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121 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 123-132, 2010 Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva* James V. Wertsch Washington University Resumo As ideias bakhtinianas sobre texto e dialogismo oferecem ferra- mentas importantes para trazer ordem ao caótico e fragmentado campo dos estudos da memória coletiva. Embora a definição de memória coletiva neste momento ainda esteja por ser resolvida, é possível obter alguma compreensão do espectro de opções, situ- ando-se as discussões em termos do contraste entre versões fortes e distribuídas da memória coletiva. Tendo por base a noção de mediação semiótica e as afirmações a ela relacionadas sobre uma versão distribuída da memória coletiva, invoca-se a noção bakhtiniana de texto dialogicamente organizado. O fato de que o ‘sistema da linguagem’ concebido por Bakhtin inclui as orienta- ções dialógicas do diálogo coletivo, generalizado assim como os elementos gramaticais padrão, significa que ele introduz um ele- mento essencial de dinamismo na memória coletiva. Palavras-chave Dialogismo — Memória coletica — Mediação semiótica — Bakhtin — Texto. Correspondência: James V. Wertsch Departamento de Antropologia Washington University in St. Louis St. Louis, MO 63130, USA e-mail: [email protected] * Trabalho apresentado durante a Second International Interdisciplinary Conference on Perspectives and Limits of Dialogism in Mikhail Bakhtin. Esto- colmo, Suécia, de 3 a 5 de junho de 2009.

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121Educação e Pesquisa, São Paulo, v.36, n. especial, p. 123-132, 2010

Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva*

James V. WertschWashington University

Resumo

As ideias bakhtinianas sobre texto e dialogismo oferecem ferra-mentas importantes para trazer ordem ao caótico e fragmentadocampo dos estudos da memória coletiva. Embora a definição dememória coletiva neste momento ainda esteja por ser resolvida, épossível obter alguma compreensão do espectro de opções, situ-ando-se as discussões em termos do contraste entre versões fortese distribuídas da memória coletiva. Tendo por base a noção demediação semiótica e as afirmações a ela relacionadas sobre umaversão distribuída da memória coletiva, invoca-se a noçãobakhtiniana de texto dialogicamente organizado. O fato de que o‘sistema da linguagem’ concebido por Bakhtin inclui as orienta-ções dialógicas do diálogo coletivo, generalizado assim como oselementos gramaticais padrão, significa que ele introduz um ele-mento essencial de dinamismo na memória coletiva.

Palavras-chave

Dialogismo — Memória coletica — Mediação semiótica — Bakhtin —Texto.

Correspondência:James V. WertschDepartamento de AntropologiaWashington University in St. LouisSt. Louis, MO 63130, USAe-mail: [email protected]

* Trabalho apresentado durante aSecond In terna t iona lInterdiscipl inar y Conference onPerspect ives and L imi ts o fDialogism in Mikhail Bakhtin. Esto-colmo, Suécia, de 3 a 5 de junhode 2009.

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Text and dialogism in the study of collectivememory*

James V. WertschWashington University

Contact:James V. WertschDepartamento de AntropologiaWashington University in St. LouisSt. Louis, MO 63130, USAe-mail: [email protected]

Abstract

Bakhtinian ideas about text and dialogism provide importanttools for bringing order to the otherwise chaotic and fragmentedfield of collective memory studies. While the definition ofcollective remembering may remain unsettled at this point, someappreciation of the range of options can be derived by situatingdiscussions in terms of the contrast between strong anddistributed versions of collective remembering. Building on thenotion of semiotic mediation and associated claims about adistributed version of collective remembering, Bakhtin’s notion ofdialogically organized text is invoked. The fact that the“language system” envisioned by Bakhtin includes the dialogicalorientations of generalized collective dialogue as well as standardgrammatical elements means that it introduces an essentialelement of dynamism into collective remembering.

Keywords

Dialogic — Collective memory — Semiotic mediation — Bakhtin —Text.

* Paper presented at the SecondInterna t iona l In terd isc ip l inar yConference on Perspectives andLimits of Dia log ism in Mikhai lBakhtin. Stockholm, Sweden, June3-5, 2009.

