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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA MÁRIO AUGUSTO CARDOSO JUSTO Os legados e as heranças do regime militar de 1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro São Paulo 2015

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA

MÁRIO AUGUSTO CARDOSO JUSTO

Os legados e as heranças do regime militar de

1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro

São Paulo

2015

2

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA HUMANA

Os legados e as heranças do regime militar de

1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro

Mário Augusto Cardoso Justo

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Geografia Humana do Departamento de Geografia

da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo, para a obtenção

do título de Mestre em Geografia Humana.

Orientador: Professor Dr. André Roberto Martin

São Paulo

2015

3

Ao meu pai Mário Justo (in memoriam) e

à minha mãe Rosária Cardoso Justo

4

Agradecimentos:

Este trabalho é a realização de um sonho, desde a conclusão do meu curso de

Graduação em Geografia, no final de 2001. Eu desejava e almejava fazer a Pós-

Graduação para a obtenção do Título de Mestre, porém muitas coisas aconteceram e

alguns percalços também. Após uma espera relativamente longa e de algumas tentativas

frustradas, finalmente iniciei a Pós-Graduação em Geografia Humana em agosto de

2012.

O processo de elaboração deste trabalho não foi fácil. Vivemos em um país

onde a pesquisa ainda não é devidamente valorizada. Não é nada fácil conciliar a

pesquisa e os empregos. Isso mesmo, empregos no plural. Como professor na Educação

Básica, atuando no Ensino Fundamental, tanto no regular (na rede estadual de São

Paulo), como na Educação de Jovens e Adultos – EJA (na rede municipal de Taboão da

Serra - SP), eu tenho uma rotina em muito semelhante à esmagadora maioria dos

docentes de Educação Básica no Brasil, atuando em salas de aula por duas escolas.

Conciliar pesquisa e o atendimento às suas necessidades básicas continua a ser um

desafio aqui no Brasil.

Agradeço ao meu professor orientador, Dr. André Roberto Martin, porque ele já

havia sido o meu orientador no Trabalho de Graduação Individual (TGI), quando da

conclusão de minha Graduação. Em todos esses anos em que estive distante da

Universidade até retornar à Pós-Graduação sempre o tive como orientador em minha

mente, apesar das dificuldades enfrentadas no processo de ingresso para o programa do

Mestrado. Agradeço ao professor André pela colaboração e as sugestões preciosas para

o desenvolvimento do trabalho. Isso não se restringe só agora no Mestrado, porque

como o conheço de longa data, as ajudas, as conversas e os diálogos com o professor

orientador, desde os tempos da Graduação e do TGI, nunca foram esquecidas ao longo

desses anos e, obviamente, foram aproveitadas.

Agradeço também aos professores Dr. Wanderley Messias da Costa e à Dra.

Maria Aparecida de Aquino com os quais tive aulas em disciplinas cursadas na Pós-

Graduação e que também redundaram em importantíssimas contribuições para a

realização deste trabalho.

5

Resumo:

A presente pesquisa trata sobre alguns dos principais legados e heranças que o

regime militar de 1964-1985 trouxe ao Brasil. Num primeiro momento abordou-se a

formação sócio-política da América Latina, se restringindo mais especificamente à

América do Sul, chegando-se ao período que genericamente conhecemos por

populismo. E, na sequência, um panorama histórico dos regimes militares que

permearam a vida política de várias nações sul-americanas, como Peru, Chile e

Argentina, a partir da década de 1960. A análise torna-se centrada no Brasil, a partir da

exposição da participação dos militares na política nacional, desde a proclamação da

República, em 1889, passando-se pela República Velha, a Era Vargas (1930-1945) e

pelo período democrático, iniciado em 1946, até a renúncia de Jânio Quadros, em 1961.

Ao chegar-se no período de João Goulart (1961-1964), a análise se torna mais detalhada

por aquele ter sido o governo derrubado pelo golpe de 1964. Segue-se um panorama

histórico bastante abrangente dos cinco presidentes-generais que governaram o Brasil

entre 1964 a 1985: Castelo Branco; Costa e Silva; Médici; Ernesto Geisel; e João

Figueiredo. Naquele momento, o trabalho se detém num exame mais acurado do

“milagre econômico”; dos “anos de chumbo”; da “distensão” ou abertura; e da transição

democrática, com o movimento das “Diretas-Já” e o Colégio Eleitoral que elegeu

Tancredo Neves, presidente da República, em 1985. Após esta longa retomada

histórica, são abordados os legados e as heranças do regime militar ao espaço

geográfico-territorial brasileiro tomando-se como “fio norteador” o conceito e o

processo de modernização conservadora/centralizadora. Este processo é analisado desde

as suas raízes, na Revolução de 1930 e início da Era Vargas, destacando-se o Estado

Novo varguista (1937-1945), prosseguindo-se pelo período democrático pós-1946,

tratando-se, em especial, do outro governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e o de

Juscelino Kubitschek (1956-1960). E chega-se ao regime militar iniciado em 1964. O

foco desta parte do trabalho são as políticas territoriais adotadas e implementadas pelo

governo federal ao longo dessas diferentes fases político-institucionais do Brasil e que

afetaram o território nacional trazendo reflexos até hoje, bem como a implantação,

estruturação e a consolidação de redes por parte dos governos militares pós- 1964 como

a de transportes, a urbana, a de telecomunicações, a elétrica, etc., procurando-se

salientar que essa modernização autoritária, imposta pelo governo central brasileiro,

apresentou notória continuidade apesar das mudanças político-institucionais que o

Brasil experimentou naquelas décadas, fazendo-se então um balanço dos legados e das

heranças que esse modelo modernizante, reforçado sobremaneira pelo regime militar,

trouxe ao espaço geográfico e território brasileiro, em nome da unificação e da

integração nacionais. Finalmente, este trabalho faz uma breve retomada histórica da

Geografia Política e da Geopolítica,desde o século XIX até ao século XX,

posteriormente adentrando-se no pensamento geopolítico brasileiro, desde a década de

1930 até a visão “triunfalista” do “Brasil-Potência” dos anos 1970, com especial

destaque ao pensamento de Golbery do Couto e Silva. E depois, as críticas à esta visão

“triunfalista” e ao pensamento geopolítico no Brasil, com a necessidade de se repensar a

Geografia Política em nosso país.

Palavras-chave: regime militar de 1964, militarismo no Brasil, modernização

autoritária, modernização conservadora

6

Abstract:

The present research about some major legacies to the 1964-1985 military regime

brought to Brazil. At first approached the formation social and policy of Latin America,

if restricting more specifically to South America, the period generally known as

populism. And, as a result, a history of the military regimes that permeated the political

life of several South American Nations, such as Peru, Chile and Argentina, from the

early 60’s. The analysis becomes centered in Brazil, from the exposure of military

participation in national politics, since the proclamation of the Republic in 1889,

passing by the old Republic, the Vargas Era (1930-1945) and the democratic period,

which started in 1946, until the resignation of President Jânio Quadros in 1961. Upon

arriving in the period of João Goulart (1961-1964), the analysis becomes more detail for

that have been the Government overthrown by the coup d’état of 1964. Below is a

comprehensive historical overview of the five Presidents-generals who ruled Brazil

between 1964 to 1985: Castelo Branco; Costa e Silva; Medici; Ernesto Geisel; and João

Figueiredo. At that time, the work comes to a halt in a more accurate examination of the

"economic miracle"; the "years of lead"; the "bloating" or opening; and the democratic

transition, with the movement of the "direct" and the electoral college that elected

Tancredo Neves, President of the Republic, in 1985. After this long historical resume,

are covered and the legacies of the military regime to the geographical space-Brazilian

territorial taking as "guiding wire" the concept and the conservative modernization

process/centering. This process is analyzed from its roots in the revolution of 1930 and

early Vargas highlighting New Vargas State (1937-1945), continuing the democratic

period post 1946, dealing, in particular, of another Government of Getúlio Vargas

(1951-1954) and the Juscelino Kubitschek (1956-1960). And arrive at the military

regime started in 1964. The focus of this part of the job are territorial policies adopted

and implemented by the federal Government over these different political and

institutional stages of Brazil and that affected the country bringing reflections until

today, as well as deployment, structuring and consolidation of networks by military

governments post 1964 as urbanization, transports, telecommunications, electric , etc.,

should be noted that this authoritarian modernization, imposed by the central

Government of Brazil, presented notorious continuity despite political and institutional

changes that Brazil experienced in those decades, doing a legacy and balance of the

legacies that this model of modernization greatly reinforced by the military regime,

brought to the geographical space and Brazilian territory, in the name of national

integration and unification. Finally, this work makes a brief resumption of political

geography and Geopolitics since the 19th century until the 20th century, later entering

in the Brazilian geopolitical thinking, since the 1930 until the vision "triumphalist" of

"Brazil-power" of the 70´s, with special emphasis on thought of Golbery do Couto e

Silva. And then, the criticism of this vision "triumphalist" and geopolitical thinking in

Brazil, with the need to rethink the political geography in our country.

Keywords: the military regime in 1964, militarism in Brazil, authoritarian

modernization, conservative modernization

7

Índice:

Agradecimentos............................................................................................4

Resumo........................................................................................................5

Abstract......................................................................................................6

Apresentação ............................................................................................12

Introdução.................................................................................................16

1- Estrutura de poder e formação sócio-política da América Latina.............34

1.1 – As ditaduras regressivas ou regimes militares autoritários na América

Latina...................................................................................................................45

1.1.1- Ditaduras regressivas ou regimes militares autoritários na América do

Sul.........................................................................................................................48

*Peru....................................................................................................................48

*Chile....................................................................................................................51

*Argentina............................................................................................................55

*Uruguai e Paraguai............................................................................................60

2- A participação dos militares na história republicana brasileira.................63

2.1- De 1889 a 1961: a participação dos militares, desde a República Velha até ao

governo Jânio Quadros................................................................................63

2.2- De 1961 a 1964: período Jango - o governo que, ao ser derrubado, daria lugar

ao regime militar.........................................................................................76

2.3 – O golpe de 1964..................................................................................104

8

3 – O Regime Militar Brasileiro (1964-1985).....................................................137

3.1- Governo Castelo Branco (1964-1967). Uma “ditabranda”?........................137

3.2 – Governo Costa e Silva (1967-1969)..........................................................157

3.2.1- Embate Sucessório...................................................................................171

3.3- Governo Médici (1969-1974). O milagre em anos de chumbo......................182

3.3.1- Milagre econômico..................................................................................201

3.3.2- Anos de chumbo.....................................................................................223

3.4- Governo Geisel (1974-1979). Fim do “milagre”, manutenção do estatismo e

início da “distensão”.........................................................................................241

3.4.1 – Distensão, abertura e democracia “relativa”..........................................259

3.5- Governo Figueiredo (1979-1985). O regime militar caminha para o seu

final.................................................................................................................288

3.5.1- “Diretas-Já” e Colégio Eleitoral. O Brasil entre a abertura e a

redemocratização..............................................................................................303

4- Modernização conservadora e centralizadora................................................325

4.1- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: desde as suas raízes

(Revolução de 1930 e Estado Novo de 1937) até a construção de Brasília (década

de 1950)...........................................................................................................330

4.2- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: o regime militar de

1964.................................................................................................................338

4.3 Heranças e legados da modernização conservadora e centralizadora para o

Brasil...............................................................................................................355

9

5- Geografia Política e Geopolítica: suas evoluções e diferenciações...................387

5.1- Clássicos do pensamento geopolítico brasileiro:

de Backheuser a Golbery (das décadas de 1930 até a de 1970)...........................393

5.2- O pensamento geopolítico brasileiro: do “triunfalismo” da década de 1970 às

críticas atuais... ...............................................................................................406

Considerações Finais........................................................................................413

*O estatismo na história brasileira. De Vargas à Lula......................................418

*Cultura nacional-estatista no Estado Novo (1937-1945).................................420

*Cultura nacional-estatista nos anos de JK (1956-1961)..................................421

*Cultura nacional-estatista no regime militar (1964-1985)..............................423

*Cultura nacional-estatista nos anos de Lula (2003-2010)...............................424

Referências Bibliográficas..............................................................................432

10

Índice de tabelas:

Tabela 1... .........................................................................................................222

Tabela 2.............................................................................................................367

Tabela 3.............................................................................................................368

Tabela 4.............................................................................................................369

Tabela 5.............................................................................................................369

Tabela 6.............................................................................................................370

Tabela 7.............................................................................................................371

Tabela 8.............................................................................................................376

11

Índice de mapas:

Mapa 1................................................................................................................346

Mapa 2...............................................................................................................347

Anexo 1..............................................................................................................430

Anexo 2..............................................................................................................431

12

Apresentação:

O presente trabalho realiza o estudo e a análise das transformações acarretadas

ao espaço geográfico, e ao território, brasileiros. Tais mudanças foram decorrentes do

processo de modernização autoritária comandada pelo governo central, durante os anos

do regime militar, que governou o país de 1964 a 1985. Também foram pesquisados e

analisados os legados e as heranças desse modelo de modernização que os governos

militares deixaram ao Brasil e que, em muitíssimos casos, persistem até aos dias atuais,

já com três décadas após o fim daquele regime autoritário.

Na introdução são apresentados o objetivo e as justificativas para a realização

deste trabalho, que consiste em se estudar este processo de modernização autoritária do

Estado brasileiro, processo este sobremaneira reforçado pelo regime militar de 1964,

bem como as heranças e os legados de tal modernização ao espaço territorial brasileiro.

Também são discutidos os conceitos de abertura e de redemocratização. Bem como se o

que ocorreu em 31 de março de 1964, tratou-se de uma revolução ou de um mero golpe

para que nada pudesse mudar.

No capítulo 1 é feita uma breve retomada da formação sócio-política da América

Latina, restringindo-se, em especial, à América do Sul. É tratada a época que

genericamente ficou conhecida por populismo, com destaques ao Brasil, de Getúlio

Vargas; e à Argentina, de Perón. A seguir, em um subtópico específico, são abordados

os regimes militares autoritários que marcaram a vida política de várias nações sul

americanas, tratando-se aqui principalmente sobre o Peru, o Chile e a Argentina.

A partir do capítulo 2 a análise se volta ao Brasil. Fez-se toda uma retrospectiva

histórica da participação dos militares na vida política nacional, desde a proclamação da

República, em 1889, até o ano de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros,

perpassando-se por todas as fases e períodos políticos-institucionais que o Brasil

passou: a “Era Vargas” (1930-1945) e o período democrático iniciado em 1946. Ao se

chegar no governo de João Goulart (1961-1964), a análise se torna mais aprofundada no

tocante à este período por se tratar do governo que foi deposto pelo golpe de 1964,

dando lugar ao regime militar. Na sequência, é feita uma discussão mais aprofundada

sobre o golpe de 1964, mostrando as visões de diferentes autores sobre aquele episódio

de 31 de março.

13

No capítulo 3, entra-se no regime militar brasileiro, tratando-se dos principais

aspectos e fatos ocorridos nos governos de cada um dos presidentes-generais. Primeiro,

o governo de Castelo Branco (1964-1967), discutindo-se também sobre o significado do

termo “ditabranda”. Segundo, o governo de Costa e Silva (1967-1969), o avanço das

oposições, as manifestações ocorridas, sobretudo em 1968, e a elaboração e implantação

do Ato Institucional nº5. Depois, o embate sucessório, em 1969, para a Presidência da

República diante do afastamento de Costa e Silva decorrente de gravíssima

enfermidade. O terceiro governo foi o de Médici (1969-1974), marcado pelo ufanismo e

pelo clima de otimismo, num contexto em que o excepcional crescimento econômico

estava lado a lado com a fase mais brutal de repressão do regime. Para tanto, foram

abordados, em um subtópico, o “milagre econômico”, onde foi esboçado um panorama

econômico de todo o período militar, desde a política recessiva de Castelo Branco até a

grave crise econômica que permeou o governo de João Figueiredo. E, em seguida, num

outro subtópico, os “anos de chumbo”, com um outro panorama, a do aparato

repressivo, também ao longo de todo o período do regime. O quarto governo, o de

Ernesto Geisel (1974-1979) traz os seus aspectos mais gerais, seguido por um

subtópico, mais pormenorizado, voltado ao tema da “distensão” ou abertura do regime,

em seus avanços e percalços. E, no quinto governo, o de João Figueiredo (1979-1985),

também os aspectos gerais daquela gestão, em que caminharam juntamente abertura, os

ímpetos nos esforços da sociedade civil pela redemocratização e a situação de

deterioração econômica que o Brasil vivia. Foi feito também um subtópico, voltado aos

anos finais do governo de Figueiredo, abordando-se mais acuradamente o movimento

das “Diretas-Já” e após a não realização do objetivo daquele movimento, os

acontecimentos e as campanhas visando à eleição indireta para presidente da República,

através do Colégio Eleitoral de 1985, com a vitória do candidato Tancredo Neves sobre

Paulo Maluf. E, após a morte de Tancredo, a posse do seu vice, José Sarney, o primeiro

civil a assumir a Presidência da República, após mais de duas décadas, marcando-se o

fim do regime militar.

No capítulo 4, foi realizada uma discussão do conceito de modernização

conservadora e centralizadora. É mostrado, num primeiro subtópico, que este processo

de modernização autoritária, comandada pelo Estado brasileiro, não se restringiu

somente ao regime militar de 1964. Suas raízes vêm de antes, a partir da Revolução de

1930 quando Getúlio Vargas chega à Presidência. Foi dada uma ênfase à modernização

14

comandada pelo governo central, durante o Estado Novo (1937-1945), apontando-se as

suas iniciativas e políticas territoriais daquela época. No período democrático de 1946, é

tratada a continuação desse processo modernizante, destacando-se as medidas tomadas

por Getúlio Vargas, novamente presidente (1951-1954), e o governo de Juscelino

Kubitschek (1956-1960), realçando-se o Plano de Metas, em especial a transferência da

capital federal do Rio de Janeiro para Brasília. No segundo subtópico, é tratada a

modernização conservadora e centralizadora, durante os governos militares iniciados em

1964. Foram enumeradas as transformações, muitas delas na verdade não eram inéditas,

mas foram continuadas pelos militares que intensificaram e aprofundaram o processo de

modernização autoritária trazendo importantes, duradouras e persistentes

transformações ao espaço geográfico nacional e ao território brasileiro. Como na

estruturação e consolidação definitivas de uma rede urbana, de telecomunicações, de

energia elétrica, de transportes, etc., além da busca pelo domínio do vetor científico-

tecnológico e as preocupações estratégicas e geopolíticas quanto ao papel do Brasil no

cenário geopolítico mundial. São realçadas e sublinhadas as políticas territoriais

desenvolvidas pelo regime autoritário de 1964, como o PIN (Programa de Integração

Nacional) e o primeiro e o segundo Planos Nacionais de Desenvolvimento (I e II PNDs)

no referente em como tais políticas acarretaram profundas transformações ao território

brasileiro, nos aspectos políticos, econômicos e sociais. É reforçada a importância do

planejamento naquele contexto, exemplo disso foi a estruturação de um sólido sistema

de superintendências regionais, como a SUDAM, a SUDENE, a SUDECO e a

SUDESUL. Na verdade, as superintendências da Amazônia (SUDAM) e a do Nordeste

(SUDENE) já existiam antes do regime, mas o Estado autoritário incrementou a lógica

do planejamento em suas políticas, inclusive as territoriais. E, em um terceiro subtópico,

têm-se os legados e as heranças deste longo processo de modernização conservadora e

centralizadora deixadas ao Brasil atual e que, até hoje, têm afetado aspectos políticos,

econômicos, sociais, culturais e até comportamentais em nosso país. Obviamente, o lado

negativo da modernização autoritária não foi negligenciada, sobretudo nos aspectos

sociais, como na persistência da má distribuição da renda, a concentração fundiária, a

urbanização e as migrações rural-urbanas que se deram de uma forma muitas vezes

caótica, gerando a expansão das submoradias e da violência, sobretudo nas periferias

das grandes cidades.

15

No capítulo 5, segue-se um breve histórico da evolução da Geografia Política e da

Geopolítica, desde o século XIX, com Ratzel, até meados do século XX. Num primeiro

subtópico, é trilhado o pensamento geopolítico brasileiro, passando-se por autores

como, Backhauser, Travassos e Golbery, chegando-se até ao discurso triunfalista dos

anos 1970. No subtópico seguinte, é percorrido desde este “triunfalismo” até às críticas

ao mesmo junto à desconstrução do mito do “Brasil-potência” finalizando-se com a

necessidade da Geografia Política (e não da Geopolítica) rever e retomar, nos dias

presentes, o seu papel no mundo atual.

Nas considerações finais, optou-se em discorrer sobre as diferentes formas de

nacional-estatismo, ao longo da história brasileira, desde Getúlio Vargas até ao

presidente Lula e, depois, o trabalho é finalizado com uma brevíssima menção à

memorialística sobre o regime.

16

Introdução

Em 2014, completaram-se 50 anos dos fatos ocorridos em 31 de março de

1964 que marcaram o início do regime militar no Brasil. Também se passaram 30

anos do movimento das “Diretas-Já” e da não aprovação daquela reivindicação de

eleições diretas para presidente. Para acrescentar, em 2015, terão transcorrido

também 30 anos: do Colégio Eleitoral; do fim do regime autoritário de 1964 (se

tomarmos como referência a transferência do poder presidencial para um civil, pela

primeira vez em quase 21 anos); e da morte de Tancredo Neves.

Após todo este tempo, ainda existem dúvidas, lacunas, discussões, além do

despontar de novos olhares e perspectivas sobre os fatos que marcaram o regime de

1964, reforçados agora nesse contexto de meio século completado do movimento de

31 de março, mais os recentes trabalhos de apurações da Comissão da Verdade - e de

outras comissões e grupos similares - nos últimos anos. Este trabalho, obviamente,

não tem a pretensão de investigar (num sentido meramente passional do termo) o que

foi o regime de 1964, nem em julgar ou sentenciar, baseado puramente na emoção e

no sentimentalismo, personagens e fatos daquele período, muito menos em adentrar a

fundo em temas que seriam de competência mais da Ciência Política e da História.

Porém, a distância temporal de cinco décadas em relação ao início do regime traz

excelente possibilidade de se colocar um olhar muito mais analítico, e menos

emotivo, do que seria se o mesmo fosse exercitado, por exemplo, logo após o fim

daquela fase autoritária quando se revigoravam o cenário político-ideológico e

também o fervor (talvez até precipitado) em se julgar acontecimentos e personagens

daquela época, na metade da década de 1980, misturando-se com um

sentimentalismo vulnerável à determinadas manipulações - como no caso do

falecimento de Tancredo Neves – que poderiam acarretar em eventuais distorções e

compreensões incompletas e estereotipadas do regime.

Este é um trabalho ligado à Geografia Política, mas o que significaria ser um

trabalho deste sub-ramo da ciência geográfica? Conforme COSTA (2000), a

Geografia Política já traria uma problemática quanto ao seu objeto de atuação: sua

delimitação seria rígida quanto ao seu objeto? Ou trabalharia com um conjunto de

17

processos inseridos num contexto interdisciplinar, com o foco centrado no que seria

específico da Geografia Política? Sem aprofundar essa discussão no momento,

procurarei abordar os referidos processos dentro da segunda opção: a de não escapar

do viés interdisciplinar, mas sem perder de vista o objeto de análise.

O presente trabalho, assim, procurará focar, sobretudo, as heranças legadas

pelos governos militares, que perduraram de 1964 a 1985, ao espaço geográfico-

territorial brasileiro. Isto posto, não há como negligenciar as relações de poder

estabelecidas no período, bem como os aspectos políticos, institucionais,

econômicos, sociais, históricos e, ainda, os regionais - em especial no que concerne

às regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil. Percebe-se que as interligações e

conexões com outras áreas do conhecimento, sobretudo as citadas anteriormente

serão inevitáveis. Tratar do regime militar brasileiro somente do ponto de vista

geográfico é importante, sem dúvida, porém não se pode pensar e analisar este

período autoritário sem se considerar um contexto maior relacionado a fatos

correspondentes aos aspectos já citados anteriormente, englobando a gênese e o fim

deste período institucional marcado pelo autoritarismo.

O regime de 1964 deixou para o Brasil diversas marcas em seu espaço

geográfico-territorial. Exemplo disso foram os novos arranjos políticos-territoriais

impostos à federação brasileira, como na criação de novos estados (casos do Mato

Grosso do Sul, em 1975; e de Rondônia, em 1981) e na fusão de entes federativos

(em 1974, houve a fusão do estado da Guanabara com o do Rio de Janeiro); também

as consequências ambientais e sociais dos projetos concebidos naquele período, por

exemplo, na Amazônia (rodovia Transamazônica e a busca de uma real e efetiva

integração nacional); ou das grandes obras como a ponte Rio-Niterói e a usina

hidrelétrica de Itaipu. Mais ainda, a estruturação de redes em todo o território

nacional como as redes urbana, a rodoviária e a de telecomunicações. Foi um

momento em que a tônica - ou no mínimo, a retórica - do planejamento esteve em

evidência, face à elaboração, pelo governo central da época, de uma grande

quantidade não só de projetos em si, mas destes inseridos em programas e em planos

elaborados pelo poder central, visando transformar o espaço geográfico brasileiro, na

busca de uma integração territorial-nacional verdadeiramente consolidada, nos

moldes de uma fase mais moderna da acumulação capitalista.

18

Assim apresenta-se um ponto-chave neste trabalho, o processo e as políticas de

modernização implantadas a partir de 1964 que não podem ser negligenciadas, e

muito menos subestimadas. Trata-se da modernização de cunho centralista e

conservadora imposta pelo Governo Federal daquele tempo. Ao contrário de seus

vizinhos sul-americanos, o regime militar brasileiro se destoou por conta da

modernização da infraestrutura (alguns exemplos disso são as obras e modificações

citadas no parágrafo anterior) trazendo reflexos e repercutindo na economia,

comunicações, ciência e tecnologia. Se, de um lado, o regime de 1964 colocou-se

contra o trabalhismo e o nacionalismo, inspirados em Getúlio Vargas, de uma fase

anterior da República brasileira, por outro, o mesmo regime autoritário trouxe um

novo estatismo e a “sua” própria visão nacionalista e estratégica como será visto, por

exemplo, no governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).

Claro que tal estatismo foi diferente do anterior, principalmente na exclusão

das classes subalternas da sociedade. Antes estes atores, como as classes

trabalhadoras, ainda que manipuláveis e sujeitas a controles, tiveram um papel

bastante ativo nas lutas pelos seus direitos e pela ampliação de sua participação

política e de sua cidadania, num momento genericamente caracterizado pelo termo

“populismo” (décadas de 1930 a 1960), cujo principal representante foi Getúlio

Vargas. A partir do período militar, tais atores foram explicitamente descartados

durante o processo modernizante do regime, diga-se explicitamente, se for pensado

na violenta imposição do Ato Institucional n° 5 (AI-5, de dezembro de 1968) que,

entre outras coisas, sufocou as mobilizações oposicionistas como os movimentos

estudantil e operário que vinham numa crescente naquele ano; estabeleceria um

verdadeiro amordaçamento da sociedade; e, por fim, até a aniquilação de opositores

radicais, como os adeptos da luta armada, através de uma máquina repressiva

reestruturada. Além disso, a incorporação de segmentos mais afortunados entre os

populares, os ganhos da classe média como foi no “milagre econômico” do início dos

anos 1970 e o controle total dos projetos de desenvolvimento pelos militares e pela

tecnocracia civil, vão consolidar uma modernização conservadora.

Então, qual o contexto histórico e político que servia de “pano de fundo” para

todas estas e outras alterações no espaço geográfico-territorial brasileiro, para essa

modernização “do alto para baixo”? O regime era autoritário, hoje temos um regime

19

que seria formalmente democrático. O que isso significa? Há clareza entre o que são

democracia, redemocratização e abertura política?

O Brasil, a partir do governo do general Ernesto Geisel (1974-1979), começava

a entrar em processo de uma lenta, complexa e gradual abertura do regime militar,

então vigente no País, através da política que ficou conhecida como "distensão".

Porém, antes de se tratar especificamente da abertura democrática nacional, se faz

necessária uma breve menção do seria uma redemocratização dentro do atual

contexto que tem assumido a palavra democracia.

A redemocratização é um termo que à primeira vista parece não ser muito

complicado, pois indicaria o retorno a um sistema democrático, que esteve

temporariamente suspenso, onde se dá a transferência de poder do Estado autoritário

para a sociedade e para um sistema regido pelos partidos, segundo Aspásia Camargo

in:CAMARGO & GÓES(1984)1 Contudo, analisando-se mais a fundo este termo, vê-

se que a redemocratização está vinculada ao conceito de democracia, conceito este

que sofreu alterações em seu conteúdo essencial caminhando de uma matriz

igualitária (Aristóteles e Rosseau) para apenas um simples método político e

formalista vinculada à máquina governamental e contrária aos atributos substantivos

da cidadania, conforme assinala BORON (1994). Para tanto, o referido autor remonta

a exemplos do passado, colocando que as revoluções burguesas criaram apenas um

Estado Liberal, mas não uma autêntica democracia como afirmavam suas ideologias.

Assim sendo, o avanço democrático foi um mérito das lutas populares que iriam

desembocar no Estado Keynesiano (do bem-estar social). Todavia, nas últimas

décadas do século XX, este modelo deparou-se com o crescimento de elites

neoconservadoras que apontariam um prejuízo que a democracia de massas ocasiona

ao sistema capitalista e, em nome do capital e da acumulação, argumentariam a favor

de cortes sociais e até em conter exigências populares para se atingir um

1 GÓES, Walder de. & CAMARGO, Aspásia. O Drama da Sucessão e a Crise do Regime. Rio de Janeiro:

Editora Nova Fronteira, 1984 (Coleção Brasil século 20). Este livro se constitui de dois ensaios

autônomos: o primeiro, de autoria de Aspásia Camargo, com o título: As Sucessões Presidenciais e as

Lições da História; e o segundo, de autoria de Walder de Góes, com o título: A Crise do Regime e a

Sucessão de 1985.

20

reaquecimento da economia e tirar a "sobrecarga" do Estado. Tudo isto veio então a

se inserir dentro do contexto neoliberal, que marcou o final do século XX.

Este "endurecimento" da democracia nos países centrais do capitalismo

também é assinalada por Fernando Henrique Cardoso (1979) em que é mencionada

um enfraquecimento da liberal-democracia onde uma pluralidade política, através da

conivência dos Estados Unidos em suas relações com diversos regimes autoritários

na América do Sul, se fazia em nome do desenvolvimento e da "segurança

hemisférica" ligada à Guerra Fria. Contudo, em meados dos anos 1980, a América do

Sul passaria por um período de redemocratização, ou transição democrática, que

consistiu no fim de regimes autoritários substituídos pelos formalmente

democráticos, vindo trazer à tona essa discussão da proposta democrática com seus

principais dilemas atuais.

Adentrando-se ao conceito de abertura, temos que este corresponderia a um

gradualismo controlado de cima para baixo, dentro de um processo comandado pelo

próprio Estado que orientaria e limitaria a conversão de um modelo político para

outro, conforme assinala CAMARGO in: CAMARGO & GÓES (1984), em que a

autora deixa claro uma diferenciação entre os conceitos de abertura e de

redemocratização em que esta última corresponderia, como já foi dito, à

transferência de poder do Estado autoritário para a sociedade e a um sistema

pluripartidário.

Estes dois conceitos ganhariam força então a partir da política de "distensão",

referente à abertura, iniciada no governo Geisel, e que culminou nos anos de governo

do general João Figueiredo (1979-1985), em que a abertura ficaria restrita ao Colégio

Eleitoral impedindo-se o ímpeto renovador da redemocratização (que se relacionaria

às pressões da sociedade civil sobre o Estado, em busca do fortalecimento da

democracia, como no movimento das "Diretas-Já") afastando-se assim, naquele

momento, o eleitorado da participação direta na escolha do novo presidente.

O Brasil, neste último contexto, atravessava a fase final dos governos militares

iniciados em 1964. Foi uma fase de grande efervescência política e social que

tiveram seu começo a partir da já citada "distensão" no período de Geisel e que

prosseguiu no governo Figueiredo , quando se teve, entre outros fatos, a anistia de

1979 a diversos presos e exilados, além das eleições diretas de 1982 para os governos

21

estaduais, chegando-se finalmente à escolha de um civil para a presidência da

República através do Colégio Eleitoral, de 15 de janeiro de 1985, que apontaria

Tancredo Neves como vitorioso. Isto após a emenda das "Diretas- Já" não ter sido

aprovada pelo Congresso Nacional no ano anterior.

Assim se consolidaria a abertura democrática brasileira, dentro das esferas do

poder num jogo muito sutil de manipulação política e social ao lado de um quadro de

grave crise econômica, sobretudo no governo Figueiredo, relacionada a um quadro

extremamente negativo no decorrer da década de 1980, com inflação cada vez mais

alta, desemprego, pauperização dos setores menos favorecidos e até da classe média

com os arrochos salariais, além da crise da dívida externa que assolou os países

latino-americanos em que, somada à sua renegociação, permitiu o avanço neoliberal

que se estendeu pela década de 1990. Como esse processo de abertura afetou o

projeto geopolítico militar, e as implicações disso sobre a estrutura territorial

nacional e a dinâmica regional (tanto na escala das regiões brasileiras, como até

numa escala mais ampla: a nível de América do Sul e América Latina) em seus

aspectos político, econômico, social e até ambiental é uma outra questão também

aqui colocada.

O objetivo deste trabalho, ligado à Geografia Política, é o de procurar apontar

algumas das principais heranças espaciais, legadas ao espaço geográfico-territorial

brasileiro pelos governos militares, que persistem até aos dias atuais, e que afetaram -

entre outras - as estruturas urbana, industrial, agrária, energética, de

telecomunicações e de transportes do país. Uma modernização assumida pelo

governo federal através de seus quadros militares e tecnocráticos. E imposta para

todo o corpo da sociedade e do território nacional. Já foi salientado que os governos

militares trouxeram importantes modificações na estrutura espacial-territorial

brasileira: como nos projetos de usinas hidrelétricas (Itaipu); no fortalecimento às

políticas de expansão da ocupação territorial e econômica, sobretudo na Amazônia

(cita-se aqui o PIN- Programa de Integração Nacional, de 1967, destacando-se a

abertura de estradas, como a Transamazônica, ligando aquela região ao resto do

País); políticas de colonização; projetos de grandes empresas; exploração de recursos

minerais com capitais estrangeiros e nacionais; o projeto Calha Norte; e sem se

deixar de mencionar, os planos globais de desenvolvimento, como o I PND e o II

22

PND (Planos Nacionais de Desenvolvimento). Tudo isso sem a devida preocupação

com as conseqüências ambientais e sociais como a expropriação dos menos

favorecidos, face ao avanço da empresa capitalista.

Aliás, somando-se a isso, o trabalho buscará mostrar os diferentes focos que as

políticas territoriais apresentaram dentro do regime, já que o Plano Decenal de

Desenvolvimento Econômico e Social (1967-1976), que não foi implementado, trazia

a perspectiva da integração nacional vinculada à questão regional - em especial para

o Norte ou a Amazônia; e o Centro-Oeste – atrelada à teoria dos pólos de

desenvolvimento de Perroux, através de pólos regionais ou regiões-programa,

segundo assinala COSTA (2000). Um exemplo prático dos “pólos de

desenvolvimento” foi a criação das “Regiões Metropolitanas”, decorrente do I PND

(Plano Nacional de Desenvolvimento), para o período de 1972 - 1974. Tais diretrizes

estiveram mantidas no Programa Estratégico de Governo (1968 a 1970) e no I PND,

em que a integração nacional – formulada no PIN – era buscada através da expansão

da fronteira econômica do país. Em contrapartida o II PND, lançado em 1974, para o

período de 1975-1979, descartou projetos de colonização (que eram previstos no

PIN) e objetivou uma expansão econômica que viesse de encontro ao aumento das

exportações, necessária ao novo cenário da política econômica global da 2ª metade

da década de 1970 (após a 1º crise do petróleo em 1973), com medidas mais intensas

voltadas aos “espaços vazios” do território, na expansão da fronteira econômica em

setores que pudessem contribuir às exportações, contemplando o grande

empreendimento capitalista monopolista, de capitais privados nacionais e

estrangeiros, tendo ao fundo os estímulos governamentais e os investimentos em

infraestrutura também do próprio governo.

Citam-se também as modificações causadas na representação política dos

estados, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal, por conta do

“Pacote de Abril” de 1977, trazendo implicações de representatividade e ao jogo de

interesses tendo como palco o espaço territorial brasileiro; as modificações no

arranjo federativo, como na criação de novos estados; mencionam-se ainda os

projetos de usinas nucleares em Angra dos Reis, obras como a ponte Rio-Niterói,

etc., aumentando-se a importância de se compreender tanto as consequências ao

espaço geográfico-territorial nacional, como também as consequências políticas e

23

sócioeconômicas destes projetos para o Brasil. Houve assim a consolidação de uma

organização espacial com redes nacionais, entre outras, a de circulação de

mercadorias (como as malhas rodoviárias), a de distribuição de energia elétrica

(relacionada à construção de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão) e a de

telecomunicações (com a constituição de redes nacionais de televisão, conectando

ricos e pobres, ditando ideologias e comportamentos), só para detalhar alguns

exemplos dessas redes. Até no nosso cotidiano sentimos a herança deixada pelo

período militar, após o fim do regime, como na permanência de uma estrutura de

polícias estaduais em Civil e Militar. Daí a importância de se estar levantando, com

maior clareza, as heranças que o regime militar de 1964 deixou como legados à

sociedade, e ao território, brasileiros.

No aspecto regional, destaca-se a reformulação feita pelo IBGE (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística) nos limites das regiões brasileiras, em 1967,

ou seja, nos primeiros anos do período militar. O Norte recebeu o então território de

Rondônia, transformado em estado já nos últimos anos dos governos militares, em

1981; a Bahia e o Sergipe passaram a integrar a região Nordeste; a região Sudeste é

datada dessa reformulação, reunindo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e

Espírito Santo; e o Centro-Oeste se compunha apenas de dois estados: Goiás e Mato

Grosso, sendo que deste último foi desmembrado o Mato Grosso do Sul, em 1975,

ainda no regime militar. Essa nova divisão regional acabaria por servir de base às

políticas territoriais desenvolvidas, pelo regime autoritário, sobretudo na década de

1970, tendo como focos principais as regiões Norte e o Centro-Oeste. No caso da

Amazônia, a SPVEA (Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia) já

existia desde a década de 1950 sendo transformada na SUDAM (Superintendência de

Desenvolvimento da Amazônia) no final dos anos 1960. Mas as outras regiões não

foram negligenciadas: casos da manutenção da SUDENE (Superintendência do

Desenvolvimento do Nordeste), que já existia também desde o final da década de

1950; da SUDECO, voltada ao Centro-Oeste; e da SUDESUL, voltada à região Sul.

Caracterizava-se então a configuração do Sistema Nacional de Planejamento

Regional e Urbano, sob o governo federal, que reunia estes e os demais órgãos do

setor, numa época marcada por forte centralização voltada ao governo central, em

detrimento de princípios federativos.

24

Na década de 1970, em decorrência do I PND, foram contempladas estratégias

de planejamento urbano, em âmbito nacional também, com a instituição das Regiões

Metropolitanas. A estratégia de buscar o desenvolvimento regional a partir de “pólos

de desenvolvimento” foi reforçada e, exemplo disso, foi a fusão dos estados da

Guanabara com o do Rio de Janeiro. Segundo Marieta de Moraes Ferreira in:

CASTRO & ARAÚJO (2002)2: tal posição foi destacada nos relatórios do SNI da

época. Por fim, em documentos analisados pela referida autora no arquivo Geisel,

reforça-se a tese de que a fusão teve um caráter mais técnico, na ideologia do

desenvolvimento nacional, objetivando a emergência de um pólo de

desenvolvimento de grandes dimensões, como o de São Paulo, diversificando-se

pólos industriais e reduzindo desequilíbrios regionais. Buscava-se diluir a identidade

carioca (ancorada num passado de capital do país) em prol da identidade fluminense,

ancorada no passado colonial da velha província fluminense. Mais do que controlar

as eleições de 1974 e frear a oposição emedebista, estaria consumando-se a

transferência da capital para Brasília, já que esta última era vista como uma espécie

também de “pólo avançado”, para as políticas projetadas para o Norte e o Centro-

Oeste. Aliás, soa um tanto estranho, nos dias atuais, o regime militar ter buscado

objetivos de desenvolvimento econômico através de uma fusão entre entes

federativos, isso porque tal argumento é, e sempre foi, largamente utilizado, inclusive

no presente, só que para desmembrar um ente federativo, visando-se criar uma nova

unidade político-administrativa. O “argumento do desenvolvimento” foi, com

certeza, um dos pilares para a consulta ao eleitorado do Pará em desmembrar duas

das partes do território paraense para a criação dos novos estados do Carajás e do

Tapajós, em 2011, proposta que não foi aprovada pelo eleitorado daquele estado.

Pelo menos, de positivo, fica registrada a ocorrência da consulta da população

estadual envolvida, fato completamente novo, não só em relação ao regime militar de

1964, mas na história do nosso país.

2 FERREIRA, Marieta de Moraes. O arquivo Geisel e os bastidores da fusão. In: CASTRO, Celso;

D’ARAÚJO, Maria Celina (org); ABREU, Alzira Alves de...[et al.]. Dossiê Geisel. Rio de Janeiro: Editora

FGV,2002. p. 160-168. A obra compõe-se de vários artigos produzidos por diferentes autores. O artigo

de Marieta de Moraes Ferreira, sobre a fusão entre os estados da Guanabara e o do Rio de Janeiro é um

deles.

25

Durante o regime que perdurou de 1964 a 1985, os militares desenvolveram

uma política não inédita, mas, com certeza, explícita, para o Norte e o Centro-Oeste,

implantando programas de abertura de estradas, ligando estas regiões ao restante do

país, incentivando políticas de colonização, projetos de grandes empresas,

intensificando-se a exploração mineral e o povoamento, sem se preocupar então com

as conseqüências sócio-ambientais para essas regiões. Contando já com a capital do

país em Brasília, os governos militares abriram numerosas estradas como a

Perimetral Norte, a Porto Velho-Manaus, a Cuiabá- Santarém, a Cuiabá-Porto Velho,

a Transamazônica, etc., tendo-se São Paulo como o principal eixo econômico do

país, mais Cuiabá e Brasília como pólos avançados para a abertura destas estradas.

Além da exploração de minérios em Rondônia e no Amazonas (cassiterita) e no Pará

(bauxita, ferro, manganês, ouro, etc.) onde foi implantado o Complexo Carajás,

ligado à Companhia Vale do Rio Doce, maior mineradora de ferro do mundo,

privatizada não há muito tempo atrás.

Segundo ANDRADE & ANDRADE (1999), julgou-se, inicialmente, que os

governos militares tenderiam a abandonar Brasília e fazer do Rio de Janeiro

novamente a capital nacional. Todavia, os militares compreenderam que, devido à

pequena concentração populacional, ficariam menos sensíveis às pressões da

sociedade nacional e implementariam mais facilmente a sua política, incluindo-se aí

as políticas territoriais. Com o objetivo de firmar o Brasil no grupo capitalista,

liderado pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria, procuraram abrir grandes

rodovias e desenvolver uma agricultura empresarial no Centro-Oeste, com o intuito

de ocupá-lo, além de desenvolver a mineração.

Embora a tendência de ocupação dos “espaços vazios” já estivesse presente,

principalmente desde o Estado Novo de 1937, tal tendência seria sobremaneira

reforçada no decorrer das décadas seguintes, com destaque para o regime iniciado em

1964, através de uma clara política de expansão das fronteiras econômicas e

preocupando-se com a criação de uma infraestrutura que favorecesse a implantação

de empresas nesses “espaços vazios”. A Amazônia tornou-se prioridade e alvo de um

processo de modernização, de caráter conservadora, que vinha em curso, sem

realizar-se as reformas necessárias para o seu desenvolvimento, procurando-se o

fortalecimento da grande empresa agropecuária através de incentivos fiscais. A

26

Amazônia passaria por uma grande transformação, pois até o final dos anos 1950,

seu acesso se restringia ao transporte fluvial, a partir de Belém. A construção da

rodovia Belém-Brasília, ainda no período democrático anterior, tornou-se um marco

para o processo de integração da Amazônia à economia nacional e também para o

avanço dos impactos ambientais, comandados por mineradoras e madeireiras, em que

os maiores prejudicados foram as nações indígenas, os habitantes locais dependentes

das atividades extrativistas, e os posseiros que seriam expulsos de suas terras pelo

avanço da empresa capitalista na região.

A pertinência do tema a ser pesquisado, no âmbito da Geografia, é aqui

reforçado - o de apontar algumas das principais heranças espaciais, que os governos

militares legaram ao território nacional, e que marcaram as diferentes estruturas

(urbana, industrial, agrária, energética, de telecomunicações, de transportes, etc.) no

Brasil - e que vêm persistindo até a atualidade e, certamente, ainda pelas próximas

décadas. Os governos militares procuraram implantar, reordenar e organizar a

estrutura territorial brasileira nos projetos, ora regionais, ora nos planos globais a

nível nacional (como o I e o II PNDs) com políticas, muitas vezes explícitas, de

expansão, de ocupação territorial e de desenvolvimento econômico, sobretudo na

Amazônia.

Além dos projetos, políticas e planos de caráter predominantemente territorial e

econômico, ou ainda os de caráter regional, também não se pode deixar de lado as

consequências ou os legados do regime de 1964 no referente à questão ambiental

como, por exemplo, os impactos sobre a floresta amazônica, em uma época em que a

questão ecológica e ambiental não era tão forte e, muito menos, debatida a nível

oficial. Também as implicações e as decorrências do regime sobre o conjunto da

população brasileira: por exemplo, na problemática da concentração de renda; para

os níveis de rendimento dos diferentes segmentos da sociedade nacional; na dinâmica

das migrações internas inter- regionais e intra- regionais; na questão da segurança

pública bem como no funcionamento das forças policiais estaduais; e tantas outras

repercussões como até sobre o comportamento da população brasileira, que se

estendem aos dias atuais, decorrentes do rápido avanço da urbanização e dos meios

de comunicação (em especial as telecomunicações) no território nacional, que

27

trouxeram influência na queda da natalidade e nas mudanças ocorridas no perfil das

famílias brasileiras.

Contudo para uma melhor compreensão de todo esse processo e vislumbrando

uma melhor visão da totalidade dessas modificações será necessário um recuo na

História nacional, não se restringindo somente ao período militar do pós-1964, mas

retrocedendo-se a 1930, ano da Revolução que pôs fim à República Velha e que

marcaria a fase final dos chamados “arquipélagos mercantis” na estrutura espacial

brasileira. Também este recuo se dará no sentido de se examinar a história do

pensamento geopolítico brasileiro, desde o final daquela 1º fase republicana até à

fase final do regime de 1964, percorrendo autores como Backheuser, Mário

Travassos e Golbery do Couto e Silva, devidamente situados no contexto da

evolução da Geopolítica pelos séculos XIX e XX.

A tendência de ocupação dos “espaços vazios”, já defendida e levantada por

geopolíticos brasileiros da época, ganha maior força a partir do Estado Novo de 1937

e se constituirá na raiz do que foi chamada de modernização centralizadora3

(COSTA, 2000) ou de modernização conservadora4 (BECKER e EGLER, 1998). No

Brasil, esse processo, segundo diferentes autores, estaria embrionado na garantia da

integridade territorial da antiga colônia, que manteve os seus limites, e não se

estilhaçou numa multiplicidade de repúblicas como na América espanhola.

A modernização conservadora, conforme MOTTA, REIS & RIDENTI (2014)

seria a síntese da combinação entre o “moderno” e o “arcaico”. Citando a famosa

frase do romance O Leopardo, de Lampedusa, os referidos autores escrevem: “Tudo

deve mudar para continuar como está.” Júlio José Chiavenato (2006), como

veremos adiante, aponta que o ocorrido em 1964 não foi uma “revolução” mas um

3 COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,

2000. O autor utiliza o termo Modernização Centralizadora, para tratar do processo de modernização

do Estado brasileiro.

4 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º

ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. Os autores utilizaram o termo Modernização Conservadora, ao

abordarem a modernização do Estado brasileiro.

28

“cisco” (termo este, usado pelo autor) na História. Um golpe civil e militar que nada

mudou, fazendo-se um forte contraponto com o ideal de “revolução” propugnado

pelo discurso oficial do regime. Tratou-se então de uma modernização conservadora,

autoritária, centralizadora e não negociada com a sociedade, mas a ela imposta. Uma

modernização que efetivamente ocorreu sem, contudo, mudar radicalmente com a

ordem vigente.

Esse processo de construção do Estado e do território brasileiros estaria

inserido dentro da geopolítica de lógica militar, favorecida pela grande

disponibilidade de terras para os latifúndios e pelo projeto da transferência da capital

federal para o interior do país, mais precisamente no Planalto Central, que seria uma

base logística no interior5.

Essa modernização conservadora e centralizadora se cristalizaria e se

consolidaria no regime militar de 1964, manifestando-se através do território

brasileiro por meio dos projetos, planos, políticas, estruturas, redes e fluxos que

foram implementados, organizados e reordenados. Na realidade, o regime militar não

teria, sob esse aspecto, provocado uma ruptura radical do processo de modernização

e centralização do Estado, mas reforçado isso com a enorme concentração do poder

por esse mesmo Estado pela via autoritária, nas mãos do governo central. Aliás, no

período militar foi notória tal concentração na esfera federal do governo, em

detrimento das esferas estadual e municipal. Assim teria havido uma sequência e

uma lógica, em todo esse processo, desde a Era Vargas (1930-1945), passando pelo

governo Juscelino Kubitschek e o Plano de Metas (1956-1960), até ao regime

autoritário de 31 de março de 1964, a despeito das diferenças político-ideológicas

entre estes distintos momentos da história nacional.

Porém, neste trabalho serão inevitáveis as interligações com a Ciência Política

e a História, como já ocorreu em outro momento desse trabalho. A análise de fatores

políticos-históricos-institucionais, sócioeconômicos, e de relações de poder serão

necessários para uma melhor compreensão da gênese do regime militar e dos anos

que levaram ao fim deste período institucional autoritário. Procurar-se-ão focar nas

consequências territoriais e espaciais do projeto militar para o Brasil, mas sem deixar

5 Id., Ibid., p.35.

29

de fora os outros fatores já aqui enumerados. Assim, este trabalho seguirá pela

direção em se trazer alguma reflexão sobre: a formação sócio-política e econômica

brasileira; ao fundo, esta mesma formação a nível latino e sul-americano, e como o

Brasil se insere neste contexto mais amplo; na evolução do pensamento geopolítico

brasileiro, desde o final da República Velha; nas condições, conjunturas e fatores

políticos-históricos-institucionais que conduziram os militares ao poder (se teria sido

uma revolução ou um golpe de Estado) e o que teria levado à saída dos mesmos do

poder em 1985; e, finalmente, como esse período institucional (que prolongou-se por

praticamente 21 anos) afetou o espaço geográfico e territorial brasileiro.

Conforme BARROS (1998), os governos militares têm confundido o imaginário

e a memória dos brasileiros pelo fato de serem associados a uma sequência de

generais-presidentes "ávidos pelo poder", e a isso se somam as versões escolares no

que se refere ao movimento de 1964. Antecipando-se aqui sobre o que foi o golpe de

1964, Fernando Henrique Cardoso, em seu livro O Modelo Político Brasileiro

(1979), procura assinalar as principais causas que explicariam o movimento de 1964

como a intensa mobilização da classe média acomodada e setores politicamente

ativos do empresariado e das oligarquias, colocando a questão se o que ocorreu foi

uma revolução ou um golpe de Estado. Mas o fato, segundo o autor, é que houve

uma intervenção militar com um caráter de contenção das tensões geradas pelo

regime nacional-populista encaminhando assim um modelo de desenvolvimento que

subordinou o País às formas modernas de acumulação capitalista e de dominação

econômica dentro de um sistema que trazia repressão política e a busca de

desenvolvimento econômico.

O autor já citado anteriormente, Júlio José Chiavenato, em O Golpe de 64 e a

Ditadura Militar (2006), propõe uma discussão sobre o que seria uma “revolução”,

em que esta seria a ruptura radical da ordem estabelecida. Pode originar-se de um

processo violento, de uma longa luta armada, ou até surgir de um golpe de Estado.

Não é raro que venha do voto direto e democrático. Pode ser uma revolução popular,

que resgate o povo de uma miséria social ou da opressão política. Ou, ao contrário,

uma ação para subverter a ordem democrática e instalar um regime fechado e

30

autoritário”6 Dentro deste raciocínio, citam-se a Revolução Cubana (1959) que

venceu pela luta armada; a soviética de 1917, que se originou praticamente de um

golpe de Estado, impondo-se após uma guerra civil; e por fim, o nazismo que chegou

ao poder através das urnas e do voto democrático, a partir de 1933. Assim sendo, as

revoluções alterariam tão radicalmente a vida das nações e dos povos que acabariam

por influir nos destinos da humanidade. Segundo uma definição de Marx e Engels,

em CHIAVENATO (2006), “se é revolução, é um cataclismo”7. Assim sendo, o autor

conclui com uma opinião que alguns até considerariam severa e polêmica; em 31 de

março de 1964, não houve uma revolução no Brasil, mas sim, um “cisco”8 (termo do

autor) na História. Um golpe civil e militar que nada mudou. Chiavenato admite que

o ocorrido em 1964 realmente teria dado um poder enorme aos militares, ao ponto de

que eles poderiam ter realizado uma revolução de verdade, mas as Forças Armadas

teriam preferido se aliar aos interesses das elites da alta hierarquia sócioeconômica.

Ao contrário de uma revolução, bastaria um pequeno “cisco” para que nada

acontecesse. O processo do “nada acontecer” seria sempre traumático, poderia se

aplicar a algum exemplo de golpe político não-revolucionário, mas este também não

seria o caso do Brasil. Concluindo, o máximo que teria ocorrido no Brasil seria uma

“contra-revolução preventiva.”9 Perpetuaria-se, então, uma ordem pequeno-

burguesa.

Mas seria possível afirmar que “nada aconteceu” diante de tantos projetos,

obras, estruturas e redes montadas ou consolidadas pelos militares no território

brasileiro como os já mencionados anteriormente? E as alterações a nível de divisão

6 CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. 2 ed. reform. São Paulo. Ed Moderna, 2004

(Coleção Polêmica), p. 9.

7 Id., Ibid., p.10.

8 Id., Ibid., p.11.

9 Id., Ibid., p.11.

31

regional e a nível político-administrativo como a criação de novos estados?

Realmente não ocorreu nada no período militar? Não se questiona aqui as perdas

humanas e todos os transtornos, crueldades, desrespeitos e terrores acarretados pelo

regime de 1964, mas, dentro de um trabalho acadêmico, é importante ter clareza e

analisar todas as faces daquele regime.

Aliás, não existe só a discussão sobre diferentes visões, análises e

interpretações do golpe de 31 de março, mas também acerca do próprio governo de

João Goulart - o Jango – presidente do Brasil entre 1961 e 1964. Qual teria sido a

importância, o significado, o papel e até a eventual responsabilidade (se é que

existiu) do governo deposto pelos militares que possa ter estimulado o movimento

golpista de 1964. Estas são algumas das outras questões colocadas neste momento.

Esses assuntos serão abordados e vários outros autores serão citados numa retomada

a ser feita mais adiante neste trabalho, de forma pormenorizada.

Parece que, ao completarem-se 50 anos do início do regime de 1964, ainda há

muito a ser discutido, analisado e revisado sobre este período e suas repercussões até

hoje. Um dos exemplos disso é que, no plano político atual, temos ainda figuras com

um passado ligado ao regime militar; ou que lutaram contra ele. No primeiro caso, no

espectro político, ainda persistem agremiações político-partidárias herdeiras do

regime autoritário, casos dos Democratas (DEM) e do Partido Progressista (PP),

cujas raízes remetem ao antigo PDS (Partido Democrático Social), herdeiro direto da

Arena (Aliança Renovadora Nacional) que era o partido governista naqueles tempos

do autoritarismo militar; no segundo caso, sobre a atual presidente – Dilma Roussef -

que esteve presa à época daquele regime. Mencionam-se ainda outros fatos, um dos

herdeiros da Arena, o PFL (Partido da Frente Liberal), hoje Democratas (DEM),

elegeu em 2008, o prefeito de São Paulo. Mais recentemente, talvez a principal

figura ligada àquele regime, Paulo Maluf (ex-governador de São Paulo e atualmente

em mais um mandato como deputado federal), um dos afilhados políticos do regime,

deu o seu apoio ao candidato do PT, Fernando Haddad, nas eleições municipais da

capital paulista de 2012, com direito a uma cena inimaginável há 15, 20, 30 anos

atrás – o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e Paulo Maluf – juntos - como

aliados naquelas eleições. Por fim, coloca-se também a importância geopolítica

adquirida por Brasília como capital federal que veio de encontro aos projetos de

32

expansão territorial e de investimentos no Centro-Oeste e Norte do País por parte dos

governos militares.

Algumas das principais questões apresentadas para este trabalho, que aqui vêm

a se adicionar a outras levantadas anteriormente, são concernentes a essa

modernização traçada pelo Estado brasileiro no período. Consistem em qual terão

sido os resultados do projeto geopolítico militar; das políticas territoriais; das redes

implantadas a nível nacional; dos grandes projetos do período; do novo arranjo

regional feito na época - para a organização espacial brasileira. Como estes

resultados vieram a acarretar as mudanças legadas pelo regime de 1964 às estruturas

político-administrativa, urbana, industrial, agrária, energética, de telecomunicações e

de transportes, entre outras, do país. Como as contradições que se materializaram

durante o regime de 1964, no que concerne à Região Norte e os variados interesses

em jogo na Amazônia; e a expansão, sobretudo das fronteiras da agropecuária, no

Centro-Oeste brasileiro – repercutem ainda hoje em questões territoriais em nosso

país. Quais interesses daquela época, ainda têm reflexos hoje, como, por exemplo,

nas propostas de criação de novos estados da Federação. E por que, mesmo após a

redemocratização e de grandes vitórias eleitorais das oposições ao regime militar,

como ocorreu nas eleições de 1982, ainda temos figuras políticas no cenário nacional

e na mídia em geral, que foram ligadas àquele regime militar e disputam o voto de

eleitores agora dentro de um regime formalmente democrático. Colocam-se ainda a

questão dos impactos sociais e ambientais, mais a problemática da manutenção de

certas estruturas advindas do regime militar, como do caráter dos projetos territoriais

e estratégicos atuais e até dos serviços de inteligência do Governo Federal dentro de

um regime de liberdades democráticas, além dos êxitos e fracassos de um modelo

que combinou repressão política, desenvolvimentismo econômico e limitadíssimos

avanços sociais.

Este trabalho realizou-se principalmente através da leitura de bibliografia a

respeito do tema estudado. Primeiramente foi feito um levantamento da mesma

existente sobre o assunto tratado que viesse em encontro ao objetivo do trabalho,

bem como permitisse uma reflexão face aos problemas e hipóteses apresentados pelo

mesmo. Também foram consultados, em alguns momentos, trechos e artigos de

jornais e periódicos, especialmente os citados na bibliografia levantada, juntamente

33

com tabelas, gráficos e materiais cartográficos com dados relevantes para serem

apresentados aqui, procurando complementá-los com outros dados obtidos. Claro que

o acesso a trechos, notícias e artigos de jornais e periódicos através da internet fez

parte desse processo.

Esta análise fará então a abordagem do momento histórico brasileiro em que

os militares estiveram no poder, de 1964 a 1985. O que se segue agora, é uma breve

retomada histórica da formação da estrutura sócio-política latino-americana e em

como transcorreu o processo que levou à constituição de diversos regimes militares

na América Latina, no século XX. Optou-se ora em se tratar da porção latino-

americana do continente, por ser historicamente uma área da esfera de influência

norte-americana; ora em abordar a porção meridional do continente, que terá maior

visibilidade nesse trabalho, por conta da própria localização geográfica do Brasil e as

suas relações com os seus vizinhos na América do Sul.

34

1- Estrutura de poder e formação sócio-política

da América Latina

Antes de retornarmos aos governos militares no Brasil, faz-se necessário

situarmos alguns elementos gerais da formação social e política da América Latina,

bem como das diferentes estruturas de poder que se configuraram ao longo da

história desta porção do Novo Mundo e que, obviamente, também afetaram o Brasil,

bem como os contextos que vêm acarretar o surgimento de regimes ditatoriais

militares. Claro que esta análise específica não será completa e profunda. Ela irá

abarcar em especial a fase imediatamente anterior aos regimes autoritários latino-

americanos que, a grosso modo, em alguns países, foi marcada pelos governos

genericamente agrupados no que se chamou de “populismo” (como o foi no Brasil e

na Argentina – com Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, respectivamente). Na

sequência vêm-se os regimes autoritários e militares que corresponderiam,

novamente de um modo geral e em algumas nações, ao período que se seguiu com a

derrubada dos governos da fase anterior e marcada pelo autoritarismo político e pelas

rígidas amarras da repressão e de controle social.

A denominação América Latina, discutida por PRADO & PELLEGRINO

(2014)10

, teve a sua origem no século XIX trazendo, desde aquele momento, disputas

de ordem política e ideológica. As polêmicas podem ser situadas em dois lados: os

sentidos atribuídos a ela por parte dos franceses e ingleses (século XIX); e de outro,

por parte dos próprios latino-americanos e também pelos norte-americanos (séculos

XIX e XX).

Assim sendo, a origem precisa deste termo apresenta controvérsias. Há

uma corrente que atribui aos franceses a criação desse nome para justificar as

ambições da França sobre a parte da América situada ao sul dos Estados Unidos,

10 PRADO, Maria Lígia & PELLEGRINO, Gabriela. A História da América Latina. São Paulo:

Contexto, 2014, p.7-10. As duas autoras realizam na parte da Introdução, a discussão sobre a origem do

conceito de América Latina, apresentando as duas correntes que procuraram explicar a origem deste

termo.

35

procurando-se afirmar uma identidade latina para tal porção do continente. Uma

outra corrente defende que os próprios latino-americanos conceberam essa expressão

para defender a ideia de uma unidade regional frente ao expansionismo e

imperialismo estadunidense.

Detalhando um pouco mais a primeira - a corrente francesa - o autor da

criação do termo de uma América latina teria sido o intelectual francês Michel

Duvalier, em 1836. Tinha-se como pressuposto de que as populações que viviam ao

sul dos Estados Unidos teriam aceitado com passividade e de forma acrítica a

imposição do conceito de América Latina, vindo do exterior. Chevalier havia viajado

aos Estados Unidos e interpretava a história do mundo ocidental a partir dos embates

entre “civilizações” ou “raças”. O autor transpôs isso ao campo da oposição ou

choque entre “latinos católicos” e “anglo-saxões protestantes”, algo já presente no

continente europeu. Para Chevalier, a França, como “líder” das nações latinas, teria a

missão, algo predestinado, para estar à frente das demais nações irmãs, tanto

europeias como americanas na luta contra os países de origem saxônica. Essa

interpretação e visão da época acabaram por coincidir com os projetos expansionistas

de Napoleão III, com relação ao México, pelos idos do século XIX, na década de

1860.

Na segunda corrente, contrária, o uruguaio Arturo Ardao discordava

dessa visão. Defendendo a outra perspectiva, no artigo de 1965, “A ideia de Latino-

América”, publicado no semanário uruguaio Marcha, ele demonstrou que o termo

América Latina foi usado pela primeira vez pelo ensaísta colombiano José Maria

Torres Caicedo, em “As duas Américas”, poema publicado em 1857, que já defendia

uma integração entre os países latino-americanos. Mais recentemente a argentina

Monica Quijada sintetizou esse debate sobre a origem da expressão América Latina,

criticando a autoria francesa e endossando a segunda opção. Ela analisou a origem e

a difusão do termo e, segundo ela “América Latina não é uma denominação imposta

aos latino-americanos em função de interesses alheios, e sim um nome cunhado e

adotado conscientemente por eles mesmos e a partir de suas próprias

36

reinvidicações11

”. E assim foi se consolidando uma identidade latino-americana em

oposição aos anglo-americanos dos Estados Unidos.

Sabe-se que uma imensa parcela da área hoje correspondente aos

países da América Latina foi colonizada pelos espanhóis. Os portugueses também

dominaram um extenso território que daria origem ao Brasil atual, mas a despeito de

sua estrutura econômica e industrial, bem como a busca pela sua afirmação como

potência regional e o fato de ser o país mais industrializado da América Latina, é

verdadeiramente chamativo a multiplicidade de países na América Latina que

tiveram colonização espanhola. Alguns desses Estados-Nações apresentam uma

economia mais consistente e industrializada, casos do México e da Argentina. Outros

convivem com sérios problemas de miséria, pobreza e de uma maior fragilidade

econômica, como a Bolívia, o Paraguai e praticamente todos os países da América

Central continental – Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Também na parte

central do continente, em especial, na sua porção insular (o Caribe), houve a

presença da colonização francesa, inglesa e holandesa. Aliás foi o Haiti, colonizado

por franceses, a primeira colônia, na atual América Latina, a se libertar de sua

metrópole e ao mesmo tempo a abolir a escravidão negra.

De qualquer maneira, a denominação América Latina foi e é uma

realidade reconhecida e adotada internacionalmente por historiadores, cientistas

sociais, geógrafos, geopolíticos, estudiosos de diversas áreas, políticos e pela

imprensa em geral.

No que se refere à formação sócio-política latino-americana, a mesma se

atrela à um caráter monolítico das estruturas de poder caracterizadas pela unidade

dos interesses das classes dominantes onde, apesar de surgirem tensões entre elas,

não se concretiza o fim da ordenação social vigente, devido à coesão dessa estrutura

implantada. Já as referidas tensões, por não se solucionarem e não terem saída por

meio da revolução liberal-burguesa, irão acarretar sempre o possível questionamento

da ordem vigente e da legitimidade do grupo que está no poder. Assim, os governos

impostos irão depender do apoio militar que se torna o meio de repressão contra os

11 Id., Ibid., p. 9.

37

levantes populares, isso sem contar o temor aos golpes militares criando condições

para sérias instabilidades políticas.

Segundo Darcy Ribeiro (1983), há três estilos latino-americanos de lideranças

políticas: primeiro as elites tradicionais que englobam o patriciado político, as

autocracias patriarcais e as ditaduras regressivas; em segundo lugar as anti-elites e

os nacionalistas modernizadores; e em terceiro lugar as vanguardas revolucionárias,

tendo-se os esquerdistas, os comunistas e os insurgentes12

.

Porém como este trabalho, busca tratar mais especificadamente dos governos

militares, iremos nos restringir apenas ao primeiro estilo de liderança que são as

elites tradicionais.

No caso da América espanhola, os movimentos de independência,

assim como se deu na América portuguesa, ocorreram basicamente nas três primeiras

décadas do século XIX. Em 1830, praticamente todo o Império Espanhol na América

havia dado lugar à países independentes. No centro desse processo podemos citar as

divergências entre a elite colonial local, os criollos, que desejavam ascensão social e

política, bem como o livre-comércio – e de outra parte, os “peninsulares” (os

nascidos na Espanha) que não queriam abrir mão de seus privilégios. Os criollos

teriam sido inspirados: a) pelas novas ideias atreladas ao Iluminismo; b) pela

Revolução Francesa com o lema da “liberdade, igualdade e fraternidade” do final do

século XVIII; c) pela independência dos Estados Unidos, em 1776. De outra forma,

pode-se considerar os imperativos da Revolução Industrial Inglesa, também a partir

de meados do século XVIII, que necessitava de mercados consumidores em outras

partes do mundo e cujos interesses eram incompatíveis com os sistemas coloniais

12 Para este trabalho, trataremos a formação sócio-política latino-americana com base em Darcy

Ribeiro, em seu livro O Dilema da América Latina (1983). Claro que esta breve análise da estrutura de

poder da América Latina não é a única interpretação existente sobre o assunto, pois diversos autores

escreveram sobre isto, e existem assim diversas formas de interpretação sobre esse tópico. Dessa

forma, este trabalho não têm a pretensão de colocar apenas um ponto de vista sobre a estrutura de

poder latino-americana, ficando aberto à outras reflexões sobre esse tópico, que não serão

mencionadas neste trabalho, pois haveria o inconveniente de se escapar ao tema central proposto

aqui.

38

existentes e até com o escravismo. Daí podemos começar a pensar no que foi

chamado por RIBEIRO (1983) de patriciado político.

O patriciado político é o grupo político cuja origem corresponde à burocracia

civil, militar e clerical que administrava a colônia. Durante as lutas pela

independência, eles "abraçaram" os ideais liberais como ideologia tendo-se, contudo,

outra realidade prática. Esta realidade era a de uma sociedade escravista cuja

desigualdade foi regulamentada em termos "liberais", por este patriciado, durante o

transcorrer dos anos após a emancipação política dentro de um pacto com as velhas

oligarquias. O patriciado permaneceu no poder basicamente até as vésperas da crise

de 1929. No Brasil, o poder patricial usufruiu de grande estabilidade entre 1821 e

1889.

As autocracias patriarcais apresentam os seguintes subtipos: o primeiro

corresponde aos caudilhos unificadores que após a luta pela independência

empreenderam a unificação nacional sob um governo central e após isso abriram o

caminho para a ascensão do patriciado no cenário dos governos. Citam-se, neste

caso, os governos militares pós-independência como o de Rosas, na Argentina (1835-

1858); o de Artigas, no Uruguai; e os de Francia (1814-1840) e Solano Lopez (1862-

1870) no Paraguai.

O segundo subtipo corresponde às autocracias nacional-sindicalistas,

presentes, sobretudo, a partir de 1930, oriundos do desgaste do patriciado. Estas

autocracias apresentaram um papel renovador e progressista nos casos do Brasil

(com Getúlio Vargas) e da Argentina (Perón). Em outros foram representados por

tirânicos para se subjugar processos renovadores como Somoza, na Nicarágua; e

Batista, em Cuba. O posicionamento dos grupos militares dependerá das conjunturas

nacional e internacional tendendo a movimentos emancipadores ou a esforços de

regressão. As autocracias nacional-sindicalistas se apóiam no crescimento das classes

médias urbanas, guardando assim certas reservas para com o patriciado (que é visto

como "entreguista"), mas ao mesmo tempo, respeita as velhas oligarquias ao não

tocar na estrutura fundiária.

Contudo com o desenvolvimento industrial e até de uma política exterior

independentes, há uma reação do patronato urbano mais o patriciado articulados com

grupos estrangeiros e as altas hierarquias militares dispostas ao golpe criando-se uma

39

crise política sanada pelas restaurações patriciais, cujo exemplo no Brasil

corresponderia ao governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961). Estas

"restaurações" apresentam um ideal "desenvolvimentista" com abertura ao capital

estrangeiro encaminhando o aumento da dívida externa e da inflação gerando

reinvidicações populares e tornando-se praticamente impossível a sustentação destes

governos numa sucessão eleitoral. Dentro desta crise, temendo o retorno das

lideranças nacional-sindicais vistas como ameaça iminente, têm-se a união do

patriciado reacionário com os militares anunciando o golpe que implantará a

autocracia regressiva.

As denominadas autocracias nacional-sindicalistas correspondem à fase

conhecida genericamente como populismo. O populismo também foi objeto de

diversos estudos e, nesse trabalho, cita-se CHAUÍ13

in: DAGNINO (org) (1994), que

trata o populismo a partir de uma matriz teológico-política, do ponto de vista da

classe dominante (ideologia populista), e do lado dos dominados através do

messianismo como forma de expressão de política popular. Seria um poder que

procura realizar-se sem mediações de instituições políticas (partidos políticos, formas

de organização da sociedade civil, estruturas do Estado, etc.), assim teríamos uma

relação direta entre governantes e governados dentro de uma tutela em que o

governante tem o saber social e sobre a lei.

O governante também se apresentaria “fora” do social, como detentor do

poder, mas ao mesmo tempo teria que se encaixar no corpo social devido à ausência

de mediações. Chauí cita a ideia de dominação carismática de Weber, para ilustrar

que o poder não se distingue de seu ocupante, num governo populista, em que a fonte

de poder seria “extra-social”, próximo à divindade, em que um governo populista

seria autocrático, despótico e até teológico. O caso clássico deste populismo se aplica

à era Vargas, num tempo que ele ficaria conhecido como o “Pai dos pobres”. No

lado dos dominados, teria-se a visão do governante como “salvador” dando margens

13 CHAUÍ, Marilena. Raízes Teológicas do populismo no Brasil: teocracia dos dominantes, messianismo

dos dominados. In: DAGNINO, Evelina (org.). Anos 90: Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: 1994. p.

19 -30.

40

à personalização do poder, reforçando-se o autoritarismo na sociedade e impedindo

as mediações dentro de instituições políticas solidamente consolidadas.

Seguindo-se ainda pela discussão do conceito de populismo, PRADO &

PELLEGRINO (2014)14

, optam explicitamente em sua análise em não utilizar tal

conceito preferindo seguir a perspectiva de Maria Helena Capelato, em que se

considera um Estado forte, comandado por um líder carismático, capaz de manter a

ordem, ao mesmo tempo em que as classes populares almejavam ganhar espaço

político e conquistar reformas sociais.

As autoras citam nesse contexto, os casos da Guatemala, com os governos de

Juan José Arévalo (1945-1951) e, sobretudo, o de Jacobo Arbenz (1951-1954) que

chegou a por em prática uma Lei da Reforma Agrária, causando feroz atrito com o

governo norte-americano e a United Fruit Company.

No México, o governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940), em cujos escritos

buscava ser o “tradutor” das massas mexicanas, mas que considerava também

imprescindível a contribuição da classe capitalista rumo a um crescimento

econômico sólido e duradouro. Com uma política conciliatória e moderada, a seu

tempo, com uma reestruturação do Estado, nacionalização de alguns setores da

economia e satisfação social garantida graças às políticas que iam de encontro às

aspirações operárias e camponesas, o México não assistiu antes de 1994 (com a

aparição do Exército Zapatista de Libertação Nacional – EZLN) ao surgimento de

grupos guerrilheiros, como tinha ocorrido na Guatemala e também na Colômbia.

Na Argentina, tem-se o nome de Juan Domingo Perón (1946-1955). Membro

do GOU (Grupo de Oficiales Unidos), grupo este que era simpático ao nacionalismo

e ao nazifascismo, o então coronel Perón, tomou parte ativa no golpe militar de 1943,

que se propunha a restaurar a democracia no país, mas que, na verdade, trazia as

posições antiliberais e nacionalistas de seus chefes militares advogando a hegemonia

argentina na América do Sul, através de um documento secreto. Em 1944, Perón, no

governo do general Farrell, acumulou os cargos de vice-presidente, ministro da

Guerra e do recém-criado cargo de secretário de Trabalho e Previdência. Nesta

14 PRADO, Maria Lígia & PELLEGRINO, Gabriela. Op.cit. p.131.

41

Secretaria, Perón deu uma guinada nas relações sociais entre governo e

trabalhadores, concedendo aumentos salariais, unificando a previdência, instituindo

tribunais do trabalho e concretizando o Estatuto do Peão, para as relações entre

patrões e empregados no campo. Com os sindicatos mais combativos (anarquistas,

socialistas e comunistas), Perón ora procurava cooptá-los, ora partia para a repressão.

Tal aproximação com os trabalhadores gerou apreensão nos meios militares no poder

e Perón foi preso e enviado para a ilha de Martín Gárcia, em 12 de outubro de 1945.

Todavia, cinco dias depois, uma série de manifestações dos trabalhadores, na

Praça de Maio, pediam a soltura de Perón, o que ocorreu à noite do dia 17. Naquele

mesmo momento, Perón falou à multidão já como candidato à presidência e para

sustentar a sua candidatura foi criado o Partido Laborista, que pouco tempo depois

se transformaria no Partido Peronista. O programa de Perón propunha criar um

imposto sobre a renda, melhorias previdenciárias e combater o latifúndio. Seus

inimigos eram basicamente representados pelos interesses do grande capitalismo

nacional e estrangeiro – latifundiários, industriais, banqueiros e rentistas.

Vencedor nas eleições de 1946, Perón se beneficiou do quadro econômico

favorável para a Argentina, no pós-Segunda Guerra Mundial, devido às divisas

acumuladas no exterior. O crescimento econômico argentino se deu nos setores leves

das indústrias (alimentícias e têxteis), mas não tanto na indústria pesada. Tomaram-

se medidas nacionalistas com a nacionalização das empresas elétricas, de telefonia,

de estradas de ferro que, na sua maior parte eram inglesas, além de uma frota aérea

estatal – as Aerolinhas Argentinas. Contudo, ao contrário do Brasil e do México, o

petróleo não foi nacionalizado, e as grandes companhias internacionais de petróleo

continuaram a ter o seu campo de ação bastante ampliado.

A Constituição foi reformulada com o objetivo de permitir a reeleição do

presidente, gerando grande tensão, envolvendo o Congresso, por conta de um levante

militar fracassado contra o governo, em setembro de 1951. Apesar disso, Perón

conseguiu seu objetivo reelegendo-se em novembro daquele ano para um segundo

mandato. Ele montaria também um formidável sistema de propaganda política – em

jornais, revistas, rádio, cinema e até no ensino escolar - aliada à repressão, em que

seus opositores políticos não tinham espaço algum. Ao seu lado, o presidente

argentino tinha na sua primeira-dama, Eva Perón, uma forte aliada política. Ela

42

assumiu as mediações com as classes trabalhadoras argentinas e seus sindicatos,

conduzindo a Secretaria do Trabalho e, por meio da Fundação Eva Perón, foram

realizadas várias ações de caridade com escolas, orfanatos, asilos e, obviamente, às

mulheres que conquistaram o direito ao voto em 1947. Eva morreria precocemente

aos 33 anos de idade, em 1952, de câncer no útero. Juan Domingo Perón marcou

toda uma época na Argentina, mesmo após a sua renúncia, em 1955, decorrente de

um outro levante militar, e depois da sua morte, em 1974. O peronismo é uma

realidade no espectro político-ideológico argentino sendo um de suas principais

forças políticas, até hoje, naquele país.

Como já dito, no caso brasileiro, sem dúvida alguma, o maior expoente do que

ficou conhecida como a fase do “populismo” foi Getúlio Vargas, que governou o

Brasil ininterruptamente por 15 anos (1930-1945), e retornaria para novo mandato

presidencial, a partir de 1951, tragicamente finalizado com seu suicídio em 1954. A

manifestação mais explícita de fortalecimento do Estado brasileiro se dará no período

do “Estado Novo” (1937-1945) em que o velho tema da “integração nacional”, já

presente no Brasil Império será retomado a todo vigor com as políticas oficiais do

governo brasileiro visando à ocupação do Norte e do Centro-Oeste do Brasil,

trazendo em seu bojo uma busca por ocupação dos “espaços vazios” do território

nacional ainda persistentes, em especial, nessas duas regiões. Era a chamada

“Marcha para o Oeste” que já delineia uma modernização centralizada e

conservadora a partir do governo central, fortemente personalizado em seu ditador,

contando também com um forte aparelho de propaganda fazendo de Getúlio Vargas

o líder absoluto deste período. Bom salientar novamente que, ao contrário da

Argentina peronista onde as indústrias de alimentos,têxteis e de metalurgia cresceram

bastante, mas não houve a criação de uma indústria de base, no Brasil este último

setor foi contemplado com a criação da CSN – Companhia Siderúrgica Nacional –

em Volta Redonda (RJ). Também faltou à Argentina a estruturação de uma

companhia nacional petrolífera de peso, similar à Petrobrás.

Alijado do poder, em 1945, por um golpe militar, Getúlio Vargas, ainda se

manteve como a principal figura do cenário político brasileiro nos anos seguintes.

Teve influência na formação de dois dos principais partidos da nova fase republicana

brasileira, iniciada em 1946, montados e organizados a partir da máquina

43

estadonovista – O PSD (Partido Social Democrático); e o PTB (Partido Trabalhista

Brasileiro) – o primeiro a partir da ação de Vargas com os interventores; e o segundo

a partir da estrutura sindical corporativista montada por Vargas na década de 1930.

Também elegeu para presidente o candidato que apoiava, o marechal Eurico Gaspar

Dutra (1946-1951).

Getúlio seria reconduzido ao posto presidencial, nas eleições de 1950, nos

“braços do povo”, através do voto. Tomando posse em 31 de janeiro de 1951, Vargas

acentuou mais ainda uma política econômica nacionalista, industrialista e de

intervenção estatal. Quanto à “Marcha para o Oeste”, houve a criação da SPVEA

(Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), em 1953. Ao

contrário de Dutra, optou por uma política externa independente e não alinhada às

potências da época, num contexto de menos de 10 anos transcorridos do final da II

Guerra Mundial e polarizado pelos Estados Unidos e a União Soviética no cenário da

Guerra Fria. Na verdade, conforme DIOGO (2012), Getúlio era flexível quanto à

política externa. O que ele não aceitava era o alinhamento completo e incondicional

aos Estados Unidos, desejado por estes últimos. Vargas apenas buscava um modelo

de desenvolvimento próprio, com a criação de empresas estatais (o que realmente

ocorreu, casos da Petrobrás, da Eletrobrás e da Companhia Vale do Rio Doce, entre

outras), num claríssimo contraponto à Venezuela que, naquela época, deixou seu

petróleo a cargo das companhias internacionais e se aproximaria do modelo russo de

estatização da produção, transporte e refino do petróleo. Por fim, a aproximação

entre Vargas e o argentino Perón, similares em suas políticas nacionalistas e

desenvolvimentistas, e avessos ao alinhamento automático, irritavam ainda mais a

superpotência capitalista. A modernização conservadora e centralizadora já delineada

desde o Estado Novo e que seguirá por todo o período democrático de 1946 a 1964

adentrando por anos a fio no período militar é um assunto que será retomado ainda

neste trabalho.

44

Getúlio Vargas, presidente do Brasil de 1930 a 1945; novamente entre 1951 a 1954.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Get%C3%BAlio_Vargas

Juan Domingo Perón, militar e político, foi presidente da Argentina de 1943 a 1955; e em 1973-1974.

Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tag/juan-domingo-peron/

45

1.1 – As ditaduras regressivas ou regimes militares

autoritários na América Latina

Por fim têm-se, o que Darcy Ribeiro (1983) denominou de autocracias ou

ditaduras regressivas. Elas se constituíram no fruto do esforço das oligarquias e do

imperialismo em defesa de seus privilégios, em que a deterioração de classes

dominantes obsoletas, incapazes de solucionar os problemas nacionais em sua

complexidade se apegam ao Estado e às instituições republicanas com o apoio de

Washington, ainda que implícito. As ditaduras regressivas se diferem do

nazifascismo, pois este último buscou o desenvolvimento industrial integrando suas

populações em um desenvolvimento autônomo enquanto que, no referente às

ditaduras regressivas, teve-se o favorecimento a uma política econômico-estrangeira,

segundo o mesmo autor, sendo um ponto comum entre ambos o caráter anti-

comunista e até terrorista. Embora, no caso do regime militar brasileiro iniciado em

1964, como será visto adiante, tal favorecimento a uma política econômico-

estrangeira será mais evidente no governo de Castelo Branco (1964-1967). Em

outros momentos do mesmo regime apresentou clara nuance nacionalista e estatista,

como nos governos de Médici (1969-1974) e de Geisel (1974-1979), com a

estruturação e a consolidação de redes como a rodoviária, a energética, a de

telecomunicações, entre outras.

As ditaduras regressivas proíbem a militância que poderia levar a um

despertar de consciência política na sociedade, mas permitem até uma certa

participação no âmbito político, referente ao burocratismo composto basicamente por

militares e tecnocratas. Neste regime, as empresas nacionais e estrangeiras, ligadas a

esses grupos tecnocráticos, remetem recursos para o exterior podendo contribuir para

o agravamento do problema da corrupção. Aumentam-se também os recursos para as

Forças Armadas, que foram se transformando em "polícias anti-comunistas" na

América Latina, sendo doutrinadas em escolas de estratégia militar influenciadas por

Washington, dentro do contexto da Guerra Fria.

Isso vem a se relacionar com o declínio da ideologia democrática e com a

aceitação, pelos Estados Unidos, de valores distintos da liberal democracia nos países

46

de sua área de influência, conforme assinalou CARDOSO (1979), em que o

autoritarismo buscaria sustentabilidade no desenvolvimentismo com concentração de

renda, sem participação das massas, onde tais regimes enrijecem o centro de decisão

para que seu modelo de desenvolvimento seja incontestável, reduzindo-se o nível de

informação da sociedade em geral. Já o caráter repressivo destes governos decorreria

da natureza de seu próprio funcionamento, e não da pressão de inimigos "internos"

(como as esquerdas), infiltrados na sociedade e propagador de ideias “subversivas”,

fazendo-se do "ideal democrático" uma ideologia voltada ao combate do inimigo

"interno", onde a sociedade aceitaria então o aumento dessa repressão que reduziria a

capacidade criadora nacional, separando as elites políticas das culturais e ambas, das

camadas populares.

Caracterizava-se, conforme definiu Samuel Huntington15

(in: PRADO &

PELLEGRINO, 2014), um novo profissionalismo nas Forças Armadas, ampliando

seu campo de atuação para a segurança interna, entremeando a política, a economia,

a sociedade, a cultura, a ideologia. “Defesa nacional” e “política geral do Estado” se

confundiam. Seguindo-se pelas duas autoras citada acima, tem-se que os cientistas

políticos foram os primeiros a trazerem o tema dos regimes militares na América

Latina procurando um parâmetro generalizante para os mesmos que se deram em

uma mesma época histórica.

Um cientista político também aqui citado é Stepan16

que em suas análises sobre

os regimes militares na América Latina, mais especificamente na América do Sul,

apresentou que o caso peruano foi diferente em sua estrutura política, com um

programa “inclusivo”, durante o governo do general Velasco Alvarado, em que o

regime procurou pautar-se em princípios que em outros países foram marcas, em

escala até bem maior, da fase das autocracias nacional-sindicalistas – o período

“populista”: – estatismo, desenvolvimentismo, nacionalismo, autonomismo,

corporativismo, reformas sociais, e até o humanismo e a justiça social.

15 Id., Ibid., p.168.

16 Id., Ibid., p.169.

47

De acordo com o sociólogo Hebert de Souza (in: BARROS,1998)17

, no ano de

1964 o Brasil recebeu um “tiro no peito” em que a vítima foi o regime constitucional

e democrático anterior, que apesar dos diversos defeitos, manipulações,

conservadorismos e clientelismos, dava brechas para as camadas populares

mobilizarem-se em busca de maior participação política e de real cidadania. E para

piorar, não foi um caso isolado em se tratando de América Latina, foi uma verdadeira

sequência de “assassinatos em série” contra regimes democráticos que, ainda que

questionáveis em alguns pontos, pelo menos davam significativo espaço às classes

trabalhadoras e subalternas manifestarem-se. Foi o que ocorreu em países mais

distantes, como a Guatemala que pouco ouvimos falar, e também em vizinhos sul-

americanos como Argentina, Chile, Uruguai, etc. E, numa época marcada pelas

tensões da ordem bipolar da Guerra Fria, do que aconteceu em Cuba com a ascensão

de Fidel Castro e das crescentes mobilizações populares em busca de maior espaço

político e social (ainda que estas últimas fossem potencialmente manipuláveis pelos

governos ditos “populistas”), os interesses do capitalismo representados

especialmente pelas empresas multinacionais ou transnacionais acabaram por serem

prejudicados. Assim, é praticamente impossível imaginar que os Estados Unidos não

tivessem os seus interesses em “patrocinar” ou em dar um apoio, ainda que implícito,

aos golpes militares que ocorreram na porção latino-americana do continente. Neste

caso, é como se os Estados Unidos tivessem sido o “mandante” destes “assassinatos

em série” de vários regimes democráticos na América Latina.

A exemplo disso, na América Central, retomemos o caso da Guatemala. Após

implementar uma lei para a reforma agrária, em 1952, o presidente Jacobo Arbenz,

assustou conservadores, proprietários rurais, as companhias estrangeiras e os Estados

Unidos. A tensão com o governo norte-americano cresceu a tal ponto que, conforme

PRADO & PELLEGRINO (2014), o presidente Dwight Eisenhower autorizou a CIA

a desencadear o golpe com o apoio da United Fruit Company. Deposto, o presidente

Arbenz exilou-se no México, abrindo caminho para mais de três décadas de governos

militares e de uma guerra civil que durou 36 anos.

17 BARROS, Edgard Luiz de. Os Governos Militares. 6.ed. São Paulo: Contexto, 1998 (Repensando a

História). p. 13.

48

1.1.1- Ditaduras regressivas ou regimes militares

autoritários na América do Sul

Restringindo-se à América do Sul, seguem-se alguns casos do que RIBEIRO

(1983) denominou de ditaduras regressivas e que foram analisadas mais

detalhadamente por PRADO & PELLEGRINO (2014): Peru, Chile e Argentina. E

finalizando esta seção, breves referências ao Uruguai e ao Paraguai.

Peru

Juan Velasco Alvarado, presidente do Peru entre 1968 a 1975.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Juan_Velasco_Alvarado#/media/File:Juan_Velasco_Alvarado.jpg

No Peru, as Forças Armadas eram aliadas e coniventes com a tradicional elite

peruana realizando diversas intervenções, ao longo do século XX, em nome da

garantia da “ordem social”, conforme seus pontos de vista hegemônicos com relação

às camadas populares. Mas num processo de incubação de um novo papel político,

desde os anos 1950, as Forças Armadas viriam a tomar o poder em 1968, através do

49

“Plano Inca” que serviu de diretriz para o governo golpista, com seus princípios,

objetivos e estratégias que já vinham sendo discutidas a partir do Centro de Altos

Estudos Militares (Caem) e do Serviço de Inteligência do Exército (SI). Estabelecido

o golpe, toma o poder o GRFA (Governo Revolucionário da Força Armada), tendo

como presidente Velasco Alvarado.

Conforme STEPAN in; PRADO & PELLEGRINO (2014), o Peru, como já

apontado, tomou um caminho diferente em comparação com outros regimes

autoritários latino e sul-americanos. No Brasil e na Argentina, diversas reformas

sociais e de cunho trabalhista foram levadas a cabo pelos governos de Getúlio Vargas

e Juan Domingo Perón, respectivamente. Soma-se a isso uma alta politização de

sindicatos e de grupos ou partidos à esquerda, em especial naqueles dois países,

como já exposto. O Peru não viveu, conforme Stepan um período similar e, assim,

este autor apresenta o regime militar peruano com uma estrutura política diferenciada

dos demais.

A transformação que as Forças Armadas objetivavam ao Peru era o

desenvolvimento integral da nação atrelado às reformas sociais. Superar o

subdesenvolvimento a partir do trabalho de uma tecnocracia, constituída por

especialistas, numa pretensa neutralidade para reordenar a sociedade, apagando-se

disputas políticas e construindo-se uma identidade e integração nacionais com

medidas voltadas à Amazônia para sua ocupação demográfico/social, com a melhoria

do padrão de vida da população indígena e ribeirinha locais; e ocupação econômica,

com a proteção aos recursos naturais, combate à dependência e aos privilégios do

capital externo representado pelas empresas estrangeiras.

Tal potencial nacional foi almejado através da Lei da Reforma Agrária, de

1969, visando fortalecer o mercado interno e a indústria nacional no governo de Juan

Velasco Alvarado (1968-1975). E também a Lei Geral das Indústrias, de 1970, em

que o Estado toma à frente do projeto de desenvolvimento industrial da nação, claro

que convivendo com a iniciativa privada e corporativa, porém o Estado assumiu esse

papel dirigente no setor fabril. Procurava-se melhorar a renda e o nível de vida dos

trabalhadores em uma “terceira alternativa” de progresso e desenvolvimento, ao

invés da polarização capitalista ou socialista. Este nacionalismo estatista seguido

50

pelo regime militar peruano retomava a procura por um desenvolvimento adequado à

realidade específica peruana, algo que já vinha presente na cultura política daquele

país desde meados do século XX, dada à identidade indígena e ao glorioso passado

representado pelo Império Inca.

Contudo, tais políticas geraram tensões entre os militares e outros grupos tais

como:

as empresas estrangeiras, no caso da desapropriação da mineradora

Marcona Mining;

as elites agrárias, pela desapropriação das grandes fazendas de açúcar

do norte peruano;

as camadas populares, por causa das dificuldades econômicas

enfrentadas pelas cooperativas de trabalhadores rurais e as normas

rigorosas impostas pelo governo a elas;

e nas “barriadas” – favelas urbanas em que a população lutava pela

ampliação de seus direitos, atritando-se com o governo.

A “revolução peruana” encontrava seus limites. Em 1975, o general Velasco

Alvarado foi destituído. Seu sucessor, o general Morales Bermúdez, governou até

1980, ao mesmo tempo que o reformismo perdia força e encerrava-se o regime

militar peruano. As expectativas frustradas seriam um terreno propício para a

articulação do grupo Sendero Luminoso, de orientação maoista, que protagonizaria

ações violentas pelo país ao longo da década de 1980.

51

Chile

General Augusto Pinochet, ditador do Chile entre 1973 a 1990, em revista às tropas no ano de 1980.

Fonte: http://www.theguardian.com/world/2014/jul/23/pinochet-chile-thatcher-arms-sales

O Chile, também foi um outro caso peculiar. Marcado pela estabilidade política

após a sua independência da Espanha, aquele país passou por reformas políticas e

sociais, ao longo do século XIX e na primeira metade do XX, com partidos políticos

e instituições bem consolidadas. Ali não é possível identificar uma fase similar ao

“varguismo” brasileiro ou ao “peronismo” argentino. No Brasil, os ventos da

Revolução Cubana de 1959 sopravam para uma maior radicalização das esquerdas,

fato que ocorreu no governo João Goulart (1961-1964), onde a busca por uma

conciliação entre as esquerdas, a plataforma reformista do governo e os interesses

conservadores das direitas terminaram por criar um impasse e uma inviabilização

tamanha que desembocariam no golpe de 31 de março de 1964, que derrubaria Jango

e colocaria os militares no poder, fato este que será pormenorizado e analisado

posteriormente ao se abordar especificamente o golpe de 1964.

No Chile, o que se deu foi uma espécie de junção entre a esquerda socialista e

o reformismo. As balizas da “reforma” e da “revolução” entremearam a cena

52

chilena.18

No mesmo ano da queda de Jango no Brasil, em 1964 o Chile elegia

Eduardo Frei, do Partido da Democracia Cristã (PDC), para presidente com o apoio

de grupos conservadores contra a candidatura socialista de Salvador Allende, que

assustava conservadores devido ao que ocorrera em Cuba cinco anos antes.

Frei procurou promover uma “revolução em liberdade”. Reformas

modernizantes, desenvolvimentistas e antioligárquicas foram tocadas adiante, como

já vinha ocorrendo desde o final da década de 1930, quando a Frente Popular,

contraposta às ideologias fascistas, esteve no poder. O projeto do governo Frei

almejava uma terceira via independente do capitalismo e do comunismo. Reformas

estruturais ocorreram (agrária, bancária e urbana), a extração do cobre foi

nacionalizada e setores populares foram contemplados pelas políticas

desenvolvidas.19

Em 1970, com as disputas entre a Democracia Cristã e o conservador Partido

Nacional, abriu-se caminho para a vitória de Salvador Allende pela Unidade Popular

(UP), que reunia partidos de esquerda – o Socialista, o Comunista, o Radical e o

MAPU (Movimento da Ação Popular Unitário) -, sendo que este último vinha de

uma cisão da Democracia Cristã. A plataforma era a implantação de uma via chilena

para o socialismo dentro da legalidade democrática.

Enquanto o Brasil, já vivia os “anos de chumbo” do pós AI-5 de 1968, o Chile

vislumbrava a possibilidade de uma concreta mudança política concebida de dentro

da esfera governamental. Mas aí viria o fatídico 11 de setembro - não o do ano de

2001 que atingiu e destruiu as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York,

no maior ataque terrorista de todos os tempos - mas o do ano de 1973 quando o

general Augusto Pinochet, comandante em chefe do Exército, bombardeou o Palácio

de La Moneda, onde Salvador Allende procurou se defender com uma arma em

punho, por sinal um presente que fora dado por Fidel Castro. Independente da forma

como Allende morreu (após exumação em 2011, a Justiça chilena referendou a

hipótese de suicídio), pode-se afirmar, partindo-se da fala já citada do sociólogo

18 PRADO & PELLEGRINO. Op.cit. p. 159.

19 Id., Ibid., p. 159.

53

Betinho, que a democracia chilena recebeu não só um tiro no peito, mas vários

outros num verdadeiro “bombardeio” que vitimaram a mesma, numa alusão ao

ataque feito ao Palácio de La Moneda.

Mas, por que, apesar da elevada inclusão política e social da população chilena,

a democracia daquele país foi solapada de uma forma tão arrasadora? PRADO &

PELLEGRINO (2014), colocaram a resposta nas mazelas acarretadas pela

dependência econômica. Algo que a Unidade Popular objetivava combater para

reduzir o peso do capital estrangeiro, promover a justiça social, oferta de empregos e

melhores salários. O Estado, assim como o foi em outras nações latino-americanas,

seria o protagonista destas ações.

Mas o Partido Nacional, da direita, já vinha agindo contra o governo Allende.

A posse de Allende quase foi impedida por uma ala do Exército e só foi desbaratada

pela ação de generais legalistas. Houve questionamentos também ao resultado

eleitoral da eleição presidencial. Salvador Allende enfrentou fortes pressões e se

manteve no poder graças à Democracia Cristã, maioria no Legislativo da época. Mas

com a aproximação destes últimos com o Partido Nacional, a Unidade Popular ficou

isolada. Chegou-se a um momento de radicalização dos principais atores políticos: de

um lado, a mobilização popular e os grupos ligados à Unidade Popular que

desejavam acelerar as reformas; de outro, os setores conservadores afetados por

medidas como a expropriação de algumas empresas, a ocupação de terras no campo e

a nacionalização do cobre.

As tensões se agravaram com os “comandos comunais”, alguns focos de

guerrilha e o movimento operário. Na repressão a esses comandos e guerrilhas,

Allende se indispôs também com seus aliados. Para o historiador Alberto Aggio20

, o

caminho chileno para o socialismo – de forma pacífica e democrática – não se

sistematizou numa teoria e política sólidas para tal. O plano governamental e as

manifestações populares espontâneas foram se afastando e o governo perdeu as

rédeas do processo. Havia cisões dentro da própria Unidade Popular: entre os mais

radicais, sintonizados com o que ocorria nas ruas; e os moderados, alinhados com

Allende. Para piorar, a direita se fortalecia com o apoio das classes médias e com a

20 Id., Ibid., p.161.

54

crise econômica, em muito decorrente do boicote de setores empresariais ao governo.

A ameaça de um poder popular, segundo Aggio21

, “feria o padrão de

institucionalização dos conflitos que havia sido a tônica do desenvolvimento

chileno”.

Com a conspiração golpista crescendo, por parte do Partido Nacional, Allende

procurou uma estratégia conciliatória com os militares. Vieram as eleições para o

Parlamento chileno, em 1973, e a Unidade Popular conseguiu 44% dos votos,

possibilitando um novo fôlego ao poder Executivo, cujas relações com o Legislativo

vinham deterioradas por conta da implantação das APS (Área de Propriedade

Social). O Congresso queria restringir o número de expropriações, mas o Executivo

vetou esta intenção do Parlamento.

Após as eleições e dos resultados negativos na eleição legislativa, a direita

oposicionista partiu para a violência, com atentados, sabotagens, etc. Ela

argumentava com a “fraqueza” do governo em lidar com os movimentos populares e

assim ganhava espaço na opinião pública. Como não podia deixar de ser, os Estados

Unidos, atentos ao que acontecia, endossavam, através de suas agências de

inteligência, a necessidade de um “governo forte” para evitar uma “nova Cuba” -

agora na América do Sul. Em nome da “segurança hemisférica” era válido o

enfraquecimento do ideal democrático, o combate visceral ao inimigo “interno” (as

esquerdas, sobretudo as comunistas). O caminho estava pavimentado para o golpe,

dado em 11 de setembro de 1973, que inauguraria a era de Pinochet, que se

estenderia até 1990.

Um “tiro no peito”, como já escrito, no caso da derrubada do governo de

Salvador Allende, seria muito pouco para adjetivar o movimento, talvez o mais

violento e brutal do continente, com o bombardeio do palácio presidencial e a

ascensão do general Augusto Pinochet ao poder. Além do ocorrido, milhares de

pessoas foram tratadas com a pior arbitrariedade imaginável, com interrogatórios,

torturas e execuções sumárias. Toque de recolher, suspensão dos direitos civis,

invasões das casas de suspeitos e uma série de desaparecimentos foram

caracterizando o regime militar chileno.

21 Id., Ibid., p.162.

55

Além de tudo o que ocorria dentro do Chile, Pinochet foi um dos principais

responsáveis pela estruturação da “Operação Condor”. Entre 1973 e 1980, a

Operação era o canal de cooperação entre os regimes autoritários da América do Sul,

visando combater os “subversivos”. O nome do pássaro andino, ironicamente,

combinava bem com o título da Operação já que aquela ave se alimentava de carniça.

Neste seleto “clube do condor”, contavam-se ainda Brasil, Argentina, Uruguai,

Paraguai e Bolívia (sobretudo durante o governo do coronel Hugo Banzer entre 1971

e 1978).

Argentina

A situação política da Argentina teve vários sobressaltos e instabilidades no

decorrer do século XX - se formos nos restringir de 1930 até aos dias atuais - e os

militares, obviamente, foram um dos principais protagonistas destes momentos

cruciais.

Partindo-se de 1930, houve na Argentina um golpe militar decorrente da crise

que afetou o sistema capitalista mundial a partir de 1929. Era mais uma entrada das

Forças Armadas na política portenha. Em 1943, intervenções militares abriram as

portas para a ascensão de Perón e do próprio peronismo que se constituiu numa força

política e ideológica cada vez mais poderosa, como já colocado antes. Em 1955, a

ação militar levaria à queda de Perón, contudo o peronismo cada vez mais se

fortaleceria como uma corrente político-ideológica, mesmo sem o seu mentor, e

aproximava-se dos grupos radicais, com matriz revolucionária. Exemplo disso foi o

grupo conhecido como Montoneros que montariam uma verdadeira estrutura de

guerrilha, mais tarde ferozmente combatida pelos militares.

Na década de 1960, o presidente democraticamente eleito, Arturo Frondizi, da

União Cívica Radical Intransigente, foi deposto pelos militares, em1962, substituído

por um governo civil de fachada até outubro de 1963, quando Arturo Illia (União

Cívica Radical Del Pueblo) venceu as eleições. Mas três anos depois, novo golpe,

56

com a deposição de Illia pelo general Juan Carlos Onganía, em junho de 1966. Era a

“Revolución Argentina”.

Com a sua “Revolução”, o governo militar argentino invalidou princípios

constitucionais, dissolveu partidos políticos e intervieram nas universidades. Graças

à propaganda e campanha golpistas, a imagem que havia se criado dos governos

democráticos era a da fraqueza e da inoperância. Porém, o governo de Onganía

frustrou expectativas por conta dos péssimos resultados na sua política econômica. A

retórica “revolucionária” era o de sempre – desenvolver e modernizar o país com

base na “eficácia técnica” dos militares - mas o que se viu não correspondia ao que

foi teorizado. A reação popular cresceu. O governo ficou dividido e a harmonia

social tornou-se algo cada vez menos viável, apesar da preocupação moralizante dos

setores governamentais - afinados com o catolicismo conservador e anticomunista - e

também pela busca por uma organicidade social imposta de cima para baixo, algo

típico, aliás, dos regimes autoritários da época nessa região do continente. A queda

de Onganía se deu em 1970, com novo golpe militar.

General Juan Carlos Onganía, presidente da Argentina entre 1966 a 1970.

Fonte: http://historiaybiografias.com/azul_colo/

57

No Brasil, o governo de João Goulart (Jango) representava o trabalhismo de

Getúlio Vargas e, uma vez consumada a deposição de Jango, derrubado pelo golpe

de 31 de março de 1964, o trabalhismo varguista seria praticamente silenciado. Os

militares brasileiros procuraram o “seu” projeto desenvolvimentista, muito dele já

concebido na Escola Superior de Guerra (ESG), e aplicaram a “sua” visão

estratégica para o espaço geográfico-territorial brasileiro contando com um governo

forte e centralizador, uma sociedade com a maior organicidade possível, fazendo-se o

contraponto com Goulart que era visto como um governante sujeito às manipulações

e maquinações das esquerdas, dos comunistas e de outros grupos radicais afins. Já

na Argentina, pelo contrário, aconteceu algo que seria inimaginável no Brasil, por

exemplo, entre Jango e os governos militares brasileiros das décadas de 1960 e 1970.

O começo dos anos 1970 trouxe de volta a figura de Perón (que verdadeiramente se

diferenciava de Jango por conta da origem militar do então ex-presidente argentino),

na época, exilado na Espanha. Seu retorno foi possível por meio de negociações entre

ele e o próprio poder militar. Em março de 1973, foi eleito para presidente Héctor

José Cámpora, com o apoio de Perón e dos peronistas. Cámpora renunciou apenas

três meses depois para que Juan Domingo Perón, antes impedido, pudesse se

candidatar para a presidência.

