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Texto-base para apresentação de seminário na disciplina de História da América III Apresentação da obra de Gabriel García Márquez para discussão em sala do texto de Enrique Krause sobre o autor colombiano, na obra “Os Redentores” (Março/2015) Arquimedes Fuga Vaismenos Gabriel García Márquez foi um autor bastante prolífico, tendo publicado em diferentes gêneros: 11 romances, de 1955 a 2004; 12 livros de contos, de 1962 a 2012 (incluindo coletâneas); roteiros para cinema e teatro (10 no total, de 1964 a 1996); uma autobiografia, chamada ‘Viver para contar(2002); e 22 livros (de 1968 a 2010) que reúnem parte de seus textos produzidos ao longo de sua vida profissional como jornalista. No ano de 1982 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra. A escrita de García Márquez é notadamente marcada pela riqueza de vocabulário, pela fluidez prazeroza que proporciona, pelo senso de humor discreto e sagaz, e, principalmente, pela criatividade imaginativa e fantástica presente em todas as suas obras de ficção. Em 1967 ele publicou seu romante ‘Cem anos de solidão’, obra que o projetou como um dos mais importantes do século XX em todo o mundo, e está sem dúvida entre as mais conhecidas e apreciadas da literatura latino- americana. O enredo do romance se passa em torno da família de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán (ao longo de 7 gerações) e da aldeia chamada Macondo, que foi fundada por uma expedição liderada patriarca da família Buendía, aldeia cuja história marca o próprio tempo da narrativa do livro, desde sua fundação até o dia em que uma forte ventania a varreu do mapa.

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Texto-base para apresentação de seminário na disciplina deHistória da América III

Apresentação da obra de Gabriel García Márquez para discussão em sala do texto de Enrique Krause sobre o autor colombiano, na obra “Os Redentores”

(Março/2015)

Arquimedes Fuga Vaismenos

Gabriel García Márquez foi um autor bastante prolífico, tendo publicado em diferentes gêneros: 11 romances, de 1955 a 2004; 12 livros de contos, de 1962 a 2012 (incluindo coletâneas); roteiros para cinema e teatro (10 no total, de 1964 a 1996); uma autobiografia, chamada ‘Viver para contar’ (2002); e 22 livros (de 1968 a 2010) que reúnem parte de seus textos produzidos ao longo de sua vida profissional como jornalista.

No ano de 1982 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra.

A escrita de García Márquez é notadamente marcada pela riqueza de vocabulário, pela fluidez prazeroza que proporciona, pelo senso de humor discreto e sagaz, e, principalmente, pela criatividade imaginativa e fantástica presente em todas as suas obras de ficção.

Em 1967 ele publicou seu romante ‘Cem anos de solidão’, obra que o projetou como um dos mais importantes do século XX em todo o mundo, e está sem dúvida entre as mais conhecidas e apreciadas da literatura latino-americana. O enredo do romance se passa em torno da família de José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán (ao longo de 7 gerações) e da aldeia chamada Macondo, que foi fundada por uma expedição liderada patriarca da família Buendía, aldeia cuja história marca o próprio tempo da narrativa do livro, desde sua fundação até o dia em que uma forte ventania a varreu do mapa.

Macondo foi baseada na cidade natal de Gabriel García Márquez, Aracataca, na Colômbia. Também os personagens do romance carregam características de personagens reais, habitantes de suas memórias. Esta é uma marca evidente de seu trabalho: García Márquez nunca deixou de se referir ao ‘seu’ mundo real. Como afirma a mestranda Marina Procópio da Cunha, em sua análise das obras de Gabriel G. Márquez,

“Sua obra não tem a natureza puramente inventada que em geral atribuímos à ficção. Nem tão somente o autor vê a imaginação como o principal ingrediente de suas criações. Márquez cria a partir da história de seu povo, de sua família e a partir da memória – a sua e que compartilha com outros.” (CUNHA, Marina Procópio Rodrigues da. Uma Análise das Obras de Gabriel García Márquez. p.3. Trabalho acadêmico de pós graduação em História e Literatura, disponível em: http://www.cpgss.ucg.br/ArquivosUpload/16/file/Marina