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O estudo da memória coletiva recente-mente ganhou nova vida graças aos esforços deestudiosos de várias disciplinas. Ela foi exami-nada por sociólogos (por exemplo, Schudson,1992), antropólogos (por exemplo, Cole, 2001),psicólogos (por exemplo, Pennebaker; Gonzalez,2009; Schacter; Gutchess; Kensinger, 2009),historiadores (por exemplo, Blight, 2009; Winter,2009) e outros, mas a escassez de colaboraçãointerdisciplinar continua impressionante. As pu-blicações de psicólogos que se propõem a abor-dar o tópico geral da memória humana frequen-temente deixam de mencionar Halbwachs(1980; 1992) ou qualquer outra figura da psi-cologia ou neurociência que tenha estudado asformas coletivas de memória. Inversamente, nãoé difícil encontrar tratamentos da memória co-letiva por historiadores ou sociólogos que de-monstram ter pouco conhecimento da psicolo-gia da memória individual. Em alguns casos,realmente os autores fizeram um esforço parausar ideias e achados de vários campos, mas oslimites impostos pelo discurso da disciplina ain-da são impressionantes.

As possibilidades de colaboração inter-disciplinar para os estudos da memória coletivapermanecerão exatamente assim — possibilida-des — até que alguma forma poderosa de sín-tese seja utilizada, e essa é uma razão para in-vocar as ideias de Mikhail MikhailovichBakhtin. Conforme eu esboçarei abaixo, sua vi-são intelectual oferece um modelo teórico po-deroso sobre o qual pode ocorrer colaboraçãointerdisciplinar. A segunda razão para trazê-loà cena diz respeito a uma questão que infes-ta muitas discussões de memória coletiva,nota-damente a tendência a considerá-la comoalguma sorte de presença vaga que paira “logoali” no mundo cultural etéreo. Isso é o que eutenho chamado uma versão “forte” de memó-ria coletiva, uma abordagem que se opõe auma versão “distribuída”, mais realista e teo-ricamente mais fundamentada. ConformeFrederic Bartlett (1932) — o pai dos estudospsicológicos modernos da memória — apontou,as versões fortes cometem o erro de se concen-

trar na memória do grupo ao invés de se res-tringiram à memória no grupo. Essas versõespressupõem que algum tipo de mente ou cons-ciência coletiva existe acima e para além dasmentes dos indivíduos num grupo.

Conforme eu argumentei noutra oportu-nidade (Wertsch, 1998; 2002), existem várias ver-tentes da versão distribuída de memória coleti-va, mas elas são similares quanto aos seguintesaspectos: a) a representação do passado é vistacomo compartilhada pelos membros de um gru-po, embora b) nenhum compromisso seja assu-mido com uma mente coletiva do tipo concebi-do numa versão forte de memória coletiva.

A chave para evitar as ciladas de umaversão forte de memória coletiva é a mediação,especialmente a mediação semiótica, noçõescuja genealogia remontam a várias origens. Aseguir, eu me apoiarei principalmente nasideias de Lev Semënovich Vygotsky (1981;1987) e Bakhtin (1986). Nessa perspectiva, osseres humanos são basicamente animais queutilizam signos, e as formas de ação que de-senvolvemos, especialmente falar e pensar,envolvem uma combinação não redutível deum agente ativo e uma ferramenta cultural(Wertsch, 2002). Na linguagem da ciênciacognitiva contemporânea, a ação humana, inclu-indo falar, pensar e lembrar, está “distribuída”entre agente e ferramenta cultural e, portanto,não pode ser atribuída a qualquer um dos doisisoladamente.

