estatísticas do século XX".
In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-
1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.).
50 anos do golpe de 1964. A ditadura que mudou o Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro. Zahar,
2014. p. 77.
Percebe-se que a urbanização brasileira não foi algo restrito somente ao regime
militar. Esta já era um processo pretérito, porém durante o regime o processo de
urbanização seguiria transformando definitivamente o Brasil em um país urbano e em
uma sociedade industrial.
A cidade de São Paulo, ao longo destas quatro décadas analisadas no gráfico,
ultrapassaria a cidade do Rio de janeiro em termos populacionais, ainda antes do
regime, em 1960. Além de se tornar a cidade mais populosa do país, São Paulo se torna
uma metrópole mundial.
O rápido crescimento da população urbana, dentro de um período de poucas
décadas, trouxe elevados custos sociais, que persistem até hoje. Por conta das
debilidades nos investimentos em infraestrutura, em habitação e em saneamento, não foi
dada conta do afluxo de migrantes que se dirigiram aos grandes centros urbanos
brasileiros. O resultado disso é visível e mais do que perceptível nas paisagens urbanas
brasileiras: as favelas, loteamentos irregulares ou outras formas de moradias
subnormais. As favelas já existiam anteriormente à 1964, no entanto o exponencial
377
crescimento urbano que se seguiu nos anos 1960 e 1970 tornou a questão da moradia e
do saneamento um dos principais problemas das áreas metropolitanas, até aos dias
atuais.
Na época do regime militar, a construção de moradias populares baseava-se no
SFH (Sistema Financeiro de Habitação), criado no período. O colapso desse sistema
por conta da deterioração econômica que o Brasil experimentaria, especialmente nos
anos 1980, afetaria a capacidade fiscal do governo federal e dos estaduais, fazendo
arrefecer os investimentos públicos em saneamento e habitação, acarretando o aumento
no número de favelas e de seus moradores. Esta difícil situação fiscal dos estados
afetaria a popularidade dos governadores eleitos através do voto direto em 1982,
inclusive os da oposição ao regime, que governavam estados como São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais.
O ciclo da repressão política na década de 1960 sedimentaria de vez a tradição da
violência policial pré-golpe às novas práticas repressivas colocadas a partir do AI-5.
Para o combate à guerrilha e à luta armada, o sistema de repressão do regime militar
incorporou métodos policiais, dentro da teoria do combate ao “subversivo de esquerda”.
Os quadros recrutados pelo aparato repressivo, como o delegado Fleury, que fizeram
seu nome nos chamados “esquadrões da morte”. Estes “esquadrões” eram bandos tão
violentos que a própria cúpula do regime permitiu que a justiça os combatesse, embora
grande parte da sociedade os considerassem justiceiros.300
Exemplo disso foi a luta
empreendida pelo promotor público e procurador da Justiça, Hélio Bicudo, que
investigou a participação do “esquadrão” no narcotráfico, no extermínio de quadrilhas
em benefício de outras e na direção de setores do crime organizado. Enfrentando tal
“organização”, Hélio Bicudo foi exonerado do cargo. Mesmo assim, o Judiciário
acolheria um processo contra Fleury. Porém, o governo, em 1973, elaborou uma lei: a
“Lei Fleury” – os réus primários, mesmo sendo condenados, não seriam presos até o
julgamento do recurso em última instância. Perante a justiça, Fleury, por conta de tal lei,
exerceria normalmente o seu “trabalho” até a sua morte, em 1979.301
300 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p.143.
301 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 67.
378
Paralelamente aos esquadrões da morte, voltados a se vingar de policiais mortos e
vender proteção a bandidos que pudesse pagar, foi ocorrendo também a militarização da
segurança pública. A subordinação das polícias militares estaduais ao comando do
Exército fez parte deste processo. A dicotomia e o desentrosamento entre a Polícia
Civil, que até 1964 era a coordenadora do policiamento urbano e a recém-criada Polícia
Militar acabaria por aumentar a disfuncionalidade da Segurança Pública. Num contexto
de expansão das grandes metrópoles, com grande migração interna e várias carências
em núcleos de povoamento informais – como as favelas – a velha estrutura da segurança
pública se tornava cada vez mais ineficaz para coibir a violência entre cidadãos,
especialmente os mais pobres. A polícia, até os anos 1970, pouco comparecia às áreas
periféricas. No entanto, a partir dali, com o criminoso comum também transformado em
um novo inimigo, a lógica do patrulhamento militar estará presente no dia-a-dia das
periferias em forma de expedições preventivas ou punitivas. Esta prática policial,
somada à violência entre vizinhos, o avanço do tráfico de drogas face à ausência do
poder público em outros setores (como na educação), fará explodir um ciclo de
violência. A Justiça, ora displicente, ora lenta; e a sociedade, sentindo-se impotente ou
sendo conivente deixaram amadurecer esse ciclo de violência. Soma-se a isso o
preconceito social e racial em se tolerar a violência no controle social dos pobres e dos
marginais.302
O país pode ter mudado em alguns aspectos, mas a questão da segurança pública
ainda persiste. A nova lógica é a do bandido como sendo o inimigo que atua num
território que precisa ser identificado para se realizar a aniquilação do “suspeito” ou dos
potenciais “suspeitos”.
Falando-se em “territórios”, o crime foi criando os seus próprios. E a política de
segurança exposta acima foi se revelando um grande fracasso. Primeiro porque a
violência urbana e a criminalidade são problemas que assolam o nosso país há décadas e
os índices nunca melhoraram significativamente, mesmo após o fim do regime. A lógica
do “extermínio” do suspeito, ou do potencial suspeito, desgastou de vez a imagem da
polícia, odiada por suas vítimas potenciais, as populações pobres e periféricas. E não
302 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p.144.
379
são somente os jovens. Senhores, senhoras e todos os cidadãos de bem, que moram nas
áreas periféricas, carregam essa imagem extremamente negativa das forças policiais.
Para piorar, a polícia deixou de ser temida e respeitada, por conta da capacidade de
armamento e de organização do crime, fazendo-se uma verdadeira “guerra particular”
entre as forças policiais e o crime organizado, como foi na cidade de São Paulo, em
2006, entre a Policia Militar paulista e a facção criminosa que tem atuado no estado. No
meio da “guerra” fica a população cujas parcelas mais expostas são as que vivem nas
áreas periféricas.
E para incrementar, a população tomada pelo medo e pela revolta diante da
violência, da ousadia, da impunidade dos criminosos e da lentidão da Justiça, vive
enfadada desta situação ao ponto de se sentir vingada quando um bandido é morto. De
vingança em vingança, (de bandido matando policial, de policial matando bandido), a
segurança pública se deteriorou e, mesmo após o fim do regime este continua sendo um
dos mais graves problemas do nosso país.
Os diferentes governos, na esfera federal, que passaram após a redemocratização
pouco fizeram pela área da segurança pública (se pensarmos em diretrizes mais gerais,
ou na atuação do Legislativo federal, com relação às leis). Esta área, que na verdade, é
de competência dos governos estaduais, no que se refere às forças policiais – a Civil e a
Militar -, carece de uma política séria e bem fundamentada. Os governos estaduais tem
se mostrado inoperantes e coniventes nesta área. Infelizmente é até comum que altos
quadros das forças policiais estaduais estejam envolvidos com o crime organizado. Mais
lamentáveis também foram as cenas de enfrentamento entre a polícia Civil e a Militar de
uma mesma unidade da Federação (isso já ocorreu em São Paulo e no Distrito Federal),
ou as greves de policiais militares, como a de 2001, na Bahia, em que policiais
encapuzados bradavam durante o movimento, com armas em punho, enquanto a
população ficava vulnerável aos episódios crescentes de saques, assaltos e até
assassinatos. O sucateamento, o mal preparo e os salários baixos dos policiais; a
capacidade de organização e armamento do crime; e a lógica da vingança, do extermínio
e das chacinas, vem nos mostrar um quadro de verdadeira falência da segurança pública.
Outro nó complicadíssimo é a questão dos direitos humanos. O cidadão comum,
movido pela raiva, preconceito e medo passa a ter aversão ao assunto dos direitos
humanos, vistos como “privilégios para bandidos” por conta da lentidão e morosidade
380
da Justiça que cria uma situação de impunidade. O extermínio de marginais passa a ser
bem recebida pela classe média baixa e os comerciantes das áreas periféricas,
atormentados pelo espiral cotidiano da violência. Assim a pauta dos direitos humanos é
mal recebida pelo eleitor/cidadão comum, dificultando e inviabilizando uma discussão
mais profunda e séria sobre o tema da segurança. E emperrando de vez os trabalhos
voltados para a apuração e, quem sabe, punição, aos violadores dos direitos humanos na
época do regime militar.
Programas de rádio e de televisão, voltados a mostrar o “mundo-cão” dos
homicídios, estupros, sequestros, etc., acabaram por endossar o discurso da extrema-
direita voltado às críticas a esses direitos. Tais programas (de grande audiência, por
sinal) - ainda que mude o apresentador, ou o canal, ou a estação de rádio - estão no ar há
décadas e está mais do que comprovado que não contribuem em nada, absolutamente
nada, para resolver o problema da segurança pública e da criminalidade, pois não
ajudam o cidadão a ser um eleitor crítico e a escolher seus governantes no momento do
voto. Muito menos em cobrar das autoridades certas aquilo que é o de sua alçada.
O que quero dizer é que a maioria dos cidadãos cobra, por um lado, o governo
federal que está mais exposto nos noticiários e na imprensa, De outro lado, o poder
municipal por estar mais próximo a eles. No entanto muitas vezes se esquece (ou finge
esquecer) que a segurança pública é atribuição dos governos estaduais.
No setor da educação, o regime militar daria continuidade ao persistente
crescimento da educação primária e secundária que se iniciara após o fim da Segunda
Guerra Mundial. E no período de 1960-1980, as matrículas no ensino secundário e
universitário cresceram mais do que a população.303
Luna e Klein também apontam que foi no regime militar de 1964 que, pela
primeira vez na história brasileira, o governo brasileiro investiu maciçamente em
ciência e tecnologia. Em 1964, ainda nos primeiros meses do regime, foi estabelecido
através do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e o Fundo de
Desenvolvimento Tecnológico (Funtec). Em 1974, já aqui citado, o pequeno Conselho
303
LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Op.cit. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;
MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). p.69.
381
Nacional de Pesquisas foi expandido e transformado no CNPq (Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Assim, o governo militar passava a investir
maciçamente em pesquisa avançada, na implantação da infraestrutura e na consolidação
das indústrias básicas.304
Simultaneamente, cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e de outros
novos centros de pesquisa seguiam o modelo da Fundação Nacional de Ciência dos
Estados Unidos, que teve papel importantíssimo depois da Segunda Guerra Mundial,
transformando a superpotência capitalista no principal centro mundial de ciência e
tecnologia. Antes do regime militar, mais precisamente em 1953, por meio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes, criada em
1951), o governo passou a financiar bolsas de estudos para estudantes nas áreas
científicas. Na década de 1960 um número expressivo de cientistas brasileiros já haviam
tido experiência de treinamento no exterior, especialmente nos Estados Unidos e na
Inglaterra. Após retornarem ao país, eles passaram a exercer forte pressão para a criação
de modernos laboratórios e outros instrumentos de pesquisas, fundamentais para que o
Brasil pudesse se inserir competitivamente no cenário mundial científico e
tecnológico.305
Em 1968 ocorreu uma ampla reforma universitária, adotando o modelo norte-
americano de organização por departamentos e criando a estrutura de formação em três
níveis: graduação, mestrado e doutorado. Esse foi o padrão seguido pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade de Brasília (UnB), criadas
naquele período, e pela USP, bem como pelas demais universidades federais que seriam
implantadas em todos os estados. Além disso, em 1966 o governo estadual paulista
inauguraria uma universidade em Campinas (Unicamp), composta por enorme parcela
de professores nacionais formados no exterior e por estrangeiros. A Unicamp foi
304 Id. Ibid. p.72.
305 Id. Ibid. p.72 e 73.
382
projetada desde a origem para transformar-se em centro de pesquisa científica avançada,
especialmente em Física.306
Os governos militares também implantariam a indústria aeroespacial e de
computadores, e lançou um ambicioso programa de pesquisa nuclear, envolvendo
unidades de pesquisa situadas fora das universidades. Essas foram algumas das
principais ações no período, que colocaram o Brasil em posição de destaque na área
científica e transformaram o país, junto com a Índia, em um dos poucos do mundo
subdesenvolvido com possibilidade de competir no cenário da comunidade científica
internacional.307
Mas, se formos pensar que as relações entre os governos militares e a comunidade
científica foram um “mar de rosas”, estaremos redondamente enganados. É sabido que
muitos cientistas foram perseguidos, exilados ou aposentados compulsoriamente. A
repressão foi mais feroz nas ciências humanas, mas as exatas também não ficaram
ilesas. Exemplo disso foi o desmantelamento do Departamento de Física da UnB, após a
terça parte de seu corpo docente sofrer perseguição e o campus universitário ser
invadido. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), principal órgão
da comunidade científica brasileira, fez oposição sistemática ao regime militar e foi uma
das vozes importantes no processo de transição democrática do país.308
Somada ao fortalecimento dos centros de pesquisa, ocorreu também durante os
anos do regime uma lenta, porém persistente expansão do sistema universitário. O
número de estudantes universitários passou de 142 mil, em 1964, para 1,3 milhão em
1984. Paralelamente, os programas de pós-graduação dobraram as suas matrículas,
atingindo a cifra de 40 mil alunos em meados da década de 1980. O percentual de
306
Id. Ibid. p.73.
307 Id. Ibid. p.73.
308 Id. Ibid. p.73 e 74.
383
jovens de 20 a 24 anos que frequentavam o ensino superior – universidades e escolas
técnicas – cresceu de 2% para 12% entre 1965 a 1985.309
O Estado autoritário também promoveria a expansão da rede de infraestrutura,
avançando à frente do setor privado em segmentos industriais considerados estratégicos
para a consolidação do projeto geopolítico. Em 1979, o setor industrial respondia por
38% do PIB.310
As transformações da estrutura industrial brasileira se deram com o
aumento da participação dos setores de metalurgia e produtos químicos, e redução nos
setores têxtil e de alimentos. No eixo eletroeletrônico, merece menção a criação da Zona
Franca de Manaus, em 1967. O deslocamento espacial do investimento industrial se
acentuou nos anos 1970, e foi complementar e articulado à acumulação no núcleo
industrial consolidado. Cita- se também a “dispersão” da indústria para o interior do
estado de São Paulo, mas com a permanência de importantes centros de controle e
decisão na metrópole paulistana.