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Não obstante, como aparece no próprio trecho destacado, dificilmente o estilo de Gabo é mencionado sem se pensar em seu aspecto fantástico, que é uma característica também fundamental de sua obra ficcional. Ele foi um dos expoentes da chamada escola literária do Realismo Mágico, surgida no século XX e fortemente impulsionada nas décadas de 1960 e 1970. Embora não seja nosso objetivo neste trabalho embrenhar-nos nas discussões que a literatura fantástica abarca, de maneira superficial citamos a distinção que Selma Calasans Rodrigues faz em seu pequeno livro “O Fantástico” (1988). Podemos dizer que na literatura fantástica europeia o elemento sobrenatural, ou fantástico, aparece matizado perante o real, que é de certa forma preservado na narrativa (não se deseja perder a verossimilhança); ao contrário, o Realismo Mágico tem a característica de não fazer distinção entre a realidade e o fantástico, o verossímil é misturado com o inverossímil, como no caso de ‘Cem Anos de Solidão’. Esta escola é  característica de autores da América Latina, como o próprio García Márquez, o venezuelano Arturo Uslar Pietri, o peruano Manuel Scorza, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luiz Borges, o cubano Alejo Carpentier e os brasileiros Murilo Rubião, José J. Veiga e Dias Goes, ressaltadas as variações e diferenças de estilo entre eles.

No ensaio de Enrique Krauze ‘À sombra do patriarca’, de que trata nosso seminário, o autor faz referências a algumas obras de García Márquez, entre as quais apresentaremos uma breve análise daquelas que entendemos ser as mais importantes na argumentação do dito ensaio.

Cem Anos de Solidão é o primeiro deles, que é tido também como sua obra de maior importância literária. Como exposto acima, esta obra retrata uma família ao longo de várias gerações, sendo que alguns de seus personagens mais marcantes foram inspirados em pessoas da família do próprio autor. Um exemplo é Úrsula Iguarán, a esposa do personagem José Arcádio Buendía, que foi o patriarca da família e aquele que liderou a expedição que resultou na fundação do vilarejo de Macondo. Nota-se, inclusive, a título de correção, que Enrique Krauze citou equivocadamente o nome de Aureliano Buendía (o coronel, filho do primeiro José Arcádio Buendía) como o fundador do vilarejo, onde deveria ter dito seu pai.

Gabo recria na história de Macondo algumas passagens de sua própria vida, que se entrelaçam à história da Colômbia - alguns momentos vividos pelo autor, e outros que ele ouviu contarem desde sua infância, principalmente pelas histórias de seu avô, Nicolás Márquez Mejía: refere-se, por exemplo, à Guerra dos Mil Dias, uma guerra civil devastadora ocorrida na República da Colômbia entre 1899 a 1902 (o filho do patriarca dos Buendía, o coronel Aureliano Buendía, participou da guerra, que apesar de não ter sido nomeada, remete a este conflito); a presença de uma grande companhia de cultivo de bananas em Aracataca, com suas marcas de progresso e exploração, de que García Márquez tinha memórias de infância, aparece na obra, assim como na realidade; aparece também referência a um grande massacre a ex-funcionários promovido pela empresa, que, na ocasião em que se retirava da cidade deixava apenas os “rastros de folhas secas”, como teria dito Gabo.Alguns dos personagens do livro transitam também em outras de suas obras, o

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que acontece também com a própria aldeia de Macondo: esta já havia sido citada em um outro livro antes de Cem anos de solidão, chamado A Revoada, e é citada novamente depois, em A má hora.

O livro de Márquez que Enrique Krauze confere maior importância em seu trabalho, entretanto, é O outono do patriarca. O livro, que o próprio García Márquez considerava ser uma de suas obras mais ousadas, apresenta um estilo diferente de seus outros romances. Narrado de forma quase ininterrupta, quase sem pontos finais, constitui-se de parágrafos imensos, alguns chegando a mais de 70 páginas, numa abundância de palavras e uma rara pontuação. O personagem central é também o narrador, um general-ditador de uma república localizada em algum lugar do caribe (os nomes do personagem e do país não são ditos). Na maior parte do tempo, quem narra é uma consciência onisciente do general; as vozes de outros personagens se alternam à sua voz quase sem indicação, ora de forma direta, ora separadas por vírgula, num ritmo que exige fôlego do leitor.

Segundo Krauze, esta obra é emblemática do que ele argumenta ser uma tendência de García Márquez a identificar-se com o autoritarismo na política, remetendo-se ao apoio que o escritor sustentaria a alguns regimes ditatoriais da América Latina. O leitor de O outono do patriarca, na visão do historiador, se depara com uma apologia a um poder praticamente totalizante, exacerbado na fantasia da obra, mas presente em várias figuras reais que presidiram diversos regimes latinoamericanos, figuras que o escritor sustentaria grande apreço - principalmente na figura de Fidel Castro, líder do regime revolucionário cubano, amigo pessoal de Gabo, a quem Krauze dirige pesadas críticas. Ele afirma que García Márquez não proporciona uma visão crítica em seu texto, escreve sobre o déspota não “para desmascará-lo ou analisar a complexidade interna de um homem de Estado, mas para inspirar compaixão por um velho triste e solitário”, uma vítima de um mundo que lhe assusta e lhe oprime, e que as vítimas verdadeiras de seu autoritarismo ficam apenas em segundo plano e acabam desumanizadas pelo autor.