Mais uma vez presidente, Perón não se alinhou a movimentos ou grupos

radicais, seguindo uma postura conservadora, mas o seu governo chegou ao fim com

a sua morte em 1º de julho de 1974. Sua viúva e vice, Maria Estela Martínez Perón, a

Isabelita, assumiu a presidência. No seu período, uma organização paramilitar, a

Triple A, cometeu ações violentas contra os movimentos de esquerda e, para piorar,

em 24 de março de 1976, um novo golpe militar daria início a uma nova fase

repressiva que deixaria marcas na sociedade argentina até o presente.

As justificativas para o golpe foram: a necessidade de se reprimir os

movimentos guerrilheiros; superar a ineficiência e a desordem administrativa; e a

impotência e a incapacidade das forças políticas de encontrarem uma solução dentro

das regras institucionais e democráticas para a crise instalada. Com o título de:

“Processo de Reorganização Nacional”, o programa de governo foi elaborado

reunindo os comandantes das três armas, em uma Junta Militar, sob o comando de

Jorge Rafael Videla, atualmente condenado à prisão perpétua por crimes contra os

58

direitos humanos. Videla esteve à frente do governo argentino até 1981, quando foi

sucedido pelo general Roberto Marcelo Viola, substituído ainda no mesmo ano, pelo

também general Leopoldo Fortunato Gualtieri, que foi o último militar no poder

argentino já que a sua renúncia, em 1982, abriria o caminho à redemocratização.

General Jorge Rafael Videla. Presidente da Argentina entre 1976 a 1981

http://en.wikipedia.org/wiki/Jorge_Rafael_Videla#/media/File:Jorge_Rafael_Videla_1976.PNG

Os discursos dos militares argentinos não apresentavam novidades – como já

foi assinalado – em relação aos discursos dos regimes militares de seus vizinhos sul-

americanos: salvar a sociedade do caos e da deterioração política; colocarem-se

como vigilantes da “moral e dos costumes”, através da disciplina, da hierarquia, do

distanciamento em relação às questões particulares no plano social; promover a

centralização e a eficácia do governo em “moldes técnicos”; e o combate contra os

“inimigos internos” em nome do interesse nacional.

Todavia, o governo militar argentino carecia de projetos efetivamente

concretos, contrastando com o regime militar brasileiro (que apresentava projetos de

modernização econômica visando aprimorar a integração nacional e a estrutura

urbana e energética, por exemplo). O caso argentino também se diferencia do que

ocorreu no Chile, onde houve forte desnacionalização da economia. Na Argentina, o

vazio de projetos governamentais fez os militares sobrevalorizarem a repressão que

59

cada vez mais se soltava do controle do Estado, ficando à mercê até de interesses

privados. A repressão argentina coibiu e silenciou até os grupos mais combativos ao

regime acarretando, para seus militantes, a mudança do foco de luta: ao invés das

plataformas revolucionárias, esses grupos voltaram-se à causa da redemocratização e

à dos direitos humanos. As atrocidades do regime vieram à tona por meio do

sofrimento pessoal das mães de desaparecidos políticos, cujo principal exemplo é o

das Mães da Praça de Maio, no centro de Buenos Aires, ao pressionarem a ditadura a

reconhecer seus crimes.22

Com a legitimidade seriamente deteriorada, o regime militar argentino, em

1982, recorreu ao argumento de recuperar o arquipélago das Malvinas – ocupadas

pela Grã-Bretanha desde o século XIX. O discurso anti-imperialista envolveu a

esquerda argentina e os países vizinhos latino-americanos. A Guerra das Malvinas

durou de abril a junho de 1982 e, com a rendição portenha, apenas serviu para

apressar a deterioração política do regime. A redemocratização do país ganhou vulto

com a vitória do candidato do Partido da União Cívica Nacional - Raúl Alfonsín -

que aglutinou o apoio dos meios universitários, intelectuais e de defesa dos direitos

humanos. Vitorioso em outubro de 1983, Alfonsín enfrentaria uma situação de grave

crise econômica (com alta da inflação, produção industrial fraca e desemprego)

somada às chagas e feridas sociais decorrentes do período autoritário anterior. Em

1984, foi criada a Conadep – Comissão Nacional para o Desaparecimento de

Pessoas, dirigida pelo escritor Ernesto Sábato. Na busca em se confrontar a verdade,

a sociedade argentina tomou contato com a abertura de arquivos secretos do regime e

militares e torturadores têm sido julgados e condenados por crimes contra a

humanidade.

22 Id., Ibid., p.176.

60

Uruguai e Paraguai

O Uruguai, na primeira metade do século XX, se firmara pelos elevados

índices de educação, uma classe média consolidada e uma infra-estrutura urbana. A

década de 1950 trouxe a crise econômica com o desgaste do seu modelo de

desenvolvimento baseado exportação de seus produtos básicos – a carne e a lã – que

se desvalorizaram no mercado internacional. O padrão de vida da população

começou a declinar paralelamente ao aumento da dívida externa. Na década de 1960,

a guerrilha urbana, através dos tupamaros, integrantes do Movimento de Libertação

Nacional (MLN-T), obtiveram ações bem sucedidas, mas também crescia a

militarização do país. O regime autoritário no Uruguai teve início com Juan María

Bordaberry (1972-1976), do Partido Colorado. Em 1973, o Parlamento e os partidos

políticos foram dissolvidos, além da suspensão dos direitos civis. Bordaberry foi

destituído em 1976, por conta de divergências na alta cúpula das Forças Armadas.

Mesmo assim, os militares dominaram a cena política uruguaia, apesar da parcial

“aparência civil” do regime, até 1985.

O Paraguai viveu 35 anos sob a ditadura do general Alfredo Stroessner, entre

1954 a 1989. Ele tomou o poder ao derrubar o presidente constitucionalmente eleito

em 1950, Federico Chávez, do Partido Colorado do Paraguai. Um aspecto desta

ditadura é que como membro do Partido Colorado, Stroessner elegeu-se sete vezes

para presidente. Afastou do partido os seus integrantes moderados e incentivou uma

espécie de clientelismo com a filiação de quadros dependentes dos serviços públicos.

Sua queda se deu, em 1989, por meio de uma rebelião militar conduzida pelo general

Andrés Rodríguez, que elegeu-se presidente em março daquele ano. O Paraguai

ainda seguiria por um caminho de tentativas de golpes e de sérias instabilidades

políticas até o início da década de 2000.

***

61

Em meados dos anos 1980, com o fim dos regimes militares em países como

Brasil, Argentina e Uruguai, manifestaram-se as esperanças de uma democracia

sólida e autêntica na América Latina, com a reativação do processo eleitoral e do

pluripartidarismo. SAES 23

in: DAGNINO (org.) (1994), trata sobre a questão de que

os regimes políticos democráticos da América Latina poderiam ser qualificados

como democracias populistas. O autor aponta a vitória de Carlos Menem na

Argentina, em 1989; o personalismo de Fernando Collor, também eleito em 1989,

com suas apelações ao povo em seus discursos referindo-se aos “descamisados”; o

personalismo e superexposição do presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari, do

PRI, cujo mandato de governo foi entre 1988 e 1994; a permanência de Leonel

Brizola, líder dos anos 1950 e 1960, no cenário político brasileiro dos anos 1990; e o

discurso paternalista de Itamar Franco, presidente do Brasil em 1993 e 1994. O autor

coloca que uma das consequências do desenvolvimento do capitalismo, que foi a

expansão da mídia eletrônica, favoreceria a personalização na política.

Estamos assim, diante do que costuma ser chamado de “populismo

neoliberal”, em que o Estado seria o responsável pelas desigualdades vigentes, vindo

daí a necessidade, conforme tal ponto de vista, das privatizações procurando-se

“enxugar” o papel do Estado. Com base em BECKER & EGLER (1998), Fernando

Collor não apresentava bases partidárias sólidas e assumiu um discurso neoliberal,

antiestatista (ao prometer “combater os marajás”) e a favor dos milhões de

descamisados. Têm-se então que: “essa nova retórica populista neoliberal reinvidica

a restauração do mercado e a liquidação do Estado intervencionista, cartorial e

parasitário, que, ao resultarem na liquidação dos maus capitalistas, antes

protegidos pelo Estado, e no aumento da produtividade econômica global, acabarão

tendo efeitos redistributivos.” 24

(grifo meu)

23

SAES, Décio de Azevedo Marques de. A reemergência do populismo na América Latina. in: DAGNINO,

Evelina (org). Anos 90: Política e Sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense,1994. p. 41- 48.

24 Id., Ibid., p. 47.

62

Retornando-se à atuação dos militares no poder, esta, então como foi visto,

variou de acordo com certas especifidades de cada país. Porém esta retomada

histórica geral da formação sócio-política latino-americana e, em especial do

contexto da América do Sul, serviu para se visualizar toda a trajetória que

desembocou nos governos militares, as chamadas ditaduras regressivas, de acordo

com Darcy Ribeiro (1983). Também se apresentou, ainda que muito

superficialmente, o final destas ditaduras ou regimes autoritários - dentro de

transições democráticas - em meados dos anos 1980, em países como Brasil,

Argentina e Uruguai. O que será feito agora é nos restringirmos ao caso brasileiro,

apontando a participação dos militares ao longo da história republicana de nosso país

até chegarmos ao momento histórico nacional em que os militares estiveram no

poder - entre os anos de 1964 a 1985 - passando-se por cada um de seus generais-

presidentes, que ocuparam a presidência da República, durante todos aqueles anos.

63

2- A participação dos militares na história

republicana brasileira

2.1- De 1889 a 1961: a participação dos militares, desde a

República Velha até ao governo Jânio Quadros

A participação e a influência dos militares na política brasileira não se

restringem somente ao movimento de 1964. A proclamação da República em 1889

foi feita pelo marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República no

Brasil, sendo seguido pelo governo do também militar e marechal Floriano Peixoto.

O primeiro civil a ocupar a presidência da Nação seria Prudente de Morais, a partir

de 1894, iniciando o ciclo da hegemonia de São Paulo e Minas Gerais que

caracterizaria a "República do café-com-leite". Durante esta mesma fase,

correspondente à República Velha, podemos ainda citar a ascensão, na presidência,

de Hermes da Fonseca (1910-1914), que possuía uma identidade militar contando

com o apoio do Rio Grande do Sul, anunciando as novas alianças que permeariam a

Revolução de 1930. Houve ainda o movimento tenentista de 1922, defendendo a

centralização política em contraposição ao clientelismo das oligarquias provincianas.

Podem-se citar, naquele contexto, a Revolta do Forte de Copacabana, também

conhecida como “Os 18 do Forte”, ocorrida em 5 de julho do mesmo ano, no Rio de

Janeiro; a insurreição de 1924, em São Paulo; e ainda, a Coluna Prestes (1924-1927)

que percorreu vários estados brasileiros.

Esta posição dos tenentistas foi de encontro com a visão predominante do

pensamento geopolítico brasileiro que, adaptando-se às visões de outros centros -

como o da Alemanha - procurou adaptar e reformular, a seu modo, os pressupostos

existentes lá no exterior para pura e simplesmente “transportá-los” e “transferi-los”,

sem maiores preocupações com as especificidades do Brasil, na busca por análises e

“soluções” para a realidade geopolítica brasileira, operacionalizando ideologias e

políticas, visando a unidade e a integração nacional e territorial de nosso país,

trazendo-se modelos teóricos e analíticos já prontos de fora, como colocado por

COSTA (1992). No Brasil, os estudos geopolíticos sempre tiveram a hegemonia do

pensamento e das instituições militares permeando a história política brasileira, em

especial, a partir da Revolução de 1930.

64

Em 1930, a República Velha e a política do “café-com-leite”, que previa a

alternância de paulistas e de mineiros na Presidência da República, chegariam ao

fim. Washington Luiz estava no poder e, de acordo com o acerto político existente há

décadas, o próximo presidente deveria ser de Minas Gerais. O estado de São Paulo

quebrou o acordo e foi lançada a candidatura de Júlio Prestes, para a sucessão de

Washington Luiz. O outro candidato, encabeçando a Aliança Liberal, era Getúlio

Vargas, presidente (na época, o equivalente a governador) do Rio Grande do Sul,

cuja chapa tinha como vice, o presidente da Paraíba, João Pessoa, e que agora

contava com o apoio de Minas Gerais.

As eleições foram realizadas em março de 1930, com a vitória de Júlio Prestes.

Porém a Aliança Liberal questionou os resultados, denunciando uma série de fraudes

no pleito. Faltava ainda muito tempo para a posse do próximo presidente, que

ocorreria somente em 15 de novembro. A isto, somaram-se as acusações de fraudes

nas eleições e o assassinato de João Pessoa, em 26 de julho daquele ano. O país

passava por uma delicada situação econômica, decorrente da crise do próprio sistema

capitalista mundial, iniciada em 1929. O café, principal produto de exportação

brasileiro, estava afetado por uma crise de superprodução. O descontentamento

popular era enorme devido às dificuldades econômicas. Assim o terreno estava

preparado para uma revolução, deflagrada em outubro de 1930, que depôs

Washington Luiz a apenas um mês de findar o seu mandato. Como não poderia

deixar de ser, os militares depuseram o presidente, formando uma junta militar, a

Junta Governativa. Ela era formada pelos generais Augusto Tasso Fragoso e Mena

Barreto, mais o almirante Isaías de Noronha, comandante da Marinha. Eles

assumiram o poder provisoriamente e o entregaram a Getúlio Vargas, segundo

colocado nas eleições.

Iniciava-se a Era Vargas, que se prolongaria por 15 anos (1930-1945).

Especificamente no período do governo constitucional de Getúlio (1934-1937),

ocorreria a chamada Intentona Comunista, uma tentativa de golpe militar frustrada

pelo governo. A ANL (Aliança Nacional Libertadora), fundada em 1935,

organização de tendência socialista/ comunista - que reunia, além obviamente dos

quadros comunistas e socialistas, também os “tenentes” liberais e católicos -

procurava combater o nazifascismo que, no Brasil, em especial no referente ao

65

fascismo italiano, havia inspirado a criação da AIB (Ação Integralista Brasileira), em

1932. A AIB reunia classes médias urbanas, intelectuais (na maioria, católicos),

profissionais liberais, funcionários públicos e militares, sob a liderança de Plínio

Salgado e sob o lema “Deus, Pátria e Família”.

O quadro político tornou-se tenso. O governo Vargas - distante da extrema

direita, dos grupos mais radicais da esquerda, e também dos políticos de centro -

tinha suas bases de apoio especialmente nos sindicatos de trabalhadores e operários

que eram as novas forças da sociedade industrial que se encorpava. Em abril de

1935, o Congresso aprovou uma lei de Segurança Nacional devido à onda de greves,

e em 11 de julho daquele ano, apenas quatro meses depois de fundada, a ANL foi

colocada na ilegalidade. O PCB (Partido Comunista Brasileiro), em retaliação ao

fechamento da ANL organizou uma insurreição político-militar, em novembro. Seu

objetivo era retirar Getúlio do poder e implantar um governo socialista no Brasil,

semelhante ao da União Soviética. O movimento ficou restrito ao Nordeste, tendo

início em Natal, prolongando-se até ao Recife, mas não se alastrou pelo restante do

país. Os líderes do movimento foram severamente punidos com prisões, torturas e

mortes. Luís Carlos Prestes, a figura mais ilustre do PCB jamais se envolveu no

movimento, mesmo assim permaneceria preso até 1945. O episódio entrou para a

história como a Intentona Comunista, uma tentativa malograda de golpe militar,

restrito aos quartéis dominados por militares comunistas, uma “quartelada” ocorrida

principalmente no Rio Grande do Norte e, que fora do Nordeste, só teve alguns

reflexos menores no Rio de Janeiro.

Seguindo a sequência das participações dos militares na vida política brasileira,

lembremo-nos do Plano Cohen, supostamente uma conspiração golpista dos

comunistas que foi largamente alardeado pelo governo potencializando a campanha

anticomunista na imprensa e na sociedade. Supostamente apreendido pelas Forças

Armadas, o Plano Cohen foi apresentado em setembro de 1937 numa reunião da alta

cúpula militar com as presenças do general Góis Monteiro – chefe do Estado-Maior

do Exército; do general Eurico Gaspar Dutra – ministro da Guerra; e de Filinto

Muller – chefe de Polícia do Distrito Federal (que na época correspondia à cidade do

Rio de Janeiro). Já transcorria toda uma série de disputas entre civis e militares

dentro do clima de tensão da sucessão presidencial, em que as eleições estavam

66

previstas para janeiro de 1938. Todavia, o desfecho deu-se antes, no golpe de 10 de

novembro de 1937, que implantaria o Estado Novo. Naquele dia, o Congresso

Nacional foi fechado e iniciava-se um novo período político, que duraria oito anos,

até 1945. Tinha-se uma nova ditadura, com um presidente que gozava de grande

popularidade e que permanecia no poder através de um golpe, devidamente

patrocinado pelas Forças Armadas, e com uma nova Constituição que ficou

conhecida como “Polaca”, devido às semelhanças em suas disposições com as

constituições de regimes fascistas europeus, como o da Polônia.

Se os militares apoiaram o golpe de 1937 iniciando o período ditatorial

estadonovista, o fim do Estado Novo, com a deposição de Getúlio Vargas, em

outubro de 1945, foi feita através de um golpe com a participação das mesmas Forças

Armadas e das oposições a Vargas. A partir de 1943, Getúlio preparou um processo

de abertura política ampliando suas bases de apoio e sustentação constituídas

principalmente pelas camadas populares urbanas, como os trabalhadores e os

operários das indústrias, representados nas estruturas sindicais. Por outro lado, já em

1944, as forças de oposição a Vargas, começaram a pressionar pela redemocratização

formatando a candidatura presidencial de um militar, o brigadeiro Eduardo Gomes.

Tem-se então um processo de distensão política (isto trinta anos antes do governo de

Ernesto Geisel, mas neste caso, é a distensão do regime do Estado Novo). Getúlio

marca para dezembro de 1945 as eleições presidenciais e também para o Congresso

Nacional, deixando para maio de 1946 as eleições para os Executivos e Legislativos

estaduais. Para a viabilização das eleições são criados partidos políticos sendo que a

oposição aglutina-se na UDN (União Democrática Nacional). De outro lado - da

parte de Getúlio – originaram-se: o PSD (Partido Social Democrático), a partir dos

interventores estaduais, que lança como candidato à presidência, o também militar,

general Eurico Gaspar Dutra (ex-ministro da Guerra de Getúlio); e o PTB (Partido

Trabalhista Brasileiro), atrelado ao sindicalismo e ao fortalecimento da ideologia do

“trabalhismo”.

As camadas populares estavam ausentes e não contempladas nas manifestações

opositoras a Getúlio. Aliás, a mobilização popular se deu a favor de Getúlio, através

do movimento “queremista” (com as frases: “Queremos Getúlio; “Constituinte com

Getúlio”) e o ditador dava mostras de querer continuar no poder, com a disposição de

67

antecipar as eleições estaduais para junto das federais. Daí viria um outro movimento

que retirou Getúlio do poder. Os setores oposicionistas, capitaneados pela UDN se

aproximaram das Forças Armadas e os militares concretizaram a deposição do

presidente em outubro de 1945, após quinze anos consecutivos de Vargas no poder.

Na ocasião, o ministro do Supremo Tribunal Federal, José Linhares assume o cargo

máximo da Nação até que o vencedor das eleições tomasse posse na Presidência da

República.

Por seguinte teve-se a disputa eleitoral para a presidência, no clima da nova

Constituição de 1946, entre dois líderes militares: Eurico Gaspar Dutra, pelo PSD; e

o brigadeiro Eduardo Gomes, pela UDN. A vitória coube ao candidato do PSD, que

foi empossado em 31 de janeiro de 1946. Derrotada, a UDN lançará candidatos

militares nas duas eleições seguintes: em 1950, o mesmo brigadeiro; e em 1955, o

general Juarez Távora. Em 1960, o PSD e as forças getulistas lançam como

candidato presidencial o marechal Henrique Teixeira Lott, militar que comandou a

manobra ou o movimento de novembro de 1955 que garantiu a posse de Juscelino

Kubitschek em janeiro do ano seguinte. Ou seja, em todas as eleições presidenciais

do período chamado por SCHMITT (2000) de Terceira República (1946 a 1964)

sempre houve um candidato militar (em 1945 foram dois) e, conforme Marco

Antônio Villa (2014), excetuando-se 1945 em que o general Dutra, candidato da

situação, obteve a vitória, desde 1950, todos os presidentes eleitos eram da oposição:

Vargas contra Cristiano Machado, apoiado por Dutra (1950); Juscelino contra Juarez

Távora, apoiado por Café Filho (1955); e Jânio Quadros contra Lott, apoiado por

Juscelino (1960).

Ainda de acordo com Villa, e também se considerando o exposto acima, é

notória a quantidade de momentos em que o Brasil enfrentou graves tensões

políticas, considerando-se apenas o tempo compreendido entre os anos de 1930 até

1964. Mas, paradoxalmente, a economia nacional não foi grandemente afetada. O

PIB (Produto Interno Bruto) cresceu a altas taxas no decorrer de todos esses anos

que englobam a era de Vargas entre 1930 a 1945 (governos provisório e

constitucional, mais o período estadonovista); e todo o período democrático liberal

da terceira fase republicana de 1946 a 1964. Recapitulando, no que se refere à Era

Vargas, alguns fatos foram tratados acima - outros não - mas listando-os houve: a

68

Revolução de 1930, a Revolução Constitucionalista de 1932, a Intentona Comunista

de 1935, o golpe do Estado Novo de 1937, o fracassado levante integralista de 1938 e

a queda de Vargas em 1945. Nestes eventos os militares estão ali, sempre como um

dos principais (senão o principal) entre os protagonistas - ora na defesa, ora na

derrubada da ordem vigente.

Por outro lado, conforme Walter Diogo (2012), o Brasil da década de 1920 era

uma nação economicamente frágil e pouco industrializada, dependente sobretudo das

exportações de café. Mesmo mais populoso do que a Argentina, o PIB brasileiro era

menor que a do país vizinho. O Brasil viria a ter um PIB maior que o da Argentina na

década de 1950, por conta também do Brasil se tornar a nação latino-americana que

recebia mais investimentos externos, enquanto a Argentina era “punida” por sua

postura de neutralidade durante a Segunda Guerra. Mas não há como negar o papel

de liderança assumido pelo Estado brasileiro, a partir de 1930, no processo de

industrialização nacional. As camadas populares urbanas tornaram-se também atores

no jogo político (ainda que manipuláveis) e as cidades experimentaram, a partir de

então, um expressivo processo de urbanização, caminhando às mãos dadas com a

industrialização e a expansão econômica. Pode-se considerar que a partir daquele

momento, o Brasil já ia tomando um rumo em direção a uma modernização

conservadora e centralizadora que, após 1964, continuaria por grande parte do

regime militar.

Entrando-se especificamente no decênio anterior ao golpe de 1964, uma

grave crise política é deflagrada após o suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto

de 1954. Seu vice, Café Filho torna-se o presidente para cumprir o restante do

mandato que seria concluído em 31 de janeiro de 1956. No ano seguinte à morte de

Vargas – 1955 - ocorre a eleição presidencial, realizada em outubro, com as vitórias

de Juscelino Kubitschek (JK) e de João Goulart (Jango), para presidente e vice

respectivamente. Os setores civis e militares anti-getulistas e os ligados à UDN

argumentaram que houve fraude nas eleições buscando impedir a posse de JK. Um

desses argumentos, de acordo com DIOGO(2012), era que JK e Jango tinham

recebido cerca de 500 mil votos dos comunistas, cujo partido - o PCB - estava na

ilegalidade desde 1947.

69

Nova tensão política em curso, o presidente da República à época, Café Filho,

vice de Getúlio, sofre forte pressão das oposições, novamente capitaneadas pela

UDN. Por conta de um problema sério de saúde (um distúrbio cardiovascular), Café

Filho é internado em 03 de novembro. O presidente da Câmara, Carlos Luz, assume

o cargo de presidente, mas a solução estava longe de ser alcançada, pois um

movimento militar golpista estaria sendo preparado. A falta de uma atitude punitiva

por parte de Carlos Luz aos militares que explicitamente defendiam um golpe para

impedir a posse de JK agravou a situação e gerou um desentendimento entre o

general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, e o presidente interino Carlos

Luz. De novo, os militares estão em cena e a “salvação” da democracia se daria

principalmente através de um militar, o próprio general Lott. A intensificação da

crise política levou o Exército a intervir, mas para garantir a posse do presidente

eleito. Depois de apenas três dias no poder, Carlos Luz foi afastado.

Prevalecia a posição dos militares legalistas que defendiam a Constituição em

contraposição aos contrários à posse de Juscelino e Jango. A renúncia de Carlos Luz

deu-se após o cerco do palácio presidencial (o Palácio do Catete). O dia 11 de

novembro foi marcado pela manobra do I Exército, determinada pelo general Lott,

que ocupou a capital federal – o Rio de Janeiro - cercando o Congresso, o Palácio do

Catete e os portos. A democracia acabou "preservada" pela mobilização militar

chefiada por Lott, figura-chave entre os que eram a favor da legalidade, garantindo a

posse dos eleitos, da aliança PSD/PTB – o presidente Juscelino e o vice João

Goulart, respectivamente. O episódio, por ter ocorrido em novembro de 1955, um

mês após as eleições e a dois meses da tomada da posse, ficou conhecido como

“Novembrada”. Naquele momento, os militares contrários à Constituição e à posse

dos eleitos tiveram que recuar. Nereu Ramos, 1º vice-presidente do Senado Federal,

assumiu a Presidência da República, no mesmo dia 11, para completar a transição até

a posse do novo presidente.

Tal fato faz denotar claramente a fragilidade do conceito democrático no

Brasil correspondendo ao que RIBEIRO (1983) denominou de restaurações

patriciais associada mais precisamente ao governo de Juscelino Kubitschek. Contudo

os problemas e as crises não terminariam por aí.

70

O sucessor de JK, Jânio Quadros, não completaria seu mandato previsto em

cinco anos porque renunciou em 25 de agosto de 1961, após apenas quase sete meses

de governo, trazendo nova e grave crise política em que os ministros militares, e a

direita em geral, se colocaram contra a posse de João Goulart (o Jango) que era, de

novo, o vice-presidente (naquele tempo, o eleitor votava em separado para escolher o

presidente e para escolher o vice). Ressurge a iminência de golpe que só não se

concretizou devido à mobilização democrática dos sindicatos, estudantes e

governadores de estado (como Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul). O impasse foi

resolvido com a posse de Jango como presidente dentro de um regime

parlamentarista em setembro de 1961 (o presidencialismo retornaria mediante

plebiscito em janeiro de 1963).

Voltando-se um pouco, a vitória de Jânio Quadros nas eleições presidenciais de

1960, representou uma verdadeira turbulência à “dobradinha” PSD-PTB, partidos

criados à sombra do getulismo e que procuraram, juntos, garantir relativa estabilidade

à ordem institucional vigente pós-1946, em especial, após o suicídio de Getúlio

Vargas, em 1954. No caso, o PSD procurou se firmar como o principal fiador da

ordem republicana pós Estado-Novo, atrelando-se ao PTB que vinha numa crescente

eleitoral constante e representava o trabalhismo identificado às massas trabalhadoras

das cidades, numa época em que a urbanização e a industrialização já se expandiam

com vigor, em especial nas maiores aglomerações urbanas, como as cidades de São

Paulo e do Rio de Janeiro.

Com uma carreira política meteórica, entre 1947 a 1960, passando pela

prefeitura da capital paulista e depois como governador de São Paulo, Jânio Quadros

derrotou máquinas partidárias mais fortes candidatando-se por partidos pequenos – o

PDC (Partido Democrata Cristão) e o PTN (Partido Trabalhista Nacional). De

estilo personalista, apartidário e com discurso moralizante, Jânio soube também se

aproximar das massas populares e sindicais, sobretudo na prefeitura de São Paulo. A

UDN (União Democrática Nacional) não tinha carisma e força eleitoral para derrotar

o getulismo, mas viu em Jânio a oportunidade para galgar a presidência do país. Com

a brecha da legislação da época, que permitia o voto separado para presidente e para

vice-presidente, algumas lideranças populares e sindicais lançariam a campanha pela

eleição da chapa “Jan-Jan” (Jânio – Jango) para presidente e vice, respectivamente,

71

sendo que ambos não reagiram em contrário a tal movimentação. Segundo

CHIAVENATO (2006), o cabeça de chapa de João Goulart, o marechal Henrique

Teixeira Lott, apesar da mobilização realizada a favor da posse do presidente

Juscelino Kubitschek, não agregava apelo popular. Enquanto Jânio Quadros também

estava desconfortável: concorria como cabeça de uma chapa que representava uma

corrente política impopular e derrotada em eleições anteriores, liderada pela UDN.

Ele teria que conquistar votos entre os “nacionalistas” e os “populistas”. A solução a

este imbróglio foi a bizarra dobradinha “Jan-Jan”.

A vitória de Jânio Quadros na eleição presidencial de 1960 foi relativamente

fácil. Primeiro presidente a tomar posse na recém-inaugurada capital federal –

Brasília – Jânio recebeu a faixa presidencial de JK, em 31 de janeiro de 1961. Sua

política e equipe econômicas indicavam para um governo austero, inclinado a cortar

e a reduzir gastos, em sintonia com os grupos capitalistas multinacionais ou

transnacionais, dentro do contexto de uma política ortodoxa, numa clara

contraposição aos vultosos gastos e investimentos dos anos JK. O que se apresentava

na época era um quadro preocupante de inflação e aumento da dívida externa.

Porém, logo Jânio manifestaria seu lado personalista e avesso às amarras

partidárias. E os grupos políticos da direita que o apoiaram, em especial a UDN,

descontentaram-se, sobretudo com a política externa. Jânio defendeu a

autodeterminação de Cuba, palco da revolução socialista ocorrida apenas dois anos

antes, em 1959; reatou relações diplomáticas com os países do Leste europeu;

mandou representantes às conferências do Cairo (Egito) e de Belgrado (Iugoslávia); e

apoiou o ingresso da China Popular na ONU (Organização das Nações Unidas).

Percebe-se então que Jânio não restringiu sua política externa somente às regiões

geográficas do mundo capitalista ou aos Estados Unidos. Ele estimulou os tentáculos

da política externa brasileira em direção também às regiões geográficas dominadas

pelo comunismo e também àquelas que se libertavam do jugo colonial, como o

continente africano. Em sua política externa “independente”, Jânio Quadros não se

curvou às pressões dos Estados Unidos, descontentando a imprensa conservadora, a

Igreja Católica e as Forças Armadas (marcadas pelo anticomunismo incondicional),

chegando a condecorar o cosmonauta soviético Iúri Gagárin. E fez o mesmo com o

símbolo da Revolução Cubana, Ernesto “Che” Guevara, trazendo contra si, conforme

72

Marcos Napolitano (2014), a imagem de um político contraditório, oportunista e

ideologicamente ambíguo.

Com seu perfil, classificado por muitos, como demagógico, personalista,

apartidário e populista, Jânio Quadros perdeu sua base política de sustentação. Seu

principal crítico era Carlos Lacerda, governador da Guanabara, estado que

correspondia à cidade do Rio de Janeiro, que recém deixara de ser a capital federal

do Brasil. Mas ali ainda se contava com o “grosso” das repartições públicas federais

e dos quartéis e bases das Forças Armadas. Carlos Lacerda era um crítico e inimigo

de longa data do getulismo e o atentado que sofrera no início de agosto de 1954

precipitaria de vez a crise política que culminou no suicídio de Getúlio Vargas

Preso às suas contradições e sem base estável para sustentar-se no poder, Jânio

renunciou com menos de sete meses no cargo, a 25 de agosto de 1961. Assim,

entende-se porque CHIAVENATO (2006), se referiu a Jânio (e também a Jango) com

o título de “Os presidentes da contradição”25

no específico capítulo de sua obra, por

conta do exposto antes. Para ele, a renúncia de Jânio foi, ou uma tentativa fracassada

de golpe, ou então ele contasse retornar ao poder com plenos poderes. Para

NAPOLITANO26

, Jânio calculava que com um vice odiado pela direita civil e militar

teria mais manobra para fortalecer seu poder pessoal. Afinal, os conservadores

temeriam um ato de renúncia e a posse de seu vice, João Goulart. O autor aponta

para um consenso entre historiadores de que foi uma tentativa de “autogolpe”, mas o

motivo de sua renúncia não é o objetivo principal desse trabalho.

Para completar o cenário, no dia em que Jânio Quadros renunciou, João

Goulart encontrava-se em Cingapura, voltando de uma missão diplomática-comercial

na China Comunista. Imediatamente, os ministros militares de Quadros aqui no

25

CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a ditadura militar. 2 ed. reform.São Paulo. Ed Moderna, 2004

(Coleção Polêmica), p. 13 a 40. O capítulo 1 desta obra traz o título: “Os presidentes da contradição”, em

referência aos governos de Jânio Quadros (1961) e de João Goulart (1961-64).

26 NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Ed.Contexto,2014, p. 32-33.

73

Brasil, por sinal, pertencentes ao grupo de coronéis do “Memorial” de 1954 (que

levou à queda de Goulart à frente do Ministério do Trabalho durante o governo de

Getúlio Vargas) e ao chamado grupo da “linha dura” das Forças Armadas, vetaram

a posse de João Goulart como presidente. A junta militar tentou dar andamento a um

processo golpista, notificando o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri

Mazzili (sucessor legal na presidência no caso da ausência do presidente e do vice-

presidente) e arquitetando o impeachment de Jango. Mas a junta deparou-se com a

oposição da Câmara dos Deputados, tanto dos setores nacionalistas e esquerdistas;

como de várias lideranças conservadoras. O Legislativo federal não abriu mão do

cumprimento da Constituição. Até mesmo a UDN e a ala conservadora do PSD,

apesar da oposição a Goulart, não estavam dispostos à ruptura institucional,

respeitando a Constituição (naquele momento) e temerosos de que uma alternativa

golpista poderia empurrar o país a uma situação política muito instável e gerar uma

escalada exponencial de conflitos. Para Argelina Cheibub Figueiredo (1993), as

elites conservadoras queriam manter o jogo político-eleitoral visando as eleições

presidenciais de 1965.

A isso, somou-se a resistência popular ao veto que teve no Rio Grande do Sul,

governado pelo cunhado e correligionário de Jango – Leonel Brizola – seu principal

expoente, agregando a multidão e organizando a milícia estadual para um eventual

combate contra as tropas militares. Em 27 de agosto, Brizola apoderou-se das

instalações da Rádio Guaíba, de Porto Alegre, fazendo ali sua base para a campanha

radiofônica em defesa da Constituição e da posse, na chamada Rede da Legalidade.

Os discursos foram retransmitidos para outras partes do país em ondas curtas. Até 31

de agosto, de acordo com NAPOLITANO27

, a possibilidade de uma guerra civil era

concreta devido às movimentações de tropas entre São Paulo e o Rio Grande do Sul e

as ordens de bombardear a sede do governo gaúcho - o que só não ocorreu - pois

além da postura do governador Brizola, o general Machado Lopes (comandante do

III Exército) e os sargentos, ficaram ao lado da legalidade e da Constituição.

27

Id., Ibid., p. 34.

74

Também aderiram à campanha a favor da legalidade o governador de Goiás,

Mauro Borges, setores da sociedade civil como a imprensa (exceto O Globo e a

Tribuna da Imprensa, este último de propriedade de Carlos Lacerda). Sindicatos

fizeram manifestações e greves pelo país, A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil),

a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e a UNE (União Nacional dos

Estudantes) também se posicionaram a favor da legalidade.

O marechal Henrique Teixeira Lott, candidato derrotado por Jânio, em 1960, e

personagem fundamental na “Novembrada” que garantiu a posse de Juscelino, em

1955, volta à cena novamente, ao lançar um manifesto à Nação defendendo a

legalidade. Lott seria preso em seguida, mas a sua declaração expôs as divisões

existentes nas Forças Armadas. O general do III Exército, sediado no Rio Grande do

Sul, Machado Lopes, aderiu a Brizola. Caso o III Exército obedecesse às ordens dos

ministros militares de bombardear a sede do governo gaúcho - o Palácio Piratini - o

Rio Grande do Sul se tornaria palco de uma luta fratricida. Mas não foi só ali. As

manifestações populares nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, junto às

articulações do Congresso Nacional - em Brasília - na busca por uma solução

conciliatória, contribuíram para o isolamento dos ministros militares e para a

chegada de João Goulart, que entraria ao Brasil pelo Rio Grande do Sul, após passar

pela Ásia e pela Europa, devidamente informado sobre o desenrolar dos

acontecimentos no Brasil, naqueles dias de agosto/setembro de 1961.

Se os ministros militares fracassaram na tentativa de um golpe e em impedir a

posse de Jango pelo menos conseguiram, desde os primeiros momentos após a

renúncia de Quadros, encaminhar os diálogos na direção de se mudar o sistema de

governo do presidencialismo para o parlamentarismo, limitando-se os poderes

presidenciais de Jango. A solução parlamentarista foi conseguida com facilidade,

afastando-se o fantasma da guerra civil. João Goulart finalmente chegara ao Brasil no

aeroporto de Porto Alegre, aguardado pela multidão, porém Jango não correspondeu

entusiasticamente à euforia popular. Seguiu para Brasília, sendo empossado

presidente em 08 de setembro de 1961. Aceitou a solução parlamentarista

demonstrando o que podemos considerar um traço do seu perfil: conciliatório e dado

75

ao diálogo. Segundo VILLA28

, Jango tomou posse por puro oportunismo, ele desejava

a presidência a qualquer modo. Ao contrário de alguns de seus aliados políticos,

como o próprio Leonel Brizola, que se opôs com mais veemência ao

parlamentarismo. De qualquer forma, interesses políticos foram acomodados e a

direita mais radical ficou isolada. Para VIEIRA,29

Jango chegou à Presidência da

República através da pressão exercida por certos deputados e senadores, pelo apoio

sindical de São Paulo, pela manifestação da Igreja Católica em Porto Alegre e em

São Paulo e, por fim, pela mobilização dirigida pelo governador gaúcho Leonel

Brizola. Conforme o mesmo autor, o Congresso Nacional tornara-se um centro de

decisões, fabricando o recurso institucional do parlamentarismo, cuja vontade foi

prontamente aceita por parte dos três ministros militares. Com a emenda do

parlamentarismo, as Forças Armadas garantiram o desembarque de João Goulart em

solo nacional. Em um país com forte tradição de centralização no Poder Executivo, o

fato do Legislativo federal ter sido tão protagonista na crise da renúncia de Jânio

chega a chamar a atenção.

28

VILLA, Marco Antônio. Ditadura à brasileira – 1964 a 1985: A democracia golpeada à esquerda e à

direita. São Paulo: Leya, 2014. p. 28.

29 VIEIRA, Evaldo. A ditadura militar: 1964-1985: (momentos da República brasileira). 1.ed. São Paulo:

Cortez, 2014, p.22 e 23.

76

2.2- De 1961 a 1964: período Jango - o governo que, ao ser

derrubado, daria lugar ao regime militar

João Goulart - o Jango. Vice-presidente do Brasil entre 1956 a 1961 (durante o governo

Juscelino Kubitschek. Novamente eleito vice- presidente para o governo de Jânio Quadros. E

presidente do Brasil entre 1961 a 1964, após a renúncia de Jânio.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Goulart

Para o governo de João Goulart será feita aqui não só uma análise da

participação dos militares durante o tempo de seu governo no sentido strictu-sensu,

mas uma abordagem mais geral e ampla, contemplando aspectos políticos,

econômicos e sociais do período. Isso porque é fundamental ter uma visão mais

completa do período Jango para melhor compreender o contexto, os fatores e os

processos que levariam à queda daquele presidente.

77

O governo Jango caiu em 31 de março de 1964, através de um golpe articulado

por vários setores militares e civis, sendo sucedido por um regime autoritário que

perduraria por praticamente 21 anos até 1985. O regime militar instaurado teve

sucessivamente a passagem de cinco generais-presidentes ocupando o cargo máximo

da Nação sem a participação da sociedade no processo de escolha. Toda a dinâmica

eleitoral de disputa de eleições presidenciais, com candidatos e diferentes partidos

políticos, que vinha ocorrendo desde 1945, foi destruída. Foram, na verdade, quase

três décadas em que o eleitorado brasileiro esteve impedido de escolher o chefe do

Executivo federal, fato este que viria a acontecer de novo somente em 1989.

O período de João Goulart como presidente pode ser dividido em duas fases

principais (DIOGO, 2012): a parlamentarista – entre setembro de 1961 a janeiro de

1963; e a presidencialista - entre janeiro de 1963 a março de 1964.

Todavia, indo-se além dos fatos históricos e entrando numa discussão mais

acadêmica, o governo de João Goulart tem sido sempre apresentado nos trabalhos,

estudos, pesquisas e análises, em que há como foco a abordagem do regime militar

brasileiro de 1964, como o principal ponto de partida para a compreensão do período

marcado pelo protagonismo militar no poder central da Nação, que se estendeu por

aqueles 21 anos, e deixou profundas marcas no Brasil até o presente. Isso não é por

acaso, pois Jango tomaria medidas que desencadeariam reações da direita

conservadora, que em nome de uma verdadeira “paranóia” anticomunista, evocavam

os valores da moral, da família, dos bons costumes e dos hábitos cristãos-ocidentais,

que também serviriam de “combustível” para o golpe de 1964.

Isso não será diferente neste trabalho. Após apresentar o histórico da

participação dos militares ao longo das diferentes fases da República brasileira, a

partir de 1889, chega-se ao ano de 1961. O mandato de Jânio Quadros, eleito

presidente nas eleições de 3 de outubro de 1960, se inicia com a previsão de durar

cinco anos, como determinava a Constituição da época. Jânio deveria governar até o

início de 1966. Mas ocorre a precoce renúncia deste, ainda em agosto de 1961.

Em seguida, criou-se uma complicadíssima situação política, que além dos

riscos de desfecho através de um golpe militar também, verdadeiramente, poderia ter

levado o país a uma guerra civil, que só foi evitada pela solução parlamentarista,

permitindo a posse do vice João Goulart (com poderes reduzidos) após uma

78

verdadeira “odisséia”, desde a Ásia, passando pela Europa, até que ele finalmente

pudesse entrar no Brasil (pelo Rio Grande do Sul, estado natal de Jango e principal

baluarte da resistência legalista de então, governado pelo seu cunhado Leonel

Brizola).

Empossado presidente, em setembro de 1961, como determinava a

Constituição de 1946, inicia-se o período de Jango no governo do Brasil. Para

NAPOLITANO (2014)30

, o sucesso eleitoral da chapa “Jan-Jan” (Jânio-Jango), para

presidente e vice, respectivamente (já que os votos de ambos os cargos eram em

separado), trouxe um efeito colateral bastante sério: foi a “porta de entrada” para a

crise instalada após a renúncia de Jânio. O presidente eleito em 1960, provavelmente

deve ter apostado em seu poder pessoal, em seu sucesso eleitoral e na antipatia que

Jango, seu vice, causava à direita conservadora. Rompido com Jango desde os

primeiros momentos de seu governo, Quadros apostava nos fatores acima e, com sua

renúncia, provavelmente acreditava que seria reconduzido ao poder. Porém tal não

ocorreu e Janio Quadros estava fora da presidência.

O drama estava longe do fim, a aliança golpista, englobando civis e militares,

que já tinha tido um papel relevante na crise política que levou ao suicídio de Getúlio

Vargas, em 1954, e que procurara tumultuar novamente o cenário político ao tentar

impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, levantava suas garras novamente.

O que eles não conseguiriam em agosto/setembro de 1961, finalmente obtiveram em

março de 1964, através de um golpe, que apesar dos arranjos e desarranjos, encontros

e desencontros, imprevistos e improvisações, tinha articulação e apoio suficientes,

inclusive fora do país, para alijar Jango do poder.

Algumas perguntas colocadas por NAPOLITANO(2014),31

também são aqui

estabelecidas neste trabalho ainda que com uma ou outra palavra diferente:

30 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 31.

31 Id., Ibid., p. 13.

79

a) O governo Jango teve algum diferencial político e ideológico

marcante para a história do Brasil?

b) Se positivamente, com que intensidade, grau e importância?

c) Houve verdadeiramente uma possibilidade real de se mudar o Brasil,

marcado pela exclusão política e desigualdade social?

d) Ou seu governo foi apenas um jogo de cena demagógico e populista

(na pior acepção deste termo) em que uma pretensa ofensiva das esquerdas só serviu

para alimentar o autoritarismo reacionário das direitas?

Muitas são as questões e pretende-se aqui procurar discuti-las, aprofundá-las

um pouco, porém responder e divagar sobre tais perguntas também não é o objetivo

principal deste trabalho, mas as questões aqui apresentadas sobre o governo Jango

poderão servir a futuros trabalhos e análises sobre aquele momento da história

brasileira que, apesar de relativamente curto (foram dois anos e meio com João

Goulart na presidência, somando-se as fases parlamentarista e presidencialista) ainda

traz muitas indagações por conta de que seu fim se deu através de um golpe que

inauguraria um período de duas décadas de regime militar. Então não há pretensão

de se aprofundar e esgotar tal debate aqui, mas não será deixado de se adentrar nesta

discussão.

Alguns títulos de capítulos das obras, que trataram sobre o regime militar

brasileiro, ao abordarem o governo Jango podem ser bastante sugestivos. Marcos

Napolitano traz, no mesmo livro, o seguinte título para o capítulo referente à João

Goulart: “Utopia e agonia do governo Jango”32

, levantando várias questões,

elencadas acima, sobre o governo anterior ao regime de 1964, para depois tratar

sobre o período. O autor aponta as diferentes concepções e interpretações sobre o

governo de João Goulart. No campo da Ciência Política de viés historiográfico há a

confirmação de uma falta de consistência política que parecem ter sido mais

determinantes para a queda de Jango do que a conspiração de seus opositores

direitistas. Para Napolitano:

32 Id., Ibid., p. 13 - 42.

80

“Desde a teoria da “paralisia decisória”, fruto das coalizões partidárias

frágeis propensas a crises políticas fatais, até a teoria da “radicalização dos

atores”, no debate sobre as reformas, alimentada pela inapetência do presidente

Jango e do seu governo como um todo, os veredictos dos cientistas políticos desviam

o foco da luz do golpe em si, iluminando as inconsistências políticas anteriores que o

alimentaram. Em suma, o “estado da arte” desta discussão parece apontar para a

(ir)responsabilidade das esquerdas na crise que culminou com o golpe das direitas.

Nesta perspectiva, se houve alguma importância histórica no governo Jango

ancorada em um projeto minimamente coerente e consistente, ela se diluiu na

fragilidade política da governabilidade, palavra sempre cara à ciência política” 33

Ou seja, o fim do governo João Goulart foi causado fundamentalmente por

erros do próprio governo, erodindo as possibilidades de qualquer tipo de conciliação,

ou solução, como ocorrera em 1961 após a renúncia de Jânio Quadros. É como se o

governo Jango tivesse adotado uma tática “suicida”, a tal ponto que o papel dos

conspiradores da direita seja até minimizado.

Marco Antônio Villa (in: NAPOLITANO, 2014, pág.15), apresenta uma grave

definição sobre Jango e seu governo, comparando-o a uma “ópera bufa” que dividiu

o país e destruiu vinte anos de conquistas democráticas. Sem o final “grandioso” de

Getúlio Vargas, seu padrinho político, Jango saiu de cena pela “porta dos fundos”,

através da fronteira com o Uruguai. VILLA (2014), em sua obra: Ditadura à

brasileira – 1964 a 1985 – A democracia golpeada à esquerda e à direita, abordou o

regime militar brasileiro partindo, desde a breve estada de Jânio Quadros no poder e

o início do governo de João Goulart - em 1961 - até o final do regime militar

brasileiro, em 1985. O autor desenvolve o livro na sequência cronológica dos anos.

Obviamente, os anos de Goulart (1961-1964) são tratados no início da obra, no

capítulo 1, entre as páginas 16 a 55. Pelo título do livro, já se percebe nitidamente

que o autor não responsabiliza somente a direita conservadora, mas também as

esquerdas pela queda da democracia brasileira. Como não podia deixar de ser, a

figura do presidente João Goulart não foi redimida pelo autor. Pelo contrário, durante

33 Id., Ibid., p. 16.

81

a abordagem dos anos de Jango, Villa destacou um lado negativo daquele presidente,

como sendo um político oportunista (se distanciando da visão predominante de que

Jango era um político moderado e conciliador), que aceitou a solução parlamentarista

de 1961 para tomar posse de qualquer jeito. Depois, durante a fase parlamentarista,

Villa destaca que desde o princípio do parlamentarismo, Jango procurou esvaziar o

novo sistema, de olho em vantagens políticas futuras que pudesse obter. Assim foi,

pelo decorrer de 1962, em que gabinetes enfraquecidos, por interesse de Goulart,

selaram a sorte do parlamentarismo e precipitaram a antecipação do plebiscito sobre

a escolha do sistema de governo para janeiro de 1963.

Uma vez reestabelecido o presidencialismo após o plebiscito, Villa ressaltou

que Jango não teria mais desculpas para enfrentar a crise econômica de então. No

referente à reforma agrária, foi apontada uma nova crítica à Goulart que teria

começado a culpar os produtores rurais pela alta da inflação, pois a produção de

alimentos era insuficiente para abastecer as cidades, em franco crescimento

populacional, devido às migrações inter-regionais. O latifúndio era a causa da

carestia e do desabastecimento, aumentando os preços e a inflação (o que era

verdade). O governo argumentava que o aumento na produção de alimentos forçaria

à queda dos preços (o que também procede). A crítica, para Marco Antônio Villa, é

que uma mudança estrutural de tal magnitude não levaria, a curto prazo, à queda dos

preços dos alimentos. Por fim, outras ressalvas do autor foram: a do “sonho”, por

parte de Jango, de poder concorrer à reeleição; e a manobra, vista também como

oportunista, no episódio da tentativa da decretação do Estado de Sítio, em outubro de

1963, em que Jango teria a possibilidade de se livrar de adversários políticos, como o

governador da Guanabara, Carlos Lacerda, e promover uma espécie de “autogolpe”,

similar ao que ocorrera em 1937.

Júlio José Chiavenato(2006)34

, como já indicado, trouxe como título de

capítulo: “Os presidentes da contradição” referindo-se a Jânio Quadros e a João

Goulart em seu livro. No que concerne a Jango, o autor indica, como a marca

principal de seu governo, as tentativas de reformas. Por ter sido ministro do Trabalho

34

CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p. 13 a 40. No capítulo 1: “Os presidentes da contradição”,

especificamente sobre Jango é dedicado a maior parte do mesmo, p.17 a 40.

82

durante o último governo Vargas (1951-1954), por ter patrocinado um aumento de

100% no salário mínimo e pelo trato paternalista dado aos movimentos sindicais,

Jango era visto como uma esperança às classes trabalhadoras, ainda que seu discurso

fosse um tanto demagógico. A situação crítica do país em 1961 potencializava a

imagem de um novo “pai dos pobres”, herdeiro político de Getúlio Vargas. O Brasil

tinha 80 milhões de habitantes quando Jango chegou à presidência e 15 milhões de

eleitores. Mais de 80% da população não votava. A televisão era incipiente, a

imprensa bastante regionalizada e maioria do povo era despolitizada e sem acesso às

informações. Eram nas grandes crises, que abalavam o país, que se esboçava uma

participação. As circunstâncias de sua posse despertariam mais a população para a

política. A resposta do presidente foram as Reformas de Base. As Reformas

abarcavam quase toda a sociedade: áreas eleitoral, urbana, tributária, administrativa,

bancária, cambial, universitária e a mais polêmica e famosa – a agrária.

Chiavenato reforça, porém, que seria ingenuidade esperar medidas efetivas ou

radicais para atenuar a crise brasileira. Era um governo de conciliação, liderado por

um latifundiário, rico criador de gado que, no máximo, seria classificado como um

“humanista social-democrata”35

Mesmo no papel, devido ao crescimento das forças da esquerda, tais reformas

assustaram as elites. Por exemplo: no Rio de Janeiro havia 40 mil apartamentos

vazios que os donos se recusavam a alugar, aguardando a liberação dos aluguéis. A

Reforma Urbana propunha, entre outras medidas, a desapropriação dos imóveis

excedentes desocupados. Cada proprietário poderia ter um número limitado de

imóveis, sendo o excedente desapropriado e entregue a novos donos, que o pagariam

através de financiamento do Estado. Jango não contava com apoio político suficiente

para tal reforma, mas gerava “calafrios” nos proprietários e especuladores. Já a

Reforma Bancária previa a nacionalização de todos os bancos estrangeiros e a

participação dos bancários na sua direção36

35

Id., Ibid., p. 22.

36 Id., Ibid., p. 22.

83

As Reformas de Base estavam bem longe de “socializar” ou “comunizar” o

Brasil. Na verdade, Chiavenato, assim como vários outros autores, salienta que tais

reformas pretendiam inserir o capitalismo nacional em uma nova etapa de

desenvolvimento que trouxesse mais benefícios ao povo. A reforma agrária tinha um

caráter nitidamente burguês, pois o próprio sistema lucraria com a ampliação do

mercado interno. O que havia, para o governo, era que a péssima distribuição da terra

baixava a produtividade. Somente 2% da população possuíam terras e, destes 2%,

quase 60% eram latifundiários. 37

A Reforma Agrária de Goulart não era anticapitalista. Continuava claramente a

privilegiar a propriedade privada e muito menos ia contra o direito à propriedade. A

realização do processo de reforma agrária não previa “confiscos”, o que seriam

utilizados eram títulos públicos de valor reajustável. A expropriação da terra estava

prevista somente para as terras improdutivas ou inexploradas, estando assim dentro

da lei.

O problema é que o Brasil tinha toda uma herança histórica – escravista e

colonial – baseada em enormes latifúndios que, ao invés de se voltarem à produção

de gêneros agrícolas e alimentos, se tornaram símbolos do poder político e

econômico. Então, não é que a reforma agrária ameaçasse o próprio sistema

capitalista brasileiro, o imbróglio era a possibilidade de se liquidar um privilégio

político de poucos. Para o governo este privilégio era o que restava do coronelismo

no Brasil, em especial nas regiões mais atrasadas do Norte, do Nordeste e de Minas

Gerais38

. Lembremo-nos que Juscelino Kubitschek era mineiro e, seu partido - o PSD

- contava com importantes bases de apoio entre os grandes proprietários rurais. Aliás,

eram daquelas partes do Brasil que vinham grande número dos “caciques” políticos.

E a burguesia financeira e industrial? Estes setores das elites se posicionariam

contra o governo Jango por receios às alterações que pudessem ocorrer no modelo

dependente da economia brasileira. Muitos de seus temores vinham da possibilidade

37

Id., Ibid., p. 25.

38 Id., Ibid., p. 26.

84

da nacionalização de vários setores, pavimentando uma guinada nacionalista na

política externa e mexendo nas relações com o capital norte-americano. A burguesia

enxergava em Goulart um “amigo dos comunistas” que pretendia fazer do Brasil uma

“república sindicalista”.

Edgard Luís de Barros em: “Os governos militares” (1998) 39

não chega a

dedicar um capitulo ao governo Jango, mas coloca uma interessante interpretação

sobre as “reformas de base” que, para o autor, em si mesmas não tinham caráter

revolucionário e muito menos socialista. O que ocorria era que, por conta da urgente

necessidade do desenvolvimento nacional, o Brasil necessitava de medidas

inadiáveis para rever seu projeto de modernização e, ao mesmo tempo combater a

inflação e às dificuldades econômicas do início da década de 1960. Um crescimento

sólido e passível de sustentar-se passava pela redistribuição da renda e da estrutura

fundiária. Esta agenda de mudanças necessárias e inadiáveis agregou as esquerdas e

também as reivindicações da sociedade por maior participação política,

democratizando a sociedade. Barros também fez críticas ao período anterior a 1964

argumentando que o jogo político-partidário era altamente manipulatório, sujeito a

clientelismos, permitindo a manutenção de certos privilégios e estruturas arcaicas,

mas havia brechas para as reivindicações democráticas, por conta da urbanização e

da industrialização em curso, em que, sobretudo, as classes trabalhadoras urbanas

(apesar das manipulações a que estivessem sujeitas), dentro de um período que

genericamente pode ser chamado de “populismo”, buscavam maior participação

política e menor desigualdade social. Ainda que a democracia brasileira daquele

tempo padecesse de não poucas debilidades, práticas liberalizantes favoreciam a

efervescência e a expansão do pensamento democrático.

Seguindo-se pelo mesmo autor, o cenário eleitoral para a corrida presidencial

de 1965, traria como principais adversários – Carlos Lacerda, da UDN (União

Democrática Nacional), governador da Guanabara; e de outro lado – o ex-presidente

39 BARROS, Edgard Luiz de. Os Governos Militares. 6.ed. São Paulo: Contexto, 1998 (Repensando a

História). p.12,13,17 e 18.

85

Juscelino Kubitschek, do PSD (Partido Social Democrático), partido que além de não

ter nada de revolucionário, era herdeiro da máquina governamental do Estado Novo

varguista e contava com importante base eleitoral na zona rural. O PTB (Partido

Trabalhista Brasileiro) completava o quadro, com sua herança também varguista,

assentada no trabalhismo e no nacionalismo, com respeitável base nas camadas

operárias e trabalhadoras urbanas. Os privilégios das camadas dominantes, ao que

tudo indicava, não seriam rompidos de uma hora para outra, mas havia brechas para

a ampliação da participação democrática das camadas populares.

Entretanto, Barros ainda que muito rapidamente, salienta o triste fim do

governo Jango que não impôs uma resistência significativa contra o golpe que o

derrubou. Ele fez menção a um “acovardamento”, de cunho institucional, por parte

de Jango que contribuiu para a rápida derrocada de seu governo. Em suas palavras:

“A covardia institucional de João Goulart, a desorganização das esquerdas, a

falta de uma verdadeira consciência democrática e a passividade da população

permitiram a tragédia”.40

A tragédia foi o golpe de 1964.

Argelina Cheibub Figueiredo (1993), que aborda por inteiro o governo Jango,

e não o regime militar posterior, tem como título de sua obra: “Democracia ou

Reformas? Alternativas democráticas à crise política” , trazendo uma outra questão,

o leque de escolhas e de possibilidades na época: o governo Jango deveria ter talvez

“recuado” um pouco nas reformas para garantir um mínimo de consenso político e a

manutenção do próprio sistema democrático?; Ou ter ido mesmo “à fundo” nas

reformas? Isso porque, segundo ela, democracia e reformas se tornaram em objetivos

políticos conflitantes durante o governo de Goulart, ao ponto de um excluir o outro,

conforme os interesses das coalizões formadas.

O que a referida autora indica traz uma nova luz sobre o significado do

governo Jango: as escolhas que podiam ser feitas e o contexto da época. Hoje é

muito fácil para nós culpar ou inocentar, maximizar ou minimizar, a importância de

determinados atores políticos num certo momento histórico. Afinal, são mais de

cinquenta anos que se passaram do governo Jango e do golpe de 1964. Se voltarmos

40 Id., Ibid., p. 18.

86

às reflexões de Napolitano, de Villa, de Chiavenato, de Barros, e de outros autores,

temos que tentar imaginar a “atmosfera” política daqueles inícios dos anos 1960 e

quais as alternativas e possibilidades que poderiam ter dado um desfecho diferente ao

governo de João Goulart.

Voltando-se à NAPOLITANO (2014),41

existiam diversos pontos ainda

difusos, e até confusos, no referente à história e a memória do governo Jango.

Segundo o autor, quando o regime militar entrava numa fase não só de distensão e de

abertura, mas também de desgaste e erosão de legitimidade, entre o final da década

de 1970 e início dos anos 1980, a esquerda nacionalista, derrotada em 1964, tentou

recuperar a imagem de João Goulart destacando o seu projeto reformista e a sua

vitimização frente uma feroz conspiração militar e civil articulada dentro do país e

também fora dele. Tal iniciativa da esquerda nacionalista, porém seria criticada pela

“nova esquerda” do final da década de 1970, que reunindo intelectuais e militantes,

serviria como base para a formação do PT (Partido dos Trabalhadores), partido este

que não apresentava um agrupamento político correspondente no período anterior a

1964 (o antigo PTB originara-se do nacionalismo e do trabalhismo getulista). Na

verdade, o partido que melhor corresponderia ao “velho” PTB na “Nova República”,

iniciada em 1985, seria o PDT (Partido Democrático Trabalhista), fundado por

Leonel Brizola, nos inícios dos anos 1980. A nova esquerda apresentava uma visão

negativa do governo Jango assinalando uma ilusão histórica, na qual as esquerdas

acreditavam em mudar o país, sem apresentar bases sociais sólidas para tanto.

O saldo então parece ser negativo para Jango, porque as próprias esquerdas

não apresentam um consenso quanto à avaliação de seu governo. Há a ideia de uma

grande ilusão, de uma mudança que poderia ter ocorrido, mas não ocorreu.

Napolitano argumenta que, por este viés, chegar-se-ia à conclusão de que o governo

Jango só serviu para a direita autoritária justificar seu golpismo e apertar o controle

social sobre os trabalhadores. E também porque o modelo dito “populista” estaria

ficado ultrapassado devido à necessidade do desenvolvimento capitalista e ainda da

falta de consistência política e ideológica para as reformas.

41 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 14.

87

Interessante que há uma interpretação contrária a esta - no que se refere

especificamente não ao governo Jango, mas ao golpe de 1964 - em que as esquerdas

do início dos anos 1960, segundo Jacob Gorender (“Combate nas trevas” 1987 - in:

FICO, Carlos. Além do Golpe: versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura

militar. 2004, pag.34), teriam tido uma real oportunidade de vitória, dentro do

contexto que a luta de classes assumiu na época, com as mobilizações dos

trabalhadores e das massas em geral contra a ordem burguesa dominante,

encontrando ecos nas propostas das reformas de base. Gorender desenvolveu uma

bastante conhecida análise marxista do golpe de 1964, em que a luta de classes

assume um protagonismo nos episódios daquela época, salientando que o núcleo

burguês industrializante, somado aos setores ligados ao capital estrangeiro, via nas

reformas de base um risco para os seus objetivos e, por isso, viriam a formatar dentro

da coalização golpista militar e civil, a via da “modernização conservadora” para

que o Brasil trilhasse uma nova etapa em seu desenvolvimento capitalista, sem os

“embaraços” das lutas populares e trabalhadoras, e das disputas eleitorais. Aliás, a

discussão sobre o golpe de 1964 em si será retomada mais adiante. FIGUEIREDO

(1993) não trata sobre uma possibilidade de vitória das esquerdas, mas apontou que

as mesmas, adotando a bandeira reformista, procuraram maximizar seus objetivos,

através do retorno do sistema presidencialista, após plebiscito de janeiro de 1963,

enxergando no presidente João Goulart, com seus poderes plenos, a possibilidade de

avanços concretos em direção às reformas e a uma maior redemocratização do país.

O problema é que no decorrer dos meses seguintes, a situação política só viria a se

agravar e, nos inícios de 1964, as esquerdas criticavam Jango por sua postura de

conciliação com os grupos mais conservadores, enquanto estes últimos viam em

Jango um presidente que estaria a fomentar uma revolução comunista. O resultado,

conforme a autora, foi o de nenhuma democracia e nem reformas, e sim um golpe

que instauraria um regime militar.

Ao se retomar a questão de qual seria a importância do governo João Goulart

para o Brasil, é citada a famosa frase de Darcy Ribeiro em que Jango caiu “não por

defeitos do governo que exercia mas, ao contrário, em razão das qualidades dele”

42. Assim sendo, o governo Jango teria apresentado o mérito de trazer para a agenda

42 Id., Ibid., p. 16.

88

política brasileira um processo de revisão rumo à democratização da cidadania e da

propriedade, reiterando-se que estava mais para uma agenda do que para um sólido

projeto político de inclusão social, nacionalismo econômico e democratização

política.

Entretanto, o ambiente político profundamente conservador e excludente, a

tradição liberal-oligárquica elitista e antipopular, trouxe contra o governo Jango,

através dessa agenda política reformista, um consenso entre os grupos golpistas: o

golpismo histórico das direitas que já vinha desde o início dos anos 1950, marcado

pela obsessão anticomunista da Guerra Fria; assim como o golpismo de ocasião no

calor da situação política do governo janguista43

. No momento em que as esquerdas

buscaram transformar tal agenda em projeto político, a conspiração golpista, tanto a

de matriz histórica, como a de ocasião, se uniram de vez, solidificando uma aliança,

com componentes civis e militares, no final de 1963. O jogo de posições, tanto à

direita como à esquerda, inviabilizou eventuais acordos, coalizões e arranjos

políticos dentro das regras institucionais, tornando também praticamente impossível

uma saída democrática por conta de valores inconciliáveis. As questões que estavam

em jogo – o voto do analfabeto, nacionalismo econômico, a legalização do Partido

Comunista Brasileiro - não davam margens aos conchavos e soluções conciliatórias

ao estilo do que acontecera em 1961. Nota-se que, ao contrário de outros autores,

Marcos Napolitano não atribui à radicalização dos grupos o desfecho do governo de

Jango, mas sim à impossibilidade de entendimento dentro das regras do jogo político

daquele tempo. A interrupção violenta do debate político, dentro de uma agenda

reformista e com traços democratizantes deu lugar à afirmação, estabelecida a partir

do golpe civil-militar de outro modelo político e ideológico de sociedade e de

Estado, esboçado desde bem antes do golpe (podemos citar a ESG - Escola Superior

de Guerra, nesse sentido): a modernização socioeconômica do país e a construção, a

longo prazo, de uma democracia plebiscitária, tutelada pelos militares em nome do

43 Id., Ibid., p. 17.

89

“partido da ordem”44

. Em outras palavras, uma modernização conservadora e

centralizadora que traria e deixaria marcas profundas no território, nas paisagens, e

enfim no espaço geográfico nacional.

Dentro da questão da propriedade, FIGUEIREDO (1993) assinala que havia

consenso sim, e em um grande espectro de grupos, de que o latifúndio improdutivo

constituía um grande obstáculo ao desenvolvimento da agricultura e ao crescimento

econômico. Também havia consenso quanto à expansão do mercado interno que

seria acarretada pela reforma agrária. O problema era qual o grau de mudança? A

reforma agrária foi uma das principais, senão a principal, frente de luta institucional

do governo Goulart no Congresso, no ano de 1963. Havia uma colossal distância

entre a reforma possível no plano institucional e a desejada pelos movimentos

sociais.

Formalmente, nenhuma força política era contrária à reforma agrária (pelo

menos até o início de 1963)45

e tal reforma aceita pelo Congresso favoreceria

também a especulação. E não poucos membros do Congresso Nacional eram

latifundiários, ou ligados a eles. O impasse era que a maioria do Legislativo federal

não aceitava o pagamento em títulos da dívida, mas sim em dinheiro, invocando o

artigo 141º da Constituição de 1946. Algumas alas do PSD aceitavam a proposta

presidencial, mas exigiam um maior percentual de reajuste dos títulos para as

desapropriações (o limite era de 10%, defendido pelo PTB). Oliveira Brito, do PSD,

lançou a proposta de correção entre 30% a 50% dos títulos da dívida utilizados na

compra da terra pelo governo e o proprietário ficaria ainda com metade da terra

desapropriada. Na proposição de reforma agrária do PSD, as propriedades com mais

de quinhentos hectares só seriam desapropriadas se fossem improdutivas ou

exploradas em condições antieconômicas, além de prever o pagamento de

indenizações a títulos da dívida pública (este último um pré-requisito indispensável

44 Id., Ibid., p. 18.

45 Id., Ibid., p. 40.

90

para a reforma agrária), o que gerou reações do PTB. Mas em agosto de 1963, a

Convenção Nacional do PSD minaria a proposta de seu próprio deputado.

O PTB não abriu mão de seu projeto de emenda constitucional em realizar uma

reforma agrária abrangente, contrariando grupos centristas. Porém, em outubro de

1963, seu último projeto fora rejeitado. As esquerdas e grupos mais radicais

reformistas desejavam maximizar essa e outras reformas (SANTOS, 1981 in:

FIGUEIREDO, 1993, pag 196) Expressava-se a recusa do PTB através do que

denominou de lógica da ideologia de não aceitar nada menos do que a solução

“ótima”, ou seja, jamais fazer concessões (por exemplo, numa reforma um pouco

mais restrita, mas com possibilidades de ganhos e mudanças a médio e longo prazos).

Grupos da esquerda e reformistas radicais não estavam dispostos a ceder e, de forma

intransigente, as propostas de reforma agrária do Plano Trienal (concebido durante o

governo Jango) ou as apresentadas pelo Congresso, em especial a do PSD, foram

repelidas por tais grupos. A UDN, para variar, através de sua Convenção Nacional,

em abril de 1963, definiu-se contra a reforma agrária com o argumento de que a

Constituição é “intocável”.

O final do embate já sabemos – o golpe de 31 de março de 1964 – e a

aprovação do Estatuto da Terra, ainda naquele mesmo ano, sob o governo de Castelo

Branco (o primeiro general-presidente do regime militar), com o voto de

parlamentares do PTB e do PSD, após o 1º expurgo sofrido pelo Congresso. Ainda

que o Estatuto previsse o pagamento das desapropriações com títulos da dívida

pública, ele era muito mais moderado do que a proposta do moderadíssimo PSD,

privilegiando as grandes empresas agrícolas, e não o redistributivismo no campo. A

UDN - que só parecia saber ser “do contra” em quase tudo - se no governo Jango era

contrária às propostas de reformas, já no governo Castelo Branco, a despeito do

golpe que apoiara meses antes, colocou-se contrária à emenda constitucional da

reforma agrária que, aliás, estava longe, muito longe, daquela aspirada por boa parte

da sociedade anteriormente. Pode-se afirmar que o espaço geográfico brasileiro, em

cuja zona rural, é notória a histórica presença do latifúndio, poderia ter sido

modificado, até de forma substancial, dando lugar às propriedades menores

familiares, mas com potencial para abastecer o mercado interno em expansão e,

quem sabe, diminuído um pouco a velocidade da urbanização e das migrações inter-

91

regionais principalmente, do campo para a cidade, em especial do Nordeste para o

Sudeste. O triste final do governo Jango sepultou também a possibilidade de o Brasil

constituir geograficamente um espaço com paisagens marcadas por um campo

caracterizado por uma estrutura fundiária menos injusta e cidades com crescimento e

expansão menos caóticos, ou seja, enterrava-se a possibilidade de uma geografia que

pudesse refletir uma sociedade mais democratizada e menos desigual.

Tratar com certo descaso e negativismo o governo de João Goulart seria um

juízo precipitado e injusto. Voltando-se à questão levantada anteriormente sobre a

importância histórica do período janguista para o nosso país, há também de se prestar

atenção às outras esferas da sociedade, além da política: como a esfera cultural

(música, teatro e cinema). O Estado Novo varguista, pelo espectro da direita, já

iniciara a busca pela modernidade do Brasil sem perder a sua identidade cultural.

Esta almejada “brasilidade” no campo cultural também foi abraçada pelas esquerdas,

a partir da década de 1950, na tônica do “nacional- popular”. Exemplos disso foram a

Bossa Nova engajada, o Cinema Novo e a proposta já existente do Teatro de Arena.

Infelizmente não serão aprofundados os aspectos culturais à época do presidente

Jango, mas salienta-se que a efervescência no campo da cultura e das artes era uma

realidade concomitante ao cenário político.

O cinema, por exemplo, vivia o dilema de como se comunicar com as massas

populares e se relacionar com as elites. De um lado teve-se o filme O Pagador de

Promessas, de Anselmo Duarte, que ganhou o prêmio máximo no Festival de

Cannes, em 1962, que não “chocava” as plateias, já que ali a violência era

“simbólica”, em que o padre impedia o personagem principal – Zé do Burro – de

entrar na igreja com a sua cruz para agradecer ao salvamento de seu animal de

trabalho e estimação; de outro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha,

em 1964, que já trazia uma proposta de “chocar” o público (dentro da chamada

“estética da fome”), mostrando a dura realidade do Nordeste, da pobreza e miséria

nas zonas rurais e, em outros filmes, a realidade das favelas cariocas46

. Percebe-se,

neste último caso, a busca do Cinema Novo em retratar as mudanças que vinham

46 Id., Ibid., p. 25-26.

92

ocorrendo no espaço geográfico, nas paisagens e no território brasileiro – tratando de

temas como a realidade do Nordeste, ou a expansão crescente das periferias nas

bordas das maiores e principais cidades do país.

Voltando-se à política, se retrocedermos na linha do tempo, dez anos antes do

golpe militar, João Goulart havia sido ministro do Trabalho no segundo governo de

Getúlio Vargas (1951-1954). Getúlio já vinha sendo alvo constante das oposições,

representadas principalmente pela UDN, que nunca abrira mão da possibilidade de

uma ação golpista. Em 1953-54, o então ministro João Goulart mudou as relações

entre o Estado e os sindicatos, procurando mediar os conflitos entre capital e

trabalho. O acesso pleno de representantes dos sindicatos ao Ministério, somado ao

substantivo aumento dado ao salário mínimo (de 100%) pouco tempo após a “greve

dos 300 mil”, em 1953, fez com que Jango, em apenas seis meses que permaneceria

no Ministério, fosse visto como um dos maiores inimigos das direitas (atrás somente

do próprio Getúlio) e como um homem identificado como amigo dos comunistas

devido às suas intenções, de acordo com seus adversários, de transformar o Brasil

numa “República sindicalista”, assemelhando-se a algo feito pelo presidente Perón

na Argentina. Em fevereiro de 1954, João Goulart foi demitido do Ministério do

Trabalho após o já citado “Memorial dos Coronéis”, que contava com 82 signatários,

com o argumento que o aumento dado aos operários se distanciava da remuneração

dos militares, especialmente a dos soldados e das baixas patentes podendo levar a

uma subversão nas Forças Armadas. A direita se manifestava com os interesses

contrariados dos altos escalões militares.

Após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, João Goulart, mesmo já

afastado do governo, ainda contava com um respeitável capital político. Foi um dos

que receberam os originais da “Carta-Testamento” de Getúlio e concebeu a partir do

legado do falecido líder um projeto trabalhista e nacionalista que, apesar de genérico,

trazia pontos importantíssimos47

: defesa dos interesses da economia nacional;

melhoria do padrão de vida dos trabalhadores com ampliação da cidadania dos

mesmos; e a reforma agrária. Junto a esse projeto, o PTB foi ganhando cada vez mais

47 Id., Ibid., p. 29.

93

espaço nas eleições legislativas para o Congresso ocorridas no período republicano

de 1946 a 1964. O PSD, nascido também à sombra do getulismo procurou assumir

seu papel como fiador da ordem republicana, iniciada em 1946. Nasce a

“dobradinha” PSD - PTB que elegerá em 1955, Juscelino Kubitschek (PSD) para

presidente; e João Goulart (PTB) para vice-presidente.

Buscava-se uma maior estabilidade política que, mesmo assim, passaria por

tensões nos episódios de 1955; depois seguiu-se uma relativa tranquilidade nos anos

JK; a “dobradinha” sofreria um revés com a vitória de Jânio Quadros no pleito

presidencial de 1960, um político vindo de fora das grandes máquinas partidárias da

época; e, passados os episódios da renúncia de Jânio e a conturbada posse de João

Goulart, em 1961, a dobradinha viria a erodir de vez, em 1964, com a

“esquerdização” crescente do PTB e a articulação golpista das direitas, que minaria o

peso conciliador e moderado do PSD.

A fase parlamentarista de seu governo já traz uma indagação. João Goulart foi

empossado através de um golpe de Estado civil para evitar um golpe militar, em

nome da conciliação política. Os setores mais à esquerda se referiram à manobra

parlamentarista como um “golpe branco”48

. Da forma como foi implantado, na base

do casuísmo e da improvisação, o novo sistema prontamente seria sabotado, tanto

pela direita como à esquerda, a começar pelo próprio presidente. Jango foi

solapando o sistema parlamentarista: não se esforçou na indicação de San Tiago

Dantas, do PTB para chefiar o novo gabinete de ministros, após a saída do antigo,

chefiado por Tancredo Neves, para a disputa das eleições para o Congresso, em

1962. E depois, com gabinetes propositadamente fracos – o de Auro de Moura

Andrade, o de Brochado da Rocha e Hermes Lima – o parlamentarismo entrava

numa rota de liquidação. Em 6 de janeiro de 1963, o plebiscito (que fora antecipado)

realizado apontou uma vitória arrasadora do sistema presidencialista. Jango, com

poderes presidenciais plenos, iniciava a 2º fase de seu governo tendo, entre outros

desafios, o de enfrentar a crise econômica e alavancar um programa de cunho

reformista.

48 Id., Ibid., p. 35.

94

Com a volta do presidencialismo, a pressão da esquerda não-parlamentar

cresceria, organizada na Frente de Mobilização Popular (FMP), pela aprovação das

reformas de base, entre elas a agrária. Lançada por Brizola em 1963, a FMP buscava

por uma pressão popular ao Congresso e não por uma revolução sangrenta. O

Partido Comunista Brasileiro (PCB) era mais moderado ainda, apostando no

gradualismo das reformas. Talvez a ala esquerda mais radical, que poderia prever até

o uso da guerrilha, seriam as Ligas Camponesas, cujo principal líder era Francisco

Julião, deputado pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro). Julião, no discurso de

encerramento do I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores do Campo,

ocorrido em Belo Horizonte (novembro de 1961), cunhou a famosa palavra de ordem

que seria utilizada pelas direitas para ilustrar o radicalismo das esquerdas: “A

reforma agrária será feita na lei ou na marra, com flores ou com sangue”.49

Em 1963, o governo Jango lutava na frente político-parlamentar pela

aprovação das reformas, contra um Congresso essencialmente conservador. No

campo econômico, no combate à inflação e pela retomada do crescimento. Perdeu

ambas as lutas.

No campo econômico, o ilustre economista Celso Furtado elaborou o Plano

Trienal, pensado em dois tempos:50

o primeiro seria o controle da inflação e das

finanças públicas numa receita ortodoxa, até em sintonia com o FMI (Fundo

Monetário Internacional), com restrição salarial, restrição ao crédito e controle das

despesas públicas, embora Celso Furtado fosse ligado ao keynesianismo

desenvolvimentista. Com as reformas estruturais realizadas: administrativa, fiscal,

bancária e agrária - viria o segundo tempo do Plano Trienal com a retomada do

crescimento e do desenvolvimento a passos sólidos.

Contudo, não se concretizou um pacto social pelo Plano. Os sindicatos, em

especial a CGT (Comando Geral dos Trabalhadores), se colocaram contra o Plano

desde o início. O empresariado, através de suas associações e representações

49 Id., Ibid., p. 37, 38 e 39.

50 Id., Ibid., p. 39.

95

comerciais, não gostou da iniciativa governamental de controle de preços, algo visto

como “socializante” demais. Os industriais deram algum apoio de início, mas as

reivindicações salariais foram crescendo gerando inquietações nas associações

patronais. De acordo com SKIDMORE, 1971, pag. 359, in: FIGUEIREDO, 1993,

pag. 106): “embora a maioria dos brasileiros quisesse evitar a hiperinflação,

nenhum grupo – empresários, trabalhadores, funcionários públicos, militares –

queria começar a estabilização cortando suas próprias demandas”. Resultado: o

governo cedeu às pressões com a liberação do crédito e aumento de salários. O Plano

Trienal era abandonado definitivamente.

A crise militar e política teve um episódio com a rebelião dos sargentos

decorrente da negativa do STF (Supremo Tribunal Federal) em dar a posse aos

militares eleitos para deputados e vereadores nas eleições de 1962 (sobretudo os da

Força Aérea e da Marinha). Os rebelados tomaram conta das ruas e prédios públicos

de Brasília. O movimento foi controlado e os rebeldes presos, porém trouxe à tona

uma situação de insubordinação militar causando desconforto nos altos escalões das

Forças Armadas que desconfiavam das posições muito conciliatórias de Jango e o

viam como um caudilho golpista, que pretendia uma “República sindicalista”,

conforme apontou o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em entrevista ao Los

Angeles Times, em outubro de 1963, insinuando uma eventual ação golpista de Jango

e a influência brizolista nos setores subalternos das Forças Armadas, sugerindo uma

intervenção norte-americana no Brasil para “salvar” a democracia brasileira. Para

agravar mais a situação, João Goulart, ainda que hesitante51

, protocolou um pedido

de Estado de Sítio ao Congresso para possibilitar a prisão do governador Lacerda a

pedido de seus ministros militares. Contudo, a medida foi mal recebida pelo

Congresso. As direitas viam nisso a repetição dos episódios de 1937, que

implantaram o Estado Novo, e interpretaram como se fosse um “autogolpe”. As

esquerdas reagiram mal também, porque viam em Jango alguém que poderia se

afastar dos grupos reformistas e esquerdistas mais radicais através de tal medida

emergencial.

51 Id., Ibid., p. 42.

96

VILLA(2014), em sua obra destacou negativamente a tentativa de decretação do

Estado de Sítio por parte de Jango. Para o autor, apesar da nota dos ministros

militares de Goulart repudiando as declarações de Lacerda, os planos do presidente

eram, através do Estado de Sítio, em aproveitar a oportunidade para intervir em

alguns estados, substituir governadores, prender opositores e impor ao Congresso a

mudança constitucional que viabilizaria a sua reeleição. Em 4 de outubro, enviou o

pedido ao Congresso. Para Marco Antônio Villa, era a ocasião ideal para se desviar o

foco das greves e da escalada da inflação. Jango pretendia substituir os governadores

de São Paulo (Adhemar de Barros), da Guanabara (Carlos Lacerda) e de Pernambuco

(Miguel Arraes), decretando a intervenção daqueles estados. Assim Goulart se

mostraria “isento” tanto à esquerda como à direita. Seriam de novo os episódios de

1937 se repetindo? Em várias reuniões o Estado de Sítio teria sido exposto como um

primeiro passo rumo a um golpe de Estado, agora substituindo a linguagem fascista

pela esquerdista. De qualquer forma - sendo verossímil, ou não, tal versão do pedido

do Estado de Sítio - o fato é que, assim como Napolitano também havia colocado,

houve reações contrárias dos dois lados: pela esquerda - a União Nacional dos

Estudantes (a UNE), diversas organizações sindicais, os comunistas, a maioria dos

deputados federais do PTB e o governador Arraes; pela direita - a UDN e vários

outros governadores, principalmente Lacerda e Ademar. 52

Uma esquerda tida com revolucionária e agitadora, cada vez mais mobilizada.

Um Congresso conservador e as direitas militares e civis se mobilizando. Um

presidente se equilibrando num tênue fio pressionado pelos dois lados. Era o início

de 1964 no Brasil.

Revisando: no poder desde setembro de 1961, Jango propunha reformas

sociais, econômicas e políticas, que poderíamos aglutinar genericamente em um

conjunto que ficou conhecido como as “reformas de base”. De base porque eram

necessárias, àquele tempo, realizar reformas estruturais que seriam indispensáveis e

que dariam o pré-requisito necessário para que o Brasil encontrasse um caminho

firme e sólido rumo ao desenvolvimento, conciliando-se com a ampliação do

conceito de democracia e cidadania para a nação - saindo apenas da retórica -,

buscando-se um país menos desigual e mais democrático, sobretudo para as camadas

52 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 39 e 41.

97

populares. Mas Jango enfrentaria graves crises políticas, que remontam desde a sua

conturbada posse, já que os setores da direita conservadora enxergavam nas suas

propostas, um populismo em sua pior acepção, que prometia mais à população do

que realmente poderia dar. Além disso, Jango era visto como um administrador

incompetente, um político irresponsável, aliado dos comunistas e conivente com a

quebra da hierarquia que estaria “corroendo” as Forças Armadas ao longo daquele

tempo. O que muitos autores chamaram de “radicalização” se manifestava tanto na

direita reacionária, contrária às medidas que, na verdade, poderiam ampliar a

participação das camadas populares na cena democrática nacional e reduzir

privilégios de setores da elite; tanto na esquerda, em que principalmente seus setores

mais combativos, também desconfiavam das intenções de Jango.

O governo de João Goulart trilhava um caminho cada vez mais incerto e

imprevisível. Polarizações se cristalizavam. O período Jango foi marcado por uma

elevada politização: tanto nas cidades (casos das fábricas e indústrias, com os

sindicatos e outros movimentos dos trabalhadores buscando maior participação

política); e, no meio rural, com as Ligas Camponesas e a questão da concentração

fundiária que trazia empecilhos ao desenvolvimento do país. Nos quartéis, os

militares foram se dividindo entre os adeptos da legalidade; e aqueles que iam

desconfiando cada vez mais de Jango, dentro de uma visão anticomunista e também

de uma eventual ameaça à quebra da hierarquia e da disciplina militares. Um

programa amplo de reformas, as Reformas de Base: agrária, tributária, eleitoral e

universitária, estavam no centro da discussão política, entre os diversos atores

envolvidos, defendidas pelo presidente, sobretudo, no grande comício de 13 de

março de 1964, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, que contou grande

mobilização popular fazendo as esquerdas acreditarem em um governo nacionalista e

democrático.

Ao mesmo tempo, os conservadores, sob o signo de um anti-comunismo

visceral decorrente da Guerra Fria, da religião cristã, da moral, da família e dos bons

costumes, começaram a articular um movimento golpista com a participação dos

governadores da Guanabara - Carlos Lacerda, da UDN; o de Minas Gerais,

Magalhães Pinto – também da UDN; e o de São Paulo - Adhemar de Barros, contra o

governo federal. A "Marcha pela Família com Deus pela Liberdade", realizada em

98

São Paulo, seis dias depois, no dia 19 de março, com cerca de 500mil pessoas, foi a

principal resposta conservadora ao comício da Central do Brasil. Finalmente, em 31

de março viria o golpe que depôs o presidente João Goulart, dando fim a um período

democrático, que durou menos de 20 anos, e que traria novos protagonistas ao

cenário do poder no Brasil. Jango não conseguiria evitar o que muitos chamariam de

uma radicalização militar para a direita, que enxergava seu governo como

demagógico e populista. Contribuiria para isso, de acordo com CAMARGO in:

CAMARGO & GÓES (1984), o fato dos aliados de Goulart terem erodido, aos

poucos, a bases de apoio militar de centro, construídas pacientemente por JK que,

durante seu governo (1956-1960), havia atraído com habilidade alguns líderes

militares de alta patente que haviam participado do Manifesto dos Coronéis e das

campanhas do Clube Militar contra Vargas e os nacionalistas, refazendo-se assim

alianças e pacificando o Exército. A perda das bases de apoio militar a Jango

desfizeram-se de vez com a Revolta dos Marinheiros, também em março de 1964,

vista como uma subversão da hierarquia pela alta oficialidade de então.

Imagem da grande concentração de pessoas para o comício da Central do Brasil, realizado em

13/03/1964.

Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/comicio-central-do-brasil?context=latest

99

Manchete do jornal Última Hora, de 14/03/1964, sobre o comício realizado na Central do

Brasil, no Rio de Janeiro, no dia anterior, que contara com a presença do presidente João Goulart,

entre outros.

Fonte: https://blogdotarso.files.wordpress.com/2015/03/ultima-hora-jango.jpg

100

A Marcha da Família com Deus pela Liberdade, São Paulo, 19/03/1964

Fonte: https://historiativanet.files.wordpress.com/2011/11/marcha-da-familia.jpg

Uma outra imagem da mesma marcha de 19/03/1964

http://operamundi.uol.com.br/media/noticias/Marcha+da+familia+2.jpg

101

Assim, encaminhava-se uma situação que desembocaria no golpe militar de 31

de março de 1964. Nesta época o Exército, ao contrário de 1955, era uma corporação

preparada para tomar o poder, de acordo com a referida autora, devido à existência

da ESG (Escola Superior de Guerra) além da aproximação de civis e militares se

preparando para funções públicas e políticas, função esta realçada pelo IPES

(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) cristalizando um projeto baseado em

"segurança-desenvolvimento" de orientação anti-populista.

Em março de 1964, o clima de agitação e tensão políticas era nítido. A

identificação dos dois lados em confronto estava mais do que explícita. Muitos

autores utilizaram o termo “radicalização” - em relação aos grupos ou aos atores

(políticos, econômicos e sociais) envolvidos - para descrever e explicar tal processo.

Com certeza, seguindo-se por CHIAVENATO (2006), havia uma polarização: de um

lado, o governo, apoiado por nacionalistas e pelas esquerdas, esperançoso na força do

povo e confiante na capacidade de mobilização dos sindicatos; de outro, as elites

econômicas e a direita política, juntas, patrocinadas pelo capital estrangeiro. No

meio, estava a classe média: os seus setores mais politizados alinhavam-se com a

plataforma reformista: os mais conservadores, temerosos da “comunização” do país,

aceitavam o discurso da Igreja e a propaganda direitista. Os militares seriam o “fiel

da balança” nesta crise.

O presidente João Goulart estava isolado politicamente, mas ainda dispunha de

popularidade. Após os insucessos na frente parlamentar na luta pela implementação

das reformas e do fracasso no pedido de decretação do Estado de Sítio, Jango não

tinha muitas opções a não ser o de se aproximar da “política das ruas”, o que foi

recebido por entusiasmo pelos setores esquerdistas. O maior exemplo deste

movimento de Jango foram os comícios pelas reformas, realizadas em 13 de março,

na Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Apesar de não ser mais efetivamente a

capital federal, a metrópole carioca era ainda um centro vital na política brasileira.

Naquele comício, subiram ao palanque o próprio João Goulart, além de Leonel

Brizola e Miguel Arraes. Foi um extraordinário sucesso popular: o presidente assinou

os projetos da Reforma Agrária e da nacionalização do restante das refinarias

estrangeiras.

102

A reforma agrária que Jango propunha considerava passível de expropriação as

propriedades rurais improdutivas de mais de 500 hectares localizadas a até 10

quilômetros das margens das rodovias e ferrovias. E também propriedades situadas

num raio de 10 quilômetros das represas federais. Não havia dúvidas quanto ao

projeto. A intenção de Jango era viabilizar a reforma agrária a partir das terras mais

valorizadas, próximas aos principais centros de consumo, para facilitar o escoamento

da produção de alimentos. Ou seja, ela começaria a ser realizada basicamente nas

regiões Sudeste e Nordeste, e não pelos estados amazônicos da região Norte.

Durante o comício, Leonel Brizola, ao tomar a palavra sugeriu a convocação de

uma Assembléia Nacional Constituinte, para compor um Congresso formado por

“camponeses, operários, sargentos e oficiais nacionalistas.”

Outras reformas que foram lançadas no comício e que causariam mais reações

às elites eram: a Eleitoral, com a extensão do direito de voto aos analfabetos e aos

soldados, incomodando a alta hierarquia militar; e a da Constituição, que daria

poderes ao presidente para legislar e ainda estabelecia o plebiscito popular para que,

se necessário, o povo referendasse as propostas que o Congresso bloqueasse.

O comício provocou reações imediatas dos dois lados. As reformas propostas

foram encaminhadas por Jango ao Congresso em 15 de março. O presidente conhecia

a dimensão da terrível crise política e institucional que o Brasil atravessava. Ele

próprio disse ao jornalista Antônio Callado que “o máximo que me pode acontecer é

ser deposto. Não renunciarei nem me suicidarei”53

. A referência era com relação a

Jânio Quadros e a Getúlio Vargas. Todavia se Jango sabia do perigo que o seu

mandato corria, avaliou mal a sua capacidade de resistência. Contando que poderia

obter amplos poderes no Congresso, não acreditava que as oligarquias pudessem de

fato depô-lo do poder. Conforme CHIAVENATO (2006): “(...) nada me acontecerá

porque meu dispositivo militar é excelente. Assis Brasil me garantiu que, ao meu

comando, o Exército me seguirá (...) governarei somente com o apoio do povo”54

.

53

In: CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p. 27.

54 Id., Ibid., p. 27.

103

Assis Brasil era o chefe do Gabinete Militar de Jango. Ambos sabiam os riscos que o

governo sofria, mas aparentemente se enganaram. Ou superestimaram o “dispositivo

militar”, ou subavaliaram a conspiração golpista.

Naquele “idos para os fins” de março, somados aos ataques veiculados pela

imprensa e a pressão de grupos políticos conservadores, os militares se uniram pela

“defesa da legalidade”. Quase uma centena de generais reformados assinaram um

manifesto que expressava que os militares tinham o dever de defender o presidente

“dentro da lei”, ou seja, as Forças Armadas já não davam garantias de que ainda se

sentiam obrigadas a defender e preservar o governo. Tanto que o general Castelo

Branco, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, suposto homem de confiança do

governo, fez circular um manifesto entre os oficiais, preparando o Exército para

cumprir o “papel histórico das Forças Armadas”.55

55 Id., Ibid., p. 29.

104

2.3 – O golpe de 1964

Capa do jornal O Globo, de 01/04/1964 sobre o episódio ocorrido no dia anterior. O jornal trata o golpe

com a queda de Goulart como sendo o reestabelecimento da democracia.

Fonte: https://capitalismoemdesencanto.files.wordpress.com/2014/03/o-globo-golpe-de-1964.jpg

Em 2014, completaram-se 50 anos do golpe, do movimento militar de 31 de

março. E, após meio século, não há um consenso único sobre este momento histórico

do Brasil. Foram muitas as análises, explicações, interpretações, versões,

contraversões, etc,... – procurando-se esclarecer esse episódio da história nacional. A

dificuldade está em se estabelecer qual foi o principal (ou os principais) motivo(s)

do golpe. O fator (ou os fatores), que tiveram maior peso ou maior relevância, que

podem ter sido primordiais e fundamentais para a consumação do movimento de

1964. Aquilo que, se talvez não tivesse ocorrido, daria ao Brasil uma trajetória

histórica diferente.

Até em termos de nomenclatura, há uma importante questão, aqui retomada,

quanto ao se referir ao período de 1964 a 1985 da história brasileira. Foi uma

ditadura? Este termo estaria realmente correto? Segundo a professora Dra. Maria

Aparecida de Aquino, durante aula ministrada, em fevereiro de 2013, no curso de pós

105

Graduação de História:“O Estado Autoritário Brasileiro Pós-64: A Imprensa e os

Instrumentais de Repressão”, o termo ditadura é diferente de Estado Autoritário. O

caso brasileiro de 1964 não se aplicaria ao conceito tradicional de ditadura, pois não

ocorreu a ausência de partidos políticos. Na verdade, houve dois deles (embora seja

possível contra argumentar que estes dois partidos foram, por imposição, criados

artificialmente de “cima para baixo”): a ARENA (Aliança Renovadora Nacional) e o

MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Além disso, ao contrário do Estado

Novo (1937-1945), em que Getúlio Vargas poderia ser qualificado como ditador

(pois foi o único mandatário do Brasil naquele período de oito anos), no regime de

1964, não ocorreu uma ditadura, no sentido de que só teve um mandatário, ou que o

Legislativo estivesse permanentemente fechado, ou ainda em um partido único ou na

ausência de partidos. O que ocorreu no Brasil, a partir daquele ano, foi um período

marcado por um regime que restringiu e mutilou severamente: as liberdades; direitos

políticos; princípios federativos (com a exacerbação da esfera federal, em detrimento

das estaduais e das municipais; e as relações entre os três Poderes na federal

ressaltou em enorme peso ao Executivo), mas que, concomitantemente, teve os

seguintes fatos:

a) A passagem de cinco generais-presidentes, ao longo de praticamente 21

anos (no Chile, o general Augusto Pinochet permaneceu no poder seguidamente por

17 anos, de 1973 a 1990; no Paraguai, o general Alfredo Strossner, governou de 1954

até 1989 – 35 anos no total);

b) Dois partidos políticos- um governista (a ARENA); e um outro que seria

uma frente oposicionista “consentida”, que não poderia contestar frontalmente o

regime, o MDB, a partir do Ato Institucional nº 2, de 1965. Por mais que seja,

verdadeiramente, e sinceramente, criticável esta estrutura bipartidária e artificial, que

destruiu a dinâmica partidária do período democrático anterior (1946-1964), a

simples existência formal de um partido oposicionista, ainda que severamente

“engessado” já nos fornece alguma peculiaridade ao caso do regime militar brasileiro

dos anos 1960/70/80. Porque, em outros casos na história mundial, as ditaduras

levaram a um sistema sem partidos; ou a um partido único.

c) Por fim, o Legislativo, o Congresso Nacional, esteve funcionando durante

a maior parte deste período. Claro que o Congresso foi expurgado com a cassação de

106

mandatos e de direitos políticos. Também é inegável a descomunal preponderância

do Poder Executivo, restringindo grandemente o papel do Legislativo federal, que

muitas vezes serviu para “ratificar” decisões pré-estabelecidas pelo Executivo

federal. BARROS (1998), apontou que a existência de um Congresso, do Judiciário e

de eleições periódicas, foi uma “farsa” institucional mantida com vistas à

manutenção de uma imagem interna e externa do país, visando preservar a própria

instituição militar, que segundo alguns ufanistas do período, tinha a missão de

desempenhar o papel de “Poder Moderador”, numa alusão à prerrogativa restrita e

característica do monarca brasileiro durante o Período Imperial (1822-1889). Com

todas estas verdades, porém, o fato é que em outros regimes que ocorreram ao longo

da História, nem isso teve. O poder ficou centrado numa só pessoa, sem quaisquer

outras instituições, dando uma estranha peculiaridade ao caso brasileiro.

Assim sendo, Maria Aparecida de Aquino prefere utilizar o termo “Estado

Autoritário”, que iria mais de encontro ao que ocorreu no Brasil, e não o termo

“Ditadura Militar”. Mas as Forças Armadas “ditaram” as regras durante duas décadas

de nossa História. Então, se poderia falar numa ditadura, não de uma pessoa única,

mas na ditadura de uma instituição única, que foram os militares em seu conjunto?

Aliás, de acordo com Carlos Fico (2004) não há um consenso claramente definido se

os militares deveriam ser estudados separadamente como uma instituição autônoma,

isolada e marcada pela unidade; ou se os mesmos, inseridos na sociedade,

expressariam as contradições e as clivagens deste mesmo tecido social, refletindo

também a hierarquia social. O termo mais adequado seria Regime Militar ou Estado

Autoritário? Não pretendo aqui dar a solução definitiva, mas acredito que tais

questões, ainda que sejam de nomenclatura, devem ser refletidas sim, num contexto

de meio-século do que ocorreu em 1964. Para este trabalho, a preferência foi pelos

termos: regime militar ou; período/Estado autoritário, para designar essa fase

estendida entre 1964 a 1985.

Ainda de acordo com FICO(2004), os episódios que marcaram o golpe de

1964 são bastante conhecidos e não se caracterizaram por combates cruentos. O que

o autor destaca é o fato de que o golpe iniciou-se contra a vontade de seus

conspiradores. Neste rol estavam: oficiais-generais, oficiais superiores,

governadores, parlamentares e empresários. Já vinha de algum tempo a campanha de

107

desestabilização do governo de João Goulart, através de propaganda política,

sobretudo as do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto

Brasileiro de Ação Democrática), que viam o governo Jango como incompetente e

esquerdista.

Porém, o golpe dependia de uma iniciativa propriamente militar, mas

algumas evidências apontariam uma certa relutância por parte dos oficiais-generais

mais importantes (teria sido o caso, por exemplo, do general Castelo Branco), que

esperavam um erro de Jango, marcadamente ilegal, para convencer os comandantes a

marcharem sobre o Rio de Janeiro e Brasília. Claro, que haveriam os oficiais mais

arrebatados, com falas mais exaltadas a favor de uma “revolução”, além de políticos

que acorriam aos quartéis para deixar os militares a par da situação “gravíssima” do

país.

O golpe estaria marcado para alguns dias depois, mas, no dia 31 de março

de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Divisão Militar,

marchou com suas tropas de Minas Gerais, com o apoio do governador Magalhães

Pinto, partindo de Juiz de Fora (MG) em direção à cidade do Rio de Janeiro, tendo

rapidamente a adesão dos principais comandantes do país já no dia seguinte.

Contudo, num primeiro momento, o general Carlos Luís Guedes, comandante da

Infantaria Divisionária, em Belo Horizonte, preferiria deflagrar uma sublevação em

Minas Gerais. Percebe-se que o movimento golpista teve início efetivo em um dos

principais estados da federação brasileira: Minas Gerais. Além disso, outros dos dois

estados mais importantes do Brasil vinham se articulando contra o governo federal:

São Paulo, de Adhemar de Barros; e a Guanabara, de Carlos Lacerda. Neste último,

se localizava a cidade do Rio de Janeiro, que deixara de ser a capital do país quatro

anos antes. Então, o principal núcleo político-civil do golpe, deu-se em estados que

estavam entre os mais importantes do país, no que concerne ao seu peso econômico,

político e demográfico. Aparentemente, não houve nenhuma resistência

marcadamente significativa, por parte de algum outro governador, ou em outro

estado brasileiro.

À medida que Mourão marchava com suas tropas, os principais

conspiradores fizeram como movimento principal, uma série de telefonemas e

acertos, para impedir a ordem de prisão do general Castelo Branco, chefe do Estado-

108

Maior do Ministério da Guerra, emitida pelo próprio Jango. Apesar do predomínio de

uma postura discreta, até o golpe, o general Castelo Branco despontava, tardiamente,

como líder do movimento, em decorrência da aglutinação dos conspiradores em

torno dele, já que era necessária uma figura que retratasse uma liderança ao

movimento (tal projeção se deu também face à uma circular reservada do general,

criticando o governo Jango).

Ante a ofensiva de Mourão, Goulart caiu sem resistência, não acionando o seu

“dispositivo militar”, que supunha-se resistiria a iniciativas golpistas da direita.

Conforme FICO (2004), Jango teria tomado com facilidade o Palácio Guanabara,

onde a defesa do governador Carlos Lacerda era precária. Poderia ter dispersado as

tropas de Mourão, através do uso de poucos aviões bombardeiros. Mas o presidente

deposto, provavelmente, optou em evitar uma guerra civil ou avaliou que era inútil

resistir.

Aqui é especulado, especialmente numa eventual “guerra civil”, que a operação

“Brother-Sam” deveria entrar em ação - oferecendo apoio material, logístico e

militar aos conspiradores (CASALECHI, 2002) - sendo difícil prever as

consequências de uma ação mais direta dos Estados Unidos, apoiando os golpistas

num cenário de um conflito mais generalizado. Talvez o receio de um grande

derramamento de sangue, a falta de um apoio político e militar mais consistente a

Jango, ou um eventual conhecimento por parte do presidente sobre a orquestração da

operação “Brother-Sam”, levaram Jango a capitular tão rápido. Mas aqui isto são

apenas conjecturas. Muito se falou e já se citou sobre esta operação dos Estados

Unidos e sua participação no golpe de 1964, o que é perfeitamente possível sim,

devido ao contexto da ordem bipolar da Guerra Fria e ao fato da Revolução Cubana,

de 1959, ainda estar fresca à memória daquele tempo. Assim não há como imaginar

que os Estados Unidos se fizessem de “cegos e surdos” ao que acontecia no Brasil do

governo Jango, por conta da América Latina ser uma área de influência direta

estadunidense, face aos múltiplos interesses em jogo do período da Guerra Fria. Para

não ficar só nas palavras deste trabalho, cita-se, de novo, CASALECHI (2002), que

na sua obra, aponta que antes mesmo que Goulart deixasse o Brasil e Castelo Branco

tomasse posse, como presidente, a 11 de abril de 1964, o presidente norte-americano,

Lyndon Johnson, saudava o novo governo brasileiro. Para o mesmo autor, a presença

109

norte-americana na conspiração golpista era efetiva, assim como verdadeiramente a

existência da operação “Brother Sam”. Mais ainda, contrariando as previsões da

CIA, que acompanhava atenciosamente o governo Jango, não houve a temida “guerra

civil”, para a alegria do embaixador Lincoln Gordon:

“Vocês fizeram uma coisa formidável! Essa revolução sem sangue e tão

rápida! E com isso pouparam uma situação que seria profundamente desagradável

[sic] e de consequências imprevisíveis no futuro de nossas relações; vocês evitaram

que tivéssemos de intervir no conflito.”56

Na madrugada de 2 de abril, numa sessão bastante tumultuada, o presidente do

Senado, o senador paulista do PSD, Auro de Moura Andrade, presidia o Congresso

Nacional e formalizaria a declaração de vacância do cargo de presidente da

República a partir de uma comunicação enviada pelo chefe da Casa Civil de Goulart,

Darcy Ribeiro, que na verdade tratava exatamente do oposto: João Goulart ainda

estava em território nacional, tendo se dirigido ao Rio Grande do Sul, à frente de

tropas legalistas e ainda no exercício constitucional de suas funções. O deputado do

PTB da Guanabara, Sérgio Magalhães ainda tentou evitar a declaração de vacância.

Também o líder do PTB, Doutel de Andrade, no dia anterior, tentou convencer a

Câmara dos Deputados, para que Goulart tivesse tempo de reagir. Mas nada disso

aconteceu. As ações foram se precipitando de tal forma e Goulart seguiria para o

exílio no Uruguai. Reforça-se a sensação de que Jango aparentemente evitou um

confronto maior, saindo do país.

Aliás, alguns autores fizeram um julgamento severo do final do governo Jango:

BARROS (1998) utilizou - como já apontado antes no tópico anterior deste capítulo -

o termo “covardia institucional” ao citar rapidamente a postura de Jango com o

golpe. A isto, o autor somou também a desorganização das esquerdas, a falta de uma

verdadeira consciência democrática e a passividade da população que permitiram a

tragédia institucional. Gostar-se-ia aqui de acrescentar que a passividade da

população também foi decorrente da força, nada desprezível, de setores mais

conservadores da imprensa, em especial com relação às classes médias que vinham

perturbadas pela situação econômica e levadas pelo medo anticomunista. Além da

56 CASALECHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo. Contexto, 2002 (Repensando a

História), p.108.