Essa é uma linha de raciocínio que temsido desenvolvida por nomes como MalcolmDonald (1991), que argumenta que o tipo demediação semiótica que eu tenho em menteemergiu como parte da última das três gran-des transições na evolução cognitiva humana.Essa transição envolveu “a emergência de sim-bolismo visual e de memória externa comofatores importantes na arquitetura cognitiva”(p. 17). Nesse ponto da evolução cognitiva, omotor primordial de mudança não estava den-tro do indivíduo. Ao contrário, foi a emergên-cia e o uso amplamente disseminado de formasde “armazenamento simbólico externo”, tais

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como textos escritos, registros financeiros eassim por diante. Ao mesmo tempo, contudo,Donald enfatiza que a transição não deixa osprocessos psicológicos ou neurais inalterados noindivíduo:

[...] o sistema simbólico externo impõe aocérebro mais de uma estrutura de interface.Ele impõe estratégias de busca, novas estra-tégias de armazenamento, novas rotas deacesso à memória, novas opções tanto nocontrole quanto na análise do próprio pensa-mento de cada um. (p. 19)

Uma razão importante para introduzir anoção de mediação semiótica, então, é que elanos permite falar de memória coletiva sem noscomprometermos com uma explicação da ver-são forte. A esse respeito, cabe ressaltar que,embora Halbwachs (1980; 1992) não tenhadado à mediação textual o grau de importân-cia que ela teria numa análise fundamentadaem ação mediada, ele claramente a reconheceusim como uma parte legítima da história. Numparalelo notável com Donald, ele argumentouque “não faz… sentido procurar onde... [asmemórias] são preservadas no cérebro ou emalgum recanto da minha mente à qual apenaseu tenho acesso: porque elas são relembradaspor mim externamente, e os grupos dos quaiseu faço parte em qualquer dado momento medão os meios para reconstruí-las” (Halbwachs,1992, p. 38). Ao descrever a memória coletivade músicos, Halbwachs (1980) expressou-senos seguintes termos:

Com a prática, os músicos podem lembrar-sedos comandos elementares [de anotações es-critas que orientam sua atuação]. No entanto,a maioria deles não consegue memorizar oscomandos complexos que compreendemsequências muito extensas de sons. Portanto,eles precisam ter à sua frente as folhas depapel nas quais todos os sinais, numa suces-são apropriada, estão materialmente fixados.Uma vasta parte de suas lembranças é conser-

vada dessa forma – ou seja, fora de si própri-os na sociedade daqueles que, como eles pró-prios, estão interessados exclusivamente emmúsica. (p. 183)

Ao analisar tais fenômenos, Halbwachs(1980; 1992) concentrou-se essencialmente nopapel dos grupos sociais na organização damemória e dos estímulos da memória e disserelativamente pouco sobre os meios semióticosempregados. A seguir, eu trago esses meiossemióticos para o centro da discussão. É pre-cisamente esse passo que nos encoraja a falarsobre memória coletiva sem pressupor umaversão forte dela. Ao invés de postular umaagência mnemônica vaga que é um fio corren-do entre os membros de um grupo, a afirma-ção é que a memória coletiva é coletiva por-que os membros de uma “comunidademnemônica” (Zerubavel, 2003) compartilham omesmo conjunto básico de recursos semióticos.

A explicação bakhtiniana detexto

A abordagem de memória coletivaesboçada não explica satisfatoriamente quaisformas de mediação semiótica podem estar en-volvidas. A esse respeito, eu proponho a noçãode “texto” de Bakhtin. No artigo intitulado “Oproblema do texto em Linguística, Filologia eCiências Humanas: um experimento em análisefilosófica”, Bakhtin (1986) propôs “dois polos”de texto.

Cada texto pressupõe um sistema de signosgeralmente compreendido (isto é, convencio-nal dentro de um determinado coletivo),uma linguagem compreendida de modo ge-ral... (quem dera também a linguagem daarte). E então por trás de cada texto, há umsistema de linguagem. Tudo no texto que érepetido ou reproduzido, tudo que é repetívelou reproduzível, tudo que pode ser dado forade um determinado texto (o dado) está emconformidade com esse sistema de lingua-

