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UNIVERSIDADE METODISTA DE S ÃO P AULO FACULDADE DE FILOSOFIA E C IÊNCIAS DA R ELIGIÃO PROGRAMA DE P ÓS–GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA R ELIGIÃO A TEOLOGIA E O ESTUDO DA RELIGIÃO. A hermenêutica teológica como reinterpretação da linguagem da fé e da existência cristã. Por Walter Ferreira Salles Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós– graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de doutor. São Bernardo do Campo, 03 de abril de 2006

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS–GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A TEOLOGIA E O ESTUDO DA RELIGIÃO. A hermenêutica teológica como reinterpretação da

linguagem da fé e da existência cristã.

Por Walter Ferreira Salles

Orientador:

Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães

Tese apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós–graduação em Ciências da Religião, para obtenção do grau de doutor.

São Bernardo do Campo, 03 de abril de 2006

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AGRADECIMENTOS

É um ato de justiça e gratidão, que muito me alegra, reconhecer que este

trabalho não é fruto de um esforço solitário. Apesar do receio de cometer a

indelicadeza de não mencionar o nome de todos aqueles que colaboraram para o

êxito deste trabalho, gostaria de agradecer formalmente a algumas destas pessoas

que, de perto ou à distância, acompanharam-me ao longo do doutorado.

Inicialmente, quero agradecer a inestimável paciência, o incentivo e o carinho

da minha família, que soube com tanta presteza me acompanhar de perto, sobretudo

nos momentos áridos de dúvidas, incertezas e dificuldades.

Agradeço igualmente o incentivo dos amigos da Companhia de Jesus

(jesuítas), amigos com os quais partilhei muitos anos de minha vida, assim como boa

parte da minha formação humana e intelectual.

A meu orientador Antonio Carlos de Melo Magalhães, a minha gratidão pelo

apoio, pela orientação na pesquisa e pelas valiosas indicações de leitura, sem as quais

o trabalho de pesquisa não teria sido possível. Estendo esta gratidão a todo o corpo

docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, de modo particular aos professores Etienne Higuet, Jaci

Maraschin e Lauri Wirth com os quais tive a oportunidade de manter ricos debates

teológicos.

Não poderia deixar de mencionar o apoio financeiro recebido do IEPG

(Instituto Ecumênico de Pós-Graduação) por meio da bolsa de estudo a mim

concedida por ocasião do meu ingresso no Programa de Pós-graduação, o que me

possibilitou dedicar mais tempo à pesquisa.

Por fim, quero dizer um muito obrigado aos professores da Pontifícia

Universidade Católica de Campinas, com os quais divido as alegrias e os desafios do

exercício da teologia na universidade.

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Sinopse:

O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o papel da teologia no

estudo da religião, no atual contexto universitário brasileiro. A tese principal deste

trabalho está fundamentada na idéia de que a teologia, no estudo da religião, deve ser

compreendida como hermenêutica teológica de orientação antropológica, e ver o seu

exercício como interpretação da linguagem da fé e da existência cristã.

Abstract:

The present work presents a reflection on the role of theology in the study of

religion, in the current Brazilian university context. The main thesis of this work is

based on the idea that theology, in the study of religion, must be understood as

theological hermeneutic of antropological orientation, and on watching its exercise as

the interpretation of the language of faith and the Christian existence.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 6

I. PRIMEIRA PARTE ............................................................................................. 14

A. ASPECTOS HISTÓRICOS. ...................................................................................... 14

1. Um breve olhar sobre a história. ................................................................... 14

2. As Ciências da Religião. ................................................................................ 20

B. TEOLOGIA E CIÊNCIAS RELIGIÃO: ALIANÇAS E CONFLITOS. ................................ 25

1. Delimitando o problema................................................................................. 25

a. Ciência e Ciências da Religião. .................................................................. 26

b. Teologia e Teologia Cristã. ........................................................................ 36

c. Religião e religiões. .................................................................................... 50

2. novas perspectivas na discussão do problema............................................... 55

a. Qual perspectiva teológica?........................................................................ 55

b. Que religião? .............................................................................................. 63

c. Teologia, ciência e hermenêutica. .............................................................. 66

C. DOIS PROJETOS DE TEOLOGIA : FRIEDRICH SCHLEIERMACHER E JUAN LUIS

SEGUNDO. ............................................................................................................... 70

1. Friedrich Schleiermacher: a teologia como filha da religião. ...................... 70

a. Os fundamentos de um projeto................................................................... 70

b. O que é religião? ........................................................................................ 76

c. O método teológico. ................................................................................... 90

2. Juan Luis Segundo: a teologia para o leigo adulto. .................................... 105

a. Fé, Ideologia e Religião............................................................................ 105

b. O círculo hermenêutico. ........................................................................... 114

c. Revelação, Escritura e hermenêutica........................................................ 118

II. SEGUNDA PARTE........................................................................................... 136

A. A DIMENSÃO ANTROPOLÓGICA DA FÉ E DA RELIGIÃO. ...................................... 136

1. crer é humano............................................................................................... 136

a. Da fé antropológica à fé religiosa............................................................. 136

b. A nomeação de Deus. ............................................................................... 144

c. A nomeação de Deus no Credo. ............................................................... 148

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2. A religião como expressão do humano. ....................................................... 156

a. A morte de Deus e a afirmação do humano. ............................................ 156

b. A morte de Deus e o “fim” da teologia. ................................................... 165

c. Religião, autonomia e liberdade. .............................................................. 173

3. O antropocentrismo teológico...................................................................... 181

a. A criação e a afirmação do ser humano.................................................... 181

b. Teologia e Antropologia: dois termos, dois mundos................................ 190

c. A orientação antropológica na teologia. ................................................... 195

B. O EMPREENDIMENTO HERMENÊUTICO DA TEOLOGIA NO ESTUDO DA RELIGIÃO. 212

1. Contribuições de uma hermenêutica filosófica. ........................................... 212

a. Rumo a uma nova hermenêutica. ............................................................. 212

b. O paradigma do texto. .............................................................................. 218

c. Decifrar a vida no espelho do texto. ......................................................... 222

2. A hermenêutica da linguagem religiosa....................................................... 226

a. O paradigma do texto e a linguagem religiosa. ........................................ 226

b. Hermenêutica e revelação. ....................................................................... 232

c. O discurso teológico como hermenêutica do texto................................... 237

C. CONCLUSÃO... O ESTUDO DA RELIGIÃO: UMA NOVA MANEIRA DE FAZER

TEOLOGIA.............................................................................................................. 247

1. Preâmbulo. ................................................................................................... 247

a. A reavaliação epistemológica. .................................................................. 248

b. O empreendimento hermenêutico. ........................................................... 250

c. O referenc ial teórico. ................................................................................ 251

2. a experiência cristã de Deus. ....................................................................... 260

a. Mistagogia e teografia. ............................................................................. 260

b. O horizonte epigenético. .......................................................................... 263

c. A alteridade do outro humano. ................................................................. 265

3. Teologia: um saber racional e teológico. .................................................... 268

a. A especificidade do discurso teológico. ................................................... 268

b. A hermenêutica da tradição religiosa. ...................................................... 282

c. O discurso teológico e o estudo da religião.............................................. 290

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 294

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INTRODUÇÃO

Introduzir o assunto tal como aparece formulado no título deste nosso

trabalho, não obstante nosso interesse pessoal de melhor situar a pesquisa teológica

sobre a religião no contexto acadêmico brasileiro, significa inicialmente justificar a

sua atualidade. Nesta justificativa, uma primeira atitude que nos é exigida diz

respeito à delimitação do tema em seu devido lugar. E o lugar devido deste assunto é

a pergunta pela perspectiva teológica que se deve adotar no estudo da religião, a fim

de que o discurso teológico tenha pertinência acadêmica e validade pública.

A resposta a tal indagação não é tão evidente quanto possa parecer, uma vez

que alguns pesquisadores, no afã de melhor definir o estatuto epistemológico das

ciências humanas que se dedicam ao estudo da religião, vêem a influência da

teologia como uma sombra ameaçadora a pairar sobre a reestruturação dos

programas de tais ciências.

Talvez não seja nenhum exagero de nossa parte afirmar que esta reflexão

deve considerar a reflexão sobre o papel da teologia na universidade do século XXI,

notadamente no diálogo com as Ciências da Religião. A pergunta pelo lugar da

teologia na universidade não é um mero artifício retórico, uma vez que ela acaba

configurando a maneira de conceber o exercício da teologia, e igualmente porque o

problema da alocação da teologia na universidade não é físico, mas epistemológico.

A história do pensamento teológico no Ocidente nos ensina que a passagem

da teologia patrística à teologia medieval, ou seja, seu ingresso na universidade,

provocou profundas transformações na maneira de se compreender o trabalho

teológico. O alcance destas mudanças somente se tornou perceptível no decorrer de

um processo que tem no imperialismo da razão técnico–científica, erigida como

critério único de cientificidade, uma de suas características mais marcantes e na

desqualificação da teologia como ciência, uma das conseqüências mais significativas

para o múnus teológico.

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Em termos históricos, a rigor, não se pode falar em “entrar” na universidade,

uma vez que a teologia foi parte integrante da construção deste marco da Cultura

ocidental, tornado possível graças à visão cristã e teocêntrica própria do mundo

medieval, ou seja, uma visão unificada de toda a realidade em torno do nome Deus e

que buscou a universalidade do saber. Esta postura da razão teológica se esqueceu,

contudo, da relatividade de suas afirmações e da historicidade da verdade, o que a

conduziu à postura intransigente de sua convicção de possuir definitivamente a

verdade.

Este esquecimento histórico levou a teologia a adotar uma forma hierárquica,

ao distinguir a vivência eclesial do Cristianismo de outras práticas religiosas, a

religião cristã das outras formas de religiosidade, acabando por fazê- la confundir tal

tarefa com a distinção entre a verdadeira e a falsa religião. Em suma, a verdadeira

religião aos olhos da teologia é o Cristianismo e, consequentemente, a teologia como

ciência da fé é, em última análise, a teologia cristã.

O processo que teve início com aventura ocidental da universidade assiste

hoje ao esgotamento da moderna razão técnico–científica e à busca por uma nova

maneira de fazer teologia, que se distancie de um modelo teológico que recebeu o

nome de dogmática. A crise deste modelo de razão significou também a crise da

própria teologia ou ao menos de um modelo teológico; da solidez de um sistema

tomista, que via a realidade de forma unitária e totalizante desde o ponto de vista da

fé cristã, a teologia passou ao desconfortante lugar no meio de uma cultura

fragmentada.

Entretanto, em meio a este desconforto, não parece ser função da teologia

constituir-se como ciência simplesmente, como outras ciências. Por isso, um dos

grandes desafios para a teologia consiste em recuperar a sua racionalidade em meio à

racionalidade regionalizada do pensamento contemporâneo moderno, pós–moderno

ou hipermoderno. Isto é todo contrário de aceitar que a teologia seja um grito

desarticulado ou uma experiência cega. Em outras palavras, a teologia não pode

contentar-se com o que as outras ciências dizem dela, seja a filosofia, a história, a

psicologia ou a sociologia.

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A pergunta pela contribuição da teologia no estudo da religião passa, pois,

pela redefinição despretensiosa de sua postura no diálogo com outras formas de

saber, sem contudo negar o valor do saber teológico. A busca por um espaço para a

reflexão teológica na universidade supõe uma outra concepção de ciência, diferente

daquela preconizada pela razão empírico-formal. E colocar-se para além das

fronteiras da moderna razão ocidental significa, para a razão teológica, evitar dois

extremos: tanto o complexo de inferioridade, que faz do discurso teológico um

discurso de segunda categoria, como o complexo de superioridade, que não permite à

teologia dialogar com outras formas de saber e tampouco perceber que ela não tem a

última palavra sobre Deus, o ser humano e o mundo.

A mudança de lugar da teologia hoje não comporta necessariamente o

deslocamento físico que deu origem à universidade no período medieval, quando a

teologia deixou as escolas de grandes mestres para “entrar” neste novo universo do

saber. É a partir da própria universidade que se busca uma nova perspectiva

teológica, novidade que na nossa opinião pode encontrar no estudo da religião um

paradigma emblemático. Todavia, este novo da teologia há de considerar a superação

de um modelo teológico acentuadamente eclesiástico e clerical. Eclesiástico porque

sua função principal consiste em encontrar na Escritura e na Tradição fundamentos

para o ensinamento do magistério. Clerical porque é exercida quase que

exclusivamente por padres e pastores, e para a formação destes.

Esta superação significa a passagem para uma teologia que busca sobretudo

ser intérprete da linguagem religiosa, na medida em que esta linguagem é doadora de

sentido de vida. Entretanto, esta prática teológica não encontra unanimidade entre os

pesquisadores que vêem na presença da teologia entre as ciências que se dedicam ao

estudo da religião um incômodo, uma ameaça, e até mesmo uma presença

indesejada. Em parte, este mal-estar repousa em dificuldades no tocante ao conceito

de ciência, teologia e religião.

Apesar desta situação incômoda, a teologia vive um momento de grande

projeção pública e acadêmica com o seu reconhecimento oficial pelo Ministério da

Educação. O parecer do Conselho Nacional de Educação (241/99), homologado pelo

MEC em 1º de julho de 1999, é em parte fruto de um espírito de liberdade

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acadêmica, de um jogo de interesses institucionais e do reconhecimento da

relevância científica da teologia junto aos outros saberes, mesmo que tal

reconhecimento aconteça somente por uma pequena parcela do mundo acadêmico.

Isto porque várias universidades brasileiras são notadamente marcadas por uma

mentalidade positivista, que ainda rejeita o estudo científico da religião realizado

desde a perspectiva teológica.

Este novo horizonte que se abre ao trabalho teológico não pode, contudo, nos

fazer esquecer que hoje estamos distantes, e uma distância secular, daquele mundo

no qual a teologia era a ciência por excelência que fornecia a gramática da linguagem

usada para compreender o mundo e o ser humano, a partir da divindade. Este mundo

ruiu, seu fundamento foi abalado pela mutação cultural provocada pelo chamado

antropocentrismo moderno, que trouxe como consequência uma crise de identidade

para a própria teologia.

No caso específico da Teologia cristã, a diversidade da prática religiosa que

encontramos hoje no Brasil coloca em questão alguns dos fundamentos do

Cristianismo e, portanto, a maneira mesma de fazer teologia desde a perspectiva

cristã. Isto porque não nos parece viável o trabalho teológico sem o respeito pela

dignidade das outras religiões, sobretudo das que não possuem a tradição judaico–

cristã como matriz fundadora.

Além disso, a ligação congênita entre a teologia e o estudo da religião é cada

vez mais questionada, uma vez que este estudo é igualmente reivindicado por outras

formas de saber, que não raramente lançam um olhar de suspeita sobre a reflexão

teológica. Esta desconfiança não significa a priori, por parte da ciência moderna, uma

rejeição de Deus e da religião, tomados por objetos de estudo, mas sim que estes

assuntos não estão mais sob a guarda da teologia, ou seja, a teologia não determina

mais o que os outros saberes devem dizer sobre Deus. No mundo moderno, Deus e a

religião são assuntos nitidamente antropológicos, ou seja, tudo o que a eles se

relaciona interessa à ciência, na medida em que ambos são expressão do ser humano:

alienação, doença, projeção, degeneração, fuga da realidade, fanatismo, busca de

sentido, etc.

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A discussão em torno do papel da teologia no estudo da religião nos coloca

diante de um problema metodológico crucial: o discurso teológico possui em si

mesmo uma estrutura epistemológica própria ou necessariamente se vê obrigado a

utilizar o instrumental linguístico que lhe é emprestado por outras formas de saber?

A teologia possui uma racionalidade própria ou deve se submeter a uma

racionalidade imposta pelas chamadas ciências modernas? No caso da não aceitação

de tal imposição, qual seria a racionalidade própria da teologia?

A hipótese deste nosso trabalho é que a contribuição da teologia no estudo da

religião está na sua dimensão hermenêutica, e para tanto a teologia há de se

compreender como hermenêutica teológica de orientação antropológica, e ver o seu

exercício como interpretação da linguagem fé e da existência cristã. Trata-se de um

empreendimento hermenêutico que pode colaborar na intelecção da religião não só

como um traço fundamental da cultura, mas, sobretudo, como uma dimensão

constitutiva do ser humano.

Neste trabalho, a hermenêutica é entendida não tanto como técnica de

interpretação de textos, mas sobretudo como “decifração da vida no espelho do

texto”, como possibilidade de compreender o sentido da vida no sentido segundo que

é velado no sentido primeiro da linguagem religiosa. E a antropologia que caracteriza

a teologia neste empreendimento hermenêutico é aquela que tem o ser humano como

essencialmente religioso, ou seja, a dimensão religiosa faz parte do conceito mesmo

de humanidade.

Por isso, na busca de melhor definir o papel da teologia no estudo da religião,

insistiremos sobre a dimensão antropológica da fé e da experiência religiosa,

considerando que crer é humano e que a religião vem a ser uma expressão do ser

humano, inserido numa história e numa cultura concretas. Procuraremos mostrar

igualmente que o antropocentrismo, longe de ser um obstáculo, torna-se algo

fundamental para o exercício da teologia, caso esta não queira metamorfosear-se

num discurso vazio, carente de sentido. Ter a ant ropologia como lugar de toda

teologia nos conduzirá, num segundo momento, a refletir sobre o empreendimento

hermenêutico da teologia no estudo da religião, tendo por pressuposto que a

experiência religiosa é um “texto” aberto à interpretação.

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Esta articulação entre o empreendimento hermenêutico e a dimensão

antropológica terá inicialmente como referencial teórico o pensamento de Friedrich

Schleiermacher e Juan Luis Segundo.

Em seu diálogo com pensadores que, imbuídos do espírito iluminista,

rejeitavam a religião, Schleiermacher apresenta uma definição de religião que está

arraigada na natureza humana e encontra-se profundamente ligada à idéia de

autonomia humana proposta pelo Iluminismo. Além disso, a experiência religiosa é a

experiência fontal da qual a teologia emana e a qual sempre deve se referir.

Em nossa pesquisa, conforme o pensamento de Juan Luis Segundo, a

perspectiva hermenêutica aponta para a recusa em fazer do empreendimento

científico uma mera reconstrução do estado bruto de coisas. A ciência constitui-se,

pois, num ato de interpretação da realidade ao qual está associado um sistema

referencial elaborado a partir de jogos ideológicos, conflitos de interesses, crenças e

convicções pessoais, objetivos formais e existenciais, bem como desde

condicionamentos históricos do método empregado no processo de produção

científica.

No caso específico do estudo da religião, há de se considerar as pessoas e as

comunidades que fazem uso da linguagem religiosa na complexa construção de visão

de mundo e de sentido da vida, pessoas concretas, com sua fé, sua humanidade e sua

história. E a fé religiosa há de ser vista como um desdobramento daquilo que Juan

Luis Segundo chama de fé antropológica, uma dimensão universal presente em todo

ato humano, inclusive no religioso.

No contexto deste trabalho, o leitor se dará conta que três outros autores, além

daqueles que constituem o nosso referencial teórico, ganharão destaque: Friedrich

Nietzsche, Paul Ricœur e Karl Rahner. O destaque concedido a Nietzsche e Ricœur

tem por pressuposto que não há teologia sem filosofia, teologia entendida como

recapitulação conceitual da experiência religiosa. A compreensão da experiência

humana de Deus está associada à compreensão reflexiva que o ser humano tem de si

mesmo e do mundo. Além disso, Nietzsche nos ajudará a compreender a importância

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que a proclamação da morte de Deus tem para o discurso teológico. Com Ricœur,

lançaremos as bases filosóficas que nos permitirão delinear o caráter hermenêutico

da teologia no estudo da religião. A reflexão teológica de Rahner nos colocará no

contexto de uma orientação na teologia, que se convencionou chamar de giro

antropológico, e que passou a fundamentar boa parte da produção teológica no

Ocidente.

O percurso a ser desenvolvido neste trabalho está dividido em duas partes. Na

primeira, procuramos situar o leitor na problemática em questão desde o ponto de

vista histórico, mostrando- lhe brevemente o caminho trilhado pelo pensamento

teológico até chegar aos atuais embates no cenário do estudo acadêmico da religião.

Este cenário será delineado a partir da contribuição de alguns autores, que de

diversas maneiras abordam o tema de nossa pesquisa.

A partir destas reflexões e da abertura de novas perspectivas que elas

possibilitam, apresentamos dois projetos teológicos que lançam as bases do que é

desenvolvido na segunda parte do nosso trabalho. Esta parte segunda é dedicada a

estruturação do nosso discurso teológico, que será tecido a partir do entrelaçamento

da dimensão antropológica e do empreendimento hermenêutico que orientam e

caracterizam o exercício da teologia no estudo da religião. O último ponto do nosso

percurso será um exercício de apropriação das reflexões apresentadas anteriormente

e que paradoxalmente servirá de ponto final ou de conclusão da nossa trajetória.

Paradoxo que esperamos não se constituir numa contradição aos olhos daqueles que

nos lêem e nos interpretam.

A título de introdução, convém ressaltar também que, no decorrer deste

trabalho, a teologia cristã aparece como um exemplo do comportamento teológico no

estudo da religião. O que não quer dizer que muito do que é refletido neste trabalho

não se refira igualmente ao discurso teológico de outras confissões religiosas. Além

disso, trabalhamos com a distinção entre experiência religiosa, religião e discurso

teológico. A primeira se refere a uma experiência imediata, anterior a qualquer

análise ou formulação conceitual, daquele que a fé cristã nomeia Deus. Por religião,

entendemos a institucionalização desta experiência religiosa. O discurso teológico,

por sua vez, vem a ser a formulação conceitual da experiência religiosa que será

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entendida também como experiência espiritual. Esta distinção se faz importante

porque lidamos com conceitos marcados por uma série de “pré–conceitos” que por

vezes dificultam a intelecção do nosso discurso.

No tocante ao nosso interesse pessoal pelo tema proposto, podemos dizer que

ele começou a ganhar contornos mais definidos a partir do impacto causado pelos

estudos realizados no programa de pós–graduação de Ciências da Religião da

UMESP, notadamente no curso de introdução às Ciências da Religião. Aos poucos,

a evidência da ligação congênita entre a teologia e a religião foi se desfazendo e com

ela uma maneira de ver o exercício da teologia dentro do contexto universitário.

A conaturalidade que antes era considerada tão evidente entre o estudo da

religião e a prática teológica tornou-se algo, no mínimo, problemático, se

considerarmos o atual contexto das universidades no Brasil. Problemas,

questionamentos, mudança de perspectiva surgiram a tal ponto que a pergunta pela

prática teológica entre as ciências humanas que se dedicam ao estudo da religião,

desde uma perspectiva dialógica, tornou-se incontornável na nossa prática da

docência e da pesquisa em torno da religião. Assim, a mudança de rota se impôs e a

reflexão em torno da hermenêutica teológica como reinterpretação da linguagem da

fé e da existência cristã tornou-se o fio condutor deste nosso trabalho.

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I. PRIMEIRA PARTE

A. ASPECTOS HISTÓRICOS.

1. UM BREVE OLHAR SOBRE A HISTÓRIA.

Não se faz Teologia cristã sem se percorrer os caminhos da memória. A

resposta à pergunta pela maneira como se deve fazer teologia hoje supõe uma

questão anterior: como o discurso teológico dialogou com as indagações oriundas do

drama da história e da existência humana ao longo dos séculos. Entretanto, fazer

memória não é mera nostalgia ou retorno estéril para repetir o que já fora dito por

aqueles que nos precederam na história da fé. Hoje, somos habitados por questões

que são certamente distintas daquelas que estão na origem da Tradição cristã. Por

isso, fazer memória é também uma questão de hermenêutica.

Além disso, o olhar que agora lançamos sobre o percurso do pensamento

teológico é sucinto, é breve. Queremos somente situar o leitor na discussão que

apresentaremos na delimitação do problema que nos toca refletir neste trabalho.

Uma dificuldade que se apresenta à teologia no estudo da religião diz

respeito ao seu lugar de origem: a experiência eclesial da fé. A teologia cristã

encontra na Escritura1 a linguagem materna do ethos cristão. Nesta textualização da

relação entre Deus e o ser humano, Deus habita as palavras da Escritura por meio das

palavras humanas. A Palavra de Deus necessita de uma história que a acolha e de

palavras nas quais possa habitar. Se assim não fosse, a Palavra divina ecoaria no

vazio, impossibilitada de comunicar-se ao ser humano e de gerar sentido para a vida.2

1 Ao longo deste trabalho, por Escritura (com “E” maiúsculo) entendemos o que se costuma chamar de Bíblia ou Sagrada Escritura. 2 Bruno FORTE. A teologia como companhia, memória e profecia, p.75.

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Todavia, é importante lembrar que, para a Tradição cristã, esta textualização não é o

Evangelho propriamente dito, mas uma interpretação e um testemunho da boa nova

que é o próprio Jesus Cristo.

Os primeiros testemunhos da fé interpretam a Palavra de Deus a partir de sua

história e da comunidade à qual se dirige, ou seja, das inquietações existenciais das

pessoas que formam esta comunidade. A hermenêutica da Palavra de Deus tem por

fundamento a ressurreição de Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo: “...se

Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é vazia, e vazia também é a nossa fé”

(1Cor 15,4).3

Esta experiência é caracterizada pela iniciativa do Ressuscitado, o que tende a

sublinhar o caráter objetivo da experiência da ressurreição. O verbo grego ôphté –

apareceu – é usado para expressar esta objetividade que está a nos dizer que a

experiência da ressurreição, narrada pelos textos do Novo Testamento, é sempre uma

iniciativa daquele que ressuscitou e não fruto de uma emoção diante de certos

acontecimentos, como relata Paulo em sua carta à comunidade de Corintos: “Eu vos

transmiti, em primeiro lugar, o que eu mesmo recebera: Cristo morreu por nossos

pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo

as Escrituras. Apareceu a Cefas, depois aos doze” (1Cor 15,3-5). Ou ainda, no relato

conhecido como a experiência dos discípulos de Emaús, narrada por Lucas: “No

mesmo instante, eles partiram e voltaram para Jerusalém; encontraram os Onze e os

seus companheiros, que lhes disseram: É verdade! O Senhor ressuscitou e apareceu

a Simão” (Lc 24,33-34).

Estamos, pois, diante de algo que a eles veio de fora e não uma experiência

provocada pelo calor da emoção ou pela nostalgia do passado. Entretanto, esta ação

divina por meio do Ressuscitado não destrói a liberdade humana que acolhe a

manifestação divina, como nos narra o mesmo episódio dos discípulos de Emaús:

“Então, os seus olhos se abriram e eles o reconheceram, depois ele se lhes tornou

invisível” (Lc 24,31). Neste reconhecimento da manifestação do Cristo ressuscitado,

3 Neste nosso trabalho, todas as citações bíblicas serão retiradas da TEB – Bíblia.Tradução Ecumênica.

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temos a experiência subjetiva desta manifestação. A ressurreição torna-se desta

maneira o conteúdo do anúncio das primeiras gerações cristãs, proclamação esta que

é indissociável da experiência que lhe dá origem, bem como da maneira como ela foi

narrada e posteriormente redigida.

Assim, a Teologia cristã encontra na teologia do Novo Testamento, na

linguagem neotestamentária, a sua própria identidade. Uma teologia realizada na

força do Espírito Santo e portanto num clima de epiclese4: “...quando vier o Espírito

da verdade, ele vos conduzirá à verdade plena...” (Jo 16,13). Uma teologia situada

na história e que está relacionada com as experiências e as expectativas de uma

determinada comunidade de fé que está a caminho, sendo portanto uma teologia

eclesial. Trata-se também de uma teologia que é memorial, memória atualizada da

experiência fontal pela ação perene do Espírito Santo. A teologia do Novo

Testamento é anamnese de uma experiência cristã de Deus fundada na experiência da

ressurreição. Enfim, uma teologia que é profecia que a partir da anamnese propõe

novos caminhos, atualizando a palavra de Deus.5

No seu início, pois, a Teologia cristã era plural nas suas expressões, como

testemunham os escritos do Novo Testamento. Isto porque o mundo ao qual o

Cristianismo primitivo estava chamado a testemunhar a sua fé não era um mundo

homogêneo. Neste sentido, a pluralidade que caracteriza o nosso mundo não é de

todo estranho à Tradição cristã.

Com o fim da era apostólica, a Teologia cristã ingressou numa época

conhecida genericamente por Patrística. Nesta época, encontramos a chamada

teologia simbólica que desenvolveu-se num horizonte unitário e totalizante,

sustentado por dois pólos: a Escritura e a Igreja. Para esta visão teológica, a Palavra

de Deus vem ao encontro de toda a história da humanidade. É uma teologia que se

desenvolve num ambiente geograficamente limitado, marcado pela herança da

civilização helenístico–romana.

4 Epiclese, do grego epiklesis, significa a invocação ao Espírito Santo que acontece em algumas cerimônias cristãs, como, por exemplo, a missa na Igreja católica. 5 Bruno FORTE. A teologia como companhia, memória e profecia, p.84-86.

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Os teólogos desta época eram pastores em contínuo contato com as

experiências espirituais e litúrgicas da comunidade dos fiéis. A teologia era

fundamentalmente escuta e meditação da Palavra de Deus na Igreja e para a Igreja. A

teologia dos “Padres da Igreja” estava intimamente ligada à vida e às necessidades

pastorais da vida eclesial. O nome “Pai” foi dado inicialmente pelos cristãos aos seus

bispos. Por volta do século IV, este nome passou a designar também homens que não

eram bispos, mas que gozavam de uma grande autoridade doutrinal. Pouco a pouco,

no ensinamento da doutrina cristã, passou-se a recorrer a autoridade de certos autores

designados como “Pais da Igreja”. Quatro critérios eram fundamentais para uma

pessoa receber tal título: pureza da doutrina, santidade de vida, aprovação da Igreja e

pertença aos primeiros séculos do Cristianismo.

Se o início do período patrístico começa logo após o fim da época dos

apóstolos, o seu término não possui uma data precisa. Em todo caso, no Ocidente,

normalmente ele finda com Santo Isidoro de Sevilha (século VII) e no Oriente

finaliza com São João Damasceno (século VIII). Entretanto, há aqueles que estendem

a época patrística até São Bernardo de Claraval (século XII) entre os autores latinos e

mesmo, a autores mais tardios, entre os gregos.6

Como características fundamentais da teologia patrística, podemos dizer que

“trata-se de uma teologia espiritual e ascendente, alimentada pela experiência

intensa do Mistério proclamado, celebrado e vivido, exercida na leitura do texto

sagrado e das realidades mundanas em perspectivas unitárias e totalizantes.”7 Esta

ascendência diz respeito à elevação do coração e da mente a Deus, por meio de Jesus

Cristo e na força do Espírito Santo.

A história da evolução do pensamento teológico no Ocidente nos mostra,

portanto, que o chão natural da teologia patrística era a comunidade eclesial com

suas necessidades e urgências, ou seja, a experiência religiosa vivida no seio de uma

tradição eclesial. Esta teologia convivia naturalmente com as experiências plurais,

uma vez que a unidade da fé não significava uniformidade de suas expressões.

6 Claude MONDÉSERT. Pour lire les Pères de l’Eglise, p.11-12. 7 Bruno FORTE. A teologia como companhia, memória e profecia, p.95.

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O novo cenário histórico, caracterizado pela Idade Média, foi palco do

surgimento de uma maneira de fazer teologia que convencionou-se chamar de

teologia dialética ou teologia escolástica. Neste período medieval, a prática teológica

possuía um componente inovador: o conhecimento e posterior uso cada vez mais

freqüente dos instrumentos da lógica aristotélica, que tem em Tomás de Aquino um

de seus grandes expoentes. No universo da teologia cristã, Aristóteles é assimilado

inicialmente como mestre da gramática (séculos V-VI), posteriormente de raciocínio

(recepção da dialética no século XII) e enfim de conhecimento do ser humano e do

mundo (inícios do século XIII).8

No século XIII, o ambiente no qual se exercia a teologia era constituído pelas

“escolas” vinculadas à vida urbana e de estilo universitário, onde a Sagrada doutrina

era ensinada ao lado de outras ciências que a induziam a utilizar o método analítico e

racional. Assim, com o passar do tempo, os teólogos utilizavam cada vez mais o

instrumental filosófico de conhecimento racional da natureza das coisas e das

estruturas do ser humano. Uma mudança significativa neste período diz respeito à

própria identidade dos teólogos: se os teólogos patrísticos eram monges ou pastores,

os teólogos escolásticos eram na sua grande maioria professores e mestres.

Ao se transportar para a universidade, a reflexão teológica se fundamentava

cada vez mais na racionalidade, com as suas exigências. A universidade passou a ser

símbolo das grandes transformações pelas quais passaria a teologia: as Ciências da

Natureza (método empírico–formal) se impõem sobre as Ciências Humanas, que com

o passar do tempo desqualificam a teologia na sua pretensão científica.

A chamada Teologia dos tempos modernos procura justificar a unidade da fé

a partir de um modelo único de teologia, quase sempre porta voz do magistério da

Igreja. Neste caso, a unidade da fé é confundida com a uniformidade de suas

expressões. Este tipo de discurso teológico, durante um longo tempo, não se deu

conta de que uma teologia uniforme e universal provocava inevitavelmente o

sacrifício do concreto e do particular (abstração de tempos e lugares), o que

8 Idem, ibidem, p.98.

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significava o empobrecimento da teologia e da vivência cristã. Isto porque as

experiências religiosas na sua pluralidade são um convite a retomarmos a riqueza de

um discurso teológico plural fundamentado na unidade da fé e na pluralidade de suas

expressões. O que implica no abandono da tentativa de tornar absoluto um discurso

teológico particular, bem como a experiência religiosa a qual este discurso se refere.

A história da Cultura ocidental nos ensina, ou ao menos deveria nos ensinar, que a

teologia, no seu esforço para pensar e dar inteligibilidade à fé, deve ter em conta a

pluralidade das expressões religiosas.

Nesta história ocidental, pouco a pouco a razão moderna apoderou-se das

questões teológicas transformando os conteúdos da fé religiosa em objeto de uma

reflexão que cada vez mais tomou distância da teologia, distanciamento que no seu

extremo se configurou em uma oposição ao trabalho teológico. Dentre estes objetos

da reflexão da razão moderna feitos à revelia da teologia está sem dúvida a religião,

o que acabou por provocar uma ruptura na congenialidade entre a teologia e a

religião.

A teologia não só é obrigada a aceitar esta cisão, como alguns modelos

teológicos se distanciam da experiência religiosa, tida como a sua experiência fontal.

Esta atitude é compreensível a partir do esforço que certa prática teológica fez

durante um longo período para ser reconhecida como “ciência”, a fim de ocupar um

lugar no novo cenário universitário. E, nesta busca, inclinou-se a renunciar à sua

própria identidade e aportou na universidade conduzida pelo método das Ciências

Humanas, ou seja, o método histórico–crítico.

Para muitos, este foi o caminho escolhido por alguns teólogos ao

relacionarem o seu trabalho com as chamadas Ciências da Religião, que no século

XX passaram a ocupar o lugar deixado pela teologia em alguns ambientes

universitários. Não obstante esta postura, que de certa maneira significa, por parte de

determinada prática teológica, a relativização da sua própria identidade, a relevância

deste episódio está em que, ao se colocar como uma forma de saber que estuda a

religião, talvez a teologia esteja diante de uma nova maneira de conceber o trabalho

teológico na universidade.

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Entretanto, a aproximação entre a razão teológica e a razão moderna ocidental

trouxe graves consequências para uma perspectiva teológica que se tornou

fragmentada, unilateral e sem raízes na experiência. Unilateral porque procedeu a

valorização de um modelo de razão no qual temos a primazia do conhecimento sobre

a vida, do abstrato sobre o concreto, do sujeito sobre o mistério de Deus.

Fragmentada, na medida em que o ser humano não é visto mais como uma unidade,

mas sim como um conglomerado de experiências que quase sempre não têm relação

umas com as outras. Consequentemente, temos a absolutização daquilo que não

passa de um ponto de vista: econômico, social, político. Uma teologia desenraizada

porque o discurso teológico, que se fundamenta nos métodos científicos (empírico–

formais), muitas vezes se coloca distante da experiência concreta, dos problemas

reais do cotidiano da vida humana, perdendo-se em abstrações intelectuais que pouco

ou quase nenhum sentido de vida podem gerar.

No atual cenário acadêmico, a teologia é cada vez mais levada a renunciar a

busca pela identidade teológica como universalidade do saber, ou seja, como uma

visão teocêntrica e unificada da realidade. Abandonar esta postura trouxe sérias

implicações para a tarefa teológica, como, por exemplo, o abandono da idéia do

Cristianismo como a única religião verdadeira ou a religião absoluta. Hoje, é possível

sentir as consequências que este abandono trouxe ao estudo teológico da religião.

2. AS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO.

A sobre as Ciências Religião foi estabelecida, na Europa, desde a constituição

de uma Ciência ou História da Religião, no final do século XIX. Embora, hoje,

estejamos longe de uma denominação comum, muitos estudiosos afirmam ter sido

Max Muller o primeiro a utilizar a expressão “Ciência da Religião”, em 1867.9

9 Andrés Torres QUEIRUGA. La constituición moderna de la razón religiosa, p.31.

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A autonomia da Ciência ou História da Religião se dá à revelia da teologia e

até mesmo contra ela. E isto muitas vezes é fruto de uma mentalidade oriunda da

ilustração européia, para qual a possibilidade de espaço para a fé e a religião está na

conformidade com a razão, mais amiúde está na subordinação à lógica das chamadas

ciências da natureza. Neste sentido, “o termo Ciência da Religião

(Religionwissenschaft) foi utilizado para sublinhar a emancipação da nova

disciplina com relação à filosofia da religião e especialmente da teologia.”10

O surgimento de uma disciplina intitulada “História das religiões” está em

parte associada ao surgimento de novos parâmetros no mundo ocidental. Tais

parâmetros por sua vez estão relacionados ao declínio da hegemonia cristã no

Ocidente, e ao confronto entre a tradição cristã e outras tradições religiosas que se

tornavam cada vez mais conhecidas do mundo ocidental, graças à ação de

missionários que entravam em contato com culturas religiosas não cristãs.

Na segunda metade do séc. XIX surge a Ciência da Religião, na tentativa de

reunificar as contribuições que as mais variadas disciplinas vinham oferecendo ao

estudo da religião. A primeira cátedra de Ciência da Religião surgiu em 1873 em

Genebra, na faculdade de teologia. Quatro anos mais tarde, Amsterdã e Leiden, na

Holanda, criaram cátedras que foram ocupadas por teólogos. No contexto europeu, as

cátedras de Ciências da religião ficaram ligadas às faculdades de teologia. Dois

outros aspectos merecem destaque: o termo religião está intimamente ligado aos

processos culturais, conflitos ideológicos e sistematizações que compõem a história

do Ocidente, e neste desenvolvimento histórico a teologia desempenhou um papel

significativo. Isto porque muitas das teorias teológicas, desde a perspectiva cristã,

passaram a estruturar o pensamento ocidental no que diz respeito à visão de Deus, do

mundo e do ser humano.11

A instalação e o desenvolvimento da chamada Ciência da Religião estão

vinculados diretamente ao saber teológico. Num mundo marcado pelo pluralismo

religioso, as primeiras cátedras de Ciência da Religião surgem como saberes

10 Idem, ibidem, p.42. Citando a J. Wach. El estúdio comparado de las religiones, Buenos Aires, 1967, p.63-64. 11 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e estudo da religião , p.151-152.

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auxiliares na compreensão dos mitos, ritos e doutrinas dos diversos sistemas

religiosos, a fim de fazer com que o discurso teológico fosse plausível e pertinente

neste mundo plural. Em suma, a Ciência da Religião deveria auxiliar a teologia na

compreensão das alteridades religiosas, elas eram as novas servas da teologia.12

Inicialmente, esta Ciência da Religião se vê tributária da apologética

teológica, desde uma postura básica: a tentativa de demonstrar a superioridade do

Cristianismo sobre as demais religiões, a partir de dados oferecidos por outras

disciplinas. Além disso, o debate em torno do termo religião, que começara no

âmbito da filologia, deslocou-se para o da filosofia e das ciências humanas.

Surgiram, então, dois pontos de vista: uma visão essencialista (o que é a religião?) e

outra funcionalista (qual o papel da religião na sociedade?). Hoje, uma definição

substantiva ou funcional da religião mostra-se insuficiente para captar a

complexidade do fenômeno religioso. Ela não se define somente pela sua

funcionalidade e nem por uma realidade numinosa. A Religião permanece na frágil

textualidade das representações religiosas e se situa entre aquilo que pode ser

definido e o Infinito.

Apesar da variação do vocabulário – Ciência(s) da(s) Religião(ões), História

das Religiões, História comparada das religiões, Ciências Religiosas, Estudos da

Religião – o relevante é o fato que uma disciplina pouco a pouco foi se afirmando no

meio acadêmico, procurando afastar-se de qualquer tradição religiosa, colocando-se

como ciência objetiva ou empírica e reivindicando sua autonomia face à teologia e à

filosofia da religião. Esta disciplina reivindica igualmente seu status epistemológico

próprio, ou seja, a sua não dissolução nas ciências empíricas (antropologia,

sociologia, psicologia, história,...) e tampouco a dissolução de seu objeto de estudo, a

religião.

Assim, a mediação empírica passou a ser o diferenciador maior no estudo da

religião, ao que podemos associar a neutralidade e a objetividade do pesquisador.

Neste sentido, a teologia e filosofia ficam desautorizadas devido ao método que

utilizam, uma vez que o método teológico se fundamenta num conceito não empírico

12 Idem, ibidem, p.153.

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de religião, associado à noção de revelação, ao passo que o método filosófico

emprega o termo religião de modo axiológico.13

Além disso, origem do termo religião não encontra unanimidade entre os

estudiosos. Os “Pais da Igreja” usavam este termo primeiramente para designar a

vida religiosa institucionalizada em forma de Igreja. No latim medieval, “religio” foi

usado para se referir à relação pessoal com o Deus dos cristãos, bem como

significava a comunidade dos adeptos de uma determinada espiritualidade. No século

IV, este termo já era usado para se referir a grupos definidos e normalmente sob o

juízo da religião verdadeira: o Cristianismo, a religião de um grupo de pessoas

claramente distinto da religião dos outros.

Esta forma de hierarquia feita a partir do termo religião deixou uma herança

significativa para o pensamento teológico: “é no desenvolvimento da teologia cristã

que cada vez mais religião se torna um termo tão especial na compreensão ou

incompreensão das alteridades, e isto com profundos embates e conflitos.”14 E não

raramente o outro religioso era assimilado, roubando- lhe a sua diferença, ou era

simplesmente negado como absurdo, como não religioso. 15

Neste desenvolvimento histórico, a religião foi vítima de diversos tipos de

reducionismos. Na redução evolucionista, ligada à evolução biológica e notadamente

sob a influência de Charles Darwin (1809-1882), desenvolveu-se a idéia de que a

religião seria uma etapa da humanidade, preâmbulo da idéia de que a religião é uma

etapa ultrapassada. Situada no nível do comportamento instintivo como, por

exemplo, o medo diante dos fenômenos da natureza, a religião foi considerada pelo

evolucionismo biológico como um instinto supérfluo, superado mediante a evolução

do homo sapiens. Em suma, a religião é um instinto presente em seres inferiores.

A redução positivista fez da religião uma expressão do humanismo

sociológico que teve em Augusto Comte (1798-1857) um de seus maiores

representantes. No campo da psicologia, Sigmund Freud (1856-1939) fez da religião 13 Giovanni FILORAMO & Carlo PRANDI. As ciências das religiões, p.22. 14 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e estudo da religião , p.152. 15 Andrés Torres QUEIRUGA. La constituición moderna de la razón religiosa, p.39.

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um problema ligado à psique humana, a religião era considerada como uma etapa

infantil da humanidade a ser superada. Do ponto de vista sócio–econômico, Karl

Marx (1818-1883) reduziu a religião a uma fuga do controle social, ela é apenas uma

válvula de escape de uma situação injusta e opressora. Para Marx, a religião é o ópio

do povo, o véu místico sobre os olhos que impede o ser humano de ver a realidade

injusta que o aprisiona e o aliena. Desde a perspectiva da moral, com Imanuel Kant

(1724-1804), a religião foi reduzida ao fundamento do bom comportamento. A idéia

de Deus tornou-se necessária para justificar o comportamento ético do ser humano.16

É, pois, no contexto desta história que se insere o diálogo atual entre a

teologia e as Ciências da Religião o qual é marcado por uma alternância de alianças e

conflitos. Todavia, apesar de alguns cientistas da religião desejarem exercer seu

trabalho longe da teologia e até mesmo contra ela, não podemos negar que a história

das Ciências da Religião está intimamente ligada à trajetória da teologia na Cultura

ocidental.

Todavia, hoje, a reflexão teológica se vê obrigada a abandonar a sua forma de

“sistema teológico”, que conseguira transformar o sistema referencial cristão num

conjunto de verdades perfeitamente articulado, desde uma visão unitária e teocêntrica

de toda realidade. A concepção de uma teologia única e universal na verdade

camufla uma teologia particular indevidamente universalizada. A não percepção

desta camuflagem conduz ao esquecimento a pluralidade de manifestações religiosas

que traz inevitavelmente uma diversidade de teologias, se considerarmos que a

teologia está sempre relacionada a uma experiência particular do religioso.

16 Johan KONINGS & Urbano ZILLES . Religião e Cristianismo , p.28-35.

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B. TEOLOGIA E CIÊNCIAS RELIGIÃO: ALIANÇAS E CONFLITOS.

1. DELIMITANDO O PROBLEMA.

Para muitos pesquisadores, a discussão em torno do exercício da teologia

entre as ciências que têm a religião como objeto de estudo no contexto acadêmico

brasileiro faz parte da discussão mais ampla sobre o estatuto epistemológico das

Ciências da Religião.17 A fecundidade deste diálogo poderá contribuir com a melhor

compreensão da reflexão teológica sobre a experiência humana do Sagrado, que por

enquanto chamamos genericamente de religião. Todavia, o alcance desta

compreensão exige uma melhor articulação entre conceitos como ciência, teologia e

religião: em que sentido tais termos serão empregados ao longo deste trabalho? Em

parte, porque em nossa realidade acadêmica temos um conjunto de ciências que

estudam a religião sem se dar conta das exigências epistemológicas de tal

empreendimento, talvez por terem a religião não como objeto de estudo, mas sim

como um apêndice que cruza o seu campo de ação, ou seja, estudam as religiões de

forma genérica, no conjunto de seus objetos particulares.18

Neste sentido, podemos nos perguntar: que consequências o surgimento de

uma Ciência da Religião não-teológica traz para o religioso e para a própria teologia?

Como o cristão se comporta diante de uma ciência – não-teológica – que olha a sua

religião não mais como “a” religião, a verdadeira e, porque não, única religião?19

17 Neste trabalho, adotamos a expressão “Ciências da Religião” tal qual é usada no departamento de pós–graduação da UMESP. Todavia, sabemos que esta expressão não encontra unanimidade entre os pesquisadores por nós citados, haja vista as diversas formas que são propostas : Ciência(s) da(s) Religião(ões). 18 Afrânio ANDRADE. Ciência da Religião, p.10. 19 Pierre GISEL . La théologie face aux sciences religieuses, p.17-24.

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Estas questões servirão de fio condutor para esta parte da nossa pesquisa, que

consiste num diálogo com a postura de alguns pesquisadores no que diz respeito ao

estudo acadêmico da religião.

a. Ciência e Ciências da Religião.

Ainda que o nosso estudo esteja delimitado pelas fronteiras do lugar20 da

teologia no estudo acadêmico da religião no contexto brasileiro, vale a pena lembrar

que para além desta fronteira existe uma discussão mais abrangente: o que vem a ser

a ciência com a qual a teologia entra em diálogo? Esta questão servirá como

preâmbulo para nossa reflexão em busca de uma melhor compreensão no que diz

respeito à perspectiva teológica a ser adotada no diálogo com as Ciências da

Religião. É preciso igualmente ressaltar que o lugar da teologia não é somente uma

questão física, espacial, mas sobretudo epistemológica.

A reflexão sobre o estatuto epistemológico das Ciências da Religião exige um

passo anterior: a reflexão em torno da noção do conceito mesmo de ciência. Para o

objetivo de nossa pesquisa, a anterioridade desta reflexão é de grande importância,

pois a pertinência do discurso teológico no estudo da religião depende em parte da

noção de ciência que venha a ser usada como parâmetro para definir quem merece ou

não o status científico no estudo da religião. Diversos autores argumentam, em suas

reflexões, que a noção apresentada pela visão iluminista positivista, na qual se

privilegia a dimensão empírica na definição de ciência, é uma postura que hoje não

encontra mais plena aceitação no ambiente acadêmico.

Para esta perspectiva, a crise da modernidade européia é também a crise do

paradigma que coloca como o único fundamento do saber científico a capacidade de

medir, observar e quantificar o objeto de estudo. Neste sentido, temos a delimitação

do que é científico ao campo visual (esquema, lista, diagrama): “Eis porque a

distinção básica que separa a ciência do que não é ciência não é a distinção entre 20 Não se trata de uma questão física, espacial, mas sim epistemológica.

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ficção e não–ficção, mas entre permitir ou não a abertura de significado a outros

sentidos que a visão”.21 Hoje, esta circunscrição do saber científico a basicamente

um sent ido, a visão, é profundamente questionada. Contesta-se também o poder

científico fundamentado sobretudo numa determinada visão empírica de saber

científico (empírico–formal), na sua pretensão de determinar o que vem a ser ciência,

ou seja, aquilo que deve ser eliminado do campo visual. Dito de outra maneira,

questiona-se, hoje, a idéia de que qualquer forma de saber que não seja capaz de

observar, medir e quantificar o seu objeto de estudo não possa ser qualificada como

ciência.

Nesta linha de raciocínio, é possível afirmar que na pesquisa científica cada

vez mais ganha espaço o postulado hermenêutico, ou seja, a ciência passa a ser vista

também como um ato construtivo de interpretação da realidade. Esta forma de

conceber a ciência encontra-se em íntima relação com a suspeita que se abate sobre a

centralidade outrora concedida à mediação empírica, ao dogma da objetividade e à

pressuposição da neutralidade do pesquisador na análise de seu objeto de estudo. O

ato de pesquisar é um ato interpretativo situado num contexto histórico e que atende

a interesses determinados.

Em outras palavras, a pesquisa científica não se restringe aos aspectos

formais, supondo igualmente aspectos existenciais. “Isto porque a investigação está

dentro de um quadro referencial com seus processos culturais complexos, jogos

ideológicos, interesses individuais e sociais”, 22 quadro referencial que requer um

processo hermenêutico que não se esgota na mediação empírica, na objetividade da

pesquisa ou tampouco na neutralidade do pesquisador, tomados por referenciais

absolutos.

Tomando por base a reflexão do teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, a fim

de apresentar a crítica ao modelo de ciência fundamentado na mediação empírica, na

21 Vitor WESTHELLE. Outros saberes, p.264. A razão deste artigo está na estreita ligação que para o autor existe entre o fenômeno de uma global fragmentação do saber, na qual discursos particulares e localizados colocam-se para além das fronteiras das epistemologias que dominaram o pensamento ocidental, e aquilo que se costumou denominar de a crise da modernidade, a qual é esboçada em ensaios ditos pós–modernos. 22 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e o estudo da religião , p.155.

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objetividade e na neutralidade, nos é permitido dizer ainda que todos precisamos de

um sistema de referencialidade para organizar nosso conjunto de valores,

referencialidade esta que exige um ato de fé. Entretanto, é preciso observar

inicialmente que a fé é uma dimensão antropológica, quer se tenha uma religião ou

não, pois todos nós precisamos de um ponto de referência a partir do qual

organizamos nossa escala de valores que orienta a nossa existência. 23 A este ponto

de referência podemos chamar de fé, sendo que a fé religiosa vem a ser um caso

particular de uma dimensão antropológica universal.

Neste sentido, a distinção entre crentes e não–crentes (científicos e racionais)

não tem lugar na reflexão de Juan Luis Segundo, já que ele considera que todos

fundamentam suas estruturas de valores num tipo de conhecimento que merece o

nome de fé. Nesta estruturação, o conjunto de informações que aceitamos como

válidos sem uma verificação empírica é o que podemos denominar de dados

transcendentes. Trata-se de informações não demonstradas empiricamente que nos

chegam por via testemunhal e que aceitamos como verdadeiras por atenderem às

nossas expectativas e também por serem transmitidas por alguém em quem

confiamos. E isto vale para todo cientista, quer ele tenha uma fé religiosa ou não.24

Assim, a fé antropológica permite classificar (muitas vezes de modo

inconsciente) os acontecimentos e as possibilidades no ato de pesquisar, colocando

ordem no complexo mundo de valores, daí podermos falar de escala de valores.

Além disso, a ideologia complementa a fé na medida em que a consideramos como

sendo a condição necessária para obtermos determinados resultados.25 Por isso, toda

forma de saber nasce subordinada a valores, ou seja, a satisfações pessoais.26

Todavia, esta crítica feita à pretensão da ciência moderna não ameniza a

advertência feita à teologia por esta ter se valido de seu sistema de referencialidade

para construir uma visão autoritária de revelação normativa, que pouco ou nada

23 Juan Luis SEGUNDO . O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.31. 24 Idem, ibidem, p.92. 25 O uso do termo ideologia em Juan Luis Segundo será aprofundado na apresentação do seu projeto teológico. 26 Juan Luis SEGUNDO . O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.34.

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contribuiu para o estudo da religião, servindo muito mais para transformar o sistema

de valores numa moral que tem como consequência atitudes que beiram a

desumanidade.27 Por isso,

...quem entra pelo mundo da teologia tem, muitas vezes, a impressão de estar ouvindo falar uma linguagem não apenas do passado, mas também incompreensível e inaceitável diante das inegáveis conquistas das ciências e do pensamento moderno.28

A articulação em torno de terminologias como sistema de referencialidade,

dados transcendentes, fé e ideologia lança luzes sobre o possível diálogo entre a

teologia e as Ciências da Religião, na medida em que questiona a pretensão do saber

científico moderno, fundamentado na mediação empírica, na objetividade e na

neutralidade, de ser o único método capaz de se aproximar da realidade em

detrimento de outros discursos (poesia, mito, crenças,...), que são frequentemente

reduzidos à insensatez, à falta de sentido.

A reflexão em torno da noção de ciência e do seu objeto de estudo é

igualmente observada na discussão em torno do uso dos termos ciência/ciências e

religião/religiões, o que mostra a não-unanimidade no que toca ao papel da(s)

Ciência(s) da(s) da Religião(ões) no nosso contexto acadêmico. Segundo vários

pesquisadores, a discussão em torno do estatuto epistemológico das Ciências da

Religião é um longo caminho a ser percorrido. E ignorar este debate é não se dar

conta das exigências epistemológicas do estudo da religião no contexto acadêmico

brasileiro. A hipótese de trabalho que se nos apresenta é aquela da possibilidade da

existência de uma ciência que se dedica ao estudo da religião com estatuto

epistemológico próprio, capaz de estudar a religião com o auxílio das demais

ciências humanas.

Apesar de toda uma indefinição terminológica que marca a busca da

afirmação do estatuto epistemológico das Ciências da Religião, há uma certa

unanimidade entre os pesquisadores ao se admitir a possibilidade de a religião ser

estudada cientificamente. Em parte, devido a uma concepção de ciência que toma

27 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e o estudo da religião , p.158. 28 Juan Luís SEGUNDO . Que mundo? Que homem? Que Deus?, p.7.

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distância do modelo científico moderno, o que já abre espaço para a subjetividade e a

intuição do pesquisador.

A este primeiro distanciamento podemos acrescentar um segundo, igualmente

de grande importância para a nossa pesquisa, qual seja, o fato de que a discussão em

torno do estatuto epistemológico das Ciências da Religião aponta para a constituição

de uma ciência que pouco a pouco se afasta da exclusividade da filosofia e da

teologia na análise da religião. E mais, adentrar-se no estudo da religião ou das

religiões significa caminhar num terreno movediço e impreciso no que diz respeito

ao objeto de estudo e ao tratamento científico que a ele deve ser aplicado.29

A discussão de tal estatuto epistemológico caracteriza-se por um conflito de

interpretações, na medida em que a religião, considerada como objeto de estudo

acadêmico, é um campo tão vasto e complexo que escapa ao olhar de um só

investigador. Esta complexidade e vastidão exigem diversos olhares interpretativos,

que na sua riqueza possibilitam ver a religião desde o lado de dentro da fé, bem como

desde o lado de fora da mesma. 30

Se tomarmos como hipótese de trabalho o fato de o conteúdo das Ciências da

Religião ser comum a outras ciências, teremos como consequência desta postura a

necessidade de se considerar diversos olhares interpretativos a fim de apreendermos

com maior clareza a religião, necessidade esta que faz da interdisciplinariedade um

dos pilares do método das Ciências da Religião. Contudo, uma tendência a ser

evitada é aquela de querer fazer das Ciências da Religião um apêndice de outras

ciências epistemologicamente já constituídas. Isto porque, para muitos, elas têm a

possibilidade de se constituírem numa ciência com estatuto próprio e que seja capaz

de dialogar com as demais ciências.

29 Márcio LARA. A(s) Ciência(s) da(s) religião(ões) no alvorecer de um novo paradigma , p. 171; 179. O autor fundamenta a sua reflexão no pensamento do físico norte–americano Fritjof Capra, mais propriamente no paradigma sistêmico tal qual o concebe este pesquisador norte–americano. O objetivo de Márcio Lara é mostrar as contribuições que o paradigma sistêmico pode oferecer ao estudo do fenômeno religioso, a partir da querela suscitada em torno da alternativa que ocupou por longo período o estudo da religião: explicá-la ou compreendê-la. 30 Eulálio FIGUEIRA. Estatuto Epistemológico da “Ciência da Religião”, p.63; 82. Esta dissertação apresenta o estudo sobre o estatuto epistemológico das Ciências da Religião, tendo a sociologia da religião de Joaquim Wach por referencial teórico.

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Daí a importância concedida aos diversos olhares interpretativos sobre a

religião, a fim de vê-la desde o ponto de vista daqueles que têm fé (religiosa) como

daqueles que não a possuem, ou seja, a partir da própria fé e desde fora da mesma,

apesar dos limites de ambas as posturas: para uma pode faltar a compreensão mesma

da linguagem religiosa, e na outra pode estar ausente a perspectiva mais ampla que

extrapola os horizontes da fé religiosa.31

Olhar, pois, a religião desde o lado de dentro é vê- la para além de

fenomenologias sócio–econômicas e percebê- la também na sua incidência e no seu

significado para a vida dos indivíduos e dos grupos humanos que se articulam em

torno dos símbolos religiosos. Tudo indica ser esta a contribuição específica da

teologia: compreender o significado existencial da religião, o sentido de vida que ela

proporciona e as decisões éticas que ela fundamenta. E olhar a religião desde o lado

de fora é possibilitar também que a teologia e a própria fé religiosa possam se ver

com outros olhares que não aqueles da cosmovisão da fé, com os olhares daqueles

que não se encontram necessariamente comprometidos com a religião que estudam.

Nesta linha de raciocínio, é possível afirmar que fazer Ciências da Religião

significa permitir que diversos olhares contribuam com o conhecimento mais

aprofundado sobre o ser humano e suas manifestações culturais, desde a perspectiva

da relação com o Sagrado. Por isso, a interdisciplinariedade deveria ser uma marca

registrada nas Ciências da Religião, na medida em que ela nos ajuda a tomar

consciência de que nenhuma forma de saber possui a chave de leitura universal capaz

de considerar a própria abordagem como a única capaz de esgotar a compreensão

daquilo que vem a ser a religião.

Fazer Ciências da Religião é, pois, ir além da investigação isolada de fatos

históricos, sociais, psicológicos, antropológicos, filosóficos,... É na confluência das

múltiplas análises que pode acontecer o estudo acadêmico propriamente dito. O

desafio está em demonstrar que as Ciências da Religião possuem um estatuto

epistemológico próprio cuja pertinência pode ser atestada face às demais ciências,

31 Idem, ibidem, p.82.

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sem, contudo, fazer delas uma macro–ciência que esteja acima das outras ciências e

tampouco considerá- la como um apêndice de qualquer outra ciência. 32

Por isso, digamos mais uma vez, o estudo acadêmico da religião exige a

participação de diversos olhares interpretativos e aí pode haver lugar para o olhar

teológico, desde que este busque a idoneidade metodológica, o rigor científico e a

plausibilidade de comunicação das investigações científicas.33 Respeitadas tais

condições, não haveria porque a pertença de um teólogo a alguma forma de confissão

religiosa se constituir, em si mesma, num obstáculo à reivindicação de cidadania

acadêmica por parte da teologia.

Isto porque “o locus hermenêutico do intérprete não indica rigor ou falta de

rigor, mas apenas esclarece de onde ele olha.”34 Na prática hermenêutica em torno

da religião, pertença e distância são dois pólos em constante tensão, sendo que na

pesquisa científica a tendência em direção a um dos pólos não deveria significar a

destruição do outro. Pertença e distância não são necessariamente posturas auto-

excludentes, mas apenas maneiras distintas de olhar a realidade. É nesta linha de

raciocínio que podemos afirmar que o estudioso da religião está diante de um objeto

de estudo profundamente complexo, que escapa a abordagem de uma única ciência.35

Entretanto, alguns pesquisadores consideram que as Ciências da Religião não

só devem contribuir com a compreensão das manifestações culturais do ser humano,

como devem limitar-se a elas. Idéias metaculturais como revelação, redenção,

iluminação, não seriam propriamente objetos de estudo das Ciências da Religião, a

não ser quando estas desencadeiam ações religiosas que se expressam em produções

culturais.36 Neste sentido, podemos dizer, por exemplo, que a crença em Jesus como

o Filho de Deus e único salvador, em Buda como o iluminado e em Maomé como o

32 Idem, ibidem, p.63; 72 33 Rui JOSGRILBERG. Ciências da Religião e/ou Teologia: uma questão epistemológica, p.13. 34 Idem, ibidem, p.23. 35 Luís Henrique DREHER. Ciências da Religião: teoria e pós–graduação no Brasil, p.155; 159. 36 Afrânio de ANDRADE. Ciência da Religião, p.107. Neste trabalho o autor toma por hipótese a seguinte questão: “é possível estabelecer uma Ciência da Religião com estatuto epistemológico próprio, capaz de dar conta do estudo da religião, ainda que se valendo, para tanto, das outras ciências humanas como auxiliares neste labor?” (p.10). A religião é vista como uma atividade social e como expressão cultural interiorizada pelo indivíduo, sendo a ciência que a estuda uma ciência social.

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profeta de Alá, em si mesma, não seria objeto de estudo das Ciências da Religião. O

que interessaria ao cientista da religião é a maneira como determinada crença produz

cultura e sentido de vida. E aqui, de certa forma, já se delineia para alguns o que se

afirmará mais tarde como diferença entre uma teologia dogmática e uma teologia

voltada para o estudo acadêmico da religião.

Todavia, afirmar que idéias metaculturais não são objetos propriamente ditos

das Ciências da Religião não deve significar a desvalorização de dimensões como

revelação, redenção iluminação etc., visto que tais dimensões são maneiras próprias

de a religião apresentar sua constituição e de seus adeptos estabelecerem seu discurso

religioso. Talvez, ao se dar ênfase à necessidade que estudo da religião tem em

contribuir com a compreensão das manifestações culturais do ser humano e ao

mesmo tempo limitar-se a elas, deseje-se, na verdade, ressaltar o fato de que as

Ciências da Religião não devem se obrigar ao objetivo de defender a ortodoxia da fé

ou uma determinada estrutura eclesial, seja ela qual for.

A busca por um novo paradigma para as Ciências da Religião também se

encontra presente quando se retoma a discussão sobre o uso dos termos

ciência/ciências e religião/religiões. Se, para o modelo explicativo, o cientista deve

garantir a imparcialidade, a neutralidade e a objetividade, na medida em que

convicções pessoais, valores, preconceitos, afetos não interfiram no processo de

conhecimento, para o modelo compreensivo o cientista deve apreender a experiência

no íntimo das manifestações sócio–históricas e culturais. O paradigma que emerge da

reflexão de Márcio Lara, por exemplo, o permite apresentar um modelo

epistemológico que é apontado como legitimador das condutas fenomenológicas

concebidas por G. Van der Leeuw e F. Heiler, bem como possibilita a integração de

pontos divergentes na discussão em torno dos modelos de explicação e compreensão

do fenômeno religioso. Nesta sua tentativa de integrar pontos de vistas divergentes,

Márcio Lara afirma que

Científico é todo conhecimento que possa ser obtido a partir da observação, portanto, com o concurso de nossos sentidos e que tenha como objeto fenômenos de natureza empírica, isto é, que possuam existência histórico–concreta. E, ainda mais, que os juízos obtidos

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acerca desses fenômenos possam passar pelo crivo da demonstração experimental.37

Esta definição o leva a considerar a filosofia e a teologia como outras formas

de saber que não se enquadram nesta definição de ciência, uma vez que seus objetos

de estudos pertencem à natureza não visível, como, por exemplo, o Ser, a experiência

religiosa e a revelação divina. Algo discutível, em nossa opinião. Mas, seja como for,

não são poucos aqueles que consideram que tanto as Ciências da Religião como a

teologia deveriam renunciar a qualquer pretensão de validade acadêmica. E são

justamente estes interlocutores que abrem espaço para questões como: “em que

medida a teologia tem o direito a reclamar um lugar no mundo acadêmico? E

existem ciências da religião?”38 A grande maioria dos pesquisadores se dedicam

mais à segunda questão e este caráter secundário concedido à pergunta pelo exercício

da teologia no estudo da religião constitui-se numa limitação para o objetivo de nossa

pesquisa.

Apesar disto, é importante ressaltar que, mesmo assim, há aqueles que

destacam o fato de que, no início dos anos 80, sentiu-se a necessidade de reforçar a

face acadêmica tanto da teologia como das Ciências da Religião, a fim de se

distanciar dos condicionamentos impostos pelas instituições eclesiais. É nesta

perspectiva que se considera de grande valor o surgimento de espaços autônomos de

validação acadêmica como a SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião)

e a ANPTER (Associação Nacional de Programas de Pós–Graduação de Teologia e

Ciências da Religião), sobretudo no contexto católico, onde a hierarquia da Igreja

controla a validação da produção teológica através das faculdades de teologia.

Há de se destacar também as conquistas realizadas pelas Ciências da

Religião, a saber: a superação da pesada herança positivista no âmbito acadêmico; a

subtração da interferência clerical no estudo da religião, clericalismo cuja maior

preocupação era com critérios da ortodoxia da fé; uma maior visibilidade da

comunidade científica das Ciências da Religião, graças aos esforços da SOTER e da

ANPTER, embora para alguns ainda haja um longo caminho a ser percorrido no que

37 Márcio LARA. A(s) ciência(s) da(s) religião(ões) no alvorecer de um novo paradigma, p.184. 38 Pedro de OLIVEIRA. Teologia e ciências da religião: uma área acadêmica, p.105.

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diz respeito ao estabelecimento de bases sólidas do estatuto epistemológico das

Ciências da Religião.

É nesta linha de raciocínio, ou melhor, no trilhar parte deste longo caminho,

que surge a contribuição daqueles que refletem sobre a auto–reflexão teórica das

Ciências da Religião e a organização de seu sistema de pós–graduação.39 Nesta

discussão, que tem ocupado boa parte da agenda da ANPTER, um dos temas de

destaque tem sido as diferenças entre teologia e Ciência(s) da Religião, diferenças

que, de certa maneira, deveriam se estender a outras disciplinas como filosofia e

sociologia da religião.

Uma reflexão como esta parte do princípio de que as Ciências da Religião no

Brasil configuram-se como uma nova área acadêmica, sobretudo a partir da

percepção de que o estudo do objeto religião(ões) pode ganhar muito em

compreensão se estudado de forma autônoma e interdisciplinar, ou seja, a partir de

diversos métodos que primem pelo mútuo conhecimento. É a partir desta relação

entre Ciências da Religião e outras ciências que se vê a necessidade da discussão em

torno do termo ciência: qual a concepção de ciência que deve ser usada para

qualificar ou desqualificar determinado estudo como científico? Concomitantemente

a esta discussão, temos um velho dilema cujos desenlaces nos atingem hoje: a

segurança do método e o problema do objeto de estudo.

Embora a resposta em torno do método a ser aplicado em Ciências da

Religião não encontre unanimidade entre os pesquisadores, alguns falam do desejo

de praticar uma disciplina (Ciência da Religião) que busque enfocar a especificidade

da religião e dos fenômenos religiosos sem cair em redutivismos, dogmatismos e

descritivismos (fenomenologia). Nesta linha de raciocínio, defende-se a idéia de que

uma profunda compreensão da religião exige uma reflexão para além dos limites de

sua funcionalidade e de seu caráter naturalista, de tal modo que no estudo da religião

possam estar contempladas tanto a discussão fenomenológica como teológica e/ou

filosófica de sua validade e/ou verdade.40

39 Luís Henrique DREHER. Ciência(s) da religião: teoria e pós-graduação no Brasil, p.151. 40 Idem, ibidem, p.169; 176.

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Um último aspecto a ser destacado, neste passo inicial da nossa reflexão, diz

respeito à criação e à revitalização da graduação e da pós–graduação no Brasil, que

provavelmente ganhará novos contornos devido à necessidade da formação de um

corpo docente qualificado para o ensino religioso nas escolas públicas e particulares,

diante das transformações culturais ocorridas nos últimos anos, como, por exemplo,

o avivamento ou notoriedade de práticas religiosas de matriz não–cristã. E isto

parece ser uma realidade se considerarmos o programa de licenciatura e bacharelado

de algumas instituições no Brasil.41 Todavia, há de se verificar de forma mais

aprofundada a estrutura curricular destes novos programas de Ciências da Religião,

pois tudo nos leva a crer que a teologia, e mais amiúde a teologia cristã, seja o

principal fundamento de tais programas.

b. Teologia e Teologia Cristã.

Uma das críticas mais severas sobre o exercício da teologia no estudo

acadêmico da religião pode ser percebida quando se fala da “influência/interferência

da Teologia como uma sombra a pairar na estruturação dos Programas de

Ciência(s) da Religião, pois foi a partir dela que se originaram – de forma direta ou

indireta – as Ciências da Religião no mundo e no Brasil.”42 Como desdobramento

desta crítica, se diz ainda da existência de programas de Ciência(s) da Religião, que

são na verdade cursos de teologia que carecem de honestidade intelectual para se

assumirem como tal, uma vez que tais programas estão situados em instituições

confessionais, e também porque o seu corpo docente é formado na maior parte por

teólogos.

Entretanto, apesar de alguns autores lamentarem a aproximação entre teologia

e Ciências da Religião, não podemos negar que esta proximidade por si só já coloca a

41 Este é o caso, por exemplo, da licenciatura na Universidade Regional de Blumenau (FURB) e na Universidade do Estado do Pará (UEPA). 42 Marcelo Camurça LIMA. Entre as Ciências Humanas e a Teologia, p.140.

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pergunta pelo lugar da teologia no estudo da religião.43 A esta motivação podemos

acrescentar ainda o momento de grande projeção pública e acadêmica pela qual passa

a teologia, após o reconhecimento formal por parte do Ministério da Educação. Fato

este que exige um diálogo mais aprofundado entre a teologia e outras formas de

saber que se dedicam ao estudo da religião no contexto acadêmico brasileiro.

Ainda que não seja uma voz unânime, é importante lembrar também que entre

muitos estudiosos da religião afirma-se, de modo geral, a possibilidade de a teologia

colaborar na compreensão desta área do saber. Entretanto, sendo uma ciência

específica, a teologia faria parte de uma ciência maior que se ocupa do estudo da

religião. Por isso, alguns pesquisadores insistem na distinção entre teologia e

Ciências da Religião, afirmando que a teologia não é a ciência da religião por

excelência e tampouco as Ciências da Religião são servas da teologia. Em outras

palavras, a teologia é parte de um todo no qual se deve estudar a religião desde

dentro como de fora dela.44

Além disso, temos que enfatizar também que em nosso contexto acadêmico,

quase sempre, quando se fala de teologia no estudo da religião, normalmente se

pensa na Teologia cristã, a qual abrange somente uma parte do objeto de estudo das

Ciências da Religião: o Cristianismo. Como consequência, no contexto brasileiro,

quando se critica a teologia, sobretudo a sua falta de cientificidade, aponta-se para

posturas eclesiais cristãs, para moral cristã, etc. A teologia que conhecemos no

contexto acadêmico brasileiro restringe-se às fronteiras do Cristianismo e para alguns

ela não pode ir além das fronteiras eclesiais. Em síntese, a Teologia como ciência da

religião está voltada para o estudo de assuntos ligados às Igrejas cristãs, o que se

constitui num empecilho para a sua aceitação no meio acadêmico. Por isso, levanta-

se a questão sobre a possibilidade de a teologia vir a ser ciência da religião, sem

abandonar seu sistema de referencialidade e a confessionalidade que a caracteriza.

Por enquanto, sem pretender responder de forma exaustiva a esta questão,

gostaríamos, contudo, de enfatizar a necessidade de se distinguir entre uma teologia

43 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e o estudo da religião , p.149-150. 44 Afrânio de ANDRADE. Ciência da Religião, p.19.

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confessional voltada principalmente para os interesses eclesiais e uma teologia

igualmente confessional, todavia dedicada à compreensão da religião, das

manifestações espirituais da cultura e do papel das práticas religiosas no contexto

social, sempre em diálogo com outras ciências que estudam a religião. Tal distinção

não significa que uma teologia seja mais científica do que a outra, mas apenas que

uma e outra naturezas teológicas possuem interesses e objetivos diferentes. A esta

diferenciação podemos acrescentar ainda a distinção entre teologia e Ciências da

Religião, a qual é aceitável somente quando, num segundo momento, se inclui o

empreendimento hermenêutico da teologia entre aqueles olhares interpretativos que

gozam de cidadania acadêmica.45

O papel da teologia no estudo da religião estaria, pois, para além das

definições dogmáticas, na contínua busca de perceber as dinâmicas da linguagem

religiosa no cotidiano, nos códigos vitais que ajudam a dar sentido à existência

humana, no interior da cultura. Este tipo de saber teológico constitui-se a partir do

recurso à razão especulativa, à imaginação poética e à experiência religiosa.46 Além

disso, a teologia, na medida em que se debruça sobre a religião no meio acadêmico,

não pode estar atrelada única e exclusivamente aos interesses eclesiásticos e

tampouco deve se colocar no papel de coadjuvante na interpretação da religião. Isto

porque

A teologia tem, teoricamente, uma grande proximidade do fenômeno religioso, especialmente aquele do universo cristão, mas só teoricamente, porque se o seu discurso estiver encastelado no dogma, pouco ajudará na elucidação do fenômeno religioso. Se estiver disposta a assumir a sua tarefa como empreendimento hermenêutico, considerando a complexidade e a riqueza do fenômeno religioso, poderá contribuir de forma expressiva para a compreensão da experiência religiosa no contexto brasileiro e latino–americano.47

E esta experiência religiosa é dita através de diversas formas de linguagem

(ritos, símbolos, mitos, dogmas, conceitos,...) que não pairam no ar, não se

posicionam acima da realidade ou da história. Elas encontram-se enraizadas nas

45 Rui JOSGRILBERG. Ciências da Religião e/ou teologia: uma questão epistemológica, p.20. 46 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e o estudo da religião , p.158-162. 47 Idem, ibidem, p.163.

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experiências humanas e somente podem ser apreendidas a partir do contexto sócio–

cultural no qual se desenvolvem e contra o qual muitas vezes se posicionam.

Estas distintas linguagens, por sua vez, exigem diversas hermenêuticas que

sejam capazes de interpretar aquilo que o ser humano diz de sua experiência do

Sagrado e a maneira como ele vive a partir de tal experiência. E entre tais

hermenêuticas acreditamos que haja espaço para a teologia, embora o

posicionamento de vários pesquisadores aponte para a necessidade de uma melhor

definição deste locus teológico, a qual pode ser vislumbrada em outros autores que

concedem um lugar de destaque ao empreendimento hermenêutico da teologia desde

o horizonte da interpretação dos símbolos religiosos, tanto de matriz cristã como

não–cristã.