110

atuação de organizações empresariais, que podem não ter sido decisivas sozinhas,

mas que deram sua contribuição nas articulações conservadoras ao incrementar uma

propaganda política e desestabilizadora do governo Jango, tendo importante apelo

nos estratos médios da sociedade através do IPES e do IBAD, identificados por

DREIFUSS (in: FICO, 2004, pag.35), como representantes dos interesses de um

“bloco multinacional e associado”, que não encontrava, à época, uma

correspondente liderança política.

No dia 2 de abril, uma junta militar denominada de "Comando Supremo da

Revolução", composta pelos ministros da Marinha, da Aeronáutica e o da Guerra

(que era o general Artur da Costa e Silva), assumiu o controle da nação brasileira

sendo a Presidência da República entregue a Ranieri Mazzili, presidente da Câmara

dos Deputados. O poder de fato, estava no Rio de Janeiro, ex-capital federal havia

quatro anos. Costa e Silva, a despeito de Mazilli, autonomeou-se, ainda no dia 1º,

comandante do “Exército Nacional”, assumindo a chefia do Comando Supremo da

Revolução. O Comando teria uma decisiva reunião com os governadores que

apoiaram o golpe, precisamente no dia 3 e, à tarde do mesmo dia, no Palácio

Guanabara, chegaram a um acordo pela escolha do general Castelo Branco. Costa e

Silva rejeitou a escolha, mas acabou convencido, sendo o ministro da Guerra de

Castelo Branco.

Vê-se já uma primeira clivagem dentro dos meios militares, que costuma ser

classificada, por diferentes autores, entre o grupo dos “castelistas” e o grupo da

“linha-dura”. Em 9 de abril, o Comando Supremo da Revolução, que de fato exercia

o controle do país baixou o Ato Institucional nº 1, redigido pelos advogados Carlos

Medeiros da Silva e Francisco Campos (o mesmo que elaborou a Constituição

ditatorial de 1937) onde o Executivo ganhava diversos poderes como o de cassar

mandatos e suspender direitos políticos por até dez anos sendo, em 10 de abril,

cassados uma centena de pessoas entre os quais: João Goulart, Leonel Brizola, Darcy

Ribeiro, Luís Carlos Prestes e outros. Várias outras pessoas foram presas, residências

invadidas, usou-se a tortura, os sindicatos sofreram intervenção, as Ligas

Camponesas nordestinas foram desorganizadas e a UNE foi colocada na

clandestinidade.

111

Sem maiores resistências, em 4 de abril, Jango seguiu para o exílio no Uruguai,

enquanto que os democratas e a esquerda ficaram perplexos e impotentes diante da

violência militar. Assim as classes privilegiadas empreenderam este esforço para

manterem-se no poder e instalava-se o regime militar no Brasil, que daria ênfase a

uma modernização conservadora e centralizadora, afastando-se das massas

populares, e priorizando um crescimento econômico pautando por um rígido controle

social, medidas ortodoxas para recompor as finanças e controlar a inflação com

maior exploração das classes trabalhadoras e estimulando a concentração do capital,

voltando- se ao capital externo e também aos latifúndios.

FICO (2004)57

, apresenta em seu trabalho: Além do Golpe: Versões e

Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar, uma discussão acadêmica um pouco

mais abrangente sobre o golpe de 1964, segundo diferentes olhares e versões, teorias

e métodos, tanto na História como na Ciência Política.

Partindo da historiografia, o autor apontou que os estudos propriamente

históricos sobre o golpe de 1964 tardaram a aparecer. A dificuldade seria as

peculiaridades da “história do tempo presente” e as carências de fontes documentais.

Os primeiros a abordarem o tema foram os cientistas políticos. Exceção feita ao

historiador Thomas Skidmore que lançou a obra: Brasil: de Getúlio a Castelo (1966).

Em 1988, Skidmore, um “brasilianist” (estudioso norte-americano voltado aos

estudos referentes à temática brasileira), lançaria a obra The politics of military rule

in Brazil (1964-1985), em que o golpe de 31 de março foi superficialmente tratado,

mas Skidmore58

indica que a destituição de Goulart, apesar do forte apoio dos civis,

foi uma operação de caráter militar. Dando uma endossada na visão dos militares

como “benfeitores patriarcais”, Skidmore interpretou que somente a intervenção dos

altos oficiais poderia salvar o Brasil de uma guerra civil, face à relativa fraqueza dos

setores civis de oposição ao presidente.

Na contramão, menosprezando as narrativas e sequências históricas vêm os

jornalistas, sociólogos e cientistas políticos, os dois últimos com marcante tendência

57 FICO, Carlos. Além do Golpe: Versões e Controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Editora Record.

Rio de Janeiro/São Paulo, 2004, p. 14 a 67.

58 Id., Ibid., p. 29.

112

a se debruçar apenas sobre o tempo presente. Um outro fator relevante no campo

acadêmico foi o predomínio do marxismo, a partir de meados do século XX, que

serviria como um “posto avançado ideológico” para marcar posição contra o regime

militar, acirrando posições e produzindo deturpações maniqueístas e até

preconceituosas. Um pesquisador da temática militar na época poderia ser taxado de

reacionário, apenas se não fosse marxista.

Pouco tempo após o lançamento do livro de Skidmore, um outro

“brasilianist”, o cientista político Alfred Stepan, finalizava sua tese de doutoramento

na Universidade de Colúmbia, em 1969. Seu trabalho foi publicado no Brasil, em

1975. O título: Os militares na política: mudanças de padrões na vida brasileira. A

obra quase foi censurada pelo governo Geisel por conta da ação do ministro do

Exército, Sílvio Frota, que havia solicitado uma análise mais detalhada da mesma.

Para Stepan, “a instituição militar não é um fator autônomo, mas deve ser

pensada como um subsistema que reage a mudanças no conjunto do sistema

político”. Segundo ele, as razões imediatas do golpe decorreram da falta de

habilidade de Goulart em retomar o equilíbrio do sistema político.59

Para Stepan,

teria havido até 1964 um padrão “moderador” no que tange às relações entre

militares e civis. Mais especificamente, os militares entravam em cena para depor um

governo e transferi-lo para outro grupo de políticos civis, não permanecendo no

poder, pois os próprios militares teriam dúvidas quanto à sua capacidade de

governar.60

O que 1964 trouxe de novidade é que os militares alteraram tal “padrão

moderador”, pois teriam tido a percepção de que as instituições civis estavam

bastante falhas e também porque se sentiam ameaçados pela “sombra” da quebra da

hierarquia e da disciplina.61

De acordo com FICO (2004), o problema em Stepan é o próprio “padrão

moderador”, quanto à sua análise. Como confirmar cabalmente tal padrão, se já

haviam ocorrido interferências diretas dos militares antes, em outros momentos da

59 STEPAN, Alfred C. Os militares na política: as mudanças de padrões na vida brasileira. Rio de Janeiro:

Artenova, 1975, p.140. In: FICO, Carlos. Op. cit. p. 30 e 31.

60 Idem, p.50. In: Id., Ibid., p. 31.

61 Id., Ibid., p. 31.

113

história brasileira. Outro ponto complicado seria o de se enxergar o “subsistema

militar” como uma “variável dependente” no conjunto do sistema político. Por fim, a

análise de Stepan não cobre satisfatoriamente a heterogeneidade política dos

militares: os “internacionalistas liberais” (os moderados); e os “nacionalistas

autoritários” (os duros).62

Mas o mérito de Stepan foi o de apontar a necessidade de

se estudar os militares, tanto em suas interações com a sociedade, bem como em suas

características de um grupo específico.63

Voltando-se para os intelectuais marxistas, a determinação da base econômica

sobre as estruturas jurídicas, políticas e ideológicas sempre foi o ponto fundamental

para suas análises. Então, os aspectos econômicos-estruturais levariam

inevitavelmente ao golpe. Análises marxistas mais generalizantes apontavam as

necessidades de rearranjo decorrentes da relação entre o capital internacional e o

nacional-associado. Este ponto de vista, também foi reforçado por economistas que

indicavam o esgotamento da etapa “fácil” de substituição de importações e a

necessidade de um novo tipo de inserção do Brasil no sistema capitalista mundial. O

marxismo teve o mérito de chamar a atenção, então, para as determinantes

econômicas. Isso entra em choque com uma visão tradicional de parte da

intelectualidade brasileira de que o golpe de 1964 corresponderia ao colapso de um

suposto padrão político, conhecido como “populismo”, alçado ao patamar de

conceito, embora nunca plenamente esclarecido. O populismo trazia um componente

altamente ambíguo combinando manipulação política e autonomização das massas

que demandaria, naquele momento histórico, por maior participação política, o que

levaria a soluções radicais como golpes militares.

A análise marxista mais conhecida sobre o golpe que depôs o presidente

Goulart, já citada neste trabalho, foi Combate nas Trevas, de Jacob Gorender64

, de

1987. O autor assinala que o golpe direitista foi contra-revolucionário preventivo.

62 Id., Ibid., p. 31.

63 Id., Ibid., p. 32.

64 Id., Ibid., p. 33,34 e 35.

114

Para ele, a burguesia e as elites conservadoras perceberam, em inícios de 1964, uma

situação pré-revolucionária, com as esquerdas tendo uma maior possibilidade de

vitória, num contexto marcado pelo ápice da luta de classes e das aspirações dos

trabalhadores brasileiros. Gorender interpretou as razões do golpe a partir: 1º) do

estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro, em que a crise econômica de

1962-1965 foi a primeira crise cíclica interna do sistema capitalista brasileiro e

demandava uma receita preceituada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), com

governos fortes e capazes de comprimir os salários e o padrão de vida dos

trabalhadores. Esta não era a receita prescrita pelas reformas de base fazendo com

que a burguesia industrial e os setores ligados ao capital estrangeiro formulassem a

alternativa da modernização conservadora, que seria abraçada pelos golpistas como

um todo; 2º) o caráter preventivo da ação golpista, pois para Gorender, havia reais

ameaças revolucionárias provindas da esquerda.

À luz da modernização conservadora, os militares, obviamente, com base na

evolução do pensamento geopolítico brasileiro, também tinham a sua interpretação e

pensavam um projeto de Brasil que ficou consonante ao das elites civis. Quanto ao

caráter revolucionário das esquerdas, isso é um ponto controverso e a maioria dos

autores não percebem a probabilidade de uma revolução. Claro que foi inegável a

mobilização das esquerdas, em especial no governo Jango, e as pressões que elas

conseguiram impor ao presidente, bem como a força de grupos como o das Ligas

Camponesas, ou os ligados ao nacionalismo trabalhista de Leonel Brizola, mas não

há consenso sobre a possibilidade da ocorrência de uma “revolução das esquerdas”

aqui no Brasil. De qualquer modo, mesmo não ocorrendo uma revolução à esquerda,

e caso o golpe direitista também não tivesse ocorrido, certamente teríamos um país

diferente, aí sim, talvez com a renda melhor distribuída, mais justiça social e um

espaço geográfico e paisagens com cidades menos caóticas e um meio rural mais

justo com uma estrutura fundiária muito mais equilibrada. Enfim, pensa-se aqui que

o medo; uma verdadeira “paranoia” e “histeria” direitista e conservadora, no

contexto da ordem mundial bipolar; a cooptação da classe média nesta ótica

anticomunista, por conta de amplos setores da imprensa; a falta de entendimento e

de diálogo, pelo menos entre alguns setores das elites no que tange à realização da

reforma agrária, ainda que não fosse a “dos sonhos”, mas a que fosse possível no

Congresso; e a superestimação da força das esquerdas - levaram ao fim, talvez

115

deprimente, do governo Jango. Se as esquerdas conjugassem tal força, teriam elas

capitulado tão facilmente diante do golpe? Eis a questão.

Já citado neste trabalho, o cientista político e também historiador uruguaio,

René Armand Dreifuss65

, apresentou sua tese de doutoramento na Universidade de

Glasgow, em 1980. Sua tese se transformaria no livro - 1964: a conquista do Estado.

Ação política, poder e golpe de classe – publicado no Brasil em 1981. Ele partiu do

pressuposto que o capital multinacional não encontrava uma correspondente

liderança política, apesar de seu crescimento ao longo do governo Juscelino,

principalmente. Então este grupo procurou organizar segmentos de pressão,

federações profissionais de classe, escritórios técnicos e ramificações burocrático-

empresariais para fazer frente à proeminente política “populista” procurando valer os

seus interesses. A análise de Dreifuss discorda significativamente da de Gorender

colocando mais ênfase, não na conquista do poder pela burguesia multinacional-

associada, mas sim pela substituição do esquema “populista” por outro mais

coercitivo com relação às classes populares. Dreifuss coloca uma fundamental

importância também no “complexo IPES/IBAD”, que teria apresentado um

protagonismo apontando o caminho do golpe para o chamado “bloco multinacional e

associado”, já que este não dispunha de um conteúdo ideológico-programático e não

contava com as teias do clientelismo e do apelo eleitoral-popular. Incapaz de se

impor à sociedade brasileira, o “bloco modernizante-conservador” (termo usado por

DREIFUSS, 1981 in: FICO, 2004, pág. 36) realizou uma campanha ideológica

cooptando, por exemplo, as classes médias em sua propaganda antigovernista. Só

esta trama ideológica não seria suficiente e esse bloco modernizante-conservador se

articulou a uma rede junto às Forças Armadas, tanto que alguns oficiais e civis

influentes pertenciam ao “complexo IPES/IBAD”. Também se realça a política

econômica de Castelo Branco, com um receituário recessivo e saneamento financeiro

que interessavam ao capital internacional. Este é o argumento-chave de Dreifuss, a

construção de uma rede conspiratória e golpista civil-militar, indicando que muitos

dos cargos do primeiro governo do regime militar, do presidente Castelo Branco,

foram ocupados por figuras importantes dos grandes empreendimentos industriais e

financeiros e dos interesses das multinacionais componentes do “bloco multinacional

65 Id., Ibid., p. 35,36 e 37.

116

e associado”. Dreifuss ressaltou a importância dos empresários, minimizando o

papel das Forças Armadas e da doutrinação da ESG (Escola Superior de Guerra)

fazendo uma análise marxista clássica de como um setor de classe se embrenhou na

luta política para fazer valer seus interesses e alçar o poder.

Daniel Aarão Reis Filho66

concorda com o pensamento de Dreifuss em relação

à conquista da hegemonia do capital internacional no bloco de poder. Para ele, o

golpe de 1964 só foi possível mediante uma heterogênea e ampla frente social e

política anti-Jango. Esta frente, ou aliança, reuniu banqueiros, empresários,

latifundiários, industriais, comerciantes, políticos, magistrados e classe média, tendo

condicionado uma unidade no interior das Forças Armadas adversas aos crescentes

movimentos dos trabalhadores no pós-1945. Mas Reis Filho chama a atenção para o

maior problema da análise de Dreifuss: a superestimação e a sobrevalorização

daquelas associações, predominantemente civis, no processo histórico.

Primeiramente a classe média não só era afetada passivamente por uma propaganda

ideológica anti-governista do “complexo IBES/IBAD”. Diversos setores das classes

médias temiam perder alguns privilégios caso as propostas de distribuição da renda

fossem levadas adiante, dentro das propostas reformistas. E, segundo, não há como

negar a importância de outros setores civis, como: o núcleo empresarial e industrial

na articulação do golpe; os políticos descompromissados com a ordem democrática e

sempre prontos para o golpismo (em especial, alguns da UDN) no caso de revés ou

de resultados desfavoráveis; e os interesses específicos do capital internacional.

No entanto, sublinha-se aqui, o golpe foi essencialmente militar, ou coloca-se

somente aqui, propositadamente, nesta ordem: militar-civil, ao invés de civil-militar.

O argumento é, pelo que parece, se não entrassem em cena os militares, mesmo com

toda esta oposição de setores civis ao governo Jango, pareceria extremamente difícil

a ocorrência de um golpe de Estado.

A necessidade de busca de apoio militar por parte dos setores anti-getulistas,

em 1954 e 1955. O veto dos ministros militares à posse de João Goulart, após a

renúncia de Jânio Quadros, em 1961. O risco de uma guerra civil, naquele ano,

advindo de uma ordem vinda do comando militar, no Rio de Janeiro, para

66 Id., Ibid., p. 37.

117

bombardear o palácio do governo gaúcho. Se retrocedermos no tempo, o fim do

Estado Novo, com a deposição de Vargas, em 1945, se deu através de um movimento

militar (os setores civis não depuseram Getúlio naquela ocasião). Os mesmos

militares também depuseram o presidente Washington Luís, em outubro de 1930,

marcando o final da República Velha e o início da era Vargas. Realmente parece

bastante complicado colocar um destaque exacerbado aos setores civis no golpe de

31 de março de 1964, pois se os militares não agiram sozinhos, eles tiveram, sem

dúvida, um diferencial importantíssimo para o desfecho do governo janguista. Com

certeza a ação golpista foi desencadeada por eles e também assumiram um

protagonismo incontestável pelos 21 anos seguintes. Lembremo-nos da primeira

movimentação do general Olympio Mourão Filho e das ações e articulações militares

para que o golpe (de início acontecido até de uma forma precipitada, a partir de

Minas Gerais) que foram sedimentando o estabelecimento de uma nova (e triste)

etapa da história brasileira.

Outro argumento é que mesmo na tensão ocorrida no seio das Forças Armadas,

após o afastamento de Costa e Silva, e o embate sucessório que se seguiu quando o

Brasil foi governado por uma Junta Militar, durante alguns meses de 1969, em

nenhum momento os militares cogitaram que o vice de Costa e Silva - o civil Pedro

Aleixo - assumisse a Presidência. Ainda que empresários e tecnocratas tivessem

acesso e estivessem presentes nas estruturas governamentais, é notória que a “última

palavra”, os ditames da Nação, estivessem nas mãos dos militares. Prova disso é a

quantidade de Atos Institucionais e outros instrumentos jurídicos de que o regime se

fez valer.

Marcos Napolitano67

salienta que o golpe não foi apenas uma rebelião dos

quartéis, com movimentação de tropas, cerco da sede do poder constitucional,

depoimentos raivosos de lideranças militares “carrancudas”, deposição forçada de

um presidente eleito, coerção das forças civis resistentes aos golpistas. Para o autor,

67

NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 43 a 67. Em sua obra - 1964: História do Regime Militar Brasileiro,

Napolitano usa o título “O Carnaval da Direitas: o Golpe Civil-Militar”, para abordar o tema do golpe de

31 de março, realçando, além obviamente do viés militar, o componente civil da conspiração, que

desembocaria no ocorrido em 31 de março daquele ano de 1964.

118

o golpe teve tudo isso e ainda mais: uma verdadeira teia e trama de engenharia

política.

A partir de outubro de 1963, cerca de seis meses antes do golpe, a crise política

virara em impasse institucional. Novos e velhos conspiradores foram se aglutinando

contra Jango e o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários, empresários e

políticos, classe média e a burguesia. Unidos pelo anticomunismo, diagnosticado por

Napolitano, como “a doença infantil dos antirreformistas”68

. Derrotado nas

“batalhas” travadas na frente parlamentar, Jango cada vez mais estava pressionado,

tanto à direita, como à esquerda, ficando numa situação mais complicada que o

levaria a se aproximar mais das ruas, na luta pela reformas. O ápice desta tática de

Jango foi o comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de

1964.

Se for analisada a componente político-militar da crise, em setembro de 1963

houve uma greve generalizada em Santos, coordenada pelo CGT (Comando Geral

dos Trabalhadores), em solidariedade ao movimento dos enfermeiros e funcionários

hospitalares e também aos que foram presos pela polícia paulista, sob o comando do

conspirador Adhemar de Barros, numa reunião sindical. Jango apresentou uma

atitude conciliatória, sem procurar inflamar os ânimos, em discurso realizado no

feriado de 07 de setembro, elogiando a participação das classes populares na política,

sem mencionar o CGT. Mas ali ficava evidente que o Exército, como instituição,

poderia até apoiar uma reforma pelo alto, mas jamais toleraria a ação da classe

operária, ainda mais se fosse de uma organização sindical de influência comunista.

Outro episódio foi a rebelião dos sargentos em Brasília já mencionada de forma

superficial no período Jango. A partir de uma decisão do STF de considerar

inelegíveis os sargentos eleitos a cargos legislativos no ano anterior. Em 12 de

setembro de 1963, os sargentos rebelados tomaram, entre outras instalações, a Base

Aérea, o Ministério da Marinha e até bloquearam as estradas que davam acesso para

Brasília. E ainda os rebelados invadiram o Congresso Nacional e o STF, detendo um

de seus ministros. Na tarde do mesmo dia, o movimento seria controlado. As

68 Id., Ibid., p. 44.

119

esquerdas da época, como o PCB, as Ligas, o CGT, a UNE e o FPN, na verdade, não

organizaram tal movimento sendo até surpreendidos pelo mesmo, mas ainda assim

pediram pela anistia dos rebelados (o saldo havia sido o de 536 presos e 2 mortos).69

João Goulart, como era de seu perfil, teve uma atitude conciliatória e um discurso

moderado garantindo a preservação da ordem e a tranquilidade do país. Porém, para

os conspiradores, tal postura de Jango dava margem a dúvidas quanto às intenções do

presidente.

Os grandes jornais, até então divididos em relação à figura do presidente João

Goulart, começaram a se embrenhar na articulação golpista contra Jango, em nome

da (ironicamente) chamada “Rede da Democracia” que reunia enorme fatia da grande

imprensa brasileira contra o governo. A luta pela reformas era vista pela imprensa

liberal da época como a desculpa para a subversão da ordem social, da propriedade e

da economia de mercado. Jango era apresentado como “refém” dos movimentos

sociais mais radicais como o de Leonel Brizola, ou como uma “marionete” do PCB.

Jango era colocado nos jornais como uma pessoa de fraca liderança (na verdade, um

juízo induzido e artificializado por causa da personalidade marcadamente moderada

e conciliatória de Jango). Napolitano, aponta que, a exemplo de muitíssimos outros

episódios de nossa História, havia uma diferença entre o que ele chamou de “opinião

publicada” e a “opinião pública majoritária”.70

A despeito da múltipla natureza da

crise vivida pelo governo Jango, o presidente, em março de 1964, ou seja, às

vésperas do golpe, contava com uma aprovação da opinião pública em “ótimo” ou

“bom”, em torno de 45% nas grandes cidades brasileiras, 49% das intenções de voto

para 1965 (embora o presidente, pela Constituição, não poderia disputar a reeleição).

De qualquer forma, seu governo era “ruim ou péssimo”, para apenas 16% dos

69 Id., Ibid., p. 45.

70 Id., Ibid., p. 47.

120

entrevistados e 59% eram a favor das reformas anunciadas no Comício da Central do

Brasil de 13 de março.71

Ainda que não houvesse a possibilidade de um segundo mandato consecutivo,

Jango era ainda um candidato forte para 1965. Alarmada com isso, os grupos

conservadores começaram a alardear que Jango pretendia dar um “autogolpe” ao

mesmo estilo que Getúlio Vargas fizera em novembro de 1937. Obviamente, o

discurso antirreformista encontrava seus ecos em segmentos da sociedade brasileira,

mas o detalhe é que estes segmentos não eram majoritários como se alardeava. A

“opinião publicada” de grandes jornais potencializavam e sobrevalorizavam a rede

de tramas contra o governo. A trama existia e não era nada desprezível, mas ganhou

exponencialidade graças, em muito, aos jornais. Os grandes empresários, associados

ao capital multinacional não acreditavam que o governo pudesse criar as condições

de um ambiente seguro e estável para os seus negócios. A classe média vivia o medo

da “proletarização”, do descenso social, decorrente das lutas proletárias e

camponesas. O fato da classe média estar mais “próxima”, no edifício social, das

camadas populares (já que as camadas mais elevadas da sociedade teriam como se

“defender” melhor de tal “investida” dos setores subalternos da sociedade), fez com

que esta fosse facilmente levada pelos ventos da “opinião publicada”, dos discursos

anticomunistas e de várias entidades civis e religiosas reacionárias que pregavam o

perigo do Brasil ser conquistado por Moscou, ameaçando os valores cristãos, da

liberdade e do modo de vida ocidental.72

Isso nos ajuda a entender a mobilização

71 Dados do Ibope in: NAPOLITANO, Marcos. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo:

Ed.Contexto,2014, p. 47. Conforme a nota de rodapé nº52, na página 338 da mesma obra de

Napolitano, foram realizadas duas pesquisas do Ibope entre 9 e 26 de março, apenas alguns dias

antes do golpe, com a crise política aguda na época. A pesquisa de intenção de voto foi realizada em

oito capitais e a pesquisa sobre a popularidade do presidente foi encomendada pela Federação de

Comércio do estado de São Paulo, em que foi ouvida a população de três cidades do estado de São

Paulo (capital, Araraquara e Avaí). Tais pesquisas nunca foram divulgadas pela imprensa, e foram

descobertas em 2003 no acervo do arquivo Edgar Leuenroth, da Unicamp. Folha de São Paulo, 9 de

março de 2003 (disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasilfc0903200307.htm, acesso

em:17 set. 2013

72 Id., Ibid., p. 47-48.

121

obtida em episódios como a Marcha pela Família com Deus pela Liberdade, ocorrida

menos de uma semana após os comícios da Central do Brasil. Reações e investidas

ao comício sufocaram o entusiasmo popular nos fins daquele mês de março,

mostrando a força da “opinião publicada” impregnada em vários veículos da

imprensa, como os jornais mais conservadores.

Além da grande imprensa, organizações como o IPES (Instituto de Pesquisa e

Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto Brasileiro da Ação Democrática), atuavam

firmes nas críticas ao governo, fazendo materiais de propaganda negativa e

articulando setores antitrabalhistas e anticomunistas. Aliás, o IPES foi fundado em

1962, pelo general Golbery do Couto e Silva, um dos coronéis do “Memorial” anti-

Jango, de 1954, e que se tornou uma das figuras mais importantes do regime militar

posteriormente implantado, além de ter dado não poucas contribuições ao

pensamento geopolítico nacional. Voltado mais inicialmente em produzir materiais

antigovernistas, o IPES também teve a intenção de formar uma nova elite política

ideologicamente orientada para uma modernização conservadora do capitalismo

brasileiro, e teve importante papel em articular civis e militares, com o agravamento

da crise política, a partir do final de 1963.

A consolidação desse discurso antigovernista e antirreformista conservador

disseminados através de veículos, como os da grande imprensa, serviram para

sedimentar os velhos interesses de sempre: o dos grandes proprietários de terra que

se sentiam ameaçados pela reforma agrária; e o dos interesses multinacionais que

sentiam também o mesmo em relação ao nacionalismo econômico das esquerdas

trabalhistas e comunistas. Com a força propagandista, os interesses conservadores

apelavam para uma realidade econômica e social desfavorável, falta de perspectivas

e de uma liderança política reformista contundente. E, para piorar, o jogo político

tradicional brasileiro – especialmente as relações entre o Executivo federal e o

Congresso - não parecia funcionar mais com a mesma eficiência de antes. Começava

a ganhar espaço a tese do “golpe preventivo”, argumento utilizado pelas direitas para

barrar um golpe da esquerda que estaria sendo gestado.

Um eventual golpe da esquerda teria como alvos: silenciar o Congresso

Nacional, impor as reformas por decreto presidencial e, mais longe ainda, reformar a

Constituição de 1946. O fato de que parte das esquerdas, como os brizolistas e os

122

“ligueiros”, não descartarem tais soluções para o impasse político, dava argumentos

à direita sobre a iminência de um golpe das esquerdas. A possibilidade real das

esquerdas realizarem algum tipo de processo revolucionário vitorioso chegou a ser

considerada pelo autor Jacob Gorender, em sua obra: Combate nas Trevas (1987),

como já colocado aqui antes, em que a situação da luta de classes e as aspirações das

classes trabalhadoras chegaram a tal ponto que teria havido uma possibilidade

concreta das esquerdas serem vitoriosas e, assim então, o golpe de 1964 teria sido

contrarrevolucionário e preventivo para retirar as esquerdas de cena.

As esquerdas, apesar de alguns pontos em comum, dividiam-se entre o

reformismo e a revolução:

Para a Frente de Mobilização Popular (FMP), as reformas

consolidariam a democracia social e o nacionalismo econômico.

Todavia defendia para a viabilização das reformas de base, caso

necessário fosse, a dissolução do Congresso Nacional e a convocação

de uma Assembléia Nacional Constituinte eleita pelo voto popular. A

Frente contava ainda com a presença de alguns componentes de

organizações inspiradas pelo PCB, como o Comando Geral dos

Trabalhadores (CGT), setores das Ligas Camponesas, associações de

suboficiais, soldados e marinheiros, etc.;

Para o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a política pautada em

alianças era uma condição necessária em que as reformas eram vistas

como uma etapa para a construção do socialismo. O PCB, nesta visão

aliancista, apostava também na burguesia nacional.

De qualquer forma, ambas as vertentes da esquerda criticaram a postura

excessivamente conciliatória de Jango nas frustradas tentativas de se aprovar as

reformas no Congresso Nacional, abraçando então a implantação das reformas “via

Executivo”.

Essas diferentes vertentes das esquerdas sofreram terrível derrota com a

consumação do golpe, sem impor maiores resistências, talvez por subestimarem a

força da coalizão golpista. Dado o golpe, seguindo-se pela análise de FICO (2004), o

regime foi se militarizando posteriormente. Os militares se envolveram diretamente

123

na atividade de polícia política, inseridos na Doutrina da Segurança Nacional, em

especial no combate aos inimigos “internos” (em especial, os militantes da esquerda

armada – os “subversivos”). Além da repressão pura e simples, os militares foram

ocupando cargos importantes em agências governamentais. E, em governos

seguintes, especialmente o de Ernesto Geisel, o regime incrementou o

intervencionismo e a estatização, abandonando a cartilha liberal e se distanciando do

núcleo empresarial. Assim, conforme o autor,é verossímil se falar de um golpe civil-

militar, todavia implantou-se um regime militar.

A necessidade de se trazer o foco da análise do golpe de 1964 precisamente no

papel dos militares foi apontada por Gláucio Ary Dillon Soares. Segundo ele (in:

FICO, 2004, pág. 38): “As interpretações iniciais do golpe militar enfatizaram suas

causas econômicas, em parte devido à predisposição genérica de aceitar explicações

econômicas, em parte devido à relativa simultaneidade do fim da etapa fácil da

substituição de importações e da eclosão de regimes militares na América Latina. O

economicismo do pensamento político e social na América Latina fez com que se

fosse buscar nas elites econômicas os responsáveis pelo golpe. O golpe, porém foi

essencialmente militar: não foi dado pela burguesia ou pela classe média,

independentemente do apoio que estas lhe prestaram.”

Soares concorda com Dreifuss em que as elites, em especial a burguesia

econômica, apoiaram em peso o golpe militar, contudo o ato golpista, a ação efetiva

de derrubada do governo Jango, foi essencialmente militar, dando origem a um

regime também militar. Soares critica então a tradição marxista, fortemente

enraizada na sociologia política latino-americana, presente até na vertente mais

conservadora da ciência social, que enfatiza mais os aspectos econômicos e

subestima os demais.

Tais críticas seriam os argumentos no que tange às análises de autores, como

Fernando Henrique Cardoso (sobre a necessidade de privilegiar o processo de

acumulação em detrimento dos mecanismos de pressão popular) ou de Guillermo

O’Donnel (que enfatizou a passagem da etapa de industrialização de substituição de

importações para outra seguinte, mais competitiva, que exigiria regimes

burocráticos-autoritários).

124

Aliás, detalhando-se sobre CARDOSO73

(1979), o que se discutiu foi o caráter

do movimento de 1964, em como se teria dado a ruptura do sistema político

brasileiro, ao se questionar se teria ocorrido um "golpe" ou uma "revolução". O

autor coloca que os perdedores sustentavam a versão de "golpe" por se tratar de uma

contra-ofensiva política que era contrária ao aumento do apoio das massas às

reformas de Jango. Enquanto que os articuladores do movimento de 1964 alegavam

uma mobilização da classe média e setores ativos do empresariado e da oligarquia

agrária. O que o autor salienta é que a intervenção militar teve um caráter de

contenção com a implantação de um padrão de desenvolvimento baseado na livre-

empresa e não no estatismo econômico atribuído ao governo deposto, alterando-se os

modelos social e econômico que prevaleciam anteriormente. As bases sociais e

políticas de sustentação ao regime populista já não correspondiam aos setores de

classe que controlavam as forças produtivas. Modificações no eixo econômico do

sistema convergiram para os grupos sociais que expressam o capitalismo

internacional e a ascensão das Forças Armadas e da tecnocracia. Estes dois últimos

grupos, segundo hipótese da mesma obra, teriam se fortalecido com a liquidação das

pressões das massas e do regime populista pela interferência militar, favorecida pela

ausência de organização e pressão política, que ainda reduziu a possibilidade de

manobra da burguesia e da classe média.

Após esta exposição da análise de Fernando Henrique Cardoso, o que SOARES74

acaba por criticar é a diferença entre: o se analisar um suposto papel de rearranjos

estruturais do sistema capitalista mundial (multinacional e associado); ou se

considerar um foco mais restrito ao Brasil em si, com a conjuntura inflacionária do

governo Jango. Soares reforça que o golpe foi uma conspiração dos militares que

protagonizaram o movimento tendo, obviamente o apoio dos grupos econômicos

73 CARDOSO, Fernando Henrique. O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo. Rio de

Janeiro: DIFEL, 1979. O autor discute no Capítulo III, que apresenta o mesmo título da obra, o caráter

do movimento de 1964.

74 FICO, Carlos. Op.cit. p. 39.

125

brasileiros, e não o contrário. Os militares foram os personagens principais do ato

golpista de 31 de março.

Gláucio Ary Dillon Soares reforça a necessidade de se estudar especificamente

os militares, considerando certas características que os diferenciariam em relação aos

outros grupos sociais. Segundo ele, não se pode transferir modelos teóricos prontos

válidos para outras classes e segmentos sociais, e simplesmente aplicá-los aos

militares, já que estes teriam uma especificidade própria, sendo necessário analisá-

los isoladamente em sua peculiar dinâmica.

Indo pela contramão de Dreifuss (que enfatizou o papel dos empresários,

articulados no IPES, representando os interesses do capital multinacional e

associado), Soares aponta o que motivou os militares, como um grupo específico, ao

golpe:

1. O caos administrativo e a desordem política;

2. O perigo comunista e esquerdista em geral;

3. Os ataques à hierarquia e à disciplina militares.75

Assim sendo, Soares concluiu que o que houve foi um “caos conspiratório”,

pois a coordenação entre os diferentes grupos conspiratórios em diferentes pontos do

país era pequena e, até numa mesma cidade, não havia articulação entre os próprios

grupos militares. Prova disso, segundo Soares, foi a iniciativa de Mourão, mostrando

a falta de uma coordenação centralizada e de um líder efetivo orquestrando a

conspiração.

As avaliações de Soares levaram à uma iniciativa de pesquisa sobre o golpe de

1964, realizada pelo CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História

Contemporânea do Brasil), da Fundação Getúlio Vargas. As entrevistas realizadas

confirmaram a percepção militar majoritária acerca do anticomunismo e a suposta

ruptura da hierarquia e da disciplina. A despeito das ligações entre os militares e o

IPES, a decisão de se movimentar as tropas (o que deflagraria o golpe),

condicionava-se a uma atitude especificadamente militar, em que era vital, além de

75 Id., Ibid., p. 40.

126

tirarem as tropas dos quartéis, obter-se o apoio de outros comandantes militares.

Exemplo disso foi a importância do comandante do II Exército, Amaury Kruel, de

aderir ou não ao movimento. E, para os militares em suas entrevistas, ao contrário de

vários autores que escreveram sobre o golpe de 31 de março, a conspiração existia

sim, mas era bastante desarticulada, colocando–se em discussão o grau de

importância que setores civis - como a burguesia econômica, empresarial e industrial,

tanto os nacionais como os representantes dos interesses multinacionais e associados

– tiveram para o golpe. A pesquisa do CPDOC, também aponta a pouca importância

que os militares deram à operação “Brother-Sam”. Não há dúvidas quanto ao apoio

logístico estadunidense - obviamente pelo contexto na ordem bipolar da Guerra Fria

e, também, da ainda recente na época, Revolução Cubana, ocorrida em 1959 -

dispondo de um porta-aviões, seis contratorpededeiros, um porta-helicópteros e

quatro petroleiros que poderiam chegar à Santos, entre 8 e 13 de abril. Porém o que

não há, conforme FICO (2004,) são evidências documentais da disposição dos

Estados Unidos se envolverem diretamente num conflito armado prolongado.

Todavia, aqui se pode pensar que a relativa facilidade da tomada de poder pelos

golpistas, a rápida saída de João Goulart do país e a falta de uma resistência

organizada, realmente pode ter diluído o papel estratégico efetivo que os Estados

Unidos teriam caso o cenário de resistência ao golpe fosse outro. Assim os militares

brasileiros não precisaram contar efetivamente com uma intervenção prática norte-

americana, daí a pouca importância atribuída por esses mesmos militares à operação

“Brother-Sam”. Isso acabou por reforçar algumas críticas de Soares ao fato de alguns

autores supervalorizarem o apoio militar norte-americano. Não se nega que tal

existiu, muito pelo contrário, mas o que precisa ser pesquisado e avaliado é até que

ponto ou grau teve importância este apoio norte-americano. Por exemplo: se a

movimentação do general Mourão tivesse falhado, se o “dispositivo militar de Jango

efetivamente existisse, se a conspiração civil e a militar tivessem articulação ainda

insuficientes, até que ponto os EUA estariam dispostos a uma ação mais direta no

Brasil? Os militares brasileiros teriam algum tipo de “constrangimento” para recorrer

a uma ajuda militar externa? Afinal tratava-se de um país extenso, populoso e muito

mais complexo em suas estruturas sociais, econômicas e políticas, do que a grande

maioria das nações latino-americanas.

127

Retornando-se à algumas das camadas civis da sociedade (especialmente as

altas e as médias), não se nega a importância de tais setores civis na participação

conspiratória visando um movimento golpista. O problema parece que se não fosse

por uma ação efetiva militar, como a movimentação de tropas, o golpe não teria se

concretizado. Mas gostaria de acrescentar que, apesar das entrevistas dos militares

aos pesquisadores do CPDOC, apontadas no primeiro volume produzido por estes

mesmos pesquisadores, aqueles militares destacaram a falta de uma efetiva liderança

militar no período conspiratório, uma virtual inexistência de um projeto de governo

(a meu ver, um projeto de curto prazo) em que o objetivo imediato seria a “limpeza

das instituições” com a remoção de Jango do poder.76

Contudo, ao contrário de outros momentos da história brasileira, gostaria de

salientar que o movimento golpista de 1964 galgou os militares ao centro do poder

nacional e os mesmos contavam com um substrato ideológico extremamente

relevante, advinda, por exemplo, da ESG (Escola Superior de Guerra), calcada na

Doutrina de Segurança Nacional, num binômio de segurança e desenvolvimento,

sufocando e barrando avanços das camadas populares e impondo à sociedade civil,

como um todo, um projeto autoritário de modernização conservadora e

centralizadora, potencializando o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, mas, ao

mesmo tempo, sem dar brechas ao protagonismo isolado dos setores empresariais e

industriais - nacionais e multinacionais (lembremo-nos de um outro protagonismo,

estatizante, que ocorreu, por exemplo, no governo Geisel). O que se quer dizer é que

os militares sempre tiveram a “última palavra” nas decisões finais durante o tempo

em que permaneceram no poder. E o regime, ainda que houvesse divergências no

seio das Forças Armadas (“linhas-duras” x “castelistas”) contava com tal alicerce e

substrato ideológico, a ponto dos militares terem permanecido na chefia do

Executivo federal por praticamente 21 anos.

Carlos Fico retoma a questão: Houve conspiração articulada? O que ele faz é

amarrar o papel dos civis, ao papel dos militares, juntando as peças da ação

desestabilizadora ao governo constitucional de Goulart causada por setores civis,

76 Id., Ibid., p. 43.

128

com as ações propriamente militares. O autor assinala que a atuação dos empresários

para a desestabilização do governo Jango foi essencial juntamente às conspirações

dispersas advindas dos quartéis. A junção dos dois fatos não os contrapõe,

salientando que um complementa o outro. Sem a desestabilização (propaganda

ideológica, mobilização da classe média, etc.) o golpe seria bastante difícil; sem a

iniciativa militar, impossível. O que se ressalta também é diferenciar essa ação

desestabilizadora civil: entre a meramente retórica radical do IPES e de outras

agências; e a articulação mais forte desses setores civis às vésperas do golpe. E, de

outro lado, as ações militares marcadas pelo imprevisto, improvisações e não

necessariamente articuladas.

“Espalhavam-se as conspirações, de norte a sul do país. Num primeiro

momento, fragmentadas; mais tarde unificando-se numa rede complexa, não de todo

centralizada, mas com certo nível de coordenação. Com propósitos aparentemente

defensivos, começaram a propor um bote ofensivo”77

Em concordância com Carlos Fico, argumenta-se que não se deve considerar

uma fragilidade teórica apontar a explicação do golpe através de aspectos

macroestruturais (as demandas do capital internacional), decorrências políticas destas

demandas (mobilização política organizada dos empresários), funcionamento das

instituições (sistema político) ou a leitura singular de alguns agentes históricos (os

militares preocupados com a quebra da hierarquia e da disciplina). É um problema

antigo, tanto da História como das Ciências Sociais, estabelecer ligações entre nexos

causais tão diferentes, que não consideraram a avaliação de todos estes aspectos, mas

só exclusivamente um ou outro. Para um fenômeno complexo, como foi o golpe de

1964, poder-se-ia enfatizar um aspecto sem simplesmente descartar todos os outros.

Prosseguindo-se na análise das diferentes visões e interpretações do golpe tem-

se aquela que privilegia a ocorrência do movimento de 1964 devido à uma paralisia,

ou um desgaste, do sistema político precedente. Wanderley Guilherme dos Santos,

em: O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira,é a principal

avaliação do autor sobre o assunto.78

Sua crítica consistiu basicamente numa não

77 REIS FILHO, Daniel Aarão. In: FERREIRA, Jorge (org.), 2001. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 42

78 FICO, Carlos. Op.cit. p. 44.

129

consideração devida às variáveis políticas. Para ele, estas variáveis e os próprios

processos políticos quase sempre estão colocados como subprodutos de tendências e

estruturas macrossociais e macroeconômicas. Indo de contraponto às tradicionais

análises, de cunho ou de influência mais marxista, Santos (2003)79

optou em focar os

processos políticos como variáveis independentes. Ele concordou com a avaliação de

Stepan quanto ao funcionamento do sistema político dos anos anteriores a 1964,

reforçando que o padrão fragmentado de apoio afetou a governabilidade do período

de Goulart, mas por outro lado, Santos discorda de Stepan ao apontar que a

associação parlamentar entre o PSD e o PTB foi o único fator responsável pela

estabilidade do governo JK.

A hipótese central do modelo de Santos, tratando então das variáveis políticas

como independentes e abordando o papel do Legislativo - do Congresso Nacional -

entre 1959 e 1966, foi que teria existido uma crise de paralisia decisória, decorrente

de um sistema altamente polarizado, quando os recursos se dispersam nas mãos de

atores radicalizados em suas posições. Ou seja, uma incapacidade do sistema político

em tomar decisões em situações de marcados conflitos, não conseguindo fazer o

processamento dos mesmos, acarretando uma paralisia política e também jurídica.

Assim, o modelo de Santos está calcado no que foi chamado de paralisia

decisória. Um tipo de imobilismo que acometeu o governo de Jango, em que o golpe

de 1964 foi fundamentalmente o resultado do emperramento do sistema político

precedente, uma reação às iniciativas governamentais. Tal imobilismo foi primordial

para a consumação do golpe do que propriamente uma política explícita e deliberada

por parte de João Goulart. Para Santos, o diferencial dessa paralisia não foram as

coalizões eleitorais, mas sim as coalizões parlamentares. As trocas constantes de

ministérios e as dificuldades enfrentadas com o Congresso para o andamento das

reformas corroborariam com esta interpretação.

79 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira.

Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora UFMG; Iuperj, 2003. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 45.

130

Obviamente, o trabalho de Santos gerou algumas críticas. Para Fábio

Wanderley Reis80

como poderia ter havido uma paralisia de decisões se um dos

atores da época - as Forças Armadas - tiveram o poder de decisão no golpe de 1964?

Para o próprio Wanderley Guilherme dos Santos, a intervenção das Forças Armadas

foi decorrente da paralisia parlamentar. Outro problema, desta vez apontado por

FICO (2004), foi a não clareza, por parte de Santos, do que era o “sistema político”.

Tratava-se somente do plano institucional? Ou era algo mais amplo, englobando as

ações dos sindicatos e das Forças Armadas? Ou a crítica às análises anteriores era

com relação ao “populismo”, termo este que até hoje traz certas dificuldades para sua

conceitualização? Por fim, até que ponto pode-se falar numa estabilidade no governo

JK, se o mesmo enfrentou dois levantes militares em seu mandato, e quase não

tomou posse? Pelo menos, quanto ao período JK, gostaria de acrescentar que tal

estabilidade deve ter decorrido da habilidade e do tato político que Juscelino teve

com o Congresso e com os militares aparando arestas, tocando os seus projetos

através de “grupos de trabalho” de ordem técnica e não se detendo muito nas amarras

burocráticas do Legislativo. De qualquer forma, a grande contribuição de Santos,

verdadeiramente, foi o de apresentar dados do desempenho do Legislativo Federal,

desde o final do chamado período democrático de 1946 até aos anos iniciais do

regime militar que se instalou a partir de 1964.

Entre outros trabalhos, que não colocando a ênfase somente no papel dos

empresários ou dos militares, mas que consideram as dimensões político-

institucionais das crises no plano parlamentar, cita-se, primeiramente, Maria Celina

D’Araújo para a qual a “a capacidade do PTB teve de influenciar setores militares

ou de interagir com eles foi certamente um dos principais fatores para a eclosão do

golpe”. 81

80 REIS, Fábio Wanderley. “O golpe e o cálculo”. Folha de São Paulo, Jornal de Resenhas, 10 mai 2003.

p.1. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 48.

81 D’ARAÚJO, Maria Celina. “Raízes do golpe: ascensão e queda do PTB”. In: SOARES, Gláucio Ary Dillon,

D’ARAÚJO, Maria Celina (orgs.). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro.

Fundação Getúlio Vargas, 1994. In: FICO, Carlos. Op.cit. p. 49.

131

Na sequência, menciona-se Argelina Cheibub Figueiredo, que no seu trabalho

referido anteriormente, que foi tese de doutoramento na Universidade de Chicago,

em 1987, avalia que a ênfase de Santos nos aspectos políticos-institucionais

acabaram por diminuir a relevância do caráter socioeconômico, em especial no

concernente às “reformas estruturais”. De acordo com FICO (2004), Figueiredo

procurou recusar paradigmas deterministas que afirmavam a inevitabilidade do golpe

a partir somente de fatores econômicos, ou apenas em fatores políticos-institucionais.

Também recusa o protagonismo isolado da burguesia, tão valorizada por Dreifuss, já

que só a existência da conspiração sozinha não levaria necessariamente á derrubada

do governo Jango. Ela concordou, em parte, com a leitura de Stepan argumentando

que Goulart, ao final de seu governo, radicalizou suas posições erodindo de vez seus

possíveis apoios. Mas, ao contrário de Stepan, Argelina Figueiredo defende que as

escolhas erradas que foram feitas antes trouxeram consequências mais para frente,

estreitando o “leque” de opções à Jango no decorrer de seu governo. Por enfatizar o

aspecto das escolhas, pode-se compreender melhor o significado do título do trabalho

da autora: Democracia ou reformas?

Já BECKER & EGLER (1998) apontam três visões diferentes sobre o golpe de

1964. A primeira se refere à influência da Escola Superior de Guerra (ESG) que teria

sido fundamental na caracterização de um “novo profissionalismo” nas Forças

Armadas. A segunda aponta, como elemento distintivo do golpe de 64, a crescente

capacidade técnica de controle e repressão por parte dos militares, e não os aspectos

ideológicos. Uma terceira visão sugeriria que não se tratou de um “regime”

plenamente instituído, mas sim de uma “situação” autoritária construída nas formas

de busca de legitimação apresentando dilemas e fissuras. Os dois autores finalizam

que a Doutrina de Segurança Nacional teria propiciado uma certa legitimidade e uma

estrutura intelectual e política aos militares, “cimentando” o regime.

Salienta-se, baseando-se em DEL VECCHIO (1992), que há uma certa

dificuldade de se atingir um conceito unificador acerca do regime militar visto que

houve variações de país para país quanto, por exemplo, ao tempo de duração do

regime em cada nação, seus graus de repressão sobre a população, seus impactos

sobre os Legislativos nacionais,etc. Isso já foi demonstrado no 1°capítulo referente

às chamadas ditaduras regressivas (RIBEIRO, 1983) ou regimes militares da

132

América Latina. Relembrando: PRADO & PELLEGRINO (2014) apontam que o

governo militar argentino carecia de projetos efetivamente concretos, contrastando

com o regime militar brasileiro que apresentava projetos de modernização econômica

visando aprimorar a integração nacional. Na Argentina, a ausência de um sólido

projeto de modernização, ainda que autoritária e imposta, fez o regime militar

argentino, da década de 1970, concentrar suas energias na repressão brutal aos

setores oposicionistas, massacrando adversários, e no campo econômico esteve

sujeito a interesses privados numa escala maior do que o do caso brasileiro. E ainda

mais: se no Chile, houve forte desnacionalização da economia nos anos do regime

comandado pelo general Pinochet, por outra lado, no Peru, os militares chegariam ao

poder defendendo um nacionalismo estatista.

No campo das memórias, as primeiras descrições mais detalhadas sobre o

movimento de 31 de março de 1964 viriam de uma memorialística cada vez mais

enriquecida em detalhes. Revelações factuais do tipo começariam a aparecer no

período da chamada “distensão”, ocorrida a partir do governo do general Ernesto

Geisel (1974-1979). De outro lado, na virada das décadas de 1970 para 1980, foram

sendo publicados alguns dos primeiros depoimentos de ex-militantes da “luta

armada”, em especial os da “guerrilha urbana”. Os livros de Fernando Gabeira e de

Alfredo Sirkis foram grandes sucessos editoriais.

Continuando pelo campo dos depoimentos e das entrevistas, a partir da década

de 1980, à medida que a História se distanciava mais do marxismo e seu

determinismo economicista, aparece um novo padrão de narratividade, muito focada

na percepção dos indivíduos, dos atores envolvidos nos processos analisados, e não

em macroestruturas muitas vezes até generalizantes, daí decorrendo um destaque

maior ao campo cultural da época do regime. E um jornalista acabou se destacando:

Elio Gaspari, que, conforme FICO (2004), não se preocupa em discorrer por

modelos teóricos-metodológicos e acadêmicos. Seus volumes: A Ditadura

envergonhada e A ditadura escancarada (2002); A Ditadura derrotada (2003); e A

Ditadura encurralada (2004), foram produzidos a partir de documentos que o

próprio Gaspari obteve por conta da confiança que ele tinha por parte de alguns

militares, como Geisel e Golbery, e da ajuda de Heitor Ferreira de Aquino que

organizara o arquivo de Ernesto Geisel e produzira um diário que abordava as

133

impressões de mais de trinta anos do cotidiano do poder no Brasil, somadas às horas

de entrevistas com Geisel, e com Golbery. As criticas de Carlos Fico procedem

dessa visão “uma” do período, somente a partir de um ponto de vista - ora dos

entrevistados, ora do acervo de Heitor Ferreira de Aquino – induzindo o leitor à

ausência de uma análise crítica e “desconstrutiva” deste acervo documental.

A obra de Gaspari não aprofunda a queda de Goulart, e apesar do peso

excessivo de importância dados à Geisel e Golbery para o regime, em especial para o

processo de abertura/distensão, foram apontados três problemas (FICO, 2004): 1) o

pouco espaço dado a ambos, nos poucos capítulos (apenas dois) voltados à derrubada

de Jango; 2) a falta de interconexões com diferentes trabalhos que privilegiaram

outros atores, como os empresários ou o próprio sistema político; e 3) se os dois

militares entrevistados eram tão astutos e sagazes, porque teriam escolhido o general

João Figueiredo como o último presidente do regime, avaliado, não por poucos,

como um dos piores mandatários que o país já teve? Mas sobre o governo Figueiredo

será tratado mais adiante neste trabalho. Todavia, Carlos Fico indica que a nova

documentação apresentada expôs as heterogeneidades no seio do regime. As

divergências entre a polícia política, a espionagem, a censura e a propaganda política.

Ou seja, seria altamente questionável uma unidade dos “porões da ditadura”, pois

vieram à tona grandes diferenças e conflitos entre os órgãos de informações e os de

segurança, entre o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o Centro de Informações

do Exército (CIE); ou entre a Assessoria de Relações Públicas (Aerp), responsável

pela propaganda política, e toda a “linha dura” dos militares.

Deve-se colocar ainda que no Brasil houve importantes discrepâncias e

descontinuidades entre os cinco generais-presidentes. O golpe de 1964 não formou

de imediato um novo regime político por apresentar um substrato institucional tímido

que se reforçaria com os insucessos da política econômica e com as derrotas

eleitorais de outubro de 1965. Diante deste quadro, o regime editou o Ato

Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965, que:

Suspendeu as eleições diretas para presidente da República e para os

governos estaduais até 15 de março de 1967;

Extinguiu os partidos políticos e reiterou a capacidade de suspensão dos

134

direitos políticos por parte do presidente. A estratégia, conforme BARROS (1998),82

era sacramentar a supremacia do Executivo, destruir a organização partidária liberal

do período anterior e reforçar o bloco civil governista dando um novo ânimo ao

núcleo udenista que, não pela primeira vez em sua história, havia se saído mal no

voto popular. Foram criados a Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido

governista; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), um partido ou frente

oposicionista (consentida pelo regime), tendo à frente veteranos do PSD, como

Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, mas sem contestar frontalmente o regime.

Para BARROS (1998),83

o AI-2 não foi o início do regime militar. Para o autor,

o começo ocorrera com o golpe de 1964, mas o AI-2 foi ali apontado como um

momento em que o regime tomou corpo e criou uma feição mais sólida. Para

NAPOLITANO (2014),84

“se o golpe foi o batismo de fogo da ditadura, o AI-2 é a

sua certidão de nascimento definitiva”. O último autor acrescenta que o AI-2, em

grande parte, foi o fim das boas relações entre os militares no poder e os políticos

conservadores que apoiaram o golpe, mas queriam conservar seus interesses

eleitorais intactos, casos de Adhemar de Barros e de Carlos Lacerda. Inconformado

com a prorrogação do mandato de Castelo Branco para até março de 1967 com o

adiamento das eleições presidenciais de 1965, para novembro de 1966 (eleições que,

por sinal nunca se realizariam), Lacerda romperia definitivamente com o governo

militar, em fins de 1965.

Outro episódio fundamental no processo de consolidação do regime militar foi

o Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, que precedeu o ápice da

repressão política e do desenvolvimentismo econômico característicos do governo

Médici (1969-1973) que trataremos um pouco mais adiante. Contudo, antecipando-se

outro exemplo das discrepâncias do regime temos, segundo DEL VECCHIO (1992),

que principalmente durante o governo Médici, a Aerp (Assessoria de Relações

82 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.28.

83 Id., Ibid., p.27.

84 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 97.

135

Públicas da Presidência da República) foi um importante canal para a criação de um

"Brasil Grande" dentro da ideologia desenvolvimentista do período. O governo

Médici valeu-se da boa performance econômica do regime em busca de uma maior

legitimação através deste órgão. Porém, o governo Geisel praticamente desmontou o

aparato da Aerp tirando-lhe seu status de órgão de divulgação do governo. Estes são

apenas alguns dos aspectos concernentes à problemática referente às diferenças

presentes entre os governos militares, originando uma dificuldade de se atingir um

conceito unificador, no que concerne a cada um dos governos dos generais-

presidentes tratados daqui em diante.

Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, no dia 31/03/1964

Fonte:

https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/imagens/dossies/nav_jgoulart/fotos/Modulo7/ph_fot_5609_

18.jpg

136

Castelo Branco sobe a rampa, em Brasília, ladeado por Ranieri Mazilli e Ernesto Geisel.

Arquivo: 15 de abril de 1964. O que era para ser um governo que terminasse em janeiro de 1966 se

prolongaria até março de 1967. E o regime militar iniciado em 1964 se estenderia por praticamente

21 anos, até 1985.

Fonte:

http://acervo.oglobo.globo.com/incoming/9772970-6ad-ac0/imagemHorizontalFotogaleria/foto6.jpg

137

3 – O Regime Militar Brasileiro (1964-1985)

3.1- Governo Castelo Branco (1964-1967). Uma “ditabranda”?

Humberto de Alencar Castelo Branco, 1º general-presidente do regime militar. Governou o

Brasil de 15/04/1964 a 15/03/1967.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_de_Alencar_Castelo_Branco

Em 2009, a Folha de São Paulo, referiu-se aos quatro primeiros anos do regime

militar como uma “ditabranda”, ou seja, uma ditadura não muito convicta de sua

dureza.85

Para um jornal que, lá no passado, se colocou numa postura de resistência

ao regime, o termo “ditabranda” causou grande polêmica.

85 “Limites a Chavez”. Folha de São Paulo, Editorial, 17 fev.2009 (disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1702200901.htm). In: NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 69.

138

O que está por trás deste debate é o fato de que existe uma linha de raciocínio,

sobretudo, por parte do que Marcos Napolitano (2014) denominou de memória

liberal86

do regime, que o período compreendido entre o golpe de 31 de março de

1964, até o AI-5, de 13 de dezembro de 1968, não teria sido uma ditadura. No

máximo, uma ditadura “envergonhada”87

, “encabulada”, que se “sentia mal” ao

tomar certas medidas e atitudes, especialmente contras seus adversários, tal como as

cassações e os primeiros Atos Institucionais (mas não deixando de fazê-los e

executá-los). Os defensores da tese de uma ditadura “suavizada”, ou de um regime

“brando” é que nos primeiros anos do regime ainda existia o habeas corpus,

mobilizado na defesa de muitos presos, por ocasião do golpe, somada a uma certa

liberdade de imprensa, de expressão e de manifestação.

Antes já foi apresentada a conceituação sobre o significado de “ditadura” e de

“regime militar”. Talvez possamos falar em “ditadura militar” porque se não foi a

ditadura de um único indivíduo, pelo menos houve um incontestável protagonismo

militar, com cinco generais-presidentes e, de fato, os militares sempre tiveram a

“palavra final” nas decisões mais importantes e cruciais da fase compreendida entre

os anos de 1964 a 1985. Os atos mais importantes, por parte dos civis, neste período

autoritário só foram possíveis porque certamente eles contavam com o aval dos

militares em suas ações e medidas. Refiro-me especialmente aos civis que ocuparam

ministérios durante o período, além dos tecnocratas presentes na aparelhagem

governamental. De qualquer forma, procurarei utilizar mais o termo “regime militar”,

mas algumas vezes, a palavra “ditadura” estará presente, no caso específico de um

determinado governo militar em questão, ou sobre a corporação militar em conjunto

que, como personagem principal, fez a sua “ditadura” (a dos militares vistos em sua

unidade corporativa).

Esses quatro anos iniciais do período militar abrangem os anos do seu primeiro

governo – o de Castelo Branco - na Presidência da República entre abril de 1964 a

março de 1967. E basicamente a metade inicial do segundo governo – o de Costa e

Silva – que durou de março de 1967 a agosto de 1969, em cujo período teve-se a

86 Id., Ibid., p.69.

87 Id., Ibid., p.69.

139

promulgação do Ato Institucional nº5 (AI–5), em dezembro de 1968. Mas a ditadura

“branda” está centrada principalmente no governo Castelo Branco em que alguns de

seus biógrafos apontaram um general/marechal “constrangido” em exercer o poder

buscando apenas “sanear” e “limpar” o ambiente político brasileiro com promessas

para logo devolver o poder aos civis.88

Um exemplo apresentado para isso foi o auge cultural das esquerdas, no

período de 1964 a 1968. NAPOLITANO (2014) argumenta que, ao contrário do que

uma (chamada por ele) “memória liberal” do regime tenta apregoar sobre uma

ditadura “envergonhada”, é que a relativa liberdade de expressão nesse 1º período

anterior ao AI-5 foi decorrente da razoavelmente ampla base social que apoiou o

golpe, como as classes médias, setores liberais da imprensa e partidos conservadores.

Assim a repressão se apresentou seletiva e o que ocorreu foi a construção de uma

ordem institucional autoritária e centralista, blindando-se o Estado brasileiro contra

algumas possibilidades indesejáveis, tais como as pressões da sociedade civil

paralelamente à desarticulação política dos movimentos operários e camponeses.

O autor então procura questionar que o regime só se “fechou” devido a uma

onda crescente de manifestações de opositores e de contestações por parte até de

aliados de primeira hora do regime, como Carlos Lacerda e o jornal carioca Correio

da Manhã. Castelo Branco, não poucas vezes, chegou a ser apresentado como um

mandatário bem intencionado que teve que aceitar, a contragosto, a imposição do

nome de Costa e Silva, representante da “linha-dura”, para a sua sucessão.

Napolitano, em sua obra, realiza uma verdadeira “desconstrução” da figura de

Castelo Branco, apontando que o mesmo foi, sim, o verdadeiro construtor

institucional do regime autoritário. Foram 4 Atos Institucionais, a Lei da Imprensa, a

nova Constituição (que sacramentou o princípio da segurança nacional). Também se

teve mais de 700 Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Nas sanções legais a

opositores, fundamentadas nos Atos Institucionais, 65% dos 5.517 cidadãos que

sofreram punição durante todo o regime, o foram no governo Castelo, totalizando-se

3.644 punidos. O mesmo governo se destacou enormemente nas sanções aplicadas

88 Id., Ibid., p.69.

140

especialmente contra militares, 90% do total ao longo dos mais de 20 anos de

autoritarismo.

Humberto de Alencar Castelo Branco foi o primeiro general-presidente,

escolhido em 11 de abril. Tinha influência entre os golpistas militares e civis, sendo

líder do grupo de oficiais ligados à Escola Superior de Guerra - ESG, de influência

norte-americana e anti-comunista pregando contra o "inimigo interno" (o

comunismo) dentro do modelo de "segurança-desenvolvimento". Este grupo era

conhecido como o "grupo da Sorbonne" em que se destacavam Castelo Branco, os

generais Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel e outros que se diferenciavam da

chamada "linha dura", que defendia o controle armado sobre os civis e aos

nacionalistas de direita. O "grupo da Sorbonne" buscava soluções técnicas e formas

institucionais de governo que englobassem civis (como os empresários) e "opositores

moderados". Junto a um governo forte procuravam aprofundar a relação com o

capital internacional e a livre iniciativa.

A ESG fez acertos com outros militares e políticos, principalmente do PSD.

Teve até o apoio de Juscelino Kubitschek que estava de olho em sua candidatura à

Presidência para as eleições de 1965, previstas no AI-1 - Ato Institucional nº1 - (mas

JK acabaria cassado já em 8 de junho de 1964). Castelo Branco, escolhido por

eleição indireta no Congresso, assumiu a presidência em 15 de abril. No Ministério

organizado foi dado maior peso à UDN e o Ministério da Guerra foi dado à Costa e

Silva, porta-voz da "linha-dura".

Em seu discurso de posse, Castelo Branco, fez menção da palavra

“democracia” por cinco vezes. Insistiu que seu governo consolidaria “os ideais do

movimento cívico da nação brasileira nestes dias memoráveis de abril, quando se

levantou unida, esplêndida de coragem e decisão, para restaurar a democracia e

libertá-la de quantas fraudes e distorções que a tornavam irreconhecível. Não por

meio de um golpe de Estado, mas como uma revolução. (...) Nossa vocação é a da

liberdade democrática”89

89 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 58.

141

“Caminharemos para a frente com a segurança que o remédio para os

malefícios da extrema esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária,

mas o das reformas que se fizerem necessárias”90

Foi criado, em 13 de junho de 1964, o SNI - Serviço Nacional de Informações,

no âmbito da Segurança Nacional. Sob a orientação do general Golbery do Couto e

Silva, segundo CHIAVENATO (2006), o SNI recebia verbas secretas e

supervisionava outros “departamentos de segurança”, inclusive o DSI (Divisão de

Segurança e Informação), que se incorporou a todos os ministérios. Como as DSIs

informavam o SNI sobre o funcionamento dos ministérios, investigavam candidatos

a cargos públicos e vetavam ou puniam aqueles que eram considerados subversivos.

Percebe-se que os ministros estariam sujeitos a pressões por parte do SNI.

O SNI só prestava contas ao CSN (Conselho de Segurança Nacional) e ao

presidente da República. Controlava os serviços de segurança do Exército, da

Marinha e da Aeronáutica. A nível estadual, trabalhavam para o SNI a Delegacia

Estadual de Ordem Política e Social (Deop) e o Departamento de Ordem Política e

Social (Dops).

Ao tomar posse, Castelo Branco garantiu que entregaria o cargo em 31 de

janeiro de 1966, mas não foi isso o que aconteceu, como será mostrado depois.

Na política externa, Castelo Branco - ao contrário de Getúlio Vargas, na década

de 1950, e também de Jânio Quadros e de João Goulart - foi (em muito) alinhado

com os Estados Unidos, como retribuição ao apoio dado ao golpe e pela confiança

“yankee” na liderança castelista. Dentro da visão geopolítica dos conspiradores

militares e civis, o Brasil tomava um posicionamento explicitamente favorável à

superpotência capitalista dentro do contexto da Guerra Fria. Da anterior política

externa independente, o Brasil, já em 1965, tomava outro rumo no campo externo, ao

enviar tropas à Republica Dominicana favorecendo à implantação de uma ditadura

pró-EUA naquele país.

90 Id., Ibid., p.58 e 59.

142

Ao se consolidar no poder, o novo governo assentou suas bases econômicas no

combate à inflação fazendo-se aumentar a recessão, "calculada" pelo governo, com

uma política de contenção de créditos e dos salários acarretando o arrocho salarial,

explorando-se os trabalhadores e concentrando-se as empresas e o capital,

potencializados pelo Estado como resultado do PAEG (Plano de Ação Econômica do

Governo).

Na área econômica, o Brasil se abriu ao capital internacional, em nome do

liberalismo econômico. Roberto Campos e Otavio Bulhões se tornaram os principais

expoentes na área. Buscou-se a modernização da economia e do Estado, para que o

Brasil melhor se inserisse no capitalismo mundial. Contava-se que com a

modernização econômica, velhas estruturas arcaicas se readaptariam. O governo

federal precisava recuperar a sua capacidade de financiamento, equilibrar suas contas

e combater a inflação. A receita para isso foi simples: conter os gastos públicos e

impor um arrocho salarial.

O sistema fiscal foi reorganizado, disciplinando a malha complexa de

interesses locais e regionais. Dava-se uma nova lógica ao sistema tributário nacional,

procurando-se aumentar a eficiência arrecadatória, removendo-se empecilhos, até de

natureza federativa, para se racionalizar a dinâmica tributária. Claro que isso

beneficiaria especialmente a União, em detrimento aos estados e aos municípios. No

plano macroeconômico, o PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foi

lançado ainda em 1964, para balizar as mudanças em curso. Pela imposição o novo

regime buscaria o crescimento da economia, mas sem perspectivas redistributivistas,

o que faria aumentar mais ainda a concentração da renda e a distância entre ricos e

pobres, apesar do crescimento da classe média. Para o empresariado e o patronato em

geral, houve vantagens. A nova política de reajustes salariais, certamente prejudicava

os trabalhadores (também afetados pelo rígido controle aos sindicatos, amarrados à

CLT e à repressão). O fim da estabilidade de emprego e a criação do FGTS (Fundo

de Garantia por Tempo de Serviço) flexibilizaram o mercado de trabalho,

possibilitando demissões a custos baixos. As “pressões distributivistas” da fase

republicana anterior, iniciada em 1946 ficaram amordaçadas.91

91 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.75.

143

Outro item a se destacar foi a criação do INPS (Instituto Nacional da

Previdência Social), em novembro de 1966. Resultou da fusão de seis institutos de

aposentadoria existentes: o dos industriários (Iapi), o dos comerciários (IAPC), o dos

marítimos (IAPM), o dos bancários (IAPB), o dos empregados em transportes e

cargas (Iapetec) e o dos ferroviários e empregados em serviços públicos (Iapfesp).

Com unificação de tal magnitude, o objetivo era o de conferir melhor

operacionalidade ao sistema, além de controlá-lo com mais eficiência. Nesta lógica,

o INPS ficou vinculado ao Ministério do Trabalho e Previdência Social.

Quanto ao meio rural, era preciso que o governo Castelo encontrasse algum

tipo de solução “técnica” para a questão fundiária. Reforma agrária - nem pensar -

pois a mesma se tornou como um sinônimo de comunismo para os golpistas. As

elites agrárias, obviamente, haviam saudado o golpe, mas como mexer com essa

questão? Era sabido que a terra, como fonte de renda imobiliária, estava sendo um

entrave ao desenvolvimento capitalista. Também era conhecida que uma das causas

da inflação era a crônica falta de alimentos para uma população urbana cada vez

maior. Havia também a situação de êxodo rural, com massiva migração campo-

cidade, alterando rapidamente o espaço geográfico e as paisagens brasileiras,

especialmente nas grandes cidades.

Contrários a qualquer tipo de reforma fundiária, ainda que moderada, Castelo

Branco propôs o “Estatuto da Terra”, já citado antes. Consistia, segundo

NAPOLITANO (2014,) em três eixos: imposto progressivo, conforme o tamanho da

propriedade; desapropriação com indenização; e a ocupação de terras ociosas. A

proposta enfrentou a resistência da UDN e de setores da imprensa ligadas à

oligarquia agrária mais tradicional, como O Estado de São Paulo.92

Votado já por um

Congresso bastante expurgado, devido às cassações, com a posição contrária dos

udenistas, o Estatuto foi aprovado após ter o seu texto original bastante alterado e

quase não foi posto em prática. A União ficaria autorizada a desapropriar terras

pagando indenização por meio de títulos da Dívida Pública. Foi também criado o

Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra). Carlos Lacerda foi uma das vozes

que criticou o Estatuto: “Reformas de base são pretextos para todo governante que

92 Id., Ibid., p.76.

144

não sabe governar”.93

Desnudavam-se as diferenças entre os autoritários desejosos

de reformar o capitalismo brasileiro e, de outro lado, as velhas oligarquias agrárias.

Na década de 1970, a própria dinâmica econômica inseriu o latifúndio no

sistema capitalista, sem reforma agrária e sem traumas para os grandes proprietários.

Para os pequenos e médios proprietários, já não era tão bom assim, pois eles

dependiam dos preços mínimos garantidos pelo governo e dos empréstimos

bancários. Para os trabalhadores do campo, a mecanização (por causa principalmente

da soja) e a possibilidade de melhores empregos e salários nos setores da indústria e

dos serviços na cidade potencializou o êxodo rural. Ainda que milhões destes

migrantes acabassem morando nas periferias, especialmente nas favelas, devido à

especulação imobiliária existente especialmente nos grandes centros urbanos. Mesmo

assim, tais pessoas poderiam dispor, ainda que na periferia, de alguns serviços

impossíveis ao campo.

O regime autoritário ainda estimularia a migração para os “espaços vazios”,

como as fronteiras agrícolas, com fluxos humanos advindo de outras regiões do

Brasil para a Amazônia, em especial. A mata era devastada para a chegada do

“progresso” e do “desenvolvimento” representados por grandes pecuaristas e

mineradoras que desalojavam os primeiros migrantes, agravando-se a grilagem de

terras. A modernização do campo brasileiro criou uma geografia marcada pelo

agravamento das tensões e dos conflitos fundiários, em especial na Amazônia.

Voltando-se à economia, no combate à inflação foram aumentadas as tarifas

dos serviços públicos, ampliadas as taxações indiretas e o reforço da incidência de

impostos como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o ICM (Imposto

sobre Circulação de Mercadorias) favorecendo àquelas empresas cuja produtividade

garantia preços unitários abaixo dos demais em detrimento das pequenas empresas,

monopolizando assim o setor econômico. Com a benevolência dos Estados Unidos e

do FMI (Fundo Monetário Internacional) a economia brasileira passou a ancorar-se

em três setores, segundo BARROS (1998): o de bens de capital vinculados ao Estado;

93 In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p.70.

145

o de bens duráveis multinacionais; e o de bens de consumo baseados no capital

nacional.94

Assim a orientação econômica do governo Castelo Branco, coordenada pelos

ministros Roberto Campos – no Planejamento e Coordenação Econômica; e Otávio

Gouveia de Bulhões - na Fazenda - foi o de uma política econômica recessiva. Toda

essa política contribuiu para o agravamento dos problemas sociais com forte

crescimento das favelas, fome, violência da marginalidade, etc. Hélio Jaguaribe (in.

DEL VECCHIO, 1992) enunciou, em trabalho elaborado em fins de 1966, que a

política econômica ortodoxa do governo Castelo Branco seria um traço estrutural do

regime onde haveria três objetivos programáticos complementares: o controle da

inflação; a subordinação da economia brasileira aos centros hegemônicos,

especialmente aos Estados Unidos; e o predomínio da "livre-empresa". Isto na

perspectiva do desenvolvimento nacional versus imperialismo onde o total

engajamento do Brasil aos EUA se refletiu na participação brasileira no auxílio à

ocupação da República Dominicana em 1965. Daí viria o termo "colonial- fascismo",

citado por CARDOSO (1979), que Hélio Jaguaribe aplicou ao modelo político que

enxergava no momento com as suas três características: 1º) um maior poder de

coerção decorrente de um fortalecimento do Estado; 2º) a já mencionada

subordinação aos EUA; e 3º) a existência de livres mecanismos de mercado

(empresas privadas que controlariam e dirigiriam a economia) sob a supervisão

estatal. Contudo têm-se a incapacidade da burguesia nacional em imprimir o

dinamismo requerido pela economia, algo este que diferenciaria o Brasil, tanto da

Itália fascista, como da Alemanha nazista.

Já Celso Furtado (in DEL VECCHIO, 1992) na mesma época, também a

partir da contraposição desenvolvimento nacional versus imperialismo, aborda, como

Jaguaribe, a natureza do regime a partir da estabilização social, onde o modelo

adotado implicaria numa solução "pastoril" em que os dados do PAEG foram

interpretados com ênfase na agricultura devido aos investimentos destinados a esse

setor no período de 1964-1966 simultaneamente à uma forte recessão do setor

industrial. Porém Furtado reconheceu, mais tarde num ensaio de 1973, o caráter

dinâmico do regime militar brasileiro. Na verdade tanto o termo "colonial-fascismo"

94 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p.25

146

de Jaguaribe como a "pastorização da economia" de Furtado resultaram das

influências conjunturais do início do regime militar, que ainda estavam num processo

de consolidação, referente às críticas à política econômica de Castelo Branco. Dentro

de uma nova linha de interpretação, as relações de dependência se atrelariam a uma

nova divisão internacional do trabalho onde parte do sistema industrial de países

hegemônicos, sob controle das corporações internacionais, são transferidos para as

economias periféricas que previamente alcançaram certo desenvolvimento industrial

constituindo-se na chamada "internacionalização do mercado", segundo CARDOSO

(1979).

Tem-se que: "O período recessivo de 1964-1967 cumpriu plenamente a sua

função, para os idealizadores do PAEG. A concentração hegemônica do grande

capital e o extraordinário achatamento salarial limparam as altas taxas de inflação,

criando o patamar inicial de um crescimento econômico sem precedentes que se

verificaria nos anos seguintes. A partir de 1967, a política econômica governamental

mudaria significativamente, com a liberação do crédito e a ampliação dos gastos

estatais" 95

.

O regime continuava a fazer outras reformas econômicas indispensáveis para

um novo ciclo de desenvolvimento. Em dezembro de 1964 era criado o Banco

Central, substituindo a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), vinculada

ao Banco do Brasil. Entre as atribuições exclusivas do Banco Central estava a de

emitir papel-moeda, regular o câmbio, controlar o capital estrangeiro e a política

creditícia (funções que foram anteriormente do Banco do Brasil durante décadas).

Instituiu-se também o Conselho Monetário Nacional, responsável pelas diretrizes da

política da moeda e do crédito. Nota-se a busca pelo governo de alicerçar

solidamente uma nova inserção para o capitalismo brasileiro. Todavia, os resultados

destas ações não seriam sentidas a curto prazo. Em 1965, os preços dos gêneros de

primeira necessidade continuavam subindo.

Com o objetivo de enfrentar uma questão, premente na época, que atingia

sobretudo as camadas populares, o déficit habitacional, que motivara mobilizações

95 Id., Ibid., p.25 e 26.

147

políticas no governo Goulart, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), para

enfrentar a demanda por moradia, agravada pelas migrações em direção aos grandes

centros urbanos.

A política ortodoxa e recessiva da equipe econômica de Castelo Branco

acarretou em fissuras na vertente do apoio civil ao movimento de 1964, pois Carlos

Lacerda, governador do estado da Guanabara, e Magalhães Pinto, governador de

Minas Gerais, se colocaram contra os rumos da política econômica. Nas eleições de

1965, o PSD bateu os candidatos oficiais nestes estados (com Negrão de Lima na

Guanabara e Israel Pinheiro em Minas Gerais).

O mau resultado na eleição motivou Lacerda, que vinha criticando a política

econômico-financeira da União, pois os resultados positivos da dupla ministerial

“Campos-Bulhões” ainda não haviam se mostrado, a se afastar de Castelo mantendo-

se próximo aos coronéis ainda simpáticos ao lacerdismo.

O regime, ao sofrer estes resultados negativos, começa a revestir sua inicial

fragilidade institucional com a cristalização efetiva em regime militar, em que o

"grupo da Sorbonne" se encontrava comprimido pelas oposições de um lado e pela

"linha dura" do outro (constatando-se a não unidade do regime naquele momento). O

presidente Castelo Branco cede então às pressões da "linha dura" materializando a

declaração do AI-1, onde "a Revolução legitima-se a si própria" através do AI-2, de

27 de outubro de 1965, que suspendeu eleições diretas para Presidente e

governadores de estado até 15 de março de 1967, e extinguiu os partidos políticos

dando-se um duro golpe no PSD que, de início tinha uma tenra aliança com os

golpistas de 1964, mas rompeu-a justamente por querer se manter como ator

privilegiado da condição tradicional dentro da coalizão "nacional-populista".

Lançava-se a semente do bipartidarismo com a Arena (Aliança Renovadora

Nacional) como o partido governista; e o MDB (Movimento Democrático

Brasileiro), uma frente de oposição controlada. Com isso o regime consolidava sua

legitimação institucional aniquilando o sistema partidário anterior, enquanto que o

AI-3 tornava indiretas as eleições para governadores estaduais.

Se em seu discurso de posse, Castelo Branco havia declarado que sairia da

presidência em janeiro de 1966, os militares, na verdade, tinham intenção de

permanecer no poder. Castelo Branco deixou sua "complacência" com os civis como

148

na cassação de Juscelino Kubitschek, em 8 de junho de 1964, e prolongou seu

mandato presidencial por 14 meses, até 15 de março de 1967.

No campo jurídico e institucional, o presidente Castelo Branco lançou os

fundamentos do novo regime autoritário, a despeito de suas intenções

“democratizantes”. A economia vinha em crise e não tardou para que as classes

médias se desiludissem com o governo. Carlos Lacerda, entre outras lideranças

políticas, que haviam apoiado o golpe também demonstraram descontentamento com

Castelo Branco. Para o presidente militar, sua sustentação estava nos quartéis e

também na institucionalização do regime.

Mas uma parte dos quartéis exigia maior endurecimento do regime, sem

maiores sutilezas jurídicas. Castelo Branco prorrogaria seu mandato por mais um

ano, mas foi perdendo o controle da sua sucessão, em especial, com a emergência de

Costa e Silva que atuava abertamente para ser o próximo presidente da República.

A política econômica implantada foi tornando-se cada vez mais difícil de se

sustentar à medida que cresciam as oposições - não só da esquerda, mas também da

direita mais “liberal”, na sociedade civil. Nos quartéis, Costa e Silva vinha ganhando

uma maior projeção, colocando-se como o principal nome para a sucessão de Castelo

Branco. O detalhe é que, a obstrução e o bloqueio a quaisquer tipos de “pressões

distributivistas” requeria um período autoritário de longo prazo que ia contra as

expectativas da coalizão que apoiou o golpe de 1964. Esta acreditava numa

“intervenção saneadora” dos militares para, após curto espaço de tempo, o poder

retornar aos civis. Então o governo cada vez mais ia se distanciando das suas

intenções “moderadoras”.96

Nesta trilha em que o governo - antes visto pelos quartéis como

excessivamente “moderado”, “conciliatório” e “complacente” com relação ao seus

opositores - seguiu para um caráter mais autoritário, sem maiores sutilezas,

merecem destaque os Atos Institucionais.

96 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.78.

149

O primeiro Ato Institucional não teve número, pois acreditava-se seria o único.

Mas a história foi bem diferente. O cenário em 1965, trazia a insatisfação dos

quartéis e a dissolução da coalizão anti-Jango, decepcionada com os rumos tomados

pelo governo de Castelo. Isso ficou mais claro com os resultados das eleições de

1965, onde o novo regime sofreu derrotas em dois importantes estados, que haviam

apoiado o movimento dos quartéis no ano anterior, a Guanabara e Minas Gerais. Daí

viria a sequência dos Atos Institucionais seguintes.

Para NAPOLITANO (2014),97

estes Atos traziam como principal objetivo o

reforço do Poder Executivo, particularmente da figura do presidente da República. Se

o poder presidencial se pautasse apenas nas Forças Armadas, poderia haver sérias

divergências e conflitos entre lideranças militares, jogando umas contra as outras, e

quem tivesse acesso direto à tropa estaria em vantagem. Para se evitar uma

fragmentação ou a formação de verdadeiras “facções” que poderiam erodir com a

unidade das Forças Armadas (unidade esta tão propalada durante o governo Jango,

que foi visto por muitos oficiais como uma “ameaça” que poderia trazer a quebra da

disciplina e da hierarquia na corporação), os Atos consolidaram uma forma de

“normatização autoritária”. Isto para repelir tais riscos, dando amparo jurídico à

tutela da sociedade civil e do sistema político através do Estado, evitando-se a

personalização do poder político que colocaria em xeque o caráter militar do regime.

Buscava-se rotinizar a autocracia, através da figura do presidente.

Então isso ajuda a entender porque, no Brasil, o regime não foi a ditadura de

um só homem (general), mas se teve a passagem de cinco generais-presidentes, em

nome de uma “rotina normatizada” em que havia todo um processo de “articulação

sucessória” que levaria ao nome do próximo presidente, criando-se uma estranha

lógica amparada por normas, em que o regime era autoritário, mas mantinha-se uma

“fachada democrática” com um Congresso Nacional mantido em funcionamento

(com exceção de alguns períodos). Era assegurado e “legitimado” tal sistema com o

Legislativo federal “referendando” o próximo presidente, já devidamente escolhido

pelos militares.

97 Id., Ibid., p.79 e 80.

150

Claro que aí não havia nenhuma democracia, nem participação popular nisso

que está sendo exposto, porém o emaranhado de legislações que basilavam o sistema

autoritário, mais toda a retórica magistratural, davam uma máscara de “legitimidade”

ao regime. Talvez este embrenhado sistema político, que dava abertura ao cidadão

para votar em cargos Legislativos, por exemplo; a existência de partidos políticos

(não um, mas dois, sendo um deles de oposição – consentida – mas de oposição);

toda essa normatização política e jurídica; e a elaboração de macroplanos de

desenvolvimento para o país (ou para determinadas regiões, como a Amazônia) -

entre outros fatores, possam ser o cerne que ajudaria a explicar porque o regime

militar brasileiro se diferenciaria de outros congêneres da América do Sul, na mesma

época.

O revés eleitoral foi respondido pelo regime com a promulgação do Ato

Institucional n°2. O AI-2 pode ser visto, como já mostrado antes, como um marco na

mudança de um governo que se considerava transitório para um regime autoritário

solidamente estabelecido. Foi a cisão, praticamente definitiva, entre os militares e os

políticos conservadores que queriam assegurar seus interesses partidários e eleitorais,

como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros. O AI-2 fora a definitiva certidão de

nascimento do regime autoritário se rememorarmos a colocação de Marcos

Napolitano.

Para BARROS (1998), o AI-2 não representou o nascimento do regime militar,

(para ele, o começo foi com o golpe de 1964), mas o AI-2 foi ali apontado como um

momento em que o regime encorpou tornando-se mais sólido e explícito quanto às

suas intenções.

Em fevereiro de 1966, vem o AI-3, estabelecendo as eleições indiretas para

governadores e nomeação de prefeitos para as capitais. Em março são criados, por

imposição do Ato Complementar nº4: a Arena (Aliança Renovadora Nacional), como

partido da situação; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), como partido da

oposição consentida.

O AC-4 exigia que as organizações partidárias registrassem no mínimo 120

deputados e 20 senadores. Na época, a Câmara Federal contava com 409 deputados,

e o Senado com 66 membros. Pela matemática seria possível organizarem-se três

partidos. Mas, não era o que o regime queria. O objetivo aí era duplo: 1º) evitar um

151

sistema de partido único; e 2º) barrar a fragmentação partidária do período

precedente. Assim restava-se a alternativa do bipartidarismo, inspirado nas

democracias anglo-saxãs (Estados Unidos e Reino Unido).O grande problema do

sistema bipartidário estabelecido em 1965-66 era o seu artificialismo (SCHIMITT,

2000). Colocado de cima para baixo, este sistema não foi fruto de uma dinâmica das

preferências eleitorais da opinião pública ao longo do tempo.

Segundo a cientista política Maria D’Álva Kinzo (in :SCHIMITT, 2000), o

propósito estratégico do regime era montar um sistema partidário organizado em

termos de apoio ou oposição ao governo. Uma única legenda com todos os

congressistas, de diferentes tendências políticas, mas favoráveis ao regime. E um

modesto partido de oposição reunindo o restante.

O problema deste artificialismo é que toda a classe política da época, ainda que

apresentasse muitíssimos defeitos e fosse passível de diversas críticas, ficou

comprometida. Isso porque para os parlamentares da oposição, quais seriam os

limites para uma atuação efetiva em um regime militar, e como poderia afetar o

desempenho da agremiação em eleições realizadas dentro de um período autoritário.

Para o núcleo que reunia os apoiadores do regime, restava a dúvida se a reunião de

diferentes grupos políticos, numa única legenda, poderia afetar as disputas políticas

regionais, em que tais grupos eram frequentemente rivais.

O teste, pelo governo militar, desse sistema bipartidário nas eleições seguintes,

e os resultados favoráveis ao governo, permitiu a manutenção de tal sistema pelo

regime até onde lhe fosse conveniente.

Ao todo foram, entre 1964 a 1977, 17 Atos principais, 104 Atos

Complementares e os “decretos secretos”, que constituíram este emaranhado de leis.

O governo Castelo baixou 4 Atos Institucionais e, no ano de 1967, foi criado o

Conselho de Segurança Nacional, amparado por nova Lei de Segurança Nacional,

tornando virtualmente todo cidadão um vigilante e um suspeito, ao mesmo tempo,

dada a variedade de crimes políticos. É como se cada cidadão fosse um potencial

perigo à “segurança interna”.

Todo este sistema de segurança pautava-se numa rígida divisão de tarefas: uns

coletavam informações, outros analisavam e outros reprimiam. Segundo

152

CHIAVENATO (2006), o trabalho mais “sujo”, relacionado às torturas e

interrogatórios, ficavam a cargo do Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e

do Dops (utilizando-se a estrutura das secretarias de segurança estaduais). Os

encargos da Polícia Federal eram a repressão e a censura.

Chiavenato também aponta que o SNI não foi somente legalizado e

reconhecido apenas três meses após o golpe. Também afirma que o general Golbery

já vinha organizando a estrutura do SNI, ainda na fase de conspiração. Sua base

foram os arquivos do Grupo de Levantamento de Conjuntura, do Ipes. Do Ipes para o

SNI foram transferidas as fichas de 400 mil cidadãos “suspeitos”.

Era como se fosse um “Estado policial” (termo de Chiavenato). A rotina de

interrogatórios, torturas e até de perda de empregos atormentavam os suspeitos.

Quando não era uma propaganda “ufanista” do regime, o medo era disseminado à

população estimulando-se a delação. Mais adiante, já em 1969, verdadeiras “cartilhas

de segurança” foram distribuídas pelos Dops nas portarias de prédios, fábricas,

escolas, etc., com orientações do tipo:

“Antes de formar uma opinião, verifique várias vezes se ela é realmente sua,

ou se não passa de influência de “amigos” que o envolveram. Não estará sendo você

um inocente útil numa guerra que visa destruir você, sua família e tudo mais o que

você ama nesta vida?” (CHIAVENATO, Júlio José. O Golpe de 64 e a Ditadura

Militar, Ed. Moderna, São Paulo, 2006 – Coleção Polêmica – págs 152 e 153)

Lembremo-nos que naquele ano a opção pela luta armada, por parte de alguns

setores das esquerdas, estava numa maior evidência.

Em junho de 1964, foi aprovada a Lei de Greve que tramitava há 14 anos no

Congresso. Seu relator foi o deputado Ulysses Guimarães (PSD), que, segundo

Roberto Campos, se encontrava bastante entrosado com o sistema revolucionário.98

A nova lei criou dificuldades para a eclosão de greves. Proibia a paralisação dos

servidores públicos, os “piquetes ofensivos” e as greves “por motivos político-

partidários, religiosas, sociais, de apoio ou solidariedade. Ou seja, a conclusão é que,

na prática, as greves estavam proibidas. O mesmo Ulysses Guimarães foi o autor do

substitutivo da nova lei de Remessa de Lucros, substituindo a anterior, de 1962.

98 VILLA, Marco Antônio. Op.cit.p.62.

153

Foram retirados os artigos que criavam dificuldades à livre circulação do capital

estrangeiro

O governo ainda preservava algumas liberdades como a de opinião e

expressão, evitando uma ruptura frontal com valores liberais que também tinham

apoiado o golpe de 31 de março de 1964. Generalizando, pode-se incluir entre os

liberais: a grande imprensa, os grandes empresários e suas associações, políticos

udenistas, os inimigos do trabalhismo e do getulismo, profissionais liberais e muitos

dos velhos políticos do PSD.

Exemplo disso foi o próprio Juscelino Kubitschek, que se em 1961, ficara um

tanto contrariado com a solução parlamentarista para a posse de Jango, acreditando

que aquilo era apenas uma forma de adiar o enfrentamento de uma grave crise que

realmente viria depois, no período janguista. No entanto, mostrara-se neutro no

episódio do golpe de 1964, mas em seguida, ajudara a eleger Castelo Branco, por

acreditar que a deposição de Goulart fosse a melhor opção naquela ocasião, para

talvez, o próprio JK voltar em 1965 disputando as eleições para presidente. Não foi o

que aconteceu. Apenas dois meses após o golpe, JK foi cassado para a satisfação dos

quartéis, desejosos de se livrarem de políticos vistos como populistas e identificados

com a fase anterior da República brasileira. Via-se que as cassações já não se

restringiriam às esquerdas, mas também atingiriam até políticos conservadores da

fase precedente. Carlos Lacerda, que articulara pela cassação de Juscelino, visando

sua própria candidatura à presidente em 1965, romperia com Castelo naquele mesmo

ano, insatisfeito com os rumos econômicos que o governo vinha trilhando.

Desde o início do governo militar, a esquerda, como não podia deixar de ser,

foi perseguida em todas as suas matizes. Políticos identificados com a velha ordem

foram cassados nos primeiros dias de abril e tiveram que sair do país. Entre a

liderança nacionalista, o principal alvo foi Leonel Brizola, que buscou exílio no

Uruguai, assim como ocorrera com Jango.

Na verdade, um sistema partidário e os políticos “de ofício” eram um entrave

para os militares que, à luz do pensamento geopolítico brasileiro, desejavam uma

ditadura republicana, em que os mais capazes tutelariam os conflitos de classe de

uma forma técnica. Dentro desta influência positivista, o regime ideal para os

militares seria aquele sem contestações ou conflitos. Por isso, um caminho para isso

154

era a repressão e a Doutrina de Segurança Nacional (DSN) se adequava à essa

tradição militar.

Carlos Lacerda, ironicamente, se aproxima de Juscelino e até de João Goulart,

procurando articular a Frente Ampla. O momento parecia propício, já que Castelo

Branco enfrentava dificuldades em colocar o Brasil no rumo do crescimento. O

Executivo federal vinha em atrito com o Congresso Nacional que se recusara em

confirmar a cassação de seis parlamentares. Tal impasse levou ao fechamento do

Legislativo federal por 32 dias, em 1966. O regime atingia a marca de 67 cassações

parlamentares desde o seu início.

A Frente Ampla, em seu manifesto, criticava a política recessiva de Castelo e

defendia o processo democrático, interrompido em 1964 (e que Carlos Lacerda, aliás,

tanto trabalhara para interrompê-lo também), apelando para empresários,

trabalhadores, estudantes e até aos sentimentos patrióticos dos militares contra a

“traição” antinacional e antidemocrática do regime. Mas, buscava-se o diálogo, e não

uma luta armada.

Quanto às esquerdas, o PCB procurava se articular com alguns liberais,

arrependidos de terem apoiado o regime, e apregoava por uma resistência civil (não

armada) ao mesmo regime. Esta postura de procurar se unir a outros grupos

contrários ao regime, denunciando o governo como “entreguista” e subserviente aos

Estados Unidos sem, contudo, radicalizar o discurso em prol da revolução socialista,

seria a brecha para que alguns de seus quadros se desligassem do “Partidão” e

partissem para a luta armada.

O espaço para a resistência democrática – e com forte presença da classe média

urbana – era a cultura em seu sentido mais amplo (VILLA, 2014): a literatura, a

música popular, o cinema e o teatro, que tematizavam os dilemas do país. Apesar da

repressão e da censura, ocorreram os primeiros festivais de música popular. Primeiro

na TV Excelsior (1965), depois na TV Record e na TV Globo (1966). No teatro, as

peças politizadas dos teatros Oficina e Arena, a poesia e a prosa engajadas, e vários

filmes da conjuntura política e com foco especialmente no mundo rural.

No ano de 1966, Carlos Lacerda, buscando o apoio de antigos inimigos

políticos como João Goulart e Juscelino Kubitschek, articula a Frente Ampla. O

155

movimento estudantil foi ganhando corpo sendo combatido pela polícia. Ainda neste

ano editou-se o AI-4 convocando-se o Congresso para discutir e aprovar a nova

Constituição, promulgada em 24 de janeiro de 1967, reforçando sobremaneira o

Poder Executivo e, dentro deste período, também seriam impostas a Lei de Imprensa

(prevendo sérias punições aos jornalistas transgressores) e a Lei de Segurança

Nacional.

O Ato Institucional nº 4 foi o fechamento com “chave de ouro” da “ditabranda”

de Castelo Branco. O Congresso havia sido convocado para apreciar o projeto da

Constituição, num prazo de 33 dias corridos, entre 12 de dezembro de 1966 a 24 de

janeiro de 1967, descontando-se os dez dias de recesso das festas de fim de ano. O

projeto teve a redação final do ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva. Pode

parecer piada mas, de acordo com o ministro Medeiros, os parlamentares deveriam

se adequar aos “novos tempos”:

“A Revolução não se fez somente para extirpar a Carta Magna preceitos que,

no curso do tempo, se tornaram obsoletos; tinha de inovar e o fez, através de Atos e

Emendas Constitucionais, com o objetivo de consolidar a democracia e o sistema

presidencial de governo.” (grifo meu) (VILLA, 2014. Op.cit. pág. 95)

A eleição direta para presidente foi eliminada. Foi estabelecido o Colégio

Eleitoral. Destacável foi a justificativa do ministro da Justiça:

“ O traumatismo da campanha pela eleição direta ou degenera o processo

eleitoral ou impede o vencedor de governar em clima de paz e segurança. É preciso

mudar o processo de escolha do presidente da República, instituindo-se a eleição

indireta, por um colégio eleitoral restrito.” (grifo meu) (Id.,Ibid., pág. 96)

E vem mais: “Com isso, a campanha dos candidatos ficará limitada no tempo

a um eleitorado qualificado. A agitação e o traumatismo, que a escolha do

presidente tem provocado, cessarão por falta de ambiente e ressonância” (grifo

meu) (Citado por SARASATE, Paulo. A Constituição do Brasil ao alcance de todos.

Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1967, pág 103 in: VILLA, 2014. Op. cit. pág. 96)

Para completar, a nova Carta deu ao presidente da República a iniciativa

legislativa através do decreto-lei.E os atos praticados pelo “Comando Supremo da

Revolução” seriam excluídos de apreciação judicial e automaticamente aprovados.

156

Gustavo Capanema, experiente deputado da época, definiu: “Vocês da UDN, que

tanto combateram a Polaca de 1937, aparece-nos agora defendendo esta

Superpolaca” (grifo meu) (VILLA, 2014. Op.cit. pág. 98, nota de rodapé nº34)

Em 15 de março de 1967, Castelo encerrava seu governo. A sua “ditabranda”

legou ao país uma herança política de 4 atos institucionais, 37 atos complementares,

312 decretos-leis e milhares de atos punitivos (muitos já citados antes). Porém, a

economia começava a reagir: a inflação caiu de 92% (em 1964) para 39% (em 1966).

O PIB voltara a crescer – da taxa de 0,6% (em 1963), registrou uma média de

crescimento de 4,2% (entre 1964 a 1967). O Estado brasileiro foi reformado. O

sistema fiscal e tributário, idem. Buscou-se uma maior integração à economia

mundial.99

Mas, no plano político não conseguiu harmonizar a “fúria” dos quartéis, dos

grupos que podemos aglutinar na chamada “linha-dura” militar, com a manutenção

de algum espaço para a política. Não fez o sucessor do seu agrado. Prometeu

entregar o governo em janeiro de 1966, mas só sairia 14 meses depois. A meu ver,

não tem como chamar tal período de “ditabranda”, com tantas medidas autoritárias

realizadas, com uma nova Carta Magna que desnudava a cara do regime, e com uma

cimentação e alicerces tão solidamente institucionalizados para a construção do

regime. Mas, o aparecimento do termo “ditabranda” pode significar também que o

pior estava para vir (se tomarmos, em especial, o aspecto político-institucional do

regime). E veio, com o AI-5 e os Anos de Chumbo”.

99 Id., Ibid., p.102.

157

3.2 – Governo Costa e Silva (1967-1969)

Arthur da Costa e Silva, o 2º general-presidente do regime militar. Governou o Brasil de

15/03/1967 a 31/08/1969

http://pt.wikipedia.org/wiki/Costa_e_Silva

O general Artur da Costa e Silva tomou posse como presidente em 15 de março de

1967. Golpista desde o início e anti-comunista, era ligado à "linha-dura". Em seu

discurso de posse, conforme VILLA (2014),100

utilizou o vocábulo “revolução” por

quatorze vezes; e o vocábulo “democracia” por oito vezes. Como não podia deixar de

ser, defendeu o regime com entusiasmo, fruto de uma “Revolução” e não de um mero

golpe de Estado. Reforçou que o regime tinha “profundas origens populares” já que as

Forças Armadas estiveram ao lado do povo na luta pelos mesmos ideais.

Reforçando-se os argumentos de Costa e Silva vem a seguir um trecho de seu

discurso:

100 Id., Ibid., p.106.

158

“Há, todavia, quem fale em ditadura, como se nós não a tivéssemos conhecido

jamais. O desmentido está no fato de ser possível formular e divulgar a crítica injusta,

que se manifesta, sem obstáculos na imprensa, na tribuna pública, nos movimentos

políticos. E o desmentido mais flagrante está precisamente nesta hora em que o

Congresso Nacional, como representante autêntico do povo brasileiro, elege um

presidente da República. Numa ditadura, o ditador não se deixa substituir. Entre nós, o

escrúpulo republicano foi de tal monta, que o mesmo presidente Castello Branco, num

gesto altamente democrático, estabeleceu, em Ato Institucional, o preceito proibitivo de

sua reeleição”101

Percebe-se aqui que o regime militar brasileiro verdadeiramente se diferenciou de

outros regimes militares latino-americanos (basta lembrar que, no Chile, o general

Pinochet permaneceu no poder por dezessete anos ininterruptos, entre 1973 a 1990).

Tanto que Costa e Silva argumentou com a não perpetuação de Castelo Branco na

Presidência da República, reforçando que um Congresso Nacional em funcionamento,

eleito pelo povo, referendava a posse do segundo mandatário do regime de 1964. Por

outro lado, na Argentina e no Peru, por exemplo, não tivemos um único ditador, em

seus respectivos regimes militares. Todavia, a caracterização de um presidente

transferindo o poder a um sucessor, com um Legislativo em funcionamento, realmente

confunde a cabeça de um cidadão mais “desatento” dando uma maquiagem

“democrática” ao grupo que está no poder. Daí que, relembrando a fala da professora

Maria Aparecida de Aquino, o termo “ditadura”, para ser aplicado no caso da situação

político-institucional do pós-1964 seria bastante controverso. Assim repito, prefiro me

referir ao período como “regime militar” ou “Estado autoritário”. Quando muito poderia

referir-se à uma “ditadura militar”, no sentido de ser a ditadura, não de um único

governante, mas de um determinado grupo – os militares, as Forças Armadas – que

ditaram as regras durante aqueles 21 anos, como relembrei mais de uma vez. Embora

seja digno de nota que o Exército teve mais preponderância do que a Marinha e a

Aeronáutica. É só lembrar que os cinco presidentes deste período autoritário eram todos

generais, com carreiras no Exército, e mais ainda, os militares que ocuparam cargos

importantes durante o período, como no primeiro escalão sendo titulares de pastas de

101 Id., Ibid., p.107.

159

Ministérios, vinham do Exército. O único momento em que teremos uma repartição do

poder entre as três Forças será na formação da Junta Militar que, durante poucos e

decisivos meses de 1969 (entre agosto e outubro) e a despeito das disputas sucessórias

após a grave enfermidade de Costa e Silva, conseguiu assegurar um processo sucessório

para a posse do general-presidente seguinte: Emílio Garrastazu Médici.

No governo Costa e Silva, o planejamento ganharia importância nas práticas do

governo privilegiando o capital privado e fortalecendo o aparelho estatal. Na equipe

ministerial destacavam-se entre os civis: Antônio Delfim Neto - da Fazenda; Hélio

Beltrão - do Planejamento; e Magalhães Pinto (ex-governador mineiro) - nas Relações

Exteriores. Aliás, Magalhães Pinto foi o último titular daquela pasta vindo dos quadros

de fora do Itamaraty. A sua indicação foi uma forma de ter um político civil influente no

governo para evitar de tê-lo numa oposição, ainda que moderada, como ocorrera no

governo Castelo Branco.

Contudo, havia o predomínio de figuras militares como: os coronéis Mário

Andreazza - nos Transportes; Jarbas Passarinho - na pasta do Trabalho e Previdência

Social; e o general Emílio Garrastazu Médici que se tornou chefe do SNI (Serviço

Nacional de Informações).

Como uma forma de se popularizar a figura do presidente e o próprio regime, o

discurso e a ação eram voltados a evitar uma valorização da forma ditatorial do governo

como sendo positiva. Isto porque, indiretamente, seria manifestar apoio ao Estado

Novo, e 1964, na leitura dos militares, tinha que ser uma resposta ao varguismo102

Mas nem todos estavam “desatentos”. O líder da oposição na Câmara Federal, o

deputado Mário Covas, afirmara que o presidente fora bastante superficial nas propostas

para combater os principais problemas nacionais e reestabelecer a democracia. Mais

adiante será visto que foi a partir de um episódio ocorrido na Câmara que o regime terá

o pretexto para a implantação do AI-5.

Na economia, a política recessiva de Campos e Bulhões, colocada em prática

durante a gestão de Castelo Branco, provocava críticas até do médio empresariado

102 Id., Ibid., p. 109.

160

nacional que tinha apoiado o regime. Delfim Neto acreditava que o problema

inflacionário já havia sido equacionado e, com o objetivo de se recuperar o crescimento,

a sua equipe, junto com a de Hélio Beltrão, participaram da elaboração do Plano Trienal

de Governo para o período de 1968 até 1970. Contudo, antes deste Plano, Hélio Beltrão

havia lançado o Programa Estratégico de Desenvolvimento que procurava solucionar os

problemas referentes aos financiamentos para a comercialização dos alimentos; fazer

crescer a produtividade econômica; e combater pontos de estrangulamento através do

desenvolvimento infra-estrutural. Mantinha-se a custo disso o arrocho salarial aos

trabalhadores. Com Delfim Neto, seriam adotadas medidas de redução dos juros

facilitando o crédito para empresas multinacionais buscando-se acelerar o crescimento

da economia e tirá-la da recessão.

No governo Costa e Silva, a Frente Ampla foi se tornando o verdadeiro órgão

civil de oposição ao regime atraindo até os militares descontentes. O ano de 1968 seria

marcado por esta e outros setores oposicionistas ganhando força nas manifestações,

pronunciamentos, greves, bem como o avanço da guerrilha urbana. Estes doze meses

foram de esperança, que se defrontaria com o aumento da repressão culminando com o

Ato Institucional nº5, de dezembro de 1968.