Tem-se também o avanço do complexo agroindustrial cujo exemplo marcante é
o cultivo da soja, rompendo a fronteira dos cerrados e ressaltando uma nova fase da
agricultura brasileira, especialmente na região Centro-Oeste. Novas relações se
manifestam entre trabalhadores rurais, com ou sem terra, e com as corporações que
ampliam sua área de atuação (MULLER, 1982)311
. Há ainda a generalização do
trabalho temporário e sazonal, como os bóias-frias, que vivem na periferia de
pequenas e médias cidades.
“A via autoritária brasileira de tratar a questão agrária brasileira foi capaz
de garantir a modernização da agricultura, através de sua crescente tecnificação,
mantendo intocável a grande propriedade. As conseqüências deste processo foram
inevitáveis, com a liberação maciça de grandes contingentes populacionais que se
309 Id. Ibid. p.74.
310
BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit., p.187.
311 Id., ibid., p.192.
384
dirigiram para as pequenas e médias cidades, funcionando como reserva de mão-de-
obra, acentuando a histórica concentração da posse da terra.”312
Destaca-se também a organização espacial das redes nacionais como a da
circulação de mercadorias, referente à malha rodoviária, que reflete a área de
mercado integrada. Esta rede apresenta grandes eixos nacionais que convergem para
o centro manufatureiro do Centro-Sul do país, como a BR-116, interligando o
Nordeste ao centro industrial do Sudeste. Quanto à energia elétrica, esta rede se
sobrepõe à área industrial central. Na verdade, o processo de industrialização do
Brasil foi tardio e simultâneo à necessidade de se constituir uma rede de energia
elétrica. Já a rede de telecomunicações mostra que os maiores aglomerados urbanos
estão interligados, quanto à circulação rápida de informações a longa distância,
refletindo os efeitos da centralização dos processos decisórios na cidade mundial e
também atende às demandas do setor financeiro, no tocante às ligações rápidas e
confiáveis a longa distância. Essas redes aparecem então como importantes
indicadores do processo de modernização do território.
O conceito de semiperiferia, de WALLERSTEIN (1979:83) in: BECKER &
EGLER (1998), traz uma síntese contraditória, num mesmo território e num mesmo
momento, de espaço e tempo díspares, cujo ajuste é obtido a partir de instrumentos
políticos onde o Estado assume papel central.
O que os autores chamaram de “malha programada” produziu fronteiras,
garantiu domínios e consolidou uma cidade-mundial (São Paulo), representando uma
nova forma de inserção do Brasil na economia mundial. Porém persistem a questão
regional no Nordeste, a imensa fronteira amazônica e a conformação de um vasto
complexo urbano-industrial, durante as décadas de 1960 e 1970, a partir do centro
dinâmico do Sudeste.
No processo de reestruturação da economia mundial surgiram: as novas
tecnologias de produção e gestão; a formação de espaços econômicos
supranacionais; e o neoliberalismo como novo patamar nas relações entre o Estado e
312 Id., ibid., p.193.
385
ao mercado mundial. Neste processo, os Tigres Asiáticos recuperaram-se
rapidamente por serem mais flexíveis e se aproximaram do Japão. O México se
aproximou dos Estados Unidos. Já a Índia, a China e o Brasil, tiveram um
crescimento relativamente autárquico e despontaram como potências regionais. No
Brasil ocorreu uma maciça migração de corporações transnacionais (principalmente
norte-americanas e européias), e a consolidação de um mercado nacional que
autarquizou-se em relação ao mundial, com um importante papel do Estado.
A centralização excessiva do poder governamental encontrou a resistência da
população excluída e demandas localizadas evoluíram para conflitos pontuais. A
mobilidade da força de trabalho provocou a ruptura da população com seus
territórios, fazendo crescerem os espaços das reivindicações. Campo e cidade se
tornam palco de “invasões”, cristaliza-se a disputa por lugares e posições que vão se
manifestar no surgimento de “poderes paralelos”. Isto se deu, sobretudo, nas
periferias das grandes cidades, que relacionados à estruturação do crime organizado,
procuraram preencher um vácuo de poder deixado pelo Estado, especialmente no
Rio de Janeiro, que não apresenta uma estrutura industrial do porte de São Paulo,
resultando na disseminação da favelização, de loteamentos periféricos deficientes em
infraestrutura e em serviços coletivos, gerando um grave quadro de tensões.
A crise de território na Amazônia se materializa entre os interesses dos
grandes projetos em choque com os interesses indígenas e extrativistas. Cita-se o
assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1988, líder dos seringueiros do Acre,
que junto com os indígenas formavam a União dos Povos da Floresta. No norte da
Amazônia a expansão do garimpo para o norte ameaça as tribos indígenas e, mais
precisamente, na área dos índios Yanomamis, com subsolo rico em ouro, estanho,
urânio e pedras preciosas, que estão inseridas num grande projeto militar, o Calha
Norte, que abrange 14% do território nacional, nos estados de Roraima, Amapá e
norte do Pará e Amazonas.
Na indústria, há a consolidação de complexos industriais integrados à
conquista de fatias do mercado externo. Grandes organizações procuram romper com
os limites territoriais do Estado-Nação, em favor de lugares e posições, negociando
diretamente com frações locais e regionais.
386
Finalmente é importante relembrar que foi nos grandes centro urbanos,
sobretudo nas metrópoles, principais palcos das contradições do processo de
modernização autoritária, que se abrigou os principais segmentos da oposição ao
regime militar de 1964. Nesse contexto teve-se a importância da Igreja Católica, das
Comunidades Eclesiais de Base e o “novo sindicalismo”, presente, sobretudo, no
ABCD paulista (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e
Diadema), ou seja, na borda da metrópole paulista, e que originaria o PT (Partido
dos Trabalhadores). Os grandes centros urbanos se tornaram as principais frentes do
processo de transição democrática.
A recessão global do início da década de 1980 levaria a uma crise econômica,
acarretando uma brusca redução dos fluxos externos, a partir de 1982. Mas a dívida
externa e a dívida interna não foram, por si só, obstáculos ao crescimento econômico,
já que o Brasil está mais favorecido na relação dívida externa/PIB. O que, de fato,
teria ocorrido foi o esgotamento de um padrão de industrialização onde a inflação
solucionaria o conflito distributivo, mantendo-se os lucros e transferindo-se para os
preços qualquer aumento salarial, sendo que o setor público seria o meio de se
socializar os riscos do investimento privado313
.
“Rompido este padrão político de financiamento, o Estado esgotou sua
capacidade de sustentar o crescimento sem risco para as empresas e configurou-se
uma situação em que a superação da crise exige uma negociação das perdas, onde o
setor privado procura defender suas posições e impor a “privatização” do capital
social investido nas empresas públicas como forma de reestruturar a economia. A
grande questão que permanece é como financiar a expansão dos serviços básicos,
necessários à manutenção do ritmo de crescimento da economia e à melhoria da
distribuição de renda, funções precípuas do Estado.”314
313 Id., ibid., p. 239.
314 Id., ibid., p. 243.
387
5- Geografia Política e Geopolítica: suas evoluções e
diferenciações
A evolução da Geografia Política vem ocorrendo desde fins do século XIX.
Esta tem se dado não de uma forma simples, mas sim numa complexidade que tem sido
inerente à dinâmica da política dos Estados, bem como das relações internacionais ao
longo desse tempo – tanto no viés civil e militar; como no da guerra e da paz. Assim
sendo, um primeiro aspecto dessa complexidade é que seu desenvolvimento tem sido
marcado pelas conjunturas e circunstâncias de cada momento, de cada época, ao longo
da História.
Um segundo aspecto seria que os diferentes autores desse sub-ramo do estudo
geográfico refletem, em maior ou menor grau, a influência de uma determinada nação
ou país na qual o autor está inserido, refletindo os objetivos de determinado Estado ou
grupo de Estados, marcando a sua geografia política nos contextos político e territorial.
Assim há particularidades e singularidades que dificultam uma pretensa análise dentro
de modelos lógico-formais previamente sistematizados.
Sempre existiu o que COSTA (1992) denomina de “dúvida legítima” quanto ao
estatuto científico do pensamento em Geografia Política. As obras fundamentais e
clássicas desse sub-ramo da Geografia existem, bem como um conhecimento
sistemático produzido ao longo de um tempo histórico, capaz de suplantar fronteiras e
entrecruzar os meios acadêmicos e não-acadêmicos. Todavia, a maioria de seus autores
tem preferido iniciar seus estudos com tais indagações, na intencionalidade de produzir
uma obra dita “universal”, para além de injuções, circunstâncias e conjunturas
momentâneas, extrapolando o seu próprio tempo e lugar. Seria o grande receio de
caírem prisioneiros de suas próprias fronteiras, como afirma COSTA (1992), ou seja,
de incorrer no erro de serem enquadrados como mera “ideologia” ou “falso
conhecimento”.
Para se encarar essa problemática, há a necessidade de se trazer em destaque a
palavra território, não isoladamente, mas no contexto da política territorial dos Estados
- os modos e manifestações de exercício do poder estatal no território. Também é
preciso visualizar as fronteiras entre o exercício do poder estatal e a prática acadêmica,
388
muitas vezes colocados em lados opostos. Mas tanto a Geografia Política, como a
Geopolítica, apresentando-se como ideologia de Estado, não podem ser entendidas
somente como um conhecimento concebido exclusivamente pelo Estado, pois sua
origem pode ser do próprio meio acadêmico (a universidade).
O Estado moderno tem realizado suas próprias investigações no tocante aos
problemas territoriais; à formulação de políticas públicas; e à execução das mesmas -
dentro de estratégias de alcance nacional e internacional, não se restringindo somente
aos seus segmentos militares. Também não é uma exclusividade restrita aos Estados
autoritários. Tais investigações estão presentes em sociedades contemporâneas e
democráticas, como nas questões internacionais. Porém, quanto a estas últimas, se o que
estiver em pauta é o conflito entre as nações, a Geografia Política tenderá
estruturalmente, conforme o mesmo autor, a se tornar estatal-nacional.
Costa também assinala, dando sequência em seu raciocínio, que
tradicionalmente: “o setor identifica como Geografia Política o conjunto de estudos
sistemáticos mais afetos à Geografia e restritos às relações entre o espaço e o Estado,
questões relacionadas à posição, situação, características das fronteiras, etc.; enquanto
que à Geopolítica caberia a formulação das teorias e projetos de ação voltados às
relações de poder entre os Estados e às estratégias de caráter geral para os territórios
nacionais e estrangeiros, de modo que esta última estaria mais próxima das ciências
políticas aplicadas, sendo assim mais interdisciplinar e utilitarista que a primeira”.315
Um primeiro problema que se apresenta é que a obra Geografia Política
(1897), de Ratzel é tomada tanto pela Geografia Política, como pela Geopolítica, como
o seu marco fundador, apesar do rótulo “geopolítica” ter sido elaborado pelo sueco R.
Kjéllen. Como então podemos diferenciar ambos? As bases conceituais e teóricas de
ambas têm muito em comum. COSTA (1992) apresenta como um primeiro critério de
diferenciação, o “nível de engajamento”316
do estudo aos objetivos estratégicos
nacionais-estatais.
315 COSTA, Wanderley M. - Geografia Política e Geopolítica: Discursos sobre o Território e o Poder.
São Paulo. Ed. Hucitec e Ed. da Universidade de São Paulo, 1992. p.16.
316 Id.,ibid., p.17.
389
Um dos principais problemas da Geografia Política tem sido a de não trabalhar
o conceito de Estado, preferindo generalizá-lo, colocando-o como desprovido de
contradições internas e de percurso histórico, perdendo assim a sua natureza humana,
social e política, como se fosse uma entidade abstrata acima de quaisquer contradições,
algo superior e até “infalível”. Outros conceitos da Geografia Política também
apresentam o mesmo problema, quanto às imprecisões e ambiguidades. É o caso de:
sociedade, população, território, espaço, fronteira, centralização, descentralização,
federação, nação, unidade, etc. Esses conceitos sempre estiveram sujeitos às
instabilidades das alternâncias entre os períodos de guerra e paz, inserindo-se na já
citada complexidade da evolução da Geografia Política, mencionada no início do texto.
Tomemos como exemplo, e nos restringiremos, ao conceito de federação.
Estado Federal, segundo Manuel Correia de Andrade e Sandra Maria Correia de
Andrade (1999)317
, é aquele em que as unidades administrativas que o compõem
usufruem de autonomia, embora não sejam independentes. Seria o oposto dos chamados
estados unitários, cujas unidades administrativas são governadas diretamente pelo
poder central, ou por meio de delegados nomeados. DALLARI(1986)318
assinala que o
Estado Federal é uma criação norte-americana do século XVIII, refletindo as idéias
predominantes entre os líderes das colônias inglesas da América, em que a
Confederação desses novos Estados na América do Norte evoluiu para a criação de um
Estado Federal, no processo de formação e consolidação dos Estados Unidos da
América. No caso da federação brasileira, conforme ANDRADE & ANDRADE (1999), o
Brasil tem se alternado, desde o período colonial, ora num sistema centralizado, ora sob
um sistema descentralizado. O nascedouro do federalismo brasileiro deu-se a partir da
Proclamação da República, em 1889, ratificando-se através da Constituição de 1891,
com as províncias ganhando autonomia, sendo assim elevadas à condição de estados.
Foi um verdadeiro movimento de “contramão” se comparado à experiência norte-
americana. Lá, as colônias se separaram da metrópole inglesa, unindo-se em uma
confederação, para em seguida constituir-se numa federação, caracterizando-se um
317 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. A federação brasileira: Uma
análise geopolítica e geo-social. São Paulo: Contexto, 1999 -(repensando a geografia). p.9.