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gem. No entanto, ao mesmo tempo, cadatexto (como uma enunciação) é individual,único e não repetível, e aqui reside sua intei-ra significação (seu plano, o propósito, parao qual ele foi criado)... Com respeito a esseaspecto, tudo que é repetível ou reproduzívelprova ser material, um meio para um fim. Osegundo aspecto (polo) é inerente ao própriotexto, mas é revelado somente numa situa-ção particular e numa cadeia de textos (nacomunicação oral de uma determinada área).(p. 105)

Bakhtin é bastante conhecido por sua te-oria da enunciação, uma preocupação que estárefletida na afirmação de que a “significação in-teira [de um texto] (seu plano, o propósito parao qual ele foi criado)” remonta a seu polo “in-dividual, único e não repetível”. A seguir, con-tudo, eu me concentrarei em grande medida nooutro polo do texto, aquele preocupado com oselementos “repetíveis e reproduzíveis” oferecidospor um “sistema de linguagem” que é “conven-cional dentro de um determinado coletivo”.

A primeira inclinação daqueles influencia-dos pelas ideias da linguística contemporânea seriacompreender o que Bakhtin chamou de um “sis-tema de linguagem” em termos de morfologia,sintaxe e semântica. Isso, no entanto, reflete umaperspectiva muito mais limitada do que aquela queBakhtin tinha em mente. De fato, sua explicaçãodo polo repetível e reproduzível do texto reconhe-ce esses elementos, mas ela também inclui umsegundo nível de organização no “sistema de lin-guagem” e um segundo nível de análise. Nessavisão, o primeiro nível tem a ver com a análise es-trutural de sentenças descontextualizadas e o se-gundo se foca em “linguagens sociais”, “gênerosdo discurso” e a “cadeia de textos” na qual umtexto ou uma enunciação aparece.

Formulando as ideias de Bakhtin nos ter-mos de uma perspectiva mais familiar para os lei-tores ocidentais, Michael Holquist (1986) escreve:

A “comunicação”, conforme Bakhtin usa o ter-mo de fato, recobre muitos dos aspectos da

parole em Saussure, porque ela diz respeito aoque acontece quando pessoas reais em todasas contingências de suas multifacetadas vidasrealmente falam umas com as outras. Entre-tanto, Saussure concebeu o usuário individualde linguagem como um agente absolutamentelivre com a habilidade para escolher quaisquerpalavras para implementar uma intenção parti-cular. Saussure concluiu, não por acaso, que alinguagem usada por milhões de tais sujeitosheterogêneos e donos de sua vontade não erapassível de estudo, e era uma selva caótica quea ciência não consegue domesticar. (p. xvi)

Aceitar essa oposição saussureana estan-que significa que aprender uma linguagem éum processo de dominar um conjunto de re-gras da langue. Além disso, pressupõe que ouso apropriado das formas de linguagem en-volve alguma combinação de escolha individuale contexto cultural. Em síntese, as questões deuso da linguagem e de como enunciações sãoformatadas por seu posicionamento numa “ca-deia de textos” são excluídas do escopo do quese considera propriamente linguagem.

Holquist (1986) enfatiza que um dosinsights de Bakhtin foi que o mundo semióticonão precisa ser dividido de modo tão estanquequanto a distinção langue-parole sugere. Aesse respeito, Bakhtin (1986) escreveu que

[...] a enunciação, com toda a sua individualida-de e criatividade, não pode de modo algum servista como uma combinação completamente li-vre de formas de linguagem, como pressupõe,por exemplo, Saussure (e por muitos outroslinguistas depois dele), o qual justapôs aenunciação (la parole), como um ato puramenteindividual, ao sistema de linguagem como umfenômeno que é puramente social e obrigatóriopara o indivíduo. (p. 81)

Ao invés disso, Holquist (1986) observa:

Bakhtin... começa por presumir que falantesindividuais não têm o tipo de liberdade que

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a parole pressupõe que eles têm. O problemaaqui é que o grande linguista suíçodesconsidera o fato de que “além das formasde linguagens há também forma de combi-nações dessas formas”. (p. xvi)