Oficialmente formalizada em 4 de setembro de 1967, a Frente Ampla pode ter

consideradas como suas “certidões de nascimento”: o Manifesto da Frente Ampla,

redigido por Lacerda e publicado no jornal Tribuna da Imprensa, em 28 de outubro de

1966; e a Declaração de Lisboa (de 19 de novembro de 1966) em que Lacerda, após

inicialmente conversar com JK, divulgou a declaração se comprometendo a reunir

forças contra o regime. A Frente era resultado de uma ação do ex-governador da

Guanabara, Carlos Lacerda, em se aproximar dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e

João Goulart, procurando se constituir em uma frente política mais fortemente

estruturada contra o regime militar.

Não seria tarefa fácil reunir lideranças tão díspares e de projetos tão distintos. O

programa mínimo da Frente era a da defesa de uma anistia geral, uma nova

Constituição, o reestabelecimento de eleições diretas e um programa de reformas. A

aliança entre Lacerda, JK e Jango contava com o apoio de parlamentares da Arena e do

MDB, além de numerosos políticos que não aderiram ao bipartidarismo.

161

Lacerda era o único daqueles três que ainda contava com direitos políticos. Sua

intenção era retornar ao primeiro plano do cenário político. Lacerda, como de praxe,

atacava e criticava, agora, o segundo governo militar, assim como fizera com Castelo

Branco, e antes do golpe: com Jango, com Getúlio... Foi o primeiro político a utilizar a

televisão para as suas mensagens, mas os tempos eram outros e, em 28 de agosto de

1967, estava proibido de falar na TV.

Não se dando por vencido, no mês seguinte, Lacerda anunciou que se encontraria

com João Goulart no Uruguai. Tal encontro e possibilidade de diálogo seriam

inimagináveis quatro anos antes. Porém, tal anúncio desgastou Lacerda com os militares

que o apoiavam. Se Carlos Lacerda recebeu críticas dos militares simpáticos a ele,

Goulart também seria criticado por outro exilado no Uruguai, Leonel Brizola.

A Frente, além das divergências entre seus principais expoentes, também não

conseguiu deslanchar. A força de Jango se restringia somente ao Rio Grande do Sul, seu

estado natal, e ele já não tinha o controle dos antigos trabalhistas. Juscelino, agora

desprovido da máquina partidária do PSD, escorava-se no seu prestígio de ex-

presidente. O único que ainda conseguia fazer algo efetivo era Carlos Lacerda, através

de seus pronunciamentos públicos criticando o militarismo, a política econômica e a

corrupção (o que não era novidade em se tratando de Carlos Lacerda).

Geograficamente, a Frente teve maior expressão no Rio de Janeiro. Somente

Lacerda havia nascido lá, mas seus principais líderes residiam na cidade que antes era a

antiga capital federal. Ali, a Frente encontrou maior ressonância, porém não conseguiu

aglutinar uma mobilização das massas. Faltava uma estrutura permanente, quadros

políticos ativos e objetivos a serem alcançados. Já em São Paulo, a Frente Ampla foi

bastante tímida, talvez pelo tradicional conservadorismo paulista, mas principalmente

porque suas principais lideranças políticas – Jânio Quadros e Adhemar de Barros –

estavam com os direitos políticos cassados e não foram efetivamente procurados para tal

iniciativa. Além disso, nos cenários políticos paulista e paulistano, novos líderes

apareciam, dando à cidade e ao estado de São Paulo, uma feição peculiar, produto da

expansão capitalista e da formação de uma sociedade burguesa.

A Frente Ampla teve suas atividades proibidas em abril de 1968. Foi a última

tentativa de uma oposição civil, marcadamente contando com políticos da ordem

162

institucional anterior. O seu fracasso representaria praticamente o fim da história

política de Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e de João Goulart.

1967 foi o ano do anúncio dos estudos realizados para a construção da primeira

usina nuclear no Brasil. Esse projeto estava associado a uma política que englobava o

sonho de se construir uma bomba atômica brasileira. O argumento era que a Argentina

estava à frente do Brasil no domínio da tecnologia nuclear. Para tanto, o Brasil não

apoiou as primeiras iniciativas que levariam ao Tratado de Não Proliferação de Armas

Nucleares. Pelo menos, nesse ponto, que podemos considerar até crucial por conta do

contexto da ordem internacional da bipolaridade (Guerra Fria), o Brasil apontava para

uma política externa distinta da que fora adotada nos tempos de Castelo Branco,

buscando guardar certa independência com relação aos Estados Unidos naquele

momento.

O ano de 1968 se inicia com a emersão de um novo desgaste no regime militar:

havia certo “cansaço”103

com a presença dos militares em todas as esferas do governo.

Nesta atmosfera, o governo encaminhou para o Congresso uma lista com 234

municípios para transformá-los em “áreas de Segurança Nacional”, o problema é que a

lista apresentava, em sua maioria, municípios com forte oposição do MDB, como era o

caso de Campina Grande, na Paraíba, onde a oposição era majoritária. O projeto

enfrentou resistência até de políticos da Arena. Por fim, a lista caiu para 68.

O movimento estudantil acabou capitalizando a insatisfação com o regime. A

agitação estudantil também deixaria suas marcas em outras partes do mundo – como na

Europa Ocidental e na própria América Latina (no Mexico, por exemplo, no mesmo dia

em que ocorreu a “Batalha da Maria Antônia”, em São Paulo, ocorreu o massacre dos

estudantes na Praça das Três Culturas, na Cidade do México. As manifestações estavam

mais concentradas no Rio de Janeiro. A 28 de março ocorreria o assassinato do

secundarista Édson Luís gerando inúmeras manifestações de protesto. Em 1º de abril

103 Id., Ibid., p. 118. Marco Antônio Villa (2014), em sua obra usou o vocábulo “cansaço” para se

referir ao desgaste, que se acentuava, por conta da combinação, dentro do regime militar, entre

caracterísiticas autoritárias (como a legislação “revolucionária” que já trazia 4 Atos Institucionais; e

características ditas “liberais”, como o funcionamento do Congresso Nacional. Para Villa, esta

estranha combinação tinha chegado ao limite.

163

mais um estudante seria morto em uma passeata, desta vez em Goiânia. Seguiram-se

protestos não no tocante à situação política, mas também contra a má qualidade do

ensino.

Os setores mais “duros” do regime desejavam fechá-lo ainda mais. Aproveitando-

se de uma certa tibieza de Costa e Silva, usavam como argumento ao “fechamento” do

regime o exemplo, visto como positivo, da ditadura de Juan Carlos Onganía, na

Argentina.104

A tensão se agravava. Em 19 de março, os grupos da esquerda que optaram pela

luta armada davam seus sinais de fôlego: uma bomba explodiria no consulado

americano, em São Paulo. Há duas versões: uma atribui o ato à VPR (Vanguarda

Popular Revolucionária); uma outra à ALN (Aliança Libertadora Nacional). Bombas

também explodiram, no mês seguinte, no jornal O Estado de São Paulo e outra na sede

da Bolsa de Valores.

O MDB estava dividido: uma ala do partido desejava um enfrentamento mais

contundente e direto contra o regime; outra ala defendia a manutenção de uma política

conciliatória e de diálogo com o governo.

Para apimentar mais a situação, após quatro anos se inicia a primeira greve de

trabalhadores do período autoritário. Foi em Contagem (MG), centro de indústrias

metalúrgicas. A greve teve a liderança de vários grupos de esquerda oriundos da

fragmentação do PCB. A cidade chegou a ser ocupada pela polícia. Jarbas Passarinho,

então ministro do Trabalho, chegou a falar pessoalmente com os operários. O

movimento seria encerrado pelo menos com uma vitória: os trabalhadores conseguiram

um aumento de 10% sem desconto na data base oferecido pelo governo. Se não era

muito, pelo menos, rompeu-se naquele episódio o arrocho salarial.

Enquanto isso, em São Paulo, o governador Abreu Sodré, compareceu a um ato do

1º de maio, na Praça da Sé. Ele tentava articular um movimento para ser o sucessor de

Costa e Silva. O problema é que havia lideranças de esquerda ali também e os discursos

se radicalizaram. A presença do governador paulista naquele ato, após os

104 Id., Ibid., p. 120.

164

acontecimentos de Contagem só agitaram os ânimos. No final das contas, atingido por

um pedrada, Abreu Sodré teve que ser retirado.

Se o governo ia conseguindo frear os políticos, mudando o status de 68 cidades

declaradas “áreas de Segurança Nacional”, podendo assim impedir que o MDB tivesse a

possibilidade de eleger 90 prefeitos, inclusive das 22 capitais, o regime também

aproveitava a oportunidade para aprimorar o controle arenista no Legislativo Federal e

nos estaduais. Contudo, com os estudantes a situação era muito mais complicada.

Violentos confrontos ocorreram nas ruas da antiga capital federal entre estes e a polícia.

Negrão de Lima era o único governador da oposição (ultramoderada, por sinal) naquela

época. Mesmo assim, o governo federal não deu brechas ao impor um novo secretário

de Segurança Pública.

Em 26 de junho, no Rio de Janeiro, ocorreria uma passeata com mais de 100 mil

pessoas com presença de universitários, políticos, professores, intelectuais, etc., mesmo

após a proibição, no dia anterior, através de uma portaria do Ministério da Justiça. A

célebre passeata foi o ápice do movimento contra os arbítrios do Estado Autoritário. As

bandeiras estudantis deram o tom da passeata, mas as reivindicações por liberdades

democráticas e o fim da censura estavam também na pauta. A manifestação levou o

presidente Costa e Silva a receber uma comissão constituída por manifestantes lá em

Brasília. Contudo um diálogo e uma negociação pareciam cada vez mais impossíveis e

nenhum avanço foi obtido.

165

Momento da “Passeata dos 100 mil”, Rio de Janeiro, 26 de junho de 1968

Fonte: http://www.estudopratico.com.br/wp-content/uploads/2014/07/passeata-dos-cem-mil.jpg

Outro momento da “Passeata dos 100 mil”, em 26/06/1968, na cidade do Rio de Janeiro. Naquele dia, as

oposições ao regime militar mostraram a sua força. Mas o sonho de um Brasil diferente, com liberdades

políticas e redemocratizado, seria desfeito no final daquele ano com o AI-5

Fonte: https://palavrastodaspalavras.files.wordpress.com/2008/06/1968-passeata-do-cem-mil-rj-sem-

credito-1998-009917_pop.jpg

166

Ainda que o movimento estudantil estivesse a todo o vapor, o aumento da

repressão fez a classe média recuar no apoio aos movimentos de resistência. Outro

problema era a indiferença popular que não se identificava com os estudantes. O

cotidiano dos trabalhadores e dos segmentos médios da sociedade era diferente e os

sinais de crescimento econômico deixavam estes últimos grupos mais acomodados e

ajudavam a legitimar o regime. Exemplo disso foi a “Batalha da Maria Antônia” em

que alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São

Paulo (FFCL-USP) entraram em violento confronto com estudantes da Universidade

Presbiteriana Mackenzie. Nesta batalha, um aluno secundarista, José Carlos

Guimarães, foi morto com um tiro na cabeça. Porém, ao contrário da morte do

secundarista Edson Luís, apenas seis meses antes, esta morte ocorrida em 2 de

outubro de 1968 passou quase despercebida. De acordo com BARROS (1998), os

alunos da Universidade Mackenzie eram ligados ao CCC (Comando de Caça aos

Comunistas) e com a ajuda da polícia, tomaram a FFCL-USP, na época localizada

justamente na rua Maria Antônia. Ao tomar a Faculdade, o CCC incendiou o prédio

após a expulsão de seus defensores.

Infelizmente os estudantes estavam ficando cada vez mais isolados e a opção

pelo extremo da luta armada vinha se tornando a única alternativa para grupos mais

radicais da esquerda que, num contexto de recuperação da economia e de futuras

possibilidades para as classes médias, também ficaram cada vez mais isolados. Era

isso que o regime queria. Para completar, ainda em outubro, o XXX Congresso da

UNE em Ibiúna (SP) teve um desfecho péssimo com a prisão de todas as principais

lideranças do movimento estudantil nacional, entre eles José Dirceu.

Ao mesmo tempo, em São Paulo, pequenos grupos da esquerda iam à ação. Em

22 de junho foram roubados onze fuzis do Hospital Militar, na capital paulista. E,

quatro dias depois, quando se desenrolava a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro,

a cidade de São Paulo foi palco de um ataque perpetrado pela VPR (Vanguarda

167

Popular Revolucionária). Um carro carregado de explosivos foi lançado contra o

alojamento dos oficiais do II Exército causando a morte do sentinela Mário Kozel

Filho, de apenas 18 anos. Episódios como esse têm sido citados por críticos aos

trabalhos das Comissões da Verdade e aos Direitos Humanos, apontando que haveria

uma excessiva “vitimização” com relação aos guerrilheiros e membros de tais grupos

da luta armada (aliás, um grande número deles estão entre os mortos ou

desaparecidos da época do regime) querendo também trazer o foco da discussão para

os soldados e policiais que foram abatidos por tais grupos, procurando-se igualar tal

“vitimização” entre os dois lados. Porém, mais adiante, será tratada esta discussão.

Até porque, de outro lado, apareceriam também os grupos paramilitares, como o

CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e o MAC (Movimento Anticomunista) que

promoveriam o terrorismo e acabariam por ser um apoio à repressão policial do

governo na luta contra os "subversivos". Interessante que esses grupos paramilitares

não são mencionados por tais críticos dos trabalhos realizados pelas Comissões da

Verdade e nem as violências que esses grupos possam ter cometido (é só lembrarmos

da morte do secundarista na “Batalha da Maria Antônia”).

Menos de um mês após a passeata dos 100 mil é em Osasco (SP) que estoura

uma nova greve. Semelhantemente a de Contagem, a greve foi deflagrada fora da

estrutura sindical (que se encontrava engessada pelo governo) e ainda contava com o

envolvimento de setores à esquerda do PCB. Mas ali o resultado não foi bom. Após a

ocupação das fábricas, o exército foi chamado para retirar os operários, o que foi

feito à base da força, e a cidade de Osasco viveu dois dias de pura repressão.

Na esfera política, o clima entre o governo e a oposição, mais precisamente

entre o Executivo e o Legislativo federais foi piorando. Em setembro de 1968, o

discurso do carioca e jornalista, deputado Márcio Moreira Alves, na Câmara, em que

referiu ao Exército como um “valhacouto de torturadores”, acirrou a ira da linha mais

dura do regime que há muito vinha pressionando Costa e Silva. A Câmara Federal

168

não permitiu que Moreira Alves fosse processado por injúria às Forças Armadas,

garantindo assim a imunidade parlamentar. Era o pretexto que faltava ao Estado

autoritário. Em 13 de dezembro, Costa e Silva realizou uma primeira reunião só com

os ministros militares no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Depois reuniu-se

com todo o ministério. Foi apresentado o AI-5 em sua versão mais “branda”. A outra

versão, do ministro da Justiça, Gama e Silva (que se tornou a principal figura

representante dos mais extremistas do regime), previa nada menos do que o

fechamento permanente do Congresso, colocava o STF em recesso e intervinha em

todos os estados, depondo os governadores, ao pior estilo do Estado Novo de 1937.

Foi aprovada a versão “branda”.

Segundo o ex-ministro, Jarbas Passarinho, o AI-5 era um mal necessário, uma

licença jurídica para que a linha dura pudesse agir para prender os comunistas. Para

ele a ordem legal anterior dificultava o combate aos grupos armados de esquerda que

promoviam até “atos terroristas” (violência contra alvos civis). Dentro de seu

argumento, Jarbas Passarinho aponta a prisão de Carlos Marighella, em 1964, depois

solto através de um habeas corpus. Segundo as palavras do ex-ministro, só com o

amparo do AI-5 os militares conseguiram atacar.105

Por parte do ministro Jarbas

Passarinho veio um dos votos mais célebres à implantação do AI-5: “(...)às favas,

senhor presidente, todos os escrúpulos de consciência”.106

O mau desfecho de 1968 se caracterizaria pela promulgação do Ato

Institucional nº 5, em 13 de dezembro daquele ano, fechando o enrijecimento da

ditadura, que entre outros artigos permitia: o fechamento indiscriminado do

Congresso, assembléias estaduais e câmaras municipais; estabelecia cassações de

direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de até dez anos; suspensão do

105 Revista Aventuras na História. 50 anos do golpe: a ditadura militar no Brasil. São Paulo: Ed Abril,

2014. p.68 e 69.

106 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 42.

169

habeas corpus na infração da Lei de Segurança Nacional; a não apreciação judicial

dos atos praticados de acordo com o AI-5, bem como os seus respectivos efeitos, etc.,

sendo ao todo doze artigos. Fortalecia-se a perseguição aos opositores e oficializava-

se o terrorismo de Estado. O Congresso foi expurgado de vários parlamentares, o

Judiciário também foi outro alvo onde três ministros do Supremo Tribunal Federal

foram forçados a se aposentarem. A censura foi regularizada em março de 1969

proibindo-se críticas ao governo e notícias sobre manifestações de estudantes e

trabalhadores. No ensino foram criados os cursos de Educação Moral e Cívica,

obrigatório para os alunos. Os setores ultra-autoritários do regime estavam

contemplados. Centenas de opositores foram presos: líderes políticos, sindicalistas,

jornalistas, intelectuais, artistas, etc. De acordo com VILLA (2014), não houve sequer

uma manifestação ou ato público. O AI-5 foi recebido em silêncio. Preso, Carlos

Lacerda iniciou uma greve de fome, mas logo foi desestimulado por seu irmão.

Segue-se nas palavras do autor Marco Antônio Villa a fala do irmão de Lacerda:

“Os jornais não estão noticiando nada disso; as praias estão repletas; está um

sol maravilhoso e está todo mundo na praia; ninguém está tomando conhecimento

isso! Então você vai morrer estupidamente. Você quer fazer Shakespeare na terra de

Dercy Gonçalves?”107

Com tudo isso, parece comédia, mas não é. Em 27 de dezembro, Costa e Silva

declarava que o seu governo “não almeja nem tolera a ditadura”108

. Não vou

discutir aqui se 1968 realmente foi o ano que não terminou – conforme o título da

obra de Zuenir Ventura – mas o final daquele ano trouxe estes dois episódios para se

107 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 132.

108 Id., Ibid., p. 133.

170

refletir sobre aquele ano: a fala do irmão de Carlos Lacerda; e a declaração de Costa

e Silva a cinco dias do ano-novo.

Num quadro desses, a única forma de contestação foi a luta armada que

abrangiam organizações de esquerda como a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e

o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Todavia as suas ações repetitivas

de assaltos a bancos fez com que a população, já alienada pela propaganda do

governo, os confundisse como assaltantes comuns e esbarraram ainda também no

fortalecimento dos órgãos militares de repressão e tortura. Tal crescimento dos

mecanismos repressores e sua autonomia com o AI-5 fez com que Costa e Silva fosse

perdendo o comando sobre as Forças Armadas devido ao seu isolamento

político.109

O então presidente procurou então uma reforma constitucional, porém

teve que se afastar do cargo em virtude de uma trombose cerebral, assumindo o

governo uma Junta Militar.

Na trilha do AI-5, Costa e Silva decretou em 7 de fevereiro de 1969 o

fechamento de cinco Assembléias Legislativas – as de São Paulo, Rio de Janeiro,

Guanabara, Pernambuco e Sergipe – por contrariarem os princípios da Revolução e

cassou ainda 33 parlamentares. No mês anterior já haviam sido cassados os mandatos

e suspendidos os direitos políticos de 28 deputados federais, um senador e um

vereador. E outras cassações foram ocorrendo nos meses seguintes, como a do

diplomata Vinícius de Moraes. O Decreto nº477 era direcionado ao movimento

estudantil. Estabelecia as infrações disciplinares praticadas por alunos, professores,

funcionários ou empregados de estabelecimentos de ensino público ou particulares.

O governo estava cada vez mais isolado. Não havia diálogo com a sociedade

civil. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) que manifestara apoio

109 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 53.

171

ao regime, em maio de 1964, mudava o seu tom e posição um pouco menos de cinco

anos depois, assumindo uma postura de crítica ao regime. A falta de um espaço

político de luta fez com que a Igreja Católica cobrisse esse espaço não só com as

declarações de seus principais líderes, mas com o trabalho pastoral que começou a

ser desenvolvido, bem como uma guinada da juventude católica para a centro-

esquerda.

Costa e Silva estava há algum tempo desejando algumas alterações na

Constituição de 1967, preparando o país para uma transição para a democracia.

Tratava-se de uma emenda constitucional que não prometia trazer algo de novo, e

muito menos de bom. Tratava-se de incluir o AI-5 nas disposições transitórias, com

revogação prevista pelo presidente da República após consulta ao Conselho de

Segurança Nacional, assim como revogar ou comutar as sanções dos atos

institucionais, previa ainda a liberdade de associação e alguns direitos individuais.

Mas naquele tempo, com Congresso fechado; supressão das liberdades democráticas;

e violações gravíssimas dos direitos humanos, isso poderia representar uma pequena

“freada” na onda repressiva. O general-presidente apresentaria sua proposta em

setembro, quando viajaria ao Rio de Janeiro e assinaria a nova Constituição.

3.2.1- Embate Sucessório

Se forem considerados alguns prognósticos anteriores, não foi uma

completa surpresa a enfermidade que levaria ao afastamento de Costa e Silva de suas

funções presidenciais. Desde 1966, as condições de saúde daquele general-presidente

eram bastante precárias. Seu médico afirmara a um colega no momento da posse, em

março de 1967, que o presidente, até por já ter sofrido um enfarte, não resistiria por

172

mais do que dois anos (GASPARI, Elio. in: VILLA. Marco Antônio. Op.cit. p.140,

nota 33).

Costa e Silva cairia enfermo de vez em 29 de agosto de 1969, após dois dias

dos primeiros sinais de um derrame cerebral. Na época, o diagnóstico foi o de uma

“trombose na região parietal direita” ( Revista Veja, nº53, de 10 de setembro de 1969,

in: VILLA, Marco Antônio. Id., Ibid.,.p.144, nota 1º), afastando-o definitivamente de

suas funções, vindo a falecer em 17 de dezembro daquele mesmo ano. No momento

em que sofreu esta trombose, Costa e Silva finalizava a reforma constitucional que

desencadearia um processo de abertura política com a reabertura do Congresso,

reorganização partidária e o fim do AI-5. Os militares estavam muito divididos

acerca desta Constituição a ser aprovada, pois a principal alegação era a necessidade

de um Executivo forte. Daí resulta o impacto que teve o embate sucessório,

mobilizando o interior das Forças Armadas na época, acerca da sucessão de Costa e

Silva.

O embate, entretanto, era diferente do período democrático anterior, chamado

por CASALECHI (2002), de República Liberal ou de República Populista; e por

SCHIMITT (2000) de Terceira República.

O Estado autoritário de 1964 acarretou a saída de cena, especialmente do PTB

(identificados com Jango), desde os primeiros momentos do regime, em que a

maioria de seus quadros já haviam sido cassados. Posteriormente, as antigas

lideranças do PSD e da UDN (especialmente após o AI-5) perderam o seu espaço. A

elite política foi desaparecendo e figuras que poderiam ser consideradas até

medíocres - que num cenário democrático dificilmente teriam uma sobrevida

eleitoral - ganharam espaço à sombra do poder militar. A política tornara-se

sinônimo de algo ruim e parasitário. Para os militares muitas vezes a “velha” política,

era um empecilho, um embaraço. À medida que o jogo político estava manietado, a

oposição principal era agora a luta armada e as suas ações classificadas de

173

“terroristas”. Era o inimigo que os militares se sentiam mais à vontade para

combater, pois se tratava de uma guerra contra os “inimigos internos”, contra a

“subversão”, indo de encontro ao gosto dos militares que se sentiam muito menos

constrangidos em impor uma repressão cada vez mais feroz que asfixiava de vez a

oposição legal. O MDB carecia de maior legitimidade junto à população e muitas das

suas lideranças eram identificadas ao apoio dado ao golpe de 1964 e à eleição de

Castelo Branco.

O apoio popular poderia ser melhor expressada por essa indiferença à política,

conforme assinala VILLA(2014). No raciocínio do autor o regime se desembaraçava

de vez dos apoiadores civis do golpe e poderia agir sem as restrições do liberalismo.

A indiferença da maioria se pautava nos primeiros sucessos econômicos do regime,

que abrirão o período do “milagre econômico” – com queda da inflação, aumento do

emprego, crescimento do PIB e expansão do consumo, trazendo novas

possibilidades, sobretudo à classe média. É como se os êxitos econômicos, deixando-

se a crise enfrentada nesta área, não só por Jango (como no fracasso do Plano

Trienal), mas também por Castelo Branco (com sua política recessiva), tivessem

ficado para trás, abrindo-se as portas de um “Brasil Grande” para a nova década que

se aproximava.

Por outro lado, no verão de 1969, junto com o calor da estação, BARROS

(1998), assinalou que também havia o pânico e o medo para os adversários do

regime. O que as oposições conheceram como ditadura até o AI-5 não podia se

comparar com o que ocorreu depois. Nas palavras do autor, a sociedade brasileira

encontrava-se esmagada pelo Estado e desestruturada institucionalmente. É como se

a sociedade fosse um “conglomerado” de indivíduos amedrontados, vítimas do

tratamento dado pelos chefes militares à Nação. O regime militar se comportava

como um “exército de ocupação” que subjugou toda uma sociedade..110

110 Id., Ibid., p. 44.

174

Desde 1968, o ministro do Interior, general Albuquerque Lima, vinha

desejando se impor como o candidato à sucessão de Costa e Silva. Aproveitando-se

do desgaste o Executivo e do Legislativo federais, por conta do episódio envolvendo

o deputado Márcio Moreira Alves, ele se serviu do cargo para viajar por todo o país e

não perdia a oportunidade de fazer declarações em entrevistas sobre a situação

política do país. Em atrito com o presidente e alguns dos ministros, como Delfim

Netto, Albuquerque Lima sairia do governo em janeiro de 1969.

Com a doença de Costa e Silva assumindo um quadro irreversível, o “partido

militar” começou a se mexer. O Alto Comando das Forças Armadas se reuniu no Rio

de Janeiro, secretamente, e decidiram não dar posse ao vice-presidente – Pedro

Aleixo, um civil. O que ocorreria seria a formação de uma Junta Militar de três

membros e o aguardo da evolução do quadro clínico de Costa e Silva. A “Regência

Trina”, se é que podemos chamar assim foi composta pelos ministros das Três

Armas: Aurélio Lyra Tavares (Exército), Augusto Rademarker (Marinha) e Márcio

de Souza e Mello (Aeronáutica). Toda essa situação ocorreu sem a presença de Pedro

Aleixo, que constitucionalmente deveria assumir o posto presidencial. A cúpula

militar do regime tratou de se garantir legalmente através da elaboração de Ato

Institucional impedindo a posse do vice-presidente e assegurando a posse da Junta

Militar pelo bem da “segurança” do país e em se evitar o “caos”. A posse de Pedro

Aleixo jamais seria aceita pelos militares por conta de uma forte oposição dos

mesmos visto que Aleixo não concordara com o AI-5 na reunião onde o Ato fora

aprovado.

A Junta exerceria os poderes presidenciais até a plena recuperação de Costa e

Silva. Mas as notícias, apesar de otimistas quanto à saúde do presidente, não eram

vistas assim pelos militares que começaram a se movimentar, não para uma guerra no

sentido tradicional do termo, e sim nos bastidores do poder político. Eles não

175

acreditavam na melhora do presidente-general acamado e hospitalizado. O tema da

sucessão presidencial fermentava de vez, pois havia também um temor, por parte de

alguns militares, que a Junta ficaria no poder até o final do mandato de Costa e Silva,

em 1971.

Entretanto outro fato dominou a cena política. Um total de quinze prisioneiros

foram libertos pelos ministros militares que compunham a tríplice Junta com a

intenção de preservar a imagem do Brasil no exterior, em virtude do seqüestro do

embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, pela ALN

e MR8. O fato gerou controvérsias em muitos comandos militares que não admitiam

a hipótese de diálogo com comunistas. Estes prisioneiros foram enviados para o

México no dia 6, estando entre eles José Dirceu. Em seguida, elaborou-se o AI-13

que estabelecia a pena de "banimento perpétuo do País".

A respeito dos órgãos encarregados da repressão política tinham-se o SNI

(Serviço Nacional de Informações) e o Centro de Informações da Marinha

(Cenimar), existentes desde 1964 e ligados à estrutura das Forças Armadas. Visando

o combate à guerrilha urbana, o regime empregava instituições da Polícia Federal (o

Departamento de Ordem Política e Social - Dops) e os Departamentos Estaduais de

Ordem Política e Social (Deops), ligados às secretarias de Segurança Pública dos

estados. Com a intensificação das ações da guerrilha de esquerda, foram criados o

Centro de Informações do Exército (CIE), que conforme BARROS (1998), teve

equipamento fornecido pela CIA e oficiais treinados nos EUA. E, por fim, em junho

de 1969 foi criada a Oban (Operação Bandeirantes) que continha oficiais e

subalternos das Três Armas e da Polícia Militar do Estado de São Paulo, somados

aos delegados, investigadores e pessoal burocrático que recebiam ainda o apoio

financeiro de empresários paulistas através de equipamentos e dinheiro ganhando,

estes últimos, em troca, a proteção contra trabalhadores "subversivos".

176

A Polícia Militar paulista foi criada no governo de Abreu Sodré (1967-1970),

primeiro "biônico" escolhido na Assembléia Legislativa, através da unificação da

Força Pública e da Guarda Civil, em obediência às imposições do regime de 1964

que subordinou as polícias estaduais às Forças Armadas. O comando dessas polícias

também ficou sob a responsabilidade de um oficial do Exército, o mesmo ocorrendo

com a Secretaria da Segurança Pública.

A Oban obteve grande êxito em São Paulo sendo, em setembro de 1970,

incluída no organograma legal com a denominação de Doi-Codi II (Departamento de

Operações de Informações, Centro de Operações de Defesa do II Exército). Em

1971, a Aeronáutica também criaria o seu "órgão", o Cisa (Centro de Informações e

Segurança da Aeronáutica).

A Junta não perdeu o hábito de editar Atos Institucionais: além do AI-13

viriam: o AI-14 (impondo a pena de morte, a prisão perpétua e o banimento); e o AI-

15 (transformando ao município de Santos, onde o MDB era majoritário, em área de

segurança nacional).

Um dos objetivos da Junta era a de um presidente investido de plena autoridade

dentro de um processo sucessório, o mais restrito possível, para se evitar a divisão

das Forças Armadas em grupamentos políticos. O que na verdade estava ocorrendo.

Coronéis e oficiais de patentes mais baixas estavam num clima de insurreição. A

agitação maior vinha dos partidários do general Afonso Albuquerque Lima.

Identificados à uma vertente dita “nacionalista”, no plano econômico, e desejosa de

mudar os rumos do regime. Na visão de Albuquerque Lima: “A Revolução deveria

prosseguir por dez anos, se necessário, para realizar tudo aquilo que não soube ou

simplesmente não teve coragem de fazer”111

111 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 151-152.

177

Uma vez que estava claro que Costa e Silva jamais teria condições de retornar

à Presidência, faz-se necessário a definição dos critérios de sucessão, como a duração

do tempo de mandato pelo Alto Comando visando a legitimação do regime, junto a

um Congresso em funcionamento, que daria tal legitimação ao presidente e ao vice-

presidente. A Junta Militar tratou de impedir a ascensão do general Alburqueque

Lima (de três estrelas) que representava o nacionalismo de direita e a oficialidade

jovem que criticavam a política econômica do governo, voltada aos interesses

estrangeiros.

Rapidamente foi-se desenvolvida uma “eleição”. Cada “eleitor” escolhia três

oficiais generais do Exército. Estes “eleitores” foram:112

Na Aeronáutica, 61 brigadeiros (37 lotados na Guanabara). Os três

candidatos escolhidos foram: Médici, Orlando Geisel e Albuquerque Lima;

Na Marinha, 69 almirantes (50 serviam na Guanabara). Albuquerque

Lima teve mais da metade dos votos;

No Exército, 118 generais (82 lotados na Guanabara). Divididos em

onze “seções eleitorais”, Médici venceu em dez delas. Depois de Médici, os

mais votados foram, Orlando Geisel e Muricy.

Nota-se que o equilíbrio federativo foi completamente inexistente, sendo

flagrante o peso do estado da Guanabara, que abrigava a cidade ou o município do

Rio de Janeiro, capital do país até 1960. Mas o foco da controvérsia foi o resultado

da eleição no Exército. Os partidários de Albuquerque Lima argumentavam que a

criação das “seções eleitorais”foi feita de forma artificial. E que muitos generais não

112 Id., Ibid., p. 154.

178

haviam consultado os oficiais de patente inferior. Albuquerque Lima estava fora da

“lista tríplice” do Exército.113

Uma vez escolhido o general Emílio Garrastazu Médici, em 7 de outubro de

1969, era feita a comunicação oficial pelo Alto Comando das Forças Armadas,

também era necessário orquestrar o “ritual” para dar uma “maquiagem democrática”

à posse do general-presidente escolhido. O Congresso foi convocado para, em 25 de

outubro, “escolher” o presidente já escolhido. A Arena aclamou a “chapa” Médici-

Augusto Rademarker.

O AI-16 regulamentou o “processo eleitoral de candidato único” como se

tratasse de uma eleição, e não uma imposição. O AI-17, o último da “saga” iniciada

em 9 de abril de 1964, era especialmente direcionado aos militares que viessem a

atentar contra a coesão, a unidade e o papel constitucional das Forças Armadas. O

recado era para o que VILLA (2014) chamou de “afonsistas”114

– os partidários de

Albuquerque Lima.

Segundo CARDOSO(1979), o equilíbrio do regime, com a eleição do

presidente Médici, se deu através da definição dos critérios sucessórios, que

afastaram a candidatura de Alburqueque Lima, colocando as seguintes

características: que só poderiam ser indicados os generais de quatro estrelas, que

correspondem ao estrato superior da burocracia militar; deveria-se obedecer a

critérios burocráticos de hierarquia e de representação corporativa; impedir a

desagregação do Exército em tendências e facções, acarretados por um predomínio

113 Id., Ibid., p. 154.

114 Id., Ibid., p. 157.

179

da tendência nacionalista e de cristalização de uma oposição; e, por último, conciliou

correntes dentro do Exército, em nome da unidade das Forças Armadas.

Não se pode esquecer que a tríplice Junta, em 17 de outubro, editou a Emenda

Constitucional nº1, que reformou a Constituição de 1967. Tratava, entre outras

coisas, da ampliação do estado de sítio (de 60 para 180 dias), podendo ser prorrogado

por tempo indeterminado; no caso da chamada “guerra interna”, admitia as penas de

morte, banimento e prisão perpétua; restringiu mais ainda a inviolabilidade dos

mandatos legislativos, incluindo aí crimes contra a segurança nacional e as

instituições militares, podendo ainda enquadrar civis; também restringia, mais ainda,

a liberdade de associação.

Oito dias depois, no dia 25, o Congresso voltava a se reunir, sem os 81

deputados e quatro senadores cassados desde o 13 de dezembro de 1968. Médici foi

candidato único: a Arena seguiu os ditames da Junta; o MDB se absteve. Votação,

apuração e discursos ocorreram em menos de uma hora e meia. O deputado Ulysses

Guimarães sempre se referiu aos três membros da Junta como os “três patetas”, mas

é melhor analisar isso um pouco mais a fundo.

Se, por um lado, houve enorme tensão dentro das Forças Armadas durante o

curto período que a Junta comandou a Nação, com respeito a quem sucederia Costa e

Silva, somada às articulações que o general Albuquerque Lima e seus partidários

fizeram tentando viabilizar a ascensão do mesmo à Presidência da República, mais a

espiral de sequestros por parte de grupos da esquerda armada, em especial do

embaixador norte-americano - Charles Burke Elbrick – que resultou na libertação de

presos políticos, enviados para fora do país. De outro lado, a Junta realizaria

modificações na legislação, com mais Atos Institucionais e uma reforma

constitucional mais expressiva através da Emenda nº1, dando a sua contribuição para

um maior enrijecimento do regime nos anos seguintes. Agora, a melhor manobra que

o trio das três Armas realizou foi o de gerenciar um processo de escolha do novo

180

presidente, com procedimentos “democráticos” de votação, escolhendo um novo

mandatário com mandato determinado. O Brasil se distanciava de outros casos como

o do caudilhismo militar platino. Mas foi uma sucessão calculada e devidamente

encaminhada para evitar qualquer “surpresa”, ou um “incoveniente”, de se ter um

vitorioso indesejável como Albuquerque Lima.

De qualquer forma, o sucesso de se “manter as aparências” era também

decorrente do Brasil estar experimentando um crescimento econômico, com

expansão do crédito, do consumo, da possibilidade de ter uma casa própria e até de

alguma ascensão profissional, principalmente por parte da classe média. Enfim, por

que a maioria da população se preocuparia com a política se a economia ia cada vez

melhor, a seleção brasileira também (nas Eliminatórias para a Copa do México de

1970), se a censura ou até a conivência de parte da imprensa estavam a serviço do

governo contribuindo para influenciar (e até alienar) importantes segmentos da

sociedade? A luta armada contra o regime parecia estar cada vez mais distante do

cidadão comum que a confundia meramente com as ações dos ladrões de banco.

Então já que a política era um “estorvo” na época, e na área econômica o Brasil

progredia, a grande maioria da população nacional parecia seguir normalmente sua

vida, também porque o medo imposto pelo AI-5 desencorajava qualquer tipo de

contestação ao regime.

Parece então, que a tríplice Junta, pelo menos no aspecto político, teve sucesso,

apesar dos não poucos improvisos, em garantir a sucessão de Costa e Silva e a

eleição de Médici. Entretanto, e as ações de sequestros de embaixadores estrangeiros,

assaltos a bancos, etc., por parte dos grupos que se armaram para desafiar o regime?

E os presos que foram soltos e saíram do Brasil? A resposta do regime para estas

duas questões foi efetiva e cruel. Uma vez alicerçado no AI-5 e em toda a legislação

autoritária, o governo revidaria nada menos do que com a aniquilação dos grupos

armados opositores e a morte de seus principais líderes, como Mariguella e Lamarca.

181

Afinal, a Oban (Operação Bandeirantes), símbolo maior da repressão já existia desde

meados de 1969, articulando quadros das Forças Armadas e do Exército, mais os

delegados e policiais das estruturas estaduais. Os “anos de chumbo” e o “milagre

econômico” caminharão juntos, eis o cenário para o terceiro governo militar do

regime.

182

3.3- Governo Médici (1969-1974). O milagre em anos de

chumbo.

Emílio Garrastazu Médici, 3º general-presidente do regime militar brasileiro. Governou de

30?10/1969 a 15/03 1974

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Garrastazu_M%C3%A9dici

Após forte debate sucessório nas Forças Armadas emergiu o nome do

general Emílio Garrastazu Médici, que toma posse como presidente em 30 de

outubro de 1969, procurando-se garantir, naquele momento, um mínimo de unidade

nas Forças Armadas. Na verdade Médici era um pouco mais que um elemento

decorativo,115

já que alguns ministros mais poderosos exerceram realmente o

115 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p.56.

183

governo. Delfim Neto foi conservado no Ministério da Fazenda, junto com seus

tecnocratas; Mário Andreazza também continuaria no Ministério dos Transportes

cuidando assim das obras e concorrências envolvendo empresas privadas; Orlando

Geisel, o 2º melhor cotado para a sucessão de Costa e Silva, ocupou o Ministério do

Exército tendo a complicada tarefa de administrar os conflitos presentes dentro da

corporação militar; e o coronel Jarbas Passarinho ocuparia a pasta de Educação e

Cultura.

A partir de 1970, o Brasil conheceu um esplendoroso crescimento

econômico que durou pelos três anos seguintes consolidando o tripé: Estado;

multinacionais; e o grande capital nacional. A classe média emergente começou a

usufruir do ascendente mercado de consumo. A economia brasileira cresceu mais de

10 % ao ano, no período de 1971-1973.116

Um grande fluxo de dólares entrava no

país alimentando a especulação financeira com os primeiros passos da Bolsa de

Valores. Era o "milagre econômico", que tanto marcou o governo Médici, em que o

espaço geográfico brasileiro sofreria importantes alterações, com as cidades

ganhando seus contornos definitivos de metrópoles, onde a especulação imobiliária

acarretaria a substituição da tranquilidade das ruas e das residências dando lugar à

construção de viadutos e à abertura de grandes avenidas, somadas às chegadas dos

supermercados e shopping-centers. Ainda citam-se os eletrodomésticos e os carros

luxuosos mexendo com as "fantasias" consumistas da população, sobretudo no

Sudeste e no Sul do país. Houve melhoria nos salários de técnicos e profissionais de

nível superior (embora o salário mínimo mantivesse os mesmos patamares de 1967)

além de crescimento nos níveis de emprego, beneficiando até o operariado mais

qualificado e os técnicos de maior especialização da produção fabril.

116 Id.,ibid., p. 59.

184

O Brasil também emergia como um dos mercados mais dinâmicos de TV

do Terceiro Mundo sendo que, em 1970, 40 % das residências urbanas possuíam o

aparelho117.

Assim a TV foi entrando nos lares brasileiros, com especial destaque à

Rede Globo, fundada em 1965, que se tornaria uma emissora poderosíssima e em

cuja programação, principalmente o Jornal Nacional, pautava-se nos elogios às

realizações do governo e incutia hábitos culturais muito associados às novelas da

emissora. Tomando-se as palavras do teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho:

" Reduzir uma sociedade de 100 milhões de pessoas a um mercado de 25

milhões exige um processo cultural muito intenso e muito sofisticado. É preciso

embrutecer esta sociedade de uma forma que só se consegue com o refinamento dos

meios de comunicação, dos meios de publicidade, com um certo paisagismo urbano

que disfarça a favela, que esconde as coisas".118

Se considerarmos em especial os aspectos sociais, apesar de todas as

transformações ocorridas na sociedade brasileira, até com a ascensão social e salarial

de alguns setores, como a classe média e a classe trabalhadora mais qualificada, algo

que permaneceu foi a elevada desigualdade social e a má distribuição da renda. A

propósito, não só nos anos do “milagre”, mas no período militar como um todo, o

quadro da concentração de renda só se agravou.

A propaganda de governo era realizada, sobretudo, pela Aerp (Assessoria

de Relações Públicas da Presidência da República) fazendo surgir os famosos

slogans ufanistas da época "Prá frente Brasil", "Brasil ame-o ou deixe-o", criados

após a promulgação do AI-13 que previa o "banimento perpétuo do país". Com a

máquina publicitária a população identificava o autoritarismo com as realizações

117 Id.,ibid., p. 60.

118 Id., ibid., p.60.

185

econômicas e esportivas, dentro do clima da conquista da Copa de 1970, fazendo

crescer uma euforia relacionada com despesas virtuosas em obras públicas como a

Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói. A importância da Aerp durante o governo de

Médici é perceptível desde o discurso de posse do general, elaborado pelo coronel

Octávio Costa, chefe da Aerp. Diga-se que, no aspecto econômico, havia uma certa

confirmação de certos detalhes do primeiro discurso do novo presidente: naquele dia

da posse, 30 de outubro de 1969, a palavra “desenvolvimento” foi citada sete vezes;

enquanto que “democracia” foi mencionada por quatro vezes; e “liberdade”, apenas

em duas.

Paralelamente ao "milagre", a repressão atingia o seu ápice com a verdadeira

aniquilação dos guerrilheiros, que procuravam utilizar o sequestro de diplomatas

estrangeiros para trocá-los por companheiros presos. Merece destaque, pelo tempo

decorrido, a luta no Araguaia, cuja base guerrilheira, implantada a partir de 1967, no

sul do Pará, resistiu ao cerco dos contingentes das Três Armas durante alguns anos

até ser aniquilada em 1974, através de operações bastante custosas ao governo.

O ano de 1969 se encerrava com um ótimo horizonte econômico: o PIB cresceu

9,5 %; a inflação caiu de 25,7% (1968) para 20,1%; e crescimento nas exportações e

nas reservas internacionais. A crise política ficou restrita ao aparelho de Estado, não

atingindo a sociedade119

.

Para o ano de 1970, a conquista da Copa do Mundo era vital ao regime, para

reforçar a legitimação da “Revolução”. Médici soube representar bem o seu papel de

torcedor. Esteve presente na inauguração do estádio Cícero Pompeu de Toledo – o

Morumbi. O técnico da seleção brasileira – João Saldanha – simpático ao PCB

classificara o Brasil para a Copa, com seis vitórias em seis jogos. Entretanto, a três

119 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 169.

186

meses do início do Mundial de futebol, Saldanha acabaria demitido e, em seu lugar, a

CBD (Confederação Brasileira de Desportos) indicaria para técnico o ex-jogador

Mário Jorge Lobo Zagallo.

O presidente da CBD, em 1970, era João Havelange, que quatro anos mais

tarde se tornaria presidente da FIFA, a principal entidade do futebol mundial. A CBD

era subordinada ao Ministério da Educação através do Conselho Nacional de

Desportos. Havelange se encontraria com o ministro da Educação, com os chefes da

casa Civil (Leitão de Abreu) e da Casa Militar (João Baptista Figueiredo). Após este

encontro ficou acertado que Havelange enviaria um relatório detalhado da CBD para

Médici.

No clima do ufanismo nacional foi estabelecido, em 25 de março de 1970, o

mar territorial de 200 milhas. O Brasil era o oitavo país latino-americano a adotar

essa medida. Em abril e maio, Médici escolheria todos os governadores estaduais,

inclusive o da Guanabara – estado dominado pelo MDB na Assembléia Legislativa –

com o nome de Chagas Freitas para o cargo, líder emedebista daquele estado, mas

que nunca fizera oposição formal ao regime.

Entretanto nem tudo ia de “vento em popa” nos tempos de Médici. Mais uma

vez uma forte seca atingia a região Nordeste. Cidades foram ocupadas, comércios

saqueados e proliferavam doenças epidêmicas. A SUDENE (Superintendência para o

Desenvolvimento do Nordeste) agiu como sempre fazia, segundo VILLA (2014),

abrindo frentes de trabalho, sem ter um projeto e um cronograma elaborado para o

que era realmente prioritário em termos de obras. Além da ampliação daquelas

frentes, o governo federal intensificou a transferência de flagelados para a Amazônia,

sem ter um projeto viável de assentamentos rurais, muito menos de reforma agrária.

Apenas se retirava o excedente da força de trabalho, evitando tensão social naquele

momento, mas, a longo prazo, o resultado foi o de apenas mudar o problema de um

lugar para o outro, porque tais populações deslocadas continuariam sem uma sólida

187

assistência e com más condições de vida. É dessa época que vem talvez a mais

famosa frase de Médici, numa conferência na ESG – Escola Superior de Guerra:

“Apesar desse esforço revolucionário de seis anos, quando nos voltamos para

a realidade das condições de vida da grande maioria do povo brasileiro, chegamos à

pungente conclusão de que a economia pode ir bem, mas a maioria do povo ainda

vai mal”120

O interesse popular, contudo, estava voltado à Copa do Mundo e não para a

seca ou para a política. E o Mundial foi conquistado pela seleção, com seis vitórias

em seis jogos, em junho de 1970. Na consagração do retorno da seleção ao Brasil,

mais de 1,5 milhão de cariocas foram às ruas. Foi notório o fato do prefeito nomeado

da cidade de São Paulo – Paulo Maluf – ter dado um automóvel a cada um dos

integrantes da seleção com verbas públicas. No palácio presidencial, Médici, deu

prêmios em dinheiro no valor de milhares de dólares. O regime soube usufruir desse

momento. Cada brasileiro se sentia “campeão” também. A marchinha “Prá frente

Brasil”, era tocada em todos os eventos públicos. Depois foi feito um cartaz,

espalhado em diferentes pontos do território nacional, mostrando Pelé em seu

característico salto após fazer um gol e o slogan ao seu lado: “Ninguém mais Segura

este País”

120 Id., Ibid., p. 175-176.

188

O presidente Emílio G. Médici segurando a taça Jules Rimet, junto ao capitão da seleção brasileira

campeã mundial de 1970, Carlos Alberto Torres.

Fonte: http://www.cefetsp.br/edu/eso/culturainformacao/copaditadura.html.

A estratégia da máquina publicitária deu ótimos resultados. A população

identificava o autoritarismo com as realizações esportivas e econômicas. Para

BARROS (1998) estruturava-se um pacto social, inspirada numa adaptação que a

ESG e sua doutrina de segurança nacional fizeram do pensamento de Thomas

Hobbes (autor de O Leviatã). O indivíduo abre mão, conscientemente, de suas

prerrogativas de cidadão, como a liberdade e do direito de opinião, recebendo em

troca a paz e a segurança para si e a sua família, bem como ganha algum patrimônio

dentro de uma economia dirigida. O indivíduo se retrai em favor do poder absoluto e

do Estado.121

121 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 61-62.

189

O otimismo e o cenário econômico bastante favorável foram impulsionando

grandes projetos governamentais. A Amazônia foi alvo do seguinte lema do regime:

“Integrar para não entregar”. Em outubro de 1970 se iniciaram as obras para a

construção da rodovia Transamazônica, que deveria chegar até ao Acre.

A rodovia era ponto fundamental para o processo de ocupação da Amazônia.

Buscava-se a facilitação da exploração mineral e desenvolver a agricultura e a

pecuária. A proposta, não inédita, pois já vinha desde o final do século XIX, de

transferir populações do semi-árido nordestino para a região Amazônica ganhava

força novamente. A ideia era a da criação de agrovilas à margem da estrada, o que

seria um embrião para a criação de novas cidades. A Transamazônica deveria ter

5.296 quilômetros de extensão, cortando oito estados das regiões Nordeste e Norte.

Seus pontos de partida: Recife, em Pernambuco; e João Pessoa, na Paraíba. O ponto

de chegada seria Cruzeiro do Sul, no Acre.

Contudo encontra-se uma séria ressalva com relação à rodovia

Transamazônica. A estrada recebeu muitas críticas, na época, até de políticos da

Arena, como João Agripino, governador da Paraíba. Segundo o governador: “A

Transamazônica não tem projeto. Além do paralelo 10 não tem sequer fotografia

aérea até agora levantada [ou seja- naquele tempo -1970], nem estudo de topografia.

Diz-se que cortará terras de grande fertilidade e com isso se deslocará a população

do Nordeste para áreas úmidas e de boa produtividade. É possível que essas terras

existam, mas onde estão, não sabemos ainda, pois não há estudos topográficos”122

A despeito da política ser colocada, a grosso modo, em segundo plano, naquele

tempo, a Arena não encontrou nenhuma dificuldade em obter uma expressiva vitória

nas eleições de novembro de 1970, levando 41 das 46 cadeiras para o Senado. Dos

apenas cinco eleitos pelo MDB, três o foram pela Guanabara, um por São Paulo

122 MORAIS, Fernando et al. Transamazônica. São Paulo: Brasiliense, 1970. P.56. In: VILLA, Marco

Antônio. Op. cit. p.179.

190

(Franco Montoro), e um pelo Rio de Janeiro (Amaral Peixoto). A Arena passou a

controlar também todas as Assembléias Legislativas, exceto a da Guanabara.

Contribuiu para isso a boa fase econômica do regime e da figura do presidente

Médici. A economia seguia bem, a propaganda oficial era eficiente em louvar as

realizações governamentais, a censura, a despolitização (decorrentes do clima

altamente repressivo instaurado pelo AI-5 e do distanciamento da luta armada com a

população, que realmente não se identificava com a causa de seus militantes,

aumentando a indiferença com a política em geral).

O ano de 1971 foi marcado pela intensificação no ritmo das grandes obras de

infraestrutura. Para incentivar as exportações a Aerp, mostrando a importância do

papel que adquiriu durante o período Médici, criaria um outro slogan: “Exportar é o

que importa”. Paralelamente, o crédito foi sendo ampliado visando à consolidação de

um mercado interno de consumo. Naquele tempo a Aerp criava um slogan para cada

ano do governo – uma “idéia-força” para um determinado ano: por exemplo: “Você

constrói o Brasil”; “Em tempo de construir”; “Brasil, ame-o ou deixe-o”;

“Ninguém segura este país”. Podemos afirmar que, especialmente no governo

Médici, músicas foram compostas para exaltar o regime. Da dupla Don e Ravel teve-

se: “Eu te amo meu Brasil” – louvando as belezas do país; e “Você também é

responsável” – tratando sobre o Mobral (Movimento Brasileiro de

Alfabetização),criado em 1967, voltado para a alfabetização de jovens e adultos.

Claro, não podia deixar de ser aqui citada a marchinha “Pra frente Brasil”, de

Miguel Gustavo.

As primeiras redes nacionais de supermercados surgiam. A indústria

automobilística batia recordes de produção. Era criada a EMBRATEL (Empresa

Brasileira de Telecomunicações) – uma estatal que viabilizou a modernização das

telecomunicações, a unificação e a integração do país pelas transmissões da

televisão, constituindo-se uma rede a nível nacional no referente às

191

telecomunicações, permitindo a integração das diferentes regiões do país. Destaque

especial para a Rede Globo, criada em 1965, que se consolidou com uma

programação nacional, simbolizada pelo Jornal Nacional (que foi ao ar pela 1ºvez em

1969, com uma tônica de jornalismo afiadíssima com o regime, ajudando a espalhar

os “ventos” da modernização e das grandes realizações governamentais), bem como

com as suas telenovelas, que a despeito de contar com alguns autores e artistas não

necessariamente simpáticos e afinados ao regime, permitiram a disseminação de

hábitos, modas, falas, bordões de personagens e costumes, que foram levando à uma

espécie de “massificação” cultural.

Se nós podemos associar o governo Médici imediatamente, e ao mesmo tempo,

com o “milagre econômico” e os “anos de chumbo”, tal associação é decorrente do

êxito alcançado no período pelo binômio “segurança-desenvolvimento”, gestado pela

ESG. Em 1970, o PIB ultrapassara os 10% em seu crescimento. As exportações e as

reservas internacionais do Brasil aumentaram, apesar do crescimento da dívida

externa. A pauta das exportações havia se modificado, cada vez mais os produtos

semimanufaturados e manufaturados iam ganhando espaço. E os anos seguintes dos

tempos de Médici (até o ano de 1973) seguiram do mesmo jeito, com o PIB

crescendo acima dos 10%. Paralelamente, o número de desaparecidos não cessava de

crescer. Em 1971, o ex-deputado Rubens Paiva foi preso, torturado e assassinado.

Apenas em fevereiro de 2013, com as revelações da Comissão Nacional da Verdade,

é que o governo finalmente reconheceria a sua morte, sob a custódia do DOI-

Codi.123

O Congresso seguia controlado pela Arena, através de mecanismos como o

voto de liderança onde o parlamentar votaria, sobretudo nos projetos mais

importantes, conforme determinasse o líder do partido. Também eram proibidos os

123 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 184.

192

pronunciamentos contrários de acordo com os acertos destes líderes com o governo e

citam-se ainda os "decretos-secretos" que tinham de ser aprovados pelo Congresso,

apesar de totalmente desconhecidos por este. Tais decretos eram publicados no

Diário Oficial com numeração especial e sem texto.

A atuação parlamentar se resumia no máximo aos discursos. Havia muito

receio em se fazer uma oposição mais incisiva ao governo. Num cenário em que a

variável da atuação política estava tolhida, com a luta armada cada vez mais

reprimida e esmagada pelo aparelho governamental, a Igreja Católica se torna um

importante campo de críticas ao regime, com os pronunciamentos de alguns padres,

bispos e cardeais.

O papel da Igreja é (como não podia deixar de ser) bastante complexo. Ela

havia apoiado o golpe de 1964 e abraçado o discurso anticomunista contrário ao

governo Jango. Porém a Igreja, no decorrer do regime esteve fortemente dividida.

Aos poucos ela vai caminhando em direção á oposição. Se não apoiava a luta armada

e o terrorismo, também começou a se posicionar contra a tortura e a repressão e

muitos de seus altos quadros eclesiásticos não fecharam os olhos ao quadro

extremamente autoritário. Muitos bispos da CNBB (Conferência Nacional dos

Bispos do Brasil) que, em 1970, elogiaram as realizações econômico-sociais do

governo e condenaram o terrorismo, também apresentavam várias ressalvas com

relação à tortura de presos políticos. Grande parte destes eclesiásticos vai começando

a pregar contra a violência do Estado e ainda contra a injustiça social. Ativistas

católicos acionavam contatos no exterior como a Anistia Internacional, voltada aos

direitos humanos, e os protestos vindos da imprensa estrangeira começaram a

aparecer. Salienta-se que entre 1968 e 1970, foram presos 29 padres. Em 1969, o

padre Henrique Pereira Neto, assistente de dom Hélder Câmara, foi morto a tiros e

pendurado numa árvore no campus da Universidade Federal de Pernambuco.124

124 Id., Ibid., p. 186.

193

Muitos padres estrangeiros foram presos e torturados. Alguns foram expulsos do

Brasil. O quadro mais tenso era na Amazônia e no Nordeste por conta do avanço

capitalista nestas regiões.

Por outro lado, havia bispos que apoiavam as torturas. Dom Geraldo Sigaud,

bispo de Diamantina, Minas Gerais, teria declarado que: “confissões não se

conseguem com bombons”.125

De qualquer forma, a Igreja foi preenchendo um vazio

deixado pela política, podada pela legislação autoritária, e dali em diante vai

assumindo um papel fundamental na crítica ao regime, algo que vai ganhar mais

força ainda durante os anos de Geisel.

Entretanto, no campo político, aos poucos Ulysses Guimarães foi se firmando

como líder do MDB. Deixou para trás alguns vínculos com o regime como quando

relator da Lei de Greve de junho de 1964126

, ou quando quase se tornou secretário de

Abreu Sodré, em troca de apoiar o governador paulista para a sucessão de Costa e

Silva.127

. O MDB vivia uma disputa interna entre os grupos “moderado” (de oposição

mais serena) e “autêntico” (de oposição mais incisiva).

Em dezembro de 1971, Médici fez a sua primeira viagem internacional como

presidente. Foi aos Estados Unidos. Recebido pelo presidente Nixon, o mandatário

125 Id., Ibid., p. 187.

126 Id., Ibid., p. 62-63.

127 Id., Ibid., p. 121 e 185.

194

norte-americano disse a famosa frase: “Para onde se inclinar o Brasil, se inclinará

toda a América Latina.” e “O gigante despertou”.128

Tais declarações marcariam o início de problemas diplomáticos entre o Brasil e

a Argentina, receosa do “imperialismo brasileiro” na América do Sul. Estes atritos

irão aumentar nos anos seguintes com o projeto da Hidrelétrica de Itaipu, num acordo

bilateral entre Brasil e Paraguai sobre o aproveitamento do potencial do rio Paraná,

gerando severas críticas por parte do governo argentino, além de levantar a sombra

da “disputa nuclear” entre os dois rivais da América do Sul.

Mas o Brasil vinha em projeção. Buscava seu crescimento utilizando a

poupança externa, inserindo o país no capitalismo mundial, fortalecendo o setor

industrial associando-o às grandes empresas estrangeiras, criando condições para a

expansão das fronteiras agrícolas no Centro-Oeste e na Amazônia. O regime também

deu andamento a uma contrapropaganda contra a luta armada, divulgando através da

televisão os depoimentos de militantes presos, agora arrependidos, que após

cumprirem as suas penas iriam colaborar para o “desenvolvimento” do país.

Era o cenário perfeito para 1972. Ano do Sesquicentenário da Independência.

O 7 de setembro foi recheado de comemorações. Em São Paulo, na trilha do I PND

(Plano Nacional de Desenvolvimento), Médici inaugurava a primeira linha de metrô,

no Jabaquara, na capital paulista. O presidente estava cada vez mais popular, sem

abrir mão do uso da legislação autoritária e dos órgãos de repressão, mas por outro

lado com o país crescendo a dois dígitos. As Forças Armadas estavam sob controle e

assim Médici teria todas as condições para controlar a sua sucessão.

O cenário foi incrementado com a Emenda Constitucional nº 2, que tornava

indiretas as eleições para os governos estaduais. De acordo com o governo: a

128 Id., Ibid., p. 190.

195

realização de um processo eleitoral era inconveniente: “Para preservar o clima de

tranquilidade, confiança e trabalho indispensável à consolidação de nossas

instituições sociais e políticas”.129

Também pudera, a legislação repressiva e o medo

impediam qualquer tipo, ainda que fosse tímido, de contestação ao regime. Era a

política sendo tratada como um “estorvo” pelo Estado autoritário.

Conforme VILLA (2014), Médici foi um presidente que no cargo comandava o

Brasil como se fosse um batalhão. Não tinha apego ao poder. Usava o AI-5 como um

regulamento militar aplicado a um quartel. Teria sido o presidente brasileiro que

menos se interessou pela política. Isso porque delegou poderes. A máquina

administrativa ficava a cargo de Leitão de Abreu (chefe da Casa Civil); a economia

com Delfim Netto (no Ministério da Fazenda); e o controle das Forças Armadas foi

possível através da atuação de Orlando Geisel (no Ministério do Exército).

Para BARROS (1998), Médici foi adjetivado de “decorativo”, no que o autor

denominou de loteamento do poder distribuído entre os principais comandantes

militares, em fins de 1969. Foi qualificado ainda pelo mesmo de: “obscuro,

despreparado, desconhecido do público e de boa parte dos políticos civis”130

Médici

teria sido uma escolha emergencial para que os chefes militares garantissem um

pouco de unidade nas Forças Armadas, face ao avanço do nome do general

Albuquerque Lima, na época de governo da “tríplice Junta”. Um ponto de

concordância mais explícita entre os dois autores - Villa e Barros - foi a de que o

governo foi realmente exercido por alguns dos ministros mais poderosos.

129 Id., Ibid., p. 194.

130 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.57.

196

Na esteira da expansão econômica, o Brasil foi tomando uma atitude cada vez

mais incisiva com relação à América do Sul. Era a geopolítica, de inspiração militar,

vinda desde as décadas de 1920 e 1930, tomando corpo e assumindo contornos

práticos. A rivalidade Brasil e Argentina ganha novo vigor. As editoras do país

vizinho publicavam livro tratando sobre o expansionismo brasileiro, estabelecendo

correlações entre a política brasileira da época e a do Império do Brasil, no referente

à hegemonia da bacia do Prata. O principal ponto da discórdia era a exploração dos

recursos hídricos.

O governo argentino se sentia prejudicado desde o início da construção da

usina hidrelétrica de Ilha Solteira, em 1967, também no rio Paraná. O argumento

portenho era o risco de mudanças no regime fluvial do rio Paraná, prejudicando a

economia argentina, dificultando a navegação e impedindo a construção de outras

usinas em território argentino. E, por fim, - no campo das conspirações e da

geopolítica - a abertura de todas as comportas de Itaipu levaria à inundação de várias

cidades argentinas, inclusive Buenos Aires. Em visita oficial ao Brasil, o presidente

argentino – general Alejandro Lanusse – conseguiu obter uma declaração conjunta de

que os dois países atuariam juntos no aproveitamento dos recursos naturais. Para

VILLA (2014), foi uma aparente vitória portenha, pois desde meados da década de

1960, as negociações entre Brasil e Paraguai para a construção de uma usina

hidrelétrica, na região de Sete Quedas, no rio Paraná, já vinham bastante avançadas.

Porém não foi o fim do atrito. Em abril de 1973, apesar das pressões do

governo argentino, Brasil e Paraguai assinaram o acordo para a construção de Itaipu,

a maior hidrelétrica do mundo na época. Sua construção se iniciaria já no governo

Geisel, em 1975, e a inauguração, em 1984, no governo Figueiredo.

No aspecto cultural, apesar da censura, o trabalho de cantores e compositores

adversários do regime não cessou completamente. A perseguição oficial, atrelada à

censura, paradoxalmente, resultou num apelo comercial mais forte, favorecendo a

197

ampliação das vendas de discos e de públicos nos shows. Comprar um disco ou ir a

um show tornou-se uma forma de resistência. A resistência tornara-se uma

mercadoria bastante lucrativa por sinal. Em 1972, Chico Buarque, Caetano Veloso e

Gilberto Gil haviam encerrado os seus autoexílios. O uso da metáfora e da ironia

tornou-se comum nas críticas ao regime. Estas mudanças eram potencializadas pela

própria urbanização, que vinha e continuou avançando a passos largos.

Por outro lado, um efeito colateral desta urbanização atrelada à grande

migração do Nordeste para o Sudeste e das pequenas para as grandes cidades, foi a

insuficiência na produção de alimentos – manifestadas ora pela falta de um produto

no mercado, ora pela elevação dos preços. Mesmo com o tabelamento de algumas

mercadorias, os preços continuaram subindo.

A expansão do mercado de trabalho, a melhoria das condições de vida dos

trabalhadores urbanos, em especial entre os mais especializados e nos setores médios

do tecido social, aumentou a demanda por alimentos. O problema era do lado da

oferta, ainda insuficiente para a população urbana que no censo demográfico de 1970

ultrapassara a população rural. Contudo, novamente não dá para se esquecer que

todas essas transformações sociais foram acompanhadas pelo aumento na

concentração da renda.

O conservadorismo da censura, por outro lado, agravava cada vez mais o

distanciamento existente entre governo e as mudanças comportamentais da sociedade

brasileira, em muito influenciadas pela própria dinâmica social do Ocidente. O Brasil

era sacudido pela “revolução sexual” da década de 1960, pela contracultura e pelos

novos padrões morais.

As palavras que o presidente norte-americano - Richard Nixon - usou para se

referir ao Brasil e a sua importância na América do Sul começavam a se cumprir,

mas da pior forma possível. Após nove anos de regime militar no Brasil, o Chile era

198

atingido pelo golpe que depôs o presidente Salvador Allende, em 11 de setembro de

1973. Após o bombardeio do palácio presidencial chileno e a ascensão do general

Augusto Pinochet naquele país, o governo brasileiro foi o primeiro a reconhecer a

Junta Militar chilena. E mais ainda, policiais e militares brasileiros teriam ido ao

Chile colaborar com o regime autoritário de lá.131

A Argentina vivia as instabilidades

decorrentes das alternâncias entre militares e civis: depois de um período militar viria

o retorno de Perón ao poder, em 1974, sendo seguido pelo de sua mulher – Maria

Isabel Martinez de Perón, sua vice-presidente, para na sequência se iniciar um novo

período militar, em 1976. O Uruguai também era sacudido com o fechamento do

Parlamento, suspensão da Constituição e dos partidos políticos, e o início da ditadura

civil de Juan Maria Bordaberry, em cujo governo cresceu a repressão, especialmente

contra os guerrilheiros urbanos do Tupamaros. E o Brasil vivia a “paz de chumbo” se

formos pensar na situação político-econômica do nosso país. Verdadeiramente os

ventos anti-democráticos sopravam forte na América do Sul no decorrer da década de

1970.

A situação para Médici aparentemente era bastante tranquila. Facilmente ele

chegou ao nome do general Ernesto Geisel, presidente da Petrobrás, para a sua

sucessão. Diferente das situações anteriores, o indicado para vice-presidente foi o

também general, Adalberto Pereira dos Santos, caso único na história do regime. De

acordo com BARROS (1998), algumas figuras políticas, como o ministro Delfim

Netto, o governador de São Paulo Laudo Natel, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid,

teriam procurado articular um continuísmo para Médici, reforçando a imagem de um

mito, de um grande “líder nacional”. Mas ao que parece, Médici não tinha esse

objetivo, não era muito interessado e afinado com a política e, principalmente,

131 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 204.

199

faltava-lhe condições e o atrevimento de querer se enraizar no poder. Não era um

caudilho, ou uma figura que nem Pinochet no Chile.

Médici era um desconhecido do grande público antes de se tornar presidente e

uma vez que saiu do poder aparentemente voltaria à obscuridade, vivendo em sua

cidade natal - Bagé, no Rio Grande do Sul – raramente fazendo aparições públicas.

Como ex-presidente, ainda que setores mais radicais das Forças Armadas tenham se

levantado e criticado o projeto de abertura e distensão, iniciados por Geisel, Médici

vivia em quase anonimato, reforçado por sua personalidade retraída e pouco dada à

oratória. Nos últimos anos de sua vida (Médici faleceu em outubro de 1985) se dizia

“injustiçado” por ter passado à História como o presidente-general dos “anos de

chumbo” e da “herança maldita”. Queixava-se pelo fato da sociedade ter esquecido

da sua “obra”, que se refere basicamente às realizações econômicas e aos projetos de

empreendimentos de infraestrutura.132

No final do período Médici, o MDB que vivia o dilema entre a linha dos

moderados e a dos autênticos se uniu com o lançamento da “anticandidatura” de

Ulysses Guimarães para a Presidência da República, tendo como vice em sua chapa,

Barbosa Lima Sobrinho, presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).

Não havia chances de vitória, mas era uma oportunidade do MDB marcar posição, o

que no futuro demonstrou ser uma estratégia acertada, pois realmente, já nas eleições

de 1974, o MDB conseguiria triunfos eleitorais, como na vitória de Orestes Quércia

para o Senado. A “anticandidatura” serviria, conforme o próprio Ulysses, para

denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição, que submete o Legislativo e o

Judiciário ao Executivo, que permite prisões sem o direito do habeas corpus e a

condenação sem defesa. Ulysses e Lima Sobrinho percorreriam quatorze estados e

132

CORDEIRO, Janaína Martins. Por que lembrar? A memória coletiva sobre o governo Médici e a

ditadura em Bagé in: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; e MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org). A

ditadura que mudou o Brasil – 1ed – Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.186-187

200

dezenas de cidades. Foram barrados, ironicamente, por Chagas Freitas de falar no

Rio de Janeiro. Mas a mensagem oposicionista foi levada pelo país e com cobertura

da imprensa. “Navegar é preciso / Viver não é preciso”, declarou Ulysses em um

discurso.

O ano de 1973 registraria o maior crescimento do PIB brasileiro na História até

hoje (14%), mas no mesmo ano, a Guerra Árabe-Israelense levou ao súbito aumento

do petróleo. Com a crise energética e a recessão mundial, o "milagre" estava

chegando ao fim. Delfim Neto, ministro da Fazenda, para não admitir fracassos, de

acordo com BARROS (1998)133

ainda teria manipulado os índices do custo de vida

sendo também proibida qualquer crítica pelos meios de comunicação. O que vinha

irritando o ministro era alta dos preços em geral e não só os dos importados cuja

matéria-prima era o petróleo. Geisel seria escolhido presidente da República no

Colégio Eleitoral de 15 de janeiro de 1974 dentro de um processo sucessório

relativamente tranquilo, apesar da "anticandidatura" do deputado Ulysses Guimarães,

pelo MDB, que a partir dali se firmaria como uma das vozes liberais mais críticas ao

regime militar, destoando do tom moderado dos políticos ditos “liberais” no

Brasil.134

Médici encerraria o seu governo com alguns indicadores impressionantes: no

campo político, não abriu mão de utilizar o AI-5 (foram 579 vezes135

), contudo o

número de cassações que fora alto nos anos de Castelo Branco e de Costa e Silva,

caiu nos tempos de Médici (28 cassações entre outubro de 1969 até 1973). Também

133

BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.71.

134

NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 236.

135

VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 209.

201

pudera: todos os principais adversários políticos do regime já estavam alijados do

cenário político. As vítimas do AI-5 nos anos Médici foram servidores públicos,

militares, policiais, funcionários do Judiciário, do Legislativo e do Ministério

Público, entre outros. No campo econômico, o crescimento médio do PIB foi de

11%, a inflação recuou substancialmente, entraram investimentos estrangeiros,

cresceram as exportações e as reservas internacionais. Porém a dívida externa

líquida, entre 1967 a 1973 saltou de US$ 3,2 bilhões para US$ 8,4 bilhões.136

E o

“fantasma” da dívida externa iria continuar a assombrar, com cada vez mais

intensidade, nos governos de Geisel e de Figueiredo, e pelo período democrático

posterior por um longo tempo.

3.3.1- Milagre econômico

“Nunca fomos tão felizes”137

Este era um dos slogans oficiais da propaganda do governo, difundido através

da televisão, nos anos 1970, em pleno “milagre econômico”. A frase dava a entender

sobre um clima de felicidade coletiva e prosperidade inédita, somadas ao

desenvolvimento e à expansão capitalista. É como se toda a população brasileira

desfrutasse de algo novo, um tempo de prosperidade nunca experimentado antes.

Daria até para se fazer uma analogia com o que está escrito na Bíblia, nos tempos de

prosperidade do rei Salomão, em Israel, mais de 900 anos antes de Cristo:

136 Id., Ibid., p. 212.

137 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 147.

202

“Judá e Israel habitavam confiados, cada um debaixo da sua videira e debaixo

da sua figueira, desde Dã até Berseba, todos os dias da vida de Salomão” (II Reis

4:25)”

Que coisa estranha. Porque aqui cito um versículo bíblico? Isso foi proposital

já que a Igreja Católica apoiou o golpe de 1964 e uma das “bandeiras” não só da

Igreja, mas daqueles que pregavam contra o comunismo e a subversão, era a defesa

da família, da moral e dos valores cristãos. Se formos fazer uma analogia, na virada

dos anos 1960 para os anos 1970, correspondendo principalmente ao governo do

general Médici, aquele slogan governista sendo readaptado na passagem bíblica

poderia ficar assim:

“ E os brasileiros habitavam confiados, cada um debaixo de seu teto, desde o

Oiapoque até ao Chuí, todos os dias do governo Médici”138

Então Médici aqui está sendo comparado ao rei Salomão? Não, de forma

nenhuma. O rei de Israel entrou para a História pela sua sabedoria e pelos livros que

teria escrito como, Provérbios, Eclesiastes e Cantares, na Bíblia Sagrada. O general

Médici estava longe disso. BARROS (1998)139

, em seu livro já aponta algo negativo

sobre o general, ele lia mal, conforme falou um comentarista político da época. É que

pensou-se que fosse a emoção do momento. De qualquer forma, o discurso da posse

de Médici (texto preparado pelo coronel Octávio Costa, chefe da Aerp) teve citações

literárias do poeta Augusto Meyer e paráfrases de trechos de discurso proferido por

Ruy Barbosa.

138 Aqui eu coloco do Oiapoque, no Amapá, até ao Chuí, no Rio Grande do Sul, para destacar os

extremos norte ao sul do nosso país, conforme expressão que resistiu por bastante tempo. Somente

muitos anos depois, constatou-se que o ponto mais setentrional do Brasil é o monte Caboraí, em

Roraima.

139 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 57.

203

Mesmo com todo o ufanismo e recursos literários, a realidade foi que a maior

parte da sociedade brasileira “não esteve tranquilamente debaixo da videira e da

figueira”. Ou seja, a maioria dos brasileiros não pôde desfrutar os resultados

materiais deste processo de forma equânime e sustentável.

Muitos são os saudosistas do regime militar que argumentavam que em 1964, o

Brasil tinha a 64º economia do planeta e, em menos de uma década, tinha o 10º PIB

mundial. Os críticos, desde os primeiros anos do Estado autoritário, retrucavam que

tal salto de crescimento foi à custa do arrocho salarial, aumento da concentração de

renda e reforço dos laços de dependência estrutural com relação ao capital

internacional. O problema foi que após o fim do período autoritário, em 1985, a

persistência e o agravamento da crise econômica na época da redemocratização, não

só no Brasil, mas em países vizinhos, como a Argentina, com inflação elevadíssima,

dívida externa exponencial e pauperização das camadas populares, fez crescer o

saudosismo com relação ao período dos militares, em especial dos anos do “milagre

econômico”.

Neste debate haveria um consenso, conforme NAPOLITANO (2014). O regime

militar teria sido um momento de afirmação do grande capital no Brasil,

completando uma reestruturação já em andamento desde antes de 1964. Medidas

econômicas específicas e a ausência de democracia impostas a partir do golpe de

1964 facilitaram as tarefas dos tecnoburocratas em programar estas medidas e

mudanças, pois estes estavam ali, junto ao poder, comandado pelos militares.

Assim, o Brasil vinha numa trajetória de modernização conservadora e

autoritária, desde - na verdade - a década de 1930, com Getúlio Vargas. E este

percurso modernizante teve sequência no período democrático advindo

posteriormente, após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. O nosso país fo i

dando passos importantes na sua inserção no sistema capitalista mundial. A diferença

era como esses passos seriam dados. Getúlio, por exemplo, priorizou um viés

desenvolvimentista de cunho mais nacionalista, não implicando num alinhamento

automático com os Estados Unidos, ainda que o mundo vivesse o contexto da Guerra

Fria. O presidente Juscelino Kubitschek optou por um tipo de desenvolvimentismo

de “50 anos em 5”, com uma maior abertura ao capital estrangeiro. Desde a década

de 1930, a partir da Revolução daquele ano e o fim da República Velha,

204

paralelamente à industrialização foi ocorrendo a urbanização. O Brasil cada vez mais

deixava sua feição de país rural agroexportador, para se tornar um país urbano em

ascendente industrialização, tendo o Estado como principal protagonista, em especial

nas indústrias de base.

Os militares, a partir do golpe de 1964, não romperam com isso. O que o

governo Jânio Quadros sabia que precisava fazer e não fez, talvez pela sua curta

existência, e o governo João Goulart também não faria devido aos diversos interesses

em conflito - entre uma direita conservadora e dada ao golpismo; e uma esquerda que

acreditava cada vez mais na mudança que as reformas de base poderiam trazer – o

regime militar acabou fazendo, que foi um ajuste e um reequilíbrio fiscal. Percebe-se

então que ajuste fiscal não é um assunto “novo”. O dilema que o atual governo de

Dilma Roussef enfrenta neste ano de 2015, já se repetiu antes em outros governos.

No caso de Jango, foi até elaborado o Plano Trienal, por parte de Celso Furtado, que

poderia após um primeiro momento de se “apertar os cintos” preparar o cenário para

uma futura retomada do crescimento. Infelizmente, o Plano Trienal foi abandonado

porque os atores envolvidos (à direita e à esquerda) não estavam dispostos a fazer

concessões ou recuos naquela época e o presidente Jango teve que tocar seu governo

e agir conforme os leques de possibilidades com que contava naquele momento.

Os ajustes fiscal e tributário, mais o reequilíbrio das finanças públicas,

acabaram sendo feitos no governo de Castelo Branco, levando o país a um quadro

recessivo, com arrocho salarial, contenção de reivindicações trabalhistas e populares

e supressão das liberdades democráticas . O grande problema é que uma vez que os

militares estavam no poder não haveria mais a possibilidade de diálogo e discussões.

A esquerda estava desbaratada pela nova situação político-institucional e a falta de

democracia e a eliminação do diálogo com diferentes grupos antes ativos, impôs ao

Brasil uma nova etapa nesse processo conservador de modernização e inserção no

capitalismo mundial.

Ao se analisar as realizações econômicas do regime militar, nesta perspectiva

histórica mais longa, há quase que um empate entre democracia e regime autoritário.

Entre 1948 e 1963, o crescimento médio do PIB foi de 6,3%. Entre 1964 e 1985 foi

de 6,7%. A exuberância do crescimento através do “milagre” dos anos Médici, e da

“marcha forçada” de crescimento dos anos Geisel foi, em grande parte anulada pela

205

política recessiva do governo Castelo e pela profunda crise econômica que, estouraria

de vez no governo Figueiredo, na primeira metade dos anos 1980.140

Outra questão eram as similaridades e algumas conexões entre o período

democrático pós 1946 e o regime pós 1964 no campo econômico. Os governos

militares deram sequência ao modelo de desenvolvimento implantado por JK sem

criar embaraços. Tanto nos anos de Juscelino, como no período dos militares, o

maior beneficiário do desenvolvimento foi o capital internacional, seguido pelo

capital nacional. Havia mais complementaridades do que conflitos nas políticas

econômicas implementadas durante aqueles dois períodos e as esquerdas não

contavam com isso.141

Foram pegas num “contrapé”, como no caso do PCB, que na

década de 1950, apostava por demais na burguesia nacional e na receita aliancista,

para o caminho das transformações sociais do Brasil.

Juscelino era um político hábil, driblava a lentidão das discussões políticas no

Congresso Nacional, dando andamento ao seu plano desenvolvimentista através de

grupos técnicos/executivos movidos pela lógica tecnocrata dos resultados. Estes

grupos reuniam governo, técnicos e empresários para implementarem políticas

voltadas à industrialização. Nos países periféricos, o tempo da política e o da

economia são díspares. A necessidade do desenvolvimento econômico não poucas

vezes levava ao travamento da política e da liberdade democrática. Por isso, muitos

empresários eram inclinados a soluções golpistas e autoritárias para frear as pressões

distributivas e acelerar o desenvolvimento capitalista.142

O modelo desenvolvimentista, mas sem democracia, imposto pelos militares

deixou um alto custo social. O salário mínimo teve perda real de 25% (entre 1964 a

140 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 148.

141 Id., Ibid., p. 148 e 149.

142 Id., Ibid., p. 149.

206

1966); e de 15% (entre 1967 a 1973).143

A mortalidade infantil decaiu em ritmo lento

(100,1 por mil nascidos vivos no ano no período de 1965-1970; para 90,5 por mil, no

período de 1970-1975)144

, continuando mais elevada no Nordeste em comparação

com o Sudeste e o Sul, agravando não só as desigualdades sociais, mas as regionais

também. Em 1980, a mortalidade infantil na região Nordeste (118 por mil nascidos

vivos) era quase o dobro da taxa verificada no Sul e no Sudeste (59 por mil; e 57 por

mil respectivamente).145

O que mascarava a situação era ampla oferta de emprego e a

inflação alta (mas controlada) que atenuavam os efeitos da concentração de renda.

Conforme NAPOLITANO (2014)146

, o regime militar brasileiro passou, por

pelo menos, quatro fases distintas no aspecto econômico:

Uma política dura de ajuste fiscal e monetário, ao gosto da

ortodoxia liberal. Menos dinheiro, menos crédito, menos gastos.

Controle salarial e mais impostos. Eis a política econômica do governo

Castelo Branco (1964-1967);

A exuberância do “milagre econômico” ou “milagre brasileiro”,

coincidindo basicamente com o governo Médici (1969-1974) e os “anos

de chumbo” – o ápice repressivo do regime. A média de crescimento do

PIB brasileiro foi de 11% ao ano, chegando aos 14%, em 1973. A crise

do petróleo, a partir de 1973, fez com que o governo, até antes da

sociedade, despertasse para as fragilidades do modelo adotado, tanto no

aspecto financeiro, como na dependência de insumos básicos (petróleo);

143 Id., Ibid., p. 149.

144 Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”, in: LUNA, Francisco Vidal & KLEIN,

Herbert S. Mudanças sociais no período militar. In: REIS FILHO, Daniel Aarão. RIDENTI, Marcelo. MOTTA,

Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. p.87

145 Fonte: IBGE., in: LUNA, Francisco Vidal & KLEIN, Herbert S. Op.cit. p. 88

146 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 150-151.

207

Correspondendo basicamente ao governo Geisel (1974-1979).

Numa nova perspectiva, procurou-se inibir o crédito farto e a onda

consumista anterior. O governo impôs uma planificação normativa,

reforçando as estatais (ligadas à siderurgia, petroquímica e energia),

mudando algumas das diretrizes do “milagre”, como o foco na indústria

de bens de consumo duráveis. A atenção governamental vai para o

investimento no setor de bens de capital, procurando-se evitar

“gargalos” energéticos e de bens intermediários fundamentais para a

produção dos bens de consumo. Paralelamente buscou-se o reforço ao

mercado interno, protecionismo setorial, autossuficiência energética e

captação de recursos às custas do endividamento estatal.

Por fim, a questão da dívida externa estouraria de vez com o

segundo choque do petróleo, em 1979, e a crise financeira

internacional, em 1982, ano em que o México decretaria a moratória de

sua dívida externa. Os últimos anos do regime, correspondendo ao

governo Figueiredo, foram de recessão, desemprego e inflação

altíssima.

O que Napolitano realça após diferenciar estes quatro momentos da política

econômica do regime militar é que todas tais políticas convergiram para o reforço

dos laços do Brasil com o sistema capitalista mundial, priorizando o capitalismo

monopolista e a industrialização. Para a sociedade como um todo: (empresários,

classe média, trabalhadores em geral, etc.), a maior ou menor adesão e simpatia

política ao regime era condicionada pelos efeitos da política econômica sobre os

cotidianos dos negócios do consumo e da sobrevivência. A sociedade esteve atrelada

ora aos bons momentos da economia interna, ora aos ditames do sistema capitalista

mundial. As oportunidades profissionais que apareceram e se ampliaram para a

formação superior, em especial para a classe média, podem ser consideradas reflexo

disso.

No governo de Castelo Branco priorizou-se o controle da inflação e a

reorganização institucional do quadro macroeconômico do Brasil. O controle salarial

ajudou a derrubar a inflação (que também foi uma das razões alegadas para a queda

208

de João Goulart, manifestada na crise econômica) e paralelamente ocorreu a inibição

da atividade econômica refletindo-se nos preços e criando um cenário recessivo. Tal

cenário levaria setores da classe média e da burguesia a ficarem desapontados e até a

criticarem o primeiro governo do novo regime. Esta demora na superação do quadro

recessivo decorreu do fato de que aquele governo priorizou reformas estruturais,

reorganizando o sistema tributário e eliminando as lacunas do sistema financeiro, por

exemplo. Era a visão dos responsáveis pela política econômica do governo Castelo –

Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen. O governo renegociou a dívida

externa que, na época, era de US$ 3,8 bilhões147

, reformou a Lei de Remessas de

Lucros de 1962 (cujo substitutivo foi de autoria de Ulysses Guimarães, do PSD) para

favorecer a livre circulação do capital estrangeiro e estimulou as exportações

oferecendo até isenções fiscais.

No plano trabalhista elaborou-se um novo cálculo de reajuste salarial

considerando-se a inflação passada. Só que a incorporação salarial era parcial, e não

total, levando ao arrocho. A previdência social foi unificada reunindo-se no INPS

(Instituto Nacional de Previdência Social). Uma nova Lei de Greve (cujo redator

também foi Ulysses Guimarães, em junho de 1964) foi criada para afastar focos de

atrito e embaraços criados pela legislação trabalhista. Por esta nova lei o direito de

greve foi limitado às questões salariais votada em assembléia pelo sindicato

oficialmente reconhecido. Greves de servidores da União, por motivos político-

ideológicos, de apoio ou de solidariedade, bem como a ocupação dos locais de

trabalho e piquetes “ofensivos” foram proibidos.

De acordo com NAPOLITANO (2014),148

o Paeg (Plano de Ação Econômica

do Governo), não tinha um caráter de planejamento estratégico da economia, mas de

intervenção através de medidas tomadas por diversos órgãos governamentais na

forma de políticas setoriais. Um dos pilares do Paeg foi a reestruturação do sistema

fiscal, cortando gastos, inclusive com a proibição do Legislativo de aumentar as

147 Id., Ibid., p. 152.

148 Id., Ibid., p. 153.

209

despesas do orçamento da União. A Emenda Constitucional nº18 serviu de base para

a formatação de um Sistema Tributário Nacional. Por esta emenda, foram criados

impostos podem-se chamar de “ancestrais” dos atuais IPI, ICMS, IOF e ISS. O

primeiro governo militar procurou “disciplinar” o sistema tributário, reorganizando

uma estrutura de carga tributária relativamente caótica do período anterior. Todas

essas ações, somadas às criações de novos impostos fez com que o governo federal

fosse aumentando as suas arrecadações e reduzindo os déficits.

Na estruturação do sistema financeiro, também priorizada pelo Paeg, foi criado

já em 1964, o Banco Central que substituiu o Sumoc (Superintendência da Moeda e

do Crédito), organizando as regras cambiais e a emissão de moeda.

Para o problema da moradia e da habitação, que perturbava a classe média e

afligia muito mais as camadas populares, o governo criou o SFH (Sistema Financeiro

de Habitação), integrando o BNH (Banco Nacional da Habitação), a Caixa

Econômica Federal e caixas estaduais. Para gerar recursos ao sistema habitacional

foi criado o FGTS (Fundo de Garantia por tempo de Serviço), em 1966, uma

poupança compulsória que incidia sobre o salário dos trabalhadores na ativa,

flexibilizava a relação patrão-empregado e funcionava como uma espécie de “seguro-

desemprego” desde que o trabalhador não tenha sido demitido por justa causa.

Se para o cotidiano da população, da classe média e até de setores da

burguesia, o que era perceptível era o quadro recessivo e negativo na economia, por

outro lado, o Estado brasileiro assumia assim um papel regulador e normativo nas

relações socioeconômicas no plano fiscal, tributário e trabalhista, viabilizando uma

“otimização” para a inserção do Brasil no sistema capitalista mundial.

Aqui foi antes discutida a “militarização” do regime. O golpe de 1964 foi

principalmente um golpe militar. Os militares foram os atores decisivos para o

desfecho que teve o governo Jango. E uma vez iniciado o regime, ele foi de caráter

militar. Ainda que houvesse civis e toda uma burocracia tecnocrata a serviço do

Estado autoritário, a última palavra era dos militares. Porém, se em alguns setores a

presença dos militares foi marcante, como na energia, transportes e comunicações

(sem falar obviamente da segurança – pautada na Doutrina de Segurança Nacional -

DSN). Na economia teve-se a notória presença burocrática e corporativa dos civis em

órgão e cargos de planejamento. Intelectuais foram recrutados do mundo acadêmico,

210

e também membros do setor empresarial, para compor quadros comissionados ou de

assessoramento nos diversos conselhos de Estado. Era a tecnoburocracia de carreira.

Ao contrário do plano social e político. No aspecto econômico o regime

procurou flexibilizar as tomadas de decisões, para dar um aspecto de “livre-

iniciativa”, que teria sido uma das “bandeiras” do golpe contra a “ameaça”

comunista. Então o regime evitou fazer do CMN (Conselho Monetário Nacional),

uma estrutura burocrática centralizada. No CMN houve espaço para debates,

consultas, mediação de interesses e trocas de informações, antes de tomar decisões.

Ali atuavam os ministérios, agências executivas, o Banco Central, o Banco do Brasil,

a Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento), entre outros. O CNM, na

prática, foi o órgão que gerenciava as políticas econômicas até 1974.149

.

Ao deixar o poder, em 1967, Castelo Branco não conseguiu deixar uma

imagem de um presidente que superou a crise. Seu governo entrou para a História,

claro que pelas reformas estruturais visando à inserção do Brasil no sistema

capitalista mundial, mas também pela recessão econômica que atritou o governo com

as suas bases de apoio da época do golpe, como a classe média e o empresariado. No

segundo governo militar, o de Costa e Silva, procurando-se uma maior legitimidade

ao regime, o país é direcionado a uma nova trajetória na economia, até para agradar

aos setores nacionalistas do Exército também. Parte dos objetivos do Paeg haviam

sido atingidos e Costa e Silva chama para o Ministério da Fazenda, Delfim Netto, um

jovem professor de economia da Universidade de São Paulo. A política econômica

foi se afastando da ortodoxia prescrita pelo Paeg. Médios empresários nacionais mais

fiéis ao regime acreditavam que o problema da alta inflação estava superado e que

era necessário sair da recessão e acelerar o crescimento.

Delfim Netto pensava do mesmo modo, mas sem desconsiderar a vigilância à

inflação. Com a situação fiscal favorecida pelo duríssimo arrocho salarial e pelos

financiamentos de capitais externos, o ministro da Fazenda reduziu os juros, facilitou

o crédito e criou subsídios para as empresas multinacionais. Juntamente com Hélio

Beltrão, a equipe de Delfim elaborou o Plano Trienal de Governo fixando as metas

149 Id., Ibid., p. 157.

211

para o período de 1968-1970. Antes, ainda em 1967, Hélio Beltrão – ministro do

Planejamento - apresentara o PED (Programa Estratégico de Desenvolvimento) que

constava de três pontos: solucionar os problemas ligados à estrutura e ao

financiamento da comercialização de alimentos (cuja carência no mercado interno

era um dos fatores que pressionava a inflação); aumento da produtividade

econômica; e eliminação dos principais pontos de estrangulamento, com

investimentos em infraestrutura.150

O governo contava com o aumento no consumo de bens duráveis pelas

camadas mais abastadas da classe média (cerca de 20 % da população brasileira da

época). Enquanto que o Estado investiria em grandes obras de infraestrutura,

estimulando o mercado da construção civil.

Se o Brasil, após o governo de Castelo Branco estaria “pronto para crescer”,

apesar da política recessiva e das críticas que o primeiro governo militar veio a

enfrentar, depois de 1968 começavam a aparecer os primeiros efeitos do crescimento

econômico. O setor privado canalizou o crédito, as exportações de manufaturados

cresceram junto às importações de petróleo e de máquinas. Delfim estimulou a

geração de recursos próprios pela iniciativa privada, reduzindo as pressões sobre os

juros e a inflação. A partir de 1970, o governo percebia a relativa solidez de um

crescimento sustentável. A recessão, os ajustes e o controle da inflação no governo

Castelo puderam sedimentar o quadro para o “milagre brasileiro” e o ufanismo em

especial nos anos de Médici. Ao que parece, o ministro Delfim teve a percepção de

que, no início do governo de Costa e Silva, havia espaço para medidas além das

“amarras” do Paeg e delinear uma trajetória de crescimento, que deu certo até o final

do período Médici, quando em 1973, a primeira crise do petróleo acabará expondo os

limites do “milagre”. O clima de euforia, entusiasmo e ufanismo dos anos do milagre

foram incrementados pelas derrotas da guerrilha armada, na virada das décadas de

1960/70, por conta da brutal repressão e eliminação de seus principais líderes,

criando o que chamo ironicamente de “anos dourados de chumbo”; e pela superação

150 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit., p. 34 e 35.

212

da crise sucessória que ameaçou a unidade militar, em 1969, com a enfermidade de

Costa e Silva.

Por outro lado, face à maquina governamental propagandística e ufanística,

com a proliferação de slogans como: “Pra frente Brasil”, a euforia

desenvolvimentista - no clima da conquista da Copa de 1970 pela seleção brasileira -

a censura imposta aos meios de comunicação ou a explícita conivência destes com o

regime, fez criar na população como um todo, mais despolitizada e alheia às questões

ideológicas e da luta armada, a sensação de bem-estar - o de cada um habitar seguro

“debaixo da sua videira e da sua figueira” – ou seja, no contexto brasileiro, era o

pleno emprego, consumo farto, crédito abundante, obras grandiosas (como a ponte

Rio-Niterói, a usina de Itaipu e a Transamazônica), “migalhas” para os pobres

iludidos com o tamanho do “bolo”. Era o “Brasil Grande Potência”, nada ou

ninguém poderia segurar o Brasil dali para frente. Grande parte da população e da

mídia estavam seduzidos pelo “milagre econômico”.

O presidente Médici não alterou o modelo administrativo de Costa e Silva. O

CMN, presidido por Delfim Netto geria o desenvolvimento, ouvindo vozes do

empresariado. De outra parte, tinha-se a gestão da segurança nacional, através do

SNI e o CSN (Conselho de Segurança Nacional), inteiramente militarizados. A

mediação entre a instância desenvolvimentista e a da segurança era realizada através

da Casa Civil. E esta última fazia a mediação entre as duas referidas instâncias e os

quadros políticos do regime (a Arena e os governadores de estado).

Sustentando-se no extraordinário crescimento obtido no período entre 1968 e

1973, este modelo administrativo que a gestão de Costa e Silva e o de período Médici

teve êxito. Era o período do “milagre econômico” que perfeitamente casou com o

auge repressivo dos “anos de chumbo”. Esta correlação não pode deixar de ser feita.

Foram os “anos de chumbos dourados”, um país do Terceiro Mundo emergindo no

cenário internacional e se afirmando nos cenários latino e sul-americano, uma

sensação de “felicidade geral”, de prosperidade, de tempos “dourados” (com o

amarelo do Brasil, que representa as suas riquezas, em evidência por conta do

tricampeonato mundial da seleção). Prosperidade que acobertava, atrás da espessa

capa da censura, da legislação autoritária, da imprensa e da mídia (amordaçadas pela

censura ou simplesmente a serviço das realizações do regime), os terrores e os

213

horrores dos seus “porões” com repressões, perseguições, torturas, mortes por

assassinato e desaparecimentos. Uma ilustração do período poderia ser descrita

assim: uma lápide ou um sepulcro muito belo – dourado, lindo e resplandecente -

que representaria a pujança econômica do Brasil daqueles tempos, mas por dentro

daquele túmulo tão belo - a morte e a podridão que representariam os aparatos

repressivos do regime e as suas ações implacáveis contra os seus adversários. E, se

formos rememorar, o que o sociólogo Betinho afirmou, de que em 1964 a

democracia nacional recebeu um “tiro no peito”, podemos considerar que o nome

escrito na lápide era a da democracia brasileira.

As duas charges de Ziraldo também ilustram estas duas situações que apesar de

tão diferentes, se complementaram. Ao mesmo tempo que o governo reprimia e

sufocava qualquer tipo de oposição, apregoava a conquista da Copa de 1970 com a

intenção de mascarar as desigualdades sociais e a crescente concentração de renda:

Charges de Ziraldo sobre os anos do governo Médici.

Fonte: http://mestresdahistoria.blogspot.com.br/2012/09/saiba-mais-sobre-rotinizacao-

do.html.

214

Outro fator que favoreceu o “milagre brasileiro” foi a situação internacional do

pós-Segunda Guerra Mundial. O que Napolitano chama de os “trinta anos gloriosos”

do sistema capitalista mundial terminariam com a crise do petróleo em 1973. No

exterior, o dinheiro era abundante entre investidores e banqueiros. O Brasil precisava

captar recursos para financiar as grandes e caras obras estruturais. Os capitais

investidos, obviamente, buscavam por países e locais seguros. Como o Brasil não

contava com abundante poupança interna, esses recursos eram excelente alternativa

para os grandes projetos de hidrelétricas, portos e estradas que o governo queria

executar para resolver os problemas dos “gargalos” que poderiam travar o

desenvolvimento e o crescimento nacional.

Por que, principalmente após 1968, o Brasil se tornaria um local “seguro” para

o capitalismo financeiro? O que deve ter ocorrido é que a receita ortodoxa de

recessão prescrita nos anos de Castelo Branco, com medidas duras e impopulares

através do Paeg, criaria as condições para tal ambiente favorável aos capitais

externos posteriormente. O ambiente de negócios estava tranquilo, do jeito que o

investidor gosta, com o solapamento do reformismo distributivista e do “exorcismo”

do fantasma da “revolução socialista/comunista”, colocados fora da cena política

legal através das cassações, atos institucionais e outras medidas políticas do Estado

autoritário.

Delfim Netto, apontado por mais de um autor como o “czar”151

da economia,

mantido no Ministério da Fazenda no período Médici, aprofundou o modelo de

crescimento combinando a expansão da agricultura com as exportações

(principalmente de manufaturados) que levariam ao fortalecimento do mercado

interno; ao estímulo das indústrias de bens de consumo duráveis (como

eletrodomésticos); e as de bens intermediários (as siderúrgicas). Os índices de

crescimento do PIB registrariam dois dígitos entre 1970 e 1973. Delfim era adepto a

medidas de caráter pontual e não com metas e ações de longo prazo. O I PND (Plano

Nacional de Desenvolvimento) com as metas para 1972-1974 foi lançado neste

151

NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 162

BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit., p. 58.

215

cenário com um PIB crescendo a mais de 10% ao ano. Ao contrário do ministro da

Fazenda, o Ministério do Planejamento tinha ressalvas e receio quanto ao percurso de

crescimento que o Brasil vinha seguindo, principalmente com a inflação

relativamente alta nos anos do ”milagre”. A preocupação inflacionária tinha

fundamento, pois na ótica de determinados segmentos políticos e econômicos, num

país de graves desigualdades como o Brasil, a alta da inflação poderia erodir com a

legitimidade do próprio regime e foi o que realmente aconteceu, sobretudo na

primeira metade da década de 1980, no governo Figueiredo. Isso ajuda a entender

porque os índices de inflação foram manipulados em 1973, ano da escolha para a

sucessão presidencial e quando a crise do petróleo afetaria o sistema capitalista

mundial.

A classe média durante o período do apogeu de crescimento do PIB brasileiro

foi tendo acesso aos bens duráveis graças à expansão do crédito. Os setores mais

baixos desta mesma classe média (como os comerciantes, escriturários e pequenos

funcionários) viviam o sonho da casa própria, financiada pelo BNH, e do carro

popular, como o Volkswagen Fusca. Tudo financiado à longo prazo.

Mas o “milagre” trazia o seu outro lado. A poupança interna era deficitária e o

país era dependente do capital estrangeiro, as exportações estavam concentradas em

setores de baixa tecnologia, a concentração de renda e o arrocho salarial foram

mantidos. Quando o problema da inflação, que já vinha de antes, estourou de vez

após a segunda crise do petróleo, em 1979, as classes populares foram as mais

atingidas porque não tinham despesas a cortar. O regime optou pela concentração de

renda em nome do controle dos salários e do custo da mão-de-obra. O salário mínimo

perdeu poder de compra. A indústria nacional não tinha como atender a um aumento

da demanda por bens de consumo duráveis e moradias. Assim, o governo evitava

favorecer uma melhor distribuição da renda para preservar os segmentos mais

abastados da classe média.

Algo que ocorria antes e que se manteve durante o regime e, logicamente

também, nos anos do ápice de crescimento de meados da década de 1970, foi a

migração inter-regional, em especial do Nordeste para as grandes metrópoles do

Sudeste. O meio rural expulsava trabalhadores, por conta do domínio do latifúndio,

fazendo com que esta mão-de-obra, pouquíssimo qualificada, encarasse qualquer tipo

216

de trabalho nas grandes cidades, mesmo ganhando péssimos salários. Para estes

trabalhadores, principalmente vindos das zonas rurais nordestinas, o pouco de

serviços e infra-estrutura que eles tinham acesso na cidade grande, ainda que de

péssima qualidade, eram melhores ainda do que a situação que os mesmos viviam no

campo. O setor da construção civil se torna um setor-chave para absorver este

contingente de mão-de-obra. Estes migrantes, fugidos da especulação fundiária no

campo, enfrentarão a especulação imobiliária das cidades, e acabarão por se

estabelecer em áreas periféricas, distantes das regiões mais centrais da cidade,

melhor servidas de equipamentos e bens públicos. Paralelamente ao estabelecimento

das regiões metropolitanas, em meados dos anos 1970, no contexto do I PND, o

problema da expansão das periferias e das favelas, com suas carências ali existentes

serão um fiel retrato do descaso do regime militar com a distribuição da renda.

Deixa-se bem claro aqui que a urbanização, o processo de êxodo rural, bem

como as migrações inter-regionais, sobretudo do Nordeste para o Sudeste, não

começaram no período autoritário do pós-1964. Estes processos não eram inéditos no

Brasil dos tempos do “milagre”. Mas o Estado autoritário os incrementou sem tomar

as devidas medidas na área social. A partir do censo de 1970, passa a haver mais

brasileiros nas cidades do que no campo. O país terminava de mudar a sua feição

para um país urbano, metamorfose esta que já vinha se delineando desde a década de

1930.

O próprio presidente Médici declarou nos tempos da prosperidade econômica:

“o Brasil vai bem, mas o povo vai mal”. A pobreza, miséria e subdesenvolvimento

incomodavam até um certo ponto os idealizadores da Doutrina de Segurança

Nacional porque este quadro negativo poderia reforçar os movimentos “subversivos”

e das esquerdas. Mas, ainda que tenha havido no seio das Forças Armadas, propostas

nacionalistas e reformadoras para enfrentar a miséria e a desigualdade, tal grupo foi

podado durante o regime, em especial no momento da sucessão de Costa e Silva. A

visão conservadora que prevaleceu no coração do poder nacional fez com que os

aspectos sociais e de distribuição da riqueza fossem enormemente negligenciadas

pelos militares.

O que se pode chamar de uma política social do regime foram medidas

relativamente superficiais e compensatórias. Entretanto, no meio rural, durante o

217

governo Médici, foi elaborado um plano de previdência, assistência e reforma

agrária, materializado em maio de 1971 no Prorural (Programa de Assistência ao

Trabalhador Rural) E, em julho daquele ano, o Proterra (Programa de

Redistribuição de Terras). Ambos os programas propunham a desapropriação de

grandes propriedades improdutivas com indenização para venda a pequenos e médios

agricultores, concessão de créditos e preços mínimos para produtos de exportação.

Para os trabalhadores urbanos, foi criado o Pis-Pasep, em 1970, servindo como uma

poupança forçada para a indústria, sem recorrer a empréstimos bancários. E para

injetar recursos para o consumo dos assalariados.152

Entretanto, o arrocho salarial

inviabilizou uma real política previdenciária, para a verdadeira superação da miséria

e concentração de renda.

Em termos de políticas habitacionais, o governo lançaria, em 1973, o Plano

Nacional de Habitação Popular (Planhap), com objetivo de eliminar o déficit

habitacional em dez anos, atendendo famílias que tivessem renda de até cinco

salários mínimos. Previa-se a construção de dois milhões de moradias, criando-se

também milhares de empregos diretos e indiretos para a aplicação do Plano. Porém,

os resultados ficaram longe do que havia sido inicialmente colocado como meta. Os

programas de habitação popular seriam atingidos também pela especulação,

submetendo-se à lógica do mercado, voltando-se para as classes médias.

Na educação, em 1968, o governo impôs a reforma universitária. Em 1971 era

a vez do ensino básico, com a integração do primário ao ginásio, mais a alteração da

grade do ensino médio. Para as populações adultas ainda analfabetas seria criado o

Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que até hoje é lembrado por muitas

pessoas que viveram aqueles tempos. Entretanto, o Mobral serviu mais para “fazer

propaganda do governo” do que para verdadeiramente erradicar o analfabetismo das

camadas adultas da população nacional, devido também à sua metodologia

tecnicista.153

152 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 167.

