texto das orelhas · que se fez; isso se tornará a fazer: nada há, pois, novo debaixo do sol....

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TEXTO DAS ORELHAS

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OYAMA RAMALHO _______________________________

UM DIA,

COM CALMA, EU TE CONTO...

(Histórias e memórias do (Histórias e memórias do (Histórias e memórias do (Histórias e memórias do

João do Açúcar)João do Açúcar)João do Açúcar)João do Açúcar)

EDIÇÕES ZONA CHIC

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Copyright © Oyama de Alencar Ramalho

1ª Edição

PROJETO GRÁFICO: ANTÔNIO CLARET DE SOUZA

CAPA:

JOÃO GARBOGGINI QUAGLIA (A partir de uma fotografia de João Ramalho Neto)

Esquina das ruas Marechal Bitencourt (antiga rua da Cachaça) com Sebastião Sette (antiga rua Nova)

São João del-Rei - MG

Edições Zona Chic

(Fac omnibus vitam cum æqualitate)

***

Características

Tamanho 21 x 14 cm 153 páginas

Registro na Biblioteca Nacional

N.º 116.622 Livro 177 Folha 36

26/agosto/1996

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ADVERTÊNCIA

É impossível deixar de falar sobre o nosso quintal ...

Adélia Prado Entrevista, 26/04/94

No Eclesiastes já se dizia: — O que foi, é o que há de ser; e o que se fez; isso se tornará a fazer: Nada há, pois, novo debaixo do sol. Isso pode significar que não inventamos nada, mudamos apenas o nome das coisas e das pessoas e, no fundo, contamos os mesmos casos. Shakespeare legou-nos uma idéia diferente: — Há mais coisas no céu e na terra, Horatio, do que pode sonhar tua filosofia. Sem querer distorcer o contexto e sem querer possuir a interpretação única, acreditamos que o autor inglês abriu possibilidades ilimitadas à imaginação. De um jeito ou de outro, acreditamos que o real continua nos mesmos lugares, nutrindo a realidade do ofício de escritor. Os casos contados, neste livro, constituem uma parte jocosa das memórias do João do Açúcar, um cidadão tão real quanto imaginário. As personagens e os fatos, aqui contidos, não se referem a pessoas reais, vivas ou falecidas. As igualdades de nomes — exceto os geográficos e os de algumas pessoas publicamente reconhecidas — bem como as similitudes de situações, caso existam, são meras coincidências, pura obra do acaso. Não há motivos, portanto, para regozijo por parte de alguns e muito menos para ofensa por parte de outros.

São João del-Rei, 1994

O Autor

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POSFÁCIO

Quem conta um ponto aumenta um conto

O exercício cotidiano da literatura permite a prática diversificada de seus adeptos, atuando, para uns, como sustento solitário nos gabinetes de estudo no jogo cuidadoso (e amoroso) da realidade-ficção, reescrevendo o texto. Para outros, como forma de convivência diária no espaço aberto das salas de aula ou na troca de experiências efetuadas nos encontros rápidos pelos corredores após as aulas. A reunião destas duas práticas, ainda que num tempo miniaturizado, tornou possível este posfácio. Ao iniciarmos a leitura de Um dia, com calma, eu te conto..., deparamo-nos com o autor, Oyama Ramalho, advertindo-nos, logo de saída, que Os casos contados, neste livro, constituem uma parte jocosa das memórias do João do Açúcar, um cidadão tão real quanto imaginário. Assim, o subtítulo do livro e a apresentação da personagem já apontam duas das características estruturais das histórias: a memória e a metalinguagem. Existe um narrador 1 que se dedicou à tarefa de reconstituição dos casos de João do Açúcar , sistematizando ações, personagens e lugares. Paixão de colecionador. É este narrador-autor que traz à superfície do texto a memória do João do Açúcar , o narrador 2. Memória da memória, num processo de criação, de modo a esquecer modelos e reinventar começos, numa permanente tensão entre um estado lírico de introspecção afetiva e a preocupação épica de mostrar, o mais objetivamente possível, o contexto. Há um texto se escrevendo, processando-se, um texto que se sabe texto, há uma escritura se tecendo, e isto pode ser verificado em vários níveis: desde os fatos mais engraçados, como a construção da cabine em Surto de Modernidade até os casos de pescadores e caçadores ou o diálogo surrealista entre seu Saulo e o Dr. José de Barros. Tudo se converte em estória, em narrativa. No interior dos casos, imbricam-se outras narrativas, umas gerando outras e todos dialogando entre si. Esta circularidade da narrativa em que tudo vira palavra narrada ou motivo para novas narrativas transformou os casos do João do Açúcar numa macronarrativa que, transbordados dos limites de suas unidades, se espairam a ponto de formarem, de vários, um conjunto, como que uma rede, cujos fios se constituem das histórias e, principalmente, do fino humor, costurando um caso ao outro. Esta narrativa, baseada na pesquisa ou, na leitura de um texto sobre o qual se monta um outro texto, despreza a autoridade da autoria e do público. Da autoria, enquanto se permite fazer narrativas com o texto do outro. De cabeça fresca. Do público, porque não se exige do leitor absolutamente nada, a não ser a sua

