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Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF Coordenação Geral de Educação Infantil – COEDI/SEB/MEC Texto-base para a elaboração de orientações de implementação de políticas de promoção da igualdade racial na educação infantil, tanto na COEDI/MEC como nas redes de ensino

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Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT

Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF

Coordenação Geral de Educação Infantil – COEDI/SEB/MEC

Texto-base para a elaboração de orientações de

implementação de políticas de promoção da igualdade

racial na educação infantil, tanto na COEDI/MEC como

nas redes de ensino

Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT

Coordenação geral do projeto

Profa. Dra. Maria Aparecida Silva Bento

Coordenação de áreas:

Antonio Carlos Malachias

Lucimar Rosa Dias

Apoio técnico:

Shirley Santos

Parcerias:

Fundo das Nações Unidas para a Infância – UNICEF

Coordenação Geral de Educação Infantil – COEDI/SEB/MEC

Elaboração do texto-base:

Lucimar Rosa Dias

Colaboração:

Dezembro de 2008

Sumário

Apresentação

Introdução

1.1. Políticas públicas e a questão racial – ontem e hoje

1.2.Tratados internacionais pela infância

Educação infantil e a questão racial no âmbito da pesquisa acadêmica

1.4. Educação infantil e as relações étnico-raciais. Um objeto de pesquisa?

1.5. Considerações acerca deste tema

2.1. Sugestões de intervenções nas políticas atuais da COEDI/SEB

2.1.1. Ações em desenvolvimento pela COEDI/SEB

2.1.1.1. Construção de documento de orientações sobre convênios entre secretarias

2.1.1.2. Construção de orientações curriculares para as práticas cotidianas na educação de crianças de 0 a 3 anos nas escolas de educação infantil

2.1.1.3. Indicadores de qualidade da educação infantil

3. Orientações a partir dos eixos do plano nacional de implementação da lei

Considerações finais

Bibliografia

Apresentação

O presente documento constitui o texto-base preliminar para a elaboração de um

programa de ações que oriente a implementação de políticas de promoção da igualdade

racial na educação infantil, tanto no COEDI/MEC quanto nas redes de ensino.

Ele se origina de um Convênio entre o CEERT1, UNICEF, e MEC (Coedi),

realizado em fins de 2008, e configura um passo inicial para a delimitação de um corte

étnico-racial nas políticas de educação infantil do MEC. Neste sentido, cabe salientar

que construir uma proposta de orientações para a implementação de política de combate

à desigualdade racial na educação infantil envolve a abordagem de um problema

complexo que se manifesta de formas diferentes nas regiões brasileiras, exigindo um

amplo debate social entre os vários atores envolvidos, para garantir resultados

concretos.

Desta forma, o CEERT, UNICEF e COEDI/SEB/MEC formularam o Projeto

“Educar para a Igualdade Racial: institucionalizando práticas e implementando normas

para uma educação livre do racismo”, cujos objetivos centrais são:

1) Definir balizas de boas práticas de tratamento do tema das relações étnico-

raciais em sala de aula, a partir da análise e sistematização de um acervo de cerca de

1000 (mil) experiências inscritas nas três edições do Prêmio Educar para a Igualdade

Racial, visando selecionar e indicar metodologias, atividades, conteúdos programáticos,

bem como produzir indicadores de sucessos que embasem e auxiliem pedagogias

voltadas ao atendimento satisfatório da Lei 10.639/2003;

2) Arrolar parâmetros para a implementação da Lei 10.639/2003, no âmbito da

gestão escolar, a partir do acompanhamento das duas escolas selecionadas na 4ª edição

do Educar para a Igualdade Racial. As ações de gestão e pedagógicas desenvolvidas por

essas escolas serão monitoradas pelo CEERT, por um período de até 12 (doze) meses,

visando a sistematização dos passos indispensáveis e recomendáveis para a

1 O CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, fundado em 1990, é uma organização não-governamental, apartidária e sem fins lucrativos. A missão do CEERT é combinar produção de conhecimento com programas de treinamento e intervenção, comprometidos com a igualdade de oportunidades e de tratamento e a superação do racismo, da discriminação racial e de todas as formas de discriminação e intolerância. Desenvolve projetos principalmente nas áreas de acesso da população negra à justiça, ao direito de igualdade racial e de gênero, à liberdade de crença religiosa, de implementação de políticas públicas, de educação, saúde e relações de trabalho.

institucionalização dessas ações voltadas à implementação da Lei 10.639/2003, no

âmbito escolar;

3) Definir orientações de gestão e pedagógicas que subsidiem a identificação da

discriminação racial e estimulem o Ministério da Educação e as redes de ensino do país

a desenvolverem políticas, programas e ações de promoção da igualdade racial e de

combate ao racismo, voltados à educação infantil.

Para alcançar este último objetivo, foram definidos os seguintes passos: (i)

levantamento, sistematização e análise das experiências de educação infantil, inscritas

nas edições do prêmio; (ii) realização de reuniões técnicas com especialistas em

educação infantil e relações raciais; (iii) realização de seminários estratégicos com

diferentes parceiros que trabalham com a educação infantil; (iv) elaboração de um

programa de ações que oriente a implementação de políticas de promoção da igualdade

racial na educação infantil, tanto no MEC como nas redes de ensino; (v) realização de

pesquisa para identificar e caracterizar o tratamento do ensino das relações étnico-

raciais na educação infantil, incluindo indicação de material didático existente.

Segundo a Anti-Defamation League – ADL (Liga Anti-Difamação),2 até os seis

anos de idade, cerca de 50% das crianças já apresentaram atitudes preconceituosas. No

Brasil, não é diferente. Pesquisas de Rita Fazzi (2000), Lucimar Rosa Dias (1997, 2008)

e Eliane Cavalleiro (1996, 2003) identificaram que tanto adultos quanto crianças

utilizam extenso repertório racista, com destaque para os xingamentos, tais como “tição,

macaco, leite azedo”, entre outros. Os que desvalorizam as características físicas das

crianças negras são mais freqüentes. Entre as educadoras, a atitude mais comum é o

tratamento distinto entre as crianças: 1. super-valorização das brancas em detrimento

das negras; 2. quando, por exemplo, não penteiam o cabelo crespo das crianças negras,

alegam não saber como fazê-lo ou quando, ao elogiar a atividade da criança branca,

referem-se a ela como produtora de algo bem feito – “Parabéns, você é muito

caprichosa!”. Ao elogiar o trabalho da criança negra, aludem apenas ao produto:

“Parabéns, sua lição está bem feita!”. Além disso, as atitudes das crianças não são 2 Em 1913, nos EUA, foi criada a Anti-Defamation League – ADL (Liga Anti-Difamação), por iniciativa do advogado Sigmund Livingston. Ao longo de seus mais de 80 anos de existência, a ADL consolidou-se como uma das mais importantes instituições judaicas no combate ao anti-semitismo e discriminação das minorias em geral. Possui sedes em todos os estados americanos, um escritório em Jerusalém e um em Viena, Áustria. AADL está sempre presente onde o preconceito e a difamação deixam seu rastro. A entidade vem assessorando as comunidades judaicas da ex-União Soviética, América Latina e Ásia, entre outras.

esporádicas ou “impensadas”, como se não percebessem as diferenças entre as pessoas.

De acordo com estudos internacionais, elas começam a perceber as diferenças raciais na

faixa etária dos três aos cinco anos de idade 3 e, com o passar do tempo, passam a julgá-

las de acordo com o contexto em que estão inseridas, podendo expressar tais diferenças

com a finalidade de desvalorizar o outro.

Estes resultados confirmam que é necessária e urgente a constituição de uma

política educacional comprometida com a promoção da igualdade racial desde a

Educação Infantil, primeira etapa da educação básica.

Nesse sentido, apresentamos algumas orientações como etapa inicial para que a

COEDI/SEB possa definir estratégias e ações de construção da Política de Promoção da

Igualdade Racial na Educação Infantil. Entendemos de fundamental importância que a

consulta envolva progressivamente pesquisadores, universidades e instituições

educacionais que promovem ações em prol da promoção da igualdade. E, além disso,

que se estabeleça um diálogo com secretarias estaduais e municipais de educação que

formaram equipes específicas para tratar desse tema, com organizações não-

governamentais dedicadas a discutir as relações étnico-raciais, bem como a articulação

com os movimentos sociais e com organismos internacionais que atuam com políticas

públicas para infância.

O presente documento está organizado em três partes. A primeira trata da

igualdade racial na Educação infantil– dos marcos legais às pesquisa acadêmicas. A

segunda sugere, a partir de ações desenvolvidas pela COEDI, intervenções para incluir a

promoção da igualdade racial na Educação Infantil. Já a terceira parte toma como

referencial os eixos do Plano Nacional de Implementação da Lei de Diretrizes e Bases

da Educação – LDB, alterada pelas leis 10.639/03 e 11.645 4, para a proposição de

3 O mais emblemático destes estudos, o Dolls Test, realizado por um casal de psicólogos na década de 1950, nos EUA, com crianças entre 6 e 9 anos, constatou que as crianças negras atribuíam características positivas às bonecas brancas e negativas, às negras. Outra experiência semelhante, feita por uma jovem de 17 anos, no Harlem, em 2006, concluiu que esta situação ainda se repetia. Fonte: http://www.finalcall.com/artman/publish/article_2919.shtml. Acesso em: 11 nov. 2008. 4 Em dezembro de 2007, o Ministério da Educação, em resposta às proposições encaminhadas pelos participantes de um workshop sobre a implementação da Lei 10.639/2003, realizado pelo MEC/SECAD e a representação da UNESCO no Brasil, instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar um Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais. Este grupo é coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e as Secretarias de Educação Básica, Educação Técnica, Ensino Superior e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão representadas por gestores e/ou técnicos que sistematizaram e apresentaram as ações e programas desenvolvidos por essas secretarias, após a publicação da Lei

ações. Consideramos importante que a Coordenação Geral de Educação infantil

estabeleça uma conexão entre a formulação da Política de Educação infantil e os eixos

do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da

Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-

brasileira e Africana – Lei 10.639/2003.

10.639/2003. Participam também deste grupo representantes das seguintes instituições: Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPed); Ação Educativa; Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT); Centro do Estudante Afro-brasileiro (CEAFRO); Comissão Assessora (CADARA); Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED); Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Direitos Humanos (SEDH); União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); UNESCO e UNICEF. Este material foi entregue ao ministro da Educação, em 20 de novembro de 2008, com o título de Contribuições para Implementação da Lei 10.639/2003.

1. Introdução

1.1. Políticas Públicas e a questão racial – ontem e hoje

Nota inicial deve ser dedicada para demarcar duas armadilhas conceituais e

políticas, freqüentemente presentes no debate sobre o papel da escola na promoção da

diversidade étnico-racial.

Um primeiro equívoco considera esta temática um problema dos negros

(indígenas e/ou grupos religiosos), para os negros e pelos negros.

Ocorre que a Constituição Federal fixa três objetivos centrais para o serviço

público educação, quais sejam o pleno desenvolvimento do indivíduo, preparo para o

exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (art. 206).

Vale anotar, a propósito, que a Declaração Universal sobre a Diversidade

Cultural 5 estabelece que “a diversidade cultural é fator de existência intelectual, afetiva,

moral e espiritual satisfatória” (art. 3º).

Com isso, já podemos afirmar que o pleno desenvolvimento da pessoa, no

contexto de sociedades plurais, multiculturais e pluri-raciais depende, em grande

medida, da capacidade de os sistemas de ensino dialogarem, valorizarem e protegerem

os marcos culturais formadores da nacionalidade. Sem isso, compromete-se não o

interesse de um ou outro grupo particular, mas sim a própria qualidade da educação.

Assim, a educação infantil, como de resto a educação lato sensu, deve ser

tomada a partir de dois ângulos distintos e complementares: 1. o primeiro como espaço

dentro do qual deve-se assegurar a interação respeitosa e positiva da alteridade,

adequando-se as estruturas físicas, materiais didáticos e paradidáticos, tanto quanto os

educadores, para serem agentes de promoção da diversidade. O segundo ângulo situa a

educação infantil como instrumento de transformação social, pois prepara a primeira

infância para valorar positivamente a diferença, dissociando-a de inferioridade, de modo

que a médio e longo prazos o preconceito e a discriminação sejam erradicados da

sociedade. Por este ângulo, não basta que a Educação infantil deixe de ser fonte de

discriminação, cabe-lhe também fomentar uma cultura de paz, respeito recíproco e

convivência harmoniosa entre todos os grupos étnico-raciais, culturais e religiosos.

Como todas as outras formas de organização de um povo, a educação não traz

questões para o seu interior que não decorram da sociedade na qual está inserida. Por

5 Deliberada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, em 2002.

isso, é importante localizar, historicamente, como o combate à discriminação, à

intolerância, ao racismo e à xenofobia adentra o território da educação como uma

questão fundamental dos tempos atuais.

A preocupação com a discriminação racial e questões correlatas a ela há muito

têm sido foco dos organismos internacionais. Na liderança desse processo está a

Organização das Nações Unidas (ONU). Porém, mesmo antes da ONU, iniciativas de

caráter internacional já tinham ocorrido para garantir a paz mundial ou mesmo

estabelecer parâmetros nas relações de convivência entre os países, objetivando atitudes

mais pacíficas.

A Conferência de Haia para a Paz (1899) 6 tinha como princípio básico definir

regras para a resolução pacífica de controvérsias internacionais. No documento, não há

qualquer referência específica às questões étnico-raciais ou mesmo às questões mais

gerais da discriminação, mas indica a necessidade de se constituir uma “cultura da paz”

como, contemporaneamente, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a

Ciência e a Cultura (UNESCO) tem chamado os princípios relacionados ao respeito e à

convivência entre os diferentes grupos étnico-raciais e religiosos.

Em 1919, criou-se a Liga (ou Sociedade) das Nações, logo após o término da

Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com o objetivo de preservar a paz e assegurar o

cumprimento das normas de direito internacional, consubstanciando-se em princípios

como diplomacia aberta, arbitragem, segurança coletiva e cooperação econômica.

Contudo, não foi uma ação bem sucedida e gerou conflitos intensificados pela

assinatura do Tratado de Versalhes (1919) 7 que desembocaram na Segunda Guerra

Mundial (1939-1945). Esta, por sua extensão de tempo, quantidade de países

envolvidos, número de mortos e feridos deixou marcas profundas nas sociedades do

mundo inteiro.