153 Id., Ibid., p.168.

218

Além da ênfase compensatória, com pequenas transferências de renda e

ampliando alguns serviços públicos (como os de assistência social e de saúde) para

populações que estavam completamente sem amparo, especialmente no meio rural

brasileiro, o regime procurou dar uma lógica tecnicista em suas políticas sociais

pautando-se numa palavra muito forte naqueles tempos: o planejamento. O governo

procurou racionalizar, normatizar e regular o meio social, procurando solucionar seus

conflitos, para dar andamento aos seus programas e agências, num paradigma técnico

e racional. Todavia, se formos imaginar que em algum momento o regime militar

brasileiro procuraria oferecer alguma estrutura de assistência social, em especial na

educação e na saúde, tal disposição do regime esbarraria nos governos locais, do

âmbito municipal, onde todo o tecnicismo e racionalidade dos programas seriam

engolidos por más administrações e pela corrupção por parte dos poderes locais,

embora não há como redimir também as esferas superiores do governo – as estaduais

e a federal.

NAPOLITANO (2014)154

aponta que uma das razões para a questão dos

menores abandonados e da explosão da criminalidade nas periferias das grandes

cidades foi decorrente da migração desenfreada e do inchaço urbano advindo deste

processo. Ainda que, num primeiro momento pareceu haver melhorado a situação

destas pessoas, vindas do meio rural e de outras partes do país, em especial do

Nordeste em direção às grandes metrópoles do Sudeste – sobretudo São Paulo e Rio

de Janeiro, pois no campo elas não contavam praticamente com assistência nenhuma,

o efeito colateral logo manifesto foi a desorganização familiar, com a oferta

insuficiente de escolas e creches públicas. Assim teve-se o “caldo” para o aumento

no número de menores abandonados e infratores, bem como a elevação da

criminalidade, com episódios até de violência banal – ora entre vizinhos, ou por parte

da truculência das forças policiais. A ausência do poder público e as brechas

deixadas por este acabarão por ser preenchidas por atividades ilegais como, por

exemplo, o tráfico de drogas e o crime organizado. Outro fator que contribuiu para o

154 Id., Ibid., p.169.

219

problema foi a retração do crescimento econômico brasileiro e a crise que se abateria

no país, em especial após 1979. Se nos anos do “milagre” nenhuma atitude sólida foi

tomada pelos donos do poder do Estado autoritário em termos de distribuição de

renda, melhorias salariais, etc., a situação se tornaria mais dramática, em especial

para as camadas populares, com a terrível crise econômica que o Brasil viveu nos

anos finais do regime, já no governo Figueiredo. Mas, nem tudo foi ruim nas

periferias. Ali também surgiriam novas formas de sociabilidade, criando novos laços

políticos, como nos movimentos sociais, que ganharão seu espaço no decorrer do

período democrático posterior ao regime.

Se formos pensar na Geografia, ela teve o seu papel decisivo para o fim do

“milagre brasileiro”. Afinal, o Brasil estava inserido dentro da geografia do sistema

capitalista mundial. No distante Oriente Médio, países árabes – liderados pelo Egito e

a Síria – resolveram recuperar os territórios perdidos para Israel, em 1967. Seis anos

depois, em 1973, ocorria a ofensiva árabe contra Israel, na Guerra do Dia do Perdão

(data comemorada em Israel). Em desvantagem no início, Israel conseguiu revidar

aos ataques por conta da ajuda recebida pelos seus aliados do Ocidente, em especial

os Estados Unidos. Com o fracasso militar, os países árabes produtores de petróleo

conseguem sua retaliação no campo econômico, sendo maioria na OPEP

(Organização dos Países Exportadores de Petróleo) impondo a elevação do preço do

barril de petróleo, afetando bastante o mundo ocidental. A economia européia

dependente das importações de petróleo passou a conviver até com racionamentos de

energia. Os Estados Unidos também foram afetados, ainda que com menos

intensidade. O Brasil, situado na periferia do sistema capitalista, obviamente, sofre os

impactos disso na importação do petróleo. Era o fim dos “anos dourados” do

capitalismo pós-Segunda Guerra.

O Brasil importava na época cerca de 90% do petróleo consumido e sentiu os

efeitos do “choque do petróleo”. Contudo, o país ainda podia contar com o dinheiro

que - agora em posse dos árabes, os “petrodólares” – ainda encontrava-se nos

bancos ocidentais e assim o Brasil ainda poderia recorrer aos empréstimos do

exterior.

O fim do “milagre” coincide com o início do governo Geisel, em 1974.

Procurou-se, mesmo diante da nova realidade desfavorável, o crescimento

220

econômico. Isto era vital para Geisel poder dar andamento ao projeto da “distensão”

e em preservar a legitimidade do regime. O II PND (Plano Nacional de

Desenvolvimento) tinha metas neste contexto, buscando a superação de “gargalos” às

indústrias de base e à rede de energia. A dependência das importações levou a

constantes déficits, porém a disponibilidade de dólares no exterior puderam financiar

o desenvolvimento e os projetos do governo Geisel. Em seus tempos, foi criado o

CDE (Conselho de Desenvolvimento Econômico) e a Seplan (Secretaria de

Planejamento da Presidência da República), em 1974. Presidida pelo próprio Geisel,

as orientações da macroeconomia previstas no II PND, seriam executadas a partir

destes órgãos.

O efeito desenvolvimentista do II PND, desconsiderando os aspectos sociais,

teve êxito até 1976155

. Depois a inflação, a retração do consumo nas classes médias e

o arrocho salarial foram gerando grande descontentamento da população. O regime

começava a enfrentar dificuldades quanto à sua própria manutenção e legitimidade,

dificuldades estas que só vão aumentar nos anos do governo Figueiredo (1979-1985).

O regime militar chegou ao fim ao sabor de uma ironia, no plano econômico.

Os golpistas de 1964 utilizaram, entre vários outros argumentos, a situação de crise

econômica do governo João Goulart para derrubá-lo do poder. Todavia, uma situação

econômica mais complicada, advinda do “choque” do petróleo de 1973, agravada

pelo segundo “choque do petróleo” de 1979, fez com que o regime perdesse as suas

bases sociais por conta da crise econômica. No ano do golpe – 1964 - a inflação foi

de 92,1%, porém o regime passou a dominar o poder a partir de abril. No primeiro

ano por inteiro do regime – 1965 - a inflação foi de 39,1%. Nos anos seguintes,

seguiu abaixo dos 40% por todos os governos de Castelo Branco, Costa e Silva e de

Médici. Nos anos do general Médici (1969-1973) esteve abaixo dos 20%. A inflação

ultrapassou os 40% em 1978, já no governo Geisel. E passou dos 100% no governo

Figueiredo (110,2%, em 1980).

O regime militar fecharia seu ciclo com índices de inflação inimagináveis nos

anos de Jango: 211% (em 1983). No último ano completo, que Jango esteve no poder

– 1963 - (pois em 1964 ele seria derrubado em março), a inflação foi de 79,92%. Em

155 Id., Ibid., p.171.

221

1984, último ano por inteiro do regime militar (em 1985, o general Figueiredo sairia

da Presidência da República, a 15 de março), a inflação foi de 223,9%. Praticamente

três vezes maior. 156

Outro dado. O PIB sempre apresentou crescimento positivo nos anos de Jango.

O índice mais baixo foi um crescimento de 0,6% de crescimento do PIB, em 1963.

No último governo de um general-presidente, o de João Figueiredo, houve números

negativos do PIB (crescimento negativo: retração de 3,1%, em 1981; e nova retração

de 2,9%, em 1983).157

Claro que o período Figueiredo foi mais longo (seis anos).

Jango não permaneceu nem três anos no poder (na verdade, no sistema

presidencialista foi um pouco mais de um ano). Devido à diferença de tempo de

duração entre o governo Jango e o do general Figueiredo, bem como as diferenças

nos contextos gerais, tanto brasileiro como mundial, de épocas diferentes (anos 1960

versus anos 1980), esta comparação pode não ser pertinente. Contudo, fazendo-se

esta menção espero que o leitor, pelo menos, possa refletir e aprofundar futuras

pesquisas com novos números e perceber que, nos tempos dos militares, nem sempre

a economia foi próspera. A maior parte da população brasileira, ao invés de

“descansarem debaixo da figueira, ou da videira”, como mencionado no trecho

bíblico aqui citado, continuaram à margem das políticas oficiais e vítimas da

perversa concentração da renda e do arrocho salarial. O “milagre” foi econômico,

mas não social, e muito menos político e democrático (vide tabela 1).

156 Fonte: FGV/IBGE, in: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit, p.172

157 Id., Ibid., p.172.

222

Tabela 1:

Dados econômicos do Brasil 1960-1984

Ano Inflação (em %) Crescimento do PIB (em %)

1960 30,5 9,4

1961 47 8,6

1962 51,6 6,6

1963 79,92 0,6

1964 92,1 3,4

1965 34,3 2,4

1966 39,1 6,7

1967 25,02 4,2

1968 25,4 9,8

1969 19,3 9,5

1970 19,3 10,4

1971 19,5 11,3

1972 15,7 11,9

1973 15,6 14

1974 34,5 8,2

1975 29,3 5,2

1976 46,3 10,3

1977 38,8 4,9

1978 40,8 5

1979 77,3 6,8

1980 110,2 9,2

1981 95,2 -3,1

1982 99,7 0,8

1983 211 -2,9

1984 223,9 5,4

Fonte: FGV/IBGE. In: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 172.

223

3.3.2- Anos de chumbo

Se tentarmos estabelecer um marco cronológico para o que teria sido os “anos

de chumbo”, poderíamos escolher a imposição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968.

Se analisarmos o regime como uma “ditabranda”, no período compreendido entre

1964 e 1968, perceberemos que, apesar de ser um termo altamente controverso, a

“ditabranda” não se restringe somente ao período castelista, mas abrange até a

metade do segundo governo militar – o do general Arthur da Costa e Silva.

Agora, considerando-se os “anos de chumbo”, eles se estenderam basicamente

pela segunda metade do governo de Costa e Silva, passando pela Junta Militar de

1969, todo o período Médici (1969-1974), terminando com a chegada de Geisel à

Presidência, naquele mesmo ano de 1974. Todavia esta periodização, que aqui estou

apontando, é controversa porque: primeiro, ao se qualificar o regime desta forma

(“ditabranda”, “anos de chumbo” e “distensão”, sendo que este último termo

praticamente se tornou sinônimo do governo Geisel) cria-se, a meu ver, uma falsa

impressão de que o regime militar não foi um período uno, que afetaria seriamente o

Brasil por 21 anos ininterruptos, em que a população ficou proibida de escolher o

presidente da República por quase três décadas e sem escolher os governadores

estaduais por 17 anos. Não só isso, o golpe de 1964 destruiria toda uma dinâmica

política e partidária precedente, prejudicando toda uma geração de figuras políticas

(que apesar de todas as críticas e defeitos existentes não só com relação a estas, como

ao sistema do período democrático anterior) poderiam abrir leques, brechas e

possibilidades para uma maior democratização do país. Também foi paralisado todo

um processo de conscientização e de politização de, pelo menos, algumas camadas

subalternas da sociedade nacional.

Então, esta visão do regime militar de 1964, como algo uno - a unidade de uma

corporação - que dominou o país por duas décadas, fica fracionada e segmentada por

tal periodização como a apontada acima. Isso pode prejudicar uma análise do período

militar autoritário, havendo riscos de se responsabilizar por demais determinados

personagens, ou “demonizar” em excesso outros atores. Por exemplo, ficou até aos

dias atuais, a imagem de Castelo Branco como um presidente-general “bem

intencionado”, que não queria ou tinha certo receio de tomar medidas discricionárias;

224

com relação à Médici, primeiro como o símbolo da onda de prosperidade e otimismo

(“o milagre econômico”) da época de seu governo, mas depois de terminado o

período do Estado autoritário, teria a sua imagem associada à da repressão e ao auge

da tortura (“os anos de chumbo”); Geisel, como o general da abertura e da

“distensão”, às vezes elevado até a um certo “pedestal” por conta disto, como se seu

governo não tivesse apresentado torturas, mortes e, principalmente, contradições,

com avanços e retrocessos permeados por medidas autoritárias.

Voltando-se ao AI-5, este não apresentou, de imediato, uma nova máquina

repressiva já pronta. Mais ainda, com relação à Costa e Silva, não há um consenso

quanto à responsabilidade daquele general-presidente quanto ao AI-5. Costa e Silva

não queria entrar para a História como “mais um general sul-americano que golpeou

as instituições”.158

No rastro deste receio do presidente, uma hipótese é que Costa e

Silva, já com a saúde debilitada, tentou realizar uma “abertura” do regime, na

verdade, constitucionalizar a nova situação político-jurídica, chegando a solicitar um

projeto para procurar, na ótica militar e da magistratura conservadora, normatizar as

leis de exceção e legitimar o arcabouço jurídico-institucional, constitucionalizando,

na ótica de ambos os grupos, uma “normalidade democrática”. Para NAPOLITANO

(2014)159

a hipótese seria plausível dada à “obsessão” dos militares e dos

magistrados em normatizar, regulamentar e organizar um dado sistema dando a ele

uma fachada “legitimante”.

Costa e Silva, afastado provisoriamente do cargo em agosto de 1969, e em

definitivo no mês seguinte, foi substituído por uma junta militar que impediu a posse

do civil Pedro Aleixo, o vice-presidente. Neste mesmo ano, o sequestro do

embaixador norte-americano forneceria a ocasião perfeita para aprimorar o sistema

de repressão.

Havia uma crise política após o derrame de Costa e Silva. A Junta Militar

não conseguiu acalmar os ânimos entre os diferentes grupos existentes nas Forças

158 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 120.

159 Id., Ibid., p.120.

225

Armadas. A guerrilha com as suas ações de sequestros, assaltos a bancos, etc.,

ganhava espaço e o nome de Carlos Marighella crescia como o símbolo do

guerrilheiro temido e admirado. Dentro das Forças Armadas, a jovem oficialidade,

tendo como porta-voz o general Albuquerque Lima, candidato à Presidência da

República, propunha um novo direcionamento à “Revolução de 1964” voltado a um

nacionalismo autoritário reformista, com reforma agrária, centralização do poder e

combate às oligarquias, algo aliás presente no pensamento geopolítico brasileiro –

centralização e um certo desprezo ao regionalismo oligárquico. O que estava por trás

disso era uma concepção de integração nacional, acima das diferenças regionais e

locais, na busca da consolidação do projeto de “Brasil Grande”. O clima deste

projeto, fortemente presente nos quartéis, foi habilmente captado pelo governo

Médici, com a “proeza” de não radicalizar contra as velhas estruturas.

O general Emílio Garrastazu Médici, foi escolhido para a Presidência da

República, em 1969, numa eleição “direta”, restrita aos generais obviamente. Os

militares, para legitimar uma verdadeira farsa institucional, reabriram o Congresso

após 312 dias, em outubro de 1969, para a ratificação do novo presidente escolhido.

Embora Médici tivesse feito, em seu discurso de posse, menção a uma

aspiração nacional pelo regime democrático, o clima era outro: o de uma guerra

contra a guerrilha. Não era o momento de se falar em democracia, muito menos em

abertura e redemocratização. Daí o fato do discurso do presidente recém-empossado

ter sido mal recebido pelas Forças Armadas. Havia a necessidade de se estruturar

uma máquina repressiva mais eficiente e citando-se a declaração do general Fiuza de

Castro (in: NAPOLITANO,2014, pág 121, nota de rodapé 168): “ Certa vez, eu disse

a um entrevistador que, quando decidimos colocar o Exército na luta contra a

subversão – que praticamente foi estudantil e intelectual [...] -, foi a mesma coisa

que matar uma mosca com um martelo-pilão”

Mas uma mosca, ainda que pequena, incomoda o ambiente. Para Napolitano,

a guerrilha no Brasil nasceu dos impasses e cisões ocorridas na esquerda após o

golpe militar. A luta armada já era vista como uma possibilidade antes de 1964, mas

as esquerdas acreditavam que a “revolução” ocorreria de qualquer forma, como se

fosse algo inerente ao próprio processo histórico. Porém, com a rapidez da queda do

governo Jango, a frustração da luta pelas reformas e o endurecimento político pós-

226

golpe, fizeram com que as esquerdas debatessem a situação sobre o que teria dado

errado. Rapidamente foram apontados dois culpados: o presidente Goulart, que tinha

sido frágil, conciliador e hesitante; e o PCB, que apostara numa solução moderadora,

pacífica e democrática. Nos primeiros anos do regime o PCB se viu em meio a tal

debate após o golpe e quando, já em pleno regime militar, reforçou sua opção pela

luta pacífica, as cisões no seio do “Partidão” foram inevitáveis.

As primeiras reações armadas partiram de militares nacionalistas,

expurgados após o golpe. Inspirados na Revolução Cubana, tendo como liderança

política, Leonel Brizola, eles constituíram o “Movimento Nacional Revolucionário”

e procuraram fazer da serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e o Espírito

Santo, a sua “Sierra Maestra”. Mas o grupo acaba desbaratado sem dar um único

tiro, em abril de 1967, preso por policiais mineiros.

Também em 1967, se formaria um dos grupos mais atuantes da guerrilha de

esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Em janeiro de 1969, a VPR

ganharia a presença do capitão Carlos Lamarca. Militar profissional e experiente, ele

desertou do Quartel de Quintaúna levando uma Kombi com 63 fuzis automáticos. No

mesmo ano, a VPR se juntaria a um pequeno grupo mineiro – o Colina (Comando de

Libertação Nacional) – formando a Vanguarda Popular Revolucionária – Palmares

(VAR- Palmares).

A VPR, depois VAR - Palmares ficou conhecida por três ações de grande

repercussão: O atentado ao QG do II Exército em São Paulo (junho de 1968); o

roubo do cofre do ex-governador paulista Adhemar de Barros (julho de 1969); e a

fuga de um grupo de guerrilheiros, chefiados por Lamarca, que conseguiram romper

um grande cerco das forças de segurança no Vale do Ribeira, ao sul do estado de São

Paulo (abril e maio de 1970).

Todavia, duas destas ações deram margem à propaganda “anti-guerrilha” do

regime, tendo o seu “soldado-mártir”: a morte do recruta Mario Kozel Filho por

ocasião da explosão do caminhão-bomba enquanto estava de sentinela; e também a

execução a coronhadas do tenente da PM paulista Alberto Mendes Júnior, no Vale do

Ribeira.

227

1967 ainda foi o ano do surgimento de outra organização guerrilheira: a

Ação Libertadora Nacional (ALN), uma dissidência do PCB que contava com

lideranças históricas do partido: Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira.

Marighella tinha a simpatia de Cuba, na iniciativa do regime de Fidel de

implantar guerrilhas que pudessem obter êxito na América Latina. Após a crise dos

mísseis de 1962, Cuba se afastou da União Soviética, pois se sentiu manipulada pelo

jogo das duas superpotências. Assim o governo cubano procurou incentivar ações

guerrilheiras na porção latino-americana do continente, colocando-se como uma

alternativa às alas mais revolucionárias da esquerda do Terceiro Mundo face à

postura excessivamente moderada da política soviética na região. Prova disso foram

as ações guerrilheiras na Bolívia que terminaram com a morte da lendária figura de

Ernesto “Che” Guevara.

As ações guerrilheiras no Brasil, segundo NAPOLITANO (2014), tiveram

dois objetivos:

a) arrecadar dinheiro para montar suas redes de infraestrutura e custeio: b)

fazer propaganda para as massas. Quase todos os grupos, num segundo momento,

buscariam desenvolver uma “guerrilha rural” para, aí sim, derrotar definitivamente o

regime. Em setembro de 1969, em meio ao período da Junta Militar no poder, no

intervalo entre os períodos de Costa e Silva e de Médici, as ações guerrilheiras se

intensificaram. Fato notório foi o sequestro do embaixador norte-americano, Charles

Elbrick, trocado por 15 prisioneiros políticos, entre eles o ex-dirigente da UNE e

futuro ministro no primeiro governo Lula (2003-2006), José Dirceu. Mas a resposta

do Estado autoritário não tardaria. Dois meses após o sequestro, Marighella foi morto

em São Paulo, numa operação chefiada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury,

expoente da Operação Bandeirantes (Oban), que trataremos daqui a pouco. Em

1971, foi a vez de Carlos Lamarca, cercado e morto no interior da Bahia.

Longe do barulho das ações promovidas pela ALN e VAR – Palmares), o

PCdoB (Partido Comunista do Brasil) implantava, sem alarde, sua unidade

guerrilheira na região do Araguaia, interior do Pará. O modelo seguido não era o

cubano (baseado no foquismo guevarista), mas o chinês. O PC do B não havia

participado da luta armada urbana. Seus membros apostavam numa guerrilha

prolongada e, pensando nessa possibilidade, procuraram ganhar a confiança da

228

população local para depois iniciar a guerrilha, como o que ocorreu na China de

Mao-Tsé-Tung. Iniciada em 1967, os militantes foram encaminhados para uma área

extensa (6.500Km2), pouco povoada e de difícil acesso. Os guerrilheiros começaram

a enfrentar as forças de segurança em abril de 1972. Apesar do pequeno número (no

máximo uns 70 guerrilheiros), as vitórias obtidas por estes contra as tropas formadas

por jovens recrutas animaram os guerrilheiros. Contudo, a partir de 1973, com o

Exército enviando tropas mais experientes, a guerrilha no Araguaia foi desmantelada

em outubro daquele ano. Um dos poucos sobreviventes foi José Genoíno, depois

deputado federal pelo PT durante vários mandatos e candidato derrotado ao governo

paulista em 2002.

VILLA (2014)160

, faz uma análise bastante negativa da guerrilha do Araguaia.

Para ele, a mesma foi um grande fracasso. No final, os combatentes ficaram isolados

das lideranças urbanas do partido sem poder receber armas e novos combatentes.

Parte deste fracasso também é creditado ao fato do PC do B ter perdido mais de seis

dúzias de militantes, com décadas de vida partidária. No plano militar, os combates

foram mínimos – apenas seis – e quase todos defensivos. Ele ainda acrescenta que os

episódios do Araguaia não tiveram nenhuma relevância para o enfraquecimento do

regime. Foi uma aventura fadada ao fracasso. A dimensão histórica dessa guerrilha

teria sido por conta da censura imposta sobre ela pelo governo e não propriamente

pela ação militar empreendida.

Contudo há controvérsias. Para BARROS (1998)161

, aquela guerrilha rural foi

relativamente a experiência mais bem-sucedida da História recente do

Brasil.Instalados nas selvas amazônicas do sul do Pará,eles estavam agrupados em

três colunas. Na cobertura de uma densa floresta tropical, os 69 militantes do PC do

B teriam resistido ao cerco de 12 mil homens, entre os mais bem treinados das Três

Armas (Exército, Marinha e Aeronáutica). A guerrilha foi exterminada através de

uma operação custosa que, porém, passou quase que despercebida pela imprensa,

160 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 208-209.

161 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.65- 66.

229

exceto por duas matérias publicadas na Folha da Tarde e O Estado de São Paulo, em

setembro de 1972. A população só iria saber da luta no Araguaia em 1978. O

governo Médici proibiu que nos processos judiciais dos poucos sobreviventes, como

José Genoino, constassem os conflitos armados do sul do Pará. Interessante foi a fala

do coronel Jarbas Passarinho, conforme o mesmo autor, que explicou que o governo

se empenhou tanto em esconder o que ocorria na região do Araguaia porque, para

ele, o movimento do Araguaia foi: “o único bem preparado e importante, e o povo

não deveria saber que o governo estava sendo desafiado com algum sucesso”162

Os grupos de esquerda que optaram pela luta armada permaneceram

independentes. Pouquíssimas foram as ações conjuntas entre dois ou mais desses

grupos. A esquerda brasileira, nessa época, manteve a tendência à fragmentação e ao

sectarismo, até porque em busca de respostas diante dos erros cometidos,

dissidências foram ocorrendo. Diante de uma repressão governamental cada vez mais

compacta e estruturada, a esquerda nacional encontrava-se repartida em diversos

grupos quase sempre divergentes entre si.

O “martelo de pilão” da repressão não apenas matou “moscas”, mas tudo o

que ousasse voar.163

A máquina repressiva montada pelo regime de 1964 recaiu sobre

a sociedade brasileira da época baseada em um tripé: censura – vigilância –

repressão.164

A eficácia desse tripé tornou-se mais evidente no final da década de

1960, ancorado em uma legislação que englobava a Lei de Segurança Nacional, as

leis de censura, os Atos Institucionais e os Complementares e a própria Constituição

de 1967. Este tripé não foi uma invenção do regime de 1964. Em parte ele foi

herdado do passado até porque o Brasil vivera uma ditadura antes – a de Getúlio

Vargas, no Estado Novo, de 1937 a 1945 – mas o regime de 31 de março deu uma

162 Id., Ibid., p. 65-66.

163 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit., p. 128.

164 Id., Ibid., p. 128.

230

reestruturada nesse tripé, criando novas agências e funções, deixando uma marca

duradoura na sociedade nacional que ainda tem muitos reflexos hoje.

No tocante à censura, a legislação básica era de 1946, advinda do período

anterior. O regime ampliaria o alcance da censura através de leis e decretos, no

período entre 1968 a 1970. A censura assumiu um caráter mais político, embora o

argumento fosse o de sempre: a defesa da moral e dos bons costumes. Em 1972, com

a criação da Divisão de Censura do Departamento da Polícia Federal, a censura seria

centralizada burocraticamente. Todavia, a prática da censura manteve, pelo menos

aparentemente, uma ação muito arbitrária, pouco sistematizada e variável conforme a

área de expressão. Exemplo disso é que a censura era fortemente presente no rádio,

na televisão e no teatro, aproveitando-se da lei que a embasava vinda ainda de 1946.

De outro lado, verdadeiras trapalhadas ocorreram como a proibição do livro O

Cubismo, por terem achado se tratar de uma propaganda de Cuba.

A censura criou seus embaraços ao regime. Ao mesmo tempo em que este

buscava o crescimento da indústria cultural e da diversão, que movimentava dinheiro

e era parte da modernização industrial, e também conservadora, que o regime

sonhara; por outro lado a censura prévia poderia “asfixiar” tal processo de

modernização e indispor o governo autoritário com os segmentos sociais mais altos

da sociedade e afetar a legitimidade do regime perante tais setores. Era necessário,

então, evitar novas trapalhadas da censura, em especial com relação ao cinema (uma

indústria ainda frágil na época, mas que já tinha certo reconhecimento no exterior) e

ao teatro (espaço de resistência intelectual e política, mas ao mesmo tempo

necessário à política cultural do regime).

Quanto à censura à imprensa, houve momentos de censura prévia rígida à

alguns dos grandes veículos como o jornal O Estado de São Paulo (1972-1975) e à

revista Veja (1974-1976). Mas a preferência governamental era pela censura indireta,

“sugestiva”, ou ainda a autocensura aos órgãos de imprensa. A dificuldade em se

normatizar e assumir a censura prévia à grande imprensa comercial, apoiadora do

golpe que destituiu Jango em 1964, se devia na preservação da própria imagem do

regime que se via como a antítese do getulismo, que durante o Estado Novo, aplicara

severo controle aos jornais. Era um tipo de censura que incomodava os castelistas em

especial. Eles até eram favoráveis em processar jornalistas, mas bastante reticentes,

231

em uma ação efetiva contra grandes jornais.165

Já para a imprensa alternativa de

esquerda, não havia nenhum constrangimento aos vetos parciais ou totais, além da

prisão de jornalistas.

O fundamento teórico para a montagem de uma monumental máquina

repressiva era o conceito de guerra interna ou guerra revolucionária, aprendido pelos

franceses quando estes últimos enfrentavam os movimentos de independência de

suas colônias na África e na Ásia. Neste pressuposto, o inimigo seria invisível, oculto

e chamado de “subversivo”, podendo ser qualquer um em meio à população civil.

Por essa lógica, a princípio todos seriam suspeitos até provar-se o contrário. As

forças militares teriam que mudar o seu foco. Não mais de defesa do território

nacional contra uma agressão militar estrangeira ou de invasão do território inimigo,

mas adotar uma ação tipicamente policial, complementada com operações de

guerrilha contrainsurgente.

No Brasil, várias agências operativas realizavam as ações do tripé repressivo

e trocavam informações entre si, embora raramente suas ações fossem coordenadas a

partir de uma estrutura comum e integrada. Esta característica pode fazer pensar que

o sistema repressivo fosse disfuncional, e talvez o fosse mesmo. Mas também evitava

que as lideranças políticas do regime, com visão mais ampla e estratégica, ficassem

“reféns” de um aparato super-repressivo. Assim estabeleceu-se durante o regime

autoritário uma relativa distância entre o seu “palácio” e o “porão”.166

Tratando-se do funcionamento da vigilância, sua função primordial era

produzir informações, criar uma rede delas, que pudesse até chegar a culpabilidade

dos vigiados. O eixo do sistema de informações era o SNI (Serviço Nacional de

Informações), criado apenas dois meses após o golpe. O SNI respondia basicamente

só ao presidente da República. O SNI tinha ramificações através das DSIs (Divisões

de Segurança de Informações) e a ASI (Assessoria de Segurança e Informação),

165 Id., Ibid., p. 131.

166 Id., Ibid., p. 129.

232

instalada em cada órgão importante da administração pública. Era uma estrutura

informativa, mas não operativa.

Os ministérios militares contavam com seu próprio sistema de informação,

com serviços de inteligência das três forças, que além de informativos eram também

operativos.

O Cenimar (Centro de Informações da Marinha) era o mais antigo, criado

ainda em 1955. O Cisa (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica) foi

criado em 1968. O CIE (Centro de Informações do Exército), criado em 1967, se

tornou um dos mais importantes e letais entre os serviços de segurança do regime.

Estes três serviços das três armas também compuseram o aparato repressivo.

Para NAPOLITANO (2014), a repressão deve ser “entendida como conjunto

de operações de combate direto às ações civis e armadas do regime”. 167

Até o final

da década de 1960, as polícias estaduais e os Dops (Departamento de Ordem Política

e Social) eram responsáveis pelas operações policiais de repressão política. Não

havia um sistema nacional de repressão policial. O crescimento da guerrilha trouxe

uma nova sigla: os Doi-Codi (Destacamentos de Operações de Informações – Centro

de Operações de Defesa Interna). Antes dos Doi-Codi, cada força militar tinha seu

próprio serviço de informação e de combate à guerrilha, sob responsabilidade de seu

respectivo ministro militar.

Do ponto de vista geográfico, a superposição de agências e comandos no

combate à guerrilha, uma Polícia Federal não estruturada nacionalmente, mais o

limite dos Dops estaduais tornaram o combate à guerrilha não muito eficiente nos

primeiros anos do regime militar. As trocas de informações eram incompletas, as

metodologias empregadas variavam, minando uma ação nacional integrada dos

órgãos de repressão e de segurança. O divisor de águas se deu com a criação da Oban

(Operação Bandeirantes), predecessora dos Doi-Codi.

O modelo da Oban era o esquadrão da morte que atuava na cidade de São

Paulo desde inícios dos anos 1960, extorquindo e dizimando criminosos comuns, até

167 Id., Ibid., p. 132.

233

com requintes de crueldade. Dada à inexperiência dos militares em atividades

policiais, logo se destacaria um delegado da polícia civil de São Paulo, Sérgio

Paranhos Fleury, que chefiou a ação que terminou com a morte de Carlos Marighella,

em novembro de 1969. A Oban concentrou-se em todos os tipos de “subversivos” –

desde os combatentes da luta armada, passando pelas redes de apoio direto e indireto

às organizações clandestinas, até aos militantes de esquerda e de movimentos sociais

que não tinham aderido à luta armada. Com uma estrutura bastante flexível, a

Operação englobava militares, policiais civis e policiais militares, contando com

bastante liberdade de ação, sem os constrangimentos jurídicos-burocráticos, atuando

praticamente à margem da lei. Justamente por causa disso, estes “bandeirantes do

século XX”, voltados à caça implacável especialmente de membros da guerrilha da

luta armada, não podiam contar com verbas oficiais governamentais. As

necessidades financeiras da Oban eram bancadas por empresários e alguns grupos

privados.

A despeito de sua eficiência, a Oban não agradava a cúpula militar por

contar em seus quadros com policiais tidos como assassinos e corruptos. Por isso, em

1970, procuraram abarcar o modelo flexível da Oban ao âmbito militar, seria criado o

sistema Doi-Codi, sob o controle direto dos comandos de cada região militar.

A repressão à base da tortura não foi exclusividade dos “anos de chumbo”,

ou só de determinado governo de um dos generais-presidente. Na verdade, seria

extremamente equivocado associar a tortura e a repressão somente ao governo de

Médici (1969-1974), por exemplo, embora os chamados “anos de chumbo”

coincidam basicamente com o governo daquele general. Episódios assombrosos e

denúncias de tortura já haviam ocorrido na “ditabranda” de Castelo Branco. E depois

apareceram casos no governo “distencional” de Geisel (as mortes do jornalista

Wladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho).

Voltando-se ao governo Castelo, um exemplo disso, colocado por

CHIAVENATO (2006),168

foi a prisão do líder comunista Gregório Bezerra, já nos

primeiros dias após o golpe, em abril de 1964. Gregório contava, na época, 63 anos

de idade, sendo preso pela “polícia particular” do usineiro Zé Lopes, no interior de

168 CHIAVENATO, Júlio José. Op. cit. p.176.

234

Pernambuco. Transferido para o Recife, Gregório foi espancado pelo coronel Villocq

Viana e pelos seus soldados, no quartel do Exército. Obrigaram-no a caminhar com

os pés descalços sobre ácido jogado no chão. Com os pés em carne viva, foi

amarrado pelo pescoço com três cordas puxadas pelos soldados e foi obrigado a

desfilar pelas ruas do Recife.

Os primeiros meses após o golpe foram marcados pela detenção de

aproximadamente 50 mil pessoas. Líderes sindicais e estudantis foram os principais

alvos. Nas primeiras semanas após o golpe, a imprensa noticiava pouco as violências,

apesar da censura ainda não estar na sua plenitude. Mas a revista Time informou ao

mundo a operação limpeza, assegurando que se prendiam em média 10mil pessoas

por semana. Em setembro de 1964, a imprensa internacional divulgou a situação do

Brasil e as entidades internacionais de defesa dos direitos humanos começavam a

denunciar o regime militar brasileiro, apenas seis meses após o golpe. Se para os

saudosistas do regime que gostam de reforçar que o caso brasileiro foi mais “brando”

do que, por exemplo, o caso chileno, em que milhares de pessoas foram levadas ao

Estádio Nacional de Santiago durante o governo de Pinochet, aponta-se aqui que o

Maracanã também teve os seus dias de “presídio”, navios da Marinha ficaram

abarrotados de “subversivos”, assim como os quartéis do Exército. O uso da tortura

já se fazia presente. A imprensa brasileira também começou a denunciá-la. O

governo Castelo Branco prometia investigá-las, mas nada efetivamente de concreto

foi feito.169

As violências do primeiro governo militar também ocorreram em nome da

“limpeza” das Forças Armadas. Já se mencionou aqui e relembremos; foram 122

oficiais expulsos com a acusação de serem contra-revolucionários. Os militares

punidos eram considerados oficialmente “mortos”, perdiam os seus direitos e as suas

esposas ganhavam a pensão de “viúva”.170

169

Id., Ibid., p. 178.

170 Id., Ibid., p. 178 e 179.

235

Relembremos que o SNI (Serviço Nacional de Informações) foi criado apenas

pouco mais de dois meses após o golpe de 1964, voltado à alçada da Segurança

Nacional. Estas duas palavras “segurança nacional” foi algo incessantemente

buscado pelo regime, até de forma obsessiva, se assim podemos dizer. Em nome

destes dois vocábulos, a subversão era combatida pela manutenção da paz, da lei e da

ordem requeridos pelo regime. Sob a orientação do general Golbery do Couto e

Silva, o SNI recebia verbas secretas e supervisionava outros “departamentos de

segurança”, inclusive o DSI (Divisão de Segurança e Informação), que se incorporou

a todos os ministérios. Assim não só os “subversivos”, mas também os quadros

burocráticos do regime e do aparelho estatal eram devidamente monitorados e

vigiados pelo Serviço. Pode-se pensar aqui que, antes de estruturar e aprimorar uma

rede de comunicações, transportes, energia, urbana, etc., para todo o território

nacional, o regime militar, desde os seus primeiros instantes, e com participação

efetiva de Golbery do Couto e Silva como na criação do SNI, estruturaria uma

verdadeira rede de informações e de vigilância aos opositores e aos quadros do

próprio governo e de seus apoiadores.

O SNI prestava contas ao CSN (Conselho de Segurança Nacional) e ao

presidente da República. Controlando os serviços de segurança do Exército, da

Marinha e da Aeronáutica, o SNI se articulava ao nível estadual com os Deops

(Delegacia Estadual de Ordem Política e Social) e o Dops (Departamento de Ordem

Política e Social).

Num momento, faz-se necessário voltar aos anos do governo Juscelino (1956-

1960). É que foi nos anos de JK, e não após o golpe de 1964, que o serviço de

inteligência ganhou proporção e qualidade. Desde 1927, já existia o Conselho de

Defesa Nacional voltado à repressão política interna. Porém, no governo de JK se

concretizaria o SFICI (Serviço Federal de Informação e Contrainformação),

idealizado antes pelo presidente general Eurico Gaspar Dutra, em 1946. O SFICI foi

o embrião do SNI.171

171 VIEIRA, Evaldo. Op. cit. p.23.

236

Foi na administração de JK que funcionários brasileiros foram treinar e estudar

nos órgãos de informações dos Estados Unidos. Muitos desses quadros brasileiros

ocupariam cargos importantes no regime militar, casos do coronel Ednardo D’Ávila

Mello, do coronel Golbery do Couto e Silva e do futuro presidente, na época,

tenente-coronel, João Baptista Figueiredo.

O SNI foi organizado pelo general Golbery ainda durante o processo

conspiratório. Os arquivos do Grupo de Levantamento de Conjuntura do Ipes

(Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) serviram para formatar os alicerces do SNI

com fichas de quase meio milhão de cidadãos tidos como “suspeitos” ou como

“potenciais ameaças” aos interesses do Estado autoritário. Ou seja, o Ipes teve

importância primordial para a formação do SNI. E o SNI teve tanta importância no

regime de 1964 que, entre os seus chefes: os generais Emílio Garrastazu Médici e

João Figueiredo, se tornariam depois presidentes da República.

O que parece ter ocorrido é que, com a imposição do AI-5, ainda no final do

governo de Costa e Silva, e em nome do combate implacável à guerrilha e à luta

armada de alguns grupos da esquerda contra o regime, a repressão e a tortura se

despojaram de todo e qualquer embaraço, ou “pudor”, nos anos imediatos ao AI-5. A

repressão à base de tortura extrapolou os limites jurídicos e humanitários, indo contra

até a ética militar de tratamento digno aos prisioneiros. Para burlar o controle dos

comandantes e o sistema oficial da repressão, muitas equipes de tortura possuíam

centros clandestinos – o que podemos chamar, em seu conjunto, de “porões do

regime”. Após o episódio do sequestro do embaixador norte-americano, em fins de

1969, e a libertação de presos políticos em troca do sequestrado, o regime instaurou

novas leis: o Ato Institucional nº13 (Banimento) e o nº14 (Pena de Morte).

Paralelamente à esta institucionalização da tortura como princípio da ação do

Estado, sua operação assumia um caráter bastante autônomo, com prisões e mortes

clandestinas. Mas, para NAPOLITANO (2014), essa autonomia não significava um

descontrole do sistema repressivo. Em nenhum momento, para o autor, o regime,

comandado pela cúpula militar, perdeu o controle sobre a repressão. A criação dos

Doi-Codi ilustra isso. Entretanto, para que o regime futuramente mantivesse o

controle da transição, era necessário ter as rédeas deste sistema que realmente esteve

muito autônomo.

237

Percebe-se que o ano de 1969, foi o ano-chave da guinada do sistema

repressivo e da tortura. O aparecimento da Oban, a implantação de seu modelo para a

criação dos Doi-Codis, combate à guerrilha, os “porões” à plena atividade, mortes de

Marighella e de Lamarca,artistas exilados, etc. O ápice da tortura e da repressão não

só coincidiram com o governo Médici, mas também com o “milagre econômico” – a

fase de expansão da economia brasileira, do “Brasil Grande”, do “país do futuro”,

da seleção nacional de futebol tricampeã na Copa de 1970. E, talvez por

coincidência, a derrota e o extermínio das guerrilhas de esquerda, e o total

desbaratamento da luta armada contra o governo, ocorrem basicamente em 1974,

início do governo seguinte: o de Ernesto Geisel.

Onde se quer chegar aqui? É o seguinte. Ficou-se na memória da sociedade

nacional a imagem do governo Médici como sendo os dos “anos de chumbo”, da

fúria do regime em aniquilar seus opositores e do governo Geisel, como o governo

que iniciou a “distensão”, a abertura do regime, a tal ponto que Geisel (juntamente

com Golbery) passaram à História como os “arquitetos” de um processo de

flexibilização, de abertura do regime, procurando colocar um controle mais rígido

nos “porões” do regime, podando a autonomia dos órgãos repressivos e tocar, com

pleno controle, todo este processo gradualista “de cima para baixo”. E as mortes de

Wladimir Herzog e de Manuel Fiel Filho, em 1975 e 1976, respectivamente? É como

se tivessem sido “percalços”, excessos cometidos nos “porões”, mas fatos que

costumam ser tomados de forma mais isolada, talvez para não diluir a imagem que se

criou de Geisel como o “artífice” da abertura.

O fato do regime militar brasileiro ter apresentado características e nuances

diferentes de seus congêneres na América do Sul tem dado margem à algumas

interpretações até absurdas. A tortura, aqui no Brasil, às vezes é justificada pela

presença de indivíduos sádicos, que cometeram excessos, mas, conforme

NAPOLITANO (2014), é esquecido que a tortura foi um sistema. É o sistema que fez

o torturador, e não o contrário. Ou ainda, que a repressão no Brasil foi branda e

restrita. Matou e prendeu pouco. Como se o aspecto quantitativo de vidas humanas

afetadas e dizimadas pelo regime de 1964 fosse uma outra justificativa para

desculpar o regime militar brasileiro. Isso porque, no Chile e na Argentina, por

exemplo, os militares prenderam e mataram mais do que aqui no Brasil. Como se a

238

vida do ser humano fosse uma “coisa”, como se as pessoas fossem apenas números e

estatísticas, e os sofrimentos das famílias das vítimas não significassem nada.

A manutenção de uma máquina repressiva dessa era inviável, a longo prazo.

O custo político era grande e fazia-se necessário enquadrar este sistema dentro da

nova conjuntura política da “distensão”. Seu desmonte se torna mais efetivo a partir

de 1976, não porque os torturadores não tinham mais “o que fazer” (se dependesse

deles, o “martelo de pilão” continuaria atacando não só as “moscas” mais quaisquer

outros “insetos”, inclusive opositores mais moderados). Todavia, para viabilizar a

abertura e a distensão era necessário o desmonte dessa estrutura, em nome de uma

futura transição democrática, pouco custosa aos militares.

No que a tortura tenha sido eficaz, foi em se construir um “círculo de medo e

de terror” que pode ter tido influência num arrefecimento da juventude brasileira, no

início dos anos 1970, na busca pela sua revolução e combate entusiasta aos

reacionários. O aumento no número de desaparecidos políticos, a imagem de que o

resultado final do engajamento contra o governo seria de prisão, tortura e morte,

podem ter esfriado o ímpeto de setores da sociedade contra o regime, em especial na

primeira metade da década de 1970, somadas às oportunidades de ascensão

profissional e social através do “milagre econômico”. Mas não há um claro consenso

quanto a isso, até porque o movimento estudantil ainda se manteve ativo, até nos

“anos de chumbo”.

A primeira “vitória” no campo repressivo no governo Médici se deu poucos

dias após a sua posse. Em 4 de novembro, Carlos Marighella, líder e fundador da

ALN, foi abatido numa emboscada na região dos Jardins, na capital paulista. A

operação fora organizada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops paulista.

O presidente, por meio de seus porta-vozes, teria dito que não toleraria as

torturas. Nesta época já existiam denúncias por parte da imprensa internacional sobre

a barbárie repressiva do regime. No Brasil, Hélio Fernandes publicou uma carta

aberta na Tribuna da Imprensa, dirigida ao presidente Médici: “Esvazie as prisões,

determine o fim da tortura aos presos, liberte as esperanças do povo brasileiro”172

172

VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p. 168.

239

Denúncias de torturas e violação dos direitos humanos não eram uma novidade.

Elas já haviam aparecido na imprensa internacional durante os anos de Castelo

Branco em que o governo prometeu investigá-las, mas não chegou a resultado algum.

Porém, a base fornecida pelo AI-5 provocaria uma escalada da repressão que, se

formos pensar que teria sido em resposta a uma escalada das ações classificadas de

“terroristas” das esquerdas armadas, cairíamos em um equívoco, pois ainda que a

guerrilha urbana tenha também produzido vítimas, o revide do Estado autoritário foi,

em muito, desproporcional quantos às torturas, mortes e desaparecimentos

produzidos contra tais grupos. E, mais ainda, o senso comum tem se esquecido das

ações realizadas por grupos paramilitares e de extrema-direita e das vítimas de seus

atos, colocando-se a situação como se tivesse sido uma guerra entre o Estado

autoritário contra os guerrilheiros comunistas, como se ambos os grupos tenham

estado, em algum momento (ou sempre), em pé de igualdade.

De acordo com VILLA (2014), a luta armada, já em 1970, dava seus sinais de

fracasso. Os sequestros estariam mais para ações defensivas com o intuito de libertar

militantes, do que propriamente um confronto frontal ao Estado autoritário. A

desigualdade era latente: de um lado um regime agora mais sólido, em relação ao seu

início, reforçado por um poderoso aparelho propagandista elaborado pela Aerp

(Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República), pela aparelhagem

repressiva cada vez mais azeitada no pós AI-5, pelo impacto positivo dos indicadores

econômicos, por importantes setores da imprensa afinados ao governo e pela própria

censura; de outro, a luta armada cada vez mais acuada, procurando obter recursos

financeiros através de assaltos a bancos, por exemplo, e com isso cada vez mais

confundida com o crime comum; a falta de apoio popular; e a caçada implacável e o

extermínio de seus quadros e principais líderes – como Marighella e Lamarca –

mortos em 1969 e 1971, respectivamente.

A repressão aos grupos armados, opositores ao regime, não chegou a

concentrar as ações oficiais. Mas servia para justificar o endurecimento do regime. O

que era prioritário ao governo era o estabelecimento de uma política econômica que

desse legitimidade ao regime. E relacionada aos objetivos nacionais permanentes em

que um Estado forte e centralizador era um dos pontos fundamentais.

240

O ano de 1970 foi marcado por alguns sequestros em que foram capturados o

cônsul-geral japonês, em São Paulo e ainda os embaixadores da Alemanha e da

Suíça. Depois eles foram soltos pela troca de reféns.

O chefe do sequestro do embaixador suíço, no Rio de Janeiro, foi o ex-capitão

Carlos Lamarca, da VPR. Campeão de tiro no Exército, ele deserdaria em 1969,

ajudando muito a guerrilha com seu conhecimento tático. Odiado pelos militares,

teve seu nome cuidadosamente difamado pela imprensa até ser caçado e morto no

sertão do interior da Bahia, em Brotas de Macaúbas, numa megaoperação. Lamarca

foi abatido pelas tropas do major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe do Doi-

Codi de Salvador. Junto como ele, foi morto Zequinha, ex-líder da greve operária de

1968, em Osasco.

241

3.4- Governo Geisel (1974-1979). Fim do “milagre”,

manutenção do estatismo e início da “distensão”.

Foto 1

Foto 2

Fotos 1 e 2 : Ernesto Beckmann Geisel, 4º general-presidente do regime militar. Governou o Brasil de

15/03/1974 a 15/03/1979

Foto 1: Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ernesto_Geisel#/media/File:Ernesto_Geisel.jpg

Foto 2: Fonte: http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/141364.jpg

242

A imagem que nos chega de Ernesto Geisel costuma ser a de um homem

determinado a realizar um objetivo: a abertura do regime. Tal abertura conhecida

como “distensão” deveria se dar de uma forma lenta gradual e segura. E Geisel

passou para a História como o artífice da distensão, com uma atuação firme em frear

e botar um controle nos “porões da ditadura” fazendo com que o 4º general-

presidente ocupe a memória coletiva com um saldo positivo a seu favor. E, muitas

vezes esta imagem “afirmativa” de Geisel pode nos levar a alguns equívocos. FICO

(2004)173

dirige uma crítica ao jornalista Elio Gaspari que, na época, já havia escrito:

A Ditadura Envergonhada e A Ditadura Escancarada, em 2002; e a Ditadura

Derrotada, em 2003. A obra de Gaspari mostra como Geisel e Golbery “fizeram a

ditadura e acabaram com ela”. Daí vem uma das críticas de Carlos Fico: A dupla

Geisel- Golbery ocupam um pequeno espaço no que se refere em “fazer a ditadura” e

não há um diálogo acerca da participação dos setores civis, como o empresariado e

figuras do sistema político, ou seja, passa ao largo da análise feita por Dreifuss, por

exemplo.

Uma segunda crítica, dentro do que coloquei acima, e ainda com base em

Carlos Fico, se refere talvez à um certo “endeusamento” da dupla Geisel- Golbery. É

que a obra de Gaspari acaba por contribuir na construção mítica de Geisel como o

“estadista” – o homem que na sua genialidade e contando com a sabedoria de

Golbery - resolver decidir as datas para o “fim da tortura”, quando do episódio da

demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, ou até divagando um pouco mais,

para o fim do regime lá na frente. Enfim, Carlos Fico acrescenta: “Curiosamente,

embora tão sagazes, Geisel e Golbery escolheriam como último general-presidente

da ditadura militar um dos piores mandatário que o país conheceria.”174

. Mas aí

levanto a questão: não foi isto proposital? Contudo, para não nos restringirmos às

críticas feitas a Gaspari, Carlos Fico aponta como aspecto positivo da obra do

jornalista, a revelação do acervo documental a que ele teve acesso graças à confiança

173 FICO, Carlos. Op.cit. p. 53 a 58.

174 Id., Ibid., p.57.

243

que ele obteve junto à Geisel e Golbery. Estes documentos foram organizados por

Heitor Ferreira de Aquino e trouxeram luzes para fatos reveladores como a falta de

uma unidade dos “porões da ditadura”. Havia divergências entre a polícia política, a

espionagem, a censura e a propaganda política. Também entre o SNI, o CIE, a Aerp e

toda a “linha dura”

Claro que o general Ernesto Geisel teve os seus méritos e acertos durante o seu

governo no que se refere a alguns aspectos político-institucionais iniciando a

trajetória da distensão do regime, bem em aspectos estratégicos, econômicos e de

política externa. Porém, não podemos perder o foco que a abertura ou distensão não é

algo que se inicia imediatamente quando Geisel chega ao poder. Na verdade, trata-se

de um processo tão complexo, com avanços e recuos, idas e vindas, que, a exemplo

do que foi com o governo de João Goulart, com o golpe de 1964, com o governo de

Castelo Branco, com o AI-5, com o “milagre econômico” e os “anos de chumbo”,

faz-se necessário uma análise um pouco mais aprofundada desta “guinada” do

regime que se deu durante o período Geisel, mostrando os acertos mas também os

contratempos que ocorreram, sobretudo, no “xadrez político” da época.

A posse do general Ernesto Geisel, em 15 de março de 1974, representava o

retorno dos "castelistas" ou o grupo da "Sorbonne" ao comando do poder, grupo este

que tinha como uma de suas principais figuras o general Golbery do Couto e Silva,

Chefe do Gabinete Civil. Muito dos integrantes do novo governo haviam participado

do governo de Castelo Branco considerando-se que o próprio Geisel havia sido chefe

da Casa Militar no 1º governo do regime. Ernesto Geisel e Golbery procurariam

institucionalizar o regime combatendo os grupos paramilitares, os torturadores e o

desrespeito à hierarquia das Forças Armadas, iniciando-se assim a chamada política

de "distensão".

Contudo, a presença dos ditadores Augusto Pinochet, do Chile; Hugo Banzer,

da Bolívia; e Juan María Bordaberry, do Uruguai – não representavam um bom

presságio para os supersticiosos. Outros detalhes interessantes: ao contrário de seus

antecessores, Geisel não mencionaria no seu discurso de posse o compromisso com a

democracia e, na verdade, muitos foram os elogios que ele fez à Médici. E, por fim,

voltando-se um pouco, para setembro de 1973, para quem tem a imagem de um

244

Geisel altivo e determinado em realizar a transição, VILLA (2014)175

, aponta que na

convenção da Arena que homologou a candidatura de Geisel, o futuro presidente fez

um discurso na Câmara dos Deputados, não tão vibrante e mal tirou os olhos do

texto, foi um discurso mais próximo ao estilo de Médici que, segundo consta,

também não era tão bom na oratória. E aquela fala de Geisel em 1973 ainda traria

bordões bem ao perfil de seu antecessor como: “construção nacional” e “clima de

tranquilidade social e política”.

Como presidente, um dos primeiros atos de Geisel foi o desmembramento da

Previdência Social do Ministério do Trabalho, aumentando o arco de proteção

previdenciária para as pessoas acima dos 70 anos e os inválidos com uma renda

mensal vitalícia.

Para atenuar os efeitos da inflação, o governo limitou determinados reajustes

de serviços públicos. Procurava-se manter o clima de otimismo na área econômica. O

novo ministro da Fazenda – Mário Henrique Simonsen – declarou que o país

manteria o mesmo ritmo de crescimento, do governo anterior, também pelos

próximos cinco anos seguintes. Mas veremos que com a crise do petróleo e os limites

do “milagre econômico”, a realidade foi ficando diferente para a economia.

O problema da carência de alimentos, causada também pelo ritmo intenso da

migração campo-cidade persistia e pressionava o índice inflacionário. O tabelamento

dos preços e a Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) não

conseguiram a eficácia necessária.

Entretanto é digno de nota que o Ministério das Comunicações decidiu que as

compras de equipamentos de comunicação deveriam ser nacionalizadas em 90%, isto

é, produzidas nacionalmente. E mais, o governo criou empresas vinculadas ao BNDE

- Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico - com o objetivo de assessorar e

oferecer colaboração ao empresariado nacional. Isto é chamativo porque apesar de

Geisel ser do grupo “castelista”, o Brasil não tomou necessariamente uma postura

subserviente com relação à superpotência capitalista como ocorrera no governo

Castelo Branco. Embora no primeiro governo militar o contexto fosse diferente, por

conta da necessidade de um ajuste fiscal, que trouxe uma série de efeitos colaterais

175 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 207

245

como o arrocho salarial, e talvez também pela necessidade de se mostrar a “gratidão”

aos EUA por conta do apoio dado ao golpe de 1964, o governo Castelo Branco

manteve-se mais distante de um estatismo, até para fazer contraponto com o

nacionalismo varguista. Em termos de política externa, o governo Geisel não se

alinharia automaticamente a nenhum país. Os tempos do ministro das Relações

Exteriores de Castelo Branco – Juracy Magalhães – com a frase: “O que é bom para

os Estados Unidos é bom para o Brasil”, ficaram para trás.

Este estatismo se manifestaria de uma forma já mais explicíta nos tempos de

Médici, no impulso dos slogans ufanistas do período que se aproveitaram inclusive

da conquista da Copa de 1970 pela seleção brasileira. Já o governo Geisel não ficou

marcado pelas marchinhas e músicas ufanistas do governo de seu antecessor, até

porque em seu governo, a Aerp perdeu bastante de seu espaço. Mas Geisel seguiu

com esse protagonismo estatal, procurou dar andamento ao desenvolvimento

econômico ainda que numa “marcha forçada”. Se teve o ponto positivo de não se

tornar num governo subserviente ao estrangeiro (ao contrário de outros governos na

história brasileira, inclusive após o fim do regime, como o de Fernando Henrique

Cardoso [1995-2002], pautado no neoliberalismo e no “encolhimento” do Estado

com a realização de privatizações de empresas estatais), teve como consequência o

aumento da dívida externa, que já vinha crescendo havia algum tempo. Quando

aumentava a dívida externa, mas a economia crescia, o problema ficava escondido.

Porém, a partir do momento que a economia entra em crise, mas a dívida externa

continua subindo exponencialmente, e junto com a inflação elevadíssima, haverá o

cenário econômico do governo seguinte, o de João Figueiredo, que dilapidará cada

vez mais com a legitimidade do regime. E inflação e dívida externa vão fazer parte

de vez dos assuntos do brasileiro pelas décadas de 1980, 1990 e 2000.

Dentro deste viés estatizante, em julho de 1974, o governo divulgou o II PND

(Plano Nacional de Desenvolvimento), com objetivos ousados no campo energético

(com busca de fontes alternativas ao petróleo, como o etanol e a energia nuclear),

estímulos à indústria de bens de capital, de alimentos e de insumos básicos. O

reequipamento das Forças Armadas, como a criação de 750 navios em estaleiros

nacionais. Tudo isso com preferência às empresas aqui do Brasil. A descoberta de

246

petróleo no litoral de Campos, estado do Rio de Janeiro, foi uma boa notícia no final

do mesmo ano.

Voltando-se à política externa, novamente por uma linha mais independente,

priorizando os interesses nacionais, o Brasil reataria relações diplomáticas com a

China comunista e romperia com Taiwan. Em 1971, os próprios EUA haviam

reconhecido a República Popular da China. Obviamente houve dificuldades, como a

resistência do ministro do Exército, Sylvio Frota. Com os países vizinhos, Geisel

viajou ao Paraguai onde formalizou a criação da Itaipu Binacional – e à Bolívia onde

assinou acordo referente à compra de gás.

Em novembro de 1975, o Brasil foi a primeira nação a reconhecer a

independência de Angola. Indo em sentido contrário aos interesses norte-americanos

lá fora, e dos da linha dura aqui dentro. O impacto disso decorre do fato de que o

Brasil por décadas esteve alinhado à política colonialista de Portugal na África.

Ainda em 1974 ocorreriam as eleições para os Legislativos estaduais e o

Federal. A “anticandidatura” de Ulysses Guimarães deu novo ânimo ao MDB. Uma

parte da oposição extraparlamentar que defendeu o voto em branco ou nulo, em

1970, resolve optar em aproveitar o espaço que se abria para a oposição emedebista.

A legislação eleitoral permitiu o uso de rádio e televisão em condições de igualdade

para os dois partidos, chegando até a ocorrer um debate, transmitido pela TV, entre

os candidatos ao Senado pelo Rio Grande do Sul: Nestor Jost (da Arena); e Paulo

Brossard (do MDB).

Nas eleições para o Congresso e Assembléias Legislativas, em novembro de

1974, o MDB aumentaria sua bancada, mas não incomodaria tanto o governo devido

aos novos ditames da "distensão", delineada por Geisel desde o início daquele ano,

pois em abril venceria o tempo de cassação por dez anos dos atingidos pela primeira

onda de arbitrariedades, ainda em 1964. Para VILLA (2014), o fracasso da luta

armada trouxe a necessidade de se atuar no âmbito eleitoral. E a queda de fôlego na

economia e a elevação do custo de vida favoreceram o MDB nas eleições. Destaque

para a vitória de Orestes Quércia, pelo MDB, que na disputa pelo Senado, bateu o ex-

governador Carvalho Pinto, da Arena, que buscava a sua reeleição. Agora, o partido

da oposição era maioria em cinco assembléias estaduais (São Paulo, Rio de Janeiro,

Rio Grande do Sul, Amazonas e Acre), que de acordo com as regras elegeriam de

247

forma indireta os governadores desses estados. E o MDB cresceu no Congresso

Nacional, indicando que o governo já não contaria com as mesmas facilidades que

teve no Legislativo federal durante os anos de Médici. Por outro lado, durante a

campanha, os novos governadores estaduais, que assumiriam em março de 1975,

foram referendados pelos Legislativos estaduais. Escolhidos em consonância com a

ótica governista, todos esses governadores seriam arenistas, após ocorrida a fusão

entre os estados da Guanabara e o do Rio de Janeiro.

Ao atingir dez anos, o regime militar se defrontava com um Brasil diferente.

Um país que agora contava com uma população urbana superior à rural. A

consolidação de algumas grandes cidades constituindo verdadeiras regiões

metropolitanas. A televisão atrelada à existência de uma rede nacional de

telecomunicações, com transmissões a nível nacional, fez com que hábitos e

consumos ditados especialmente pela TV fossem dando uma certa uniformidade ao

conjunto do país. Não deixava de ser uma espécie de “integração nacional” através

da TV, em especial a Rede Globo que foi assumindo a condição de principal

emissora televisiva do país. E junto, as contradições de um desenvolvimento

econômico relativamente rápido que gerava novas demandas e questões sociais. O

regime para se “abrir” teria que saber lidar com as transformações em curso na

sociedade e com visões e opiniões divergentes. Geisel aceitou os resultados

eleitorais, não houve súbitas alterações de regras na última hora, a “distensão”

iniciava sua caminhada, mas a diferença entre os passos do governo e os da

sociedade viriam a gerar diversas tensões.

A forte presença do Estado na economia gerava debates e discussões. O

ministro da Fazenda – Mário Henrique Simonsen – argumentava que desestatização

não poderia implicar numa desnacionalização. A empresa privada nacional precisava

ser priorizada e fortalecida.

“Em 1974, o Estado controlava 68,5% das ações na mineração, 72% na

siderúrgica, 96,4% na produção de petróleo e 38,8% na química e petroquímica. O

Estado monopolizava o transporte ferroviário, o serviço de telecomunicações, a

geração e a distribuição de energia elétrica e nuclear, e outros serviços públicos”

[KRISCHKE, Paulo J. (org). Brasil: do ‘milagre’ à ‘abertura’. São Paulo: Cortez,

248

1982. p.129. in: VILLA (2014, p.226)]. A estimativa era de que empresas e bancos

estatais controlassem 46% da economia segundo estas mesmas fontes.

A “ameaça subversiva” principal agora era o PCB – o “bode expiatório do

momento”. O ministro da Justiça, Armando Falcão, insinuava ligações do MDB com

o PCB nas eleições de 1974. A “linha dura”, representada principalmente pelo

ministro do Exército, Sylvio Frota, atacava a oposição emedebista estendendo as

críticas à própria política de “distensão” e ao ministro da Casa Civil, Golbery do

Couto e Silva.

Em junho de 1975, o Brasil assinou um acordo nuclear com a Alemanha

Ocidental para a equipagem da usina nuclear de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro.

Previa-se a construção de oito reatores para a geração de eletricidade e o

desenvolvimento de uma indústria nacional para a fabricação de equipamentos para a

usina. Havia um estudo que previa a construção de quinze usinas até o ano 2000. A

comparação feita pela ministro, Azeredo da Silveira, com o acordo feito para a

construção da Usina de Volta Redonda, na década de 1940, não deixa de ser

ilustrativo. Temos aqui duas faces de um estatismo: o da época de Getúlio; e o dos

tempos do regime militar. São momentos institucionais diferentes, mas que podem

ser inseridos num projeto de modernização conservadora que permeava o Brasil

desde a década de 1930, apesar de tantos sobressaltos e rupturas políticas e

institucionais que vinham ocorrendo há quatro décadas.

O acordo com a Alemanha Ocidental gerou reações dos Estados Unidos.

Políticos e imprensa norte-americanas denunciavam que por trás do tratado havia o

projeto militar brasileiro de se desenvolver a bomba atômica, pois o Brasil não havia

assinado o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares ainda nos anos de Costa

e Silva. Para o plano externo, era uma mostra do não alinhamento automático do

Brasil com relação aos Estados Unidos. No plano interno, a discussão estava centrada

sobre a necessidade de se adotar a energia nuclear em um país de enorme potencial

hidroelétrico, como o Brasil.

Em outubro de 1975, era criado o Programa Nacional do Álcool – o Proálcool

– com a meta de representar 20 % do consumo de combustíveis. Foi uma

interessantíssima alternativa à crise do petróleo, aqui no Brasil, face ao aumento do

249

preço da gasolina. Porém, a prioridade dada ao Proálcool levaria à uma queda na

produção de açúcar e ao sumiço do produto nas prateleiras dos supermercados.

Em janeiro de 1975 foi retirada a censura ao jornal O Estado de São Paulo

(mas manteve-se a censura a outros jornais e revistas), em contrapartida houve dura

repressão ao PCB, já que durante o governo Médici, os organismos repressores

estavam com as suas atenções voltadas para a esquerda armada e não para o

“Partidão”. O que não é de se espantar face às acusações por parte do governo das

relações entre emedebistas e os comunistas. Grande parte do Comitê Central do PCB

foi atingida pela repressão. Só em São Paulo o número de supostos militantes do

PCB presos, naquele ano, foi superior a 300.

Fatos marcantes do período ocorreriam nas dependências do Doi-Codi do II

Exército em São Paulo, com as mortes do jornalista Wladimir Herzog em 25 de

outubro de 1975, e em 17 de janeiro do ano seguinte a de Manuel Fiel Filho, operário

metalúrgico e militante sindical. Num sinal de uma mudança de postura da Igreja e

da sociedade civil, ainda naquele mês, o cardeal Evaristo Arns liderou a celebração

de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo. Mesmo assim, no final de

1975, a linha dura se sentia confiante, colocando limites à distensão, controlando os

porões e o aparato da segurança estatal, e sonhando com a possibilidade de ter o

ministro-general Sylvio Frota, como candidato à sucessão presidencial.176

De acordo

com BARROS (1998): “No final de 1975, não eram poucos os que achavam que a

“distensão” estava condenada. Mesmo os que se declaravam entusiasmados com a

pretensa política de “descompressão” temiam, agora, que Geisel fosse fraco demais

para enfrentar a linha dura e que a flexibilização não poderia ser implementada.”177

Entretanto, a morte do metalúrgico Manuel Fiel Filho no mesmo Doi-Codi

onde ocorrera a morte de Herzog levaram Geisel a demitir Ednardo D'Ávila (um

expoente da "linha dura") do comando do II Exército, colocando em seu lugar o

general Dilermando Gomes Monteiro. Isso acarretaria ações terroristas da "linha

176 Id., Ibid., p. 233.

177 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 78.

250

dura" como as bombas atiradas contra as sedes da OAB (Ordem dos Advogados do

Brasil), em São Paulo, e da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), no Rio de

Janeiro em agosto de 1976. Em setembro, um outro atentado ocorreria no Centro

Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), em São Paulo. Para completar,

houve o sequestro do bispo de Nova Iguaçu (RJ), D. Adriano Hipólito, defensor dos

direitos humanos, sendo torturado e abandonado nu, o seu carro foi explodido em

frente à sede da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Algo que poderia ter um peso decisivo para o sucesso ou o fracasso, tanto da

“distensão” como na figura do próprio presidente, seriam os indicadores econômicos.

O Brasil já não ostentava o crescimento do PIB em dois dígitos, como nos anos de

Médici. Geisel, em suas próprias palavras: “Como é que eu iria justificar uma

recessão depois da euforia, do desenvolvimento do governo Médici?” [D’ARAÚJO,

Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: FGV, 1997. p.

288. in: VILLA (2014, p.234)].

Geisel também seguia utilizando o AI-5 para cassar mandatos de parlamentares

em algumas situações que denotavam contestação ao regime. Isso com dois anos

decorridos de seu governo – ano de 1976- quase a metade do mandato presidencial.

Anos depois, Geisel daria a seguinte justificativa sobre as necessidades das cassações

em certos momentos: “(...)para dar um pouco de pastos às feras”. “Se eu não agisse

contra a oposição com determinadas formas de repressão, inclusive com a cassação,

eu perderia terreno junto à área militar.”178

Geisel vivia numa situação política

bastante desconfortável, pois de um lado havia uma oposição insatisfeita com o ritmo

extremamente lento da distensão; de outro, os ultra-conservadores autoritários que

achavam que a mesma distensão estava muito rápida. Era uma situação complicada

porque quando João Goulart se viu numa tênue linha entre as direitas e as esquerdas,

o cenário se complicou a tal ponto que o desenrolar dos acontecimentos foram

desembocar no golpe de 1964. Verdadeiramente Ernesto Geisel necessitaria ter muito

tato estratégico para conseguir conduzir seu governo nessas condições. Claro que as

diferenças entre o governo Geisel e o de Jango são enormes, mas, naquele 1976, o

futuro político do país era bastante incerto.

178 D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Op. Cit. p.390 in: VILLA (2014, p. 237)

251

A inflação não parava de subir e o governo chegou a proibir a importação de

artigos considerados supérfluos para tentar conter a alta dos preços. Por outro lado,

na política externa, Geisel dava novas demonstrações de uma política externa

independente (que, aliás, não era inédita, basta lembrarmos do curto governo de

Jânio Quadros). O presidente visitou o Reino Unido e a França. Ao contrário de

Médici e de Costa e Silva, ele não visitou os Estados Unidos. Mas, na Europa, Geisel

enfrentaria protestos contra as violações dos direitos humanos no Brasil. No plano

interno, às vezes a questão das torturas vinha à tona.

Com um cenário econômico complicado, e ainda com as lembranças vivas do

mau desempenho da Arena nas eleições de 1974, Geisel sancionaria a Lei nº 6.339,

chamada de “Lei Falcão”, em que os partidos políticos só exporiam, na televisão e

na rádio, a sigla, o número, e o currículo sumário de seus candidatos (com fotografia

no caso da TV). A nova lei valeria já para as eleições municipais de 1976 em que a

Arena obteve a maioria dos votos nas contagem geral. Porém, nos cem maiores

colégios eleitorais, o MDB venceu em 59, fazendo nas cidades de São Paulo e do Rio

de Janeiro, a maioria nas Câmaras Municipais. Com isso, o presidente ganhou um

fôlego novo nas articulações para as eleições de 1978 que também preocupavam o

governo.

Se os anos de 1974 e 1975 mostraram uma feroz ação repressiva contra o PCB.

O ano de 1976 foi marcado ainda por uma perseguição voltada ao PC do B que, após

o desmantelamento da guerrilha no Araguaia, estava mais voltado às ações em

cidades. Três dirigentes do partido foram mortos na Lapa, em São Paulo, numa

reunião do Comitê Central do Partido. A luta urbana, há algum tempo bastante

debilitada e sem oferecer riscos concretos ao regime, sofria a fúria repressiva dos

“porões” – ainda operantes, naqueles tempos.

No campo político, houve a morte de dois ex-presidentes: Juscelino

Kubitschek, em acidente automobilístico, na via Dutra, em agosto; e João Goulart,

em dezembro, em decorrência de um enfarte, na Argentina.

Depois do relativo alívio após as eleições municipais, o governo colhe alguns

frutos do forte intervencionismo estatal. Em 1976, a economia recuperou os dois

dígitos em seu crescimento – 10,3% - o dobro em relação a 1975. Mas a inflação foi

252

a maior desde 1965 – 46,3%. E a dívida externa continuava sua trajetória cada vez

mais ascendente.179

O ano de 1977 é o marco do início de um novo paradigma dos Estados Unidos

em suas relações com os regimes autoritários na América Latina. O novo presidente,

Jimmy Carter, enfatiza a questão dos direitos humanos desde os inícios de seu

governo. Assim foi em discurso nas Nações Unidas, em que o presidente norte-

americano realçou que os direitos humanos não tinham fronteiras políticas e nenhum

país poderia utilizar a soberania em assuntos internos para se furtar a tal questão. O

governo Carter condicionaria a ajuda militar anual ao Brasil ao respeito aos direitos

humanos. Isso gerou tensão entre os governos dos dois países, que vinha desde o

episódio do acordo nuclear feito com a Alemanha Ocidental. A resposta de Geisel

não justifica em nada as ações repressivas, autoritárias, arbitrárias e de desrespeito a

esses direitos, mas nos faz pensar na situação interna dos Estados Unidos daqueles

meados da década de 1970 e na postura norte-americana de se colocarem como os

“verdadeiros defensores da liberdade”:

“(...) quando assinamos o acordo não havia nenhuma cláusula que fizesse sua

execução depender da aprovação do Senado americano relativamente à situação

interna do Brasil. Da mesma forma, o Brasil nunca se arrogou o direito de examinar

a situação interna dos Estados Unidos, com o problemas dos negros, dos porto-

riquenhos, dos índios, etc.”180

Por outro lado, o Brasil realmente estava longe de ser um modelo de diálogo

com outras forças políticas. Já que encontrava dificuldades com o Congresso, em

abril de 1977, Geisel o fecharia por quinze dias, devido às discordâncias com o

MDB, implantando o chamado "pacote de abril" que incluía principalmente: o

aumento do mandato presidencial de cinco para seis anos; a criação da figura do

senador "biônico", indicados pelas Assembléias Legislativas; a alteração da

composição das bancadas estaduais para a Câmara dos Deputados (com o mínimo de

179 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 242.

180 D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso. Op. Cit. p.350 in: VILLA (2014, p. 447)

253

seis e o máximo de 55 deputados por estado); e a manutenção da Lei Falcão para as

eleições de 1978 que, por sinal, seriam indiretas para governador; além de outras

medidas. O objetivo das mexidas na composição do Senado e da Câmara federais era

claro: alterar a composição do Colégio Eleitoral para garantir a maioria quando da

escolha do sucessor de Geisel.

Estas alterações na composição do Congresso persistem até hoje, trinta anos

após o fim do regime. No período em que tivemos, na Presidência da República,

governos de partidos políticos com raízes assentadas na oposição ao regime militar

(ou seja, de 1995 até a atualidade): primeiramente, o PSDB (Partido da Social

Democracia Brasileira), com o presidente Fernando Henrique Cardoso - partido

criado a partir de uma ruptura com o PMDB (Partido do Movimento Democrático

Brasileiro) - herdeiro do antigo MDB; e em seguida, o PT (Partido dos

Trabalhadores), com o presidente Luís Inácio Lula da Silva - representando uma

nova esquerda, diferente daquela getulista, janguista e brizolista, das décadas de 1950

e 1960, ainda persiste esta terrível distorção, mais especificamente, na Câmara dos

Deputados, e que perdura até hoje no atual governo petista, chefiado por uma ex-

guerrilheira que esteve presa na época dos “anos de chumbo”, a presidente Dilma

Roussef.

Atualmente, o mínimo é de oito deputados por estado e o máximo é de 70.

Estados mais populosos e com peso econômico mais expressivo - como São Paulo –

na prática estão sub-representados, enquanto estados menos expressivos

economicamente e pouco populosos estão na verdade super-representados. Diante

dos impasses que o nosso país enfrenta no presente, as cobranças e as manifestações

se voltam apenas contra a atual presidente e o partido político que está no poder. Não

há como negar os erros cometidos pelo atual governo, os casos de corrupção, etc.

Mas isso, infelizmente, não é inédito. O presidente Fernando Collor de Mello sofreu

o impeachment, em 1992, por conta de todo um esquema de corrupção envolvendo

principalmente o tesoureiro de sua campanha presidencial de 1989, Paulo César

Farias. O mesmo Congresso Nacional que votou o impedimento do presidente Collor

esteve mergulhado em problemas de corrupção, em 1993, com o episódio dos “anões

do Orçamento”. E, não são poucas as dúvidas que pairam sobre o processo das

privatizações realizadas no governo Fernando Henrique Cardoso, bem como sobre a

254

implantação da reeleição para cargos do Poder Executivo. E, voltando-se mais atrás,

no regime militar, a corrupção esteve presente. Basta citar como Paulo Maluf

conseguiu se impor como o candidato governista para a sucessão do presidente

Figueiredo.

Aonde eu quero chegar é que o problema não está em um indivíduo, ou um

partido político. As questões mais profundas, como uma reforma política visando

extirpar o que chamo aqui dessa “herança maldita” gerada pelas medidas tomadas em

abril de 1977, por Ernesto Geisel, não são cobradas, nem reivindicadas, lançando

sérias dúvidas sobre a legitimidade dos grupos que tanto cobram o governo federal

nestes meados da década de 2010. A pergunta paira no ar: os desejos da “opinião

pública” são os mesmo da “opinião publicada?”, tomando-se emprestadas as palavras

de Marcos Napolitano. Voltarei à esta questão no final do trabalho.

De volta ao período Geisel, a oposição não se abateria por completo. A

sociedade civil se organizaria com a participação da Igreja, o renascimento dos

movimentos estudantil e operário-sindical emergindo a figura de Luís Inácio "Lula"

da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e

Diadema, no primeiro movimento grevista organizado desde 1968. No ano de 1977,

com dados rigorosos fornecidos pelo Departamento Intersindical de Estatística e

Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), Lula comprovaria a falsificação dos índices

inflacionários por Delfim Neto levando ao início de uma grande campanha por

reposições salariais.

Depois de nove anos, o movimento estudantil reapareceria novamente. Em 22

de setembro de 1977, o campus da PUC-SP foi invadido. Ali realizava-se o III

Encontro Nacional dos Estudantes, com vistas para a recriação da UNE. A polícia

reprimiu e invadiu o campus em frente ao Teatro Tuca. O secretário de Segurança

Pública do estado, coronel Erasmo Dias, lançou contra os universitários contingentes

da tropa de choque da polícia. Conforme BARROS (1998), 2 mil pessoas ficaram

encurraladas na universidade e muito do patrimônio do campus foi destruído.

A "linha-dura" queria marcar seus movimentos já pensando na sucessão

presidencial de Geisel. O ministro Sylvio Frota, de acordo com VILLA (2014), queria

“emparedar” o presidente no jogo sucessório, assim como ocorrera com Castelo

Branco que teve de ceder à Costa e Silva como seu sucessor. Mas os ultra-

255

autoritários começaram a perder terreno. O ministro Sylvio Frota seria demitido pelo

presidente em 12 de outubro de 1977. Frota preparara um documento criticando

acontecimentos como: o restabelecimento das relações diplomáticas com a China

comunista; o reconhecimento da independência de Angola; a forte presença do

Estado na economia. Geisel permitiu a divulgação do documento para ganhar a

simpatia da oposição que, naquela altura dos acontecimentos, preferiria a

descompressão lenta do regime com Geisel ao invés de uma liderança,

provavelmente caudilhista de Frota, ao pior estilo do que ocorria, por exemplo, na

Argentina, da Junta Militar comandada por Jorge Videla. O documento preparado

pelo general Frota com ataques ao marxismo, ao capitalismo de Estado e defendendo

a livre iniciativa estava mais próximo da linha autoritária que vigorava na Argentina

e no Chile do que com as propostas de cunho mais nacionalista do general

Albuquerque Lima, do final da década de 1960. Os “porões da ditadura” sofreriam

um duro revés e não encontraram tempo de reagir ante a atitude de Geisel. Frota que

assumira o Ministério do Exército após a morte do também “linha dura”, mas homem

de confiança de Geisel - Dale Coutinho – era inimigo das idéias e concepções de

Golbery e os ultra-reacionários encontraram nele um eficiente porta-voz. Frota

perdia de vez a “queda de braço” com Geisel, ao não conseguir o apoio do Alto

Comando. Segundo VILLA (2014), o Brasil era salvo de se adentrar em uma ditadura

ao estilo platino. Exagero ou não, o fato é que o Brasil, com certeza, trilhava o

caminho da “distensão” e da “descompressão”, o panorama de uma abertura política

poderia se tornar viável e Geisel teria as condições para escolher o seu sucessor.

Não sabemos por completo se, em 1964, Jango poderia ter interposto uma

sólida resistência ao movimento de tropas iniciada pelo general Olympio Mourão

Filho, e se não o fez por receio de uma guerra civil. Se de fato o “dispositivo militar”

de Jango era apenas uma retórica, ou se não foi efetivamente preparado por conta

talvez de uma subestimação da força dos golpistas. Mas parece verossímil que os

partidários de Frota não teriam como desencadear algum movimento, ou um tipo de

“golpe” contra os partidários de Geisel. Não havia a possibilidade de um embate

frontal entre os “frotistas” e os partidários do presidente. De qualquer forma, Frota

estava fora do governo e não teve como revidar a isso.

256

À medida que Geisel levava adiante a "distensão", ele impôs o seu sucessor -

o general Figueiredo - após a derrota do general Sylvio Frota, um dos principais

representantes da "linha-dura",

Quanto à economia, a pasta da Fazenda, ocupada por Mário Henrique

Simonsen, procurou manter as taxas de desenvolvimento elevadas (mas não como no

"milagre econômico"), junto à adaptação do país frente à primeira crise do petróleo

(1973-74) que afetou o setor energético. O lançamento do II PND (Plano Nacional de

Desenvolvimento) visava a substituição das importações e à busca da auto-

suficiência brasileira no setor de insumos básicos - como nos grandiosos projetos

das hidrelétricas de Itaipú e de Tucuruí - e as obras da usina atômica de Angra I, após

o mencionado acordo nuclear com a Alemanha Ocidental. Acarretavam-se assim

novos impactos ambientais e importantes alterações no espaço geográfico brasileiro.

Foi marcante também o crescimento das empresas estatais que infelizmente

contribuiriam para o aumento da corrupção com uso indevido do dinheiro público

(infelizmente a corrupção não era algo inédito, já vinha de antes). O

desenvolvimento, nos anos Geisel, se nortearia num forte processo de intervenção

estatal dentro de uma estratégia industrializante tentando-se sequenciar a linha do

"Brasil, Grande Potência" do governo Médici.

Apesar de Castelo Branco e Geisel terem pertencido ao chamado grupo

"castelista" tem-se que o primeiro centralizou seu governo numa política recessiva,

até anti-industrializante, enquanto que o segundo buscou uma dinâmica

industrializante com grandes inversões públicas ocorridas através do Banco Nacional

de Desenvolvimento Econômico - BNDE, visando o crescimento industrial para o

setor de bens de capital mostrando-se, com isso, as diferenças existentes entre os

presidentes militares do movimento de 1964, constatando-se a não unidade do regime

(DEL VECCHIO, 1992). Relembre-se ainda que a Aerp, principal órgão de

divulgação do governo Médici, perderia seu "status" no governo Geisel.

Em 1978, embora o senador Magalhães Pinto desejasse ser o candidato à

sucessão presidencial,.Geisel optaria pelo nome do general João Figueiredo. De cara,

o chefe da Casa Militar, Hugo Abreu, pediu demissão por discordar da indicação de

Geisel. Mas, o nome de Figueiredo foi homologado na sede da Arena, tendo o

governador mineiro, Aureliano Chaves, como vice. O MDB intensificou suas

257

articulações para lançar como candidato à presidência, o general Euler Bentes

Monteiro. O vice na chapa seria o senador Paulo Brossard. O programa de governo

do general Euler apresentava propostas avançadas se comparada ao ritmo mais

vagaroso da “distensão” de Geisel. Abrangia a revogação da legislação de exceção; o

retorno à Constituição de 1967; a convocação, dentro de dois anos de uma

Assembléia Constituinte; anistia ampla e irrestrita; redução do mandato presidencial

para quatro anos; eleições diretas para presidente e governadores estaduais para

1982; e garantia do direito de greve e da liberdade sindical. 181

.

O tema da anistia se torna o principal assunto no país. O Comitê Brasileiro pela

Anistia foi criado em fevereiro de 1978. O presidente norte-americano, Jimmy Carter

viria ao Brasil, a questão dos direitos humanos e da anistia aos reprimidos pelo

regime foi se colocando na ordem do dia.

O movimento sindical ressurge em maio daquele ano. Após dez anos, ocorre

uma greve, a de 2 mil metalúrgicos em Diadema (SP), na fábrica Scania. Depois o

movimento atingiu a Ford. E chegaria a São Paulo, na fábrica da Toshiba.

Na frente parlamentar, o governo procurava garantir a aprovação da reforma

política de Geisel, em que a revogação do AI-5 era a peça principal e também a

eleição de Figueiredo. Especialmente no Exército, alguns dissidentes apoiavam a

candidatura presidencial de Euler, mas o governo obteria no Congresso (sem a

presença do MDB), em 15 de outubro de 1978, a aprovação da reforma política. Dois

dias depois, Figueiredo era vitorioso no Colégio Eleitoral.

Nas eleições do mês seguinte, a Arena, beneficiada pela Lei Falcão e pelo

“pacote de Abril” venceria as eleições, mas com uma vantagem apertada para a

Câmara (15 milhões de votos contra 14,8 milhões do MDB). A Arena faria a maioria

das Assembléias Legislativas e venceria nas principais cidades. Porém, para o

Senado, o MDB receberia 17,4 milhões de votos contra 13,1 milhões da Arena.182

181

CHAGAS, Carlos. 113 dias de angústia. Porto Alegre: L&PM, 1979, p.310 – 311., in: VILLA, Marco

Antônio. Op.cit. p. 256

182 GUTEMBERG, Luíz. Moisés, codinome Ulysses Guimarães: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 172 -174., in: VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 258

258

Em 13 de outubro de 1978, Geisel promulga a Emenda Constitucional nº11. As

“salvaguardas do Estado” (medidas de emergência, estado de sítio e estado de

emergência) foram incorporadas à Constituição. Restabelecia-se também a

imunidade parlamentar, extinguiam-se as penas de morte, a perpétua e a de

banimento.

Por fim, o AI-5 foi arquivado em 31 de dezembro de 1978 junto com suas

arbitrariedades, mas permaneceriam o "pacote de abril", a chamada "Lei Falcão" e

outras dezenas de leis e atos institucionais ligados à face autoritária do regime. Geisel

e Golbery formataram concessões liberalizantes do governo, superando a luta da

sociedade pela conquista de seus direitos, provocando assim uma certa diluição do

movimento social emergente, pois a "distensão" teria que ser "lenta, segura e

gradual", enfim, um processo comandado pelo próprio Estado, dentro de uma

abertura, que caracterizaria a conversão gradual de um modelo político para outro.

Na ótica de Geisel, quando o governo revogou o banimento dos 126 brasileiros nessa

condição, o ciclo autoritário encerrara-se.183

Mesmo considerando essa ótica do presidente um tanto exagerada,

verdadeiramente, o general Figueiredo assumiria a presidência encontrando o regime

numa situação institucional e jurídica bem diferente do que era em 1974. Não há

como não reconhecer o avanço obtido, porque a revogação do AI-5, por si só, já se

constituiu num grande passo da descompressão/distensão do regime, principalmente

se compararmos o final de 1978 com o final do segundo ano de Geisel no governo

(1975) quando se parecia caminhar para o fracasso do processo de “distensão” face

às barreiras que o presidente vinha enfrentando, em especial por parte da “linha

dura”, cujo principal expoente era o ministro do Exército, general Sylvio Frota.

O ano de 1979 trazia novidades e esperanças. O ex-deputado Davi Lerer, do

MDB era o primeiro exilado a retornar ao país, em 1º de janeiro de 1979, após a

revogação do AI-5. O projeto da anistia começava a ser formatado. O antes sisudo

chefe do SNI, João Figueiredo aparece agora como o simpático “presidente João” ou

o “amigo João” – o presidente que no linguajar popular falava as “verdades”, com

183 VILLA, Marco Antônio. Op. cit. p.259

259

frases de efeito e “bravatas”, aberto ao diálogo e com as mãos estendidas para a

oposição.

3.4.1 – Distensão, abertura e democracia “relativa”

Ernesto Geisel entrou para a História como o presidente que, efetivamente, e de

forma intencional, deu início à abertura do regime, desencadeando um processo de

transição política chamada de “distensão”. Ainda que tenha apresentado recuos e

reveses, principalmente nos dois primeiros anos daquele que era o 4º general-

presidente do regime, a “distensão” - mais precisamente o processo de abertura do

regime - passa a constar nas políticas oficiais da agenda governamental daquela

época. Porém ela teria que ser “lenta, segura e gradual”, ou seja, um processo desde

sempre controlado pelo Estado. A “descompressão” teria que vir a partir do governo

para a sociedade - e não o contrário. O governo central não poderia “se dar ao luxo”,

na visão de Geisel e de Golbery, de perder as rédeas da abertura decorrente da

“distensão”. Relembre-se que, como já colocado na Introdução deste trabalho, o

conceito de abertura se refere, conforme Aspásia Camargo, a um processo gradual e

controlado de cima para baixo, em que o próprio Estado impõe, comanda, gerencia,

limita e orienta a conversão (a mudança de rumo) de um modelo político rígido, com

as liberdades suprimidas, para outro em que muitas destas tais liberdades vão

passando por uma “descompressão” e retornando gradativamente na vida política do

país, mas sempre com o poder estatal evitando de perder o prumo desse processo. A

abertura é diferente de redemocratização, conceito este que trata sobre a

transferência de poder do Estado autoritário para a sociedade e a um sistema regido

por partidos políticos. O processo de redemocratização já seria algo mais dinâmico,

em que pode ocorrer uma real e efetiva pressão da sociedade em direção a uma maior

democratização do Estado. Estes dois conceitos viriam à tona durante o governo

Geisel, e foram ganhando mais força nos anos de governo do general João

Figueiredo (1979-1985).

260

A abertura de um modelo político não era algo inédito na história brasileira. O

final do Estado Novo também se caracterizou por um processo de abertura, orientado

pelo então ditador Getúlio Vargas, no ano de 1945, permitindo-se a formação de

partidos políticos naquela época: a UDN reunindo as oposições antigetulistas; e o

PSD e o PTB, que foram criados à sombra do varguismo. Getúlio marcou as eleições,

mas a despeito das dúvidas geradas nos adversários do regime estadonovista, por

conta do “movimento queremista”, mais o temor da continuidade do ditador no

poder, as oposições daquela metade da década de 1940 se uniriam, não ao povo (que

se sentia fortemente identificado à Getúlio, que gozava ainda de enorme

popularidade), mas às Forças Armadas. Getúlio foi deposto através de um golpe e o

Estado Novo chegava ao fim. Daí, numa certa medida, poderia-se falar numa

redemocratização, com a realização das eleições, apesar de vitória do general Eurico

Gaspar Dutra, ex-ministro de Vargas e apoiado por este. Tudo isso três décadas

antes do governo de Ernesto Geisel.

Na década de 1970, o regime militar vivenciava a sua fase mais rígida e

repressiva. Os anos de Médici caminharam entre o “milagre econômico” e o

“chumbo”. E Ernesto Geisel chega ao poder, em 1974, sucedendo Médici. Junto com

Golbery, ministro da Casa civil, o novo presidente articulara um projeto político mais

amplo. Precisavam institucionalizar o regime autoritário, inclusive buscando colocar

“freios” e limites aos “porões” repressivos do regime, em nome da disciplina e da

hierarquia militar, procurando-se deixar claro a primazia da Presidência da República

sobre as Forças Armadas. Deixar clara a unidade e o comando do presidente sobre as

instituições representadas pelas três Forças, para viabilizar o seu governo e os

projetos a serem postos em prática. A tarefa não foi nada fácil. Ao contrário do final

do Estado Novo, em que o processo de abertura e de redemocratização mal durou

dois anos [se considerarmos CASALECHI (2002)184

], no caso do regime de 1964, a

abetura/transição/redemocratização duraria 11 anos, um pouco mais da metade do

184 CASALECHI, José Ênio. O Brasil de 1945 ao Golpe Militar. São Paulo: Contexto, 2002, p.13-14. O autor

cita o Manifesto dos Mineiros, em outubro de 1943, como o primeiro grande momento da transição do

autoritarismo para a democracia no Estado Novo varguista. Também aponta o momento em que o Brasil

entra na Segunda Guerra Mundial, em 1943, contra o fascismo, em que Getúlio procura preparar-se

para a “abertura democrática”. Getúlio seria deposto em outubro de 1945.

261

regime (se considerarmos como o seu final, 15 de março de 1985, quando o general

Figueiredo passa a faixa presidencial novamente a um civil, José Sarney).

Sarney, vice-presidente da chapa encabeçada por Tancredo Neves, tomaria

posse como presidente, devido ao grave quadro de enfermidade deste último (que

faleceria em 21 de abril de 1985). O fato da chapa Tancredo/Sarney ter sido eleita

através do Colégio Eleitoral, realizado em janeiro de 1985, denota a vitória da

transição comandada pelo Estado. A “distensão” de Geisel coroava com êxito o seu

projeto de abertura que ficaria restrita ao Colégio Eleitoral impedindo-se o ímpeto

renovador da redemocratização (que se relacionaria às pressões da sociedade civil

sobre o Estado, em busca do fortalecimento da democracia, como no movimento das

"Diretas-Já", ocorrido nos primeiros meses de 1984) afastando-se assim, o eleitorado

da participação direta na escolha do novo presidente, adiando–se o sonho das diretas

para pleitos presidenciais por mais cinco anos.

Analisar o governo Geisel é uma tarefa bastante complicada. No caso do que

foi o governo João Goulart, existem dificuldades em se estabelecer consensos sobre o

que tal período representou para o Brasil. Às vezes, as análises oscilam entre o que

foi o governo Goulart e como era a personalidade daquele presidente. Na fase de

Geisel, há a sensação, bastante disseminada por sinal, de que Geisel foi o “artífice”

da abertura do regime, contando com a preciosa colaboração de Golbery. No entanto,

apesar de ter um lado verdadeiro nisso com relação à dupla Geisel/Golbery, há toda

uma série de contradições relacionadas àquele período da década de 1970 no Brasil.

Nas palavras de Elio Gaspari, Geisel assumiu quando: “havia uma ditadura sem

ditador. No fim do seu governo, havia um ditador sem ditadura.”.185

Ainda que

altamente questionável esta frase, ela pode refletir tais contradições. Marcos

Napolitano aponta que (...) “Geisel passou para a História como o presidente

autocrático, que iniciou o processo de abertura e, consequentemente, da transição

política.”186

185

NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 229.

186 Id., Ibid., p.229.

262

BARROS (1998)187

, usa em seu livro o seguinte título de subtópico, dentro do

capítulo dedicado aos anos Geisel: “Geisel e Golbery: O sacerdote e o feiticeiro”. O

autor descreve Geisel como uma espécie de “centralizador monárquico”, que

subordinou inteiramente sob suas ordens o Alto Comando das Forças Armadas. Para

o general-presidente o fundamental era remover os militares do envolvimento

rotineiro na política nacional, para preservar a própria unidade da corporação. Era

básico que os militares continuassem a ter cargos de prestígio, mas fora dos

“holofotes” da política e da prática presidencial. Para Edgard Luiz de Barros, a

“democracia relativa” imaginada por Geisel e Golbery previa a necessidade de se

perder uns poucos anéis, porém preservando outros tantos, e obviamente, as próprias

mãos. Assim, o mais “militar” dos militares e o mais autoritário entre os generais que

chefiaram o Executivo federal no período, seria aquele que também começaria a

mandar os militares de volta aos quartéis.188

Ao falecer em 1996, a imagem de Geisel foi tratada - pela imprensa e pela

memória liberais189

- à luz de um mandatário que legou ao país um saldo positivo

como o idealizador da abertura, o presidente que tocou o processo de “distensão”

contribuindo para o retorno da democracia no Brasil.

A Folha de São Paulo trouxe a manchete:

“Geisel, que fez a abertura, morre aos 88”190

E mais:

187 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.92 e 93

188 Id., Ibid., p.93.

189 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 230. O autor faz o uso, não poucas vezes, do adjetivo “liberal”, para

se referir à imprensa e à memória (liberais) , procurando mostrar as importâncias destas na construção

e na consolidação de uma dada memória, nos dias de hoje, sobre a época do regime militar.

190 Folha de São Paulo, 13 set. 1996, capa. In: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 230.

263

“Pode-se dizer que foi a ação firme de Geisel que permitiu o turning point

definitivo rumo à democracia”191

(O grifo é do jornal)

Na revista Veja:

“Geisel tinha uma característica incomum entre os presidentes militares:

mandava. Foi assim que, com mão de ferro, inviabilizou a ditadura”192

No artigo principal da mesma revista, Marcos Sá Correia apresenta a ditadura

(embora eu prefira utilizar o termo regime) como se fosse algo anárquico e com a

ordem subvertida, não pela esquerda, mas pela chamada “tigrada” dos quartéis:

“Antes de Geisel, havia um sistema que, apesar das aparências, era um regime

de presidentes fracos, generais submetidos de baixo para cima à tutela dos quartéis.

Para acabar com esta subversão hierárquica Geisel não precisou de pruridos

liberais [...] encarando a anarquia militar, ele personalizou o autoritarismo que,

antes, era exercido pelos fantasmas das Forças Armadas e pelas legiões quase

clandestinas da repressão política.”193

Para Thomas Skidmore, tido como um dos intérpretes liberais da história

republicana brasileira:

“Será lembrado como o soldado austero que deu outra chance para a

democracia.”194

191 Idem. Id., Ibid., p.230.

192 Veja, nº 1.462, 18 set. 1996, p. 42. In: Id., Ibid., p.230.

193 Idem, p.44. In: Id., Ibid., p.230.

194 Thomas Skidmore, em Folha de São Paulo, 13 set. 1996, p.6. In: Id., Ibid., p.230.

264

Talvez, um exemplo bastante ilustrativo do “sucesso” da política de abertura de

Ernesto Geisel tenha sido a homenagem que o então presidente, Fernando Henrique

Cardoso, lhe prestou em 1995, reconhecendo a “chance para a democracia”, em um

almoço no Palácio das Laranjeiras. Na década de 1970, FHC era seu opositor.195

A seguir, uma capa da revista Veja, de outubro de 1977 que pode muito bem

ilustrar a “ação firme”, a “mão de ferro”, e a “personificação do autoritarismo” de

Geisel:

Capa da Revista Veja, de outubro de 1977, com o presidente Geisel na capa. Era a época da demissão do

ministro do Exército Sylvio Frota.

Fonte: http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/wp-content/uploads/2014/05/ernesto-geisel-

veja.jpg

195 NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p. 231.

265

Verdadeiramente, Ernesto Geisel foi uma figura complexa. Não é simples

compreendê-lo, em suas contradições, como um importante personagem da história

recente nacional. Há ainda outras contradições existentes naqueles tempos da

segunda metade da década de 1970. O fim do “milagre brasileiro”, juntamente ao

primeiro “choque do petróleo”, marcaram decisivamente o governo Geisel e

influenciariam nas diretrizes econômicas e no próprio processo de “distensão” ou

abertura política do regime.

Eis algumas das contradições de Geisel. Anticomunista convicto, foi o primeiro

a reconhecer o governo comunista de Angola, em 1975. Se até aos dias atuais

apontam-se e procuram-se novas evidências do apoio dado pelos Estados Unidos ao

golpe de 1964, como na operação “Brother Sam”, e cita-se também a postura

bastante subserviente do governo Castelo Branco em relação à superpotência

capitalista, o presidente Geisel, que também era do grupo “castelista” e participara no

primeiro governo do regime como chefe da Casa Militar, irritaria os Estados Unidos

por conta do acordo nuclear com a Alemanha e por causa da questão dos direitos

humanos, levantada pelo presidente norte-americano Jimmy Carter, a partir de 1977.

Permeou entre a censura contra a oposição e os estímulos à uma política cultural que

beneficiava até artistas adversários do regime. Nestas políticas, Geisel procurava

reforçar a autoridade do Estado, como o único agente a controlar, com pulso firme, a

transição para um governo civil.

A memória liberal construiu em torno de Geisel o seguinte perfil: um “liberal

de farda”, mas sem dúvida, autoritário. Porém, ele usou o seu autoritarismo para o

“bem”, ao começar o fim do regime militar. Com sua postura autocrática, afastou o

reformismo e a revolução socialista representada pela luta armada de um lado; bem

como a extrema-direita que influenciava os quartéis, de outro.196

É como se Geisel tivesse recolocado o Brasil na trilha de uma dada lógica que

fora interrompida a partir do momento em que Castelo Branco perdeu o controle do

processo sucessório, quando se impôs o nome de Costa e Silva. O caráter saneador,

redentor e cívico da “Revolução” estava em jogo. O segundo governo do regime

196 Id., Ibid., p.232.

266

traria o AI-5. E, no terceiro governo, o de Médici, vieram os “anos de chumbo”,

marcados pelo avanço da guerrilha de esquerda que seria combatida pelas forças de

repressão que, nos tempos do “chumbo” agiam praticamente de forma autônoma e

independente, “espremendo” a sociedade civil aterrorizada, num círculo de medo, em

meio a esta guerra “interna”. Então, com a ascensão de Geisel ao poder presidencial,

a trilha original traçada desde os tempos de Castelo Branco, e interrompida pelas

pressões da “linha-dura”, é retomada. O governo central reassume o seu

protagonismo para conduzir a transição para a democracia. Assim a “distensão” e a

“abertura” foram ações de governo, capitaneadas pela dupla Geisel-Golbery. Ao

escolher seu sucessor, o general Figueiredo, Geisel teria dado sequência à distensão,

que se tornou em abertura, completando a transição de um modelo político para

outro. E os processos sociais, as pressões e os movimentos da sociedade civil

organizada ficam assim negligenciados. A explicação de todo um processo se torna

maniqueísta e simplista demais: A democracia versus a ditadura. Os “porões” versus

a normalidade jurídico-institucional, com algumas liberdades (como a de expressão).

E Geisel se tornou, na memória de cunho liberal, sinônimo da abertura.197

NAPOLITANO (2014)198

procura, em seu trabalho, também desmistificar a

figura de Geisel como o “bom autoritário” que implantou uma política de distensão

que redundaria na abertura do regime. O autor aponta que, tanto a distensão como a

abertura, foram processos inseridos em um projeto que, primeiramente, visava à

institucionalização do regime. Geisel sabia dos riscos de contar somente com o

aparato repressivo para gerenciar o sistema político, e precisava evitar que o governo

ficasse isolado da política e da sociedade. Até 1977, a “abertura” era na concepção

governamental a busca em se institucionalizar o que era exceção, uma retirada dos

militares aos quartéis a passos bem lentos e calculados, uma descompressão pontual.

De fato, nos dois primeiros anos do período Geisel (1974-1975), a distensão

pouco avançou, como já apontado antes. A linha dura, representada principalmente

197 Id., Ibid., p.232-233.

198 Id., Ibid., p.234.

267

pelo ministro Sylvio Frota, sentia confiança em se contrapor ao presidente,

propagando os riscos da “infiltração marxista” e do avanço comunista no Brasil. O

reconhecimento da independência de Angola e o estabelecimento de relações

diplomáticas com a China comunista eram usados como argumentos para tanto.

É, sobretudo, a partir de outubro de 1977, com a demissão de Sylvio Frota,

principal representante da linha mais dura dos segmentos militares, do Ministério do

Exército, que a distensão ganha maior impulso, com Geisel assumindo o controle do

xadrez político no que se refere à escolha de seu sucessor.

Contudo, não podemos considerar isoladamente a demissão do ministro Frota,

como o fato que irá desencadear a abertura. Em 1977, os movimentos sociais

articulados nas ruas, trazendo novas demandas políticas, econômicas e sociais,

somados ao próprio sistema político, em que o MDB vinha se encorpando nas

disputas eleitorais, colocou o governo diante da necessidade de lidar com fatos

novos. O movimento estudantil reaparecia. As mobilizações de trabalhadores e

operários também, junto às greves. A Igreja vai assumindo um papel na defesa dos

direitos humanos. Entidades da sociedade civil, como a OAB (Ordem dos Advogados

do Brasil), começam a cobrar por uma mudança jurídico-institucional. O regime

defrontava-se com uma nova realidade que ganhava espaço no país.

O diferencial no processo de transição (aqui incluo distensão, abertura e a

redemocratização) foram os atores liberais, apoiados por parte da esquerda (PCB e

PC do B) e reunidos na oposição partidária consentida (MDB/PMDB); e também a

grande imprensa, dona dos principais meios de comunicações do país, com grande

circulação (jornais, revistas, além da própria televisão). O processo final da transição,

a partir de 1982, quando são realizadas, após quase duas décadas, eleições diretas

para os governos estaduais, será hegemonizada pelos liberais, em negociação com os

militares.

A negociação foi vantajosa para ambos. Os militares retornaram aos quartéis,

com garantias de que não seriam perseguidos pelo “revanchismo”. Por outro lado, as

elites civis, devidamente capitaneadas pelos seus segmentos liberais, obtiveram a não

ruptura do modelo econômico, podendo retomar o cenário do poder político com

seus privilégios e interesses contemplados, ao mesmo tempo que o país voltava para

o jogo eleitoral e para as liberdades civis. Se a morte de Tancredo, um opositor

268

moderado, mas coerente, atrapalhou um pouco este projeto das elites civis, a

transição democrática fecharia este ciclo com José Sarney, como presidente. Um

homem que tinha feito a sua carreira política, até então, sob a tutela e a sombra do

regime militar.

Esse tipo de retirada “calculada” dos militares da cena política nacional não foi

exclusividade do Brasil. Foi comum nos regimes militares que governaram

sociedades mais complexas, como no Chile e no Uruguai, pois um regime autoritário

não poderia se manter infinitamente sem a necessidade de se institucionalizar o

Estado autoritário e negociar um progressivo retorno às casernas. Na Argentina, este

modelo de abertura não ocorreu e ali o regime se tornou um desastre político, com

violência em graus elevadíssimos, baixa institucionalização e desgaste severo da

imagem do Exército, sobretudo após a derrota na Guerra das Malvinas (1982),

selando a sorte do regime portenho.