O que Bakhtin tem a dizer sobre essasformas de combinações de formas aponta anecessidade de um segundo nível de análiserelacionado com o polo do texto que tem a vercom o que é “repetido e reproduzido”. Eleamplia também o que precisa ser levado emconsideração quando se fala sobre o “sistemade linguagem” ou “um sistema de signos ge-ralmente compreendido (isto é, convencionaldentro de um determinado coletivo)”. Levando-se esses comentários em consideração, somosnaturalmente instados a fazer um conjuntodiferente de perguntas sobre a mediaçãosemiótica da memória coletiva. Em particular,somos levados a reconhecer uma forma de di-namismo nas formas de mediação semióticaenvolvidas e, portanto, na própria memória.

A chave para compreender as implica-ções das ideias de Bakhtin (1986) é seu con-ceito de “dialogismo” e as noções relacionadasde “voz” e “multivocalidade”. Em seus textos,ele enfatizou que uma propriedade definidoradas enunciações é que elas existem apenas nocontato dialógico com outras enunciações eestão, portanto, “preenchidas com nuances1

dialógicas” (p. 102). É esse contato dialógicoque oferece a chave para compreender o se-gundo nível de fenômenos envolvidos no se-gundo polo de texto de Bakhtin.

Para compreender essa questão, é funda-mental a pressuposição de Bakhtin (1981) de quea palavra nunca pertence somente ao falante, aocontrário, “metade dela pertence ao outro” (p.293) sempre, o que tem como resultado a inerentemultivocalidade das enunciações.

[A palavra] torna-se “sua própria” somentequando o falante a povoa com sua própriaintenção, seu sotaque, quando ele se apropriada palavra, adaptando-a a sua própria inten-

ção semântica e expressiva. Antes desse mo-mento de apropriação, a palavra não existenuma linguagem neutra e impessoal (afinalde contas, não é do dicionário que o falantepega suas palavras!), mas, ao contrário, elaexiste nas bocas de outras pessoas, nos con-textos concretos de outras pessoas, servindoàs intenções de outras pessoas: é dali que apessoa deve pegar a palavra e fazê-la sua. (p.293-294)

Ao lidar com enunciações da perspectivado primeiro polo de texto de Bakhtin, as aná-lises sociolinguísticas contemporâneas não têmgrandes problemas para compreender os fenô-menos envolvidos. Por exemplo, as afirmaçõesbakhtinianas são consistentes com as análises decomo as enunciações podem ser coconstruídasou de como elas podem ser respostas abrevia-das a uma questão (Falante 1: “Que horas são?”Falante 2: “Duas e quarenta e cinco.”).

O que é significativo, contudo, é queBakhtin viu que a afirmação de que pelo me-nos metade da palavra pertence ao outro seaplicava à linguagem – não ao texto ou àenunciação. E isso levanta a questão mais umavez de um nível de análise que vai além dascategorias de langue e parole. Especificamen-te, ele envolve um nível de fenômenos de lin-guagem que existem, por um lado, como fa-tos sociais compartilhados coletivamente sobrea organização de enunciações, mas que, poroutro lado, não são reduzíveis às explicaçõespadrões de categorias gramaticais.

Para tentar compreender o que Bakhtintinha em mente a esse respeito, é útil introdu-zir uma distinção entre “diálogo local” e “di-álogo coletivo generalizado” (Wertsch, 2002).Diálogo local é o que Bakhtin (1981) às vezeschamou de “dialogismo primordial do discur-so” (p. 275) e envolve os modos como asenun-ciações concretas de um falante entramem contato com – ou “interanimam,” influen-

1. N.T.: O autor emprega o termo overtones, o qual aceita várias traduçõesalém de nuances. Dentre as quais, estão: sugestões, implicações, sentidose pistas.

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ciam mutuamente – as enunciações de outro.Essa forma de interanimação dialógica envol-ve a “comunicação verbal vocalizada direta,face a face, entre pessoas” (Voloshinov, 1973,p. 95) e é o que normalmente nos vem à men-te quando encontramos o termo “diálogo”.