É nesse período que ocorrem alguns dos crimes mais brutais contra a

humanidade. Com a ascensão de Adolf Hitler (1933) na Alemanha, estabelece-se um

dos mais aviltantes processos de perseguição e extermínio de seres humanos – judeus,

eslavos, ciganos, comunistas, deficientes físicos e homossexuais são as vítimas

potenciais dessa cruzada. Também a morte de japoneses, provocada pela explosão da

6Para mais detalhes, ver < www.pca-cpa.org/PORTUGUESE/POBD-1899.pdf.> Acesso em 04 set. 2006. 7GARCIA, Eugênio Vargas. O Brasil e a Liga das Nações. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 2000.

bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki (1945), e a catástrofe de Leningrado (1941) 8

foram eventos que tornaram aqueles tempos sombrios e impuseram ao mundo do pós-

guerra a tomada de uma posição mais contundente em relação à proteção dos povos.

Tornou-se premente estabelecer regras para fazer deste tempo uma era mais

contida e cuidadosa com a vida. Nesse contexto, a ONU é constituída 9 como uma nova

tentativa de estabelecer parâmetros positivos de relacionamento entre os povos. No

capítulo I, art. 1º, item 3 da Carta das Nações Unidas 9, consta que uma de suas funções

será:

Realizar a cooperação internacional, resolvendo os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.

Esta proposição deixa nítido que o investimento em ações promotoras do

respeito às diferenças terá sido uma diretriz desse novo organismo. É também um

diferencial em relação aos tratados anteriores (Haia e Liga das Nações) que não citavam

raça, sexo ou língua de modo explícito.

A UNESCO, braço das Nações Unidas responsável pela educação, ciência e

cultura, estabeleceu marcos importantes para comprometer os países-membros com a

assinatura de tratados que visassem o estabelecimento de políticas para cercear as

práticas da intolerância em diferentes países. Essa iniciativa teve reflexos fundamentais

nos estudos das relações raciais no Brasil.

Os empreendimentos desse organismo na constituição de instrumentos

internacionais foram basilares para os países-membros, no que se refere à produção de

políticas para minorias étnicas, raciais e religiosas. Um dos primeiros instrumentos com

este caráter foi a convenção relativa à luta Contra a Discriminação no Campo do

Ensino, adotada pela UNESCO, na sua 11ª sessão, em Paris, em 14 de dezembro de

8 “Dos seus três milhões de habitantes existentes em 1941, um terço sucumbiu pelas bombas e, principalmente, pela fome. […] No julgamento de Nuremberg, falou-se de 632 mil vítimas, enquanto outras fontes indicam 900 mil mortos. Seja qual for o número correto, o fato é que Leningrado possui o maior cemitério de vítimas civis da Segunda Guerra Mundial”. Disponível <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/segunda_guerra8.htm>. Acesso em: 20 set. 2006. 9 Há uma extensa produção que problematiza esses objetivos. Para uma visão geral do assunto, recomendamos a leitura do artigo de CAMBESES, Manuel. A Organização das Nações Unidas e a paz mundial. Disponível em < www.esg.brasileiro/publicacoes/artigos/a024.html > Acesso em: 7 set. 2006.

1960, que entrou em vigor internacionalmente em 22 de maio de 1962. O artigo 5º.

prevê:

a) tornar obrigatório e gratuito o ensino primário: generalizar e tornar acessível a todos o ensino secundário sob suas diversas formas; tornar igualmente acessível a todos o ensino superior em razão das capacidades individuais; assegurar a execução por todos da obrigação escolar prescrita em lei. (Convenção relativa à luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino, 1960, art. 5º, item a)10

O caráter enfático do texto que indica o papel fundamental da educação ainda é

reforçado em vários outros instrumentos da entidade que abordam o tema. Entre eles

estão a Declaração sobre Racismo e Preconceito Racial (1978), a Convenção

Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a

Declaração sobre os direitos das pessoas pertencentes a minorias nacionais ou étnicas,

religiosas e lingüísticas (1992), a Declaração de Princípios sobre a Tolerância (1995), a

Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002), e a Convenção sobre a

Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005).

Ainda nesse contexto, há a Convenção da Organização Internacional do

Trabalho (OIT), nº111, relativa à Discriminação no Trabalho e Ocupação, de 25 de

junho de 1958, e a Convenção nº 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Nações

Independentes (1989). Representam, também, marcos neste processo de indução de

diálogos e promoção de políticas para a igualdade entre os povos, a 1ª. Conferência

Mundial contra o Racismo, realizada em Genebra (Suíça), em 1978, cujo objetivo

principal foi condenar o regime de apartheid na África do Sul; a 2ª. Conferência

Mundial contra o Racismo, também em Genebra, em 1983, que reavaliou a primeira e

indicou medidas para a ONU, a fim de contribuir para a eliminação do racismo e do

apartheid; e a última, em Durban, África do Sul, em setembro de 2001, que teve forte

repercussão entre os ativistas da igualdade racial no Brasil e envolveu setores dos

movimentos negro e indígena brasileiros. Esta produção de instrumentos define-se

como tentativas importantes na construção de sociedades em que o respeito mútuo seja

a tônica. A quantidade de convenções e declarações indica a enorme dimensão e

complexidade dessa questão em âmbito internacional, com reflexos na esfera nacional.

10 Para mais detalhes, ver <http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/convdiscensino>. Acesso em: 20 set. 2006.

No caso brasileiro, a UNESCO teve papel marcante no empreendimento dos

estudos das relações raciais, inicialmente para investigar a existência ou não de conflitos

e desigualdades baseados na raça. Sua principal ação foi financiar, nos anos 50,

pesquisas para compreender as relações raciais, pois considerava o Brasil um exemplo,

para o mundo pós-guerra, de convivência ente povos, culturas e raças diferentes. Esse

financiamento proporciona uma intensificação do estudo dessa temática em várias

regiões, principalmente Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Pernambuco, e também

investe no intercâmbio de diferentes áreas, como Sociologia, Antropologia e História

na compreensão das relações raciais no Brasil.

Estas pesquisas marcam um novo modo de interpretar as relações raciais no

Brasil que se diferenciará, radicalmente, das explicações vigentes, como as de Donald

Pierson (1942). Este pesquisador recusava a existência de preconceito de raça no Brasil,

mas sim um preconceito associado à cor. Também serão diferenciadas das

interpretações de Gilberto Freyre (1933), para quem, no Brasil, as relações raciais eram

mais harmoniosas, se comparadas com os EUA.

Pesquisadores como Roger Bastide, Florestan Fernandes (1955) e Abdias do

Nascimento (1968) discordaram tanto de que no Brasil o preconceito seria de cor como

do fato de que viveríamos numa sociedade menos desigual. Para os primeiros, a questão

articulava-se com o desenvolvimento das relações de trabalho, para justificar o

fenômeno em conceitos da teoria marxista, produzindo uma nova explicação para a

desigualdade entre os brasileiros, considerando a perspectiva de raça. Já Nascimento

(1968) defendeu que, para acabar com o racismo, seria necessário fortalecer os valores

da cultura tradicional africana no Brasil e levá-los a fazer parte da consciência e cultura

das instituições brasileiras. Dedicou-se então a uma produção relacionada à área

cultural, tendo como principal via de suas idéias a organização do Teatro Experimental

do Negro (TEN) e a luta por políticas públicas a favor dos negros.

Entre os pesquisadores que produziram a partir do projeto UNESCO, destacam-

se Bastide e Florestan (1955), Oracy Nogueira (1955), Thales de Azevedo (1953),

Guerreiro Ramos (1954), Fernando Henrique Cardoso (1962) e Otavio Ianni (1960).

Diferentemente do que esperava a UNESCO, os resultados das pesquisas retrataram a

sociedade brasileira permeada pelo preconceito de raça/cor. Algumas delas defendiam

que os preconceitos de raça e cor seriam superados, na medida em que a sociedade de

classes se organizasse de forma mais consistente. Outras, que o preconceito seria

decorrência da escravidão. Estas pesquisas, algumas contraditórias entre si,

configuraram-se em suportes utilizados tanto pela academia quanto pelos agentes do

movimento negro que se apropriam dos resultados para criticá-los ou reiterá-los, o que

dá à questão racial certa visibilidade e contribui para que o debate prosseguisse e

ampliasse seu espaço.

Nos anos 70, o entendimento das relações raciais apresenta novas interpretações,

com ênfase no modo estruturante das relações sociais. Carlos Hasenbalg (1979, p. 85),

por exemplo, argumenta que “[…] as práticas racistas do grupo dominante branco que

perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão

funcionalmente relacionadas com os benefícios materiais e simbólicos que o grupo

branco obtém da desqualificação dos não brancos”.

A ampliação do debate sobre a situação da população negra brasileira prossegue,

ganhando importância com o processo de democratização que se revela nos avanços

deste tema presentes na Constituição Federal (1988), como se pode constatar dos

seguintes preceitos

“art. 215, § 1°. O Estado protegerá as manifestações das culturas

populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos

participantes do processo civilizatório nacional. § 2° A lei disporá

sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os

diferentes segmentos étnicos nacionais”.

“art. 242, § 1°. O ensino da História do Brasil levará em conta as

contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do

povo brasileiro”.

De acordo com Silva Jr. (2002):

Tratam-se de prescrições que não apenas conferiram à idéia de

cidadão um traço marcadamente plural e diverso, como também

reavaliaram o papel ocupado pela cultura indígena e afro-brasileira,

no passado e no presente, como elementos fundantes da

nacionalidade e do processo civilizatório nacional, ao lado,

naturalmente, da cultura de matiz europeu. Por outro lado,

configuram enérgica censura àquela obsessão de natureza etno e

eurocêntrica que prossegue seduzindo o imaginário das elites

brasileiras, cuja fórmula básica associa os símbolos de ética e de

estética à brancura, à figura do europeu – mais precisamente aos tipos

arianos, louros como aqueles que povoam as telas de TV e as peças

publicitárias nativas. (SILVA JR, 2002, p. 30)

Porém, mesmo antes de 1988, governos estaduais e municipais foram

pressionados pela rearticulação do movimento negro pós-reabertura política, sendo que

à época um dos principais resultados foi a criação dos Conselhos de Participação da

Comunidade Negra, com destaque para o Conselho de Participação e Desenvolvimento

da Comunidade Negra de São Paulo, criado em 1984, paradigma para outros estados e

municípios. Ainda nessa trilha, o então presidente José Sarney instituiu em 1987 o

Programa Nacional do Centenário da Abolição da Escravatura, em razão dos cem anos

da Lei Áurea, e também em reação a mobilizações das organizações negras, e

constituiu, em 1986, a Fundação Cultural Palmares – FCP, vinculada ao Ministério da

Cultura. Uma das principais atribuições da FCP era: “realizar a identificação dos

remanescentes das comunidades dos quilombos, proceder ao reconhecimento, à

delimitação e à demarcação das terras por eles ocupadas e conferir-lhes a

correspondente titulação e também promover o registro dos títulos de propriedade nos

respectivos cartórios imobiliários”, atendendo a reivindicações deste importante

segmento.

Contudo, foram os anos 90 que tornaram visível ao poder público o empenho

dedicado à temática das desigualdades raciais como um fato a ser reconhecido e que

impunha a necessidade de ações para sua superação. O pioneiro foi o Rio de Janeiro,

onde, em 1991, nasceu a Secretaria Estadual de Defesa e Promoção das Populações

Negras. Ação semelhante ocorreu em Belo Horizonte, MG, em 1998, com a criação da

Secretaria Municipal para Assuntos da Comunidade Negra (SMACON). Apesar de a

criação de secretarias limitar-se a estas duas, multiplicaram-se as experiências de

criação de órgãos intitulados Coordenadorias do Negro em governos municipais e,

depois de 2000, em alguns governos estaduais.

É importante destacar que a história em prol de ações afirmativas para população

negra no Brasil ocorre com recuos e avanços. Nesse campo de luta, os defensores da

idéia de que nosso país é “democrático racialmente” estão sempre prontos a reafirmar,

quando necessário, essa tese. Ao mesmo tempo, está cada vez mais presente a idéia de

que essa “igualdade abstrata” não se sustenta. Tal disputa configura-se numa luta

política e esse movimento instaura novos modos de atuar sobre o tema das relações

raciais. Resulta, em alguns casos, em mudanças na sociedade, refletindo-se inclusive no

interior das instituições escolares.

Um ponto de tensão permanente refere-se à distância entre os marcos legais e as

práticas do cotidiano. O Brasil tornou-se signatário da convenção relativa à luta Contra

a Discriminação no Campo do Ensino, em 1968, em plena ditadura militar. O decreto

63.233, assinado pelo então presidente Costa e Silva, traz em seu artigo V, item a:

Os Estados Partes na presente Convenção convêm em que: a) a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito aos direitos humanos e das liberdades fundamentais e que deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e a todos os grupos raciais ou religiosos, assim como o desenvolvimento das atividades nas Nações Unidas para a manutenção da paz.

Presume-se, com isso, que desde 1968 o Estado brasileiro deveria ter

empreendido políticas públicas no campo educacional para tornar realidade a

proposição desse artigo, porém, isto não aconteceu nas leis educacionais que se

seguiram a essa convenção. Tanto na Lei 5540/1968, de 28 de novembro de 1968, que

fixou normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com

a escola média, quanto na Lei de Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus

5692/1971, de 11 de agosto de 1971, a idéia de favorecer a compreensão, a tolerância e

a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos é tratada apenas

tangencialmente. Essas leis tiveram grande importância para a educação brasileira, mas

foram leis de ajuste àquele momento, de repressão política por parte do Estado.

A partir da Constituição de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional – LDBN 9394/96 deu um salto qualitativo e incluiu no art. 26, § 4º, que “o

ensino de História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e

etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana

e européia” 11.

Em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso instituiu o Grupo de

Trabalho Interministerial (GTI), respondendo às reivindicações de ativistas negros que

participaram da Marcha Zumbi dos Palmares12, realizada em novembro daquele ano. A

11 Para mais detalhes, ler DIAS, Lucimar Rosa, Quantos passos já foram dados? A questão de raça nas leis educacionais. Da LDBN de 1961 à Lei 10.639. Revista on-line www.espaçoacademico.com.brasileiro/038/038cidas.htm 12 A Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e a Vida, que aconteceu ontem, em Brasília, nas comemorações dos 300 anos da morte de Zumbi, reuniu cerca de 4.000 pessoas entre as 12h e 13h, de

partir do estabelecimento desse grupo, algumas ações foram empreendidas no âmbito do

governo federal, estabelecendo um marco nas políticas afirmativas. Em 13 de maio de

2002, ainda sob o comando do presidente Fernando Henrique Cardoso, o governo

federal lançou o Programa Nacional de Ações Afirmativas, objetivando promover “os

princípios da diversidade e do pluralismo no preenchimento de cargos da administração

pública federal e na contratação de serviços por órgãos do governo”. No mesmo dia foi

lançado o Plano Nacional de Direitos Humanos II, que incluiu medidas de combate à

discriminação. Em dia 14 de maio daquele mesmo ano era lançado o Programa de Ação

Afirmativa do Instituto Barão do Rio Branco, que apóia candidatos afrodescendentes

para concurso na carreira diplomática.