318 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal. São Paulo. Ed. Ática, 1986. p.7 e 8.
390
movimento centrípeto. No Brasil, o movimento foi centrífugo – do Império evoluía-se
para a formação de unidades autônomas (estados), não independentes.
Aspásia Camargo (1992) assinala in: ABRUCIO, in: ANDRADE (org.) (1998,)
o seguinte: “O Brasil é o único país de tradição federativa em que o termo Federação,
ainda hoje, se identifica com a descentralização, ao invés de significar, como ocorreu
nos EUA e nos demais países, a organização da União”.319
Em 24 de janeiro de 1967, data na qual a Constituição brasileira daquele ano
foi votada, com quase três anos do regime militar em andamento, o nome oficial do
Brasil foi alterado: de “República dos Estados Unidos do Brasil” para o atual nome
"República Federativa do Brasil". Paradoxalmente à mudança de nome, a nova Carta
constitucional, de acordo com BARROS (1998)320
: coroava a hipertrofia do Executivo
(sobretudo em segurança e orçamento); diminuía a autonomia dos estados
enfraquecendo o princípio federalista; e centralizava ainda mais a estrutura
administrativa de tomada de decisões. Esse nome oficial do nosso país perdura até hoje,
num contexto diferenciado de aprofundamento do sistema federativo brasileiro, a partir
da nova Constituição de 1988, reduzindo o papel da União, revalorizando os estados e
introduzindo uma peculiar autonomia dos municípios tornados em entes federativos,
conforme apontou COSTA no artigo intitulado: Ordenamento do Território:concepção e
prática (disponível em https://geopousp.wordpress.com/),na pág 1.
Um conceito especialmente tratado por COSTA (1992) é o de conflito. Esse
conceito tem sido exaustivamente trabalhado por diversos autores que têm buscado até a
solução definitiva para conflitos internacionais ou entre dois Estados específicos. Nesse
tipo de análise, o que tem predominado é o protagonismo das máquinas estatais face à
passividade das sociedades civis nacionais, em que estas últimas seriam apenas um
recurso nas mãos do Estado nacional. A nível interno, a sociedade acaba sendo vista
com “um todo indivisível”, em que qualquer discordância ou conflito de classes, de
partidos políticos, de questões de “interesse nacional”, etc., são vistos como tentativas
319
ABRUCIO, Fernando Luiz. “O ultrapresidencialismo estadual”, in: ANDRADE, Régis de Castro (org.).
Processo de governo no município e no estado. São Paulo; Edusp e Fapesp, 1998. p.97
320 BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo. Contexto, 1998 (Repensando a História). p.
30 e 31.
391
de se “desestabilizar” uma dada “ordem” pré-concebida, como se Estado, nação e
território fossem um todo único. Este, na verdade, é o ponto de vista da Geopolítica:
uma sociedade perfeitamente harmônica e homogênea, submissa a um Estado nacional
onipotente e irrepreensível, como se fosse até um “organismo vivo”, com uma tal
vontade própria, que se imporia como uma verdade absoluta a todo o corpo social.
Enfim, o Estado nacional e a sociedade, de uma forma até “viciada”, são apresentados
praticamente sem nenhuma contradição ou heterogeneidades significativas.
Era esta justamente a visão que o regime militar brasileiro possuía em relação à
sociedade. Esta era vista em sua organicidade, numa ótica sistêmica. O ufanismo
presente, sobretudo nos anos do governo Médici, refletiu bem esta concepção do regime
com relação ao tecido social, a nível interno.
Um outro aspecto importantíssimo na Geografia Política é a presença do
naturalismo - como as condições naturais influenciaram a política territorial dos
Estados. Diferente de outros sub-ramos da ciência geográfica, a Geografia Política
incorporou a seu modo as determinantes naturais ao seu discurso. Na verdade, o
Naturalismo se faz presente no berço da Geografia Política, e da própria Geografia em
si. Essa influência foi marcante na Alemanha, em seu processo de unificação e de
constituição como Estado Nacional, num modelo forte e centralizador. Ao mesmo
tempo, o papel das redes de circulação vai se tornado fundamental em suas análises.
As determinantes naturais, associadas ao conceito de território, dentro dessa
especificidade dada à Geografia Política, apresenta o território, com suas características
físicas intrínsecas, como sendo avaliado em suas potencialidades de penetração,
organização e domínio – um recurso geral para a política estatal. Nesta linha de
raciocínio COSTA (1992)321
apontou três aspectos:
1) As influências do meio natural e dos fatores físicos quanto à posição das
fronteiras e dos territórios: relevo, conformação do terreno, clima, etc., em sua
potencialidade geopolítica;
321 COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.21.
392
2) A tendência à naturalização dos conceitos, em que o Estado seria como um
“organismo vivo”, por exemplo o seu “espaço-vital”, referente sobretudo ao aspecto
físico de seu território;
3) O determinismo particular da Geografia Política, para a história dos Estados,
em que traz à tona a capacidade dos diferentes Estados em construir a sua unidade
nacional interna do ponto de vista da organização política do território, transformando
isso em poder de Estado, capaz de projetar-se também externamente, visando uma
pretensa hegemonia em relação aos outros Estados.
Assim, o mesmo autor utiliza o termo determinismo territorial denotando “que
teria por pressuposto não apenas o quadro natural e a dimensão absoluta do território,
mas principalmente a relação entre potencialidades, isto é, espaço, posição,
virtualidade e coesão organizada”322
Os estudos geográfico-políticos apresentam ainda uma outra peculiaridade em
relação aos demais sub-ramos da ciência geográfica, que é a da sua tendência de ir em
direção à uma escala global, inseridos numa dada visão de conjunto, num equilíbrio de
forças em escala macrorregional e planetária, cabendo aos seus autores possuírem
informações abrangentes e recorrerem à uma cartografia própria, na busca de
acompanhar os movimentos da política dos Estados e blocos de Estados na escala
global. No regime militar brasileiro algo marcante foi a ideologia do “Brasil-Potência”,
um país com um papel a desempenhar, não só internamente ao seu território, mas
também com relação à sua projeção na América do Sul, na América Latina e no cenário
global. Também não faltou naquela época um determinismo peculiar visando à
construção de uma unidade nacional, através da integração territorial, bem como a
consideração dos meios natural e físico do território para a avaliação das
potencialidades geopolíticas do Brasil (tanto internamente como externamente) .
322 Id.,ibid., p.21.
393
5.1- Clássicos do pensamento geopolítico brasileiro:
de Backheuser a Golbery (das décadas de 1930 até a de 1970)
Em seu mesmo trabalho, COSTA (1992) dedica dentro do seu capítulo sobre a
Geopolítica no continente americano, um sub-tópico intitulado Geografia Militar e
Geopolítica no Brasil, abarcando quase 50 páginas (pags 183 à 229). Ao examinar a
evolução dos estudos que abordaram de forma explícita o amplo campo de relações
entre a política e o território, ele constatou que a opção preferencial da esmagadora
maioria de seus autores foi pela Geopolítica – aquela formulada por Kjéllen e
desenvolvida por Haushofer – em que conhecimentos “geográficos” foram manipulados
em prol de esquemas que interessassem às políticas de poder. A “geopolítica
brasileira”, ao contrário do que ocorreu nos países do hemisfério Norte, não foi produto
de uma clássica adaptação da Geografia Política (teórica e sistemática) à forma aplicada
aos períodos de guerra, por exemplo. Nem mesmo teria ocorrido sua brusca
transformação em Geopolítica – um campo mais próximo da Ciência Política e
relativamente autônomo – como foi na Alemanha (com o círculo de Munique). No
Brasil, na Argentina, no Chile, e em outros países da América Latina, a Geopolítica foi
integralmente “copiada” de fora, tentando-se meramente “importar” algo originado da
Europa e querer aplicá-lo ao caso latino-americano sem se fazer praticamente nenhuma
ressalva. Através de operações engenhosas, manipulações e até dissimulações, nossos
geopolíticos se apropriaram de clássicos estrangeiros (como Ratzel e Mackinder),
adaptando-os à uma outra realidade, bem distinta da européia.
Um segundo aspecto dessa geopolítica é que, de acordo com COSTA(1992),ela
representa um inegável atraso cultural, teórico e técnico323
. No Brasil, os estudos
geopolíticos sempre tiveram a hegemonia do pensamento militar e das suas instituições.
Não houve em nosso país um pensamento em Geopolítica, nem em Geografia Política,
produto de uma reflexão acadêmica e universitária. O mesmo autor aponta que, em
geral, trata-se de adaptações, frequentemente diretas e até “grosseiras”, do que foi
323
Id.,ibid., p.186.
394
produzido em outros centros. Mas, sob ângulo oposto, se o interesse for o de examinar
justamente o modo pelo qual essas adaptações tornaram-se instrumentos de análises e
“fórmulas” que interessavam à “realidade geopolítica” do país, ou mesmo a sua
operacionalização em ideologias e políticas, então justificam-se estudos até mesmo
exaustivos sobre o pensamento geopolítico brasileiro. 324
Ao longo do tempo, quase sempre a comunidade geográfica manteve-se
afastada da Geografia Política e, mais ainda, da Geopolítica, até há pouco tempo atrás.
Isso ocorreu tanto no Brasil, como no exterior, já que, principalmente a Geopolítica,
acabou identificada à uma pseudociência, uma ideologia, um falso-conhecimento,
levando os geógrafos a se manterem em silêncio e se omitirem diante de tal
“manipulação” dos conhecimentos geográficos em prol de ideologias e de
condicionantes políticas. No caso específico brasileiro, a geopolítica nacional destinou-
se à chamada “guerra interna” (conforme a colocação de vários analistas), tendo por
base a nossa particular história política, desde a colônia até ao período republicano.
Um outro fato a se destacar é que não foram os geógrafos que produziram a
geopolítica brasileira (diferentemente do que ocorreu no exterior), e nem serão eles os
principais atores a fazer comentários posteriores com relação à geopolítica nacional.
COSTA (1992), destaca duas figuras da Ciência Política: Shiguenoli Miyamoto e Leonel
I. A. Mello: os quais produziram as primeiras análises críticas, de forma exaustiva, do
pensamento geopolítico nacional.
Miyamoto, em seu trabalho, aponta características em comum entre as
principais obras de geopolíticos brasileiros: a) a absorção imediata das idéias
geopolíticas que se desenvolviam na Europa; b) a ênfase naquelas teorias que
privilegiam a necessidade do nacional-territorial; c) no ambiente ideológico interno, a
transposição para as fórmulas geopolíticas, das principais idéias do conservadorismo
nacional, nas suas piores feições (anti-republicanas, antidemocráticas e antifederativas)
exemplificadas em Alberto Torres e Oliveira Viana; d) a flagrante predominância dos
militares no campo dos estudos geopolíticos. Miyamoto, ao analisar a conjuntura
324 Id.,ibid., p.186 e 187
395
política nas décadas de 1920 e 1930, destaca a veemente defesa da centralização do
poder político na gestão territorial:
“As discussões sobre a centralização ou descentralização do poder, as suas
vantagens e incoveniências, eram o tema do debate naqueles anos. A situação político-
administrativa instável pela qual passava o país tinha um responsável: a República.
Era esta, aos olhos dos defensores do sistema unitário, a culpada, pois sob ela se deu a
autonomia dos estados. Tais críticas, que vinham desde o início da história
republicana, fundamentavam-se no fato de que o Brasil simplesmente havia imitado o
regime federativo vigente nos Estados Unidos da América. Esse regime, diziam eles,
era praticável lá no hemisfério Norte, mas o mesmo não se podia dizer dele aplicado
aqui. Além disso, argumentavam que o país sempre soube conduzir-se muito bem sob o
poder central da coroa imperial dentro do regime unitário” (MYIAMOTO, S. O
pensamento geopolítico brasileiro (1920-1980). Op.cit, pag 56, in: COSTA. Geografia
Política e Geopolítica, 1992, pag.189)
Tanto S. Myiamoto como L. Mello procuraram distinguir a Geografia Política
da Geopolítica, identificando esta última como a que foi desenvolvida no país. O
argumento de ambos para essa distinção é o do deslocamento desse campo de estudos
da Geografia para a Ciência Política, que teria sido proposto por Kjéllen.
Num processo similar ao ocorrido na Prússia, em que os militares e a elite civil
se apropriaram de conhecimentos gerados pela Geografia, convertendo-a numa
geografia política “aplicada” ou “militar” (uma geografia geopolítica), no Brasil,
desde a década de 1920, também se procurou aproximar esse campo de estudos do
centro do poder político gerador de um pensamento estratégico nacional (tanto para o
plano interno como para o externo), mais especificamente com os núcleos militares da
“reflexão estratégica”. O que podemos chamar de “geografia militar” atingiu um
notável prestígio, especialmente durante o Estado Novo (1937-1945), extrapolando os
muros do ensino militar e sendo base para reflexões políticas acerca do
desenvolvimento nacional. Os círculos das elites militar e conservadora brasileiros
tiveram na Geografia um excelente instrumento prático e teórico para parte substantiva
de suas justificações “científicas” a respeito dos “problemas nacionais”.
COSTA (1992), em sua análise, procura explicitar o que seriam as fronteiras
entre a Geografia e a Política, expressos pelos círculos de poder à frente (ou próximos)
396
do Estado brasileiro no período. O pensamento conservador brasileiro, desde a Colônia,
passando pelo Império e, de certo modo, até os dias atuais, sempre apresentou a
tendência de expressar o conceito de nação articulado ao de território, confundindo-se
assim a ideia de unidade nacional com a de integridade territorial. Por isso, para o
autor, a Geopolítica sempre foi um autêntico produto da Geografia.
A problemática da coesão interna, exaustivamente debatido em Geografia
Política, desde Ratzel, e escolhida pelos geopolíticos como um dos principais alvos da
ação dos Estados em geral, apresenta particularidades no Brasil: a imensidão do
território, o povoamento disperso e o fraco poder de articulação inter-regional da
economia agrário-exportadora, ao lado de um poder central baseado na composição
política com as oligarquias regionais e locais, representaram, desde a formação do
Estado nacional, em 1822, um quadro muito distante do federalismo clássico (do
exemplo norte-americano) e mais próximo de um conjunto unitário, nacionalmente
desarticulado.