A agenda da transição do regime militar brasileiro dentro de um processo de

abertura previa uma passagem gradual do modelo político rumo a um governo civil,

ainda tutelado pelos militares. O modelo de abertura teve o seu embrião, conforme

NAPOLITANO (2014)199

, em 1972, ainda no governo Médici para designar a vontade

do regime em se institucionalizar. Após a indicação de Geisel para a sucessão

presidencial, o Ipeac (Instituto de Pesquisas, Estudos e Assessoria do Congresso)

patrocinou uma palestra do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos,

seguida por debate entre os parlamentares, na qual foi apresentada a tese da

“descompressão política gradual” para evitar o retrocesso. O debate, obviamente e

como não podia deixar de ser, até por conta do momento político do governo Médici,

ficou restrito aos âmbitos mais centrais do poder. A questão primordial era como os

militares se retirariam, de uma forma estratégica, do coração do poder estatal sem

prejudicar os ideais da “Revolução” de 1964: “segurança e desenvolvimento.”

Isso significava institucionalizar um quadro institucional de exceção

encaixando-o em princípios constitucionais, abrandar o controle da sociedade civil e

devolver - a prazo não curto – o poder aos civis, normalizando a vida política.

199 Id., Ibid., p.237.

269

Concomitantemente seria conservada a manutenção da tutela militar sobre o sistema

político-institucional da nação, contando com políticos e elites não hostis aos

princípios e doutrinas apregoadas pela “Revolução de 31 de março” e não fazendo

concessões excessivas à sociedade para que ela pudesse influenciar o processo

político e decisório. Os militares almejavam um partido oficial hegemônico,

legitimado pelo jogo político-eleitoral com a participação da sociedade civil e um

Estado “blindado” contra as pressões tanto da extrema-direita como das esquerdas e

dos movimentos sociais.200

Esta fórmula, um tanto híbrida, que combinava tanto a tutela militar do sistema

político, ainda que tal tutela não fosse necessariamente explícita, face à necessidade

dos militares não se perpetuarem no coração do Estado, mas ao mesmo tempo se

manterem como fiadores de um certo jogo democrático, eleitoral e com partidos

políticos, contando com governos civis que compactuassem com esse projeto

estratégico, teria sido inspirada no modelo político mexicano em sua bem-sucedida

longevidade. Ali ocorreu a primazia de um partido único durante décadas – o PRI

(Partido Revolucionário Institucional) – e a história política mexicana transcorreria

sem golpes e ditaduras militares, em que presidentes eleitos através do voto popular,

num sistema eleitoral e de estruturas partidárias, seguiu por décadas, com a sucessão

de diferentes presidentes exercendo mandatos de seis anos de duração, sem direito à

reeleição.

O caso político mexicano foi citado por Samuel Huntington, cientista político

norte-americano, no texto: “Approaches to Political Descompression” (“Abordagens

para a Descompressão Política”).201

No início do governo Geisel, ele veio ao Brasil

e participou do seminário: “Legislaturas e Desenvolvimento”, aconselhando pela

opção da descompressão lenta e gradual do regime brasileiro, para se evitar um novo

ciclo repressivo ou o aumento da participação popular no processo político. Contudo,

o ilustre visitante (professor de Havard), com o seu famoso artigo, não empolgou

200 Id., Ibid., p.238.

201 Id., Ibid., p.238.

270

Golbery. O “mago” ou o “feiticeiro” Golbery acreditava que a abertura era algo já

existente no movimento de 1964 e que fazia parte da plataforma “castelista”.202

De qualquer forma, pode-se dizer que a abertura foi pautada num outro

binômio: “lentidão e gradualidade”.203

Uma democracia mais outorgada do que

conquistada. Aqui já foi colocado que, ao contrário de seus três antecessores, Geisel

não fez menção à volta da democracia em seu discurso de posse. Mas, desde o início

de seu governo a palavra “distensão” foi entrando na ordem do dia da nação. A

estratégia da distensão seria a do gradualismo sem abrir mão do arcabouço

institucional de exceção para se evitar o desvio da rota traçada. Se a distensão, no

princípio, carecia de uma agenda política, a tônica deste processo seria a combinação

de um gradualismo, como na possibilidade de diálogo com setores selecionados das

elites e da sociedade, junto a estratégias de contenção para manter as rédeas do

processo. A segurança vinha antes do diálogo.

O grande desafio do governo para aquela metade dos anos 1970 em diante seria

em como enfrentar a nova realidade econômica, marcada pela subida da inflação e

por recuos no PIB (em 1975, cresceu 5,2%, quase três vezes menos que a histórica

marca de 14%, de 1973). Era o fim do “milagre” e o primeiro “choque” do petróleo.

O planejamento econômico seria reorientado através do II PND, porém procurando-

se manter altas metas de crescimento pelo decorrer dos anos seguintes.

A aniquilação da luta armada traria à tona o debate em torno do que

NAPOLITANO (2014) denominou de “questão democrática”. Geisel falou em

democracia “relativa” durante o seu governo. Também pudera. O governo militar

considerava o Brasil um país democrático argumentando pela liberdade individual e

da livre iniciativa em contraponto ao “totalitarismo da esquerda”, reforçados pelos

valores e ideais cristãos e ocidentais. Esta era a visão de “democracia” do regime.

Algo que poderia muito bem estar em simbiose com a legislação repressiva e uma

202 Id., Ibid., p.238.

203 Id., Ibid., p.238.

271

oposição controlada, sem aprofundar canais de participação e de debates profundos

incluindo a sociedade civil.

A esquerda armada - derrotada pela feroz repressão do regime; isolada e

distante do apoio popular, por conta do medo e do terror impostos à população pelo

Estado autoritário; sem maiores espaços por conta da censura e de outros controles

disseminados aos meios de comunicação (ou ainda pela conivência destes últimos

com o regime); e, para finalizar, em desvantagem diante da lógica propagandística do

governo pautada pelo ufanismo e pela boa fase econômica - teve que repensar os seus

ideais de luta armada e revolução. A autocrítica foi a escolha que restou aos

sobreviventes da luta armada da esquerda. A questão da política de massas, ou

democracia “participativa” passou a ser considerada, movimentos sociais

diferenciados pautados pela vizinhança e em comunidades religiosas, avessas ao

leninismo, estavam ganhando espaço naqueles idos da segunda metade dos anos

1970. Buscava-se uma alternativa entre o projeto elitista da abertura em uma

democracia liberal e a afirmação dos movimentos sociais e a luta por uma ampliação

participativa na vida política do país.

Os debates sobre a questão democrática adentraram no MDB. Na época de

Geisel, o MDB conquistaria importantes vitórias eleitorais, como na eleição de

Orestes Quércia para o Senado, em 1974. Fortalecido pelo lançamento da campanha

de “anticandidatura” para a eleição presidencial indireta de 1974, Ulysses Guimarães,

que poderia ser visto como uma figura política até dúbia, nos anos de Castelo Branco

principalmente, se firmaria como a principal liderança emedebista a partir de 1974,

tornando-se uma importante voz contrária ao regime naquele cenário político. O

MDB captou essa tônica revisionista e de autocrítica da esquerda e transformou isto

em plataforma política.

Muitos eleitores passariam a votar no MDB, após o partido ter tido uma

quantidade de votos inferior ao de nulos nas eleições de 1970. A orientação de se

votar nulo nas eleições e não no MDB era decorrente da percepção da “farsa”

eleitoral e da “fachada” democrática do regime por parte de alguns segmentos do

eleitorado. Mas o MDB se reciclou com a atuação dos deputados “autênticos”, em

contraposição aos “moderados pessedistas”. O partido da oposição encampou a

questão dos “desaparecidos” políticos, que o governo se furtava a reconhecer. A

272

tortura também incomodava os liberais, junto com a questão dos desaparecidos. O

que NAPOLITANO (2014) chama de “liberais” são aqueles mesmos que, na

imprensa, pediram, aclamaram e apoiaram o golpe de 1964. Os mesmos que pediram

rigor no “combate aos terroristas”, em 1968, mas que depois se assustariam com os

“efeitos colaterais” de tamanha repressão e do peso dos “anos de chumbo”.

A Igreja, que lá atrás apoiou o golpe, também sofreu com a violência

repressiva em seus quadros mais progressistas. A relação da Igreja Católica e o

regime militar arrefeceu-se bastante por conta de alguns episódios: os frades

dominicanos presos e torturados na caçada à Mariguella; o assassinato do padre

Henrique Pereira Neto, assessor do bispo do Recife, dom Helder Câmara; e a morte

do estudante Alexandre Vanucchi Leme, nas dependências do DOI-Codi II em São

Paulo, em 1973.

Estudante de Geologia da USP, líder do movimento estudantil e membro de

uma tradicional família católica do interior paulista, Alexandre foi enterrado como

indigente no cemitério de Perus e o governo demorou a reconhecer sua prisão e

morte (a versão era a de fuga e atropelamento). A missa realizada na Catedral da Sé

ficou marcada pelo coro da música Caminhando, de Geraldo Vandré, e a frase do

arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns:

“Só Deus é o dono da vida. D’Ele a origem e só ele pode decidir seu fim.” 204

A missa, realizada a 30 de março de 1973, às vésperas do 9º ano de aniversário

do regime foi importante porque foi o primeiro ato público das massas desde 1968 e

após o AI-5. Salienta-se que era o último ano do governo Médici e a distensão ainda

não havia se iniciado. Daí a importância deste ato.

A relação entre o governo e a Igreja já não era boa, quando da posse de Geisel,

em março de 1974. O pouco avanço da distensão e a atuação repressiva ainda

presente mostravam que o quadro estava longe de mudar. Em 1975, somada à

cobrança pelo destino dado aos desaparecidos políticos, os atritos entre a Igreja

204 Id., Ibid., p.245.

273

Católica e o governo encontraram novo capítulo com a implantação do divórcio.

Defendida durante décadas pelo senador Nelson Carneiro, a proposta de emenda

constitucional prevendo o divórcio seria aprovada. Não deixa de ser um símbolo das

mudanças sociais e das transformações de costumes que o Brasil vinha trilhando. A

OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), que aprovara o golpe de 1964, mas

distanciara-se do regime por conta do AI-5 de 1968, volta à cena como um outro ator

liberal a criticar o governo.

A distensão que Geisel formatara ainda era muito tímida, contudo a revisão do

modelo político existente, a oposição da Igreja e a questão dos direitos humanos

permearam as eleições de 1974. O regime deu relativa liberdade à dinâmica eleitoral

para testar até que ponto a sociedade havia internalizado os valores e os ideais da

“Revolução de 1964”. O MDB teve espaço para expor e debater o seu programa, no

horário eleitoral e nos meios de comunicação. O partido da oposição consentida

aproveitou-se do cenário. Naquelas eleições, que foram legislativas, o MDB ganhou

da Arena nos votos para o Senado (50% contra 40%); praticamente teve um empate

técnico nos votos para a Câmara (37% contra 40% dos votos dados à Arena). Venceu

nas grandes cidades e fez maioria nas Assembléias Legislativas nos estados de São

Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Amazonas e Acre, levando assim alguns

dos estados mais importantes da federação. Ultrapassando um terço do Congresso, o

MDB poderia bloquear emendas constitucionais e complicar o projeto de distensão

do governo.205

O governo reconheceu os resultados não favoráveis. Num primeiro momento

não promoveu casuísmos. Mas, depois das eleições de 1974, Geisel teria que fazer

uso do sistema de exceção para não perder o controle da distensão. O avanço da

oposição teve um duplo sentido, era algo que podia ser relacionado à predisposição

do governo em gerenciar uma abertura, de “cima para baixo”, chancelando os

resultados eleitorais, porém implicaria numa maior necessidade de o Estado não

deixar a abertura virar de “baixo para cima”, com a sociedade civil e a oposição

ditando as regras a tal ponto que a distensão gradual e a abertura controlada se

205 Id., Ibid., p.246.

274

tornassem em uma redemocratização “desenfreada”, caracterizando uma transição

sujeita à imprevistos na ótica governamental.

Na esteira deste “papel duplo”, esta deveria ser também a característica da

grande imprensa liberal (mas dotada de recortes conservadores), agora livre da

censura prévia (caso do jornal O Estado de São Paulo, em 1975). O papel da

imprensa seria o de ajudar o regime em sondar como se encontrava a opinião pública

em relação a insatisfações e demandas e, por outro lado, veicular a resposta do

governo a esta mesma opinião pública, em especial a classe média devoradora da

“opinião publicada”, para se preparar para as dificuldades econômicas que pintavam

no horizonte após o fim do “milagre”. O governo voltava as suas atenções

repressivas ao PCB que era apontado como a “má influência” que pesou no avanço

eleitoral do MDB. Com a luta armada destruída e aniquilada, o PCB tornou-se a

“bola da vez” no alvo da repressão. Para a linha dura, os comunistas se articularam

ao MDB devido à hesitação de um governo “liberalizante”. A confirmação disto seria

a descoberta de uma gráfica clandestina do PCB, estabelecendo a influência do

“Partidão” sobre o processo eleitoral de 1974. A Operação Radar e a Operação

Jacarta estavam voltadas especificamente contra o PCB. Naquele ano de 1975,

Geisel descartava, por exemplo, a revogação do AI-5, mostrando que a distensão

estava condicionada a limites rigidamente estabelecidos.

As eleições de 1974 mostraram que o Estado e a sociedade tomavam caminhos

distintos. A sociedade civil, com a “questão democrática” em pauta, procurava

mover-se por novas trilhas, potencializando o isolamento do regime autoritário.

Face à dura repressão ao PCB, que incomodava os setores mais críticos da

sociedade, o clima se deterioraria de vez, no campo da tortura e da repressão, com a

morte do jornalista Wladimir Herzog, em outubro de 1975. A versão inicial de

suicídio não foi aceita pela sociedade que, de novo, se mobilizou na Catedral da Sé,

no culto ecumênico, que reuniu 8 mil pessoas, liderado pelo arcebispo dom Paulo

Evaristo Arns, contando com as presenças do pastor James Wright e do rabino judeu

Henry Sobel. A morte de Herzog, que se apresentara voluntariamente ao Doi-Codi de

São Paulo, trouxe complicações nas relações entre o governo e a imprensa.

Naquele momento, Geisel não tomaria uma medida mais séria que ficou restrita

a uma reprimenda de que o comando do II Exército controlasse seus agentes.

275

Somente com a morte do sindicalista, Manuel Fiel Filho, em fevereiro de 1976,

houve a demissão do comandante do II Exército – general Ednardo D’Avila Mello -,

mas nenhuma outra punição efetiva foi aplicada a algum membro do “porão”.

Até aquele momento, o governo Geisel teria priorizado uma distensão imbuída

daquele duplo sentido citado antes. Abrir canais institucionais de diálogo com vozes

e setores selecionados (não com qualquer tipo de ator social, mas somente aqueles

com quem o governo estaria disposto a dialogar), sem abrir mão da repressão que

assolava o PCB, e que, em 1976, mesmo depois da troca do comando do II Exército,

voltaria-se contra o PCdoB (não mais no contexto da Guerrilha do Araguaia- já

aniquilada dois anos antes - mas na perseguição aos militantes urbanos do PC do B).

O governo procurava manter sua atenção ao “porão”, como um ator útil no processo

de distensão do regime, como um agente a contribuir para o controle de adversários

“subversivos” mais exaltados e como uma forma de garantir o lentíssimo

gradualismo das mudanças. Porém, a morte de Manuel Fiel Filho foi um primeiro

acontecimento crucial que fez Geisel agir numa primeira vez em direção a aprimorar

o controle e o comando sobre os setores repressivos. A demissão do general Ednardo

D’Ávila Mello exponenciou as tensões entre Geisel e o ministro do Exército, general

Sylvio Frota. Primeiro porque Frota era próximo a Mello. Segundo porque, a

princípio, caberia a Frota tomar a decisão de demitir o comandante do II Exército.

Mas a situação ainda não estava resolvida. Os ultra-reacionários da linha dura

continuaram ativos em 1976, promovendo até algumas ações terroristas [daí um

parêntese: é um absurdo que alguns, nos dias atuais, associem os terroristas somente

àqueles quadros da luta armada da esquerda e esquecem, talvez de forma proposital,

as ações terroristas da extrema direita, como nas bombas atiradas contra as sedes da

ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e da OAB, no Rio de Janeiro; e o atentado

contra o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo]. As

Forças Armadas vinham apresentando uma aparente divisão entre os duros que

queriam recrudescer o arbítrio; e os que acreditavam no aprofundamento das medidas

democratizantes.

A linha dura, em 1977, com a aproximação do jogo sucessório presidencial,

procurava impor como sucessor, o general Sylvio Frota, ministro do Exército,

principal representante do grupo dos “duros” na época. Frota tentou fazer o que

276

Costa e Silva fez com êxito na sucessão de Castelo Branco; e o que Albuquerque

Lima não conseguiu na sucessão de Costa e Silva. Procurou se colocar como o

sucessor de Geisel, mas o presidente contra-atacou, demitiu Frota, e substituiu

comandos na Infantaria, dando uma enfraquecida na linha dura. Era a segunda vez

em que o governo agia na direção de restabelecer o comando e o controle sobre os

setores repressivos do regime.

Algo que realmente pode ser pesado a favor de Geisel foi a forma como ele não

só demitiu, como verdadeiramente anulou qualquer reação do general Sylvio

Frota.206

Este último estava no Ministério do Exército desde 1974, por conta do

falecimento do indicado de Geisel para o Ministério – general Dale Coutinho. Frota

era contra a distensão, pois esta enfraqueceria o governo diante do combate à

“subversão” comunista. Em 1977, o ministro do Exército mandava constantemente a

Geisel relatórios sobre os avanços da “infiltração” comunista no Brasil. Em eventos

públicos, Frota não perdia a oportunidade de realizar pronunciamentos, buscando-se

apresentar-se como candidato a sucessão presidencial. O nome de Sylvio Frota para a

Presidência da República encontrava seus ecos no Congresso, cerca de 90 políticos

da Arena apoiavam seu nome para suceder a Geisel, como sendo a melhor alternativa

para preservar o espírito da “Revolução de 1964”.

Em outubro de 1977, Frota já esperava por sua demissão. Uma vez comunicado

do fato, pela manhã de 12 de outubro, Frota retirou do seu gabinete um manifesto

que acusava o governo de ser complacente com os comunistas. O manifesto, de oito

páginas, seria distribuído à imprensa e aos quartéis. Sylvio Frota apostava no apoio

que teria de grande parte do Exército, dos oficiais da ativa e de alguns políticos que

estavam ao lado do regime. Com a intenção de deflagrar um golpe, um levante

militar contra o governo, ele convocaria o Alto Comando das Forças Armadas numa

reunião de emergência.

No entanto, Geisel e Golbery já haviam se antecipado. Todo o procedimento

burocrático para a demissão de Frota já estava encaminhada, com direito à edição

extra do Diário Oficial para publicar a demissão. A data de 12 de outubro era a de

206 Id., Ibid., p.269-271.

277

um feriado nacional, em que Brasília estaria praticamente vazia, sem o

funcionamento das repartições públicas e das funções burocráticas que poderiam

agitar um levante golpista. O manifesto frotista não chegou aos quartéis que assim se

mantiveram tranquilos. Uma curta nota sobre a demissão foi lida pelo ministro Hugo

Abreu, com as tropas mais fiéis ao presidente em regime de prontidão.

A única brecha para Frota poder reagir era a reunião com o Alto Comando, mas

os emissários de Geisel chegaram antes e encaminharam os generais ao Palácio do

Planalto, antes da aparição dos emissários de Frota. O decreto estava publicado na

edição extra do Diário Oficial. Sylvio Frota não era mais o ministro do Exército. Para

completar, Geisel trocou o comando de dezenas de batalhões, afastando qualquer

representante do “frotismo” que, dali em diante, ficaria mais enfraquecido. E Geisel,

em 1978, indicaria o general João Baptista Figueiredo, como seu sucessor, sem

maiores percalços. O maior deles, foi o pedido de demissão do general Hugo Abreu,

chefe da Casa Civil, em março de 1978, que se sentiu preterido por Geisel para a

indicação do seu nome para sucedê-lo e discordava da indicação do general João

Figueiredo para a Presidência da República.

Na política externa, o governo deu sinais mais claros, porém não inéditos (se

formos nos lembrar dos governos de Jânio Quadros – 1961 - e de Getúlio Vargas- no

período entre 1951 a 1954) da distensão através da retomada de uma política externa

independente. O acordo nuclear com a Alemanha Ocidental que previa a construção

de vários reatores, uma usina de enriquecimento de urânio e o domínio do ciclo

completo da energia nuclear. O nacionalismo econômico de Geisel, como na

indústria de armamentos, através da criação, pelo governo, do trust chamado Imbel

(Indústria de Material Bélico do Brasil), de olho no mercado do Terceiro Mundo. O

reconhecimento da ex-colônia portuguesa de Angola, na África, como país

independente. O reconhecimento à OLP (Organização para a Libertação da

Palestina), contrariando os Estados Unidos, aliados tradicionais de Israel.207

O troco norte-americano veio, sobretudo, com a administração do presidente

Jimmy Carter (1977-1980), criticando as violações aos direitos humanos no Brasil,

207 Id., Ibid., p.253.

278

somadas às campanhas dos exilados, e da esquerda marxista e católica, contra o

regime brasileiro no exterior que teria de lidar com a possibilidade de um maior

isolamento no plano internacional, atrapalhando os objetivos do Brasil em se firmar

no exterior com uma dinâmica geopolítica própria. Pressionado pelos Estados

Unidos, o governo brasileiro rompeu unilateralmente o acordo militar com a

superpotência da América do Norte, datado de 1952.

A sociedade civil se encontrava, por um lado, fortemente reprimida e amarrada

no clima de medo e de repressão instaurado após o AI-5, reforçado por todo o

arcabouço institucional autoritário, que simplesmente eliminou da cena nacional os

movimentos grevistas, estudantis e as reivindicações por liberdades democráticas, a

partir do final de 1968; ou, por outro lado, uma sociedade civil que se sentia talvez

até “acomodada”, especialmente no tocante à alguns de seus segmentos que até

vinham desfrutando das benesses e conquistas materiais do milagre econômico e, de

uma certa forma, recebendo de bom grado os ventos ufanistas dos inícios da década

de 1970. Eis um perfil da sociedade civil brasileira daqueles anos 1970.

Os “anos de chumbo” basicamente coincidiram com os do “milagre

econômico” e aqui repito o termo: “anos dourados de chumbo” o período

compreendido, a grosso modo, entre dezembro de 1968 a março de 1974, abrangendo

desde a imposição do AI-5 até o final do governo Médici (porque repressão e tortura

ocorreram também nos períodos de Castelo Branco e de Geisel). De qualquer forma a

sociedade civil estava legada a um plano mais secundário, ora amordaçada pelo ciclo

de repressão e medo; ora depositária de um “onda” de prosperidade e ufanismo

potencializados.

Se voltarmos à 1976, o governo parecia ter o controle ideal sobre a distensão,

considerando-se a troca de comando no II Exército, e a promulgação da “Lei Falcão”

que engessaria qualquer probabilidade de expansão do debate político nas eleições

municipais de 1976, restringindo a campanha eleitoral á simples veiculação da foto e

um breve currículo do candidato. Naquelas eleições a Arena elegeu quase 30 mil

vereadores contra cerca de 5,8 mil do MDB. Mesmo tendo relativa força em todas as

279

capitais, somente em Porto Alegre, Manaus e Natal, a oposição tinha mais vereadores

do que o partido do governo.208

Com esta força e anteparo institucional, o governo, a seu modo tentou retomar

o seu diálogo com a oposição para encaminhar a institucionalização do regime,

prevendo até a revogação do AI-5. Para isso foi escolhido o senador Petrônio Portella

(Arena-PI), que tinha respaldo e certo prestígio para circular entre governo e

oposição, fazendo ligação entre ambos. O problema é que nem sempre as questões e

discussões são encaminhadas rapidamente no Congresso. Impaciente com o

Legislativo, o governo, não obtendo o diálogo que desejava, simplesmente resolver

dar as suas cartadas autoritárias. Geisel, fazendo uso do AI-5, fechou o Congresso,

em 1º de abril de 1977, e propôs a Emenda Constitucional nº 7, centrada na reforma

do Judiciário. Por tabela, impôs também vários decretos-lei. Foram os “pacotes de

abril”.

Os “pacotes de abril” sem dúvida alguma constituem uma das piores heranças

do regime militar, legadas ao Brasil, que persistem até aos dias atuais. Refiro-me ao

aumento da representatividade das bancadas estaduais para a Câmara Federal

(beneficiando estados menos populosos onde a Arena era o partido dominante). Além

disso, foi criada a figura do “senador biônico” ( a eleição indireta para um terço do

Senado, indicados pelas assembleias estaduais de maioria governista), estabeleceu-se

eleições indiretas para governadores estaduais, ratificavam-se as modificações

estabelecidas para as campanhas eleitorais (já existentes na “Lei Falcão”) e

alteravam-se o quórum para a aprovação de emendas constitucionais na Câmara (de

dois terços para maioria simples). Se Geisel não utilizou um casuísmo imediatamente

após as eleições de 1974, agiria com rigor através da cartada do fechamento do

Congresso e dos “pacotes de abril” de 1977.

E o inconveniente da distorção de representatividade na Câmara Federal

persiste até hoje (com estados super-representados como Roraima, e sub-

representados como São Paulo). Se hoje, não há mais os senadores “biônicos”, o que

ficou foi a permanência de três senadores por estado (unidade da federação). Nos

208 Id., Ibid., p.256.

280

Estados Unidos são 50 estados (unidades da federação), e 100 senadores (dois

senadores por estado). No Brasil são 81 senadores (três por estado). Considerando-se

que os Estados Unidos são mais populosos que o Brasil, caberia ao nosso país ter

dois, ao invés de três senadores, por estado? Não seria uma forma de se racionalizar

os gastos com as despesas do Senado?

Mas, voltando-se ao governo Geisel, o grande objetivo do “pacote” era

favorecer o partido governista nas eleições de 1978. Frase memorável do presidente

Ernesto Geisel, naqueles tempos:

“Nossa democracia não é igual às outras (...). Democracia é relativa.”209

O que o governo não contava é que atores sociais voltariam à cena, melhor, nas

ruas. Em 1º de maio de 1977, o prefeito de São Paulo – Olavo Setubal, indicado pelo

regime - exaltava o clima de “paz, música e alegria” nas comemorações oficiais do

Dia do Trabalho, sem as badernas e agitações de um passado não tão distante assim.

Mas, cinco dias depois, sete mil estudantes se concentravam na Faculdade de Direito

do Largo São Francisco pedindo por “liberdades democráticas” e pela libertação de

colegas presos por panfletagem nas proximidades das fábricas da região do ABC.

Desde 1968, não havia numa grande cidade brasileira protestos públicos do

movimento estudantil.

Na verdade, o movimento estudantil, com muito sacrifício, procurou

permanecer na cena política. Ainda que a repressão fosse feroz, os estudantes

procuram manter passeatas e até greves contra as mudanças na política universitária,

atuando principalmente de dentro das universidades ou em diretórios acadêmicos e

eventos afins. Em 1973, a morte do estudante Alexandre Vanucchi Leme levou a

uma mobilização, um ato público, que não se via a cinco anos contra o regime. O

revigoramento do movimento estudantil, especificamente no final da década de 1970,

pode ter sido acarretado pela mudança do foco da luta. Ao invés de apostar na

proposta e revolução socialistas, até com a luta armada contando com contingentes

209 Id., Ibid., p.257.

281

pequenos, a ressurgência dos estudantes para fora das universidades, foi pautada até

numa autocrítica com relação às escolhas do passado e se voltou às ações políticas

que englobassem contingentes amplos destes com os trabalhadores, operários, igreja

e cidadãos em geral.210

Mesmo com a imprensa liberal, de cunho mais moderada, fazendo certo coro

ao discurso governamental da não radicalização das manifestações e em manter um

ambiente político “tranquilo” para uma “distensão” que seguia lentíssima num futuro

incerto, os estudantes não pararam. Isso porque a lembrança de 1968 ainda estava

viva quando a onda de manifestações levou ao fechamento do regime através do AI-

5.

Depois do ocorrido em maio, quando os estudantes barrados pela tropa de

choque da PM paulista sentaram-se no Viaduto do Chá e receberam apoio dos

populares e dos prédios (com chuva de papéis picados) vieram as manifestações do

“Dia Nacional de Luta pela Anistia”, em junho. A greve da UnB (Universidade de

Brasília) se estendeu por dois meses. Vários estudantes que tentavam realizar um

encontro nacional foram presos em Belo Horizonte. No III Dia Nacional de Luta os

estudantes promoveram vária minipasseatas que a PM paulista inutilmente tentou

impedir. Outros protestos estudantis ocorreram em Salvador e em Porto Alegre.

Logo, o movimento era uma realidade nas principais cidades do país.

O episódio mais emblemático ocorreria em 22 de setembro. O III Encontro

Nacional dos Estudantes foi anunciado para a Cidade Universitária. Mas era para

despistar a polícia. O encontro ocorreria, na verdade, na PUC (Pontifícia

Universidade Católica). A PUC de São Paulo então acabaria sendo palco da invasão

policial quando esta descobriu o verdadeiro local da reunião. Mil estudantes foram

detidos, noventa encaminhados ao Dops e quatro ficaram gravemente feridos. Cerca

de trinta salas de aula ou administrativas foram destruídas pela ação da polícia

comandada pelo Secretário da Segurança Pública, coronel Erasmo Dias.

Se as manifestações estudantis não transformaram a distensão em um autêntico

processo de redemocratização, elas tiveram o mérito de ter tido a coragem de colocar

210 Id., Ibid., p.258.

282

os “pés” nas ruas e trazer a discussão da chamada “questão democrática” para além

dos diálogos e das conversas frias e retóricas dos gabinetes e palácios. E a causa

democrática seria um importante elo de ligação entre os estudantes com os outros

setores sociais.

As ações da sociedade civil não foram em vão. Em setembro de 1978, o

governo mais isolado e sofrendo críticas mais intensas de diferentes atores sociais e

políticos, encaminhava a Emenda constitucional nº11 que revogava o AI-5, acabava

com a prerrogativa do Executivo em cassar mandatos de deputados, encerrava a

censura prévia, extinguia as penas de morte e a prisão perpétua, e restabelecia o

habeas corpus.

Na reta final do mandato de Geisel, a distensão ou abertura que estava mais

para uma retórica devido ao ritmo de lentidão das mudanças no regime até 1977,

sofre uma guinada. O que antes estava mais para uma institucionalização da

“Revolução de 1964”, torna-se, a partir de 1978, em uma efetiva agenda de transição

democrática. Um “divisor de águas” para tal guinada foi, sem dúvida, a demissão do

ministro Sylvio Frota, enfraquecendo os ultra-reacionários da linha dura, mas as

vozes das ruas – com manifestações, passeatas, greves e atos – também teriam a sua

influência na modificação da distensão em direção à um processo mais vigoroso de

abertura e transição. Se não levaram à queda do regime e à redemocratização,

aceleraram com o processo de abertura e transição. Era a sociedade civil de volta à

cena.

Em fevereiro de 1977, a Igreja Católica, antes mesmo dos estudantes irem às

ruas, apresentava o manifesto lançado pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos

do Brasil), fazendo críticas ao regime, que entre outras coisas, afirmava que os

direitos naturais do ser humano não podem ser outorgados pelo Estado, eles são

inerentes à pessoa humana. Um regime de exceção não pode utilizar-se da força e da

violência contra tais direitos naturais. A ABI (Associação Brasileira de Imprensa)

também divulgaria um manifesto em defesa das liberdades democráticas. Apesar de

todos os investimentos do regime na pós-graduação e no ensino universitário, a

SBPC (Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência) também se manifestava a

favor das liberdades democráticas. Mesmo proibida pelo governo, a Reunião Anual

da SBPC ocorreria na PUC-SP. Por fim, a “Carta aos brasileiros”, lida em ato

283

público em frente à faculdade de Direito da USP, em agosto de 1977. Numa

passagem o texto criticava o binômio “segurança e desenvolvimento”, propalado

pelo regime, traduzindo-o em “terror contra o cidadão, e desenvolvimento, miséria e

ruína.”211

Ao fim do ato, houve uma passeata de cerca de 10 mil pessoas pelo centro

da capital paulista. A oposição de caráter mais liberal ganhava terreno.

Com a OAB, SBPC e a CNBB levantando voz contra o regime. Grupos que

representavam a intelectualidade e setores da classe média, o governo procurou

retomar o diálogo, agora com a sociedade civil. A “Carta aos brasileiros” foi

cooptada pelo MDB que, entre outras coisas, defendia uma Assembléia Nacional

Constituinte. Diga-se que estas três palavras voltavam ao cenário das discussões, o

que não acontecia desde os tempos de Jango e de Brizola (quando este foi deputado

federal na década de 1960).

No entanto, a proposta de Assembléia Nacional Constituinte não foi avante. O

MDB esbarrava na divisão entre os “moderados” (não dispostos a se vincular às ruas)

e os “autênticos”. O entendimento entre Ulysses Guimarães e Petrônio Portella, em

junho de 1978, selaria a campanha pela Constituinte às portas fechadas. Na verdade,

o Brasil teria que esperar mais nove anos – até 1987 – para ter uma Assembléia

Nacional Constituinte em funcionamento, cuja nova Constituição seria promulgada

em 5 de outubro de 1988, pelo mesmo Ulysses Guimarães, então presidente da

Câmara Federal. O problema também foi que o MDB ainda não contava com a plena

confiança da sociedade civil para ser o fiador da luta contra o regime.

O empresariado também se manifestava com críticas ao excessivo estatismo.

Desejavam o liberalismo econômico sem as “asfixiantes” amarras estatizantes do

governo. Eles assim juntaram a defesa do liberalismo econômico com a democracia

política. As liberdades democráticas eram fundamentais para a livre iniciativa e o

desenvolvimento econômico. Certamente, o fim dos anos de “milagre” descontentava

uma grande maioria (mas não todo) o empresariado que também buscava mais

espaços de interferência nas esferas governamentais. O governo estava mais isolado,

agora pelos setores produtivos e econômicos.

211 Id., Ibid., p.264.

284

O ano de 1978 seria marcado, sobretudo, pela sucessão presidencial. Foi feito

todo um esforço publicitário em se transformar a imagem do candidato general João

Figueiredo. O antes chefe do SNI, de óculos escuros e semblante fechado, dava lugar

a um senhor simpático: “o presidente João” ou o “amigo João”. Apesar da não

existência de eleições diretas para presidente, Figueiredo, em sua nova imagem mais

agradável e simpática ao povo, viajou país inteiro, com comícios e tudo mais. A

oposição emedebista escolheu como candidato, o general Euler Bentes, um militar

nacionalista.

A vitória de Figueiredo no Colégio Eleitoral não foi acachapante (foram 355 a

266). O MDB, apesar da Lei Falcão, poderia se animar com o bom desempenho

eleitoral nas eleições gerais de 1978. Os novos ares das ruas, fábricas e as

universidades deram mais ânimo às campanhas dos candidatos da oposição.

Mas, qual foi a origem desses “novos ares” que marcaram a ressurgência dos

movimentos sociais? Apontar que foi apenas a política da “distensão” de Geisel

poderia ser um equívoco. O contexto da distensão pode realmente ter favorecido um

ganho em visibilidade e espaço para estes movimentos, atrelados a outros que

vinham ocorrendo, como o estudantil. Contudo, lembremo-nos de que nem sempre a

“distensão” foi um movimento vigoroso e uniforme. Ela só ganhou maior

intensidade, na verdade, em 1977. A raiz do processo que possibilitou a presença de

novos movimentos sociais se dá antes da “distensão” do governo Geisel, como já

apontado. Na periferia da grande metrópole paulistana, em bairros distantes, carentes

de transportes, unidades de saúde, escolas, habitação e segurança, haviam muitos

trabalhadores que há pouco tempo haviam migrado, vindos de zonas rurais de várias

regiões do país, em busca de trabalho e de uma vida melhor. Comparada à miséria no

campo, a vida era um pouco menos dramática na periferia da cidade grande. Tinham-

se ali as empregadas domésticas, trabalhadores da construção civil e o operariado. A

precariedade de serviços públicos e a falta de opções de lazer contribuíam para a

explosão da violência, mas por outro lado, a falta de assistência por parte do Poder

Público, também forçava a criação de novos laços de solidariedade. As cidades, cada

vez maiores, contavam com um centro tradicional apresentando espaços vazios à

espera de valorização; circundados por bairros de classe média, com enclaves ricos

de alto padrão e ruas arborizadas; e finalmente, na borda mais exterior do centro

285

urbano, os bairros operários e as partes de ocupação caótica e desordenada, que vão

se constituir nas favelas, por exemplo.

É nesta borda mais afastada que vão aparecer os embriões dos movimentos

sociais. A tradição associativa dos bairros populares não era algo inédito, já vinha

desde as décadas de 1940 e 1950, sendo cooptados por políticos populistas

conservadores, como Jânio Quadros, em relação ao bairro paulistano da Vila Maria.

Sem a figura política, devido à situação discricionária do regime militar, é a Igreja

Católica que irá capitalizar, através das comunidades eclesiais de base, este novo

fôlego dos movimentos sociais. A tradição associativa popular, somada à

precariedade da vida cotidiana, fez surgir um certo movimento de politização, que se

voltava à resolução dos pequenos problemas do cotidiano, e não às grandes causas

ideológicas que perpetraram a luta armada. Aliás, muitos dos militantes das

esquerdas armadas, face ao fracasso do embate direto contra o regime, foram viver

nestes bairros populares e afastados. Era uma forma de se cultivar a consciência de

classe.

A concentração de grandes indústrias multinacionais, ou transnacionais, na

região do ABC paulista, se consolidou na década de 1970. Muitos dos operários que

trabalhavam nessas fábricas viviam na periferia da capital paulista. O Estado

autoritário, preocupado com a luta armada, não se voltou com relação aos

movimentos populares que iam se articulando. Na verdade, o regime contava com a

Igreja para manter um certo controle sobre isso. Se o regime militar chegou a traçar

grandes metas e projetos estratégicos, como na ocupação dos “espaços vazios” (como

a Amazônia); na construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica e

outras estradas interligando regiões do país; na criação e reorganização de toda uma

estrutura de órgãos de planejamento (Sudam, Sudene,etc.); na construção de

hidrelétricas; etc., ... a “Revolução de 64” não traçou nenhuma política para as

periferias urbanas em expansão. Pode-se argumentar que isso seria tarefa dos

governos locais, mas o que pesa sobre o governo central da época é que este nunca

cedeu condições adequadas para um papel mais efetivo dos governos locais, como as

prefeituras. Até porque o Brasil era uma federação só no nome. O nome oficial do

Brasil, a partir de 1967, passou a ser República Federativa do Brasil, no entanto, o

governo central aspirou para si o “grosso” do montante das verbas e das arrecadações

286

tributárias. Para agravar a situação no aspecto federativo, a esfera estadual estava

amarrada pelas nomeações dos governadores estaduais feitas pela União e as

prefeituras das capitais estaduais, quase que todas as maiores cidades do país,

também eram administradas por pessoas indicadas, não eleitas através do voto

popular.

Então a população das periferias, não só da capital paulista, mas de várias

cidades brasileiras buscaram a sua própria alternativa de lutar pela melhoria do custo

de vida, por melhores salários e condições sobrevivência. Daí nasceria o MCV

(Movimento do Custo de Vida),em 1975, transformado em 1979 no Movimento de

Luta contra a Carestia, com a ascensão de integrantes do PC do B na liderança do

movimento.

A semente do movimento popular e social brotaria de vez com a eclosão da

greve operária em São Bernardo do Campo, começando por 2 mil operários da Saab-

Scania e alastrando-se por outras montadoras. Não houve piquetes. Os operários

entravam, batiam o cartão e... não começaram a trabalhar. Foi um movimento tão

espontâneo dos operários que o sindicato não estava à frente da articulação da greve,

tal articulação se deu entre os operários.

Desnorteado, o governo não podia intervir nos sindicatos. Sem piquetes e

planfetagem, a polícia não poderia agir, pois poderia destruir o patrimônio dos

patrões. Era uma greve sem agitadores “comunistas” e agentes sindicais

“subversivos”,212

deixando o regime e até a própria sociedade em perplexidade.

Depois das greves de 1968, em Osasco (SP) e em Contagem (MG), o

movimento operário voltava á cena. Alimentados pela crescente politização dos

movimentos sociais, mais o novo contexto de estudantes, intelectuais, setores liberais

da sociedade e boa parte da classe média estarem cada vez mais insatisfeitos com o

regime. Os operários eram um importante “imprevisto” que a política “distensional”

de Geisel não contava.

212 Id., Ibid., p.276.

287

Os metalúrgicos de São Bernardo, paralelamente ao movimento estudantil de

1977, lançaram uma campanha de reposição salarial de 34%, baseada nas perdas

decorrentes da manipulação das taxas de inflação de 1973. O chamado novo

sindicalismo, entrou em rota de colisão com a estrutura oficial verticalizada do

sindicalismo brasileiro, herança ainda do Estado Novo varguista. Buscava-se um

sindicalismo combativo e independente, sem as amarras do Ministério do Trabalho e

com liberdade de organização.

O símbolo do novo sindicalismo - foi o migrante nordestino, que se tornou

torneiro mecânico e iniciou a sua militância sindical por influência do irmão, frei

Chico - era Luís Inácio da Silva, o Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos

de São Bernardo, desde 1975. Ao contrário do seu irmão, filiado ao PCB, Lula nunca

militou no “Partidão”. De postura mais pragmática, influenciado pelo catolicismo

progressista, a esquerda representada pelo “novo sindicalismo” se diferiu

completamente do PCB. Por fim, o operariado se auto-organizaria em um partido

novo, em 1980, o PT (Partido dos Trabalhadores), dentro do retorno ao

pluripartidarismo, já nos anos do governo Figueiredo.

Luís Inácio da Silva – o Lula – liderando a 1º greve de operários do ABC paulista, em 1978

Fonte:

http://www.dsc.ufcg.edu.br/~pet/jornal/dezembro2009/images/materias/o_mundo/lula_greve.jpg

288

3.5- Governo Figueiredo (1979-1985). O regime militar

caminha para o seu final.

O general João Baptista de Oliveira Figueiredo tomou posse como

presidente da República em 15 de março de 1979. Ele havia sido chefe do Gabinete

Militar de Médici, e do SNI no governo Geisel. Imposto pelo seu antecessor, o

general Figueiredo teve a incumbência de acelerar a flexibilização política e

promover reformas, mantendo, ao mesmo tempo, a unidade nas Forças Armadas. No

seu discurso de posse citou a palavra democracia apenas duas vezes. Mas tal palavra

estava na principal passagem de seu discurso:

“É meu propósito inabalável – dentro daqueles princípios (os princípios

democráticos de 1964 – grifo meu) – fazer de país uma democracia.”213

João Baptista de Oliveira Figueiredo, o 5º e último dos generais-presidentes do regime militar

iniciado em 1964. Governou o Brasil de 15/03/1979 a 15/03/1985. Seu sucessor, eleito no Colégio

Eleitoral de 15/01/1985, foi o civil Tancredo Neves. Por conta da enfermidade que pouco depois

acarretaria a morte de Tancredo, o empossado na Presidência da república foi o vice da chapa

213 BONFIM, João Bosco Bezerra. In: VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 264.

289

vitoriosa do PMDB/ Frente Liberal: o também civil, José Sarney. O presidente Figueiredo se recusou a

transmitir a faixa presidencial para Sarney naquele 15/03/1985, mas de qualquer forma, se

considerarmos como critério o retorno de um civil a ocupar o cargo máximo da Nação após 21 anos,

podemos pensar que o regime militar chegava ao seu final.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Figueiredo

Segue-se uma pertinente descrição sobre a figura do general-presidente

Figueiredo e do seu governo em BARROS (1998)214

. Com as incubências

mencionadas acima, Figueiredo bem que tentou manter a imagem que os

publicitários criaram em torno dele, nos primeiros meses de seu governo. Uma de

suas mais famosas frases sobre a abertura: “Se alguém for contra, eu prendo e

arrebento.”215

Mas a duríssima realidade da situação econômica bateu à porta. Seis

anos depois, em 1985, ele deixaria o governo de forma melancólica. As finanças

nacionais estavam falidas, a maior dívida do mundo, o maior índice de inflação até

então na história brasileira, dois anos que registraram crescimento econômico

negativo e o fim, também melancólico, do próprio regime militar. Em poucos meses,

a imagem do general-presidente já estava desgastada, problemas de saúde em seu

mandato, o equilíbrio psicológico abalado, perda de popularidade e de colaboradores.

Sairia do poder pela “porta dos fundos”, de forma obscura, muito distante daquela

imagem do “presidente João” de meados de 1979.

Se a retirada de João Goulart, deposto pelo golpe de 1964, poderia ser

classificada de um “fim melancólico” e até “deprimente” para o governo Jango,

principalmente por conta da quase total ausência de resistência ao golpe, por parte

dos militares fiéis a Goulart ou dos setores da esquerda que vinham mais mobilizados

pelas reformas, o final do governo de Figueiredo e do próprio regime militar não foi

muito diferente em termos de “deprimência”. Claro que o general Figueiredo não foi

deposto como ocorrera com Jango. Mas se a “saída dos fundos” para Goulart foi o

214

BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 95.

215 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 268.

290

Uruguai. Para João Figueiredo, foi pelos “fundos” do ambiente palaciano rumo ao

obscurantismo.

O problema é que Jango não nos deixou tantos legados e heranças porque

simplesmente “não teve tempo” para viabilizar, costurar sólidos compromissos

políticos e implantar efetivamente o seu programa reformista. Já os militares, apesar

de saírem da “luz dos holofotes” em baixa, com os tempos do “milagre econômico”

cada vez mais para trás, não foram para o exílio, somente voltaram aos quartéis e não

responderiam pelos seus atos repressivos ou por terem patrocinado grupos que

atuaram na repressão. Mais ainda, devido ao grande período de tempo -21 anos - os

legados e as heranças dos militares estão à nossa volta até hoje – na segurança

pública, na educação básica, no ensino superior, nos aspectos monetários e

financeiros, desigualdades sociais, conflitos de terra, redes de transportes, de

comunicações, urbana, elétrica, etc.

A equipe ministerial conservaria muitos dos nomes das quatro gestões

anteriores como Mário Henrique Simonsen como ministro do Planejamento; Mário

Andreazza, no do Interior, que mantinha ligações com os grandes empreiteiros, para

financiar grandes obras públicas; Delfim Neto, (estranhamente) na pasta da

Agricultura; e Karlos Rischbieter, na Fazenda. E logo de início surgiriam

divergências na equipe ministerial em que Simonsen defendia o combate à inflação

com restrições aos empréstimos externos, enquanto Delfim e Andreazza primavam

pelo desenvolvimento sem preocupações de se conter a inflação.

O ano de 1979 seria marcado por diversas greves, a maior delas no ABC,

liderada por Luís Inácio "Lula" da Silva, enfrentando as violentas ações da polícia

paulista orientadas pelo governador Paulo Maluf, aliado da "linha-dura" militar.

A greve dos metalúrgicos, iniciada em São Bernardo do Campo, espalhou-se

pelo interior paulista – Campinas, Jundiaí e São José dos Campos. Apenas oito dias

após a posse do novo presidente da República, em 23 de março, o ministro do

Trabalho – Murilo Macedo – decretou intervenção no Sindicato dos Metalúrgicos do

ABC, destituindo suas lideranças. Mas a greve prosseguiu, por conta do apoio dado

pela Igreja Católica e de pelo menos parte da sociedade civil paulista. Com

realização de um grande ato público em São Bernardo, no dia 1º de maio, e de uma

missa campal também. Para completar o Dia do Trabalho, os oradores não perderam

291

a oportunidade de festejar a morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury (por

afogamento em Ilhabela, litoral de São Paulo). Ao que se parece, a morte do

delegado Fleury foi para evitar futuros aborrecimentos à algumas das figuras

importantes do Estado autoritário e do aparato repressivo. Fleury seria um “arquivo

ambulante” que, obviamente, sabia demais e foi eliminado. Quanto à greve, ela

chegaria ao fim em 13 de maio. Os ganhos econômicos dos metalúrgicos podem não

ter sido os almejados, porém a greve consolidou de vez a liderança de Luís Inácio

Lula da Silva.

Somente nos primeiros sete meses de governo seriam 203 greves. Três vezes

mais do que em todo o governo Goulart (66 greves).216

O governo recorreu até ao

arcabouço jurídico que vinha do Estado Novo para tentar por um freio a esta onda

grevista, intervindo em diversos sindicatos. Mas as reivindicações prevaleceram.

Em 30 de outubro, começou a greve dos metalúrgicos de São Paulo, o maior

sindicato do Brasil, cujo líder, desde 1965, era Joaquim dos Santos Andrade, o

“Joaquinzão” – símbolo do sindicalismo conservador e moderado. Joaquim só sairia

da entidade em 1987.

Com o AI-5 revogado. O tema da anistia ganha a atenção. Sinais da abertura e

da liberalização no horizonte. Esse clima era reforçado pela morte do delegado

Fleury. Em Salvador, realizou-se no mesmo mês de maio o Congresso da UNE, em

Salvador. E não houve repressão, pela primeira vez desde 1964. A legislação

repressiva voltada contra o movimento estudantil já havia sido revogada.

O tema da anistia era controverso, mas teria que ser enfrentado pelo governo,

para viabilizar a transição democrática. O governo enviou um projeto que excluía

cerca de duas centenas de brasileiros condenados por atos terroristas. A emenda do

deputado arenista, Djalma Marinho, tornando a anistia ampla, geral e irrestrita foi

derrotada por apenas cinco votos no Congresso Nacional (206 a 201), em 22 de

agosto de 1979. Seis dias depois, o presidente Figueiredo sancionaria a Lei nº 6.683,

que concedia a 48º anistia da nossa história.

O desafio colocado depois foi a reintegração dos atingidos pelos atos de

exceção. 1261 militares; 160 professores (22, só da Universidade de São Paulo).

216 Id., Ibid., p.272.

292

Sobre mortos e desaparecidos o problema existe até aos dias atuais. A anistia acabou

não sendo ampla porque não beneficiava guerrilheiros que se envolveram nas lutas

armadas e proibia qualquer investigação dos órgãos de segurança implicados em

violências, torturas e nos desaparecimentos.

Um total de 53 presos foram libertos das prisões em seis estados; São Paulo,

Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Norte, Bahia e Pernambuco.217

Milhares de

exilados começaram a regressar ao país. Eram aguardados os retornos de Leonel

Brizola, que do exterior já articulava a formação de um novo partido. Miguel Arraes

e Luís Carlos Prestes também retornaram ao Brasil. Com as chegadas do ex-exilados,

logo viriam a se aflorar as divergências políticas entre eles.

Numa complicada trama política, com Golbery à frente, visando reabilitar a

imagem dos militares, foi reimplantado o pluripartidarismo em novembro de 1979.

No dia 30, após três meses da Lei da Anistia, a reforma política era aprovada pela Lei

nº 6.767, sancionada pelo presidente em 20 de dezembro. Abria-se o caminho para a

reorganização partidária e o fim do bipartidarismo, imposto em 1965.

O objetivo primordial do governo com o retorno ao pluripartidarismo era o de

manter intacto o bloco governista/arenista e dividir o MDB que, ao ser fracionado,

poderia originar uma oposição bastante moderada e confiável. Também era

importante isolar as oposições mais fortes em um ou dois partidos e se evitar a

criação de partidos nanicos.

Da Arena surge o PDS (Partido Democrático Social). Oficializado a 31 de

janeiro de 1980, era o herdeiro da antiga Arena e contava com alguns quadros do

MDB. O governador paulista, Paulo Maluf, conseguiu a adesão de vários deputados

oposicionistas no processo de reorganização do partido governista.

A maior parte do MDB se reagrupa no PMDB (Partido do Movimento

Democrático Brasileiro). Ulysses Guimarães tentou manter o partido unido evitando

a sua fragmentação. Naquele momento, as intenções de se criar um partido seguindo

o viés da social-democracia européia não deram certo. O PMDB ainda continuaria

217 Id., Ibid., p.271.

293

unido e com força suficiente para se colocar como o principal partido político após o

fim do regime militar. Somente, em 1988, por conta de divergências com o então

governador paulista, Orestes Quércia, muitos dos quadros que estavam no PMDB –

como Franco Montoro, Mário Covas, José Serra e Fernando Henrique Cardoso –

fundariam o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira).

São criados também o PDT (Partido Democrático Trabalhista), fundado por

Brizola, com um perfil semelhante ao PTB dos anos 1950 na velha mística populista.

O novo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) ficaria com a deputada direitista Ivete

Vargas, sobrinha de Getúlio.

As lideranças conservadoras do anterior MDB, como Tancredo Neves, os

dissidentes da Arena e veteranos golpistas como Magalhães Pinto criaram o PP

(Partido Popular) que, por ser mais moderado, poderia ser um ponto importante para

o governo dentro da distensão. Primeiro partido saído do MDB, o PP (Partido

Popular), contava com a liderança de duas figuras políticas antigas de Minas Gerais -

Tancredo Neves e Magalhães Pinto - o primeiro foi do PSD, e o segundo da UDN,

tendo se enfrentado nas eleições para o governo mineiro, em 1960, com vitória do

udenista. O PP era forte não só em Minas, como também no Rio de Janeiro, por

conta da adesão do governador Chagas Freitas. Contava ainda com quadros tanto da

Arena, como do MDB.

O PT (Partido dos Trabalhadores) seria o único partido originado da base

popular, tendo Lula como seu presidente. Resultado de uma união entre os

sindicalistas da nova geração, militantes das comunidades eclesiais de base,

remanescentes da luta armada, intelectuais, estudantes e agrupamentos trotskistas. O

PT defendia um programa socialista e uma organização interna que estimulava a

participação dos seus afiliados nos órgãos decisórios.

O PCB (Partido Comunista Brasileiro) e o PC do B (Partido Comunista do

Brasil), por não terem condições de se reorganizarem como partidos efetivamente

legalizados, por conta da legislação existente, optaram em permanecer dentro do

PMDB.

A situação econômica do país só se agravava. Em agosto de 1979, Mário

Henrique Simonsen, ministro do Planejamento e homem forte da área econômica

294

pediu demissão. Não obteve êxito em frear os gastos públicos, reequilibrar as contas

governamentais e combater a inflação desaquecendo a economia. Para o seu lugar,

foi nomeado Delfim Netto, que optou por um discurso altamente otimista e de

desenvolvimentismo, vislumbrando um novo “milagre econômico”. Nomeando

pessoal de sua confiança, Delfim foi assumindo a primazia da área econômica,

isolando o ministro da Fazenda, Karlos Rischbieter. Mas 1979 não era 1967.

Os preços não paravam de subir e crescia a insatisfação popular. Apesar de

tudo, o PIB brasileiro cresceu 6,8% em 1979. No entanto, a taxa de inflação atingiu

77%.

Neste novo cenário político, o governo modificaria a legislação eleitoral

visando beneficiar o PDS nas eleições de 1982. E principalmente de olho no Colégio

Eleitoral de 1985, para a sucessão de Figueiredo.

O otimismo com a abertura se defrontava com o temor da contenção das

reivindicações democráticas. O governo sempre recorria à Lei de Segurança

Nacional. Com muitos sindicatos sob intervenção, muitos dos líderes sindicais se

reuniam nas igrejas. O presidente Figueiredo chegou a acusar o cardeal dom Paulo

Evaristo Arns de incitar os grevistas, aumentando de novo a tensão Estado x Igreja.

Para incrementar este quadro de apreensão sobre os rumos e o futuro da

abertura, vários atentados, vinculados à “linha dura”, foram realizados contra

advogados que se destacaram na defesa de presos políticos e que exerciam mandatos

parlamentares. Bancas de jornais, que vendiam publicações independentes, foram

atacadas. Em 27 de agosto de 1980, ocorreu o assassinato de Lyda Monteiro, na sede

da OAB, no Rio de Janeiro. Lyda era secretária do então presidente da entidade

Seabra Fagundes e morreu ao abrir uma correspondência que continha uma bomba

sendo que a vítima nem era militante, chocando o país.

O ano de 1980 se encerra neste paradigma: A abertura versus as ações do

governo recorrendo à legislação autoritária, agravada pelas ações terroristas da “linha

dura”. O restabelecimento das eleições diretas para governadores estaduais e o fim da

eleição indireta para um terço do Senado, cristalizando um avanço democrático

promissor versus os impasses gerado pelos movimentos grevistas e os sérios

problemas econômicos.

295

O PIB cresceu 9,2 % em 1980, número assombroso até para os dias atuais (em

1963, ainda no período de Jango, o PIB brasileiro crescera apenas 0,6%). Mas a

inflação chegou aos 110,2%, em 1980 (uma cifra inflacionária bem acima da maior

alta do governo Jango - 79,92% em 1963).218

E lembremo-nos que a crise econômica

e a alta inflacionária estiveram dentre os vários motivos que levaram à queda de João

Goulart. Isto poderia ser tema de uma reflexão.

Na esteira pela aceleração da abertura/descompressão do regime almejada pela

sociedade e a contrapressão de setores reacionários identificados com os “porões” do

regime. Acontece, em 30 de abril de 1981, o atentado ao pavilhão do Riocentro.

Dois agentes do Doi-Codi carioca pretendiam um atentado no ginásio do

Riocentro, durante um show de comemoração ao 1º de maio, e culpar grupos

guerrilheiros. No entanto a bomba explodiu em um carro estacionado matando um

dos agentes, - o sargento Guilherme - e ferindo outro, o capitão Wílson. A intenção

para esse atentado, planejado por militares de extrema direita, era a explosão de

várias bombas durante o show, levando os espectadores a entrarem em pânico. As

investigações não produziram resultados e punições efetivas. Inocentado, o capitão

Wilson seria promovido. 219

Pressionado e até acuado, Figueiredo contemporizou com as Forças Armadas e

com o resultado do IPM (Inquérito Policial Militar). A corporação não queria que a

discussão viesse a público e Figueiredo se deixou levar pela pressão dos quartéis.

Conforme o IPM, esquerdistas teriam colocado as bombas no veículo Puma, dirigido

pelo capitão Wilson. Os dois militares - o sargento e o capitão foram vítimas de uma

armadilha. Difícil de acreditar, mas o governo “abafou” o caso. Conforme BARROS

(1998), dez anos depois o general Figueiredo comentaria: “dizem que foi o SNI, mas

o Riocentro foi coisa do CIE. Foi coisa de sargento, tenentinho, no máximo,

capitão.”220

Entretanto, em maio de 1981, Figueiredo, conforme VILLA (2014),221

218

Fonte; FGV/IBGE in: NAPOLITANO, Marcos. Op.cit. p.172

219 GRAEL, Dickson M. In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit.p.283.

220 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 102.

296

até teria chegado a chorar, demonstrando forte descontrole emocional, ao saber do

apoio que estava recebendo de parlamentares de todos os partidos, em diversos

pronunciamentos no Senado, para combater o terrorismo. Assim, Figueiredo teria

recebido o relato do líder do PDS no Senado e caiu em lágrimas. Mas não fez nada

efetivamente. Manteve-se omisso diante das vontades dos quartéis e aos setores

“duros” do regime. Desgastado com seus opositores militares, Golbery se retira de

um governo verdadeiramente rachado, em agosto do mesmo ano. Para o grupo de

Geisel, aceitar as conclusões daquele inquérito era um retrocesso no processo de

abertura. Para Figueiredo, a demissão de Golbery deixaria o seu governo num rumo

ainda mais confuso pela perda do principal operador da abertura. O que era ruim

ficou pior, porque com a morte do ministro da Justiça - Petrônio Portella - ocorrida

no início de 1980, o governo já perdera a sua principal figura de articulação política e

uma liderança civil de muito respaldo desde os tempos de Geisel. Portella era até

cogitado para a sucessão de Figueiredo.

Crise política e crise econômica caminhavam lado a lado, em 1981. Delfim

Netto ainda tentava exponencializar um certo otimismo , prevendo para 1982 uma

obra federal em cada município. Mas não havia mais ufanismo, propaganda política

ou algo do gênero que disfarçasse a situação econômica. O desemprego e a inflação

disparavam. O salário dos trabalhadores vinha cada vez mais defasado e os sindicatos

procuravam se organizar nacionalmente, mas havia sérias divergências entre o novo

sindicalismo, as lideranças comunistas e os antigos dirigentes sindicais.

Naquele mesmo 1981, Figueiredo sofreria um enfarte, em 18 de setembro.

Mas, ao contrário de 1969, desta vez o vice-presidente, o civil Aureliano Chaves

assume a Presidência. Fato histórico já ocorrera antes. Em 6 de novembro de 1979,

em viagem oficial à Venezuela, Aureliano já assumira interinamente a Presidência, o

que não ocorria desde 1964. Oriundo de Minas Gerais, assim como Tancredo e

Magalhães Pinto, Aureliano aproveitou o seu período como presidente interino para

viajar pelo país, articular conversações políticas com oposicionistas e estabelecer um

221 VILLA, Marco Antônio. Op.cit. p. 284.

297

ritmo administrativo mais intenso, ao contrário do que vinha fazendo Figueiredo

antes.

Preocupado com a influência da crise econômica nas eleições a serem

realizadas em 1982, o governo encaminhou novas regras eleitorais. Entre elas, a

vinculação de voto. O eleitor deveria escolher – para vereador e prefeito (nas cidades

com pleitos municipais), e para deputado estadual, governador, deputado federal e

senador – candidatos do mesmo partido.

Os pequenos partidos ficaram seriamente prejudicados porque ainda não

estavam devidamente estruturados nos principais municípios de cada estado. A

intenção óbvia era favorecer o PDS. E, num plano secundário, o PMDB. Com

dificuldades de se organizar desta forma, o PP começou a negociar a sua

incorporação ao PMDB. Esta junção do PP ao PMDB teve um efeito negativo para o

governo que objetivava em dividir as oposições, mas acabou agregando-as com o

voto vinculado, nesse caso.

O ano de 1981 não poderia fechar pior na economia. O PIB decresceu 4,3%, o

que não ocorria há mais de meio século. A média mundial foi de crescimento

positivo de 2,2%. O setor industrial encolheu 5,5%. A inflação, de 95,2% superara a

marca de 1964 (92,1%).222

A dívida externa já ultrapassara os US$ 70 bilhões de

dólares. O crescimento negativo do PIB seria uma fonte de preocupações quanto ao

desempenho nas eleições de 1982. A classe média, em 1981, perdera 15% de seu

poder de compra.223

222 Id., Ibid., p.289.

223 Id., Ibid., p.290.

298

Charge da época do governo Figueiredo, relacionada à difícil situação das camadas menos

favorecidas da sociedade brasileira. Esta charge foi a vencedora do VI Salão Internacional de Humor

de Piracicaba. Data: 1979. Fonte: GAUDENCI JÚNIOR, Heitor. Piracicaba 30 anos de humor.

Fonte:

http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/galerias/imagem/0000001344/md.000003

1422.jpg

Em São Paulo, desenhava-se uma polarização entre o PDS e o PMDB. Este

último lançou uma chapa com Franco Montoro, para governador; e Orestes Quércia,

como vice. O PDS lançou Reinaldo de Barros, prefeito da capital paulista. Antes

mesmo do lançamento de suas candidaturas, Montoro e Barros participaram de um

debate, transmitido pela televisão, o que não ocorria em São Paulo há duas décadas.

Em Minas Gerais também haveria uma polarização, ao velho estilo “UDN-

PSD”. O PDS lançou Eliseu Resende, presidente do Departamento Nacional de

Estradas de Rodagem; o PMDB contaria com o senador Tancredo Neves.

No Rio de Janeiro, único estado governado pelo PMDB, Chagas Freitas lança

pelo partido o deputado federal, Miro Teixeira. O PDS entra com Moreira Franco,

ex-MDB. E também havia Leonel Brizola do PDT, aquele que o regime considerava

como seu principal adversário.

299

No Nordeste, assolado pela pior seca do século XX, o governo esperava por

vitórias mais fáceis até porque votar no PDS representaria a continuidade das frentes

de trabalho no combate à seca. Votar no PMDB representaria, ao contrário, o corte

das verbas federais para o combate ao flagelo da seca. Era o coronelismo falando

mais alto e milhões de sertanejos lutando por sua sobrevivência.224

A eleição era decisiva para o regime. Era uma etapa importantíssima da

abertura, gestada desde a “distensão” de Geisel. Mas era primordial assegurar a

maioria dos representantes no Colégio Eleitoral para a sucessão de Figueiredo.

Com vistas a isso, o governo conseguiu a aprovação do chamado “Emendão”

em junho de 1982 que, entre outras coisas, colocou como limite máximo às bancadas

estaduais, 55 representantes para a Câmara Federal; e ampliou de dois para quatro o

número de deputados dos territórios federais. De acordo com SALLUM Jr.(1996) (in:

VILLA, 2014, pag.293), o regime já encontrava dificuldades em conduzir uma

liberalização controlada. Havia contradições internas no interior da estrutura

governamental. Forças políticas novas tomavam impulso junto com as mudanças da

sociedade e o regime militar não tinha mais como gerenciar ou se reciclar face aos

novos cenários e atores que se apresentavam no horizonte político nacional.

Depois de 17 anos sem ocorrer eleições diretas para os governos estaduais, o

interesse popular pelo pleito de novembro de 1982 era obviamente imenso.

O PDS venceu nos nove estados do Nordeste. No Sudeste, venceu o PMDB

com Tancredo Neves, em Minas Gerais; e Franco Montoro, em São Paulo. No Rio de

Janeiro, Leonel Brizola venceu por uma pequena margem de 3%, aproveitando-se da

sua oratória e da imagem de perseguido pelo regime militar.

As oposições avançariam nas eleições de 1982 para deputados federais e

estaduais, senadores, governadores, prefeitos e vereadores. A vinculação de votos,

em candidatos de um mesmo partido, foi uma das manobras do governo para

beneficiar o PDS, mas o grande beneficiado seria o PMDB, que agora contava com

Tancredo Neves (que descontente com a vinculação de votos, incorporara o PP ao

224 Id., Ibid., p.290.

300

PMDB antes das eleições). O PMDB elegeu nove governadores em estados

fundamentais e, no Rio de Janeiro, sairia vitorioso o velho populismo com Leonel

Brizola.

Apesar disso, o PDS vencera as eleições para 12 governos estaduais e

conseguiu assegurar uma maioria no Congresso Nacional. A vinculação de votos

prejudicaria o PT que elegeu somente 8 deputados federais (seis deles por São

Paulo).

O ano de 1982 se encerraria com uma situação sombria na economia. Em

setembro, o México declarara a moratória de sua dívida externa. Especulava-se que o

Brasil iria pelo mesmo caminho. O PIB brasileiro em 1982 cresceu pouco, mas

cresceu: 0,8%. No entanto a inflação praticamente atingiu os três dígitos: 99,7%.

Com uma dívida externa em US$ 85,4 bilhões, o Brasil solicita formalmente um

programa de ajuda ao FMI (Fundo Monetário Internacional).

Em março de 1982, entrara em funcionamento o reator da Usina Nuclear de

Angra I, iniciando o processo de fissão nuclear. O governo paulista tinha projetos

para a construção de mais um complexo de usinas nucleares, no litoral sul do estado,

entre Peruíbe e Iguape, na região da Juréia. Porém, a situação de crise econômica

levaria ao cancelamento do início da construção de uma usina no litoral sul paulista.

No plano econômico, o ministro do Planejamento Delfim Neto, não podia mais

esconder a realidade, como nos tempos de Médici. Apesar de apresentar o III PND

(Plano Nacional de Desenvolvimento), Delfim começaria a admitir a possibilidade de

recessão com restrições aos investimentos. O Brasil estava na sua pior crise

econômica até então, numa somatória que abrangia a dívida externa, déficit na

balança de pagamentos, inflação e desemprego. O Brasil vivia, na verdade, uma

recessão no período de 1981-1983. Estimava-se o desemprego em torno de 7 a 8% da

PEA (População Economicamente Ativa) brasileira - cerca de 3,6 milhões de

desempregados. A classe média começava a perder empregos e sofria também com a

diminuição de seus salários com queda do seu nível de vida, isto sem se mencionar as

classes mais baixas da população. Em 1982, o Brasil ainda passou por um momento

de investimentos e absorção da mão-de-obra (que explicaria em parte o pálido

crescimento de 0,8% no PIB).

301

Entretanto, em 1983, a inflação chegaria aos 211% e o crescimento negativo do

PIB foi da ordem de 2,9% (contra uma média de crescimento positivo de 3% da

economia mundial). Revelaram-se desastrosas as intervenções do governo no

processo inflacionário. Se Delfim Netto usufruiu de elogios e colheu muitos dos

méritos pelo “milagre” da primeira metade da década de 1970, desta vez não

conseguiria fazer uma manobra bem-sucedida na economia como ocorrera a partir de

1967, quando o Brasil saiu da recessão dos tempos de Castelo Branco em direção ao

ápice do crescimento e do ufanismo econômico. Caía por terra a utopia do "Brasil

Potência" dos anos 70.225

Para completar, a indústria encolheu, em média, 8%. A

dívida externa caminhava rumo aos US$100 bilhões de dólares (mais precisamente

era de US$ 93,7 bilhões de dólares).

Charge sobre Delfim Netto – Charge de Ziraldo (pág.64 do arquivo Governo Castelo Branco)

Fonte : http://mestresdahistoria.blogspot.com.br/2011/10/confira-correcao-da-prova-de-historia.html.

E, em 1982, não chegaria o título da Copa do Mundo, disputada na Espanha,

para os brasileiros festejarem como os campeões, apesar da seleção brasileira ter

encantado o mundo naquela Copa.

225 BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 103-104.

302

Em 1983, com o desgaste econômico, se iniciaria a questão da sucessão

presidencial de Figueiredo. Os principais nomes governistas eram o de Mário

Andreazza, o preferido entre os adeptos do regime; o de Paulo Maluf, ex-governador

de São Paulo; seguidos um pouco mais ao longe pelo vice-presidente Aureliano

Chaves. Não faltavam propostas. Mário Andreazza, ministro próximo a Figueiredo,

ensaiou a ideia da reeleição, mas o presidente recusou tal proposta. O governador do

Rio de Janeiro, Leonel Brizola, pensava em estender o mandato de Figueiredo por

mais dois anos, com o compromisso de eleições diretas para 1986, quando ele

próprio poderia ser candidato. Tancredo Neves, recém-empossado governador de

Minas Gerais, também se articulava para a sucessão presidencial.

Greves se multiplicaram pelo país, em 1983. Saques a supermercados também

ocorreram. Penúria econômica, graves dificuldades sociais, mas avanços em outras

áreas. Dentro deste clima de abertura política, em agosto daquele ano, era fundada a

CUT (Central Única dos Trabalhadores), reunindo propostas de aprofundamento das

lutas políticas pela melhoria das condições de vida dos assalariados. De outro lado,

as tradicionais lideranças sindicais, como o “Joaquinzão”, do Sindicato dos

Metalúrgicos de São Paulo, se reuniram na CGT (Central Geral dos Trabalhadores),

consolidando-se a reorganização do movimento operário-sindical.

Tratando de seus problemas do coração nos Estados Unidos, Figueiredo afasta-

se novamente da Presidência da República, em julho de 1983. Mais uma vez, o vice

Aureliano Chaves assume interinamente o cargo. A disposição de Aureliano para o

trabalho, o tato administrativo e as facilidades de articulação política, em

contraposição ao general-presidente cada vez mais desgostoso da política e não

muito afeito às questões administrativas, gerariam um certo “mal-estar”, com

Figueiredo se indispondo várias vezes com o seu vice.

O governo federal, diante de um cenário tão complexo e novo, não estava

acostumado a lidar com a oposição no Congresso e nas ruas. O Congresso já não era

mais a personagem subserviente dos tempos de Médici. Agora, o regime teria que

saber negociar, dialogar. E assuntos, como a política salarial, eram espinhosos. De

um lado, os trabalhadores reivindicando melhores salários e a classe média também

sofrendo com o achatamento salarial; de outro a “receita” de austeridade prescrita

pelo FMI, como condição para receber os recursos do Fundo.

303

O governo, seguindo as recomendações do FMI, reduziu o crédito. Os

governos estaduais não contavam com recursos suficientes em seus caixas. As

demandas sociais não eram atendidas, levando também os governadores da oposição

à baixos índices de popularidade, caso dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio

de Janeiro.

3.5.1- “Diretas-Já” e Colégio Eleitoral. O Brasil entre a

abertura e a redemocratização

O ano de 1984 se iniciava com a já habitual e triste rotina dos anos

imediatamente anteriores: crise econômica de mãos dadas à crise política.

Figueiredo, ao longo de seu governo foi se desinteressando pela política e

obviamente não teve a capacidade de coordenar a sua sucessão. O bloco governista

vinha rachado e isso reduzia o leque de ações para o presidente.

Desde 1979, o tema da sucessão presidencial era sussurrado nos corredores do

poder e no seio das lideranças oposicionistas. Afinal para onde caminharia a

“distensão” que deflagrou a abertura do regime, especialmente a partir da reta final

do governo Geisel? A “linha dura” não deixou de sonhar com algum general mais

truculento, mas o esgotamento e desgaste do regime inviabilizaria uma solução

“fardada”. Na metade de 1983, Mário Andreazza, ministro do Interior, aparecia à

frente entre os adeptos do regime, nas convenções do PDS. O segundo colocado era

Paulo Maluf, ex-governador paulista que, de olho no Colégio Eleitoral, disputara e se

elegera deputado federal pelo PDS. Em terceiro vinha o vice-presidente, Aureliano

Chaves.

Em março de 1983, o deputado Dante de Oliveira propôs uma emenda de

eleições diretas para presidente da República que não teve grande repercussão,

naquele instante. No entanto, a idéia iria atrair diversos setores sociais nos meses

seguintes resultando na maior mobilização popular já ocorrida no Brasil - a

campanha das "Diretas-Já". Em março o cardeal Arns e o secretário-geral da CNBB,

Dom Ivo Lorscheider, manifestaram total apoio ao movimento. Em novembro,

304

praticamente todos os segmentos da sociedade não comprometidos diretamente com

o regime militar estariam reunidos e coordenados por um comitê suprapartidário

formado pelo PT, PTB, PDT e PMDB.

As “Diretas-Já” sacudiria o país entre novembro de 1983 a abril de 1984.

Naquele novembro, a primeira manifestação pública ocorreu na Praça Charles Miller,

em São Paulo. Reuniu 10 mil pessoas tendo ficado restrito ao PT e às entidades

ligadas ao mesmo partido.

Em 12 de janeiro de 1984, realizou-se o lançamento da campanha pelas

eleições diretas para presidente, em Curitiba. O comício contou com 60 mil pessoas.

Em 25 de janeiro, mais de 300 mil pessoas compareceram à Praça da Sé, em São

Paulo. O ato teve enorme repercussão pelo país. Dali em diante, vários comícios

ocorreriam pelo Barsil contando com a participação de todos os partidos

oposicionistas, juntos, numa atmosfera de raríssima unidade.

O governo considerava a campanha pelas diretas uma forma de emparedar e

inibir os membros do Colégio Eleitoral. O PDS se encontrava dividido, dentro do

partido havia uma facção “Pró-Diretas”. Por outro lado, Paulo Maluf criticava

severamente os comícios, de olho no lançamento de sua candidatura no Colégio

Eleitoral, ignorava também a necessidade de um consenso dentro do PDS.

Os comícios, entre 25 de janeiro a 25 de abril de 1984, foram realizados em 50

cidades. O amarelo era a cor da campanha. Dos líderes oposicionistas destacaram-se

Ulysses Guimarães (conhecido como o "Senhor Diretas"), Lula, vários artistas,

intelectuais e até parlamentares e governadores do PDS, como Espiridião Amin, de

Santa Catarina. Tancredo Neves, governador de Minas Gerais, apesar de projetar sua

candidatura para o Colégio Eleitoral, também incentivaria bastante o movimento

pelas diretas.

O governo encontrava-se sem reação e surpreso diante do movimento em que a

sociedade civil pressionaria o Estado, fortalecendo assim a luta pela democracia e

levando o governo a perder o apoio até da Rede Globo, abalando a seriedade das

Forças Armadas. Na verdade, a “Diretas-Já” se constituiu num esforço de

redemocratização, por parte da população, buscando-se a transferência de poder do

Estado autoritário para a sociedade e os partidos políticos.

305

O encerramento da campanha se deu através da realização de dois

megacomícios, os maiores da história nacional. O do Rio de Janeiro, na Cinelândia,

reuniu cerca de 1 milhão de participantes. O de São Paulo, no Vale do Anhangabaú,

reuniria aproximadamente 1,2 milhão de pessoas.

Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio “Lula” da Silva, dividindo o mesmo espaço, em 1983,

em manifestação pelas eleições diretas para presidente, a campanha das “Diretas-Já”. Ambos

estiveram do mesmo lado, contra o regime militar. Futuros presidentes do país, Fernando Henrique

(PSDB) derrotaria Lula (PT) nas eleições presidenciais de 1994, e novamente em 1998, se reelegendo

para o cargo. Lula daria o troco, derrotando em 2002 o candidato apoiado por FHC, José Serra

(PSDB). Em 2006, Lula se reelegeria presidente derrotando Geraldo Alckmin (PSDB), ex e atual

governador de São Paulo. Na sequência Lula lançaria para a sua sucessão a ex-ministra Dilma Roussef

(PT), para o pleito presidencial de 2010 (que estivera presa na época do regime militar). Dilma

derrotou José Serra em 2010 e se reelegeria presidente nas eleições de 2014 derrotando o ex-

governador e atual senador mineiro, neto de Tancredo, Aécio Neves (PSDB).

Fonte: http://maristelafarias6.blogspot.com.br/2014/03/diretas-ja-queremos-votar-para.html

306

Manifestação em Brasília, diante do Congresso Nacional pelas “Diretas-Já”.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1#/media/File:Diretas_J%C3%A1.jpg

Protesto pelas “Diretas-Já”, em São Paulo, 16/04/1984.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1#/media/File:Diretas_ja_2.JPG

Nos dias que antecederam a votação, o governo federal decretou medidas de

emergência no Distrito Federal e em mais dez municípios de Goiás. Era uma forma

de impedir manifestações públicas no dia da votação da emenda. As tropas das

Forças Armadas estavam nas ruas.

307

A Emenda Dante de Oliveira foi votada em 25 de abril de 1984 e, apesar de

obter a maioria dos votos, não foi aprovada por falta de quórum parlamentar

(faltaram 22 votos para a aprovação). Foram 298 votos a favor da emenda e 65

contrários. Houve ausência de 112 deputados do PDS na Câmara. O quórum

necessário era de dois terços (320 votos).

A alteração deste quórum, para a aprovação de emendas constitucionais, foi

realizada naquele “Emendão” de 1982. Antes do “Pacote de abril” era de dois terços.

Com o “pacote”, em 1977, passou a ser por maioria simples. E retornou à situação

precedente em meados de 1982. Os governos militares, ao longo do regime e como

não podia deixar de ser, nunca hesitaram em promover alterações casuísticas, por

exemplo, no jogo eleitoral ou no funcionamento do Legislativo, conforme a sua

conveniência. A “Lei Falcão” serviu para atrapalhar a oposição nas eleições

municipais de 1976 e nas posteriores eleições de 1978 para cargos legislativos

federais e estaduais , estas últimas já afetadas pelo também “Pacote de abril”, face

aos resultados que o MDB obtivera nas eleições de 1974 que, por sinal,

transcorreram sem sobressaltos e manobras casuísticas porque convinha ao governo

(na época chefiado por Ernesto Geisel) “testar” o grau de legitimidade do regime

junto à população e encaminhar passos futuros para a política de “distensão” que

acabara de ser implantada.

308

Vigília popular no Rio de Janeiro, durante votação da Emenda Dante de Oliveira, ocorrida em

25/04/1984.

Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2014-03/12golpe-insatisfacao-com-

ditadura-eclode-nas-manifestacoes-das-diretas-ja

No início da década de 1980, à medida que o regime dava claros sinais de

esgotamento e diante do risco de perder as rédeas do processo de abertura política

que poderia se transformar numa redemocratização com resultados imprevisíveis

para o governo e as elites, o regime agiu dois anos antes das Diretas-Já através do

“Emendão” que faria a diferença naquela histórica votação da Emenda Dante de

Oliveira. O governo também tentara manobrar nas eleições de 1982 para beneficiar o

PDS através da vinculação de votos, para todos os cargos em disputa, indo para o

mesmo partido. Mas ali o regime jogou contra si próprio porque, como já apontado

antes, um partido moderadíssimo, que podia “pescar” votos do PMDB – neste caso o

PP (Partido Popular), com Tancredo Neves à frente – optou por se incorporar ao

PMDB e o efeito colateral foi um expressivo avanço das oposições nas eleições de

novembro de 1982, com o PMDB ganhando em alguns dos mais importantes

estados- São Paulo e Minas Gerais. Porém o “Emendão” de 1982 ajudaria o regime a

garantir, dois anos depois, uma abertura e transição democráticas da forma almejada,

através do Colégio Eleitoral, conseguindo frear a grande onda de redemocratização

que sacudiu o país – a campanha das “Diretas-Já”.

309

Enquanto o povo chorava nas ruas, os grupos sociais mais comprometidos com

as Diretas não tiveram força suficiente para mostrar as implicações acarretadas pela

rejeição da Emenda ao futuro do país. A mais imediata, foi o adiamento da eleição

direta para presidente da República, o que só ocorreria em 1989.

Charge de Henfil, publicada na revista ISTO É, de 25/01/1984.

Fonte: https://f5dahistoria.files.wordpress.com/2010/09/henfil_-1984.jpg

Como já assinalado, Tancredo Neves, mesmo tendo se envolvido na campanha

das “Diretas-Já”, projetava e articulava, na verdade, desde quando foi empossado

governador de Minas Gerais em 1983, a sua provável candidatura às eleições

indiretas através do Colégio Eleitoral. Tancredo não era um oposicionista radical e

intransigente, muito pelo contrário. Quatro dias antes da votação da Emenda Dante

de Oliveira, Tancredo condecorara com mais de duas centenas de Medalhas da

Inconfidência, entre outros, 43 militares, dois governadores do PMDB e dois

310

governadores do PDS. Era a cerimônia comemorativa dos 195 anos da Inconfidência

Mineira. Havia ali uma clara demonstração do caráter conciliatório e moderado de

um possível candidato à presidência da República, pelo PMDB, não disposto a um

enfrentamento ou revanchismo com relação às Forças Armadas.226

O cenário do Colégio Eleitoral era desfavorável a um candidato da oposição.

De um total de 686 componentes, o PDS tinha 358; o PMDB tinha 276; o PDT com

30; o PTB com 14; e o PT com apenas 8. Se os outros quatro partidos lançassem um

candidato de consenso, o total seria de 328 votos, 30 a menos do total de integrantes

do PDS. Assim, era necessário dividir o PDS. Caso estivesse unido, o partido

governista lançaria o sucessor de Figueiredo.227

O que dava algum alento à oposição, em especial ao PMDB, era a forte divisão

interna do PDS principalmente por conta das movimentações de Paulo Maluf. O

agora ex-governador paulista e deputado federal adotou uma política que poderia ser

considerada agressiva, ampliando a bancada do PDS com a cooptação de deputados

federais e estaduais, prefeitos e vereadores. Maluf, desde os tempos de governador

do estado de São Paulo (1979-1982) viajou pelo país, com enormes comitivas,

entregando ambulâncias a prefeitos de outros estados, condecorando e bajulando

possíveis aliados com comendas estaduais, como a Ordem do Ipiranga.228

Durante os

meses de junho, julho e agosto de 1984, Maluf suplantaria Andreazza, com

favorecimentos e dinheiro a membros do PDS. Afilhado de Costa e Silva, protegido

por Médici (que o apoiava em 1984 incondicionalmente), Maluf ao traçar esta

estratégia agressiva para se impor como o candidato do PDS à sucessão de

Figueiredo, não teria avaliado o repúdio que o governo já vinha experimentando e

tornou-se o símbolo de um regime desgastado e esgotado, repúdio este que atingiu a

sua imagem (ao ponto de Maluf ser rejeitado por praticamente toda a alta cúpula

militar) e de quebra levaria à implosão definitiva no interior do PDS.229

226 VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.308

227

Id., ibid., p. 310.

228

Id., ibid., p. 310.

229

BARROS, Edgard Luiz de. Op. cit. p. 115.

311

Mario Andreazza, a princípio, contava com a maior simpatia do governo. Já

tinha sido ministro dos Transportes nos governos de Costa e Silva, e de Médici. Era

conhecido como o ministro das grandes obras públicas, como a Transamazônica e a

Ponte Rio-Niterói. No período de Figueiredo era o ministro do Interior.

Aureliano Chaves, civil e originário das Minas Gerais era um outro forte

candidato. Não no partido, nem entre os militares. Era forte na sociedade civil. Um

liberal também moderado que poderia ser uma alternativa em relação à Maluf e

Andreazza.

O PDS dividido, com nenhuma de suas facções disposta a aceitar

pacificamente a imposição de outra. O PMDB sabia que teria de negociar, mas tinha

receio de ficar com a pecha de “traidor” pelos defensores mais intransigentes das

Diretas, ficando com a imagem de um partido que pensou somente em eleger o

presidente a qualquer modo (ainda que pelo Colégio Eleitoral).

O PDT estava atrelado aos interesses de Leonel Brizola, sem dúvida, o

principal nome do partido e de olho em alguma possibilidade que pudesse vir a

beneficiar o então governador do Rio de Janeiro, como a do “mandato-tampão” e de

fazer coincidir as eleições de 1986. O PT, se for usada a expressão de Argelina

Cheibub Figueiredo, procurava a estratégia maximalista, ou seja, só a solução

“ótima” interessaria, o que seria as eleições diretas para presidente. O PT não

aceitava negociações e nem estava disposto a fazer concessões. O cálculo do Partido

dos Trabalhadores era o de colher os frutos dessa estratégia no futuro.

O presidente Figueiredo, em 2 de maio, uma semana após a votação da emenda

das Diretas, revogou as medidas de emergência adotadas antes no Distrito Federal e

em mais dez municípios goianos. Um dia depois, Figueiredo se encontrava com

Tancredo em Uberaba, se algo caminhava agora era a tese da conciliação.

Mas Tancredo Neves encontrou algumas resistências no PMDB,

principalmente por parte de Ulysses Guimarães que reforçaria a necessidade da

aprovação da instância partidária para viabilizar a candidatura de Tancredo ao

Colégio Eleitoral. Em contrapartida, outros quadros do PMDB, como o senador

Fernando Henrique Cardoso, pensavam que após a derrota da campanha das Diretas,

312

o caminho seria almejar as mudanças através do que havia de alternativa naquele

momento – o Colégio Eleitoral.

Fato significativo ocorreu em Florianópolis. Em dezembro de 1979, o

presidente Figueiredo, com ainda menos de um ano na Presidência, ainda “vendia”

aquela imagem do “presidente João”, simpático e bonachão. Mas ali na capital

catarinense, a imagem do “bom João” ruiu de vez após Figueiredo ter sido

intensamente vaiado quando caminhava ao Palácio do Governo estadual para assinar

convênios. Irritado, ao sair do Palácio para tomar um café em um bar vizinho,

resolveu partir para a luta corporal com os manifestantes, envolvendo também os

seguranças do presidente e outros acompanhantes. E Figueiredo voltou à velha

imagem fria e formal de antes. Quase cinco anos depois, é Tancredo que segue para

Florianópolis. É maio de 1984. E o governador mineiro é recebido com festa no

estado governado por Espiridião Amin,do PDS, que apoiara as Diretas e era

adversário da candidatura de Maluf. A frase de Tancredo é bastante ilustrativa sobre

a atmosfera de conciliação e de acordo que poderiam também permear pelo menos

grande parte do PMDB e importante ala do PDS:

“...devemos ir ao Colégio Eleitoral para ganhar, com a certeza da vitória. Se

isso não for feito será um crime, pois representa a entrega do poder para o senhor

Paulo Maluf.”230

Por aí, percebe-se um prenúncio do que ocorreria num futuro bem próximo. O

PMDB, com Tancredo Neves, candidato à Presidência da República pelo Colégio

Eleitoral, com apoio de dissidentes do PDS, derrotando o cada vez mais isolado

Paulo Maluf.

Porém, a oposição ainda encontrava-se dividida. Havia integrantes do próprio

PMDB que compunham o grupo “Só Diretas”. O PDT estava receoso do

fortalecimento do PMDB e Brizola não queria ter seus interesses prejudicados. O PT

não toparia de jeito nenhum participar do Colégio Eleitoral.

230 VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.317.

313

Pelo lado governista, também estava complicado. O PDS, herdeiro da Arena,

sempre vivera na esteira das vontades do Executivo federal. O partido carecia de uma

dinâmica própria e individualizada. Em junho de 1984, o que era para ser a reunião

do partido virou um pandemônio de gritos, ameaças, empurra-empurra. Resultado:

reunião não realizada e a renúncia do presidente do PDS, o senador José Sarney. Era

a divisão do PDS que poderia abrir caminho para a vitória da oposição no Colégio

Eleitoral.

O governador de São Paulo, Franco Montoro, defendia o lançamento de uma

candidatura única, no Colégio Eleitoral, que agregasse - ao mesmo tempo – além da

oposição, os quadros do PDS ligados ao regime militar que se sentiram preteridos

face às manobras de Paulo Maluf. Mas para Montoro era fundamental que a

candidatura fosse lançada por Ulysses Guimarães, que tinha enorme peso político e

seria vital para manter o PMDB unido.

Tancredo Neves, como governador de Minas Gerais, não tinha tantas

facilidades em seu estado natal no campo político. Em Minas, o PDS era forte e, no

interior do próprio PMDB, havia o senador Itamar Franco, vindo de uma geração um

pouco mais nova de políticos mineiros, e que apoiava as diretas e não a realização do

Colégio Eleitoral. Tancredo não queria se precipitar para sair candidato à Presidência

da República.

Assim, foi em São Paulo, e não em Minas, que houve um passo decisivo do

PMDB. O governador Montoro, no Palácio dos Bandeirantes, recebeu todos os

governadores da oposição, inclusive Leonel Brizola do Rio de Janeiro. No final da

mesma foi produzida uma “Declaração dos Governadores” (não assinada só por

Brizola por razões de compromissos políticos), que estabelecia um programa mínimo

para a candidatura a ser lançada. Tancredo estava disposto ao desafio.

O PDS estava irremediavelmente dividido. Sete governadores do partido que

apoiavam o nome de Mário Andreazza, descartaram o apoio à Paulo Maluf, caso ele

saísse vencedor da convenção do PDS. O presidente do partido governista que

sucedeu José Sarney foi Jorge Bornhausen (PDS-SC) por apenas alguns dias. Ele

também renunciou ao cargo. O veterano político fluminense, senador Amaral

Peixoto, assume a presidência do PDS em meio à crise que o partido atravessava. O

vice de Figueiredo, Aureliano Chaves, também engrossava a lista dos dissidentes.

314

Em 1º de julho de 1984, no encontro entre Tancredo e Aureliano, ficaria

decidido que os dissidentes indicariam o vice-presidente da chapa oposicionista. Um

dia depois Aureliano encontraria Geisel. Tudo parecia apontar para o apoio dos

dissidentes do PDS à candidatura do PMDB231

Em 3 de julho, Aureliano Chaves e

Marco Maciel abriam mão de suas candidaturas na convenção que indicaria o

candidato do PDS. A ruptura seria o surgimento da chamada Frente Liberal cujos

membros não compareceriam à convenção do PDS.

Dias depois, Geisel se encontraria com Figueiredo tentando persuadir o

presidente a coordenar a sua sucessão. No entanto, o general Figueiredo não parecia

ter tato político e continuou um tanto distante dos bastidores do jogo sucessório. O

PDS, como afilhado da antiga Arena, era um partido daqueles tempos em que a

última e decisiva palavra vinha do Executivo federal e carecia, talvez, de uma

dinâmica, de um jogo político, típicos de democracias melhor assentadas, e assim

encontrava-se sem rumo. Na verdade, a idéia de Geisel, dentro da proposta original

da “distensão” era a de fazer um presidente civil do PDS para coroar o processo de

abertura e de transição democrática. Para Geisel o candidato ideal era Aureliano,

mas seu nome já se tornara inviável e o ex-presidente tinha dúvidas quanto à opção

de apoiar Tancredo Neves.

Em 14 de julho, era formalizada a Aliança Democrática, chegava-se a um

acordo entre o PMDB e a Frente Liberal. Um dia depois, Ulysses Guimarães deu

entrevista à Folha de São Paulo, em que deixou claro que optava pelo caminho do

Colégio Eleitoral para derrotar o candidato do PDS. Ele abdicou de sua candidatura e

o PMDB rumava rumo às indiretas. O grupo “Só Diretas” do partido era derrotado. O

“Senhor Diretas” chegou a ser chamado ironicamente de “Senhor Indiretas”. A

seguir, um trecho de sua entrevista:

(...)“Nem sempre nos é permitido escolher o rumo que a nave deve tomar. Se

não conseguirmos aprovar no Congresso Nacional o restabelecimento da eleição

231 Id., Ibid., p.323.

315

direta, não teremos outro caminho a seguir senão o do Colégio Eleitoral. (...) Vamos

matar a cobra com seu próprio veneno”232

Para o PMDB, articular uma união com os dissidentes do PDS, não foi tarefa

fácil. Estes dissidentes, integrantes da Frente Liberal, tinham todo um passado

identificado ao regime militar e até com os quartéis. Tão difícil também foi a

definição do nome de José Sarney para vice-presidente na chapa de Tancredo.

A indicação de José Sarney foi muito mal recebida pela oposição. Sarney havia

feito grande parte de sua carreira política na sombra do regime militar. Quando

senador pela Arena, em agosto de 1975, Sarney se destacou na defesa do AI-5 e nas

críticas a Ulysses Guimarães (onde se cogitou até a sua cassação) devido ao fato de

Ulysses ter comparado Ernesto Geisel ao ditador Idi Amin Dada, de Uganda, na

África. Foi indicado por Figueiredo, na ocasião de sua posse em 1979, para ser

presidente da Arena e permaneceu até junho de 1984 na presidência do PDS, partido

originário da Arena. Foi publicamente contra a Emenda Dante de Oliveira pelas

“Diretas-Já”. E menos de dois meses depois, a 2 de agosto de 1984, Sarney era o

indicado para vice na chapa da Aliança Democrática.

Tancredo, de tom conservador, mas moderado e conciliatório não tinha

simpatia ou amizade por Sarney. O político mineiro fizera carreira no antigo PSD,

enquanto que o maranhense Sarney o fez na UDN. Durante o regime, Tancredo

permaneceu sempre no MDB (com breve passagem no PP). Sarney não só esteve ao

lado do regime, sempre na Arena, como foi um de seus principais líderes. Os dois, no

Senado Federal, chegaram a trocar “farpas”, em fevereiro de 1983, quando Tancredo

saía do Senado para o governo de Minas Gerais.

Ulysses e Tancredo, pelo PMDB; Aureliano e Marco Maciel, pela Frente

Liberal. Era firmado o “Compromisso com a Nação”, por parte da Aliança

Democrática defendendo: eleições diretas para todos os cargos executivos;

Assembléia Nacional Constituinte, em 1986; independências dos poderes Legislativo

e Judiciário; mas, por fim, trazia propostas vagas no campo econômico e social.233

232

Id., Ibid., p.325.

233 Id., Ibid., p.333.

316

Quatro dias após a divulgação do “Compromisso”, em 11 de agosto de 1984 é

realizada a convenção do PDS em que Paulo Maluf venceu Mário Andreazza por 493

a 350 votos. Isso acabou sendo positivo para Tancredo. O ex-governador paulista

Maluf rachara o PDS, não tinha a simpatia dos militares, não conseguiria captar

votos da oposição, contava com forte rejeição da sociedade civil e muito menos

desfrutaria do apoio do presidente Figueiredo.

Em 12 de agosto, era a vez da convenção do PMDB. Em clima de festa,

Tancredo discursou por quase uma hora. Havia ali uma platéia formada por

integrantes da Frente Liberal, bem como dos partidos de esquerda ainda abrigados no

PMDB (casos do PCB, PCdoB e do MR-8). Tancredo usaria as palavras: povo (13

vezes), liberdade, Constituição, oposição e respeito à diversidade. Tratou sobre os

direitos humanos e a necessidade de uma nova Constituição. Chamava a oposição

para uma unidade através da Frente Liberal, o PDT, o PTB e o PT234

Em seu discurso, também abordou a questão econômica. Tranquilizou credores

internacionais negando qualquer tipo de moratória e que procuraria honrar os

compromissos assumidos para o pagamento da dívida externa desde que houvesse

diálogos e negociações viáveis. Abordou os problemas sociais, enfatizando os

conflitos de terra, propondo não o radicalismo de reformas, mas o uso e o

aprimoramento da legislação já existente no Estatuto da Terra. Quanto aos

fazendeiros, a manutenção dos subsídios rurais. Defendeu a autonomia dos

sindicatos. Falou em prol do pacto social e do não revanchismo. E, por fim, reforçou

a importância das empresas estatais com a necessidade de se aprimorar o seu controle

social, mas mantendo a defesa da forte presença do Estado na economia (herança de

sua visão varguista), evitando a sua excessiva desnacionalização em nome das

privatizações.235

234 Id., Ibid., p.335-336.

235 Id., Ibid., p.336-337.

317

O discurso acalmou os setores mais duros do regime que se sentiam receosos

de que a transição democrática resultasse num período institucional marcado pelo

revanchismo, caso o PMDB galgasse à Presidência. É que na Argentina, após o fim

do regime militar portenho e a posse de Raúl Alfonsín, em 1983, foi instalada uma

comissão voltada ao assunto das pessoas desaparecidas durante o período autoritário

argentino (1976 a 1983). Ali foram elencados os crimes de sequestros, torturas,

desaparecimentos e assassinatos ocorridos naquele período, redundando na

publicação de um livro e no julgamento dos integrantes das juntas militares que

governaram a argentina naqueles tempos.236

Aqui no Brasil, procurou-se fazer da Aliança Democrática a opção para todos

os opositores e descontentes com o regime, desde os antigos aos mais recentes

adversários do Estado autoritário. Que agregasse dos mais radicais aos apoiadores de

última hora da chapa PMDB - Frente Liberal. Tancredo conseguiu envolver o PMDB

num clima de unidade, cortar as iniciativas dos grupos que ainda acreditavam nas

diretas, como o PT, o PDT e a ala “Só Diretas” do PMDB. Garantir a unidade, nesse

caso, implicaria até em evitar “anticandidaturas” ao estilo do que fora a de Ulysses

Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho no Colégio Eleitoral que elegeu Ernesto Geisel.

Foi dado sinal de que o governo Tancredo não seria um governo meramente de

transição ou “tampão”. Mas sim um mandato de quatro anos com eleições diretas

para 1988, aplacando assim a desconfiança de Leonel Brizola.

A chapa da Aliança Democrática procuraria realizar alguns atos públicos,

passeatas e comícios pelo país para conquistar mais apoio popular. Embora Tancredo

tivesse larga vantagem sobre Maluf, em pesquisa realizada pela Folha de São Paulo

em algumas capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Curitiba e

Porto Alegre), a margem de rejeição às duas candidaturas estava acima dos 20%. Em

Porto Alegre, tal rejeição era de 43,3%. Sinal de que o acordo entre o PMDB e a

Frente Liberal carecia de maior apoio popular.

Ainda havia algumas pálidas movimentações pelas eleições diretas. A Emenda

Teodoro Mendes (PMDB-SP) poderia ser votada. No entanto, o interesse parlamentar

236 Id., Ibid., p.338.

318

era praticamente inexistente. O principal argumento era de que as diretas fosse

“matéria vencida” porque a Emenda Dante de Oliveira tratara do mesmo tema, no

mesmo ano, e não havia sido aprovada. Tancredo tinha receio de que se a proposta

vingasse poderia perturbar o andamento da campanha para o Colégio Eleitoral e

agitar setores da linha dura dos militares que, volta e meia, levantavam o discurso da

“infiltração comunista e esquerdista” que ocorreria caso Tancredo vencesse.

Porém, o que é verdadeiramente lamentável, não foram as articulações políticas

em si, acatando as eleições indiretas. Foi a falta de uma reação popular efetiva à não-

aprovação da Emenda Dante de Oliveira. Os atos que o grupo das “Diretas Já”

organizariam após a derrota da Emenda foram um fracasso: em setembro de 1984, na

possibilidade (remotíssima, é verdade) da votação da Emenda Teodoro Mendes, o ato

no Largo São Francisco não reuniu mais de trezentas pessoas; na Cinelândia, no Rio

de Janeiro, não teria comparecido ninguém237

; em Belo Horizonte, um ato público

pelas Diretas não reuniu mais de 10 mil pessoas Realmente foi lamentável o

desânimo, a acomodação e a falta de mobilização popular após aquele histórico dia

de 25 de abril de 1984.

Por outro lado, o regime não tinha condições de impor um candidato militar.

Walter Pires, ministro da Guerra, não conseguiu o apoio do Alto Comando das

Forças Armadas para lançar a si próprio como candidato. Não havia uma figura da

linha dura, como o ex-ministro Sylvio Frota, nos dias de Geisel, que pudesse agregar

os ultra-reacionários do regime e importantes lideranças civis que estiveram ao lado

do Estado autoritário. Um golpe militar era improvável, não havia aquela

“atmosfera” específica que levaria à queda de Jango e ao seu isolamento, nem havia

apoio popular e da imprensa, como também o interesse político dos militares para um

golpe (como acontecera em 1964). E o próprio Ernesto Geisel, ainda tinha importante

liderança no Exército, somada ao prestígio de ex-presidente, garantindo juntamente

com o Alto Comando o respeito às regras do jogo em andamento.

Pelo contrário, na Bahia, a candidatura de Tancredo Neves ganhava um grande

reforço com o apoio da principal figura política daquele estado, Antônio Carlos

237 Id., Ibid., p.342.

319

Magalhães (o ACM). Rompera de vez com o PDS - após a não indicação de

Andreazza como candidato - e ACM juntava-se agora à Frente Liberal. Mais ainda, o

comício de Tancredo, dessa vez em Goiânia, teria reunido mais de 200 mil

pessoas238

, em setembro de 1984, ressaltando a importância de aproximar-se da

população mesmo com a eleição sendo indireta.

Tancredo Neves e José Sarney – a chapa para presidente e vice da Aliança Democrática (PMDB mais a

Frente Liberal)– em campanha antes das “indiretas” do Colégio Eleitoral de 1985. A foto

especificamente é de 1984, num momento após a não aprovação da Emenda das Diretas-Já, e antes da

eleição a ser disputada num Colégio Eleitoral com menos de 700 membros. No palanque também estão

o deputado Ulysses Guimarães (à esquerda de Sarney na foto) e o narrador esportivo Osmar Santos (à

direita de Tancredo na foto). Agência Estado.

Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/files/2012/07/Sarney-na-campanha-de-Tancredo-

1984-Foto-Agência-Estado.jpg

Ao mesmo tempo, Paulo Maluf enfrentava uma série de problemas. Na

inauguração de uma estrada em Rondônia, acompanhou o presidente Figueiredo e

238 Id., Ibid., p.345.

320

ouviu sonoras vaias. No Nordeste, apesar dos governadores pertencerem ao PDS,

somente o governador da Paraíba, Wilson Braga, esteve ao lado de Maluf. Os

demais, que apoiavam Andreazza, não apoiaram o ex-governador paulista. O apoio

de tais governadores estava vinculado ao ministro do Interior – Mário Andreazza. A

não adesão do ministro à campanha malufista prejudicou de vez as possibilidades de

Maluf no Nordeste.

O caminho para a vitória de Tancredo Neves estava pavimentado. A influência

de Geisel também pesava a favor. O Alto Comando do Exército em que parte dos

oficiais tinha sido promovida por Geisel garantiu a continuidade do processo de

abertura do presidente João Figueiredo. Já se discutia, em dezembro de 1984, a

formação da equipe ministerial de Tancredo. E não se pode deixar de mencionar - o

presidente Ronald Reagan convidara Tancredo para visitar os Estados Unidos após a

eleição.

Em setembro de 1984, Henry Kissinger, ex-secretário de Estado do governo

norte-americano, visitou o Brasil. Mesmo não tendo cargo oficial naquela época, ele

ainda mantinha muitos contatos com Washington. Ele se encontrou com o presidente

Figueiredo e também com Tancredo Neves. As bravatas e ameaças dos militares

mais reacionários não surtiam mais efeito. O discurso da infiltração de comunistas e

de esquerdistas na campanha e num quase certo governo do PMDB não convencia

mais ninguém.

A candidatura de Maluf decrescia cada vez mais. Os argumentos da fidelidade

partidária para anular os votos dos dissidentes do PDS não convenceram o TSE

(Tribunal Superior Eleitoral). O voto no Colégio Eleitoral seria aberto, assim como

desejava Tancredo. Maluf perdera o apoio dos governadores do PDS, dos

parlamentares do Congresso Nacional, não teve o governo federal a seu lado e estava

sem o apoio da sociedade. Conforme BARROS (1998)239

, o político paulista que já

havia sido presidente da Caixa Econômica Federal, prefeito (nomeado) da capital

paulista, governador (indicado) de São Paulo, afilhado dos generais-presidentes:

Costa e Silva e de Médici, não teria tido a real noção da rejeição ao seu nome. Sem

contar com a cobertura de proteção dos militares, rejeitado por praticamente todo o

239 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 115

321

alto escalão dos mesmos, sem o apoio do presidente Figueiredo e de Geisel, Paulo

Maluf seguiu rumo à derrota no Colégio Eleitoral.