Para responder às pressões do MN, resultantes de mobilizações para a

participação na III Conferência Mundial contra o Racismo, o então ministro da

Educação, Paulo Renato de Souza, divulgou os Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs) para o Ensino Fundamental (1997) como ação afirmativa na educação. O

volume 10, Pluralidade Cultural e Orientação Sexual, tem como um dos objetivos

gerais:

[...] conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais. (PCN, v. 20, 1997, p. 4)

Ao lado dos PCNs, Souza também incluiu a produção de material publicitário

federal, no qual contempla a diversidade racial brasileira entre os seus maiores feitos no

campo das ações afirmativas. Outra ação do MEC de grande repercussão foi um acordo

com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para desenvolver o projeto

Diversidade na Universidade, do qual decorreram várias ações educativas, como o apoio

a cursos pré-vestibulares realizados por instituições negras13.

acordo com a estimativa da PM. Entre os organizadores do evento não havia um consenso sobre os participantes. Foram mobilizados 600 policiais para a segurança, o equivalente a um policial para cada 18 manifestantes. Normalmente, a PM do DF mantém um policial para cada mil habitantes”. Este movimento foi acompanhado da entrega de um documento reivindicatório ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Folha de S. Paulo, SP, Cotidiano p. 1-3, 21/11/95, reportagem de Daniela Pinheiro e Alexandre Secco. 13 O Ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, em São Paulo, no dia 04 de setembro de 2002, na inauguração da primeira etapa do projeto Diversidade na Universidade, cujo objetivo é facilitar o acesso de camadas menos favorecidas da sociedade, principalmente negros e indígenas, ao ensino superior. O

Em 2003, um dos primeiros atos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-

2006), foi a promulgação da Lei 10.639/2003, alterando o art.26-A, da LDB, que institui

a obrigatoriedade da história e cultura africana nos ensinos fundamental e médio. Em

2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Nacionais Curriculares

para a Educação Étnico-racial e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e

Africana, doravante tratada neste texto pela sigla DCEER. Esta lei foi recebida com

entusiasmo pelo Movimento Negro, reivindicada havia muito tempo, e com críticas por

alguns setores da sociedade, como mostra o editorial da Folha de S. Paulo:

A idéia de combater o racismo pela educação pluralista faz sentido. O mesmo não se pode dizer da proposta de fazê-lo baixando uma norma que obriga todas as escolas, de ensino fundamental e médio, públicas e particulares, a ministrar aulas de história e cultura afro-brasileira. (Folha de S. Paulo, 14/01/2003) 14

Outro fator que se constituiu um marco das lutas reivindicatórias do Movimento

Negro e propulsor de experiências no âmbito da educação, entre outras áreas, foi a

criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial

(SEPPIR)15, criada pela medida provisória 111, em 21 de março de 2003, e convertida

na Lei 10.678/2003, em 23 de maio. Sua missão prevê “acompanhar e coordenar

políticas de diferentes ministérios e outros órgãos do governo brasileiro para a

promoção da igualdade racial [...]”16.

O primeiro governo Lula (2003-2006) institucionalizou alguns espaços para a

atuação em políticas, chamadas de promoção da igualdade racial. No âmbito da

educação, cria-se a Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

(SECAD), em julho de 2004, no Ministério da Educação (MEC). Nela estão reunidos

temas como alfabetização e educação de jovens e adultos, educação do campo,

ambiental, escolar indígena e diversidade étnico-racial, antes distribuídos em outras

programa, criado pela Medida Provisória 63, publicada no DOU (Diário Oficial da União) em agosto desse ano, receberá U$ 9 milhões, das quaisU$5 milhões do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e U$4 milhões do Tesouro Nacional, para utilizar em três anos. Para começar o programa foram selecionados seis projetos de cursos pré-vestibular de ONGs (Organizações Não-Governamentais) de São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, que receberam, juntos, R$ 342.438,00 em 2003, quando 820 estudantes foram beneficiados. <http://www.lpp-uerj.net/olped/cined/banco/exibir_noticias.asp?codnoticias=971>. Acesso em: 17 jan. 2007 14 Nesta mesma esteira, em março de 2008 outra lei é sancionada, alterando novamente o art.26-A da LDB, agora para contemplar a população indígena – a título de comparação, o mesmo veículo não publicou nenhuma matéria sobre a alteração ora citada. 15 Anexo 63. 16 Brasil. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Material de divulgação, data provável [2003?], p. 4.

secretarias. De acordo com o site do ministério: “A criação da SECAD marca uma nova

fase no enfrentamento das injustiças existentes nos sistemas de educação do país,

valorizando a diversidade da população brasileira, trabalhando para garantir a

formulação de políticas públicas e sociais como instrumento de cidadania 17”.

A SECAD é composta por quatro departamentos: Educação de Jovens e Adultos,

Desenvolvimento e Articulação Institucional, Avaliação e Informações Educacionais e

Educação para a Diversidade e Cidadania. Este último envolve quatro coordenações:

Ações Educativas Complementares, Educação Ambiental, Educação do Campo,

Educação Indígena e Educação de Diversidade e Inclusão Educacional, que tem as

seguintes atribuições:

[...] contribuir para a redução das desigualdades educacionais por meio da participação de todos os cidadãos, em especial de jovens e adultos, em políticas públicas que assegurem a ampliação do acesso à educação continuada. Além disso, a secretaria responde pela orientação de projetos político-pedagógicos voltados para os segmentos da população vítima de discriminação e de violência. 18.

De acordo com informações do site, em 2004 foram realizados mais de 20

fóruns estaduais, em todo o país, para discutir a desigualdade no cotidiano escolar. O

objetivo foi colocar na agenda dos gestores públicos, educadores e movimentos sociais

as estratégias de reflexão, conhecimento e intervenção sobre a presença do racismo e

seus derivados nos sistemas de ensino em seus diversos níveis, além de discutir a

implementação da LDB alterada pela Lei 10.639/2003. Pretendeu-se também mapear as

experiências de sucesso no ingresso e permanência de alunos negros nas escolas.

Por fim, o governo federal realizou, em maio de 2005, a Conferência Nacional

para a Igualdade Racial, que destacou as propostas referentes à educação.

O balanço nacional da implementação da LDB, alterada pela Lei 10.639/2003,

revela que, apesar da riqueza das experiências desenvolvidas nos últimos anos, a

maioria delas significa experiências isoladas e não abrange a educação básica nem a

totalidade das redes de ensino, restringindo-se a projetos descontínuos e de pouca

articulação com as políticas no campo da educação, como formação de professores,

materiais e livros didáticos, o que indica baixa institucionalidade. Em dezembro de

2007, o Ministério da Educação – em resposta às proposições encaminhadas pelos

17 <http://portal.mec.gov.br/secad>. Acesso em: 9 maio 2006. 18 Ibidem

participantes de um workshop sobre a implementação da Lei 10.639/2003, realizado

pelo MEC, SECAD e UNESCO – instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar um

Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das

Relações Étnico-raciais.

Este grupo é coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização

e Diversidade. As secretarias de Educação Básica, Técnica, Ensino Superior e Instituto

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão

representadas por gestores e/ou técnicos que sistematizaram e apresentaram as ações e

programas desenvolvidos por essas secretarias após a publicação da Lei 10.639/03.

Participam também deste grupo, representantes das seguintes instituições: Associação

Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); Associação Nacional de Pesquisa em

Educação (ANPed); Ação Educativa; Centro de Estudos das Relações de Trabalho e

Desigualdades (CEERT); Centro do Estudante Afro-brasileiro (CEAFRO); Comissão

Assessora (CADARA); Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho Nacional de

Secretários Estaduais de Educação (CONSED); Secretaria Especial de Políticas de

Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Direitos Humanos (SEDH);

União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e Fundo das Nações

Unidas para a Infância (UNICEF).

Para garantir uma participação ampliada, foram realizados os Diálogos

Regionais sobre a Implementação da Lei 10.639/2003, em seis Unidades da Federação

(UF), entre abril e junho de 2008, que reuniram aproximadamente 720 participantes dos

movimentos sociais, representantes dos conselhos municipais e estaduais, enfim, os

principais atores na implementação da Lei 10.639/2003.

O documento referência, elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial, foi

analisado e debatido, e se constituiu no principal instrumento para a elaboração do

Plano Nacional de Implementação da Lei 10.639/2003. Além disso, procurou assegurar

a abordagem e visão das diferentes regiões sobre as dificuldades e necessidades no

processo de institucionalização das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das

Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e

Africana. O desafio de construir o referido Plano Nacional foi delineado em torno de

seis eixos temáticos: fortalecimento do marco legal, política de formação para gestores e

profissionais da educação, política de material didático e paradidático, gestão

democrática e mecanismos de participação social, condições institucionais, avaliação e

monitoramento19.

A identificação das políticas institucionais que, de algum modo, podem ser

consideradas ações afirmativas, sobretudo no campo educacional, é uma tentativa de

demonstrar que elas refletem a tensão presente na sociedade. Porém, o fato de serem

políticas focais e pouco articuladas entre os setores de governo permite-nos afirmar que

o resultado dessa tensão ainda é tênue e frágil, e não mostra o tamanho da desigualdade

a ser enfrentada, principalmente porque o princípio das políticas públicas, inclusive as

educacionais, centra-se na universalidade, e não na focalização.

A identificação das experiências de cursos de formação de professores,

apresentada na pesquisa de Dias (2007)20, indica que governos de diferentes partidos já

se propuseram a enfrentar esta demanda. Parece-nos inequívoco que há um movimento

internacional e nacional pela implementação de políticas de promoção da igualdade

racial, indicando a necessidade de repensar a idéia de um Brasil mestiço, cultural e

racialmente, um Brasil de “morenos”, isto é, um país que gerou uma “raça brasileira” e,

com isso, eliminou o racismo, o preconceito e a discriminação.

Embora predomine entre os formuladores de políticas públicas, essa concepção

tem sido tensionada pela ação dos ativistas e pesquisadores, como se observa no

relatório apresentado na III Conferência Internacional Contra o Racismo, a Xenofobia e

outras Formas Correlatas de Intolerância, em 2001, feito pelo Instituto de Pesquisa

Econômica Aplicada (IPEA).

Pressionado, o Estado brasileiro tem tratado das desigualdades raciais, ainda que

de modo tenso, vagaroso, com idas e vindas, o que gera ambigüidade: ora o Estado

reconhece essa desigualdade, ora deslegitima as reivindicações do Movimento Negro,

ao não admitir a sua urgência e centralidade. Há um conflito permanente nesse campo,

mas com indicativos de que o reconhecimento da desigualdade racial está conquistando

19 Saiu publicado em novembro de 2008 com o título: Contribuições para Implementação da Lei 10.639/2003/ Proposta de Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei 10.639/2003/ MEC/UNESCO < http://www.cefet-rj.br/comunicacao/noticia/documentos/contribuicoes.pdf> consultado em 08/11/2008. 20 DIAS, Lucimar Rosa. No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao racismo. 2007. Tese de doutorado, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, especialmente o primeiro capítulo.

espaço, na medida em que o Estado institui políticas específicas para contribuir na

superação das desigualdades que afetam a população negra. Talvez essa afirmação seja

um pouco otimista, pois Ana Lúcia Valente (2000) vem afirmando que é grande a

capacidade de o Estado absorver algumas demandas de setores excluídos do poder

político e, mesmo assim, não alterar substancialmente as condições de subalternidade,

devido à correlação de forças.

Nas escolas, um exemplo de que essa temática ganha espaço formal é o Prêmio

Educar para a Igualdade Racial: Experiências de Promoção da Igualdade Racial/Étnica

no Ambiente Escolar, coordenado pelo CEERT e realizado em 2002, 2004, 2006 e

2008. Esse concurso recebeu mais de mil experiências realizadas por professores de

educação infantil, ensino fundamental e médio, provenientes das cinco regiões do país.

Tais iniciativas criam condições para reorganizar o currículo para proporcionar aos

alunos a compreensão de que a diversidade racial encontrada na escola é essencialmente

positiva.

Isso mostra que a discussão sobre a formação de professores para atuar nessa

área é uma necessidade concreta da educação, pois ações voltadas a essa temática já

existem nas escolas, exigindo que investiguemos mais essa variável do processo ensino-

aprendizagem. Para Maclaren (2000, p. 145): “reformar o currículo significa afirmar as

vozes das pessoas oprimidas: as educadoras precisam dar aos marginalizados e aos sem-

poder uma opção preferencial”. Ele aponta o multiculturalismo crítico e de resistência

como o arcabouço teórico que orientaria esse tipo de atitude. O autor caracteriza o

multiculturalismo como:

[...] movimento que, fundamentalmente, argumenta em favor de um currículo que seja culturalmente inclusivo, incorporando as tradições culturais dos diferentes grupos culturais e sociais. Pode ser visto como resultado de uma reivindicação de grupos subordinados – como as mulheres, as pessoas negras e os homossexuais, por exemplo: para que os conhecimentos integrantes de suas tradições culturais sejam incluídos nos currículos escolares e universitários. Mais criticamente, entretanto, também pode ser visto como uma estratégia dos grupos dominantes, em países metropolitanos da antiga ordem colonial, para conter e controlar as demandas dos grupos de imigrantes das antigas colônias. (MACLAREN, 2000, p. 81)

Segundo Canen (1997a), trabalhar temas como tolerância, respeito e apreciação

da diversidade cultural é contrapor-se a uma educação monoculturalista, ou seja,

quebrar a homogeneização cultural presente na escola. Por isso, falar em diversidade

cultural implica falar em relações de poder na sociedade. Para a autora, esse é um dos

compromissos de uma educação que seja, de fato, transformadora, em uma sociedade

multicultural como a nossa, em que a diversidade de grupos étnico-culturais e sociais é

reconhecida. “Há que promover uma sensibilização em professores e futuros

professores para a necessidade de trabalhar currículos e práticas pedagógicas que levem

em conta esta realidade” (CANEN, 1997, p. 481).

1.2.Tratados internacionais pela infância

Os tratados internacionais que disciplinam, especificamente, a educação infantil

preocupam-se em proteger as crianças contra ações de discriminação racial. Um

exemplo disso é a Declaração dos Direitos da Criança, proposta pela Assembléia Geral

das Nações Unidas e ratificada pelo Brasil em 20 de novembro de 195921, que enumera

os direitos e as liberdades a que faz jus toda e qualquer criança, segundo o consenso da

comunidade internacional.

Tal como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração dos

Direitos da Criança enuncia um padrão a que todos devem aspirar. Entre as muitas

recomendações, o princípio 10º trata especificamente da discriminação racial:

A criança gozará de proteção contra atos que possam suscitar

discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza.

Criar-se-á num ambiente de compreensão, de tolerância, de

amizade entre os povos, de paz e de fraternidade universal e em

plena consciência de que seu esforço e aptidão devem ser

postos a serviço de seus semelhantes (princípio 10º da

Declaração dos Direitos da Criança, 1959).