Esse seria o cenário, para as idéias de integração nacional que, sob vários
prismas, marcaram o discurso político-territorial de muitos setores do poder estatal ou
próximos deste. Um alicerce fundamental para a elaboração de políticas correlatas a
esse cenário foi encontrado nas próprias formulações técnico-científicas da Geografia.
Nesse sentido proliferaram as “coincidências” entre a concepção geográfica do país
(dada pelos geopolíticos) e o discurso oficial proferido a partir da Revolução de 1930, e,
em especial, do Estado Novo após 1937, período autoritário em que ocorre a criação do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Verdadeiramente o Estado
brasileiro passava a dispor de um instrumento para efetivar uma ação modernizadora em
um novo tipo de gestão territorial – permeado pela idéia da unidade nacional e da
integração territorial.
O desenvolvimento dos estudos geográficos, combinado com esse tipo de
“ideologia nacional”, é que resultaria no que foi rotulado de “pensamento geopolítico
brasileiro”. Um dos mais destacados pioneiros nessa área foi Everardo Backheuser,
autor de vários ensaios no gênero, cujas principais obras datam das décadas de 1920 e
1930. Anti-republicano e antifederalista, ele defendia uma intransigente manutenção e
solidificação da “unidade nacional”, a fim de evitar os separatismos. Geólogo de
formação, Backheuser seguiu pela geografia física, antropogeografia, até chegar ao
397
componente político da geografia, na sua faceta geopolítica. De acordo com
COSTA(1992), sua principal influência veio da vertente geográfica alemã, elaborando
uma ideologia conservadora para o problema brasileiro, chegando a sugerir uma
“seleção” dos imigrantes estrangeiros, para o “branqueamento” da raça brasileira. Ele
critica veementemente a transposição do federalismo norte-americano para o caso
brasileiro; elogia a unidade alemã e o “pan-germanismo”; destaca a “superioridade dos
paulistas e sulistas” em relação às outras regiões; e defende a transferência da capital
federal para o planalto goiano. Sem dúvida nenhuma, era uma posição extremamente
conservadora e, ao mesmo tempo, inconsistente em suas “bases científicas” para tais
discursos.
A redivisão territorial e a nova localização da capital, também fazem parte da
proposta geopolítica de Bachheuser, para se evitar uma desagregação político-territorial
do país. Ele estabeleceu o “princípio da equipotência”, quanto à área, situação,
população, eficiência econômica e política das unidades; e uma fórmula “anti-regional”,
em que o componente político-estatal unitarista estaria acima da divisão regional e do
povoamento “espontâneo” do território. Chegou-se então à uma proposta de redivisão
com 64 “unidades fundamentais”, em 16 estados e 6 territórios. Era o dividir para
centralizar325
No tocante à transferência da capital, ele a vê como um mecanismo vital para a
consolidação do todo nacional-territorial. Defendendo a centralidade da nova capital, ele
argumenta com os desafios da integração interna e da defesa estratégica no plano
externo, em consonância com os segmentos militares do período. Seria a possibilidade
de se conquistar o heartland brasileiro, com a nova capital, num discurso não inédito,
pois José Bonifácio também defendeu a mudança da capital para o Planalto Central, nos
tempos do Império.
Outro autor, no campo da geopolítica brasileira, de inspiração militar e voltado
à problemática da unidade nacional, foi o Brigadeiro Lysias A. Rodrigues, já na década
de 1940. Para ele, um aspecto fundamental na busca da unidade nacional (busca esta
que vinha desde o Brasil-Colônia), são as redes de circulação. Ele aponta que, após a
325 Id.,ibid., p.198
398
proclamação da República, as tendências desagregadoras advindas da autonomia dos
estados e do municipalismo ganharam força. Para ele, a Revolução de 1930 e a
implantação do Estado Novo, a partir de 1937, seriam as condições ideais para a
centralização que, de fato, ocorreu, e que ele defendia. O Estado brasileiro, forte e
centralizador, teria assumido de vez a direção do todo nacional-territorial.
Lysias Rodrigues também propôs a redivisão territorial do país a partir de
critérios, obviamente, definidos pelo poder central, neutralizando regionalismos e até
condicionantes históricas, em nome da unidade nacional. Sua proposta está assentada na
criação de territórios federais a partir do Mato Grosso, Amazonas e Pará e na
transferência da capital federal para o Triângulo Mineiro, por estar melhor servida por
redes de circulação.
Realmente, o caráter centralizador do regime de 1937 fez com que a política e a
vida nacionais gravitassem em torno do governo central, através da forma do Executivo,
personificado na pessoa do ditador Getúlio Vargas. Buscava-se a unidade nacional de
“alto para baixo” – do “centro” para as “partes”. As oligarquias regionais, estaduais e
locais não deixaram de existir, mas foram cooptadas pelo poder central através de
favores e fisiologismos (COSTA,2000). O Estado Nacional brasileiro se moderniza e, ao
mesmo tempo, se centraliza, trazendo a noção do planejamento para seu bojo.
Restringindo-se às questões territoriais, cita-se novamente o IBGE..
O Estado Novo (1937-1945), fundamentado juridicamente na Constituição de
1937, apresentou preocupações de natureza geopolítica, e aqui salientam-se:
A “Marcha para o Oeste”, com programas de colonização no Mato
Grosso e em Goiás;
A criação de cinco territórios federais – Amapá, Rio Branco (Roraima),
Guaporé (Rondônia), Ponta Porã e Iguaçu (sendo estes dois últimos extintos em
1946) – buscando-se uma maior segurança às fronteiras e fomentar o
povoamento nessas áreas. O sentimento nacionalista do Estado Novo,
potencializado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), procurou
sufocar o sentimentos regionalistas e nativistas dos estados.
O fim do Estado Novo, em 1945, e a promulgação da Constituição de 1946,
restauraram, em parte, a autonomia dos estados. Todavia as desigualdades econômicas
399
entre as unidades mais ricas e as mais pobres, fortemente dependentes do governo
central, de uma certa forma “emperravam” o federalismo. As questões econômicas,
como o controle da exploração do petróleo, a reforma agrária, etc., protagonizaram as
discussões do chamado Período Democrático (1946-1964).
Segundo ANDRADE & ANDRADE(1999), é bom salientar que, apesar da
política dos governadores ter sido eliminada formalmente, eles ainda tem o seu espaço
de manobra até hoje. A força dos grandes proprietários de terra continua existente com a
sua influência política elegendo vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais,
governadores e senadores, apresentando maior ou menor influência junto ao poder
central, conforme o seu estado de origem. Daí a razão de, até hoje, o Brasil não ter
realizado uma reforma agrária em larga escala. A terra sempre foi um instrumento de
poder, e isso tem possibilitado a sobrevivência dos poderes locais e regionais das
oligarquias de nosso país, concomitantemente a esse verdadeiro “movimento pendular”
do federalismo brasileiro – ora centralizador, ora descentralizador.
Saindo-se um pouco das questões inerentes ao espaço interno do Brasil e
focando-se as projeções externas do poder nacional, um pioneiro nesses estudos foi o
General Mário Travassos, cuja obra mais conhecida é datada de 1931. Ele também
derivou a sua geopolítica da Geografia (política), interessando-lhe primordialmente a
posição brasileira na América do Sul, e a presença e influência exercidas pela
Argentina. Na sua análise, ele apontou dois antagonismos principais, de natureza
geográfica e com resultantes geopolíticos, no continente sul-americano: a) Atlântico x
Pacífico; b) Prata x Amazonas. Daí os desdobramentos das políticas de expansão das
áreas de influência de dois dos seus principais Estados, o Brasil e a Argentina, numa
disputa hegemônica. No caso argentino, a política de comunicações platina voltou-se à
montante do Prata, estendendo suas influências até o Pacífico e aos limites da Bacia
Amazônica, estabelecendo-se uma ligação terrestre (ferroviária) de Buenos Aires até La
Paz. Mário Travassos se preocupa com a Bolívia, pois esta seria uma “zona de transição
entre os dois antagonismos”, garantindo à Argentina o controle do heartland sul-
americano, inibindo a influência brasileira ali.
MELLO (1987), in COSTA(1992), comenta o seguinte sobre o trabalho de
Travassos:
400
“No campo intelectual, a geopolítica de Travassos sofreu a influência
determinante de Mackinder, com sua teoria sobre o poder terrestre. Essa teoria foi
reelaborada e aplicada de forma criadora às condições peculiares do continente sul-
americano, com o planalto boliviano assumindo o papel de área-chave com
importância análoga à do “heartland” euroasiático. Para Travassos, o controle da
Bolívia, região-pivô do continente, outorgaria ao Brasil o domínio político-econômico
sulamericano.” 326
Travassos propõe a plena utilização, pelo Brasil, das potencialidades das vias
fluviais amazônicas para uma rede de circulação que articulasse esse heartland
boliviano à costa atlântica brasileira (a partir do rio Madeira), apoiada pelam ferrovia
Madeira-Mamoré, opondo-se a “espontaneidade viária da Amazônia” ao “artificialismo
da atração ferroviária platina”, como algo que inegavelmente, de uma forma
“predestinada”, num “destino geopolítico”, penderia a favor da vertente atlântica e,
obviamente, para o Brasil.
Assim como Lysias Rodrigues, Travassos deu especial atenção às vias de
circulação (terrestres, principalmente), mas com foco no plano externo, e não na questão
da integração interna inicialmente. Citam-se a ligação entre Santa Cruz de La Sierra e o
porto de Santos (a ferrovia Noroeste do Brasil), a Madeira-Mamoré, as pontes Brasil-
Paraguai e as transcontinentais seguindo o sentido dos paralelos. E a partir de Santa
Cruz, a melhoria das vias navegáveis amazônicas – daí, Travassos adentra na integração
nacional, sendo esta direcionada ao oeste. Ele derivou seu projeto geopolítico a partir da
repercussão externa, subordinando à primeira, o movimento de integração interna. Isso
foi materializado com descrições das condições geográficas primárias – primeiro da
América do Sul – para depois tratar do território brasileiro.
Finalmente, dentre os autores “clássicos” da geopolítica brasileira, temos o
general Golbery do Couto e Silva. Ele, a princípio, se apresenta com essa linha de
pensamento “geomilitar” brasileiro, iniciada por Backhauser, e aprofundada por
Travassos, ou seja, considera a política, o território e a projeção externa, como questões
a serem resolvidas sob o ponto de vista do pensamento e estratégia de inspiração militar.
Assim, o seu pensamento é conservador e autoritário, filiado a concepções típicas de
326 Id.,ibid., pag.204
401
parte importante da elite civil e militar no poder desde o Império e, mais diretamente,
desde os primeiros tempos da República. Para esta elite, a questão nacional estava antes
de tudo permeada por um Estado forte, centralizado e capar de realizar as “aspirações
nacionais”. Golbery foi influenciado pelos clássicos - Ratzel e Mackinder - e seus
conceitos de espaço, posição, circulação, heartland, etc., foram largamente utilizados
para análises sobre o território brasileiro e suas projeções para o exterior. Mas, por outro
lado, há novidades em seu pensamento, que se não caracterizam uma ruptura com o
tradicional, pelo menos indicam uma sofisticação da análise, saindo dos vícios
anteriores marcados pelo esquematismo excessivo. Também há em Golbery um maior
ecletismo nas suas análises já que sintetiza autores distintos, como Ratzel, de um lado, e
Hartshorne, de outro lado.
Por conta da situação mundial do pós 2ª Guerra, tendo-se a presença
hegemônica dos Estados Unidos na ordem bipolar então constituída, marcada pela
tensão leste-oeste da “Guerra Fria” (em especial nas décadas de 1950 e 1960), o general
Golbery recebeu forte influência de autores norte-americanos, especialmente Spykman.
Sabedor de que o Brasil era peça importante na defesa estratégica da América do Sul,
contra a ameaça comunista soviética, Golbery se colocou como interlocutor local de
Spykman, numa resposta aos apelos do geopolítico norte-americano (em 1942), para
quem o Brasil e os demais países sul-americanos deveriam assumir regionalmente as
tarefas de defesa estratégicas do “Novo Mundo”.
Dentro de todo esse contexto, Golbery lançou uma doutrina de segurança
nacional, alicerce fundamental do regime militar implantado no Brasil, em 1964, e, em
sequência traçou uma estratégia política global a ser percorrida pelo país. Conforme ele
diz, em 1952, in: COSTA (1992): “Resulta daí haver o conceito de Segurança
Nacional, entendido – é claro – na sua mais ampla e ativa acepção, permeando aos
poucos o domínio todo da política estatal, condicionando quando, não promovendo ou
determinando todo e qualquer planejamento, seja de ordem econômica, seja de
natureza social ou política, para não falar dos planos propriamente militares, tanto de
guerra como de paz”.327
327 COUTO e SILVA, Golbery. Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil,
3ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1981. Pag.23. in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.208.
402
O conceito geral de Segurança Nacional contribuiu para moldar uma
“consciência nacional” em torno de “objetivos permanentes”, consistindo numa
estratégia nacional de longo prazo, para além das conjunturas políticas.
A sua análise geopolítica do território brasileiro não apresenta nenhum
ineditismo, pois é tratado como um imenso espaço desigualmente ocupado e com
integração incompleta, carente em comunicações, constituindo-se numa estrutura em
“arquipélago”. O detalhe a destacar é que a estratégia para se atingir tal integração é
diferente. Partindo de uma regionalização geopolítica que define um núcleo central
constituído pelo “coração do país” (eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte);
mais três “penínsulas” (Nordeste, Centro-Oeste e Sul); e uma enorme “ilha” (a
Amazônia), propõe um plano de integração ou articulação interna, onde o pólo dinâmico
desse “coração nacional” se irradia para as demais regiões, através dos “istmos” de
circulação (vias de comunicação) para as três “penínsulas”. Nesta estratégia, a
integração do território nacional se daria em três fases sucessivas, repetidas aqui:
1º- articular firmemente a base ecumênica de nossa projeção continental, ligando
o Nordeste e o Sul ao núcleo central do país; ao mesmo passo que garantir a
inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das
possíveis vias de penetração;
2º- impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da
plataforma central- a atual região nuclear do país-, de modo a integrar a península
centro-oeste no todo ecumênico brasileiro;
3º- inundar de civilização a Hiléia Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços,
partindo de uma base avançada constituída do Centro-Oeste, em ação coordenada com
a progressão leste-oeste, segundo o eixo do grande rio.”328
No tocante à projeção geopolítica do país, Golbery defende o alinhamento
brasileiro à estratégia de defesa do Ocidente sob o comando dos EUA. O famoso
“promontório nordestino” seria um dos vértices do “triângulo estratégico do Atlântico”
de Spykman, constituindo-se em parte fundamental dessa estratégia global, que só se
tornaria viável com um acordo explícito de cooperação militar entre o Brasil e os EUA.