Nesta centralidade temos, em nossa opinião, um caminho aberto para

entender a teologia (não somente a cristã) no estudo acadêmico da religião, ao

mesmo tempo em que nos posicionamos de forma contrária àqueles que não admitem

possibilidade alguma de a teologia ir para além do serviço a determinada estrutura

eclesiástica.

Para uma melhor compreensão deste caminho é importante inicialmente

lembrar que a crise do paradigma teológico guarda uma íntima relação com a crise

do próprio pensamento ocidental, cujas bases firmadas a partir da metafísica

essencialista da tradição filosófica, que tinha a Deus por verdade ontológica,

começaram a ruir sob o impacto da modernidade. Ao desmoronar a metafísica

tradicional, diante do tremor sísmico provocado pela modernidade, com ela veio

abaixo parte do edifício teológico alicerçado na tradição cristã.48

Em outras palavras, a revelação objetiva de Deus na história, a partir de uma

comunicação direta ao ser humano, deixou de ser o fundamento universal para o

fazer teológico. A razão (moderna) autônoma não aceita mais a revelação como um

dado a priori, como uma realidade transcendental. Assim, por exemplo, a Sagrada

Escritura

48 Claude GEFFRÉ. La crise de la raison métaphisique, p.465-483.

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não representa a narração positiva do evento revelatório do Sagrado, mas a narrativa humana, historicamente situada, da compreensão e vivência desse sagrado que de alguma forma não objetiva foi percebido. 49

Ao considerar a metafísica por fundamento, a teologia cristã fez de Deus um

conceito formal, objeto de estudo racional e sistemático. Trata-se, no entanto, de uma

limitação deste objeto desde o ponto de vista conceitual, pois Deus é um símbolo

linguístico exclusivo da tradição judaico–cristã. A esta limitação conceitual associa-

se o anacronismo semântico, pois ninguém pode de fato estudar Deus, quando muito

podemos refletir sobre o discurso humano acerca de Deus e o comportamento

humano diante dele.

A esta observação linguística podemos acrescentar uma segunda anotação, a

fim de dar um passo a mais na distinção feita anteriormente entre uma teologia

confessional, dogmática, e outra mais preocupada em interpretar a linguagem

religiosa, independentemente da sua origem religiosa. Aprofundar esta distinção,

neste momento, significa dizer que o teólogo dogmático teria como tarefa primeira a

articulação dos símbolos específicos de sua comunidade confessional, sendo

igualmente animado pela dinâmica hermenêutica.

A teologia dogmática seria vista, pois, como uma aplicação da teologia tida

como interpretação dos símbolos religiosos, com a diferença que a teologia

dogmática fala a partir de uma tradição e para o interior dela. Por isso, em alguns

meios teológicos, tomando por base a hermenêutica dos símbolos religiosos, fala-se

de uma modificação semântica na compreensão do termo teologia: do “logos do

theos” à “hermenêutica do symballo”. Símbolos aqui entendidos por formas

linguísticas que narrativamente são capazes de conferir significado existencial à vida

humana.

Neste deslocamento semântico, a teologia viria a ser um discurso conceitual

que busca organizar e desvelar o sentido segundo captado no sentido primeiro dos

símbolos ou um discurso que busca proporcionar “uma decifração mesma da vida no 49 Reginaldo dos Santos JUNIOR. Implicações teológicas da hermenêutica dos símbolos religiosos em Paul Ricoeur, p.85.

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espelho do texto”.50 Esta decifração faz do trabalho teológico uma interpretação da

cultura através dos símbolos religiosos apreendidos em sua dimensão própria,

irredutíveis a qualquer outra categoria (economia, filosofia, sociologia, história,

psicologia,...), uma vez que o símbolo religioso carrega em si mesmo uma memória e

uma esperança. Afinal, “o símbolo é o momento concreto da dialética entre a

arqueologia e a teleologia reflexiva”.51 Isto porque a reflexão sobre os símbolos

desemboca na reflexão sobre a condição humana, sendo que, no caso concreto da

teologia,

são as correntes teológicas que defenderam a preservação do símbolo, e não sua superação por uma linguagem de ajuste, que retomam agora a tarefa de dialogar com o mundo e com o tipo de racionalidade que sobrevive nos círculos científicos. Mais do que isso, são essas correntes que poderão dar uma contribuição importante para a compreensão de leituras religiosas da realidade que cada vez mais deixam de ser marginais e invadem espaços até então considerados secularizados.52

Desta maneira, para alguns estudiosos, a teologia passaria a ter um objeto

próprio – os símbolos religiosos – que independe da confissão de fé do pesquisador,

uma vez que uma teologia assim constituída não estaria preocupada em defender a

ortodoxia da fé. Entretanto, esta independência não pode ser confundida com a

exigência da renúncia da própria fé, a qual se expressa nos símbolos religiosos e que

é apreendida pela hermenêutica.

A contribuição específica do teólogo no cenário acadêmico seria, pois, a

interpretação da cultura pelo viés dos símbolos religiosos. Ele estaria preocupado em

demonstrar os eventos fundadores de tais símbolos e entrar em diálogo com o mundo

acadêmico na tentativa de interpretar a cultura, compreender e explicar o fenômeno

religioso, e a partir daí melhor compreender o existir e o agir humano. Por sua vez,

pelo fato de viver e estudar os símbolos específicos de uma determinada comunidade

de fé, o teólogo confessional coloca-se na posição de intérprete desta comunidade e

interlocutor entre ela e o contexto extra-confessional.53

50 Paul RICŒUR. O conflito das interpretações, p.322. 51 Idem. Da interpretação, p.400. 52 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Deus no espelho das palavras, p155-156. 53 Reginaldo dos Santos JUNIOR. Implicações teológicas da hermenêutica dos símbolos religiosos em Paul Ricoeur, p.101.

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Acreditamos que esta maneira de conceber o fazer teológico tende a situar a

teologia no cenário acadêmico de tal modo que ela não se transforme em algo que

não mereça mais o nome de teologia. Em outras palavras, “ou a relevância social da

teologia brota do que ela é, ou estará condenada a ser um discurso mimético e

repetitivo de linguagens conhecidas”.54 Ou ainda, a teologia apareceria no cenário de

estudo acadêmico da religião como um discurso póstumo, como um empreendimento

hermenêutico cuja mediação se faz sobre “realidades já devidamente analisadas e

interpretações construídas”.55

A maneira como alguns advogam em favor do empreendimento hermenêutico

na teologia mostra o caráter relativo dos símbolos religiosos, ou seja, relativos a uma

comunidade, a uma tradição, numa intelecção contrária àquela levada a termo pelo

dogmatismo intolerante. Assim, no empreendimento hermenêutico da teologia, o

verdadeiro (ou a verdade no sentido ontológico) cederia lugar ao significativo, ou

seja, sairíamos do âmbito tradicional grego para entender os símbolos na perspectiva

de uma estrutura linguística que concede significado à existência humana. Caberia,

contudo, aprofundar esta mudança de perspectiva, ou seja, a passagem do verdadeiro

ao significativo.

As considerações sobre o empreendimento hermenêutico da teologia apontam

para uma redefinição do conceito mesmo de teologia, a qual passa a ser vista como

um discurso simbólico sobre a religião. E nesta redefinição surge a seguinte questão:

teologia ou teologias? Dito de forma afirmativa, considera-se de grande importância

a distinção entre teologias e Teologia cristã, uma vez que a apressada identificação

entre ambas não leva em conta a elaboração do conceito teologia, marcada por

disputas que muitas vezes se arrastaram por séculos de história.

Neste esquecimento etimológico desconsidera-se, por exemplo, o fato de que

o uso do termo teologia localiza-se num período bem anterior ao Cristianismo. Na

antiguidade, Platão (República, 379a ) e Aristóteles (Metafísica, 1026a 19; 1046b),

54 Carlos PALÁCIO . Deslocamentos da teologia, mutações do cristianismo, p.75-76. 55 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Deus no espelho das palavras, p.155.

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embora com distintas conotações, já faziam uso do termo teologia. Enquanto para

Platão a teologia era uma narrativa simbólica sobre as divindades, para Aristóteles a

teologia tratava da realidade do divino tal qual ele é. Nos primeiros séculos do

Cristianismo, com os apologetas ou Pais da Igreja, a teologia transforma-se em

ciência, e mais tarde em ciência imperial.56

Dentre as consequências desta mutação da condição da teologia, temos o

novo olhar sobre os mitos e os símbolos não–cristãos que passam a ser vistos como

erros a serem combatidos oralmente, e não raramente esmagados pela força. A

teologia constituiu-se, pois, em Teologia cristã e em ciência metafísica, e o

esquecimento desta história do termo tornou-se um dos responsáveis pela

identificação imediata entre teologia e Teologia cristã, a qual perdura ainda hoje no

imaginário e no vocabulário de várias pessoas. 57

Todavia, com o advento da modernidade e a crítica que ela faz à metafísica,

tomando esta por uma forma de poesia e identificando todo discurso sobre a

divindade como ficcional, e este como falso, a teologia perde a sua condição de

ciência no âmbito acadêmico. Em que consistiria, pois, a aceitação de plausibilidade

do discurso teológico entre as disciplinas que se dedicam ao estudo da religião? A

partir da reflexão de alguns pesquisadores, podemos dizer, primeiramente, que tal

possibilidade repousaria na renúncia a conteúdos que contenham alguma forma de

verdade objetiva, entendendo por tal objetividade a correspondência entre o

enunciado e a realidade a qual ele se refere. No estudo acadêmico da religião, a

teologia deveria renunciar às especulações sobre “alguma outra realidade mais

verdadeira que seria objeto de suas considerações”.58 Neste sentido,

caberia à teologia se entender explicitamente como um discurso sobre mitos, ritos e símbolos. Ela passaria a ser vista como formulação conceitual, o mais rigorosa possível, destes caracteres simbólicos... a aproximação entre teologia e mitologia implica tanto a caracterização

56 Nos primeiros séculos de sua existência, o Cristianismo conheceu a marginalização e a perseguição. Somente no ano 313, os cristãos ganharam liberdade de culto graças ao edito do imperador romano Constantino. No ano 380, o Cristianismo foi erigido como religião oficial do Império Romano pelo então imperador Teodósio, o qual em 392 proibiu os cultos pagãos, fazendo da religião cristã a religião obrigatória dentro das fronteiras de seu Império. 57 Eduardo GROSS . Considerações sobre a teologia entre os estudos da religião, p.323-327. 58 Idem, ibidem, p.328.

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dos conceitos teológicos como símbolos quanto a descoberta de conteúdos racionais em narrativas míticas.59

Um desdobramento importante desta redefinição do conceito de teologia é o

fato dela exigir uma nova concepção de ciência que se afaste da mera identificação

entre falso e poético, como pressupõe a metafísica ocidental. A redefinição do

trabalho da teologia apresentada acima estabelece uma reaproximação entre mito e

teologia a partir do caráter interpretativo de ambos, embora se afirme que o discurso

mítico se caracteriza mais pela forma narrativa e o teológico pela forma conceitual.

O discurso conceitual da teologia seria um esforço de explicitação do significado do

mito, de sua linguagem simbólica.60 Não haveria aqui nenhuma distinção de valor,

mas somente de formas de discurso e tal distinção se faz necessária sobretudo num

contexto contaminado por visões preconceituosas no que diz respeito ao estudo da

religião, como é o caso de certos setores do contexto acadêmico brasileiro.

Entretanto, é bom lembrar que a inadequação científica da teologia aos olhos

da ciência moderna está no recurso à imaginação e à experiência religiosa que não se

exaure na visualização e na sistematização das análises do objeto estudado. E mais,

este recurso não é somente uma condição prévia da tarefa teológica, mas fundamento

da narratividade que ela produz através de uma linguagem construída a partir de

mitos, ritos, símbolos e práticas religiosas.61 Porém, a teologia, às vezes, deixou-se

seduzir por outros caminhos a fim de alcançar o status acadêmico preconizado pela

ciência moderna. Trata-se da tentação de querer ser aquilo que não pode ser e deixar

de ser aquilo que é, ou seja, uma forma de saber que encontra na imaginação e na

experiência religiosa a vitalidade e a sustentação da narratividade que seu discurso

produz.

Feita esta observação, podemos ainda dizer que entender o discurso teológico

como explicitação do significado de mitos, ritos e símbolos de uma determinada

59 Idem, ibidem, p.329. 60 O mito pode ser entendido como formas racionalizantes de experiências humanas e a mitologia como a organização dos mitos num sistema coerente. 61 Vitor WESTHELLE. Outros saberes, p.274. Esta mesma linha de pensamento pode ser observada em outro artigo do mesmo autor, “Teologia e Pós-modernidade”, no qual, a título de conclusão, é sugerido que a teologia reencontre suas raízes etimológicas na linguagem mítica, a qual faz uso da imaginação, da poesia, de símbolos e de metáforas.

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tradição religiosa é negar a pretensão de exclusividade a qualquer tradição religiosa

particular. No que diz respeito ao Ocidente, é preciso levar a termo a distinção entre

teologia e Teologia cristã, sendo esta tomada por discurso de uma tradição particular.

Se anteriormente nos foi necessário dizer que a teologia não é “a” Ciência da

Religião, agora se torna fundamental afirmar que hoje a Teologia cristã não é “a”

teologia, mas apenas o discurso teológico sobre a linguagem religiosa de uma

tradição particular.

E como nos recordam alguns dos estudiosos da religião, a redução da teologia

ao universo cristão é um dos entraves para a sua aceitação no estudo da religião. Isto

porque a Teologia cristã, ao se entender como “a” teologia, tende a desqualificar as

outras religiões (seus mitos, ritos e símbolos) como degradação da verdadeira

religião: o Cristianismo. A adjetivação da teologia em cristã implica na relativização

das diversas tradições teológicas e aponta igualmente para a discussão sobre o que

vem a ser religião. É possível falar de uma religião verdadeira? Tudo nos leva a crer

que no estudo acadêmico há de se abandonar a busca pela verdade absoluta de uma

religião, da qual as outras não passariam de mero simulacro.

Uma outra questão de grande relevância é a pergunta pela possível construção

de um método teológico capaz de examinar todas as formas de expressão religiosa.

Diante desta interrogação, há aqueles que manifestam a sua incredulidade em tal

possibilidade, por ser impossível formular uma “teologia das teologias, no sentido

de um discurso asséptico, não contaminado por pressupostos de tradições religiosas

particulares”.62 Por isso, o ideal seria que as instituições que se dedicam ao estudo

da religião tivessem no seu corpo docente especialistas nas mais diversas tradições

religiosas e que estas tradições particulares procurassem um enriquecimento mútuo,

sem negar os conflitos entre as diversas posturas diante de temas oriundos da ética e

da compreensão da verdade. Diálogo a ser estabelecido a partir do universo

simbólico, mítico, ritual e conceitual de cada tradição religiosa.

Para esta perspectiva, o teólogo, no âmbito do estudo da religião, não

precisaria ser necessariamente uma pessoa engajada em uma confissão religiosa, mas

62 Eduardo GROSS . Considerações sobre a teologia entre os estudos da religião, p.333.

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sim um especialista nos mitos, símbolos e conceitos de uma determinada tradição,

especialista numa determinada linguagem religiosa. Entretanto, a partir desta postura,

não nos parece claro o que distinguiria o teólogo de um antropólogo ou sociólogo,

por exemplo. Ser especialista numa linguagem religiosa por si só garantiria o status

de teólogo ao pesquisador da religião? O que o distinguiria de outros cientistas da

religião?

Não nos cabe, neste momento, tecer comentários mais aprofundados sobre

esta problemática. Contudo é possível afirmar, mais uma vez, ser tarefa específica da

teologia constituir-se numa disciplina especializada na clarificação da linguagem

religiosa das diversas tradições, uma vez que o uso desta linguagem por especialistas

de outras áreas pode apresentar superficialidades e incorreções. A isto podemos

acrescentar que ser uma instância crítica da postura não–religiosa no estudo da

religião significa dizer que o recorte a–religioso é apenas uma postura, uma

perspectiva, que não é superior e nem inferior à postura religiosa, mas apenas um

olhar diferente sobre a religião.

Neste sentido, podemos dizer também que “isto significa a necessidade de

espaço para estudos da religião tanto de perspectivas que valorizem experiências

religiosas quanto de perspectivas que sejam alheias e críticas a elas.”63 Colocada

desta maneira, a presença da teologia entre as demais disciplinas que se dedicam ao

estudo da religião aponta para uma dupla vantagem: da parte das outras disciplinas,

abertura ao outro, à outra forma de saber; da parte da teologia, o abandono de uma

arrogância histórica, ou seja, da posição de única intérprete autorizada da religião.

Ao lado da função descritiva da linguagem religiosa, cabe igualmente ao

discurso teológico, e por que não dizer acima de tudo, uma função proponente, a fim

de não se transformar num discurso técnico, classificatório, de pouca utilidade para o

estudo da religião. E nesta função construtiva da teologia há de se avaliar o impacto

no mundo atual provocado por determinada tradição, através de seus mitos, ritos e

símbolos, ou dito de outra maneira, o descompasso existente entre determinadas

63 Idem, ibidem, p.341.

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representações religiosas e a realidade social. Cabe, pois, à teologia elaborar

reflexões úteis tanto para as tradições religiosas particulares como para a sociedade.

Nesta perspectiva, o estudo acadêmico da religião não se tornaria

simplesmente um baluarte da negação da religião e nem um posto avançado das

respectivas tradições religiosas na busca por adeptos. Muito pelo contrário, trata-se

de um estudo que uniria a necessidade de compreensão das religiões com a de

proposição de transformações para as tradições religiosas e a sociedade.64 E diante de

tal empreendimento, cabe-nos lembrar o caráter necessariamente hermenêutico da

apreensão da religião, já que o manejo de conceitos não é apenas lidar com dados

brutos, mas sobretudo como símbolos e significados.65 No estudo da religião, há de

se primar pelo diálogo entre as diversas formas de saber na perspectiva da

reconstrução de sentido e da explicitação das implicações simbólicas descobertas na

pesquisa. Para certos pesquisadores, esta postura esboça a configuração da mediação

hermenêutica como aquilo que confere à teologia a pertinência pública no tocante ao

método e ao que a caracteriza como instância crítica. 66

Na tentativa de elucidar algumas das controvérsias inerentes ao tema em

questão, ou seja, o exercício da hermenêutica teológica no estudo da religião, surgem

duas questões prévias: é possível ocupar-se cientificamente do estudo da religião

permanecendo religioso? Até que ponto é possível um distanciamento efetivo de

qualquer envolvimento emotivo com o objeto de estudo?

Ambas as questões tratam da total isenção da pesquisa científica, seja de

questões de fé, seja de implicações emotivas. Estas questões seriam oriundas de um

positivismo iluminista defasado, sobretudo após a incursão da psicologia do

profundo e da sociologia do conhecimento. No que diz respeito diretamente à nossa

pesquisa, é preciso colocar inicialmente em destaque a necessidade de se fazer

diferença entre duas formas de discurso: o teológico e o religioso.67 Se entre ambos

64 Idem, ibidem, p.344. 65 Idem, ibidem, p.337-345. 66 Faustino TEIXEIRA. O lugar da teologia na(s) Ciência(s) da religião, p.303. 67 Idem, ibidem, p.300. O autor apresenta esta idéia tomando por base a reflexão de Clodovis Boff desenvolvida em “Teoria do método teológico”.

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há uma continuidade de conteúdo, eles se diferenciam no que diz respeito ao método.

Enquanto o discurso teológico procura ser um discurso sistemático, metódico e

disciplinado, o discurso religioso, por sua vez, caracteriza-se por uma relação mais

direta com a experiência vivida. O que não significa dizer que a teologia não tenha

uma incidência sobre a prática, mas sim que ela, a teologia, é imediatamente teórica e

mediatamente prática.68

Assim, a epistemologia da teologia caracteriza-se por um discurso

sistemático, metódico e disciplinado. Algo que de certa maneira se aproxima da

perspectiva apresentada, que afirma ser o discurso teológico um discurso conceitual,

uma explicitação do significado da linguagem simbólica.

No caso da Teologia cristã, a mediação hermenêutica exige um constante

trabalho de interpretação criativa das Escrituras, uma vez que o sentido dos textos

fundadores encontram-se inseridos num contexto determinado que exige decifração e

reapropriação do sentido originário da mensagem cristã no aqui e agora das

comunidades que têm sua vida articulada em torno de tal mensagem, ou como diria

Paul Ricoeur, “a decifração mesma da vida no espelho do texto”. Esta operação

hermenêutica de um discurso sistemático, metódico e disciplinado que realiza a

reapropriação do sentido originário dos textos da Escritura é o que “caracteriza uma

teologia crítica, conferindo-lhe cientificidade quanto ao método”.69

Esta postura da Teologia cristã, que vale tanto para a reinterpretação das

Escrituras como dos enunciados dogmáticos, já é em si mesma uma postura crítica

face à busca por verdades absolutas em uma determinada religião ou sistema de

crença, uma vez que a verdade não existe fora da linguagem e sendo uma atividade

humana será sempre limitada, exigindo um constante trabalho de reelaboração das

verdades de fé. Não há teólogo ou cientista da religião que possa apreender todas as

religiões a partir de um conceito de verdade absoluta à qual, ele pesquisador, tenha

pleno acesso e da qual tenha pleno conhecimento. Toda verdade, na medida em que

68 Idem, ibidem, p.301. 69 Idem, ibidem, p.303.

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se expressa na linguagem humana é sempre relativa ao contexto histórico no qual ela

foi gerada.

Por isso, entre a teologia e as Ciências da Religião não se deve realizar uma

rígida separação e tampouco uma ingênua identificação. E, neste caso, a perspectiva

mais plausível é da cooperação crítica entre a teologia e as demais formas de saber

que se dedicam ao estudo da religião, e isto a fim de se evitar tanto a desqualificação

das religiões não–cristãs como degradação da suposta verdadeira religião (o

cristianismo) quanto a rejeição do aporte teológico desde o enfoque reducionista do

positivismo iluminista.

Neste sentido, um dos problemas da teologia no contexto das Ciências da

Religião é justamente o diálogo inter–religioso, devido ao pluralismo religioso que

caracteriza de modo especial a nossa cultura. Por isso, para alguns pesquisadores, a

especificidade da teologia no campo das Ciências da Religião constitui-se em ser

uma Teologia das religiões, pois esta perspectiva teológica seria aquela que mais se

aproxima do horizonte das Ciências da Religião.70 Provavelmente, a grande

contribuição deste tipo de aproximação entre teologia e Ciências da Religião consista

no respeito pela riqueza e pela originalidade da outra tradição religiosa, apresentado

como pré–requisito essencial para o bom desenvolvimento da Teologia das religiões:

“ Ao buscar compreender a significação teológica do pluralismo religioso, inserindo-o no desígnio misterioso de Deus, o teólogo das religiões é convocado à problematização implicada no paradoxo mesmo do diálogo inter–religioso: a partir do interior de seu engajamento como uma verdade religiosa particular, ele é convidado a encontrar o outro em sua diferença, a respeitar a singularidade de sua fé, a reconhecer o direito de sua pretensão à verdade, assim como se enriquecer com as virtualidades inéditas que animam a sua experiência existencial.”71

Entretanto, nem todos são partidários do projeto de uma Teologia das

Religiões, certamente aberta, mas finalmente recuperadora. Afinal, “um tal projeto

seguramente corre o risco de esquecer que a teologia, porque é reflexiva, está

70 Idem, ibidem, p.314-316. 71 Idem, ibidem, p.315.

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sempre ligada a uma tradição determinada, o que não quer dizer necessariamente

que ela sancione o particularismo.”72 Nesta linha de raciocínio, um dos papéis da

hermenêutica teológica (cristã) seria o de respeitar a verdade das outras religiões,

pois o Cristianismo contém uma verdade religiosa particular, situada na história e

veiculada pela linguagem humana, sempre limitada pelo espaço e pelo tempo. Limite

que, paradoxalmente, não significa restrição, fraqueza ou empobrecimento, mas sim

riqueza aberta à interpretação. O empreendimento da teologia se configura, pois,

como uma releitura dos enunciados da própria fé a partir também da riqueza e da

originalidade da tradição de outras religiões.

Este é um pré–requisito essencial da chamada Teologia das religiões a ser

considerado no contexto cristão, ao menos católico.73 Todavia, este projeto de uma

Teologia das religiões, embora contenha uma grande abertura face às outras

religiões, possui o risco de reduzir o trabalho da teologia a responder aos desafios

impostos pelo diálogo inter–religioso, algo que nem sempre se configura num

problema, num desafio, para os discursos religiosos de raiz não–cristã.

c. Religião e religiões.

Diversos autores evidenciam o fato de a religião não poder ser entendida

somente como um valor social a ser assimilado pelo indivíduo, mas deve também ser

compreendida como afirmação cultural feita por este mesmo indivíduo. A religião,

neste sentido, possui o aspecto objetivo (social) e o subjetivo (cultural).74

A discussão sobre o papel da teologia no estudo acadêmico da religião não

pode prescindir de uma perspectiva histórica, que nos mostra que religião é um termo

elaborado pelo Ocidente no interior de uma cultura profundamente influenciada pelo

72 Pierre GISEL . La théologie face aux sciences religieuses, p.10. 73 Sobre este assunto, ver a seguinte obra de Faustino Teixeira: “Teologia das religiões. Uma visão panorâmica.” 74 Ver por exemplo: Afrânio de ANDRADE. Ciência da Religião, p.87-104; Márcio LARA. A(s) Ciência(s) da Religião(ões) no alvorecer de um novo paradigma, p.176-181.

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Cristianismo, em decorrência das sistematizações teóricas e dos conflitos ideológicos

que marcaram um longo processo de elaboração cultural. 75 Nesta elaboração do

conceito religião, a teologia adota uma forma hierárquica a fim de distinguir as

práticas eclesiais do Cristianismo de outras práticas religiosas, ou seja, distinguir

entre a verdadeira e a falsa religião, ou ainda, entre o monoteísmo cristão e outras

formas de religiosidade, ditas pagãs.

Talvez não seja exagero de nossa parte dizer que a teologia teve um papel

fundamental neste processo, uma vez que ela forneceu a gramática da linguagem que

ajudou a dizer a Cultura ocidental, mais especificamente uma certa visão de mundo,

de Deus e das experiências humanas. A religião é um convite à interpretação, pois,

na linguagem religiosa, símbolos e metáforas se entrelaçam como fios de uma trama

que tecem o texto de uma cultura a partir de um contexto histórico e de uma tradição

determinada.76 Convite à interpretação feito a distintos pontos de vista, pois “a

religião acompanha a dinâmica e as demandas da vida, vida que não se deixa

interpretar, acolher, esgotar por uma versão somente do fenômeno religioso.”77

Isto porque o fenômeno religioso é algo complexo e suscetível a diferentes

formas de apreciação. Assim, as Ciências da religião, cada uma a seu modo, têm o

fenômeno religioso por um objeto próprio, procurando ver este fenômeno fora de

doutrinas fixadas, de mensagens proclamadas e da intenção dos autores. A teologia

deve fazer o mesmo, na medida em que se dá conta que suas doutrinas não dizem a

última palavra sobre a verdade. Além disso, tanto a teologia como as outras formas

de saber tomam o fenômeno religioso por uma particularidade dada, histórica,

inscrita numa cultura e numa sociedade, trabalhando desta maneira com o positivo e

o empírico da religião.78

O fenômeno religioso se inscreve (se manifesta) numa religião ou em várias

religiões, nas quais tal fenômeno toma forma, se estrutura, se cristaliza ou ainda se

75 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Teologia e estudo da religião , p.151-155. Ver também Pierre GISEL. La théologie face aux sciences religieuses, p.21. 76 Rui JOSGRILBERG. Ciências da Religião e/ou teologia: uma questão epistemológica, p.17. 77 Antonio Carlos de Melo MAGALHÃES . Representações do bem e do mal em perspectiva teológico–literária, p.91. 78 Pierre GISEL . La théologie face aux sciences religieuses, p.27-28.

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institucionaliza. Entretanto, a religião assim entendida, na medida em que toma para

si dados religiosos, o faz sem esgotá- los, ou seja, o fenômeno religioso não se exaure

numa determinada forma de religião. Além do que, é importante dizer que toda

religião se institucionaliza em torno de motivos trans-religiosos. Exemplo disto são o

ritual, o simbólico, a mediação, a origem, a pertença ao cosmos, a magia, a lei e a

transgressão, o interdito, o dom, o sacrifício, etc. 79

Estes motivos nos reenviam, apesar de sua textura religiosa, a motivos mais

globalmente humanos. Todas as religiões tomam estes motivos e os inscrevem nas

organizações que lhe são próprias em função de registros comuns, o que equivale

dizer que as religiões não se constituem somente como um conjunto organizado dos

fenômenos religiosos, mas se estruturam também a partir de uma relação

determinada com o cultural e o social. Deus, a religião e o fenômeno religioso não

são assuntos privados da teologia. Em outras palavras,

Tanto o religioso quanto a questão de Deus (da transcendência, do sagrado, do absoluto ou do último) pertencem, com efeito, a todos e são suscetíveis de se encontrar em todo lugar: o religioso e a questão de Deus ou dos deuses (de sua presença ou de suas ausências, de sua vida ou sua morte, de seus substitutos, etc.) estão inscritos no coração do mundo, humano, cultural e social. 80

Um outro aspecto importante a ser considerado diz respeito à

institucionalização do fenômeno religioso, um dado carregado de contradições e

ambivalências, bem como de riquezas, com suas regras de emergência e

funcionamento próprios. O fenômeno religioso se constitui a partir de aspectos

antropológicos que podem dar corpo a formas institucionais, bem como a formas

marginais. Por isso, a crise da institucionalização do fenômeno religioso se insere no

horizonte mais amplo da crise da instituição na cultura moderna:

Todo ponto de vista cristão está, aqui e alhures, condicionado e determinado por uma situação social e cultural onde ele toma forma e corpo: onde ele se transforma numa instituição. Não há uma ‘essência’

79 Idem, ibidem, p.43. 80 Idem, ibidem, p.40.

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do cristianismo que seja como tal isolável; não há igualmente ensinamento social cristão autônomo e auto–centrado.81

A Religião cristã é diversa e culturalmente sincrética desde a sua origem,

inclusive sua fonte escriturária: a Bíblia. Por isso, a identidade é necessariamente

reconstruída: ela passa pela memória e pela herança (tradição). O Cristianismo, longe

de ser uma mensagem circunscrita, configura-se numa maneira de refletir sobre

questões em torno de Deus, do ser humano, do mundo, uma maneira sempre

encarnada, social e culturalmente, cujas expressões são sempre cambiáveis. O

horizonte da Religião cristã é uma interrogação (questionamento, ponto de vista)

sobre a relação do ser humano com Deus, consigo mesmo e com o mundo.

E ao se dizer que a Religião cristã é sincrética como o são os seus textos de

referência, afirma-se também que a verdade de uma religião não se reduz às suas

representações, sobretudo nas tradições religiosas que atravessam diversas culturas.

A verdade é necessariamente plural e a diferença instrutiva, sendo que nenhuma

tradição será capaz de esgotar a verdade religiosa. Assim, um dos grandes perigos

que espreita a reflexão em torno da verdade presente em determinada religião

histórica está em associar a verdade religiosa a uma determinada instituição.

Não há aqui um olhar de suspeita ou menosprezo para com a instituição. Ao

menos para aqueles que vêem a institucionalização do religioso como o lugar próprio

do teólogo. Uma institucionalização que requer seu trabalho e à qual ele ajuda a dar

forma e a renovar constantemente, sendo o valor da instituição a possibilidade que

ela traz de acrescentar algo à constituição do sujeito e à estruturação do mundo.

Neste sentido,

Há teologia quando uma religião se insere numa história diferenciada, numa transculturação, e quando a necessária descontinuidade de formas e de representações exige um trabalho próprio para dizer uma identidade em outro nível – um segundo nível conquistado via problematização e diferenciação – e quando se faz necessário assegurar uma regulamentação no seio do processo de transformação, não exatamente de repetição.82

81 Idem, ibidem, p.40. 82 Idem, ibidem, p.79.

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Um ponto a ser considerado na relação entre a experiência religiosa e a sua

institucionalização diz respeito à mística. Alguns acreditam que a mística contém

algo de verdade do fenômeno religioso, mas situa-se para além das representações e

das doutrinas. A mística se encontra em todas as tradições como um dado trans-

religioso que se diz em tensão ou oposição com a instituição, seus ritos e seus

símbolos. O apelo à mística acontece num momento em que no Ocidente assistimos a

uma crise da instituição, de representações tradicionais, de imagens (paraíso, inferno,

sacrifício,..), de crenças (salvação, ressurreição,...), de doutrina ou de elementos

sacramentais e rituais: “Nosso tempo é seguramente seduzido pela mística como

mais amplamente pelo religioso livre e fora da instituição.”83 Todavia, ao contrário

do que frequentemente se acredita, a mística nem sempre se desenvolveu à margem

da instituição. No contexto cristão, a ruptura entre a mística e a instituição data

provavelmente do séc. XVI.

Seja como for, a mística é vista por alguns como aquela experiência que pode

nos ajudar na releitura de nossas tradições, ocupando um lugar de grande relevância

na discussão moderna sobre o estudo da religião. Isto na medida em que esta

experiência está associada ao gesto de distanc iamento, de crítica e de interiorização

pessoal. Todavia, a mística deve ser rearticulada numa eclesiologia de sentido mais

amplo, não cerceada pelo magistério eclesial, configurando-se numa crítica à própria

instituição, não contra ela mas desde o seu interior. E na mística, uma série de temas

é perpassada por uma certa tensão: transcendência e imanência, ritualidade efetiva e

símbolos, transgressão e normatização, ruptura e verdade, interioridade e prática,

destino e liberdade, passividade e atividade.

A maior parte dos estudos que constituem o campo de pesquisa deste capítulo

de nosso trabalho aborda a questão do lugar da teologia no estudo da religião como

um assunto secundário, marginal. Alguns estudos falam da possibilidade de a

teologia estruturar-se como ciência da religião, e outros esboçam alguns traços do

que eventualmente poderia fazer da teologia uma ciência que estuda a religião com

direito à cidadania acadêmica.

83 Idem, ibidem, p.106.

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Todavia, estes traços precisam ser melhor delineados e entrelaçados, a fim de

que a pertinência da teologia no estudo da religião ganhe uma maior visibilidade.

Com o intuito de avançar na trajetória de nossa pesquisa, apresentamos a seguir

algumas conclusões remissivas que são desdobramentos importantes para a

continuação da nossa reflexão em torno do trabalho da hermenêutica teológica no

estudo da religião.

2. NOVAS PERSPECTIVAS NA DISCUSSÃO DO PROBLEMA.

a. Qual perspectiva teológica?

A pergunta pela perspectiva a ser considerada pela teologia em seu diálogo

com as Ciências da Religião deve considerar inicialmente que, qualquer que seja a

perspectiva adotada, ela é sempre uma delimitação, pois ao mesmo tempo em que

nos permite ver algo, ela nos impede de enxergar outras realidades. Ou ainda, o lugar

desde onde olhamos a realidade é um misto de possibilidade e impedimentos. Neste

sentido, a teologia, ao tomar consciência do seu lugar e do espaço das outras ciências

no estudo da religião, deve conscientizar-se de que todas as ciências juntas não

esgotam o real.

Esta reflexão supõe uma questão anterior: qual o lugar da teologia na

universidade? E esta pergunta não diz respeito somente a uma acomodação espacial,

a sua relevância primeira está na perspectiva epistemológica para a qual ela aponta,

ou seja, a pergunta pela estrutura do saber teológico, e também no otimismo que ela

possui: há lugar para a teologia na universidade. Contudo, este lugar é duplamente

problemático. Primeiro, porque a teologia não pode esquivar-se dos questionamentos

que enfrenta o atual modelo de universidade que temos no Brasil. Segundo, porque a

pergunta pelo lugar físico supõe a pergunta por uma mudança de paradigma

epistemológico: que teologia? Que maneira de fazer teologia na universidade no

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estudo da religião? Esta indagação pelo lócus teológico na universidade supõe de

antemão que saibamos o que significa hoje fazer teologia. Todavia, nem o lugar e

nem a função da teologia na universidade nos parecem evidentes devido à mutação

cultural que conhecemos nos últimos tempos, mutação que implica em certos

deslocamentos sofridos pelo Cristianismo na cultura ocidental.

A resposta à indagação sobre o papel da teologia no estudo acadêmico da

religião não é tão clara na medida em que alguns pesquisadores, no afã de melhor

definir o estatuto epistemológico das Ciências da Religião, vêem a influência da

teologia como uma sombra ameaçadora a pairar sobre a reestruturação dos

programas de Ciências da Religião no Brasil.

Para alguns, este sombreamento teológico é de tal maneira problemático que

desestimulou a convocação de posteriores encontros da ANPTER (Associação

Nacional de Pós–graduação em Teologia e Ciências da Religião), que por ocasião de

sua fundação iniciara uma discussão em torno do estatuto epistemológico das

Ciências da Religião. Se, por um lado, a teologia, direta ou indiretamente, encontra-

se na origem das Ciências da Religião no Brasil, por outro lado a sua presença entre

tais ciências já não é mais tão óbvia e, às vezes, até mesmo indesejada.

Entretanto, a desqualificação e mesmo a qualificação da teologia como uma

forma de saber que se dedica ao estudo da religião poderia ser vítima de um juízo

apressado, diante de conceitos complexos como ciência, religião e teologia, cuja

relação entre si é um campo minado por “pré–conceitos” e lugares comuns, tais

como: considerar a base empírica como o fundamento último de toda e qualquer

atividade científica, tomar a teologia somente por defensora da ortodoxia da fé

eclesial e em última análise da fé cristã, bem como ver a religião unicamente sob a

perspectiva cristã, fazendo do Cristianismo a única religião verdadeira. E muitos

pesquisadores atribuem justamente à não precisão terminológica a origem de vários

mal-entendidos que pairam sobre o exercício acadêmico da teologia.

Alguns estudiosos atribuem muito dos preconceitos em relação à teologia no

âmbito acadêmico ao desconhecimento do que ela seja e frequentemente se lhe

atribuem definições que não fazem jus a toda uma tradição teológica mais recente.

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Como conseqüência, encontramos, por vezes, a metamorfose do exercício teológico

em algo que não merece mais, a nosso ver, o nome de teologia, não havendo mais

diferença entre o teólogo e outros profissionais das ciências humanas que se dedicam

ao estudo da religião.

Em termos históricos, a teologia, que antes fora a rainha das ciências, com o

passar do tempo é banida do mundo acadêmico não confessional ou ao menos passa

a ser vista com desprezo. Cativa da estrutura eclesiástica, não raramente a teologia é

vista como teologia dogmática, a qual estaria preocupada acima de tudo com a

ortodoxia da fé de uma determinada comunidade religiosa e, no contexto brasileiro,

em defender a religião tida como única, verdadeira e autêntica: o Cristianismo.

Neste sentido, para a mentalidade moderna, a teologia cristã não teria

competência acadêmica para estudar a religião, a não ser que ela se restringisse ao

ambiente estritamente religioso, uma vez que a teologia possui uma linguagem

acentuadamente “eclesiocêntrica”, num mundo para o qual a Igreja cristã há muito

deixou de ser uma instituição hegemônica, legisladora do comportamento social.

Por isso, quando se critica a teologia, critica-se em última análise a Teologia

cristã, devido à sua maior visibilidade no contexto brasileiro. Esta identificação entre

teologia e Teologia cristã, como vimos acima, vem a ser um dos grandes obstáculos à

inclusão do saber teológico entre as ciências que se dedicam ao estudo da religião.

Em parte, porque a Religião cristã tende a olhar para as outras religiões desde a

perspectiva do verdadeiro e falso, fato este que tiraria do discurso teológico a

competência acadêmica para discorrer sobre a religião fora de um ambiente

estritamente confessional, cristão.

Tão problemático quanto este sentimento de superioridade que marcou

durantes séculos a história do Cristianismo e conseqüentemente a própria Teologia

cristã, encontramos no extremo oposto o complexo de inferioridade que atinge

alguns pesquisadores ao quererem tratar com outros saberes que negam a

razoabilidade do saber teológico, ou no mínimo o colocam sob suspeita. Este seria o

caso do discurso teológico que entra pela porta dos fundos do cenário do estudo da

religião, a partir dos conceitos desenvolvidos pelas demais ciências: questões

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econômicas, traumas psicológicos, manipulação política, misérias sociais, funções

sociais, etc.

A distinção entre uma teologia dogmática e uma teologia que se dedica ao

estudo da religião aparece, pois, a nosso ver, como um caminho a seguir na tarefa de

melhor compreender o papel da teologia no diálogo com as Ciências da Religião. Em

outras palavras, se o postulado hermenêutico for algo constitutivo da elaboração de

discursos plausíveis e razoáveis, então a teologia pode reivindicar a cidadania

acadêmica.

Assumir a sua tarefa como um empreendimento hermenêutico talvez possa

ser aquilo que garanta à teologia a sua participação na intelecção da cultura religiosa

no contexto brasileiro. Hermenêutica entendida aqui não apenas como técnica de

interpretação de textos, mas também como a arte da interpretação de símbolos e

como o contínuo esforço de traduzir verdades antigas em linguagem acessível aos

crentes e cientistas de hoje. Entretanto, se a base empírica for o único critério para

conferir plausibilidade e razoabilidade ao discurso acadêmico, então a teologia estará

desqualificada na sua pretensão de possuir um discurso com pertinência pública.

Um outro problema que se apresenta à teologia é que, para alguns, ela tenta

sair do seu confinamento eclesiástico pelo viés do estudo científico do fenômeno

religioso. Por isso, certos programas de estudo da religião no Brasil são acusados de

serem na verdade cursos de teologia travestidos de Ciências da Religião. Esta

camuflagem seria supostamente corroborada pela formação teológica da maior parte

do corpo docente e igualmente pelo conteúdo das disciplinas e áreas de concentração

com acentuado destaque concedido à Teologia cristã.

Entretanto, uma questão mais séria se impõe à teologia, visto que o problema

da teologia não é somente o de seu confinamento eclesiástico, mas diz respeito

igualmente a uma herança que coloca as ciências sob o juízo da teologia dentro da

Igreja. Hoje, a teologia é convidada a justificar a pertinência do saber teológico ao

lado de outros saberes que igualmente exigem a sua cidadania acadêmica. A teologia

é chamada a ser um saber ao lado de outros saberes e não mais “a” ciência diante da

qual todas as outras têm que se justificar.

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O nosso atual contexto universitário ainda é marcado por uma mentalidade de

corte positivista que rejeita o estudo da religião ou o olha com desconfiança,

sobretudo quando este pretende ser levado a termo pela teologia, que tem a

cientificidade do seu método colocada sob suspeita. O iluminismo filosófico vê a

teologia como inimiga na medida em que ela é apreendida como guardiã de velhos

dogmas, cuja autoridade remonta única e exclusivamente a argumentos fundados

sobre a tradição e a autoridade eclesiástica. A religião, e por consequência a teologia,

são acusadas de serem uma representação ilusória, inscrita numa situação agônica e

com a finalidade de dominar e disciplinar amplamente a consciência das pessoas, ou

seja, o modo de ver a realidade.

Para esta mentalidade, o lugar da religião seria apenas o âmbito do privado,

das igrejas e das instituições religiosas. Todavia, esta perspectiva positivista começa

a ceder lugar a uma outra mais tolerante em relação ao estudo da religião. E isto de

certa maneira graças à notoriedade que a religião tem tido em certos meios

formadores de opinião, bem como graças à contribuição de estudos com reconhecido

valor científico.

A teologia, como intérprete qualificada da religião, ainda tem um longo

caminho a percorrer até conquistar uma sólida cidadania acadêmica. Afinal, a ligação

congênita entre a teologia e o estudo da religião é cada vez mais questionada, uma

vez que este estudo é igualmente reivindicado por outras formas de saber que não

raramente lançam um olhar de suspeita sobre a reflexão teológica. Não porque o

pensamento moderno rejeite Deus e a religião como objeto de estudo, como assunto

da ciência, mas sim porque, para a chamada ciência moderna, Deus e a religião não

são mais assuntos teológicos propriamente ditos e sim antropológicos, ou seja, Deus

e tudo que a ele se relacione interessam à ciência na medida em que são expressões

culturais do ser humano: alienação, doença, projeção, degeneração, fuga da

realidade, fanatismo, busca de sentido, etc. Contudo, vale a pena lembrar que há todo

um debate em torno deste tema e que existem opiniões divergentes sobre este

assunto.

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Uma das conseqüências deste antropocentrismo moderno é o papel de

coadjuvante ao qual é relegada a teologia, uma vez que o método teológico

supostamente estaria contaminado por dimensões religiosas que comprometem a

objetividade e a neutralidade científicas, e também porque o exercício da teologia se

afasta da base empírica, preconizada pela ciência moderna. O desafio que se impõe

aqui ao exercício da teologia é justamente a superação da compreensão da teologia

como intérprete de uma realidade já definida por outras formas de saber. O que no

caso da teologia equivale a superar a inadequação ou desqualificação do seu método

de pesquisa.

A busca por um lugar para a teologia na universidade é na verdade a busca

por uma racionalidade distinta da técnico–científica, que caracteriza as ciências

modernas. Trata-se de saber se a racionalidade inerente à fé constitui ou não um

saber distinto dos outros saberes. A isto podemos acrescentar ainda outra questão: se

a presença da teologia nos diversos programas de Ciências da Religião no Brasil

significa um estratagema para que a teologia ganhe cidadania acadêmica ou se

estamos diante de uma metamorfose na maneira de fazer teologia. Que influência a

teologia exerce ainda hoje na estruturação de tais programas?

Neste sentido, a teologia deve recuperar a sua racionalidade própria em meio

às racionalidades regionalizadas do pensamento moderno. Ela é chamada a mostrar

que é um saber construído em diálogo com o sentido oferecido pela fé, mas a partir

de diferentes perspectivas. Um saber, portanto, que não é redutível a outros saberes,

ainda que não seja necessariamente oposto a eles. Além disso, a teologia não pode

contentar-se com o que as outras formas de saber dizem dela, como também não

deve transformar-se em pura retórica da ideologia eclesiástica vigente.

Uma outra face deste problema diz respeito ao conceito mesmo de revelação,

tão importante para o exercício teológico, na medida em que se critica a noção de

revelação definida como manifestação objetiva de Deus na história. Nesta

perspectiva, tende-se a confundir a verdade da revelação com a objetividade da letra

na Escritura, e a tradição acaba por confundir-se com suas expressões, esquecendo-se

que tais expressões são relativas porque humanas e limitadas porque históricas,

carecendo por isso de uma hermenêutica. O que está em jogo aqui é a não aceitação

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da noção de revelação como uma realidade transcendental definida a priori e que se

impõe a qualquer realidade, sem nenhum tipo de interpretação.

Na perspectiva das ciências modernas, a esta face da inadequação científica

da teologia podemos acrescentar ainda a inadequação oriunda do modo narrativo de

discurso que lhe caracteriza, uma vez que tal narratividade encontra-se contaminada

pela imaginação, pelo recurso a símbolos e metáforas, e pela experiência religiosa.

Esta suposta contaminação, como condição prévia e sustento da narratividade, fazem

do discurso teológico algo que não se esgota na visualização e sistematização, tão

caras à ciência moderna.

Na Teologia cristã, por exemplo, dizer Deus é anunciar uma ausência, ou

seja, no dizer não está totalmente compreendido o dito e isto faz com que o discurso

teológico não se enquadre nos moldes epistemológicos das ciências modernas.

Entretanto, aceitar esta inadequação epistemológica e querer adequar a teologia aos

moldes das ciências modernas, a fim de obter status acadêmico, tem por pressuposto

a idéia de que o conhecimento científico baseado no empirismo é uma forma de

conhecimento superior às outras formas de saber. No caso da Tradição cristã, não

podemos nos esquecer que a forma narrativa é uma das maneiras de a teologia

articular seu discurso.

É notório que o pensamento moderno força a entrada do empirismo, da

objetividade e da neutralidade tomados por critérios fundamentais do processo de

construção do conhecimento. Um dos postulados das ciências modernas é, pois, a

restrição aos órgãos dos sentidos como exigência a qualquer afirmação que queira ter

valor de verdade no espaço público.

Diante deste postulado, podemos colocar as seguintes questões: o pesquisador

em Ciências da Religião tem necessariamente que supor a experiência religiosa como

algo arcaico, pré–moderno, a fim de afirmar a cientificidade da sua pesquisa, tendo

que, para isso, manter-se no limite do empir icamente verificável? Como ter em conta

a experiência religiosa na investigação científica e ao mesmo tempo garantir a

cientificidade da pesquisa no estudo da religião? Haveria, pois, uma

incompatibilidade congênita entre a experiência religiosa ou a crença do pesquisador

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e a busca metodológica profana da modernidade? Seria a condição de não–crente

uma postura neutra no tocante ao estudo da religião?

A partir do desdobramento de uma resposta afirmativa a esta última

indagação, podemos nos perguntar, ainda, a título de exemplo, se um membro do

povo guarani para vir a ser um antropólogo dedicado ao estudo da sua própria cultura

deve necessariamente eliminar de si mesmo a sua “substância guarani”. Na

perspectiva das ciências modernas, ele seria no mínimo orientado a não incorrer em

erros metodológicos devido às suas paixões étnicas. Entretanto, não teriam incorrido

em tal desvio ou erro alguns cientistas, que mesmo tomando por base o empirismo,

deixaram-se levar por paixões que se encontram presentes em muitas análises

sociais? O cientista “a–religioso” não estaria também ele movido por convicções

pessoais, por crenças, e mesmo por uma fé, em sua pesquisa científica?84 Numa

tentativa de resposta, ainda parcial, digamos concisamente que a crença ou descrença

de um pesquisador em si mesma não nos parece ser aquilo que outorga maior ou

menor grau de cientificidade à sua pesquisa. Ser crente ou não mostra apenas o lugar

desde onde olha e interpreta a realidade. Nosso caso específico, a religião.

Outro aspecto relevante para a nossa pesquisa é a revisão conceitual pela qual

passa a própria ciência, na medida em que cresce justamente a suspeita sobre a

centralidade da mediação empírica, do dogma da objetividade e da pressuposta

neutralidade na pesquisa científica. A partir desta suspeita, acentua-se cada vez mais

o aspecto hermenêutico como tarefa da pesquisa científica, ou seja, a necessidade de

refletir sobre o ato mesmo de pesquisar. Os interesses pessoais, os objetivos formais

e existenciais são aspectos a serem considerados na pesquisa científica desde o ponto

de vista hermenêutico. Tudo indica que a noção de ciência não pode ficar restrita ao

âmbito das ciências empíricas, mas deve também incluir outras formas de saber,

dentre as quais a teologia.

Todavia, a crítica feita à modernidade, aos limites do saber científico

moderno, mais do que um alívio para o teólogo na sua tarefa de intérprete qualificado

84 O termo fé é utilizado aqui no sentido antropológico, isto é, como confiança em pessoas que testemunham uma escala de valores que aceitamos como verdadeiras, sem passar necessariamente pela comprovação empírica, porque atendem às nossas expectativas prévias.

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da religião, na verdade constitui-se num grande desafio, pois o obriga a construir

uma linguagem transgressora que não necessite mais viver às margens de um saber

hegemônico como foi (ou é?!) a ciência moderna arquitetada sobre os alicerces do

empirismo, da neutralidade e da objetividade.

Isto porque o problema da teologia não nos parece estar, a rigor, na sua

“confessionalidade”, mas na maneira como o exercício teológico ao longo da história

articulou a tradição cristã, ou seja, em torno de uma visão muitas vezes autoritária da

revelação normativa que trouxe como consequência, por exemplo, a transformação

do seu sistema de valores em uma moral que possui uma excessiva preocupação em

normatizar a conduta humana em sincronia com a forma de pensar da autoridade

eclesiástica, chegando mesmo a atitudes desumanizadoras.

b. Que religião?

A pergunta pelo lugar da teologia no estudo acadêmico da religião está

intimamente ligada ao conceito de religião. Elaborado pelo Ocidente, algo

demonstrado por vários estudiosos, religião é um termo que deve ser compreendido

dentro do longo processo de elaboração da Cultura ocidental, marcado por

sistematizações teóricas e conflitos ideológicos. Por isso, uma boa compreensão da

evolução do uso do termo religião, e consequentemente dos estudos em Ciências da

Religião, deve atravessar o debate em torno do “eurocentrismo” metodológico e do

“cristianocentrismo” etimológico, uma vez que a definição do termo religião esteve

condicionada às fronteiras da sociedade européia e do Cristianismo. Assim, é no

desenvolvimento da Teologia cristã que cada vez mais a religião se torna um termo

tão especial na compreensão ou incompreensão das alteridades, e isto com profundos

embates e conflitos.

A identificação do termo religião com a religião cristã e o combate que se

instaurou entre o Cristianismo, ou melhor, entre as autoridades eclesiásticas e as

ciências modernas, contribui para o desprezo que tais ciências muitas vezes têm por

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todas as religiões. Os discursos de intelectuais fundamentados num preconceito anti–

religioso advindo da visão negativa que o Iluminismo tinha em relação à religião

atravessou séculos, gerações, identificando geralmente religião a um sistema de

imposição de normas, comportamentos morais, etc.

Hoje, esta forma de ver a religião ainda permanece entre aqueles que se

opõem ao seu estudo de forma científica. O mesmo que se fez com o termo teologia

ao associá-la à teologia dogmática fez-se com o termo religião ao identificá-lo com

uma determinada maneira cristã de dizer a experiência religiosa, causando uma série

de preconceitos no estudo acadêmico da religião.

A religião é um campo investigativo de diversos olhares interpretativos. Neste

sentido, ela torna-se uma provocação à interpretação e as Ciências da Religião

transformam-se em ciências hermenêuticas, cujos diversos pontos de vista são

chamados ao diálogo, a fim de colaborarem com uma melhor compreensão do

fenômeno religioso. E nesta mútua colaboração há de se buscar uma epistemologia

que contemple o aspecto subjetivo dentro da dimensão científica da pesquisa. É

preciso lembrar que a prática religiosa implica na doação de um novo significado às

grandes questões da vida, pois, por trás dos fatos religiosos, estão pessoas concretas,

com sua fé, sua humanidade, enfim sua história.

O fato de a teologia organizar-se em instituições que promovem a

disseminação e o controle do saber e do poder constitui-se também num grave

problema aos olhos de alguns pesquisadores. Freqüentemente a Teologia católica,

por exemplo, interpreta o fenômeno religioso desqualificando as outras religiões

tomando-as por uma degradação da verdadeira religião. Por isso, a teologia não teria

competência acadêmica para estudar a religião fora de um ambiente estritamente

religioso, em parte por ela ser acusada de possuir uma linguagem acentuadamente

“eclesiocêntrica”. Além disso, se considerarmos que a teologia é originalmente

confessional e como tal está ligada a uma religião, igreja ou comunidade religiosa,

em um ambiente universitário imbuído de caráter laico e de recorte positivista, a

confessionalidade acaba por constituir-se num problema, porque o caráter

confessional da teologia é tomado por proselitismo.

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Como já foi mencionado reiteradas vezes, o exercício da teologia foi marcado

pela perspectiva falso–verdadeiro, sendo a verdadeira religião o Cristianismo. Na

medida em que temos um acentuado crescimento do pluralismo religioso, no qual

outras práticas religiosas não–cristãs ganham notoriedade uma vez que se tornam

instâncias capazes de dar sentido à vida, fornecendo a gramática da linguagem

religiosa utilizada para dizer o Sagrado, entender o mundo e as diversas experiências

humanas, o Cristianismo em alguns setores da sociedade perde o seu status de

religião verdadeira ou tem tal posição questionada.

Este pluralismo religioso exigirá dos cientistas da religião a abertura a uma

maior multiplicidade de temas, interesses e perspectivas que se situam para além das

fronteiras do Cristianismo e da própria Teologia cristã. Neste sentido, a

interdisciplinariedade deixa de ser uma intriga entre diversas disciplinas que

procuram se apropriar do objeto religião e assume a noção de uma cooperação entre

diversas disciplinas, que sabem não serem proprietárias exclusivas do objeto que

pesquisam.

Todavia, a discussão epistemológica dentro do contexto das Ciências da

Religião não se reduz à mera discussão em torno da condição interdisciplinar do

estudo da religião, mas da religião como tal. Pois, do contrário, negaríamos à religião

um status epistemológico próprio, nos esqueceríamos que ela possui uma lógica

própria, a qual não é dada de uma vez por todas e que é sempre tirada do contexto no

qual nasce e sobrevive determinada religião. Afinal, a mensagem religiosa é

transmitida através de códigos linguísticos condicionados pela cultura à qual

pertence, embora as regras básicas que estruturam o objeto em questão sejam geradas

a partir da própria religião, e não impostas desde fora dela.

No caso específico da teologia, ela não deve restringir-se à mera descrição de

aspectos centrais da linguagem religiosa (mito, rito, símbolos), necessitando abrir-se

ao horizonte mais amplo da compreensão do potencial que a linguagem religiosa

possui para dar sentido à vida, uma vez que esta linguagem fornece os instrumentos

linguísticos que possibilitam ao religioso significar as suas experiências humanas. A

teologia, uma forma de saber que se dedica ao estudo da religião, há de ser aquela

capaz de dialogar com as diversas religiões e com a experiência religiosa, imbuída de

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um caráter profissional e que busca como qualquer outra forma de saber a idoneidade

metodológica, o rigor científico e a possibilidade comunicativa.

Neste exercício teológico, o empreendimento hermenêutico consistirá em

perscrutar a experiência existencial do ser humano, a fim de aí perceber de que forma

ele enfrenta, por meio da cultura religiosa, o drama da sua contingência. Para tanto,

alguns pesquisadores defendem a importância de espaços autônomos de validação

acadêmica, ou seja, espaços que não estejam sob o controle rígido das igrejas, que a

partir de uma forte herança clerical, estão muito mais preocupadas com critérios da

ortodoxia do que com critérios propriamente científicos no estudo da religião.

Todavia, há de se destacar que no Brasil as Ciências da Religião não surgiram

a partir de um interesse puramente acadêmico ou científico, mas espontaneamente

desde iniciativas eclesiais católicas (PUC-SP e UFJF) e protestantes (UMESP),

ligadas à teologia. Isto, em si mesmo, revela um compromisso implícito com a

maneira de olhar a religião e por si só coloca a pergunta pelo papel da teologia nos

programas de Ciências da Religião.

c. Teologia, ciência e hermenêutica.

Na tentativa de contribuir para uma melhor definição do estatuto

epistemológico das Ciências da Religião, muitas vezes se toma a teologia unicamente

por Teologia cristã, a qual supostamente não estaria preocupada em dialogar com

outros saberes, mas sim em defender a ortodoxia da fé e normatizar a conduta dos

fiéis. Isto, em parte, porque a Teologia cristã seria unitária, exclusivista, intérprete de

uma fé particular e ávida de impor esta fé aos demais, crentes ou não.

Este tipo de crítica não concebe outra forma de teologia que não seja a cristã,

reducionismo que fica evidente ao se afirmar que a teologia nasce com as Escrituras

e tem seu túmulo na vida cristã. A isto podemos acrescentar também o fato de a

teologia ser vista como algo unicamente voltado para os interesses eclesiásticos e que

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portanto não pode ir além das fronteiras da Igreja. A esta identificação podemos

acrescentar a perspectiva de alguns autores que vêem o sistema de referencia lidade,

no caso a Tradição cristã, como um empecilho para a aceitação da teologia como

intérprete qualificada da religião. Mas qual ciência não possui um sistema de

referencialidade desde o qual estrutura o seu agir interpretativo da realidade?

Outro aspecto a ser destacado é a desvinculação da teologia daquelas ciências

que têm o ser humano por objeto de estudo, e a idéia de que a preocupação única da

teologia seja a de formar mão de obra especializada para a estrutura eclesial. Nesta

perspectiva, a teologia, e toda teologia, seria refém de interesses eclesiais, carente de

uma autonomia crítica, devido à vinculação e até mesmo subordinação a determinado

seguimento da fé cristã. Seguindo esta linha de raciocínio, o objeto de estudo da

teologia seria o Deus dos cristãos, uma verdade ontológica, fato este que não garante

cientificidade à reflexão teológica. Em nossa opinião, esta crítica à teologia ou

imposição de limites à sua ação desconhece a possibilidade de a teologia colocar-se

para além das fronteiras da teologia dogmática e do próprio Cristianismo, bem como

não percebe que a antropologia é o lugar de todo fazer teológico, ou seja, o ser

humano na sua relação com o Sagrado.

Esta orientação antropológica abre novas perspectivas no debate em torno da

relação entre teologia e ciência, embora o uso do termo acadêmico no lugar de

científico mereça uma melhor definição a fim de conceber o acadêmico como uma

forma rigorosa de se articular o conhecimento. A discussão em torno do lugar da

teologia na universidade do século XXI não poder prescindir do debate em torno da

epistemologia das ciências.

Por sua vez, a passagem do conceito de teologia dogmática ao de teologia

hermenêutica deve ser melhor explicitado. Não é evidente, por exemplo, qual é o

papel da tradição no empreendimento hermenêutico da teologia vista como intérprete

da linguagem religiosa. Igualmente, torna-se necessário aprofundar a idéia de que a

constituição epistemológica da teologia no estudo da religião está necessariamente

fundamentada na mediação hermenêutica. E, ao se assumir a teologia como

intérprete dos símbolos religiosos, é preciso considerar as consequências que este

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empreendimento hermenêutico tem para a teologia confessional cristã no que diz

respeito à cristologia, à eclesiologia e ao conceito de revelação

No que concerne ao uso do termo ciência, quando se fala da necessidade de a

teologia assumir a tarefa de uma linguagem transgressora capaz de corroer a moldura

do paradigma científico moderno dominante, fundamentado na neutralidade, na

objetividade e no empirismo, se reivindica uma nova visão de ciência para que a

teologia possa ganhar status acadêmico sem, contudo, transformar-se naquilo que ela

não é. Por isso, o discurso teológico sobre a religião deve ser entendido como um

discurso transgressivo a margear os saberes dominantes, e isto a partir da própria

modernidade, que de um lado se transformou numa crítica às representações

religiosas, mas que de outro lado tornou possível a reconstrução de um discurso

teológico de validade pública.

Todavia, esta face pública da teologia requer a explicitação de um conceito de

ciência que a ajude a reconstruir um discurso capaz de reivindicar para si a cidadania

acadêmica, algo delineado na afirmação de que a teologia deve considerar saberes

locais incorporados em mitos, ritos e práticas religiosas, aos quais podemos

acrescentar os símbolos que ajudam a articular tais saberes locais.

O percurso que realizamos pela contribuição de diversos autores no que diz

respeito à discussão acerca do exercício da teologia no estudo da religião mostrou-se

em si mesmo uma atitude hermenêutica, pois apresentamos, desde uma perspectiva

particular, aqueles aspectos que vêm ao encontro das nossas expectativas. Todavia,

temos consciência da impossibilidade de aprofundar todos estes aspectos, embora

permaneçam no horizonte de nossa reflexão.

A discussão de cunho mais epistemológico entre a teologia e as ciências, algo

anunciado por ocasião da delimitação do problema, não receberá a devida atenção ao

longo da pesquisa, apesar de toda a relevância que cabe a este assunto. Daí a

necessidade de se aprofundar o diálogo entre o discurso teológico e o discurso das

demais formas de saber no horizonte do estudo da religião, a partir da estrutura

hermenêutica inerente a todo e qualquer discurso de pretensão científica, acadêmica.

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Limitado por interesses pessoais que se traduzem no objetivo desta pesquisa,

a continuidade da nossa reflexão será construída em torno de dois eixos principais: a

orientação antropológica na teologia e a sua dimensão hermenêutica. Neste sentido,

este trabalho ficará restrito às fronteiras do saber teológico, ou seja, à construção de

um discurso teológico que tenha a possibilidade de dialogar com outras formas de

saber no contexto universitário. Em outras palavras, a partir da discussão

epistemológica, apresentada nesta primeira parte, nos deixaremos guiar pela busca de

uma melhor compreensão do discurso teológico em si mesmo. Um discurso que tem,

hoje, na intelecção do fenômeno religioso não só um desafio, mas também um ponto

fundamental para a construção de sua estrutura epistemológica.

O passo seguinte, pois, nos conduz a dois projetos de teologia que marcaram

profundamente a prática teológica, um no contexto protestante, inicialmente europeu,

e outro no ambiente católico, notadamente no continente latino-americano.

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C. DOIS PROJETOS DE TEOLOGIA: FRIEDRICH SCHLEIERMACHER E JUAN LUIS SEGUNDO.

1. FRIEDRICH SCHLEIERMACHER: A TEOLOGIA COMO FILHA DA RELIGIÃO.

a. Os fundamentos de um projeto.

Friedrich Schleiermacher (1768-1834) nasceu em Breslau, filho de um

capelão militar. Ele desenvolveu sua reflexão teológica no contexto do surgimento

do romantismo, o qual se caracteriza como uma reação ao predomínio das regras

clássicas na literatura e na arte, bem como por ser uma oposição à aridez do

intelectualismo racionalista do século XVIII. No romantismo temos um “retorno

apaixonado aos instintos naturais, à vida, à liberdade, ao gosto individual, à

espontaneidade da imaginação criativa.”85 A teologia de Schleiermacher possui o

caráter de defesa da experiência frente às ameaças do Iluminismo, opondo-se

veementemente à redução da religião ao aspecto da razão natural. Por isso, ele falou

da religião como intuição e sentimento de dependência absoluta de Deus.

Concomitantemente, no seu projeto teológico a religião tornou-se independente da

metafísica e da moral. 86

A obra teológica de Schleiermacher procura responder a duas perguntas

fundamentais: o que é religião? O que vem a ser o Cristianismo? Assuntos tratados

respectivamente nas seguintes obras: “Sobre a religião, discurso a seus

menosprezadores eruditos” (1799)87 e “A fé cristã, sistematicamente expressa

segundo os princípios da Igreja evangélica” (1821). Em 1800, ele escreveu uma

85 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.43. 86 Mauro Alberto SCHWALM. Schleiermacher e os fundamentos da teologia prática, p.12. 87 Em 1798, Schleiermacher começou a trabalhar nesta sua obra, concluindo-a na primavera de 1799, sendo publicada anonimamente. Em 1806, ele publica uma segunda edição, mas desta vez firma seu nome. Esta obra teológica de Schleiermacher é uma discussão apaixonada acerca da religião.

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obra sobre a ética, denominada “Monologen ou Solilóquios”, na qual defende que

“cada pessoa deve crescer de tal modo que chegue a ser uma representação

individual e irrepreensível da humanidade.”88 No ano de 1814, Schleiermarcher foi

eleito secretário da seção de filologia e história da academia de Berlin,

permanecendo neste cargo até a sua morte, em 1834.

A princípio, a aproximação que fazemos do pensamento teológico de

Schleiermacher pode parecer algo estranho se levarmos em conta a distância secular

que nos separa deste teólogo protestante. Todavia, a atualidade de seu pensamento se

mostra algo fecundo para a pesquisa em torno da atual relevância do estudo teológico

da religião. Em parte, porque o método teológico de Schleiermacher tem como pano

de fundo o diálogo com pessoas eruditas, acadêmicos ou não, que estavam imbuídas

do espírito iluminista e que, a partir desta postura, menosprezavam a religião e

consequentemente desdenhavam da tarefa teológica. A definição de religião proposta

por Schleiermacher está profundamente arraigada na natureza humana e encontra-se

intimamente ligada à idéia de autonomia proposta pelo Iluminismo, ainda hoje

reivindicada pela cultura pós–moderna.

Neste sentido, procuramos desenvolver a tese de que o pensamento de

Schleiermacher nos leva a repensar a tendência tipicamente moderna de estudar a

religião colocando entre parênteses a experiência do Sagrado (do Infinito) que a

constitui, bem como de construir um método teológico que não leve em conta a

experiência religiosa em sua dupla dimensão: pessoal e comunitária (eclesial). Além

disso, o método teológico de Schleiermacher encarna uma valiosa contribuição para

uma teologia que se encontra em franco diálogo com as ciências naturais. A sua

posição teológica oferece, pois, um caminho para a significação teológica da religião

e para uma apropriação desta acepção no estudo da religião.

Por isso, nos é possível afirmar ser intenção de Schleiermacher manter e

ampliar o lugar da religião, da fé cristã e da teologia na cultura moderna ilustrada. A

religião devia ser vista como elemento constitutivo do ser humano, ao passo que

88 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.44.

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conhecer e desenvolver a própria religiosidade se configurava para ele num processo

de humanização ou amadurecimento humano.

Schleiermacher representa a expressão consciente de uma recolocação da

teologia numa cultura moderna em transição (séculos XVIII e XIX) que acreditava

ter alcançado a maioridade pelo uso da razão, e que portanto se atrevia a pensar a

partir de si mesma, das experiências e dos valores humanos. Em outras palavras,

tratava-se de introduzir no âmbito da teologia e da filosofia a autonomia que cada

vez mais se tornava uma realidade na esfera da política e da economia.89

É preciso ter também em conta que a teologia protestante dos séculos XVII e

XVIII concentrava-se na precisão dos conceitos teológicos e das definições

doutrinais, em busca de uma maior clareza da identidade eclesial no contexto do

conflito religioso do século XVI com a Igreja católica. Esta também buscou com o

Concílio de Trento precisar melhor seus conceitos teológicos e melhor definir a sua

estrutura eclesiástica e, portanto, a sua identidade eclesial. Em ambos os lados,

protestante e católico, surgiram alternativas filosóficas e teológicas que, ou tornaram-

se cativas do discurso da modernidade, ou rejeitaram seus princípios. Contudo,

Schleiermacher buscou a originalidade do discurso religioso e teológico nesta cultura

que parecia não ter mais lugar para Deus.

Este período histórico foi igualmente um período de valiosas tentativas de

sistematização das Ciências Humanas, as chamadas Geisteswissenschaften. A

compreensão do método teológico de Schleiermacher passa então pela reflexão em

torno da legitimidade do lugar da teologia no sistema das ciências por ele concebido

e a centralidade na teologia para o que ele denomina “piedade cristã” ou “experiência

religiosa”. É importante lembrar que o conceito de ciência empregado por

Schleiermacher é fruto de sua discussão com outros pensadores no tocante ao direito

de existência da teologia na universidade em sintonia com a necessidade de

reorganizar a universidade no novo Estado prussiano. Pensadores ligados ao

idealismo alemão, como Fichte, colocavam sérias dúvidas quanto à possibilidade de

89 José Migues BONINO. La teologia, define la fe para los creyentes o interpreta la fe de los creyentes?, p.47

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existir um lugar para a teologia na universidade.90 Por isso, a importância de

Schleiermacher para o contexto teológico consiste, em parte, no fato de que ele foi

um dos pioneiros na tarefa de repensar o empreendimento teológico num contexto

marcado pela hostilidade oriunda do pensamento ilustrado.

No contexto acadêmico brasileiro, ainda hoje, encontramos uma situação

similar, fato que aponta para a atualidade do pensamento teológico de

Schleiermacher, isto é, o caminho trilhado por ele nos parece ser um ponto de

referência numa cultura contemporânea dita pós–moderna ou hipermoderna, que

valoriza a intuição e o sentimento diante da análise puramente racional. Esta postura

provocou críticas por parte das racionalizações de perfil escolástico, para as quais a

intuição não passa de mero subjetivismo destituído de razoabilidade, além de outras,

colocadas a partir de uma teologia de caráter mais dogmático que enfatiza as

definições teológicas cristalizadas ao longo de séculos de história.

O pano de fundo filosófico da teologia de Schleiermacher pode ser

visualizado fundamentalmente em duas obras: Solilóquios e Dialética. Nos

solilóquios, o próprio Schleiermacher afirma que

Cada homem deve representar a humanidade de seu próprio modo, combinando elementos de uma maneira singular... Este pensamento por si só tem me animado e separado-me de quanto ao meu redor resulta comum ou não transformado. Tem-me feito uma criação eleita da Divindade, gozando de uma forma e caráter únicos.91

Entretanto, o ser humano é convidado a realizar esta tarefa em sociedade e

não isoladamente, uma vez que Schleiermacher concebe sempre o ser humano como

um ser social, um ser de relação. No ser humano, as leis morais devem ter por

parâmetro não as leis públicas do estado, mas as leis da natureza. Neste sentido,

Schleiermacher nos oferece uma interpretação antropológica da vida moral. Como

base desta sua visão antropológica, temos a noção naturalista da liberdade que o leva

a abandonar a idéia transcendente do dever, bem como o faz rebelar-se contra o

90 Luis H. DREHER. O método teológico de Friedrich Schleiermacher, p.37. 91 Citado em Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna , p.47. Trata-se de uma tradução de H. N. FRIESS. Schleiermacher’s soliloquies, p.317.

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imperativo categórico de Kant.92 Ao que podemos acrescentar que esta interpretação

antropológica encontra-se em sintonia com a nova cosmologia que surgia em sua

época. Por isso,

É útil recordar que Schleiermacher pensou a natureza da religião dentro do novo paradigma cosmológico articulado pelas investigações de Copérnico, Galileu e Newton, e mediado filosoficamente por Giordano Bruno, Spinoza, Leibniz, Voltaire, Kant e outros. 93

Aos poucos surgiu no mundo ocidental o paradigma cosmológico pós–

medieval em superação à visão ptolomaica, sendo que este novo paradigma pode ser

agrupado em três posturas: panteísmo, deísmo e agnosticismo.94 Tanto o romantismo

como o idealismo alemão encontraram nas novas descobertas da ciência (na nova

cosmologia) uma fonte de inspiração que deu lugar a um nova sensibilidade estética,

religiosa e filosófica. No mundo anglo–saxão e francês tomou-se outro caminho,

procurando-se acomodar as formulações religiosas cristãs ao novo universo descrito

pela ciência. Em particular, no contexto francês, diante das aparentes contradições

entre religião e ciência, a solução encontrada foi a eliminação de um dos lados em

questão: a religião, mais precisamente, Deus.

Na obra “Dialética” de Schleiermacher encontramos a teoria a respeito da

arte de pensar. O objetivo do pensamento é chegar ao conhecimento, tornado

possível graças a um fundamento comum entre o mundo do ser ideal e o mundo real.

Este fundamento recebe dois nomes correlatos, Deus e mundo:

...a idéia de Deus é o terminus a quo a condição que torna possível nosso conhecimento, enquanto que a idéia de mundo é o terminus a quem, a meta à qual tende o nosso conhecimento. Ambas as idéias são transcendentais no sentido de que são pressuposições de todo conhecimento válido, contudo, não são em si cognoscíveis.95

Não podemos conhecer Deus em si mesmo por não termos dele dados

sensoriais. Deus jamais é apreendido fora da mediação de alguma realidade finita do

mundo, o que leva Schleiermacher a afirmar que Deus se apresenta originalmente ao

92 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.48. 93 Guillermo HANSEN. Sobre universos y teologías, p.186. 94 Idem, ibidem, p.187-194. 95 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.50.

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sentimento humano. E não podemos conhecer o mundo na sua totalidade por

carecermos de uma categoria que nos possibilite uma interpretação exaustiva da

infinidade de dados sensoriais que temos a respeito do mundo. Assim, de Deus em si

mesmo não temos nenhum dado sensorial, e do mundo temos ao nosso alcance uma

infinidade de dados sensoriais.

Por ocasião da publicação de sua obra “Glaubenslehre” – Doutrina da fé – a

qual fora precedida por outra importante obra, a “Kurze Darstellung des

Theolgischen Studiums” – Breve exposição dos estudos teológicos – de 1811,

Schleiermacher fora alvo de diversas críticas. Estas censuras ao seu pensamento o

levaram a escrever uma primeira carta a seu amigo Friedrich Lücke,96 na qual ele

procura explicar melhor a sua Glaubenslehre e consequentemente se defende das

acusações mais comuns que lhe eram feitas: trata-se de uma obra contraditória, a fé

em Deus torna-se incoerente, a fé cristã passa a depender de uma fantasia, ela

reintroduz o paganismo no Cristianismo, torna católica a fé protestante devido à

ausência de fundamentos bíblicos, a sua doutrina aceita uma regeneração fora da

Igreja cristã e Schleiermacher se mantém numa forma infantil de piedade.97

Qual a pertinência, hoje, dessas críticas? Qual a contribuição que traz a

reflexão de Schleiermacher para o debate sobre a categoria de religião na teologia e

no estudo da religião? Pode, ainda hoje, o pensamento teológico de Schleiermacher

nos ajudar a superar algumas das aporias que obstaculizam o estudo da religião?

Estas questões encontram parte de sua resposta naquilo que Schleiermacher entende

por religião.