Outro marco importante ocorreu em 1979, definido pela ONU como Ano

Internacional da Criança, que chamou a atenção do mundo para a situação das crianças

e suas necessidades. Em decorrência, o Brasil desenvolveu a Política Nacional em

Favor da Infância, modificando a forma como as políticas em favor da infância e da

21 Documento inspirado na Declaração dos Direitos da Criança de Genebra, 1924.

juventude integravam o planejamento econômico e social do país, passando a dar maior

ênfase aos programas preventivos. Reconheceu-se, também, a necessidade de um

orçamento significativo para a cobertura nacional dos serviços básicos, com atenção

especial para o saneamento.

Em 1988, o Brasil antecipa-se e inclui, no artigo 227 da Constituição, o

conteúdo da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela ONU em 1989: “É

dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com

absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à

profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência

familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,

discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (grifo nosso)22.

Neste mesmo ano iniciou-se a formulação da Convenção sobre os Direitos da

Criança, considerado um dos mais amplos tratados ratificados de Direitos Humanos,

adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, e

ratificado pelo Brasil em janeiro de 1990. Nesta Convenção, o art. 29 prescreve:

1. Os Estados Partes reconhecem que a educação da criança deverá estar orientada no sentido de:

a. desenvolver a personalidade, as aptidões e a capacidade mental e física da criança em todo seu potencial; b. imbuir na criança o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, bem como aos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c. imbuir na criança o respeito aos seus pais, à sua própria identidade cultural, ao seu idioma e seus valores, aos valores nacionais do país que reside, aos do eventual país de origem, e aos das civilizações diferentes da sua (grifo nosso); d. preparar a criança para assumir uma vida responsável numa sociedade livre, com espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade de sexos e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos, e pessoas de origem indígena (grifo nosso);

e. imbuir na criança o respeito ao meio ambiente.

22 Grifo nosso.

A Convenção, da qual o Brasil é signatário, é um importante documento

internacional que reconhece a educação para as relações étnico-raciais como um direito

da criança.

Em 1990, no Encontro Mundial de Cúpula pela Criança, as questões relativas às

crianças foram intensamente debatidas. A partir desse evento, a agenda pela infância

também se intensifica e mais de 150 países assumem o compromisso em favor do

desenvolvimento infantil, endossando a Declaração Mundial e estabelecendo um Plano

de Ação que incluiu sete metas principais e mais outras 20, de apoio, em favor da

criança. Estas metas deveriam ser alcançadas até o ano 2000.

Ainda em 1990, o Brasil aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente –

ECA, regulamentando os direitos da criança e do adolescente. O conteúdo do Estatuto

está em perfeita consonância com a Convenção adotada pelas Nações Unidas.

Dentre as metas estabelecidas em prol da infância, não há uma, explicitamente,

que se refira à questão racial, nem meta específica, contudo, a sétima meta recomenda

que os Estados devem preocupar-se com: “Melhor proteção às crianças que vivem em

circunstâncias particularmente difíceis, e empenho na procura de solução para as causas

fundamentais dessa situação”. Tal formulação permite-nos inferir que crianças que

sofrem discriminações devem ser os sujeitos principais das ações governamentais que

considerem os preceitos dessa meta.

Pesquisa do IPEA (set. 2008) alerta que, embora as políticas universais incidam

em melhoria para todos, a desigualdade entre negros e brancos persiste, especialmente,

na área da educação.

A discriminação motivada por sexo e por pertencimento a um grupo de cor/raça encontra-se disseminada em diversos campos da vida social. Se o sistema educacional é o campo no qual são reproduzidos muitos dos estereótipos de gênero existentes em nossa sociedade, no caso da questão racial ainda se constitui uma esfera marcada por fortíssimas desigualdades no acesso e na permanência dos indivíduos dos diferentes grupos populacionais. Esta é uma característica muito importante, na medida em que o acesso à escolaridade é uma das formas por excelência de ascensão social e de potencialização do acesso a muitos bens produzidos pela sociedade. Desta forma, enquanto as desigualdades raciais se perpetuarem no campo educacional, também está garantida a perpetuação de seus mecanismos de reprodução. Neste sentido, os indicadores

educacionais se convertem em um importante instrumento de percepção do quão desiguais são as possibilidades de construção de oportunidades sociais para os diferentes grupos raciais. (UNIFEN/IPEA, set. 2008, p. 4)

Se os dados estatísticos demonstram que a população negra está em pior situação

em relação à população branca, é possível afirmar que as crianças negras e pobres

deveriam ser o principal foco de toda política que pretenda superar as desigualdades.

Porém, no Brasil há uma dificuldade imensa de conjugar políticas considerando-se as

variáveis cor/raça e pobreza. A principal alegação é que as políticas universalistas

atendem a todos. Assim, perdem-se preciosas oportunidades de acelerar a marcha para a

promoção da igualdade racial. Se pensarmos na criança negra, essa ausência de políticas

focadas torna o quadro mais aterrador e os números oficiais mostram que o acesso é

desigual para população infantil preta ou parda e os mais pobres, nesta fase da

educação.

Indicadores

2005

Taxa de freqüência

à creche:

Crianças de 0 a 3 anos

Crianças de 0 a 3 anos

Brasil: 13%

Preta ou parda: 11,6% (Branca: 14,5%)

Rural: 4,6% (Urbano: 15,2%)

Norte: 5,8% (Sul: 16,1%)

20% mais pobres: 8,6% (20% mais ricos: 27,6)

2006

Taxa de freqüência

à creche:

Crianças de 0 a 3 anos

Crianças de 0 a 3 anos

Brasil: 15,5%

Preta ou parda: 13,8% (Branca: 17,1%)

Rural: 6,6% (Urbano: 17,6%)

Norte: 8,0% (Sudeste: 19,2%)

20% mais pobres: 9,7% (20% mais ricos: 29,6%)

Em relação às crianças que freqüentam a pré-escola, o quadro de desigualdade

de acesso é parecido.

Indicadores

2005

Taxa de freqüência

à pré-escola:

Crianças de 4 e 5

anos

Crianças de 4 a 5 anos

Brasil: 63%

Preta ou parda: 60,6% (Branca: 65,3%)

Rural: 44,5% (Urbano: 67,5%)

Sul: 49,1% (Nordeste: 70,9%)

20% mais pobres: 52,2% (20% mais ricos: 85,7%)

2006

Taxa de

freqüência

à pré-escola:

Crianças de 4 e

5 anos

Crianças de 4 a 5 anos

Brasil: 67,6%

Preta ou parda: 65,4% (Branca: 70,2%)

Rural: 50,0% (Urbano: 72,0%)

Sul: 53,7% (Nordeste: 73,8%)

20% mais pobres: 58,0% (20% mais ricos: 87,2%)

Este quadro, que revela a desigualdade de acesso das crianças negras, é

argumento suficiente para se desenvolver uma política que enfrente tal realidade,

principalmente porque estudos feitos no Brasil (UNICEF, UNESCO, Banco Mundial e

IPEA)23 sobre o impacto de ações dirigidas à primeira infância e o acesso de crianças à

educação infantil produzem benefícios de ordem educacional, econômica e social.

A expansão da oferta para a educação infantil acontece lentamente e como

resultado da pressão social, mas acelerou a partir dos anos 70. No entanto, esse

crescimento não tem sido acompanhado de políticas afirmativas para os segmentos

populacionais de maior vulnerabilidade, exceto na variável classe, o que, pelos dados,

vimos que não é suficiente para tratar das desigualdades de origem racial, especialmente

quando nos referimos à população infantil.

Outro momento memorável na instituição de políticas para a infância foi o

chamado Pacto pela Infância, criado em 1991, que contou com a adesão de mais de cem

representantes da sociedade civil organizada e de instituições públicas, e culminou, em

1992, no Encontro de Governadores Pela Criança, em que dirigentes de 24 Estados e do

Distrito Federal debateram a situação da criança e assinaram uma Declaração de

Compromissos com quatro pontos básicos: saúde, ensino fundamental; combate a todas

as formas de violência contra a criança (grifo nosso); cumprimento das metas

estabelecidas na Cúpula Mundial pela Infância.

Estes marcos poderiam ter desencadeado ações de maior amplitude no Brasil, ao

tratar da situação das crianças negras e indígenas, cuja integridade tem sido ameaçada,

impedindo-as, muitas vezes, de crescer de forma saudável, psíquica e materialmente.

Mesmo assim, consideramos que uma gradativa mudança está se operando na sociedade

brasileira, pois quando vários setores admitem a existência do racismo, surgem

iniciativas na esfera pública.

Tais políticas se coadunam não só com os tratados internacionais em favor da

infância, mas também com resultados de pesquisas acadêmicas que investigaram o

resultado do racismo nas relações entre adultos e crianças, crianças e crianças, em

ambientes educacionais. Elas revelam que, longe de uma sociedade sem conflitos

raciais, o ambiente educacional nos quais as crianças e os adultos estão, reproduz e 23 COELHO, Rita de Cássia, BARRETO, Ângela Rabelo. Financiamento da educação infantil: perspectivas em debate. Brasília: UNESCO, Brasil, 2004.

produz situações de alta agressividade, comprometendo, especialmente, o bom

desenvolvimento das crianças negras nesta etapa tão importante do desenvolvimento

infantil. É parte destes resultados que pretendemos apresentar a seguir.

1.3.Educação infantil e a questão racial no âmbito da pesquisa acadêmica

Assim como os tratados internacionais não foram suficientes para desencadear

políticas públicas que amparem a criança negra e indígena nas suas vulnerabilidades

sociais, culturais e econômicas, os estudos acadêmicos incluem ainda, de forma muito

lenta e gradual, a pesquisa que articula os estudos da primeira infância e as relações

étnico-raciais, numa ação que pode tornar visível a situação reiteradamente negada por

boa parte das educadoras desta etapa educacional.

O que tem prevalecido como pensamento hegemônico entre educadoras e

pesquisadoras desta fase da educação é o não reconhecimento de que os conflitos de

origem étnico-racial se manifestem nas instituições de educação infantil.

Talvez por isso seja pequeno o número de pesquisas que trabalhem com a

formação de professores e as relações raciais, e ainda mais escassas as que abordam,

nessa discussão, a educação infantil. Porém, as poucas pesquisas que ousaram tratar

deste tema apontam que, sim, o racismo e a discriminação de cunho racial ocorrem

nesta fase, de diferentes maneiras – ora entre crianças; ora entre adultos e crianças; nas

relações interpessoais que se estabelecem, mas também no currículo desenvolvido pelas

instituições; nos materiais didáticos; na própria organização da instituição; nas

definições legais relativas a esta etapa; enfim, em todas as dimensões na qual a

educação infantil está organizada.

Ao tratar da educação infantil, procuramos apreender as particularidades desse

tema e as relações raciais. Sabemos que há muitas questões nessa etapa da educação, e

uma delas é a sua função. No entanto, não entraremos neste mérito porque há várias

pesquisadoras que se dedicam a esse tema, como Sônia Kramer (1999; 2004; 2005 e

2006); Maria Malta Campos (1999), Fúlvia Rosemberg (1996, 1999), Ana Lucia

Goulart de Faria (2005a; 2005b), entre outras.

Há, portanto, uma rica reflexão, com diferentes pontos de vista, que busca o

melhor formato para atender as crianças pequenas e garantir o seu direito de ser

crianças24. O que se pretende é protegê-las de propostas educacionais que “roubem as

suas infâncias”, resultado de uma preocupação excessiva com a alfabetização.

Nossa posição em relação à educação infantil é que as mais diversas linguagens

devem ter espaço: a corporeidade, a musicalidade, os desenhos e, conseqüentemente, o

desenvolvimento do gosto pela leitura, as descobertas da escrita e tantos outros

conhecimentos.

Independentemente das denominações dadas aos lugares que freqüentam e as pessoas

que convivem com as crianças pequenas, reiteramos que elas devem ser

atendidas/recebidas de acordo com as suas peculiaridades, possibilitando que se

expressem nas multilinguagens. O jogo, a brincadeira, os brinquedos, o aprender a estar

com o outro diferente e igual têm de fazer parte desse cotidiano. Nossa perspectiva, ao

pensar em espaços educativos formais para crianças pequenas, está em consonância com

o desafio apresentado por Peter Moss:

Hoje uma tarefa importante diante da primeira infância é como criar um ambiente democrático, crítico, que possa confrontar as forças hegemônicas. Esse ambiente irá reconhecer e celebrar uma multiplicidade de perspectivas, uma diversidade de conceitos e práticas e a contestabilidade de todos os conhecimentos e reivindicações de verdade. (MOSS, 2002, p. 237)

No Brasil, a educação infantil, com aprovação da LDB 9394/1996, passou a ser

um direito da criança, independentemente de sua condição social. Todos os meninos e

meninas de 0 a 5 anos e 11 meses devem ter garantido o seu direito à educação básica.

Essa premissa é vitoriosa do ponto de vista legal, mas a inclusão da educação infantil

como etapa da educação básica ainda está longe de ser concretizada. Em 2001, de

acordo com estudos de Maria Dolores B. Kappel (2001), apenas 10,6% das crianças

entre 0 e 3 anos de idade, e 57,1% das crianças entre 4 e 6 anos estavam matriculadas

em creches e pré-escolas. Essa realidade torna-se mais precária quando se considera o

atendimento dos filhos das famílias que recebem até meio salário mínimo 25.

24 Consideramos que “ser criança” é uma construção histórica e se relaciona com o tipo de cultura na qual os sujeitos estão inseridos. 25 Dados apresentados no relatório do Grupo de Trabalho, instituído pela Portaria Interministerial 3.219, de 21 de setembro de 2005, formado por integrantes do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, do Ministério da Educação e do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Disponível <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/Educinf> Acesso em: 28 out. 2006.

Quando agregamos a esses dados o componente racial, o quadro agrava-se ainda

mais. De acordo com pesquisa desenvolvida por Fúlvia Rosemberg (1999)26, o índice de

retenção de crianças negras na pré-escola é maior que o das brancas. Há um claro

desfavorecimento para as crianças de famílias com baixa renda, especialmente as

negras. Os dados mostram que a predominância absoluta de crianças, com 7 anos ou

mais, ainda na pré-escola, é de negras, chegando a 63,5%. Já em relação às crianças

brancas nessa mesma faixa etária, o percentual cai para 36,5%.

Em relação à desigualdade racial apresentada pela pesquisa, as causas

econômicas, por si só não explicam a retenção maior das crianças negras. Para

Rosemberg (1999), ao componente econômico agrega-se o “pessimismo racial”.

Segundo a autora, esse processo consiste na descrença, por parte dos que atuam na

educação infantil, do gestor ao professor, da capacidade intelectual da criança negra.