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condição de ler, sem preencher pré-requisito. As igualdades de nomes — (...) e os de algumas pessoas publicamente

reconhecidas — bem como as similitudes de situações, caso existam, são meras coincidências, pura obra do acaso.

A memória do narrador se reescreve na memória de João do Açúcar: a voz poética assume a função de pícaro, com índole sarcástica, que atinge a mordacidade. Este é o seu modo de narrar: jocoso. De certa forma, acha-se envolvido neste espaço que representa, enquanto eixo-crítico-cômico de uma realidade que já experimentou, já profanou. E parece encontrar aí mesmo, nesta profanação, o sumo de sua identidade são-joanense. As histórias nada mais são ou parecem ser do que casos. Mas nesta redução do ficcional, abre-se o leque da significação, ainda que por outra via: a do arguto discernimento irônico. Caçoada crítica, sem tormento. Finalmente, apontamos para a exploração formal e temática da narrativa oral. Debaixo de uma laranjeira, João do Açúcar confundia-se com a

natureza (...) Deitado de costas, olhava para o céu infinito sem nada ver. Talvez sonhasse e, sem mais nem menos, começou a contar suas desventuras amorosas, sem pressa de acabar, parando nos detalhes, indo e vindo a fim de melhor explicá-los.

E o principal recurso para este processo narrativo é o diálogo: o diálogo revelador de caracteres como no excelente O Interrogatório, o diálogo-ponto-de-vista em Mande-o..., o diálogo sugestão de ambientes em Ignorância. Ou o discurso indireto, uma forma de dialogação polifônica como em Quem Sabe?. O aproveitamento da vivacidade coloquial como em A Carta. Esses processos narrativos permitem pensar, como Walter Benjamim, em sua tese sobre o narrador, que a sabedoria das narrativas orais está em levar quem ouve as estórias a produzir novas narrativas. Compreende-se porque o final da última história em lugar de ser um fecho, retoma num processo contínuo e circular a primeira história, assinalando novo começo: Quem sabe, o resto..., um dia com calma, eu te conto. João do Açúcar, no decorrer da narrativa, reconstrói as suas histórias, trazendo fatos engraçados, curiosos, fantásticos e líricos, numa galeria sugestiva de figuras que julgamos contemporâneas nossas, seja porque chegam a comunicar conosco, seja porque envolvidos pela leitura, até elas nos transportamos. Destacamos a descrição que faz o narrador da linguagem do Pe. Zverianovic Schwaitzer, logo no início da história. Não falava como o povo fala, não usava gírias nem palavras chulas e

colocava os pronomes de acordo com a sintaxe recomendada por Carlos Góis. Tinha a voz de barítono, uma pronúncia peculiar e, apesar de ter morado muito tempo em Minas Gerais, não sofreu a contaminação do linguajar do mineiro (...)

E o traço cômico do final da história ganha força exatamente pelo contraste entre os elementos da linguagem

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comparados. No centro de todos os fatos está a personagem-narradora: João do Açúcar. Ao seu redor, em círculos concêntricos, está girando tudo e todos; bispos, carolas, soldados, matutos, astutos, enganos, infortúnios, sorte, azar... num turbilhão onírico. João do Açúcar dá notícias, leva emoções, semeia idéias, questiona... Debaixo de uma laranjeira, João do Açúcar confundia-se com a

natureza. Jovem ainda, sem os encargos da vida, tinha como compromisso mais sério a pescaria do entardecer.