Para Bakhtin (1986), contudo, as vozesde múltiplos falantes entram em contato numnível de diálogo coletivo generalizado também,e isso leva aos modos adicionais como as pa-lavras podem ser “preenchidas com nuancesdialógicas” (p. 102). A noção de diálogo cole-tivo generalizado tem a ver com modos comoas enunciações podem refletir a voz de outros,incluindo grupos inteiros, que não estão fisi-camente presentes na situação imediata defala.

Em seus textos, fica claro que Bakhtin(1986) tinha em mente algo como essa distin-ção. Ele via o diálogo como algo que vai des-de o diálogo primordial face a face do discur-so apresentado acima, que se encaixa na cate-goria de diálogo localizado, até intercâmbioscontínuos, virtualmente da sociedade toda, quese encaixam na categoria de diálogo coletivogeneralizado. Um destinatário pode ser

[...] um participante-interlocutor imediatoem um diálogo cotidiano, um coletivo dife-renciado de especialistas em alguma área es-pecífica de comunicação cultural, um públicomais ou menos diferenciado, um grupo étni-co, contemporâneos, pessoas de mesma opi-nião, opositores e inimigos, um subordinado,um superior, alguém que está abaixo, acima,que é familiar, estrangeiro e assim por dian-te. E também pode ser um outro indefinido,não concretizado. (Bakhtin, 1986, p. 95)

Recursos textuaisdialogicamente organizados ememória coletiva

A abordagem de memória coletiva aquiesboçada dá lugar central à mediação semió-tica. Ela dá importância central especificamen-

te aos recursos textuais dialogicamente orga-nizados, conforme concebidos por Bakhtin. Porum lado, isso significa que a memória nãopode ser considerada equivalente, ou reduzida,à mediação semiótica isoladamente porque opolo de texto “individual, único e nãorepetível” assegura um papel para um agenteativo em um contexto concreto. Por outrolado, porque “metade da palavra é do outro”sempre, qualquer narrativa do passado refleteos recursos oferecidos por um contextosociocultural mais amplo e, de acordo com aconcepção dele, eles implicam a tendência àcontestação, oposição e outras formas de en-contro dialógico. Dentre as formas dedialogismo sugeridas pela análise de Bakhtin(1984), eu me focarei em uma em particular eem suas implicações para a memória coletiva.Isso é o que ele denominou “dialogicidadeescondida”.

Imagine um diálogo de duas pessoas no qualas afirmações do segundo falante sejamomitidas, mas de tal modo que o sentidogeral não seja nada violado. O segundo fa-lante está presente invisivelmente, suas pala-vras não estão lá, mas os traços profundosdeixados por essas palavras têm uma influ-ência determinante em todas as palavras pre-sentes e visíveis do primeiro falante. Nóssentimos que se trata de uma conversa, em-bora apenas uma pessoa esteja falando, e éuma conversa do tipo mais intenso, porquecada palavra enunciada, presente, responde ereage com toda a sua fibra ao falante invisí-vel, aponta para algo fora de si própria, alémde seus próprios limites, para as palavras nãoditas de outra pessoa. (p. 197)

Como ilustração das implicações da dia-logicidade escondida para a memória coletiva,considere a análise que Tulviste e Wertsch(1994) oferecem da história oficial e oficiosa daEstônia soviética. Eles argumentam que aemergência de uma história não oficial entre osestonianos étnicos resultou precisamente do

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tipo de dinâmica esboçada por Bakhtin. Nessecaso, as duas vozes envolvidas foram, de umlado, as autoridades soviéticas e a narrativahistórica que elas produziram em instituiçõespúblicas tais como escolas e, de outro lado, asrespostas produzidas pelos estonianos étnicosem esferas não públicas, tais como as famíliase os grupos de pares.

Tais respostas se fundamentaram em gran-de medida em observações significativas pessoaisde indivíduos, mas elas foram moldadas por recur-sos textuais oferecidos pela cultura de resistênciana qual eles viveram. Especificamente, os recursostextuais que eles compartilharam foram largamen-te organizados em torno de um esforço para re-futar a narrativa soviética oficial. Essa tendênciafoi tão central que a memória coletiva não ofici-al consistiu de pouco mais que contranarrativascuja força motriz foi a necessidade de refutar asnarrativas oficiais do passado.