Esse “pessimismo racial” pode sofrer rupturas se professores e gestores que

atuam na educação infantil incorporarem atividades que tratem das relações étnico-

raciais. Meninos e meninas dessa faixa etária são ativos pensadores da vida nos seus

mais diferentes aspectos, fazem perguntas a respeito de si mesmos, dos fenômenos

naturais, das descobertas tecnológicas, vida e a morte, perguntam sobre as diferenças de

cor e cabelo, opção política e tantos outros temas. Também formulam e encontram

respostas a esses mesmos temas a partir do que vêem, ouvem e sentem ao seu redor.

Com as respostas obtidas por diferentes meios, organizam seu modo de pensar sobre si

mesmos e os outros, construindo, nesse processo, conceitos como superioridade,

inferioridade, igualdade e desigualdade, entre outros.

Questões como: quem sou eu? Quem é ele/ela? Por que ele/ela é diferente de

mim? Em quê ele/ela é diferente de mim? Por que meu amigo/a tem essa cor? aparecem

nessa etapa como parte do processo de construção da sua identidade, que será sempre

uma construção relativizada pelo outro. Nesse processo de pensar sobre si mesmo,

pensa-se no outro e na sociedade. Assim, professores, diretores, funcionários e todos os

que lidam com a criança pequena têm grande importância.

Com tantas perguntas a responder, o papel da educadora na construção da

identidade é bastante influente. Um exemplo é o relato da educadora Mariama, em

26 Fúlvia Rosemberg tem inúmeras contribuições, tanto como pesquisadora como orientadora de pesquisas na área de relações raciais, inclusive no campo da educação infantil.

entrevista feita por mim, durante minha tese de doutorado.

Havia um menino [...], bem negro, negro, negro! Eu fui dar banho [nele] e na hora do banho eles tiram a roupa, ficam nus. Tirei toda a roupa dele e tinha um menino bem branquinho, branquinho, branquinho, branquinho, branco mesmo! Ele não era do nível 2. Era do nível 4. Eu estava dando banho no nível 2. Ele entrou no banheiro para fazer xixi. Como era menino, pediu licença. Eu falei que podia entrar. Ele entrou e parou. Ficou olhando para o menino [que estava no banho]. Eu falei: “Porque você está olhando o P. L.?” Ele falou assim: “Ah! Tia por que ele é assim?” Eu falei: “Assim? Assim como?” Ele respondeu: “Assim!” Então eu falei: “Assim como?” Ele respondeu: “Ele é preto, a cor dele é preta, ele é preto...” Eu falei: “Ele é assim porque nasceu assim. É a cor, ele é negro...” Eu já tinha alguma informação de que não deveria falar preto. Tinha de ser negro, que era a raça, eu reforcei. “Ah! Ele é negro, você quer dizer que a cor dele é negra. Ele é assim, porque ele nasceu assim, é a raça. Tem raça branca... tem raça negra.” Aí, ele falou assim: “Mesmo se ele tomar banho e você esfregar muito com a bucha e com sabão ele não vai ficar branco?” Eu falei: “Não, porque ele nasceu assim, ele é assim.” Então, o L. me perguntou: “E se ele pegar e arrancar todo o courinho dele?” Ele usou a palavra courinho: “E se ele pegar e arrancar todo o courinho dele, não vai nascer outro branco?” Eu respondi: “Não vai nascer outro branco porque ele é negro.” Aí que ele foi entender que a criança tinha aquela cor. O que eu achei engraçado é que eles já conviviam. E o L. não havia percebido a cor do P. pelo rosto, ele só percebeu quando o menino estava nu, aí ele percebeu. (Professora Mariama – entrevista concedida em 23/09/2006, grifo nosso)

O depoimento ilustra fatos corriqueiros do cotidiano da educação infantil.

Apesar disso, não deixa de ser complexo. Uma criança, ao olhar para outra, percebe-a

diferente de si mesmo. Em seguida, há a sensação de estranhamento do menino branco

diante da visão do menino negro. Por fim, a ação da educadora. Atenta, utiliza esse

momento para ensinar e aprender as diferenças raciais – fato não tão corriqueiro assim.

Nem sempre a educadora possui instrumentos para perceber que ali está um conteúdo

fundamental a ser trabalhado. Seu procedimento é exemplar, do ponto de vista

pedagógico.

Ela considerou o estranhamento do menino branco em relação ao menino negro

como uma questão que deveria ser refletida e, por isso, faz perguntas ao menino branco.

Com isso, permite que o menino branco dialogue com ela sobre as suas impressões e

tenha a oportunidade de refletir nas diferenças raciais entre os seres humanos. Convida-

o a expressar seus sentimentos e possibilita-lhe manifestar o que está pensando, ao

mesmo tempo em que apresenta outras referências para compreender a “negritude” que

lhe causou tanta estranheza.

Ela poderia, simplesmente, considerar que uma criança de quatro anos estava

atrapalhando o seu trabalho e encerrar o assunto com uma bronca ou, pior, ignorar a

atitude do menino branco. No entanto, percebeu um rico momento de ensino-

aprendizagem e de educação das relações étnico-raciais, e não o dispensou. Certamente,

o que deu à educadora essa percepção relaciona-se ao fato de que ela já tinha alguma

informação sobre o tema das relações raciais, como fica claro em outro trecho da sua

entrevista:

É porque, no bairro onde eu moro, existe uma comunidade, eu fazia parte dessa comunidade, comunidade religiosa, né, na época... católica, e lá havia uma associação de ... uma associação de... para...trabalhos... trabalhos sociais e dentro dessa associação sempre havia palestrantes que iam lá falar uma coisa assim … que iam falar. Palestras sobre esse assunto. (Professora Mariama – entrevista concedida em 23/09/2006)

A educação infantil estabelece que a função da educadora é cuidar e educar 27.

Entendemos que uma dimensão não existe sem a outra – ao cuidar, educa-se; ao educar,

cuida-se. O cuidar não se restringe tão-somente à manutenção das condições básicas de

higiene, alimentação e segurança. Essa dimensão contém as necessidades de o educador

cuidar da criança também nos aspectos relativos a sua subjetividade e individualidade.

Se as educadoras têm responsabilidades com os aspectos objetivos da dimensão

cuidado, devem ter, na mesma medida, com os aspectos subjetivos. Um desses é o

processo de construção da identidade das crianças. Ele ocorre na interação social, entre

as crianças e seus pares, e entre as crianças e os adultos, e na instituição de educação

infantil é mediado pelos modos como a professora cuida/educa.

Para ser comprometida com uma educação séria, de qualidade e democrática, a

educadora tem de estar atenta a essas subjetividades. É sua responsabilidade

proporcionar às crianças momentos nos quais referências positivas relativas a todos os

grupos humanos estejam presentes, possibilitando-lhes que aprendam a importância da

diversidade. Os marcos legais já indicam essa tarefa. Os Referenciais Curriculares da

Educação Infantil (RCNEI,) de 1998, recomendam:

O desenvolvimento da identidade e da autonomia está intimamente

27 Não entraremos no mérito do motivo e como essas dimensões tornaram-se regra na educação infantil.

relacionado com os processos de socialização. Nas interações sociais se dá a ampliação dos laços afetivos que as crianças podem estabelecer com as outras crianças e com os adultos, contribuindo para que o reconhecimento do outro e a constatação das diferenças entre as pessoas sejam valorizadas e aproveitadas para o enriquecimento de si próprias. (RCNEI, v. 2, 1998, p.11)

Evidentemente, a educação não pode eliminar todas as desigualdades,

principalmente as que têm por base estrutural a economia. Pode, no entanto, colaborar

na construção do que chamamos de percepção da igualdade entre os seres humanos.

É papel fundamental da educação, como um todo, e da educação infantil, em

particular, possibilitar que as crianças vivenciem um ambiente escolar igualitário na sua

concretude, exatamente porque nele se respeita e se discute as diferenças. Para isso, não

adianta que as educadoras usem frases de efeito, muito comuns no meio educacional,

como: “Para mim, as crianças são iguais”, “Eu trato todos do mesmo jeito”, “Aqui, na

sala, não tem diferença de cor”, “Eu nem percebo a cor dos meus alunos” ou “Eu não

presto atenção se tem preto ou branco na sala”.

Essas frases estão imbuídas de um princípio de democracia, no sentido criticado

por Maclaren (2000, p. 42), pois, segundo ele: “Uma das perversões sub-reptícias da

democracia tem sido a maneira pela qual os cidadãos têm sido convidados a se

esvaziarem de toda a sua identidade racial e étnica, de forma que, aparentemente, eles se

apresentam nus diante da lei” – atitude que essas frases revelam. Longe de ser

pronunciados por educadoras comprometidas com uma educação igualitária, tais

comentários são próprios de pessoas que agem como se não vissem as diferenças

raciais, colaborando para que as crianças naturalizem as suas percepções sobre a

desigualdade racial.

O velho ditado “quem cala consente” é verdadeiro neste caso. Calar diante das

questões que as relações raciais suscitam entre as crianças pequenas, é colaborar para

que, de um lado, crianças negras, em sua maioria, cresçam tímidas, temerosas e

envergonhadas de si mesmas, e a escola continue um ambiente que não as acolhe,

negando insistentemente sua história e cultura, sem protegê-las contra a violência da

discriminação e do preconceito raciais. De outro lado, colabora para que crianças

brancas cresçam, acreditando na superioridade que a brancura lhes possibilita. O

ambiente escolar hostil e desigual para crianças negras e brancas é estabelecido desde a

mais tenra idade. Como pode ser constatado em pesquisa de Fabiana de Oliveira

(2005), da qual damos um exemplo emblemático:

[...] estávamos no refeitório, e V. (negro) estava sentado à mesa com as outras crianças, aliás, coisa rara de se ver. No entanto, antes de o menino terminar de comer, Marli o colocou no cadeirão, não entendi por que, pois ele estava comportado, ao contrário de I. (branco), que tirou o tênis e jogou em cima da mesa, em seguida, se levantou e correu pelo refeitório. Marli foi atrás dele e só disse para ele ficar quieto. Diante da situação, Raquel (pajem/negra) veio e sentou ao lado de I. (branco) dizendo: “Vamos ficar quieto, que negócio é esse de ficar correndo, não me deixa ficar brava”, só assim, para ele ficar sentado. Marli nem cogitava a possibilidade de colocá-lo no cadeirão. E o cadeirão era uma forma de castigar as crianças pelos seus atos, mas I. (branco) estava sempre livre de tal castigo, parecendo ser uma questão de pele, diante desse tratamento diferenciado. (OLIVEIRA, 2005, p. 38)

O episódio sugere que dois bebês, muito cedo, percebem que ambos podem

fazer coisas diferentes e que essas possibilidades estão diretamente relacionadas ao seu

pertencimento étnico-racial.

Algumas pesquisas, tanto qualitativas, como as de Eliane Cavalleiro (1998),

Lucimar Rosa Dias (1997) e Iolanda Oliveira (1999), como quantitativas, caso de

Ricardo Henriques (2002) e Marcelo Paixão (2003), comprovam a permanência do

racismo e, como resultado, a desigualdade racial, o preconceito e a discriminação. Mas

eles também apontam a possibilidade de a educação colaborar na construção de uma

sociedade democrática que busca eliminar o racismo. Para Tomaz Tadeu da Silva

(2004), não é mais possível pensar uma educação democrática sem esta dimensão:

Analisar a educação e trabalhar na educação de uma perspectiva culturalista implica prestar atenção às formas e processos pelos quais as histórias e narrativas que são contadas no currículo estão implicadas em relações de poder. [...] Uma das mais importantes tarefas da crítica e da intervenção cultural em educação consiste precisamente em perguntar quais grupos e interesses não apenas estão representados no currículo, mas têm o poder de representar outros. E, inversamente, quais grupos e interesses deixam de estar representados ou são representados por outros. É importante também se perguntar quais posições de poder são fortalecidas nesse processo e quais são enfraquecidas. (SILVA, 2004, p. 201-202)

Um dos objetivos das DCEER é que a sociedade civil aproprie-se das propostas

contidas nas diretrizes elaboradas nas instituições do Estado e escritas por pessoas

oriundas do Movimento Negro28. A nosso ver, esses instrumentos estão cumprindo suas

28 Em 2002/2006, o Conselho Nacional de Educação teve entre seus membros representantes de índios e negros, indicados por seus respectivos segmentos. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, destaque da comunidade negra, e Francisca Novantino Pinto de Ângelo, pelos indígenas. Esse fato

funções, como balizadores de ações com esse propósito. Eles são, no momento, recursos

que amparam a luta de algumas organizações empenhadas em modificar a perspectiva

de um Estado que nega o racismo, para um Estado que, paulatinamente, o assume e age

para enfrentar nessa realidade.

Já há algumas décadas, pesquisadores procuram discutir e refletir para entender

as formas pelas quais as relações raciais no Brasil manifestam-se no campo educacional.

As pesquisas que discutem educação e raça começaram a ser produzidas com maior

relevo a partir da década de 80. O trabalho de Luiz Alberto Gonçalves (1985) é um

marco dessa produção. Entre as várias conclusões a que chegou, aponta o silêncio dos

educadores diante da discriminação sofrida pelas crianças negras na escola. Para ele, tal

atitude só será modificada na medida em que a escola considere a cultura negra tema

importante a ser introduzido na escola.

Ainda na década de 80, surgiram trabalhos como o de Ana Célia da Silva (1988),

denunciando estereótipos e preconceitos em relação ao negro nos livros didáticos. Esse

trabalho tem particular importância, pois solidifica uma questão já apontada por muitos

que trabalham com a questão racial, desde a década de 50, e mostra que naquele

momento livros com tais conteúdos ainda eram escritos. Outra pesquisa importante e

reveladora do que existe dentro da escola é o trabalho de Vera Moreira Figueira (1990).

A autora buscou demonstrar a existência do preconceito na escola, relacionando alunos,

professores e livros como formadores e sustentadores de um ciclo inculcador-reprodutor

do preconceito.

A década de 90 começou promissora em termos de trabalhos que vinculam raça

e educação. Luiz Cláudio Barcelos (1993) demonstrou a articulação existente entre o

índice de freqüência, permanência e evasão escolar com a variável raça, possibilitando

a compreensão de que raça e classe se relacionam, sem interferência do fator

econômico. Rachel de Oliveira (1992) também investigou as manifestações de

preconceito racial na escola através de uma avaliação de intervenções realizadas no

ensino, via Estado, na década de 80. Ela concluiu, como Barcelos (1993), que as

relações raciais verificadas na escola têm significativa importância no nível de

escolaridade das crianças negras e vão além da questão de classe.