96 Friedrich Lücke (1791-1855) foi aluno de Schleiermacher em Halle e trabalhou com ele em Berlin (1816-1818). Durante um longo período foi professor do Novo Testamento em Göttingen. Nos valemos aqui da tradução espanhola da primeira carta que Schleiermacher escreveu a este seu amigo, tal como aparece em “Schleiermacher: reseñas desde América Latina”, p.52-83. Na língua inglesa, esta carta pode ser encontrada no trabalho dos teólogos James Duke e Francis Fiorenza, “On the Glaubenslehre: two letters to Dr.Lücke”, Michigan, Eduards Brothers, 1981. 97 Friedrich SCHLEIERMACHER. A primeira carta a Friedrich Lücke, p.55.

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b. O que é religião?

Em sua obra “Sobre a religião”, Schleiermacher começa o seu discurso sobre

“A essência da religião” com uma pergunta ampla e abrangente: O que é religião? 98

Tal indagação lhe permite fazer uma primeira advertência:

A religião(...)há de recusar a tendência a estabelecer seres e a determinar naturezas, a perder-se em uma infinidade de razões e deduções, a investigar as últimas causas e a formular verdades eternas (...)A religião(...)não deve servir-se do universo para deduzir deveres, ela não deve conter nenhum código de leis.99

Com esta advertência, Schleiermacher toma distância dos teóricos que

procuram indagar sobre a natureza do Universo e de um Ser supremo. Igualmente se

afasta dos práticos que colocam a vontade de Deus como algo fundamental na

religião, e se opõe à sua redução ao âmbito de doutrinas racionais e morais acerca de

Deus. Isto porque a religião não é ciência e tampouco é moralidade, sendo seu solo

natural o ser humano, mais precisamente nossos sentimentos. Ao rejeitar, pois, a

postura de metafísicos e moralistas, Schleiermacher toma um outro caminho que o

leva a definir a religião como intuição e sentimento:

Sua essência não é pensamento nem ação, senão intuição e sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias manifestações e ações, quer ser impressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus influxos imediatos.100

Esta definição de religião apresentada por Schleiermacher nos leva a refletir

seriamente sobre a presença do Infinito na realidade finita, ou ainda, sobre a

possibilidade da ação do Deus vivo no ser humano. Neste horizonte, é importante

destacar o fato de que conceitos como criação e providência, finito e Infinito,

temporal e eterno, que durante séculos a Tradição cristã tratou sob a forma de

dicotomias, Schleiermacher os coloca sob o horizonte da dialética. E ao fazê-lo, ele

98 No decurso de seis meses, Schleiermacher compôs a sua obra “Sobre a religião. Discursos a seus menosprezadores eruditos”. Trata-se na verdade de cinco discursos que expressam o seu desejo de encontrar um lugar no mundo moderno onde ancorar o discurso religioso e o discurso teológico. 99 Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião , p.29-30. 100 Idem, ibidem, p.33.

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realiza uma crítica a seus interlocutores que tinham sido vítimas de uma dicotomia

fundamental: Deus–mundo, ou seja, um mundo sem Deus e um Deus sem mundo.

A definição que Schleiermacher dá à religião é uma nítida rejeição da

tentativa de tornar a idéia de Deus cativa dos novos paradigmas oriundos da noção de

ciência desenvolvida por Isaac Newton (1642-1727) que, embora necessitando de

Deus como hipótese científica, provocou o deslocamento da religião para o âmbito

da moral e da razão especulativa. Na ótica de Schleiermacher, este deslocamento

significava renunciar ao específico da religião que não se confunde nem com a moral

e nem com a metafísica, e não só não se confunde como é independente de ambas:

a religião consiste em conceber todo o particular como uma parte do todo, todo o limitado como manifestação do Infinito, porém querer ir mais longe e penetrar mais profundamente na natureza e na substância do todo, isso já não é religião, e se apesar de tudo, quer seguir sendo considerado como tal, recairá inevitavelmente em mitologia vazia.101

O universo é visto por Schleiermacher como objeto comum à

metafísica, à moral e à religião. Todavia, é preciso distinguir a tarefa de cada uma

delas. A tarefa da metafísica é classificar o universo, descriminar os distintos objetos

e seres que o constituem, e estabelecer as leis que regem o mundo. A moral

desenvolve um sistema de deveres a partir da natureza do ser humano e da sua

relação com o universo. Bem diferente é a tarefa da religião, afinal ela não quer

explicar (metafísica) o universo e tampouco deseja aperfeiçoá- lo (moral), mas sim

intui- lo.

Assim, chamar de religião a uma mescla de opiniões sobre o Ser supremo ou

acerca de obrigatoriedades relativas à vida humana, opiniões quase sempre definidas

pelas autoridades eclesiásticas, é tomar um caminho que nos afasta da essência

mesma da religião.102 E como a religião não aparece em estado puro, o objetivo de

Schleiermacher é justamente libertá-la das partes estranhas que se lhe aderem, a fim

de evidenciar a sua essência.

101 Idem, ibidem, p.36. 102 Idem, ibidem, p.30.

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É importante lembrar que o pensamento de Schleiermacher deve ser

interpretado como uma reflexão sobre as relações entre o universal e o particular,

sendo que o universal nunca se oferece em si mesmo, mas sempre sob uma forma

particular, sendo que o fundamento da religião está na concepção de que o Infinito

somente é apreendido pela intuição (Aschaung) e pelo sentimento (Gefühl):

O que é o oposto de uma atitude que somente vê, diante de todo universo, o

ser humano como o centro de todas as relações, como condição de todo ser e como

causa de todo devir. Em Schleiermacher temos uma definição de religião que

valoriza o humano, sem se tornar cativa do pensamento moderno, ao mesmo tempo

em que percebe o religioso como autoconsciência imediata da presença do Infinito

no finito. É nesta faculdade particular do espírito humano, o sentimento, que surge a

religião como algo constitutivo de toda a vida humana. Schleiermacher estava

convencido da possibilidade de o Infinito afetar nossos afetos e, portanto, provocar

em nós o sentido e o gosto por ele.103

À sua maneira, a religião deseja ver em todo finito a manifestação do Infinito,

fazendo parte do campo intuitivo que aponta para a intuição relacional com o

Sagrado:

A intuição do universo, vos rogo que vos familiarizeis com este conceito, constitui o gonzo de todo o meu discurso, constitui a fórmula mais universal e elevada da religião, a partir da qual podeis localizar qualquer lugar na mesma, a partir da qual se podem determinar da forma mais precisa sua essência e seus limites.104

Um pressuposto básico desta afirmação é que tudo aquilo que intuímos parte

basicamente de um influxo do intuído sobre o que intui, influxo este que independe

da vontade de quem intui. Na natureza, este é o caso dos raios da luz que atingem

nossos olhos: o que percebemos não é a natureza da luz, mas a ação desta sobre nós.

Algo semelhante ocorre com a religião, na medida em que a tomamos por uma das

manifestações do todo no particular, do Infinito no finito. Querer ir mais longe do

que esta intuição certamente já não é mais religião, afirma Schleiermacher.105

103 Idem, ibidem, p.35. 104 Idem, ibidem, p.36. 105 Idem, ibidem, p.36.

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Quando na obra “Sobre a religião” se afirma a impossibilidade de se

investigar algo sobre o ser de Deus fora do mundo, advertindo que tal procedimento

nos faria cair numa mitologia vazia, Schleiermacher se mostra devedor do

pensamento de Kant, que diz ser a razão humana limitada no tocante ao

conhecimento de Deus. Para Schleiermacher, o Deus que a metafísica coloca para

além do mundo finito se demonstra inútil para os sentimentos e os pensamentos

religiosos, bem como para a atividade prática das pessoas. Todavia, esta postura não

faz de Schleiermacher um discípulo de Kant, pois a sua perspectiva teológica não se

esgota na horizontalidade do pensamento kantiano que rejeita a verticalidade da

relação com o Infinito.

Baruch Spinoza (1623-1677) foi outro pensador que exerceu uma grande

influência sobre o idealismo e o romantismo alemão em geral, e de modo particular

sobre Schleiermacher. Diante do dilema que incomodava diversos pensadores da

época no tocante à possibilidade ou impossibilidade da existência de duas

substâncias infinitas (no caso Deus e o universo), Spinoza argumenta que existe

somente uma substância infinita, pois duas substâncias infinitas se anulariam

mutuamente. Neste caso, todos os objetos que percebemos são manifestações finitas

e passageiras de uma única substância: Deus. Na natureza encontramos uma

infinidade de atributos divinos que se manifestam por meio de distintas formas.

Em Schleiermacher, a experiência do Infinito é sentimento que implica na

consciência da absoluta dependência de Deus.106 É a experiência de não se sentir a

origem de si mesmo, uma vez que na religião o ser humano tem consciência de suas

próprias limitações e da facticidade e da relatividade da sua existência, bem como de

vincular todos os nossos afetos a Deus. Ao apresentar a sua doutrina sobre a fé cristã,

Schleiermacher fala deste sentimento como algo constitutivo de toda a

autocompreensão (autoconsciência) humana, pois para ele, a dimensão absoluta da

dependência de Deus nos diz que esta relação não define a pessoa somente em um

determinado aspecto da sua existência, mas a pessoa como um todo. 107 Por sua vez,

106 Idem. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p. 61-64. 107 Richard R. NIEBUHR. Schleiermacher on Christ and religion, p.174.

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esta dependência não significa total passividade da parte do ser humano ou total

ausência de liberdade, pois trata-se de acolher livremente algo que nos é ofertado,

mas que pode ser rejeitado.

Por isso, afirma Schleiermacher, devemos “fazer tudo com religião, não por

religião”,108 com este sentimento de possuir todos os nossos afetos vinculados a

Deus.109 Em outras palavras, devemos agir com o sentimento de ver a presença do

Infinito em todo finito, e não por obrigatoriedade moral. Isto porque a religião não é

um conjunto de normas, leis e instituições, mas um sentimento, algo que faz parte da

essência humana e a partir do qual o ser humano se situa no mundo, vê os outros e a

si mesmo. Para uma piedade religiosa, tudo o que existe ou que possa existir

constitui-se numa imagem verdadeira e imprescindível do Infinito. Daí que

A religião faz com que para um espírito piedoso, tudo seja sagrado e valioso, incluindo o profano e o comum, tudo o que percebe e não percebe, o que se encontra no sistema de seus próprios pensamentos e é acorde ou não com sua forma peculiar de realizar; a religião é a única inimiga jurada de toda pedantice e de toda unilateralidade.110

É a relação fundamental entre Deus e o ser humano que abarca as demais

relações e que define o ser humano. O sentimento de piedade não deriva de uma

representação, pois este sentimento é a expressão de uma imediata relação

existencial. 111 A religião é, pois, concebida como a autoconsciência de um “ser–em–

relação”, relação do finito com o Infinito e esta relação, algo constitutivo do ser

humano, diz respeito ao todo da sua existência. Todavia, esta relação é um dado, é

uma oferta de Deus ao ser humano e não uma mera conquista humana, especulativa

ou prática.

Schleiermacher defende veementemente que todos nascemos com a

disposição para a religião.112 Se assim o é, quem impede o correto desenvolvimento

do sentimento religioso em nós? Em sua opinião, os grandes responsáveis por tal

108 Idem. Sobre a religião, p.43. 109 Idem. A primeira carta a Friedrich Lücke, p. 63. 110 Idem. Sobre a religião, p.41. 111 Idem. A primeira carta a Friedrich Lücke, p. 64. 112 Schleiermacher trata sobre este assunto no terceiro de seus discursos em sua obra “Sobre a religião”.

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impedimento são os “intelectuais” que inundam o ser humano com suas especulações

sobre o universo e com suas obrigações morais. O discurso de Schleiermacher sobre

a religião é na verdade a tentativa de valorizar o finito como local de encontro com o

Infinito, ou seja, fazer do humano uma manifestação do Sagrado. Querer buscar o

Infinito fora do finito é um assentimento não razoável, ou ainda, querer buscar Deus

fora do humano, fora da criação, é algo sem sentido.

Para Schleiermacher, a antipatia cultivada em sua época era na verdade muito

mais uma aversão a qualquer Igreja ou a qualquer forma de organização religiosa que

tivesse a intenção de transmitir a religião como sua propriedade exclusiva, do que

pela religião em si mesma.113 Todavia, a necessidade de transmissão da religião

torna-se algo inevitável, uma vez que a sociabilidade da religião é algo intrínseco ao

próprio ser humano, um ser–em–relação. Neste sentido:

seu primeiro impulso consiste, sobretudo, quando uma visão religiosa se tem tornado clara para ele ou um sentimento piedoso penetra sua alma, em chamar também a atenção de outros sobre esse objeto e se é possível, em transmitir-lhes as vibrações de seu espírito.114

Tomado pela clareza de uma visão religiosa do mundo, o ser humano tende a

comunicá- la aos outros. E ciente de suas limitações e da infinitude da religião, o ser

humano está atento a toda forma histórica de manifestação religiosa, ou seja, deve

descobrir a religião nas religiões, o que supõe a pluralidade das religiões

fundamentada na essência mesma da religião. E mais, ao ser humano é impossível

possuir por completo a religião, já que somos finitos e a religião infinita,

incomensurável. 115

Todavia, a fim de que possa existir e ser compreendida, a religião deve

possuir um princípio de individualização, algo que possibilite a sua manifestação de

diferentes maneiras, através de figuras mutáveis e historicamente situadas, ao longo

da história da humanidade, o que alguns chamam de religiões positivas.116 É

justamente contra esta forma histórica que muitos empreendem seu combate à

113 Friedrich SCLEIERMACHER. Sobre a religião, p.101 114 Idem, ibidem, p.103. 115 Idem, ibidem, p.39-40. 116 Idem, ibidem, p.138.

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religião, tomando a parte pelo todo ou pela essência. Não se trata aqui, contudo, de

negar que “cada religião constitui uma das formas particulares que devem assumir

necessariamente a religião eterna e infinita em meio a seres finitos e limitados”117

ou ainda que a religião somente se manifesta plenamente em um número infinito de

formas determinadas, sendo as instituições e os sentimentos particulares seus

elementos constitutivos, mas sim de evidenciar o perigo de se confundir as

manifestações históricas da religião com a sua essência.

Além disso,

se a religião só se manifesta em e através de tais formas determinadas, assim também só quem se assenta, com a sua, em uma delas possui propriamente uma morada estável e, por assim dizê-lo, um direito de cidadania ativa no mundo religioso; só ele pode vangloriar-se de contribuir com algo à existência e ao devir do todo; se ele é uma pessoa religiosa no sentido próprio, com um caráter e uns elementos firmes e determinados.118

Somente inseridos em alguma forma determinada de religião podemos

alcançar a nossa individualidade. Se, por um lado, com isto valoriza-se a experiência

pessoal, por outro lado afirma-se que esta mesma experiência cresce em sentido,

ganha plenitude, ao participar e compartilhar de outras experiências religiosas

particulares.

Schleiermacher insiste ainda na necessidade de se distinguir entre a essência

de uma religião particular e aquilo que fundamenta a sua unidade e a mantém unida

como tal. É neste sentido que podemos entender a sua insistência na idéia de que a

intuição fundamental de uma religião está na intuição da ação do Infinito no finito:

“vos rogo que não considereis como religião tudo que encontrais nos heróis da

religião ou nos documentos sagrados, e que não busqueis ali o espírito

diferenciador.”119 Entretanto, não nos é possível separar nestes documentos tudo o

que não seja religião, assim como não é prudente querer introduzir metafísica, poesia

e moral na religião e buscar nisto aquilo que a caracteriza.

117 Idem, ibidem, p.141. 118 Idem, ibidem, p.148. 119 Idem, ibidem, p.160.

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Além do que, somente podemos compreender a nossa relação com Deus, e

não a realidade transcendente de Deus em si mesma. Schleiermacher parece entender

que “o sentimento é, sem dúvida, uma experiência por parte do ser, mas é uma

experiência na qual o Eu apreende, não a si mesmo, mas a Deus.”120 Porém, ao

discorrer sobre a doutrina da fé cristã, ele não diz o que Deus é, nem fala de seus

atributos, mas somente diz que idéia ou concepção de Deus e atributos melhor

refletem nosso sentimento religioso.

Nesta perspectiva, a idéia de Deus é uma construção racional fundada na

experiência religiosa. Todavia, esta idéia de Deus é sempre uma explicação

provisória, precária e fragmentada, o que exige correções por parte de futuras

experiências e consequentemente de novas teologias. Neste sentido, a experiência

religiosa é um desdobramento da humana, uma vivência de fé que produz uma

determinada consciência de Deus. Na medida em que é elevada ao nível do conceito,

esta experiência constitui uma teologia. Daí que distintas experiências religiosas

podem gerar diferentes teologias. Além disso, toda teologia faz parte de uma tradição

particular expressa numa situação determinada.

Os eruditos, interlocutores de Schleiermacher, fundamentados na religião

natural, subordinavam a intuição religiosa diretamente ao conhecimento metafísico

e/ou científico e à sensibilidade moral.121 Por isso, Schleiermacher defende a

importância das religiões positivas em contraposição à artificialidade da religião

natural, que se fundamenta em conceitos que pouco ou nada têm a ver com a

experiência concreta, com o cotidiano da vida humana. O problema central da

religião natural consiste na sua incapacidade de conseguir uma intuição viva da ação

do Infinito no finito. Esta postura da religião natural desemboca na aridez de uma

estrutura teológica que busca Deus aquém e além do mundo, esquecendo-se que o

conhecimento de Deus não pode ser obtido a partir do próprio Deus, a partir de uma

especulação, por mais razoável que esta possa parecer.122

120 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.74. 121 Friedrich SCHLEIERMACHER. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p.67. Ver também Sobre a religião , p.142. 122 Idem. A primeira carta a Friedrich Lücke, p.61-62.

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Schleiermacher descarta a possibilidade de uma religião universal ou uma

religião natural, porque para ele somente existe a comunidade religiosa concreta com

sua linguagem historicamente situada e suas práticas concretas. É esta comunidade

que pode ser, por exemplo, objeto da teologia e da filosofia da religião. Neste

sentido, o ponto de partida da sua reflexão teológica é sempre o dado empírico da

comunidade religiosa.

A crença em Deus não se adquire somente por meio de um ato intelectual

como o faziam, por exemplo, as tradicionais provas da existência de Deus, mas desde

a experiência religiosa em si mesma. Para Schleiermacher, Deus se dá a sentir no

sentimento de absoluta dependência que acontece numa experiência religiosa

determinada historicamente.123 Este sentimento de dependência absoluta não

encontra lugar no isolamento, pois está ligado à consciência de si mesmo na sua

relação com o mundo e com a comunidade.

Muitos criticam Schleiermacher por destruir o fundamento da ética, pois

estaríamos diante de uma total determinação. Entretanto, a religião como intuição e

sentimento enfatiza não somente a ação do Infinito, mas também a ação do finito que

acolhe em si esta manifestação. Em outras palavras, o humano não é total

passividade e a idéia de absoluta dependência associada à definição de religião nos

coloca diante do tema da liberdade humana e, consequentemente do agir ético.

E ao insistir sobre o sentimento religioso, Schleiermacher não está somente

valorizando o humano na relação do finito com o Infinito. Ele está igualmente

apresentando uma crítica à tendência teológica que admite somente o conhecimento

racional de Deus, ou seja, que Deus somente pode ser conhecido em si mesmo,

cabendo ao intelecto humano perscrutar a essência divina.

Por isso, devemos nos guardar tanto da rigidez dos sistemáticos, que desejam

circunscrever a essência da religião em dogmas particulares, como daqueles que a

destituem de tudo o que a caracteriza para torná- la mais atrativa aos religiosos, ou até

mesmo por ignorância. Afinal, em nenhum deles encontraremos o espírito de

123 Robert R. WILLIAMS. Schleiermacher the theologian, p.4.

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qualquer religião, mas somente naqueles que em tudo se deixam mover pelo

sentimento religioso, sem contudo abrigar a ilusão de poder abarcá- lo totalmente.124

Esta descaracterização da religião à qual se refere Schleiermacher pode ser observada

ainda hoje na tendência de se reduzir a religião a uma mera dimensão sociológica ou

psicológica do ser humano, em detrimento da revelação do Infinito no finito.

Segundo Schleiermacher, o problema religioso fundamental para a

modernidade é que a religião foi interpretada como saber, como conhecimento da

divindade. Todavia, para ele religião não é conhecimento mas intuição e sentimento,

ela está na ordem da experiência imediata de Deus como disposição inata do ser

humano para a relação com o Infinito, percebido desde a nossa finitude. A religião é,

pois, afeição e receptividade, imediatidade e auto-experiência. A maneira de

compreender a religião para Schleiermacher é aquela de uma unidade indissolúvel

com a humanidade.

Entretanto, não devemos proceder desde uma concepção humanista da

humanidade, que nega a transcendência na religião. A experiência do Infinito no

humano faz da religião uma característica fundamental do ser humano, sem contudo

podermos esgotá- la por completo. A religião remete o ser humano para além de si

mesmo ou de uma “simples” relação contingente, porque ela é fundamentalmente

relação com o Infinito, com o Transcendente embora, sendo intuição e sentimento,

aconteça no humano.

A religião não é um estado passageiro no ser humano, pretérito da cultura

humana, e sim constitutivo da natureza humana, é por meio dela que o Universo é

contemplado como totalidade. A religião é a forma mais sublime do encontro entre o

Infinito e o finito, entre o Universo intuído e aquele que o intui. Assim, no dizer de

Schleiermacher, o conhecimento real do finito ao qual se dedicam as ciências e a

moral que buscam formar o humano deve ter por fundamento a intuição religiosa que

nos coloca na perspectiva da relação do finito com o Transcendente, o horizonte de

identidade do ser humano.

124 Friedrich SCLEIERMACHER. Sobre a religião, p.161.

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Esta percepção da relação entre o Infinito e o finito é na verdade uma reação

ao intento de conceber a religião fora da relação com o Transcendente, tomar a

religião somente numa perspectiva horizontal, desde de o ponto de vista da atividade

cultural do ser humano, portanto esgotável em análises sociais, psicológicas,

filosóficas, etc, que porventura possam ser realizadas. Schleiermacher deseja

salvaguardar a relação com o Sagrado na religião, algo distinto da visão humanista

da humanidade, que deseja esgotar a religião na própria humanidade, como sendo

cultura e propriedade do ser humano.

Uma das importantes teses de Schleiermacher no que diz respeito à religião é

que esta goza de uma especificidade própria, ou seja, não depende nem da moral e

nem da metafísica. Qual seria, pois, esta especificidade? A relação com o Infinito ou

o Sagrado. Tirar da religião a sua relação com o Infinito, com o Transcendente, com

o Sagrado,... com Deus é negar- lhe a sua própria essência, é tomá-la pelo que ela não

é.

O fato desta intuição e sentimento da ação do Infinito no finito comportar

uma dimensão subjetiva não nos outorga o direito de acusá-lo de subjetivismo, pois

esta experiência é mediada pelo dado objetivo que é a própria estrutura do Universo

e a ação de Deus no humano. Os conceitos que fundamentam a experiência e a

linguagem religiosa derivam da própria realidade experimentada, ou seja, do objeto

da experiência religiosa: o Universo. Algo que em Schleiermacher é sinônimo de o

Eterno, o Infinito, Deus.125 Religião é sempre abertura ao outro.

Para Schleiermacher, a intuição e o sentimento inerentes à experiência

religiosa são conceitos que apontam para a receptividade imediata do Infinito por

parte do finito: “o que entendo como sentimento de piedade não deriva de uma

representação, ela é na verdade expressão de uma imediata relação existencial.”126

A intuição possibilita um tipo de conhecimento que assinala uma outra distinção

fundamental no pensamento de Schleiermacher no tocante à relação entre o que é

intuído e aquele que intui, ou seja, ao intuir o Universo aquele que intui se descobre

125 Guillermo HANSEN. Sobre universos y teologías, p.201. 126 Friedrich SCHLEIERMACHER. A primeira carta a Friedrich Lücke, p.64.

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participando do que intuído. Esta identidade do ser humano como um ser religioso,

como alguém habitado pelo Infinito, deve ser descoberta e atualizada no mundo,

embora não provenha dele.

Como nos referimos acima, o sentimento religioso aponta para a experiência

da unidade do sujeito, ou seja, a presença do ser humano como um todo no mundo

material e espiritual. E, para Schleiermacher, o saber humano tem por fundamento

este sentimento religioso que permite dar a este saber uma unidade.127 Mas como a

intuição religiosa mantém uma relação dialética com as outras formas de

conhecimento? Na medida em que a intuição religiosa significa uma interpretação do

significado de um evento particular em relação ao todo, ou seja, a ação do Infinito no

finito, a função interpretativa da intuição religiosa consiste em dar sentido à

totalidade da experiência humana que também inclui os conhecimentos e as

perspectivas oriundas das ciências. Em outras palavras, a ciência consegue ver

“apenas” o particular ao passo que a intuição religiosa busca dar sentido à totalidade

da existência humana.

Neste sentido, o saber humano se fundamenta sobre a consciência religiosa de

um absoluto, ou ainda, de qualquer coisa de supremo que habita o ser humano. O

sentimento de dependência é o sentimento da existência do fundamento

transcendente, e este fundamento escapa à apreensão reflexiva. Na filosofia, este

fundamento é suposto somente como condição de possibilidade do saber. Se a

consciência especulativa é a função objetiva mais elevada do espírito humano, a

consciência piedosa de si mesmo é a função subjetiva suprema. Aqui temos uma

relação dialética e não uma contradição, sendo a dialética concebida como “a arte de

conduzir um diálogo autêntico”.128

Esta noção de totalidade desvela uma outra perspectiva da idéia de “fazer

tudo com religião”: a religião não está somente na origem como princípio de algo

que mais tarde se tornaria independente dela; a religião está igualmente como

fundamento de todo agir humano. A religião é princípio e fundamento de todo o

127 Idem. Dialetique, p15. 128 Idem, ibidem, p.17.

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existir e agir humano, inclusive da tarefa teológica. Por isso, Schleiermacher lamenta

que alguns teólogos não a tenham por princípio e fundamento de seu ministério

teológico.129

Esta idéia de sentimento religioso em Schleiermacher tem um duplo

significado: a idéia de unidade do ser humano, pois se trata de intuir o Infinito no

finito como um todo, e a noção de identidade pessoal (autocompreensão), ou seja,

intuir o Infinito significa, por parte do finito, uma compreensão de si mesmo e por

extensão do mundo. Além disso, tomar a religião por “sentido e gosto pelo infinito”

e considerá-la como algo inerente ao ser humano, ou seja, como uma inclinação

natural, expressa um profundo otimismo antropológico de Schleiermacher. E a partir

deste otimismo antropológico, ao contrário do pensamento moderno, Schleiermacher

entende a experiência religiosa como algo inerente à experiência humana, na qual se

revela uma realidade transcendental, isto é, a experiência religiosa não é algo

totalmente estranho ao ser humano, mesmo que esta experiência comporte algo de

novo, de inaudito. Isto é fundamental para o diálogo entre a teologia e as Ciências

Humanas: o ser humano como um ser essencialmente religioso.130

À famosa tese de Schleiermacher de que a religião é “uma província do

Espírito” e portanto é independente com relação à metafísica e à moral, diante do

pensamento e da ação, ou ainda, frente à pura teoria e à pura práxis, podemos

acrescentar uma outra idéia igualmente importante: todas as religiões são

verdadeiras, embora nem todas tenham o mesmo valor. A valoração de cada religião

está justamente na força organizacional da intuição, na maneira como se manifesta a

unidade do universo nas distintas formas de religiosidade. E a partir de sua fé cristã,

ele vê o Cristianismo como a forma mais grandiosa, mais sublime e digna da

humanidade adulta:

O cristianismo tem delineado, pela primeira vez e de uma forma essencial, a exigência de que a religiosidade tem de constituir uma continuidade no homem, e recusa dar-se por satisfeito com as expressões mais vigorosas da mesma, tão logo como essa

129 Idem. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p.64. 130 Idem. Sobre a religião, p.84. Ver igualmente: Richard R. NIEBUHR. Schleiermacher on Christ and religion , p.174. Por isso, um século e meio mais tarde, em continuidade a este pensamento, Karl Rahner colocaria a pergunta sobre as estruturas antropológicas que possibilitam o ser humano acolher a automanifestação de Deus.

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religiosidade se limita a pertencer e a dominar tão só certas partes da vida.131

Entretanto, não devemos atribuir um caráter absoluto ao Cristianismo desde o

ponto de vista de sua historicidade, mas somente para a essência da religião que nele

se realiza. É isto que faz da Religião cristã a religião das religiões, se bem que a

realização desta essência da religião, alcançada no Cristianismo, tomada por religião

positiva, pode se perder na história. Além disso, para Schleiermacher, a história das

religiões continua em movimento, podendo produzir novas formas positivas da

religião que transformariam o Cristianismo histórico em algo do passado. Por isso, a

religião cristã não pode pretender uma exclusividade única e tampouco um caráter

definitivo que abarque todos os tempos.

Para esta visão particular do Cristianismo, Jesus Cristo tem consciência de

sua função mediadora e de sua divindade, bem como de ter deixado atrás de si uma

grande escola que deriva de sua religião, com as mesmas características que Ele

professou. Todavia, como nos recorda Hugh Mackintosh, se em seus discursos sobre

a religião Schleiermacher fala do Cristo como um mediador entre muitos outros, em

sua obra dogmática ele apresenta o Cristo como sendo “o” mediador, o que não

impede que a perfeição da religião cristã faça parte de um desenvolvimento histórico,

isto é, de uma manifestação sempre mais perfeita de sua essência.132 E mais, para

Schleiermacher, aqueles que colocam a intuição fundamental de Jesus Cristo como

base de sua religião vêm a ser cristãos, ainda que não leve em consideração a sua

escola:

Cristo nunca considerou as intuições e sentimentos, que Ele mesmo podia comunicar, como a plenitude do conteúdo da religião que haveria de surgir de sua intuição fundamental; sempre se remeteu à verdade que viria depois d’Ele. Assim atuaram também seus discípulos; não puseram fronteiras ao Espírito Santo. 133

O Cristianismo não deve, contudo, imperar sozinho na humanidade como

única forma histórica de religião, afinal ele não deseja gerar somente em si mesmo

131 Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião , p.168. 132 Hugh MACKINTOSH. Teologia moderna, p.79. 133 Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião , p.172. Estaríamos aqui porventura diante de uma idéia semelhante à tese dos “cristãos anônimos” de Karl Rahner?

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uma diversidade que proceda até o Infinito, mas pelo contrário, quer intui- la também

fora de si mesmo, do próprio Cristianismo, tomando distância da tentação de buscar

uniformidade na religião:

A religião das religiões não pode acumular matéria suficiente para a dimensão mais apropriada de sua intuição mais íntima e, assim, como não há nada mais irreligioso que exigir uniformidade na humanidade em geral, assim tampouco nada há menos cristão que buscar uniformidade na religião. 134

Em outras palavras, o Cristianismo, tido como religião positiva, não esgota a

essência da religião.

c. O método teológico.

A centralidade concedida à experiência e a idéia de sentimento religioso

desenvolvidas pelo método teológico de Schleiermacher não o pouparam da crítica

de haver dissolvido a objetividade da teologia e de tê-la reduzido a uma espécie de

antropologia135, ou ainda, de ter arquitetado a sua teologia sob a égide de uma

filosofia semipanteísta136, algo rebatido pelo próprio Schleiermacher na carta escrita

a seu amigo Friedrich Lücke.137

Não obstante tais críticas, há de se destacar em Schleiermacher o firme desejo

de conceder um mínimo de razoabilidade à fé cristã e à teologia em seu diálogo com

os eruditos de sua época, notadamente com aqueles que estavam influenciados por

idéias iluministas. Neste diálogo, Schleiermacher estava convencido da necessidade

de se elaborar uma teoria hermenêutica para as ciências humanas

(Geisteswissenschaften) frente à pretensão hegemônica da metodologia positivista

das ciências da natureza (Naturwissenschaften), relacionadas com as ciências exatas

(matemática e geometria, por exemplo). 134 Idem, ibidem, p.175. 135 Robert R. WILLAMS. Schleiermacher theologian, p.5. 136 Hugh R. MACKINTOSH. Teologia moderna, p.51. 137 Friedrich SCHLEIERMACHER. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p.75.

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Todavia, em Schleiermacher, a teologia não existe por causa da deficiência de

outras disciplinas, mas somente devido à importância de seu próprio objeto. Além do

que, Schleiermacher rejeita o querer atribuir à teologia o status de princípio e limite

de todo conhecimento, como se ela fosse “a” ciência de todas as ciências humanas.

Como vimos anteriormente, em seus “Discursos sobre a religião”,

Schleiermacher começa com a pergunta sobre a religião. A definição que ele

apresenta mostra a dimensão antropológica de seu pensamento teológico. Isto porque

a religião é definida como uma intuição e um sentimento da ação do Infinito no

finito, no interior da própria humanidade. É este antropocentrismo próprio da religião

que deve fundamentar a dimensão antropológica na elaboração do método teológico.

Por isso, Schleiermacher considera uma falência o fato de muitos teólogos na

grande comunidade eclesial terem se dedicado à sua profissão antes de haver

experimentado profundamente a piedade cristã em suas próprias vidas. Ele opõe-se à

afirmação de que “a religião é filha da teologia”, afinal aqueles que desde a sua

juventude já experimentaram a piedade sabem muito bem que ela independe de se ter

conhecimento prévio de um sistema de idéias. Entretanto, ele não esconde a sua

satisfação em ver que alguns são conduzidos à piedade cristã como conseqüência de

seu trabalho intelectual sobre temas teológicos.138

Para Schleiermacher, a teologia é claramente filha da religião, ou seja, de uma

experiência espiritual da ação do Infinito no finito. Além disso, a piedade cristã de

um erudito (teólogo) não é tão diferente quanto possa parecer de pessoas tão pouco

especulativas. E mais, colocar a piedade como experiência que antecede ao discurso

teológico significa valorizar a experiência humana do Infinito, ou seja, ressaltar o

valor das experiências humanas mais fundamentais, oriundas do cotidiano, e não

aquela piedade derivada dos teólogos.139 Caso contrário, do ponto de vista religioso,

teríamos uma hierarquia de pessoas intelectualmente cultas seguidas de outras menos

cultas.

138 Idem, ibidem, p. 64-65. 139 Idem. Sobre a religião, p.129.

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A teologia, filha da religião, parte da realidade conhecida pela experiência e

pela razão, e valida suas conclusões na prática eclesial por meio de uma experiência

fundamentada pela teoria. A teologia, vista como ciência positiva, não pode limitar-

se a mera descrição da experiência religiosa, ela deve ser capaz de elaborar uma

teoria que lhe permita reconstruir a experiência religiosa na prática, ou seja, que lhe

possibilite interpretar a experiência religiosa. Por sua vez, a prática religiosa

(eclesial) possibilita o aperfeiçoamento das teorias teológicas. Aqui temos uma

relação dialética entre a reflexão e a prática, ou seja, entre uma prática refletida e

uma reflexão colocada em prática. Em suma, a teologia não é pura teoria, pura

conceituação.

Neste sentido, a tarefa do ministério teológico consiste em oferecer uma

descrição clara e vivificante de uma experiência interior comum140, ou seja, a

teologia é para Schleiermacher a clarificação da experiência existencial, da ação do

Infinito no finito. 141 Não se trata, pois, de distinguir um curso acerca de um sistema

de idéias (teológicas) e em seguida um curso de piedade cristã como conseqüência do

primeiro.142 Isto porque não cabe à teologia definir a piedade cristã, mas sim

interpretá- la a fim de torná-la mas fecunda na vida do crente.

O trabalho teológico é um serviço prestado aos irmãos de fé para tornar mais

clara a experiência piedosa que eles realizam, o que faz o interesse teológico de

Schleiermacher pender muito mais para o lado ministerial do que para o lado

acadêmico propriamente dito. 143 Para ele, a teologia deve fortalecer a piedade da

comunidade cristã, descartando a postura dogmática defensiva (confessional) e os

sistemas teológicos de fundamentação exclusivamente filosófica. E isto a partir da

intuição e do sentimento da presença de Deus no humano, sentimento entendido

como a ação de Deus que se entrega ao ser humano, algo distinto de uma atitude

puramente emocional, que brota do humano e se esgota nele.

140 Idem. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p. 66. 141 Richard R. NIEBUHR. Schleiermacher on Christ and religion, p.139. 142 Hoje, no contexto católico, temos algo semelhante ao colocar de um lado a teologia sistemática e a dogmática, e do outro a teologia espiritual. 143 Friedrich SCHLEIERMACHER. A Primeira carta a Friedrich Lücke, p. 81.

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Neste sentido, todo teólogo deveria possuir um duplo interesse: pela Igreja e

pelo rigor científico. Um grande intento da atividade teológica de Schleiermacher foi

sem dúvida relacionar a piedade religiosa (governada pela palavra de Deus e de

Cristo) com a livre investigação. É o que atesta seu amigo Friedrich Lücke:

sua atividade cientifica no estudo e na cátedra era coroada cada domingo pela pregação da Palavra no púlpito e do mesmo modo estava diversamente entrelaçada durante toda a semana com os deveres eclesiásticos em sua congregação e com a instrução catequética dos jovens cristãos que estava sob seus cuidados... ele parecia encontrar em uma o estímulo e o encorajamento para cumprir a outra.144

O zelo pastoral de Schleiermacher o impulsionava, portanto, a traduzir a

linguagem teológica em diálogo com a racionalidade de determinada época, algo

indispensável para a pregação e o ensino do evangelho, que deve se expressar em

enunciados que sejam compreensíveis à situação atual do conhecimento.

Por isso, a orientação básica do seu projeto teológico aponta para a condução

da Igreja e o interesse científico dos teólogos, a partir da dialética entre elementos

básicos: o religioso e o científico, o prático e o teórico, o positivo e o filosófico. A

teologia como ciência positiva possui como critério teológico o ministério da Igreja:

a condução e o governo da Igreja cristã. O fim prático da teologia é estar a serviço da

vida e da missão eclesial, o que é o contrário de estar simplesmente submissa à

autoridade eclesiástica. Este duplo interesse por parte do teólogo ressalta a diferença

entre a teologia prática e a prática eclesial, uma vez que para Schleiermacher a

teologia prática é uma tarefa acadêmica que interpreta esta prática.145

Nesta perspectiva, a reflexão teológica é compreensível somente no contexto

da experiência histórica da comunidade cristã. A teologia visa uma dimensão

empírica, a comunidade de fé, e deseja interpretar a essência da religião cristã para

esta comunidade cristã concreta, historicamente situada, na certeza de que o objeto

144 Citado em Emilio N. MONTI. Schleiermacher: uma teología missonera, p.157. 145 Mauro Alberto SCHWALM. Schleiermacher e os fundamentos da teologia prática, p.15.

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da teologia está ao alcance de todos nós: a experiência religiosa.146 Entretanto, para

Schleiermacher, a experiência subjetiva de Deus se refere a uma realidade

transcendente e se expressa racionalmente numa construção teórica (teologia) que

por sua vez se manifesta numa prática objetiva que abre espaço a uma experiência

pessoal de Deus.147 Temos, assim, uma circularidade dialética e hermenêutica.

O projeto teológico de Schleiermacher possui uma nítida dimensão pratica,

em torno da qual as disciplinas teológicas são articuladas, fazendo da ciência

teológica uma ciência positiva, em franca oposição à idéia de que a teologia não

passava de uma mera ciência especulativa. Isto porque a teologia não tem como

tarefa a investigação acerca do Absoluto, prescindindo de um referencial perene na

história. A teologia tem uma vinculação com a realidade concreta, o que faz

Schleiermacher colocá- la no sistema das ciências do espírito

(Geisteswissenschaften): “não caberia à teologia querer comprovar nada pela

especulação, mas anunciar sua compreensão com base no seu referencial

historicamente dado, que é a realidade da Igreja e o conteúdo que a gestou...”148

Esta maneira de se conceber o estudo da teologia vai em sentido oposto à

tendência que confere um caráter central à teologia dogmática.149 Schleiermacher

toma distância do aprisionamento monolítico que no seu entender ameaçava a

reflexão teológica, ao se atrelar a teologia aos dogmas e aos interesses dos

representantes eclesiásticos, os quais frequentemente estavam habitados pela busca

de prestígio e de poder, e muito pouco pelo sentido da diaconia, do serviço à

comunidade eclesial.150 No lugar de uma teologia de tratados, propõe-se uma

teologia que parta das experiências humanas. Todavia, mesmo que a teologia tenha

146 Richard R. NIEBUHR. Schleiermacher on Christ and religion, p.141. 147 Emilio N. MONTI. Schleiermacher: uma teología missonera, p.180. 148 Mauro Alberto SCHWALM. Schleiermacher e os fundamentos da teologia prática, p.14. 149 Em seu escrito “Kurze Darstellung des theologischen Studiums zum Behuf einleitender vorlesungen”, encontramos a seguinte divisão de seu compêndio teológico: I. Teologia filosófica que aborda a essência (wesen) do cristianismo e as suas diferentes manifestações (Apologética e Polêmica); II. Teologia histórica (teologia exegética, teologia da história da Igreja e teologia na perspectiva da situação histórica presente da Igreja – Teologia dogmática e a estatística eclesiástica); III. Teologia prática. Sobre este a assunto, ver Mauro Alberto SCHWALM. Schleiermacher e os fundamentos da teologia prática, p.14-15. 150 Diaconia vem de diácono, em grego diákonos, que significa literalmente servo. Na hierarquia da Igreja católica, o diácono é aquele que se encontra imediatamente abaixo do padre.

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por ponto de partida a prática dos cristãos, ou seja, as experiências de fé de diferentes

pessoas em distintas situações, dificilmente uma reflexão teológica poderá perceber o

valor de tais experiências, caso ela continue cativa de uma linguagem e de um

conteúdo previamente definidos pela autoridade eclesiástica.

Qual seria, no entanto, o papel da teologia dogmática? Em suma, a

apresentação sistemática da doutrina da Igreja, recebida na situação atual da

comunidade, uma doutrina que não é estática, na medida em que acompanha o

desenvolvimento da comunidade histórica. O desafio está em interpretar quais

elementos da doutrina estão destinados a desaparecer e quais são chamados a serem

reformulados. Querer manter inalterado um sistema de doutrina é uma falsa

ortodoxia para Schleiermacher. Ele reivindica a mobilidade doutrinal sem contudo

abandonar a idéia de que determinados aspectos da doutrina são inegociáveis.

Ao tomar a experiência religiosa desde a perspectiva do desdobramento da

experiência humana e como a experiência que fornece o instrumental lingüístico para

a tarefa teológica, Schleiermacher propõe um critério profundamente antropocêntrico

que se distingue metodologicamente da metafísica que parte de um conceito de Deus

e da ética teológica, que tem por ponto de partida a idéia de lei de Deus. Esta opção

metodológica de caráter profundamente antropocêntrico concebe a revelação como

algo inerente à própria natureza humana e não como algo extrínseco ao sujeito ou

como uma comunicação sobrenatural vinda de fora do sujeito. Em outras palavras, a

intuição do Infinito no finito como parte integrante da revelação só é significativa

quando relacionada com a constituição espiritual do ser humano.

A revelação passa a ser entendida, pois, como a percepção da divindade no

interior do humano, numa atitude dialogal entre Deus e o ser humano, sem que a

revelação possua um conhecimento atemporal.151 A idéia da revelação como algo

inerente ao ser humano é o que permite a Schleiermacher conceber a religião como

possuidora de um lugar fundamental no espírito humano. A religião, digamos mais

uma vez, não é definida como uma realidade exterior, mas sim como surgindo

necessariamente do interior do sujeito. A religião é uma disposição inata do ser

151 Francis FIORENZA. Religion a contested site in theology and the study of religion, p.11.

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humano, uma afeição, uma receptividade, um sentimento intuitivo de dependência do

Infinito ou de Deus, algo que caracteriza o ser humano, sem contudo ser sua

propriedade.152 Somente quando a religião é lida desde a ótica da metafísica e da

moral é que nos vemos impelidos a ver a revelação como algo extrínseco ao sujeito.

A dicotomia entre religião e revelação, presente nas discussões teológicas

posteriores a Schleiermacher (e talvez ainda hoje), não fazia parte de seu horizonte

teológico. E quando a revelação é compreendida em contraste com a religião, então a

verdade revelada é a que eu possuo e a falsa religião é o que os outros possuem.

Nesta linha de raciocínio, Schleiermacher se aproxima do ethos do

Iluminismo ao trabalhar com a idéia de autonomia e humanidade no interior da

religião. Autonomia porque a religião é apresentada como uma realidade

inicialmente autônoma frente à razão, às leis, à Igreja e às autoridades eclesiásticas.

Humanidade no sentido de que a religião brota do interior do próprio ser humano,

como aquilo que o constitui, e lá onde a humanidade se manifesta de forma mais

autêntica este elemento religioso tende a aparecer.

Esta relação entre religião, autonomia e humanidade é na verdade uma

resposta que Schleiermacher dá àqueles que desdenhavam da religião por estarem

profundamente condicionados por sua luta histórica contra determinadas estruturas

eclesiais. 153 Em parte, porque na Idade Média houve uma identificação estreita e

errônea entre a religião e os poderes sócio–políticos da época, cuja conseqüência na

modernidade se expressa na suposta incompatibilidade entre razão e fé, ou seja, na

idéia da fé como algo irracional.

Por isso, Schleiermacher deseja colocar a experiência e o sujeito no centro de

seu empreendimento teológico, na tentativa de reconciliar a modernidade ilustrada

com a tradição cristã. Atitude reconciliatória que pode ser sintetizada na

compreensão da teologia como uma teologia da mediação, e no intento de dotar a fé

cristã de um mínimo de inteligibilidade num contexto marcado por tradições

152 No contexto católico, esta idéia é desenvolvida mais tarde pelo teólogo alemão Karl Rahner, a partir da aplicação do método transcendental na teologia. 153 Luis H. DREHER. O método teológico de Friedrich Schleiermacher, p.55.

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iluministas. Para esta tradição, a religião se reduz ao humano, caracterizando-se

frequentemente como uma enfermidade social e um estágio infantil da humanidade a

ser superado, como definiram respectivamente mais tarde Karl Marx e Sigmund

Freud. Neste sentido, se a teologia da mediação não deve ignorar os últimos

resultados das ciências na organização de sua estrutura epistemológica, as ciências,

por sua vez, não devem a princípio rejeitar a fé religiosa como sendo algo irracional.

É no contexto deste diálogo que se torna mais claro o porquê de se apresentar

a centralidade do papel da experiência no trabalho teológico. A centralidade desta

experiência traz como conseqüência a teologia como “ato segundo”, pois o trabalho

teológico é precedido por esta dimensão pré–teológica, que é a experiência religiosa

do Infinito. Em última análise, há uma precedência da vida humana com relação à

teologia.

Além disso, Schleiermacher estava profundamente convencido de que a

religião é sentimento mais que conhecimento, ela é fundamentalmente o sentimento

ou a consciência da presença de Deus no humano, sendo que toda interpretação

intelectual deve basear-se e vincular-se a este ato primeiro. Daí podermos afirmar

que, sendo ato segundo, a teologia não define, mas interpreta a fé para os crentes, ela

é hermenêutica da linguagem religiosa de uma experiência humana do Sagrado,

sempre historicamente situada.

Por isso, na interpretação que Schleiermacher faz do Cristianismo, o ponto de

partida não é o Cristo como logos de Deus, mas sim o Cristo histórico, o que fez com

que ele fosse acusado de falar de dois Cristos: um arquétipo e outro histórico, como

se houvesse em sua obra uma referência a um Cristo interior que teria precedência ao

Cristo histórico.154

Não nos cabe entrar no mérito ou demérito desta questão, mas gostaríamos

apenas de afirmar que o conteúdo da fé cristã em seu método teológico é apresentado

como um processo, cuja fonte é a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo, e que se

desenvolve na comunidade eclesial como comunidade histórica. Além disso, o

154 Friedrich SCHLEIERMACHER. A primeira carta a Friedrich Lücke, p. 57-59; 73-74.

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Cristianismo é visto por ele como um ramo particular do desenvolvimento da história

das religiões, sendo o conhecimento do Cristianismo primitivo algo necessário na

medida em que este é visto como momento originário da doutrina e da comunidade, e

não a sua constituição definitiva. Neste sentido, podemos entender a tarefa da

hermenêutica teológica como compreensão dos textos originais que fundam a

religião cristã, tidos como uma manifestação histórica e particular do sentimento de

absoluta dependência de Deus.

A maneira como Schleiermacher entende a Religião cristã, ou seja, fazendo

parte de um processo histórico, o permite estabelecer um diálogo entre a teologia e as

ciências, bem como entre a fé cristã e outras experiências religiosas. Ele abre espaço

para o diálogo fora do campo teológico, adequando a linguagem religiosa a fim de

comunicar o específico da experiência cristã no campo da experiência humana.

Schleiermacher mostra a possibilidade de se considerar cientificamente o específico

do Cristianismo desde o contexto do fenômeno religioso, sendo este entendido como

uma experiência humana universal. Este é um valioso aporte para o diálogo com um

mundo plural como o nosso, desde a perspectiva da teologia.155

Esta maneira de conceber o método teológico permite aos olhos de

Schleiermacher garantir à teologia uma melhor definição de sua tarefa frente a outras

disciplinas como a filosofia prática (ética) e a filosofia teórica (metafísica). Além

disso, o apelo à experiência religiosa nos ajuda a entrar em diálogo com a cultura

marcada pelo Iluminismo que havia definido a religião e a fé como categorias que

não faziam parte da essência do ser humano e que fatalmente expressavam a

submissão a uma autoridade exterior manifesta na tradição, no dogma e na Escritura,

ou seja, submissão que aponta para o caráter não razoável e para a falta de autonomia

da religião e da fé.

Para Schleiermacher, todas as disciplinas científicas necessitam organizar os

dados colhidos da experiência por meio de um construtor teórico, ou seja, de um

princípio unificador adquirido a partir de uma dimensão especulativa, cujas regras

155 Emilio N. MONTI. Schleiermacher: uma teología missonera, p.179.

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encontram-se na dialética. Em resumo, somente existe ciência a partir da interação

entre as dimensões empíricas e as especulativas.

Como conseqüência para o campo teológico, temos que a definição da

teologia como disciplina científica exige a incorporação da marca especulativa e a

tendência empírica. Em outras palavras, a teologia deve fundamentar sua reflexão a

partir de elementos advindos da história e da experiência, e proceder a sistematização

desses dados por meio de um construtor teórico de base especulativa.

Para alguns estudiosos, no projeto teológico de Schleiermacher, o equilíbrio

entre a experiência e a especulação encontra sua melhor expressão no que vem a ser

denominado como teologia histórica, que possui uma estrutura ternária: a exegese

que se ocupa do conhecimento do cristianismo original, a história da Igreja e a

história dogmática que se ocupam do conhecimento do passado cristão, e por fim a

dogmática que abrange o conhecimento atual do cristianismo. 156

Uma questão que se impõe neste momento diz respeito à possibilidade de se

encontrar um princípio especulativo interno próprio à linguagem teológica. A

resposta a esta indagação passa inevitavelmente pela concepção de ciência positiva

que porventura venhamos utilizar para definir a cientificidade da teologia. No

método desenvolvido por Schleiermacher, a teologia é vista como ciência na medida

em que contribui com uma tarefa de ordem prática, a saber, a organização da Igreja.

Entretanto, a teologia igualmente pode ser definida como ciência positiva uma vez

que ela procura descrever metodicamente, por meio de uma linguagem conceptual, a

experiência religiosa que se inscreve no seu discurso teológico como pressuposto

fundamental.

Outro pressuposto importante do método teológico de Schleiermacher

consiste na convicção de que a teologia é essencialmente eclesial e ético–

comunitária, e também que a sua teoria da religião se configura como fundamento de

sua obra teológica, ou seja, aquilo que ele entende por religião, desde a ótica da

experiência religiosa tem prioridade sobre a teologia. Isto nos coloca diante da

156 J.J. GRANADOS. Bibliografía de Frederico Daniel Ernesto Schleiermacher, p.37.

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seguinte questão: por que a fé religiosa tem necessidade de uma outra linguagem, no

caso a teológica, para possuir maior clareza? Será a linguagem religiosa insuficiente

para fortalecer a experiência religiosa do crente? O caminho que nos aproxima de

uma possível resposta a estas questões é aquele que nos conduz à intelecção da tarefa

teológica como interpretação da experiência cristã de Deus.

Assim sendo, a aproximação entre a teologia e a religião passa

inevitavelmente pela compreensão daquilo que se convencionou chamar de “arte e

técnica da interpretação”: a hermenêutica. 157 E para Schleiermacher interpretar é na

verdade o modo de ser humano, algo que não se restringe somente a uma dimensão

da vida, mas diz respeito à vida como um todo. Afinal, como ele mesmo afirma, “...a

hermenêutica não deve ser limitada às produções literárias; pois eu me surpreendo

seguidamente no curso de uma conversação familiar realizando operações

hermenêuticas.”158

Ao longo da história das ciências, pouco a pouco se estabeleceu uma

inteligibilidade própria às ciências humanas (compreensão), distinta da metodologia

das ciências naturais (explicação). Se estas buscam as causas dos fenômenos por

meio da observação e da quantificação, as ciências humanas visam a compreensão da

significação intencional das ações do ser humano. No contexto da obra teológica de

Schleiermacher, este modelo de racionalização próprio das ciências humanas é

retirado da interpretação de textos e apresenta as seguintes características: a

inseparabilidade entre sujeito e objeto, o condicionamento de toda expressão humana

a um horizonte lingüístico, a mútua dependência entre o todo e o particular, e a

referência a uma pré-compreensão.159

A hermenêutica como arte e técnica de interpretação de texto encontra suas

origens na cultura grega, que procurava preservar e compreender seus poetas. Mais

157 Schleiermacher nunca deu uma forma sistemática a seus escritos sobre hermenêutica. Todavia, em 1959, Heinz Kimmerle, sob a orientação de H–G Gadamer, publica um livro intitulado Hermenêutica (Hermeneutik), no qual reúne os escritos de Schleiermacher que abrangem o período entre 1805 e 1833. O desenvolvimento de sua reflexão em torno da arte da interpretação confere a Schleiermacher o título de fundador da hermenêutica moderna. 158 Friedrich SCHLEIERMACHER. Hermenêutica, p.33. 159 Idem, ibidem, p.8.

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tarde, esta técnica se desenvolveria na tradição judaico–cristã, propriamente na

exegese dos textos bíblicos. Os estudos de hermenêutica de Schleiermacher devem

ser compreendidos no horizonte da teologia protestante do final do século XVIII, no

qual encontramos o antigo ideal de reconstruir o sentido original de um texto, dado

pelo seu autor. Todavia, uma preocupação central na sua obra teológica consiste em

desvencilhar-se de um círculo dogmático no qual os textos bíblicos são interpretados

à luz dos dogmas, tomados por verdades absolutas. De um modo especial,

...a questão teológica da relação das Escrituras com os originais, por um lado, e com a autoridade dogmática, por outro, geraram múltiplas tentativas de estabelecer critérios de interpretação, que foram plasmados em diferentes obras, nas quais o termo “hermenêutica” começou a circular com veemência.160

Para a hermenêutica dogmática, a interpretação da Escritura reduz-se à

confirmação daquilo que já fora afirmado nas formulações dogmáticas. Por isso, na

busca de uma hermenêutica geral (Allgemeine Hermeneutik), Schleiermacher visa

tomar distância de modelos pré–estabelecidos para recuperar o pensamento dos

autores, tanto nos textos bíblicos como nos textos clássicos. Assim, a hermenêutica é

definida como “a arte da compreensão correta do discurso do outro”. E esta

hermenêutica geral deve estar filosoficamente fundamentada na idéia de que o

particular se entende desde o universal. Além disso, uma hermenêutica geral não

deve preocupar-se com o como interpretar determinado texto, mas sim com o que

significa em geral interpretar e compreender, e como isto acontece.

Neste sentido, recuperar a intenção do autor de um texto somente é possível

graças à “humanidade” que envolve tanto o autor como o leitor. A hermenêutica se

configura, pois, na arte de entender-se uns com os outros, de estar de acordo sobre

“algo”, ou ainda, de compreender corretamente o discurso de outro. Isto implica em

compreender não somente o texto, mas igualmente a própria individualidade do

autor, a gênese de suas idéias. O que tecnicamente se define como congenialidade ou

pertença do intérprete ao mesmo gênero (humano) que o autor:

o saber histórico, segundo Schleiermacher, nos permite suprir o perdido e reconstruir a tradição que nos devolve o ocasional e

160 José Severino CROATTO . Schleiermacher: como exégeta y hermeneuta, p.101.

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originário. Há que se tentar reproduzir o que foi a produção original de seu autor.161

A distância entre o autor e o le itor é algo negativo na maneira como ele

concebe a tarefa hermenêutica, e que portanto deve ser superada. Esta visão deve ser

entendida dentro do contexto teológico da tentativa de reconhecer a diversidade de

autores da Escritura, em vista de abandonar a unidade dogmática compreendida

como verdade absoluta, ou seja, como monopólio da interpretação realizada por parte

de uma instituição.

Insatisfeito com o estado da hermenêutica em sua época, Schleiermacher se

propôs a organizar as regras da hermenêutica a fim de fazer dela uma “arte

verdadeira”. Para ele, a hermenêutica é uma ciência geral, sendo a hermenêutica

bíblica um caso particular desta ciência. Com Schleiermacher, temos o discurso

indissociavelmente ligado à hermenêutica, e esta concebida como uma disciplina

filosófica, sendo seu projeto contextualizar as hermenêuticas regionais numa

hermenêutica geral, destacando o caráter universal da interpretação. Para esta

concepção, a hermenêutica não se caracteriza como uma disciplina auxiliar de

algumas ciências, mas sim como a arte de compreender em geral. 162 É por isso que,

para Schleiermacher, a teologia cristã não considera os estudos bíblicos e o estudo

dos clássicos da antiguidade a essência da arte da interpretação, elas são apenas

derivações da mesma.163

A hermenêutica como arte de descobrir os pensamentos de um autor se exerce

em todo lugar onde existirem escritores. E não somente aí, mas também em todo

lugar em que exista algo de “estranho” no discurso para um ouvinte. Entretanto, esta

estranheza não pode ser total, algo em comum deve haver entre aquele que fala e

aquele que escuta, entre aquele que escreve e aquele que lê. Do contrário, a arte da

interpretação não seria possível. 164 E esta arte possui o lado gramatical, a

161 Idem, ibidem, p.110. 162 Rosino GIBELLINI. A teologia do século XX, p.59. 163 Friedrich SCHLEIERMACHER. Hermenêutica, p.29. 164 Idem, ibidem, p.30.

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compreensão do discurso desde a totalidade da língua, e o lado psicológico, a

compreensão do discurso como um ato da contínua produção de idéias.165

Antes de Schleiermacher existia uma filologia dos textos clássicos (sobretudo

da antiguidade greco–latina) e uma exegese dos textos sagrados. Contudo, uma

hermenêutica geral exige a subordinação das regras particulares da exegese e da

filologia à problemática geral do compreender. Nesta linha de raciocínio, podemos

dizer que

“A hermenêutica nasceu desse esforço para se elevar a exegese e a filologia ao nível de uma Kunstlehre, vale dizer, de uma ‘tecnologia’ que não se limita mais a uma simples coleção de operações desarticuladas.” 166

Schleiermacher se defronta, pois, com o problema da relação entre duas

formas de interpretação: a gramatical (objetiva) e a técnica (positiva). A objetiva

versa sobre os caracteres lingüísticos distintos de um autor. O seu pensamento aponta

para uma hermenêutica romântica, ou seja, trata-se de compreender um autor tão

bem ou até melhor do que o próprio autor se compreendeu desde a apreensão da

evolução das idéias de um autor, e não apenas a compreensão do texto como texto.167

Por isso, no exercício da hermenêutica, é fundamental a identificação do

intérprete com o pensamento do autor por meio da participação de ambos na razão

universal, ou seja, é preciso levar em conta o papel do intérprete frente à questão do

sentido e da verdade na interpretação. Além disso, é importante lembrar que cada

particular apenas pode ser compreendido por meio do todo, e toda explicação do

particular supõe já uma certa compreensão do todo, a partir da dialética todo–

particular, universal–histórico, Infinito–finito.168

Apesar de alguns aspectos da obra teológica de Schleiermacher não se

aplicarem à atual reflexão em torno do estudo científico da religião, o seu projeto

teológico no final do século XVIII deu início a uma nova era tanto para os estudos

165 Idem, ibidem, p.42. 166 Paul RICŒUR. Interpretação e ideologias, p.19. 167 Friedrich SCHLEIERMACHER. Hermenêutica, p.43; 69. 168 Idem, ibidem, p.46.

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teológicos quanto para a interpretação científica da religião. Todavia, isto não o

poupou de severas críticas como, por exemplo, de ter reduzido a teologia à pura

emoção, ao fazer dela algo imediato e interno ao sentimento humano e também por

ter fundamentado filosoficamente a sua teologia numa espécie de semipanteísmo.

A isto podemos acrescentar a sua idéia de teologia como disciplina em vista

da condução da Igreja, pois uma consequência que alguns retiram desta concepção é

que somente quem possuísse formação teológica poderia participar do governo.

Como desdobramento desta visão teológica e eclesial temos o fato de que o discurso

cristão sobre Deus pouco ou nada teria a dizer para além dos muros da Igreja e de

seus interesses.

Uma outra crítica diz respeito à ênfase concedida à dimensão antropocêntrica

na definição de religião. Esta postura transforma a religião em algo teologicamente

inadequado para pensadores como Karl Barth, para quem o estudo da religião teria se

transformado muito mais em um estudo sobre a humanidade do que em um estudo

sobre Deus, ou seja, falar da religião não significa mais falar de Deus.169

Enfim, uma questão: será que a polarização Transcendência divina–

consciência da presença de Deus no humano encontra-se suficientemente próxima

para proporcionar uma verdadeira experiência de Deus (do Sagrado) e

suficientemente separada a fim de não transformar a transcendência divina em mera

projeção da autoconsciência do ser humano?

Em todo caso, gostaríamos de destacar uma das grandes contribuições de

Schleiermacher para o trabalho teológico no tocante ao estudo da religião: fazer da

religião algo constitutivo do ser humano. Neste sentido, ele desloca a religião do

contexto de uma mera construção cultural e a coloca no interior do humano, como

uma estrutura antropológica fundamental que faz parte da vida humana como um

todo. Em outras palavras, a religião existe por si mesma e não por permissão ou

benevolência da ciência.

169 Franscis S. FIORENZA. Religion a contested site in theology and the study of religion, p.9-14.

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A título de conclusão, o que não significa finalizar a contribuição de

Schleiermacher para com a nossa reflexão em torno do papel da teologia no estudo

da religião, é importante ressaltar que afirmar ser a teologia filha da religião supõe

que o discurso teológico tenha a sua identidade sempre referida à experiência

humana do Infinito. Em outras palavras, a experiência religiosa não é só a origem do

discurso teológico, mas é igualmente a sua fonte perene, desde onde o teólogo

interpreta a linguagem por meio da qual se expressa determinada comunidade de fé.

A circularidade que caracteriza a relação filial entre a religião e o discurso teológico

é dinamizada pela dimensão antropológica e o empreendimento hermenêutico, que

caracterizam o método teológico de Schleiermacher e que um século e meio mais

tarde fundamentariam a reflexão de um outro teólogo: Juan Luis Segundo.

2. JUAN LUIS SEGUNDO: A TEOLOGIA PARA O LEIGO ADULTO.

a. Fé, Ideologia e Religião170.

Juan Luis Segundo nasceu em 31 de outubro de 1925, em Montevidéu. Em

1941 entrou na Companhia de Jesus, ordem religiosa dos jesuítas, sendo ordenado

sacerdote em 1955. Estudou filosofia em Buenos Aires, teologia em Lovaina e fez

doutorado em filosofia em Paris. Em Montevidéu trabalhou na pastoral universitária,

fundou e dirigiu o Centro de Investigação e Ação Social Pedro Fabro, e foi editor da

revista Perspectiva de Diálogo. Em 1975, por exigência do governo uruguaio, tanto o

Centro como a Revista encerraram suas atividades. Juan Luis Segundo acompanhou

a formação de diversos grupos de leigos no Uruguai, lecionou em diversas

universidades latino-americanas e nas universidades de Harvard, Chicago e

Birminghan. Faleceu no dia 17 de janeiro de 1996.

170 A reflexão teológica de Juan Luis Segundo acerca da mutua relação entre estes termos encontra-se fundamentalmente nas seguintes obras: “O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré. Fé e ideologia” e “Fé e ideologia. As dimensões do homem”.

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Em sua obra intitulada “O dogma que liberta”, ele define de forma sucinta o

seu trabalho teológico: “o que de mim se exigia era a progressiva formação de um

modo cristão e global de pensar que pudesse lançar luz sobre uma realidade

complexa, na qual a fé de um grupo (preferentemente) de leigos se achasse

comprometida.”171 Neste sentido, a teologia surge como a busca de sentido para a

existência humana, ou ainda, consiste em ajudar o ser humano a ser cada vez mais

humano, falando- lhe de Deus, do Deus que se revela. A teologia deve, pois, ajudar o

fiel a melhor compreender a sua fé em sintonia com a sua vida e a sua história.

Os interlocutores preferenciais de Segundo são cristãos e não cristãos de

classe média, aos quais ele procura indicar um caminho que os conduza a uma maior

maturidade humana e cristã, em vista da construção de uma sociedade mais justa e

fraterna. Testemunho deste seu intento teológico é a sua obra “Teologia aberta para

leigos adultos”, composta de cinco volumes. Dito em termos neotestamentários,

Segundo deseja ajudar as pessoas a darem razão de sua esperança (1Pd3,15). Neste

diálogo, ele articula a racionalidade e a fé, desde o ponto de vista da ética. E isto a

partir de questões como: de que maneira a fé cristã pode contribuir com a maior

humanização do ser humano? O que a fé e a revelação trazem de novo para pessoas

que estão engajadas na luta pela construção de uma sociedade mais justa e

fraterna?172

O conceito de religião apresentado por Juan Luis Segundo deve ser

compreendido desde o horizonte de interação entre fé e ideologia. Uma das riquezas

de sua reflexão teológica está no esforço em demonstrar a impossibilidade de uma

ciência neutra, afinal toda ciência está a serviço de uma escala de valores e isto é

profundamente humano. Não existe pesquisa, por mais objetiva que pretenda ser, que

não seja realizada a partir de um horizonte de interesses. Conhecer é sempre

interpretar. A estrutura hermenêutica de toda forma de saber faz com que entremos

com nossos paradigmas e categorias na interpretação do objeto de nossa experiência

ou pesquisa. O ser humano não é pura razão, estamos inseridos numa história e

somos movidos por interesses pessoais e coletivos.

171 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.26. 172 Afonso MURAD. A teologia inquieta de Juan Luis Segundo, p.157-158.

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Neste sentido, não existe um saber puramente desinteressado ou livre de

ideologias.173 A ciência moderna constitui-se num ato reconstrutivo de interpretação

da realidade, ao qual está associado um sistema referencial elaborado a partir de

jogos ideológicos, conflitos de interesses, crenças e convicções pessoais, objetivos

formais e existenciais, bem como desde condicionamentos históricos do método

empregado no processo de produção científica. Este sistema referencial não está

voltado somente para verdades formais, mas, sobretudo, para afetos construídos na

relação com princípios herdados, uma vez que inicialmente aceitamos tais princípios

pelo fato de serem transmitidos por pessoas com as quais estabelecemos uma relação

fiducial, ou seja, por pessoas nas quais temos fé, no sentido antropológico do termo.

É importante lembrar também que a especialização das ciências aconteceu

quando elas “criaram cada uma num determinado campo do saber, instrumentos de

mediação e de manipulação cada vez mais precisos. Ou seja, a partir do momento

em que se prenderam à mediação empírica.”174 E, em parte, isto significou o

distanciamento de um modo narrativo de discurso que caracteriza tanto o discurso

religioso quanto o discurso teológico.

Entretanto, Segundo procura mostrar que toda forma de conhecimento

humano trabalha com “dados transcendentes”, ou seja, com informações não

demonstradas empiricamente que a nós nos chegam por via testemunhal e que

aceitamos como verdadeiras porque atendem às nossas expectativas prévias. Estes

dados transcendentes estão presentes em todo comportamento humano estruturado,

independentemente da nossa vontade.

Estes dados são transcendentes não porque falam de Deus, por se tratar de

uma linguagem estritamente religiosa, ou ainda de algo que transcenda a realidade,

mas sim porque são dados a serem considerados como válidos, embor a sua

comprovação empírica não nos seja possível num primeiro momento. Neste sentido,

“pode-se ser honrada e coerentemente ateu e, não obstante, sempre será mister

estabelecer como válidos dados que não se podem verificar empiricamente.”175 Algo

173 Juan Luis SEGUNDO . O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p. 27. 174 Idem.Que mundo? Que homem? Que Deus?, p.11. 175 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.215.

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inerente até mesmo às chamadas ciências experimentais, aquelas que têm a mediação

empírica como uma dimensão central de sua estrutura epistemológica.

A estes dados transcendentes corresponde um tipo de conhecimento que

podemos intitular de fé, no sentido social e leigo da palavra, a qual deve ser

entendida como uma dimensão antropológica, quer se tenha algum tipo de crença

religiosa ou não. É esta fé antropológica que nos permite acolher ou rechaçar

determinado mundo de valores que tomam corpo em pessoas que por sua vez se

apresentam a nós como testemunhos referenciais. Não se trata neste momento de

enfocar o matiz religioso da palavra fé, mas a sua dimensão antropológica, a qual

tem por ponto de partida uma experiência que não pode ser comprovada

cientificamente, segundo o modelo empírico–formal. 176

Neste sentido, podemos dizer que todo ser humano necessita de testemunhos

referenciais para articular seu mundo de valores, os quais são oferecidos pela

sociedade e exigem um ato de fé, pois não podemos experimentar até às últimas

conseqüências todos os valores que irão fundamentar a nossa existência antes de nos

decidirmos por eles. Não sabemos por experiência própria o quão satisfatório será o

caminho por nós escolhido, pois a nossa escolha implica numa aposta, sendo que a

idéia de um caminho satisfatório é construída a partir das experiências alheias, não

comprovadas previamente por nós:

...o homem porque não pode realizar uma viagem até os confins da existência para experimentar por si mesmo o caráter satisfatório da estrutura significativa que se propõe dar a sua vida, opta fundamentalmente pela fé. Isto racionalmente falando, é a–racional, a–científico, por mais humano e necessário que a gente o considere.177

A fé como uma dimensão antropológica significa que ela é constitutiva do ser

humano, representando uma aposta existencial e fazendo da sua verificabilidade

última uma instância escatológica. Eu assumo algo como verdadeiro ainda que não

possa verificar empiricamente, por enquanto. Trata-se de uma reapropriação pessoal

de valores simbolicamente manifestos no ambiente cultural por outras pessoas:

testemunhos referenciais.

176 Idem, ibidem, p.31. 177 Idem, ibidem, p.117.

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São estas testemunhas que nos dão acesso a experiências de valores, os quais

são entendidos como aquilo que nos impulsiona a agir, tidos por representações

simbólicas de possibilidades de satisfação. Os valores podem ser igualmente

compreendidos como uma rede epistemológica que possibilita e limita a observação

da realidade, uma vez que a nossa escala de valores nos leva a olhar a realidade

desde um ponto de vis ta dentre tantos outros possíveis. Escolher um caminho

significa fechar-se a outras possibilidades, ou seja, assumir um determinado valor

significa a não experiência de outras experiências possíveis, sendo que, em grande

parte, o decisivo em primeiro lugar é o afeto e não uma análise científica, racional,

da realidade. Abraçamos valores porque a priori, ou seja, sem uma comprovação

experimental imediata, cremos que o caminho percorrido por outros é válido, é

seguro. Em outras palavras,

O ser humano(...)está ligado por uma rede de premissas epistemológicas e ontológicas que – independentemente de sua verdade ou falsidade últimas – se convertem parcialmente em autovalidantes.178

O ato de conhecer fundamentado na fé antropológica é tecido numa trama de

relações oriundas de processos culturais complexos, interesses pessoais e sociais.

Nesta perspectiva, toda ciência está a serviço de uma escala de valores, sendo estes

entendidos como elementos de uma estrutura antropológica que de imediato,

digamos outra vez, não podem ser compreendidos empiricamente. Assim,

a ciência mais abstrata só se torna possível e real a partir de um para quê não–científico que a inscreve numa fé antropológica. Não se é científico nem crítico sem crer em algo sem o qual a cientificidade ou a criticidade não importaria em nada.179

Por mais materialista que seja, um pesquisador trabalha inevitavelmente com

dados transcendentes, pois não pode experimentar até as últimas conseqüências os

valores que orientam a sua pesquisa e a sua própria existência, sem antes já ter aceito

tais valores. Isto demonstra a impossibilidade de uma ciência neutra.

178 Idem, ibidem, p.169. 179 Idem, ibidem, p.164.

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Por isso, tanto o ateísmo como o teísmo, de certa maneira, ultrapassam aquilo

que pode ser comprovado científica e empiricamente, ou seja, se crer em Deus é uma

aposta, igualmente o é a negação da sua existência. Mesmo o materialismo,

sobretudo o histórico, necessita de elementos da fé antropológica que não podem vir

da própria ciência. O sucesso da análise marxista da realidade, por exemplo, não está

somente no seu rigor científico, mas também no sentimento de esperança que ela

provoca nos leitores de Marx e este sentimento não pode ser comprovado só através

do método empírico–formal. A esperança numa sociedade justa é uma aposta e nos

leva a acreditar em algo que de imediato ultrapassa o empiricamente comprovável.

Para Segundo, a fé antropológica é um movimento cujo termo é sempre uma

pessoa, pois não existem coisas valiosas se o seu valor não for demonstrado na

relação interpessoal, se o valor de algo não estiver encarnado em pessoas concretas,

as quais denominamos por testemunhos referenciais. 180

É importante ressaltar que este encontro interpessoal significa adesão a uma

tradição através do reconhecimento de uma continuidade de testemunhos

historicamente situados. Isto porque a fé antropológica não é simplesmente fruto da

relação entre o sujeito e a realidade que o circunscreve, mas sobretudo expressa

adesão a valores descobertos no face a face com o outro que se nos apresenta como

testemunho referencial. 181 Além disso, a idéia da fé antropológica supõe que o ser

humano seja alguém que procura dar sentido à própria existência, alguém que busca

uma orientação na vida.

O ponto de partida da fé antropológica é a pessoa individual, mas ela somente

pode ser elaborada desde o tecido social no qual estamos inseridos e na reapropriação

pessoal de valores simbolicamente manifestos no ambiente cultural por outras

pessoas que nos servem de referência. Isto faz com que a fé antropológica seja uma

aposta existencial que não se confunde com um passo cego no escuro, pois a opção

que tal fé comporta somente é possível graças ao testemunho de pessoas que nos

ajudam a valorar, a dar sentido à própria vida. Segundo deseja dar à noção de fé

180 Idem, ibidem, p.40. 181 Eduardo GROSS . A concepção de fé em Juan Luis Segundo, p.119.

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antropológica uma dimensão universal que encontra seus equivalentes em

terminologias altamente científicas. Por isso, ele propõe “uma necessária

complementariedade entre fé que estrutura o mundo da significação e a razão que

estuda as possibilidades da realidade para levar a efeito os valores estabelecidos

por aquela.”182

Assim, a fé antropológica, antes de se expressar no campo religioso e de se

exprimir no campo conceitual da teologia, traz em si mesma uma estrutura fiducial

que fundamenta nossas escolhas, as quais limitam e realizam nossa liberdade: todos

nós, cristãos e não–cristãos, construímos nossa escala de valores inicialmente

confiando em outras pessoas.183

A fé antropológica, sem deixar de sê- lo, transforma-se em fé religiosa. Esta fé

nos diz que pessoas como nós que viveram determinados acontecimentos históricos

como revelação de Deus, querendo distingui- los de outros acontecimentos ordinários,

se apresentam como testemunhas referenciais que encarnam valores que dão sentido

à existência humana.184 Entretanto, por meio da fé religiosa, não se trata de declarar a

aceitação de um conjunto de normas e de dogmas, mas sim aceitar uma proposta

existencial apresentada e encarnada numa pessoa concreta. Neste sentido, a fé cristã

é a aceitação dos valores que Deus propõe na pessoa de Jesus cristo e isto acontece

pelos caminhos da história, marcada por conquistas, esperanças e dilemas

humanos.185

Do contrário, “supor que primeiro aceitamos Deus e depois lhe perguntamos

que valores havemos de cultivar não passa de um absurdo lugar comum.”186 Temos

aqui uma crítica a uma definição meramente conceptual de Deus, porque para

Segundo uma escala de valores nomeia Deus de forma mais clara e radical do que

qualquer nomeação abstrata de Deus. O ponto de partida para a fé religiosa (ou a sua

recusa) está justamente na sinceridade com a qual é vivida determinada escala de

182 Juan Luis SEGUNDO . O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.118. 183 Idem. A libertação da teologia, p.115. 184 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.79. 185 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, II/1, 373-374. 186 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.81.