328 Id.,ibid., pag.47. in: COSTA, Wanderley M. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed.
Contexto, 2000. p.66.
403
A posição privilegiada do Brasil no Atlântico Sul seria também um “trunfo” para a
obtenção de vantagens pelo Brasil em tais acordos e negociações.
No plano interno, o autor recomendou o “tamponamento eficaz” das vias de
penetração nas fronteiras a noroeste, mesmo que não houvesse ali ameaças concretas
por parte dos países vizinhos amazônicos. As finalidades desse tamponamento seriam: a
inviolabilidade daquelas fronteiras e a consolidação de uma base para uma futura
ocupação da Amazônia.
No plano externo, para fazer frente à estratégia de avanço argentino no
heartland sul-americano de Travassos (no caso, a Bolívia), Golbery sugeriu a
“dinamização do ecúmeno nacional”, em especial no Centro-Oeste (no Mato Grosso),
onde a estratégia brasileira poderia se contrapor à influência portenha. Mas a grande
preocupação de Golbery nesse âmbito é o Uruguai – meio brasileiro e meio platino –
por se tratar de uma “fronteira viva” e também “tensa”.
No ensaio publicado em 1959 (quando Juscelino Kubitschek era o presidente
do Brasil), Golbery se mostra muito satisfeito pelas mudanças do quadro econômico –
de uma estrutura agrária para uma estrutura industrial – e pelas mudanças políticas que
vinham ocorrendo a nível das instituições e da modernização da sociedade. Nesse
quadro favorável, ele chega a propor a defesa da democracia:
“ Um estilo de vida democrático, com bases cada vez mais amplas na
participação efetiva e consciente do povo; e a garantia das liberdades regionais
(sentido federativo) e da autonomia local (municipalismo).”329
Tal proposição -
considerando-se os momentos anteriores da geopolítica nacional, marcados pelo
autoritarismo e conservadorismo – chega a se constituir num verdadeiro paradoxo no
pensamento geopolítico brasileiro. Não que Golbery tenha sido inovador e liberal (em
vários aspectos ele não o foi, e esteve bastante próximo às concepções dos autores
anteriores, até porque tal visão se restringe, sobretudo, ao período JK), mas esse
alinhamento interno, como assinala COSTA(1992), vai de encontro ao ambiente
desenvolvimentista e democrático no governo do presidente Juscelino. E, no aspecto
329 COUTO e SILVA, Golbery. Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil,
3ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1981. p.74. in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.211.
404
externo, à defesa da democracia ocidental, da justiça social e da moral cristã, em
contraposição à ideologia comunista. Ao defender o federalismo, é bom lembrar que
Golbery sofreu substancial influência de geógrafos políticos e geopolíticos norte-
americanos, sendo os EUA o “berço” do federalismo moderno.
Dentro do cenário do final da década de 1950, Golbery atualizou a sua
“regionalização geopolítica”, apontando os progressos das comunicações, o alargamento
do “núcleo central” e as primeiras vias de penetração para articular pontos distantes do
nosso território (tanto no sentido norte-sul, como leste-oeste). Nesse alargamento do
“núcleo central”, ele reconheceu um “bloco metropolitano”, mais as “áreas
metropolitanas” e as “frentes pioneiras”. Assim sendo, o nucleamento básico passou a
se referir basicamente à atual região Sudeste, coincidindo em grande parte com as
regiões industriais e agrícolas mais desenvolvidas do país. Um segundo “núcleo” ou
heartland seria o Centro-Oeste, em especial a cidade de Brasília.
Nessa reformulação, a Geopolítica vincularia-se à política nacional (integração
e valorização territoriais), enquanto a estratégia de segurança nacional estaria associada
à geoestratégia (a posição brasileira frente às relações internacionais). Tal geoestratégia
seria de “contenção” e se relaciona aos focos de instabilidade existentes na América do
Sul, cabendo ao Brasil um papel vital na defesa do hemisfério ocidental, não
explicitamente um ”Brasil-Potência”, mas de forma implícita buscava-se uma projeção
nacional tanto interna, como externa.
“Geopolítica e Geoestratégia de integração e valorização espaciais, de
expansionismo para o interior mas igualmente de projeção pacífica no exterior, de
manutenção de um império terrestre e também de ativa participação na defesa da
Civilização Ocidental, de colaboração íntima com o mundo subdesenvolvido do
continente e de além-mar e ao mesmo passo de resistência às pressões partidas dos
grandes centros dinâmicos de poder que configuram a atual conjuntura.” 330
Sofisticando a análise geopolítica brasileira como instrumento político, militar e
territorial, também defendeu explicitamente o alinhamento automático aos EUA e ao
bloco ocidental-capitalista. Como figura-chave do regime militar instaurado em 1964,
330 Id.,ibid., pag.171. in: COSTA, Wanderley M. Op. cit. p.214.
405
ele vinculou seu pensamento geopolítico com “objetivos permanentes” a serem
perseguidos dentro de uma “doutrina de segurança nacional”. Membro destacado do
pensamento e do núcleo de poder militares, próximo ao Estado ou dentro de seu
aparelho, o seu ponto de partida foi a política de poder. Golbery repetiu a característica
primeira da geopolítica brasileira – um instrumento a serviço de uma dada concepção de
poder político que submete os assuntos territoriais-nacionais e de segurança nacional à
órbita exclusiva do Estado, em especial do setor militar desse Estado.
A chamada geopolítica dos generais se manteve na década de 1970, mas como
assinala Miyamoto, muitos dos temas geopolíticos foram absorvidos pelos estudos
desenvolvidos pela Escola Superior de Guerra (ESG), desde os anos 1950. As
publicações da ESG ficaram focadas no binômio “segurança e desenvolvimento”, cujos
aspectos mais importantes foram sintetizados primeiramente por Golbery. Após o golpe
de 1964, muitas dessas concepções geopolíticas passaram a constituir o discurso e a
prática do Estado em sucessivos governos, como assinalou Miyamoto ( in:MYIAMOTO,
S. O pensamento geopolítico brasileiro (1920-1984). Op.cit, pag 130-131, in: COSTA.
Geografia Política e Geopolítca, 1992, pag.215):
“Vê-se dessa forma, que a função da ESG, além de ser um centro de estudos
onde se abordam os problemas nacionais, internacionais e militares, conforme se pode
comprovar pelo documento de Sardemberg (1971), consubstancia-se na formação de
uma elite que procurava uma oportunidade para alçar-se ao poder...na verdade foi
conscientemente preparada e dotada com uma doutrina de segurança nacional, para
exercer efetivamente a posse do aparelho de Estado, conseguindo o seu objetivo em
1964, quando atinge o seu período máximo de influência”
406
5.2- O pensamento geopolítico brasileiro: do “triunfalismo” da
década de 1970 às críticas atuais
A geopolítica brasileira dos anos 1970 vem por assumir um discurso triunfalista
– a idéia do Brasil-Potência - bem adequada àquele período de endurecimento do
aparato repressivo do regime militar, somado aos reveses das guerrilhas e ao grande
crescimento econômico do início daquela década, associadas sobretudo ao governo de
Médici (1969-1974), em que se houve a mais forte expressão de coexistência entre o
“milagre econômico e os “anos de chumbo”. O maior expoente dessa fase triunfalista
foi o General Meira Mattos, cujos principais trabalhos se situam entre os anos de 1975 a
1980. Ele quase nada trouxe de novo, em relação à velha geopolítica desenvolvida
desde a década de 1930, ao formular suas teses sobre unidade interna e projeção
externa. Ele segue Golbery no concernente de que a Geopolítica deveria ser o âmbito
maior da doutrina de segurança nacional da ESG. Dentro desta mesma influência, Meira
Mattos concebe um conceito de “potência mundial” assentado em fatores territoriais,
populacionais, capacidade tecnológica, etc., chegando à conclusão de que o Brasil
poderia se tornar uma das grandes potências do mundo. O nosso país estaria
predestinado a tal missão com a combinação entre “democracia e autoridade, no
processo de ocupação e valorização do território, na capacitação industrial e
tecnológica, etc. E no campo externo, Mattos defende a modernização das Forças
Armadas e um potencial militar com capacidade de “dissuação”.
O grande problema das teses de Meira Mattos é que elas não deixam de ser
mera reprodução da velha tradição geopolítica brasileira - evocando Alberto Torres e
Oliveira Viana, combinando “democracia com uma certa dose de autoritarismo” -
pressupondo um poder exercido por uma elite nacional auto-investida na direção do
Estado, com a “missão” de enfrentar os enormes desafios de um grandioso país que
estaria predestinado a ser uma potência mundial. Ele incorpora explicitamente a sua
satisfação com o que já havia sido realizado pelo regime de 1964 até ali, em especial o
Plano de Integração Nacional, através da abertura de rodovias de longo curso ao longo
dos sentidos dos paralelos e dos meridianos, e ainda articulando o território nacional
para a exploração dos recursos naturais amazônicos. Na sua obra de 1980, ele elogia as
“políticas de desenvolvimento” amazônicas, realizadas durante o governo Médici
407
(1969-1974) como o Plano de Integração Nacional; e durante o governo Geisel, como o
Programa Polamazônia) – ressaltando a teoria da polarização de F. Perroux para os
projetos de ocupação amazônica, exemplificados através dos pólos agroindustriais e
minero- metalúrgicos articulados á rede rodoviária.
Para ele também a idéia “pan-amazônica” estava se tornando realidade, graças a
essas políticas governamentais que possibilitariam a cooperação com os países vizinhos
da Bacia Amazônica, sob a liderança brasileira (cita-se aqui a assinatura do Tratado de
Cooperação Amazônica, de 1978), possibilitando ao Brasil o papel principal num
projeto sul-americano vislumbrado a partir do desenvolvimento amazônico, sem a
interferência externa dos EUA e da Europa. Retomava-se a antiga tese da ocupação do
heartland da América do Sul, com o Brasil criando “polos de irradiação fronteiriços”,
concretizando a influência nacional sobre os países vizinhos amazônicos, similar ao
“tamponamento eficaz das fronteiras ocidentais”, de Travassos, em 1931. Por fim,
Mattos acreditava que o “Brasil-Potência” seria algo “inevitável”, lá pelos idos do ano
2000, e assim também pensou a estratégia de segurança em escala global para o nosso
país através de seu protagonismo no Atlântico Sul.
A visão triunfalista sobre o Brasil chegaria ao fim justamente quando o regime
militar também caminhava em direção à abertura e à transição democrática, iniciada nos
anos de Geisel (1974-1979) e prosseguida no governo Figueiredo (1979-1985). Um
autor que decisivamente contribuiu para isso foi Geraldo Lesbat Cavegnari Filho.
Autor de origem militar, coronel da reserva, especialista em estratégia, pesquisador
universitário (diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp) e um investigador
e crítico da velha geopolítica “oficial” de inspiração militar que tem predominado no
Brasil. A sua análise crítica dirige-se aos equívocos e às fragilidades de uma estratégia
nacional assentada na Geopolítica. Seus artigos, já escritos na década de 1980, trazem a
originalidade que inaugurou uma fase de estudos críticos, que se estendem até épocas
atuais, acerca do pensamento, da ação política e da geopolítica militares. É uma
primeira ruptura explícita no seio do pensamento militar geopolítico e estratégico,
conforme COSTA (1992).
O mesmo autor coloca que Cavegnari rejeita o uso do discurso do “Brasil-
Potência”, subordinado às injuções estratégicas dos Estados Unidos e alienado da
408
verdadeira e real posição do país na Divisão Internacional do Trabalho. Ele aponta uma
contradição essencial entre as vertentes diplomática e a militar para a política externa
brasileira.
Para a vertente diplomática haveria uma plena ciência de que, na tensão “Leste-
Oeste” e da oposição entre as economias industrializadas e as subdesenvolvidas, não
caberiam ao Brasil um projeto de “grande potência” subordinada aos Estados Unidos
nos planos estratégico e econômico, preferindo-se atuar politicamente na esfera da
América do Sul.
Já a vertente militar, assentada num “triunfalismo do discurso geopolítico”,
projeta políticas externas hegemônicas no Terceiro Mundo, especialmente na América
do Sul, e um alinhamento automático às potências industriais.