Consuelo Dores Silva (1995), por sua vez, investigou como a interação interfere

ocorreu no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso.

na construção da identidade étnica e na auto-representação dos alunos não-brancos,

incluindo, portanto, não apenas negros. A autora acredita que existe uma ambigüidade,

nas crianças negras, em aceitar o próprio corpo e, por conseguinte, em se aceitar como

negras, gerando reações como timidez, melancolia, depressão e agressividade, que

interferem no seu processo de educação. Constatou também que, apesar de a maioria

das crianças investigadas ter introjetado o preconceito antinegro, há uma minoria

construindo uma auto-representação positiva. Além disso, é de suma importância a

afirmação da autora de que o fato de discutir o assunto com as crianças suscitou, mesmo

entre as que já tinham introjetado o preconceito, reações de contrariedade em relação à

discriminação racial, reforçando nossa premissa de que o diálogo sobre o assunto tende

a obter resultados positivos.

Outra contribuição importante foi o trabalho de Nilma Lino Gomes (1995).

Diferentemente de Consuelo Dolores Silva (1995), que trata da construção da identidade

dos alunos e suas conseqüências, Gomes desvenda a construção da identidade étnica das

professoras negras e a influência desse processo na relação pedagógica estabelecida

entre elas e seus alunos, ou seja, articula raça, educação e gênero. Os depoimentos

coletados pela autora mostraram:

[…] a difícil trajetória da mulher negra em nossa sociedade que rompe com o “lugar” a ela destinado pelo racismo. Este [o preconceito] atua de tal forma junto à construção da identidade racial dessa mulher que negar a existência do preconceito e da discriminação racial torna-se uma estratégia adotada por muitas para sobreviverem em meio a tantos conflitos. (GOMES, 1995, p. 269)

Juntos, os trabalhos de Silva (1995) e de Gomes (1995) mostram como a

discriminação racial afeta todos os componentes do processo educativo e apontam para

a necessidade de os cursos formadores de professores incluírem reflexões sobre a

diversidade étnico-racial da população com a qual irão trabalhar.

1.4.Educação infantil e as relações étnico-raciais. Um objeto de pesquisa?

Entre os estudos sobre raça e educação, raros tratam da educação infantil. Em

geral, eles abordam a partir da 1ª série, mas os poucos que existem são bastante

significativos, devido aos elementos que destacam.

Em 1994, Eliana de Oliveira dedicou-se à pesquisa “As Relações Raciais nas

Creches Diretas do Município de São Paulo”. Ela entrevistou as funcionárias e pediu

que classificassem as crianças atendidas através de fotografias. Nesse processo, as

pessoas que se classificavam como brancas indicaram maior porcentagem de brancos

entre as crianças, e as que se consideravam pretas indicaram maior porcentagem dessa

cor. Identificou-se uma tendência, qual seja, mulheres adultas brancas “clareiam”

crianças ao classificá-las por cor, pelo menos no que se refere às “pardas”.

Outro trabalho muito significativo, de Eliete Aparecida de Godoy (1996),

constatou que as crianças na faixa de 5 a 6 anos, ao se descrever aos colegas, referem-se

à cor da pele de maneira mais marcante do que as outras características. Também foi

possível captar que, já nessa idade, as crianças negras sentem-se desconfortáveis quando

necessitam verbalizar ou assumir sua condição étnico-racial. Demonstram interiorização

da ideologia negativa em relação às diferenças étnicas e procuram assemelhar-se,

fisicamente, ao branco. Essas atitudes foram observadas, apesar de a autora ressalvar

que, na relação entre as crianças, a discriminação não era perceptível, sugerindo que o

racismo, para existir e se perpetuar, prescinde de manifestações explícitas e agressivas.

O estudo de Eliane Cavalleiro (1998) teve alta repercussão entre os

pesquisadores do tema, especialmente porque ao abordar a questão do preconceito e da

discriminação racial na educação infantil, através da observação da dinâmica de uma

escola, ela verificou que professores tendem a elogiar e beijar mais as crianças brancas

do que as negras. Enquanto Cavalleiro destaca a manifestação do preconceito,

principalmente por parte dos professores, Lucimar Rosa Dias (1997) investiga as

decorrências e impactos da aplicação da metodologia Combate à Discriminação Racial

na Educação Infantil, organizada pela pesquisadora, pelos professores Ana Lucia

Valente e Jorge Manhães, no currículo escolar da educação infantil, em três escolas.

A pesquisa constatou que a continuidade de um trabalho com a temática racial

depende mais de seu projeto pedagógico do que da clientela que atende, ou seja, as

questões de classe e raça são variáveis que se imbricam e não se isolam. O trabalho

também identificou que não é necessário ter uma criança negra em sala para que o tema

seja tratado, pois a questão das relações raciais é, de fato, tema social e, por isso,

independe da presença de crianças negras e da sua classe social para que haja diálogo a

respeito. Nas escolas particulares não existiam crianças negras nas salas de aula

observadas, mas os debates foram ricos e produtivos.

Em 2003, Vera Lúcia Neri da Silva investigou os elementos que levam

educadoras de crianças de 5 e 6 anos a classificarem-nas como “crianças difíceis”. De

um grupo de 18 crianças, 10 foram consideradas difíceis. Três eram brancas e sete,

negras (pretas e pardas) e apenas uma era menina. Entre as fáceis, 4 eram brancas e 4,

negras – 4 meninas e 4 meninos. Silva constata que as professoras incluem as crianças

nestas duas categorias, a partir de características que, para elas, dificultam ou facilitam o

seu trabalho como professora. Por exemplo, crianças fáceis são “espertas”, “bem

comportadas”, têm “bom desenvolvimento”; já crianças difíceis são “teimosas”,

“agressivas”, “muito agitadas”. Nos depoimentos, Silva identifica que o comportamento

considerado louvável na criança branca, na criança negra é classificado como difícil

pela pesquisadora:

A existência de uma diferenciação racial entre as crianças que convivem no espaço das unidades de educação infantil (UEIs) pesquisadas remete a possibilidades de tratamentos diferenciados dados às crianças, que podem estar relacionados às imagens positivas e negativas construídas sobre elas. Neste caso, a cor, a “a marca corpórea racial” das crianças, assim como seus comportamentos sociais, são tidos, mesmo que inconscientemente, como índices de valor negativo. No campo objetivo, trata-se de um sistema de marcas físicas, que no campo subjetivo é associado a valores morais, intelectuais e culturais. [...] No convívio com os estereótipos negativos, as crianças aprendem a internalizar sentidos positivos ou negativos, sobre si mesmas, e a professora é uma das principais pessoas que vai lhes possibilitar “informações” sobre como e o quê elas são, a partir do fornecimento dos principais dados sobre seu desenvolvimento, suas capacidades e habilidades. (SILVA, 2008, p. 138)

Em 2004, Fabiana de Oliveira pesquisou as práticas educativas de uma creche da

rede municipal de ensino de São Carlos, SP, investigando como essas práticas

produzem e revelam a questão racial. Este estudo constitui um marco nos trabalhos que

tratam da educação infantil, pois examina práticas desenvolvidas com bebês (seis meses

a dois anos), faixa etária ainda menos estudada em relação ao tema.

Iolanda Oliveira também trabalhou com o tema da infância em outra faixa etária.

Seu estudo Desigualdades Raciais: Construções da Infância e da Juventude, publicado

em 1999, verifica o que crianças e jovens entre 6 e 15 anos reelaboram sobre as

desigualdades raciais na sociedade.

Já a pesquisa de doutorado de Rita de Cássia Fazzi (2004), O Drama Racial de

Crianças Brasileiras – Socialização entre Pares e Preconceito, procura descobrir, em

termos sociológicos, como crianças de 8 a 10 anos de idade, de duas escolas públicas de

Belo Horizonte, elaboram suas experiências raciais, e se existem manifestações

comportamentais de preconceito racial contra negros, no grupo investigado.

Eliane Cavalleiro (2003) em sua pesquisa de doutorado “Veredas das Noites sem

Fim: Socialização e Pertencimento Racial em Gerações Sucessivas de Famílias Negras”,

investigou como três gerações de famílias negras relacionam-se com a temática racial e

a educação. Ela chegou a conclusões pouco animadoras em relação aos mecanismos de

resistência elaborados por estas famílias. Em 2008, a tese de Lucimar Rosa Dias, “No

Fio do Horizonte: Educadoras da Primeira Infância e o Combate ao Racismo”, teve o

objetivo principal de compreender os modos pelos quais educadoras da primeira

infância apropriaram-se de conhecimentos adquiridos em cursos de formação

continuada de professores, cujo enfoque era o combate ao racismo e a maneira pela qual

transformaram, a partir daí, as suas práticas pedagógicas.

Apesar do visível crescimento de estudos nesta seara, os trabalhos

esquadrinhados não investigaram as múltiplas dimensões do tema nesta etapa

educacional. Ainda é necessário examinar como ocorrem as relações entre educadoras

negras e crianças/famílias brancas, os modos pelos quais as crianças se classificam e

compreendem as relações étnico-raciais, as formas de resistências criadas pelas crianças

negras para sobreviver nestes ambientes hostis à sua presença, a questão do cabelo e

suas representações em crianças pequenas. A tese de doutorado de Cristina Teodoro

Trinidad (PUC/SP) pretende, por meio da escuta de crianças pequenas, apreender como

elas concebem o seu pertencimento étnico-racial.

1.5. Considerações acerca deste tema

As relações étnico-raciais e a educação infantil formam um campo rico de

investigação ainda pouco explorado; mesmo assim, o que temos permite-nos reclamar

do Estado o seu papel de promotor da igualdade. Um dos caminhos, a nosso ver, é o

cumprimento dos tratados internacionais e dos compromissos nacionais assumidos para

a proteção da infância.

É necessário maior investimento do Estado, especialmente do MEC, em

materiais que apóiem o trabalho de formação inicial e continuada dos educadores desta

etapa educacional, para que todos os que atuam na educação infantil tenham condições

de intervir na produção e reprodução das desigualdades raciais que a educação pode

promover.

Neste sentido, tendo em vista o quadro de desigualdades raciais na educação

infantil, o marco legal e as principais pesquisas já realizadas, passamos à discussão das

políticas públicas para a promoção da igualdade neste território.

2 – Orientações para a construção de Política de Promoção da Igualdade Racial

Apresentação

Conforme abordamos no início deste texto, nosso objetivo é a elaboração de

orientações para a implementação de políticas de promoção da igualdade racial na

educação infantil, tanto no COEDI/MEC quanto nas redes de ensino, tendo em vista o

Convênio entre CEERT, UNICEF, e MEC (Coedi), realizado em fins de 2008.

Estas orientações, que compõe a segunda parte do documento, foram elaboradas

a partir de documentação encaminhada pela COEDI, e de entrevistas com profissionais

indicados pela COEDI. Por fim, a terceira parte toma como referencial os eixos do

Plano Nacional de Implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB,

alterada pelas leis 10.639/03 e 11.645 29, para a proposição de ações.

Consideramos importante que a Coordenação Geral de Educação infantil

estabeleça uma conexão entre a formulação da Política de Educação infantil e os eixos

do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da

Educação das Relações Étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-

brasileira e Africana – Lei 10.639/2003.

29 Em dezembro de 2007, o Ministério da Educação, em resposta às proposições encaminhadas pelos participantes de um workshop sobre a implementação da Lei 10.639/2003, realizado pelo MEC/SECAD e a representação da UNESCO no Brasil, instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar um Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais. Este grupo é coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e as Secretarias de Educação Básica, Educação Técnica, Ensino Superior e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão representadas por gestores e/ou técnicos que sistematizaram e apresentaram as ações e programas desenvolvidos por essas secretarias, após a publicação da Lei 10.639/2003. Participam também deste grupo representantes das seguintes instituições: Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPed); Ação Educativa; Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT); Centro do Estudante Afro-brasileiro (CEAFRO); Comissão Assessora (CADARA); Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED); Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Direitos Humanos (SEDH); União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); UNESCO e UNICEF. Este material foi entregue ao ministro da Educação, em 20 de novembro de 2008, com o título de (??? falta o título!)

Procedimentos:

A coordenação da COEDI/ SEB selecionou, no planejamento de 2008,

documentos e ações que vinham sendo realizadas, a partir das quais deveríamos

elaborar orientações referentes a promoção da igualdade racial. Os documentos foram

lidos e quando necessário solicitamos informações complementares a equipe da COEDI.

Todo o processo de análise e produção das orientações foram discutidos com a equipe

de educação do CEERT. Segue abaixo uma síntese dos documentos e da ação que

subsidiaram a produção das orientações.

Documentos:

1). Documento: Orientações sobre convênios entre secretarias municipais de

Educação e instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins

lucrativos para a oferta de educação infantil. A elaboração deste documento

envolveu um grupo técnico, composto por representantes da UNDIME, do MIEIB, da

CONTEE e da UNESCO, bem como um amplo debate nacional, em seis encontros

regionais. O documento considera a implementação do FUNDEB, a trajetória histórica

do atendimento da educação infantil por meio de convênios entre a Prefeitura/Secretaria

Municipal de Educação e as instituições privadas, sem fins lucrativos, comunitárias,

confessionais e filantrópicas.

2) Documento: Plano de Trabalho de Cooperação Técnica entre MEC e

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este plano de trabalho tem por

finalidade subsidiar a implementação de propostas pedagógicas comprometidas com a

qualidade e a expansão da educação infantil no Brasil e encontra-se em processo de

elaboração por um grupo técnico coordenado pela UFRS. Tem também por objetivo a

construção de orientações curriculares para as práticas cotidianas na educação de

crianças de 0 a 3 anos nas escolas de educação infantil.

3) Documento: Indicadores de Qualidade da Educação Infantil , cujo objetivo é criar

um instrumento de auto-avaliação participativa das instituições de educação infantil

com base em critérios qualitativos, visando promover ações voltadas à garantia do

direito à educação infantil de qualidade. A elaboração deste documento ficou a cargo de

um grupo técnico do qual participaram UNIDME, UNCME, MIEIB, ANPED, IPEA,

universidades, organizações não-governamentais30, organismos internacionais e

consulta em seminários regionais. Trabalhamos com a versão Preliminar de Indicadores

de Qualidade na educação infantil de 07/11/2008.

4) Ação: Atualização/revisão do marco regulatório da educação infantil

Neste caso não tivemos um documento para análise e nossas considerações se

baseiam em informações relatadas pela senhora Maria Ieda Nogueira, vice-presidente da

União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação e por uma técnica da COEDI.

Segundo relato da senhora Ieda, trata-se de discussões que são feitas nos

encontros da UNCME bem como nos momentos em que os conselheiros orientam os

municípios na organização de suas políticas educacionais, cujo objetivo é a

atualização/revisão do marco regulatório da educação infantil,.

A seguir, procuraremos situar cada uma destes documentos, ações e programas

e apresentar nossas orientações quanto ao recorte da diversidade étnico-racial.