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valores, sendo que no caso cristão o valor absoluto é o amor, a abertura e a entrega

ao outro.187

A fé religiosa determina, pois, valores fundamentais naqueles que a aceitam e

na religião cristã estes valores ganham maior visibilidade com a proximidade do

Reino de Deus que provoca uma metanóia, uma modificação radical na escala de

valores: “Depois que João foi entregue, Jesus veio para a Galiléia. Ele proclamava

o Evangelho de Deus e dizia: cumpriu-se o tempo e o Reinado de Deus aproximou-

se. Convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,14-15). A fé religiosa edificada a

partir da fé antropológica surge como fonte de uma nova estrutura significativa, ela

deve dar soluções humanas a questões humanas, desde um processo que Segundo

chama de aprender a aprender: “depositamos a fé humana naqueles que souberam

manter certos valores, basicamente semelhantes aos nossos, aprendendo a realizá-

los apesar de mudanças, incertezas e fracassos.”188 Pessoas que vivem esses valores

em determinadas situações que são tidas como revelação de Deus.

É, pois, a revelação que converte a fé antropológica em fé religiosa, a qual

continua a desempenhar a mesma função básica, qual seja, estruturar uma escala de

valores que dá sentido à existência humana. Esta concepção de revelação se afasta da

idéia de que a fé se tornaria religiosa quando abandonássemos as testemunhas

humanas para apoiar-nos exclusivamente na autoridade de Deus, ou seja, deixar os

sinais dos tempos para fixar nossos olhar nos sinais dos céus (Mt 16,1-4).

É neste sentido que podemos entender o porquê Jesus ter condicionado a

autêntica fé nele a valores humanos preexistentes, provindos de testemunhos

referenciais historicamente bem situados e narrados no Antigo Testamento. Além

disso, é bom lembrar que a fé em Deus não só confirma valores como também os

corrige e determina. Esta compreensão da fé religiosa valoriza a experiência pessoal

e comunitária de determinada escala de valores, experiência que se constitui na

dimensão empírica da fé religiosa.

187 Idem. Que mudo? Que homem? Que Deus?, p.195-219. 188 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, I, p.96.

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Esta maneira de conceber a fé (antropológica e religiosa) traz como

consequência a não-possibilidade de existir fé sem métodos condicionados pela

história, que levam a termo certos valores considerados essenciais para dar sentido à

vida humana. Trata-se de uma estrutura operativa da fé que Juan Luis Segundo

chama de ideologia. Assim, “...toda fé – e nisto a fé cristã não é exceção, por mais

verdadeira que seja considerada – estrutura valores que depois devem achar uma

via de realização dentro da complexidade do real.”189 No que diz respeito ao termo

ideologia, Segundo tem consciência de inaugurar um novo uso para este termo e da

dificuldade que isto pode trazer. Em todo caso, ele chama de ideologia a “todos os

sistemas de meios naturais ou artificiais, em vista da consecução de um fim...

ideologia é o conjunto sistemático daquilo que queremos de maneira hipotética, não

absoluta, em outras palavras, é todo sistema de meios.”190

Em seu método teológico, Segundo faz um grande esfo rço para distinguir a fé

religiosa da religião, pois a associação entre ambas é, na sua opinião, um profundo

mal–entendido. Isto porque a função mais comum das religiões explícitas e

catalogáveis tem sido ideológica: meios, instrumentos, para a consecução de valores

previamente estabelecidos. Por isso, a religião é colocada no nível da ideologia, ou

seja, da instrumentalização da fé, pois se a fé religiosa é o reconhecimento de valores

humanos defendidos por uma tradição como algo sagrado, a religião absolutiza uma

tradição como sagrada e em seguida aceita os valores por ela representados:

...o que sociologicamente traz o nome de religião não se caracteriza, em primeiro lugar, por ser uma fé antropológica esticada até um certo umbral. Era, antes, uma crença num instrumental não–científico, imposto como ritual ou como regulamento moral a partir do exterior e dotado de um poder que se presume sagrado e, por isso mesmo, eficaz para a realização de valores cuja atração procede de outras fontes.191

Com isto, Juan Luis Segundo faz uma profunda crítica às autoridades

eclesiásticas que pretendem colocar sob a jurisdição e a responsabilidade da Igreja

este conjunto ideológico que se chama religião, querendo transformá-la inclusive na

autêntica fé que fundamenta a Igreja, a qual deveria supostamente ter no centro de

189 Idem, ibidem, p.148. 190 Idem, ibidem, p.21. 191 Idem, ibidem, p.415.

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suas preocupações a preservação desta fé. Entretanto, como pensa Segundo, a

religião está muito mais ligada à cultura do que a uma fé propriamente religiosa,

sendo seus valores aqueles que a própria cultura transmite. Este posicionamento da

religião do lado da cultura é uma advertência àqueles que minimizam, por meio de

uma terminologia divinizante, os componentes culturais que a estruturam e

consequentemente perdem de vista a sua função ideológica, isto é, de ser

instrumental para a realização de valores.192

b. O círculo hermenêutico.

Em sua reflexão teológica, Segundo igualmente observa a não-percepção do

papel da ideologia na maneira como se ensina teologia, isto é, acredita-se

ingenuamente que a palavra de Deus é aplicada à realidade humana imune a

tendências ideológicas. Por isso, a metodologia que faz parte de seu projeto teológico

visa colocar juntas as disciplinas que interpretam o passado e aquelas que

interpretam o presente, no intuito de colocar a palavra de Deus na dinâmica de um

processo hermenêutico. Esta metodologia que pretende relacionar a palavra de Deus

com o passado e o presente é pretensiosamente chamada de círculo hermenêutico:

...a contínua mudança de nossa interpretação da Bíblia em função das contínuas mudanças de nossa realidade presente, tanto individual quanto social. Hermenêutica quer dizer interpretação. O caráter circular dessa interpretação significa que cada realidade nova obriga a interpretar de novo a revelação de Deus, a mudar, com ela, a realidade e, daí, voltar a interpretar...e assim sucessivamente.193

Este círculo hermenêutico consiste numa interdependência entre a

interpretação sempre renovada de um e outro Testamentos bíblicos e as novas

perguntas suscitadas pelo contexto histórico no qual nos encontramos. O círculo

hermenêutico é uma aproximação assintótica da verdade, é a não possibilidade de se

chegar – neste mundo – a uma interpretação plena e definitiva da verdade. Se 192 Idem, ibidem, p.46-47. 193 Idem. Libertação da teologia, p.10. Juan Luis Segundo dedica todo o primeiro capítulo desta sua obra à temática do círculo hermenêutico (p. 9-43).

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considerado como uma espiral hermenêutica, o esquema do círculo hermenêutico nos

faz avançar sempre em direção a uma verdade mais plena.

Todavia, existem duas condições necessárias para que haja um círculo

hermenêutico em teologia. Primeiramente, é preciso que as perguntas que brotam da

realidade sejam de tal modo persuasivas, a ponto de mudar a maneira de ver a

realidade, e somente assim a teologia será obrigada a colocar para si mesma novas e

decisivas perguntas. Em segundo lugar, para a teologia responder às novas questões

que surgem da realidade, é preciso que mude também a interpretação da Escritura,

pois caso contrário ela estará dando respostas velhas e inúteis aos novos problemas e

dilemas humanos. Em suma, o círculo hermenêutico em teologia, como o entende

Segundo, deve ao mesmo tempo considerar a riqueza e a profundidade das perguntas

e suspeitas humanas sobre a realidade, bem como a profundidade de uma nova

interpretação da Bíblia.

A estas duas condições, podemos ainda associar quatro pontos decisivos: a) a

suspeita ideológica oriunda da maneira de experimentar realidade; b) a aplicação

desta suspeita a toda superestrutura social e produção teológica; c) a suspeita

exegética, isto é, a suspeita de que a interpretação bíblica coloca de lado dados

importantes; d) enfim, uma nova hermenêutica que leve em consideração os novos

elementos à nossa disposição para interpretação da fonte da fé cristã, ou seja, a

Escritura. Para tanto, é preciso que tomemos por pressuposto que o Cristianismo é

uma religião do livro, no caso, uma religião bíblica. Isto significa que a teologia não

pode simplesmente ignorar tal fato, muito pelo contrário, sem negligenciar esta

característica, a teologia deve voltar-se indefinidamente a esta fonte, a fim de

reinterpretar os escritos que a constituem.

O ponto de partida do discurso teológico de Juan Luis Segundo é a

possibilidade de se afirmar o valor da vida humana desde a perspectiva da fé cristã.

Esta postura metodológica faz com que não se tenha Deus por objeto material, isto é,

não se parta de Deus para falar do humano, mas ao contrário, procura-se

compreender a mensagem divina a partir de toda e qualquer realidade humana. E ao

se inserir no chamado antropocentrismo teológico, Juan Luis Segundo entende que a

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presença de Deus na história não é uma concorrente ou rival do ser humano, mas

uma graça que fundamenta a nossa ação criadora como construtora de história.

Este antropocentrismo está muito próximo do método teológico desenvolvido

por Karl Rahner, uma vez que ambos se apóiam na noção de autodoação (graça) e

automanifestação (revelação) de Deus. Tanto em Rahner como em Segundo

encontramos igualmente uma confiança incondicional na ação do Espírito Santo, que

conduz a comunidade dos fiéis a uma sempre renovada interpretação da tradição

bíblico–cristã e de outros textos não–bíblicos, em sintonia com os processos

históricos no qual vivemos. Daí podermos dizer que a motivação última de ambos

passa por uma espécie de antropocentrismo pneumático.

Esta visão pneumatológica, por sua vez, fundamenta a noção de “aprender a

aprender”, a partir da qual é resgatada a importância da tarefa hermenêutica no

interior da teologia, inserindo a hermenêutica teológica num processo de

humanização: aprender a aprender com as vicissitudes históricas numa dinâmica de

crescimento e superação, no enfrentamento das crises e dos desafios. Todavia, se

para Segundo todos os aspectos da mensagem cristã constituem uma boa nova para o

ser humano, esta novidade precisa ser adequadamente interpretada a fim de que

possa estar devidamente a serviço do processo de amadurecimento ou humanização.

Mediante uma contínua e renovada atitude hermenêutica, surge a crítica ao

uso ideológico da religião na América Latina. Uma das fortes críticas de Segundo à

religiosidade popular na América Latina se dirige à sua contaminação por uma

concepção mágica de Deus, fruto de uma imposição colonialista, o que inviabiliza

colocar a religiosidade popular como paradigma de libertação:

...a religião do povo é hoje uma herança da cristianização forçada e armada, que impôs uma interpretação do Evangelho, inconscientemente feita, para servir aos interesses dos grupos dominantes em Espanha e Portugal, e que – na América – serviu para fins ideológicos idênticos, só que mais alheios à cultura imposta e, portanto, mais difíceis de questionar por aqueles que estavam obrigados a servir a algo que nem sequer era sua própria cultura.194

194 Idem. Que mundo? Que homem? Que Deus?, p.371.

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Em outras palavras, Segundo realiza uma crítica à infiltração de valores

desumanizadores na religião. Por isso, ele apresenta como alternativa à prática

religiosa vigente uma reintrepretação criativa das fontes do Cristianismo: a Escritura

e a Tradição. Além disso, é também sua intenção libertar a teologia, intérprete da

religião, do aprisionamento ideológico que a transforma em serva de uma estrutura

injusta. E para tal, é preciso garantir a soberania da Palavra de Deus, e ao mesmo

tempo compreender a contribuição das Ciências Humanas para com um projeto

teológico. Afinal, Segundo

propunha o uso das ciências humanas especialmente para ajudar o teólogo a perceber onde os mecanismos ideológicos ocultos se infiltram no dogma e na prática eclesial. Não se põe o acento em ler criticamente a realidade social e, depois, julgá-la teologicamente, mas em ler criticamente o discurso teológico e as práticas religiosas em vigor.195

Neste sentido, o discurso teológico não é um discurso sobre uma realidade já

definida pelas Ciências Humanas. O papel destas ciências no seu diálogo com a

teologia está em ajudar a desmascarar os elementos ideológicos que porventura

estejam presentes nos discursos teológicos sobre a realidade, sempre aberta à

interpretação, mesmo por parte da teologia.

A importância que o método teológico de Juan Luis Segundo confere à

elaboração de uma hermenêutica da história deve ser compreendida à luz da sua

concepção personalista de Deus como interlocutor do diálogo com o ser humano. Por

pessoa, entende-se alguém possuidor de liberdade e gerador de história, e que por

causa disso pode ser conhecido e amado por meio da interpretação de sua história.196

É somente na observação da história da relação de Deus com a humanidade que

poderemos perceber os valores que Deus representa para cada ser humano.

Ao valorizar a dimensão histórica deste relacionamento, Segundo propõe uma

alternativa teológica à metafísica, entendida como uma reflexão puramente categorial

de Deus e que se mantém num plano abstrato. Deste modo, a afirmação de Jesus de

195 Afonso MURAD. A teologia inquieta de Juan Luis Segundo, p.180. 196 Juan Luis SEGUNDO . Que mundo? Que homem? Que Deus? , p.430-433.

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Nazaré como revelação divina significa que Deus pode ser encontrado como pessoa

histórica.

Em seu projeto teológico, Juan Luis Segundo oferece elementos cristãos

àqueles que nem sempre abraçam uma determinada fé religiosa e os convida a

assumir a fé cristã como algo constitutivo do processo de humanização ao qual todo

ser humano é chamado a participar. A partir de elementos da tradição cris tã, este

projeto teológico abre um diálogo com aqueles que não suportam mais experimentar

uma fé ingênua, fundamentada em um modelo de Cristianismo superado, distante de

nossa realidade. Por isso, Segundo tenta fazer uma “Teologia aberta para o leigo

adulto”. Todavia, esta postura dialogal por parte da teologia não significa renunciar

ao essencial da fé cristã.

c. Revelação, Escritura e hermenêutica

Um dos aspectos essenciais da fé cristã é sem dúvida a revelação. Entretanto,

o ser humano, ouvinte da palavra, a quem Deus se revela, somente terá sido

alcançado por esta revelação quando a palavra de Deus converter-se em uma

diferença humanizadora dentro da história. Diferença esta que se configura numa

nova possibilidade de ser, pois a revelação de Deus não está destinada a somente

informar ao ser humano algo que de outro modo não lhe seria possível saber, mas

acima de tudo estar a serviço da humanização do ser humano, isto é, que ele seja de

outra maneira e possa agir melhor.197

Por isso, as verdades de fé existem hoje somente a partir da interpretação e

aplicação que o crente (o fiel) faz na sua vida: “...a pretensão de somente conservar

o depósito da revelação é uma das melhores maneiras de lhe ser infiel, de corrompê-

197 Segundo fundamenta parte da sua reflexão sobre a revelação divina como processo de humanização do ser humano no pensamento teológico de Andrés Torres de Queiruga, notadamente na obra A revelação de Deus na realização humana , São Paulo, Paulus, 1995.

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lo, de traí-lo. Porque é uma maneira por demais cômoda de ser fiel.”198 Ou como

afirmava Schleiermacher, querer conservar a todo custo inalterada uma doutrina,

dissociada de um processo hermenêutico, é transformá-la numa falsa ortodoxia.

Para Segundo, revelar é comunicar e comunicar é dar a vida, o que supõe

basicamente: a recepção, a compreensão e a interpretação. Em outras palavras,

“...pretender transmitir a revelação do Deus de Jesus somente a partir da

autoridade extrínseca e da imposição exterior significa deformá-la desde o

início.”199 Além disso, Deus não fala somente de maneira direta e isolada, mas por

meio de testemunhas que fazem parte de uma comunidade de testemunhas, o que

coloca aquele que confessa uma fé religiosa diante da necessidade de ter fé também

nesta comunidade.200

A não-aceitação ou a não-compreensão do papel desta comunidade de fé nos

coloca face a um grande perigo: acreditar que Deus teria agido de tal maneira nos

autores bíblicos que eles teriam escrito tudo e somente aquilo que Deus havia

querido. Em outras palavras, mais propriamente a partir de escritos do Concílio

Vaticano II, afirmar que:

Na redação dos livros Sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que agindo Ele próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que Ele próprio quisesse.201

Tomando por base estas palavras conciliares, o perigo está justamente em

desenvolver a noção de ditado, que aplicada aos textos bíblicos limita o espaço do

empreendimento hermenêutico. O escrito, o texto, não seria um processo

interpretativo e, consequentemente, compreender a mensagem significaria conhecer

melhor o próprio autor, no caso Deus, ficando igualmente excluída a possibilidade de

erro. Em outras palavras, o autor humano não erra ao dizer o que Deus quis revelar 198 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.13. 199 Idem, ibidem, p.16. 200 Esta postura de Juan Luis Segundo não se configura, como a princípio pode parecer, numa oposição ao que dissera Schleiermacher sobre o sentimento religioso, uma vez que este sentimento, apesar de ser uma experiência pessoal, supõe sempre a tradição. 201 Constituição Dogmática “Dei Verbum” nº 178, Concílio Vaticano II. Este documento conciliar afasta a possibilidade da existência de erro nos textos bíblicos (nº 11) e mostra como interpretar corretamente a Sagrada Escritura (nº 12-13).

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por meio dele e tampouco erra ao transpor a verdade revelada para o texto. Por isso,

a escrita continua contendo a verdade inefável que Deus quis comunicar. Todavia,

como nos lembra Segundo:

A única linguagem que o homem entende é a que surge da experiência humana. E mesmo que se esforce muito para tirar dessa linguagem tudo o que ela traz consigo de limitado, de imperfeito e de contingente, cada termo usado leva a marca de fábrica da experiência da qual surge. Deus “se” revela, referindo-se sempre a realidades do ser humano.202

Na maneira como Segundo entende a pedagogia divina, mais do que autor de

um livro (ou de livros), Deus é o autor de um processo educativo que forma o

conteúdo dos livros sagrados. Isto afasta a idéia de “ditado”, pois caso contrário não

se poderia falar de coisas imperfeitas e transitórias dentro da redação da Escritura,

algo admitido pelo próprio magistério da Igreja católica.203

Em que consiste, pois, a fraqueza dos autores humanos? Esta se encontra na

capacidade intelectual – limitada – de cada autor bíblico, bem como nas limitações e

nos condicionamentos próprios de uma determinada sociedade e de uma determinada

cultura. Em sua reflexão teológica, Segundo se esforça para tomar distância da

oposição que se estabelece entre erro e verdade no interior do conceito de inerrância

bíblica. Isto porque a descoberta do não verdadeiro ou do não totalmente verdadeiro,

ou ainda, do não suficientemente verdadeiro no próprio pensamento implica em

crises que suscitam novos questionamentos e novas hipóteses.

Neste paradoxo, somos empurrados para uma verdade sempre maior no

processo de interiorização da verdade. Algo possibilitado pela atitude interpretativa

tanto do escritor como do leitor que procede sempre uma nova interpretação daquilo

que foi escrito e transmitido. Neste sentido, Segundo concebe “a verdade revelada

não como uma verdade final, por mais absoluta que seja, mas como um elemento

fundamental para a busca da verdade.”204

202 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.133. 203 Constituição Dogmática “Dei Verbum” nº 15, Concílio Vaticano II. 204 Juan Luis Segundo. A libertação da teologia, p.169.

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Uma pedagogia verdadeira e sem erro não significa somente um acúmulo de

informações por parte do educando. Por isso, a confiança no conteúdo daquilo que

está contido nos escritos do Antigo Testamento, não afasta a possibilidade de erro e,

seguindo o caminho traçado pela tradição textual verterotestamentária, nos

encontramos sempre diante de uma verdade cada vez maior, com uma mais profunda

riqueza de sentido para a existência humana.205 A idéia de inerrância na Bíblia está

associada à idéia de que Deus é o “único” autor da Escritura, ficando as intenções, as

buscas e os contextos dos autores humanos praticamente reduzidos ou mesmo

anulados, uma vez que Deus havia “ditado” algo a alguém e isto é

“intemporalmente” verdadeiro. No tocante ao contexto católico,

O que influ iu, durante muitos séculos, para não admitir na Bíblia em geral, e no Antigo Testamento em particular, nada de imperfeito e transitório (até 1965, no Vaticano II) foi uma concepção redutivamente teológica – no sentido de a–histórica da formação do cânon.206

Em outras palavras, é importante considerar as motivações e as experiências

humanas que levaram Israel a fazer uma seleção de obras, nas quais viam a sua

identidade construída ao longo de um processo marcado pela experiência de

amadurecimento e orientado pela pedagogia divina que através de vicissitudes, erros

e descobertas, conduziu este processo a seu fim. Para Juan Luis Segundo, é

fundamental conservarmos viva a problemática existencial do ser humano que leva,

por exemplo, à formulação do dogma. Por isso, ele abandona a noção de “História

Sagrada” ou “História da Salvação” que coloca Deus como o autor do desenrolar da

história humana, o que praticamente dispensa a ação criadora do ser humano, como

renuncia a idéia de que o narrado nos textos bíblicos seria história no sentido

amplamente difundido hoje: fatos empíricos verificáveis. Abandono e renúncia que

fazem Juan Luis Segundo propor a pedagogia do aprender a aprender:

Dizendo de outro modo, a história dos acontecimentos, alguns míticos, outros históricos, todos literários, deve provocar uma leitura “meta–histórica”: fazer compreender que a verdade mais profunda, que aí se transmite, não é a que consistiria em obter uma informação exata

205 Idem. O dogma que liberta, p.144. 206 Idem, ibidem, p.173.

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sobre cada acontecimento e sobre sua interpretação isolada, mas a que se adquire num processo educativo.207

A pedagogia do aprender a aprender é a busca da superação da dicotomia

entre fé e vida, na certeza de que a infalibilidade atribuída a uma fórmula dogmática

a desvincula do processo de amadurecimento em busca da verdade. Além disso, a

oposição entre erro e verdade é uma postura maniqueísta que se afasta do processo

de aprendizagem rumo à verdade, que inclui o erro como momento de crise e

possibilidade de amadurecimento. A idéia de verdade imperfeita não surge de uma

mera insatisfação especulativa ou acadêmica, mas a partir das experiências que

permitem dar uma orientação, um sentido à vida, e que portanto podem ser chamadas

de dados transcendentais, uma vez que transcendem outros dados ordinários. É aí

que a verdade imperfeita apela ao juízo, à crise e consequentemente à interpretação.

No nosso modo de entender, esta maneira de Segundo trabalhar a

coexistência entre erro e busca da verdade equivale ao que chamamos de “o risco da

interpretação”, como momento em que se desvela uma nova vida, uma nova

possibilidade de ser, provocado pelo mundo que se descobre diante do texto e de seu

leitor.208

O dogma requer um trabalho de interpretação que supõe tanto a tradução

(quando se trata de uma outra língua) como todo um trabalho histórico, o que exige

da teologia a contextualização de cada afirmação teológica, dogmática. Tomemos,

por exemplo, a seguinte frase: “que o sol gira em volta da terra é tão verdadeiro

quanto que a sede do bispo de Roma tem primazia sobre todas as demais”.209 Dita

no século XIII, ela tem um sentido, ou seja, com ela se afirma a primazia do bispado

de Roma, mas, hoje, uma vez que é unânime a crença de que o sol não gira ao redor

da terra, a mesma frase estaria a negar a primazia do bispo de Roma.

Aquilo que a Igreja considera como depósito da revelação de Deus (Antigo e

Novo Testamentos), ou seja, a comunicação divina de onde procedem os dogmas, é

207 Idem, ibidem, p.188. 208 Algo que será trabalhado em nossa pesquisa a partir da reflexão hermenêutica de Paul Ricœur. 209 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.32.

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feita por meio de mitos, lendas, narrações,... No contexto do Cristianismo, mais

propriamente do contexto católico, todo dogmático fundamenta-se unicamente na

Bíblia para falar da revelação: “Deste único depósito da fé, o magistério da Igreja

tira tudo o que propõe para ser acreditado como divinamente revelado.”210 Mas,

para Segundo, este material bíblico está sujeito à interpretação e, no caso da Igreja

católica, esta interpretação não é exclusividade do magistério da Igreja.

A fim de mostrar que este processo interpretativo está presente na própria

elaboração daquilo que é fonte para o magistério eclesiástico, Segundo toma por base

as narrativas javista e sacerdotal do dilúvio, e mostra que tanto uma como outra

narrativas adaptam elementos significativos à verdade que cada narrativa deseja

comunicar. Não existe a preocupação com a verdade histórica, caso se entenda

história por uma cópia exata do que aconteceu em algum momento, mas sim com a

busca pelo sentido do acontecido, ou não acontecido, em todo caso, narrado. É no

nível do sentido que se deve entender a verdade da narração. No contexto bíblico, a

importância de determinados fatos não está na sua historicidade, mas na capacidade

de se constituírem em paradigma da interpretação histórica, na possibilidade de

construir uma experiência humana com sentido: “somente enquanto elevados a

dados transcendentes, quer dizer, a premissas epistemológicas, certos fatos se

tornam fontes de sentido e de verdade.”211

É nesta noção de dados transcendentes que podemos incluir as Ciências

Humanas e a teologia. A diferença está no fato de que a teologia trabalha com dados

teológicos transcendentes. Todavia, todas as ciências humanas trabalham com dados

transcendentes que orientam seus respectivos trabalhos e exigem sempre um

processo interpretativo, o que para nós se constitui numa ponte de diálogo entre

ambas as estruturas epistemológicas: as teológicas e as não-teológicas.

Sobre o processo interpretativo no Antigo Testamento, Segundo afirma ainda:

Descobre-se que com diversos gêneros literários, o Antigo Testamento representa uma reflexão teológica em processo sobre os dados transcendentes que são de uma maravilhosa riqueza e variedade e que

210 Constituição Dogmática “Dei Verbum” nº 10, Concílio Vaticano II. 211 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.67.

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poderiam (e deveriam, em benefício da teologia cristã, pelo menos) ser traduzidos a outra linguagem – mais unificada – sem perder seus elementos significativos.212

Em Dt 20,15-18 e Rm 3,29, estamos diante de um processo revelatório, ou

ainda, diante de uma pedagogia divina que nada tem a ver com a idéia de um ditado,

ou seja, Deus haveria dito nos ouvidos de alguns intérpretes privilegiados aquilo que

Ele supostamente gostaria de dizer a toda humanidade. Esta concepção de revelação

seria algo indigno para com Deus, pois

...o processo de aprender a aprender, o processo de uma pedagogia que não acumula informações, mas que ajuda o homem a aprofundar-se em seus problemas e a resolvê-los através de uma experiência cada vez mais acertada e complexa, é muito mais humano e, consequentemente, mais digno de Deus que a tarefa de ditar.213

Quando se fala desta ajuda ao ser humano para resolver seus próprios

problemas a partir das experiências humanas acertadas e complexas, vemos nisto

novamente algo semelhante ao risco da interpretação diante de uma nova

possibilidade de ser que a leitura de textos nos proporciona.

Para a consecução desta nova possibilidade, desde o ponto de vista

hermenêutico, é de grande importância considerar não somente a história que se

narra, mas também a história de como se narra: “uma história de interpretações que

se lançam à busca de sentido.”214 Um pressuposto fundamental da obra teológica de

Segundo consiste na idéia de que o Antigo Testamento está inserido em um processo

no qual cada crise suscita um novo passo em direção à verdade, passos tão humanos

quanto limitados (Mt 19,8). Além disso, Segundo aponta para um mau costume que

no âmbito católico se configura como um gravíssimo erro, qual seja, o de colocar a

interpretação da Bíblia a serviço de um dogma previamente estabelecido: “...a

imagem que qualquer católico tem, espontânea e irrefletidamente, do magistério

212 Idem, ibidem, p.80. 213 Idem, ibidem, p.85. 214 Idem, ibidem, p.88. Sobre a orientação hermenêutica confirmada pelo Concílio Vaticano II, ver Constituição Apostólica “Dei Verbum” n° 12.

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dogmático na Igreja é a de um autor (ou vários autores), que escreve sabendo já que

o que escreve não pode conter erro.”215

O dogma veterotestamentário é um processo que avança gradualmente em

direção à verdade, numa continuidade e descontinuidade, entre passos imperfeitos e

transitórios.216 Sobre a formação e a inspiração do cânon do Antigo Testamento, vale

a pena lembrar que tanto o autor do texto como a comunidade (o povo de Israel) têm

uma parte importante na fixação deste cânon, pois de nada adiantaria o autor

inspirado se a comunidade não fosse capaz de reconhecer, a partir de suas

inquietações existenciais, a presença de Deus naquilo que é narrado e escrito. Trata-

se aqui de um discernimento, de um processo de interpretação, no qual temos de um

lado os autores que, sob a inspiração divina, são os criadores dos documentos que

trazem as marcas de Deus, e de outro lado os receptores que, igualmente por meio de

um processo de interpretação, sob a luz da fé e inspirados por Deus, ajudam a fixar

os livros que expressam a sua identidade, entendida sempre a partir da relação com

Deus.

É neste sentido que podemos entender o porquê de seu projeto teológico

tomar distância de uma nítida divisão entre sagrado e profano. E para justificar tal

distanciamento, ou seja, a não existência de uma linha divisória entre religioso e

profano, Segundo se remete, por exemplo, ao livro Cântico dos cânticos, bem como à

narrativa do pecado de Davi (2Sm 12,1-7). Neste episódio, o profeta Nata não faz

inicialmente uso de uma linguagem religiosa e teológica, a do pecado contra Deus e

sua lei, mas conta uma estória profundamente humana que mostra a desumanidade e

a injustiça que uma pessoa é capaz de perpetrar contra outra. E quando se diz a Davi

que ele é aquele que realizara tamanha desumanidade, o próprio Davi afirma o

veredicto. É, pois, no crescimento de humanidade numa pessoa, se assim podemos

falar, que encontramos a passagem de Deus que salva o ser humano de sua

desumanidade.

215 Idem, ibidem, p.103. 216 Muitas vezes estamos acostumados a conceber a idéia de perfeição como ausência de erro e não no sentido etimológico grego que associa perfeição à idéia de chegar ao fim, entre erros e acertos.

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Para Segundo, nos últimos séculos, houve uma redução do dogma à sua

dimensão religiosa, deixando-se de lado as experiênc ias humanas que ajudaram a

elaborar o conteúdo da fórmula dogmática. O problema é que quando o ser humano

torna-se por demais teocêntrico, ele não só se desumaniza como destrói a imagem de

Deus que lhe foi revelada, criando caricaturas de Deus. Por isso, levar a sério o

antropocentrismo da cultura moderna não é um desvio da doutrina católica, mas algo

que lhe é constitutivo: o voltar-se para o humano e suas experiências históricas.

No Antigo Testamento, a atividade dogmática era exercida num povo já

constituído por seus laços étnicos e culturais. Algo distinto ocorre com a comunidade

cristã, cuja identidade é dada pelo batismo (Gl 3,27). Para um israelita, o seu passado

é uma realidade biológica e eticamente constitutiva de sua identidade. Para o

Cristianismo, o dogma ocupa um lugar de destaque na construção da identidade

comunitária.

Juan Luis Segundo entende a tradição desde a perspectiva do processo de

aprender a aprender. Uma geração recebe de outra as premissas epistemológicas para

que ela mesma possa fazer suas experiências. A chamada tradição divino–apostólica

e as tradições (humanas) propagam-se juntas. Conforme nos lembra Segundo, para o

Concílio de Trento, as testemunhas oculares de Jesus – os apóstolos –

têm acesso à categoria de reveladores, por duas vias: ou porque reproduzem o que ouviram dos lábios do Senhor, Deus encarnado e verdade absoluta, ou porque, sendo escritores, o Espírito Santo pode ter ditado verdades a eles, de maneira direta, assim como as ditou aos do Antigo Testamento (ou seja , sem passar materialmente pelo Cristo).217

Aqui, o decisivo para dogma consiste na revelação de Deus feita a partir dos

apóstolos por escrito, na medida em que estão vivos ou séculos mais tarde, após ter

sido comunicada de pessoa a pessoa, oralmente. A importância atribuída a isto fica

evidente na insistência da Igreja primitiva sobre a existência de duas fontes da

revelação: as escrituras veterotestamentária e neotestamentária, e as tradições não-

escritas que, transmitidas de mão em mão, chegaram até nós hoje, sempre a partir dos

217 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.337.

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apóstolos que as receberam dos lábios do próprio Jesus ou por inspiração do Espírito

Santo.

O problema, bem pontuado por Segundo, é que esta segunda fonte, chamada

igualmente de tradição - ou tradições - muitas vezes perde de vista o caráter de

transmissão social, ativa e criativa, inerente à Escritura. O perigo é que esta segunda

fonte, ao longo da história do Cristianismo, acaba por atribuir um caráter absoluto a

um aspecto periférico e torna relativo o essencial.

Vejamos o exemplo apresentado por Segundo no tocante ao purgatório. Este

aparece pela primeira vez, de maneira implícita e vaga, com Orígenes, que escreve

até meados do séc. III. Todavia, é preciso esperar um século e meio para que com

Agostinho esta opinião se torne mais precisa, embora ainda de forma dubitativa.

Somente na Idade Média esta doutrina seria ensinada como certa. Daí a seguinte

interrogação: “como se pode chegar depois de tantos séculos, à certeza não que

existe o purgatório, mas de que um apóstolo ensinou tal dado como vindo de Cristo

ou do Espírito Santo?”218 Uma das preocupações que motivam tal questionamento é,

sem dúvida, a inundação de dogmas ocorrida desde a teoria das duas fontes da

revelação, isto é, a incontrolada adição de verdades de fé não ajuda na busca da

verdade, muito pelo contrário, paralisa o processo de aprender a aprender. É neste

sentido que Segundo fala da não-percepção das forças ideológicas que subjazem às

nossas opções e às nossas ações.219

Por isso, a proposta que aparece na sua obra teológica fala da necessidade de

uma pedagogia que, discernindo os sinais dos tempos, com o espírito e a mentalidade

de Jesus, torne-se ponte entre o evangelho e o presente. Assim, teríamos uma

tradição que gera uma Escritura que por sua vez fundamenta uma nova tradição, a do

magistério eclesial e a do laicato, num contínuo processo hermenêutico.

Esta inundação de dogmas na tradição eclesial, católica pelo menos, era

igualmente a preocupação de Karl Rahner. Uma Igreja carregada de dogmas –

218 Idem, ibidem, p.338. 219 Idem. A libertação da teologia, p113.

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sobretudo a partir da Idade Média – teria grandes dificuldades para dialogar com o

mundo moderno e suas novas formas de humanismo. Embora Rahner tenha avançado

bastante desde o ponto de vista da unidade entre Tradição e Escritura, para Segundo

é preciso dar um passo adiante, o que consiste em devolver à Igreja uma função

essencial da revelação, ou seja, a experiência, a fim de que a revelação prossiga seu

caminho, e isto desde a comunidade dos fiéis que formam parte ativa da construção

do dogma, destas “fórmulas” que ajudam a estruturar a identidade cristã.

A revelação é de fato uma interpretação do real, não se postula uma fé cega,

ou seja, as pessoas, ao aceitarem algo revelado, o fazem porque se reconhecem nas

palavras da revelação que articulam o sentido de suas vidas.220 As perguntas

advindas da realidade provocam crises que fazem avançar o processo pedagógico

(divino da revelação), suscitando um amadurecimento em termos de experiência, na

vida do fiel. Para Segundo, este era o processo do Antigo Testamento: Deus concede

ao ser humano a tarefa de reinterpretar e reformar o imperfeito e transitório das

experiências e formulações passadas. E isto deve valer igualmente para o Novo

Testamento. O Espírito de Jesus deve nos conduzir – através de erros e acertos –

rumo a uma verdade sempre mais plena. Além disso, uma nova informação nunca é

algo extrínseco ou alheio ao que já se vive, mas brota da experiência como um

aprofundamento, como uma explicitação de algo já vivido, embora não devidamente

formulado.

Uma das esperanças que habita Juan Luis Segundo é que o dogma possa ser a

plataforma quase genética a partir da qual se possa lançar, de geração em geração, a

aprendizagem de novas dimensões de sentido para a existência humana.221 E uma

destas novas dimensões é a percepção de que a revelação de Deus é a revelação do

amor do Pai e do ser humano a si mesmo para que ele viva de forma mais humana. E

a revelação divina tem que, de certa maneira, nos encontrar em busca deste dar-se a

conhecer da parte de Deus, embora esta inquietude humana não esteja claramente

formulada. O que não significa que esta abertura ao que há de vir não suponha já

uma fé, mesmo que esta não possa ainda ser adjetivada como religiosa. Nesta

220 Aqui, Segundo se apóia explicitamente na idéia de revelação como maiêutica histórica, desenvolvida em Andrés Torres Queiruga, A revelação de Deus na realização humana, cap. IV. 221 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.389.

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perspectiva, se insere a fé abraâmica, tal qual a descreve Paulo em sua carta aos

romanos (Rm 4): uma fé antropológica que se identifica inicialmente com a busca

por sentido na vida.

A existência humana, como nos mostra o exemplo bíblico de Abraão, é uma

aposta, pois não é possível percorrer até o fim o caminho proposto, sem antes haver

decidido por este caminho. Por isso, “a sociedade humana provê cada um de seus

membros com uma espécie de memória coletiva, dentro da qual a opção, apoiada em

testemunhos, torna-se se não totalmente racional ou científico, pelo menos

razoável.”222 Por isso, tais testemunhas são denominadas como testemunhas

referenciais, e a aposta da existência humana está associada a uma fé, uma fé

antropológica. Neste sentido, no contexto da revelação divina, a fé é algo constitutivo

do próprio processo revelatório e não algo que vem somente depois, como

conseqüência ou acréscimo.

Em suma, só existe revelação de Deus porque existe o ser humano em busca

de um sentido para a sua existência e que portanto pode acolher, em liberdade, aquilo

que lhe é revelado, anunciado. Sem, contudo, confundir a revelação como uma

espécie de comunicação de respostas prontas para toda e qualquer pergunta que

porventura possamos fazer, independentemente do contexto no qual estejamos

situados. Afinal, “Deus não parece se preocupar com o fato de revelar algo que seja

verdade em si mesma, verdade eterna, verdade inalterável, mas que se torne verdade

na humanização progressiva do ser humano.”223 Caso contrário, o processo

hermenêutico estaria excluído de qualquer projeto teológico.

Neste sentido, a revelação de Deus não consiste, pois, no acúmulo de

informações corretas a respeito de Deus e do ser humano. A revelação é um processo

que visa a humanização cada vez maior do ser humano, no qual não aprendemos

coisas, mas aprendemos a aprender com as experiências particulares e comunitárias.

Trata-se de uma pedagogia que nos conduz infalivelmente à verdade, e isto através

de erros e acertos. Este processo de aprender a aprender – tomando por base a

222 Idem, ibidem, p.401. 223 Idem, ibidem, p.404.

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teologia joanina – exige, a partir de certo momento, a ausência do mestre, embora o

seu Espírito continue agindo ao longo de todo processo de revelação em direção à

verdade: “...é do vosso interesse que eu parta... Eu ainda tenho muitas coisas a vos

dizer, mas atualmente não sois capazes de suportar; quando vier o Espírito da

verdade, ele vos conduzirá à verdade plena,...” (Jo 16,7.12-13). Em outras palavras,

o aprendizado não está concluído com a partida do Mestre. Muito pelo contrário,

talvez tenha entrado na sua etapa mais criativa e fecunda. E esta etapa,

supõe, além do mais, a constituição de um povo que transmita uma sabedoria de geração em geração. Através de coisas sempre imperfeitas e transitórias, que são transmitidas pela própria existência da comunidade, esse povo torna-se tradição, sujeito ativo e criador de um aprender a aprender que não pode nunca ser individual. 224

Assim, a fé, tomada por algo constitutivo da revelação, associa-se à

comunidade de testemunhos referenciais, que como tradição nos orientam no

processo de aprender a aprender com nossas próprias experiências.225 Talvez não seja

nenhum absurdo teológico afirmar que inicialmente a fé não é em Deus, mas em suas

testemunhas. E é este sentido de tradição que Segundo entende como “segunda

fonte” da revelação, além da fonte bíblica. Esta concepção difere daquela que atribui

a uma fonte segunda o fato de Jesus ter dito pessoalmente algo a seus discípulos ou

apóstolos que não fora escrito no Novo Testamento e portanto perdido durante

séculos, sendo recuperado mais tarde por alguns intérpretes privilegiados ou

iluminados, e em seguida comunicado a nós.

O projeto teológico de Segundo defende algo diferente, pois o povo cristão, à

semelhança do povo de Israel, cumpre uma função de transmissão e interpretação da

revelação divina, a qual, repitamos, supõe o sujeito, o crente, em busca de um sentido

para viver e uma comunidade comprometida com a tentativa de aprender a aprender.

Na medida em que o ser humano, de forma livre e consciente, vai se apropriando da

manifestação histórica de Deus, podemos dizer que acontece a revelação.

224 Idem, ibidem, p.406-407. 225 Provavelmente, uma destas experiências seja hoje a do pluralismo religioso que caracteriza nossa cultura e que se constitui num desafio singular para a teologia cristã.

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É, pois, a partir da experiência histórica de Deus por parte do ser humano que

acontece a revelação divina. Esta é na verdade a promoção da realização do ser

humano, o que faz com que a revelação divina possua uma forte conotação

antropocêntrica, em consonância com o chamado mundo moderno (ou pós–

moderno). Contudo, é bom lembrar que este antropocentrismo da revelação não é um

desvio ou redução, mas um voltar-se para o mundo em atitude dialogal, como gosta

de lembrar Segundo a partir do pronunciamento do Papa Paulo VI por ocasião do

encerramento do Concílio Vaticano II.

No que diz respeito à eclesiologia, a obra teológica de Segundo não deixa

dúvidas: a Igreja é sinal e não o lugar de Salvação. A mensagem que ela anuncia é

sempre maior que a própria Igreja, necessitando sempre ser traduzida em novas

circunstâncias históricas e em constante diálogo com o mundo. Isto faz da Igreja

mais que uma depositária de verdades de fé, pois a comunidade eclesial que se

instaura a partir do Cristo ressuscitado é uma intérprete da revelação e dos sinais dos

tempos. E esta verdade que a Igreja interpreta e anuncia é uma verdade que está

sempre a caminho, em processo, que exige um clima de liberdade e acolhida. Além

disso, a Igreja é comunidade de fé que não se restringe à sua hierarquia eclesial. Esta

não é a melhor e nem a pior parte da Igreja, mas apenas uma dimensão com uma

função bem determinada que deve estar a serviço de toda a comunidade eclesial.

Se pudéssemos sintetizar o projeto teológico de Segundo em uma palavra,

diríamos: cristologia. Afinal, a sua grande intenção teológica é facilitar o encontro

entre o ser humano e Jesus de Nazaré.226 Todavia, não se trata de definir quem foi

Jesus, mas de interpretar e compreender os valores por ele encarnados. Trata-se de

partir da existência humana de Jesus e não de sua divindade.227 Isto porque a

afirmação da divindade de Jesus passa pela hermenêutica de sua existência histórica.

Aqui está a possibilidade de ver a vida humana de Jesus como reve lação: a

reapropriação existencial dos valores vividos por ele. Valores estes que são capazes

de dar sentido à vida, que podem dar um norte à existência humana, sendo que os

226 Testemunha disto é a sua grande obra cristológica “O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré”. 227 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, II/1, p.17-32.

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valores vividos por Jesus, vistos como dados transcendentes, podem ser

reapropriados em outros contextos.

Entretanto, algumas questões ganham espaço neste momento de nossa

reflexão: qual o significado da pretensão cristã de ter chegado em Jesus Cristo à

revelação pessoal e imediata da verdade? Qual o alcance de se propor uma história

concreta e contingente, a de Jesus de Nazaré, como chave hermenêutica para a

compreensão de Deus? O que poderia justificar a busca da verdade, percorrer o

caminho que a ela conduz, uma vez que se confessa que Jesus é Deus? O que poderia

haver de inaudito nesta busca?

Duas posturas possíveis: não há nada a ser procurado, a nova tarefa consiste

em conservar e propagar a verdade revelada e possuída uma vez por todas. Em

sentido oposto, podemos dizer que o processo em direção à verdade continua e

continuará sempre enquanto vivermos na terra, e nem mesmo a encarnação de Deus

interrompe este processo. É o que indica o evangelho de João, quando Jesus fala aos

seus discípulos de sua partida e da vinda do Espírito da verdade que conduz à

verdade plena (Jo 16,7.12-13). Por isso, para continuarmos a caminhada em direção à

verdade, é preciso perdê- lo de vista. E como afirma Santo Agostinho: “o próprio

Senhor, enquanto se dignou a ser nosso caminho, não quis nos reter, apenas quis

passar.”228 E Segundo ainda acrescenta

Para Agostinho, a própria verdade absoluta que se revela não nos espera, toda inteira, na próxima esquina, não está nas mentes daqueles que a viram e a apalparam em nosso mundo, nem está a nosso alcance, depositada num livro, mesmo que seja a Bíblia. De alguma maneira, a verdade absoluta que possuímos não nos detém, mas nos coloca sempre a caminho. E a caminho em direção à verdade.229

Um pressuposto fundamental para que tenhamos uma melhor compreensão da

cristologia proposta por Segundo encontra-se na afirmação de que algumas pessoas

chegaram a ver Deus encarnado na pessoa de Jesus de Nazaré porque esse homem

foi humanamente significativo. Além disso, vale a pena lembrar que “Jesus de

Nazaré chega até nós interpretado já por pessoas ou grupos interessados nele, o que

228 Santo Agostinho. De Doctrina Christiana, 1.1., capítulo 4. 229 Juan Luis SEGUNDO . O dogma que liberta, p.250.

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equivale a dizer que não temos acesso algum a ele que não passe, de alguma

maneira por esses interesses.”230 Mesmo porque um Jesus de Nazaré que não seja

interpretado por alguém não pode existir para nós. Do ponto de vista hermenêutico, é

importante ressaltar a impossibilidade de se separar a história de Jesus de Nazaré das

sucessivas interpretações que fizeram dele ao longo de séculos

Não está em questão propor uma nova cristologia, mas sim de uma anti–

cristologia, na medida em que a anti–logia significa a tentativa de libertar Jesus de

toda falsa pretensão humana – primeiramente dos cristãos – de se apossar de Jesus e

de enclausurá- lo em categorias universais desconectadas da realidade, e o que é pior,

desvencilhada de sua humanidade, histórica.231 Por isso, Segundo prefere falar de

Jesus como aquele que abre um caminho em direção a uma vida mais humanizada.

Não se trata, no entanto, de substituir uma aproximação científica por outra

fundamentalista e, em certo sentido, ingênua.

O único acesso válido a Jesus é aquele que nos faz passar pela reinterpretação

do Novo Testamento. E nesta releitura devemos usar duas chaves de interpretação:

uma fornecida pelos evangelhos sinóticos (chave política) e outra fornecida por

Paulo (chave antropológica). O Jesus dos evangelhos sinóticos coloca em questão a

estrutura político–religiosa de seu tempo, e o faz a partir do anúncio profético do

Reino de Deus que se configura numa boa nova, notadamente para os pobres. Já

Paulo constrói seu discurso a partir da existência concreta de Jesus de Nazaré, tal

qual era narrada pela comunidade primitiva.

A chave de leitura política não é entendida como sendo a–religiosa, uma vez

que os valores religiosos vividos por Jesus se manifestaram como elementos políticos

na sociedade de seu tempo. Todavia, nesta leitura política Jesus é colocado como

continuador da tradição profética, própria do povo de Israel, desde a perspectiva do

anúncio do Reino de Deus:

...tudo o que Jesus de Nazaré fez e disse teve intrínsecas implicações políticas, não meras “aplicações” hipotéticas. Que ele expressou sua mensagem em chave política. Que dessa maneira ele manifestou a

230 Idem. O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, II/1, p.24. 231 Idem, ibidem, p. 17-33.

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Deus. E, portanto, que somente entendendo a carga política que têm (em seu próprio contexto) expressões na aparência meramente religiosas captamos a verdadeira intenção de Jesus e a autêntica interpretação (religiosa) de sua mensagem.232

Desde a ótica da chave política, Segundo entende que aqueles que se

encontram em situações desumanizadoras – de forma especial os pobres – são na

verdade os beneficiários primeiros da boa notícia trazida por Jesus. Temos aqui uma

crítica a interpretações puramente religiosas ou existenciais a–históricas da prática de

Jesus. Contudo, não devemos tomar a chave política como princípio hermenêutico

que tudo explica. Juan Luis Segundo, embora reconhecendo o valor da perspectiva

política, não pretende reduzir a prática de Jesus somente a este modelo interpretativo.

O mais importante é que, a partir da análise da crítica religioso–política que

Jesus faz à sociedade de sua época, a nós é proposta uma ponte hermenêutica entre o

horizonte da vida concreta de Jesus e o nosso horizonte existencial. Neste sentido, a

necessidade de uma contínua e sempre renovada interpretação das palavras de Jesus

depositadas nos evangelhos aponta, na verdade, para o seguinte perigo:

Às vezes se recorre a eles não para se inspirar no contato com o inspirado, mas por uma segurança infantil. Como o jovem que recorre ao “depósito” dos conselhos paternos. Quer dizer, esquivando-se do risco sadio de interpretar de novo a Jesus diante de problemáticas novas, perante as quais as respostas de Jesus, tomadas ao pé da letra, trairiam seu Espírito. Agente estaria considerando como algo magicamente dotado de verdade. E isso acabaria levando a dar, em nome de Jesus, soluções desumanas.233

A necessidade de uma revelação continuada é algo inerente à própria

pedagogia de Jesus, pois há coisas que ele não pode dizer, por não se enquadrarem na

situação histórica em que se encontravam inseridos seus interlocutores e que,

portanto, não poderiam entender naquele momento.234 A valorização da história no

projeto teológico de Segundo é, ao mesmo tempo, a recusa de uma visão reducionista

da história, algo típico do pensamento moderno. Afinal, o ser humano não chega à

verdade somente pela análise da realidade:

232 Idem, ibidem, p.160. 233 Idem, ibidem, p.8. 234 Idem. A libertação da teologia, p134.

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o homem encontrará o Deus vivo unicamente no homem, em sua história. Não nas alturas nem no além. Mas, por outro lado, não conseguirá captar o Deus vivo somente a partir da história do homem. Deus se revela na história mas não aflora da história.235

A sua visão otimista com relação ao ser humano não o impede, contudo, de

conservar a transcendência divina, bem como a transcendência da existência humana.

Deus e o ser humano não são rivais, mas pessoas que dialogicamente participam em

liberdade de um mesmo processo revelatório.

A longa exposição acerca do dogma para melhor compreender o método

teológico de Juan Luis Segundo nos permitiu aprofundar a noção de revelação, e nela

a idéia de verdade religiosa e tradição. E mais uma vez, à semelhança de

Schleiermacher, a orientação antropológica na teologia e o empreendimento da

hermenêutica teológica surgiram como dois pilares fundamentais para a edificação

de seu projeto teológico que se diz como uma teologia para o leigo adulto.

Estas palavras que anunciam o fim de um percurso não significam também o

ponto final na contribuição do pensamento de Juan Luis Segundo no contexto do

nosso trabalho. Ambos os projetos teológicos, Schleiermacher e Segundo,

permanecerão no horizonte de nossa reflexão como referencial teórico a nos ajudar a

visualizar de que maneira pode a teologia ser portadora de um discurso com validade

pública e pertinência acadêmica no estudo da religião. Nesta visualização, dois

aspectos nos parecem fundamentais: ver a teologia como uma antropologia teológica

e tê-la por um empreendimento hermenêutico.

235 Idem. Teologia aberta para o leigo adulto, p.172.

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II. SEGUNDA PARTE

A. A DIMENSÃO ANTROPOLÓG ICA DA FÉ E DA RELIGIÃO.

1. CRER É HUMANO.

a. Da fé antropológica à fé religiosa.

A necessidade de enfocarmos o tema da fé em nossa pesquisa está

relacionada ao fato que frequentemente uma mentalidade de corte positivista não

considera a fé religiosa e a sua possível institucionalização como estruturas

constitutivas do ser humano. Para este tipo de pensamento, tanto a fé como a religião

tendem a desaparecer com a superação de conflitos sociais ou de etapas infantis da

humanidade. Ou, na melhor das hipóteses, a possibilidade de espaço para a fé e para

a religião está na conformidade com a razão do tipo instrumental, algo característico

da ilustração européia, que tem como paradigma as ciências da natureza

(mecanicismo e forças mensuráveis). Superação que transformaria a teologia num

discurso vazio, carente de sentido ou num absurdo linguístico.

Todavia, esta rejeição ou imposição ignora o fato de que tanto a fé religiosa

como a religião são experiências antropológicas que se expressam por meio de um

outro tipo de linguagem que não aquela das ciências modernas, e que nem por isso

falseiam a realidade. Em outras palavras, a fé e a religião interpretam a realidade e a

dizem por meio de uma linguagem simbólica.

Um dos grandes aportes do projeto teológico de Juan Luis Segundo para o

objetivo da nossa pesquisa está no fato de colocar a fé antropológica como

fundamento da fé religiosa. Além de possuir uma estrutura fiducial, a fé – no sentido

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antropológico do termo – supõe um ser humano em busca de sentido para vida,

alguém que necessita de orientação.

A orientação, como sabemos, é um fenômeno antropológico pelo qual nos

situamos no espaço e no tempo em referência a um ponto determinado.

Originalmente, este ponto de referência é o Oriente, o sol nascente que permite a

orientação em relação a um horizonte espacial (pontos cardeais) e temporal (horas,

dias, semanas,...). A busca por orientação, que equivale ao desejo por um sentido na

vida, é uma experiência humana fundamental, embora hoje a imagem do sol como

ponto de referência na nossa orientação espaço–temporal esteja ofuscada pelo avanço

tecnológico, que possibilita a orientação sem saber quando e onde o sol nasce.

Todavia, permanece a busca por um sentido, por um para quê na vida, algo que pode

ser vislumbrado na linguagem cujas raízes adentram pelo fenômeno da orientação:

desorientado, desnorteado, perdido, sem sentido,... Estar fora de lugar, deslocado ou

sem possibilidade de se localizar em referência a um ponto, a um valor, é algo que

nos angustia e nos desumaniza.

Todavia, a relação entre a ciência moderna, empírico–formal, e a fé religiosa

evoca automaticamente a história de um longo conflito e nomes como os de Galileu,

Darwin, Hume, vêm frequentemente à memória. Além disso, uma mentalidade de

corte positivista, ainda presente em diversos contextos acadêmicos, tende a

apresentar ciência e fé como posições irreconciliáveis, a ver a relação entre ambas

sempre sob a ótica do conflito. Talvez o choque inicial entre ambas fosse inevitável,

haja vista que a irrupção da ciência moderna no mundo ocidental significou uma

grande mudança de paradigma cultural.236

Aos poucos, os imensos benefícios proporcionados pelos avanços

tecnológicos fizeram com que a ciência moderna se posicionasse como via

obrigatória para a apreensão do real desde a sua estrutura empírico–formal, a tal

ponto que muitos passaram a acreditar que fora dos paradigmas desta ciência reinava

o mito, a cultura infantil, a fantasia, o irreal, o irracional, o não objetivo.237 Em outras

236 Sobre este tema ver a obra de Thomas Khun, intitulada “A estrutura das revoluções científicas”. 237 Karl RAHNER. Teologia e ciência, p.38.

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palavras, para a ciência moderna não há mistérios, mas problemas a serem

claramente formulados, investigados e resolvidos. Para este tipo de mentalidade, os

enunciados da fé religiosa não possuem consistência por carecerem de uma base

empírica, eliminando da fé a possibilidade do conhecimento.

A oposição a esta nova mentalidade não vinha somente do âmbito religioso,

mas foi sem dúvida na religião, mais propriamente numa instituição poderosa como

as Igrejas cristãs que viam seu poder, sua legitimidade e a verdade de seus

enunciados colocados à prova, que a resistência aos novos valores trazidos pela

ciência moderna tornou-se maior e às vezes mais violenta. Não é intuito de nossa

reflexão entrar nos pormenores desta história, mas sim, a partir das consequências do

encontro com a ciência empírico–formal, buscar uma melhor compreensão da fé

religiosa, notadamente da fé cristã. Mesmo que, para isso, tenhamos que ressaltar

alguns aspectos do confronto entre a fé religiosa e a ciência, a fim de mostrar que

para além do conflito, que caracterizou inicialmente este encontro entre ambas

posturas, há uma dimensão antropológica de base fiducial que as aproxima.

O passo inicial para ultrapassar a oposição entre a ciência e a fé religiosa nos

conduz a uma concepção de fé que possui código próprio, razoável de ser e estar no

mundo, bem como a uma ampliação do conceito de razão para não nos tornarmos

cativos de uma visão unilateral e racionalista do pensamento moderno, que hoje é

profundamente questionada.

A razão moderna, como nos lembram diversos estudiosos,

É uma razão raciocinante, capaz de demonstrar verdades por meio de argumentos necessários. É uma razão objetivista, que procura colocar entre parênteses toda a presença do sujeito até pensar-se absolutamente neutra. É uma razão analítica, que esmiúça a realidade e encontra no dissecamento do cadáver nas aulas de medicina um modelo plástico. É uma razão antropocêntrica, que revela a pretensão do ser humano de dominar todo o real. É uma razão androcêntrica, que enfatiza o lado masculino do poder sobre a realidade. É uma razão lógico–sistemática, que busca ordenar todas as realidades num enorme sistema bem travado, de modo que o acaso, o aleatório, praticamente desapareça, e com ele a novidade da liberdade. É uma razão eficiente, instrumental, que estabelece os objetivos a alcançar e ordena para sua obtenção os meios de maneira eficiente, competente e dentro da lógica do capital por meio de baixos custos e altos benefícios. É uma razão logocêntrica, que identifica realidade, verdade, com o que ela

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consegue apreender. É uma razão autônoma, que não suporta nenhuma outra instância crítica além de si mesma. É uma razão práxica, que acredita em seu poder transformador da realidade.238

Não obstante o valor de todas estas dimensões da racionalidade moderna,

técnico–científica, a fé religiosa não deixa de ser uma instância razoável. Ela não é

racional porque não se fundamenta na evidência (empírico–formal) da verdade crida,

mas é razoável na medida em que se coaduna à estrutura racional humana: acreditar,

amar, confiar. Esperar é humano e ultrapassa a lógica ou a racionalidade puramente

verificativa e quantitativa das ciências modernas. Crer, como ato humano, está para

além da razão (moderna), porém jamais contra ela e nunca sem ela. Além disso, a fé

religiosa não tem necessariamente por fundamento último nossas carências afetivas,

tampouco uma atitude compensatória de nossas fraquezas e impotências, e muito

menos constitui-se numa fuga da realidade, como o defenderam pensadores como

Karl Marx e Sigmund Freud.

A racionalidade da fé religiosa consiste em oferecer um sentido radical para a

existência, sobretudo para o ser humano moderno que parece tão desprovido de

sentido para sua vida, apesar de possuir tantas explicações e fácil acesso a tudo o que

acontece. A modernidade que combatera a fé religiosa em nome da razão, que a

destituíra de sua dimensão social, reduzindo-a a esfera do privado, do mito, do

mágico ou a uma etapa infantil da humanidade, considerando-a resquício de um

atraso cultural e de contradições econômicas, não conseguiu, por sua vez, instaurar o

paraíso sobre a terra através da imposição de uma racionalidade instrumental e

prática como baluarte de toda verdade.

E o ser humano, ao colocar-se perguntas fundamentais sobre o sentido da

vida, o faz desde a razão que o constitui, sem contudo ser constrangido a renunciar à

fé religiosa em nome da liberdade, da autonomia e da criatividade cultural. É preciso

crer em Deus, ter fé, sem perder a razão, sendo no mínimo razoável. Neste sentido,

crer é arriscar-se na relação com um Deus que, por mais humanamente

experimentado que tenha sido, permanece sempre envolto pelo véu do mistério.239

238 João Batista LIBÂNIO . Eu creio. Nós cremos, p.178. 239 Idem, ibidem, p.200.

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Assim, liberdade e racionalidade são dois aspectos do ato de fé religiosa que

o discurso teológico há de considerar no diálogo com outros saberes no estudo da

religião. Dito de forma interrogativa, como a teologia pode conjugar a graça de Deus,

a liberdade humana e a racionalidade da fé no seu discurso sobre a religião? E isto

sem se esquecer do paradoxo que perpassa a experiência religiosa, qual seja, o fim

para o qual somos criados e que realiza a nossa liberdade não é escolhido

arbitrariamente. Em outras palavras, a não consecução deste fim frustra a nossa

liberdade, não nos realiza em nossa humanidade. E na fé cristã este fim é Deus.

É preciso lembrar igualmente que, por ser humana, a objetividade da razão

aponta sempre para um certo nível de subjetividade. E uma vez que o processo

humano de conhecer é interpretativo, a subjetividade do sujeito cognoscente

influencia na pré–compreensão da realidade. Esta será sempre conhecida a partir de

um ponto de vista que supõe escolhas prévias, nas quais estão em jogo a

subjetividade, as expectativas, os anseios, os desejos, os medos,... do observador. Em

outras palavras, uma perspectiva que supõe um sistema referencial e uma escala de

valores.

Falar da subjetividade da razão nos leva a considerar o aspecto hermenêutico

da fé religiosa, tido como uma decorrência da própria estrutura humana de

conhecimento, sendo que a tarefa hermenêutica acontece tanto na simples leitura da

realidade como nas grandes elaborações teológicas. A fé religiosa possui um

conteúdo que é transmitido pela tradição, mas que requer um constante ato

interpretativo que possa manter viva a revelação divina. “É o lado racional da fé. É a

necessidade antropológica de que só se pode amar, desejar e querer o que, de certo

modo, cai sob a presa do conhecimento”.240 A tal ponto, que na confissão de fé

religiosa está em jogo a totalidade do ser humano (inteligência, afeto, prática),

realizando-o desde a perspectiva do tempo e da eternidade, imanência e

transcendência. O ato de fé não é apenas um ato afetivo, uma vez que a fé religiosa

deve ser racionalmente coerente, embora não se reduza à razão, ou seja, a fé não é

uma realidade irracional e responde em profundidade à estrutura do ser humano.

240 Idem, ibidem, p.162.

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Além disso, a fé religiosa não significa o abandono de testemunhos humanos

para apoiar-se unicamente na centralidade divina. Isto porque a fé religiosa vem a

ser transmissão de dados transcendentes e adesão a uma tradição de testemunhas

referenciais, na medida em que reconhecemos o caráter sagrado de valores humanos

encarnados em determinadas pessoas (Mt 11,2-6). Estas testemunhas humanas são

pessoas como nós que viveram certos acontecimentos históricos como revelação de

Deus, de tal modo que o critério valorativo desses acontecimentos torna-se algo

decisivo para a fé do crente hoje.

Entretanto, esta necessidade humana de dados transcendentes e de

testemunhos referenciais não elimina a liberdade humana, uma vez que a fé religiosa,

e conseqüentemente a teologia, exigem sempre o ato interpretativo como acolhida

criativa de uma tradição. Um perigo que ronda a fé religiosa e a sua tematização

teológica é a busca por sinais dos céus (Mt 16,1), ou seja, manifestações

sobrenaturais que acabassem com a relatividade das ações humanas e que nos

levassem a crer com certeza, sendo donos da verdade. Talvez, a conseqüência mais

imediata de tal postura seja o fechamento da teologia em certezas dogmáticas

emanadas ou deduzidas da revelação divina. Por isso, tanto o crente quanto o teólogo

são chamados a ler os sinais dos tempos (Mt 16,3), a perceber a historicidade e a

relatividade das verdades teológicas que exigem um empreendimento hermenêutico

constante.

Desde o ponto de vista cristão, podemos afirmar que Deus, em sua liberdade

infinita, decidiu revelar-se através de sinais dos tempos e não de sinais dos céus, o

que faz do trabalho teológico abertura aos problemas mais urgentes da humanidade.

Não se pode crer em Deus senão a partir de um compromisso com a história humana,

suas vicissitudes, seus dramas, suas alegrias, suas esperanças. E crer em Jesus como

o Cristo supõe que tenhamos fé naqueles que o conheceram, interpretaram e nos

transmitiram sua crença nele, uma vez que não possuímos um acesso direto à sua

vida e à sua palavra. O “eu creio” da fé pessoal supõe o “nós cremos” da tradição, e

os relatos sobre Jesus são sempre atos interpretativos e não testemunhos objetivos.

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Crer em Deus é uma experiência profundamente humana que não anula a

nossa liberdade. Crer é interpretar, é decidir, é assumir determinadas posturas na

complexidade do real, de maneira razoável. Isto porque o olhar de desconfiança que

se volta sobre a fé religiosa e a sua institucionalização tem por pressuposto a idéia de

que a religião desaparecerá a partir do progresso da ciência, ou ainda, que a religião

tenha surgido para preencher lacunas do conhecimento científico. Em suma, a

religião e a fé religiosa não fazem parte da estrutura humana que constitui o ser

humano.

Entretanto, o nosso esforço tem sido o de mostrar justamente o contrário, ou

seja, tanto a fé religiosa do fiel quanto a fé antropológica do ateu possuem uma

estrutura antropológica comum: a busca por sentido, a organização da vida em torno

de uma escala de valores e a necessidade de testemunhos referenciais. Neste sentido,

tanto a teologia como a ciência moderna (empírico–formal) possuem um sistema de

referencialidade, tanto uma como outra trabalham com premissas que de antemão

não podem ser comprovadas empiricamente, sendo aceitas como verdadeiras porque

atingem as expectativas do observador e porque gozam de credibilidade aqueles que

as apresentam como válidas.

A isto podemos acrescentar ainda a importância concedida à noção de história

para compreender a concepção de fé religiosa, a tentativa de estabelecer uma relação

entre os valores pessoais e os coletivos, expressos numa tradição. Cada vez mais se

faz necessário a aceitação livre, assumida no processo de interiorização da fé

religiosa. Neste processo, elementos da tradição são abandonados por não terem mais

significado para a experiência hoje, e outros são re-significados. Trata-se da busca

pelo equilíbrio entre subjetividade e tradição, a partir da valorização da pessoa dentro

de um processo de relação pessoal, ou seja, de um processo de apropriação e re-

apropriação da tradição por parte do indivíduo, o que exige uma constante atitude

hermenêutica, uma vez que a fé cristã é no seu âmago ecumênica, dialogal.

Por isso, há de se enraizar as manifestações particulares da fé religiosa numa

determinada tradição e afirmar a capacidade desta tradição de formar elementos para

a construção e reformulação da fé pessoal. Neste processo, supera-se a concepção de

fé religiosa como crer em verdades absolutas para descobrir a experiência humana,

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que a caracteriza como acolhida em primeiro lugar do outro que encarna valores que

passam a orientar nossas vidas. A racionalidade da fé deve estar estruturada de tal

modo que a sua validação aconteça na recepção de uma tradição que implique numa

verdadeira produção de sentido, na qual a fé comunitária coloca-se a serviço da fé

pessoal de cada fiel. É função do discurso teológico evidenciar o respeito pela ação

do Espírito que habita a experiência de cada crente de forma singular, mas que

igualmente está presente na fé que anima toda a comunidade eclesial.

E nesta função pneumática do discurso teológico há de se considerar também

o giro antropológico provocado pelo pensamento moderno, que deslocou o pólo

dinamizador da fé para a experiência das pessoas. O lugar que antes era ocupado pelo

acolhimento da tradição e da doutrina passou a ser preenchido pela centralidade do

sujeito que crê. Por isso, o trabalho teológico no estudo da religião inclui também a

reflexão em torno da experiência religiosa, uma vez que hoje existe a tendência de se

exacerbar a subjetividade até os rincões do subjetivismo. No caso concreto do

Cristianismo, um dos grandes desafios para a teologia contemporânea constitui-se em

mostrar como podemos dizer “Eu creio em Deus” sem renunciar a toda uma tradição

que antecede a esta profissão de fé, sem abdicar da própria subjetividade e muito

menos sem abrir mão da racionalidade que constitui o ser humano.

Em suma, se a Tradição cristã nos diz que no ato de crer temos a primazia de

Deus, que por meio de sua revelação ao ser humano pelos caminhos da história

torna-se princípio e fundamento da fé religiosa, esta mesma Tradição afirma que tal

primazia divina não anula a cooperação humana como ato de liberdade. Em outras

palavras, a manifestação de Deus na história não é condição suficiente para o

surgimento do ato de crer. Afinal, o ser humano acolhe livremente uma manifestação

que ele poderia recusar.

Todavia, a acolhida da manifestação divina como fruto da liberdade humana

ainda não é de todo suficiente para compreendermos a fé cristã, pois o mesmo ato de

fé que nos coloca em relação com Deus exige do crente a relação com os outros. Isto

equivale a dizer que a dimensão ética é parte integrante da fé cristã, algo dito no

Novo Testamento, ao retomar e ampliar a tradição veterotestamentária: “Amarás o

Senhor teu Deus de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu

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entendimento (...) Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,34-40). O ato de

crer que nos faz voltar em direção a Deus, na livre acolhida de sua manifestação,

exige também o movimento em direção ao outro. Este duplo movimento, em direção

a Deus e aos outros, é parte integrante de um só e mesmo movimento ou de um

mesmo ato de amor.

Viver hoje a fé cristã como uma atitude intelectual, no sentido de um ato

razoável, e como um comportamento ético é sem dúvida alguma um grande desafio

para todos aqueles que se esforçam para dar razão da esperança que lhes habita (1Pd

3,15), fazendo do ato de crer o fundamento da sua própria identidade. Contudo, sem

esquecer que se ser razoável e possuir uma estrutura fiducial é algo que aproxima a

fé religiosa da fé antropológica, nomear Deus, ou seja, nomeá- lo a partir das

experiências humanas é o que as distingue.

b. A nomeação de Deus.

Inicialmente, é preciso voltar a dizer que a fé religiosa é edificada sobre a fé

antropológica, configurando-se como desdobramento de uma dimensão humana, na

medida em que a abertura a alguém, a fé numa pessoa, é aquela estrutura

antropológica que dará lugar à confissão de fé em Deus. Neste sentido, a nomeação

de Deus a partir das experiências humanas é o que especifica o religioso no interior

da fé antropológica, abrindo espaço para a confissão de fé cristã na qual Deus é

nomeado na pessoa de Jesus Cristo.

Todavia, a nomeação divina é polifônica, ou seja, ela é dita de diversas

maneiras e a partir de diversas circunstâncias. E não apenas isto, esta nomeação

mostra ainda a incompletude do nome divino, uma vez que Deus é designado ao

mesmo tempo como Aquele que se comunica e Aquele que se reserva. Esta

impossibilidade de manter o nome divino a mercê da linguagem humana impede que

o transformemos em um saber, num conhecimento acabado a partir do qual se possa

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dominar o ser nomeado. Isto se configura numa dificuldade tanto para o discurso

teológico como para as outras formas de saber que se dedicam ao estudo da religião.

A experiência bíblica da sarça ardente (Ex 3,13-15) já indicava para esta

impossibilidade, uma vez que o tetragrama sagrado IWHW – Iahweh – não é um

nome que define alguém, mas uma nomeação que aponta para o inominável, ou seja,

Aquele que não pode ser limitado por palavras, e por isso mesmo dizer Deus nos

remete para o que Ele faz: liberta, salva, redime, cria.... Ele é o Deus de Abraão, de

Isaac, de Jacó, e também de Jesus Cristo.

Em outras palavras, a nomeação divina somente é possível a partir da história,

da revelação divina na história da humanidade. Deus somente pode ser nomeado a

partir das experiências históricas que fazemos dele, experiências que são de uma ou

outra maneira qualificadas pela sua presença. Para a Tradição cristã, o

reconhecimento desta manifestação histórica é possível a partir da noção de Deus

como pessoa, o que aponta para a distinção entre uma essência incognoscível em si

mesma e a sua manifestação histórica em Jesus Cristo.241

Todavia, “...nomear Deus é, na melhor das hipóteses, uma atividade poética

sem incidência sobre a descrição, isto é, sobre o conhecimento verdadeiro do

mundo.”242 Sem querer com isto atribuir uma função apenas emocional ao discurso

poético ou reduzir a função referencial do discurso descritivo. Por isso, a teologia

não deve tomar para si um conceito de verdade definido como adequação do

enunciado à realidade anunciada, conceito este a ser submetido ao critério de

verificação e falsificação empíricas.

Neste sentido, ao nomear Deus, a teologia trabalha, à semelhança da poética,

com uma referência não-descritiva. Por isso, dizer Deus, nomeá- lo, não é buscar a

sua essência mesma, mas falar sobre a sua manifestação na história, numa inter-

relação com o ser humano. O encontro entre o ser humano e Deus se dá na realidade

241 Os debates cristológicos no início do Cristianismo giraram em torno da distinção entre pessoa e natureza, na qual a idéia de pessoa se associa à mascara usada no teatro, onde o ator não se identifica com a essência daquele que ele encena ou personifica. 242 Paul RICOEUR. Entre filosofia e teologia: nomear Deus, p.186-187.

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histórica, e esta supõe o critério hermenêutico, pois não se trata de observar dados

brutos, mas de descobrir o sentido dos fatos, o sentido da vida, a partir desta

manifestação divina.

Nesta linha de raciocínio, podemos afirmar que as experiências religiosas de

matriz judaico–cristã são veiculadas por um substantivo singular, Deus, em torno do

qual se cristalizam desejos e tendências (sociais e históricas) profundas do ser

humano. Mas apesar de tomarmos como exemplo a experiência cristã de Deus,

acreditamos não ser nenhum exagero afirmar que a presença e a manifestação do

Sagrado na história não podem ser algo estranho ao ser humano e devem sempre

estar relacionadas a uma experiência humana. No ser humano, já devem existir as

condições de possibilidade para que se possa crer em Alguém que se lhe revela nas

experiências humanas historicamente situadas. E a acolhida da revelação do Sagrado

na história como uma experiência humana supõe a busca por sentido, a busca

humana por sentido na vida, sem que isto seja imputado ao ser humano como um

constrangimento à sua liberdade.

O exercício da teologia no estudo da religião, frente às urgências do

pensamento contemporâneo, exige ainda a compreensão da primazia de Deus e o

papel da liberdade humana na experiência religiosa em que se configura o ato de

crer, uma vez que a relação entre a primazia divina e a liberdade humana muitas

vezes se vê cativa de um dilema oriundo da Ilustração: ou Deus ou o ser humano.

A saída deste cativeiro não é o caminho que nos conduz à fuga do problema

que ele anuncia – a rivalidade entre Deus e o ser humano – mas sim um outro

caminho, ou seja, aquele em que o ato de fé expressa a realização do humano, e a

condição de criatura em si mesma não se manifesta como um obstáculo à relação

com Deus. Em outras palavras, o antropocentrismo, algo vital para a mentalidade

moderna, não deve se constituir teologicamente em uma alternativa ao teocentrismo,

e muito menos em sua negação.

Entretanto, o respeito pela liberdade e autonomia do sujeito, do fiel que

professa a sua fé, não nos deve impedir de afirmar que nomear Deus a partir da

própria experiência somente é possível porque tal nomeação já aconteceu por meio

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dos textos que fazem parte da tradição que precede a experiência religiosa individual.

E isto na certeza de que tal anterioridade não anula a liberdade do ser humano

porque, sendo “ouvinte da palavra”, o fiel é chamado a interpretar aquilo que lhe é

dito, transmitido por outros que lhe antecedem na confissão de fé. Mas, escutar uma

tradição requer a renúncia da idéia de autonomia, tida por auto-suficiência, isto é, a

renúncia de colocar o sujeito como início absoluto do conhecer. Em parte, porque

...nomear Deus antes de ser um ato de que sou capaz, é o que fazem os textos da minha predileção quando escapam de seus autores, de seu meio de redação e de seu destinatário primeiro, quando eles desdobram seu mundo, quando manifestam poeticamente e assim revelam um mundo que poderíamos habitar.243

Esta tríplice independência do texto é o que lhe permite estar aberto a

inúmeras re-contextualizações por meio da escuta e da leitura. Todavia, a experiência

religiosa jamais se deixa reduzir à fala, à escrita e tampouco à experiência pessoal.