Esse caso ilustra vários dos pontos discu-tidos acima sobre memória coletiva. Primeiro,ele revela um tipo de dinamismo, algo que éainda mais impressionante quando se conside-ra que ele existiu num contexto em que as au-toridades estatais tentavam eliminar a resistên-cia e a contestação. Segundo, esse dinamismonão é algo que pode ser reduzido a processosindividuais. Ao contrário, havia consistênciaentre os membros da comunidade mnemônicaestoniana em sua narrativa da história não ofi-cial, algo que aponta para os recursos textuaiscompartilhados que ajudaram a constituir essacomunidade de resistência. E terceiro, o dina-mismo envolvido no diálogo escondido entre ahistória oficial e a não oficial tornou-se possí-vel, ou melhor, foi quase construído com os re-cursos semióticos empregados. O “sistema de lin-guagem” bakhtiniano que foi envolvido incluiuelementos repetidos e reproduzíveis, mas eles fo-ram muito além da organização gramatical e in-troduziram vozes politicamente situadas que con-vidaram à resistência, à refutação e a outras for-mas de encontro dialógico.

Uma característica final das formas demediação semiótica envolvidas nesse episódio

de memória coletiva é que elas operaram deuma maneira largamente inconsciente. Em talcontexto, os indivíduos frequentemente afir-mam que eles estão simplesmente relatando “oque realmente aconteceu.” Ou seja, eles presu-mem uma forma de mediação semiótica quereconhece a relação entre os signos e ummundo referencial de eventos e objetos, masdesconsideram até que grau os recursos textu-ais empregados são dialogicamente situados emoldados. O resultado é que nós frequente-mente deixamos de reconhecer até que pontoa memória coletiva é fundamentalmente umprocesso político que é moldado pelos recur-sos textuais dialógicos empregados. Odialogismo escondido é escondido mesmo epode levar ao confronto rígido e implacávelquando ambas as partes apresentam o que elashonestamente consideram ser as narrativas de“o que realmente aconteceu”.

Conclusão

Em resumo, as ideias bakhtinianas sobretexto e dialogismo oferecem ferramentas im-portantes para trazer ordem ao caótico e frag-mentado campo dos estudos da memória co-letiva. Embora a definição de memória coleti-va neste momento ainda esteja por ser resol-vida, é possível obter alguma compreensão doespectro de opções, situando-se as discussõesem termos do contraste entre versões fortes edistribuídas da memória coletiva.

Eu argumentei que as ideias de Bakhtinoferecem um modelo teórico útil para integraros estudos interdisciplinares e para evitar al-gumas das versões fortes e reducionistas daanálise da memória coletiva que emergem demodo demasiadamente fácil e, frequentemen-te, de forma implícita. Tendo por base a no-ção de mediação semiótica e as afirmações aela relacionadas sobre a versão distribuída dememória coletiva, foi introduzida a noçãobakhtiniana de texto dialogicamente organi-zado. O fato de que o “sistema de linguagem”concebido por Bakhtin inclui as orientações

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dialógicas de diálogo coletivo generalizadoassim como os elementos gramaticais-padrãosignifica que ele introduz um elemento essen-

cial de dinamismo na memória coletiva. E éesse elemento que ajuda a explicar não ape-nas a dinâmica dimensão política da memó-ria coletiva, mas também como ela podemudar ao longo do tempo.

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130 James WERTSCH. Texto e dialogismo no estudo da memória coletiva.

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Recebido em 27.08.09

Aprovado em 12.12.09

James V. Wertsch é professor dos departamentos de Educação e Antropologia da Washington University at Saint Louis, nosEstados Unidos. Ocupa também o cargo de diretor da McDonnell International Scholars Academy, prestando assessoria aprogramas em vários países como a Geórgia, a Índia e a China.