“Em tese, a maioria dos esquemas geopolíticos projeta uma pretensa
hegemonia brasileira na América do Sul e superestima a participação atual do Brasil
no processo decisório mundial. Essa avaliação decorre da metodologia utilizada pela
Geopolítica, que consiste na abordagem dos fatores geográficos (em resumo, o espaço
e a posição) organizados em torno de determinados indicadores absolutos (isto é, o
tamanho do PNB, a extensão territorial, os recursos naturais e a população), não
levando em consideração o aspecto qualitativo desses indicadores, o grau de segurança
desejável para a sociedade civil e a capacidade real do país na organização das
relações de poder mundiais. O equívoco do discurso geopolítico é tanto de ordem
conceitual quanto de ordem metodológica. Esse discurso não é científico, mas uma
simplificação racional da realidade vinculada a um propósito específico e concreto. A
Geopolítica não possui um corpo sistematizado e comprovado de leis gerais e
universais, embora se proponha a servir de marco teórico para a política externa. A
realidade vem brincando com as avaliações geopolíticas: o crescimento brasileiro nos
últimos anos registrou considerável progresso em relação aos países subdesenvolvidos,
mas não conseguiu diminuir a diferença em relação às democracias ocidentais. O PNB
brasileiro corresponde, aproximadamente, a 8% do PNB dos Estados Unidos e a 50 %
do PNB da Inglaterra, respectivamente, a primeira e a última grande potência. A renda
per capita do Brasil não ultrapassa um quinto do valor da renda per capita média dos
países desenvolvidos. No campo da pesquisa científica e do desenvolvimento
tecnológico, o investimento brasileiro (cerca de 0,7% do PNB) corresponde a 2% do
409
investimento norte-americano e a 15% do investimento britânico. Assim a visão
diplomática sobre a realidade brasileira é mais sensata do que o discurso geopolítico,
quando reconhece a existência de problemas internos típicos do subdesenvolvimento
(concentração de renda e grandes deficiências em saúde, alimentação, habitação e
educação) e de uma situação de dependência do sistema econômico internacional
(importador de capital e tecnologia).”331
Tal crítica à geopolítica não é algo inédito no Brasil. O que a fez inédita foi o
fato de ela ter sido feita por um militar brasileiro, apontando equívocos na formulação
da estratégia nacional feita pelos militares. As teses de Cavegnari foram publicadas num
jornal de grande circulação nacional, exatamente na data que se completou 20 anos do
movimento militar de 1964, indicando um novo patamar em um Brasil que caminhava,
há alguns anos, na “distensão” rumo à transição democrática. O mito do “Brasil-
Potência” estava seriamente abalado. Vulnerabilidades e fraquezas da velha geopolítica
dos generais vieram à tona, após um tempo inegavelmente longo, praticamente um
século após a proclamação da República. Era desnudado um país territorialmente
grande, mas economicamente e socialmente frágil e cheio de clivagens e fissuras.
Com o cenário da época dominado pelas duas superpotências: a norte-
americana e a soviética, o Brasil não apresentaria, de acordo com Cavegnari, os
“excedentes de poder” para cristalizar um papel de grande potência no globo. O Brasil,
seguindo-se os critérios da Geopolítica, ainda conforme Cavegnari, seria uma potência
média ou uma potência regional, com âmbito estratégico na América do Sul, (repare
que não na América Latina, incluindo o México e a porção central e caribenha do
continente, mas somente no espaço sul-americano), e mesmo assim, a “autonomia
estratégica absoluta” está seriamente limitada dada à hegemonia norte-americana no
continente, como um todo.
331 CAVEGNARI, Geraldo L., Brasil: Introdução ao estudo de uma potência média. Publicado também na
Folha de São Paulo em 31 de março de 1984 e na Revista Brasileira de Política Internacional, no ano
XXVII, nº105 – 108, 1984, p. 139 e 140, in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.222.
410
Cavegnari também ressaltou a vinculação existente entre o projeto de grande
potência e a autonomia do segmento militar do Estado. Seu argumento era de que
mesmo durante a transição para um regime civil, os militares procurariam se
resguardarem em respaldos institucionais para tocar adiante o seu antigo projeto. Daí
que, do ponto de vista dos militares, a transição ideal seria aquela que fosse controlada
pelo núcleo do poder militar-civil, dentro do que Golbery defendeu em alguns de seus
artigos. Ou seja, a passagem de um autoritarismo militar para um autoritarismo civil em
que os militares pudessem seguir adiante em seus projetos de integração nacional, de
expansão na América do Sul e, no plano internacional, o alinhamento automático aos
Estados Unidos.332
Na visão de Cavegnari, colocando-se de lado a reflexão geopolítica e dando
espaço à reflexão estratégica, tornam-se claras as fragilidades do projeto de potência.
Isto porque o Brasil não possuiria autonomia estratégica para atuar como potência a
nível mundial. E, para piorar, até a sua hegemonia regional teria os seus limites face aos
desequilíbrios sociais internos, como a concentração de renda, as debilidades do sistema
educacional, etc. Mesmo assim, o projeto de construção de potência permanece. Ele
assinala que a prática e o discurso tradicionais da diplomacia brasileira têm se mostrado
mais corretos: a ótica de que o Brasil é um país do Terceiro Mundo, uma potência
regional sem ambições de hegemonia e com grandes vulnerabilidades estratégicas. O
desafio, para Cavegnari, seria então o da obtenção de uma autonomia estratégica.
Porém, tal autonomia se encontraria sempre limitada devido à presença dos EUA que
traria uma situação restrita à dependência estratégica relativa – ou seja, uma autonomia
limitada.
O que interessaria ao Brasil, segundo ele, seriam os projetos que não implicassem
em uma redução da sua presença internacional. Políticas de cooperação e de
aproximação fundamentadas na “estabilidade democrática, no crescimento econômico e
na modernização tecnológica”. Cavegnari defende a importância internacional do país,
estabilizando a sua frente interna (a “construção democrática”) e a frente sul-americana
(gestada na integração bilateral Brasil-Argentina). Todavia existiria uma preocupação:
332 COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.223.
411
“A construção da grande potência é intenção explícita no pensamento militar
brasileiro e no pensamento militar argentino. Pode-se até afirmar que os militares
brasileiros (e, com certeza, os militares argentinos) atribuem maior prioridade à
construção da potência do que à construção da democracia, como se a potência fosse
condição necessária à institucionalização da democracia.” (CAVEGNARI, Geraldo L.
“Brasil e Argentina: autonomia estratégica e cooperação militar”. In: Rev.Política e
Estratégia, vol. VI, nº4, São Paulo, 1988. p.598. In: COSTA, Wanderley M. Op.cit.
p.225).
Com Cavegnari, COSTA (1992), conclui, em seu trabalho, o histórico da evolução
do pensamento geopolítico nacional, que apesar da sua falta de originalidade e
criatividade, permeou a vida política nacional e os projetos territoriais durante grande
parte da República brasileira. A diminuição da influência do pensamento geopolítico na
atualidade tem a ver com a retomada das iniciativas políticas por parte da sociedade
civil, bem como com o retorno a um sistema democrático. Tal recuo do pensamento de
matriz geopolítica, em muitos países, parece apontar para a sua presença mais restrita à
círculos específicos das instituições militares.333
Por outro lado, o contexto da abertura, da redemocratização e do fim do regime
militar, abriu espaço para o começo de um debate em Geografia Política e em
Geopolítica, por parte dos geógrafos brasileiros.334
Bertha Becker propõe a retomada
destes debates argumentando que a temática do poder precisa ser (re)apropriada pela
Geografia, que se encontra afastada deste tema por conta da associação que se criou
entre a Geopolítica e o nazismo:
“Negar, portanto, a prática estratégica, seja a das origens da disciplina, seja a
teorizada por Ratzel, seja a da Geopolítica explícita do Estado Maior ou a implícita na
prática dos geógrafos, é negar a própria Geografia, que foi, assim, prejudicada no seu
desenvolvimento teórico e na sua função social. E repensar a Geografia envolve
necessariamente o desvendar da Geopolítica, sua avaliação crítica e o seu resgate, e o
333 Id., Ibid., p.226.
334 Id., Ibid., p.226.
412
trazer esse conhecimento para o debate na sociedade. Em outras palavras, nesse campo
da preocupação, à Geografia caberia a teorização sobre a prática estratégica
desenvolvida pela Geopolítica” (BECKER, Bertha K. “A geografia e o resgate da
geopolítica”, in: Revista Brasileira de Geografia, ano 50, nº especial, Tomo 2, IBGE,
1988. p.100. In: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.227).
413
Considerações Finais
A construção do espaço nacional, que está no bojo do processo de
modernização conservadora e centralizadora, foi possível a partir das iniciativas
estatais. O Estado brasileiro reformulou-se a partir de 1930, visando assim a
enfrentar a questão nacional brasileira. Fruto deste processo foi a construção da
unidade nacional e da integração nacional, em torno da esfera central do governo,
especialmente do poder Executivo. Apesar das importantes diferenças entre os
governos, a modernização conservadora e centralizadora foi um processo de incrível
continuidade, deixando profundas marcas no território brasileiro, como na
constituição de redes nacionais (lembremo-nos que neste período o Brasil passaria
pela era Vargas, tendo-se o governo provisório, de 1930 a 34; o governo
constitucional, de 1934 a 37; e a ditadura do Estado Novo, de 1937 a 45. Segue-se o
período democrático, de 1946 a 64, em que merece menção o retorno de Vargas à
Presidência, em 1951; e o Plano de Metas e a construção de Brasília, no governo
Juscelino Kubitschek, de 1956 a 60. Por fim, os governos militares, com os cinco
generais-presidentes, que permaneceram no poder entre 1964 a 85).
Para a sociedade brasileira difundiu-se, no decorrer de todo este processo,
que as questões e políticas territoriais são competência do Estado, sobretudo do setor
militar, dentro de uma estratégia geopolítica. Dentro das transformações do sistema
capitalista mundial, as políticas territoriais foram sendo criadas, a partir da década de
1950, como subestratégias de macropolíticas econômicas. O território nacional foi
suporte e objeto de investimentos estatais e privados. Porém, nas décadas que se
seguiram após o fim do regime militar, como o Estado não têm priorizado tanto a
ocupação dos “vazios territoriais”, a especulação imobiliária têm repercutido
fortemente nestas do território.
No processo de modernização conservadora e centralizadora, foi montado
um aparelho estatal de grande porte para se gerenciar questões territoriais, segundo
políticas, no geral atrasadas, que alguns classificariam como “neocoloniais.”335
335 COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,
2000. p.74.
414
Foram criadas redes institucionais objetivas e órgãos burocráticos estatais com a
finalidade de se reproduzir no território a operação do aparelho central do Estado, a
nível regional, estadual e local. Citam- se o Sistema Nacional de Saúde, o Sistema
Nacional Fazendário e Financeiro, o Sistema Nacional de Educação e o Sistema
Nacional de Planejamento Regional e Urbano (SUDENE, SUDAM, SUDECO,
SUDESUL e demais órgãos do setor).
Contudo, no início do século XXI, no segundo governo do presidente
Fernando Henrique Cardoso, tanto a SUDAM como a SUDENE, tiveram seus nomes
vinculados à mídia, por conta das denúncias de corrupção e desvios de dinheiro, o
que levou o presidente FHC a editar uma medida provisória e a instalar um decreto,
em fevereiro de 2002, criando a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA).
Porém, em 2003, no primeiro ano do governo do presidente Lula, a ADA foi extinta
e a SUDAM seria recriada em agosto daquele mesmo ano. Com relação à SUDENE,
ela seria extinta em 2001, dando lugar à Agência de Desenvolvimento do Nordeste
(ADENE), mas em 2007, já no segundo governo de Lula, a ADENE seria encerrada e
a SUDENE restabelecida através de Lei Complementar. Hoje, tanto a SUDAM,
como a SUDENE, estão vinculados ao Ministério da Integração Nacional.
Há três décadas vivemos em um regime formalmente democrático e uma das
questões aqui deixada seria a seguinte: dentro de um regime em que os governadores
estaduais são escolhidos através de eleições periódicas, os estados poderiam
efetivamente assumir um peso maior, no tocante às políticas territoriais, frente ao
questionamento do papel dos órgãos de planejamento regionais (como as
superintendências regionais) na atualidade brasileira? E uma outra questão, os
estados (unidades da Federação) dispõem de condições para dar um andamento
adequado às políticas territoriais neste momento em que o país está completando três
décadas da “Nova República”? Ou verdadeiramente só o governo federal teria as
condições ideais para a reformulação e a implantação de novas políticas territoriais?
Estas são algumas das questões que aqui deixo para futuras reflexões.
O processo de redemocratização na reta final do regime militar representou
uma ruptura nas relações intergovernamentais do período autoritário. O pacto
federativo instaurado pelo regime militar havia centralizado ao extremo os recursos
fiscais nas mãos da União através da reforma tributária de 1966, sendo a esfera
415
estadual a principal perdedora. Tal pacto se manteve durante o Estado autoritário
porque a União garantiu recursos não-tributários basicamente aos estados, via
transferências negociadas às unidades federativas mais pobres e aval para
empréstimos externos por parte das unidades mais ricas (Graham, 1990. In:
ABRUCIO, 1998. p. 100). No período de 1967 a 1981, conforme o mesmo autor, a
região Norte foi a principal beneficiada com as transferências negociadas, seguida
depois pelo Nordeste e o Centro-Oeste, respectivamente. Entretanto, o centralismo
fiscal perderia força no contexto do final do regime militar, com o esgotamento do
modelo de Estado desenvolvimentista e a crise financeira da União, paralelamente à
crise econômica dos anos 1980. Esses fatores econômicos erodiram com a
legitimidade do regime militar, dando brechas ao avanço das discussões de novas
relações federativas contrárias ao modelo anterior.336
As unidades subnacionais, a partir daquele momento, começaram a recuperar
receitas perdidas desde 1966 e, principalmente, após a aprovação da Emenda Passos
Porto (1983), que elevou a parcela de recursos dos estados e municípios nos
respectivos Fundos de Participação (Kugelmas, Sallum e Graeff, 1989. In:
ABRUCIO, 1998. p. 100). Essa recuperação foi consagrada na Constituição de 1988.
Antes dessa mudança constitucional, ao governo federal cabiam 62% dos recursos
tributários nacionais, os estados ficavam com 27% e os municípios com 11%. Com a
implantação gradativa da nova repartição do bolo tributário, a União ficou com
54,9% dos recursos; os estados com 28,5%; e os municípios com 16,6% (Barrera e
Roarelli, 1995; Afonso e Affonso, 1995. In: ABRUCIO, 1998. p. 100).337
De fato, houve a generalização do planejamento, também a nível estadual e
municipal. Porém os estados e municípios têm encontrado dificuldades em gerir seus
próprios territórios, devido à repartição dos recursos, bastante concentrada a nível
federal, fazendo com que estados e municípios dependam de verbas federais para
tocar adiante tais políticas. Origina-se daí, a problemática da repartição dos recursos
entre as esferas federal, estadual e municipal de governo.
336 ABRUCIO, Fernando Luiz. O ultrapresidencialismo estadual. In: ANDRADE, Régis de Castro (org.).
Processo de governo no município e no estado. São Paulo. Edusp e Fapesp, 1998. p. 99 e 100.