A nomeação de Deus, como caracterização da fé religiosa e aquilo que a

distingue da fé antropológica, somente é possível na articulação entre a experiência

pessoal do fiel, a tradição que fornece o instrumental linguístico para dizer Deus e a

autonomia do sujeito como ouvinte e intérprete da palavra, de Deus. Isto sem que

Deus deixe de ser a realidade infinita e o mistério absoluto, e sem que o ser humano

deixe de ser uma realidade singular, autônoma e livre diante do próprio Deus.

Assim, a revelação de Deus na história é o que nos permite falar dele,

nomeá-lo a partir das nossas próprias experiências humanas, e não proceder desde

fora, como se Deus vivesse num lugar isolado, longínquo, de quem o ser humano

jamais houvesse escutado a voz ou experimentado a sua presença, e que mesmo

assim devesse aceitar como existente, real, verdadeiro. Esta foi a tentação à qual

sucumbiram diversos teólogos que ao longo da história do Cristianismo se fecharam

em formas dogmáticas, tomando a si mesmos por donos da verdade.

243 Idem, ibidem, p.188.

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c. A nomeação de Deus no Credo.

Para o Cristianismo primitivo, a nomeação de Deus na vida do crente somente

é possível a partir da articulação entre a experiência religiosa, a tradição e a

autonomia do sujeito, nomeação esta que encontra no texto do Credo ou Símbolo dos

Apóstolos um exemplo singular.

A singularidade deste texto nos mostra que nesta textualização da fé cristã, a

nomeação de Deus não é mera teoria ou especulação metafísica, mas diz a ação

concreta de Deus na história da humanidade: criação, redenção, santificação. A

importância do texto do Símbolo dos Apóstolos para entender a maneira cristã de

nomear Deus, por meio do ato de fé, está relacionada ao fato deste texto ser o

Símbolo da iniciação cristã, por ser o mais próximo do Kerygma cristão, e também

porque a história da sua redação não tem por preocupação primeira o desejo de

refutar heresias, diferentemente da profissão de fé contida no chamado Símbolo

Niceno–Constantinopolitano.244

O acesso à significação da palavra "Deus" no Credo e na vida do crente é

dada pela fórmula introdutória “Creio em”, a qual segundo vários exegetas tem sua

origem no evangelho de João (Jo 14,1: Pisteúo eís Theòn – Credes em Deus). No

texto joanino, a fórmula "crer em Deus" e suas derivações gramaticais aparecem

frequentemente como um apelo de Jesus a seus interlocutores para um abandono

incondicional a Deus. Na verdade, “crer em Deus” expressa o movimento espiritual

cujo termo, na fé cristã, somente pode ser Deus Pai de Jesus Cristo, movimento este

colocado em marcha pela ação do Espírito na vida do fiel, do crente.

Todavia, a tradição cristã fez uma primeira distinção fundamental na regência

gramatical do verbo crer ao usar a preposição “in” para se referir às três pessoas

244 A Tradição Apostólica de Hipólito (escrita entre 215-217) é o mais antigo testemunho literário sobre o Credo Romano, na qual se baseia a formulação do Símbolo dos Apóstolos. Mas a história da constituição deste Credo nos conduz para além das fronteiras do século III, pois no início do século II já encontramos alguns escritos da liturgia batismal que apontam para a estrutura trinitária e a essência do Credo Romano: Eu creio num único Deus, num único Jesus Cristo e no Espírito Santo. A rigor, a estrutura trinitária do Credo nos remete a textos do Novo testamento, como, por exemplo, 2Cor 13,13 e Mt 28,19.

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divinas e somente a elas: “Credere in Deum Patrem, in Filum, in Spiritum Sanctum”

– Creio em Deus Pai, no Filho e no Espírito Santo”.245 Neste sentido, podemos dizer

que a Igreja existe como obra do Espírito em quem creio. Os antigos sabiam que

dizer Credere in Ecclesiam – Creio na Igreja – seria uma idolatria, uma profunda

deturpação da fé cristã. Em outras palavras, não se pode crer na Igreja como se crê

no Pai, no Filho e no Espírito Santo. A maneira como a Igreja é posicionado na

estrutura do Credo nos diz que a sua existência é crível na medida em que esta é

percebida como obra do Espírito Santo que reúne aqueles que crêem em Jesus Cristo.

Em outras palavras, a Igreja não é objeto de fé, configurando-se como o

lugar, ou melhor, como a tradição a partir da qual o cristão professa a sua fé em

Deus.246 Nesta estrutura gramatical do Credo podemos visualizar a relativização da

instituição da qual falavam tanto Schleiermacher como Juan Luis Segundo, à qual

podemos acrescentar a concepção de que a Igreja é sinal e não o lugar de Salvação,

desenvolvida por Juan Luis Segundo em sua eclesiologia.

Por isso, crer é um ato de fé, é uma experiência religiosa que somente pode

ter a Deus como fim último. E, como já observava a tradição latina, as três regências

do verbo crer em relação a Deus guardam uma profunda distinção entre si. Enquanto

"Credere Deum" significa crer na existência de Deus, "Credere Deo" equivale dizer

que dou crédito a algo em nome de Deus, ou ainda, creio que aquilo que Deus

revelou é verdadeiro. Estes dois significados são distintos do sentido primeiro da

expressão “Credere in Deum”, ou seja, a entrega incondicional ao Totalmente Outro

que na fé cristã, pela ação do Espírito, o cristão é chamado a nomear Deus Pai de

Jesus Cristo. Esta entrega incondicional é de certa maneira o que Schleiermacher

chamava de intuição e sentimento de absoluta dependência do Infinito.

Certamente, a distinção gramatical na regência do verbo crer não se trata de

um mero jogo de palavras. O uso da preposição latina “in” faz toda diferença no que

diz respeito à noção de fé religiosa, uma vez que ela marca uma profunda distinção

245 Em português, nos vemos obrigados a contrair o artigo “o” com a preposição “em” (“in” em latim) e utilizar o termo “no”. 246 Esta observação gramatical no tocante ao uso da preposição “in” tem um significado relevante na reflexão sobre a institucionalização da fé religiosa.

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em relação à fé antropológica que a estrutura. Se na dimensão antropológica da fé já

está presente o sair de si para entrar em relação com o outro, com aquele que nos

serve de testemunho referencial, em quem confio, a especificidade da fé cristã nos

diz que ela tem por fundamento último o próprio Deus, a quem podemos nos entregar

de forma incondicional. E isto em todos os aspectos da vida, da vida humana como

um todo. Afinal, a experiência religiosa e a fé que a acompanha supõem o ser

humano como uma unidade indissolúvel, ou seja, a experiência religiosa diz respeito

à totalidade da vida humana, ao mesmo tempo em que a constitui.

Tal como entendeu a tradição cristã, a confissão de fé contida na expressão

“Credere in” somente pode ser dirigida a Deus, ou seja, eu creio (somente) em Deus,

somente a Ele me abandono, somente nele deposito a minha esperança. Assim,

embora suponha os dois graus anteriores (“Credere Deum” e “Credere Deo”),

“Credere in Deum” é o constitutivo do cristão, uma vez que não basta crer que Deus

existe, pois até os demônios crêem na existência de Deus, como nos ensina a tradição

neotestamentária: “Crês que Deus é um? Fazes bem. Os demônios também crêem e

tremem” (Tg 2,19). E uma fé que se atenha somente a um plano abstrato não exclui

uma negação prática de Deus, algo denunciado por diversos teólogos no contexto

latinoamericano. Em outras palavras, na prática, é possível a coexistência da

profissão do “Credere Deum” e o cultivo de ídolos que desumanizam o ser humano,

o desfiguram como criatura e filho de Deus.

Nesta perspectiva, tal como aparece no Credo, "Creio em Deus" é

reconhecimento de uma presença, é movimento em direção ao Outro, é abandono

incondicional a este Outro, é enfim adesão a uma Pessoa. Trata-se na verdade de um

voltar-se interminável para alguém, pois o termo deste movimento é sempre uma

presença divina inefável, inesgotável. Isto faz da fé religiosa uma atitude que se

afasta da pretensão de domínio da experiência religiosa pelo sujeito, ou ainda, o

desejo de total objetivação da experiência humana de Deus.

Esta maneira cristã de nomear Deus nos diz ainda que a fé cristã não é

primeiramente adesão a proposições enunciadoras de crenças, sendo a linguagem

religiosa do Credo uma nomeação que aponta para a relação com Deus e não para um

comentário sobre Ele, tendo sempre em conta a história da humanidade na qual Deus

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se insere. É por isso que a Trindade, na teologia do Cristianismo primitivo, era vista

primeiramente na ordem das obras de salvação (criação, redenção e santificação),

não sendo vítima de uma linguagem cativa de uma questão numérica (ou metafísica),

isto é, um em três e três em um, como hoje ainda se costuma falar do Pai, do Filho e

do Espírito Santo. A fé no Deus uno e trino está irremediavelmente associada à obra

da Salvação, dita e transmitida por meio de textos, símbolos e ritos.

A história da configuração do Credo, por exemplo, nos mostra que o

ambiente no qual ele foi lentamente elaborado era uma atmosfera

preponderantemente catequético–batismal. Segundo alguns historiadores, no final da

Quaresma acontecia o rito da "Traditio Symboli". Neste rito, os catecúmenos

previamente escolhidos recebiam formalmente o Credo das mãos do bispo, entrega

que era acompanhada por uma explicação detalhada de todos os artigos do Credo.247

Na Vigília Pascal, ou seja, na noite do sábado anterior ao domingo da Páscoa,

acontecia a solene cerimônia da "Reditio Symboli", na qual os catecúmenos

devolviam o Símbolo, sendo que lhes estava proibido guardá-lo por escrito, devendo

memorizá- lo, conservá- lo no próprio coração. No rito batismal estava prevista a

profissão solene, de cor, do Símbolo da fé por parte do catecúmeno, e esta profissão

diante da comunidade significava o enraizamento na fé que da Igreja recebera, e

expressava igualmente a capacidade para dar razões da própria esperança a quem lhe

exigisse (1Pd 3,15).248

Na lógica da liturgia catequético–batismal do início do Cristianismo,

podemos nomear Deus a partir da nossa própria experiência porque antes Ele já o

fora na Tradição por meio da qual a fé é transmitida. O “Eu creio” supõe o “Nós

cremos” e este “nós” atua como testemunhos referenciais na educação da fé.

O esquecimento desta linguagem materna da Tradição cristã é sem dúvida um

dos responsáveis pelo abstracionismo pelo qual enveredou a teologia dogmática que

247 Expressão desta cerimônia são alguns dos sermões de Santo Agostinho (sermões 212-216). 248 Sobre a relação entre Credo e Liturgia batismal católica, ver J.N.D.KELLY. Primitivos credos cristianos, p.47-81; e também P-T. CAMELOT. Profession de foi batismale et Symbole des Apôtres, p.19-30.

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tornou Deus insignificante, irrelevante e inoperante para a existência humana. Este

glorioso isolamento de Deus proporcionado por certa linguagem teológica levou

teólogos como Karl Rahner a se perguntar se algo mudaria na vida dos cristãos se o

dogma da Trindade fosse abolido, ou como Bruno Forte, que se perguntava se o

Deus dos cristãos é ainda um Deus cristão.

Em todo caso, na linguagem religiosa do Credo, a nomeação de Deus

somente é possível porque o nomeado é uma presença que se revela na experiência

humana, a qual surge com lugar onde se manifesta a presença divina e se desenvolve

o movimento teologal, o que se expressa na profissão de fé "Eu creio em". A

presença divina na experiência humana faz com que o sujeito da ação na expressão

"Eu creio em Deus" seja o nome "Deus" e não o pronome "eu". Para a fé cristã, o

autor do movimento teologal não é pessoa que confessa, professa e testemunha a sua

fé, mas sim Deus, a presença divina inefável e invisível que se revela na experiência

humana. Paradoxalmente, o que em termos gramaticais é objeto (o nome Deus), no

plano da fé vem a ser o sujeito. “Em resumo, dizer ‘Creio em Deus’ significa

reconhecer, num ato de abandono incondicional, o Outro Absoluto, infinitamente

diferente do mundo e de nós mesmos.”249

Para o Credo, as experiências humanas nas quais Deus se revela, e que por

isso emergem como mediação entre a presença divina e o movimento teologal, são a

criação, a pessoa de Jesus de Nazaré e a Igreja, o caminho pelo qual nos fazem

passar os três artigos do Credo. Nessas realidades, o movimento teologal do Credo

encontra a sua determinação e o seu valor posicional.

Assim, o Símbolo dos Apóstolos, sendo uma textualização da fé cristã, nos

diz que no centro da fé está Deus – o Totalmente Outro –, como origem e termo do

movimento de abandono, movimento este mediado pela história humana e vivido

desde o interior de uma determinada tradição. Esta descentralização do “eu” na

experiência religiosa, seja pela centralidade de Deus seja pela anterioridade do “nós”,

dos testemunhos referenciais, consiste numa das grandes dificuldades para o

pensamento moderno, antropocêntrico, em aceitar a primazia de Deus sem que esta

249 Henri BOUILLARD. Le nom de Dieu dans le Credo, p.329.

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diminua ou elimine a autonomia e a liberdade humana no ato de crer. Dificuldade

compartilhada pelo discurso teológico, que diante do fenômeno religioso e da sua

institucionalização nem sempre soube articular de forma coerente a primazia de

Deus, a anterioridade de outras experiências e a autonomia do sujeito que professa

sua fé a partir de suas próprias experiências.

Mas, paradoxalmente, na profissão de fé “Eu creio em”, Aquele que é

nomeado não pode ocupar o lugar do ser humano, pois não é Deus quem crê, mas

sim a pessoa que professa a sua fé. E, sendo experiência humana, o ato de crer deve

respeitar as estruturas antropológicas que nos constituem, ou seja, a liberdade, a

autonomia e a possibilidade das decisões ético–existenciais. Por isso, crer em Deus

significa um engajamento existencial que se concretiza na relação com o outro, o que

faz da fé religiosa um compromisso de vida, com a própria e com a dos outros.

Neste sentido, a profissão de fé traz no seu âmago um constante jogo de

liberdades. Se por um lado, do ponto de vista cristão, no centro da experiência

espiritual que nos leva a professar a fé em Deus está o Totalmente Outro, tomado por

princípio e fundamento desta experiência religiosa, por outro lado a resposta à

iniciativa divina é fruto da liberdade humana e deve levar em conta a dimensão

histórica do ser humano. Isto faz do ato de crer um constante ato de interpretação da

interpelação divina, que possui sempre um determinado conteúdo histórico.

Em suma, a fé religiosa é vivida na constante tensão entre a iniciativa divina e

a liberdade humana. E conforme nos ensina a Tradição cristã, se o ato criador não

passou pela iniciativa humana, doravante a sua continuidade e termo (a salvação)

dependerá sempre da liberdade humana, ou como afirmara Santo Agostinho: “quis te

creativit sine te, non te salvati sine te – quem te criou sem ti, não te salvará sem

ti”.250

Em última análise, o que faz da fé antropológica uma fé religiosa é o caráter

de irreversibilidade alcançado na relação com uma pessoa que interpela outras

pessoas, que afeta nossos afetos, como termo do movimento espiritual que nos leva a

250 Citado em João Batista LIBÂNIO . Eu creio. Nós cremos, p.191.

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professar a fé em Deus, sem contudo esquecer o caráter hermenêutico irrevogável de

todo ato de crer. E isto na certeza de que a experiência de Deus não se esgota nem na

consciência do crente (autocompreensão) e nem na expressão doutrinal ou regulação

eclesial da fé, o que vem a ser fundamental para o estudo teológico da religião.

Mas, à diferença do Cristianismo primitivo, uma determinada tradição

posterior tende a confundir a unidade da fé, expressa no Credo, com a uniformidade

de suas expressões. Alguns esqueceram que não podemos compreender o ato de crer

somente como adesão e entrega a Deus, pois crer supõe também a criatividade por

parte daquele que crê (autonomia e liberdade) na interpretação do texto da fé. Crer é

celebrar e agir.

A fé religiosa supõe, pois, a interpretação da textualização da fé e da ação do

Espírito na vida humana. No ato de crer, a partir da própria humanidade, podemos

dar conta da experiência que nos habita e, neste esforço, podemos igualmente

perceber em liberdade que Deus nos precede, sem que isto seja um constrangimento

à condição de criatura, de ser finito. Isto faz da profissão de fé um jogo de liberdades,

ou seja, uma tensão entre a liberdade humana e a graça de Deus, que nos dá gosto de

fazer aquilo que devemos fazer.

Entretanto, toda crença traz no seu âmago a fragilidade de não estar reduzida

a uma evidência empírica. Interpretar é um risco razoável. Neste sentido, a teologia

sendo tematização da fé e da experiência religiosa afasta-se do conceito de verdade

definido como adequação a uma realidade e submetido ao critério de verificação e

falsificação empíricas. Ao tematizar a nomeação religiosa de Deus, o discurso

teológico o faz desde uma referência não-descritiva. Isto porque

...nomear Deus é em primeiro lugar um momento da confissão narrativa. É na ‘coisa’ contada que Deus é nomeado. Isso contra uma certa ênfase das teologias da palavra que observam apenas acontecimentos de palavra. Na medida em que o gênero narrativo é primeiro, a marca de Deus está na história antes de estar na palavra. A palavra é segunda, na medida em que confessa o traço de Deus no acontecimento.251

251 Paul RICOEUR. Entre filosofia e teologia: nomear Deus, p.191.

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Um dos motivos da inadequação do método teológico ao das ciências

experimentais (modernas, empírico–formais) consiste no fato de que o objeto de

estudo – a experiência religiosa e a linguagem na qual ela se expressa – escapa à

pretensão de domínio por parte do sujeito. Mesmo do ponto de vista teórico, é

negada a possibilidade de conhecimento completo, acabado, do objeto estudado.

Conhecer completamente o objeto, no sentido de esgotar as possibilidades de sua

manifestação, é impossibilitar a própria compreensão da experiência religiosa como

manifestação do Sagrado.

Isto porque o Sagrado não se esgota na experiência que porventura possamos

ter dele e com ele, e tampouco na linguagem que diz esta experiência. Além disso,

existem sentimentos e atitudes que extrapolam a pretensão de domínio do sujeito em

relação ao sentido de sua experiência, ou seja, de sua total objetivação. Este é o caso

da fé religiosa vista como expressão de uma humanidade aberta ao Transcendente.

As inúmeras críticas que ainda hoje recaem sobre a dimensão religiosa do ser

humano nos levaram a refletir sobre a humanidade do ato de crer. Estes mesmos

questionamentos nos conduzem neste momento à reflexão em torno da experiência

religiosa como expressão do humano.

A discussão sobre a função e a importância da religião na sociedade suscitou

e ainda desperta inúmeros debates. Muito já foi dito, a produção literária sobre este

assunto é imensa e ainda continua a ser elaborada. No que concerne à nossa pesquisa,

ressaltaremos mais uma vez o viés antropológico, ao retomar um antigo dilema: ou

Deus ou o ser humano. Isto porque o combate à religião, ao menos às suas formas

históricas de matriz judaico–cristã e mais recentemente ao islamismo, tem na

negação de Deus ou no decreto de sua morte um dos seus baluartes. Para esta

mentalidade, aquele que a fé cristã nomeia com a palavra Deus nada mais é do que

um artifício linguístico, uma projeção dos desejos humanos ou ainda uma mera

ilusão.

Além disso, a afirmação do ser humano exige necessariamente a negação de

Deus. Isto porque, a partir da Ilustração, a vivência da autonomia, da liberdade e da

historicidade tomou o caminho da negação da transcendência no ser humano, o que

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trouxe como consequência a visão da religião como algo não-humano, como

alienação, enfim como fuga da realidade.

Por fim, é preciso dizer, embora ainda de modo superficial, que o exercício da

teologia se faz a partir do desdobramento do ato de crer: as representações (ritos e

símbolos), os efeitos históricos e socia is, a tradição e a institucionalização da fé. Ou,

com alguma reserva, usar as palavras de Schleiermacher e afirmar que a teologia é

filha da experiência religiosa da qual ela emana, religiosidade que constitui a nossa

humanidade.

2. A RELIGIÃO COMO EXPRESSÃO DO HUMANO.

a. A morte de Deus e a afirmação do humano.

A questão da morte de Deus, ao menos como foi apresentada por Friedrich

Nietzsche (1844-1900) e que tanto influenciou a cultura ocidental, nos interessa de

modo particular porque ela abre espaço para a reflexão sobre o “fim” da teologia

considerada como um discurso razoável sobre a religião. O fato de que para muitos a

afirmação de Deus implique necessariamente na negação do ser humano, nos

convida a pensar a possível articulação entre religião, autonomia e liberdade no

interior do discurso teológico que pretende ser intérprete da fé religiosa, com

pertinência acadêmica.

Em certo sentido, a proclamação do funeral divino diz respeito a toda uma

cultura – Ocidental – que se desenvolveu em torno de verdades religiosas,

notadamente aquelas provenientes do Cristianismo. Em outras palavras, para uma

certa mentalidade ancorada no antropocentrismo moderno, o anúncio da morte de

Deus significa o esfacelamento da religião como algo constitutivo do ser humano e

do discurso teológico que a interpreta e a fundamenta. Desarticulação que ao mesmo

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tempo se tornava condição necessária para a afirmação do ser humano, dentro do

antropocentrismo moderno.

Um dos grandes desafios que se impõe hoje ao exercício teológico, em

diálogo com outras formas de saber, é o de “dizer Deus”, uma vez que o pensamento

moderno ou pós–moderno insiste em criticar a pretensão de se estabelecer ou

descobrir uma verdade universal através de esforços racionais. O pós–modernismo

clama pela ausência de um centro de referência, seja Deus (mundo teocêntrico) seja o

próprio ser humano (mundo antropocêntrico). Se para a modernidade a luz da razão

humana ofuscara “a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem” (Jo

1,9), para a pós–modernidade tanto uma como outra luzes se extinguiram. Nesta

espécie de universo em desencanto, onde se tende a negar a existência de uma

verdade absoluta, alguns se encontram deslocados, sem lugar e sem horizonte, afinal

“tudo o que é sólido se desmancha no ar”.

Que consequências traz a proclamação da morte de Deus para o discurso

teológico, hoje? Essa é a questão que nos introduzirá na discussão sobre a pertinência

da teologia tida como discurso sobre a experiência de Deus, no contexto de uma

cultura que lhe nega tal pretensão, ou seja, em meio a outras formas de saber que

negam a razoabilidade de seu discurso.

Nos fins do século XVII e no século XIX, existiu uma forma de ateísmo

teórico e prático que, como recorda Karl Rahner, “era de uma ingenuidade tão

condenável e de uma leviandade tão culpável que afirmava saber que Deus não

existe.”252 Bem diferente é aquele “ateísmo inquieto” que se caracteriza pelo espanto

diante do silêncio de Deus frente às tragédias da existência humana, pelo sentimento

de não mais perceber o divino, ou ainda, pela perplexidade diante de Deus que se

fecha na sua inacessibilidade. Esta experiência conduz muitos a dar uma

interpretação ateísta da realidade, o que é, sem dúvida, um verdadeiro desafio para a

teologia no estudo da religião.

252 Karl RAHNER. Teologia e ciência, p.18.

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A desconstrução de uma certa imagem de Deus onipotente e todo–poderoso,

castrador da liberdade humana, foi sem dúvida um dos objetivos de filósofos da

grandeza de Friedrich Nietzsche, a quem frequentemente se associa a idéia da morte

de Deus. Entretanto, muito antes dele o funeral divino já era algo proclamado por

outros pensadores como Henrich Heine em “Sobre a história da religião e filosofia

na Alemanha” (1834):

Nosso coração está repleto de piedade temerosa. O Velho Jeová prepara-se para a morte... Ouvis o sino tocar? Ajoelhai. Estão trazendo os sacramentos para um Deus agonizante.253

Seja como for, a proclamação do funeral divino manifesta o sentimento da

ausência de Deus da história da humanidade ou, pelo menos, a caducidade de uma

certa idéia de Deus tecida ao longo de séculos pelo Ocidente cristão, idéia que aos

olhos de Nietzsche e de seus seguidores era desastrosamente inadequada. Entretanto,

ele nunca afirmou categoricamente que Deus em si mesmo estivesse morto. Afinal,

embora proclame a morte de Deus pela boca de um louco, teve lucidez suficiente

para saber que se Deus existe, ele não pode morrer, pois isto contradiz a própria idéia

da eternidade divina; e se ele não existe, como haveria de morrer?

A maneira como o funeral divino é proclamado demonstra em parte a

genialidade e a sagacidade do pensamento nietzscheano, pois, em meio ao esplendor

da racionalidade humana, um louco dotado de imensa lucidez é capaz de apontar

para uma radical, drástica e revolucionária afirmação, como ele a descreve em um de

seus escritos:

Não ouviste falar deste louco que, em pleno dia, acendia uma lanterna e corria pela praça do mercado, gritando sem cessar: “Procuro Deus! Procuro Deus” – E como lá se achavam reunidos precisamente muitos que não acreditavam em Deus, ele provocou uma imensa gargalhada... O louco precipitou-se no meio deles e atravessou-os com o olhar. “Para onde foi Deus?” – gritou. “Quero dizer-lhes! Nós o matamos – vós e eu. Nós todos somos seus assassinos!... Não ouvimos ainda o ruído dos coveiros que enterraram Deus? Não sentimos ainda a putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus permanece morto! E fomos nós que o matamos!254

253 Citado em Ronald HAYMAN. Nietzsche: Nietzsche e suas vozes, p.7. Na tematização da morte de Deus, podemos incluir outros filósofos que marcaram a filosofia ocidental, como por exemplo Hegel, Heidegger e Schopenhauer. 254 Friedrich NIETZSCHE. A gaia ciência , § 125.

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Esta ocultação da face divina proclamada pelo louco nietzscheano não se

restringe à especulação acadêmica, uma vez que diz respeito também à

dramaticidade da existência humana, como é o caso do holocausto e de tantas outras

aberrações produzidas pela humanidade. Diante dos fatos narrados pela História –

cujos caminhos parecem desautorizar o chamado mito do progresso sob os auspícios

da razão técnico–científica – onde encontrar o Deus onipotente e todo–poderoso? Tal

drama concerne a todos, de fundamentalistas a ateus, a partir do espectro religioso

que caracteriza a história da humanidade. Desde a Antigüidade, o papel de Deus num

mundo onde existe o mal suscita questionamentos.

Estas questões acompanham há séculos a história da humanidade e inquietam,

ainda hoje, muitos crentes, homens e mulheres que confessam a sua fé em Deus,

onipotente e todo–poderoso. E de certa forma também incomodou a Nietzsche. Por

isso, a expressão “Deus está morto” pode ser compreendida como uma síntese do

conjunto de críticas feitas à religião do ser humano alienado, que perpassam boa

parte de sua obra filosófica. Com a proclamação da morte de Deus, ele tenta

desconstruir certas imagens divinas, como, por exemplo, a de bom e todo–poderoso,

manipuladas por aqueles que supostamente falam em nome da divindade.

É, pois, contra a caducidade de algumas imagens de Deus, notoriamente

aquelas oriundas da religião cristã, que Nietzsche desce o martelo de sua filosofia:

O maior dos acontecimentos recentes – que ‘Deus está morto’, que a crença no Deus cristão caiu em descrédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Para os poucos, pelo menos, cujos olhos, cuja suspeita nos olhos é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, parece justamente que algum sol se pôs, que alguma velha, profunda confiança virou dúvida: para eles, nosso velho mundo há de aparecer dia a dia mais poente, mais desconfiado, mais alheio, mais velho...255

Deus morre pelo esgotamento das formas históricas e culturais que

plasmaram determinadas imagens divinas. Deus está morto porque desmorona o

edifício cultural da moral judaico–cristã, e das cinzas do Velho Jeová ressurge o ser

255 Idem, ibidem, § 343.

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humano dotado de vontade e ato criador, ou seja, o super–homem nietzscheano. Por

isso, a expressão “Deus está morto” expõe a mentira, a falsidade da interpretação

judaico–cristã do mundo que faz da teologia uma razão prostituída, porque no

discurso teológico a palavra Deus não passa de uma criação humana, uma projeção

do mundo humano.256

Segundo alguns pesquisadores, Nietzsche foi um profeta do futuro, um

profanador de valores tradicionais, um ardente defensor do ser humano que está por

vir, alguém que via descortinar um novo horizonte para a filosofia:

Nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que o ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, o mar, nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’.257

Nesta perspectiva, Deus, ou melhor, a idéia cristã de Deus tornara-se ao longo

da história ocidental um obstáculo à afirmação do ser humano, de tal maneira que já

não era mais possível crer em Deus e sua nomeação transformara-se num absurdo

linguístico. A vitória do Cristianismo sobre a concepção grega do ser humano

envenenou toda a humanidade, a ponto de se construir, a partir de uma visão cristã da

realidade, uma moral de escravos, dos fracos, dos vencidos, homens e mulheres

ressentidos contra tudo aquilo de bom, nobre e belo que possamos encontrar no ser

humano.

O Cristianismo coloca, pois, sob o prisma do pecado, tudo aquilo que é valor

e prazer na terra, sendo que a história da religião cristã estaria supostamente marcada

pela imagem de um Deus incapaz de experimentar o prazer, incapacidade esta

projetada sobre aqueles que ao longo de séculos foram levados a renunciar ao prazer

como fonte de pecado e obra de Satanás. O que dizer, então, do Deus cristão senão

que ele é

256 A idéia da religião como narcótico (alienação humana) é explicitamente apresentada em sua obra “Humano, demasiado humano”. 257 Friedrich NIETZSCHE. A gaia ciência , § 343.

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um Deus degenerado a ponto de contradizer a vida, ao invés de ser a sua transfiguração e o seu eterno sim. Em Deus, está declarada a inimizade à vida, à natureza, à vontade de viver! Deus, a fórmula de toda calúnia do aquém e de toda mentira do além! Em Deus, está divinizado o nada, está consagrada a vontade do nada!258

Este Deus está morto! Algumas fórmulas violentamente anticristãs fizeram

com que Nietzsche fosse visto com reserva por alguns e até mesmo rejeitado

integralmente por outros. Não foram poucos os que o amaldiçoaram por ter

proclamado a morte de Deus, concedendo- lhe durante anos o título de ateu. Mas

alguns fizeram dele não mais o acusado e sim um visionário incompreend ido. Ele

mesmo teve consciência de que chegara cedo demais e o retrata na atitude do louco

que atira a lanterna no chão, a qual se parte em pedaços e se apaga, e em seguida

anuncia:

Vim cedo demais (...) ainda não é chegado o meu tempo. Esse enorme acontecimento ainda está a caminho e viaja – ainda não atingiu os ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão precisam de tempo; a luz dos astros precisa de tempo; os atos precisam de tempo, depois de terem sido realizados, para serem vistos e ouvidos. Esse ato está ainda mais distante dos homens que o astro mais distante – e no entanto foram eles que o realizaram.259

A filosofia de Nietzsche critica idéias de nossa civilização encarnadas na

religião, na moral, na metafísica e na ciência. Para ele, era preciso filosofar a golpes

de martelo a fim de desconstruir dogmas cultivados pela humanidade, os quais nada

mais fazem do que manter o ser humano em estado doentio e alienado.260 Isto faz

com que a religião origine-se de um erro de interpretação de certos fenômenos

naturais, constituindo-se, na verdade, numa confusão mental.

Os conceitos morais cristãos teriam sido construídos linguisticamente pelo ser

humano escravo. Por isso, a crítica à moral cristã é igualmente uma crítica

antropológica, na medida em que se pergunta pelo sujeito que inventou os conceitos

morais. Assim, podemos afirmar que a tarefa a qual se propõe Nietzsche, através do

258 Giovanni REALE & Dario ANTISERI. História da Filosofia, p.432. 259 Friedrich NIETZSCHE.A gaia ciência, § 125. 260 Sobre este assunto ver a seguinte obra de Nietzsche: Crepúsculo dos ídolos.

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martelo de sua filosofia, é a desconstrução de tais conceitos morais, mostrando quem

os criou (genealogia) e como foram criados (filologia).261

Para esta filosofia, diferentemente do que afirmamos antes, nomear é o ato

fundador da moral e da metafísica: Deus, pecado, paraíso, céu, inferno, são palavras,

invenções humanas, linguisticamente elaboradas e sem nenhuma referência histórica

com a realidade. O Cristianismo é um absurdo da linguagem, uma aberração

linguística, mera invenção humana, e a pretensa interpretação que a fé cristã faz da

realidade é na verdade uma maneira de avaliar, valorar e impor de forma específica

os signos linguísticos. E mais, a moral cristã não possui uma essência universal e

eterna, pois ela é fruto de interpretações contingentes, historicamente detectáveis.

No Cristianismo, nem a moral e tampouco a religião têm algo a ver com a

realidade. Deus, alma, redenção, espírito, pecado, isto é um mundo linguístico

fabuloso. Por isso, a genealogia ocupa-se do surgimento e desenvolvimento das

articulações linguísticas nas quais se baseia o discurso moral cristão. Quem

desencadeou o processo de interpretação: o nobre ou o escravo? A genealogia quer

constatar quem historicamente fundamentou os valores morais, ao passo que a

filologia deseja mostrar como tais valores foram historicamente fundamentados,

sendo a filosofia a ferramenta utilizada por Nietzsche no seu procedimento

genealógico262.

Na crítica feita através da filologia e da genealogia temos a desconstrução de

uma idéia e de um conceito de Deus, portanto de uma linguagem efetuada por

alguém. E este alguém, no contexto da crítica ao Cristianismo, é o sacerdote asceta

que promete ao seu rebanho, formado por pessoas ressentidas, malogradas, fracas, a

felicidade num mundo supra-sensível: o paraíso. Este sacerdote asceta chama de

Reino de Deus a um estado de vida cujos valores são determinados por ele próprio.263

Assim, o verdadeiro Cristianismo teria morrido na cruz com o seu fundador,

bem como a boa nova de Jesus Cristo. A palavra “evangelho” já não significa mais a 261 Marcio DANELON. Nietzsche: a (des)construção do Cristianismo, p.11. 262 Friedrich NIETZSCHE. Genealogia da moral § 06; Para além do bem e do mal §260. 263 Idem. O Anticristo § 26.

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boa nova anunciada por Jesus de Nazaré. Todavia, a crítica de Nietzsche não recai

sobre a pessoa de Jesus, não é ele que deve ser desconstruído pelo martelo de seu

pensar filosófico, mas sim o desenvolvimento histórico e conceitual da religião

cristã.264

Para esta filosofia a palavra Deus é uma ilusão, poeira nos olhos do ser

humano, nada mais do que palavra humana, pronunciada e interpretada pelo

sacerdote com o intuito de manter o rebanho submisso a ele. E não somente a palavra

Deus, mas tudo aquilo que a esta palavra está relacionado: céu, inferno, pecado,

paraíso,...265 Por sua vez, a teologia é o discurso através do qual se busca a

legitimação conceitual da Religião cristã, sendo o discurso teológico a linguagem do

escravo, do ressentido, daquele que nega os prazeres da terra. Este discurso teológico

encontra supostamente em São Paulo o seu principal fundamento. Ele é o porta–voz

da moral escrava, do humano malogrado, é o iniciador de uma religião de

impotentes, doentes e ressentidos:

A boa notícia foi seguida rente aos calcanhares pela pior de todas: a de Paulo. Em Paulo, toma corpo o tipo oposto ao ‘portador da boa notícia’, o gênio no ódio, na visão do ódio, na inexorável lógica do ódio. O que esse disangelista não ofereceu em sacrifício ao ódio! Antes de tudo, o redentor: ele o pregou em sua cruz... Mais ainda: falsificou a história de Israel mais uma vez, para fazê-la aparecer como pré–história de seu feitio: todos os profetas falaram de seu redentor... A Igreja falsificou mais tarde até mesmo a história da humanidade em pré–história do Cristianismo. 266

Aqui, as marteladas filosóficas recaem sobre o que se considera como falsas

interpretações morais de São Paulo e sobre aquelas que a partir dele contaminaram o

Mundo ocidental. A Deus foi atribuído aquilo que é profundamente humano, o

sacerdote transferiu a capacidade humana, a sua força de vontade, para um ser sobre–

humano, transformando o ser humano num impotente, num escravo. Assim, temos de

um lado o ser humano fraco, mesquinho, impotente, e de outro lado Deus todo–

poderoso, onipotente, onisciente, causa de tudo o que de bom existe, fundamento

último de toda a realidade.

264 Idem, ibidem, § 31.33.37. 265 Idem, ibidem, § 24-26. 266 Idem, ibidem, § 42.

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Portanto, a desconstrução da religião cristã desenvolvida por Nietzsche

acontece no âmbito do discurso, pois foi por meio do discurso, entendido como

articulações conceituais, que o Cristianismo histórico foi erigido em forma de

conceitos morais.267 Sua crítica não recai, pois, sobre Deus mesmo, mas sobre quem

compilou e interpretou filosófica e teologicamente a nomeação de Deus. Esta crítica

à conceituação divina atinge também a pretensão do intelecto humano de querer

penetrar as verdades últimas que dizem respeito ao ser humano e ao mundo,

esquecendo-se de que o Sagrado é aquilo que escapa à toda tentativa de redução

racional através da linguagem.

Leva-se, assim, ao extremo a luta contra a religião, sobretudo contra o

Cristianismo, na firme convicção de se conseguir a libertação do ser humano das

garras de uma cultura da moralização. Como outros filósofos, críticos da

modernidade, Nietzsche recusa a redução da vida social e da história ao triunfo da

razão, e critica a pretensão da razão humana de tudo saber e tudo controlar.268 Afinal,

acontecimentos históricos, como nos lembra Emmanuel Lévinas,

“tornaram tragicômica a preocupação para consigo mesmo e ilusórias tanto a pretensão do animal rationale a um lugar privilegiado no cosmos, como a capacidade de dominar e de integrar a totalidade do ser numa consciência de si”.269

Assim, se a obra de Nietzsche e certos acontecimentos históricos não nos

autorizam dizer que Deus está morto no sentido que deixou de existir, ao menos nos

forçam a afirmar que ficou mais difícil nomeá- lo a partir de nossas experiências

humanas.

267 Idem, ibidem, § 15 . 268 Alain TOURAINE. Critica à modernidade, p.115-140. 269 Emmanuel LÉVINAS. Humanismo do outro homem, p.83.

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b. A morte de Deus e o “fim” da teologia.

Qual seria, pois, o alcance da proclamação morte de Deus para o discurso

teológico como conceituação da experiência religiosa? Inicialmente, é preciso ficar

claro que dizer “Deus está morto” não é o mesmo que dizer “Deus não existe”, ou

ainda, “não é, nunca foi e nunca será”. Matar Deus somente é possível dentro da

racionalidade, a partir do conceito. “Deus está morto!” é a proclamação da morte de

imagens de Deus fixadas ao longo de séculos no nosso universo simbólico,

linguístico, a partir de experiências humanas do Sagrado.

E mais, matar Deus é, ao mesmo tempo, matar o próprio ser humano e esta

morte constitui-se no drama humano proclamado por Nietzsche. Isto porque, sem

Deus, nós ficamos soltos no universo, sem um princípio e fundamento no qual

ancorar a nossa existência. Estaríamos caminhando pelos caminhos da história sem

rumo e sem direção, sem a possibilidade de chorar a ausência divina ou voltar-nos

para trás a fim de dizer adeus a Deus, e com a tarefa de reconstruir a identidade

humana longe de Deus. Trata-se de uma desproteção absoluta: nada de confiança

ilimitada, nada de dependência absoluta, nada de sabedoria última, e tampouco nada

de verdade última.

Decretar a morte de Deus significa sepultar a concepção metafísica do

conhecimento seguro e absoluto, e igualmente a idéia de Deus como causa última e

segura do saber humano. A raiz metafísica do conhecimento humano que ajudou a

tecer as tramas da complexa cultura ocidental conduz à necessidade de buscar a Deus

como horizonte último de segurança e de verdade absoluta. Assim, para o homem

metafísico:

a morte de Deus é vivida de modo dramático, justamente porque marca o fim de um longo desejo que é necessário ao homem para viver com uma consciência de segurança. Nietzsche faz sua essa angústia ‘desesperada’ do homem metafísico diante do ‘avanço do niilismo’. Supera, porém, tal angústia quando observa que a morte de Deus é um acontecimento cultural e existencial necessário para purificar a face de Deus e, por conseguinte, a fé em Deus.270

270 Giorgio PENZO e Rosino GIBELLINI (orgs.). Deus na filosofia do séc. XX, p.31.

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Somente o louco poderia compreender que na morte de Deus está implicada a

morte de um modo de organização estritamente racional do ser humano. A crítica de

Nietzsche dirige-se também ao próprio ser humano que por meio de sua

racionalidade arquitetou um universo linguístico que tem a Deus, ou melhor, à

palavra Deus, como fundamento. Por isso, a desconstrução do Cristianismo acontece

na descontrução da linguagem que o fundamenta, mostrando que por traz desta

linguagem não está Deus, mas o próprio ser humano que o conceituou. Daí a

perplexidade do louco: a morte de Deus equivale à derrocada da própria

racionalidade moderna. A morte de Deus significa, pois, a morte do Deus apreendido

através de conceitos linguísticos bem arquitetados, que como teias de aranha

envolvem a face de Deus.

Por isso, ressaltemos mais uma vez que, na proclamação da morte de Deus, o

que se anuncia é a morte de uma idéia de Deus, de uma construção racional em torno

da palavra Deus, sendo o responsável por esta construção um discurso teológico

elaborado ao longo de séculos. É curioso perceber que o louco anuncia a morte de

Deus também no interior da Igreja, local do desenvolvimento linguístico do discurso

humano sobre Deus.271

Esta crítica à crítica vem ao encontro da nossa discussão sobre o “fim” da

teologia no estudo da religião, fim que pode ser entendido a partir de seu duplo

sentido: finalidade ou extinção. Em outras palavras, a morte de Deus significa

necessariamente a impossibilidade da teologia como um todo ou de uma certa

maneira de fazer teologia? O caminho percorrido até o momento nos leva a afirmar

que a proclamação do funeral divino diz respeito a um determinado discurso

teológico que se fundamenta na metafísica clássica.

Desde a perspectiva nietzscheana, os metafísicos são vistos como os

apologetas do orgulho humano na sua busca de Deus. Orgulhosos da sua busca, os

metafísicos ficaram cegos para a realidade, para o mundo da tragédia humana,

tornando inócua a tragédia deste mundo. O Deus dos metafísicos, com seu mundo

271 Friedrich NIETZSCHE. A gaia ciência, §125.

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verdadeiro e ideal, acabou por transformar a história numa mentira ou em mera

aparência:

desde Platão até Kant, trabalharam os metafísicos para apresentar as provas de que pode existir o bom mundo de Deus, e de que também pode haver filósofos, que pelo trabalho realizado no campo do conhecimento provaram que é verdade o que se diz acerca do bom mundo de Deus. Nesta realização, os filósofos adaptaram e transformaram em verdade um ideal que é apenas hipótese de trabalho. 272

O Deus como imaginação de um fim a ser alcançado está morto. E assim deve

estar, por ter-se transformado numa hipótese avançada demais para o ser humano e

por ter feito do conceito de Deus um conceito oposto à vida, uma exigência

exagerada e cruel. 273

O imperativo categórico de Kant, como potência da razão, teria sido uma

tentativa de evitar a crueldade de um “deus–fim” da metafísica, ao colocar no próprio

ser humano um fim a ser atingido. Todavia, se não temos mais Deus como fim a ser

alcançado, resta-nos ainda o fanatismo moral inerente ao mito do progresso. O

abandono de Deus como fim conduziu a humanidade, através do imperativo

categórico kantiano, à crueldade do moralismo burguês. Assim, se o “deus–fim”

metafísico está morto, o fim proposto pelo imperativo categórico de Kant jaz no

túmulo das metas preestabelecidas que não podem ser alcançadas.

Segundo alguns estudiosos, Nietzsche considera Sócrates, Platão e Aristóteles

como os pais da metafísica.274 Estes filósofos da Grécia antiga, que conheciam uma

vontade de poder, não foram capazes de colocar os meios eficazes para realizá- la.

Em Platão, o ser humano é alguém que fundamentalmente tende ao bem. Esta

intuição vale mais do que toda a filosofia platônica. Todavia, Platão quis fundar uma

escola, uma classe de bons e justos, dotados do instinto que os conduziria por

caminhos seguros em direção ao Bem, e que ao mesmo tempo os distanciaria dos

demais seres humanos que não eram como eles.

272 Nobert SCHIFFERS. “Deus está morto”. Análise de uma expressão de Nietzsche”, p.87. 273 Idem, ibidem, p.88. 274 Idem, ibidem, p.89.

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O mesmo poderia ser dito dos moralistas que, possuindo a verdade, julgam

aqueles que estariam supostamente aquém da verdade. E por que não falar do juízo

da Igreja sobre aqueles que não seguem suas leis, suas regras e seus dogmas, ou

como dizia Nietzsche: “Quanto de platonismo existe na Igreja! E isto em uma Igreja

dos que estão salvos, circundada por aqueles que não estão salvos”.275

Neste processo de exclusão teria se estabelecido um conceito de Deus de

classe, o qual se torna incompreensível para aqueles que não são capazes de “pensar

Deus”, como os filósofos, ou agir segundo determinada moral que tem a Deus por

fundamento. Mas se devemos dizer adeus à vã pretensão de ir a Deus, qual o

caminho que nos resta? Para Nietzsche,

resta apenas o caminho de Deus para os homens. É um entregar-se a si mesmo, feito da parte de Deus aos homens que não são capazes de compreendê-lo pelo pensamento e nem segui-lo por meio da moral (...) O Deus dos metafísicos, o Deus da filosofia moral, que termina apoiado apenas pela filosofia cristã, é um Deus cuja classe se extinguiu ultimamente por causa de sua compaixão para com os excluídos: Deus morreu por compadecer-se dos homens. A compaixão estrangulou Deus.276

E por que deste estrangulamento? Pelo fato de que Deus tem de se sufocar em

sua compaixão pelo ser humano e também porque, na sua condescendência, Deus

não pôde apoiar-se em nada de bom existente no agir humano. O grande culpado

desta visão (cristã) errada sobre o ser humano seria São Paulo, que possui um

pessimismo fundamental ao falar da morte salvadora de Cristo pelos seres humanos,

visto como radicalmente maus. Assim, São Paulo teria supostamente se colocado

acima do instinto de Jesus ao não reconhecer aquilo de bom que existe em todos os

seres humanos. E isto pode ser igualmente aplicado à Igreja que seguiu seus

passos.277

Nietzsche, diferentemente do que pensam alguns de seus interlocutores e

adversários, não quis matar Deus, mas somente constatar a sua ausência na cultura

em que ele vivia. O responsável pela morte de Deus é o pensamento metafísico, de

275 Citado em Nobert SCHIFFERS, “Deus está morto”. Análise de uma expressão de Nietzsche, p.91. 276 Idem, ibidem, p.93. 277 Idem, ibidem, p.95.

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modo especial a metafísica cristã que aprisionou Deus num emaranhado de conceitos

vazios, sem sentido, sem nenhuma conexão com a realidade. Não seria este um dos

motivos da exclamação do louco diante daqueles que zombavam de sua busca por

Deus com uma lanterna em plena luz do dia: “Nós o matamos – Vós e eu. Nós todos

somos seus assassinos!”?

A crítica de Nietzsche à moral e à metafísica como responsáveis pela morte

de Deus, por esgotá- lo numa conceituação que o transforma em um ser distante e

inacessível e ao mesmo tempo em uma exigência cruel, encontra ressonância no

discurso teológico de Schleiermacher. Ele, como vimos anteriormente, pontuou

explicitamente a distinção entre a religião e a metafísica e a moral, bem como a

independência da religião com relação a ambas. Isto porque confundir a religião com

a moral e a metafísica é despojá- la daquilo que lhe é essencial: a intuição e o

sentimento da ação de Deus no ser humano. Uma experiência que não se esgota em

nenhum outro conceito que porventura possamos atribuir a Deus.

Para muitos que se inspiraram no pensamento filosófico de Nietzsche, a

expressão “Deus está morto!” manifesta a vã tentativa de discurso teológico de

querer estabelecer ou descobrir uma verdade universal por meio de esforços racionais

e desde esta universalidade compreender toda a história da humanidade e do mundo.

Sem dúvida, as marteladas filosóficas de Nietzsche sobre o discurso teológico de

matriz judaico–cristã são um legado de grande valor para a Cultura ocidental.

Entretanto, após agradecer a Nietzsche por sua contribuição filosófica, nos

vemos obrigados a tomar certa distância de seu pensamento a fim de anunciar outros

caminhos. Não inspirados, entretanto, por aqueles que o acusam de ser um

representante de uma forma de neopagnismo.278 Muito menos por medo de que a

proclamação do funeral divino não seja somente o anúncio da morte do Deus da

metafísica, mas sobretudo do Deus cristão.

A problemática descortinada por Nietzsche e por todos aqueles que a ele se

associam na proclamação do funeral divino, é, ainda hoje, uma interrogação da qual

278 Henri DE LUBAC . El drama del humanismo ateo, p.125.

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o discurso teológico cristão não pode fugir ou simplesmente ignorar, caso queira

contribuir com o debate em torno do estudo da religião. Estaria Deus realmente vivo

para aqueles que recusam terminantemente a “morte de Deus? Não estaria agarrado a

um cadáver, a um conceito estéril, o cristão que rejeita obsessivamente o

esgotamento de uma determinada nomeação de Deus?

A sociedade contemporânea, diferentemente do que muitos pensam, não é

anti-religiosa e tampouco significa o triunfo do ateísmo moderno. Muito pelo

contrário! O chamado fenômeno do “retorno do Sagrado”, configurado em diversas

formas religiosas, demonstra o caráter religioso da sociedade marcada culturalmente

pelo pensamento moderno ou pós–moderno. Trata-se, no entanto, de uma

religiosidade na qual uma religião não pode mais se arvorar o título de verdadeira ou

colocar-se como único caminho de salvação, o que destrona a cultura da cristandade

e a teologia que a fundamenta. Enquanto alguns dogmas cristãos tendem a encarcerar

Deus num discurso racionalmente bem articulado, o pensamento hodierno desafia a

teologia a pensar Deus como um conceito inacabado.

Por isso, acreditamos que o discurso nietzscheano sobre a morte de Deus tem

ainda algo a dizer à nossa prática teológica. A maneira como nos aproximamos da

proclamação do funeral divino nos leva a afirmar que a questão não é Deus ou não

Deus, mas sim “que” Deus. Não se trata de saber se Deus existe ou não, mas de saber

o que se diz e o que se faz em nome d’Ele. Nietzsche, junto com os demais mestres

da suspeita, Marx e Freud, muito fez para mostrar a impostura de discursos

dogmáticos, que sob o autoritarismo que os caracterizam não reconhecem que por

trás das nossas afirmações existem interesses ocultos e desejos não manifestos.279

Assim, em nome de Deus Pai, destruiu-se na fogueira da Inquisição aqueles

que não aceitavam a seu Filho Jesus Cristo como único Salvador e a Igreja cristã

como sua legítima representante sobre a face da Terra. Hoje, já não se queimam mais

incrédulos e hereges, porém ainda lhes é negado o acesso ao paraíso. Em nome do

Velho Javé, busca-se a consolidação do Estado de Israel, mesmo que para tal seja

necessário eliminar aque les que questionam a sua legitimidade. Em nome de Alá,

279 Jaci MARASCHIN. Teologia sob limite, p.12.

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alguns pretendem fazer do Alcorão a única forma de vida moral e política de toda

humanidade. Em nome de Deus, pede-se a benção sobre a América – do Norte – para

que ela possa triunfar sobre as potências do mal. Em nome de Deus, através de

discursos religiosos e teológicos bem articulados, são permitidas e justificadas muitas

coisas, por vezes as mais horrendas.

Não raramente, também em nome de Deus, procedemos a demonização do

outro, procuramos eliminar aqueles que pensam diferentemente de nós, que estão

fora da nossa tradição, que não se encaixam em nossos princípios teológicos e

morais, enfim aqueles que estão supostamente do lado do mal. Trata-se, pois, de

conferir a vitória à verdade única e destruir a dos outros, a falsa. A tentativa de

eliminar a ameaça demonizada frequentemente conduziu a humanidade à

intolerância, ao fanatismo e a uma atitude inquisitorial, com ou sem fogueira. Para

muitos, possuir a verdade é algo maravilhoso, fundamental, sobretudo em nome de

Deus. Todavia, nada mais pernicioso para as relações humanas do que ser o dono da

verdade e ficar preso às correntes das próprias certezas, considerando-as como

verdades absolutas, esquecendo-se da historicidade e da relatividade da verdade.

Talvez seja oportuno, embora com certa reserva, afirmar que

“O discurso nietzscheano liberta a teologia de toda tentação racionalista. Relembra o primado do narrativo e da parábola, afirmando que a verdade nasce de uma descentralização que nos despoja de todo saber explicativo sobre as coisas primeiras e últimas para nos restituir a uma habitação presente do cosmos”.280

Não poderíamos ver esta libertação no gesto do louco nietzscheano que

procura encontrar a Deus em plena luz do dia, portando uma lanterna? Ousaríamos

dizer que aquele louco com a lanterna na mão estaria dizendo que o Sol já não brilha

o suficiente para iluminar os nossos caminhos. Seja o sol do discurso dogmático,

autoritário, inquisitorial, seja o do discurso racional metafísico que se configura num

discurso vazio, destituído de sentido. Tanto em um como em outro, por vezes, Jesus

Cristo não se refere mais ao mundo e nem a Deus, e o próprio Deus permanece

280 Pierre GISEL . Perspectivismo nietzscheano e discurso teológico. p.108.

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isolado da realidade, fechado num mundo cujo acesso está reservado a alguns

estudiosos que conhecem a maneira correta de interpretá- lo.

A morte de Deus talvez seja o silêncio necessário para que Deus possa voltar

a ter sentido em nossas experiências humanas. Algumas antigas concepções da

divindade devem morrer para que a maneira de fazer teologia e de experimentar a

Deus possam ser renovadas. Concepções como aquelas evocadas na estória de uma

velhinha que caminhava pelas estradas da Palestina com um prato de fogo na mão

direita e com um vasilhame de água na mão esquerda. Ao ser indagada sobre as suas

intenções, a velhinha respondeu que desejava queimar o Paraíso com o fogo e apagar

o fogo do Inferno com a água, a fim de livrar a humanidade de ambos. O seu

interlocutor, não satisfeito, perguntou o porquê deste desejo, ao que a velhinha

respondeu que não queria que se fizesse o bem para ganhar o paraíso como prêmio e

nem tampouco por medo de ir ao Inferno, mas simplesmente por amor a Deus. Nada

de recompensa e nem de punição, mas somente Deus.

Não seria, então, preciso deixar Deus por Deus? Deixar o Deus transformado

em objeto das nossas especulações e baluarte de nossas certezas últimas, sabendo que

o discurso sobre as experiências religiosas é o discurso sobre Aquele que não cessa

de estar ausente e que, portanto, não pode ser fixado em fó rmulas dogmáticas e

moralizantes. Por isso, ao confessar a sua fé religiosa, o crente não deveria, contudo,

perder de vista o fato de que a revelação divina não pode ser confundida com uma

manifestação objetiva de Deus na história. Caso contrário, tender-se- ia a confundir a

verdade da revelação com a objetividade da letra na Bíblia e a Tradição acabaria por

confundir-se com suas expressões, esquecendo-se que tais expressões são relativas

porque humanas e limitadas uma vez que são históricas, carecendo

consequentemente de uma hermenêutica.

Assim, o anúncio da morte de Deus não significa necessariamente o fim da

teologia. Talvez de uma certa forma de teologia, cuja crise foi anunciada pela crise

do próprio pensamento ocidental fundamentado na metafísica essencialista da

tradição filosófica (Deus como verdade ontológica) e que começou a ruir sob o

impacto da modernidade. Ao desmoronar a metafísica tradicional, diante do tremor

sísmico provocado pela modernidade, com ela veio abaixo parte do edifício teológico

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alicerçado na Tradição cristã, sobretudo aquela tradição que defendia a revelação

objetiva de Deus na história, ou seja, um conhecimento seguro de Deus a partir de

uma comunicação divina ao ser humano que nos eximisse de ler os sinais da história,

os sinais dos tempos, obrigando-nos a fixar nossos olhares nos sinais dos céus.

Neste sentido, a crítica de Nietzsche e de toda a corrente filosófica e científica

que a partir dele se desenvolveu inspira a nossa pesquisa sobre a finalidade da

teologia no âmbito universitário, mais propriamente no estudo da religião. Negar

Deus equivale certamente a um duro golpe, embora não fatal, sobre a teologia

entendida como um discurso racional sobre as experiências religiosas. Isto porque a

teologia cristã fizera da divindade um conceito formal e, portanto, passível de um

estudo racional desde um sistema.

Todavia, a rigor, não podemos estudar Deus, mas sim as afirmações e os

comportamentos humanos emanados das experiências religiosas. Sem, contudo,

querer falar de tal experiência de forma absoluta, o que seria uma contradição

insuperável. Afinal, Deus, digamos mais uma vez, é o Totalmente Outro que se

expressa na alteridade que nos surpreende como liberdade, como novidade absoluta,

e de quem somente podemos dizer algo a partir das experiências humanas e no risco

da linguagem humana que está sempre a exigir uma atitude hermenêutica.

c. Religião, autonomia e liberdade.

Ao realizarmos a delimitação do problema que nos ocupa em nossa pesquisa,

ressaltamos que a elaboração do termo religião esteve intimamente associada à

história do Ocidente. A tal ponto que o estudo acadêmico da religião se vê obrigado a

considerar o eurocentrismo metodológico e o cristianocentrismo etimológico.

Durante um longo período o termo religião esteve restrito às fronteiras da cultura

européia e da religião cristã, o que provocou uma série de preconceitos com relação

ao estudo da religião em ambientes universitários profundamente influenciados por

uma mentalidade positivista.

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Devido a este condicionamento histórico, parte da Cultura ocidental perdeu

de vista a relação entre religião, autonomia e natureza humana devido à luta que se

estabeleceu contra uma determinada tradição eclesiástica, notadamente a Tradição

cristã. Em outras palavras, a Cultura ocidental, ilustrada,

“... não havia definido religião e fé como categorias experienciais e intrinsecamente associadas à vida do sujeito, mas sobretudo como categorias que inevitavelmente implicavam assentimento não–razoável e não–autônomo a uma autoridade exterior, representada pelas formas da tradição da Igreja, do dogma e da Escritura.”281

A rejeição da religião como algo constitutivo do ser humano é muitas vezes

fruto de um mal-entendido, qual seja, o de tomar certas formas históricas da religião

pela religião em si mesma. Há um certo esquecimento de que a pluralidade religiosa

é algo inerente à própria religião e as diversas formas religiosas têm se desenvolvido

através de figuras mutáveis, historicamente situadas, ao longo da história da

humanidade. Consequentemente, a mensagem religiosa é transmitida por meio de

códigos linguísticos condicionados pela cultura à qual pertencem, sendo contra esta

forma histórica que muitos empreendem seu combate à religião.

Por isso, constava do projeto iluminista a superação da religião em nome do

progresso da humanidade, progresso este que se manifestava, em parte, na autonomia

e na tolerância universal. Todavia, a crença no progresso ilimitado da humanidade,

fruto das inúmeras conquistas proporcionadas pelo desenvolvimento das ciências

experimentais, com o passar do tempo mostrou-se ambíguo. Guerras, conflitos

sociais, o abismo entre países ricos e pobres, a desigualdade no interior das próprias

nações e o fato de boa parte da humanidade ser muito mais vítima do que

beneficiária do progresso técnico–científico colocaram a racionalização ocidental sob

suspeita.

Por mais que ilumine a nossa razão, a racionalização ocidental não é de todo

evidente e sensata para toda e qualquer razão, ou seja, trata-se de uma racionalização

que possui seus limites. Afinal, a sua evidência está vinculada a contextos históricos

281 Luís Henrique DREHER. O método teológico de Friedrich Schleiermacher, p.47.

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e culturais bem determinados, e, como tal, não pode ser compreendida por toda a

humanidade.

A religião igualmente é chamada a reconhecer seus limites e suas patologias,

deixando-se purificar e organizar novamente seu universo conceitual à luz da razão

humana, a qual não se restringe à racionalidade ocidental, técnico–científica. A

razão, por sua vez, deve ser susceptível àquilo que as diversas tradições religiosas

têm a dizer sobre os limites e as anomalias da racionalidade humana. Neste sentido, a

discussão acerca dos fundamentos da religião, tida como ato humano ou desumano,

não pode limitar-se ao universo cristão e tampouco a uma determinada tradição

racional, que durante séculos se impôs culturalmente na história do Ocidente.

A descrença que se abateu sobre a religião não poupou a teologia, devido aos

laços estreitos que a aproximavam da religião. Por isso, o discurso teológico, para ter

validade pública no diálogo com a cultura contemporânea, há de trabalhar com uma

definição de religião que esteja arraigada na natureza humana e profundamente

ligada à idéia de autonomia.

Neste sentido, o conceito de religião com o qual trabalhamos nesta pesquisa,

a fim de discutir o papel da teologia no seu estudo acadêmico, procura ter sempre em

conta que religião não é, em primeiro lugar, um conjunto de leis, normas e

instituições, mas uma experiência que caracteriza a natureza humana, a partir da qual

podemos nos situar no mundo, ver os outros e a nós mesmo. Religião é uma

dimensão antropológica antes de ser eclesial, possuindo um caráter profundamente

antropocêntrico, ao mesmo tempo em que guarda autonomia face a qualquer forma

de discurso e diante de leis e de autoridades eclesiásticas. Autonomia entendida

como sendo diferente do individualismo, pois não se trata de tomar a própria

experiência como instância absoluta, mas sim como fundamento em oposição à

aceitação de uma verdade baseada unicamente em autoridades externas (instituições,

hierarquia, dogmas,...).

Por isso, a teologia, no seu diálogo como a comunidade acadêmica, deve ter

como ponto de partida o positivo da relação entre Deus e o ser humano, vale dizer, o

empírico que é diferente do empírico–formal das ciências exatas e experimentais,

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todavia tomando distância de uma tentativa meramente especulativa de compreender

esta relação. Além disso, a dimensão humana e, portanto, verificável da experiência

religiosa, fundamenta-se no fato de que as religiões são experiências humanas e neste

sentido constituem-se em respostas humanas a perguntas concretas (a realidades

concretas), respostas caracterizadas por sua referência a Deus. A experiência

religiosa é uma experiência que não está acima de outras experiências humanas e

muito menos fora do humano.

Por sua vez, o discurso religioso que acompanha a experiência religiosa é

uma interpretação da realidade que é comum a todos, pois se trata de uma

experiência humana e não sobrenatural, no sentido de que não é uma experiência que

esteja para além da própria humanidade, num recôndito ao qual somente alguns

privilegiados ou mais instruídos têm acesso. Ou ainda, a fé em Deus não é anterior à

experiência humana, crer em Deus é algo que nasce da maneira como se experimenta

a própria vida humana. Nesta linha de raciocínio, podemos dizer que a fé religiosa ou

a descrença aparecem respectivamente ao crente e ao ateu como a melhor maneira de

interpretar o mundo comum a todos nós. Assim,

...chegar à fé significa comprovar que a hipótese religiosa é a que melhor esclarece as experiências radicais em que a pessoa se confronta com a contingência própria e com a do mundo, com os interrogantes últimos da vida e da morte, da angústia e da esperança, da felicidade e da desgraça, do compromisso ético e do sentido da história.282

Por isso, se compreendermos a experiência religiosa como uma disposição

inata e particular do ser humano para se relacionar com o Infinito, ou ainda, se

tomarmos o ser humano como ponto de partida da compreensão da religião, sem

contudo reduzi- la ao humano, isto nos exigirá o esforço de pensá- la teologicamente

para além de uma visão humanista da humanidade. Em outras palavras, considerar a

religião para além de uma humanidade auto-suficiente, em contraposição à cultura

ilustrada que não aceita a religião como algo inerente ao ser humano e igualmente

nega a relação com o Transcendente, vista como abertura ao Infinito. Isto faz do

chamado giro antropológico na teologia um ponto de partida e não um fim em si

mesmo. 282 André Torres QUEIRUGA. O fim do cristianismo pré-moderno, p.232.

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Todavia, apesar de não se esgotar no humano porque comporta a relação com

o Transcendente, a religião e o discurso religioso que a acompanha, como afirma

Schleiermacher, deve renunciar à tentação de querer perscrutar as causas últimas e a

formular verdades eternas.283 Afinal, querer colocar como meta da religião investigar

sobre a natureza do universo e de um Ser supremo (metafísica) e pretender discorrer

sobre a essência da vontade de Deus (moral), é fazer com que o discurso teológico

caia inevitavelmente no vazio, diante da impossibilidade de levar esta investigação a

termo.

Impossibilidade que não significa dizer que a linguagem simbólica que

caracteriza o discurso religioso seja em si mesma carente de sentido. O problema está

em exigir da linguagem religiosa provas empíricas ou fisicamente controláveis, uma

vez que tal linguagem fala de realidades que transcendem o empírico, sem contudo

ser sobrenatural no sentido de estar alheio à história e à existência humana.

Se nos referimos à experiência religiosa como uma realidade humana antes de

ser eclesial, a fim de ressaltar sua autonomia frente a determinadas estruturas

eclesiásticas, cabe-nos agora dizer que tal experiência é igualmente uma realidade

pré–teológica. A experiência religiosa constitui-se, pois, como ato primeiro, sendo o

discurso teológico um discurso sobre uma realidade anterior, autônoma, a qual pode

ou não vir a se institucionalizar de forma eclesial e mesmo ser elevada ao nível do

conceito, isto é, do discurso sistematicamente estruturado. Para dizer o mesmo com a

linguagem de Schleiermacher, afirmar que a teologia é “filha da religião” equivale a

dizer que o discurso teológico é elaborado a partir da experiência religiosa que a

precede.

Entretanto, há de se ressaltar que, para este tipo de pensamento, a religião não

é tomada necessariamente por uma instituição eclesial, mas como experiência,

sentimento da ação do Infinito no finito.284 Por isso, o método teológico há de ter por

fundamento um necessário e inevitável antropocentrismo, algo que encontramos

283 Friedrich SCHLEIERMACHER. Sobre a religião , p.29. 284 Richard NEIBUHR. Schleiermacher on Christ and religion, p.137-147.

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presente em diversas reflexões teológicas desde o ponto de vista do chamado giro

antropológico e a partir do qual podemos falar da religião como uma experiência

essencialmente humana.

Além disso, a particularidade da experiência religiosa fornece o mapa

linguístico para que possamos interpretar a realidade. Este instrumental linguístico se

tornará objeto de estudo da teologia como discurso interpretativo de uma realidade

que a precede e que portanto é pré-teológica e da qual a experiência cristã é apenas

uma experiência específica, singular, e não a única possível e verdadeira.

Esta especificidade da experiência religiosa cristã como ponto de partida para

o exercício da teologia requer, por sua vez, o conceito genérico de religião como

dimensão constitutiva do ser humano, dimensão pré-teológica e pré-eclesial. Esta

precedência do religioso aponta para a autonomia da experiência religiosa diante das

diversas formas de institucionalização eclesial e dos diversos discursos teológicos

que elevam a experiência religiosa ao nível do conceito, da tematização.

Um dos grandes dilemas da religião cristã e do discurso teológico que dela

emana consiste em sua pretensão a superioridade diante das demais religiões

históricas, ou ainda, a sua reivindicação a experiência de validade absoluta, de

caráter definitivo, enfim de plenitude dos tempos. Pretensão que pode entrar em

confronto com a idéia da ação perene do Espírito, este capaz de suscitar novas

formas históricas de religião, transformando inclusive o Cristianismo, ao menos em

sua forma hierárquica, em pretérito da história.

Esta discussão nos coloca diante da questão sobre a verdade no estudo

acadêmico da religião: existe uma única religião verdadeira, plenitude das demais

expressões históricas da relação com o Sagrado, com o Transcendente?285 Com isto,

não menosprezamos a força e a importância da institucionalização da experiência

religiosa, a sua capacidade de nos situar no mundo e ajudar a estruturar a própria

vida. Entretanto, o risco desta institucionalização está em ligar a verdade religiosa à

285 Temática desenvolvida por Donald Wiebe na seguinte obra: “Religião e verdade. Rumo a um paradigma alternativo para o estudo da religião”.

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instituição como tal, ou ainda, compreender a verdade religiosa a partir do momento

histórico fundador que a legitima, momento mediado por uma instituição

historicamente situada e portanto limitada. A religiosidade que caracteriza o ser

humano é a matriz antropológica que pode dar corpo a formas institucionais, mas

também possibilitar ou dar lugar a formas não institucionais que alguns chamam de

“religiosidade errante”. 286

Nesta perspectiva, a religião diz mais do que ela mesma na relação com o

Sagrado, pois permite o surgimento da religiosidade que transcende as suas próprias

fronteiras. A religião é uma forma de institucionalização que comporta a mediação

(compromisso com uma cultura e uma determinada sociedade) e a transmissão que

permitem a continuidade na descontinuidade histórica. Não existe religião que seja

isolada de determinados aspectos sociais e culturais. Por isso, a crise da religião,

considerada como uma instituição, faz parte de uma crise mais global que caracteriza

a modernidade e se arrasta até os dias de hoje: a verdade não é mais aceita somente

porque é dita ou imposta de fora da experiência pessoal por uma autoridade divina ou

humana.

Além disso, o acentuado crescimento do pluralismo religioso, que evidencia a

importância das práticas religiosas não cristãs na intelecção do fenômeno religioso,

pode ser considerado como um desafio para o exercício da teologia cristã. Este

pluralismo religioso exigirá tanto dos teólogos como dos cient istas da religião a

abertura a uma maior multiplicidade de temas, interesses e perspectivas que se

situam para além das fronteiras da religião e da teologia cristãs.

Assim, a interdisciplinaridade deixa de ser uma intriga entre diversas

disciplinas que procuram se apropriar do objeto religião e assume a noção de uma

cooperação entre diversas formas de saber que sabem não serem proprietárias

exclusivas do objeto que pesquisam.

286 Esta perspectiva é desenvolvida por Pierre Gisel em seu texto “Le New Age. Entre institutionalization de la religion et religiosité vagabondante. Un regar de théologien”.

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Qual seria a importância da experiência religiosa na tarefa teológica? O que a

teologia acrescenta à experiência religiosa que ela já não possua em si mesma? Uma

experiência religiosa quase sempre necessita de ritualidade. Uma pessoa de fé

religiosa por vezes necessita de um mestre espiritual. Mas em ambos os casos, nem

sempre há necessidade de um discurso teológico. Todavia, a presença da teologia se

faz necessária, em parte, a partir do momento em que a religião se insere num

contexto histórico diferente, quando se dá uma transculturação, quando acontece a

inevitável descontinuidade de formas e representações do mundo religioso.

Neste sentido, a teologia seria a descrição ordenada e metódica que clarifica a

fé através de uma linguagem mais elaborada, sem contudo tender a um estudo

sistemático sobre Deus, tomado por verdade ontológica, mas sim a uma

hermenêutica da linguagem religiosa como afirmações humanas sobre Deus e

comportamentos humanos diante dele. Hermenêutica aqui entendida não somente

como técnica de interpretação de textos, mas acima de tudo desde a perspectiva da

“decifração da vida no espelho do texto”287, na possibilidade de compreender o

sentido da vida no sentido segundo, velado pelo sentido primeiro oferecido pelos

símbolos da linguagem religiosa.

É no equilíbrio instável entre a linguagem simbólica e o discurso racional que

se constrói o discurso teológico sobre a religião, o qual deve estar estruturado de tal

modo que a sua validação aconteça na recepção de uma tradição que implica numa

verdadeira produção de sentido. No chamado mundo moderno, esta perspectiva

teológica é acentuada a partir do que determinada tradição convencionou chamar de

giro antropológico e que necessita inicialmente recuperar a noção de criação.

287 Paul RICOEUR. O conflito das interpretações, p.322.

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3. O ANTROPOCENTRISMO TEOLÓGICO.

a. A criação e a afirmação do ser humano.

Ao que tudo indica, não foi intenção primeira da Ilustração a negação de

Deus. Todavia, pouco a pouco “... a negação do divino constituiu a condição prévia

e indispensável para assegurar a realização social (Marx), psicológica (Freud), vital

(Nietzsche), livre (Satre) e até moral (Merleau-Ponty) do homem”.288 Deus passa a

ser visto como inimigo do ser humano, como alguém que está constantemente a

ameaçar a sua liberdade e isto até desembocar na idéia de que a afirmação de Deus,

onipotente e todo-poderoso, exige a negação do ser humano, ou ainda, para que o

Criador seja tudo, a criatura deve ser nada. Em outras palavras, a religião e dentro

dela Deus, bem como o discurso teológico que a ambos está associado, impedem o

pleno desenvolvimento do ser humano, na medida em que são vistos como inimigos

da autonomia e da liberdade humanas.

Assim, se inicialmente o pensamento ilustrado constitui-se numa afirmação

do ser humano ou na negação da negação do ser humano, posteriormente o ateísmo

moderno se vê obrigado a negar Deus para afirmar a grandeza do ser humano e

consequentemente rejeitar a experiência religiosa e o discurso teológico como

expressões da humanidade que nos constitui.

Todavia, contrariamente ao que se afirma a partir da Ilustração, refletir sobre

o tema da criação desde o horizonte dos textos bíblicos é admitir inicialmente o valor

do contingente, uma vez que a noção bíblica da criação marca a diferença radical

entre Deus e o mundo. Na natureza, pode-se manifestar o divino, mas ela é

essencialmente profana. A história por sua vez não é divina, pois não é determinada

pelas mãos de Deus, no sentido que ela está entregue à responsabilidade humana. As

estruturas sociais não são sagradas, mas sim fruto da atividade humana, não sendo

possível sacralizar determinada estrutura social como sendo ditada, determinada,

288 Andrés Torres QUEIRUGA. Creo en Dios padre, p.75.

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diretamente por Deus. E nesta distinção ou separação, o ser humano se vê tão

autônomo, tão independente, que pode inclusive negar Deus.

Neste sentido, a criação dita em termos de separação aponta para a alteridade

e a responsabilidade, vividas em liberdade. Ser criatura é viver por si mesmo, é estar

feliz, é sentir-se bem na própria morada, é não se sentir como um defeito de criação

ou uma imperfeição que nos obrigasse a querer ser como Deus, tal qual é narrado

pela tradição bíblica no discurso enganoso da serpente em seu diálogo com Eva (Gn

3,5).

Na linguagem religiosa, o pecado de Adão e Eva é uma autodestruição da sua

condição de criatura por meio da inveja. O pecado se constitui na recusa de ser

criado, de ter por fundamento somente a si mesmo e como ser criatura passa a ser

visto como algo ruim, ao ser humano só lhe resta querer ser como Deus. Desejo

humano supostamente interditado por Deus, ou seja, "eu quero ser como Deus

porque Deus é definido como aquele que não quer que eu seja como ele".289 E Deus,

como insinua a narrativa bíblica por meio da serpente, não só não quer ceder seus

privilégios como também teme perdê- lo, pois não poderia continuar a ser quem é

caso fosse destituído de seu poderes (onipotente e todo-poderoso).

A maneira como a narrativa bíblica está estruturada diz sutilmente algo ainda

mais profundo: Deus supostamente não tem o poder que sustenta o interdito de

comer e tocar o fruto que está no meio do jardim. Trata-se de um falso poder e, uma

vez decretada a fraqueza de Deus, sem poder, cabe à criatura tomar o lugar do

Criador, ser todo-poderoso e onipotente.

Colocado desta maneira, o pecado aparece como a vontade de matar Deus

tornado inimigo da natureza humana. Um sentimento dissimulado nas palavras

enganosas da serpente e retomado posteriormente pela tradição veterotestamentária

ao afirmar, no evangelho de João, ser Satanás desde o princípio o pai da mentira (Jo

8,44). Assim, quando uma determinada tradição bíblica coloca o "ser como Deus"

289 Paul BEAUCHAMP . L’un et l'autre Testament, p.144.

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como um pecado, procura na verdade negar a negação da condição de criatura, ou

dito positivamente, busca afirmar a grandeza da existência humana.