Mas, tudo isso não foi o fim da sua carreira política, Paulo Maluf até hoje está

presente, atualmente na Câmara Federal, como deputado, ainda que envolvido numa

série de problemas que o enquadraram na “Lei da Ficha Limpa”, ele atualmente

exerce o seu mandato. Nas eleições municipais paulistanas, em 2012, apoiou o

candidato do PT, Fernando Haddad, que sairia vitorioso. Fato notável foi a foto em

que Maluf cumprimentava o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, para oficializar

o apoio do atual PP (Partido Progressista) à candidatura petista da cidade de São

Paulo. Porém, como brasileiro tem costuma ter memória curta, se voltarmos dezoito

anos antes, Maluf, quando prefeito de São Paulo, apoiou Mário Covas (PSDB) para

governador em 1994. E em 1998, apoiou a reeleição de Fernando Henrique Cardoso

(PSDB) para a Presidência da República, chegando a declarar que se não fosse o seu

apoio, FHC (que recebera 51% dos votos) iria ao segundo turno daquelas eleições

contra Lula240

O último ano por inteiro do regime militar brasileiro foi 1984. A inflação

chegara a 223,8%, a dívida externa manteve-se na casa dos US$ 90 bilhões de

dólares. Pelo menos, o PIB havia crescido positivamente em 5,4%.

Na sequência de tantas siglas e abreviaturas que houve durante o regime

militar. Tancredo, há poucos dias do Colégio Eleitoral, criaria a Copag (Comissão do

Plano de Ação do Governo), para traçar metas e objetivos diante da situação

econômica. A comissão era muito heterogênea e encontrou dificuldade no ritmo de

seus trabalhos. Entre outros, eram membros da Copag: Celso Furtado, Hélio Beltrão,

e como coordenador-geral - o secretário paulista do Planejamento - José Serra.

Tancredo, de caráter moderado, conservador e conciliatório estabelecera

diversos acordos nos meios militares se comprometendo a impedir inquéritos sobre

desaparecimentos e corrupções do regime militar241

. Em 15 de janeiro de 1985, na

votação do Colégio Eleitoral, menos de 700 pessoas decidiram o destino de um 240

DORIA, Palmério. O Príncipe da Privataria. 1.ed. São Paulo. Geração Editorial, 2013. p. 138.

241 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 117

322

Brasil que contava, na época, mais de 133 milhões de habitantes. Dos 676 votantes:

69 senadores; 479 deputados federais; e 138 delegados das Assembléias estaduais.

Apenas nove ausências, sendo cinco do PT. Foi fácil a vitória de Tancredo sobre

Maluf (que era rejeitado, como já dito, até nos meios militares com poucas

exceções). Foram 480 à Tancredo, contra 180 para Maluf e 17 abstenções. Entre os

cinco partidos já legalizados, o PT foi o único partido que não compareceu ao

Colégio Eleitoral. Dos oito parlamentares do PT, três deles compareceram ao

Colégio Eleitoral e votaram em Tancredo Neves. E acabaram expulsos do partido.

Após a vitória, Tancredo Neves tomou a palavra. Colocou-se como o “presidente das

mudanças”. Declarou que aquela foi a última eleição indireta da história do país e

que a sua vitória era a culminação do processo da campanha pelas “Diretas-Já”.

Tratou sobre o combate à inflação, criticou a recessão como mecanismo para

combater a elevação dos preços, a necessidade de retomar o crescimento econômico

e de criar empregos. Sinalizou implicitamente para a reforma agrária, criticando que

o acesso à propriedade seja usado na manutenção de privilégios. E, num claro sinal

de mudança institucional, do fim do regime para a retomada da democracia, que “o

objetivo básico da segurança nacional é a garantia de alimento, saúde, habitação,

educação e transporte para todos os brasileiros”242

242 Trecho do discurso de Tancredo Neves, no Congresso nacional, após a sua vitória no Colégio

Eleitoral, em 15/01/1985. In: VILLA, Marco Antônio. Op. cit..p.365.

323

Capa da Revista Manchete, sobre a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral (janeiro de

1985)

Fonte: https://albenisio.wordpress.com/category/noticias-e-politica/page/2/

Porém, na véspera da sua posse na Presidência da República, Tancredo Neves

seria internado e operado, primeiramente em Brasília, e depois em São Paulo, devido

a um tumor intestinal, agonizando por um pouco mais de um mês. Tancredo faleceria

em 21 de abril de 1985 sendo a sua agonia muito bem trabalhada pela televisão

influindo no emocional da população desinformada. Tomaria posse como presidente

da República o vice José Sarney, um ex-udenista que sempre fora ligado ao regime

militar. Coroava-se assim a distensão (abertura) "lenta, segura e gradual" do regime

militar, iniciada no governo Geisel. João Figueiredo sairia discretamente e Sarney

assumiria em um contexto com usos menos coercitivos e mais consensuais de

324

controles sociais e favorecimentos econômicos.243

Era o fim do regime militar de

1964 e o início da chamada "Nova República".

Capa da revista Manchete, de abril de 1985, sobre a morte de Tancredo Neves.

A capa traz entre os dizeres “O mártir da democracia”, até porque Tancredo faleceria em 21

de abril, o mesmo dia da morte de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, mártir da

Inconfidência Mineira.

Daí levanta-se uma questão: Tancredo foi o “mártir da democracia” ou o “mártir” da

distensão/abertura do regime?

Fonte: http://memoriaviva.tumblr.com/post/21908060898/manchete-tancredo-neves-1985

243 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p.120.

325

4- Modernização conservadora e centralizadora

Na América Latina, o processo de construção do Estado se deu à frente da

construção da nação. A manifestação deste processo deu-se através da formulação de

uma via autoritária para a modernidade, que foi denominada, para este trabalho, de

modernização conservadora e centralizadora, com base em Wanderley Messias da

Costa244

(2000); e em Bertha Becker & Cláudio Egler245

(1998). No Brasil, esse

processo estaria embrionado na garantia da integridade territorial da antiga colônia,

que manteve os seus limites, e não se estilhaçou numa multiplicidade de repúblicas

como na América espanhola.

A idéia de um Brasil, país de grandes proporções, dono de um inesgotável

potencial de expansão, já deve ter sido repetida e ouvida, não poucas vezes, por cada

brasileiro. Trata-se de uma imagem que verdadeiramente se arraigou entre nós e que

já vinha das gerações passadas. Desde meados do século XIX, a perspectiva da

grandeza brasileira está presente nos projetos governamentais.246

A seguir reproduz-

se um alerta do conselheiro D. Pedro Marques Alorna, a serviço do príncipe regente

D. João, em 1801, sobre a virtualidade expansiva do Brasil:

“V.A.R. tem um grande Império no Brasil, e o mesmo inimigo que ataca agora

com tanta vantagem, talvez que trema e mude de projeto, se V.A.R. o ameaçar de que

se dispõe a ser imperador naquele vasto território adonde facilmente conquistar as

Colônias Espanholas e aterrar em pouco tempo todas as Potências da Europa.

(citado por Lima Fo., 1993:30. In: DEL VECCHIO,1992. p. 1)

244

COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,

2000. O autor utiliza o termo Modernização Centralizadora, para tratar do processo de modernização

do Estado brasileiro.

245 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º

ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. Os autores utilizaram o termo Modernização Conservadora, ao

abordarem a modernização do Estado brasileiro.

246 DEL VECCHIO, Ângelo: “O golpe de março e o regime militar”. Mimeo (Ciência Política - UNESP- FLC-

Araraquara) - 1992. p. 1

326

O Brasil, contando com enorme dimensão territorial, incontrastável em relação

aos países fronteiriços e também com relação às extensões dos países europeus, tinha

nisso o mais evidente elemento da projeção de um “Brasil potência” ainda no

contexto colonial. O “gigante adormecido” pronto a despertar na América do Sul.247

Constata-se que a idéia de um Brasil “grande”, “potência”, de “gigante

adormecido” e de um “país do futuro” vem de longe. É um reflexo de uma visão

geopolítica que, na verdade, teria suas raízes gestadas ainda no período colonial.

Esse processo de construção do Estado e do território brasileiros se insere

dentro da geopolítica de lógica militar, favorecida pela grande disponibilidade de

terras para os latifúndios e pelo projeto da transferência da capital federal para o

interior do país, mais precisamente no Planalto Central, que seria uma base logística

no interior do território nacional.248

A participação dos militares no poder político se firmou através do controle

interno do território. Priorizaram o desenvolvimento dos setores de transportes e de

comunicações, como ao estenderem a rede telegráfica a fim de manterem o controle

sobre uma mesma base física do país. Os militares procuraram romper com o

isolamento do sertão, visando a exploração do território e a valorização das terras do

interior. As Forças Armadas entendiam que à elas caberiam promover a integração

territorial, pois dispunham de conhecimento técnico, já que os capitais privados

internacionais investiram, principalmente, em infraestrutura de transportes e serviços

urbanos das cidades litorâneas, enquanto que os capitais privados nacionais estavam

preocupados em investimentos com retorno a curto prazo.249

Nos dias atuais, uma enorme gama de materiais, contendo memórias, escritos

de jornalistas, cientistas políticos e historiadores, tem enriquecido os estudos

voltados aos tempos do regime militar brasileiro. Isto decorreu basicamente da

democratização de alguns dos documentos sigilosos, da abertura de arquivos e do

próprio desenvolvimento dos cursos de pós-graduação, possibilitando estudos e

análises mais completas e precisas sobre o período autoritário de 1964-1985. Antes

247

Id., Ibid., p.1

248 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p.35.

249 Id., Ibid., p.70-71.

327

havia poucos materiais disponíveis e as interpretações políticas sobre o golpe de

1964 eram mais escassas fazendo-se crescer a importância dos estudos realizados por

alguns brasilianists, como Thomas Skidmore e Alfred Stepan. Mais um outro

aspecto a se salientar: a distância temporal em relação aos eventos que são objetos

de estudo e de pesquisa pode trazer novas visões sobre os mesmos, impossíveis de

se perceber talvez pelo “calor” da ocasião ou do tempo presente.

O regime militar brasileiro de 1964 foi modernizador. Isto o distingue dos

outros regimes autoritários do Cone Sul. Ocorreu-se um desenvolvimento acelerado

da economia durante o “milagre econômico”, intensa industrialização e urbanização

da sociedade brasileira, reorganização do Estado e a emergência de uma tecnocracia

que regulou e dinamizou as forças produtivas, viabilizando a consolidação de um

capitalismo de caráter tardio.250

A modernização conservadora e centralizadora não é a única maneira -mas

sim- uma das formas de se explicar esse processo que traz, concomitantemente,

expansão e controle, sendo um conceito frequentemente utilizado na literatura

voltada ao tema do regime militar.

O conceito de modernização conservadora deriva de um estudo de Barrington

Moore Jr sobre as origens sociais da ditadura e da democracia.251

Moore queria

compreender o papel político desempenhado pelas elites agrárias na passagem da

sociedade rural para a sociedade industrial. E, na sequência, ele realizaria um estudo

comparativo entre, de um lado, as sociedades capitalistas onde se desenvolveu um

regime democrático parlamentar (casos da Inglaterra, França e Estados Unidos); e,

por outro lado, países como a Alemanha, a Rússia e o Japão, que experimentaram

uma modernização conservadora.

Estes três últimos países experimentaram uma “revolução pelo alto”. De

“cima para baixo”, em que se cristalizou uma aliança entre elites agrárias e novos

250 ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. 1.ed. Rio de

Janeiro: Zahar, 2014. p. 113

251 Id., Ibid., p.113.

328

atores sociais (no caso, as novas elites urbanas e industriais). Nessa aliança, os

oligarcas agrários mantiveram o controle sobre a força de trabalho rural e o uso da

terra conseguindo articular os seus objetivos aos da elite urbana dirigente. E para

garantir a existência e manutenção dessa aliança ou pacto, o autoritarismo da classe

dirigente seria peça fundamental.252

A rigor, a idéia de modernização conservadora no Brasil se aplicaria ao

surgimento da modernidade como um todo, e não só restrita ao período autoritário do

pós 1964. Abrangeria desde a Primeira República ao Estado Novo. Sua base seria

um modelo político conservador, em que nem sempre os valores democráticos foram

prioridade. Para Renato Ortiz (2014), o fato do conceito de modernização

conservadora ser bastante aplicado ao período posterior a 1964, decorreria do fato de

que houve mudanças substanciais no período, o que alguns economistas chamaram

de a “segunda revolução industrial” do Brasil, decorrente do aprofundamento das

medidas tomadas desde o governo de Juscelino Kubitschek visando à reorganização

do capitalismo brasileiro. O que o período militar trouxe foi a combinação de

repressão política com expansão econômica, ação policial com modernização do

Estado e incentivos às atividades empresariais.253

Que ocorreram mudanças substanciais durante o regime militar no Brasil não

há dúvidas. Realmente é durante o regime que a população urbana suplanta a

população rural do país; que a configuração de grandes redes nacionais - como a de

telecomunicações, a de transportes (sobretudo, pela matriz rodoviária), a de energia

elétrica, etc., irão se consolidar de vez; e algumas das grandes cidades brasileiras se

tornariam em verdadeiras metrópoles, entre algumas outras mudanças. Porém, o

ineditismo não é a marca do regime de 1964. O próprio Renato Ortiz menciona que

os militares deram continuidade em algo que vinha desde os anos de JK – a

transformação e consolidação do capitalismo brasileiro em uma nova etapa. No

próximo capítulo, onde se discutirá o pensamento geopolítico brasileiro, será visto

252 Id., Ibid., p.114.

253 Id., Ibid., p. 114.

329

que o próprio Golbery chegou a elogiar e a avaliar positivamente a conjuntura que o

Brasil experimentava durante o período de JK.

Na verdade, a meu ver, o Brasil já vinha dando passos importantíssimos em

direção à sua inserção no capitalismo mundial, desde a Revolução de 1930, com o

início da “Era Vargas” (1930-1945), algo que se torna explícito durante a ditadura

do Estado Novo varguista (1937-1945). Lembre-se que, naquela época, o Brasil

vinha se industrializando dentro de um processo comandado pelo Estado nacional,

voltado às indústrias de base. Exemplo disso, a criação da CSN (Companhia

Siderúrgica Nacional), em Volta Redonda (RJ). O período democrático de 1946,

iniciado após o fim do Estado Novo, praticamente não rompeu o processo.

Novamente com Vargas no poder, vem a criação da Petrobrás (1953) e no governo

de Juscelino, parcelas maiores da população, nas cidades, vão tendo maior acesso aos

bens de consumo duráveis, como televisores e automóveis e, ao mesmo tempo,

quilômetros de rodovias são abertas e tem-se a primeira ligação terrestre da

Amazônia com o restante do Brasil - a rodovia Belém-Brasília. Também, desde

anteriormente a 1964, o Brasil já vivenciava um processo de urbanização. Então,

reforça-se aqui que, sim, ocorreram importantes e fundamentais mudanças em nosso

país durante o Estado autoritário de 1964, mas o que se ressalta é que enorme parcela

de tais mudanças não foram inéditas.

O mérito de Moore, conforme Renato Ortiz, seria o de se desfazer a

perspectiva teórica de que a evolução dos sistemas políticos se dá de uma forma

linear, ou pré estabelecida. Isto quer dizer que, se o Brasil tomasse um determinado

rumo, ou um modelo inspirado na Europa ocidental e nos Estados Unidos, ter-se-ia

uma sociedade industrial moderna, um capitalismo maduro e democracia sólida. Mas

não é assim. De acordo com Moore haveria um hiato entre democracia e

modernidade. “Para ser preservada, a democracia necessita ser incessantemente

renovada, não basta sermos modernos.”254

254 Id., Ibid., p.116.

330

4.1- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil:

desde as suas raízes (Revolução de 1930 e Estado Novo de 1937) até a

construção de Brasília (década de 1950)

Para se tratar das heranças e legados dos governos militares de 1964 para o

Brasil, temos que não somente nos restringir ao regime iniciado em março daquele

ano, mas retrocedermos a 1930, ano da Revolução, que pôs fim à chamada República

Velha, e que conduziu Getúlio Vargas ao poder, em que permaneceria por quinze

anos consecutivos.

Basicamente, antes de 1930, a estrutura espacial do Brasil se constituía de

“arquipélagos” mercantis, formando verdadeiras “bacias de drenagens”, com

centros em grandes cidades portuárias, como na região mercantil-escravista do Rio

de Janeiro, principal área da produção cafeeira até o último quartel do século XIX.

Embora esta matriz escravista da economia do café limitasse o comércio interno

entre as regiões mercantis, vinculadas diretamente ao mercado mundial, havia o

tráfico interno de escravos e um mercado interno em potencial que gradativamente

foi sendo ocupado pela produção manufatureira e agropecuária nacionais.

Segundo FURTADO (1959)255

, na época do Império, o Brasil poderia ser

dividido em cinco grandes regiões mercantis: o Centro cafeeiro, com núcleo no Rio

de Janeiro; o Nordeste açucareiro e algodoeiro, centrado em Recife; a Bahia, como

produtora de açúcar, fumo e depois de cacau; o Sul, voltado à pecuária e fabricação

do charque; e a Amazônia que, a partir de 1870, torna-se grande exportadora de

borracha natural, centrada em Belém e seguida por Manaus.

A conformação de um mercado nacional rompeu esta estrutura em

“arquipélago” herdada do passado agrário exportador em que parte significativa dos

produtos industrializados eram importados. A articulação regional entre as diversas

áreas produtoras do espaço nacional se deu com a expansão da cafeicultura baseada

no trabalho assalariado em São Paulo. Com o impulso da industrialização, o vetor

dinâmico da expansão territorial, ligada, sobretudo, à fronteira agrícola, passou a

255 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 103.

331

atender, em grande parte, às necessidades do centro industrial em expansão, no caso

a cidade de São Paulo, e não exclusivamente ao mercado externo.

Foi a partir de 1930 que iniciou-se um processo de modernização do Estado,

sem ocorrer sua democratização, e cada vez mais centralizado, combinando-se em

seu seio um autoritarismo tradicional com certas funções típicas de um Estado

capitalista (COSTA, 2000).

A modernização do Estado começa a se cristalizar com a Constituição

promulgada em 1934, atendendo às pressões constitucionalistas vindas

principalmente de São Paulo, palco da Revolução de 1932. Esta foi, conforme o

referido autor, a primeira Constituição liberal e modernizante do país, rompendo com

antigas tradições, com a instauração do voto universal e secreto (agora também para

as mulheres), a separação dos Poderes, a introdução de uma legislação trabalhista e a

promoção de reformas no Judiciário. Naquela década são também criados o

Ministério do Trabalho, da Indústria e Comércio, da Educação e Saúde, além de

assessorias técnicas permanentes para cada ministério. Também empresas foram

estatizadas (tanto nacionais como estrangeiras) e o subsolo do território nacional

passou a ser de propriedade da União.

Contudo o caráter autoritário e centralizador do aparelho estatal vão se

manifestar mais fortemente a partir do golpe de 1937, que instituiu o chamado

Estado Novo, que perduraria até 1945. Naquele regime, a vida e a sociedade

nacionais iriam girar em torno do governo central, personificado no poder Executivo,

através do agora ditador Getúlio Vargas. Para o regime de 1937, o Estado teria que

ser forte, acima das regiões, classes, partidos, etc. Busca-se a unidade nacional, a

partir da esfera central e não das partes do todo nacional, sendo isto refletido

espacialmente no território nacional através de políticas territoriais por parte do

governo central. A modernização capitalista do país ganha uma forma acelerada,

procurando impor a unidade nacional. É também a partir de 1930, mas especialmente

após 1937, que ganha impulso a era do planejamento econômico no país, com a

edição de “planos de desenvolvimento”, incluindo-se o manejo das questões

territoriais. Cita-se a criação do IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,

em 1942, para se desenvolver o conhecimento do território nacional, que organizou e

racionalizou o serviço de coleta dos dados estatísticos, fez o levantamento da carta

332

do Brasil ao milionésimo, dividiu o país em regiões geográficas e desenvolveu

estudos de caráter regional.

BECKER & EGLER (1998) tratam, na perspectiva da chamada economia-

mundo, do processo de inserção do Brasil no sistema capitalista mundial e

simultaneamente o individualizam como região. Os autores utilizam para o Brasil, o

conceito de semiperiferia, onde o Estado assumiu o papel de financiador como motor

do crescimento econômico e da atividade produtiva. Porém, o Estado assumiu

também o passivo da economia e se tornou um grande devedor. Esse processo de

aumento do papel do Estado na economia fez com que, a crise econômica

subseqüente, já em inícios dos anos 1980, se transformasse em crise política.

Estes referidos autores também apontam a Revolução de 1930 como o marco

da consolidação de um moderno aparelho de Estado, numa via autoritária, que mais

tarde, em 1937, se tornaria no Estado Novo. A desorganização econômica, política e

ideológica levam à centralização maior do Estado, fortalecendo seu poder de

intervenção, sem prejuízo dos grupos dominantes.

O caráter autoritário do capitalismo tardio na América Latina faz parte desse

contexto em que o Estado engajou amplos segmentos sociais em sua proposta de

desenvolvimento nacional, numa relação direta entre líderes carismáticos e o “povo”,

sem a intermediação de estruturas políticas representativas bem consolidadas. Essa

forma de exercício do poder estatal se constituiu no chamado populismo, que

corresponde às chamadas autocracias nacional-sindicalistas (RIBEIRO, 1983),

características da América Latina entre as décadas de 1930 e 1960. A

industrialização e o proletariado urbano forçaram o Estado a adotar um novo papel

nas relações capital-trabalho, pois se tornou inviável a manutenção de estruturas

políticas advindas do passado agroexportador colonial.

No Estado Novo, as políticas territoriais, por parte do governo central, vão

ganhar impulso, mas as atenções governamentais para as questões territoriais serão

mais explícitas nos anos 1950. Até então, as medidas governamentais eram apenas de

caráter pontual e emergencial.

A primeira preocupação era com a chamada “questão nordestina”, já presente

no Império quando da criação da “Comissão de Açudes” em 1881. Em 1906, os

333

órgãos deste tipo foram agrupados na “Inspetoria Federal de Obras Contra as

Secas” - o IFOCS. Em 1946, é estruturada uma autarquia especial com o objetivo de

”combater permanentemente a seca”, o DNOCS (Departamento Nacional de Obras

Contra as Secas).

A Amazônia também era alvo de preocupação governamental. Já em 1912, foi

criada a Superintendência de Defesa da Borracha (SDB), pois este era, na época, o

segundo produto em exportação, atrás apenas do café. Em 1942, a transformação

desta Superintendência no Banco de Crédito da Borracha (BCB) abriu oportunidades

para futuras ações governamentais na região amazônica, na década de 1950.

Dentro desse contexto, o vale do São Francisco também foi alvo dos interesses

governamentais, com objetivos de se estimular a agricultura comercial e de se

aproveitar o potencial hidrográfico e hidroelétrico daquele rio, complementando o

combate às secas do sertão nordestino, com a criação da CHESF (Companhia Hidro

Elétrica do São Francisco), em 1945, e o estabelecimento da VASF (Comissão do

Vale do São Francisco).

O Estado Novo trouxe a chamada “Marcha para o Oeste”, rearranjos na

divisão territorial do Brasil e a modernização econômica e política. A Marcha para o

Oeste foi uma das grandes preocupações do Estado Novo. Foram desenvolvidos

programas de colonização, como o de Ceres (no Mato Grosso), o de Goiás e, em

1943, foram criados cinco territórios federais: Amapá, Rio Branco (que se tornaria

Roraima), Guaporé (depois denominado Rondônia), Ponta Porã e Iguaçu (estes dois

últimos territórios foram extintos em 1946). A criação destes novos territórios, em

áreas fronteiriças do país, tinha a finalidade de propiciar maior segurança às

fronteiras, promover o povoamento e viabilizar uma nova divisão territorial do

Brasil.

Com o retorno de Getúlio Vargas ao governo federal (1951-1954), a questão

regional ganha maior destaque tendo como alvos o Nordeste e a Amazônia. O

Nordeste por seus problemas históricos: a seca e o atraso de seu desenvolvimento; e

a Amazônia por sua necessidade de ocupação, povoamento e valorização. Foi

naquele governo que seria criada a SPVEA (Superintendência do Plano de

Valorização Econômica da Amazônia), em 1953. A SPVEA procuraria desenvolver

uma política semelhante à que Roosevelt desenvolvera no vale do Tennesse.

334

Preocupava-se em integrar a Amazônia ao processo de desenvolvimento nacional,

com as suas riquezas e os riscos relacionados à sua pouca ocupação. Com a SPVEA

começaria a serem definidas as linhas econômicas para essa parte do território

brasileiro. Também naquele ano seria definida, por decreto-lei, a Amazônia Legal,

como área de intervenção para políticas econômico-regionais numa área de

5.057.490 Km2, mais da metade do território brasileiro. Ainda seria formulado um

primeiro Plano Quinquenal para a região que nortearia as atividades da SPVEA.

Assim teve prosseguimento o processo de modernização do Estado (em que cita-se

também a criação do BNDE, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), em

que paralelamente às políticas territoriais, a industrialização continuaria

impulsionada pelo Estado nos setores básicos da estrutura industrial, como as

indústrias pesadas.

No governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960), seria elaborado o Plano de

Metas, para o período de 1957 a 1960. Houve, neste período, uma alteração da

estrutura econômica do país, nesse curto período de quatro anos. Conforme COSTA

(2000), esse Plano era voltado aos setores de ponta da estrutura industrial, mas

afetaria o conjunto produtivo do país, a partir dos setores básicos, além dos

transportes, energia e da estrutura territorial como um todo.

O setor dos transportes apresentou um crescimento notável no período, com a

constituição dos chamados “eixos viários de penetração”, como a rodovia Belém-

Brasília, buscando-se a integração norte-sul do país. As rodovias, de acordo com o

mencionado autor, tiveram um papel de “conquista interna do território”, papel este

que foi exercido pelas ferrovias nos Estados Unidos. A construção da Belém-Brasília

promoveu a interligação da Amazônia com o Sudeste-Sul do país, já que, até então,

todas as comunicações com a Amazônia eram feitas por via marítima através da

navegação de cabotagem onde Belém era a porta de entrada para a região.

O Plano de Metas trouxe efeitos à estrutura territorial nacional e se insere na

expansão capitalista do país, em sua etapa industrial, pelo fato dos capitais

precisarem se geografizar para reproduzir-se, daí a importância da reestruturação do

território, que será base para a reprodução desse capital. Com os avanços das formas

típicas do capitalismo em sua fase atual, as políticas regionais e urbanas vão aparecer

submetidas aos grandes planos nacionais de desenvolvimento. Isto quer dizer que os

335

macroplanos de desenvolvimento, que incluem as questões setoriais e regionais,

constituem-se em subestratégias de uma política econômica maior, dentro de uma

estratégia válida para o país como um todo. Nesse contexto destaca-se a criação da

SUDENE (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), em dezembro de

1959, recentemente extinta, dando-se um novo tom às políticas públicas nacionais

para a região, com propostas de industrializá-la para se minimizar seu atraso

econômico em relação ao Sudeste industrializado.

A transferência da capital federal do Rio de Janeiro para Brasília concretizou-

se em 21 de abril de 1960. Este assunto merece uma certa atenção neste capítulo,

pois a construção de Brasília era a “meta-síntese” do Plano de Metas, dentro do

bojo do processo de unificação econômica do espaço geográfico nacional que se

estruturava e se consolidava no final dos anos 1950. Baseando-se em José William

Vesentini, (1986), havia a ocorrência de uma divisão inter-regional do trabalho, fruto

de uma industrialização concentrada espacialmente, cristalizando-se uma nova

regionalização com o coroamento da integração nacional, gestado a partir da

industrialização de São Paulo. Assim as regiões se estruturam assumindo o seu papel

na economia nacional, dentro de uma nova divisão territorial do trabalho. É

justamente a época em que a questão regional ganha ênfase no atraso do Nordeste em

relação ao Sudeste.

O assunto da transferência da capital têm suas raízes ainda em meados do

século XIX. VESENTINI (1986),cita o historiador Varnhagen, sócio eminente do

IHGB (Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro, criado em 1838) e também

diplomata, que teria influenciado a Comissão chefiada por Luís Cruls e os

parlamentares que colocaram, na Constituição de 1891, o artigo que trata da

mudança da capital do país para o Planalto Central. Este historiador teria fixado o

local ideal para a nova capital, uma área em Goiás onde havia as cabeceiras, quase

juntas, das bacias Amazônica, da Platina e a do São Francisco.

Com a proclamação da República, ganha força a idéia da transferência da

capital, pois o Rio de Janeiro era identificado, na época, com o governo imperial que

havia sido derrubado. Daí o dispositivo do artigo 3º da Constituição de 1891. As

ambigüidades do novo regime federativo (mais descentralizado), que perduraria pela

336

República Velha, também traz de volta o debate sobre a necessidade de se centralizar

o poder.

A “Marcha para o Oeste”, normalmente identificada com o Estado Novo,

denota a preocupação governamental de se povoar efetivamente imensas áreas do

Brasil Central e da Amazônia. A interiorização da capital federal seria então

colocada na ótica do desenvolvimento econômico do Brasil Central, procurando-se

“irradiar” o progresso.

No governo Juscelino Kubtschek, com o slogan “50 anos em 5" e o Plano de

Metas, a construção de Brasília torna-se a “meta-síntese”, dentro da já referida

estruturação do espaço geográfico nacional, na concretização de uma nova fase de

acumulação capitalista no país. Inaugurada em 1960, no final do governo JK, Brasília

simbolizaria a unificação do espaço nacional, no interior do desenvolvimento

capitalista a nível territorial e da questão regional.

A construção de Brasília é um assunto relativamente polêmico até os dias

atuais: VESENTINI (1986), assinala que a transferência da capital federal estaria

embuída no discurso geopolítico nacional. A fixação deste discurso foi no chamado

“retângulo Cruls”, demarcado na comissão chefiada por Luís Cruls, de 1892, uma

área de 14.440 Km2, que se constituiria no verdadeiro “Planalto Central”, segundo a

ótica geopolítica. Este discurso apoiava a interiorização da capital federal com base

nos seguintes argumentos: maior integração do espaço nacional; ocupação do interior

do país (a “Marcha para o Oeste”); estabelecer uma divisão territorial

(administrativa) mais racional para o país; elaborar-se uma rede de transportes densa

e eficaz, para a interiorização da economia e da população; preocupação com as

fronteiras do país; e o uso do conceito de “segurança nacional”, em que a defesa do

território seria mais facilitada no interior (embora o mundo já se encontrasse na era

atômica). O mesmo autor ainda assinala o contexto “democratizante” de 1946 com

medidas autoritárias, visando impedir o crescimento dos movimentos populares,

relacionadas às greves inúmeras que ocorreram no final do Estado Novo, dando base,

a alguns parlamentares da época, de que as grandes metrópoles (São Paulo e Rio de

Janeiro) seriam inadequadas à uma função político-administrativa. Por conseqüência,

com a transferência da capital, o Governo poderia ficar acima de “pressões sociais”.

337

Também não teria havido, na época, críticas quanto ao distanciamento da capital

federal em relação aos maiores centros de aglomeração populacional do país.

Em contrapartida, a construção de Brasília, é vista por COSTA (2000), dentro

das estratégias das mudanças territoriais em curso, como parte de um projeto

explicitamente econômico, como um “posto de vanguarda”, direcionado ao norte e a

oeste do país como um “nó” de articulação inter-regional, de onde partiriam a

abertura de vias de acesso e vias de penetração para o norte e oeste do país (a rodovia

Belém-Brasília, a Fortaleza-Brasília, a Belo Horizonte-Brasília, a Acre-Brasília e a

Goiânia-Brasília). O autor também argumenta que não há nenhuma novidade no fato

da capital de um país centralizar geograficamente a estrutura político-administrativa

nacional. Ele coloca ainda que o Estado brasileiro sempre foi autoritário na História,

independentemente da localização da sua capital, assinalando que o golpe de 1964

teria também ocorrido se a capital fosse o Rio de Janeiro. Também o autor discorda

de que Brasília apenas distanciou os governantes do povo. Para ele, se isso fosse

verdade, só poderíamos democratizar o país e o Estado quando o Planalto Central se

tornasse superpovoado.

Finalizando o período democrático, que durou de1946 a 1964, no governo João

Goulart foi elaborado o Plano Trienal (1962), que não alavancou devido às

divergências de interesses em jogo naquele tempo. Dentro do contexto da criação da

SUDENE, este Plano também procurava corrigir as disparidades regionais no

desenvolvimento econômico do país e, para isso, previa lançar mão das políticas

tributárias através de incentivos fiscais.

No contexto das políticas regionais - voltadas para o Norte, o Nordeste e o

Centro-Oeste (onde ocorreria a construção da nova capital federal) - as alterações

político-territoriais ocorridas naquele período democrático foram a extinção dos

territórios federais de Ponta Porã e do Iguaçu (1946) que foram reincorporados aos

seus estados de origem. Mais adiante, a transformação do Acre – de território para

estado, em 1962 - ao atingir o nível de arrecadação fiscal exigido pela Constituição de

1946. O território do Guaporé teve o nome alterado para Rondônia (1956). Este último

território se tornaria em estado somente em 1981, no final do regime militar.

338

4.2- Modernização conservadora e centralizadora no Brasil: o

regime militar de 1964

O regime de 1964 não trouxe, para o Brasil, uma ruptura radical do processo de

modernização e centralização do Estado. Ao contrário, essa tendência foi

sobremaneira reforçada com a concentração do poder pelo Estado por via autoritária.

Exemplo cabal disso foi a cidade de Brasília. Conforme ANDRADE &

ANDRADE (1999), a princípio pensou-se que os militares tenderiam a abandonar

Brasília e retornar a capital federal para o Rio de Janeiro (até porque o “grosso” das

repartições, dos quartéis e dos comandos das Três Armas se concentravam na cidade

do Rio de Janeiro. Basta lembrar-se do processo da “eleição” que levou à vitória do

general Médici, para a sucessão de Costa e Silva, em 1969. Enorme parcela dos

“eleitores” militares estava sediada no antigo estado da Guanabara). No entanto, o

que aconteceu é que os militares rapidamente compreenderam que em Brasília, onde

havia uma baixa concentração demográfica, eles ficariam menos vulneráveis às

pressões da opinião pública e poderiam desenvolver sua política com maior

facilidade. Preocupados em promover o capitalismo e em inserir o Brasil no grupo

dos países ligados aos Estados Unidos (no contexto da Guerra Fria), os governos

militares priorizaram a abertura de grandes rodovias e o desenvolvimento de uma

agricultura empresarial no Centro-Oeste, área que vinha em ocupação, além de

estimular a exploração mineral.256

O fato de o governo militar ter se iniciado com a capital federal já localizada

no Planalto Central foi uma importantíssima vantagem para o regime. Afinal,

Brasília vinha de encontro, e em consonância, ao pensamento geopolítico brasileiro

que se desenvolvia há algumas décadas, entre cujos autores, podemos citar o próprio

Golbery do Couto e Silva.

VESENTINI (1985) aponta que o plano urbanístico de Brasília buscaria uma

“harmonia”, uma “divisão do trabalho” com cada parte tendo a sua funcionalidade, uma

256 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. A federação brasileira: Uma

análise geopolítica e geo-social. São Paulo: Contexto, 1999 -(repensando a geografia). p.41 e 42.

339

“hierarquia”, e isso pode ser exemplificado na paisagem através da Esplanada dos

Ministérios. Segundo o mesmo autor, Brasília não teria sido planejada como uma

“utopia socialista” e os governos estabelecidos, a partir de 1964, não desvirtuaram a

concepção original da nova capital. Muito pelo contrário, no projeto do Plano Piloto a

ideia de “ordem” e “hierarquia” foi de encontro aos propósitos do regime, que viu ali

um espaço adequado ao funcionamento dos órgãos decisórios de um Estado autoritário.

Especialmente, a partir do presidente Médici (1969-1974), procurou-se consolidar

Brasília como a nova capital.

Tal consolidação definiu-se entre 1968-1970. A mobilização popular, que vinha

ganhando corpo, com a formação da chamada “Frente Ampla” de oposição - já reunindo

antigos adversários, como Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda - e a passeata dos cem

mil no Rio de Janeiro, acabou derrotada pelo AI-5, de 1968. Nesse mesmo período,

ocorreram alguns atos de guerrilha urbana, levando o governo a pressionar certos órgãos

públicos e embaixadas que ainda funcionavam no Rio de Janeiro, a se transferirem para

a nova capital.

O Brasil, nos anos 1970, emergiria como semiperiferia e se tornaria uma

potência regional.257

Esta transformação do Brasil, se relaciona com a reestruturação

dos padrões de acumulação do sistema capitalista mundial, antes baseados no

taylorismo e no fordismo, dando lugar à revolução tecnológica, principalmente a

microeletrônica e a informática. Na nova Divisão Internacional do Trabalho, imposta

pelas corporações multinacionais e grandes bancos transnacionais, os Estados

nacionais perdem sua força como unidades econômicas, mas ainda se mantém como

importantes entes políticos condicionando tal reestruturação da economia. Dentro

dessa realidade - a recessão global, a descentralização industrial, os créditos

abundantes dos grandes bancos e determinadas condições internas específicas,

vieram a cristalizar a diferenciação no setor periférico da economia-mundo. Países

que preenchiam estes pré-requisitos como o Brasil, México, China, Índia e Tigres

Asiáticos, experimentaram ciclos de crescimento econômico entre 1967-1982, às

custas do endividamento externo e de crescente intervenção estatal.

257 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 123.

340

O Brasil apresenta um grande território, mercado interno significativo, sólida

base industrial advinda da fase democrática anterior e também foi palco de uma

política deliberada por parte de um regime autoritário. Os militares formularam um

projeto geopolítico para a modernidade em concordância com o desenvolvimento do

capitalismo brasileiro. Este projeto geopolítico alavancou o processo conhecido

como modernização conservadora e centralizadora que levaria o Brasil à condição de

potência regional.

O projeto geopolítico para a modernidade continha a intenção de se obter o

domínio do vetor científico-tecnológico moderno, para o controle do tempo e do

espaço, para a constituição do Estado-Nação na nova era mundial, e para a

modernização acelerada da sociedade e do espaço nacionais visando o crescimento

econômico e sua projeção internacional. Este projeto já se manifestou implicitamente

no Plano de Metas do governo JK e, mais tarde, esse projeto seria parte integrante do

governo, gerido pelos militares, na busca de autonomia tecnológica e da

instrumentalização do espaço, com base para a acumulação e legitimação do Estado.

Aliás, a modernização conservadora e centralizadora viu o espaço territorial como

parte integral e fundamental da base técnica do modelo do tripé (Estado, capitais

privados nacionais e capitais privados internacionais).

O novo autoritarismo, em que os militares dominaram como instituição, se

diferencia do autoritarismo tradicional (como a dos caudilhos), que se caracterizava a

nível individual. O novo autoritarismo se manifestou no nível tecno-burocrático e foi

típico dos países do Cone Sul (Brasil, Argentina, Uruguai e Chile), onde o fator

decisivo foi a militarização do Estado (CARDOSO,1979)258

, em que as Forças

Armadas tomaram o poder para se reestruturar a sociedade, intervindo contra

movimentos populares, para garantir o progresso e o desenvolvimento segundo a

ideologia da “segurança nacional”.

Há controvérsias, no tocante às explicações deste novo autoritarismo. Uma

delas é a de caráter econômico em que “os governos repressivos foram uma resposta

às dificuldades de se aprofundar o processo de industrialização, isto é, de

desenvolver a produção de insumos intermediários e bens de capital, promovendo o

258 Id., ibid., p. 127.

341

crescimento industrial acelerado através da ampliação das desigualdades de renda e

impondo uma forma de desenvolvimento social e político excludente e

concentrador” (O’ DONNEL, 1973)259.

Na implantação do novo autoritarismo no

Brasil teve-se de um lado: os fatores políticos-ideológicos como no aumento das

reivindicações populares (na época do lançamento das Reformas de Base), o clima da

Guerra Fria, a Revolução Cubana de 1958-59, o medo da disseminação das táticas de

guerrilha e a influência dos Estados Unidos (SERRA,1979; CARDOSO,1979;

HIRSCHMAN, 1979)260

; por outro lado, os fatores organizacionais e de oportunidade,

referente à capacidade de organização dos militares, que dispunham de um projeto e

conquistaram o Estado, frente à debilidade ideológica de grupos e classes civis e à

fraqueza das organizações populares (CARVALHO,1985)261.

A criação da ESG (Escola Superior de Guerra), em 1949, se insere na doutrina

de Segurança Nacional, explicitada na obra do general. Golbery do Couto e Silva262

,

tendo como objetivo acelerar o desenvolvimento e alcançar um novo “status” no

sistema capitalista mundial. A estratégia de Golbery, nos termos da análise do espaço

e posições brasileiros, é apresentada da seguinte forma: “1º- articular firmemente a

base ecumênica de nossa projeção continental, ligando o Nordeste e o Sul ao núcleo

central do país; ao mesmo passo que garantir a inviolabilidade da vasta extensão

despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das possíveis vias de penetração;

2º- impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da

plataforma central- a atual região nuclear do país-, de modo a integrar a península

centro-oeste no todo ecumênico brasileiro; e 3º- inundar de civilização a Hiléia

Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços, partindo de uma base avançada

constituída do Centro-Oeste, em ação coordenada com a progressão leste-oeste,

segundo o eixo do grande rio.”

259 Id., ibid., p. 127.

260 Id., ibid., p. 128.

261 Id., ibid., p. 128.

262 Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil in: COSTA, Wanderley

Messias da. Op.cit. p.65 e 66.

342

De fato, tais idéias vieram a se concretizar já no final da década de 1950, com a

construção de Brasília que permitiria a penetração para Centro-Oeste e também a da

Belém-Brasília que abriria o caminho para a cooptação da porção setentrional do

país.

No processo de modernização conservadora e centralizadora, o Estado elevou

seus níveis de investimento aumentando os gastos governamentais. Ocorreu uma

dinâmica de intervenção no aparato produtivo da economia à custa do endividamento

com o sistema bancário nacional e internacional, acompanhados de um projeto

territorial, dentro do ideário da integração nacional do Brasil. A modernização

autoritária buscou a revigoração da atividade econômica através da compressão

salarial e o do controle sobre o mercado de trabalho estimulando a mobilidade da

força de trabalho. O Estatuto do Trabalhador Rural (1963) e o Estatuto da Terra

(1964) contribuíram para incrementar o deslocamento das massas trabalhadoras,

concomitantemente com a exploração dos camponeses e a concentração fundiária.

A transição demográfica esteve permeada pelo aumento da população

economicamente ativa (PEA) nos setores secundário e terciário. Os trabalhadores

móveis serviram para atender as necessidades dos novos pólos de investimento e nas

fronteiras de expansão econômica, simultaneamente houve a elevação das

desigualdades sociais.

O II PND, Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), “ foi o mais

importante e concentrado esforço do Estado desde o Plano de Metas para promover

mudanças estruturais, justamente quando a economia mundial estava em sua mais

severa crise desde os anos 30. O projeto da potência estava explícito no Plano. A

estratégia para alcançá-lo, inspirado no modelo japonês, teve como núcleos

centrais: o fortalecimento das firmas nacionais, a industrialização comandada pela

produção de bens de capital, a crescente autonomia tecnológica, o apoio aos

conglomerados financeiros, e a mudança das relações externas para ampliar o grau

de independência econômica nacional, tirando vantagens das condições da crise

internacional. A política social, entretanto, não mudou na sua essência.”263

263 LESSA, 1979 in: BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 139-140.

343

Na verdade, a adequação da estrutura territorial à uma proposta de

industrialização, estão contidos no Plano de Metas (1957-1960), no I PND (1972-74)

e no II PND (1975-79). Ambos traziam a preocupação de se ordenar o território

nacional segundo a lógica do projeto geopolítico. Com o desenvolvimento científico-

tecnológico, o Estado passou a ter capacidade para tratar o espaço em grande escala.

A “malha programada” se cristalizou na extensão de diversos tipos de redes: viária,

urbana, de comunicações, etc., e também na criação de novos territórios à divisão

político-administrativa do país.

O II PND refletiu as orientações do governo Geisel face ao primeiro “choque”

do petróleo (1973). Neste cenário, o Estado confirma seu papel de impulso à

industrialização dentro da chamada “marcha forçada”.

Quanto à urbanização, ela se tornou permanente com o crescimento industrial.

O I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento), para o período de 1972 a 1974,

definia uma estratégia de planejamento urbano a nível nacional a partir da criação

das Regiões Metropolitanas.

O II PND continha políticas de urbanização, que envolveram um conjunto de

estratégias para o desenvolvimento do capitalismo no país. Eram políticas de

expansão do ambiente construído abrangendo transportes, comunicações internas e a

unificação do mercado nacional. Também havia planos setoriais para investimentos

em projetos hidroelétricos, aeroportos, barragens, usinas, portos, etc. e para a

expansão do sistema de transportes terrestres, marítimos e aéreos, bem como dos

meios de comunicação, redes de energia..., tudo dentro de um esquema de redes de

articulação territorial (urbanização num sentido mais amplo). O aumento do

movimento do capital e do trabalho fez do Brasil, um país urbano. A difusão dos

valores sociais urbanos reproduziu as desigualdades sociais do país ao nível sub-

regional e local, ampliando o potencial de conflitos.

Nas estratégias de regionalização, o Ministério do Interior institucionalizou as

macrorregiões sendo que, na segunda metade da década de 1960, foram criadas as

superintendências regionais: SUDAM, para a Amazônia; SUDECO, para o Centro-

Oeste; e SUDESUL, para o Sul do país. Somadas à SUDENE, essas

superintendências buscavam a modernização e a neutralização das oligarquias

regionais, cooptadas pelo sistema federal de incentivos fiscais.

344

Através da Emenda Constitucional nº18, de 1º de dezembro de 1965, a SPVEA

foi transformada na SUDAM (Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia), e

o Banco de Crédito da Amazônia passou a ser o BASA (Banco da Amazônia S.A). A

mesma Emenda estendeu os incentivos fiscais que já haviam sido concedidos antes

ao Nordeste. Soma-se também a criação do Fundo de Investimento Privado do

Desenvolvimento da Amazônia (Fidam), que passou a atuar junto à SUDAM e ao

BASA para promover o desenvolvimento da região.264

Na visão de MARTINS (1986), in: ANDRADE&ANDRADE (1999):

“(...)a política de incentivos fiscais consistiu basicamente em conceder isenção

de 50% no imposto de renda das grandes empresas estabelecidas em outras regiões,

particularmente no Sul-Sudeste, desde que tais recursos fossem investidos na região

Amazônica, na proporção de 75% de capital subsidiado das novas empresas e 25%

de capital próprio. A partir desse momento, o ritmo e a forma de ocupação da região

pelo grande capital alteraram-se radicalmente. Antes, de um modo geral, era

possível observar uma progressiva invasão das terras indígenas por pequenos

agricultores expulsos pelo avanço das grandes fazendas, basicamente na direção

leste-oeste, ou sua invasão por grandes fazendas de gado, seringalistas e donos de

castanhais. Com os incentivos fiscais, o avanço da grande fazenda foi enormemente

acelerado. A grande empresa passou a expulsar ao mesmo tempo camponeses e

índios, como forma de se livrar dos dois. Do mesmo modo, com os incentivos fiscais,

terras que estavam fora do circuito e que, portanto, praticamente não tinham preço,

puderam ser obtidas com poucos recursos, o que permitiu a aquisição de imensas

glebas pelas empresas do Sul. Outras vezes, terras públicas ou terras indígenas

foram transformadas em terras particulares, mediante a falsificação de documentos,

corrupção de funcionários governamentais ou simples expulsão violenta dos

ocupantes da terra.”265

264 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. Op.cit. p.40 e 41.

265 MARTINS, José de Souza. Não há terras para plantar neste verão. Petrópolis: Vozes, 1986. p.19. In:

ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. Op.cit. p.41

345

Continuando-se a tratar sobre as superintendências regionais, seguem-se dois

mapas: O mapa 1 mostra a atual divisão regional do Brasil, elaborada pelo IBGE,

que são as cinco regiões administrativas – Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e

Sul.

O mapa 2 retrata a divisão do Brasil em regiões geoeconômicas ou complexos

regionais, feita pelo geógrafo Pedro Pinchas Geiger, em 1967 (época do regime

militar). Nesta proposta, o Brasil foi dividido em três grandes regiões: Amazônia,

Nordeste e Centro-Sul.Seus critérios foram baseados no processo de formação

territorial brasileira considerando os arranjos espaciais resultantes da industrialização

do país (de acordo com FERREIRA, Graça Maria Lemos. Atlas geográfico: espaço

mundial. Visualização cartográfica de Marcello Martinelli. 4.ed.rev.e ampl. São

Paulo: Moderna, 2013, p. 152.)

346

Mapa 1

Fonte: http://www.geografia.seed.pr.gov.br/modules/galeria/uploads/5/134regioesbrasilibge.jpg

(Acessado em 22/06/2015)

347

Mapa 2

Fonte:

http://www.joseferreira.com.br/blogs/geografia/2014/abril/complexos-regionais-

regionalizacao-geoeconomica/emean1unigeoc009001.jpg

(Acessado em 22/06/2015). As informações na parte inferior do mapa são da própria fonte

acessada na internet.

348

Comparando-se os mapas 1 e 2 com o mapa maior do Anexo 1 (Órgãos Oficiais

Responsáveis pelo Desenvolvimento, localizado no final deste trabalho),266

há um

melhor entendimento das áreas de atuação das diferentes superintendências regionais,

naqueles idos da década de 1970. A SUDAM tem a sua área de atuação

correspondendo coincidentemente à Região Geoeconômica ou Complexo Regional da

Amazônia, conforme a divisão de Pedro Pinchas Geiger, de 1967, mostrada no mapa

2.

A SUDAM incluía naquela época, em seu espaço de atuação, o norte do antigo

estado de Goiás, correspondendo quase que exatamente ao atual estado do Tocantins

que, após ser criado em 1988, não permaneceu na Região Centro-Oeste, mas foi

alocado na Região Norte (conforme a regionalização atual do IBGE no mapa 1). O

norte do antigo estado mato-grossense, devido às suas características amazônicas,

também estava na área da SUDAM, abrangendo até Cuiabá e praticamente coincide

com os limites atuais do Mato Grosso.

Interessante notar que a SUDECO, a superintendência do Centro-Oeste, tinha a

área de atuação abrangendo a metade sul do antigo estado de Goiás (que praticamente

coincide com os atuais limites políticos do estado goiano com o Tocantins); mais

ainda, o sul do antigo estado mato-grossense também era área da SUDECO e, esta

última parte basicamente corresponde ao atual estado do Mato Grosso do Sul,

desmembrado do antigo território mato-grossense, na metade da década de 1970.

Comparando-se os mapas, as partes da Região Centro-Oeste, sob a atuação da

SUDECO (no caso, o que seria o atual Mato Grosso do Sul, Goiás, Distrito Federal e a

parte meridional do atual estado do Mato Grosso - incluindo-se aí - Cuiabá), se

localizavam no Complexo Regional ou Região Geoeconômica do Centro-Sul o que se

explica pelo fato de a cidade de Cuiabá estar localizada nas esferas de influências

metropolitanas tanto de São Paulo, como de Brasília.

Por fim, enorme parcela do estado do Maranhão, também está na parte de

atuação da SUDAM. Quase que coincidindo com a parcela maranhense incluída na

266 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das

Edições Melhoramentos, 1974. p.130 e 131.

349

Região Geoeconômica da Amazônia. Ressalta-se que o Maranhão concomitantemente

está no raio de ação tanto da SUDAM, como da SUDENE - a superintendência do

Nordeste. Atualmente, se considerarmos os Complexos Regionais, o Maranhão

apresenta sua parte ocidental na Região Geoeconômica da Amazônia, e sua metade

oriental no Complexo Regional ou Região Geoeconômica do Nordeste (conforme o

mapa 2).

A SUDENE, de acordo com o mapa do Anexo 1, tem a sua área de atuação

delimitada aos nove estados que compõem a Região Nordeste, conforme o IBGE.

Porém, se analisarmos, ao lado, os dois mapas menores do Anexo 1 - o espaço de

atuação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) - percebe-se

que este atinge até a parte setentrional de Minas Gerais, que por sinal localiza-se no

Complexo Regional ou Região Geoeconômica nordestina. O mesmo ocorre com

relação à SUVALE (Superintendência do Vale do São Francisco), que obviamente

além de atuar no interior dos estados nordestinos abrangidos pelo vale do São

Francisco, a sua atuação se estende por grande parte do território mineiro também.

O mapa maior do Anexo 2 apresenta a estrutura de planejamento e coordenação

econômica existentes no âmbito estadual, em 1970.267

Ao lado, no mesmo anexo, o

espaço de atuação do GEGRAN (Grupo Executivo da Grande São Paulo); e o da

SUDELPA (Superintendência do Desenvolvimento do Litoral Paulista). Com isso

demonstra-se o nível de articulação dos órgãos de planejamento que não estavam

restritos somente ao nível federal do governo, mas faziam-se presentes também no

âmbito estadual, voltados para a questão do planejamento e da coordenação

econômica.

Dentro do âmbito das políticas territoriais, o avanço da centralização se deu de

forma simultânea à “necessidade” do governo em coordenar as suas políticas

econômicas e a sua ação estatal, através da montagem de “superórgãos”, que

integrassem órgãos e políticas territoriais menores. Assim, em paralelo com as

iniciativas do Ministério do Interior, foi criado no governo Castelo Branco (1964-67),

267 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das

Edições Melhoramentos, 1974. p.134 e 135.

350

o Ministério de Planejamento e Coordenação Econômica. Em novembro de 1964, é

elaborado o Paeg (Programa de Ação Econômica do Governo), para o período de

1964 a 1966, que trazia propostas idênticas a do Plano Trienal de João Goulart,

referindo-se à correção das disparidades regionais e à ocupação econômica da

Amazônia. Também trazia a proposta de subordinar as superintendências regionais ao

Ministério Extraordinário para a Coordenação de Organismos Regionais, que de fato

seria criado em 1965.

O Plano Decenal de Desenvolvimento Econômico e Social, abrangeria o período

de 1967 a 1976, mas não chegou a ser implementado. Este Plano procuraria tratar a

questão regional do ponto de vista da integração nacional, propondo a ocupação

econômica do Nordeste e do Centro-Oeste, na consolidação de um mercado nacional.

Outro aspecto desse Plano era a aplicação, no Brasil, da “Teoria dos Pólos de

Desenvolvimento”, de Perroux (in: COSTA, 2000, p.63.) com o estabelecimento de

“Regiões-Programa”, em que estes pólos seriam os centros urbanos capazes de

concentrar investimentos. O plano seguinte foi o Programa Estratégico de Governo

(1968-1970), que nas políticas territoriais, tinha também como objetivo a integração

nacional, com a caracterização de pólos selecionados (industriais), para garantir a

intercomplementaridade dentro da estrutura industrial.

A integração da Amazônia era uma prioridade por razões de acumulação e de

legitimação. Buscava-se o “equilíbrio” geopolítico interno e externo, como em

incrementar a predominância do Brasil na América do Sul. Com o PIN (Programa de

Integração Nacional), o governo federal assumiu o processo de ocupação da

Amazônia, somadas à implantação de grandes redes transversais para a integração

espacial da região (rodoviária, urbana, de comunicações, hidroelétrica, etc.), que

recortou a floresta e expôs a riqueza de seu subsolo. Cita-se principalmente a

construção da Transamazônica, que seria um imenso corredor de exportação entre o

Atlântico e o Pacífico. Foram criados pelo governo federal novos territórios,

superpostos ao dos Estados, que teriam total jurisdição da União. Os subsídios aos

fluxos de capital privilegiariam a apropriação privada da terra por empresas

agropecuárias e mineradoras. E a indução de fluxos migratórios complementaria a

ocupação das terras à frente da fronteira móvel, antes restrita às bordas da floresta.

351

O PIN, lançado em 1967, possuía objetivos globais e setoriais para o Nordeste e

Amazônia. Baseando-se em COSTA(2000), viu-se que este Programa objetivava a

integração da Amazônia e também do Centro-Oeste à economia nacional. Exemplos

disso foram a Transamazônica e ainda a Cuiabá-Santarém, ao lado de outras rodovias

já existentes, para se completar a estrutura territorial de circulação dentro do alvo da

“integração nacional”. Ilustra-se então as importantes alterações no espaço geográfico

brasileiro que pretendia o PIN. Em linhas gerais, o I PND, dentro das políticas

territoriais, tinham seus objetivos baseados no PIN.

A partir de 1973, após a primeira crise do petróleo, a estratégia governamental se

tornou mais seletiva, sub-regional, com a implantação dos pólos de crescimento. O II

PND valorizaria as vantagens comparativas das diversas regiões do Brasil encorajando

as especializações regionais. Foram criados os “pólos regionais”, como o

POLAMAZÔNIA, o POLOCENTRO e o POLONORDESTE, que permitiram uma

maior concentração dos recursos em determinadas áreas e setores selecionados,

“mega-empreendimentos” que propiciassem retorno à curto prazo. Esses pólos foram

definidos procurando-se aproveitar a estrutura básica de circulação, principalmente as

rodovias, privilegiando áreas que já tinham uma certa concentração econômica e

populacional, como o leste e sudeste do Pará. De acordo com COSTA(2000), o PIN

trazia objetivos de povoamento da Amazônia, através de “projetos de colonização”.

No II PND, tais objetivos são colocados de lado e, se prioriza, o grande

empreendimento da fase monopolista do capitalismo, com capitais privados nacionais

e estrangeiros, sob estímulos governamentais relacionados a investimentos em

infraestrutura, dentro de um contexto de declínio dos investimentos e da nova política

econômica global da época.

A segunda crise do petróleo, em 1979, traria então um aumento nas taxas de

juros internacionais e a política econômica nacional passou a ser de contenção de

gastos, redução de financiamentos e elevação da dívida externa. Era a “marcha

forçada”. A política regional das agências burocráticas convencionais foi substituída

pela implantação de grandes projetos de exploração mineral e tentativas de se atrair

investimentos estrangeiros e de se transnacionalizar empresas estatais. Aqui merece

menção o Projeto Grande Carajás (PGC), gestado pela Companhia Vale do Rio Doce,

352

incluindo minas, ferrovia (900Km), porto e um território de 2 milhões de hectares,

dentro deste projeto.

Na busca da autonomia tecnológica, o objetivo foi o de se ultrapassar a etapa de

substituição de importações, estimulando a manufatura doméstica de novos produtos.

A ambição das Forças Armadas era o de ter domínio do vetor científico-tecnológico

moderno especialmente em quatro setores estratégicos268

:

Na Aeronáutica, a criação do CTA (Instituto Tecnológico

da Aeronáutica), em 1951, cujos projetos desenvolvidos foram

transferidos para a EMBRAER (Empresa Brasileira de Aeronáutica). Em

1961, o CTA seria pólo de atração para o que seria mais tarde o INPE

(Instituto de Pesquisas Espaciais). Houve também a constituição do

Centro Técnico Aeroespacial, em 1971, com apoio governamental;

Na pesquisa nuclear, teve-se a criação do CNPq (Conselho

Nacional de Pesquisas), em1951. Em busca de uma política atômica

independente dos Estados Unidos, foi assinado em 1975 um acordo entre

Brasil e Alemanha Ocidental. A implementação do acordo ficou a cargo

da NUCLEBRÁS, uma “holding” estatal que não teve o sucesso

esperado devido à inadequação de tecnologia de enriquecimento e a

erros de construção e operação do projeto. Pelo menos até o início do

século XXI, haveria um Programa Nuclear Brasileiro “paralelo”, por

parte da Marinha em colaboração com o CNEN (Conselho Nacional de

Energia Nuclear) e a USP (Universidade de São Paulo), iniciado em

1979, que prosseguiria independentemente do acordo entre Brasil e

Alemanha;269

Na indústria bélica, com o conflito no Vietnã, os Estados

Unidos restringiram o volume de exportações de armas e facilidades de

268 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 130-134.

269 Id., Ibid., p. 132.

353

crédito. Os militares brasileiros procuraram então a independência de

forças estrangeiras na tentativa de se suprir as Forças Armadas e adaptar

seus equipamentos para as ameaças internas ao regime autoritário.

Destaques para a ENGESA, associada ao Exército e a criação da IMBEL,

em 1975, na produção de equipamentos para as forças terrestres;

Finalmente, na indústria da computação, o governo

negaria permissão à IBM e a outras empresas transnacionais para

fabricarem mini e microcomputadores no Brasil. Foi criada a SEI

(Secretaria Especial de Informática), em 1979, subordinada ao Conselho

Nacional de Segurança em Brasília, na tentativa de se ter uma política

nacional para o setor.

No II PND, a política de apropriação tecnológica, concentrou os esforços em

ciência e tecnologia para os Centros de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), estatais e

militares. As empresas estatais dos setores de exploração mineral, energia nuclear,

aeroespacial, petroquímica e de telecomunicações (TELEBRÁS), se associaram às

pesquisas desenvolvidas em empresas privadas e/ou centros universitários. O locus do

projeto geopolítico moderno iria se localizar no Vale do Paraíba, por sua localização

estratégica dentro do “corredor” entre as duas maiores metrópoles do país, São Paulo e

Rio de Janeiro, próximo aos centros de decisões militares destas duas metrópoles,

contando com a presença de pessoal técnico graduado nas instituições militares aí

localizadas e mais os técnicos treinados na CSN (Companhia Siderúrgica Nacional).

No tocante ao cenário internacional, o Brasil, desde o final dos anos 1960 e

sobretudo, após 1974, adota uma linha de “recusa” ao “alinhamento automático” com

os Estados Unidos, dentro do quadro de crise econômica mundial e nacional e ao

relativo declínio da hegemonia norte-americana (se pensarmos na expansão econômica

japonesa e na expansão européia também, potencializada pelo Mercado Comum

Europeu).

Entre 1964 e 1974, o Brasil buscou um papel hegemônico regional em troca de

sua aliança com os Estados Unidos. No campo ideológico, os interesses do Brasil e

dos Estados Unidos na América Latina se deu através do apoio logístico secreto aos

golpes militares, como na Bolívia, e na repressão aos movimentos de esquerda. Não

podemos deixar de mencionar ainda a chamada “Operação Condor”, sistema de

354

repressão que contava com a colaboração conjunta dos regimes militares de Brasil,

Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai, que recentemente foi investigada acerca

da morte do ex-presidente João Goulart.

No campo econômico, procurou-se neutralizar a influência da Argentina e

ampliar-se a influência brasileira na bacia do Prata, através do aparelhamento dos

portos do sul do país (como no de Rio Grande); pela omissão face à ocupação da terra

por colonos brasileiros, plantando-se soja no Paraguai ou pela penetração de

seringueiros em matas bolivianas; e no controle da exploração de recursos naturais,

monopolizando o potencial hidrelétrico brasileiro do rio Paraguai, através do

financiamento, construção e utilização da barragem de Itaipu. O Brasil tinha como

objetivo, a ocupação do vácuo de poder no Atlântico Sul, através de uma aliança

Brasil- Estados Unidos- África do Sul270

. Também foi dado apoio brasileiro à política

colonialista de Portugal (com a criação da Comunidade Afro- luso- brasileira em 1971,

aproveitando laços históricos e culturais), buscando-se a aproximação com economias

africanas.

A partir de 1974, o governo Geisel adotaria uma política externa conhecida

como “pragmatismo responsável”, no contexto da crise econômica mundial, advinda

do primeiro “choque” do petróleo, somados à decadência da hegemonia dos Estados

Unidos, relacionada à guerra do Vietnã, e um “vácuo” de poder na América Latina.

Exemplos deste processo de afastamento comercial e militar do Brasil, em relação aos

Estados Unidos, foi a não-assinatura do Tratado de Não- Proliferação de Armas

Nucleares pelo Brasil, em 1969 ; e o tratado feito com a Alemanha Ocidental em

1975, no setor nuclear, junto à ruptura do acordo militar com os Estados Unidos, em

1977, que estava em vigor desde 1952. Dentro ainda do âmbito global, citam-se o

reconhecimento aos governos de Angola, Moçambique e Guiné- Bissau, desligando-se

da política de Portugal e a expansão dos laços comerciais com a Europa Ocidental e o

Japão, e finalmente, na atuação em organismos internacionais como o GATT, contra o

protecionismo dos Estados Unidos.

A nível regional, o Brasil, em suas relações continentais, voltou-se para a Bacia

Amazônica, com o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), de 1977. Procurava-se

270 Id., ibid., p. 155.

355

ampliar as relações comerciais com os países andinos como Colômbia, Venezuela, e

também, de se tirar a Guiana e o Suriname do isolamento.

Acrescenta-se o processo de multinacionalização das empresas estatais em que o

governo brasileiro comprou parte da produção de aço da Bolívia, em troca do petróleo

e gás natural daquele país. No Paraguai, através de uma organização binacional,

seriam construídas a barragem de Itaipu e a “Ponte da Amizade” na rodovia que liga

Assunção ao porto de Paranaguá, no estado do Paraná.

A elevação da dívida externa foi a base para a modernização acelerada, contudo

fez parte também do fenômeno ligado às mudanças estruturais na economia-mundo e

dos empréstimos “empurrados” pelos grandes bancos na década de 1970. A eclosão da

crise da dívida, no começo dos anos 1980, já no governo Figueiredo, seria um “marco”

para o fim do processo de modernização conservadora e centralizadora, comandada

pelo Estado, e daria sua contribuição para o fim do regime autoritário de 1964.

4.3 Heranças e legados da modernização conservadora e

centralizadora para o Brasil

Trataremos agora sobre as heranças e os legados desse processo de

modernização conservadora e centralizadora pela qual o Brasil passou por mais de

quatro décadas.

Comecemos pela televisão. A TV chegou ao Brasil em 1950 e, por este motivo,

não foram poucas as comemorações dos 50 anos da TV brasileira, durante o ano

2000 (simultaneamente a TV Globo, festejava seus 35 anos. Atualmente em 2015, a

Globo comemora os seus 50 anos). Contudo, foi durante os anos do regime militar,

que a televisão foi ganhando projeção nacional, especialmente a TV Globo, durante

os anos do “milagre econômico” do governo Médici, que coincidem com os

primeiros anos do Jornal Nacional e de sucesso das telenovelas.

356

Relembremos a frase já citada lá atrás de Renato Ortiz: “Para ser preservada,

a democracia necessita ser incessantemente renovada, não basta sermos

modernos.”271

Controle e expansão são dois componentes que vivem numa tensão constante,

mas não são necessariamente antagônicos. No caso brasileiro, os militares tinham

uma visão sistêmica das relações sociais, das suas disparidades e de suas

divergências. Mantê-las articuladas, e de uma forma orgânica, exigia uma visão

totalizadora, um poder centralizado e um aparato repressivo forte.272

A criação do

SNI (Serviço Nacional de Informações) vinha de encontro a atender essa

necessidade.

Na esfera cultural, entre os mecanismos repressivos, o regime fez uso dos IPMs

(Inquéritos Policiais Militares), com objetivo de identificar e punir “subversivos”

(professores universitários, intelectuais e editores – no campo cultural - além de

também ter atingido políticos, sindicalistas e indivíduos considerados corruptos). Em

segundo lugar, fez o uso da censura, utilizando o arcabouço jurídico já existente

somando-o à criação de outras normas e decretos.

Os militares eram especialmente atentos aos meios de comunicação, pois neles

transitava a informação, que poderia ser “perigosa” à ótica do regime. Aspectos

políticos, como o controle e combate a partidos políticos e sindicatos, bem como

aspectos culturais, como o meio universitário, eram alvos da atenção autoritária. A

universidade era o local da insatisfação, da resistência e do questionamento ao

regime.

271 ORTIZ, Renato. Revisitando o tempo dos militares. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 116

272 Id., Ibid., p.116.

357

Por outro lado, o manual básico da Escola Superior de Guerra assinalava que a

cultura não deveria ser reprimida, mas desenvolvida, desde que em consonância à

doutrina da segurança nacional. O controle do aparelho estatal é necessário, mas

conjuntamente com o estímulo para se desenvolverem as produções culturais. Por

isso, a política governamental do regime no setor cultural foi dinâmica. Entre 1965 e

1979 foram criados vários órgãos voltados para o incentivo à cultura: Embratel,

Conselho Federal de Cultura, Embratur, Ministério das Telecomunicações,

Embrafilme, Telebrás, Funarte, Fundação Pró-Memória, Radiobrás,etc. A Embratel

realizaria a implantação do sistema de integração nacional por TV, completando o

sistema de comunicação.273

A modernização da sociedade brasileira implicou em uma mudança drástica do

cenário cultural. Paralelamente à integração econômica das diversas regiões do país,

consolidou-se também um mercado de bens simbólicos a nível nacional. O advento

da indústria cultural coincidiu com o período do regime militar, momento este em

que a televisão transforma-se num veículo de massa, o cinema consolida-se como

atividade financiada pelo Estado e desenvolve-se, em larga escala, a indústria

fonográfica, editorial e publicitária.274

A televisão ilustra bem o processo de expansão da indústria cultural. Nos anos

1950, ela é regional, concentra-se apenas em algumas cidades, a maioria delas

capitais estaduais: São Paulo (1950), Rio de Janeiro (1951), Belo Horizonte (1955),

Porto Alegre e Ribeirão Preto (1959), Recife, Salvador e Fortaleza (1960). Os

programas são apresentados ao vivo e, com o advento do videoteipe podem ser

comercializados entre os estados (em 1963, aparece a telenovela diária), mas

273 Id., ibid., p. 118.

274 Id., ibid., p. 119.

358

somente com os grandes investimentos tecnológicos feitos pelo Estado é que o sinal

televisivo passa a integrar um sistema nacional de telecomunicação.275

Se em 1959, havia 434 mil aparelhos de televisão em todo o país, no ano de

1980 seriam mais de 19,6 milhões de unidades. Em 1959, na cidade do Rio de

Janeiro, apenas 7% da classe popular assistia televisão. Em 1982, 73% dos

domicílios daquela cidade contavam com aparelhos de TV.276

Assim, durante o regime, a censura não se pauta pelo veto a qualquer bem

cultural. Ela age de forma seletiva: atinge peças de teatro, filmes, livros e artigos de

jornal, mas não o teatro, o cinema ou a indústria editorial. O ato repressor se volta

contra a especificidade de algumas obras, mas não com a generalidade da produção.

Consumam-se então duas tendências aparentemente excludentes: controle e expansão

modernizadora. Contrastam-se os valores do pensamento autoritário com a lógica da

indústria cultural emergente, trazendo-se uma contradição ao processo de

modernização no Brasil, mas que mesmo assim não se deixou de realizar.

O regime militar procurou tratar a sociedade como uma totalidade que

gravitava em torno de um núcleo central. Nesse sentido, a nação, unidade territorial e

moral, coincide com o Estado, lugar de uma única vontade de poder. Como assinala

Joseph Comblin (in: ORTIZ, 2014)277

, a nação não se difere do que se constitui

formalmente o Estado e toda contestação ao Estado é uma ameaça aos seus

fundamentos.

O Estado militar passa a atuar como o defensor do caráter nacional, conjunto

de valores que vão se constituir na essência da “verdadeira” identidade brasileira.

Este também se vê como o promotor do desenvolvimento e torna-se fundamental

275

Id., ibid., p. 119.

276 Id., ibid., p. 119 e 120.

277 Id., ibid., p. 120.

359

“resguardá-lo” dos conflitos políticos, estimulando mais um sistema de dissuasão do

que necessariamente de coerção. Um exemplo disso foi a criação da Assessoria

Especial de Relações Públicas (Aerp), agência de propaganda do governo, com o

objetivo de produzir uma imagem positiva e otimista do país. A concepção de mundo

da elite militar era tradicional e conservadora com aversão a tudo que a

contradizia.278

A mencionada contradição no processo de modernização brasileiro se

manifestou através da lógica diferenciada que a indústria cultural apresentou. A

produção dos bens culturais não se encontrava articulada a uma ideologia de

contenção, mas de expansão do mercado. O ato repressivo, muitas vezes, era visto

como um entrave ao mercado. E a tensão entre a lógica do governo e a do mercado

só foi crescendo à medida que também se expandia a sociedade de consumo. As

décadas de 1960 e 1970 trouxeram uma liberalização dos costumes, fenômeno este

que se fez presente, sobretudo, tendo como pano de fundo o cenário da Guerra Fria,

nos países do Ocidente capitalista (Estados Unidos, Europa ocidental e em

sociedades latino-americanas mais complexas, como a brasileira). Temas como o

consumo de drogas, a liberdade sexual e a emancipação feminina, ganham espaço

sendo praticamente impossível a sua contenção por algum tipo de ideologia. E, para

completar, a lógica do mercado se aproxima da questão da resistência ao regime. Já

foi assinalado, lá atrás que especialmente no governo de Castelo Branco, e depois no

de Costa e Silva (antes do AI-5, de 13 de dezembro de 1968), houve, no Brasil, uma

relativa hegemonia cultural da esquerda nos quatro primeiros anos do regime (1964-

1968), motivo este que até serviu para que o jornal Folha de São Paulo alcunhasse o

nome de “ditabranda” à tal período.

Mesmo depois do AI-5, a despeito da feroz repressão às esquerdas envolvidas

nas lutas armada contra o regime, a lógica do mercado não seria por completo

278 Id., ibid., p. 121.

360

aniquilada. Pelo contrário, tal tensão se atenua bastante. No decorrer da década de

1970, a indústria fonográfica continua a se consolidar no Brasil, as transformações

técnicas na gravação vão ocorrendo e o disco em LP se torna em algo disseminado

em uma sociedade de consumo em expansão. O exemplo dos festivais de MPB é

bastante ilustrativo. Eles eram vigiados de perto pelo Estado autoritário, reunindo a

inquietude e a contestação política. Mas, também era uma estratégia de mercado para

integrar o público universitário nos circuitos de consumo. A “juventude” se torna em

um segmento a ser comercialmente explorado.

ORTIZ (in: REIS FILHO, RIDENTI & MOTTA, 2014), destaca que se o regime

militar trouxe algo de novidade, esta foi a inauguração de uma nova etapa da

modernidade que atingiu as diversas regiões do país e as diferentes dimensões da

vida em sociedade.279

A ideologia eletrônica da televisão se constituiu num instrumento de política

social e de formação de opinião, conectando ricos e pobres, no mundo das ilusões e

utopias das novelas e dos noticiários programados. Ocorre então, um processo

complexo de fusão da modernidade com a pobreza.

A “modernidade da pobreza”280,

engloba as quedas nas taxas de natalidade, e

de mortalidade, no Brasil, a denominada “transição demográfica”, processo este que

teve um padrão “tradicional” na Europa, levando de um a dois séculos. No Brasil, tal

processo ficou restrito a poucas décadas, incluindo a queda brusca dos índices de

fecundidade (de 4,35 para 3,53 no período de 1980 a 1984) reduzindo-se o

crescimento vegetativo281.

A transição demográfica não trouxe melhorias às grandes 279 Id., ibid., p. 126.

280 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit. p. 170-180.

281 Id., ibid., p. 171.

361

parcelas da população. Houve aumento da pobreza, queda da remuneração não

qualificada e elevação da remuneração de serviços técnicos e gerenciais. Também

ocorreu uma elevação da concentração de renda e das desigualdades regionais.

Todavia, as políticas de telecomunicações, saúde, transportes e educação

possibilitaram a difusão de valores, conhecimentos e novas práticas culturais que

estimularam o controle da natalidade e métodos anticoncepcionais.

A concentração de capital e o crescimento econômico foram viabilizados pela

repressão salarial e pela mobilidade histórica dos trabalhadores. O processo

migratório, que possibilitou uma maior mobilidade espacial e social, relaciona-se à

modernização das firmas e a determinadas políticas trabalhistas. Tal atração foi

exercida por pólos dinâmicos, com novas oportunidades de emprego, ou de acesso à

terra, sobretudo no Sudeste, nas metrópoles e, secundariamente, nas novas fronteiras

do Centro-Oeste e da Amazônia. Aliás, a modernização da agricultura liberou mão-

de obra rural em todo o país, não só no Nordeste. Houve ainda o crescimento dos

setores secundário, terciário e do aparelho do Estado, com a expansão e

diversificação da classe média. Assim a sociedade brasileira transformou-se nos anos

1960 e 1970, adquirindo um maior caráter consumista.

Como a transição demográfica, a urbanização brasileira se deu em ritmo

acelerado, como resultado das políticas governamentais, somados aos efeitos não

previstos e ajustes espontâneos da sociedade. A urbanização se constituirá no eixo

que articula o Brasil à economia mundial. Nos núcleos urbanos apareceram as sedes

das novas instituições e são onde ocorrem com maior intensidade a circulação de

bens, capitais e informações. São os lugares onde a força de trabalho expulsa pela

modernização agrícola reside, circula e é ressocializada, ingressando na modernidade

da pobreza. É importante relembrar que foi no I PND (1972-1974) que se teve a

criação das Regiões Metropolitanas, sendo que tais regiões não estão restritas

somente ao Sudeste e Sul do país, pois além de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo

362

Horizonte, no Sudeste; e de Curitiba e Porto Alegre, no Sul; têm-se ainda Salvador,

Recife e Fortaleza, no Nordeste; e Belém, na região Norte; enquanto que no Centro-

Oeste há a presença da capital político-administrativa, Brasília, e o importante

núcleo urbano de Goiânia. Isto em um primeiro momento.

Detalhando-se mais este tema das Regiões Metropolitanas, voltemos pouco

mais de 40 anos atrás, à um material chamado Atlas das potencialidades brasileiras:

Brasil grande e forte, produzido em 1974. Ali, no contexto do I PND, há uma

descrição completa sobre a institucionalização das Regiões Metropolitanas:282

“O IBGE identificou 8 regiões metropolitanas de caráter nacional,

caracterizadas e delimitadas segundo critérios dinâmicos, de três tipos diferentes:

1- Critérios demográficos: Os municípios devem apresentar uma densidade

demográfica superior a 60 hab./Km2, e crescimento de população superior ao

crescimento vegetativo.

2- Critérios estruturais: Os municípios devem ostentar elevada proporção da

população dedicada a atividades urbanas (não agrícolas).

3- Critérios de integração: Relacionam-se com os movimentos da população e

as necessidades de serviços comuns do ponto de vista metropolitano. Atualmente são

os mais importantes.

A partir desse estudo, o Congresso Nacional estabeleceu a Lei Complementar

que, na forma do artigo 164 da Constituição, criou as seguintes regiões

metropolitanas:

1- São Paulo, que engloba 37 municípios(...)

2- Belo Horizonte, com 15 municípios (...)

282 Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento editorial das

Edições Melhoramentos, 1974. p.23

363

3- Porto Alegre, com 14 municípios (...)

4- Recife, com 8 municípios(...)

5- Salvador, com 8 municípios(...)

6- Curitiba, com 9 municípios(...)

7- Belém, com 2 municípios(...)

8- Fortaleza, com 3 municípios(...)”

Aqui cabe uma observação. Onde há as reticências (...) é onde são listados, um

a um, os municípios de cada uma das Regiões Metropolitanas, o que optei por não

fazer aqui.

Quando foram citadas antes as Regiões Metropolitanas, o total foi de nove

(sem considerar-se Brasília e Goiânia). No Atlas estão colocadas oito delas. Isto

porque a cidade do Rio de Janeiro não havia sido contada, pois ainda correspondia ao

estado da Guanabara. Logo no ano seguinte, 1975, ocorreria a fusão entre os estados

da Guanabara e o do Rio de Janeiro.

O governo Geisel (1974-1979), na sua versão oficial, alegava que a fusão

dessas duas unidades da Federação tinha por objetivos a criação de um estado forte,

tanto política como economicamente, trazendo equilíbrio à Federação, reforçando-se

argumentos geoeconômicos. A fusão era apresentada do ponto de vista técnico,

inserida num plano estratégico de desenvolvimento nacional, buscando-se criar um

novo pólo dinâmico de desenvolvimento, trazendo efeitos benéficos à própria

segurança nacional.

As elites empresariais cariocas se mostravam favoráveis à fusão. Uma outra

linha de interpretação, tanto do senso comum como dos políticos de oposição ao

regime militar, credenciam a fusão à tentativa de conter a seção carioca do MDB

(Movimento Democrático Brasileiro) e privilegiar o partido governista, a Arena

(Aliança Renovadora Nacional). Pois com a vitória de Chagas Freitas, em 1970, a

364

Guanabara era o único estado da Federação governado pela oposição emedebista,

que poderia se enfraquecer e se dividir entre seus dois principais líderes políticos: o

carioca Chagas Freitas e o fluminense Amaral Peixoto.

Marieta de Moraes Ferreira, in: CASTRO & ARAÚJO (2002), ao analisar os

documentos no arquivo de Geisel, que incluíam relatórios do SNI (Serviço Nacional

de Informações), reforça o raciocínio de que a fusão teria um caráter mais técnico, na

ideologia do desenvolvimento nacional, objetivando a emergência de um pólo de

desenvolvimento de grandes dimensões, como o de São Paulo, diversificando-se

pólos industriais e reduzindo desequilíbrios regionais. Não há como se desconsiderar

aspectos políticos, relacionados às disputas entre o MDB e a Arena, porém tal

raciocínio é perfeitamente plausível.

Poucos anos antes, no final da década de 1960, havia sido elaborada uma nova

divisão regional do Brasil, pelo IBGE, com a criação da Região Sudeste e a supressão

da Região Leste em que, pela primeira vez, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro

passaram a integrar a mesma região, ao lado de Minas Gerais e Espírito Santo.

Em ANDRADE & ANDRADE (1999) é utilizado o termo territorialização para

se designar a transformação do espaço brasileiro em território, através do povoamento,

da introdução de atividades econômicas e da conformação de uma estrutura social.

Enfim, a produção do território brasileiro iniciada pelos colonizadores portugueses.

Os autores, assinalando que a Região Centro-Oeste estaria ainda em um processo

de territorialização, afirmam que a mesma região apresentaria uma forte tendência à

fragmentação. O desmembramento do Mato Grosso, com a criação do território de

Ponta Porã, em 1943 (e que seria extinto já em 1946), não satisfez à população da parte

meridional. Mas, em 1975, foi criado o estado do Mato Grosso do Sul, também durante

o governo Geisel. Após o regime de 1964, houve a criação do estado do Tocantins, do

desmembramento de Goiás, em 1988 (reivindicação esta que vinha desde os tempos do

Império). Há outras propostas, com relação ao Mato Grosso (com a criação do estado do

Mato Grosso do Norte ou do Aripuanã) e também do território do Araguaia.

Na Região Norte, ocorreu a criação dos territórios do Amapá, do Rio Branco

(atual Roraima) e o do Guaporé (atual Rondônia) no período do Estado Novo. Este

365

último foi transformado em estado em 1981, no final do período autoritário, durante os

anos de Figueiredo.

Amapá e Roraima tornaram-se estados posteriormente ao fim do regime, com a

Constituição de 1988. Nos dias atuais, os movimentos de criação de novos estados e

territórios têm a sua força com o desenvolvimento agropecuário e da mineração, casos

das propostas para os estados do Carajás e do Tapajós, em que o Pará seria

desmembrado. Porém, em votação realizada em 2011 entre a população paraense, o não

ao desmembramento, ou seja, o não à criação dos novos estados foi opção vitoriosa na

consulta popular.

No contexto do I PND, na área do planejamento urbano, a nível nacional, foi

concebida a criação das Regiões Metropolitanas e a estratégia de desenvolvimento

regional focou-se nos “polos de desenvolvimento”, tanto nas áreas mais dinâmicas

como nas áreas mais atrasadas do país.

As duas estratégias: primeiro, o estabelecimento das Regiões Metropolitanas; e

por último, os estímulos à formação e consolidação dos pólos de desenvolvimento

viriam de encontro aos objetivos do governo militar em se concretizar a fusão dos

estados da Guanabara com o do Rio de Janeiro. Uma vez que, após a fusão, estabeleceu-

se somente o estado do Rio de Janeiro, e a capital fluminense seria agora a cidade do

Rio de Janeiro, teríamos a conformação de mais uma Região Metropolitana no Sudeste,

encabeçada pela segunda maior cidade do país.

Nos dias atuais, em conformidade com o IBGE havia em 2010 quinze Regiões

Metropolitanas no Brasil, ordenadas da seguinte forma (considerando-se a população

total da área metropolitana e não somente a do município principal):

1)São Paulo; 2)Rio de Janeiro; 3)Belo Horizonte; 4)Recife; 5)Porto Alegre;

6)Salvador; 7)Brasília; 8)Fortaleza; 9)Curitiba; 10)Campinas; 11)Goiânia/Anápolis;

12)Belém; 13)Manaus; 14)Grande Vitória; e 15)Baixada Santista.

Vê-se desta forma que a urbanização brasileira foi um fenômeno de caráter

nacional, daí a afirmação de que hoje o Brasil é, sem sombra de dúvidas, um país

urbano. Nesse processo, São Paulo se torna uma cidade mundial, ou seja, desponta

como um dos centros de controle e acumulação de capital em escala planetária.

366

A urbanização foi sustentada, em grande parte, por uma esmagadora maioria de

mão- de-obra barata e pobre. Nos últimos tempos, as metrópoles têm sido o lugar

principal da crise urbana, das carências sociais, dos “sem-teto” e loteamentos

clandestinos. Surgem problemas de gestão complexa, relacionados ao potencial de

conflitos reivindicatórios de direito à cidadania. As aglomerações urbanas se tornaram

também o palco principal da luta pela redemocratização da sociedade e pela preservação

do parque industrial nacional.

Com o deslocamento da população do campo para as aglomerações urbanas, os

brasileiros mudaram radicalmente de atitude com relação à fertilidade. A introdução da

pílula anticoncepcional, a esterilização em massa e outros métodos contraceptivos, na

década de 1960, foram levando ao declínio da fecundidade, iniciado discretamente no

período pré-militar nos centros urbanos mais desenvolvidos economicamente, e depois

espalhou-se por todo o país, inclusive para a área rural. Nas décadas de 1940-1960 as

brasileiras apresentavam uma média superior a seis filhos por mulher em idade fértil.

Em 1970 baixou para 5,8. No final da década de 1970, a redução foi dramática,

considerando-se que num intervalo de apenas vinte anos, as mulheres já geravam em

média quatro filhos a menos. A tendência seguiu-se após o fim do regime militar

ficando inferior a três filhos por mulher em 1991. 2,4 filhos em 2000. E 2,1 filhos por

mulher em idade fértil, em 2010, valor mínimo necessário para a reposição da

população.283

(vide tabela 2)

283 LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS

FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 79 e 80.

367

Tabela 2:

Brasil - Taxa de Fertilidade (1940-1980)

Número de filhos por mulher em idade fértil

1940 6,2

1950 6,2

1960 6,3

1970 5,8

1980 4,4

Fonte: IBGE, “Estatísticas do século XX”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais

no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto

Sá. Op.cit. p. 82.

O controle da fertilidade começou nos estados mais ricos do Sudeste e do Sul. E

também entre a elite econômica do país. No final da década de 1970, o Nordeste

apresentava uma fertilidade natural superior a sete filhos por mulher em idade fértil.

Naquela época a diferença de fertilidade das mulheres do Nordeste e do Sudeste era de

praticamente três filhos. Mas na década de 1980, essa diferença foi se atenuando à

medida que as mulheres do Nordeste começaram a praticar de uma forma mais

sistemática alguma forma de controle da natalidade. A redução no número de filhos,

sobretudo a partir dos anos 1970, trouxe alterações à estrutura da pirâmide etária da

população. As camadas mais jovens da população (a base da pirâmide) sofreram, a

partir dali, uma redução no final do século XX, se compararmos com a metade daquele

mesmo século.284

(vide tabela 3)

284 Id. Ibid. p.81 e 82.

368

Tabela 3:

Brasil - Taxa de Fertilidade (1940-1980)

Número de filhos por mulher em idade fértil

Sudeste Nordeste

1940 6 7,1

1950 5,7 7,6

1960 5,8 7,5

1970 4,6 7,5

1980 3,5 6,1

Fonte: IBGE, “Estatísticas do século XX”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais

no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto

Sá. Op.cit. p. 82.

A taxa de mortalidade infantil reduziu-se pela metade, passando de 135 óbitos de

crianças para cada mil nascidas vivas, em 1950-1955, para 63 óbitos por mil nascidos

vivos em 1980-1985285

(vide tabela 4). Mas havia enorme desigualdade regional. Em

1980, a mortalidade infantil no Nordeste era o dobro da taxa verificada no Sul e no

Sudeste. A disparidade entre as taxas foi maior em 1980 do que em 1950, pois a queda

destas taxas nas regiões economicamente mais avançadas foi muito mais rápida do que

a verificada nos estados mais pobres do Nordeste.286

(vide tabela 5)

285 Id. Ibid. p.85 e 86.

286 Id. Ibid. p.86.

369

Tabela 4:

Brasil - Mortalidade Infantil de 1950-1955 a 1980-1985

Mortes abaixo de 1 ano por 1000 nascimentos no ano

1950-55 134,7

1955-60 121,9

1960-65 109,4

1965-70 100,1

1970-75 90,5

1975-80 78,8

1980-85 63,3

Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert

S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 87.

Tabela 5:

Brasil - Mortalidade Infantil - Regiões Nordeste, Sudeste e Sul

1950-1980

Mortes abaixo de 1 ano por 1000 nascimentos no ano

Nordeste Sudeste Sul

1950 175 122 109

1960 164 110 96

1970 146 96 82

1980 118 57 59

Fonte: IBGE. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-

1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 88.

370

Quanto à expectativa de vida, no período compreendido entre 1950 a 1980, os

homens experimentaram uma adição de 11,1 anos; e as mulheres de 14,1 anos na

expectativa de vida (vide tabela 6)287

. O problema de novo era a das disparidades

regionais, que refletiam também as diferenças de classe social e de cor ao acesso aos

recursos materiais, fazendo com que as taxas do Nordeste fossem bem inferiores às do

Sul e Sudeste. E, em 1980, havia uma diferença de 14,8 anos na expectativa de vida

entre as pessoas que recebiam apenas um salário mínimo e os que recebiam cinco ou

mais salários mínimos, refletindo cabalmente as desigualdades sociais.288

Tabela 6:

Brasil - Expectativa de Vida ao nascer, 1950-1955 a 1980-

1985

Homens Mulheres

1950-55 49,3 52,8

1955-60 51,6 55,4

1960-65 54 57,8

1965-70 55,9 60

1970-75 57,6 62,2

1975-80 59,5 64,3

1980-85 60,4 66,9

Fonte: Celade, Brasil, “Índices de crescimento demográfico”. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert

S. Mudanças sociais no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 88.

287

Id. Ibid. p.88.

288 Id. Ibid. p.89.

371

A rápida mudança no crescimento natural relacionava-se às mudanças ocorridas

nas taxas brutas de mortalidade e de fecundidade. O exponencial crescimento do

período 1940-1960 caracterizou-se por uma queda mais rápida da mortalidade em

relação à fertilidade. Em 1960-1980, houve queda mais acentuada da fertilidade e a

partir da década de 1970 se inicia uma fase de redução do crescimento populacional que

prossegue até aos dias atuais (vide tabela 7).

Tabela 7:

Brasil - Taxa geométrica de crescimento anual da população

1940-2010 (em %)

1940-50 2,39

1950-60 2,99

1960-70 2,89

1970-80 2,48

1980-90 1,93

1990-2000 1,64

2000-10 1,17

Fonte: IBGE, 2010. In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais

no período militar (1964-1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op.cit. p. 90.

Apesar dos militares serem avessos aos movimentos populares iniciados ainda na

época de Vargas, eles deram continuidade ao seu projeto de consolidação de um Estado

industrial moderno. Embora, as políticas postas em prática votadas ao estímulo da

economia, tenham causado sérios desequilíbrios como o déficit público, inflação e

endividamento externo, o regime militar deu uma enorme contribuição para que o Brasil

se tornasse de vez o líder industrial da América Latina. Mais importante ainda foi a

consolidação de um mercado interno, estimulado pela mesma industrialização e pelos

inúmeros programas destinados a proteger a produção nacional e aumentar a escala de

produção (especialmente nos bens de consumo duráveis). O processo resultou na

criação de um mercado de massas e na consolidação de uma classe média, em

372

contraposição à classe trabalhadora em expansão.289

Isto apesar do aumento das

desigualdades sociais, concentração de renda e da exclusão de parcelas da população

mais pobre. Porém, tais mudanças não podem ser ignoradas porque tal expansão do

mercado e do consumo, bem como a cristalização de uma classe média, ocorrem

concomitantemente à industrialização e urbanização nacionais que vinham em curso há

algumas décadas.

No regime militar, a rápida industrialização e a intensa urbanização

acarretariam mudanças sociais como o surgimento de uma nova elite industrial e

gerencial, a partir de uma sociedade com características ainda rurais e com baixo padrão

educacional. A industrialização resultou em intensas migrações das áreas pobres para as

zonas mais ricas do Brasil, com rápido e desordenado crescimento das regiões

metropolitanas. A incapacidade de atender de forma adequada à forte demanda por

habitação e saneamento explica parte dos assentamentos precários encontrados ainda

hoje na periferia das grandes cidades brasileiras.290

Por outro lado, os governos militares, pela necessidade de melhorar a qualidade

da mão-de-obra e como forma de obter o apoio da classe média emergente, promoveram

um significativo aumento na oferta de educação primária e secundária, e expandiram o

ensino técnico e tecnológico de forma significativa. Embora não tenha sido suficiente e

não tenha obtido um verdadeiro sucesso completo, o regime militar implantara um

programa de habitação e saneamento, por intermédio do BNH (Banco Nacional da

Habitação), passível de críticas por conta de seu modelo tecnocrático e autoritário.291

Paralelamente, como já discutido antes, foram ocorrendo transformações

demográficas radicais na estrutura da população nacional. No início do regime tinham-

se taxas elevadíssimas de fertilidade e de mortalidade e baixa expectativa de vida.

289 Id. Ibid. p.66.

290 Id. Ibid. p.66-67.

291 Id. Ibid. p.67.

373

Durante as duas décadas de regime militar, até por conta de transformações exteriores

ao território brasileiro, foi ocorrendo uma acentuada queda da fertilidade, influenciada

pela mudança radical do comportamento das mulheres brasileiras quanto ao tamanho da

família, processo este que se verificava nos países da Europa e nos Estados Unidos.292

A transformação do Brasil em uma sociedade predominantemente urbana

representou uma característica fundamental do período. Junto ao crescimento

exponencial das cidades, houve redução da população rural pela primeira vez. As

oportunidades que surgiram nas cidades em crescimento e a modernização da

agricultura geravam as forças de atração populacional pelas cidades e as de expulsão

pelo campo. Isto intensificou o processo de migração interna para as cidades,

suplantando as fronteiras estaduais e as regionais.293

O modelo de crescimento trouxe também a ampliação das desigualdades de

acordo com a classe social e pela cor, pois as pessoas com nível educacional mais

elevado e os brancos tiveram mais oportunidades de ascensão social do que os não-

brancos e aqueles de baixo nível educacional. Aumentaram-se assim as disparidades

conforme o grau de instrução, o grupo étnico, bem como as disparidades regionais,

agravando-se as mesmas já existentes, por exemplo, do Norte e do Nordeste do Brasil

com relação ao Sudeste e ao Sul do país.294

Para LUNA e KLEIN (in: REIS FILHO, RIDENTI e MOTTA, 2014),295

o núcleo

essencial da política governamental do período militar de 1964 a 1985 foi a criação de

uma sólida base industrial. Os instrumentos adotados para se estimular os investimentos

na indústria foram o controle salarial, a proteção ao mercado nacional e o fortalecimento

292 Id. Ibid. p.67.

293 Id. Ibid. p.68.

294 Id. Ibid. p.68-69.

295 Id. Ibid. p.69.

374

da infraestrutura. Houve a reorganização do mercado financeiro e de capitais, formação

de fundos compulsórios de poupança, um amplo conjunto de incentivos e subsídios,

estímulo à produção agrícola, controle de preços e arrocho salarial. O crescimento

econômico acelerou-se, mas a desigualdade também.

Os incentivos e subsídios ao setor produtivo, a contenção dos movimentos dos

trabalhadores e o arrocho salarial foram ampliando o abismo distributivo e

concentravam os ganhos obtidos com o crescimento e o aumento da produtividade.296

O crescimento substancial do crédito rural, os mecanismos de proteção à produção

nacional, os estímulos às exportações, bem como a intensa pesquisa e a difusão do

conhecimento, promoveram uma verdadeira revolução na tecnologia agrícola. Uma

significativa parcela da mão-de-obra rural foi liberada do campo por conta da utilização

de insumos modernos e da mecanização. Por outro lado, a área plantada e a produção

agrícola aumentaram. Apesar de todo este processo de modernização experimentada

pela agricultura brasileira, a estrutura da propriedade fundiária não foi substancialmente

alterada.297

A migração maciça de, sobretudo, nordestinos pobres para as fazendas e fábricas

dos principais estados do Centro-Sul do país, continuou a ser o principal movimento

migratório no país, deslocamento esse que já vinha de antes do regime. Os estados de

São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná absorveram 2 milhões de brasileiros na década de

1950, nos anos 1980 atingiram os 7,2 milhões após três décadas de crescimento

contínuo. Por outro lado, os estados da Bahia, Pernambuco e Minas Gerais [estado que

apesar de se localizar na Região Sudeste (de acordo com o IBGE), apresenta a sua

porção setentrional na Região Geoeconômica do Nordeste, conforme a divisão de

Geiger (1967), estando aí incluído entre os estados que mais “exportaram” mão-de-obra

para outras partes do Brasil], estes três estados perderam cerca de 1,5 milhão de

residentes nos anos 1950 e alcançariam a cifra de 5,8 milhões de pessoas “exportadas”

nos anos 1980. Para completar, é fundamental assinalar um outro movimento migratório

296 Id. Ibid. p.69.

297 Id. Ibid. p.76.

375

expressivo: o de agricultores do Rio Grande do Sul para as novas áreas, ou “fronteiras

agrícolas”, do Norte e do Centro-Oeste, contribuindo significativamente para o

crescimento demográfico dessas regiões.298

O período de 1940 a 1980, que compreenderia mais precisamente desde meados

do período do Estado Novo de Getúlio Vargas, até à fase final do regime militar (o ano

de 1980 já tinha como presidente da República, o general Figueiredo, o último do

período militar), representou a fase da transformação do Brasil em uma sociedade

majoritariamente urbana, pois no Censo de 1970, a população urbana ultrapassou a

rural. Nos primeiros anos da década de 1970 houve relativa estabilidade da população

rural, mas na segunda metade da mesma década a população no campo começou a cair

em termos absolutos, ao mesmo tempo que a população urbana crescia aceleradamente,

muito acima do padrão mundial. Em 1980, a população urbana era mais de três quartos

da população brasileira.299

(vide tabela 8)

298 Id. Ibid. p.76.

299 Id. Ibid. p.77.

376

Tabela 8:

Tamanho da população urbana e rural no Brasil

Em milhões de habitantes (1940-1980)

Pop. Urbana Pop. Rural

1940 13 28

1950 19 33

1960 31 39

1970 52 41

1980 80 39

Fonte : IBGE, "Estatísticas do século XX".

In: LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Mudanças sociais no período militar (1964-

1985). In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.).

50 anos do golpe de 1964. A ditadura que mudou o Brasil. 1.ed. Rio de Janeiro. Zahar,

2014. p. 77.

Percebe-se que a urbanização brasileira não foi algo restrito somente ao regime

militar. Esta já era um processo pretérito, porém durante o regime o processo de

urbanização seguiria transformando definitivamente o Brasil em um país urbano e em

uma sociedade industrial.

A cidade de São Paulo, ao longo destas quatro décadas analisadas no gráfico,

ultrapassaria a cidade do Rio de janeiro em termos populacionais, ainda antes do

regime, em 1960. Além de se tornar a cidade mais populosa do país, São Paulo se torna

uma metrópole mundial.

O rápido crescimento da população urbana, dentro de um período de poucas

décadas, trouxe elevados custos sociais, que persistem até hoje. Por conta das

debilidades nos investimentos em infraestrutura, em habitação e em saneamento, não foi

dada conta do afluxo de migrantes que se dirigiram aos grandes centros urbanos

brasileiros. O resultado disso é visível e mais do que perceptível nas paisagens urbanas

brasileiras: as favelas, loteamentos irregulares ou outras formas de moradias

subnormais. As favelas já existiam anteriormente à 1964, no entanto o exponencial

377

crescimento urbano que se seguiu nos anos 1960 e 1970 tornou a questão da moradia e

do saneamento um dos principais problemas das áreas metropolitanas, até aos dias

atuais.

Na época do regime militar, a construção de moradias populares baseava-se no

SFH (Sistema Financeiro de Habitação), criado no período. O colapso desse sistema

por conta da deterioração econômica que o Brasil experimentaria, especialmente nos

anos 1980, afetaria a capacidade fiscal do governo federal e dos estaduais, fazendo

arrefecer os investimentos públicos em saneamento e habitação, acarretando o aumento

no número de favelas e de seus moradores. Esta difícil situação fiscal dos estados

afetaria a popularidade dos governadores eleitos através do voto direto em 1982,

inclusive os da oposição ao regime, que governavam estados como São Paulo, Rio de

Janeiro e Minas Gerais.

O ciclo da repressão política na década de 1960 sedimentaria de vez a tradição da

violência policial pré-golpe às novas práticas repressivas colocadas a partir do AI-5.

Para o combate à guerrilha e à luta armada, o sistema de repressão do regime militar

incorporou métodos policiais, dentro da teoria do combate ao “subversivo de esquerda”.

Os quadros recrutados pelo aparato repressivo, como o delegado Fleury, que fizeram

seu nome nos chamados “esquadrões da morte”. Estes “esquadrões” eram bandos tão

violentos que a própria cúpula do regime permitiu que a justiça os combatesse, embora

grande parte da sociedade os considerassem justiceiros.300

Exemplo disso foi a luta

empreendida pelo promotor público e procurador da Justiça, Hélio Bicudo, que

investigou a participação do “esquadrão” no narcotráfico, no extermínio de quadrilhas

em benefício de outras e na direção de setores do crime organizado. Enfrentando tal

“organização”, Hélio Bicudo foi exonerado do cargo. Mesmo assim, o Judiciário

acolheria um processo contra Fleury. Porém, o governo, em 1973, elaborou uma lei: a

“Lei Fleury” – os réus primários, mesmo sendo condenados, não seriam presos até o

julgamento do recurso em última instância. Perante a justiça, Fleury, por conta de tal lei,

exerceria normalmente o seu “trabalho” até a sua morte, em 1979.301

300 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p.143.

301 BARROS, Edgard Luiz de. Op.cit. p. 67.

378

Paralelamente aos esquadrões da morte, voltados a se vingar de policiais mortos e

vender proteção a bandidos que pudesse pagar, foi ocorrendo também a militarização da

segurança pública. A subordinação das polícias militares estaduais ao comando do

Exército fez parte deste processo. A dicotomia e o desentrosamento entre a Polícia

Civil, que até 1964 era a coordenadora do policiamento urbano e a recém-criada Polícia

Militar acabaria por aumentar a disfuncionalidade da Segurança Pública. Num contexto

de expansão das grandes metrópoles, com grande migração interna e várias carências

em núcleos de povoamento informais – como as favelas – a velha estrutura da segurança

pública se tornava cada vez mais ineficaz para coibir a violência entre cidadãos,

especialmente os mais pobres. A polícia, até os anos 1970, pouco comparecia às áreas

periféricas. No entanto, a partir dali, com o criminoso comum também transformado em

um novo inimigo, a lógica do patrulhamento militar estará presente no dia-a-dia das

periferias em forma de expedições preventivas ou punitivas. Esta prática policial,

somada à violência entre vizinhos, o avanço do tráfico de drogas face à ausência do

poder público em outros setores (como na educação), fará explodir um ciclo de

violência. A Justiça, ora displicente, ora lenta; e a sociedade, sentindo-se impotente ou

sendo conivente deixaram amadurecer esse ciclo de violência. Soma-se a isso o

preconceito social e racial em se tolerar a violência no controle social dos pobres e dos

marginais.302

O país pode ter mudado em alguns aspectos, mas a questão da segurança pública

ainda persiste. A nova lógica é a do bandido como sendo o inimigo que atua num

território que precisa ser identificado para se realizar a aniquilação do “suspeito” ou dos

potenciais “suspeitos”.

Falando-se em “territórios”, o crime foi criando os seus próprios. E a política de

segurança exposta acima foi se revelando um grande fracasso. Primeiro porque a

violência urbana e a criminalidade são problemas que assolam o nosso país há décadas e

os índices nunca melhoraram significativamente, mesmo após o fim do regime. A lógica

do “extermínio” do suspeito, ou do potencial suspeito, desgastou de vez a imagem da

polícia, odiada por suas vítimas potenciais, as populações pobres e periféricas. E não

302 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p.144.

379

são somente os jovens. Senhores, senhoras e todos os cidadãos de bem, que moram nas

áreas periféricas, carregam essa imagem extremamente negativa das forças policiais.

Para piorar, a polícia deixou de ser temida e respeitada, por conta da capacidade de

armamento e de organização do crime, fazendo-se uma verdadeira “guerra particular”

entre as forças policiais e o crime organizado, como foi na cidade de São Paulo, em

2006, entre a Policia Militar paulista e a facção criminosa que tem atuado no estado. No

meio da “guerra” fica a população cujas parcelas mais expostas são as que vivem nas

áreas periféricas.

E para incrementar, a população tomada pelo medo e pela revolta diante da

violência, da ousadia, da impunidade dos criminosos e da lentidão da Justiça, vive

enfadada desta situação ao ponto de se sentir vingada quando um bandido é morto. De

vingança em vingança, (de bandido matando policial, de policial matando bandido), a

segurança pública se deteriorou e, mesmo após o fim do regime este continua sendo um

dos mais graves problemas do nosso país.