337 Id., ibid., p. 100.
416
Outra importante questão está relacionada à atual divisão regional e federativa
do Brasil. ANDRADE & ANDRADE (1999), apontam a necessidade de uma
reestruturação da federação dentro de padrões modernos, uma reformulação nas
relações entre a federação e os estados, e a formulação de uma política de correção
dos desníveis econômicos entre as unidades federativas nacionais. Os autores ainda
apontam os perigos de uma “desagregação” do país, ante à pressões externas,
decorrentes da globalização, ligado ao papel dos grandes grupos econômicos que
controlam o capital especulativo, financeiro e desrespeitam a soberania dos Estados-
Nações. Daí vem a problemática do papel da América Latina hoje, com a abertura do
Leste europeu aos capitais transnacionais, após o fim da ordem bipolar da “Guerra
Fria”. Ainda há lacunas na direção de uma consolidação de um pacto supra-nacional
latino-americano, capaz de negociar com seus credores e participar, de novas formas,
na economia-mundo.
O processo de inserção do Brasil, na economia-mundo capitalista como
semiperiferia, deu-se dentro de uma profunda crise/ reestruturação desta economia
mundo, em que o Brasil despontou como uma potência regional (BECKER &
EGLER, 1998). Todavia, o Brasil tem pela frente a questão Amazônica. A Amazônia
corresponde a um imenso território, com potencial ainda relativamente desconhecido.
Diversos segmentos sociais procuram consolidar posições e territórios na arena
amazônica: os militares, no tocante às fronteiras norte do país (projeto Calha Norte);
os seringueiros; os ambientalistas nacionais e internacionais; os índios; as empresas
transnacionais; e os governos das potências hegemônicas. Vê- se que a América
Latina não está “abandonada”, mas diversos interesses nacionais e internacionais se
entrecruzam no desafio da questão Amazônica. Com base em BECKER & EGLER
(1998), a Amazônia não é a Antártida, a maior parte de seu território se encontra sob
a soberania brasileira, sendo patrimônio e componente essencial do Brasil. Assim
esta questão se constitui num desafio atual acerca da gestão e soberania do território
nacional.
A modernização conservadora e centralizadora agravou as desigualdades
sociais e de renda entre a minoria de proprietários e a massa de despossuídos,
afetando a credibilidade das frágeis instituições democráticas do país e a legitimidade
417
do Estado. Bens públicos foram usados em benefício de grupos privados, o que
compromete o processo democrático.
A questão das desigualdades sociais e da péssima distribuição de renda, que
se relacionam aos grandes contrastes entre os diferentes estados e regiões no
território brasileiro, constituem-se em um problema que persiste no Brasil atual. Faz-
se necessário dar ao planejamento uma dimensão social e somente o Estado pode
mobilizar recursos, num volume suficiente, para vencer a miséria.
“ Apesar da retórica neoliberal, impõe-se um vasto programa gerido pelo
Estado, envolvendo recursos captados no setor privado, que não poderá mais se
eximir dos custos de uma distribuição mais eqüitativa da renda nacional.” 338
Faz- se necessário resgatar a política, como um dos meios de se conquistar a
cidadania, bem como a consolidação de instituições democráticas, processos estes
que se constituem em importantes desafios, face ao recente retorno do Brasil a um
regime formalmente democrático, com eleições periódicas para os governantes.
Também é fundamental se combater a existência de formas “paralelas” de poder,
corporativas ou clandestinas. Exemplo disso é o avanço da criminalidade, atrelada ao
tráfego de drogas, que exercem controle em determinadas áreas, como as favelas nas
periferias das grandes cidades, devido justamente à histórica ausência e omissão do
Estado. A relação entre o poder estatal e a população ainda têm-se dada de uma
forma autoritária e distanciada, dificultando-se a construção da cidadania. Outra
mostra clara disso são os episódios envolvendo as populações pobres e
desfavorecidas das periferias, de um lado, e as forças policiais estaduais, de outro.
Por isso aqui cita-se a seguinte frase: “O Estado de direito é o melhor antídoto
contra a ditadura em todas as suas formas”.339
Para futuras políticas territoriais, tem-se por necessário a consolidação de
importantes instituições políticas, como o poder Legislativo e os partidos políticos,
para se democratizar a gestão do território nacional, algo fundamental face à atual
338 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º
ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. p. 250.
339 Id., ibid., p. 250.
418
reestruturação do sistema capitalista mundial, em que o neoliberalismo avançou nos
primeiros anos do século XXI, especialmente na América Latina, causando um certo
comprometimento do papel do Estado e trazendo uma certa incógnita quanto ao
futuro da soberania nacional, especialmente na Amazônia. Para tal democratização,
necessárias são as reformas política, urbana, agrária, tributária, entre outras, no
sentido de se descentralizar e dinamizar a gestão do território nacional, com
responsabilidades e atribuições melhor repartidas entre as esferas federal, estadual e
municipal de governo.
As políticas territoriais sempre foram colocadas “de cima para baixo” por parte
do governo federal, em detrimento das esferas estadual e municipal do governo
restringindo mais ainda os interesses populares nestas políticas. Claro que a esfera
federal do governo é fundamental para a articulação de políticas territoriais a nível
nacional, contudo pelo fato de vivermos um regime formalmente democrático, faz-se
necessário uma melhor distribuição dos recursos entre as diferentes esferas de
governo e aproximar mais as questões territoriais dos interesses da população, aí não
se restringe só à Amazônia, mas ao espaço urbano numa escala mais abrangente,
concomitantemente à escala dos bairros, das comunidades, e ainda no espaço rural e
fundiário.
O estatismo na história brasileira. De Vargas à Lula.
Outro tema que se deseja aqui colocar é o estatismo. Daniel Aarão Reis (2014),
em seu artigo, apresenta o termo que ele denomina de cultura nacional-estatista,
embora ele próprio afirme que a pesquisa que pretende realizar sobre este termo
ainda é preliminar.340
Para Reis Filho, cultura política seria “um conjunto de
representações portadoras de normas e valores e constituem a identidade das
grandes famílias políticas”341
Ou seja, seria um “código”, um “sistema de
340
REIS FILHO, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista.
In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). p.13
341 Id., ibid., p. 14.
419
referências” que traz uma “coerente visão de mundo”, calcada em um “substrato
filosófico” e em “referências históricas”. E isso se encaixaria numa “psicologia
coletiva” e UEM ma “política da memória”, com a “representação de uma sociedade
ideal” na qual um grupo ou corrente política aspira viver. Uma vez afirmada, a
cultura política procura dar as respostas às demandas econômicas, políticas e
culturais, procurando consolidar um modelo para as sociedades em que vigora.342
Em sociedades mais complexas, principalmente, é óbvio que há o embate entre
diferentes correntes políticas. Também quando da hegemonia de uma delas, existirão
outras a ela conjunturalmente subordinadas. Porém, como uma cultura política nunca
seria estática, pois há o contexto das lutas políticas e sociais, mesmo assim, ela pode
emprestar ou se metamorfosear sem alterar o seu “substrato filosófico” e as suas
“questões-chave”.
Na América Latina, a cultura nacional-estatista tem uma firme raiz assentada,
não só no Brasil, mas em vários outros países desta parte do continente, desde a
década de 1930, aproveitando-se de um relativo enfraquecimento da capacidade de
controle por parte das grandes potências. Tal cultura nacional-estatista atingiu um
respeitável sucesso, apesar de suas variações, mobilizando sociedades e
fundamentando as políticas do Estado.
Em seu artigo, Reis Filho examina quatro momentos históricos da cultura
nacional-estatista, ou do nacional-estatismo: a ditadura do Estado Novo (1937-45);
os anos democráticos e “dourados” de Juscelino Kubitschek; os “anos de ouro e de
chumbo” do governo Médici (1969-74); e os dois governos de Luís Inácio Lula da
Silva (2003-2010).
342 Id., ibid., p. 14. Reis Filho cita autores como Serge Berstein, Jean-François Sirinelli e Philippe Joutard
para procurer conceituar o significado do termo cultura política.
420
Cultura nacional-estatista no Estado Novo (1937-1945)
O Estado Novo caracterizou-se por ter sido uma ditadura, personificada na
figura de Getúlio Vargas. Foi quando se gerou uma cultura política nacional-estatista
sublinhada por uma marca e uma lógica autoritária.A centralização estatal tornou-se
o caminho a ser seguido, em contraste aos partidos políticos, vistos como
particularistas e fragmentários. Na necessidade de se aparelhar eficientemente as
Forças Armadas exigiam-se “ordem, tranquilidade e unidade”, em nome de um
projeto de Brasil, de continuação da construção de um país. Tais referências,
defendidas desde 1930, tomaram corpo com uma nova cultura política a partir de
novembro de 1937 quando se inicia o Estado Novo.
A integração nacional se torna um dos pilares da centralização ditatorial e do
próprio nacional-estatismo. E esta ideia de integração nacional, sustentada pela mídia
governamental, ganha nova roupagem com a “Marcha para o Oeste” e o resgate do
mito dos bandeirantes e a exaltação da obra do marechal Rondon.A integração
espacial estaria atrelada à busca pela unidade de um mercado nacional e também de
uma integração social. Da colaboração de classes e do trabalho como ato patriótico
se constituiriam as bases da política trabalhista do governo ditatorial, através da
formação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em 1943.
No plano das relações internacionais, o Estado Novo fez o máximo possível
para reafirmar a soberania e os interesses nacionais para manter o país fora da
Segunda guerra Mundial (1939-1945). Entretanto, por pressão dos Estados Unidos e
pelo afundamento de navios brasileiros por parte de submarinos alemães, o governo
brasileiro, com contragosto, abandonaria a neutralidade e entraria no conflito ao lado
dos países Aliados. Isso não livraria Getúlio Vargas das pressões norte-americanas
para depô-lo, o que ocorreria em 1945.343
343 Id., ibid., p. 17 e 18.
421
Os dispositivos estratégicos desta cultura nacional-estatista, em sua gênese
assinalados por Getúlio Vargas em seus discursos, foram (conforme REIS FILHO,
2014):344
a) um Estado centralizado e integrador, subordinando as particularidades
“egoísticas” (ou seja, as regionais e locais);
b) um ideário nacionalista e unificador;
c) o esteio das Forças Armadas. Getúlio era um líder civil mas o seu poder é
exercido com base e sob a supervisão do Exército (coadjuvado pela Marinha);
d) amplas alianças sociais, incluindo-se os trabalhadores urbanos e rurais, sob
vigilância e tutela;
e) concepções de modernização e de industrialização em nome de um grande
sacrifício demandado;
f) uma política externa de afirmação nacional.
Cultura nacional-estatista nos anos de JK (1956-1961)
Sabemos que o governo de Juscelino Kubitschek ocorre no momento da
República brasileira fundada pela Constituição de 1946. O regime democrático-
liberal fundado por aquela Constituição mesclava elementos herdados do Estado
Novo e a doutrina liberal, dando um caráter elitista e antipopular em uma democracia
que, na verdade, trazia em seu bojo, não poucas marcas de autoritarismo.345
Reis
Filho escolhe os anos de JK como o momento que melhor reflete aquele período, dito
democrático, por conta da memorialística relacionada aos “anos dourados”.
A cultura nacional-estatista moldara-se aos novos tempos marcados pelo jogo
institucional, liberdade de imprensa, disputas político-partidárias e o registro liberal
das liberdades democráticas. JK, respeitando os parlamentos e os tribunais, articulou
uma aliança, já citada aqui antes, entre o PSD (Partido Social Democrático) e o PTB
344 Id., ibid., p. 18.
345 Id., ibid., p. 19.
422
(Partido Trabalhista Brasileiro), cujas bases sociais advinham do varguismo reunidas
para impulsionar o desenvolvimento do país. Ao encontrar obstáculos políticos e
institucionais, JK habilmente os contornava com os Grupos Executivos, agigantando
o Estado e centralizando-o através destes Grupos que eram unidades de poder e de
gestão.346
As concepções modernizantes e industrializantes do estado Novo foram
retomadas e em um ritmo acelerado, pautado no Plano de Metas – “cinquenta anos
em cinco”. A natureza estava ali para ser “subjugada”, “disciplinada” e explorada.
Era a tônica desenvolvimentista.
Apesar de ter uma imagem também associada à abertura do país aos
investimentos estrangeiros, e assim gerar críticas, Juscelino, em um certo momento,
romperia com o receituário antidesenvolvimentista do Fundo Monetário
Internacional (FMI). É quando JK lança a Operação Pan-Americana (OPA). O
Brasil buscava maior projeção internacional na América Latina, advogando através
da OPA, a necessidade de os países do continente não serem meros coadjuvantes da
superpotência capitalista- os Estados Unidos – mas de superarem os problemas do
atraso e do subdesenvolvimento.347
JK também teve tato com os militares. Afinal, o general legalista Henrique
Teixeira Lott, garantiu a sua posse e seu mandato através do movimento militar
ocorrido em novembro de 1955. Lott esteve no Ministério da Guerra sublinhando
aquela que talvez (usando-se as palavras de Ernesto Geisel quando presidente na
década de 1970) fosse também uma democracia “relativa”. Os presidentes, além das
urnas, necessitavam da tutela por parte dos chefes militares.348
Juscelino encerraria o
seu governo com “chave de ouro”, concluindo o seu mandato, em 31 de janeiro de
1961, passando a faixa presidencial ao seu sucessor, também eleito pelo voto, Jânio
Quadros. E faria isso em Brasília, a recém-inaugurada capital federal.
Apesar da adaptação da cultura política nacional-estatista aos novos “ventos”
da democracia do pós-Segunda Guerra, a inquietação e a mobilização das elites e das
346
Id., ibid., p. 20.
347 Id., ibid., p. 20.
348 Id., ibid., p. 20 e 21.
423
forças sociais conservadoras, por um lado; e de outro, as “ameaças revolucionárias”
que se reproduziam em diferentes partes do mundo, somadas às camadas mais
populares e setores da esquerda mobilizadas pelo programa reformista revolucionário
(as “reformas de base”), levariam à república brasileira à um momento de tensão,
exaustivamente já discutido nesse trabalho. O resultado foi o golpe de Estado em 31
de março de 1964 por parte das forças conservadoras.