Desta maneira, tomar a criação como separação é caminhar no sentido

contrário ao da antinomia “ou Deus ou o ser humano”, ou seja, a manifestação da

grandeza da criatura, do humano, não necessita da negação do Criador. Nesta linha

de raciocínio, a experiência cristã nos mostra que a revelação de Deus – a sua

presença na história – tem por finalidade a salvação do ser humano, a qual é

entendida como negação de toda negação da criatura, do contingente.

Já no século II, nos primórdios do Cristianismo, Irineu de Lion afirmava:

“gloria Dei, vivens homo – a glória de Deus é que o homem viva.” É isto o que

significa de um lado o perdão e a redenção, e por outro lado a criação e a encarnação.

Entretanto, parte da tradição posterior a Irineu de Lion se esqueceu de que a glória de

Deus está na plenitude do ser humano, passando a valorizar sobretudo a imagem de

um Deus criador que não se alegra com a realização da criatura humana, tornando-se

seu inimigo.

Uma inimizade que seria radicalizada pelo pensamento moderno ilustrado ao

tomar a religião, Deus e o discurso teológico como obstáculos à realização humana.

Na Ilustração, a religião foi facilmente vinculada a um marco autoritário do passado,

fazendo com que o ser humano moderno se rebelasse contra a imagem de um Deus

legislador, encarnado numa Igreja que supostamente se opõe ao progresso humano.

Porém, no lado oposto a esta visão de Deus permanece a atualidade da tradição

expressa nas palavras de Irineu de Lion: a presença de Deus na vida humana tem por

finalidade primeira conduzir o ser humano à sua plenitude, o que exige a superação

da imagem de um Deus inimigo da natureza humana e que nos leve a abandonar, por

exemplo, a relação pedinte e comercial para chegar a uma relação mais íntima e

amorosa com Deus. Igualmente se faz necessário perceber que a religião nasce das

buscas, das esperanças, dos sonhos que fazem parte do mais íntimo da vida humana.

Nesta perspectiva, podemos afirmar ser a religião uma dimensão humana que

possibilita a visão de mundo que determinado grupo humano, historicamente situado,

tem, face aos desafios que se apresentam. O mesmo podendo ser dito do ateísmo, o

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que faz tanto da religião como do ateísmo uma postura particular face ao mundo que

nos cerca. Por isso, algumas imagens bíblicas de Deus como aquele que castiga,

pune, destrói, mata, exige sacrifícios, mostram que “a religião bíblica não é uma

invenção de laboratório, ela nasceu da vida humana real, sempre tateante, concreta

e contraditória.”290 Estas imagens fazem parte de um longo processo de percepção

da presença de Deus na história e que na Tradição cristã culmina com a experiência

amorosa de Deus. Dizer que Deus é amor faz parte deste longo processo da história.

Esta história marcada pela noção de que Deus cria criadores, o que equivale dizer

que Deus torna possível e sustenta a liberdade humana.

Mas isto não retira e nem mesmo diminui a responsabilidade humana, uma

vez que no ser humano a obediência passa pela sua liberdade, a tal ponto que ela

pode converter-se em “des–obediência”. Isto nos diz que o ser humano deve ser

capaz de entrar numa relação livre com Deus, na qual a liberdade e a autonomia

humanas são respeitadas. A criatura é uma realidade autêntica, livre, autônoma e

distinta do Criador. Se for verdade que o ser humano não é criador no sentido que a

sua existência vem de um Outro, igualmente é verdadeiro o fato de que ele é criador

quanto ao sentido que necessita conferir à sua existência. A vida humana há de ser

vivida como um dom a se realizar a partir da nossa própria liberdade.

Neste sentido, a dependência e a autonomia de Deus no ser humano crescem

em proporção direta e não inversa. Na medida em que reconhecemos a nossa

dependência de Deus no tocante ao ato da criação, cresce em nós o sentimento de

liberdade, de ter que assumir a própria vida como um caminho de liberdade que

exige a tomada de decisões com responsabilidade. Por isso, ser livre diante de Deus é

perfeitamente compatível com o ser dependente dele. Ou como nos lembra o filósofo

judeu Emmanuel Lévinas, “é certamente uma glória para o Criador ter criado um

ser capaz de ateísmo, um ser que, sem ter sido causa sui, tem o olhar e a palavra

independentes e está em casa”.291 Estar em casa, feliz e satisfeito, é aceitar a

condição humana, a finitude, algo que engrandece o ser humano.

290 Andrés Torres QUEIRUGA. Recuperar la creación, p.58. 291 Emmanuel LÉVINAS. Totalité et infini. Essai sur l’exteriorité, p.30.

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Assim, a noção bíblica de criação, como a entende certa tradição cristã, nos

mostra que a presença de Deus não é uma violência à liberdade humana, mas um

convite para entrar em relação com Ele, sendo vista como uma graça a ser acolhida e

que supõe a cooperação do ser humano como ato de sua liberdade. Cooperação que

se dá a partir do humano, o irredutível em toda criatura e que constitui a sua

verdadeira nobreza. Entretanto, uma nobreza sempre aberta para acolher a

manifestação de Deus pelos caminhos da história.

A título de exemplo, gostaríamos de nos referir a uma das obras musicais de

Mozart (1756-1791): A flauta encantada. Nesta obra, o casal Tamino e Pamina deve

vencer a morte, e a humanidade é afirmada como condição para superar as

provações, na busca desta vitória. Primeiramente, três crianças dizem a Tamino e

Pamina: “esta via te conduzirá em direção ao teu fim, mas será necessário lutar

como um homem.” Ao que Tamino pergunta: “Belas crianças, digam-me se eu

poderei salvar Pamina”. A resposta das crianças insiste uma vez mais sobre a

humanidade: “Isto nós não podemos te dizer. Seja firme, paciente e silencioso.

Lembra-te disto. Seja um homem! Então tu lutarás valorosamente.” A insistência

sobre a nobreza da humanidade surgirá novamente ao longo desta peça musical

quando os sacerdotes interrogam sobre a personalidade de Tamino: “Ele é virtuoso?

Ele é discreto? Ele é bom?” A resposta é sempre afirmativa: sim! Todavia, há uma

quarta questão: “Mas Tamino saberá ultrapassar as duras provas que o esperam,

será ele um príncipe?” E a resposta é eloqüente: “Ele é mais do que isto, ele é um

homem!”

Ser mais do que um príncipe, ser humano. Com esta afirmação, quis Mozart

criticar a sociedade de sua época, notadamente a nobreza. Não é esta a nossa

intenção. O tempo mudou, mas a intuição deste gênio da música clássica do século

XVIII serve como exemplo daquilo que dizíamos anteriormente: a verdadeira

nobreza do ser humano, na sua condição de criatura, finita, é a sua própria

humanidade, aquilo que lhe é mais radical, irredutível, e que pertence a todo ser

humano, a toda criatura. E assumir a própria humanidade, a condição de criatura, é,

para o ser humano, questão da salvação, algo retratado na "Flauta encantada" como

vencer a morte e salvar Pamina. E salvá- la é para Tamino encontrar a própria

salvação.

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Algo semelhante nos diz a tradição bíblica ao afirmar que a humanidade nos

pertence de forma paradoxal, pois a humanidade deve ser recebida de um Outro, o

Deus criador, e ao mesmo tempo dever ser entregue aos outros. Em outras palavras,

ser humano é ser em relação, é viver com e para os outros, ou ainda, uma vez que a

vida nos pertence, nós podemos livremente ofertá- la. Assim, a vida nos pertence na

medida em que nós a damos aos outros.

Porém, é no paradoxo da não necessidade do outro, necessidade entendida

como dependência ou complementariedade, que nasce a capacidade de acolhida, pois

somente uma pessoa feliz em si mesma, na sua condição de criatura, pode abrir-se ao

outro. É na minha completude, na minha autonomia e liberdade, que tudo tenho a

receber de alguém, na acolhida de uma alteridade que face a mim me interpela e

suscita minha responsabilidade. Do contrário, o outro seria reduzido a objeto de

satisfação das minhas necessidades, das minhas carências. Na verdade, estar face ao

outro é estar diante do que não me falta e é na minha condição de criatura, feliz, que

posso amá-lo. Entretanto isto é um risco na medida em que o amor por alguém pode

esbarrar na sua recusa. E quem ama está diante da impossibilidade de obrigar o outro

a amá-lo. Do contrário, tal obrigatoriedade seria destruir a essência mesma do amor

que é gratuidade, confiança e liberdade.

É disto que nos fala a parábola do bom samaritano (Lc 10, 29-38): Deus age

no mundo através das ações humanas, o que revela a grandeza e seriedade da nossa

liberdade e de nossas ações. A relação Criador–criatura a partir da imagem bíblica de

que Deus é amor acontece, se faz presente de modo profundo, quando alguém vai ao

encontro do outro, vem em seu auxílio, desde sua liberdade e não da necessidade. O

perigo está em querer amar a Deus através do outro, transformando-o em meio para

chegar a Deus.

Além disso, tal como aparece na parábola do bom samaritano, a realização da

nossa condição de criatura passa pela irredutível condição criatural do outro. É o

rosto do outro que rompe o círculo do egoísmo que nos fecha em nós mesmos, sendo

esta ruptura provocada pela presença de alguém que é caminho de salvação. A

necessidade do ferido faz o samaritano sair de si mesmo para ir ao seu encontro e

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neste êxodo de si mesmo, na bondade que o habita, o samaritano se faz próximo do

outro.

Mas a nobreza e a bondade da humanidade, fundamentadas na imagem de um

Deus que é amor, que é criador, todo–poderoso e onipotente, que é o princípio e

fundamento de toda criação, nem sempre encontra abrigo no coração humano,

marcado pela dor e pelo sofrimento. A presença, por vezes inexplicável,

incompreensível, inaceitável, do mal é algo que há muito tempo atravessa a história

da humanidade. Incompreensibilidade que não poucas vezes se transformou em

dilema como o apresentado por Epicuro292: «ou Deus pode e não quer evitar o mal, e

então não é bom; ou quer e não pode e então não é onipotente»293. Em outras

palavras, ou Deus é sádico ou é impotente, e em ambas alternativas Deus não é Deus!

Pelo menos na perspectiva cristã.

Uma possível solução para este dilema – e talvez a mais imediata – seria

dizer: Deus não existe! Todavia, o mal não deixaria de existir e em certo sentido o

dilema e a dor humanos igualmente permaneceriam. O ateísmo não resolve o drama

humano da dor, do sofrimento e da vida sem sentido. Outra possibilidade seria

admitir a existência de dois princípios, um do bem e outro do mal. Mas este

dualismo, como a solução anterior, negaria a existência de Deus Pai de Jesus Cristo,

o qual na fé cristã é confessado como o único Deus (Cf. Mc 12,28-34; Jo 5,44).

Desta maneira, isto também não ajudaria aos cristãos a compreender a presença do

mal no mundo. E tampouco nos seria útil dizer que Deus não evita o mal por

“motivos misteriosos”, pois quem sendo bom e podendo não acabaria com o mal?

Como, pois, continuar a confessar, de forma cristã, a onipotência divina tendo diante

dos olhos o mal como aquilo que não deveria existir, mas existe?

Uma resposta cristã ao problema da presença do mal na criação talvez exija

de nós primeiramente uma conversão conceptual, ou seja, mudar a nossa maneira de

compreender o significado mesmo de onipotência divina. Aceitá- la simplesmente

como a capacidade de tudo poder fazer não é ainda uma visão cristã da divindade.

292 Filósofo grego (341-270 a.C.). 293 Andrés Torres QUEIRUGA. Mal y omnipotencia , p.19.

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Deus é onipotente no amor que cria e recria o ser humano, todavia deixando-o

entregue à sua própria liberdade. Mas não desde a imobilidade de um “deus

aristotélico” que cria e permanece imóvel diante da criação, e sim no contínuo

movimento de um amor que não se cansa de amar até o fim (Jo 13,1), até o extremo

da loucura e do escândalo da cruz (1Cor 1,22-25).

Todavia, esta imagem de um Deus que cria e ama em liberdade nem sempre

encontrou acolhida na cultura ocidental. No mundo moderno contemporâneo, onde o

ser humano encontra-se obcecado pela própria identidade, o outro muitas vezes é

reduzido àquilo que o diferencia dele. E mediante uma mercantilização, comércio,

das relações humanas, o outro é facilmente visto como um inimigo, uma ameaça: ou

ele ou eu. Esta mentalidade acaba por influenciar a relação com Deus, a relação entre

criatura e Criador. Porém, a criação dita em termos de separação aponta para a

alteridade de uma forma distinta. A separação é condição para o encontro (revelação)

mediatizada pela palavra. Deus se diz na criação e o faz de forma profunda no

humano.

Assim, a diferenciação oriunda de uma concepção bíblica da criação, que é

sobretudo afirmação da criação e nela a afirmação do humano, não pode jamais ser

vista como uma oposição: ou Deus ou o ser humano, ou eu ou o outro. Para tomar

distância desta antinomia, temos que superar duas contradições fatais para a teologia:

um Deus que ama profundamente a humanidade, mas que não é capaz de eliminar o

mal que a aflige, e um Deus que ama sem medida, até o fim, até a loucura da cruz,

para redimir um mal que Ele poderia ter evitado. Esta superação, em parte, se faz

necessária porque, como afirma Lutero, “se nos atemos ao juízo da razão humana,

nos vemos obrigados a afirmar ou que Deus não existe ou que é injusto(...)Esta

injustiça baseia-se em argumentos aos quais a razão e a luz natural não podem

resistir.”294 O que equivale dizer que diante da impossibilidade de um mundo sem o

mal, falar de onipotência e de bondade divinas trata-se de uma contradição

insuperável.

294 Citado em Andrés Torres QUEIRUGA. O fim do cristianismo pré-moderno, p.40.

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Por isso, a afirmação da criação como humanização do ser humano, vivida

em liberdade, possibilita uma nova compreensão da relação imanência–

transcendência. A afirmação do ser humano como criatura autônoma e livre permite

compreender Deus como Aquele que está próximo do humano, e que não necessita

romper de forma miraculosa ou intervencionista a autonomia do sujeito para lhe

dizer ou anunciá-lo na imanência divina na criação. Deus não “vem de fora” porque

Ele “está dentro” da criação como seu princípio e fundamento. A realidade que

doravante, no giro antropológico, constituir-se-á como ponto de partida para o

exercício teológico é sustentada e iluminada pelo Criador. Tanto a linguagem

religiosa como a teológica devem se esforçar para evidenciar a absoluta iniciativa

divina que transforma em resposta toda e qualquer iniciativa humana. O discurso

teológico precisa dizer Deus como distinto mas não afastado, como unido mas não

idêntico. Isto não é uma tarefa fácil e necessita sempre do recurso à linguagem

simbólica, sempre aberta à interpretação.

Tomar, pois, a criação como ação amorosa de Deus nos possibilita percebê- lo

como afirmação infinita do ser humano e do seu mundo. Deus não é rival do ser

humano, mas sim aquele que se alegra com cada avanço do ser humano rumo à sua

plenitude. De tal maneira, que ser verdadeiramente humano é a única maneira de ser

religioso, de ser fiel, de poder fazer a experiência de Deus, e ser religioso somente é

possível quando assumimos nossa humanidade como co-criadores, como seres

humanos que se sentem responsáveis pela criação, pela sua própria vida e pela vida

dos outros.

É, pois, o valor concedido a afirmação do humano na criação que dá lugar ao

que na teologia ocidental, cristã, convencionou-se chamar de giro antropológico, o

qual exige também um giro linguístico. Isto porque, como nos mostra a história do

desenvolvimento do pensamento teológico na Cultura ocidental, o discurso enganoso

da serpente (Gn 3,5) que insinua a rivalidade entre Deus e o ser humano, entre o

Criador e a criatura, encontrou ou encontra eco na linguagem teológica. Por isso, a

virada antropocêntrica na teologia não é apenas um slogan, mas uma nova maneira

de ver o mundo, o ser humano e Deus, e por consequência um novo modo de a

teologia se entender no estudo da religião.

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b. Teologia e Antropologia: dois termos, dois mundos.

O giro antropológico na fé é acompanhado de um mesmo movimento no

exercício da teologia. E isto não significa um desvio para o antropocentrismo

moderno, mas um voltar-se para o mesmo. Mas como o antropocentrismo na teologia

é capaz de conceder a Deus o lugar central sem prejuízo do ser humano? Como falar

de uma teologia que seja ela mesma antropológica? A pertinência destas questões

repousa na convicção de que hoje somente uma teologia com orientação

antropológica terá condições de contribuir com o estudo da religião, sendo esta

entendida como experiência humana do Sagrado e além disso como aquilo que

constitui o ser humano.

Para muitas pessoas que mantêm contato com o saber teológico, a expressão

antropologia teológica ou teologia antropológica não traz nenhum tipo de problema.

A substantivação de um termo e a adjetivação de outro não coloca nenhuma questão

sobre a maneira de fazer teologia. Todavia, antropologia e teologia dizem respeito a

dois tipos de saberes discursivos e autônomos ou a duas ciências que na sua raiz

possuem uma heterogeneidade formal e uma não contemporaneidade histórica.

O termo teologia é muito antigo, possui mais de 20 séculos de uso. Como

sabemos, este termo surgiu na Grécia, na primeira metade do século IV a.C. No

Concílio de Nicéia, a Igreja adotou o termo teologia para definir a ciência da fé.

Ciência que com o passar do tempo viria a ser hegemônica, fornecendo a gramática

da linguagem usada para compreender o mundo e o ser humano, a partir da

divindade. Neste mundo teocêntrico, Deus era a medida de todas as coisas, e o valor

de algo ou de alguém era estabelecido na relação com o Sagrado. O espaço e o tempo

“geo–gráficos” eram vistos sem grandes dificuldades como espaço e tempo “teo–

gráficos”, graças à contínua presença de Deus que permitia ao ser humano orientar-se

e encontrar o sentido da vida.295

295 Ulpiano VÁZQUEZ MORO . A orientação espiritual: mistagogia e teografia, p.8-11.

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De certa maneira, podemos dizer que “o universo inteiro era contemplado

como se fosse uma imensa catedral” 296, sendo o comportamento humano balizado

pela sua relação com Deus e legislado pelas autoridades eclesiásticas que falavam em

nome dele. Assim, não seria nenhum exagero de nossa parte afirmar que a Cultura

ocidental foi elaborada, ao longo de séculos, no interior das verdades da doutrina

revelada, ou porque nela amadureceu ou porque a ela se opôs.

Já o termo antropologia é mais recente, data do século XVIII. Ele ganhou

notoriedade quando o filósofo alemão Emmanuel Kant (1724-1804), em 1781,

afirmou que todas as questões morais, religiosas e metafísicas do homem deviam ser

referidas à antropologia297. A compreensão do real e da existência humana não tem

mais em Deus o ponto de partida, mas sim o próprio ser humano. Com este

deslocamento geográfico – do céu para a terra – Kant introduziu uma nova maneira

de compreender e definir o mundo, lançando os fundamentos daquilo que

convencionou-se chamar de ateísmo metodológico.

Tratava-se, então, de refletir e encontrar sobre si mesmo as respostas através

da luz da razão que ilumina as trevas da ignorância e da obscuridade. A cultura

iluminista propunha a todos que pensassem com a própria cabeça, daí expressão

"consciência crítica" que mais tarde, no séc. XIX, passaria a ser "crítica da

consciência". Em 1784, em resposta à pergunta “o que é o iluminismo?”, Kant

afirmara que

"o Iluminismo é a saída do homem do estado de menoridade que ele deve imputar a si mesmo. Menoridade é a incapacidade de valer-se do seu próprio intelecto sem a guia de outro (...) Tem a coragem de servir-te de tua própria inteligência. Esse é o lema do Iluminismo". 298

296 Rubem ALVES . O enigma da religião, p.35. 297 O termo antropologia já havia sido usado por Aristóteles. Todavia, a semântica deste termo é bem diferente. Na “Ética a Nicômaco”, Aristóteles afirma que o magnânimo não é antropólogo, pois o antropólogo é o estúpido, o ignorante, que fala de algo diminuto, pequeno, como é o ser humano. O magnânimo está voltado para coisas grandiosas, para assuntos mais relevantes, do que falar de si mesmo e dos outros. 298 Citado em Giovanni REALE & Dário ANTISERI. História da Filosofia, p.669.

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A passagem de uma palavra a outra, da teologia à antropologia, ou de um

mundo a outro, do teocêntrico ao antropocêntrico, não foi apenas uma questão

semântica ou a perda de status por parte da Igreja católica, por exemplo. A mutação

cultural proporcionada pela centralidade da razão humana, o que no Ocidente

significou a emancipação da cultura da tutela do Cristianismo, mais propriamente da

Igreja Católica, significou dentre tantas outras rupturas a necessidade de se conceber

uma nova maneira de fazer teologia.

Isto porque a teologia dogmática dos manuais a ser decorada já não satisfazia

mais os fiéis, e a teologia acadêmica estava dissociada da vida da maioria das

pessoas. A fé religiosa já não era mais algo aceito automaticamente e nem

uniformemente, numa sociedade marcada por um pluralismo de convicções e de

religiões. Alguns conceitos da fé caducaram com o decurso da história, não

conseguindo mais dizer e transmitir o essencial da fé cristã.

A isto, podemos acrescentar a autocompreensão do ser humano moderno que

se apropriou da imagem religiosa de criador, no sentido de que ele pode dominar

cientificamente a natureza através da sua racionalidade técnico–científica. Cada vez

mais o ser humano moderno tem consciência de estar criando a si mesmo e o seu

mundo, e construindo a sua própria história. O conhecimento fica subordinado à

experiência pessoal, ou seja, a auto-experiência do ser humano passa a ser o ponto de

partida de qualquer forma de conhecimento:

“a idéia de modernidade, na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o homem é o que ele faz; e que, portanto, deve existir uma correspondência cada vez mais eficaz entre a produção(...) e a vida pessoal, animada pelo interesse, mas também pela vontade de se libertar de todas as opressões”.299

Apesar da distância secular que separa os dois termos, teologia e

antropologia, ou os dois mundos que a eles estão associados, o mundo teocêntrico e o

mundo antropocêntrico, procurou-se fazer do humano um lugar teológico, da

antropologia uma antropologia teológica, ou ainda, da experiência humana o lócus

teológico por excelência, a fim de refletir sobre a mutação cultural que se abateu

299 Alain TOURAINE. Crítica à modernidade, p.9.

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sobre o Ocidente. E igualmente superar a impontualidade ou disritmia histórica que

fazia (ou faz!) do discurso teológico um discurso póstumo, por se tratar de algo para

o qual as pessoas não têm mais ouvido, pois não podem mais entender, ou ainda, por

procurar responder perguntas que ninguém mais está a fazer.

Esta nova situação na Cultura ocidental provoca uma crise de fé que exige um

novo método teológico. É neste horizonte que podemos entender o giro

antropológico no discurso teológico provocado pelo abismo que se formou entre a

teologia cristalizada em conceitos abstratos e a vida real, o cotidiano de muitas

pessoas que não conseguiam mais suportar o peso de uma fé infantil e em alguns

momentos quase irracional.

No contexto católico, a preocupação com este anacronismo ou

atemporalidade teológica esteve presente na reflexão teológica do jesuíta alemão

Karl Rahner (1904-1984) que foi um dos grandes responsáveis pela orientação

antropológica no modo de fazer teologia. Na linha do pensamento moderno que

concede um lugar de destaque para a subjetividade humana, procura-se fazer do

humano um lugar teológico, da antropologia uma antropologia teológica, para refletir

sobre a crise de fé que se abatera sobre o mundo moderno.

Crise que no Ocidente teve na luta contra a religião, mais precisamente contra

o Cristianismo, uma de suas principais características, e que se tornou tema central

em obras de dois dos “mestres da suspeita”: Nietzsche e Freud. Nietzsche, como

vimos anteriormente, condenara o esvaziamento do ser humano, cuja potência fora

projetada no universo divino pelo Cristianismo, nada mais restando ao ser humano

que a sua fraqueza e a sua miséria. Para Freud, a religião é uma etapa infantil da

humanidade a ser superada num processo de amadurecimento marcado por

sucessivas rupturas, necessárias ao desenvolvimento humano.

Todavia, diferentemente do giro antropológico moderno que conduz

frequentemente o ser humano ao fechamento sobre a própria subjetividade, ao

esquecimento do outro, e mais amiúde à rejeição do outro, o giro antropológico na

teologia faz do antropocentrismo uma abertura ao outro e ao seu mundo. Desde a

perspectiva da fé religiosa, esta experiência da alteridade que nos interpela já é a

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experiência de uma alteridade mais radical, na verdade absoluta, que nós nomeamos

Deus.

Mas em que consistia esta crise que provocara uma reorientação de tal

magnitude no exercício da teologia? Em primeiro lugar, podemos destacar o

pluralismo presente dentro e fora da Igreja. A fé não é mais vivida automaticamente

e uma opção pessoal por Deus, por Jesus Cristo e muito menos pela Igreja (ou pelas

Igrejas) já não é mais tão evidente. Em seguida, podemos dizer que o conhecimento

humano tornou-se muito mais amplo e diversificado, a ponto de vários teólogos,

passados vários anos no exercício da docência em teologia, se julgarem mais

ignorantes do que no período inicial de seus estudos de teologia. Enfim, podemos

destacar a consciência histórica que passou a caracterizar o ser humano moderno, e

quem diz “história” fala sempre a respeito do contingente, do condicionado e do

causal.

A noção de história e de experiência (pessoal) teve um enorme impacto no

saber teológico. Isto porque passou-se a exigir que as sentenças teológicas tivessem

uma ligação direta com as experiências históricas do ser humano, da sua

autocompreensão e da sua compreensão do mundo: céu, inferno, pecado, purgatório,

o que tudo isto tem a ver com a experiência histórica e pessoal que fazemos em

nosso cotidiano? Em suma, sentiu-se a necessidade de uma nova linguagem para a fé

religiosa e uma linguagem nova para a teologia, sempre renovada diante de novas

situações históricas.

Esta nova visão do papel da história nos estudos teológicos anuncia uma

problemática na relação entre religião, revelação e fé: será que algo histórico

(contingente e causal) – como Jesus de Nazaré – pode ser verdadeiro em qualquer

situação e experiência? O que se anuncia aqui é o problema do relacionamento entre

revelação histórica e auto–experiência. Não se trata mais de conhecer somente a fé,

mas também (e talvez sobretudo) de concebê- la em função da vida, do sentido que a

fé tem para a pessoa.

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c. A orientação antropológica na teologia.

No âmbito católico, a discussão sobre a relação entre antropologia e teologia,

em termos de aliança ou conflito, remonta aos anos sessenta, mais explicitamente ao

contexto europeu. Trata-se de uma discussão recente, se comparada com séculos de

existência da história de um saber teológico. Durante uma conferência num

congresso de teologia em Chicago, em 1966, tendo em conta o mundo moderno,

secular e pluralista, com o qual a teologia estava chamada a dialogar, Karl Rahner

afirma que

“a teologia dogmática deve tornar-se uma antropologia teológica e que este antropocentrismo é necessário e fecundo. Não devemos considerar o problema do homem nem a resposta a este problema como área diferente, material e localmente, dos outros domínios de expressão teológica, pois abrange toda a teologia dogmática. A tese não contradiz o caráter teocêntrico de toda a teologia(...) Desde que se considere o homem como absoluta transcendência orientada para Deus, o ‘antropocentrismo’ e o ‘teocentrismo’ da teologia não se contradizem, mas formam rigorosamente uma única e mesma coisa (expressa a partir de dois pontos de vista).”300

Dizer que o ser humano é absoluta transcendência orientada para Deus é

afirmar que somos constitutivamente religiosos. Do ponto de vista acadêmico, não se

trata necessariamente da necessidade da existência de uma disciplina chamada

Antropologia Teológica nas faculdades de teologia, mas sim da antropologia como

lugar epistemológico de toda teologia, ou seja, uma nova linguagem para dizer a fé

cristã e transmiti- la ao ser humano inserido no contexto de um mundo

antropocêntrico.

Segundo o próprio Karl Rahner, a linguagem teológica que ele conhecera no

início dos seus estudos estava ofuscada pela luz da racionalidade técnico–

300 Karl RAHNER. Teologia e Antropologia , p.13. A reflexão teológica em torno de alguns aspectos do pensamento de Karl Rahner nos ajuda a aprofundar a perspectiva teológica de Schleiermacher e de Juan Luis Segundo, que têm servido de referencial teórico para a nossa pesquisa. De diversas maneiras, Juan Luis Segundo se mostra devedor da teologia rahneriana. E Rahner, por sua vez, encontrou em Schleiermacher elementos importantes para a construção de seu projeto teológico.

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científica301. Desde este tempo, ele já se preocupava com a necessidade de uma

formação filosófica, sendo seu pensamento profundamente marcado pela filosofia

existencialista de Martin Heidegger (1889-1976), de quem foi aluno a partir de 1932,

quando fez o seu doutorado em filosofia na cidade de Friburgo.302 A influência

filosófica na obra de Karl Rahner pode ser sentida através da sua terminologia como

existencial, transcendental e luz do ser, bem como na orientação antropocêntrica

dada à sua reflexão teológica.

No plano estritamente teológico, Rahner manteve-se fiel ao pensamento de

Tomás d’Aquino, mas a partir dos princípios tomistas, ele construiu um pensamento

teológico que se distingue do tomismo tradicional, o qual estava baseado numa visão

cosmocêntrica, e assume uma postura antropocêntrica, própria do mundo moderno. A

sua tese de doutorado em teologia teve por tema a metafísica do conhecimento finito

em Tomás d’Aquino, a qual foi criticada por alguns professores na universidade de

Friburgo devido à influência da filosofia de Heidegger. Em 1957, no prefácio à

segunda edição da sua tese de doutorado em teologia, o próprio Rahner procura

justificar-se perante as acusações:

“o que eu visava era principalmente isto: deixar de lado em grande parte o que se chama ‘neo–escolática’ para voltar ao próprio Santo Tomás, aproximando-me dos problemas formulados à filosofia do nosso tempo.”303

Dizer a mensagem cristã em linguagem antropológica constituiu-se no grande

esforço teológico–filosófico de Karl Rahner. Assim sendo, a antropologia tornou-se

o ponto de partida da sua teologia, o horizonte no qual se move a sua reflexão, e isto

significou uma ruptura com a teologia tradicional, que frequentemente não tinha o

ser humano por ponto de partida e tampouco sua realidade histórica, mas somente

uma definição de fé fixada em fórmulas dogmáticas.

A aproximação entre antropologia e teologia pode ser entendida, em parte,

como a tentativa de fugir de uma espécie de defasagem congênita que ameaçava

vários teólogos que produziam discursos póstumos diante da complexidade do 301 Karl-Heinz WEGER. Karl Rahner, uma introdução ao pensamento teológico, p.14. 302 Battista MONDIN. Os grandes teólogos do século vinte. Os teólogos católicos, p.95-96. 303 Jose Luis ILLANES . El giro antropologico de Karl Rahner, p.224.

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mundo moderno, secularizado, dessacralizado. Esta aproximação igualmente pode

ser compreendida como crítica àqueles que insistiam em fazer teologia desde uma

perspectiva cosmocêntrica, uma vez que tal postura transformava a mensagem cristã

inaudível para o ser humano moderno.

Por isso, era necessário traduzir o kerygma cristão para o esquema mental

moderno, antropocêntrico. Entretanto, tal atitude comportava o risco de transformar

o discurso teológico em algo que não merecesse mais esta adjetivação. Para o

teólogo suíço Urs Von Balthasar, o que era apenas uma especulação tornara-se

realidade. A tal ponto do Balthasar afirmar que

Karl Rahner, em suas tentativas arrojadas, mas frequentemente unilaterais e que não são sempre coordenadas entre si (...), padeceu o destino do aprendiz de feiticeiro que não pode mais extinguir, em seus discípulos e seus exploradores, os espíritos que ele havia invocado. Vários de seus novos caminhos de pensamento são inspirados em motivos apostólicos e permanecem nele teologicamente protegidos (como, por exemplo, a teoria do cristão anônimo, baseada no existencial sobrenatural universal); mas eles suscitam imediatamente interpretações impensadas que são introduzidas rapidamente em seu sucessores que desejam ser radicais.304

Para Balthasar, a orientação antropológica na teologia teria sido vítima do

“concordismo” que simplesmente toma emprestado a linguagem de outra ciência, no

caso a filosofia transcendental de Kant, para não passar por antiquado, ultrapassado,

sem dar-se conta da diferença epistemológica, e também sem perceber que quem usa

a linguagem de determinada ciência acaba pensando com a sua cabeça. Neste caso, o

teólogo seria na verdade um antropólogo ou filósofo.

Entretanto, embora utilize um instrumental herdado da filosofia de Kant, o

termo transcendental em Rahner, na linha do pensamento do jesuíta belga Maréchal,

não comporta somente a horizontalidade, mas igualmente a verticalidade, ou seja, a

abertura do sujeito a uma realidade que ultrapassa a experiência categorial ou

empírica, ou ainda, a abertura do sujeito ao mistério absoluto. Numa palavra, Deus.

A reflexão transcendental na teologia vai além da pergunta pelo sujeito, pois

ultrapassa a experiência empírica na medida em que cogita a possibilidade humana

304 Hans Urs Von BALTHASAR. Cordula ou l’épreuve décisive, p.86.

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de dizer Deus a partir de nossas próprias experiências, algo proibido na reflexão

kantiana que se esgota nas condições a priori do conhecimento humano. Neste

sentido, a estrutura transcendental já é participação na realidade transcendente que é

Deus.

É nesta abertura transcendental que começa a religiosidade do ser humano,

isto é, na capacidade de se elevar da realidade empírica em direção ao Mistério que é

Deus. Elevar não significa abandonar, mas apenas que o ser humano não se esgota

nas suas dimensões empíricas, tal qual a concebe a ciência moderna. Todavia, é

somente por meio dessas experiências que o ser humano pode intuir algo sobre Deus

e acerca de si mesmo. Além disso, uma antropologia teológica não se reduz somente

ao aperfeiçoamento dos conceitos da fé, mas abrange também a reflexão em torno do

ser humano, o “Ouvinte da Palavra” 305.

E o cuidado metodológico preconizado pelo giro antropológico na teologia

não deve diminuir o empenho e a ousadia em afirmar que, no trabalho teológico,

antropocentrismo e teocentrismo não se opõem, como não há oposição entre

antropologia e cristologia. Esta exige como ponto de partida uma antropologia

transcendental, a fim de não incorrer na suspeita de referir-se a um mito. A

problemática transcendental introduzida na reflexão teológica interroga-se sobre as

condições de possibilidade existentes no próprio sujeito para que este possa conhecer

e agir, ou seja,

“devemos perguntar-nos, diante do conteúdo material de uma afirmação teológica dada, que estruturas a priori, do sujeito teológico em si, são de fato já implicitamente afirmadas e, ao mesmo tempo, não devemos negligenciar mas tomar a sério o aspecto transcendental do conhecimento”.306

Para isso, faz-se necessário discutir a relação entre o a priori transcendental e

o a posteriori categorial–histórico. Na linha do pensamento filosófico de Kant,

podemos afirma que ao espírito não pode vir nada que já não esteja prefigurado nele,

sem contudo excluir a gratuidade, a liberdade e a transcendência de Deus. Mas por

que um giro antropológico, ou uma volta ao sujeito, impõe-se à maneira de fazer 305 Karl Rahner. Curso fundamental da fé , p.37-59. 306 Idem. Teologia e Antropologia, p.14.

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teologia, caso esta ainda queira dizer algo que faça sentido ao ser humano moderno?

Rahner, na sua “conferência–manifesto” proferida em Chicago, faz alusão a algumas

razões que justificam e exigem uma orientação antropológica na teologia.

Na elaboração do conhecimento teológico, qualquer questão sobre o objeto

recai necessariamente sobre o sujeito conhecedor, pois aquele que pergunta está

implicado no próprio ato de perguntar. Em suas reflexões teológicas, o teólogo

pergunta sobre o fundamento último, original e absoluto de toda a realidade, o qual

na fé nomeamos Deus, Aquele que não é objeto ao lado dos outros objetos na

experiência a posteriori humana e que é tido como “correspondência absoluta à

transcendentalidade humana”.307

Nesta perspectiva, toda teologia é necessariamente antropologia

transcendental e a Revelação, sendo esta um acontecimento histórico, deve referir-se

à essência mesma do ser humano. Deus, no ato da criação, colocou na criatura as

condições de possibilidade (abertura transcendental) para que esta possa acolher o

dom da autocomunicação do Criador, como ouvinte da Palavra de Deus na história.

A estas razões intrínsecas, podemos acrescentar outras que dizem diretamente

respeito à necessidade do teólogo levar a sério a experiência do ser humano moderno

e perguntar se ao falar sobre céu, inferno, purgatório, paraíso, Criador, divinização,...

não estaria falando de mitos indemonstráveis ou de piedosas banalidades. Para o

mundo moderno dessacralizado, não seriam tais conceitos um absurdo linguístico,

uma mera invenção humana com o intuito de impor uma determinada maneira de ver

a realidade, a fim de controlar a vida das pessoas, tal qual pensava Nietzsche?

Para o ser humano moderno, a teologia responde de modo não-científico a

perguntas que só encontram respostas na ciência moderna (empírico–formal). Os

conceitos teológicos são um emaranhado de idéias inacessíveis a qualquer

verificação empírica, um mero jogo de palavras oriundas da arbitrariedade das

camadas mais obscuras da mente humana que ainda não foram iluminadas pela

307 Idem, ibidem, p.23.

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ciência moderna, notadamente pelas ciências humanas de cunho profundamente

antropológico.

Por isso, neste mundo antropocêntrico, falar de Deus somente faz sentido se

tomarmos o caminho da experiência humana, ou seja, toda teologia deve se constituir

numa antropologia teológica. E neste caminhar, a experiência humana nos mostra

que o ser humano é fundamentalmente abertura do seu ser a algo sempre novo,

dinâmico e que nunca termina. O método antropológico–transcendental transformou-

se em passagem obrigatória para a elaboração teológica diante das problemáticas

inerentes às experiências humanas no chamado mundo moderno, visto que muitas

afirmações dogmáticas soavam como realidades incompreensíveis aos ouvidos dos

interlocutores da teologia. Em parte, porque “os enunciados teológicos não são

formulados de tal forma que o homem possa compreender como é que eles visam

referir-se à compreensão de si mesmo que lhe dá sua própria experiência.”308

Todavia, este giro antropológico, realizado na elaboração teológica

rahneriana, não seria na verdade uma redução antropológica típica do pensamento

moderno que concebe toda forma de conhecimento unicamente a partir da

experiência de si mesmo, do próprio sujeito cognoscente? A esta interrogação

podemos responder negativamente, afirmando que o método antropológico–

transcendental quer na verdade refletir sobre as relações de correspondência entre as

proposições dogmáticas e a experiência humana, a fim de que tais proposições

possam ser mais dignas de crença. Dizer que existe uma História da Salvação, por

exemplo, implica necessariamente afirmar que o ser humano na sua essência precisa

de uma história da salvação.

Daí a necessidade de refletir sobre a sua historicidade transcendental e a

priori. Ou ainda, falar algo sobre a escatologia é encarar o ser humano como ser

aberto a um porvir absoluto que interpela e interpreta a existência presente do ser

humano. Nesta perspectiva, a escatologia não seria “uma reportagem antecipada dos

308 Idem, ibidem, p.34.

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acontecimentos futuros sob seu aspecto fenomenológico, reportagem que emanaria

de Deus que os tem desde já sobre controle”.309

Mas se é verdade que a teologia é entendida como uma teologia

transcendental, igualmente é verdadeiro dizer que a teologia ocupa sempre o

primeiro lugar. As ferramentas lingüísticas transcendentais emprestadas da filosofia

não são mais que um método por meio do qual podemos compreender o ser humano

como sujeito finito, sempre reenviado ao horizonte ilimitado da sua liberdade e do

seu conhecimento, sem poder deixar a sua condição de ser finito e as realidades de

sua experiência.310 O método transcendental não é uma declaração de conteúdo, mas

uma maneira determinada de investigar a realidade, um determinado caminho a

seguir, como sugere a própria palavra método.

Assim, esta maneira de proceder na reflexão teológica, a qual chamamos de

giro antropológico, constitui-se no esforço de possibilitar ao ser humano moderno, a

partir de sua própria experiência, uma via transcendental que o conduza ao mistério

absoluto de Deus, não mais como uma mitologia distante, mas como mistério bem

próximo da existência humana, na qual o ser humano pode reconhecer a proximidade

do Deus que ama e perdoa.

A partir desta via teológica (transcendental), estabelece-se uma reflexão sobre

o mistério da graça que é oferecida a todos, mistério que pertence aos fundamentos

do Cristianismo. E se nós admitimos que Deus tem um querer salvífico universal, é

necessário acreditar que a todo ser humano é dada a possibilidade de acolher a

salvação que lhe é oferecida. Em outras palavras, a teologia que se interroga sobre o

ser humano como aquele a quem é oferecido o dom da salvação, deve

necessariamente colocar-se a questão sobre as condições de possibilidade da acolhida

ou da recusa deste dom.

Esta antropologia teológica supõe o ser humano como pessoa e sujeito,

portador de uma atividade categorial, que é habitado por uma experiência

309 Idem, ibidem, p. 40. 310 Yves TOURRENE. La theologie du dernier Rahner, p.210.

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transcendental. Por atividade categorial, podemos entender o ato através do qual os

seres (mundo, coisas, pessoas) são nomeados e os conceitos são elaborados. Mas a

este saber temático está subjacente uma experiência propriamente subjetiva que

escapa a toda e qualquer tentativa de conceituá- la. Como afirma o próprio Rahner,

“é uma experiência, porque este saber de cunho atemático, mas inevitável é momento e condição de possibilidade de toda e qualquer experiência concreta de qualquer objeto. Essa experiência é chamada transcendental porque faz parte das estruturas necessárias e insupríveis do próprio sujeito que conhece, e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis objetos ou de categorias”.311

A experiência transcendental vem a ser, então, a condição de possibilidade de

toda experiência humana e esta condição, dita também a priori, abre o ser humano

para além do mundo empírico, temático, explícito, no qual cada resposta contém em

germe uma nova questão. A cada questão colocada, o ser humano transcendental vê

abrir-se diante dele um horizonte mais amplo que escapa a toda tematização e a todo

fechamento.

É preciso dizer também que esta experiência refere-se à vontade e à liberdade.

O ser humano tido como sujeito transcendental, ou seja, aquele que “é pura abertura

a absolutamente tudo, ao Ser em geral”312, faz ao mesmo tempo a experiência de sua

finitude e do desejo infinito no tocante ao conhecimento e à vontade. A experiência

transcendental que o ser humano vivencia na sua condição de ser finito é a

experiência de ser determinado por aquilo que não é ele mesmo, e esta experiência

somente pode ser provada a partir de relações concretas com a realidade. Assim, a

reflexão transcendental não é um luxo metodológico de nossa atividade intelectual e

este procedimento filosófico já é portador de uma opção teológica, ou seja, com

“esta experiência transcendental é dado por assim dizer um saber anônimo e

atemático de Deus”.313

A abertura do ser humano ao ser em geral, ao existencial do “ser-aí” concreto,

pode ser elevado, pela graça divina, à abertura em direção ao Transcendente absoluto

311 Karl RAHNER. Curso fundamental da fé, p.33. 312 Idem, ibidem, p.32. 313 Idem, ibidem, p. 33-34.

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que na fé nomeamos Deus. Este movimento ao totalmente Outro habita a experiência

transcendental e ela já é fruto da própria iniciativa divina, uma vez que o movimento

transcendental do ser humano orientado ao mistério absoluto é sustentado pelo Deus

em sua autocomunicação. Assim, o termo e a origem deste movimento é o próprio

Deus que em seu mistério absoluto pode ser sentido e reconhecido como o Deus de

absoluta proximidade e imediatidade. É justamente esta iniciativa divina,

disponibilizada a todo ser humano, que podemos chamar de existencial sobrenatural,

termo tomado emprestado da filosofia existencial de Heidegger. Entretanto, o fato de

ser dirigida a todos não significa que todos a acolham em liberdade.

Esta formulação teológica quer dar conta da totalidade da salvação na

perspectiva cristã, a partir de uma dupla dimensão: a graça divinizante e redentora.

Se através da graça divinizante Deus dá-se a si próprio para nos fazer participar da

sua vida divina, pela graça redentora Ele nos perdoa de nossos pecados e nos

justifica. E o faz a partir de uma íntima proximidade entre Criador e criatura, na qual

Deus pode comunicar a sua própria realidade a uma realidade não–divina, sem que

Ele deixe de ser a realidade infinita e o Mistério absoluto, e sem que o ser humano

deixe de ser o ente finito e distinto de Deus.

O Criador, ao colocar na existência aquele que é distinto dele mesmo, não se

torna dependente deste outro criado e nem tampouco se perde na sua

autocomunicação. Deus permanece o Totalmente Outro, o Sagrado, muitas vezes

acessível somente no humilde ato de adoração. E a imediatidade de Deus em forma

de presença–ausência é ao mesmo tempo o desvelamento de Deus como Mistério

absoluto e a plenitude do ser humano.

Em suma, Deus, em seu mistério absoluto, permanece como princípio e

fundamento do ser humano, sem contudo jamais aniquilar a liberdade humana. Tudo

isto faz de Deus o doador e a condição de possibilidade da acolhida daquilo que é

ofertado, ou ainda aquele que abre e suporta a transcendência do ser humano como

ser espiritual.

Por isso, podemos dizer que a experiência transcendental é uma experiência

própria de todo ser humano como uma realidade anterior à suas ações e suas decisões

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religiosas, de tipo reflexivo. É no mais profundo e no mais radical de si mesmo, por

conhecimento teórico ou prático, e pela sua ação de caráter subjetivo, que o ser

humano pode encontrar sua verdade última. É lá também que o ser humano pode

fazer a experiência do amor misericordioso de Deus, amor simultaneamente criador e

redentor. Deus é experimentado não como uma realidade longínqua, mas como

alguém que se autocomunica ao ser humano.

Neste sentido, a autocomunicação de Deus não é um discurso ao lado de

outros discursos, pois ele anuncia a verdade mais profunda, a mais radical da vida

humana, do ponto de vista cristão: a relação com o Criador é ao mesmo tempo

princípio e fundamento do ser humano e de sua realização, ainda que esta encontre-

se em marcha na história, marcada pela possibilidade da acolhida e da recusa do dom

de Deus. Esta experiência é um movimento em direção a Deus como evento

absoluto.314

Entretanto, apesar de toda a importância atribuída à reflexão transcendental, é

preciso afirmar que a teologia transcendental não é toda a teologia, nem

simplesmente a teologia.315 Em síntese, este método teológico é uma via que deve

conduzir a uma outra realidade distinta dela mesma. E, talvez, não incorramos em

nenhuma heresia ao dizer que a partir do giro antropológico não se ensina uma

antropologia, mas teologia numa antropologia. E isto não porque Deus tivesse se

tornado um assunto improdutivo na mutação cultural colocada em marcha pelo

pensamento antropocêntrico e que, portanto, fosse necessário agora investir no ser

humano, mas sim pelo fato de que o teólogo deveria sempre ser moderno por

tradição.

Em outras palavras, o teólogo deveria ser antropocêntrico porque o humano

foi assumido pelo próprio Deus na encarnação de seu Filho Jesus Cristo. Em outras

palavras, a cristologia é a condição de possibilidade da antropologia teológica. Por

isso, voltar-se para o ser humano – o giro antropológico – típico do pensamento

314 Idem, ibidem, p.161. 315 Yves TOURRENE. La théologie du dernier Rahner, p.206; 232-235.

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moderno, não é, ou não deveria ser, estranho a uma tradição que na sua vertente

católica nos ensina que

o homem existente foi efetivamente criado, porque Deus (como amor) quis expressar-se a si mesmo no Logos para dentro do vazio da criaturidade e porque esta auto–expressão no Logos significa exatamente sua humanidade, de sorte que a possibilidade da criação do homem é um momento da possibilidade da livre auto–expressão do Logos, na qual (como fato) toda a humanidade é considerada e querida como meio ambiente desta expressão. Somente em Cristo, portanto, o homem é confirmado em absoluto e com isso lhe é permitido em absoluto aceitar seu ser, com tudo o que ele inclui, porque se o aceita incondicionalmente tal qual é, aceita o próprio Deus.316

Assim, a maneira como se argumenta em favor da relação entre teologia e

antropologia, desde o seio da tradição, acaba por colocar a cristologia como condição

de possibilidade desta relação. A certeza de que não podemos pensar a teologia fora

de ou contra uma antropologia filosófica está fundamentada na fé que confessa a

Cristo como princípio e fundamento da criação e, portanto, da antropologia, na

medida em que nele se antecipa a consumação real e última do desígnio salvífico de

Deus para toda a humanidade (Ef 1,3-13).

A cristologia está, pois, orientada para o ser humano, cuja realização plena é

Aquele que porta de forma absoluta a autocomunicação de Deus: Jesus Cristo.

Assim, separar, ou o que é pior, opor o Deus dos filósofos ao Deus de Abraão, de

Isaac, de Jacó e de Jesus Cristo, e contrapor a criação à encarnação, a filosofia à

teologia, seria reduzir a universalidade da ação salvífica de Deus levada a termo em

seu Filho Jesus Cristo, pela força do Espírito Santo. Ação que se trans forma numa

“boa nova, que será uma grande alegria para todo povo...” (Lc 2,10).

Mas como podemos entender o escândalo da confissão da ação salvífica

universal de Jesus efetuada na sua limitação espaço–temporal? Como pensar a

presença salvífica de Jesus Cristo na história da humanidade, tendo em conta que tal

ação salvífica ultrapassa os limites de uma experiência explicitamente religiosa e

tematizada?

316 Mysterium Salutis, p.16.

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Sucintamente, digamos que a partir da presença de Cristo em todo ser

humano, através de seu Espírito. O crente não–cristão e mesmo o não crente são

portadores da graça ação do Espírito, uma vez que do ponto de vista cristão, o Cristo

ressuscitado está presente e ativo em toda fé, e em toda pessoa de boa vontade pela

ação de seu Espírito, cuja comunicação é mediada pelo evento histórico da

encarnação, da morte e da ressurreição do próprio Jesus Cristo.

Todavia, se considerarmos o contexto do pluralismo religioso e da não

cristandade, somos obrigados a admitir que o dogma da mediação de Cristo como

único salvador não é mais aceito incondicionalmente, sem nenhum tipo de

questionamento no estudo acadêmico da religião e tampouco nas mais diversas

experiências dentro e fora do Cristianismo. Bem outro era o contexto no qual a

expressão latina “Extra Eclesiam nulla salus” – Fora da Igreja não há salvação –

manifestava uma antiga convicção da Igreja no ambiente do séc. XV, onde o

Concílio Ecumênico, sob o papado de Eugênio IV (1438-1445), afirmava que

fora da Igreja católica, ninguém, nem pagão nem judeu, nem infiel nem separado da unidade, torna-se participante da vida eterna. Muito pelo contrário, torna-se vítima do fogo eterno, preparado para o demônio e seus anjos, se não se converte, antes de sua morte, à Igreja Católica.317

O mundo mudou: inúmeras pessoas discordam da fé cristã, o pluralismo

religioso se impõe como elemento estrutural da sociedade e o ateísmo ganha cada

vez mais espaço. Além disso, o cristão atual se sente cada vez mais solidário com os

outros que não comungam de sua fé e não desejam para si um céu do qual os não–

cristãos estejam previamente excluídos.

No interior da Igreja Católica, o Concílio Vaticano II já significou uma

reviravolta no que diz respeito à salvação dos não–cristãos, ao dizer que mesmo fora

do Cristianismo e dentro do próprio ateísmo há atitudes que podem constituir-se em

caminho de salvação para o não–cristão e para o ateu. Isto significa concretamente

que não podemos determinar quem está mais próximo da salvação: um ateu, um não–

cristão ou um cristão. Esta perspectiva teológica é uma significativa mudança de

317 Citado em Karl-Heinz WEGER. Karl Rahner, uma introdução ao pensamento teológico,p.100.

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orientação cujas consequências ainda estão em andamento, sobretudo na maneira de

compreender a presença da religião cristã no mundo de hoje marcado pelo pluralismo

religioso e o ateísmo.

A maneira como a cristologia transcendental é desenvolvida mostra de que

modo a memória de toda fé é uma memória transcendental em busca de um momento

na história que possa ser assimilado como o momento único, particular, mas de

dimensão universal, portadora do cumprimento da história da humanidade como um

todo, e que seja ao mesmo tempo fruto da liberdade de Deus e do ser humano. É

justamente este evento procurado e desejado que Rahner chama “Aquele que porta

absolutamente a salvação”318, ou seja, Jesus Cristo. E esta experiência originária de

Deus em Jesus Cristo pode ser vivida de maneira anônima, não tematizada e não

religiosa, lá onde a humanidade é vivida em toda a sua profundidade.

É desde esta perspectiva que podemos falar de cristão anônimo.319 Este tem

por fundamento a possibilidade da acolhida da autocomunicação de Deus em Jesus

Cristo por parte de qualquer ser humano e, portanto, da salvação, mesmo fora das

fronteiras do Cristianismo. Esta preocupação no âmbito da teologia católica revela o

desafio de transforma o discurso teológico numa voz que no mundo moderno ainda

encontre interlocutores, ouvintes da palavra teológica e que este discurso não seja a

tentativa de encapsular a verdade na abstração de uma idéia sem corpo, sem lugar,

sem história.

Mas aqui surgem algumas objeções: a terminologia cristão anônimo é

apropriada? Não seria esta expressão na verdade uma ofensa aos não-cristãos? O

Cristianismo anônimo não seria em última análise uma relativização do Cristianismo

(explícito)?

De forma sucinta, podemos dizer, primeiramente, que uma vez que se entenda

o conteúdo da expressão, a terminologia não é o mais importante. Não que ela não

esteja carregada de sentido, sobretudo quando se considera que no Cristianismo não

318 Karl RAHNER. Curso fundamental da fé , p.233-235. 319 Idem, ibidem, p. 213.

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podemos deixar de fora o caráter cristão da salvação operada por Deus na história da

humanidade. Na totalidade da vida de Jesus de Nazaré, Deus tornou historicamente

real e irrevogável a presença de sua vontade salvífica universal neste mundo.

Neste sentido, a obra salvífica de Cristo não se limita a um determinado

grupo de pessoas e consequentemente não se reduz aos muros da Igreja. O não–

cristão traz em seus atos traços da presença salvífica de Deus e, por sua vez, a

revelação divina pode ser acolhida pelo ser humano que já está constitutivamente

predisposto a ser ouvinte da palavra de Deus na história, na sua história, palavra a ser

acolhida livremente como palavra de salvação. A natureza humana é sempre uma

natureza orientada para Deus, sendo que não existe realização humana na qual não

esteja presente a ação salvífica de Deus.

O uso da expressão cristão–anônimo é a tentativa de salvaguardar a tradição

cristã, que não vê possibilidade de outras caminhos de salvação que de alguma

maneira não façam referência à pessoa de Jesus Cristo. No entanto, é importante

lembrar que não se trata de atribuir ao não–cristão algo que ele se recusa

expressamente a ser e muito menos ainda tomar a expressão cristão anônimo no

sentido apologético, ou seja, dizer ao não–cristão que ele não é aquilo que pensa ser e

que necessariamente deve converter-se naquilo que ele desconhece.

Muito pelo contrário, a expressão cristão anônimo não é um rótulo que se

aplica àqueles que se encontram fora da fronteira do Cristianismo. A utilização desta

expressão diz respeito somente ao cristão, ela é um problema que se coloca no

interior do Cristianismo, qual seja, o de saber como se dá a salvação em Cristo na

vida do não–cristão. Em outras palavras, o cristão deve perguntar se aquilo em que

ele crê e espera vale também para aquele que não comunga explicitamente da sua fé

ou até mesmo a nega.

A teoria do cristão anônimo é o esforço para compreender a salvação de todos

aqueles que se encontram fora de uma fé explícita em Cristo como Filho de Deus e

Salvador, e também da vida eclesial que a ela conduz. Entretanto, esta maneira de ver

a salvação acontecendo no mundo moderno foi alvo de diversas críticas.

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Em todo caso, acreditamos que o giro antropológico consiste numa via

teológica, na qual o teólogo procura refletir sobre a possibilidade do autêntico “sim”

humano à oferta da graça e da salvação feita a todo ser humano, da parte de Deus, em

Jesus Cristo e na força do Espírito Santo. As categorias transcendentais utilizadas são

um esforço para tornar acessível à experiência humana, traspassada pela

secularização que caracteriza o pensamento moderno, a Revelação divina na qual

Jesus Cristo é a plenitude da História da Salvação e o único mediador. Neste sentido,

a tentativa de estabelecer uma ligação entre a teologia (inteligência da fé) e a

filosofia (autocompreensão do ser humano) não se reduz a uma dedução abstrata dos

eventos salvíficos, a partir da pura essência do ser humano.

Falando de uma maneira bastante condensada e correndo o risco de ser muito

simplista, ousamos dizer que com a orientação antropológica na teologia busca-se

ajudar as pessoas a encontrar Deus lá onde elas estão e igualmente permitir ao

Cristianismo chegar até aí, nas experiências humanas mais profundas, proclamando a

boa nova da fé cristã.

Este percurso teológico tem por fundamento original e originante a

experiência do mistério de Deus, e está impregnado por uma profunda e rica

dimensão antropológica que manifesta as estruturas fundamentais inerentes a todo

ser humano que tornam possíveis, no mais íntimo de cada ser humano, a experiência

de uma abertura dinâmica em direção ao mistério transcendental e sagrado, nomeado

Deus. Experiência que precede e ultrapassa toda e qualquer forma de discurso

teológico, tal qual acreditava Schleiermacher.

Assim, este trabalho teológico pode ser caracterizado como o exemplo de um

esforço para tornar o Cristianismo assimilável pelo ser humano moderno, marcado

pelo antropocentrismo e pelo subjetivismo, e incomodado por todas as problemáticas

trazidas pelas chamadas ciências modernas. A reflexão rahneriana quer ajudar as

pessoas a crer com toda honestidade existencial, intelectual e ética que exige a

experiência humana.

Em outras palavras, Rahner buscava as condições de possibilidade para que o

cristão possa crer naquele que é seu Criador e Redentor, apesar de uma certa “noite

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escura da fé”, que atravessavam homens e mulheres de seu tempo. Escuridão que

Rahner não julgava ser capaz de ofuscar por completo o pressuposto antropológico

do “homem como evento da autocomunicação livre e misericordiosa de Deus”,

realizada plenamente em Jesus Cristo e atualizada em nós pela ação do Espírito

Santo.

A maneira como discorremos breve e sucintamente pelo modo de fazer

teologia de Karl Rahner nos permite concluir com ele que “o cristão do futuro ou

será um místico ou não será cristão”. Somente a partir de uma profunda experiência

de Deus no concreto da história, do seu próprio existir, da sua humanidade, é que o

ser humano poderá fazer da fé cristã o eixo central da sua própria identidade, cuja

plenitude é a identificação com Jesus Cristo. Trata-se, pois, de uma nova maneira de

ser humano, na qual o ser cristão não é uma fatiga, um fardo pesado ou um

constrangimento, mas o alegre encontro entre a graça sobrenatural de Deus e a

liberdade humana, tão cara ao humanismo moderno.

Muitos de nós, no nosso contexto latino-americano, nascemos e nos criamos

num mundo teocêntrico, onde o religioso ocupa ou ocupava um lugar de destaque. A

tradição religiosa fazia parte da tradição familiar. Todavia, hoje, não existem mais

pessoas em estado puro. Em nós, de certa maneira, convivem os dois mundos: o

teocêntrico e o antropocêntrico. A proposta teológica aqui apresentada a partir de

uma antropologia teológica não foi (ou não é) a tentativa de voltar ao mundo

medieval, teocêntrico, onde as linguagens eram harmônicas. Tampouco quer

prescindir do saber teológico para entender a realidade e falar dela. Não podemos

dizer que um mundo é bom e o outro é ruim. Eles simplesmente convivem em nós,

temos um pé numa realidade e outro na outra.

O discurso de uma teologia desde o ponto de vista antropológico quer na

verdade buscar uma harmonia entre esses dois mundos, teocêntrico e

antropocêntrico, na certeza de que toda a realidade foi e é criada por Deus, e que

portanto a antropologia pode e deve ser o lugar de toda teologia. Este

posicionamento teológico, desde a perspectiva da reflexão teológica de Karl Rahner,

reafirma ou aprofunda o que disséramos anteriormente a partir dos projetos

teológicos de Schleiermacher e Juan Luis Segundo. A certeza de que Deus toca e

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marca nossos afetos a partir da ação imediata do Infinito no finito, ação que supõe o

ser humano estruturalmente orientado para a relação com Deus.

Em outras palavras, trata-se de ver o ser humano como essencialmente

religioso e a religião como uma dimensão antropológica, mas que não se esgota

totalmente no humano. Esta maneira de falar da experiência religiosa é a tentativa de

tornar o discurso teológico inteligível e a experiência cristã de Deus assimilável para

o ser humano profundamente marcado pelo pensamento positivista e pelo pluralismo

religioso. E esta assimilação preconizada desde o horizonte do giro antropológico na

teologia ganha maior clareza se o discurso teológico for entendido desde a

perspectiva do empreendimento hermenêutico.

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B. O EMPREENDIMENTO HERMENÊUTICO DA TEOLOGIA NO ESTUDO DA RELIGIÃO.

1. CONTRIBUIÇÕES DE UMA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA.

a. Rumo a uma nova hermenêutica.

A palavra hermenêutica, do grego hermeneia (interpretação), está relacionada

a Hermes, o mensageiro dos deuses, responsável pela comunicação, o que confere

inicialmente uma dimensão sagrada ao termo. Na semântica grega já se sabia que

“dizer algo de alguma coisa já é dizer outra coisa, interpretar.”320 A idéia de

Hermes como mensageiro nos remete a três possíveis significações do termo

hermenêutica, a saber: dizer, explicar e traduzir. Dizer aponta para o poder da

palavra, explicar significa que se diz algo de alguma coisa e traduzir nos remete ao

esforço para tornar compreensivo aquilo que é estranho, o que supõe a capacidade de

interpretar e colocar o tradutor como mediador entre duas realidades distintas. No

caso de Hermes, entre o mundo divino e o mundo humano.

Mas se a lógica grega privilegiava a univocidade do discurso racional, a

hermenêutica moderna enfatizará a pluralidade dos sentidos, bem como o

desenvolvimento histórico e o conflito das interpretações. Algo transparente na

metáfora do lugar, ou seja, desde um ponto de vista podemos ver determinado

aspecto ao mesmo tempo em que nos vemos impossibilitados de perceber outras

realidades. Em suma, o lugar é uma delimitação e um ponto de vista, um misto de

possibilidades e impedimentos.

Toda atividade hermenêutica traz consigo uma parcialidade, consciente ou

não, pois a realidade é sempre vista desde uma perspectiva. A tentação está, pois, em

querer possuir todo o saber, toda a compreensão da realidade. Neste sentido, a 320 Citado em Etienne Higuet. A crítica política da hermenêutica, p.85.

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teologia tem que tomar consciência do seu lugar e do lugar das demais formas de

saber na compreensão da realidade, na certeza de que todas as ciências juntas não

esgotam o real. E a teologia deve mostrar que a razão não pode universalizar os

fragmentos, mas sim mostrar o universal nos fragmentos.

A partir de Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e de Wilhem Dilthey

(1833-1912), o problema hermenêutico se torna um problema filosófico, sendo

colocado ao lado da psicologia, ou seja, “compreender é, para um ser finito,

transportar-se para outra vida.”321 Com Martin Heidegger (1889-1976), o problema

hermenêutico é o domínio do ser, cuja existência é compreensão do ser que existe

compreendendo. A partir da reflexão de Heidegger, surge a seguinte questão:

...o que ocorre a uma epistemologia da interpretação, oriunda de uma reflexão sobre a exegese, sobre o método da história, sobre a psicanálise, sobre a fenomenologia da religião, etc., quando ela é atingida, animada e, assim podemos dizer, solicitada por uma ontologia da compreensão?322

No contexto da nossa pesquisa, esta questão poderia ser formulada da

seguinte maneira: o que acontece quando o exercício da teologia no estudo da

religião é atingido por uma antropologia da compreensão: interpretar uma linguagem,

uma tradição, e compreender a si mesmo? Compreender é interpretar e interpretar é

compreender, inclusive a si mesmo. Esta maneira de conceber o trabalho

hermenêutico promove uma dupla crítica epistemológica: à pretensa objetividade

absoluta das ciências da natureza e ao desejo de fornecer à teologia um método tão

objetivo quanto o das ciências da natureza.

Com Dilthey, de modo particular, temos a inclusão da exegese bíblica e da

filologia no interior das ciências históricas.323 Somente a partir desta inclusão é que

se pode superar a lacuna deixada pelo kantismo, que só conseguira evidenciar um

espírito impessoal, portador de condições de possibilidade dos juízos universais.

Com isto, não se deseja negar a reviravolta operada pela filosofia kantiana com

321 Paul RICŒUR. O conflito das interpretações, p.8-9. 322 Idem, ibidem, p.10. 323 Filologia: estudo da língua na sua totalidade, na sua amplitude, bem como o estudo dos documentos que servem para documentar a língua.

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referência às ciências da natureza: colocar o sujeito como centro do universo do

conhecimento humano.

Todavia, Dilthey se debruça sobre a necessidade de se incorporar o problema

regional da interpretação dos textos no contexto mais amplo do conhecimento

histórico. Esta preocupação surge diante daquele que vem a ser o grande êxito da

cultura alemã do século XIX: “a invenção da história como ciência de primeira

grandeza(...)Dilthey é antes de tudo intérprete deste pacto entre a hermenêutica e a

história.”324

Como consequência desta aproximação, temos de nos lembrar que antes de

compreender um texto do passado vem a compreensão do encadeamento histórico,

considerado como a mais fundamental expressão da vida. E assim temos uma

oposição que atravessa toda a obra de Dilthey: a explicação da natureza versus a

compreensão da história. Ele procura na psicologia o traço distintivo do compreender

que pressupõe a capacidade primordial de se transportar para a vida psíquica de

outro. Isto supõe que a intencionalidade do autor esteja objetivada no texto. Assim, o

leitor poderá discernir e identificar a manifestação do outro no texto.

Dilthey coloca a distinção entre explicar e compreender da seguinte maneira:

As ciências da natureza explicam um fenômeno, quando o inserem em uma conexão de causa e efeito; as ciências do espírito compreendem um fato espiritual, quando decifram seu sentido inserindo-o numa conexão significativa.325

Tanto em Schleiermacher como em Dilthey, a filologia – a explicação dos

textos – é o que confere a cientificidade da compreensão, isto é, confere a camada

objetiva da compreensão a partir da estrutura fundamental do texto.326 Todavia, “a

obra de Dilthey, mais ainda que a de Schleiermacher, elucida a aporia central de

uma hermenêutica que situa a compreensão do texto sob a lei da compreensão de

outrem que nele se exprime.”327 Nesta compreensão de outrem temos o fundo

324 Paul RICŒUR. Interpretação e ideologias, p.23. 325 Rosino GIBELLINI. A teologia do século XX, p.59. 326 Paul RICŒUR. Interpretação e ideologias, p.26. 327 Idem, ibidem, p.28.

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psicológico da obra de Dilthey, ou seja, a compreensão não daquilo que diz o texto,

mas daquele que nele se expressa.

Com Heidegger, a questão da compreensão está totalmente desvinculada da

comunicação com outro, desencadeando um processo de des-psicologização da

compreensão. O “mundo” toma o lugar do “outro”, pois a ontologia da compreensão

começa com a reflexão sobre o ser–em ( ser–no–mundo) e não sobre o ser–com (o

outro). “A primeira função do compreender é a de nos orientar numa situação. O

compreender não se dirige, pois, à apreensão de um fato, mas à de uma

possibilidade de ser.”328 Compreender um texto equivale a revelar a possibilidade de

ser indicada pelo texto, vale dizer, descobrir o sentido da vida pelo texto, ou ainda,

“pro–jetar” a própria existência. Na compreensão, a escuta é a relação fundamental

da palavra com a abertura ao mundo e ao outro. Compreender é entender.

Toda interpretação é movida por uma pré-compreensão e promove uma nova

compreensão. Em outras palavras, não há uma interpretação neutra. “A compreensão

é o modo de ser do homem, sendo, portanto, a raiz de todo conhecimento.”329 O

compreender compreendendo-se é visto por Heidegger como a estrutura original do

ser–no–mundo, que é constitutivo do ser–aí (Dasein) humano. Neste sentido é que

podemos dizer que o existir possui uma estrutura hermenêutica.

A filosofia de Hans Georg Gadamer (1900-2002) exprime a síntese entre o

movimento das hermenêuticas regionais em direção à hermenêutica geral, bem como

da epistemologia das ciências do espírito à ontologia. Segundo Gadamer, a

hermenêutica

indica o movimento fundamental da existência, que a constitui em sua finitude e historicidade e abraça, assim, todo o conjunto de sua experiência no mundo. Não é arbítrio ou exagero sistemático de um aspecto particular dizer que o movimento da compreensão é algo universal e constitutivo. 330

328 Idem, ibidem, p.33. 329 Rosino GIBELLINI. A teologia do século XX, p.59 330 Idem, ibidem, p.63.

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O ponto de partida da proposta hermenêutica de Gadamer é a descrição da

hermenêutica como diálogo entre o intérprete e o texto por meio da dialética de

perguntas e respostas. Esta proposta hermenêutica possui pontos que se tornam

essenciais para o que será afirmado mais tarde sobre o paradigma do texto: o

distanciamento (distância histórica) e a fusão de horizontes, vale dizer, “a

comunicação a distância entre duas consciências diferentes situadas faz-se em favor

da fusão de seus horizontes...”331 Este conceito significa que não vivemos em

horizontes fechados e tampouco num único horizonte.

Fica excluída, portanto, a idéia de um saber total e único, bem como do

objetivismo, ou seja, a absorção do próprio horizonte no horizonte do outro. Ao

distanciamento e à fusão de horizontes, podemos adicionar ainda a filosofia da

linguagem como ponto fundamental da filosofia de Gadamer para a elaboração de

uma hermenêutica do texto: “o que nos faz comunicar à distância é a coisa do texto

que não pertence mais nem ao seu autor nem ao seu leitor.”332

O texto, um autor ou uma época, chega até o intérprete mediado por uma

série de interpretações que determinam a pré-compreensão do novo intérprete, que

desemboca numa nova interpretação (fusão de horizontes). Compreender implica em

inserir-se num processo de tradições históricas, o que é diferente de identificar-se

com outra pessoa (autor do texto) como pretendiam, embora de maneiras distintas,

Schleiermacher e Dilthey. Esta série de interpretações é o que com Juan Luis

Segundo chamamos de escala de valores e sistema referencial.

Como preocupações recentes na história da hermenêutica, podemos destacar,

pois, o movimento de desregionalização, ou seja, a inclusão das hermenêuticas

regionais (filosófica e exegética) numa hermenêutica geral. Mas tal movimento

somente pode ser levado a termo se as preocupações epistemológicas (elevação da

hermenêutica a saber de reputação científica) estiverem subordinadas a preocupações

ontológicas, ou seja, compreender deixa de ser um modo de conhecimento e torna-se

uma maneira de ser.

331 Paul RICŒUR. Interpretação e ideologias, p.41. 332 Idem, ibidem, p.41.

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Neste sentido, a hermenêutica deixa de ser somente uma atividade particular

do ser humano e torna-se uma atividade fundamental, o que no contexto da teologia

nos aproxima do chamado antropocentrismo teológico. Temos assim um duplo

movimento: o da desregionalização, da hermenêutica regional à hermenêutica geral,

e o da radicalização, hermenêutica como modo de ser humano no mundo.

É no horizonte desta reflexão sobre a hermenêutica contemporânea que

buscaremos fundamentos para a hermenêutica teológica, sem perder de vista a

perspectiva existencial que comporta o ato de interpretar e compreender. Isto porque

se a noção de texto nos remete à escrita, a compreensão aparece para nós como um

modo de ser humano, sendo este “modo de ser” um momento prévio a qualquer

reflexão epistemológica em torno do ato de compreender.

Dito de outra maneira, interpretar e compreender são uma maneira de se

situar no mundo. Esta maneira de entender a tarefa hermenêutica possibilita o

desenvolvimento de uma teoria que podemos denominar de identidade narrativa, ou

seja, uma identidade pessoal no contexto de uma teoria narrativa.333

A reflexão em torno da hermenêutica é sem dúvida devedora do pensamento

de Schleiermacher e Dilthey, uma vez que tal procedimento somente pode ser levado

avante a partir deste dois pensadores, ambos considerados como fundadores da

hermenêutica moderna. Sem, contudo, esquecer os limites presentes na reflexão tanto

de Schleiermacher como de Dilthey. 334 Por isso, se da aporia em Schleiermacher

surgem as reflexões de Dilthey, as lacunas deixadas por este pensador nos conduzem

a Heidegger e a Gadamer.

Em outras palavras, se a chamada hermenêutica romântica promove uma

ruptura entre o explicar e o compreender, pressupondo duas posturas metodológicas

distintas, a saber, o ser humano compreende-se a si mesmo e procura explicar a

natureza, uma hermenêutica baseada na noção de texto, como o faz Ricœur, procura

333 Algo central na obra “Soi-même comme um autre” de Paul Ricœur. 334 Paul RICŒUR. Du texte à l’action, p.88-100.

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superar a ruptura entre explicar e compreender, pois uma e outra são dimensões de

um mesmo ato humano de interpretação.

Neste caminhar rumo a uma nova hermenêutica é preciso destacar também a

reflexão de Rudolf Bultmann (1874-1976)335, a partir de quem é anunciado o

chamado o círculo hermenêutico – crer para compreender, compreender para crer.

Assim, a tarefa da interpretação não é compreender um autor, como pensavam

Schleiermacher e Dilthey, mas consiste em expor-se ao texto, na certeza de que a

pré-compreensão é compreensão de si, é a compreensão que se tem da existência. E

somente podemos compreender um texto no qual a nossa existência já se encontra de

certa maneira implicada, pois já estamos intrometidos naquilo que desejamos

interpretar.

b. O paradigma do texto.

A interpretação de um texto exige a superação de uma distância, de um

afastamento cultural, entre o leitor e um texto, a partir da incorporação do sentido do

texto na compreensão que alguém tem de si mesmo, algo distinto de uma arte ou

técnica de especialista. A hermenêutica diz respeito a todo ser humano que busca a

compreensão do mundo e de si mesmo, e que, para tal, lança mão dos modos de

compreensão que lhe estão disponíveis: metáfora, alegoria, mito, analogia,... Há,

pois, uma profunda ligação entre interpretação e realidade, sendo a interpretação da

realidade o dizer algo sobre alguma coisa.

Na linguagem temos a indicação de que a compreensão é um modo de ser, é

na linguagem que vem a se exprimir toda a compreensão ôntica ou ontológica, sendo

os textos expressões da vida fixadas pela escrita: a textualidade da vida. Neste

335 Rudolf Bultmann foi o primeiro teólogo a utilizar sistematicamente as perspectivas abertas por Schleiermacher, Dilthey e Heidegger.

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sentido, podemos dizer que “a hermenêutica é a teoria das operações da

compreensão em sua relação com a interpretação de textos.”336

A hermenêutica possui uma relação privilegiada com a linguagem, como

mostra o caráter polissêmico de nossas palavras, que possuem mais de uma

significação quando consideradas fora de seu uso em determinado contexto. Esta

polissemia põe em jogo uma atividade de discernimento. A interpretação é

propriamente esta atividade de discernimento, que no nível mais elementar consiste

em reconhecer a univocidade da mensagem que o locutor constituiu, tendo por base a

polissemia do léxico comum.337

Esta idéia de interpretação está intimamente associada à noção de símbolo, “o

símbolo dá a pensar”. 338 Isto porque não ponho nele o sentido, mas é o símbolo que

dá o sentido, uma vez que ele é a estrutura de significação na qual um sentido literal

designa um sentido indireto, figurado, acessível somente por meio do primeiro. Esta

circunscrição entre sentido primeiro e sentido segundo acaba por configurar o campo

hermenêutico propriamente dito, isto é, o trabalho da interpretação se situa na

decifração do sentido oculto no sentido aparente. Haverá sempre interpretação onde

existir sentido múltiplo, sendo que a interpretação manifesta a pluralidade de

sentidos existente no símbolo. 339

Desta maneira,

...o símbolo é o próprio movimento do sentido primário que nos faz participar do sentido latente e assim nos assimila ao simbolizado, sem que possamos dominar intelectualmente a similitude. É nesse sentido que o símbolo é doador. É doador porque ele é uma intencionalidade primária que dá o sentido segundo.340

Em outras palavras, todo símbolo suscita uma compreensão por meio da

interpretação, ou ainda, o símbolo é a escritura de um outro que eu devo decifrar.