Os diferentes governos, na esfera federal, que passaram após a redemocratização

pouco fizeram pela área da segurança pública (se pensarmos em diretrizes mais gerais,

ou na atuação do Legislativo federal, com relação às leis). Esta área, que na verdade, é

de competência dos governos estaduais, no que se refere às forças policiais – a Civil e a

Militar -, carece de uma política séria e bem fundamentada. Os governos estaduais tem

se mostrado inoperantes e coniventes nesta área. Infelizmente é até comum que altos

quadros das forças policiais estaduais estejam envolvidos com o crime organizado. Mais

lamentáveis também foram as cenas de enfrentamento entre a polícia Civil e a Militar de

uma mesma unidade da Federação (isso já ocorreu em São Paulo e no Distrito Federal),

ou as greves de policiais militares, como a de 2001, na Bahia, em que policiais

encapuzados bradavam durante o movimento, com armas em punho, enquanto a

população ficava vulnerável aos episódios crescentes de saques, assaltos e até

assassinatos. O sucateamento, o mal preparo e os salários baixos dos policiais; a

capacidade de organização e armamento do crime; e a lógica da vingança, do extermínio

e das chacinas, vem nos mostrar um quadro de verdadeira falência da segurança pública.

Outro nó complicadíssimo é a questão dos direitos humanos. O cidadão comum,

movido pela raiva, preconceito e medo passa a ter aversão ao assunto dos direitos

humanos, vistos como “privilégios para bandidos” por conta da lentidão e morosidade

380

da Justiça que cria uma situação de impunidade. O extermínio de marginais passa a ser

bem recebida pela classe média baixa e os comerciantes das áreas periféricas,

atormentados pelo espiral cotidiano da violência. Assim a pauta dos direitos humanos é

mal recebida pelo eleitor/cidadão comum, dificultando e inviabilizando uma discussão

mais profunda e séria sobre o tema da segurança. E emperrando de vez os trabalhos

voltados para a apuração e, quem sabe, punição, aos violadores dos direitos humanos na

época do regime militar.

Programas de rádio e de televisão, voltados a mostrar o “mundo-cão” dos

homicídios, estupros, sequestros, etc., acabaram por endossar o discurso da extrema-

direita voltado às críticas a esses direitos. Tais programas (de grande audiência, por

sinal) - ainda que mude o apresentador, ou o canal, ou a estação de rádio - estão no ar há

décadas e está mais do que comprovado que não contribuem em nada, absolutamente

nada, para resolver o problema da segurança pública e da criminalidade, pois não

ajudam o cidadão a ser um eleitor crítico e a escolher seus governantes no momento do

voto. Muito menos em cobrar das autoridades certas aquilo que é o de sua alçada.

O que quero dizer é que a maioria dos cidadãos cobra, por um lado, o governo

federal que está mais exposto nos noticiários e na imprensa, De outro lado, o poder

municipal por estar mais próximo a eles. No entanto muitas vezes se esquece (ou finge

esquecer) que a segurança pública é atribuição dos governos estaduais.

No setor da educação, o regime militar daria continuidade ao persistente

crescimento da educação primária e secundária que se iniciara após o fim da Segunda

Guerra Mundial. E no período de 1960-1980, as matrículas no ensino secundário e

universitário cresceram mais do que a população.303

Luna e Klein também apontam que foi no regime militar de 1964 que, pela

primeira vez na história brasileira, o governo brasileiro investiu maciçamente em

ciência e tecnologia. Em 1964, ainda nos primeiros meses do regime, foi estabelecido

através do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico) e o Fundo de

Desenvolvimento Tecnológico (Funtec). Em 1974, já aqui citado, o pequeno Conselho

303

LUNA, Francisco Vidal e KLEIN, Herbert S. Op.cit. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo;

MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). p.69.

381

Nacional de Pesquisas foi expandido e transformado no CNPq (Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Assim, o governo militar passava a investir

maciçamente em pesquisa avançada, na implantação da infraestrutura e na consolidação

das indústrias básicas.304

Simultaneamente, cientistas da Universidade de São Paulo (USP) e de outros

novos centros de pesquisa seguiam o modelo da Fundação Nacional de Ciência dos

Estados Unidos, que teve papel importantíssimo depois da Segunda Guerra Mundial,

transformando a superpotência capitalista no principal centro mundial de ciência e

tecnologia. Antes do regime militar, mais precisamente em 1953, por meio da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes, criada em

1951), o governo passou a financiar bolsas de estudos para estudantes nas áreas

científicas. Na década de 1960 um número expressivo de cientistas brasileiros já haviam

tido experiência de treinamento no exterior, especialmente nos Estados Unidos e na

Inglaterra. Após retornarem ao país, eles passaram a exercer forte pressão para a criação

de modernos laboratórios e outros instrumentos de pesquisas, fundamentais para que o

Brasil pudesse se inserir competitivamente no cenário mundial científico e

tecnológico.305

Em 1968 ocorreu uma ampla reforma universitária, adotando o modelo norte-

americano de organização por departamentos e criando a estrutura de formação em três

níveis: graduação, mestrado e doutorado. Esse foi o padrão seguido pela Universidade

Federal de Minas Gerais (UFMG) e pela Universidade de Brasília (UnB), criadas

naquele período, e pela USP, bem como pelas demais universidades federais que seriam

implantadas em todos os estados. Além disso, em 1966 o governo estadual paulista

inauguraria uma universidade em Campinas (Unicamp), composta por enorme parcela

de professores nacionais formados no exterior e por estrangeiros. A Unicamp foi

304 Id. Ibid. p.72.

305 Id. Ibid. p.72 e 73.

382

projetada desde a origem para transformar-se em centro de pesquisa científica avançada,

especialmente em Física.306

Os governos militares também implantariam a indústria aeroespacial e de

computadores, e lançou um ambicioso programa de pesquisa nuclear, envolvendo

unidades de pesquisa situadas fora das universidades. Essas foram algumas das

principais ações no período, que colocaram o Brasil em posição de destaque na área

científica e transformaram o país, junto com a Índia, em um dos poucos do mundo

subdesenvolvido com possibilidade de competir no cenário da comunidade científica

internacional.307

Mas, se formos pensar que as relações entre os governos militares e a comunidade

científica foram um “mar de rosas”, estaremos redondamente enganados. É sabido que

muitos cientistas foram perseguidos, exilados ou aposentados compulsoriamente. A

repressão foi mais feroz nas ciências humanas, mas as exatas também não ficaram

ilesas. Exemplo disso foi o desmantelamento do Departamento de Física da UnB, após a

terça parte de seu corpo docente sofrer perseguição e o campus universitário ser

invadido. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), principal órgão

da comunidade científica brasileira, fez oposição sistemática ao regime militar e foi uma

das vozes importantes no processo de transição democrática do país.308

Somada ao fortalecimento dos centros de pesquisa, ocorreu também durante os

anos do regime uma lenta, porém persistente expansão do sistema universitário. O

número de estudantes universitários passou de 142 mil, em 1964, para 1,3 milhão em

1984. Paralelamente, os programas de pós-graduação dobraram as suas matrículas,

atingindo a cifra de 40 mil alunos em meados da década de 1980. O percentual de

306

Id. Ibid. p.73.

307 Id. Ibid. p.73.

308 Id. Ibid. p.73 e 74.

383

jovens de 20 a 24 anos que frequentavam o ensino superior – universidades e escolas

técnicas – cresceu de 2% para 12% entre 1965 a 1985.309

O Estado autoritário também promoveria a expansão da rede de infraestrutura,

avançando à frente do setor privado em segmentos industriais considerados estratégicos

para a consolidação do projeto geopolítico. Em 1979, o setor industrial respondia por

38% do PIB.310

As transformações da estrutura industrial brasileira se deram com o

aumento da participação dos setores de metalurgia e produtos químicos, e redução nos

setores têxtil e de alimentos. No eixo eletroeletrônico, merece menção a criação da Zona

Franca de Manaus, em 1967. O deslocamento espacial do investimento industrial se

acentuou nos anos 1970, e foi complementar e articulado à acumulação no núcleo

industrial consolidado. Cita- se também a “dispersão” da indústria para o interior do

estado de São Paulo, mas com a permanência de importantes centros de controle e

decisão na metrópole paulistana.

Tem-se também o avanço do complexo agroindustrial cujo exemplo marcante é

o cultivo da soja, rompendo a fronteira dos cerrados e ressaltando uma nova fase da

agricultura brasileira, especialmente na região Centro-Oeste. Novas relações se

manifestam entre trabalhadores rurais, com ou sem terra, e com as corporações que

ampliam sua área de atuação (MULLER, 1982)311

. Há ainda a generalização do

trabalho temporário e sazonal, como os bóias-frias, que vivem na periferia de

pequenas e médias cidades.

“A via autoritária brasileira de tratar a questão agrária brasileira foi capaz

de garantir a modernização da agricultura, através de sua crescente tecnificação,

mantendo intocável a grande propriedade. As conseqüências deste processo foram

inevitáveis, com a liberação maciça de grandes contingentes populacionais que se

309 Id. Ibid. p.74.

310

BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Op.cit., p.187.

311 Id., ibid., p.192.

384

dirigiram para as pequenas e médias cidades, funcionando como reserva de mão-de-

obra, acentuando a histórica concentração da posse da terra.”312

Destaca-se também a organização espacial das redes nacionais como a da

circulação de mercadorias, referente à malha rodoviária, que reflete a área de

mercado integrada. Esta rede apresenta grandes eixos nacionais que convergem para

o centro manufatureiro do Centro-Sul do país, como a BR-116, interligando o

Nordeste ao centro industrial do Sudeste. Quanto à energia elétrica, esta rede se

sobrepõe à área industrial central. Na verdade, o processo de industrialização do

Brasil foi tardio e simultâneo à necessidade de se constituir uma rede de energia

elétrica. Já a rede de telecomunicações mostra que os maiores aglomerados urbanos

estão interligados, quanto à circulação rápida de informações a longa distância,

refletindo os efeitos da centralização dos processos decisórios na cidade mundial e

também atende às demandas do setor financeiro, no tocante às ligações rápidas e

confiáveis a longa distância. Essas redes aparecem então como importantes

indicadores do processo de modernização do território.

O conceito de semiperiferia, de WALLERSTEIN (1979:83) in: BECKER &

EGLER (1998), traz uma síntese contraditória, num mesmo território e num mesmo

momento, de espaço e tempo díspares, cujo ajuste é obtido a partir de instrumentos

políticos onde o Estado assume papel central.

O que os autores chamaram de “malha programada” produziu fronteiras,

garantiu domínios e consolidou uma cidade-mundial (São Paulo), representando uma

nova forma de inserção do Brasil na economia mundial. Porém persistem a questão

regional no Nordeste, a imensa fronteira amazônica e a conformação de um vasto

complexo urbano-industrial, durante as décadas de 1960 e 1970, a partir do centro

dinâmico do Sudeste.

No processo de reestruturação da economia mundial surgiram: as novas

tecnologias de produção e gestão; a formação de espaços econômicos

supranacionais; e o neoliberalismo como novo patamar nas relações entre o Estado e

312 Id., ibid., p.193.

385

ao mercado mundial. Neste processo, os Tigres Asiáticos recuperaram-se

rapidamente por serem mais flexíveis e se aproximaram do Japão. O México se

aproximou dos Estados Unidos. Já a Índia, a China e o Brasil, tiveram um

crescimento relativamente autárquico e despontaram como potências regionais. No

Brasil ocorreu uma maciça migração de corporações transnacionais (principalmente

norte-americanas e européias), e a consolidação de um mercado nacional que

autarquizou-se em relação ao mundial, com um importante papel do Estado.

A centralização excessiva do poder governamental encontrou a resistência da

população excluída e demandas localizadas evoluíram para conflitos pontuais. A

mobilidade da força de trabalho provocou a ruptura da população com seus

territórios, fazendo crescerem os espaços das reivindicações. Campo e cidade se

tornam palco de “invasões”, cristaliza-se a disputa por lugares e posições que vão se

manifestar no surgimento de “poderes paralelos”. Isto se deu, sobretudo, nas

periferias das grandes cidades, que relacionados à estruturação do crime organizado,

procuraram preencher um vácuo de poder deixado pelo Estado, especialmente no

Rio de Janeiro, que não apresenta uma estrutura industrial do porte de São Paulo,

resultando na disseminação da favelização, de loteamentos periféricos deficientes em

infraestrutura e em serviços coletivos, gerando um grave quadro de tensões.

A crise de território na Amazônia se materializa entre os interesses dos

grandes projetos em choque com os interesses indígenas e extrativistas. Cita-se o

assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1988, líder dos seringueiros do Acre,

que junto com os indígenas formavam a União dos Povos da Floresta. No norte da

Amazônia a expansão do garimpo para o norte ameaça as tribos indígenas e, mais

precisamente, na área dos índios Yanomamis, com subsolo rico em ouro, estanho,

urânio e pedras preciosas, que estão inseridas num grande projeto militar, o Calha

Norte, que abrange 14% do território nacional, nos estados de Roraima, Amapá e

norte do Pará e Amazonas.

Na indústria, há a consolidação de complexos industriais integrados à

conquista de fatias do mercado externo. Grandes organizações procuram romper com

os limites territoriais do Estado-Nação, em favor de lugares e posições, negociando

diretamente com frações locais e regionais.

386

Finalmente é importante relembrar que foi nos grandes centro urbanos,

sobretudo nas metrópoles, principais palcos das contradições do processo de

modernização autoritária, que se abrigou os principais segmentos da oposição ao

regime militar de 1964. Nesse contexto teve-se a importância da Igreja Católica, das

Comunidades Eclesiais de Base e o “novo sindicalismo”, presente, sobretudo, no

ABCD paulista (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e

Diadema), ou seja, na borda da metrópole paulista, e que originaria o PT (Partido

dos Trabalhadores). Os grandes centros urbanos se tornaram as principais frentes do

processo de transição democrática.

A recessão global do início da década de 1980 levaria a uma crise econômica,

acarretando uma brusca redução dos fluxos externos, a partir de 1982. Mas a dívida

externa e a dívida interna não foram, por si só, obstáculos ao crescimento econômico,

já que o Brasil está mais favorecido na relação dívida externa/PIB. O que, de fato,

teria ocorrido foi o esgotamento de um padrão de industrialização onde a inflação

solucionaria o conflito distributivo, mantendo-se os lucros e transferindo-se para os

preços qualquer aumento salarial, sendo que o setor público seria o meio de se

socializar os riscos do investimento privado313

.

“Rompido este padrão político de financiamento, o Estado esgotou sua

capacidade de sustentar o crescimento sem risco para as empresas e configurou-se

uma situação em que a superação da crise exige uma negociação das perdas, onde o

setor privado procura defender suas posições e impor a “privatização” do capital

social investido nas empresas públicas como forma de reestruturar a economia. A

grande questão que permanece é como financiar a expansão dos serviços básicos,

necessários à manutenção do ritmo de crescimento da economia e à melhoria da

distribuição de renda, funções precípuas do Estado.”314

313 Id., ibid., p. 239.

314 Id., ibid., p. 243.

387

5- Geografia Política e Geopolítica: suas evoluções e

diferenciações

A evolução da Geografia Política vem ocorrendo desde fins do século XIX.

Esta tem se dado não de uma forma simples, mas sim numa complexidade que tem sido

inerente à dinâmica da política dos Estados, bem como das relações internacionais ao

longo desse tempo – tanto no viés civil e militar; como no da guerra e da paz. Assim

sendo, um primeiro aspecto dessa complexidade é que seu desenvolvimento tem sido

marcado pelas conjunturas e circunstâncias de cada momento, de cada época, ao longo

da História.

Um segundo aspecto seria que os diferentes autores desse sub-ramo do estudo

geográfico refletem, em maior ou menor grau, a influência de uma determinada nação

ou país na qual o autor está inserido, refletindo os objetivos de determinado Estado ou

grupo de Estados, marcando a sua geografia política nos contextos político e territorial.

Assim há particularidades e singularidades que dificultam uma pretensa análise dentro

de modelos lógico-formais previamente sistematizados.

Sempre existiu o que COSTA (1992) denomina de “dúvida legítima” quanto ao

estatuto científico do pensamento em Geografia Política. As obras fundamentais e

clássicas desse sub-ramo da Geografia existem, bem como um conhecimento

sistemático produzido ao longo de um tempo histórico, capaz de suplantar fronteiras e

entrecruzar os meios acadêmicos e não-acadêmicos. Todavia, a maioria de seus autores

tem preferido iniciar seus estudos com tais indagações, na intencionalidade de produzir

uma obra dita “universal”, para além de injuções, circunstâncias e conjunturas

momentâneas, extrapolando o seu próprio tempo e lugar. Seria o grande receio de

caírem prisioneiros de suas próprias fronteiras, como afirma COSTA (1992), ou seja,

de incorrer no erro de serem enquadrados como mera “ideologia” ou “falso

conhecimento”.

Para se encarar essa problemática, há a necessidade de se trazer em destaque a

palavra território, não isoladamente, mas no contexto da política territorial dos Estados

- os modos e manifestações de exercício do poder estatal no território. Também é

preciso visualizar as fronteiras entre o exercício do poder estatal e a prática acadêmica,

388

muitas vezes colocados em lados opostos. Mas tanto a Geografia Política, como a

Geopolítica, apresentando-se como ideologia de Estado, não podem ser entendidas

somente como um conhecimento concebido exclusivamente pelo Estado, pois sua

origem pode ser do próprio meio acadêmico (a universidade).

O Estado moderno tem realizado suas próprias investigações no tocante aos

problemas territoriais; à formulação de políticas públicas; e à execução das mesmas -

dentro de estratégias de alcance nacional e internacional, não se restringindo somente

aos seus segmentos militares. Também não é uma exclusividade restrita aos Estados

autoritários. Tais investigações estão presentes em sociedades contemporâneas e

democráticas, como nas questões internacionais. Porém, quanto a estas últimas, se o que

estiver em pauta é o conflito entre as nações, a Geografia Política tenderá

estruturalmente, conforme o mesmo autor, a se tornar estatal-nacional.

Costa também assinala, dando sequência em seu raciocínio, que

tradicionalmente: “o setor identifica como Geografia Política o conjunto de estudos

sistemáticos mais afetos à Geografia e restritos às relações entre o espaço e o Estado,

questões relacionadas à posição, situação, características das fronteiras, etc.; enquanto

que à Geopolítica caberia a formulação das teorias e projetos de ação voltados às

relações de poder entre os Estados e às estratégias de caráter geral para os territórios

nacionais e estrangeiros, de modo que esta última estaria mais próxima das ciências

políticas aplicadas, sendo assim mais interdisciplinar e utilitarista que a primeira”.315

Um primeiro problema que se apresenta é que a obra Geografia Política

(1897), de Ratzel é tomada tanto pela Geografia Política, como pela Geopolítica, como

o seu marco fundador, apesar do rótulo “geopolítica” ter sido elaborado pelo sueco R.

Kjéllen. Como então podemos diferenciar ambos? As bases conceituais e teóricas de

ambas têm muito em comum. COSTA (1992) apresenta como um primeiro critério de

diferenciação, o “nível de engajamento”316

do estudo aos objetivos estratégicos

nacionais-estatais.

315 COSTA, Wanderley M. - Geografia Política e Geopolítica: Discursos sobre o Território e o Poder.

São Paulo. Ed. Hucitec e Ed. da Universidade de São Paulo, 1992. p.16.

316 Id.,ibid., p.17.

389

Um dos principais problemas da Geografia Política tem sido a de não trabalhar

o conceito de Estado, preferindo generalizá-lo, colocando-o como desprovido de

contradições internas e de percurso histórico, perdendo assim a sua natureza humana,

social e política, como se fosse uma entidade abstrata acima de quaisquer contradições,

algo superior e até “infalível”. Outros conceitos da Geografia Política também

apresentam o mesmo problema, quanto às imprecisões e ambiguidades. É o caso de:

sociedade, população, território, espaço, fronteira, centralização, descentralização,

federação, nação, unidade, etc. Esses conceitos sempre estiveram sujeitos às

instabilidades das alternâncias entre os períodos de guerra e paz, inserindo-se na já

citada complexidade da evolução da Geografia Política, mencionada no início do texto.

Tomemos como exemplo, e nos restringiremos, ao conceito de federação.

Estado Federal, segundo Manuel Correia de Andrade e Sandra Maria Correia de

Andrade (1999)317

, é aquele em que as unidades administrativas que o compõem

usufruem de autonomia, embora não sejam independentes. Seria o oposto dos chamados

estados unitários, cujas unidades administrativas são governadas diretamente pelo

poder central, ou por meio de delegados nomeados. DALLARI(1986)318

assinala que o

Estado Federal é uma criação norte-americana do século XVIII, refletindo as idéias

predominantes entre os líderes das colônias inglesas da América, em que a

Confederação desses novos Estados na América do Norte evoluiu para a criação de um

Estado Federal, no processo de formação e consolidação dos Estados Unidos da

América. No caso da federação brasileira, conforme ANDRADE & ANDRADE (1999), o

Brasil tem se alternado, desde o período colonial, ora num sistema centralizado, ora sob

um sistema descentralizado. O nascedouro do federalismo brasileiro deu-se a partir da

Proclamação da República, em 1889, ratificando-se através da Constituição de 1891,

com as províncias ganhando autonomia, sendo assim elevadas à condição de estados.

Foi um verdadeiro movimento de “contramão” se comparado à experiência norte-

americana. Lá, as colônias se separaram da metrópole inglesa, unindo-se em uma

confederação, para em seguida constituir-se numa federação, caracterizando-se um

317 ANDRADE, Manuel Correia de; ANDRADE, Sandra Maria Correia de. A federação brasileira: Uma

análise geopolítica e geo-social. São Paulo: Contexto, 1999 -(repensando a geografia). p.9.

318 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Estado Federal. São Paulo. Ed. Ática, 1986. p.7 e 8.

390

movimento centrípeto. No Brasil, o movimento foi centrífugo – do Império evoluía-se

para a formação de unidades autônomas (estados), não independentes.

Aspásia Camargo (1992) assinala in: ABRUCIO, in: ANDRADE (org.) (1998,)

o seguinte: “O Brasil é o único país de tradição federativa em que o termo Federação,

ainda hoje, se identifica com a descentralização, ao invés de significar, como ocorreu

nos EUA e nos demais países, a organização da União”.319

Em 24 de janeiro de 1967, data na qual a Constituição brasileira daquele ano

foi votada, com quase três anos do regime militar em andamento, o nome oficial do

Brasil foi alterado: de “República dos Estados Unidos do Brasil” para o atual nome

"República Federativa do Brasil". Paradoxalmente à mudança de nome, a nova Carta

constitucional, de acordo com BARROS (1998)320

: coroava a hipertrofia do Executivo

(sobretudo em segurança e orçamento); diminuía a autonomia dos estados

enfraquecendo o princípio federalista; e centralizava ainda mais a estrutura

administrativa de tomada de decisões. Esse nome oficial do nosso país perdura até hoje,

num contexto diferenciado de aprofundamento do sistema federativo brasileiro, a partir

da nova Constituição de 1988, reduzindo o papel da União, revalorizando os estados e

introduzindo uma peculiar autonomia dos municípios tornados em entes federativos,

conforme apontou COSTA no artigo intitulado: Ordenamento do Território:concepção e

prática (disponível em https://geopousp.wordpress.com/),na pág 1.

Um conceito especialmente tratado por COSTA (1992) é o de conflito. Esse

conceito tem sido exaustivamente trabalhado por diversos autores que têm buscado até a

solução definitiva para conflitos internacionais ou entre dois Estados específicos. Nesse

tipo de análise, o que tem predominado é o protagonismo das máquinas estatais face à

passividade das sociedades civis nacionais, em que estas últimas seriam apenas um

recurso nas mãos do Estado nacional. A nível interno, a sociedade acaba sendo vista

com “um todo indivisível”, em que qualquer discordância ou conflito de classes, de

partidos políticos, de questões de “interesse nacional”, etc., são vistos como tentativas

319

ABRUCIO, Fernando Luiz. “O ultrapresidencialismo estadual”, in: ANDRADE, Régis de Castro (org.).

Processo de governo no município e no estado. São Paulo; Edusp e Fapesp, 1998. p.97

320 BARROS, Edgard Luiz de. Os governos militares. São Paulo. Contexto, 1998 (Repensando a História). p.

30 e 31.

391

de se “desestabilizar” uma dada “ordem” pré-concebida, como se Estado, nação e

território fossem um todo único. Este, na verdade, é o ponto de vista da Geopolítica:

uma sociedade perfeitamente harmônica e homogênea, submissa a um Estado nacional

onipotente e irrepreensível, como se fosse até um “organismo vivo”, com uma tal

vontade própria, que se imporia como uma verdade absoluta a todo o corpo social.

Enfim, o Estado nacional e a sociedade, de uma forma até “viciada”, são apresentados

praticamente sem nenhuma contradição ou heterogeneidades significativas.

Era esta justamente a visão que o regime militar brasileiro possuía em relação à

sociedade. Esta era vista em sua organicidade, numa ótica sistêmica. O ufanismo

presente, sobretudo nos anos do governo Médici, refletiu bem esta concepção do regime

com relação ao tecido social, a nível interno.

Um outro aspecto importantíssimo na Geografia Política é a presença do

naturalismo - como as condições naturais influenciaram a política territorial dos

Estados. Diferente de outros sub-ramos da ciência geográfica, a Geografia Política

incorporou a seu modo as determinantes naturais ao seu discurso. Na verdade, o

Naturalismo se faz presente no berço da Geografia Política, e da própria Geografia em

si. Essa influência foi marcante na Alemanha, em seu processo de unificação e de

constituição como Estado Nacional, num modelo forte e centralizador. Ao mesmo

tempo, o papel das redes de circulação vai se tornado fundamental em suas análises.

As determinantes naturais, associadas ao conceito de território, dentro dessa

especificidade dada à Geografia Política, apresenta o território, com suas características

físicas intrínsecas, como sendo avaliado em suas potencialidades de penetração,

organização e domínio – um recurso geral para a política estatal. Nesta linha de

raciocínio COSTA (1992)321

apontou três aspectos:

1) As influências do meio natural e dos fatores físicos quanto à posição das

fronteiras e dos territórios: relevo, conformação do terreno, clima, etc., em sua

potencialidade geopolítica;

321 COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.21.

392

2) A tendência à naturalização dos conceitos, em que o Estado seria como um

“organismo vivo”, por exemplo o seu “espaço-vital”, referente sobretudo ao aspecto

físico de seu território;

3) O determinismo particular da Geografia Política, para a história dos Estados,

em que traz à tona a capacidade dos diferentes Estados em construir a sua unidade

nacional interna do ponto de vista da organização política do território, transformando

isso em poder de Estado, capaz de projetar-se também externamente, visando uma

pretensa hegemonia em relação aos outros Estados.

Assim, o mesmo autor utiliza o termo determinismo territorial denotando “que

teria por pressuposto não apenas o quadro natural e a dimensão absoluta do território,

mas principalmente a relação entre potencialidades, isto é, espaço, posição,

virtualidade e coesão organizada”322

Os estudos geográfico-políticos apresentam ainda uma outra peculiaridade em

relação aos demais sub-ramos da ciência geográfica, que é a da sua tendência de ir em

direção à uma escala global, inseridos numa dada visão de conjunto, num equilíbrio de

forças em escala macrorregional e planetária, cabendo aos seus autores possuírem

informações abrangentes e recorrerem à uma cartografia própria, na busca de

acompanhar os movimentos da política dos Estados e blocos de Estados na escala

global. No regime militar brasileiro algo marcante foi a ideologia do “Brasil-Potência”,

um país com um papel a desempenhar, não só internamente ao seu território, mas

também com relação à sua projeção na América do Sul, na América Latina e no cenário

global. Também não faltou naquela época um determinismo peculiar visando à

construção de uma unidade nacional, através da integração territorial, bem como a

consideração dos meios natural e físico do território para a avaliação das

potencialidades geopolíticas do Brasil (tanto internamente como externamente) .

322 Id.,ibid., p.21.

393

5.1- Clássicos do pensamento geopolítico brasileiro:

de Backheuser a Golbery (das décadas de 1930 até a de 1970)

Em seu mesmo trabalho, COSTA (1992) dedica dentro do seu capítulo sobre a

Geopolítica no continente americano, um sub-tópico intitulado Geografia Militar e

Geopolítica no Brasil, abarcando quase 50 páginas (pags 183 à 229). Ao examinar a

evolução dos estudos que abordaram de forma explícita o amplo campo de relações

entre a política e o território, ele constatou que a opção preferencial da esmagadora

maioria de seus autores foi pela Geopolítica – aquela formulada por Kjéllen e

desenvolvida por Haushofer – em que conhecimentos “geográficos” foram manipulados

em prol de esquemas que interessassem às políticas de poder. A “geopolítica

brasileira”, ao contrário do que ocorreu nos países do hemisfério Norte, não foi produto

de uma clássica adaptação da Geografia Política (teórica e sistemática) à forma aplicada

aos períodos de guerra, por exemplo. Nem mesmo teria ocorrido sua brusca

transformação em Geopolítica – um campo mais próximo da Ciência Política e

relativamente autônomo – como foi na Alemanha (com o círculo de Munique). No

Brasil, na Argentina, no Chile, e em outros países da América Latina, a Geopolítica foi

integralmente “copiada” de fora, tentando-se meramente “importar” algo originado da

Europa e querer aplicá-lo ao caso latino-americano sem se fazer praticamente nenhuma

ressalva. Através de operações engenhosas, manipulações e até dissimulações, nossos

geopolíticos se apropriaram de clássicos estrangeiros (como Ratzel e Mackinder),

adaptando-os à uma outra realidade, bem distinta da européia.

Um segundo aspecto dessa geopolítica é que, de acordo com COSTA(1992),ela

representa um inegável atraso cultural, teórico e técnico323

. No Brasil, os estudos

geopolíticos sempre tiveram a hegemonia do pensamento militar e das suas instituições.

Não houve em nosso país um pensamento em Geopolítica, nem em Geografia Política,

produto de uma reflexão acadêmica e universitária. O mesmo autor aponta que, em

geral, trata-se de adaptações, frequentemente diretas e até “grosseiras”, do que foi

323

Id.,ibid., p.186.

394

produzido em outros centros. Mas, sob ângulo oposto, se o interesse for o de examinar

justamente o modo pelo qual essas adaptações tornaram-se instrumentos de análises e

“fórmulas” que interessavam à “realidade geopolítica” do país, ou mesmo a sua

operacionalização em ideologias e políticas, então justificam-se estudos até mesmo

exaustivos sobre o pensamento geopolítico brasileiro. 324

Ao longo do tempo, quase sempre a comunidade geográfica manteve-se

afastada da Geografia Política e, mais ainda, da Geopolítica, até há pouco tempo atrás.

Isso ocorreu tanto no Brasil, como no exterior, já que, principalmente a Geopolítica,

acabou identificada à uma pseudociência, uma ideologia, um falso-conhecimento,

levando os geógrafos a se manterem em silêncio e se omitirem diante de tal

“manipulação” dos conhecimentos geográficos em prol de ideologias e de

condicionantes políticas. No caso específico brasileiro, a geopolítica nacional destinou-

se à chamada “guerra interna” (conforme a colocação de vários analistas), tendo por

base a nossa particular história política, desde a colônia até ao período republicano.

Um outro fato a se destacar é que não foram os geógrafos que produziram a

geopolítica brasileira (diferentemente do que ocorreu no exterior), e nem serão eles os

principais atores a fazer comentários posteriores com relação à geopolítica nacional.

COSTA (1992), destaca duas figuras da Ciência Política: Shiguenoli Miyamoto e Leonel

I. A. Mello: os quais produziram as primeiras análises críticas, de forma exaustiva, do

pensamento geopolítico nacional.

Miyamoto, em seu trabalho, aponta características em comum entre as

principais obras de geopolíticos brasileiros: a) a absorção imediata das idéias

geopolíticas que se desenvolviam na Europa; b) a ênfase naquelas teorias que

privilegiam a necessidade do nacional-territorial; c) no ambiente ideológico interno, a

transposição para as fórmulas geopolíticas, das principais idéias do conservadorismo

nacional, nas suas piores feições (anti-republicanas, antidemocráticas e antifederativas)

exemplificadas em Alberto Torres e Oliveira Viana; d) a flagrante predominância dos

militares no campo dos estudos geopolíticos. Miyamoto, ao analisar a conjuntura

324 Id.,ibid., p.186 e 187

395

política nas décadas de 1920 e 1930, destaca a veemente defesa da centralização do

poder político na gestão territorial:

“As discussões sobre a centralização ou descentralização do poder, as suas

vantagens e incoveniências, eram o tema do debate naqueles anos. A situação político-

administrativa instável pela qual passava o país tinha um responsável: a República.

Era esta, aos olhos dos defensores do sistema unitário, a culpada, pois sob ela se deu a

autonomia dos estados. Tais críticas, que vinham desde o início da história

republicana, fundamentavam-se no fato de que o Brasil simplesmente havia imitado o

regime federativo vigente nos Estados Unidos da América. Esse regime, diziam eles,

era praticável lá no hemisfério Norte, mas o mesmo não se podia dizer dele aplicado

aqui. Além disso, argumentavam que o país sempre soube conduzir-se muito bem sob o

poder central da coroa imperial dentro do regime unitário” (MYIAMOTO, S. O

pensamento geopolítico brasileiro (1920-1980). Op.cit, pag 56, in: COSTA. Geografia

Política e Geopolítica, 1992, pag.189)

Tanto S. Myiamoto como L. Mello procuraram distinguir a Geografia Política

da Geopolítica, identificando esta última como a que foi desenvolvida no país. O

argumento de ambos para essa distinção é o do deslocamento desse campo de estudos

da Geografia para a Ciência Política, que teria sido proposto por Kjéllen.

Num processo similar ao ocorrido na Prússia, em que os militares e a elite civil

se apropriaram de conhecimentos gerados pela Geografia, convertendo-a numa

geografia política “aplicada” ou “militar” (uma geografia geopolítica), no Brasil,

desde a década de 1920, também se procurou aproximar esse campo de estudos do

centro do poder político gerador de um pensamento estratégico nacional (tanto para o

plano interno como para o externo), mais especificamente com os núcleos militares da

“reflexão estratégica”. O que podemos chamar de “geografia militar” atingiu um

notável prestígio, especialmente durante o Estado Novo (1937-1945), extrapolando os

muros do ensino militar e sendo base para reflexões políticas acerca do

desenvolvimento nacional. Os círculos das elites militar e conservadora brasileiros

tiveram na Geografia um excelente instrumento prático e teórico para parte substantiva

de suas justificações “científicas” a respeito dos “problemas nacionais”.

COSTA (1992), em sua análise, procura explicitar o que seriam as fronteiras

entre a Geografia e a Política, expressos pelos círculos de poder à frente (ou próximos)

396

do Estado brasileiro no período. O pensamento conservador brasileiro, desde a Colônia,

passando pelo Império e, de certo modo, até os dias atuais, sempre apresentou a

tendência de expressar o conceito de nação articulado ao de território, confundindo-se

assim a ideia de unidade nacional com a de integridade territorial. Por isso, para o

autor, a Geopolítica sempre foi um autêntico produto da Geografia.

A problemática da coesão interna, exaustivamente debatido em Geografia

Política, desde Ratzel, e escolhida pelos geopolíticos como um dos principais alvos da

ação dos Estados em geral, apresenta particularidades no Brasil: a imensidão do

território, o povoamento disperso e o fraco poder de articulação inter-regional da

economia agrário-exportadora, ao lado de um poder central baseado na composição

política com as oligarquias regionais e locais, representaram, desde a formação do

Estado nacional, em 1822, um quadro muito distante do federalismo clássico (do

exemplo norte-americano) e mais próximo de um conjunto unitário, nacionalmente

desarticulado.

Esse seria o cenário, para as idéias de integração nacional que, sob vários

prismas, marcaram o discurso político-territorial de muitos setores do poder estatal ou

próximos deste. Um alicerce fundamental para a elaboração de políticas correlatas a

esse cenário foi encontrado nas próprias formulações técnico-científicas da Geografia.

Nesse sentido proliferaram as “coincidências” entre a concepção geográfica do país

(dada pelos geopolíticos) e o discurso oficial proferido a partir da Revolução de 1930, e,

em especial, do Estado Novo após 1937, período autoritário em que ocorre a criação do

IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Verdadeiramente o Estado

brasileiro passava a dispor de um instrumento para efetivar uma ação modernizadora em

um novo tipo de gestão territorial – permeado pela idéia da unidade nacional e da

integração territorial.

O desenvolvimento dos estudos geográficos, combinado com esse tipo de

“ideologia nacional”, é que resultaria no que foi rotulado de “pensamento geopolítico

brasileiro”. Um dos mais destacados pioneiros nessa área foi Everardo Backheuser,

autor de vários ensaios no gênero, cujas principais obras datam das décadas de 1920 e

1930. Anti-republicano e antifederalista, ele defendia uma intransigente manutenção e

solidificação da “unidade nacional”, a fim de evitar os separatismos. Geólogo de

formação, Backheuser seguiu pela geografia física, antropogeografia, até chegar ao

397

componente político da geografia, na sua faceta geopolítica. De acordo com

COSTA(1992), sua principal influência veio da vertente geográfica alemã, elaborando

uma ideologia conservadora para o problema brasileiro, chegando a sugerir uma

“seleção” dos imigrantes estrangeiros, para o “branqueamento” da raça brasileira. Ele

critica veementemente a transposição do federalismo norte-americano para o caso

brasileiro; elogia a unidade alemã e o “pan-germanismo”; destaca a “superioridade dos

paulistas e sulistas” em relação às outras regiões; e defende a transferência da capital

federal para o planalto goiano. Sem dúvida nenhuma, era uma posição extremamente

conservadora e, ao mesmo tempo, inconsistente em suas “bases científicas” para tais

discursos.

A redivisão territorial e a nova localização da capital, também fazem parte da

proposta geopolítica de Bachheuser, para se evitar uma desagregação político-territorial

do país. Ele estabeleceu o “princípio da equipotência”, quanto à área, situação,

população, eficiência econômica e política das unidades; e uma fórmula “anti-regional”,

em que o componente político-estatal unitarista estaria acima da divisão regional e do

povoamento “espontâneo” do território. Chegou-se então à uma proposta de redivisão

com 64 “unidades fundamentais”, em 16 estados e 6 territórios. Era o dividir para

centralizar325

No tocante à transferência da capital, ele a vê como um mecanismo vital para a

consolidação do todo nacional-territorial. Defendendo a centralidade da nova capital, ele

argumenta com os desafios da integração interna e da defesa estratégica no plano

externo, em consonância com os segmentos militares do período. Seria a possibilidade

de se conquistar o heartland brasileiro, com a nova capital, num discurso não inédito,

pois José Bonifácio também defendeu a mudança da capital para o Planalto Central, nos

tempos do Império.

Outro autor, no campo da geopolítica brasileira, de inspiração militar e voltado

à problemática da unidade nacional, foi o Brigadeiro Lysias A. Rodrigues, já na década

de 1940. Para ele, um aspecto fundamental na busca da unidade nacional (busca esta

que vinha desde o Brasil-Colônia), são as redes de circulação. Ele aponta que, após a

325 Id.,ibid., p.198

398

proclamação da República, as tendências desagregadoras advindas da autonomia dos

estados e do municipalismo ganharam força. Para ele, a Revolução de 1930 e a

implantação do Estado Novo, a partir de 1937, seriam as condições ideais para a

centralização que, de fato, ocorreu, e que ele defendia. O Estado brasileiro, forte e

centralizador, teria assumido de vez a direção do todo nacional-territorial.

Lysias Rodrigues também propôs a redivisão territorial do país a partir de

critérios, obviamente, definidos pelo poder central, neutralizando regionalismos e até

condicionantes históricas, em nome da unidade nacional. Sua proposta está assentada na

criação de territórios federais a partir do Mato Grosso, Amazonas e Pará e na

transferência da capital federal para o Triângulo Mineiro, por estar melhor servida por

redes de circulação.

Realmente, o caráter centralizador do regime de 1937 fez com que a política e a

vida nacionais gravitassem em torno do governo central, através da forma do Executivo,

personificado na pessoa do ditador Getúlio Vargas. Buscava-se a unidade nacional de

“alto para baixo” – do “centro” para as “partes”. As oligarquias regionais, estaduais e

locais não deixaram de existir, mas foram cooptadas pelo poder central através de

favores e fisiologismos (COSTA,2000). O Estado Nacional brasileiro se moderniza e, ao

mesmo tempo, se centraliza, trazendo a noção do planejamento para seu bojo.

Restringindo-se às questões territoriais, cita-se novamente o IBGE..

O Estado Novo (1937-1945), fundamentado juridicamente na Constituição de

1937, apresentou preocupações de natureza geopolítica, e aqui salientam-se:

A “Marcha para o Oeste”, com programas de colonização no Mato

Grosso e em Goiás;

A criação de cinco territórios federais – Amapá, Rio Branco (Roraima),

Guaporé (Rondônia), Ponta Porã e Iguaçu (sendo estes dois últimos extintos em

1946) – buscando-se uma maior segurança às fronteiras e fomentar o

povoamento nessas áreas. O sentimento nacionalista do Estado Novo,

potencializado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), procurou

sufocar o sentimentos regionalistas e nativistas dos estados.

O fim do Estado Novo, em 1945, e a promulgação da Constituição de 1946,

restauraram, em parte, a autonomia dos estados. Todavia as desigualdades econômicas

399

entre as unidades mais ricas e as mais pobres, fortemente dependentes do governo

central, de uma certa forma “emperravam” o federalismo. As questões econômicas,

como o controle da exploração do petróleo, a reforma agrária, etc., protagonizaram as

discussões do chamado Período Democrático (1946-1964).

Segundo ANDRADE & ANDRADE(1999), é bom salientar que, apesar da

política dos governadores ter sido eliminada formalmente, eles ainda tem o seu espaço

de manobra até hoje. A força dos grandes proprietários de terra continua existente com a

sua influência política elegendo vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais,

governadores e senadores, apresentando maior ou menor influência junto ao poder

central, conforme o seu estado de origem. Daí a razão de, até hoje, o Brasil não ter

realizado uma reforma agrária em larga escala. A terra sempre foi um instrumento de

poder, e isso tem possibilitado a sobrevivência dos poderes locais e regionais das

oligarquias de nosso país, concomitantemente a esse verdadeiro “movimento pendular”

do federalismo brasileiro – ora centralizador, ora descentralizador.

Saindo-se um pouco das questões inerentes ao espaço interno do Brasil e

focando-se as projeções externas do poder nacional, um pioneiro nesses estudos foi o

General Mário Travassos, cuja obra mais conhecida é datada de 1931. Ele também

derivou a sua geopolítica da Geografia (política), interessando-lhe primordialmente a

posição brasileira na América do Sul, e a presença e influência exercidas pela

Argentina. Na sua análise, ele apontou dois antagonismos principais, de natureza

geográfica e com resultantes geopolíticos, no continente sul-americano: a) Atlântico x

Pacífico; b) Prata x Amazonas. Daí os desdobramentos das políticas de expansão das

áreas de influência de dois dos seus principais Estados, o Brasil e a Argentina, numa

disputa hegemônica. No caso argentino, a política de comunicações platina voltou-se à

montante do Prata, estendendo suas influências até o Pacífico e aos limites da Bacia

Amazônica, estabelecendo-se uma ligação terrestre (ferroviária) de Buenos Aires até La

Paz. Mário Travassos se preocupa com a Bolívia, pois esta seria uma “zona de transição

entre os dois antagonismos”, garantindo à Argentina o controle do heartland sul-

americano, inibindo a influência brasileira ali.

MELLO (1987), in COSTA(1992), comenta o seguinte sobre o trabalho de

Travassos:

400

“No campo intelectual, a geopolítica de Travassos sofreu a influência

determinante de Mackinder, com sua teoria sobre o poder terrestre. Essa teoria foi

reelaborada e aplicada de forma criadora às condições peculiares do continente sul-

americano, com o planalto boliviano assumindo o papel de área-chave com

importância análoga à do “heartland” euroasiático. Para Travassos, o controle da

Bolívia, região-pivô do continente, outorgaria ao Brasil o domínio político-econômico

sulamericano.” 326

Travassos propõe a plena utilização, pelo Brasil, das potencialidades das vias

fluviais amazônicas para uma rede de circulação que articulasse esse heartland

boliviano à costa atlântica brasileira (a partir do rio Madeira), apoiada pelam ferrovia

Madeira-Mamoré, opondo-se a “espontaneidade viária da Amazônia” ao “artificialismo

da atração ferroviária platina”, como algo que inegavelmente, de uma forma

“predestinada”, num “destino geopolítico”, penderia a favor da vertente atlântica e,

obviamente, para o Brasil.

Assim como Lysias Rodrigues, Travassos deu especial atenção às vias de

circulação (terrestres, principalmente), mas com foco no plano externo, e não na questão

da integração interna inicialmente. Citam-se a ligação entre Santa Cruz de La Sierra e o

porto de Santos (a ferrovia Noroeste do Brasil), a Madeira-Mamoré, as pontes Brasil-

Paraguai e as transcontinentais seguindo o sentido dos paralelos. E a partir de Santa

Cruz, a melhoria das vias navegáveis amazônicas – daí, Travassos adentra na integração

nacional, sendo esta direcionada ao oeste. Ele derivou seu projeto geopolítico a partir da

repercussão externa, subordinando à primeira, o movimento de integração interna. Isso

foi materializado com descrições das condições geográficas primárias – primeiro da

América do Sul – para depois tratar do território brasileiro.

Finalmente, dentre os autores “clássicos” da geopolítica brasileira, temos o

general Golbery do Couto e Silva. Ele, a princípio, se apresenta com essa linha de

pensamento “geomilitar” brasileiro, iniciada por Backhauser, e aprofundada por

Travassos, ou seja, considera a política, o território e a projeção externa, como questões

a serem resolvidas sob o ponto de vista do pensamento e estratégia de inspiração militar.

Assim, o seu pensamento é conservador e autoritário, filiado a concepções típicas de

326 Id.,ibid., pag.204

401

parte importante da elite civil e militar no poder desde o Império e, mais diretamente,

desde os primeiros tempos da República. Para esta elite, a questão nacional estava antes

de tudo permeada por um Estado forte, centralizado e capar de realizar as “aspirações

nacionais”. Golbery foi influenciado pelos clássicos - Ratzel e Mackinder - e seus

conceitos de espaço, posição, circulação, heartland, etc., foram largamente utilizados

para análises sobre o território brasileiro e suas projeções para o exterior. Mas, por outro

lado, há novidades em seu pensamento, que se não caracterizam uma ruptura com o

tradicional, pelo menos indicam uma sofisticação da análise, saindo dos vícios

anteriores marcados pelo esquematismo excessivo. Também há em Golbery um maior

ecletismo nas suas análises já que sintetiza autores distintos, como Ratzel, de um lado, e

Hartshorne, de outro lado.

Por conta da situação mundial do pós 2ª Guerra, tendo-se a presença

hegemônica dos Estados Unidos na ordem bipolar então constituída, marcada pela

tensão leste-oeste da “Guerra Fria” (em especial nas décadas de 1950 e 1960), o general

Golbery recebeu forte influência de autores norte-americanos, especialmente Spykman.

Sabedor de que o Brasil era peça importante na defesa estratégica da América do Sul,

contra a ameaça comunista soviética, Golbery se colocou como interlocutor local de

Spykman, numa resposta aos apelos do geopolítico norte-americano (em 1942), para

quem o Brasil e os demais países sul-americanos deveriam assumir regionalmente as

tarefas de defesa estratégicas do “Novo Mundo”.

Dentro de todo esse contexto, Golbery lançou uma doutrina de segurança

nacional, alicerce fundamental do regime militar implantado no Brasil, em 1964, e, em

sequência traçou uma estratégia política global a ser percorrida pelo país. Conforme ele

diz, em 1952, in: COSTA (1992): “Resulta daí haver o conceito de Segurança

Nacional, entendido – é claro – na sua mais ampla e ativa acepção, permeando aos

poucos o domínio todo da política estatal, condicionando quando, não promovendo ou

determinando todo e qualquer planejamento, seja de ordem econômica, seja de

natureza social ou política, para não falar dos planos propriamente militares, tanto de

guerra como de paz”.327

327 COUTO e SILVA, Golbery. Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil,

3ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1981. Pag.23. in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.208.

402

O conceito geral de Segurança Nacional contribuiu para moldar uma

“consciência nacional” em torno de “objetivos permanentes”, consistindo numa

estratégia nacional de longo prazo, para além das conjunturas políticas.

A sua análise geopolítica do território brasileiro não apresenta nenhum

ineditismo, pois é tratado como um imenso espaço desigualmente ocupado e com

integração incompleta, carente em comunicações, constituindo-se numa estrutura em

“arquipélago”. O detalhe a destacar é que a estratégia para se atingir tal integração é

diferente. Partindo de uma regionalização geopolítica que define um núcleo central

constituído pelo “coração do país” (eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte);

mais três “penínsulas” (Nordeste, Centro-Oeste e Sul); e uma enorme “ilha” (a

Amazônia), propõe um plano de integração ou articulação interna, onde o pólo dinâmico

desse “coração nacional” se irradia para as demais regiões, através dos “istmos” de

circulação (vias de comunicação) para as três “penínsulas”. Nesta estratégia, a

integração do território nacional se daria em três fases sucessivas, repetidas aqui:

1º- articular firmemente a base ecumênica de nossa projeção continental, ligando

o Nordeste e o Sul ao núcleo central do país; ao mesmo passo que garantir a

inviolabilidade da vasta extensão despovoada do interior pelo tamponamento eficaz das

possíveis vias de penetração;

2º- impulsionar o avanço para noroeste da onda colonizadora, a partir da

plataforma central- a atual região nuclear do país-, de modo a integrar a península

centro-oeste no todo ecumênico brasileiro;

3º- inundar de civilização a Hiléia Amazônica, a coberto dos nódulos fronteiriços,

partindo de uma base avançada constituída do Centro-Oeste, em ação coordenada com

a progressão leste-oeste, segundo o eixo do grande rio.”328

No tocante à projeção geopolítica do país, Golbery defende o alinhamento

brasileiro à estratégia de defesa do Ocidente sob o comando dos EUA. O famoso

“promontório nordestino” seria um dos vértices do “triângulo estratégico do Atlântico”

de Spykman, constituindo-se em parte fundamental dessa estratégia global, que só se

tornaria viável com um acordo explícito de cooperação militar entre o Brasil e os EUA.

328 Id.,ibid., pag.47. in: COSTA, Wanderley M. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed.

Contexto, 2000. p.66.

403

A posição privilegiada do Brasil no Atlântico Sul seria também um “trunfo” para a

obtenção de vantagens pelo Brasil em tais acordos e negociações.

No plano interno, o autor recomendou o “tamponamento eficaz” das vias de

penetração nas fronteiras a noroeste, mesmo que não houvesse ali ameaças concretas

por parte dos países vizinhos amazônicos. As finalidades desse tamponamento seriam: a

inviolabilidade daquelas fronteiras e a consolidação de uma base para uma futura

ocupação da Amazônia.

No plano externo, para fazer frente à estratégia de avanço argentino no

heartland sul-americano de Travassos (no caso, a Bolívia), Golbery sugeriu a

“dinamização do ecúmeno nacional”, em especial no Centro-Oeste (no Mato Grosso),

onde a estratégia brasileira poderia se contrapor à influência portenha. Mas a grande

preocupação de Golbery nesse âmbito é o Uruguai – meio brasileiro e meio platino –

por se tratar de uma “fronteira viva” e também “tensa”.

No ensaio publicado em 1959 (quando Juscelino Kubitschek era o presidente

do Brasil), Golbery se mostra muito satisfeito pelas mudanças do quadro econômico –

de uma estrutura agrária para uma estrutura industrial – e pelas mudanças políticas que

vinham ocorrendo a nível das instituições e da modernização da sociedade. Nesse

quadro favorável, ele chega a propor a defesa da democracia:

“ Um estilo de vida democrático, com bases cada vez mais amplas na

participação efetiva e consciente do povo; e a garantia das liberdades regionais

(sentido federativo) e da autonomia local (municipalismo).”329

Tal proposição -

considerando-se os momentos anteriores da geopolítica nacional, marcados pelo

autoritarismo e conservadorismo – chega a se constituir num verdadeiro paradoxo no

pensamento geopolítico brasileiro. Não que Golbery tenha sido inovador e liberal (em

vários aspectos ele não o foi, e esteve bastante próximo às concepções dos autores

anteriores, até porque tal visão se restringe, sobretudo, ao período JK), mas esse

alinhamento interno, como assinala COSTA(1992), vai de encontro ao ambiente

desenvolvimentista e democrático no governo do presidente Juscelino. E, no aspecto

329 COUTO e SILVA, Golbery. Conjuntura Política Nacional, o Poder Executivo & Geopolítica do Brasil,

3ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1981. p.74. in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.211.

404

externo, à defesa da democracia ocidental, da justiça social e da moral cristã, em

contraposição à ideologia comunista. Ao defender o federalismo, é bom lembrar que

Golbery sofreu substancial influência de geógrafos políticos e geopolíticos norte-

americanos, sendo os EUA o “berço” do federalismo moderno.

Dentro do cenário do final da década de 1950, Golbery atualizou a sua

“regionalização geopolítica”, apontando os progressos das comunicações, o alargamento

do “núcleo central” e as primeiras vias de penetração para articular pontos distantes do

nosso território (tanto no sentido norte-sul, como leste-oeste). Nesse alargamento do

“núcleo central”, ele reconheceu um “bloco metropolitano”, mais as “áreas

metropolitanas” e as “frentes pioneiras”. Assim sendo, o nucleamento básico passou a

se referir basicamente à atual região Sudeste, coincidindo em grande parte com as

regiões industriais e agrícolas mais desenvolvidas do país. Um segundo “núcleo” ou

heartland seria o Centro-Oeste, em especial a cidade de Brasília.

Nessa reformulação, a Geopolítica vincularia-se à política nacional (integração

e valorização territoriais), enquanto a estratégia de segurança nacional estaria associada

à geoestratégia (a posição brasileira frente às relações internacionais). Tal geoestratégia

seria de “contenção” e se relaciona aos focos de instabilidade existentes na América do

Sul, cabendo ao Brasil um papel vital na defesa do hemisfério ocidental, não

explicitamente um ”Brasil-Potência”, mas de forma implícita buscava-se uma projeção

nacional tanto interna, como externa.

“Geopolítica e Geoestratégia de integração e valorização espaciais, de

expansionismo para o interior mas igualmente de projeção pacífica no exterior, de

manutenção de um império terrestre e também de ativa participação na defesa da

Civilização Ocidental, de colaboração íntima com o mundo subdesenvolvido do

continente e de além-mar e ao mesmo passo de resistência às pressões partidas dos

grandes centros dinâmicos de poder que configuram a atual conjuntura.” 330

Sofisticando a análise geopolítica brasileira como instrumento político, militar e

territorial, também defendeu explicitamente o alinhamento automático aos EUA e ao

bloco ocidental-capitalista. Como figura-chave do regime militar instaurado em 1964,

330 Id.,ibid., pag.171. in: COSTA, Wanderley M. Op. cit. p.214.

405

ele vinculou seu pensamento geopolítico com “objetivos permanentes” a serem

perseguidos dentro de uma “doutrina de segurança nacional”. Membro destacado do

pensamento e do núcleo de poder militares, próximo ao Estado ou dentro de seu

aparelho, o seu ponto de partida foi a política de poder. Golbery repetiu a característica

primeira da geopolítica brasileira – um instrumento a serviço de uma dada concepção de

poder político que submete os assuntos territoriais-nacionais e de segurança nacional à

órbita exclusiva do Estado, em especial do setor militar desse Estado.

A chamada geopolítica dos generais se manteve na década de 1970, mas como

assinala Miyamoto, muitos dos temas geopolíticos foram absorvidos pelos estudos

desenvolvidos pela Escola Superior de Guerra (ESG), desde os anos 1950. As

publicações da ESG ficaram focadas no binômio “segurança e desenvolvimento”, cujos

aspectos mais importantes foram sintetizados primeiramente por Golbery. Após o golpe

de 1964, muitas dessas concepções geopolíticas passaram a constituir o discurso e a

prática do Estado em sucessivos governos, como assinalou Miyamoto ( in:MYIAMOTO,

S. O pensamento geopolítico brasileiro (1920-1984). Op.cit, pag 130-131, in: COSTA.

Geografia Política e Geopolítca, 1992, pag.215):

“Vê-se dessa forma, que a função da ESG, além de ser um centro de estudos

onde se abordam os problemas nacionais, internacionais e militares, conforme se pode

comprovar pelo documento de Sardemberg (1971), consubstancia-se na formação de

uma elite que procurava uma oportunidade para alçar-se ao poder...na verdade foi

conscientemente preparada e dotada com uma doutrina de segurança nacional, para

exercer efetivamente a posse do aparelho de Estado, conseguindo o seu objetivo em

1964, quando atinge o seu período máximo de influência”

406

5.2- O pensamento geopolítico brasileiro: do “triunfalismo” da

década de 1970 às críticas atuais

A geopolítica brasileira dos anos 1970 vem por assumir um discurso triunfalista

– a idéia do Brasil-Potência - bem adequada àquele período de endurecimento do

aparato repressivo do regime militar, somado aos reveses das guerrilhas e ao grande

crescimento econômico do início daquela década, associadas sobretudo ao governo de

Médici (1969-1974), em que se houve a mais forte expressão de coexistência entre o

“milagre econômico e os “anos de chumbo”. O maior expoente dessa fase triunfalista

foi o General Meira Mattos, cujos principais trabalhos se situam entre os anos de 1975 a

1980. Ele quase nada trouxe de novo, em relação à velha geopolítica desenvolvida

desde a década de 1930, ao formular suas teses sobre unidade interna e projeção

externa. Ele segue Golbery no concernente de que a Geopolítica deveria ser o âmbito

maior da doutrina de segurança nacional da ESG. Dentro desta mesma influência, Meira

Mattos concebe um conceito de “potência mundial” assentado em fatores territoriais,

populacionais, capacidade tecnológica, etc., chegando à conclusão de que o Brasil

poderia se tornar uma das grandes potências do mundo. O nosso país estaria

predestinado a tal missão com a combinação entre “democracia e autoridade, no

processo de ocupação e valorização do território, na capacitação industrial e

tecnológica, etc. E no campo externo, Mattos defende a modernização das Forças

Armadas e um potencial militar com capacidade de “dissuação”.

O grande problema das teses de Meira Mattos é que elas não deixam de ser

mera reprodução da velha tradição geopolítica brasileira - evocando Alberto Torres e

Oliveira Viana, combinando “democracia com uma certa dose de autoritarismo” -

pressupondo um poder exercido por uma elite nacional auto-investida na direção do

Estado, com a “missão” de enfrentar os enormes desafios de um grandioso país que

estaria predestinado a ser uma potência mundial. Ele incorpora explicitamente a sua

satisfação com o que já havia sido realizado pelo regime de 1964 até ali, em especial o

Plano de Integração Nacional, através da abertura de rodovias de longo curso ao longo

dos sentidos dos paralelos e dos meridianos, e ainda articulando o território nacional

para a exploração dos recursos naturais amazônicos. Na sua obra de 1980, ele elogia as

“políticas de desenvolvimento” amazônicas, realizadas durante o governo Médici

407

(1969-1974) como o Plano de Integração Nacional; e durante o governo Geisel, como o

Programa Polamazônia) – ressaltando a teoria da polarização de F. Perroux para os

projetos de ocupação amazônica, exemplificados através dos pólos agroindustriais e

minero- metalúrgicos articulados á rede rodoviária.

Para ele também a idéia “pan-amazônica” estava se tornando realidade, graças a

essas políticas governamentais que possibilitariam a cooperação com os países vizinhos

da Bacia Amazônica, sob a liderança brasileira (cita-se aqui a assinatura do Tratado de

Cooperação Amazônica, de 1978), possibilitando ao Brasil o papel principal num

projeto sul-americano vislumbrado a partir do desenvolvimento amazônico, sem a

interferência externa dos EUA e da Europa. Retomava-se a antiga tese da ocupação do

heartland da América do Sul, com o Brasil criando “polos de irradiação fronteiriços”,

concretizando a influência nacional sobre os países vizinhos amazônicos, similar ao

“tamponamento eficaz das fronteiras ocidentais”, de Travassos, em 1931. Por fim,

Mattos acreditava que o “Brasil-Potência” seria algo “inevitável”, lá pelos idos do ano

2000, e assim também pensou a estratégia de segurança em escala global para o nosso

país através de seu protagonismo no Atlântico Sul.

A visão triunfalista sobre o Brasil chegaria ao fim justamente quando o regime

militar também caminhava em direção à abertura e à transição democrática, iniciada nos

anos de Geisel (1974-1979) e prosseguida no governo Figueiredo (1979-1985). Um

autor que decisivamente contribuiu para isso foi Geraldo Lesbat Cavegnari Filho.

Autor de origem militar, coronel da reserva, especialista em estratégia, pesquisador

universitário (diretor do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp) e um investigador

e crítico da velha geopolítica “oficial” de inspiração militar que tem predominado no

Brasil. A sua análise crítica dirige-se aos equívocos e às fragilidades de uma estratégia

nacional assentada na Geopolítica. Seus artigos, já escritos na década de 1980, trazem a

originalidade que inaugurou uma fase de estudos críticos, que se estendem até épocas

atuais, acerca do pensamento, da ação política e da geopolítica militares. É uma

primeira ruptura explícita no seio do pensamento militar geopolítico e estratégico,

conforme COSTA (1992).

O mesmo autor coloca que Cavegnari rejeita o uso do discurso do “Brasil-

Potência”, subordinado às injuções estratégicas dos Estados Unidos e alienado da

408

verdadeira e real posição do país na Divisão Internacional do Trabalho. Ele aponta uma

contradição essencial entre as vertentes diplomática e a militar para a política externa

brasileira.

Para a vertente diplomática haveria uma plena ciência de que, na tensão “Leste-

Oeste” e da oposição entre as economias industrializadas e as subdesenvolvidas, não

caberiam ao Brasil um projeto de “grande potência” subordinada aos Estados Unidos

nos planos estratégico e econômico, preferindo-se atuar politicamente na esfera da

América do Sul.

Já a vertente militar, assentada num “triunfalismo do discurso geopolítico”,

projeta políticas externas hegemônicas no Terceiro Mundo, especialmente na América

do Sul, e um alinhamento automático às potências industriais.

“Em tese, a maioria dos esquemas geopolíticos projeta uma pretensa

hegemonia brasileira na América do Sul e superestima a participação atual do Brasil

no processo decisório mundial. Essa avaliação decorre da metodologia utilizada pela

Geopolítica, que consiste na abordagem dos fatores geográficos (em resumo, o espaço

e a posição) organizados em torno de determinados indicadores absolutos (isto é, o

tamanho do PNB, a extensão territorial, os recursos naturais e a população), não

levando em consideração o aspecto qualitativo desses indicadores, o grau de segurança

desejável para a sociedade civil e a capacidade real do país na organização das

relações de poder mundiais. O equívoco do discurso geopolítico é tanto de ordem

conceitual quanto de ordem metodológica. Esse discurso não é científico, mas uma

simplificação racional da realidade vinculada a um propósito específico e concreto. A

Geopolítica não possui um corpo sistematizado e comprovado de leis gerais e

universais, embora se proponha a servir de marco teórico para a política externa. A

realidade vem brincando com as avaliações geopolíticas: o crescimento brasileiro nos

últimos anos registrou considerável progresso em relação aos países subdesenvolvidos,

mas não conseguiu diminuir a diferença em relação às democracias ocidentais. O PNB

brasileiro corresponde, aproximadamente, a 8% do PNB dos Estados Unidos e a 50 %

do PNB da Inglaterra, respectivamente, a primeira e a última grande potência. A renda

per capita do Brasil não ultrapassa um quinto do valor da renda per capita média dos

países desenvolvidos. No campo da pesquisa científica e do desenvolvimento

tecnológico, o investimento brasileiro (cerca de 0,7% do PNB) corresponde a 2% do

409

investimento norte-americano e a 15% do investimento britânico. Assim a visão

diplomática sobre a realidade brasileira é mais sensata do que o discurso geopolítico,

quando reconhece a existência de problemas internos típicos do subdesenvolvimento

(concentração de renda e grandes deficiências em saúde, alimentação, habitação e

educação) e de uma situação de dependência do sistema econômico internacional

(importador de capital e tecnologia).”331

Tal crítica à geopolítica não é algo inédito no Brasil. O que a fez inédita foi o

fato de ela ter sido feita por um militar brasileiro, apontando equívocos na formulação

da estratégia nacional feita pelos militares. As teses de Cavegnari foram publicadas num

jornal de grande circulação nacional, exatamente na data que se completou 20 anos do

movimento militar de 1964, indicando um novo patamar em um Brasil que caminhava,

há alguns anos, na “distensão” rumo à transição democrática. O mito do “Brasil-

Potência” estava seriamente abalado. Vulnerabilidades e fraquezas da velha geopolítica

dos generais vieram à tona, após um tempo inegavelmente longo, praticamente um

século após a proclamação da República. Era desnudado um país territorialmente

grande, mas economicamente e socialmente frágil e cheio de clivagens e fissuras.

Com o cenário da época dominado pelas duas superpotências: a norte-

americana e a soviética, o Brasil não apresentaria, de acordo com Cavegnari, os

“excedentes de poder” para cristalizar um papel de grande potência no globo. O Brasil,

seguindo-se os critérios da Geopolítica, ainda conforme Cavegnari, seria uma potência

média ou uma potência regional, com âmbito estratégico na América do Sul, (repare

que não na América Latina, incluindo o México e a porção central e caribenha do

continente, mas somente no espaço sul-americano), e mesmo assim, a “autonomia

estratégica absoluta” está seriamente limitada dada à hegemonia norte-americana no

continente, como um todo.

331 CAVEGNARI, Geraldo L., Brasil: Introdução ao estudo de uma potência média. Publicado também na

Folha de São Paulo em 31 de março de 1984 e na Revista Brasileira de Política Internacional, no ano

XXVII, nº105 – 108, 1984, p. 139 e 140, in: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.222.

410

Cavegnari também ressaltou a vinculação existente entre o projeto de grande

potência e a autonomia do segmento militar do Estado. Seu argumento era de que

mesmo durante a transição para um regime civil, os militares procurariam se

resguardarem em respaldos institucionais para tocar adiante o seu antigo projeto. Daí

que, do ponto de vista dos militares, a transição ideal seria aquela que fosse controlada

pelo núcleo do poder militar-civil, dentro do que Golbery defendeu em alguns de seus

artigos. Ou seja, a passagem de um autoritarismo militar para um autoritarismo civil em

que os militares pudessem seguir adiante em seus projetos de integração nacional, de

expansão na América do Sul e, no plano internacional, o alinhamento automático aos

Estados Unidos.332

Na visão de Cavegnari, colocando-se de lado a reflexão geopolítica e dando

espaço à reflexão estratégica, tornam-se claras as fragilidades do projeto de potência.

Isto porque o Brasil não possuiria autonomia estratégica para atuar como potência a

nível mundial. E, para piorar, até a sua hegemonia regional teria os seus limites face aos

desequilíbrios sociais internos, como a concentração de renda, as debilidades do sistema

educacional, etc. Mesmo assim, o projeto de construção de potência permanece. Ele

assinala que a prática e o discurso tradicionais da diplomacia brasileira têm se mostrado

mais corretos: a ótica de que o Brasil é um país do Terceiro Mundo, uma potência

regional sem ambições de hegemonia e com grandes vulnerabilidades estratégicas. O

desafio, para Cavegnari, seria então o da obtenção de uma autonomia estratégica.

Porém, tal autonomia se encontraria sempre limitada devido à presença dos EUA que

traria uma situação restrita à dependência estratégica relativa – ou seja, uma autonomia

limitada.

O que interessaria ao Brasil, segundo ele, seriam os projetos que não implicassem

em uma redução da sua presença internacional. Políticas de cooperação e de

aproximação fundamentadas na “estabilidade democrática, no crescimento econômico e

na modernização tecnológica”. Cavegnari defende a importância internacional do país,

estabilizando a sua frente interna (a “construção democrática”) e a frente sul-americana

(gestada na integração bilateral Brasil-Argentina). Todavia existiria uma preocupação:

332 COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.223.

411

“A construção da grande potência é intenção explícita no pensamento militar

brasileiro e no pensamento militar argentino. Pode-se até afirmar que os militares

brasileiros (e, com certeza, os militares argentinos) atribuem maior prioridade à

construção da potência do que à construção da democracia, como se a potência fosse

condição necessária à institucionalização da democracia.” (CAVEGNARI, Geraldo L.

“Brasil e Argentina: autonomia estratégica e cooperação militar”. In: Rev.Política e

Estratégia, vol. VI, nº4, São Paulo, 1988. p.598. In: COSTA, Wanderley M. Op.cit.

p.225).

Com Cavegnari, COSTA (1992), conclui, em seu trabalho, o histórico da evolução

do pensamento geopolítico nacional, que apesar da sua falta de originalidade e

criatividade, permeou a vida política nacional e os projetos territoriais durante grande

parte da República brasileira. A diminuição da influência do pensamento geopolítico na

atualidade tem a ver com a retomada das iniciativas políticas por parte da sociedade

civil, bem como com o retorno a um sistema democrático. Tal recuo do pensamento de

matriz geopolítica, em muitos países, parece apontar para a sua presença mais restrita à

círculos específicos das instituições militares.333

Por outro lado, o contexto da abertura, da redemocratização e do fim do regime

militar, abriu espaço para o começo de um debate em Geografia Política e em

Geopolítica, por parte dos geógrafos brasileiros.334

Bertha Becker propõe a retomada

destes debates argumentando que a temática do poder precisa ser (re)apropriada pela

Geografia, que se encontra afastada deste tema por conta da associação que se criou

entre a Geopolítica e o nazismo:

“Negar, portanto, a prática estratégica, seja a das origens da disciplina, seja a

teorizada por Ratzel, seja a da Geopolítica explícita do Estado Maior ou a implícita na

prática dos geógrafos, é negar a própria Geografia, que foi, assim, prejudicada no seu

desenvolvimento teórico e na sua função social. E repensar a Geografia envolve

necessariamente o desvendar da Geopolítica, sua avaliação crítica e o seu resgate, e o

333 Id., Ibid., p.226.

334 Id., Ibid., p.226.

412

trazer esse conhecimento para o debate na sociedade. Em outras palavras, nesse campo

da preocupação, à Geografia caberia a teorização sobre a prática estratégica

desenvolvida pela Geopolítica” (BECKER, Bertha K. “A geografia e o resgate da

geopolítica”, in: Revista Brasileira de Geografia, ano 50, nº especial, Tomo 2, IBGE,

1988. p.100. In: COSTA, Wanderley M. Op.cit. p.227).

413

Considerações Finais

A construção do espaço nacional, que está no bojo do processo de

modernização conservadora e centralizadora, foi possível a partir das iniciativas

estatais. O Estado brasileiro reformulou-se a partir de 1930, visando assim a

enfrentar a questão nacional brasileira. Fruto deste processo foi a construção da

unidade nacional e da integração nacional, em torno da esfera central do governo,

especialmente do poder Executivo. Apesar das importantes diferenças entre os

governos, a modernização conservadora e centralizadora foi um processo de incrível

continuidade, deixando profundas marcas no território brasileiro, como na

constituição de redes nacionais (lembremo-nos que neste período o Brasil passaria

pela era Vargas, tendo-se o governo provisório, de 1930 a 34; o governo

constitucional, de 1934 a 37; e a ditadura do Estado Novo, de 1937 a 45. Segue-se o

período democrático, de 1946 a 64, em que merece menção o retorno de Vargas à

Presidência, em 1951; e o Plano de Metas e a construção de Brasília, no governo

Juscelino Kubitschek, de 1956 a 60. Por fim, os governos militares, com os cinco

generais-presidentes, que permaneceram no poder entre 1964 a 85).

Para a sociedade brasileira difundiu-se, no decorrer de todo este processo,

que as questões e políticas territoriais são competência do Estado, sobretudo do setor

militar, dentro de uma estratégia geopolítica. Dentro das transformações do sistema

capitalista mundial, as políticas territoriais foram sendo criadas, a partir da década de

1950, como subestratégias de macropolíticas econômicas. O território nacional foi

suporte e objeto de investimentos estatais e privados. Porém, nas décadas que se

seguiram após o fim do regime militar, como o Estado não têm priorizado tanto a

ocupação dos “vazios territoriais”, a especulação imobiliária têm repercutido

fortemente nestas do território.

No processo de modernização conservadora e centralizadora, foi montado

um aparelho estatal de grande porte para se gerenciar questões territoriais, segundo

políticas, no geral atrasadas, que alguns classificariam como “neocoloniais.”335

335 COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as Políticas Territoriais no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto,

2000. p.74.

414

Foram criadas redes institucionais objetivas e órgãos burocráticos estatais com a

finalidade de se reproduzir no território a operação do aparelho central do Estado, a

nível regional, estadual e local. Citam- se o Sistema Nacional de Saúde, o Sistema

Nacional Fazendário e Financeiro, o Sistema Nacional de Educação e o Sistema

Nacional de Planejamento Regional e Urbano (SUDENE, SUDAM, SUDECO,

SUDESUL e demais órgãos do setor).

Contudo, no início do século XXI, no segundo governo do presidente

Fernando Henrique Cardoso, tanto a SUDAM como a SUDENE, tiveram seus nomes

vinculados à mídia, por conta das denúncias de corrupção e desvios de dinheiro, o

que levou o presidente FHC a editar uma medida provisória e a instalar um decreto,

em fevereiro de 2002, criando a Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA).

Porém, em 2003, no primeiro ano do governo do presidente Lula, a ADA foi extinta

e a SUDAM seria recriada em agosto daquele mesmo ano. Com relação à SUDENE,

ela seria extinta em 2001, dando lugar à Agência de Desenvolvimento do Nordeste

(ADENE), mas em 2007, já no segundo governo de Lula, a ADENE seria encerrada e

a SUDENE restabelecida através de Lei Complementar. Hoje, tanto a SUDAM,

como a SUDENE, estão vinculados ao Ministério da Integração Nacional.

Há três décadas vivemos em um regime formalmente democrático e uma das

questões aqui deixada seria a seguinte: dentro de um regime em que os governadores

estaduais são escolhidos através de eleições periódicas, os estados poderiam

efetivamente assumir um peso maior, no tocante às políticas territoriais, frente ao

questionamento do papel dos órgãos de planejamento regionais (como as

superintendências regionais) na atualidade brasileira? E uma outra questão, os

estados (unidades da Federação) dispõem de condições para dar um andamento

adequado às políticas territoriais neste momento em que o país está completando três

décadas da “Nova República”? Ou verdadeiramente só o governo federal teria as

condições ideais para a reformulação e a implantação de novas políticas territoriais?

Estas são algumas das questões que aqui deixo para futuras reflexões.

O processo de redemocratização na reta final do regime militar representou

uma ruptura nas relações intergovernamentais do período autoritário. O pacto

federativo instaurado pelo regime militar havia centralizado ao extremo os recursos

fiscais nas mãos da União através da reforma tributária de 1966, sendo a esfera

415

estadual a principal perdedora. Tal pacto se manteve durante o Estado autoritário

porque a União garantiu recursos não-tributários basicamente aos estados, via

transferências negociadas às unidades federativas mais pobres e aval para

empréstimos externos por parte das unidades mais ricas (Graham, 1990. In:

ABRUCIO, 1998. p. 100). No período de 1967 a 1981, conforme o mesmo autor, a

região Norte foi a principal beneficiada com as transferências negociadas, seguida

depois pelo Nordeste e o Centro-Oeste, respectivamente. Entretanto, o centralismo

fiscal perderia força no contexto do final do regime militar, com o esgotamento do

modelo de Estado desenvolvimentista e a crise financeira da União, paralelamente à

crise econômica dos anos 1980. Esses fatores econômicos erodiram com a

legitimidade do regime militar, dando brechas ao avanço das discussões de novas

relações federativas contrárias ao modelo anterior.336

As unidades subnacionais, a partir daquele momento, começaram a recuperar

receitas perdidas desde 1966 e, principalmente, após a aprovação da Emenda Passos

Porto (1983), que elevou a parcela de recursos dos estados e municípios nos

respectivos Fundos de Participação (Kugelmas, Sallum e Graeff, 1989. In:

ABRUCIO, 1998. p. 100). Essa recuperação foi consagrada na Constituição de 1988.

Antes dessa mudança constitucional, ao governo federal cabiam 62% dos recursos

tributários nacionais, os estados ficavam com 27% e os municípios com 11%. Com a

implantação gradativa da nova repartição do bolo tributário, a União ficou com

54,9% dos recursos; os estados com 28,5%; e os municípios com 16,6% (Barrera e

Roarelli, 1995; Afonso e Affonso, 1995. In: ABRUCIO, 1998. p. 100).337

De fato, houve a generalização do planejamento, também a nível estadual e

municipal. Porém os estados e municípios têm encontrado dificuldades em gerir seus

próprios territórios, devido à repartição dos recursos, bastante concentrada a nível

federal, fazendo com que estados e municípios dependam de verbas federais para

tocar adiante tais políticas. Origina-se daí, a problemática da repartição dos recursos

entre as esferas federal, estadual e municipal de governo.

336 ABRUCIO, Fernando Luiz. O ultrapresidencialismo estadual. In: ANDRADE, Régis de Castro (org.).

Processo de governo no município e no estado. São Paulo. Edusp e Fapesp, 1998. p. 99 e 100.

337 Id., ibid., p. 100.

416

Outra importante questão está relacionada à atual divisão regional e federativa

do Brasil. ANDRADE & ANDRADE (1999), apontam a necessidade de uma

reestruturação da federação dentro de padrões modernos, uma reformulação nas

relações entre a federação e os estados, e a formulação de uma política de correção

dos desníveis econômicos entre as unidades federativas nacionais. Os autores ainda

apontam os perigos de uma “desagregação” do país, ante à pressões externas,

decorrentes da globalização, ligado ao papel dos grandes grupos econômicos que

controlam o capital especulativo, financeiro e desrespeitam a soberania dos Estados-

Nações. Daí vem a problemática do papel da América Latina hoje, com a abertura do

Leste europeu aos capitais transnacionais, após o fim da ordem bipolar da “Guerra

Fria”. Ainda há lacunas na direção de uma consolidação de um pacto supra-nacional

latino-americano, capaz de negociar com seus credores e participar, de novas formas,

na economia-mundo.

O processo de inserção do Brasil, na economia-mundo capitalista como

semiperiferia, deu-se dentro de uma profunda crise/ reestruturação desta economia

mundo, em que o Brasil despontou como uma potência regional (BECKER &

EGLER, 1998). Todavia, o Brasil tem pela frente a questão Amazônica. A Amazônia

corresponde a um imenso território, com potencial ainda relativamente desconhecido.

Diversos segmentos sociais procuram consolidar posições e territórios na arena

amazônica: os militares, no tocante às fronteiras norte do país (projeto Calha Norte);

os seringueiros; os ambientalistas nacionais e internacionais; os índios; as empresas

transnacionais; e os governos das potências hegemônicas. Vê- se que a América

Latina não está “abandonada”, mas diversos interesses nacionais e internacionais se

entrecruzam no desafio da questão Amazônica. Com base em BECKER & EGLER

(1998), a Amazônia não é a Antártida, a maior parte de seu território se encontra sob

a soberania brasileira, sendo patrimônio e componente essencial do Brasil. Assim

esta questão se constitui num desafio atual acerca da gestão e soberania do território

nacional.

A modernização conservadora e centralizadora agravou as desigualdades

sociais e de renda entre a minoria de proprietários e a massa de despossuídos,

afetando a credibilidade das frágeis instituições democráticas do país e a legitimidade

417

do Estado. Bens públicos foram usados em benefício de grupos privados, o que

compromete o processo democrático.

A questão das desigualdades sociais e da péssima distribuição de renda, que

se relacionam aos grandes contrastes entre os diferentes estados e regiões no

território brasileiro, constituem-se em um problema que persiste no Brasil atual. Faz-

se necessário dar ao planejamento uma dimensão social e somente o Estado pode

mobilizar recursos, num volume suficiente, para vencer a miséria.

“ Apesar da retórica neoliberal, impõe-se um vasto programa gerido pelo

Estado, envolvendo recursos captados no setor privado, que não poderá mais se

eximir dos custos de uma distribuição mais eqüitativa da renda nacional.” 338

Faz- se necessário resgatar a política, como um dos meios de se conquistar a

cidadania, bem como a consolidação de instituições democráticas, processos estes

que se constituem em importantes desafios, face ao recente retorno do Brasil a um

regime formalmente democrático, com eleições periódicas para os governantes.

Também é fundamental se combater a existência de formas “paralelas” de poder,

corporativas ou clandestinas. Exemplo disso é o avanço da criminalidade, atrelada ao

tráfego de drogas, que exercem controle em determinadas áreas, como as favelas nas

periferias das grandes cidades, devido justamente à histórica ausência e omissão do

Estado. A relação entre o poder estatal e a população ainda têm-se dada de uma

forma autoritária e distanciada, dificultando-se a construção da cidadania. Outra

mostra clara disso são os episódios envolvendo as populações pobres e

desfavorecidas das periferias, de um lado, e as forças policiais estaduais, de outro.

Por isso aqui cita-se a seguinte frase: “O Estado de direito é o melhor antídoto

contra a ditadura em todas as suas formas”.339

Para futuras políticas territoriais, tem-se por necessário a consolidação de

importantes instituições políticas, como o poder Legislativo e os partidos políticos,

para se democratizar a gestão do território nacional, algo fundamental face à atual

338 BECKER, Bertha K & EGLER, Cláudio A. G. Brasil: Uma Nova Potência Mundial na Economia-Mundo- 3º

ed-Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1998. p. 250.

339 Id., ibid., p. 250.

418

reestruturação do sistema capitalista mundial, em que o neoliberalismo avançou nos

primeiros anos do século XXI, especialmente na América Latina, causando um certo

comprometimento do papel do Estado e trazendo uma certa incógnita quanto ao

futuro da soberania nacional, especialmente na Amazônia. Para tal democratização,

necessárias são as reformas política, urbana, agrária, tributária, entre outras, no

sentido de se descentralizar e dinamizar a gestão do território nacional, com

responsabilidades e atribuições melhor repartidas entre as esferas federal, estadual e

municipal de governo.

As políticas territoriais sempre foram colocadas “de cima para baixo” por parte

do governo federal, em detrimento das esferas estadual e municipal do governo

restringindo mais ainda os interesses populares nestas políticas. Claro que a esfera

federal do governo é fundamental para a articulação de políticas territoriais a nível

nacional, contudo pelo fato de vivermos um regime formalmente democrático, faz-se

necessário uma melhor distribuição dos recursos entre as diferentes esferas de

governo e aproximar mais as questões territoriais dos interesses da população, aí não

se restringe só à Amazônia, mas ao espaço urbano numa escala mais abrangente,

concomitantemente à escala dos bairros, das comunidades, e ainda no espaço rural e

fundiário.

O estatismo na história brasileira. De Vargas à Lula.

Outro tema que se deseja aqui colocar é o estatismo. Daniel Aarão Reis (2014),

em seu artigo, apresenta o termo que ele denomina de cultura nacional-estatista,

embora ele próprio afirme que a pesquisa que pretende realizar sobre este termo

ainda é preliminar.340

Para Reis Filho, cultura política seria “um conjunto de

representações portadoras de normas e valores e constituem a identidade das

grandes famílias políticas”341

Ou seja, seria um “código”, um “sistema de

340

REIS FILHO, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista.

In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). p.13

341 Id., ibid., p. 14.

419

referências” que traz uma “coerente visão de mundo”, calcada em um “substrato

filosófico” e em “referências históricas”. E isso se encaixaria numa “psicologia

coletiva” e UEM ma “política da memória”, com a “representação de uma sociedade

ideal” na qual um grupo ou corrente política aspira viver. Uma vez afirmada, a

cultura política procura dar as respostas às demandas econômicas, políticas e

culturais, procurando consolidar um modelo para as sociedades em que vigora.342

Em sociedades mais complexas, principalmente, é óbvio que há o embate entre

diferentes correntes políticas. Também quando da hegemonia de uma delas, existirão

outras a ela conjunturalmente subordinadas. Porém, como uma cultura política nunca

seria estática, pois há o contexto das lutas políticas e sociais, mesmo assim, ela pode

emprestar ou se metamorfosear sem alterar o seu “substrato filosófico” e as suas

“questões-chave”.

Na América Latina, a cultura nacional-estatista tem uma firme raiz assentada,

não só no Brasil, mas em vários outros países desta parte do continente, desde a

década de 1930, aproveitando-se de um relativo enfraquecimento da capacidade de

controle por parte das grandes potências. Tal cultura nacional-estatista atingiu um

respeitável sucesso, apesar de suas variações, mobilizando sociedades e

fundamentando as políticas do Estado.

Em seu artigo, Reis Filho examina quatro momentos históricos da cultura

nacional-estatista, ou do nacional-estatismo: a ditadura do Estado Novo (1937-45);

os anos democráticos e “dourados” de Juscelino Kubitschek; os “anos de ouro e de

chumbo” do governo Médici (1969-74); e os dois governos de Luís Inácio Lula da

Silva (2003-2010).

342 Id., ibid., p. 14. Reis Filho cita autores como Serge Berstein, Jean-François Sirinelli e Philippe Joutard

para procurer conceituar o significado do termo cultura política.

420

Cultura nacional-estatista no Estado Novo (1937-1945)

O Estado Novo caracterizou-se por ter sido uma ditadura, personificada na

figura de Getúlio Vargas. Foi quando se gerou uma cultura política nacional-estatista

sublinhada por uma marca e uma lógica autoritária.A centralização estatal tornou-se

o caminho a ser seguido, em contraste aos partidos políticos, vistos como

particularistas e fragmentários. Na necessidade de se aparelhar eficientemente as

Forças Armadas exigiam-se “ordem, tranquilidade e unidade”, em nome de um

projeto de Brasil, de continuação da construção de um país. Tais referências,

defendidas desde 1930, tomaram corpo com uma nova cultura política a partir de

novembro de 1937 quando se inicia o Estado Novo.

A integração nacional se torna um dos pilares da centralização ditatorial e do

próprio nacional-estatismo. E esta ideia de integração nacional, sustentada pela mídia

governamental, ganha nova roupagem com a “Marcha para o Oeste” e o resgate do

mito dos bandeirantes e a exaltação da obra do marechal Rondon.A integração

espacial estaria atrelada à busca pela unidade de um mercado nacional e também de

uma integração social. Da colaboração de classes e do trabalho como ato patriótico

se constituiriam as bases da política trabalhista do governo ditatorial, através da

formação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em 1943.

No plano das relações internacionais, o Estado Novo fez o máximo possível

para reafirmar a soberania e os interesses nacionais para manter o país fora da

Segunda guerra Mundial (1939-1945). Entretanto, por pressão dos Estados Unidos e

pelo afundamento de navios brasileiros por parte de submarinos alemães, o governo

brasileiro, com contragosto, abandonaria a neutralidade e entraria no conflito ao lado

dos países Aliados. Isso não livraria Getúlio Vargas das pressões norte-americanas

para depô-lo, o que ocorreria em 1945.343

343 Id., ibid., p. 17 e 18.

421

Os dispositivos estratégicos desta cultura nacional-estatista, em sua gênese

assinalados por Getúlio Vargas em seus discursos, foram (conforme REIS FILHO,

2014):344

a) um Estado centralizado e integrador, subordinando as particularidades

“egoísticas” (ou seja, as regionais e locais);

b) um ideário nacionalista e unificador;

c) o esteio das Forças Armadas. Getúlio era um líder civil mas o seu poder é

exercido com base e sob a supervisão do Exército (coadjuvado pela Marinha);

d) amplas alianças sociais, incluindo-se os trabalhadores urbanos e rurais, sob

vigilância e tutela;

e) concepções de modernização e de industrialização em nome de um grande

sacrifício demandado;

f) uma política externa de afirmação nacional.

Cultura nacional-estatista nos anos de JK (1956-1961)

Sabemos que o governo de Juscelino Kubitschek ocorre no momento da

República brasileira fundada pela Constituição de 1946. O regime democrático-

liberal fundado por aquela Constituição mesclava elementos herdados do Estado

Novo e a doutrina liberal, dando um caráter elitista e antipopular em uma democracia

que, na verdade, trazia em seu bojo, não poucas marcas de autoritarismo.345

Reis

Filho escolhe os anos de JK como o momento que melhor reflete aquele período, dito

democrático, por conta da memorialística relacionada aos “anos dourados”.

A cultura nacional-estatista moldara-se aos novos tempos marcados pelo jogo

institucional, liberdade de imprensa, disputas político-partidárias e o registro liberal

das liberdades democráticas. JK, respeitando os parlamentos e os tribunais, articulou

uma aliança, já citada aqui antes, entre o PSD (Partido Social Democrático) e o PTB

344 Id., ibid., p. 18.

345 Id., ibid., p. 19.

422

(Partido Trabalhista Brasileiro), cujas bases sociais advinham do varguismo reunidas

para impulsionar o desenvolvimento do país. Ao encontrar obstáculos políticos e

institucionais, JK habilmente os contornava com os Grupos Executivos, agigantando

o Estado e centralizando-o através destes Grupos que eram unidades de poder e de

gestão.346

As concepções modernizantes e industrializantes do estado Novo foram

retomadas e em um ritmo acelerado, pautado no Plano de Metas – “cinquenta anos

em cinco”. A natureza estava ali para ser “subjugada”, “disciplinada” e explorada.

Era a tônica desenvolvimentista.

Apesar de ter uma imagem também associada à abertura do país aos

investimentos estrangeiros, e assim gerar críticas, Juscelino, em um certo momento,

romperia com o receituário antidesenvolvimentista do Fundo Monetário

Internacional (FMI). É quando JK lança a Operação Pan-Americana (OPA). O

Brasil buscava maior projeção internacional na América Latina, advogando através

da OPA, a necessidade de os países do continente não serem meros coadjuvantes da

superpotência capitalista- os Estados Unidos – mas de superarem os problemas do

atraso e do subdesenvolvimento.347

JK também teve tato com os militares. Afinal, o general legalista Henrique

Teixeira Lott, garantiu a sua posse e seu mandato através do movimento militar

ocorrido em novembro de 1955. Lott esteve no Ministério da Guerra sublinhando

aquela que talvez (usando-se as palavras de Ernesto Geisel quando presidente na

década de 1970) fosse também uma democracia “relativa”. Os presidentes, além das

urnas, necessitavam da tutela por parte dos chefes militares.348

Juscelino encerraria o

seu governo com “chave de ouro”, concluindo o seu mandato, em 31 de janeiro de

1961, passando a faixa presidencial ao seu sucessor, também eleito pelo voto, Jânio

Quadros. E faria isso em Brasília, a recém-inaugurada capital federal.

Apesar da adaptação da cultura política nacional-estatista aos novos “ventos”

da democracia do pós-Segunda Guerra, a inquietação e a mobilização das elites e das

346

Id., ibid., p. 20.

347 Id., ibid., p. 20.

348 Id., ibid., p. 20 e 21.

423

forças sociais conservadoras, por um lado; e de outro, as “ameaças revolucionárias”

que se reproduziam em diferentes partes do mundo, somadas às camadas mais

populares e setores da esquerda mobilizadas pelo programa reformista revolucionário

(as “reformas de base”), levariam à república brasileira à um momento de tensão,

exaustivamente já discutido nesse trabalho. O resultado foi o golpe de Estado em 31

de março de 1964 por parte das forças conservadoras.

Cultura nacional-estatista no regime militar (1964-1985)

O primeiro governo do regime, chefiado por Castelo Branco, procurou destruir

o “legado varguista”. Naqueles tempos da Guerra Fria, o Brasil alinhava-se de forma

subserviente aos Estados Unidos. Um dos pilares do nacional-estatismo era rompido,

a política econômica recessiva, assentada no arrocho salarial, separava de vez o

governo das alianças com os trabalhadores rurais e urbanos. Os movimentos

populares foram reprimidos.

Na economia desenhava-se um quadro de “venda” do Brasil aos interesses

imperialistas. Seria a radicalização do que JK esboçara: a avassaladora entrada de

capitais estrangeiros. O nacional-estatismo estaria condenado, até porque os militares

identificados como (ainda que supostamente) às esquerdas foram cassados. Mas, no

próprio governo de Castelo Branco, começou a embrionar um novo fervor estatista.

Criaram-se novas agências e modernizaram-se outras. A estrutura sindicalista

corporativa urbana e os sindicatos rurais permaneceram, apesar da estrita vigilância.

No segundo governo militar, o de Costa e Silva, através de Delfim Netto, o

“czar” da economia,o estado retoma o seu papel como agente fundamental do

desenvolvimento. A tônica industrializante e desenvolvimentista vai sendo assumida

definitivamente no terceiro governo, o de Médici.

Nos tempos de Médici, volta à tona a necessidade de se subjulgar a natureza,

assim como foi nos anos de JK. O capital privado, internacional e nacional, não foi

esquecido. Entretanto era clara a liderança estatal nesse processo desenvolvimentista.

Era o modelo do “tripé” (empresas privadas nacionais e estrangeiras, sob a indução e

o protagonismo estatal).

424

Eram os tempos do “milagre econômico”, dos slogans ufanistas, pavimentando

um orgulho patriótico devidamente coroado pela conquista da Copa do Mundo de

1970, pela seleção brasileira de futebol.

O quarto governo militar, o de Ernesto Geisel, trouxe o “pragmatismo

responsável” com a retomada de uma “política externa independente”, de tradição

estadonovista e muito presente nos anos anteriores ao golpe. Além da ruptura do

acordo militar bilateral entre Brasil e Estados Unidos.349

O crescimento econômico foi concentrado e profundamente desigual – tanto

social como regionalmente. Os sindicatos estavam sob estreita vigilância, mas isso

não impediria a expansão e a consolidação de sindicatos nas cidades e nos campos.

De acordo com o IBGE, entre 1968 e 1978, o número de sindicatos urbanos

aumentou entre 1968 e 1978, de 2.616 para 4.009. Na área rural, o número

aumentou de 625 para 1.669.350

Conclui-se que a cultura nacional-estatista

reermegeria numa roupagem modernizante e autoritária durante o regime militar.

Prova disso foi a montagem de uma estrutura composta por diversos órgãos de

planejamento (como as superintendências regionais: SUDAM, SUDENE, etc.), sob o

governo federal. E também as políticas de desenvolvimento e territoriais

implantadas: o PIN (Programa de Integração Nacional); o I e o II PNDs (Planos

Nacionais de Desenvolvimento); e etc,.

Cultura nacional-estatista nos anos de Lula (2003-2010)

O fim do regime militar se deu em um processo complexo e negociado. Em

1988, veio a nova Constituição, que ainda conserva aspectos do ideário nacional-

estatista. O país enfrentou os ventos do neoliberalismo das privatizações

determinadas no governo de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e no de

Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).

349 Id., ibid., p. 25.

350 Id., ibid., p. 25.

425

Ao assumir a Presidência, em 2003, em sua primeira mensagem ao Congresso,

Luís Inácio Lula da Silva realçaria a perspectiva do crescimento econômico a

qualquer custo. Para isso, o Estado retomaria o seu papel protagonista, apoiado em

uma ampla aliança de classes, indo na contramão de seus antecessores –FHC e

Collor. A crise do capitalismo liberal, em 2008, reforçaria essa ênfase.351

O nacional-estatismo do governo Lula assumiu então uma perspectiva

policlassista, semelhante em aspectos gerais às de Getúlio Vargas e de JK. Mas

também apresentou características próprias. O Estado expandiu-se com as políticas

de distribuição de renda (como o Bolsa-Família), e na alocação de recursos (como

nas linhas de financiamento oferecidas por instituições estatais). O governo chamou

as lideranças empresariais –urbanas e rurais – e os trabalhadores, para o diálogo, com

a mediação do Estado. Claro que tais diálogos não foram desprovidos de tensões,

mas, se seguirmos esta linha de raciocíonio de Reis Filho, em que o autor discorre

sobre o nacional-estatismo em diferentes momentos da história nacional, os anos de

Lula são o primeiro momento da história brasileira em que a cultura nacional-

estatista é retomada, após o fim do regime militar.

Agora, e o papel das Forças Armadas hoje? Reis Filho, as colocam como as

grandes ausentes ou os grandes emudecidos neste novo nacional-estatismo. O

Exército aparece somente em intervenções de emergência, mais precisamente nas

situações específicas de grandes catástrofes naturais. Também, o autor assinala que

as Forças Armadas parecem um Estado dentro do Estado. Com quadros que se

formam ainda conforme as referências das décadas de 1960 e 1970. Após a transição

democrática e o fim da Guerra Fria não há uma doutrina solidamente formulada para

orientar o papel das Forças Armadas. Em contrapartida, todas as tentativas de

esclarecimentos de fatos e de episódios do período militar autoritário costumam ser

frustradas por conta das resistências das autoridades militares em entregar arquivos e

colaborar. Para Reis Filho, a despeito destas dificuldades em se “passar a limpo” o

regime militar de 1964, pela primeira vez na trajetória histórica da cultura política do

nacional-estatismo os militares perderam o seu protagonismo.

351 Id., ibid., p. 27.

426

Algo que o governo Lula conseguiu foi o crescimento econômico com inclusão

social. Sabemos que tal inclusão foi bastante reticente e seletiva nos anos do

“milagre econômico”, podendo-se constatar que grandes parcelas da população

brasileira e determinadas regiões do país não usufruíram das benesses do

desenvolvimentismo da década de 1970. Nos oito anos de Lula houve a geração de

quase 12 milhões de empregos – e mais de 20 milhões de brasileiros saíram da

pobreza extrema.352

O que não deixa de ser interessante e que pode ser contrastada

com a “modernidade da pobreza” que foi tratada no tópico referente às heranças da

modernização conservadora e centralizadora para o Brasil.

E o país não abriu mão de sua projeção na política externa, com o espaço que

os “emergentes” galgaram face à crise enfrentada pelas sociedades capitalistas mais

avançadas (Estados Unidos, União Européia e Japão), na virada das décadas de 2000

para a de 2010. E a elevação da autoestima e do orgulho próprio e patriótico, que já

ocorreram lá atrás no Estado Novo, nos anos dourados de JK e no ufanismo do

regime militar (especialmente nos anos Médici), encontraram um novo capítulo na

escolha do Brasil para sede da Copa do Mundo de futebol - em 2014 – e no Rio de

Janeiro, como sede das Olimpíadas de 2016.

***

Para encerrar, aborda-se, de uma forma breve é verdade, a memorialística sobre

o regime. Já se assinalou que entre a população ficou-se a impressão de que as

políticas territoriais são de competência exclusiva do Estado, com especial relevância

aos segmentos militares. Além disso, há toda uma série de aparentes contradições

quanto à memória sobre o regime. Os militares golpistas se apresentaram como

“revolucionários”, ao mesmo tempo em que defendiam a ordem. Eles pretendiam

modernizar o país sem alterar a sua estrutura social. Eram antirreformistas, mas

falavam em reformas. Falavam na defesa da pátria, mas criticavam o nacionalismo

352 Id., ibid., p. 28.

427

econômico das esquerdas. Prometiam democracia, mas o país ficaria por quase três

décadas sem eleger o presidente da República. Falava-se em democracia, porém por

quase duas décadas, a população ficou privada de poder escolher os governadores de

estado. O único ponto de intersecção na coalizão golpista vitoriosa em 1964 foi o

anticomunismo.

No entanto, viu-se que no primeiro governo do regime, o de Castelo Branco, já

foi ocorrendo uma dissociação entre os grupos militares que dominavam o Estado e

boa parte da elite social (como os intelectuais e, mais tarde, até algumas lideranças

políticas, descontentes com a política recessiva de Castelo Branco). Na década de

1970, parte da elite econômica criticava e se distanciava do regime por conta do

estatismo e do burocratismo. A imprensa, dita liberal (NAPOLITANO, 2014), que

tanto apoiou o golpe que derrubou Jango, após o AI-5, o ápice repressivo e a falta de

liberdades civis, se posiciona consagrando uma cultura de esquerda e vozes críticas

ao regime, em especial, depois da aniquilação da luta armada. Daí viria uma

improvável convergência entre liberais dissidentes e comunistas críticos, sobretudo a

partir da “distensão” implementada pelo governo Geisel. Para NAPOLITANO

(2014:317), é desta convergência que surge a memória hegemônica sobre o regime

militar. Por outro lado, a sociedade civil se tornaria cada vez mais atuante a partir

daquela época. Uma vez que o “milagre econômico” se encerrou e o Brasil foi

trilhando um caminho rumo à grave crise dos meados da década de 1980, a

legitimidade do regime se erodiria de vez.

Napolitano assinala que os militares hoje se sentem ressentidos. Passaram à

História mais como “vilões”, do que como heróis. Os militares na atualidade

procuram se justificar quanto aos métodos empregados, tanto na repressão aos

opositores, como no combate à luta armada contra o regime. O mesmo autor

arremata que a memória hegemônica sobre o regime, ainda que tenha incorporado

alguns elementos da esquerda, é fundamentalmente uma memória liberal, que

tenderia a privilegiar a estabilidade institucional e a criticar os radicalismos de ambos

os lados (à direita e à esquerda). Tal memória liberal condenou o regime, mas

relativizou o golpe. Condenou politicamente os militares da linha dura, mas absolveu

428

os da transição negociada. Nesta memória, Geisel é quase um herói da democracia,

enquanto Médici e Costa e Silva são os vilões do autoritarismo e da repressão.353

Percebe-se que a memorialística sobre o regime é bastante complexa. Isso não

deixa de ser reflexo da transição bastante extensa, que na verdade, ocupou 11 dos 21

anos em que os militares estiveram no poder, se tomarmos como ponto de partida o

início do período de Geisel. Foi uma transição longa, tutelada pelos militares, em que

um civil oposicionista moderadíssimo (Tancredo Neves) voltaria à Presidência

através do Colégio Eleitoral. Com a morte deste, a Presidência seria ocupada pelo

vice, José Sarney, uma figura que cresceu nas sombras do regime e mudou de lado na

última hora.

E, nos dias atuais, após trinta anos do final do regime autoritário, ainda há

pessoas que sentem saudades daquele período. Saudosistas da prosperidade

econômica (como se os 21 anos dos militares no poder tivessem sido de puro

crescimento econômico, esquecendo-se da política recessiva de Castelo Branco, ou

pior, da crise econômica assombrosa dos anos de Figueiredo). Outros sentem

saudades porque, nos dias atuais, o quadro de deterioração da segurança pública e os

altos índices de violência fazem alguns suspirarem pelos “anos dourados do

militarismo” (quando, na verdade, foi aqui exposto que muitos dos problemas da área

da segurança têm suas raízes justamente no regime militar). Ou ainda a questão dos

direitos humanos, vista hoje como “privilégio de bandidos” por conta do problema da

violência urbana, em que, no contexto do regime, acaba sendo distorcida tratando o

guerrilheiro das décadas de 1960 e 1970, como um marginal inescrupuloso e

sanguinário e, por outro lado, os militares e os policiais abatidos na “guerra interna”

contra a luta armada são colocados verdadeiros “mártires” (mas, não se fala dos

grupos paramilitares de direita que atuaram na época ou dos atos terroristas da

extrema-direita). Por fim, há autores (como Daniel Aarão Reis Filho) que consideram

que o fim do regime foi em 1979, com a revogação dos Atos Institucionais, outros

consideram que o marco do fim do regime foi a Constituição de 1988. O discurso

hegemônico apontaria o ano de 1985, embora José Sarney fosse uma figura

incongruente para simbolizar o início da “Nova República” por causa de seu passado

353 NAPOLITANO, Marcos. Op.Cit. p.319.

429

estreitamente ligado ao regime354

. Até para se estabelecer um marco para o final do

regime não haveria um consenso. Especificamente, quanto à este marco, foi-se

optado aqui pelo ano de 1985.

É assim que se encerra este trabalho. Espero que ele venha a trazer alguma

contribuição a esta discussão tão complexa, e ainda não terminada, sobre o regime de

1964. Que o Brasil um dia possa, através de seu povo, da sociedade como um todo, e

dos diferentes governos do porvir, passar “a limpo” a sua memória e

construir/desconstruir, montar/ desmontar, responsabilizar e julgar, de forma correta

e esclarecedora, o regime militar e seus atores envolvidos. E que também possa

enriquecer a Geografia Política no atual contexto contemporâneo de mais de duas

décadas após o fim da Guerra Fria e de três décadas após o fim do regime militar

brasileiro.

354 REIS FILHO, Daniel Aarão. Op.cit. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo

Patto Sá (org.). Op.cit. p.11.

430

Anexo 1:

Fonte: Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo:

Departamento editorial das Edições Melhoramentos, 1974. p.130 e 131. No mapa do

canto superior esquerdo, a área de atuação do DNOCS está representada em amarelo. A

da SUVALE encontra-se em vermelho. Há uma razoável intersecção entre as áreas de

atuação de ambas.

431

Anexo 2:

Fonte: Atlas das potencialidades brasileiras: Brasil grande e forte. São Paulo: Departamento

editorial das Edições Melhoramentos, 1974. p.134 e 135. No mapa maior onde estão

representados os órgãos de planejamento a nível estadual, em meados da década de 1970,

infelizmente é impossível visualizar cada um dos órgãos atuando em cada unidade federativa

brasileira. Porém, através da fonte, um aprofundamento sobre este tópico poderá ser realizado.

432

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