Cultura nacional-estatista no regime militar (1964-1985)
O primeiro governo do regime, chefiado por Castelo Branco, procurou destruir
o “legado varguista”. Naqueles tempos da Guerra Fria, o Brasil alinhava-se de forma
subserviente aos Estados Unidos. Um dos pilares do nacional-estatismo era rompido,
a política econômica recessiva, assentada no arrocho salarial, separava de vez o
governo das alianças com os trabalhadores rurais e urbanos. Os movimentos
populares foram reprimidos.
Na economia desenhava-se um quadro de “venda” do Brasil aos interesses
imperialistas. Seria a radicalização do que JK esboçara: a avassaladora entrada de
capitais estrangeiros. O nacional-estatismo estaria condenado, até porque os militares
identificados como (ainda que supostamente) às esquerdas foram cassados. Mas, no
próprio governo de Castelo Branco, começou a embrionar um novo fervor estatista.
Criaram-se novas agências e modernizaram-se outras. A estrutura sindicalista
corporativa urbana e os sindicatos rurais permaneceram, apesar da estrita vigilância.
No segundo governo militar, o de Costa e Silva, através de Delfim Netto, o
“czar” da economia,o estado retoma o seu papel como agente fundamental do
desenvolvimento. A tônica industrializante e desenvolvimentista vai sendo assumida
definitivamente no terceiro governo, o de Médici.
Nos tempos de Médici, volta à tona a necessidade de se subjulgar a natureza,
assim como foi nos anos de JK. O capital privado, internacional e nacional, não foi
esquecido. Entretanto era clara a liderança estatal nesse processo desenvolvimentista.
Era o modelo do “tripé” (empresas privadas nacionais e estrangeiras, sob a indução e
o protagonismo estatal).
424
Eram os tempos do “milagre econômico”, dos slogans ufanistas, pavimentando
um orgulho patriótico devidamente coroado pela conquista da Copa do Mundo de
1970, pela seleção brasileira de futebol.
O quarto governo militar, o de Ernesto Geisel, trouxe o “pragmatismo
responsável” com a retomada de uma “política externa independente”, de tradição
estadonovista e muito presente nos anos anteriores ao golpe. Além da ruptura do
acordo militar bilateral entre Brasil e Estados Unidos.349
O crescimento econômico foi concentrado e profundamente desigual – tanto
social como regionalmente. Os sindicatos estavam sob estreita vigilância, mas isso
não impediria a expansão e a consolidação de sindicatos nas cidades e nos campos.
De acordo com o IBGE, entre 1968 e 1978, o número de sindicatos urbanos
aumentou entre 1968 e 1978, de 2.616 para 4.009. Na área rural, o número
aumentou de 625 para 1.669.350
Conclui-se que a cultura nacional-estatista
reermegeria numa roupagem modernizante e autoritária durante o regime militar.
Prova disso foi a montagem de uma estrutura composta por diversos órgãos de
planejamento (como as superintendências regionais: SUDAM, SUDENE, etc.), sob o
governo federal. E também as políticas de desenvolvimento e territoriais
implantadas: o PIN (Programa de Integração Nacional); o I e o II PNDs (Planos
Nacionais de Desenvolvimento); e etc,.
Cultura nacional-estatista nos anos de Lula (2003-2010)
O fim do regime militar se deu em um processo complexo e negociado. Em
1988, veio a nova Constituição, que ainda conserva aspectos do ideário nacional-
estatista. O país enfrentou os ventos do neoliberalismo das privatizações
determinadas no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e no de
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
349 Id., ibid., p. 25.
350 Id., ibid., p. 25.
425
Ao assumir a Presidência, em 2003, em sua primeira mensagem ao Congresso,
Luís Inácio Lula da Silva realçaria a perspectiva do crescimento econômico a
qualquer custo. Para isso, o Estado retomaria o seu papel protagonista, apoiado em
uma ampla aliança de classes, indo na contramão de seus antecessores –FHC e
Collor. A crise do capitalismo liberal, em 2008, reforçaria essa ênfase.351
O nacional-estatismo do governo Lula assumiu então uma perspectiva
policlassista, semelhante em aspectos gerais às de Getúlio Vargas e de JK. Mas
também apresentou características próprias. O Estado expandiu-se com as políticas
de distribuição de renda (como o Bolsa-Família), e na alocação de recursos (como
nas linhas de financiamento oferecidas por instituições estatais). O governo chamou
as lideranças empresariais –urbanas e rurais – e os trabalhadores, para o diálogo, com
a mediação do Estado. Claro que tais diálogos não foram desprovidos de tensões,
mas, se seguirmos esta linha de raciocíonio de Reis Filho, em que o autor discorre
sobre o nacional-estatismo em diferentes momentos da história nacional, os anos de
Lula são o primeiro momento da história brasileira em que a cultura nacional-
estatista é retomada, após o fim do regime militar.
Agora, e o papel das Forças Armadas hoje? Reis Filho, as colocam como as
grandes ausentes ou os grandes emudecidos neste novo nacional-estatismo. O
Exército aparece somente em intervenções de emergência, mais precisamente nas
situações específicas de grandes catástrofes naturais. Também, o autor assinala que
as Forças Armadas parecem um Estado dentro do Estado. Com quadros que se
formam ainda conforme as referências das décadas de 1960 e 1970. Após a transição
democrática e o fim da Guerra Fria não há uma doutrina solidamente formulada para
orientar o papel das Forças Armadas. Em contrapartida, todas as tentativas de
esclarecimentos de fatos e de episódios do período militar autoritário costumam ser
frustradas por conta das resistências das autoridades militares em entregar arquivos e
colaborar. Para Reis Filho, a despeito destas dificuldades em se “passar a limpo” o
regime militar de 1964, pela primeira vez na trajetória histórica da cultura política do
nacional-estatismo os militares perderam o seu protagonismo.
351 Id., ibid., p. 27.
426
Algo que o governo Lula conseguiu foi o crescimento econômico com inclusão
social. Sabemos que tal inclusão foi bastante reticente e seletiva nos anos do
“milagre econômico”, podendo-se constatar que grandes parcelas da população
brasileira e determinadas regiões do país não usufruíram das benesses do
desenvolvimentismo da década de 1970. Nos oito anos de Lula houve a geração de
quase 12 milhões de empregos – e mais de 20 milhões de brasileiros saíram da
pobreza extrema.352
O que não deixa de ser interessante e que pode ser contrastada
com a “modernidade da pobreza” que foi tratada no tópico referente às heranças da
modernização conservadora e centralizadora para o Brasil.
E o país não abriu mão de sua projeção na política externa, com o espaço que
os “emergentes” galgaram face à crise enfrentada pelas sociedades capitalistas mais
avançadas (Estados Unidos, União Européia e Japão), na virada das décadas de 2000
para a de 2010. E a elevação da autoestima e do orgulho próprio e patriótico, que já
ocorreram lá atrás no Estado Novo, nos anos dourados de JK e no ufanismo do
regime militar (especialmente nos anos Médici), encontraram um novo capítulo na
escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo de futebol - em 2014 – e no Rio de
Janeiro, como sede das Olimpíadas de 2016.
***
Para encerrar, aborda-se, de uma forma breve é verdade, a memorialística sobre
o regime. Já se assinalou que entre a população ficou-se a impressão de que as
políticas territoriais são de competência exclusiva do Estado, com especial relevância
aos segmentos militares. Além disso, há toda uma série de aparentes contradições
quanto à memória sobre o regime. Os militares golpistas se apresentaram como
“revolucionários”, ao mesmo tempo em que defendiam a ordem. Eles pretendiam
modernizar o país sem alterar a sua estrutura social. Eram antirreformistas, mas
falavam em reformas. Falavam na defesa da pátria, mas criticavam o nacionalismo
352 Id., ibid., p. 28.
427
econômico das esquerdas. Prometiam democracia, mas o país ficaria por quase três
décadas sem eleger o presidente da República. Falava-se em democracia, porém por
quase duas décadas, a população ficou privada de poder escolher os governadores de
estado. O único ponto de intersecção na coalizão golpista vitoriosa em 1964 foi o
anticomunismo.
No entanto, viu-se que no primeiro governo do regime, o de Castelo Branco, já
foi ocorrendo uma dissociação entre os grupos militares que dominavam o Estado e
boa parte da elite social (como os intelectuais e, mais tarde, até algumas lideranças
políticas, descontentes com a política recessiva de Castelo Branco). Na década de
1970, parte da elite econômica criticava e se distanciava do regime por conta do
estatismo e do burocratismo. A imprensa, dita liberal (NAPOLITANO, 2014), que
tanto apoiou o golpe que derrubou Jango, após o AI-5, o ápice repressivo e a falta de
liberdades civis, se posiciona consagrando uma cultura de esquerda e vozes críticas
ao regime, em especial, depois da aniquilação da luta armada. Daí viria uma
improvável convergência entre liberais dissidentes e comunistas críticos, sobretudo a
partir da “distensão” implementada pelo governo Geisel. Para NAPOLITANO
(2014:317), é desta convergência que surge a memória hegemônica sobre o regime
militar. Por outro lado, a sociedade civil se tornaria cada vez mais atuante a partir
daquela época. Uma vez que o “milagre econômico” se encerrou e o Brasil foi
trilhando um caminho rumo à grave crise dos meados da década de 1980, a
legitimidade do regime se erodiria de vez.
Napolitano assinala que os militares hoje se sentem ressentidos. Passaram à
História mais como “vilões”, do que como heróis. Os militares na atualidade
procuram se justificar quanto aos métodos empregados, tanto na repressão aos
opositores, como no combate à luta armada contra o regime. O mesmo autor
arremata que a memória hegemônica sobre o regime, ainda que tenha incorporado
alguns elementos da esquerda, é fundamentalmente uma memória liberal, que
tenderia a privilegiar a estabilidade institucional e a criticar os radicalismos de ambos
os lados (à direita e à esquerda). Tal memória liberal condenou o regime, mas
relativizou o golpe. Condenou politicamente os militares da linha dura, mas absolveu
428
os da transição negociada. Nesta memória, Geisel é quase um herói da democracia,
enquanto Médici e Costa e Silva são os vilões do autoritarismo e da repressão.353
Percebe-se que a memorialística sobre o regime é bastante complexa. Isso não
deixa de ser reflexo da transição bastante extensa, que na verdade, ocupou 11 dos 21
anos em que os militares estiveram no poder, se tomarmos como ponto de partida o
início do período de Geisel. Foi uma transição longa, tutelada pelos militares, em que
um civil oposicionista moderadíssimo (Tancredo Neves) voltaria à Presidência
através do Colégio Eleitoral. Com a morte deste, a Presidência seria ocupada pelo
vice, José Sarney, uma figura que cresceu nas sombras do regime e mudou de lado na
última hora.
E, nos dias atuais, após trinta anos do final do regime autoritário, ainda há
pessoas que sentem saudades daquele período. Saudosistas da prosperidade
econômica (como se os 21 anos dos militares no poder tivessem sido de puro
crescimento econômico, esquecendo-se da política recessiva de Castelo Branco, ou
pior, da crise econômica assombrosa dos anos de Figueiredo). Outros sentem
saudades porque, nos dias atuais, o quadro de deterioração da segurança pública e os
altos índices de violência fazem alguns suspirarem pelos “anos dourados do
militarismo” (quando, na verdade, foi aqui exposto que muitos dos problemas da área
da segurança têm suas raízes justamente no regime militar). Ou ainda a questão dos
direitos humanos, vista hoje como “privilégio de bandidos” por conta do problema da
violência urbana, em que, no contexto do regime, acaba sendo distorcida tratando o
guerrilheiro das décadas de 1960 e 1970, como um marginal inescrupuloso e
sanguinário e, por outro lado, os militares e os policiais abatidos na “guerra interna”
contra a luta armada são colocados verdadeiros “mártires” (mas, não se fala dos
grupos paramilitares de direita que atuaram na época ou dos atos terroristas da
extrema-direita). Por fim, há autores (como Daniel Aarão Reis Filho) que consideram
que o fim do regime foi em 1979, com a revogação dos Atos Institucionais, outros
consideram que o marco do fim do regime foi a Constituição de 1988. O discurso
hegemônico apontaria o ano de 1985, embora José Sarney fosse uma figura
incongruente para simbolizar o início da “Nova República” por causa de seu passado
353 NAPOLITANO, Marcos. Op.Cit. p.319.
429
estreitamente ligado ao regime354
. Até para se estabelecer um marco para o final do
regime não haveria um consenso. Especificamente, quanto à este marco, foi-se
optado aqui pelo ano de 1985.
É assim que se encerra este trabalho. Espero que ele venha a trazer alguma
contribuição a esta discussão tão complexa, e ainda não terminada, sobre o regime de
1964. Que o Brasil um dia possa, através de seu povo, da sociedade como um todo, e
dos diferentes governos do porvir, passar “a limpo” a sua memória e
construir/desconstruir, montar/ desmontar, responsabilizar e julgar, de forma correta
e esclarecedora, o regime militar e seus atores envolvidos. E que também possa
enriquecer a Geografia Política no atual contexto contemporâneo de mais de duas
décadas após o fim da Guerra Fria e de três décadas após o fim do regime militar
brasileiro.
354 REIS FILHO, Daniel Aarão. Op.cit. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo
Patto Sá (org.). Op.cit. p.11.
430
Anexo 1:
Fonte: Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo:
Departamento editorial das Edições Melhoramentos, 1974. p.130 e 131. No mapa do
canto superior esquerdo, a área de atuação do DNOCS está representada em amarelo. A
da SUVALE encontra-se em vermelho. Há uma razoável intersecção entre as áreas de
atuação de ambas.
431
Anexo 2:
Fonte: Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento
editorial das Edições Melhoramentos, 1974. p.134 e 135. No mapa maior onde estão
representados os órgãos de planejamento a nível estadual, em meados da década de 1970,
infelizmente é impossível visualizar cada um dos órgãos atuando em cada unidade federativa
brasileira. Porém, através da fonte, um aprofundamento sobre este tópico poderá ser realizado.
432
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