Mas surge uma questão: de que maneira a compreensão pode estar ao mesmo tempo 336 Paul RICŒUR, p.17. 337 Idem, ibidem, p.19. 338 Idem. O conflito das interpretações, p.243. 339 Idem, ibidem, p.15. 340 Idem, ibidem, p.244.

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no símbolo e para além dele? Uma resposta inicial pode estar na seguinte distinção:

se para a fenomenologia, interpretar equivale a mostrar uma coerência, ou seja,

compreender o símbolo por ele mesmo e articulá- lo numa totalidade de símbolos

(sistema), para a hermenêutica propriamente dita interpretar significa a ligação entre

a doação de sentido pelo símbolo e a decifração deste sentido oferecido. Daí que

...é preciso pensar por trás dos símbolos, mas a partir dos símbolos, em conformidade com os símbolos; que sua substância é indestrutível, que eles constituem o fundo revelador da palavra que habita entre os homens. Em suma, o símbolo dá a pensar.341

O símbolo dá a pensar porque põe em marcha o pensamento, sem contudo

impor um sentido já presente (oculto, recoberto, dissimulado) no próprio símbolo.

Por isso, devemos considerar uma interpretação criadora que respeite o enigma

original dos símbolos e nos deixar ensinar por ele, mas que a partir disso forme o

sentido, desde a responsabilidade de um pensamento autônomo. A linguagem

simbólica ganha lugar de destaque na medida em que somente podemos compreender

se interpretarmos por meio de uma hermenêutica que reconstrua a memória do

significado originário do símbolo. Por isso, é preciso

buscar os elementos poéticos presentes em mitos e símbolos religiosos no sentido de permitir que estes se apresentem como configurações significativas reveladoras das possibilidades inerentes ao real, mas ao mesmo tempo incapazes de serem expressas em termos não–figurativos.342

Por sua vez, a reflexão é o elo de ligação entre a compreensão dos signos e a

compreensão de si, ou seja, “a reflexão é a apropriação do nosso esforço por existir e

de nosso desejo de ser, através das obras que testemunham esse esforço e esse

desejo.”343 Neste sentido, ao tornar-se contemporâneo do texto, o intérprete pode

apropriar-se de seu sentido, ou seja, a apropriação do sentido do texto é guiada pelo

desejo de compreensão de si mesmo. Mas sem que a questão da compreensão de si

seja colocada como questão introdutória e muito menos como centro de gravidade,

como ocorre na hermenêutica romântica. Afinal, o centro de gravidade da questão

hermenêutica está na tríade discurso–obra–escrita, o tripé que suporta o projeto do

341 Idem, ibidem, p.252. 342 Eduardo GROSS . Hermenêutica e Religião a partir de Paul Ricœur, p.45-46. 343 Paul RICŒUR. O conflito das interpretações, p.18-19.

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mundo da obra. Temos, portanto, a importância concedida ao deslocamento do texto

em direção ao mundo que se desdobra diante dele.

O discurso é um traço primitivo de distanciamento que pode ser caracterizado

a partir da dialética entre evento e significação. Se tomarmos o discurso como

evento, podemos dizer que ele se caracteriza pela sua temporalidade, pelo fato de

alguém se exprimir por meio da fala. O discurso como evento refere-se a um mundo

que pretendemos descrever, exprimir, representar. O evento é igualmente

estabelecimento de diálogo porque o discurso não possui somente um mundo, mas o

outro, o interlocutor. Em suma, o evento ocorre quando alguém fala de um mundo

para outro, seu interlocutor.

Todavia, se todo discurso acontece como evento, a sua compreensão se dá por

meio da significação que o constitui. E o que pretendemos compreender não é o

evento como algo fugidio, condicionado pelo tempo, mas a significação que

permanece e ambos – evento e significação – se articulam na lingüística do discurso,

que se configura como núcleo de toda questão hermenêutica. Isto porque da mesma

forma que a língua se ultrapassa como sistema uma vez que se articula sob a forma

de discurso, o discurso se ultrapassa como evento, sob a forma de significação. 344

Tendo por pressuposto esta idéia da superação do discurso por meio da

significação, temos uma reorientação da hermenêutica a partir da seguinte noção de

texto:

O texto é (...) muito mais que um caso particular de comunicação inter–humana: é o paradigma do distanciamento na comunicação. Por esta razão, revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância.345

Este tipo de comunicação supõe que o texto possa preservar o discurso de sua

destruição ao longo do tempo. Todavia, não é apenas esta a função da escrita, uma

vez que ela promove igualmente a autonomia do texto como algo que lhe é

constitutivo. É graças à escrita que o mundo do texto faz explodir o mundo do autor, 344 Idem. Interpretação e ideologias, p.47. 345 Idem, ibidem, p.44. Sobre a noção de texto, ver também de Ricœur Du texte à l’action, p.101-118.

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uma vez que na escrita temos a superação do horizonte intencional, finito, do autor.

Desta maneira, a hermenêutica se afasta da alternativa que durante muito tempo

marcou o seu exercício: ou compreender um autor ou entender a estrutura de um

texto. Este distanciamento nos aproxima da idéia de que interpretar é trazer à

linguagem o tipo de ser–no–mundo que se desvela diante do texto. Em outras

palavras,

...a escrita torna o texto autônomo relativamente à intenção do autor. O que o texto significa, não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. Significação verbal, vale dizer, textual, e significação mental, ou seja, psicológica, são doravante destinos diferentes (...) O texto deve poder, tanto do ponto de vista sociológico quanto do ponto de vista psicológico, descontextualizar-se de maneira a deixar-se recontextualizar numa nova situação: é o que justamente faz o ato de ler.346

Esta maneira de entender o papel da escrita provoca uma nítida ruptura com a

hermenêutica romântica, que fazia da interpretação o ato de compreender um autor e

às vezes melhor do que ele mesmo se compreendeu. A escrita liberta, pois, o discurso

da contingência do diálogo, na medida em que o fixa numa obra, e a reorientação da

hermenêutica supõe a noção de texto e a sua apropriação por parte do leitor, uma e

outra se configurando respectivamente no momento objetivo e no momento subjetivo

da tarefa hermenêutica. De fato, uma proposição de mundo é aquilo que deve ser

interpretado num texto, um mundo que podemos habitar e a partir do qual podemos

compreender a nós mesmos. 347

c. Decifrar a vida no espelho do texto.

O “mundo do texto” é o objeto propriamente dito da hermenêutica, sendo a

sua tarefa primeira deixar aflorar este mundo que o texto desvela diante dele. E uma

vez desdobrado diante do texto, ele apresenta-se como uma proposição de mundo,

346 Idem. Interpretação e ideologias, p.53. 347 Idem, ibidem, p.56.

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que ao entrar em contato com o mundo real o refaz, seja confirmando, seja

reconfigurando-o.348

A proposição de mundo efetuada pelo texto nos coloca diante do problema da

apropriação ou da aplicação do texto ao contexto do leitor. É o que podemos chamar

de compreensão diante do texto. Não se trata de querer impor ao texto a nossa

capacidade finita de compreender, mas expor-se ao texto, deixar-se formar pela

proposição de mundo que nos é feita, o que é possível chamar de metamorfose do

ego: “só encontro-me como leitor, perdendo-me.”349 Neste sentido, compreensão

significa desapropriação e apropriação de si, e isto supõe uma distância crítica de si

mesmo.

A interpretação de um texto é todo o contrário da contemporaneidade,

conforme supunham Schleiermacher e Dilthey, ela é apropriação de uma proposição

de modo de ser, entendida como objetivação típica das obras da cultura. Além disso,

a apropriação de um texto significa a superação da distância cultural e possui

também o caráter de atualização, ou seja, a efetivação das possibilidades semânticas

do texto:

...o texto atualizado encontra um ambiente e uma audiência; ele retoma seu movimento, interceptado e suspenso, de referência em direção a um mundo e a sujeitos. Este mundo, é o mundo do leitor, este sujeito, é o próprio leitor.350

A operação objetiva da interpretação significa tomar o caminho aberto pelo

texto, colocar-se em marcha em direção ao oriente do texto. Por isso, interpretar é um

risco, uma vez que significa expor-se diante do texto para habitar o mundo que se

desdobra diante dele, texto e leitor. Em outras palavras, interpretar é “decifrar a vida

no espelho do texto”.351

No empreendimento hermenêutico, busca-se a confrontação, o diálogo, a

conversação, entre o intérprete e a proposição de mundo feita pelo texto. Não se

348 Idem. Du texte à l’action, p.18. 349 Idem. Interpretação e ideologias, p.58. 350 Paul RICŒUR. Du texte a l’action, p.153. 351 Paul RICŒUR. Conflito das interpretações, p.322.

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trata, pois, de encontrar subjacente ao texto uma intenção perdida, a do autor, e sim,

como dissemos acima, de se expor ao mundo que o texto desvela diante dele, face ao

leitor. Neste sentido, a consciência expõe-se ao mundo que o texto cria e que nos

possibilita uma nova compreensão de nós mesmos. Por isso,

a hermenêutica convida a fazer da subjetividade a última, e não a primeira categoria de uma teoria da compreensão. A subjetividade deve ser perdida como origem, caso ela deva ser reencontrada numa função mais modesta que a de origem radical.352

Esta descentralização nos afasta de qualquer atitude subjetivista, uma vez que

a compreensão de si acontece por meio da compreensão diante de algo, no caso o

mundo do texto. É neste sentido que temos também o abandono do “Eu”, dono de si

mesmo, para pensar no “si”, discípulo do texto.353 E o que torna possível a leitura de

um texto é justamente o seu não fechamento sobre si mesmo, ou ainda, a abertura do

texto a outras possibilidades. Em outras palavras, a compreensão de um texto não é

um fim em si mesmo.

No processo de interpretação não cessamos de interpretar um texto por meio

de outros textos, ou seja, ler e interpretar é colocar em marcha um novo discurso a

partir do discurso do texto lido. Por isso, a interpretação de um texto chega a termo

na interpretação de si mesmo, do leitor que doravante se compreende melhor, se

compreende diferentemente ou começa a se compreender. Com a escritura, temos a

objetividade do texto que nos permite apreender a significação do evento da palavra

(o discurso) e não o evento do dizer, mas o dito da palavra. Dito de outra maneira,

“Com o discurso escrito, a intenção do autor e a intenção do texto cessam de coincidir. Esta dissociação da significação verbal do texto e da intenção mental constitui o verdadeiro jogo da inscrição do discurso.”354

A dissociação entre a significação do texto e a intenção do autor rompe as

amarras psicológicas do autor e introduz o leitor na permanente aventura da

352 Idem. Du texte à l’action, p.53. 353A reflexão sobre a apropriação de si mesmo por meio da apropriação do texto que Ricœur desenvolve a partir da noção de texto, encontrará continuidade em sua obra “Soi-même como un autre”, na qual é trabalhada a dialética eu–si. 354 Paul RICŒUR. Du texte à l’action, p187.

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interpretação. Assim, como o texto liberta a sua significação da tutela da intenção

mental (do autor), ele livra sua referência dos limites da referência ostensiva (o

mundo do autor). As referências abertas pelo texto nos colocam diante de um mundo

de novas possibilidades, de novas dimensões, no qual se dá o risco da interpretação.

A compreensão de um texto passa a ser também a compreensão da nossa

situação de leitores. Por isso, aquilo que compreendemos num discurso não é uma

outra pessoa, mas um projeto de vida ou, numa linguagem heideggeriana, o esboço

de um novo ser–no–mundo. É, pois, a escritura que revela o destino do discurso:

projetar um mundo. 355

O que é escrito se dirige ao auditório que o texto criou e não somente ao “tu”

do diálogo, o interlocutor, caracterizando a dimensão de universalidade do discurso,

na medida em que o discurso pela escrita escapa aos limites do face-a-face “eu–tu”,

aquele que fala e aquele que escuta. O face-a-face da escritura (do escrito) é (ou

equivale) àquilo que alguém é capaz de ler.

A idéia de paradigma do texto construído a partir da noção do discurso como

evento da objetividade do texto, pode servir de paradigma para as Ciências Humanas

e Sociais. Isto porque a ação humana é uma expressão da realidade, uma maneira de

dizer o real que se torna passível de interpretação. As Ciências Humanas, por sua

vez, são uma reinterpretação da realidade, existindo uma correlação entre a

interpretação de um texto e a interpretação de uma ação humana, entendida como

trama, teia, textualidade da existência humana oferecida à leitura e

conseqüentemente à interpretação. E assim como um texto se desprende de seu autor,

uma ação também se desprende de seu agente, desenvolvendo suas próprias

conseqüências, ou seja, o significado de uma ação ultrapassa a pertinência com

relação à situação inicial.

É, pois, a partir da aplicabilidade da noção de texto como modelo da ação

humana, que entendemos a hermenêutica como espaço para o diálogo entre a

355 Idem, ibidem, p.189.

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teologia e as Ciências Humanas da religião, uma vez que seus discursos se

caracterizam como uma reinterpretação da existência humana.

2. A hermenêutica da linguagem religiosa.

a. O paradigma do texto e a linguagem religiosa.

Se o paradigma do texto nos coloca diante de uma reorientação da

hermenêutica, esta mesma idéia de texto não nos deixa esquecer que um dos grandes

desafios da hermenêutica consiste em interpretar interpretações da realidade. Afinal,

a fala e a escrita são uma forma de interpretação e não somente a partir do logos, da

razão, mas também do mito e do símbolo, o que exige descobrir um sent ido oculto

para além do manifesto. Isto vale de modo especial para a linguagem religiosa, pois

quando se diz que a linguagem indica um modo de ser, isto se aplica também à

linguagem religiosa.

O discurso religioso em geral e a linguagem bíblica em particular devem ser

encarados como linguagem simbólica ou metafórica. Além disso, a linguagem

religiosa diferentemente da científica (no sentido empírico–formal) não apresenta a

sua proposição de mundo em forma de dado mensurável, mas sim como uma

possibilidade de ser, de existir. Neste sentido, o intérprete dos textos religiosos não

deve limitar-se a descobrir o que está escrito, a sua tarefa primeira está em olhar para

onde o texto aponta.356 Daí que interpretar e compreender a Palavra de Deus consiste

em seguir a direção para qual o seu sentido indica ou orienta.

E se considerarmos a teologia cristã como uma teologia da palavra, da

Palavra de Deus, isto nos remete inevitavelmente à idéia de revelação que pressupõe

a fé religiosa, a qual passa a ser entendida como compreensão de si mesmo diante do

356 Eduardo GROSS . Hermenêutica e Religião a partir de Paul Ricœur, p.48.

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texto. Assim, a constituição hermenêutica da fé cristã passa pelo mundo do texto e

pela sua apropriação, uma vez que a relação entre palavra e escritura está na origem

de todo problema de interpretação, ou seja, se inicialmente a palavra se refere a uma

escritura que ela interpreta, a nova pregação (ou o novo discurso) se torna também

posteriormente uma nova escritura. Esta perspectiva encontra-se subjacente a idéia

de que o ato de crer é indissociável do ato de interpretar, isto é, crer é interpretar,

lembrando que o Cristianismo é desde a sua origem uma exegese, um movimento de

interpretação.

A fé religiosa acontece, pois, na nova existência que o mundo do texto

possibilita, configurando-se em algo irredutível a qualquer forma de tratamento

lingüístico e, portanto, encontrando-se no limite de toda hermenêutica. O movimento

ininterrupto da interpretação tem seu início e seu termo no risco de uma resposta que

nenhum comentário pode gerar ou esgotar, risco entendido como uma nova

possibilidade de existir.357

Todavia, a linguagem religiosa possui características pré–lingüísticas que

podemos definir como: a preocupação última, ou seja, o único necessário a partir do

qual nos orientamos em todas as nossas escolhas. Algo que nos remete ao sentimento

de dependência absoluta, do qual falava Schleiermacher, e à noção de valor absoluto

trabalhada por Juan Luis Segundo. Isto porque a fé responde a uma iniciativa que

sempre nos precede:

...a fé é inseparável de um movimento de esperança que se abre caminho apesar dos desmentidos da experiência e que revira as razões de desesperar em razões de esperar conforme as leis paradoxais de uma lógica da superabundância.358

Estas características da fé nos mostram que a hermenêutica não é a primeira e

nem a última palavra. Apesar disto, a hermenêutica não nos deixa esquecer que

a “preocupação última” permaneceria muda se não recebesse o poder da palavra de uma interpretação recomeçada sem cessar, dos sinais e dos símbolos que educaram e formaram esta preocupação ao longo dos séculos. O “sentimento de absoluta dependência” permaneceria um sentimento sem força e desarticulado se não fosse a resposta à

357 Paul RICŒUR. Du texte à l’action, p.130. 358 Idem, ibidem, p.130.

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proposição de um novo ser que se abre a novas possibilidades de existir; a esperança, a confiança incondicional, estaria vazia se não estivesse apoiada na interpretação dos acontecimentos–sinais de libertação que abrem e descobrem o possível mais próprio da minha liberdade e, assim, se tornam para mim palavra de Deus.359

Para o Cristianismo, esta palavra de Deus é mediatizada por textos e por uma

Escritura que já são eles mesmos uma interpretação da realidade na qual se

desenvolve a existência humana, o que faz da hermenêutica, como dissemos acima,

um trabalho de reinterpretação. A hermenêutica filosófica da qual lançamos mão

neste nosso estudo nos afasta tanto de uma total objetividade (pretensão positivista)

como de uma tentativa de congenialidade (ilusão romântica) entre o autor de um

texto e o leitor, e ultrapassa a pretensa transparência do sujeito a si mesmo. E isto

tendo por pressuposto que a compreensão de si mesmo somente é possível por meio

da mediação de sinais, símbolos e textos narrativos.

Como nos lembra a história, o problema hermenêutico foi colocado

inicialmente no contexto de uma disciplina que visa compreender um texto: a

exegese. A hermenêutica era uma palavra que se aplicava à literatura bíblica, à

interpretação da Sagrada Escritura. Para alguns estudiosos, a importância dada à

hermenêutica foi de tamanha magnitude que podemos mesmo dizer que a história da

Igreja é a história da interpretação das Escrituras. E se o texto desvela diante de nós

uma proposição de mundo, podemos dizer que os textos bíblicos são o paradigma

desta abertura, constituindo-se em testemunhos de um mundo que incessantemente

faz apelo à fé e à interpretação. O que nos permite afirmar que

Se a exegese suscitou um problema hermenêutico, quer dizer, um problema de interpretação, é porque toda leitura de texto, por mais ligada que ela esteja ao quid, ao “aquilo em vista de que” ele foi escrito, sempre é feita no interior de uma comunidade, de uma tradição ou de uma corrente de pensamento vivo, que desenvolvem pressupostos e exigências.360

Graças ao processo de distanciamento que a escritura provoca em relação à

sua situação inicial, ao seu destinatário primitivo, ou ainda, à mensagem de seu

locutor, a palavra chega até nós hoje por meio de seu sentido e não mais na voz de 359 Idem, ibidem, p.131. 360 Idem. O conflito das interpretações, p.7.

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seu proclamador. E é justamente a tradição que faz a ligação entre a palavra e a

escritura, bem como entre a escritura e a palavra proclamada, o que faz da tradição a

perspectiva histórica deste processo antes mesmo de ser considerada como uma fonte

de inspiração suplementar à Sagrada Escritura.361

No Cristianismo, o problema hermenêutico é uma questão antiga. Basta

lembrar a polêmica entre o sentido alegórico e o ponto de vista histórico–gramatical

que ocupou parte das discussões teológicas do século V, da qual Santo Agostinho

(354-430) é testemunha ao insistir mais sobre o sentido espiritua l das Escrituras do

que sobre o sentido literal. Todavia, no final da Idade Média, o princípio

hermenêutico privilegiou o sentido literal em detrimento do sentido espiritual. Por

isso,

Se a hermenêutica em geral é, segundo a expressão de Dilthey, a interpretação das expressões da vida fixadas pela escritura, a hermenêutica própria ao cristianismo deve-se a essa relação única entre as Escrituras e o Querigma (a proclamação) ao qual remetem.362

Neste sentido, o núcleo do problema hermenêutico está na relação entre

Escritura e palavra, e entre palavra e evento (e seu sentido). Mas em que consiste a

raiz do problema hermenêutico no Cristianismo? Do ponto de vista do evento Cristo,

digamos que antes mesmo de Jesus de Nazaré ser interpretado, ele próprio é o

intérprete das escrituras anteriores, da escritura judaica. Em outras palavras, Jesus

Cristo é exegeta e exegese da Escritura, problema que ocupou as primeiras gerações

cristãs a partir da relação entre os dois Testamentos (ou entre as duas Alianças).

Assim, a pregação cristã primitiva escolheu ser hermenêutica, desde a perspectiva da

releitura da escritura judaica, a fim de manifestar o evento Cristo como realização de

um sentido anterior, como plenitude de um processo histórico, iniciado com Abraão.

A hermenêutica cristã convida a todos aqueles que se engajam na fé cristã a

decifrar o movimento da própria existência à luz da vida, morte e ressurreição de

Jesus Cristo, ou seja, a realizar uma exegese da existência humana a partir do evento

361 Idem. Du texte à l’action, p.125. A parte sobre “Hermenêutica filosófica e hermenêutica bíblica” desenvolvida por Ricœur neste texto (p.119-133), pode igualmente ser encontrada na seguinte obra: Exegesis. Neuchâtel: Dlachaux et Niestlé, 1975, p.216-228. 362 Idem. O conflito das interpretações, p.319-320.

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Cristo, colocando o cristão como um ouvinte da palavra de Deus. E se inicialmente, o

kerygma cristão era anúncio de uma pessoa, Jesus de Nazaré como o Cristo

ressuscitado, com o passar do tempo este anúncio veio a ser dito em forma de relatos,

em forma de textos, transformando a exegese da existência humana na “decifração

da vida no espelho do texto”. Por isso,

Podemos ainda falar de interpretação, de um lado, porque o mistério contido no livro explicita-se em nossa experiência e aí verifica a sua atualidade, do outro, porque compreendemos a nós mesmos no espelho da palavra.363

Além disso, se tomarmos emprestado a idéia de “fusão de horizontes”, com a

qual Ricœur trabalha a partir de Gadamer, podemos afirmar que a hermenêutica

cristã promove a fusão do horizonte da vida do cristão com o horizonte da vida de

Jesus Cristo que surge como horizonte “epigenêtico”, ou seja, como aquele que é

capaz gerar uma nova vida na vida de cada cristão. A partir desta epigenesia 364

promovida pela fé cristã, Jesus Cristo surge como o oriente desde o qual o cristão

orienta a sua existência. Aqui unimos hermenêutica e antropologia, uma vez que no

relacionamento com Jesus Cristo é o próprio ser do cristão que está em questão.

No relato temos a primeira forma de confissão de fé textual da comunidade

cristã primitiva que encerra em si mesma uma primeira camada de interpretação.

Mas, se no relato o anúncio passa à sua forma textual, é preciso lembrar que o

anúncio não-textual da pessoa de Jesus Cristo já é igualmente uma interpretação do

evento Cristo. E nós hoje somos ouvintes que escutam (lêem) testemunhas, o que

equivale dizer que a ligação entre hermenêutica (exegese) e discurso teológico já está

presente no texto antes mesmo desta ligação ser função interpretativa aplicada ao

texto.365 Para tanto, é necessário tomar o texto como uma narrativa com função

interpretativa e o discurso teológico como interpretação de uma realidade, de um

evento.

Neste sentido, nós hoje nos encontramos numa atitude hermenêutica não

somente em relação ao Antigo Testamento, mas igualmente para com o Novo 363 Idem. O conflito das interpretações, p.323. 364 Epigenesia vem a ser uma teoria filosófica da formação dos seres por gerações graduais. 365 Paul RICŒUR. Le récit interpretatif, p.17-18.

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Testamento. Vale dizer, o keryma cristão é também ele um Testamento. Eis para nós

hoje, do ponto de vista da fé cristã, um problema moderno da hermenêutica: a

descoberta de que o próprio evangelho, o anúncio da boa nova de Jesus Cristo, o

Kyrios ressuscitado, já é em si mesmo uma situação hermenêutica, algo mascarado

por tradições anteriores. O Novo é um Testamento interpretante do Antigo e de toda

a vida humana. Mas este Novo Testamento (o kerygma cristão) é também ele um

texto a ser interpretado. O esquecimento disto fez com que o espírito da cristandade

promovesse a absolutização do Novo Testamento, negando- lhe a possibilidade da

interpretação, da sua releitura num outro contexto, a não ser a interpretação dada pela

autoridade eclesiástica.

A nós hoje somente é possível crer lendo, ouvindo e interpretando um texto

que já é si mesmo uma interpretação. Para a hermenêutica cristã, a fé em Jesus de

Nazaré deve ser decifrada no texto que fala dele e na confissão de fé da Igreja que se

expressa no texto. Daí a intima relação entre o “eu creio” e o “nós cremos” que

encontramos na estrutura do Credo primitivo, o Símbolo dos Apóstolos. Além disso,

é importante dizer ainda que para compreendermos o texto bíblico devemos crer

naquilo que ele anuncia e que nos é transmitido pela tradição.

Mas aquilo que o texto anuncia encontra-se no texto e somente nele, o que

nos leva a afirmar que para crer é preciso compreender o texto. O trabalho

hermenêutico não consiste, pois, em compreender um autor melhor do que ele

mesmo se compreende, como queria Dilthey (expressão que remonta a

Schleiermacher), mas em se submeter àquilo que o texto pretende dizer. Eis aí o risco

da interpretação, e neste arriscar-se perante o texto podemos apresentar o enunciado

do círculo hermenêutico da seguinte forma: “para compreender é preciso crer, para

crer, é preciso compreender.”366

366 Idem. O conflito das interpretações, p.326.

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b. Hermenêutica e revelação.

No que diz respeito à noção de revelação, o paradigma do texto nos ajuda a

superar um conceito opaco de revelação, e um conceito de razão como mestra de si

mesma e transparente a si mesma. Isto porque na medida em que Deus se torna

evento da palavra humana, ele somente pode ser reconhecido no movimento de

interpretação desta palavra. Por conceito opaco, queremos dizer a noção de revelação

geralmente oriunda da dogmática eclesial e da imposição magisterial. A postura

dogmática diz respeito a uma comunidade histórica que interpreta para si mesma e

para outras a inteligência da fé que especifica a sua tradição, sem abrir espaço para

outras possíveis formas de interpretação. A partir desta postura,

“a confissão de fé perde a plasticidade e a fluidez da predicação viva e se identifica com os enunciados dogmáticos de uma tradição e com o discurso teológico de uma escola à qual o magistério impõe as categorias mestras.”367

Entretanto, revelação é um conceito polissêmico. Se tomarmos por base o

discurso profético, ou seja, a idéia de que alguém fala “em nome de Deus”, o termo

revelação associa-se à idéia de um segundo autor da palavra dita e da escritura. O

perigo neste tipo de concepção de revelação está em fechar este conceito num

horizonte muito estreito: o da palavra de outro. Neste caso, revelação significaria

uma voz por trás de outra voz, isto é, Deus haveria ditado algo no ouvido de alguém

com autoridade para falar em seu nome: o profeta. Perigo denunciado por Juan Luis

Segundo em sua obra “O dogma que liberta”. À noção oriunda do profetismo,

podemos ajuntar àquela do apocalipse, qual seja, que a reve lação é uma premonição

do fim da história.

Já para um discurso narrativo, como é o caso do Pentateuco, dos evangelhos

sinóticos e do livro dos Atos dos Apóstolos, o nosso olhar deve voltar-se para a coisa

narrada e não para o narrador e seu suposto inspirador. O que nos é dado a refletir, a

367 Idem. Herméneutique de l’idée de Révélation, p.16.

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pensar, não é um segundo narrador, mas um segundo ator, alguém que atua naquilo

que é narrado. Conseqüentemente, um segundo objeto da narrativa é dado a pensar.

Por isso, falar de revelação a partir de eventos e acontecimentos históricos

significa qualificá- los na sua transcendência para com o curso ordinário da história,

sem esquecer, contudo, que falar de transcendência é dizer as marcas (traços) de

Deus na história. Estes traços de Deus na história são anteriores à palavra da

narração, por meio da qual um narrador oferece uma narrativa a uma comunidade. E,

neste caso, recontar, narrar, é uma maneira de celebrar a existência, a vida, na sua

relação com Deus.

A hermenêutica do discurso religioso não deve, pois, partir de enunciados

teológicos concebidos a partir de conceitos emanados de uma filosofia especulativa:

Deus existe, é onisciente, é onipotente, é todo-poderoso,... Uma hermenêutica da

revelação e conseqüentemente dos discursos religiosos deve voltar-se

prioritariamente para as expressões que manifestam a maneira como uma

determinada comunidade de fé traduz para si mesma e para os outros suas formas

mais originais de relação com Deus.368 É neste sentido que entendemos a

hermenêutica teológica como reinterpretação da existência cristã e de suas

expressões.

Estas expressões, no contexto bíblico, estão contidas em formas de discurso:

narração, profecia, textos legislativos, etc. A confissão de fé bíblica é diretamente

moldada pelo gênero literário no qual ela se expressa, ou seja, “...os gêneros

literários da bíblia não se constituem numa fachada que seria possível derrubar a

fim de evidenciar um conteúdo de pensamento indiferente ao veículo literário.”369

Todavia, a revelação não se esgota em nenhuma se suas modalidades (profecia,

narração, hino, sabedoria,...), pois ela não se constitui num saber acabado, hermético.

Nesta perspectiva, a noção de segredo aparece como uma idéia chave ao

apresentar uma dupla face no conceito de revelação: o Deus que se mostra é ao

mesmo tempo aquele que se esconde (Ex 3,13-15). Além disso, o Deus escondido se

368 Idem, ibidem, p.30. 369 Idem, ibidem, p.31.

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anuncia como o sentido dos eventos fundadores. Esta noção de segredo ou de

mistério significa também que a revelação não pode se constituir num corpo de

verdades do qual uma instituição pudesse tomar-se por única proprietária. Afastar,

pois, um conceito opaco de revelação implica igualmente em desconstruir toda forma

autoritária de ser dona da verdade.

Afirmar que a revelação não se identifica com uma única forma de discurso

significa dizer que a revelação bíblica não pode ser tomada por algo uniforme. A

revelação bíblica é polifônica e polissêmica, e conseqüentemente o discurso

teológico, intérprete da revelação, não pode ser também algo uniforme. Tomar a

revelação segundo a idéia de uma voz por de trás de outra voz é psicologizar a idéia

de revelação. E, para Ricoeur, tudo indica que

...nós não temos, ao menos no Ocidente, uma teologia apropriada que não psicologize o Espírito Santo. Descobrir a dimensão objetiva da Revelação é contribuir indiretamente com esta teologia não psicológica do Espírito Santo que seria uma pneumatologia autêntica.370

Tal contribuição supõe o primado da coisa dita sobre a inspiração do

narrador, o que nos conduz a um conceito filosófico de revelação distinto daquele de

inspiração: o de manifestação. No que concerne ao texto bíblico, a proposição de

mundo que se chama novo mundo, Nova Aliança, Reino de Deus, novos céus e

novas terras, ... é o mundo do texto bíblico desvelado diante do texto.

A idéia de revelação como manifestação de um mundo no qual podemos

habitar, ou seja, o seu sentido a–religioso, nos restitui a dignidade da concepção

bíblica de revelação. Isto porque nos afasta de uma visão psicologizante de

revelação, vale dizer, nos livra da noção de inspiração bíblica, entendida como

insuflação da palavra no ouvido de um escritor. O sentido a–religioso de revelação

como manifestação de um mundo possui, portanto, um valor corretivo face a uma

concepção opaca da revelação bíblica. o que não contradiz uma especificidade da

revelação: os discursos bíblicos se referem ao nome daquele que é inominável. Em

370 Paul RICŒUR. Herméneutique de l’idée de Révélation, p.32-33.

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outras palavras, para a revelação religiosa judaico–cristã, Deus é aquele que se

manifesta ao mesmo tempo em que se esconde. Deus é mistério.

É a partir desta idéia de revelação como manifestação que podemos

apresentar a crítica a uma dupla pretensão:

se a pretensão inaceitável da idéia de revelação é aquela de um sacrifício intelectual e de uma heteronomia total sob o veredicto de um magistério de última instância, a pretensão contrária da filosofia é aquela de uma transparência total da verdade e de uma autonomia absoluta do sujeito pensante.371

Ambas pretensões, da idéia de revelação e da filosofia, abrem um abismo

intransponível entre as “verdades da fé” e as “verdades da razão”. Entretanto, a

noção de manifestação, mesmo no sentido a–religioso do termo, viola a idéia de

verdade objetiva, mensurada pelo critério da verificação e da falsificação empírica

(empírico–formal), e coloca igualmente por terra a autonomia do sujeito pensante

tida como consciência mestra de si mesma, uma consciência que se autoconstitui. E

um novo conceito de verdade que implique a idéia de manifestação suporá a

dependência do ser humano sem, todavia, ser algo que se ident ifique com

heteronomia. Manifestação tida como desdobramento de um mundo por meio do

texto e da escritura, um mundo no qual podemos habitar e decifrar o sentido da nossa

existência.

O objeto da hermenêutica é este mundo que o texto desdobra, desvela diante

de si e que podemos habitar. O que deve ser compreendido num texto não é seu

autor, nem sua intenção e tampouco a estrutura do texto, mas o mundo que está fora

dele como sua referência. Esta maneira de conceber a revelação em sintonia com a

noção de manifestação que se dá no mundo do texto traz como consequência uma

nova compreensão do conceito de verdade. Nesta linha de raciocínio,

...verdade quer dizer não mais verificação, mas manifestação, isto é, deixar ser isto que se mostra. Isto que se mostra é a cada vez uma proposição de mundo tal qual eu possa habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprio. É neste sentido de manifestação que a linguagem, na função poética, é a sede de uma revelação.372

371 Idem, ibidem, p.35. 372 Idem, ibidem, p.41.

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O movimento interpretativo que nos leva a habitar o mundo que se desvela

diante do texto, nos conduz à noção de apropriação como “o ato de compreender-se

diante do texto”.373 Todavia, repitamos, este ato de compreensão não consiste em

impor ao texto a nossa capacidade finita de compreendê- lo, mas de se expor ao texto

e receber dele uma possibilidade de ser mais vasta do que possuíamos antes de sua

leitura. Neste sentido, a compreensão se mostra o contrário de uma ação da qual o

sujeito é o fundamento último. E esta maneira de conceber a compreensão de si

diante do texto coloca em marcha um desprendimento da consciência da sua

pretensão de se constituir nela mesma e a partir dela mesma toda a significação.

Para evidenciar a não existência de uma consciência imediata de si mesma, a

noção de paradigma do texto supõe a categoria de testemunho, algo que nos remete à

idéia de testemunho referencial com a qual trabalha Juan Luis Segundo. Aceitar tal

categoria significa renunciar à pretensão da consciência de constituir-se a si mesma e

também colocar a hermenêutica do testemunho na convergência de duas exegeses: a

de si mesmo e a dos sinais exteriores. Mas é preciso fazer a distinção entre

“testemunhar que...” e “dar testemunho a...”. O primeiro sentido não supõe

necessariamente o engajamento de quem testemunha. Todavia, no segundo sentido,

aquele que dá testemunho se engaja de tal forma no seu testemunho que este se

transforma na prova por excelência da sua convicção e quando esta prova custa a

própria vida, o testemunho muda de nome, transforma-se martírio.

Enfim, aquilo que somos depende dos testemunhos históricos que acontecem

por meio dos eventos que nos atingem profundamente. Por isso, a compreensão de si

diante do texto implica na renúncia à auto–constituição da consciência a partir de

uma temporalidade puramente imanente. Em outras palavras, a nossa existência é

moldada pelos eventos que nos atingem e isto faz com que dependamos de certos

eventos fundadores. Algo fundamental para o empreendimento hermenêutico da

teologia no estudo da religião.

373 Idem, ibidem, p.46.

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c. O discurso teológico como hermenêutica do texto.

A partir da contribuição da hermenêutica filosófica à hermenêutica da

linguagem religiosa, cabe-nos agora explicitar as conseqüências que tal reflexão traz

para o exercício da teologia no estudo da religião. Ao considerarmos a idéia da

teologia como hermenêutica teológica, somos movidos pela convicção de que não

existe discurso teológico sobre a religião que não seja uma tentativa de interpretá- la.

Além disso, a hermenêutica denuncia a ilusória pretensão de um saber

desinteressado, na medida em que todo processo interpretativo supõe um sistema

referencial que organiza uma determinada escala de valores, a partir da qual nos

debruçamos sobre uma determinada realidade. Este deslocamento do ser humano em

relação a toda falsa subjetividade central constitui-se num evento de verdade

fundamental de nosso tempo.374

É importante igualmente lembrar que, na história do Ocidente, o percurso da

teologia passa por uma idéia do trabalho teológico como comentário da Bíblia (a

alegoria própria dos chamados Padres da Igreja), para a noção de teologia–ciência

segundo o modelo de Aristóteles, algo típico da cultura medieval, uma ciência que

procede a partir de princípios necessários ou axiomas que a razão percebe

imediatamente; e finalmente podemos falar de uma teologia própria da reforma

protestante, que se baseia no comentário da Escritura contra os recursos dialéticos da

escolástica medieval. A teologia como rainha das ciências no período medieval tinha

por pressuposto a idéia de ciência como sendo a tentativa de explicação última da

ordem do universo.

No mundo moderno, no entanto, passamos de uma compreensão axiomática

para uma compreensão empírica e histórica da ciência, que se define pela

experimentação. O objeto da ciência não é mais uma verdade eterna, mas a história e

o conjunto de fenômenos. No que concerne especificamente à hermenêutica, depois

374 Claude GEFFRÉ. Como fazer teologia hoje, p.35.

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de séculos de história, a hermenêutica moderna, com Schleiermacher, deixa de ser

apenas um ramo restrito do saber teológico para configurar-se numa dimensão de

toda teologia.

Assim, o exercício da teologia torna-se um constante ato interpretativo, e

considerá- la desta maneira é levar em conta a historicidade da verdade. O caráter

hermenêutico da teologia está intimamente relacionado à sua dimensão

antropológica. Isto porque somente podemos compreender textos históricos, como é

o caso dos textos religiosos, se tivermos em conta as questões que movem a própria

existência humana, uma vez que qualquer afirmação sobre Deus somente é possível a

partir da interpretação da linguagem da fé por meio da qual se diz as diversas formas

da relação com Deus na história. Por exemplo, a afirmação de que Deus é criador

está entranhada de questões sobre a origem e o destino do ser humano, que indaga

sobre a sua condição de criatura ou sobre a sua finitude, ou ainda, o problema do mal

no mundo.

No contexto da experiência religiosa cristã, a conversação/diálogo entre o

sujeito interpretante e o texto supõe uma condição prévia: o ato de fé, vale dizer, um

prejulgamento favorável com relação ao texto que é recebido da tradição, tendo-o

como palavra de Deus. Algo realizado sempre a partir do chamado círculo

hermenêutico: a inter–relação entre a riqueza dos questionamentos que surgem da

realidade e aquela da tradição, relação capaz de produzir uma nova interpretação da

Escritura.

No círculo hermenêutico, pois, temos a busca por um equilíbrio entre a

experiência pessoal e a Tradição, a valorização da pessoa dentro de um processo de

relação interpessoal. Trata-se da apropriação e da reapropriação da tradição por parte

do indivíduo, ou seja, o enraizamento das manifestações particulares da fé numa

determinada tradição e a capacidade desta tradição de fornecer elementos para a

construção e reformulação da fé pessoal. Isto exige um constante ato hermenêutico.

A valorização da dimensão antropológica na teologia está em íntima relação

com a reviravolta lingüística que se processa na linguagem teológica. Isto porque o

discurso teológico sobre Deus a partir do ser humano tende a ser igualmente uma

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reflexão sobre a linguagem que fala humanamente de Deus. Não existe nenhuma

forma de saber sobre a realidade que subsista fora da linguagem e toda linguagem é

sempre uma interpretação.

Neste sentido, é possível afirmar que uma teologia com orientação

hermenêutica tornou-se paulatinamente o destino da razão teológica, sendo que hoje

esta nova orientação teológica significa tomar distância da metafísica clássica e das

filosofias do sujeito para considerar o ser humano a partir da dimensão lingüística

que o constitui. O percurso histórico da teologia no Ocidente nos mostra a atitude

hermenêutica é co-extensiva aos primórdios da teologia cristã. Mas, na medida em

que se toma distância (no século XX) de uma ontologia clássica e de uma filosofia do

sujeito ou da consciência, e considera-se o ser humano na sua dimensão lingüística,

podemos falar de uma “virada” na prática teológica. Assim, temos a razão teológica

como razão hermenêutica:

....compreender a teologia como hermenêutica é tomar a sério a historicidade de toda verdade, inclusive da verdade revelada, e tomar a sério também a historicidade do homem como sujeito interpretante(...) A teologia é sempre atividade hermenêutica, pelo menos no sentido em que ela é interpretação da significação atual do acontecimento Jesus Cristo a partir das diversas linguagens de fé suscitadas por ele, sem que nenhuma delas possa ser absolutizada, nem mesmo a do Novo Testamento.375

É justamente a presença da dimensão hermenêutica em toda esfera do saber

que possibilita estabelecer um diálogo entre a teologia e as outras formas de saber no

estudo da religião. Todavia, há de se considerar que a ciência hermenêutica é

diferente da noção de ciência aristotélica que possibilitou a reivindicação da suposta

neutralidade e objetividade na pesquisa científica, algo que marcou profundamente a

história da Cultura Ocidental. E a diferença está justamente em que hoje cada vez

mais se acentua o caráter interpretativo de todo conhecimento humano. Não existe

acesso imediato à realidade, pois todo acesso à realidade é feito por meio da

linguagem que já é necessariamente uma interpretação, a qual não se configura como

uma espécie de criação do nada. A interpretação é uma retomada, é uma apropriação

375 Idem, ibidem, p.18.

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daquilo que dizem os textos da nossa predileção e as pessoas que se nos apresentam

como testemunhos referenciais, para utilizar a linguagem de Juan Luis Segundo.

Colocar a interpretação como apropriação criativa de uma determinada

tradição é considerar o risco que está presente em todo ato interpretativo:

O risco da interpretação – nunca devemos esquecê-lo – é o risco da deformação, da distorção e do próprio erro. Mas quando se trata do cristianismo, é também o risco puro e simples da própria fé... (e) a fé só é fiel ao seu impulso e ao que lhe é dado crer se levar a uma interpretação criativa do cristianismo. O risco de, por falta de audácia e lucidez, só transmitir um passado morto não é menos grave do que o do erro.376

Dizer que interpretar não consiste somente no risco da deformação, da

distorção, do erro, mas também em arriscar-se numa nova existência, numa nova

maneira de ser, possibilitada pela interpretação do texto, da linguagem religiosa e da

tradição, é ressaltar a função ontofânica da linguagem: a manifestação do ser por

meio da linguagem. A linguagem, antes de ser palavra dirigida ao outro, é

manifestação do ser. Assim,

É porque já sou capaz de discernir a manifestação do ser em toda linguagem, particularmente na linguagem poética, que sou capaz de acolher a Palavra de Deus como manifestação “inaudita” do ser. A hermenêutica cristã terá por tarefa justamente procurar o sentido das palavras–chave da linguagem da revelação em função da palavra Deus.377

Desde a contribuição da reflexão hermenêutica de Paul Ricœur, consideramos

que o sentido do texto não está atrás do texto na consciência do autor, na

reconstrução do contexto no qual o texto foi tecido ou na primeira recepção do texto,

e tampouco se encontra no próprio texto. O sentido está diante do texto, na

possibilidade da fusão de horizontes que a apropriação interpretativa do texto nos

propicia: o horizonte do texto e o novo horizonte de compreensão.

Se o sentido não está antes e nem por baixo, mas diante do texto, então “...ler

não é decifrar um sentido antecedente, mas produzir um sentido, deixando-se

376 Idem, ibidem, p.5-6. 377 Idem, ibidem, p.46.

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governar pela cadeia de significações.”378 E na leitura de um texto, aquilo do que

nos apropriamos é na verdade uma proposição de mundo que está desdobrada,

desvelada, diante do texto. Por isso, como vimos, compreender passa a ser entendido

como compreender-se diante do texto. A apropriação do mundo do texto conduz a

novas produções de sentido na ordem da linguagem e na ordem da práxis. Por sua

vez, a hermenêutica centrada no mundo do texto conduz a reinterpretação da prática,

não se prendendo a uma interpretação textual. A apropriação do mundo do texto

aponta para uma nova possibilidade de existência, de fazer existir um mundo novo.

Assim, a tradição não se configura apenas e nem sobretudo como uma

transmissão de valores e conceitos válidos de uma vez por todas, mas principalmente

como produção de sentido. E a apropriação de uma tradição mediada pelo mundo do

texto leva a novas produções, tanto na ordem da linguagem como no nível da prática.

Nesta perspectiva, o Cristianismo é tradição na medida em que vive de uma origem

primeira que é dada, mas ele também é tradição porque esta origem somente pode ser

redita historicamente a partir de uma apropriação criativa da mesma, apropriação que

é sobretudo interpretação da tradição num novo contexto cultural, ou seja,

interpretação criativa da linguagem da fé e da existência cristã.

Neste processo interpretativo que caracteriza o trabalho teológico, o intelectus

fidei é algo diferente da razão especulativa que se move por meio do esquema

sujeito–objeto. A intelecção da fé implica no ato hermenêutico que se distingue de

um simples ato de conhecimento e se identifica com um modo de ser no qual a

compreensão do passado é indissociável da compreensão de si mesmo, sem contudo

cair numa espécie de psicologismo ou numa mera hermenêutica existencial.

Compreender é considerado menos como ação da subjetividade e muito mais como

inserção num processo de transmissão. Processo que na linguagem de Juan Luis

Segundo chama-se de aprender a aprender. Por isso,

A revelação atinge sua plenitude, seu sentido e sua atualidade somente na fé que a acolhe(...) A fé, em seu aspecto cognitivo, é sempre conhecimento interpretativo marcado pelas condições históricas de uma época. E a teologia, enquanto discurso interpretativo, não é somente a expressão diferente de um conteúdo de fé sempre idêntico,

378 Idem, ibidem, p.37.

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que escaparia à historicidade. Ela é também a interpretação atualizante do próprio conteúdo da fé.379

Isto faz com que na revelação a palavra de Deus não seja algo estranho ao ser

humano, uma vez que a revelação deve sempre aludir a uma experiência humana.

Deus revela uma verdade que deve estar a serviço dos problemas históricos e de sua

solução. A fé pressupõe, pois, um encontro histórico com Deus que revela aquilo que

livremente pode ser acolhido, o que supõe uma busca humana por sentido na vida e

igualmente presume a doação ao outro no amor. No caso particular do Cristianismo,

a fé cristã diz que esta busca humana por sentido se satisfaz no encontro com o

Cristo, no reconhecimento dos valores que se encarnam na pessoa de Jesus de

Nazaré.

Desde o ponto de vista hermenêutico, os textos bíblicos são revelação na

medida em que desdobram diante de nós a possibilidade de um ser novo, porém não

porque foram escritos sob o ditado de Deus. Um ser novo a partir do qual podemos

nos compreender, podemos decifrar a vida. Por isso, a apropriação do texto implica

uma nova possibilidade de existência associada à vontade de fazer existir um novo

mundo. Neste sentido, não há revelação sem conversão e nem sem um novo

comportamento ético.

A apropriação do texto é igualmente a possibilidade de um novo discurso. E

todo discurso é em si mesmo algo provisório, relativo, que não se confunde com um

saber constituído, acabado, imutável, mas linguagem interpretativa, sempre relativa à

perspectiva que o produziu. E esta interpretação é possível graças à alteridade do

texto, à distância que possibilita novos sentidos desde o nosso presente de leitor.

Todavia, no caso concreto do trabalho teológico, “o teólogo recebe o texto de uma

comunidade, a Igreja. E é porque esta comunidade está em continuidade com a

comunidade primitiva, que produziu esse texto, que ele não pode fazê-lo dizer

qualquer coisa.”380 Esta visão da teologia suscitou diversas críticas, a saber: a

teologia hermenêutica nada mais seria que uma teologia da palavra, preocupada

somente em propor uma nova interpretação teórica do Cristianismo, deixando de

379 Idem, ibidem, p.18. 380 Idem, ibidem, p.23.

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lado a prática histórica dos crentes e da Igreja; a teologia tomaria a hermenêutica

somente como método de leitura de texto; a hermenêutica no trabalho teológico seria

expressão do pensamento metafísico e de técnica de leitura.

Estas críticas talvez digam mais respeito a uma atitude dogmática na teologia

que apresenta as verdades da fé de maneira autoritária, tendo por garantia unicamente

o magistério da Igreja. Para esta maneira de olhar a realidade, o ponto de partida para

a teologia seria o ensinamento atual do magistério, sendo que a Escritura apareceria

como prova daquilo que já estava estabelecido pelo magistério. Em outras palavras,

uma atitude dogmática busca nas Escrituras e na tradição a legitimação de uma

decisão já tomada. Por isso, é igualmente tarefa da hermenêutica discernir a

experiência histórica que fundamenta as formulações teológicas que transformam-se

em definições dogmáticas .381

A teologia como hermenêutica no estudo da religião toma a sério a

historicidade da verdade, como também a historicidade do intérprete da mensagem

cristã que busca atualizá- la para a sua realidade, o que faz da teologia um fenômeno

de reescritura a partir de escrituras anteriores. Neste processo temos a compreensão

do passado e a atualização criativa direcionada para o futuro, perpassando a

compreensão de si no presente.

A teologia como hermenêutica é diferente da chamada teologia positiva, que

privilegia a pesquisa histórica dos dados da fé e é distinta também da teologia

especulativa, que enfatiza a explicação radical dos dados da fé. A teologia como

hermenêutica procede a uma releitura dos “objetos textuais” procurando decifrá- los

para hoje, e a partir desta nova leitura procede a uma nova escritura. A teologia

hermenêutica é interpretação da palavra de Deus e das experiências históricas, o que

faz da teologia um discurso necessariamente plural. Este pluralismo na teologia e

mesmo na confissão de fé não é uma exigência dos tempos modernos, mas sim da

identidade hermenêutica do discurso teológico.

381 Idem. Crer e interpretar, p.50.

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O empreendimento hermenêutico da teologia não significa, pois, o fim do

dogma, mas sim o fato de se tomar como ponto de partida o engajamento na leitura

criativa dos textos da tradição, em sintonia com a apreensão da realidade que por sua

vez gera novos conceitos. No empreendimento hermenêutico não se renuncia a toda

verdade, mas se considera sempre a posse relativa da verdade no plano humano, a

qual aponta para uma verdade inacessível inerente ao mistério de Deus.

Se o erro do historicismo foi identificar a verdade do Cristianismo com a

reconstrução dos fatos históricos, o erro do racionalismo teológico foi a ruptura entre

os enunciados dogmáticos e os fundamentos escriturísticos e históricos. A concepção

metafísica da verdade e a concepção de verdade do historicismo são herdeiras de

uma mesma problemática de fundo: a idéia de correspondência, de adequação entre

sujeito e objeto, a partir de uma relação imediata na origem identificada com a

plenitude do ser ou com um fato histórico.382 Por isso, não é inútil lembrar que todo

relato histórico é dito no seio da história e como interpretação dessa história.

O trabalho hermenêutico na teologia significa, pois, o esforço constante para

tornar cada vez mais audível e inteligível a linguagem da fé religiosa. Lembrando

que a verdade na linguagem teológica é da ordem do testemunho.

A linguagem teológica pode ser especulativa, mas nem sempre por isso deixa de ser linguagem de engajamento, linguagem auto–implicativa. Ela depende do testemunho, uma vez que não se refere a verdades verificáveis e que o sujeito crente está totalmente implicado em seu ato de enunciação. Assim, a verdade invocada pelo teólogo é uma verdade celebrada, confessada.383

A linguagem teológica supõe uma verdade que é fundamentalmente histórica,

recebida por via testemunhal e o testemunho no exercício da teologia supõe sempre

distância e interpretação. Portanto, não há acesso imediato à verdade, uma vez que a

verdade dos enunciados da fé somente é atingida pela linguagem teológica numa

perspectiva histórica. A verdade cristã para a linguagem teológica é sempre um

“devir” entregue ao risco da história e da liberdade criativa do crente, sob a moção

do Espírito (Jo 14,26).

382 Idem, ibidem, p.75. 383 Idem, ibidem, p.82.

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Um pressuposto fundamental neste debate hermenêutico que envolve o estudo

da religião é o fato de que o testemunho da comunidade primitiva tornou-se um

texto. Por isso, podemos dizer que a teologia não é somente uma reflexão sobre a fé

e o seu conteúdo, mas um ato interpretativo que interfere no próprio conteúdo da fé.

Desde a contribuição da hermenêutica do texto, conforme nos apresenta Paul

Ricœur, é possível dizer que a Bíblia como objeto escritural imediato da teologia não

é um evento histórico bruto. Na verdade, a Escritura é um ato de interpretação, e a

distância que nos separa dos textos bíblicos é a possibilidade de a teologia se

configurar como um ato de reinterpretação da existência humana por meio da

linguagem religiosa. E neste empreendimento hermenêutico a teologia encontra nos

textos da Escritura, na tradição teológica e no conteúdo da nossa experiência

histórica hoje, critérios fundamentais para avaliar a pertinência da atual interpretação

da mensagem cristã.

Esta parte do nosso trabalho caracterizou-se se pela busca de uma

fundamentação filosófica para a interpretação teológica da linguagem da fé e da

existência cristã. O nosso objetivo foi o de refletir sobre os caminhos abertos ao

estudo teológico da religião pela revitalização do empreendimento hermenêutico a

partir da contribuição de Paul Ricœur, notadamente por meio da sua teoria da

linguagem, tendo em conta que o desenvolvimento da reflexão deste filósofo francês

nos conduz de uma teoria do símbolo e a uma teoria da linguagem. 384 Não era nossa

intenção realizar um estudo aprofundado da obra de Ricœur, pois do contrário nos

desviaríamos do propósito de nossa pesquisa.385

Por isso, da filosofia ricoeuriana, tomamos apenas alguns aspectos que

julgamos importantes para a nossa reflexão sobre a dimensão hermenêutica da

teologia no estudo da religião, sobretudo a noção de texto que foi considerada como

um paradigma apropriado ao objeto das ciências humanas, sendo a metodologia da

384 Loreta DORNISH. I sistemi simbolici, p.9. 385 Na língua portuguesa, encontramos um estudo aprofundado sobre o pensamento de Ricœur, com uma vasta citação bibliográfica, na seguinte obra de José Manuel Morgado HELENO: “Hermenêutica e ontologia em Paul Ricœur”.

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interpretação de textos tida como um paradigma geral no contexto das ciências

humanas.386 Isto nos permitiu considerar as Ciências Humanas como ciências

hermenêuticas, uma vez que o objeto de estudo de tais ciências é semelhante à

interpretação de um texto. Desta maneira, ser ciência hermenêutica possibilita o

diálogo entre a teologia e as ciências humanas no estudo da religião. Além disso, se o

caráter hermenêutico nos afasta de uma postura dogmática, a noção de “mundo do

texto” nos distancia de uma interpretação subjetivista da realidade.

O percurso que realizamos até o momento, na tentativa de elucidar o papel da

teologia no estudo da religião, nos permitiu mostrar a relevância da orientação

antropológica na teologia e a importância da hermenêutica teológica para que um

discurso teológico sobre a religião tenha validade pública e pertinência acadêmica.

Todavia, como continuidade desta nossa reflexão, resta-nos exercer de maneira mais

explícita o que vem se delineado ao longo deste trabalho com o auxílio de alguns

autores: a apropriação criativa dos textos e das idéias de nossa predileção, por meio

de um ato hermenêutico e a partir de questões que nos habitam.

386 Paul RICŒUR. Du texte à l’action, p.183.

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C. CONCLUSÃO... O ESTUDO DA RELIGIÃO: UMA NOVA MANEIRA DE FAZER TEOLOGIA.

1. PREÂMBULO.

A etimologia do termo usado como primeiro dos subtítulos desta nossa última

parte nos diz que as palavras utilizadas neste momento devem preceder o que de

definitivo será dito posteriormente, e que no contexto do nosso trabalho servirá

paradoxalmente também de conclusão de nossa pesquisa. Contudo, o paradoxo

anunciado não diz respeito somente à não existência de uma conclusão formal após

esta parte que se anuncia como última. A aparente contradição inerente ao paradoxo,

pelo menos como consta na raiz deste termo, diz respeito sobretudo ao deslocamento

que nos tirou do lugar no qual nos encontrávamos inicialmente, a saber, a reflexão

epistemológica em torno do diálogo entre a teologia e as chamadas Ciências da

Religião, e nos conduziu em direção ao empreendimento hermenêutico da teologia

no estudo da religião.

O deslocamento visualizado na contradição aparente pode ocultar o motivo

desta mudança de lugar que colocou a nossa pesquisa no espaço da reflexão sobre o

empreendimento hermenêutico da teologia na reinterpretação da fé e da existência

cristã. Ocultamento a ser superado pela explicitação daquilo que nos moveu de uma

perspectiva a outra e das consequências deste deslocamento para a nossa reflexão.

Estas são observações preliminares, como o próprio subtítulo indica, mas que devido

à sua importância fazem parte desta conclusão, na medida em que esta é por elas

delimitada.

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A trama da composição deste nosso texto387 conclusivo passará pela urdidura

da reavaliação epistemológica do conceito de ciência, da revitalização do

empreendimento hermenêutico e do referencial teórico fornecido por Schleiermacher

e Juan Luis Segundo. E, para sermos coerentes com a nossa reflexão, o que será dito

após este preâmbulo não é definitivo e nem último, e sim um texto aberto à

interpretação e ao olhar crítico de quem o lê.

a. A reavaliação epistemológica.

Não obstante o nosso interesse pela reflexão em torno da hermenêutica, a

passagem que fizemos em direção ao empreendimento hermenêutico da teologia foi

motivado inicialmente pelas revisões em andamento que atingem o próprio conceito

de ciência, mais precisamente a reavaliação epistemológica da mediação empírica,

do dogma da objetividade científica e da pressuposta neutralidade do pesquisador.

Dito de forma interrogativa, a mediação empírica, a objetividade e a

neutralidade são características centrais do saber científico? Elas são possíveis, na

radicalização inicialmente proposta? Como sabemos, a suspeita que se abate sobre a

centralidade destas características e a sua suposta radicalização está associada à

crescente relevância concedida aos aspectos hermenêuticos da pesquisa. A

importância dos interesses e objetivos existenciais assume cada vez mais um papel

preponderante na pesquisa científica quando esta não é mais considerada como mera

reconstrução do estado bruto de coisas, mas sim como reconstrução interpretativa da

realidade. A ciência não pode, pois, desconsiderar o postulado hermenêutico.

Por isso, a ciência há de ser vista como uma forma de aproximação da

realidade que se traduz num tipo de conhecimento sistemático e coerente, capaz de

explicitar seus pressupostos, controlar e justificar seus procedimentos, contemplar os 387 Texto e tecido são palavras que possuem a mesma raiz na língua latina. Um tecido é composto pelo entrelaçamento entre os fios da urdidura e os da trama. A urdidura é o conjunto de fios disposto no tear paralelamente ao seu comprimento, por entre os quais passam no sentido transversal os fios da trama. É a partir desta metáfora do texto que falamos da textura de um texto.

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aspectos explicativos e empíricos, sem contudo prescindir da dimensão

hermenêutica. Isto porque a pesquisa científica vai além da reconstrução do estado

bruto das coisas, ou seja, de uma mera atitude classificatória que não considera a

intervenção do sujeito no ato do conhecimento.

A ciência é um tipo de conhecimento que não se articula só em torno de uma

realidade empiricamente passível de comprovação para que qualquer afirmação tenha

valor de verdade no espaço público. A ciência se estrutura também a partir de um

sistema de referências que permite articular uma escala de valores e que inicialmente

não possui uma comprovação empírica. Aderir a uma escola ou tradição científica é,

a princípio, uma questão de afeto, radicada numa estrutura fiducial.

A ciência constitui-se, pois, num ato de interpretação da realidade ao qual

está associado um sistema referencial elaborado a partir de jogos ideológicos,

conflitos de interesses, crenças e convicções pessoais, objetivos formais e

existenciais, bem como desde condicionamentos históricos do método empregado no

processo de produção científica. Este sistema referencial não está voltado somente

para verdades formais, mas, sobretudo, para afetos construídos na relação com

princípios herdados, uma vez que ele se estrutura a partir de informações não

demonstradas empiricamente que tomamos por válidas e que nos chegam por via

testemunhal, ou seja, por pessoas nas quais temos fé, no sentido antropológico do

termo.

O deslocamento que nos conduziu ao espaço da reflexão acerca da

hermenêutica teológica supõe o debate epistemológico que caracteriza o diálogo

entre a teologia e as Ciências da Religião, embora este debate não tenha sido

devidamente aprofundado no contexto desta pesquisa.

Entretanto, da discussão epistemológica inicial sobre a cientificidade ou não

da teologia, assumimos a idéia de que a teologia é uma forma de saber que não se

enquadra nos moldes das ciências empírico-formais, muito embora tenha procurado

sê-lo durante muito tempo, como nos mostra a história do desenvolvimento da

teologia na Cultura Ocidental. E não raramente a teologia no seu intuito de ser

ciência, moderna, abandonou a especificidade de seu discurso que se fundamenta

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muito mais no narrativo, no simbólico e no poético, sem que isto signifique o

abandono da idoneidade metodológica que o estudo acadêmico exige.

b. O empreendimento hermenêutico.

A revisão interna da ciência de cunho mais epistemológico, na qual se destaca

a importância da tarefa hermenêutica, nos fez postular a centralidade do

empreendimento hermenêutico da teologia na reflexão sobre experiência religiosa e

consequentemente sobre a religião, cujo estudo acadêmico exige um complexo

processo interpretativo que está além da mediação empírica, da objetividade e da

neutralidade, entendidos como referenciais absolutos.

No contexto de nossa pesquisa, o empreendimento hermenêutico surge como

o “espaço” de diálogo entre a teologia e as ciências humanas da religião, todas

fundamentadas num sistema referencial que articula um sistema de valores. Quer seja

o discurso científico, o filosófico ou o teológico, estamos sempre diante de uma

atitude interpretativa, pois, qualquer que seja o discurso, temos sempre a

interpretação de um evento ou de uma realidade historicamente situada e inacabada.

Afinal, como nos ensina a sabedoria grega, ao discorrer sobre alguma coisa, um

discurso diz sempre outra coisa, interpreta. A necessidade do empreendimento

hermenêutico no trabalho acadêmico justifica, a nosso ver, o deslocamento que nos

conduziu de uma discussão de cunho mais epistemológico a uma reflexão centrada

no papel do empreendimento hermenêutico na teologia.

Ao assumir a tarefa de reinterpretação e de contextualização da sua herança

testemunhal, a teologia ultrapassa o nível da mera descrição das características

centrais da linguagem religiosa e coloca-se no nível da descoberta do potencial de

sentido de vida que esta mesma linguagem possui, ao mesmo tempo em que supõe a

experiência religiosa como experiência fontal na elaboração de seu discurso. Tomar a

experiência religiosa como ponto de partida da elaboração do discurso teológico é a

maneira atual de entender a noção de co-naturalidade entre a teologia e a religião,

idéia esta contrária à concepção do estudo teológico sobre a religião como sendo o

único estudo possível ou, ao menos, o mais importante. A religião não é propriedade

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exclusiva do discurso teológico, mas esta não-exclusividade não significa a exclusão

da teologia do estudo acadêmico ou a total estranheza entre a teologia e a religião.

O postulado hermenêutico no trabalho teológico não significa, pois, o

distanciamento do objetivo de nossa pesquisa. Pelo contrário, a centralidade

concedida à hermenêutica nos possibilita melhor compreender a contribuição da

teologia cristã no estudo da religião como interpretação da experiência religiosa

desde a condição humana, tendo em conta a dimensão transcendente da existência

humana e na certeza de que a linguagem religiosa não está somente nos dogmas mas

também, e talvez sobretudo, nas experiências significativas que fazemos no cotidiano

de nossa existência.

Trata-se de considerar a experiência religiosa e a religião desde o horizonte

da identidade do ser humano, algo preconizado tanto por Schleiermacher como por

Juan Luis Segundo, o que se constitui na terceira urdidura anunciada.

c. O referencial teórico.

A boa compreensão da contribuição do projeto teológico de Schleiermacher e

de Juan Luis Segundo para a finalização da construção do nosso discurso teológico

sobre a religião requer uma observação inicial no que diz respeito ao uso do termo

religião. Como vimos anteriormente, para Schleiermacher este termo se refere ao

sentimento da relação entre o ser humano e o Infinito, ou Deus para tradição judaico–

cristã. Em Juan Luis Segundo, o vocábulo religião diz respeito aos meios

(ideológicos) que possibilitam a concretização da fé religiosa, isto é, da experiência

entre Deus e o ser humano.

Neste sentido, temos uma equivalência entre religião (Schleiermacher) e fé

religiosa (Juan Luis Segundo), bem como entre religiões positivas e religião ou

religiões. O que Schleiermacher chama de religião e religiões positivas equivalem

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respectivamente ao que Juan Luis Segundo nomeia como fé religiosa e religiões (ou

no singular, religião).

De nossa parte, usamos a expressão experiência religiosa para nos

aproximarmos tanto do sentido atribuído à religião por Schleiermacher quanto da

noção de fé religiosa em Juan Luis Segundo. Por religião, entendemos a

institucionalização da experiência religiosa, algo que nos aproxima de Juan Luis

Segundo e da utilização da expressão religiões positivas em Schleiermacher.388

Uma vez de posse desta advertência gramatical, cabe-nos agora discorrer

sobre os pontos que consideramos mais importantes para a articulação deste terceiro

traço fundamental que nos ajuda a tecer este preâmbulo. Não se deve esperar aqui um

resumo do que foi exposto na apresentação dos dois projetos teológicos considerados

neste trabalho, mas apenas a apropriação daqueles elementos que julgamos essenciais

para a construção de um discurso teológico sobre a religião.

O esforço de Schleiermacher em seu discurso teológico sobre a religião está

em repensar a piedade cristã dentro do novo marco cultural proporcionado pela

Ilustração e a ciência moderna. Uma religião que se assemelhasse à magia, que

buscasse seus fundamentos em intervenções extraordinárias de Deus, não teria mais

lugar numa cultura dita moderna. Algo semelhante ocorre com Juan Luis Segundo, o

que o motiva a realizar a construção de uma teologia para leigos adultos, um discurso

teológico que, ciente das ideologias que porventura perpassam as mais diversas

práticas religiosas, possa levar o religioso a um crescimento em humanidade a partir

do amadurecimento da fé religiosa que o habita e que ele expressa na sua existência,

na sua história.

A visão mágica e ilustrada da religião, a qual se referem Schleiermacher e

Juan Luis Segundo, permanece cativa de certas dicotomias: entre Infinito e finito,

entre transcendência e imanência, entre Criador e criatura, enfim entre o ser de Deus

388 Em todo caso, o leitor deve estar ciente de que o termo religião é concebido no desenvolvimento da história do Cristianismo no Ocidente que se fundamenta na ótica do falso–verdadeiro, sendo o Cristianismo a verdadeira religião em oposição às outras, as falsas. Não é esta, no entanto, a nossa perspectiva.

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e as suas manifestações. Em outras palavras, esta postura não consegue perceber ou

rejeita a ação de Deus na história e no todo da vida humana. A bem da verdade, tanto

os interlocutores de Schleiermacher quanto os de Juan Luis Segundo, apesar da

distância secular que os separa, são igualmente vítimas de uma dicotomia

fundamental expressa na alternativa “ou Deus ou o ser humano”, ou ainda, a

oposição entre dois mundos, o teocêntrico e o antropocêntrico. Esta dicotomia traz

como consequência o querer construir um mundo sem Deus ou conceber um Deus

sem mundo.

A superação desta alternativa, que tantos malefícios trouxe à história da

Cultura Ocidental e que marcou de forma negativa o discurso religioso e a teologia,

encontra sua superação no caminho que nos conduz à percepção da experiência

religiosa, seja como sentimento de dependência com relação ao Infinito que move

nossos afetos seja como desdobramento de uma fé que podemos chamar de

antropológica.

Em outras palavras, fazer da fé religiosa um desdobramento da fé

antropológica é a tentativa de mostrar a humanidade e a razoabilidade da experiência

religiosa, ao mesmo tempo em que se busca atribuir- lhe um caráter de

universalidade, ao menos enquanto possibilidade. Algo semelhante ocorre ao se

introduzir a religião na esfera da intuição e do sentimento, ou seja, conceber a

religião como parte integrante de nossa estrutura antropológica e que como tal está

ao alcance de todos. A religião não é um estado passageiro, pretérito da cultura

humana, mas realidade perene no horizonte de identidade do ser humano, sendo a

experiência religiosa o sentimento de ter todos os afetos vinculados a Deus.

Esta maneira de entender a relação entre Deus e o ser humano, entre o Infinito

e o finito, aponta para o ser humano como uma unidade na pluralidade de suas

vivências, uma vez que é a pessoa como um todo que é habitada por este sentimento.

A religião não é, pois, um setor da vida humana, mas a vida como um todo. Neste

sentido, hoje, não devemos entender a vida espiritual em oposição a uma vida que

não seja espiritual, ou ainda, que a prática religiosa abarque apenas um setor da vida

humana. Ao estudar a religião, a teologia deve ter isto em conta para não fragmentar

a vida humana como frequentemente o faz o pensamento moderno.

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Não se trata de defender somente o valor da experiência religiosa frente às

ameaças da modernidade, mas igualmente promover uma compreensão mais

abrangente do ser humano, que inclua a relação com o Sagrado. Uma relação que não

se diz totalmente em termos empíricos (sociológicos, antropológicos,

psicológicos,...) e tampouco se esgota em conceitos doutrinais (teológicos).

A atitude de Schleiermacher e de Juan Luis Segundo nos alerta para o perigo

de se conceber a experiência religiosa fora da relação com o Transcendente. Esta

relação não pode ficar à margem do diálogo com um tipo de mentalidade edificada a

partir de uma estrutura positivista que possui uma visão moderna sobre o ser humano

e lhe nega a dimensão transcendente. Uma visão redutora que olha a experiência

religiosa somente numa perspectiva horizontal, apenas como atividade cultural

imanente à história e propriedade do ser humano, e portanto esgotável nas análises

sociais, psicológicas, filosóficas que porventura possam ser realizadas.

Entretanto, ao contrário do que afirma o pensamento moderno ilustrado,

consideramos a experiência religiosa como sendo inerente à experiência humana, isto

é, a experiência humana de Deus não é de todo estranha ao ser humano, mesmo que

esta relação comporte algo de novo, de inaudito. Em suma, ter fé é uma atitude

humana. Crer é humano.

A noção de fé antropológica e a sua relação com a fé religiosa nos ajudam

também a entender a não-oposição entre a atitude do crente e a do não-crente, uma

vez que toda ciência supõe uma estrutura de valores que é anterior à analise científica

e que nos ajuda a interpretar a realidade. No trabalho científico, também partimos de

uma imagem de mundo (material e intelectual) já formada por aqueles que nos

precederam, isto é, a ciência age de maneira apriorística na escolha de seu objeto em

meio a um grande número de objetos possíveis. Não podemos nos lançar em todas as

direções possíveis, mas somente naquela que nos permite o nosso objeto de estudo, o

que faz de toda conquista também uma renúncia. E apriorístico não significa

irracional ou não-razoável, mas apenas que na vida aceitamos determinados fatores

ou valores sem comprovação empírica imediata. Esta aceitação é mediada por

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aqueles que encarnam determinados valores e com os quais estabelecemos uma

estrutura fiducial.

A importância do uso da terminologia fé antropológica para o nosso discurso

teológico passa também pelo deslocamento de inúmeras discussões em torno da idéia

de ciência para longe da alternativa crente ou incrédulo. A linha divisória entre os

seres humanos não está em ter ou não fé, na acepção antropológica deste termo, mas

na escala de valores que escolhemos para dar sentido à nossa existência. Além disso,

a fé antropológica possui uma dimensão social, um não-fechamento do ser humano

sobre si mesmo, ao mesmo tempo em que nos introduz no seio de uma tradição e

aponta para a abertura ao outro, para a relação com os testemunhos referenciais.

Esta abertura ao outro, vista como dimensão antropológica, é o fundamento

da abertura que possibilita a relação com o Sagrado, aquele que a fé cristã nomeia

Deus. Algo pressuposto por Schleiermacher na sua noção de religião que supõe o ser

humano como um ser–em–relação, com o Infinito, com o Criador, com Deus, relação

que diz respeito ao todo da existência humana. A experiência religiosa não encontra

lugar no isolamento, uma vez que a consciência de si ou a identidade que ela

proporciona está intimamente ligada à relação com o mundo, com os outros e com a

tradição da qual ela emana.

É desde esta dimensão antropológica da abertura ao outro que

compreendemos a não neutralidade do pesquisador, uma vez que toda pesquisa está

inserida numa tradição que orienta o olhar investigativo e limita a maneira como se

vê e interpreta a realidade. No que diz respeito ao estudo acadêmico da religião, a

perspectiva do religioso não aponta peremptoriamente para o rigor ou não-rigor

metodológico, mas apenas diz o lugar desde onde se interpreta a religião. Tanto o

olhar do religioso como do ateu possuem em sua estrutura a abertura ao outro que

motiva a adesão a uma escala de valores e por conseguinte a inserção em uma

determinada tradição. Esta inserção ou adesão é um ato humano que a princípio

escapa a uma comprovação empírico–formal. Por isso, pertença a uma confissão

religiosa e distanciamento da mesma no estudo da religião são dois pólos que se

encontram numa relação e não necessariamente em oposição.

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Ao se transferir a discussão sobre a fé religiosa para o âmbito da

antropologia, mais precisamente para o contexto de uma experiência universal que

concerne a crentes e a ateus, abre-se uma perspectiva diferente no diálogo entre fé e

ciência. A ação da ciência passa a ser vista como um empreendimento historicamente

condicionado, ou seja, determinado por uma decisão prévia que a sustenta de

maneira não-científica. Na ciência empírico–formal, o uso de métodos e de técnicas

não é uma atitude neutra, muito pelo contrário, tal uso visa a realização de

determinados valores que se encarnam em pessoas nas quais confiamos, ou seja, em

testemunhos referenciais que nos dizem que determinados valores valem a pena ser

vividos ou levados a sério.

Por isso, algumas das críticas feitas à teologia, na tentativa de desqualificá- la

cientificamente, podem igualmente ser aplicadas às ciências empírico–formais,

como, por exemplo, o fato de tais ciências conterem premissas que de antemão não

podem ser comprovadas empiricamente. E mais, estas premissas são aceitas porque

atingem a expectativa do observador e também porque gozam de credibilidade

aqueles que as apresentam como válidas e verdadeiras. À semelhança da teologia, as

ciências empíricas ou modernas se constroem partir de um sistema referencial que

lhes permite estruturar uma escala de valores que orientam a pesquisa cient ífica.

A valorização da dimensão antropológica na experiência religiosa expressa o

otimismo antropológico que caracteriza o nosso discurso teológico, enraizado numa

tradição contrastante com uma visão teológica, que desde Santo Agostinho tende a

definir o ser humano a partir da leitura do terceiro capítulo do livro do Gênesis, isto

é, do relato da queda de Adão e Eva.389 E é justamente esta experiência religiosa que

valoriza a experiência humana de Deus que se constitui no objeto da teologia.