Entretanto, pela leitura da referida obra, podemos insinuar um certo exagero de Enrique Krauze no que tange essa ‘apologia cega’ do escritor em sua obra. Podemos pensar que a despeito da aparente empatia com o ditador, que o livro nos proporciona, há uma crítica implícita na própria construção do personagem principal, em suas características psiológicas, em suas posturas, na evidência ofuscante que assume perante os outros personagens, nos exageros fantásticos de seu exercício de poder. O general assume o poder de maneira imposta (pelas “potências” estrangeiras), e não compreende bem o porquê. Isso pode ser um sinal do que acontece em alguns regimes autoritários latinoamericanos apoiados por grandes economias mundiais, interessadas manter relações de dependência e exploração econômica com países subdesenvolvidos. O general, embora pareça ter um talento nato para o cargo de administrador e supremo mandatário, demonstra não ter recebido sequer instrução básica (era inclusive analfabeto no início de seu regime), e não compreende bem o que faz, por quê recebe tanto poder, por quê é tão obedecido, e apenas se acostuma com esta condição em que lhe colocaram. Suas determinações são também vazias de sentido, suas ações são em geral absurdas, contraditórias, insensíveis, alienadas, anedóticas (chegou a baixar um decreto para canonizar sua mãe!); ele vive em um mundo alucinado, corrompido pelo exercício de poder, extenuado pelas suas obrigações de líder

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máximo, e, se ele, o general, não faz crítica ou não tem nenhuma sensibilidade pelas vítimas de sua própria violência, nós, leitores, podemos perceber o absurdo das situações narradas, o descompasso que há entre o mundo insano e pueril do general com as agressões que seu regime promove, apesar de não o termos lido explicitamente nas linhas do livro.

Não esperamos empreender uma crítica à argumentação do historiador, apenas esboçamos algumas reflexões que a leitura da obra nos suscitou. Para finalizar, trazemos um pequeno trecho do livro, em que se pode perceber alguns de nossos apontamentos, tanto com relação ao estilo, quanto à discussão sobre o senso crítico do autor:

[O general entrou no quarto e encontrou seu sósia, Patrício Aragonés, quase morto estirado no chão:] “Acompanhou-o na lenta agonia, os dois sozinhos no quarto, dando-lhe com sua mão as colheradas de alívio para a dor, e Patrício Aragonés tomava-as sem gratidão dizendo-lhe entre cada colherada que aí o deixo por pouco tempo com seu mundo de merda meu general porque o coração me diz que vamos nos ver muito breve nas profundezas do inferno, eu mais torcido que um pavio com este veneno e o senhor com a cabeça na mão buscando onde colocá-la, diga-se sem o menor respeito meu general, pois agora posso lhe que nunca quis como o senhor imagina senão que desde as têmporas dos flibusteiros em que tive a má desgraça de cair em seus domínios estou rogando que o matem mesmo que seja pelas boas para que me pague eta vida de órfão que me deu, primeiro achatando-me as patas com mãos de pilão para que se transformasem em patas de sonâmbulo como as suas, depois atravessando minhas bolas com agulhas de sapateiro para que formasse a hérnia, depois fazendo-me beber terebintina para que esquecesse de ler e escrever com tanto trabalho quanto custou a minha mãe ensinar-me, e sempre obrigando-me a fazer os ofícios públicos que o senhor não se atreve, e não porque a pátria o necessite vivo como o senhor diz senão porque ao mais duro a gente gela o cu coroando uma puta da beleza sem saber por onde a morte vai lhe soar, diga-se sem o menor respeito meu general, mas ele não se importava com a insolência mas com a ingratidão de Patrício Aragonés a quem fiz viver como um rei em um palácio e lhe dei o que ninguém tem dado a ninguém neste mundo até emprestar-lhe as minhas próprias mulheres, embora seja melhor não falarmos disso meu general que vale mais ser capado a martelo que andar derrubando mães pelo chão como se fosse uma questão de ferrar novilhas, (...)” (MÁRQUEZ, O outono do patriarca. p. 26-27)