E o último ponto. Tentei ler o texto através da ótica do narrador. Apresentei pontos que recolhi. Ao recolher, elegi. Isto implica em dizer que muita coisa ficou de lado. Neste espaço, porém o deixar de lado não quer dizer que não mereça ser trazido à cena... um dia, com calma...

Alcimara Zanetti Pugliese Professora de Teoria da Literatura da FUNREI

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UM DIA COM CALMA ...

O céu estava com o azul mais esplendoroso. Nuvens,

nem vestígio. O sol das três ainda era quente e, tendo ultrapassado o meridiano, já rumava com direção certa para os lados da fazenda do Juca Dona. O vento, quase parado, apenas remexia as folhas altas das árvores mais espigadas e seria um elemento ausente do cenário, não fosse a casuarina que tem facilidades de denunciá-lo. Um pouco distante, o rio corria manso, repetindo os seus barulhos. A passarada, muito diferente do alvoroço do amanhecer, descansava no arvoredo e nos grotões. Um tiziu e um sanhaço, retardatários, apareceram e sumiram rapidamente em direção aos seus ninhos. No alto, muito no alto, um urubu planava sereno, sem objetivo, voava pelo prazer de voar. Num lugar indeterminado, o peixe-frito piava como sempre. Uma formiga solitária contrariava o repouso da hora, tentando carregar uma enorme folhinha. Debaixo de uma laranjeira, João do Açúcar confundia-se com a natureza. Jovem ainda, sem os encargos da vida, tinha como compromisso mais sério a pescaria do entardecer. Deitado de costas, olhava para o céu infinito sem nada ver. Talvez sonhasse e, sem mais nem menos, começou a contar suas desventuras amorosas, sem pressa de acabar, parando nos detalhes, indo e vindo a fim de melhor explicá-los. No meio da narrativa, parou; acendeu um cigarro, deu uma tragada profunda e disse com a voz embargada: — O resto,... um dia, com calma, eu te conto.

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QUEM SABE?

Haveria mais casos para contar? Certamente que sim,

João do Açúcar tem boa memória, viu, ouviu e participou de muitas coisas. Nem sempre a memória é somente graça, há casos tristes, outros, nem tanto, apenas a realidade fria, mas contá-los aqui não seria bom. Ontem, voltamos ao lugar do começo. Daquele dia em diante, o céu não tem estado com o azul esplendoroso. Se acontece, passa despercebido, não há muito tempo para observá-lo. Nuvens têm aparecido, muitas, cor de cinza e poluídas; quase sempre trazendo nos seus bojos raios destruidores e trovões barulhentos. O vento tem chegado, bravio e demolidor, destelhando casas e derrubando taperas. A passarada aonde será que foi? Não está nos arvoredos devastados nem nos grotões desvirginados. O urubu não tem mais tempo de planar sereno, foi para a cidade grande dedicar-se exclusivamente à rapinagem. Agora, voa rasante, atraído pelo lixo das periferias que aumenta de modo assustador. O rio não mais corre manso nem repete seus barulhos; está assoreado e, todos os dias, busca um caminho diferente para levar adiante suas águas barrentas e contaminadas. Um peixe-frito piou tímido, mas nunca se sabe onde ele está, talvez seja imaginação, apenas um eco das nossas lembranças. Olhando o pomar abandonado, João do Açúcar viu uma laranjeira seca, encarquilhada, retorcida, exterminada pelas formigas que não andam mais solitárias nem respeitam as horas de repouso; atacam com fúria, em bandos exercitados e arrastões organizados, fazendo suas correições intermináveis. Por um momento, pensou que fosse a mesma laranjeira que o abrigava do sol em sua sombra acolhedora. Mas, não. Não poderia ser, muito tempo já se passou. João do Açúcar está apreensivo, e apenas disse: — Ali, naquele dia, eu deveria ter te contado o caso inteiro, mas desta vez, vamos ter que esperar. Os encargos da vida me chamam. Quem sabe? O resto, um dia, com calma, eu te conto...

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