O ponto de partida da teologia é, portanto, o dado positivo da relação entre o

Infinito e o finito, entre Deus e o ser humano. Ou ainda, a experiência de homens e

389 Hoje, entre muitos especialistas, existe a convicção de que a moral ocidental é devedora da moral cristã, e em particular das reflexões de Santo Agostinho, que fez uma síntese do pensamento patrístico, deixando-a como herança para a reflexão teológica no Ocidente. A leitura do livro do Gênesis realizada por Agostinho pressupõe uma antropologia filosófica com base no neoplatonismo, ou seja, a partir de uma nítida distinção entre corpo e alma, na qual a alma (espiritual, incorporal) é superior ao corpo, tido frequentemente como fonte de pecado.

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mulheres que vivem a aventura humana da relação com o Sagrado e que dão diversas

interpretações desta experiência, ao mesmo tempo em que a corporificam em

distintas práticas e instituições. Não é Deus em si mesmo o objeto pelo qual deve

discorrer o discurso teológico, mas sim toda e qualquer realidade humana

significativa que é vista à luz de Deus.

A prioridade concedida à dimensão antropológica na tarefa teológica faz da

teologia uma antropologia teológica que valoriza o ser humano como criatura e filho

de Deus. E a partir de questões advindas da realidade, do cotidiano da vida humana,

o discurso teológico aponta para a valorização da história humana como lugar da

revelação divina. Neste sentido, a revelação é vista como relação entre Deus e o ser

humano, a qual não se restringe aos conteúdos dogmáticos e se apresenta acima de

tudo como valor existencial buscado e construído historicamente.

À esta valorização do humano na experiência religiosa e consequentemente

no discurso teológico subjaz uma tensão expressa na busca por um equilíbrio salutar

entre a autonomia do sujeito (subjetividade) e a tradição. Esta tensão é dita por

Schleiermacher e Juan Luis Segundo na relativização do institucional a partir da

valorização da experiência pessoal e comunitária dos fiéis, bem como na idéia de que

a Igreja é sinal e não lugar de Salvação. Assumir esta postura significa admitir a

existência do caráter próprio de uma forma determinada de fé, como fenômeno

histórico, ou ainda, de outras formas de fé religiosa e de teologias válidas fora das

fronteiras do Cristianismo. Levada ao extremo, esta postura nos diz que não existe

nenhuma forma histórica de religião que seja definitiva, mesmo o Cristianismo pode

se tornar historicamente algo do passado.

Tomar a experiência religiosa como ponto de partida e objeto do discurso

teológico ou afirmar que a teologia é “filha da religião”, como o faz Schleiermacher,

significa dizer que a linguagem teológica não pode prescindir da experiência

religiosa sob o risco de perder a sua própria identidade. Como consequência desta

relação filial entre a teologia e a religião, temos que o discurso teológico acontece

sempre no contexto da rede simbólica de uma determinada tradição religiosa, de um

determinado grupo religioso, de uma determinada Igreja. A teologia é sempre

confessional e contextualizada, e portanto, quando o discurso teológico fala da

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verdade universal a ser alcançada, o faz de maneira relativa, historicamente situada.

Porém, dizer que a teologia é sempre confessional não significa necessariamente

afirmar que ela é cativa dos interesses da hierarquia de uma instituição religiosa

específica.

Além disso, a centralidade concedida à religião ou à fé religiosa na

elaboração do discurso teológico consiste na busca de uma linguagem própria para a

teologia, uma linguagem que não seja refém do discurso de outras formas de saber

que reivindicam para si o direito de poder interpretar corretamente a realidade,

inclusive a religião. A experiência humana de Deus ou do Infinito não pode estar

circunscrita ao que dela é afirmado pela linguagem científica.

Esta busca por uma linguagem teológica que tenha como ponto de partida o

antropológico supõe o distanciamento de uma postura dogmática que se fundamenta

em argumentos sobrenaturais a–históricos ou, como gosta de lembrar Juan Luis

Segundo, um discurso teológico que abandona os sinais dos tempos para fixar seu

olhar nos sinais dos céus.390 Uma postura que pode desembocar na aridez de uma

estrutura teológica que busca Deus antes do mundo e fora dele, fundamentada em

conceitos que pouco ou nada têm a ver com a experiência concreta, com o cotidiano

da vida humana.

Para Schleiermacher, a teologia ganha um sentido profundo quando colocada

a serviço da edificação da comunidade eclesial, algo que não se reduz ou não se

confunde com a hierarquia (autoridade) eclesial. Por exemplo, a exegese dos textos

bíblicos entregue a ela mesma deixa de ser teologia, embora conserve a sua

cientificidade no tocante ao estudo literário dos textos da Sagrada Escritura. Por isso,

a teologia no estudo da religião não deve ater-se somente à mera descrição da

experiência religiosa e a partir daí chegar a algumas conclusões científicas,

acadêmicas. A teologia deve acima de tudo traduzir a sua teoria na prática eclesial.

390 Alusão à advertência que Jesus faz a seus adversários que sabem interpretar os sinais atmosféricos naturais e se mostram incapazes de interpretar os sinais das conjunturas decisivas da história em andamento na pessoa do próprio Jesus. Os sinais dos céus ou vindo dos céus também podem ser entendidos como ações sobrenaturais (Mt 16,1-4).

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Mesmo no seu diálogo com as ciências que constituem o universo acadêmico,

a teologia não deve perder de vista esta perspectiva pastoral, uma vez que o discurso

teológico pode sair enriquecido na sua própria identidade, trazendo uma grande

riqueza para a sua dimensão eclesial. Isto porque as Ciências Humanas podem ajudar

a desmascarar as ideologias que estão presentes nos discursos teológicos e nas

práticas eclesiais, bem como ajudar a perceber os jogos de interesses que perpassam

as diversas práticas teológicas.

Além disso, é importante lembrar que o conteúdo da fé cristã é um processo

histórico cuja fonte é a vida e os ensinamentos de Jesus Cristo e que se desenvolve

na comunidade eclesial, sendo esta uma comunidade histórica. É a partir desta

historicidade eclesial que podemos considerar em termos acadêmicos o específico do

Cristianismo, sem contudo perder de vista a relação do ser humano com o Sagrado

ou o perigo da redução do ser humano às suas experiências históricas.

Esta relação entre o trabalho das Ciências Humanas e o trabalho teológico

ganha um novo relevo com o destaque concedido à tarefa hermenêutica nos projetos

teológicos de Schleiermacher e Juan Luis Segundo. Tanto o discurso teológico

quanto o discurso das Ciências Humanas são interpretações da realidade, e este ato

interpretativo possui uma base fiducial comum (dados transcendentes, testemunhos

referenciais, valores), além do que a atitude hermenêutica é um ato humano, uma

característica de toda atividade humana.

O que acabamos de falar sobre a aproximação entre a teologia e as Ciências

Humanas vale igualmente para o estudo da religião e portanto para a relação entre a

teologia e as Ciências da Religião. Isto porque a apropriação da tradição exige um

constante ato hermenêutico, a fim de que a vivência da fé religiosa e o discurso

teológico possam gerar novos aspectos que enriqueçam a tradição, ao mesmo tempo

em que esta possa fornecer elementos para a construção e a reformulação da fé

pessoal.

No caso específico do Cristianismo, o conhecimento da comunidade primitiva

se faz necessário porque ela é vista como momento originário da doutrina e da

comunidade eclesial, o que não significa dizer que a comunidade primitiva seja a

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constituição definitiva do Cristianismo. Conhecimento que se faz por meio de um

processo interpretativo dos textos originais à luz das questões postas hoje pela

vivência da fé cristã.

É, portanto, a partir destas três urdiduras que entrelaçaremos as tramas que

tecerão a textualidade do nosso discurso teológico. Para tanto, consideraremos como

pressuposto o caráter confessional, cristão, da teologia e seu sistema referencial, bem

como teremos a teologia cristã por uma antropologia teológica e igualmente por um

empreendimento hermenêutico.

2. A EXPERIÊNCIA CRISTÃ DE DEUS.

a. Mistagogia e teografia.

Por reiteradas vezes, ao longo de nossa reflexão, afirmamos ser a experiência

religiosa o princípio e fundamento da atividade teológica. Isto porque para a

Tradição cristã, ou ao menos parte dela, a teologia emana da experiência humana de

Deus e a ela sempre está referida. Neste momento, nos cabe dizer, de uma maneira

mais estruturada ou explícita, a nossa compreensão desta experiência, e o faremos a

partir da perspectiva de uma vivência religiosa que a Tradição cristã nomeia

mistagogia.391

Uma primeira atitude exigida no aprofundamento da compreensão da

experiência religiosa, desde a perspectiva da relação entre o ser humano e Deus, nos

afasta da perspectiva que vê esta relação como uma dimensão isolada da vida

humana ou como uma vivência interior em oposição a atitudes exteriores. Um dos

problemas subjacentes a esta concepção que isola a experiência religiosa das demais

391 O termo mistagogia significa literalmente iniciação aos mistérios. Na antiguidade cristã, este termo designava sobretudo a explicação dos ritos de iniciação da fé cristã, em particular o batismo e a eucaristia.

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experiências humanas ou a transforma numa oposição a elas é a ausência de uma

unidade antropológica, ausência que levada ao extremo acaba por transformar a

experiência religiosa num estado sublime, ao qual somente alguns privilegiados têm

acesso, ou numa vaidade alienante que a limite se transforma numa piedosa

banalidade. Por isso, é de suma importância ter a experiência religiosa como uma

relação que diz respeito à vida humana na sua unidade e na sua dimensão

transcendente.

A experiência religiosa tida como expressão do humano está ligada a uma

determinada tradição que fornece a linguagem por meio da qual o religioso diz a sua

experiência com Deus e a compreensão de si mesmo e do mundo de forma sensata, a

partir da escrita, de ritos e de símbolos, como textualidade da vida aberta à

interpretação. A linguagem materna da Tradição cristã fornece uma espécie de

gramática para que o cristão possa ler e interpretar o agir de Deus na existência

humana e a partir daí tecer um outro texto ou discurso, o da sua experiência de Deus.

Esta hermenêutica da existência cristã está alicerçada no otimismo antropológico

para quem o mundo, a história e a existência humana são o lugar onde o cristão pode

acolher a presença não visível, mas dizível de Deus.

Entretanto, as diversas experiências da presença de Deus são compreensíveis

graças ao movimento pelo qual Deus orienta, através do mistério de seu caminho, os

caminhos de todos aqueles que se deixam conduzir pelo seu Espírito. Em nossa

reflexão, utilizamos o termo mistagogia para definir o movimento por meio do qual o

cristão é conduzido pelas diversas manifestações de Deus na história e introduzido

no seu Mistério. Este movimento tem por pressuposto um dado antropológico

fundamental: a certeza de que Deus marca com a sua presença a vida de cada pessoa.

O nosso tempo e espaço “geo-gráficos” são transformados em tempo e espaço “teo-

gráficos”.

Esta experiência mística pode ser melhor compreendida a partir da

experiência humana da busca por orientação. Como sabemos, a palavra “oriente” é

oriunda da palavra latina “oriens”. Este termo corresponde a um dos quatro pontos

cardeais. Segundo a concepção geográfica corrente, o “Oriente” é o lugar onde o sol

se levanta e é a partir do sol que nós podemos nos orientar no tempo (o dia e a noite)

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e no espaço (norte, sul, leste e oeste). Assim, o “Oriente” é o ponto original de

orientação que torna possível a existência dos quatro pontos cardeais como pontos de

referência.

A tradição bíblica tem no salmo 138(139) um exemplo paradigmático desta

experiência da “geografia divina”. A presença de Deus ou a teografia como os pontos

cardeais da experiência humana, pode ser reconhecida “em cima”, “em baixo”, “à

direita” e “à esquerda” no espaço da experiência humana. O dia e a noite não

escapam desta presença divina. Deus está lá. Ele está presente mesmo no ponto mais

íntimo da criação: o ventre materno.

Contudo, se é verdade que Deus está em todo os lugares, mais verdadeiro

ainda é o fato de que nós não podemos fixá-lo em parte alguma. Aquele que para a

Tradição cristã funda e fundamenta a experiência religiosa é o “Deus sempre

maior”392, que está aquém e além de todo sentir, conhecer e nomear. Todavia, esta

irredutibilidade de Deus ao sentimento e ao conhecimento humanos não é um

empecilho para dizer Deus de forma discursiva e narrativa, por meio da força das

palavras.

Para o cristão os “pontos cardeais” são as diversas formas de presença (ou

ausência) de Deus que marcam o concreto de sua vida. A teografia surge, então,

como a possibilidade de o cristão se orientar na vida desde a presença de Deus, a

qual se faz perceptível nas marcas que são inscritas na afetividade humana e na

história em forma de eventos.

A experiência mistagógica de Deus nos diz, também, que as experiências

teográficas não podem ser compreendidas por elas mesmas. Elas são como as belas

partes de um vitral, que isoladas não dizem nada e, juntas, mas sem a luz do sol, não

podem ser vistas. O vitral permanece, então, incompreens ível. Assim, as numerosas

392 Esta expressão é o título de uma obra do teólogo de origem polonesa Erich Prizywara (1889-1972): “Deus semper maior. Theologie der Exerzitien”. Nesta obra o autor reflete sobre o texto dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola (1492-1556), fundador da ordem religiosa dos jesuítas. A tese fundamental de Prizywara repousa sobre a descontinuidade na semelhança entre Deus e o ser humano, entre o Criador e a criatura. Em espanhol ver E.Prizywara. Una teologia de los Ejercícios (I) Barcelona, Herder, 1993.

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experiências religiosas somente ganham um sentido profundo quando lidas no

interior de um processo mistagógico, pois, isoladas, estas experiências não têm

sentido e unidas, mas sem Deus, elas são incompreensíveis.

Nesta experiência mistagógica, Deus se revela como Aquele que habita por

completo o ser humano e este, por sua vez, reconhece que no centro desta

experiência está o Outro como seu princípio e fundamento. A mistagogia possibilita

ao cristão reconhecer os traços da presença de Deus, traçar a teografia, e também

dizer “Deus está aqui”.

A teografia é, pois, a possibilidade de se reconhecer a presença de Deus na

própria vida e na história, mas sabendo que este reconhecimento já é passado devido

à continua passagem de Deus em nossas vidas. Passagem que não deixa Deus ser

passado e que faz com que Ele esteja sempre para além de onde nós o procuramos e

encontramos. Deus está “aqui” e já não está mais; Deus já veio e ainda está por vir.

Deus é este Outro, que com a sua presença não cessa de estar ausente. Deus é

Mistério! É graças a esta marcha mistagógica indefinida que o ser humano se vê

introduzido no mistério do amor infinito de Deus.

b. O horizonte epigenético.

Desde esta perspectiva, nos é possível afirmar que no movimento

mistagógico, por meio das experiências teográficas, o cristão encontra a Deus para

continuar a buscá- lo. E isto graças a ação do Espírito Santo que sempre o renova e o

santifica na relação com o Cristo ressuscitado, o faz passar da ancianidade do

“homem velho” à novidade de Jesus Cristo (Ef 4,17-24). E isto a partir da fusão de

horizontes, o da existência humana com o horizonte da vida de Jesus, que surge

como o horizonte epigenético no qual o cristão é gerado ou do qual nasce. Assim,

para aqueles que acolhem a revelação de Deus em Jesus Cristo, o processo

mistagógico se transforma em processo de cristificação.

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Na linguagem materna da Tradição cristã, Jesus Cristo, na sua condição de

Ressuscitado, é dito o “Iniciador da fé” ou Archegós (Hb 12,2), não somente o

conteúdo do mistério no qual o cristão é iniciado e sim o mistagogo de seu próprio

mistério divino e humano. Ele, através dos mistérios de sua vida, é quem inicia o

cristão no movimento mistagógico que principia e fundamenta a experiência humana

de Deus, na qual os sentimentos humanos são conformados a Jesus Cristo, são

transfigurados no horizonte de sua vida e de sua história (Gl 4,19).

Esta cristificação da vida humana não corresponde a nenhum espiritualismo

que suponha a negação da humanidade que nos constitui ou a negação da nossa

condição de criatura diante da alternativa moderna “ou Deus ou o ser humano”.

Muito menos supõe qualquer tentativa de fuga do mundo e das vicissitudes da

história. Isto porque, para a mistagogia cristã, a vida de Jesus de Nazaré revela o

valor da condição humana como o lugar e maneira de se encontrar Deus e de se

encontrar nele.

Em Jesus Cristo, a Tradição cristã reconhece a possibilidade de o humano ser

o ponto de apoio para a escada do sonho de Jacó (Gn 28, 10-12), sonho de uma

ligação entre o céu e a terra, entre o sagrado e o profano, entre o divino e o humano,

e, porque não, entre a teologia e antropologia. Este é um dado antropológico

fundamental para o discurso teológico que discorre sobre a religião: a nossa condição

humana (finita) e a história são o lugar da manifestação de Deus, ou dito a mesma

coisa com a linguagem bíblica, “é a própria casa de Deus e a porta do céu” (Gn

28,17).

Conceber a experiência religiosa de Deus como uma teografia ritmada pela

mistagogia nos permite, em primeiro lugar, resgatar a dimensão transcendente da

existência humana das mãos de um humanismo moderno que tende a negá- la ou

confiná- la a esfera do privado, do irreal ou do fantasioso. Não menos importante

aparece a valorização da dimensão antropológica da experiência de Deus que o

movimento mistagógico propicia, uma vez que é na humanidade e na história que se

dá a relação com Deus. E de igual valor é a visão unitária do ser humano que a

experiência mistagógica exige, na medida em que se constitui num processo ou

movimento teologal que atinge o ser humano como um todo.

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A partir da mistagogia cristã, procuramos mostrar como a experiência

religiosa, desde o seio da tradição cristã, aparece como experiência fontal do discurso

teológico. É, pois, sobre o caminho traçado pelo movimento mistagógico e pontuado

pela experiência teográfica que discorre o discurso teológico, a partir de uma

linguagem fornecida pela tradição que permite que esta experiência seja percorrida

de forma discursiva. Neste sentido, o discurso da teologia funda ou renova a

experiência religiosa na medida em que a interpreta, mesmo ciente da

impossibilidade de as palavras esgotarem narrativamente a experiência humana de

Deus. O discurso teológico ajuda o cristão a nomear Deus na própria existência

humana quando busca conduzi- lo narrativamente até Aquele que é a Palavra eterna

de Deus: Jesus Cristo.

c. A alteridade do outro humano.

A linguagem religiosa, que encontra na mistagogia e na teografia um

instrumental linguístico para dizer a identidade da existência cristã, se esvaziaria

completamente se fosse transformada num modismo linguístico ou devoção de luxo a

se conformar ao gosto ou ao interesse de cada pessoa ou de determinados grupos.

Para a tradição cristã, o movimento mistagógico que significa no plano da fé a

relação com Deus é inseparável do movimento que nos orienta em direção ao outro

humano a partir do horizonte ético da responsabilidade pelo outro.

Um primeiro nível de definição de mística nos diz se tratar de um

conhecimento de Deus por experiência, uma definição fundamental para atingir um

outro nível que apresenta a mística como a experiência do mistério do outro. Nesta

compreensão de mística, a experiência não é uma teoria ou discurso sobre o outro,

mas aquilo que se percebe de modo imediato, antes de qualquer análise ou

formulação conceitual.

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A mística é um conhecimento por experiência e no centro desta experiência,

que é relação, está o outro, que na sua alteridade e diferença move o “eu” na direção

de uma aventura sem caminhos previamente planejados. Neste caminhar o outro

sujeito se impõe como epifania, como revelação.

Na fé cristã, este outro possui um perfil absoluto e misterioso que se desenha

nas situações concretas da existência humana, e que é nomeado como Deus. E a

relação com este Outro acontece no desejo e jamais em termos de necessidade ou

complementariedade.

Na mistagogia cristã, pois, o que define o antropológico não é a centralidade

do pronome “eu” mas a sua descentralização expressa no pronome acusativo “me”.

Descentralização que suscita a primeira palavra ética: eis-me aqui! Nesta palavra

ética, as necessidades materiais do outro e suas expectativas psicoafetivas são

entendidas como exigências éticas para mim. Esta deposição do eu nominativo

significa um deslocamento, uma mudança de sentido e direção, isto é, do outro para

mim, que é o movimento primeiro do desejo, ao de mim para o outro, que é o desejo

pelo outro convertido em responsabilidade.

Pensar teologicamente o outro no horizonte do movimento mistagógico é

reconhecer que o movimento que conduz o eu em direção ao outro é colocado em

marcha pela ação do Espírito Santo. Nesta experiência mistagógica, na qual o

antropocentrismo teológico é igualmente percebido como antropocentrismo

pneumático, o eu perde duplamente a sua soberania devido à ação do Espírito de

Deus e também porque o movimento que nos conduz ao sair de si mesmo é

comandado pelo rosto do outro. A expressão “eu saio de mim mesmo” deveria ser

entendida como “eu sou arrancado de mim mesmo pelo outro”. Neste sentido, ser

arrancado de mim mesmo é ser destituído do senhorio da própria ação, é ser escravo

do outro na minha liberdade.

Diferentemente do que preconiza determinada tradição na Cultura Ocidental,

o horizonte ético da responsabilidade pelo outro é o da não-satisfação das próprias

necessidades ou da privação de alguma coisa. O movimento em direção ao outro,

algo que manifesta o desejo de encarnação na vida do outro, significa, na verdade,

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olhar mais a pessoa do outro do que a mim mesmo, do que meu próprio interesse e

querer. Do contrário, o outro seria reduzido a objeto das minhas necessidades e das

minhas carências. Alcançar o outro num movimento de saída do eu é estar num lugar

diferente de mim mesmo. Uma vez que o outro não é um alter-ego subsumido no si

mesmo. Não há a volta a si mesmo como satisfação das próprias necessidades, pois

este retorno é sentido como acolhida do outro.

Dar-se é subordinar o sentido do dom, da entrega, da oferta de si mesmo, à

acolhida do outro. A palavra espírito foi entendida durante séculos como algo

imaterial, não corpóreo ou supra-sensível. Deus era compreendido segundo uma

forma intelectualista e consequentemente a vida espiritual e a vida divina foram

distanciadas do mundo sensível. Todavia, o termo espírito, na sua etimologia

hebraica, grega e latina, significa um dinamismo que penetra o corpo e, com ele, a

sensibilidade e a matéria. Espiritual não designa uma substância ou uma categoria,

mas o movimento original e originante da vida encarnada no corpo experimentado

como dado (criado) e feito para o dom. Vida que com toda justiça merece o adjetivo

de espiritual.

Ser espiritual é reconhecer e aceitar que a doação, a oferta de si mesmo é o

movimento original da vida espiritual, a qual vem a ser a maneira de viver a própria

vida como doação. A vida espiritual não é uma segunda vida a vir, mas esta vida

vivida no dinamismo da acolhida e do dom. Receber e dar a vida formam uma

unidade (Lc 9,24).

Todavia, é preciso considerar que este movimento mistagógico é vivido na

fragilidade da existência humana que pode não seguir o dinamismo espiritual e então

caminhar em direção ao egoísmo, à violência, à idolatria, etc. Entretanto, ser frágil

não é um defeito de fabricação (criação) a partir do qual seríamos obrigados a buscar

um estado de perfeição espiritual para além do humano, da vida, da história,

perfeição entendida no sentido latino como ser sem defeito, sem mácula, ou ainda,

não cometer nenhum erro. Perfeição, ligada à vida espiritual, deveria ser entendida

muito mais no sentido utilizado no grego neotestamentário, para o qual perfeição

(teleiosis) tem a ver com fim (telos), com ir até o fim, de amar até o fim, da vida e

das próprias possibilidades.

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E isto somente é possível quando o outro é percebido como meu semelhante.

Em outras palavras, diferença e alteridade não se confundem, o outro é outro antes de

ser diferente e somente o meu semelhante se manifesta como outro para mim. É o

que nos ensina a tradição judaico–cristã. No mito narrado no livro do Gênesis, a

exaltação primeira é diante da alteridade que é contemplada como semelhante: “Eis,

desta vez, ossos dos meus ossos, carne da minha carne” (Gn 2, 23a). E somente

então esta alteridade é contemplada como diferença, como sendo a outra: “Ela se

chamará humana, pois do humano foi tirada” (Gn 2,23b). Diferença que atravessa

não somente o nosso corpo, nos faz macho e fêmea, homem e mulher, mas

igualmente a nossa língua, a nossa maneira de nos dizermos a nós mesmos e dar

significado ao mundo no qual vivemos e fazemos história.

Esta maneira de entender a vida espiritual, desde o horizonte mistagógico e

da alteridade que nos constitui como seres humanos, nos parece útil para tomarmos

distância de um certo espiritualismo que dificulta a percepção da experiência

espiritual como experiência fontal da teologia. De posse, pois, da circularidade na

qual experiência religiosa ou espiritual fundamenta o discurso teológico e é por ele

renovada, daremos mais um passo em direção a explicitação deste horizonte

teológico, cuja base empírica é a linguagem da experiência espiritual e a experiência

desta linguagem espiritual.

3. TEOLOGIA: UM SABER RACIONAL E TEOLÓGICO.

a. A especificidade do discurso teológico.

Afirmar a racionalidade do saber teológico é postular, desde a razão, a

possibilidade do diálogo entre a teologia e as ciências humanas da religião. Todavia,

não se trata de reduzir a razão humana à sua dimensão instrumental do tipo técnico–

científica e sim de se abrir a um outro tipo de racionalidade, que preconiza a

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compatibilidade entre a razão e a experiência religiosa. Com isto, queremos dizer

também que a teologia não precisa ser um saber como os outros, não precisa reduzir

a sua linguagem à das ciências modernas, mas igualmente não precisa afirmar-se

como um saber em oposição a outras formas de saber.

Além disso a teologia, que é essencialmente pastoral na sua origem e na sua

finalidade, não pode no âmbito acadêmico restringir seu trabalho à necessidade

imediata de um grupo determinado ou, como diziam os gregos, a uma paróquia.393 A

teologia deve abrir-se ao diálogo com as ciências humanas que se dedicam ao estudo

da religião, sem contudo abandonar o caráter teológico que a caracteriza e a

experiência religiosa que a fundamenta. Neste diálogo, a teologia é chamada a

mostrar que a experiência religiosa é razoável na medida mesma em que tem e

produz sentido de e para a vida.

Assim, um dos desafios que se impõem hoje ao saber teológico no estudo da

religião é o de produzir um discurso acadêmico sem abandonar a sua especificidade

própria, que passa pela dimensão eclesial e pelo caráter confessional. Para tanto, a

teologia deve assumir para si mesma uma forma de saber que não se torne cativa da

racionalidade técnico–científica, mas que nem por isso seja irracional. Uma forma de

saber teológico que possa privilegiar o poético, a imaginação, a narratividade, o

símbolo, dimensões da razão humana que a moderna razão ocidental expulsou para

as trevas exteriores. Todavia, a razão moderna esquece que ela mesma é uma

fragmentação da razão humana, isto é, ela não é simplesmente “a” razão, ou ainda, a

razão moderna ocidental não tem toda a razão.

Como sabemos, esta constatação provocou uma enorme crise na Cultura

Ocidental: a não-absolutização de uma forma de razão que se julgava hegemônica,

única. Algo demonstrado por Nietzsche, ou melhor, mostrado pelo “louco

nietzscheano” que buscava Deus com uma lanterna na mão à luz do dia. Nietzsche,

como ninguém outro, cem anos após Kant, se debruçou sobre as consequências do

antropocentrismo para a Cultura Ocidental erigida sobre a égide do Cristianismo. E,

393 Do grego paroikía, significa literalmente a divisão territorial que está sob a jurisdição de um sacerdote.

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como vimos anteriormente, ele nos ajuda a entender a descentralização do ser

humano em relação à falsa centralidade da subjetividade. Esta descentralização,

aliada à denúncia do falso absoluto da ciência empírico–formal e a sua ilusória

pretensão ao saber desinteressado são dois fatos decisivos na história recente da

Cultura Ocidental.

E isto a tal ponto que a atitude do “louco nietzscheano” foi o prenúncio do

fim de uma era, de uma Civilização Ocidental alicerçada sobre os fundamentos de

uma razão instrumental que entrava em crise, e com ela toda uma cultura religiosa

que nela se espelhava. Crise esta que não deixou incólume uma maneira de fazer

teologia cujo discurso parecia perder sentido, já que a tentativa de estabelecer a

perfeita adequação entre o enunciado e a realidade sobre a qual o enunciado discorria

estava sob suspeita.

As consequências desta crise estão em curso e sem dúvida alguma atingem o

contexto universitário no qual a teologia procura afirmar-se como atividade

hermenêutica no seu diálogo com as Ciências Humanas em torno da religião. É no

contexto deste diálogo que queremos tecer a nossa contribuição para a elaboração do

discurso teológico a partir do entrelaçamento entre a dimensão antropológica e a

experiência religiosa, o que há de ser realizado desde a perspectiva da hermenêutica.

Para tanto, precisamos mostrar a especificidade deste discurso e de seu objeto de

pesquisa, o papel da confissão religiosa e da tradição na elaboração do discurso

teológico e em que sentido o estudo teológico da religião se constitui numa nova

maneira de fazer teologia.

Para um discurso teológico que se entende como antropologia teológica, que

desde o ponto de vista da mistagogia cristã está fundamentada num antropocentrismo

pneumático, a condição de criatura do ser humano não pode ser um obstáculo à

experiência religiosa, a presença de Deus não deve constituir-se numa ameaça à

liberdade humana e nem mesmo o ato de crer deve ser visto como uma piedosa

banalidade a ser superada com o progresso da ciência. Esta observação é relevante

sobretudo diante de afirmações que definem o estudo teológico da religião como

não-científico por não se ater aos critérios de cientificidade das chamadas ciências

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modernas, o que equivale dizer que o discurso teológico sobre a religião está do lado

do não real, do inexistente, da ficção, da mentira.

Por isso, a “teo–logia” como “antropo–logia” significa um discurso que

procura dizer a experiência humana de Deus a partir das experiências historicamente

situadas e dizê- lo de forma racional, mas não a partir da razão instrumental técnico–

científica. A teologia, ao empreender uma hermenêutica da linguagem religiosa e da

existência cristã que se manifesta por meio desta, o faz com o intuito de melhor

compreender o ser humano na sua relação com o Sagrado, isto é, o discurso teológico

supõe o ser humano com alguém que é constitutivamente religioso. E ao falar algo

sobre o ser humano, a teologia é capaz de dizer algo sobre Deus, e somente assim é

capaz de fazê- lo.

E mais, não devemos nos esquecer que a “questão Deus” é uma questão que

atinge as estruturas fundamentais do ser humano, o que para o cristão é inseparável

da história de Jesus de Nazaré. A fé religiosa é a possibilidade de o ser humano se

compreender e de habitar o mundo de forma profundamente humana. Daí a

importância de percebermos a fé religiosa como desdobramento da fé antropológica e

de sua estrutura fiducial. Esta é a maneira de a teologia superar a disritmia histórica

de seu discurso, provocada pela a impontualidade de teólogos que insistem em dizer

coisas que ninguém mais entende ou fazer perguntas que não dizem mais respeito ao

drama da existência humana.

No entanto, de que antropologia se trata quando o teólogo incorpora o giro

antropológico ao seu discurso? É bom lembrar que, a partir de Kant, para a

antropologia o referencial que nos permite dizer o real ou o sol que possibilita a

orientação na busca de sentido para a vida não é mais a divindade, e sim o próprio

ser humano, o que ocasiona a passagem do mundo simbolicamente teocêntrico ao

mundo simbolicamente antropocêntrico. Para a filosofia moderna, Deus, a divindade

e a religião tornam-se objetos da antropologia ou das Ciências Humanas. A

divindade aparece, pois, como um atributo da humanidade, uma afirmação inteligível

para o universo simbólico do mundo moderno, feita sem a fé religiosa e sem a

teologia cristã. Em outras palavras, afirma-se não só a não necessidade da

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encarnação de Deus como a impossibilidade da afirmação teológica do Deus feito

humano.

Porém, a antropologia que Kant e posteriormente Ludwig Feuerbach (1804-

1872) preconizavam acabou pulverizada na diversidade das chamadas Ciências

Humanas, sendo que a Antropologia fragmentada em antropologias acabou por

transformar o ser humano em puro objeto de estudo, igualmente fragmentado. Esta

fragmentação não permite à antropologia moderna ver o ser humano como uma

unidade e faz da religião um aspecto ou uma dimensão periférica do ser humano. A

antropologia moderna assim constituída não aceita a religião como fazendo parte da

essência do ser humano e esta redução da religião rouba- lhe a sua dimensão

transcendente. É contra este seqüestro do transcendente que o discurso teológico

deve se contrapor, ao pôr o seu ponto de vista no estudo da religião.

Hoje temos uma multiplicidade de antropologias, o que nos leva colocar a

questão sobre qual antropologia se fundamenta a orientação antropológica na

teologia, para falar sobre a experiência religiosa. A questão que se apresenta é de

como a teologia pode, ou melhor, deve ser uma antropologia teológica, todavia sem

que a teologia deixe de ser o que ela é e sem que o teólogo se transforme em

qualquer outro profissional da religião. Talvez não seja de todo inútil ponderar isto

numa época em que as Ciências Humanas reclamam para si o direito de definir o que

é religião, e igualmente porque quem pensa a realidade com a linguagem de outro

acaba por ser visto como este outro, o teólogo vem a ser antropólogo, sociólogo ou

psicólogo.

A antropologia que fundamenta a teologia, sem que se perca a sua

especificidade, é aquela na qual não se procura a verdadeira humanidade e o

verdadeiro humanismo primeiramente no próprio eu, na própria consciência ou na

própria liberdade. A antropologia teológica busca esta verdade em primeiro lugar no

humanismo deste Outro homem que a tradição cristã reconhece e confessa na pessoa

de Jesus de Nazaré, o Cristo, o Filho de Deus.

Ao pensar a encarnação de Deus na história particular de Jesus de Nazaré, a

teologia cristã introduz uma tensão e provoca uma descentralização na maneira de

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pensar: um evento particular com pretensão de universalidade. A tensão entre a fé

cristã e a razão moderna, e a consequente ruptura entre ambas pode ser uma postura

demasiadamente cômoda tanto para a fé, que busca proteger a sua originalidade,

quanto para a razão que procura proteger-se da descentralização que a fé provoca,

isto é, o questionamento da razão técnico–científica erigida como única forma de

produzir um discurso crível e de validade pública.

Por isso, fazer da experiência religiosa a experiência fontal da teologia, algo

distinto do que fizera a teologia dogmática, significa dizer que o teólogo é habitado

por uma palavra (de Deus) que consequentemente ele habita a partir do discurso

teológico. Neste trabalho teológico, a revelação não é a descoberta ou imposição de

coisas, de leis, de normas, mas manifestação de um mundo, de um horizonte sobre o

qual posso projetar o horizonte da minha vida. Este mundo é o horizonte epigenético

que emerge na experiência mistagógica cristã e que tem rosto e história: Jesus de

Nazaré.

A distinção entre uma teologia de orientação antropológica e uma teologia

dogmática não quer dizer somente que estas posturas teológicas possuem idéias

diferentes sobre o mesmo assunto, mas sobretudo que elas possuem uma

heterogeneidade formal, isto é, o decisivo é perceber que a diferença principal está

no fato de que o mesmo assunto é pensado de maneira distinta. Enquanto que para

uma antropologia teológica a religião cristã é uma forma histórica não-absoluta de

um fenômeno universal, a experiência do Sagrado, para uma teologia de cunho

dogmático, que está sob a ótica do falso–verdadeiro, a religião cristã é não só vista

como a verdadeira religião como é identificada com as estruturas eclesiásticas.

Todavia, ao assumir para si a orientação antropológica, a teologia não deve

ter por referência o ser humano como sujeito cognoscente em oposição a Deus

concebido como objeto, como substância ou a coisa em si, e sim do ser humano

como abertura e acolhida na relação com Deus que se lhe manifesta como evento da

Palavra que se encarna e se diz na história humana. E isto na certeza de que dizer

qualquer coisa sobre esta manifestação divina é algo ultrapassado pela contínua

passagem daquele que a piedade cristã intui como o Totalmente Outro e que não se

deixa fixar em conceitos, normas e símbolos. E mais, esta manifestação de Deus na

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história humana jamais interrompe o processo de interpretação que nos caracteriza

como seres humanos e a partir do qual podemos falar da nossa experiência do

Sagrado.

No estudo da religião, cabe à teologia mostrar que não ter a Deus por objeto

imediato de pesquisa não implica necessariamente em negar a dimensão

transcendente da existência humana. Isto porque, muitas vezes, o estudo das Ciências

Humanas da religião é a tentativa de negá- la como oposição à tendência teológica de

transformar tal estudo numa busca por novos adeptos.

Entretanto, há um outro caminho que nos afasta desta oposição e nos coloca

sob o ponto de vista de uma atitude teológica, que vê no estudo da religião a

possibilidade de melhor compreender a existência humana, sem a preocupação

imediata de atender as necessidades eclesiais definidas normalmente pela hierarquia

das igrejas. Uma postura teológica que deseja reconhecer a verdade da experiência

humana do Sagrado nas outras religiões, ou seja, para além das fronteiras do

Cristianismo.

Entretanto, não nos parece factível uma teologia das teologias, isto é, uma

teologia que não possua por sistema referencial a linguagem de uma determinada

tradição. Em outras palavras, não vemos a possibilidade de existir um teólogo que

não seja confessionalmente engajado, o que não significa dizer que o teólogo, no

empreendimento hermenêutico que caracteriza o estudo da religião, deva estar

submisso aos desejos nem sempre explícitos das autoridades eclesiásticas.

No caso específico da teologia cristã, ser confessionalmente engajado vale

dizer que o trabalho teológico supõe a fé na revelação de Deus. E ter fé no sentido

religioso e cristão do termo supõe o engajamento existencial com a pessoa de Jesus

de Nazaré, algo possibilitado pelo movimento teologal inerente à mistagogia cristã e

confessado pela estrutura do Credo que a Tradição cristã reconhece como

textualização da fé cristã. É a partir desta confissão que o teólogo é capaz de

construir de forma criativa o seu discurso sobre a religião.

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A questão que aqui se delineia, talvez ainda não de forma tão explícita, é que

ser confessionalmente engajado é diferente de ser especialista numa determinada

tradição religiosa. Caso contrário, nada distinguiria, por exemplo, o teólogo de um

historiador ou sociólogo que se dedica ao estudo da religião cristã. E mais, se a

confissão religiosa caracteriza o trabalho teológico, o engajamento do teólogo numa

determinada tradição religiosa, por sua vez, não se configura numa impossibilidade

para o teólogo cristão dizer alguma coisa sobre as experiências religiosas não–cristãs,

mas apenas que ele o diz a partir de uma determinada tradição. Porém, é preciso que

o teólogo cristão abandone a perspectiva do falso–verdadeiro, que nada mais faz do

que desqualificar as outras religiões como degeneração da religião cristã.

Outro desdobramento deste caráter confessional da teologia no estudo da

religião é que ela será sempre um ato segundo suscitado pela experiência de fé, e a

esta experiência deverá sempre está referida. Isto faz com que a teologia cristã seja

necessariamente plural, uma vez que ela nasce com a experiência religiosa particular

da fé em Jesus Cristo, a qual não subsiste fora de suas diversas encarnações que são

inseparáveis do contexto social e cultural no qual é realizada tal experiência.

Esta particularidade da fé cristã coloca uma outra questão: em que consiste a

universalidade do Cristianismo? No fato dele não se esgotar em nenhuma de suas

manifestações particulares, ou ainda, na possibilidade de se reconhecer a própria

experiência na diversidade de manifestações religiosas nas quais se encarna a

experiência cristã. Uma lição que nos ensina a Tradição patrística que, no início do

Cristianismo, soube distinguir entre a unidade da fé cristã em torno do evento Cristo

e a uniformidade de suas expressões e dos discursos teológicos. A unidade da fé

cristã não só é compatível com a pluralidade de suas manifestações como as exige.

E porque este evento único, particular, deve ser contextualizado, deve se

encarnar na diversidade das experiências humanas, ele é capaz de dar origem a

diversas manifestações e a múltiplas reflexões. O Novo Testamento é sem dúvida o

primeiro testemunho cristão desta unidade plural que acontece por meio do texto. Na

textualização da experiência cristã, entrelaçam-se uma gama de experiências

humanas de Deus que suscitam diversas interpretações teológicas.

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A hermenêutica teológica que concebemos no estudo da religião procura

dizer Deus a partir da aventura humana na qual se constitui a experiência religiosa. O

teólogo por sua vez é aquele que faz vir ao evento da palavra questões radicais do ser

humano, vividas diante de Deus e não articuladas metodologicamente pelo fiel.

Como consequência, temos que a religião não é um dado bruto a ser analisado pelos

códigos da mediação empírica, da objetividade da investigação científica e da

neutralidade do pesquisador. A experiência religiosa e a religião são busca de sentido

na vida que exige sempre uma atitude hermenêutica, uma interpretação de si mesmo

e do mundo.

Esta busca por sentido na vida é sempre histórica e culturalmente

condicionada, consequentemente a teologia estuda a religião desde a perspectiva da

institucionalização da experiência humana do Sagrado a partir de uma religião

histórica, positiva. No contexto de nossa pesquisa, temos a teologia cristã que estuda

a religião cristã, e nesta perspectiva a existência cristã ou a prática dos cristãos é o

lugar teológico que fornece elementos ao teólogo para que este possa realizar uma

reinterpretação criativa da fé cristã. O discurso teológico tem como objeto específico

de estudo a objetividade histórica da existência cristã, a maneira como os cristãos

vivem e expressam na linguagem religiosa que lhes é própria a interpretação dos

eventos fundadores do Cristianismo.

Por isso, a hermenêutica teológica dos textos da tradição, que se encontram

na Escritura e fora dela, quer também produzir novas formas históricas de práticas

cristãs, em outros tempos e em outros lugares, e não ser apenas uma técnica de

interpretação de textos. Entretanto, a teologia cristã tem consciência, ou deveria ter,

do limite de sua linguagem diante do ideal de sistematização conceitual, uma vez que

pretende dizer a manifestação de alguém que transcende a história, ou seja, nela se

manifesta mas não lhe é imanente, o que exige uma concepção de verdade religiosa

que não se coaduna com a idéia de verdade como adequação entre o enunciado e o

objeto.

Por definição, os critérios de verdade da linguagem teológica não se esgotam

na ordem empírica. A verdade teológica se coloca na ordem do testemunho porque é

uma verdade recebida, confessada e celebrada no seio de uma comunidade eclesial,

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sendo uma linguagem que é precedida por uma verdade que ela recebe da tradição. A

verdade teológica é radicalmente histórica, uma vez que não existem afirmações

teológicas em estado puro, elas são sempre historicamente situadas. A verdade

teológica é algo a caminho, sempre sob o risco da interpretação feita pela

comunidade eclesial desde o seio de uma tradição que não renuncia a sua memória

constituída, ritmada no compasso de séculos de história. O desafio para a teologia no

estudo da religião está em pensar a pluralidade da verdade cristã, sem contudo

comprometer a unidade da fé.

No diálogo com as outras formas de saber que o estudo acadêmico da religião

exige, o discurso teológico se caracteriza como uma reflexão sobre a existência

cristã, que por sua vez se configura como uma maneira particular de compreensão de

si mesmo, de habitar e dar sentido ao mundo. É tarefa da teologia mostrar que a

existência cristã é capaz de gerar sentido de maneira sensata, de forma razoável,

mesmo que siga outros caminhos que não aqueles da razão instrumental técnico–

científica.

Esta particularidade exige que a teologia reconheça não ser capaz de falar

todas as línguas e portanto admitir a sua incapacidade de ser a rainha de todas as

ciências. E se por um lado a razão teológica não pode prescindir da razão humana e

tampouco se opor a ela, por outro lado a razão teológica não deve perder a sua

especificidade neste encontro. A especificidade de um saber sensato, em íntima

relação com as experiências do cotidiano da vida humana, porém distinto de um puro

sentimento ou de uma experiência cega. Um saber específico, particular, fundado na

fé religiosa cristã a partir da revelação e da encarnação de Deus, e que não é redutível

a outros saberes.

A teologia deve igualmente ser um discurso de mediação que ajude a

experiência cristã a gerar sentido para o mundo a fim de que este se torne cada vez

mais humano. Em outras palavras, a teologia deve ser um saber que ajude na

reconstrução de sentido e nesta reconstrução as questões do presente devem

interrogar a tradição a fim de que esta possa iluminar o nosso cotidiano. A

especificidade do discurso teológico é uma palavra própria que lhe é dada na história

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a partir da revelação de Deus, e na história deve ser acolhida livremente mediante a

fé religiosa.

A recuperação da especificidade do saber teológico, digamos mais uma vez,

exige que a teologia trate a experiência religiosa como algo que constitui o ser

humano e que diz respeito à humanidade como um todo, e não apenas como um

aspecto ou uma dimensão da vida humana que pode um dia ser superada, como

pretende o pensamento moderno.

Esta dimensão antropológica na teologia se caracteriza como o esforço para

tornar o Cristianismo assimilável pelo ser humano marcado pelas problemáticas

suscitadas pelas ciências modernas. A reflexão teológica desde uma orientação

antropológica vê com seriedade a vida humana e procura mostrar a fé cristã como

uma realidade que produz sentido para as experiências que o ser humano vive em

todos os domínios de sua existência.

Esta participação do Cristianismo no todo da existência humana possui como

pressuposto o fato de que Deus não deve ser nomeado somente nos limites da

existência humana, marcada pela dor, pela impotência, pela morte, como se Deus

fosse uma espécie de “tapa-buracos”, pronto a responder questões que humanamente

não têm respostas, pois uma vez que as tenha respondido, Deus torna-se supérfluo ou

uma hipótese inútil. Além do que, a relação com Deus estaria marcada por um jogo

de interesses.

Entretanto, é preciso reconhecer que a experiência da dor e do sofrimento

pode aproximar algumas pessoas de Deus e da fé cristã. O que desejamos ressaltar

com a rejeição da imagem de um Deus tapa-buracos é que o discurso teológico que

se entende como interpretação da existência cristã não pode pretender falar de Deus

somente nas experiências provocadas pela presença do mal no mundo ou mesmo

querer ter a Deus por “porte seguro” de nossa existência. E se Deus não pode ser um

tapa-buracos não deve muito menos ser fixado num paraíso espiritual a pairar sobre a

história humana. O discurso teológico desde a perspectiva da mistagogia cristã

procura dizer Deus no todo da vida humana, na certeza de que encontrá- lo significa

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na verdade continuar a buscá- lo para além de nossos desejos e de nossas fraquezas

(1Jo 3,20).

Esta postura teológica é distinta daquela do mundo moderno, que em parte se

organiza tomando distância da referência à religião e à dimensão transcendente da

existência humana. Mas este distanciamento não foi absoluto. Prova disto é o

fenômeno que em certos meios convencionou-se chamar de “o retorno do Sagrado”,

no qual a vivência religiosa volta de maneira não muito convencional, muitas vezes à

margem das instituições, de forma errante e às vezes até mesmo de maneira violenta.

Este retorno possui um dado importante para a teologia cristã: a fé religiosa não é

mais o fundamento da cultura moderna e a religião cristã é profundamente

questionada na sua pretensão de verdadeira religião. Talvez estejamos entrando numa

nova era, onde as grandes religiões, nas suas formas tradicionais e institucionalizadas

cedem espaço a outras formas de religiosidade itinerantes e não tão

institucionalizadas.

Este novo cenário que se delineia requer cada vez mais a volta às origens, ao

específico de cada tradição religiosa. No contexto do Cristianismo, a especificidade

da religião cristã aponta para a novidade radical do evento Cristo que está a nos dizer

que o Cristianismo, antes de ser uma religião (sistema de representações, conjunto de

ritos, prescrições éticas,etc.) é um modo de ser humano: de amar, de ter esperança, de

sofrer, de trabalhar, de se doar aos outros. Maneira humana de ser que se aprende no

humanismo deste Outro homem que a fé cristã nomeia como filho de Deus.

Esta novidade do evento Cristo nos diz ainda que o Evangelho, ou seja, o

texto interpretativo deste evento, não exerce sua função crítica somente em relação às

outras religiões, mas igualmente o faz com relação à própria religião cristã,

sobretudo à sua expressão ocidental. Hoje, a teologia cristã no estudo da religião não

pode negligenciar o fato de que na história da Cultura Ocidental frequentemente se

preconizou o caráter absoluto do Cristianismo histórico, a partir do caráter absoluto

do evento Cristo como manifestação do absoluto de Deus na história. Algo que não é

legitimado como um todo pelos textos do Novo Testamento.

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Entretanto, em determinado momento da história do Ocidente, a Igreja cristã

se viu no meio das outras religiões e sabedorias como portadora exclusiva da verdade

absoluta e desde esta presunção organizou a sua doutrina e a sua visão de mundo.394

A religião cristã passou a ser vista como depositária da verdade que se opõe à

falsidade das outras religiões, isto é, a verdade cristã abarca todos os valores da

humanidade e das demais religiões. A história se incumbiu de nos mostrar o quão

trágica foi esta presunção da religião cristã e que esta atitude coincidiu com a

pretensão hegemônica da Civilização Ocidental, européia. Esta atitude é na verdade

fruto do esquecimento de que nenhuma particularidade histórica é absoluta.

Neste sentido, o alcance universal da mediação de Cristo que assume a nossa

humanidade se apresenta como problemática atual para o estudo da religião e não

somente como lembrança de remotas disputas cristológicas e interreligiosas nos

meios acadêmicos e eclesiais. Entretanto, a atualidade desta problemática delineia

um vasto horizonte e nesta vastidão corremos o risco de nos desviar do rumo de

nossa pesquisa. Por isso, sejamos breves dizendo que a teologia cristã não deve

descuidar do papel positivo das religiões não–cristãs na doação de sentido para a vida

e na obra de salvação levada a termo em Jesus Cristo.

Mas esta valorização das outras religiões não contradiz a confissão cristã que

professa a fé no alcance universal da mediação do Cristo, Filho de Deus, que assume

nossa humanidade e não deveria igualmente ofuscar a alegria da boa nova do

nascimento do Salvador, que tanto júbilo trouxe para as comunidades cristãs (Lc

2,20). Apenas não podemos restringir a ação salvífica de Jesus Cristo às fronteiras da

religião cristã, uma vez que esta forma histórica do Cristianismo não tem o

monopólio da ação salvífica de Deus e a fé em Jesus Cristo deve poder gerar outras

formas históricas para além dos limites da religião cristã.

A partir da orientação antropológica na teologia que vem animando esta nossa

reflexão, podemos dizer que a fé cristã é compatível com a experiência de Deus

experimentada de forma anônima, não-explícita e mesmo fora do espaço

394 Para muitos historiadores e teólogos, esta postura encontra suas raízes no século IV, quando o Cristianismo é elevado a religião oficial do Império romano.

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propriamente religioso, lá onde a vida humana é vivida de forma autêntica. Isto

porque do ponto de vista antropológico todo ser humano pode acolher em liberdade a

autocomunicação de Deus feita em Jesus Cristo.

Todavia, se por meio da orientação antropológica na teologia procuramos nos

afastar de posturas dogmáticas que se perdem num emaranhado de abstrações, a

afirmação que acabamos de fazer sobre a possibilidade da acolhida da iniciativa

divina por parte de todo ser humano pode nos fazer incorrer numa abstração

antropológica. A não-abstração desta maneira anônima de ser cristão é possível na

medida em que ela se concretiza na atitude daqueles que assumem a sua própria

humanidade num movimento de abertura e acolhida do outro humano com o qual,

segundo a fé cristã, o próprio Jesus Cristo se identificou: famintos, sedentos,

estrangeiros, despidos, prisioneiros,... (Mt 25, 31-46). A lógica teológica do Bom

Samaritano (Lc 10, 29-37) não tematizada numa linguagem religiosa, mas vivida

como responsabilidade pelo outro, é com toda justiça um cristianismo anônimo.

Esta atitude de acolhida do outro já é em si mesma aceitação, anônima, de

Jesus Cristo e da Salvação levada a termo na sua vida, morte e ressurreição. Esta

postura teológica suscitou e suscita ainda diversas observações, críticas e impasses,

como a questão sobre a equivalência entre um cristianismo vivido de forma anônima

e aquele confessado e celebrado no seio de uma comunidade eclesial. Questão que

igualmente se delineia tão problemática como a anterior, pois deriva da

complexidade e escândalo que caracteriza ainda hoje o anúncio da salvação universal

em Jesus Cristo.395

Para sermos breves e sabendo que corremos o risco de sermos superficiais,

digamos somente que o cristianismo anônimo não se apresenta como uma alternativa

diante de um cristianismo explícito, vivido na fé e na escuta do Evangelho e

confessado numa forma de vida eclesial. A possibilidade de um cristianismo

anônimo não nega o esforço, o valor e a necessidade da mediação histórica das

comunidades eclesiais, onde se confessa e celebra explicitamente a fé em Jesus

Cristo.

395 Ef 1,3-13; Tm 2,4; Hb 10,10.

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Contudo, a possibilidade de um Cristianismo anônimo mostra a

impossibilidade de se absolutizar qualquer forma histórica de mediação eclesial que

pretenda ser proprietária exclusiva da manifestação de Deus na história. A rigor, a

perspectiva do cristianismo anônimo é antes de tudo o esforço do próprio cristão que

deseja compreender a sua própria fé, que supõe a salvação universal em Jesus Cristo,

o único mediador, num mundo marcado pelo pluralismo religioso e pela

aproximação cada vez maior entre a religião cristã e as religiões não–cristãs.

b. A hermenêutica da tradição religiosa.

Um teólogo no exercício de sua profissão ao discorrer sobre determinada

religião ou sobre as religiões em geral sempre o faz desde uma determinada

perspectiva e não pode prescindir da sua pertença a uma tradição e da linguagem na

qual ela se expressa.

Entretanto, a confissão religiosa no exercício da teologia não se confunde

com a submissão cega e, às vezes, irracional à autoridade eclesiástica e à tradição.

Quando o teólogo se apropria de um texto, não é simplesmente para repetir aquilo

que a tradição já afirmara, mas para que por meio dela possa apresentar uma outra

compreensão de mundo e de ser humano, a partir de questões diferentes daquelas que

deram origem ao texto, aos símbolos da tradição, por encontrar-se num contexto

cultural distinto. E a inserção de experiências religiosas particulares numa

determinada tradição pode fornecer elementos para uma releitura da própria tradição,

ao mesmo tempo em que recebem desta elementos que permitem uma releitura da

própria experiência.

No caso específico do estudo acadêmico da religião, o discurso teológico,

tomando distância de uma postura dogmática, fala desde uma tradição, mas voltado

para além de suas fronteiras. E neste trabalho teológico a mediação da comunidade

eclesial não se opõe à liberdade criativa do teólogo. Para a fé cristã, o mesmo

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Espírito que possibilita o discurso teológico é aquele que está presente em toda

comunidade eclesial. O teólogo é um diácono do Espírito que o conduz no

movimento sem cessar de interpretação. Esta presença eclesial do Espírito Santo

afasta o teólogo da tentação de querer absolutizar a própria opinião, sendo a

pluralidade de posturas teológicas o respeito por este movimento pneumático no

interior da comunidade eclesial.

O discurso teológico deve ter, pois, em conta a tradição e a história. A palavra

que sustenta o discurso teológico é a palavra de Deus, transmitida ao longo de

gerações. Neste sentido, a preocupação primeira do teólogo não pode ser aquilo que

mais lhe agrada, mas sim o mais pertinente para ajudar o outro a crescer na vida

cristã. Em outras palavras, o caráter confessional da teologia e o recurso à tradição

significam que a reflexão teológica não pode ser somente instrumento de objetivos

pessoais como não pode ser instrumentalizada em função do magistério eclesial.

Do contrário, o discurso teológico pouco se diferenciaria de um mero porta-

voz dos interesses da hierarquia da Igreja e de uma autobiografia intelectual de

alguns teólogos. E o fato de falar a partir da tradição não deve impedir a ação criativa

do teólogo, uma vez que, por vezes, ele será obrigado a converter e contextualizar

alguns conceitos a fim de desenvolver seu próprio pensamento.

É a tradição que fornece a identidade cristã a partir da qual o teólogo pode

dialogar com as outras formas de saber no contexto universitário. A partir da

metáfora do texto, podemos dizer que a tradição oferece os instrumentos lingüísticos

para que o religioso possa interpretar a sua própria experiência. A tradição

proporciona a gramática a partir da qual se articula e se diz a experiência humana de

Deus. A Escritura e os demais textos da tradição são a língua materna do discurso

teológico, que a partir de uma hermenêutica possui uma pertinência acadêmica e um

caráter de validade pública, na medida em que não se trata de proceder a uma

anacrônica reconstrução do passado e sim da possibilidade de a tradição iluminar e

inspirar a busca de respostas adequadas para as questões que emergem da pluralidade

de experiências humanas. O discurso teológico não pretende ser uma mera descrição

da linguagem religiosa, mas interpretação da sua capacidade de gerar sentido de vida.

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A teologia tem uma memória constituída e deve assumir a tarefa de

interpretação e contextualização da sua herança testemunhal, de seu sistema

referencial. Isto porque a Teologia cristã não é um saber construído a priori e

tampouco é uma interpretação teórica de textos fundacionais ou de uma doutrina. O

Cristianismo é acima de tudo referência a um acontecimento histórico: Jesus de

Nazaré. E a Teologia cristã é sobretudo a inteligibilidade da experiência vivida pelos

cristãos, e dizer inteligibilidade significa afirmar que a teologia é a hermenêutica da

linguagem religiosa que a comunidade cristã usa para expressar a sua experiência de

fé desde os acontecimentos humanos nos quais Deus se revela.

O Cristianismo é tradição porque vive de uma origem primeira que é dada,

mas que é igualmente produção de sentido porque esta origem somente pode ser

recebida no ato de uma fé religiosa historicamente situada que interpreta o contexto

no qual ela é confessada. Afirmar que a experiência religiosa cristã, vivida em

comunidade, é o lugar fontal da teologia, não significa dizer que o trabalho teológico

deva restringir-se aos muros da Igreja, como se o caráter confessional ou eclesial da

teologia implicasse em separação do mundo. A teologia é sempre anamnese

reinterpretativa de um evento fundador (memória e confessionalidade), mas também

é anúncio de sentido para a vida e para a sociedade.

A maneira como o texto do Novo Testamento foi sendo tecido ao longo dos

primórdios do Cristianismo, ou seja, como interpretação da comunidade primitiva,

nos diz que não podemos separar a interpretação da linguagem da fé da interpretação

da existência cristã, uma vez que a linguagem da fé é a linguagem por meio da qual a

comunidade cristã diz e interpreta a sua própria existência. O mesmo pode ser dito da

maneira como a fé cristã foi textualizada ao longo dos primeiros séculos do

Cristianismo, no que a tradição passou a chamar de Símbolo dos Apóstolos ou

Credo. A maneira como este texto foi elaborado mostra que a estrutura da confissão

de fé está intimamente ligada à estrutura da linguagem religiosa que a produziu ou

permitiu se dizer a partir do ambiente de uma liturgia batismal.

A textualização da experiência cristã, seja na Escritura, seja nos outros textos

da tradição, requer uma hermenêutica. Isto não significa que a teologia seja a-

dogmática ou antidogmática, mas sim que a linguagem teológica está consciente da

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relatividade das experiências religiosas, bem como de sua conceituação e da verdade

que lhe é inerente. E a fé cristã somente é fiel ao impulso teologal que a leva a

nomear o absoluto na experiência religiosa como Deus, se for capaz de proceder a

uma interpretação criativa do Cristianismo.

Todavia, recorrer aos textos da tradição possui o risco de se incorrer num

certo arqueologismo, que nada mais faria do que um retorno estéril a estes textos.

Mas ignorar o contexto histórico e a textura que lhes são inerentes, e que fornecem a

língua materna da tradição, nos conduziria a uma abordagem igualmente infecunda,

ou seja, a um tipo de anacronismo. E nele, seríamos inevitavelmente vítimas da vã

tentativa de querer atualizar as palavras que compõem os textos da tradição,

impondo- lhes, de uma maneira arbitrária, recentes discursos teológicos ou algumas

sensibilidades pastorais, ditas modernas.

Em todo caso, feita esta observação, é importante ressaltar que a função

hermenêutica da teologia consiste na atualização do sentido da mensagem cristã. A fé

religiosa no seu aspecto cognitivo é sempre conhecimento interpretativo delimitado

pelas condições históricas de uma determinada época e a teologia é sempre

atualização do conteúdo da experiência religiosa que não escapa à historicidade. A

teologia se torna hermenêutica no momento em que percebe que toda afirmação

sobre Deus implica obrigatoriamente numa afirmação interpretativa sobre a

existência humana, sobre a maneira como o ser humano acolhe livremente na fé a

revelação de Deus. Acolhida que já é em si mesmo interpretação daquilo que é

revelado e do contexto no qual se revela, mais concretamente da história na qual a

revelação acontece.

O relato da criação tal como aparece no livro do Gênesis é um exemplo deste

ato interpretativo. Como sabemos, este texto apresenta dois relatos da criação: o dos

seis dias (Gn 1,1–2,2-4a) que termina com a criação do homem e da mulher, e um

segundo que narra a criação de Adão e Eva, bem como a expulsão do Paraíso (Gn

2,4b–3,1ss). Estes dois textos são de épocas distintas e pertencem a diferentes

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tradições396. Contudo, ambas manifestam a preocupação do povo de Israel de

compreender a própria história e, a partir dela, a sua própria identidade como povo

eleito. Os relatos da criação são, na verdade, interpretação da história onde eles

nascem. É, pois, o desejo de compreender a sua situação que conduz Israel a compor

os textos sobre as origens397. Ambos os relatos querem dizer ao povo de Israel que

Yahweh está no começo da história da humanidade e no começo da sua própria

história.

Nesta história, a identidade e a dignidade do ser humano estão intimamente

relacionadas com Deus, com as outras pessoas e com o mundo criado. É nesta

relação que se oferece uma dupla possibilidade: a plenitude da condição de criatura

ou a condenação na ilusão de querer ser como Deus (Gn 3,5) que é a negação da

própria dignidade de criatura. Nesta recusa, o ser humano não se realiza mais na

acolhida de um dom, e sim na mentira e na tentação de querer se igualar ao Deus

criador, tornar-se a criatura em si mesma a origem e o fim da criação.

A ação da serpente na vida de Adão e Eva revela a inscrição do mal no

interior da criação. É importante lembrar que, na trama do texto do Gênesis, o ser

humano não é nem a origem da criação e nem tampouco do mal. O fato de o mal

começar com a história da humanidade não nos autoriza dizer que o ser humano seja

a sua origem. O livro do Gênesis não nos fala sobre a origem do mal, mas

simplesmente nos narra o seu começo com o advento da história da humanidade.

Esta anterioridade e alteridade do mal nos colocam novamente na perspectiva de um

otimismo antropológico: o mal não teve a primeira e nem tem a última palavra na

história humana. Nesta narrativa a criação, a oferta–dom de Deus, e o mal como sua

negação se entrelaçam na história da humanidade. Abre-se, assim, o espaço e o

tempo da espera de uma Redenção, de uma Nova Aliança e de uma nova criação,

como bem o mostram, por exemplo, os livros de Oséias, Ezequiel, Jeremias e

Isaías398.

396 A narrativa da criação do mundo em seis dias pertence à tradição sacerdotal. A narrativa do mito de Adão e Eva é atribuída à tradição javista. 397 O uso do plural “origens” é aqui proposital, pois os relatos bíblicos não falam da “origem” do mundo e da his tória, mas do começo dos mesmos. A origem de ambos é Deus e sobre isto os relatos bíblicos se calam. Eles não definem Deus, mas narram a sua ação criadora. 398 Os1–3; Ez16, Jr30–33; Is52,12–53,13.

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É justamente neste entrelaçamento e nesta espera que se inscreve a fé cristã.

A criação é um lugar fundamental para confessar a fé em Jesus Cristo, pois o Novo

Testamento não poupa palavras para manifestar a fé na criação e na recriação em

Jesus Cristo399. O Filho de Deus aparece como o mediador da Salvação, sendo toda a

criação recapitulada nele. Neste sentido, a história da humanidade é tida também pela

fé cristã como uma história que se desenrola como História da Salvação. Ao ser

inserido na dinâmica desta História, o cristão se engaja numa relação pessoal com

Jesus Cristo, imagem perfeita de Deus (Col 3,10) e nele vê vislumbrar a

possibilidade da plena realização da vocação humana de ser para Deus. Vocação que,

segundo alguns textos do Novo Testamento, se realiza na participação do Mistério do

Deus criador. Assim, o cristão é interpelado na história por um duplo destino que lhe

diz respeito: aquele de Adão e o de Jesus Cristo, o novo Adão.

Esta incursão pelo texto bíblico no qual se narra a criação e seus

desdobramentos para a fé cristã nos dizem mais uma vez que todo discurso é sempre

relativo à perspectiva que o produz. A narração na qual se professa uma determinada

fé é interpretação da história na qual esta fé é vivida. Refletir sobre o tema da criação

é admitir desde o início o valor do contingente. A criação na perspectiva judaico–

cristã não é somente natureza, ela é acima de tudo uma realidade teológica. Falar

sobre a criação é dizer liberdade, mal, lei, revelação. O povo de Israel elabora uma

teologia da criação a partir do evento histórico da saída do Egito. O Cristianismo faz

algo semelhante, mas da perspectiva da ressurreição de Cristo.

Os relatos da criação são uma interpretação da história onde eles são

elaborados, isto é, estes relatos nos falam da história que eles interpretam e da

história que os interpreta. A fé no Deus salvador conduz à confissão do Deus criador

de todas as coisas. Assim também o é o discurso teológico e a verdade que a

linguagem interpretativa da teologia veicula ao proferir seu discurso. E não poderia

ser diferente com a linguagem teológica do dogma, que do ponto de vista

hermenêutico é sempre testemunho parcial de uma verdade religiosa historicamente

situada e portanto limitada.

399 Col 1,16-17; 2Cor 5,17; Gl 6,15; Jo 1,3.

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No contexto católico, esta é uma idéia que se encontra presente nas sutilezas

da evolução dos dogmas da Virgindade de Maria e da Imaculada Conceição, na qual

podemos observar a passagem da passividade à atividade da mulher na procriação.

No imaginário religioso cristão–católico desenvolveu-se a idéia de que o ato sexual

propagava o pecado original. Como a princípio a mulher era um mero receptáculo

das sementes da vida, bastava o dogma da Virgindade de Maria para salvaguardar

Jesus da mancha do pecado original.

Com o avanço da ciência, no entanto, descobriu-se a participação ativa da

mulher na transmissão de caracteres ao filho através de seu corpo. Por isso, para

evitar que Maria transmitisse a Jesus a natureza humana ferida e enfraquecida, fez-se

necessário que a Virgem mãe fosse também a Imaculada Conceição, aquela que fora

concebida sem pecado. Esta maneira de ver a evolução dos dois dogmas causa hoje

mal–estar em diversos meios católicos, sobretudo quando se coloca a questão se a

virgindade de Maria foi valorizada porque Maria foi sempre virgem ou se Maria foi

transformada em uma virgem perpétua porque a virgindade era amplamente

valorizada na nascente Igreja cristã.

Não menos problemática é a questão se o dogma da Virgindade de Maria e da

Imaculada Conceição têm ainda hoje sentido para a maioria dos católicos. Talvez

seja uma grande ousadia de nossa parte perguntar se algo mudaria na vida da grande

maioria dos católicos na hipótese de que as autoridades eclesiásticas abolissem estes

dois dogmas marianos, que a rigor se referem a Jesus Cristo e que portanto são

dogmas cristológicos. Não queremos com este exemplo discordar do valor e da

importância destes dois dogmas para a existência cristã na sua vertente católica.

Porém, este não é o espaço apropriado para esta discussão, certamente fundamental

para muitos católicos.

O importante no contexto de nossa pesquisa é ressaltar com este exemplo que

toda reconstrução interpretativa do passado é uma reconstrução condicionada pela

história presente. Além disso, a compreensão do passado é inseparável de uma

interpretação de si mesmo, o que faz desta interpretação a possibilidade de decifrar a

vida no espelho do texto, no espelho das palavras, uma vez que a linguagem antes de

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ser palavra dita a alguém é manifestação do ser, é dizer a si mesmo para si e para os

outros. No Cristianismo, esta decifração interpretativa da vida no espelho das

palavras da tradição encontra seu horizonte epigenético na vida e na história de Jesus

de Nazaré.

O empreendimento hermenêutico da teologia consiste em fazer a palavra de

Deus falar para o nosso contexto. O que é o oposto de uma postura teológica que

procura chegar à plenitude da Palavra de Deus por meio da escuta literal da Escritura.

Para a perspectiva hermenêutica, não respeitar a historicidade da verdade religiosa é

perder de vista o perigo de uma reconstrução totalizante do mundo e do ser humano,

a partir da linguagem simbólica oriunda da tradição. Afinal, é a releitura atual da

Escritura desde as questões colocadas pelas novas condições históricas da

humanidade que nos permite proceder a uma reinterpretação da fé religiosa, da

tradição e dos dogmas que ambas produzem.

Ao considerar o “mundo do texto” como objeto da teologia, não podemos

identificar tampouco a verdade do Cristianismo com o conteúdo literal de um texto,

mesmo que este seja o texto da Escritura. No estudo da religião, o teólogo lida com a

história do Cristianismo desde o horizonte de um texto aberto à interpretação e como

história das interpretações. A teologia cristã parte de um evento histórico que se

constitui em evento originário, todavia dito e textualizado no seio de uma história e

como interpretação dessa história, e isto de diversas maneiras.

A noção de “mundo do texto”, nos mostra também que a Escritura é

revelação na medida em que desdobra, diante de si e do leitor, um mundo que

possibilita surgir um novo ser, isto é, possibilita ao ser humano um alargamento da

sua existência humana. O antropológico se descobre como teológico, como

transcendente na sua relação com o Totalmente Outro, que no caso particular do

Cristianismo é confessado como o Deus que se encarna na pessoa de Jesus de

Nazaré.

Assim, desde a perspectiva da hermenêutica da tradição religiosa, a teologia

cristã se constitui como prática interpretativa de um texto e também conceituação da

prática suscitada por este texto que nos remete a uma Alteridade que faz malograr

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toda tentativa de objetivação total do texto: Deus continua a se dizer no espelho das

palavras dos textos da Escritura e dos demais textos da tradição para o mundo de

hoje, o que exige um contínuo processo de interpretação.

c. O discurso teológico e o estudo da religião.

Mas se o estudo da religião confere um lugar para o trabalho teológico na

universidade, quais são as consequências para a teologia em se manter neste lugar e

tomar a religião por objeto de estudo? De que maneira o estudo teológico da religião

pode se constituir numa nova maneira de fazer teologia? Antes mesmo de responder

a estas indagações que colocamos como fio condutor do que será exposto a seguir,

uma precisão terminológica se faz necessária.

O novo na prática teológica não corresponde a algo inaudito ou nunca antes

praticado, ou seja, o empreendimento hermenêutico da teologia. A própria história do

pensamento teológico no Ocidente estaria a desmentir esta falsa pretensão. A

novidade é provocada pelo cenário em que se desenrola este trabalho teológico, um

cenário composto pela universidade com as revisões epistemológicas pelas quais

passam as ciências, o reconhecimento oficial da teologia por parte das autoridades

brasileiras (MEC), o que exigirá cada vez mais da teologia um discurso de validade

pública, e por fim o pluralismo religioso que cada vez mais desponta como um novo

paradigma para o exercício da teologia. É este cenário que convida a prática

teológica a retirar da sua tradição a novidade de seu discurso, na certeza de que o

teólogo tem que ser moderno por tradição.

E ao fazer da religião o seu objeto de estudo no cenário universitário,

abandonando uma postura dogmática, o discurso teológico evidencia o reducionismo

que se abatera nos últimos anos sobre a teologia: a redução da experiência religiosa a

seus conteúdos racionais, consequentemente a primazia da fé como teoria, doutrina e

ensinamento; a redução da dimensão eclesial ao institucional e portanto à

identificação com o magistério (hierárquico e clerical); a redução da prática teológica

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à renovação dos quadros eclesiásticos, à formação de padres e pastores no contexto

do Cristianismo.

Neste novo cenário, as Ciências Humanas e as culturas não-ocidentais são

interlocutores privilegiados da teologia, uma vez que não é mais possível ao teólogo

estudar a religião sem ter em conta a riqueza de tradições não–cristãs e tampouco

desconsiderar os diversos resultados das pesquisas realizadas pelas ciências humanas

da religião. Entretanto, no estudo teológico da religião, que exige o diálogo entre a

teologia e as Ciências da Religião, é preciso não só tomar distância de uma postura

dogmática, mas igualmente ascender a um conceito de saber com validade pública

que se afaste da pretensa hegemonia da razão instrumental técnico–científica que

durante séculos se apresentou como único modelo de ciência e de saber capaz de

interpretar a realidade.

Neste sentido, o saber acadêmico no estudo da religião é abertura ao potencial

que a linguagem religiosa possui para dar sentido à vida, na medida em que esta

linguagem fornece os instrumentos linguísticos que possibilitam ao religioso dar

sentido às suas experiências humanas. Por isso, neste campo específico do saber,

deve-se respeitar a busca pelo equilíbrio entre a razão especulativa, a imaginação e a

narratividade, como partes integrantes de um discurso sobre a religião que

permanece na frágil textualidade das representações religiosas e se situa entre aquilo

que pode ser definido e o Infinito. A verdade teológica é um devir histórico que nos

remete a Deus como aquele que jamais se esgota nas nossas experiências históricas, e

esta verdade desvelada em Jesus Cristo não cessa de se realizar nas figuras históricas

da Tradição cristã, ao mesmo tempo em que não se restringe às fronteiras da religião

cristã e muito menos das Igrejas cristãs.

E tomar a experiência religiosa por um “texto” aberto à interpretação é algo

que aproxima a teologia das Ciências Humanas, uma vez que ambas devem

considerar o empreendimento hermenêutico na compreensão que procuram ter da

religião, na certeza de que não há total objetividade na pesquisa científica, pois a

realidade já nos chega mediada por uma série de interpretações que acolhemos a

partir da escala de valores que usamos para dar sentido à nossa existência.

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A teologia no estudo da religião não tem como preocupação primeira a

formação do clero ou de pastores e sim em ajudar o fiel a melhor compreender a sua

fé, a sua experiência religiosa, fazendo com que cada vez mais ela seja um processo

de amadurecimento, isto é, de humanização do ser humano. Ajudar a experiência

religiosa a iluminar a existência humana, procurando responder as questões que

tocam profundamente o coração humano.

E o teólogo deve realizar o seu trabalho com a modéstia, a humildade e o

desprendimento de quem sabe que não é o dono absoluto da temática em questão.

Contudo, não está em questão qual discurso é superior e mais apropriado para o

estudo da religião, o científico propriamente dito ou o teológico. Modéstia e

humildade não se confundem, ou pelo menos não deveriam, com a interiorização de

uma espécie de complexo de inferioridade que se abate sobre alguns profissionais da

teologia diante das chamadas ciências modernas.

Esta interiorização desconhece a riqueza de toda uma tradição teológica

formada ao longo de séculos. Entre o sentimento de superioridade – a teologia como

sendo a ciência por excelência – e o complexo de inferioridade – a desqualificação

do discurso teológico no que diz respeito à competência acadêmica – há um outro

caminho a ser trilhado dentre tantos possíveis: o caminho da tarefa hermenêutica.

Uma hermenêutica fundamentada numa antropologia adjetivada inicialmente como

teológica, mas uma vez considerada a experiência religiosa como experiência fontal

da teologia, o antropocentrismo desta antropologia teológica pode ser dito

antropocentrismo pneumático.

A teologia cristã não pode existir sem esta maneira de sentir e expressar a

presença de Deus que a tradição chama de experiência espiritual, sendo a linguagem

religiosa mais primigênia do que qualquer discurso teológico. Por isso, a teologia

cristã deverá sempre se referir à linguagem materna que sustenta como um todo

qualquer discurso teológico: as palavras em que os cristãos professam a sua fé, não

como abstrações dogmáticas ou antropológicas e sim como confissão de fé, que da

Igreja recebem e na Igreja proferem e celebram.

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Sem esquecer, no entanto, que a hermenêutica teológica supõe a pluralidade

no trabalho teológico, pretendendo ser indistintamente hermenêutica da palavra de

Deus e hermenêutica das mais diversas experiências históricas do ser humano. Isto

faz da teologia no estudo acadêmico da religião uma reinterpretação da linguagem da

fé e da existência cristã.

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