Documentos:

1- Documento de orientações sobre convênios entre secretarias municipais de

Educação e instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins

lucrativos para a oferta de educação infantil

Conforme informações recebidas da COEDI/SEB, o documento visa orientar

a demanda de muitos municípios e pretende esclarecer as exigências de uma

política de convênio31 para oferta da educação infantil. Nossas considerações,

portanto, baseiam-se naquilo que, segundo acreditamos, um convênio dirigido à

promoção da igualdade racial deve contemplar.

É usual que as políticas municipais de educação incluam a celebração de

30 Neste GT, represento o CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. 31O documento preliminar para subsidiar as discussões nos seminários regionais recebeu o nome de Orientações sobre Convênios entre Secretarias Municipais de Educação e Instituições Comunitárias, Confessionais ou Filantrópicas sem Fins Lucrativos para a Oferta de Educação Infantil e foi apresentado para análise em outubro de 2008.

convênios com instituições privadas, comunitárias, confessionais ou filantrópicas,

sem fins lucrativos, para oferta de educação infantil. Como o FUNDEB incluiu as

matrículas em instituições de educação infantil cadastradas no Censo Escolar do

INEP, como conveniadas com o Poder público, é importante que a COEDI esclareça

e oriente os municípios na formulação da política de convênio. A questão

provocadora que nos cabe é: além das definições legais, que outras questões

poderiam orientar as políticas educacionais no processo de convênio para oferta de

educação infantil? Consideramos que, além das questões legais e das que tratam do

espaço físico, o documento deve abordar questões relacionadas à prática pedagógica

que afeta o desenvolvimento integral das crianças de 0 a 5 anos e 11 meses, tais

como gênero, sexualidade, relações étnico-raciais, que povoam o universo da

educação infantil.

Para isso, chamamos a atenção para algumas dimensões fundamentais nos

processos de convênios, que devem contemplar o corte étnico-racial.

1. Política municipal de educação infantil

Além de assegurar vagas suficientes para as crianças, é preciso oferecer

condições necessárias ao seu desenvolvimento integral, expresso no projeto

pedagógico, fundado nas dimensões do educar e cuidar, elaborado, desenvolvido e

avaliado conjuntamente, e baseado no ser e estar das crianças no mundo, ou seja, na

sua identidade.

A política municipal de educação precisa ter propostas pedagógicas e

políticas públicas referenciadas na diversidade. A base fundamental para que o

município elabore políticas étnico-raciais é a Lei de Diretrizes e Bases, art.26-A,

que trata do ensino da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena.

O ensino da história e cultura africana e afro-brasileira deve efetivar-se no

projeto político pedagógico das unidades educacionais. Além disso, as secretarias

municipais precisarão empenhar-se na construção de materiais pedagógicos,

orientações curriculares, projetos, programas e seminários de formação para

educadores e na divulgação de experiências bem-sucedidas de promoção da

igualdade racial.

2. O projeto político-pedagógico

O projeto político-pedagógico constitui-se em elemento norteador do ser e

do fazer da escola. Na verdade, é um conjunto de relações a partir das quais o

educador e a comunidade “interpretam” a si mesmos e ao mundo, num processo

relacional. Ao educar o “olhar e a escuta” para o mundo, a nação, a cidade, o bairro,

a rua, a escola e a sala de atividades, processam as suas sínteses, questionam o

exercício do poder, as situações de afetividade, a vivência das diferenças, as

situações de conflito, a solidariedade, a cooperação e a justiça.

O projeto político-pedagógico, nas suas duas dimensões – política e

pedagógica – consiste em uma ação intencional, cujo compromisso explícito é

incluir todos os integrantes num processo de transformação da realidade.

Ele concretiza não só a prática pedagógica, mas também a dinâmica do

cotidiano escolar, em que toda a comunidade educativa assume, nos seus projetos de

trabalho e planos de ensino, um compromisso contra o preconceitos, a

discriminações e o racismo.

Neste sentido, questões étnico-raciais devem constar do projeto político-

pedagógico, com o objetivo de constituir um espaço democrático, plural e

fundamental contra a exclusão.

3. A formação inicial e permanente dos recursos humanos

É quase consensual a constatação de uma lacuna na formação inicial

ministrada nas universidades, faculdades e cursos de formação permanente e

continuada, no que se refere à história da África e à cultura afro-brasileira. Isto nos

permite afirmar que a trajetória da educação, no Brasil, nega a existência do referencial

histórico, social, econômico e cultural do africano e não incorporou conteúdos

referentes aos afro-brasileiros no currículo escolar. Essa afirmação leva-nos a pensar

que para a implementação do art. 26-A da LDB, os educadores devem receber

formação sobre relações étnico-raciais que auxiliem no desvelamento de práticas

racistas no interior das escolas. Sistemas estaduais e municipais de ensino precisam

empenhar-se para fazer cumprir a lei.

Os educadores necessitam de um olhar e escuta para as situações cotidianas,

isto é, estar atentos aos diálogos criança-criança, adulto-criança e adulto-adulto na

presença das crianças. Nas rodas de conversa, durante os cânticos, no pátio, parque,

brincadeiras, compreender todos os espaços como espaços curriculares e passíveis de

manifestação de discriminações, portanto, espaços de intervenção para promoção da

igualdade racial.

Por fim, é importante pensar na escolha de materiais que promovam a

igualdade: brinquedos, planos de atividades, filmes, jogos. A unidade educacional

precisa olhar criticamente o seu fazer pedagógico, sempre tendo como foco o

desenvolvimento integral das crianças.

Acreditamos que, ao estabelecer orientações para convênio que vise

financiamento para a oferta de educação infantil, a COEDI/SEB deva destacar para os

municípios o papel da instituição que se candidata em vários aspectos, inclusive o

relativo à promoção da igualdade racial. Nesse sentido, sugerimos observar os seguintes

itens:

1. Ao firmar convênio, é necessário que a instituição apresente a proposta pedagógica que inclua a preocupação em promover a igualdade racial;

2. No quadro de pessoal da instituição, é preciso constar a presença de profissionais pertencentes aos grupos discriminados;

3. Nos documentos da instituição deve constar a preocupação em assegurar tratamento igual para todas as crianças.

4. É necessário que a instituição assegure, por meio dos critérios de matrícula, que a presença de pessoas brancas, negras, indígenas na escola seja proporcional à composição da população da região ou bairro ;

5. Os materiais didáticos devem contemplar todos os grupos étnico-raciais;

6. A biblioteca, brinquedoteca e outros espaços da instituição precisam apresentar a diversidade étnico-racial;

7. Os materiais de comunicação utilizados pela escola devem contemplar a diversidade étnico-racial;

8. Nos cursos de formação dos educadores, é necessário que esta questão esteja explicitamente garantida;

9. Nas instituições de bairros mais carentes, a formação dos educadores, o turno de trabalho, os equipamentos e os materiais disponíveis devem atender às exigências de um trabalho de bom nível, com crianças desta faixa etária.

2 – Documento: Plano de Trabalho de Cooperação Técnica entre MEC e

Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Construção de Orientações

Curriculares para as Práticas Cotidianas na Educação de Crianças de 0 a 3 anos

nas Escolas de Educação Infantil

O documento apresentado para análise pela COEDI/SEB, dispõe sobre um Plano

de Trabalho de Cooperação Técnica entre o MEC e UFGRS, no qual constam os

objetivos gerais, específicos, justificativa, metas e ações desta cooperação, iniciada em

setembro de 2008.

Consideramos fundamental que a COEDI ofereça orientações curriculares para

as práticas na educação infantil que orientem, especialmente, o trabalho com crianças de

0 a 3 anos, visando superar práticas nas instituições que dicotomizam o cuidar e educar

nesta etapa.

No que se refere à educação das relações étnico-raciais, entendemos que existe

um vazio ainda a ser preenchido nas propostas pedagógicas elaboradas pelas redes de

educação que, geralmente, não consideram esta questão pertinente à educação infantil,

sobretudo na faixa de 0 a 3 anos. Trata-se, certamente, de um grande equívoco. Como

mostram as pesquisas, o processo de aprendizagem começa já na fase fetal e não é

diferente no caso das relações étnico-raciais. Desde o ingresso nas instituições, as

crianças são postas em situações que as levam a apreender este tema.

Na pesquisa de Dias (2007), algumas educadoras entrevistadas afirmam perceber

tratamentos diferenciados para bebês negros e brancos:

Na educação infantil, a gente já sentiu essa questão da diferença do tratamento dos profissionais em relação à criança negra e à criança branca. Essa questão do estereótipo. Do modelo único de beleza, que é branco, loiro, de olhos claros ou verdes. Essa questão é muito forte na educação infantil. As crianças negras não têm tanto colo, chamego, aconchego como tem a criança branca. (Educadora Mame, de Campinas, em entrevista concedida em 13/09/2006)

Quando aparece um bebê Johnson na escola, todo mundo [diz]: “Ai, que lindo!”. Um bebê Johnson, que eu falo, é um menino loiro, de olho azul, bem gordo. Gordinho, bem fofo. Então, esse bebê passeia pela escola inteira. Ele passeia com a monitora do outro setor, com a diretora. Como se sente a criança que nunca sai? (Educadora Aminata, de Campinas, em entrevista concedida em 12/09/2006) 32

32 DIAS, Lucimar Rosa. No fio do horizonte: educadoras da primeira infância e o combate ao racismo. Tese de doutorado. Faculdade de Educação – USP, 2007.

Os depoimentos expressam enfaticamente que há um tipo de bebê com maiores

chances de receber mais atenção, em algumas instituições de educação infantil. “A

educadora revela, com esse exemplo, como o imaginário brasileiro é influenciado pela

mídia e como estamos permeados pela idéia do belo como branco.” (DIAS, p. 42)

Outra pesquisa importante, de Fabiana de Oliveira (2006), sobre educação das

relações étnico-raciais com crianças de 0 a 3 anos, revela situações semelhantes. A

pesquisadora identificou que:

Na relação entre as pajens e as crianças, ocorria algo que denominamos de “paparicação”, sendo que as negras estavam na maior parte do tempo fora dessa prática, a partir de um processo de exclusão que não está sendo entendido como um ato de segregação, mas se referindo ao recebimento de um carinho diferenciado, com uma menor “paparicação”. (OLIVEIRA, 2006, p. 16)

Os resultados destas pesquisas confirmam a existência de discriminação étnico-

racial na educação infantil. Tal constatação deve provocar inclusão de propostas que

permitam às educadoras modos de superar as discriminações presentes no cotidiano das

instituições.

Assim, sugerimos que os objetivos específicos do termo de cooperação também

contemplem esta dimensão:

1. Inserir, nas propostas pedagógicas de educação infantil dos municípios, o

corte étnico-racial33 para que as mesmas possam balizar a construção de

outras propostas com essa dimensão;

2. Fazer um levantamento das pesquisas e publicações de educação infantil,

de 2000 a 2007, que tratam da relação entre educação infantil e

diversidade étnico-racial;

3. Incluir na elaboração do documento de Orientações Curriculares para as

Práticas Cotidiana na Educação de Crianças de 0 a 3 anos, nas Escolas de

Educação Infantil, a dimensão da diversidade étnico-racial;

4. Organizar seminários municipais, regionais, estaduais e nacional,

visando a discussão e implementação de políticas públicas de educação 33 Como, por exemplo, a do estado do Mato Grosso do Sul

infantil no Brasil no contexto do FUNDEB, incluindo discussões

relacionadas ao campo da diversidade étnico-racial.

3- Documento: Indicadores de Qualidade da Educação Infantil

O Ministério da Educação (SEB), a Ação Educativa, o UNICEF e a Fundação

Orsa coordenam, desde 2007, um grupo de especialistas em educação infantil que estão

elaborando um instrumento que apóie as comunidades escolares de creches e pré-

escolas públicas e privadas e, além disso, da avaliação e implementação de ações que

busquem melhorar a qualidade da educação infantil.

Experiência semelhante ocorreu em 2004, quando se publicou o estudo Indicadores da

Qualidade na Educação, com foco no ensino fundamental (à época, coordenado pela

Ação Educativa, UNICEF, PNUD E INEP/MEC) e disseminado em todo o país34. Por

meio de indicadores qualitativos de fácil compreensão, esse trabalho propõe uma

avaliação da instituição educacional.

No caso da educação infantil, o objetivo é elaborar um material com base em

uma metodologia participativa que permita definir indicadores de avaliação da

qualidade da educação infantil, a partir de consensos entre as principais instituições e

especialistas nessa área. Por isso, o Grupo Técnico do Projeto é composto por

representantes de organizações não-governamentais, universidades, organismos

internacionais da UNDIME, da ANPED, do IPEA, do MIEIB dentre outras instituições

com reconhecida ação em prol da infância.

Nas discussões feitas pelo grupo de especialistas35 que trabalha no instrumento

dos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, foram acordados alguns princípios.

Um deles explicita que a diversidade deve constar dos diferentes indicadores

estabelecidos, para avaliar o ambiente educativo. Este conceito “diversidade”

largamente utilizado em documentos e discursos oficiais, precisa ser mínimamente

34 Para mais detalhes, consultar o site da Ação Educativa – www.acaoeducativa.org/indicadores. 35 Fazemos parte deste GT por indicação do CEERT – Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Portanto, muitas questões e sugestões relativas a indicadores de diversidade apresentadas neste documento estarão presentes no documento final dos Indicadores de Qualidade da Educação Infantil

definido, uma vez que está carregado de diferentes e muitas vezes contraditórios

significados.

Partiu-se do consenso de que a diversidade é um

“Princípio básico de cidadania que visa assegurar, a cada um, condições

de pleno desenvolvimento de seus talentos e potencialidades,

considerando a busca por oportunidades iguais e respeito à dignidade

de todas as pessoas. A prática da diversidade representa a efetivação do

direito à diferença, criando condições e ambientes em que as pessoas

possam agir em conformidade com seus valores individuais”.36

Essa definição suscitou algumas perguntas, tais como: de que maneira se deve

atuar para garantir igualdade de acesso, tratamento e oportunidades na escola? Como

subsidiar os educadores para selecionar os materiais utilizados nas aulas e adotar

práticas inclusivas? Sob quais parâmetros deve-se pautar uma proposta educacional

preocupada em garantir a diversidade humana?

As respostas a estas perguntas constituem um desafio cotidiano no ambiente

escolar, especialmente no Brasil, um país extremamente desigual do ponto de vista de

classe e que não conseguiu superar as discriminações raciais, étnicas, regionais e de

gênero. Apesar dessas dificuldades, percebemos que é cada vez mais forte o

compromisso de educadores com os ambientes inclusivos, por isso, consideramos

extremamente importante que as condições da educação, particularmente a infantil,

sejam objeto de amplo debate e reflexão, capaz de realçar o seu papel estratégico na

construção de uma sociedade que prepare os indivíduos para valorizar a diversidade

humana, vivenciando-a positivamente.

Vale lembrar que a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (2002)

destinou interessantes formulações, especialmente ao campo da educação, em alguns

artigos:

Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade

cultural.

Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos,

que são universais, indissociáveis e interdependentes. O

desenvolvimento de uma diversidade criativa exige a plena

36 http://www.projetopangea.org.br/2005/moodle. Acesso: em 13 ago. 2008.

realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27

da Declaração Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e

15 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e

difundir suas obras na língua que deseje e, em particular, na sua

língua materna; toda pessoa tem direito a uma educação e

uma formação de qualidade que respeite plenamente sua

identidade cultural37; toda pessoa deve poder participar na

vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas

culturais, dentro dos limites que impõem o respeito aos direitos

humanos e às liberdades fundamentais.

Artigo 6 – Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos.

Enquanto se garanta a livre circulação das idéias mediante a

palavra e a imagem, deve-se cuidar para que todas as culturas

possam se expressar e se fazer conhecidas. A liberdade de

expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, o

multilinguismo, a igualdade de acesso às expressões artísticas,

ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive em

formato digital – e a possibilidade, para todas as culturas, de

estar presentes nos meios de expressão e de difusão, são

garantias da diversidade cultural.

Encontramos, ainda, nas “linhas gerais de um plano de ação para a aplicação da

declaração universal da Unesco sobre a diversidade cultural”, outras importantes

referências no plano educacional, especialmente nos itens que se seguem:

6. Fomentar a diversidade lingüística – respeitando a língua

materna – em todos os níveis da educação, onde quer que seja

possível, e estimular a aprendizagem do plurilinguismo desde a

mais tenra idade.

37 Grifo nosso.

7. Promover, por meio da educação, uma tomada de

consciência do valor positivo da diversidade cultural e

aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas

escolares como a formação dos docentes.

8. Incorporar ao processo educativo, tanto quanto necessário,

métodos pedagógicos tradicionais, com o fim de preservar e

otimizar os métodos culturalmente adequados para a

comunicação e a transmissão do saber.

9. Fomentar a “alfabetização digital” e aumentar o domínio das

novas tecnologias da informação e da comunicação, que devem

ser consideradas, ao mesmo tempo, disciplinas de ensino e

instrumentos pedagógicos capazes de fortalecer a eficácia dos

serviços educativos.

Essas formulações legais indicam um caminho a ser percorrido ao tratarmos da

diversidade na educação, isto é, o conceito de diversidade não pode ser utilizado como

uma escapatória para não colocarmos em pauta temas considerados delicados e de

difícil abordagem, como a discriminação étnico-racial, de gênero e orientação sexual,

entre outras, no ambiente educativo de crianças de 0 a 6 anos. Deve-se destacar que,

nesta fase, há questões relacionadas a esses temas que, muitas vezes, são silenciadas

pelas educadoras que nem sempre sabem como enfrentar o assunto.

O conceito de diversidade deve remeter a ações concretas que visem a inclusão

de todos, particularmente os que foram excluídos ou colocados em segundo plano. Ou

seja, não podemos utilizar o conceito como um grande guarda-chuva sob o qual cabem

todos os processos de desigualdades e, ao mesmo tempo, nenhum. Mais do que o direito

à diferença, questões consideradas mais “espinhosas”, como a discriminação racial,

precisam ser focalizadas.

A nosso ver, é necessário que, ao tratar a diversidade como uma dimensão

imprescindível, as políticas educacionais considerem três eixos:

O estímulo à identificação e supressão de quaisquer práticas institucionais

incompatíveis com a valorização da diversidade, bem como a eliminação de quaisquer

fontes de discriminação, direta ou indireta, no ambiente educativo, seja nos materiais

didáticos, seja na formulação das políticas desenvolvidas de formação de professores e

de políticas.

A adoção de orientações e normas escritas voltadas à valorização da

diversidade, tendo como objetivo a inscrição de tal política como um valor perene na

cultura institucional dos sistemas e redes de ensino.

E, por último, o estabelecimento de objetivos e indicadores que possibilitem o

monitoramento do impacto e da eficácia da política de valorização da diversidade no

ambiente educativo.

É de suma importância que os indicadores de qualidade da educação infantil

contemplem a diversidade nesta dimensão, que lança raízes em valores éticos fundados

na busca da igualdade e da justiça, e está pautada em valores éticos e legais.

A sociedade brasileira, de modo geral, e a educação, de modo especial,

necessitam empreender medidas concretas para superar práticas discriminatórias que

dificultam a inclusão social de homens e mulheres prejulgados em função de cor, raça,

etnia, origem, sexo, deficiências, idade, credo religioso e orientação sexual. E, no caso

de educação, não podemos mais aceitar que as políticas educacionais, particularmente

as voltadas para crianças de 0 a 6 anos, omitam-se diante da responsabilidade de

promover uma educação igualitária pressuposta nos documentos oficiais.

Recomenda-se que, ao tratar da diversidade, os documentos denominem o

campo de abrangência deste conceito para que as dimensões fundamentais estejam

presentes e colaborem, efetivamente, na construção de uma educação igualitária, o mais

ampla possível. Assim, o documento deverá apresentar indicadores relacionados à

diversidade, em todas as suas modalidades: gênero, cor/raça, etnia, classe, idade,

orientação sexual, religião e região.

A título de exemplo, sugerimos alguns indicadores de diversidade, tanto para

pensar políticas internas na própria COEDI/SEB/MEC e redes de ensino, como nas

unidades escolares.

1. A COEDI/SEB, ao organizar propostas pedagógicas, estabelece diretrizes para valorizar a diversidade e coibir a discriminação étnico-racial, de gênero e das pessoas com deficiências?

2. O planejamento institucional da COEDI/SEB valoriza a diversidade e coíbe a discriminação étnico-racial, de gênero e das pessoas com deficiências?

3. O espaço institucional é planejado de modo a valorizar a diversidade e coibir a discriminação étnico-racial, de gênero e das pessoas com deficiências?

4. A política de compra e distribuição de livros de apoio ao trabalho desenvolvido nas instituições de educação infantil inclui livros que possibilitem às redes de ensino trabalharem com referenciais de diferentes culturas, especialmente a negra e a indígena?

5. As diretrizes políticas desenvolvidas pela COEDI estimulam o protagonismo na implementação de práticas que valorizem a diversidade étnica, religiosa, de gênero e de pessoas com deficiências, pelas redes de ensino?

6. Existem ações desenvolvidas pelo MEC que estimulem a aquisição de material didático que respeite e promova a diversidade, como brinquedos, especialmente bonecos com diferentes características étnico-raciais, de gênero e portadores de deficiência ?

7. A produção de material impresso e digital, dentre outros, pela COEDI/ SEB, leva em conta a diversidade?

8. A COEDI/SEB dispõe de um técnico responsável pelo desenvolvimento de ações relacionadas à promoção da igualdade racial na educação infantil?

9. Os projetos, programas e ações desenvolvidos pela COEDI/SEB preocupam-se em contemplar a dimensão da diversidade?

10. Os programas e ações levam em consideração os marcos legais, internos e internacionais, que situam a diversidade como princípio norteador da educação, inclusive infantil?

11. A política de formação de educadores desenvolvida e/ou apoiada pela COEDI exige a inclusão de conteúdos e metodologias sobre a diversidade?

12. As ações desenvolvidas pela COEDI junto aos gestores das redes de ensino destacam a importância da inclusão da diversidade na política educacional destes locais?

13. Há algum tipo de ação da COEDI, junto às instituições de formação de educadores, que estimule o tratamento da diversidade no âmbito da formação?

14. A COEDI faz seminários nas quais a temática da diversidade é tratada com destaque?

15. Os documentos de orientação de convênio indicam a diversidade como um dos itens a serem desenvolvidos pelas instituições que se candidatam aos recursos oriundos do MEC?

16. A COEDI produz e divulga material relacionado ao tema da diversidade?

17. A COEDI faz algum tipo de intervenção junto ao INEP/IPEA para a produção de dados relacionados à situação da criança de 0 a 5 anos, no que se refere à diversidade (étnico, racial, de classe, etc.) ?

18. Há etapas, na prática pedagógica, em que estão presentes divisões como “brinquedos de meninos” e “brinquedos de meninas”?

19. Os bonecos utilizados retratam a diversidade étnico-racial da sociedade brasileira?

20. Os livros contemplam histórias dos grupos humanos de diferentes origens étnico-raciais?38

21. O trabalho da instituição procura dar suporte para que todas as crianças tenham sucesso no seu processo de inserção, independentemente das diferenças de classe social?

22. As crianças têm oportunidade de conviver com pessoas (crianças e adultos) de diferentes idades?

23. A instituição respeita e estimula o respeito às diferentes orientações sexuais?

Ação- Atualização/ revisão do marco regulatório da educação infantil

Para esta ação, a COEDI/SEB não objetiva construir documento de referência,

pois é uma ação encarada como um processo que envolve parceira dos órgãos

normativos do sistema – os conselhos nacional, estaduais e municipais de educação –

38 Há uma preciosa produção de autores indígenas sobre suas histórias, como os livros de Daniel Munduruku.

para que as resoluções, deliberações, indicações e pareceres sejam atualizados ou

revistos. Obtivemos essas informações por meio de entrevistas com a equipe técnica da

coordenação e com a vice-presidente da União Nacional dos Conselhos Municipais de

Educação – UNCME, que considera essa ação uma pauta de discussão importante em

todos os encontros promovidos pela UNCME.

Em levantamento feito no Conselho Nacional de Educação, identificamos a

criação, em janeiro de 2008, de uma comissão39 especial para tratar do marco

regulatório da educação infantil. Porém, ao buscar maiores detalhes sobre o trabalho

desenvolvido por esta comissão, fomos informados40 que a mesma havia sido

revogada.

Sabemos que há uma demanda crescente pelo atendimento de crianças em

creches e pré-escolas e que, a partir da instituição do FUNDEB41, novas demandas

devem surgir para melhorar a qualidade da educação oferecida à criança, nesta

etapa. Tal fato torna mais premente a necessidade de os sistemas normatizarem

adequadamente o funcionamento das instituições, para que desenvolvam uma

educação de qualidade, formulando propostas que atendam as particularidades das

comunidades nas quais as instituições estão instaladas. É preciso orientar a carreira

dos professores da educação infantil e sua qualificação; o funcionamento das

creches e pré-escolas em espaços adequados; e garantir repasses dos recursos do

Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB) para a

educação infantil .

Sugerimos que, neste processo, a COEDI/SEB e outras instâncias do MEC

incluam na discussão do marco regulatório as questões relacionadas à promoção da

igualdade racial:

1. Rever as diretrizes curriculares e operacionais da educação infantil/CNE, incluindo no art. 3º a letra D, como um dos fundamentos norteadores das propostas pedagógicas das instituições, princípios de respeito à diversidade étnico-cultural. Entendemos que a letra C trata da diversidade cultural e essa abordagem não é suficiente para que as instituições incluam a dimensão cor/raça, gênero e orientação sexual,

39 Indicação CNE/CEB Nº 1/2008, em 31 de janeiro de 2008, para a constituição de comissão especial para tratar do marco regulatório para a educação infantil. 40 pela senhora Alba apoio técnico da Câmara de Educação Básica 41 Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.

conforme discussão feita no texto relativo ao Produto 1 42 deste projeto.

2. Atualizar as resoluções/deliberações que fixam normas para o credenciamento e autorização das instituições de educação infantil. Propomos que os conselhos nacional, estaduais e municipais analisem as atuais resoluções sob o ponto de vista da promoção da igualdade racial, contando com a colaboração de ONGs que trabalham com o tema e com pesquisadores locais para incluírem a temática adequadamente.

3. Os conselhos estaduais e municipais de Educação devem organizar orientações de implementação das diretrizes curriculares nacionais para educação das relações étnico-raciais, considerando o parecer CNE/CEB03/2004.

4. Os estabelecimentos educacionais precisam instituir grupos de trabalho que se responsabilizem por este tema, buscando incluí-lo no projeto político pedagógico.

5. Fazer uma avaliação dos doze anos de implantação da Lei de Diretrizes e Bases de forma integral para que ela contemple totalmente a promoção da igualdade racial.

6. Alterar a LDB art. 26-A, incluindo de forma inequívoca a promoção da igualdade racial na educação infantil.

7. Incluir, nos debates sobre marco regulatório da educação infantil, especialistas que possam contribuir com a inserção de questões sobre igualdade racial na educação infantil.

8. Rever o Plano Nacional de Educação, incluindo os princípios presentes nas diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana, referindo-se explicitamente à educação infantil.

9. Recomendar aos municípios e estados que incluam o recorte étnico-racial na educação infantil nos Planos Municipais de Educação.

Estas são algumas orientações para a COEDI/SEB, relativas ao marco

regulatório. No caso de educação infantil e da questão étnico-racial, o caminho ainda

está por ser trilhado, pois, embora tenhamos visto que esta questão aparece nas

convenções internacionais e em documentos nacionais, é tangencial o desenvolvimento

de políticas governamentais em relação ao tema, o que exigirá da COEDI uma ação

incisiva e criadora.

42 Produto 1– documento que trata das ações, programas, documentos, grupos de trabalho, comissões e outras atividades desenvolvidos pela SEB, entre 2003 e 2007, cujo objetivo tenham sido as desigualdades raciais no âmbito do atendimento da população de 0 a 6 anos.

A seguir apresentamos outras sugestões de orientações a partir do Plano

Nacional de Implementação da LDB alterada lei 10.639/03

3. Orientações a partir dos eixos do plano nacional de implementação da ldb

alterada pela lei 10.639/03

Apresentamos, nesta terceira parte, orientações para a construção da Política de

Promoção da Igualdade na Educação Infantil, com base nos seis eixos definidos para o

Plano Nacional de Implementação da LDB, alterada pelas leis 10.639/2003 e

11.645/200843. Embora a sociedade civil não tenha a versão definitiva, o material no

qual nos baseamos foi amplamente debatido em seminários regionais que contaram

com a presença de importantes instituições, pesquisadores, organizações não-

governamentais e representantes do Movimento Negro.

Eixo 1 – Aperfeiçoamento dos marcos legais:

Neste eixo, acreditamos que, em relação à educação infantil, a legislação precisa explicitar que a educação para as relações étnico-raciais começa nesta etapa. Assim, propomos:

1. Revisão da LDB, alterada pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, incluindo a educação infantil de modo explícito;

43 43 Em dezembro de 2007, o Ministério da Educação, em resposta às proposições encaminhadas pelos participantes de um workshop sobre a implementação da Lei 10.639/2003, realizado pelo MEC/SECAD e a representação da UNESCO no Brasil, instituiu um Grupo de Trabalho para elaborar um Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais. Este grupo é coordenado pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e as Secretarias de Educação Básica, Educação Técnica, Ensino Superior e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) estão representadas por gestores e/ou técnicos que sistematizaram e apresentaram as ações e programas desenvolvidos por essas secretarias, após a publicação da Lei 10.639/2003. Participam também deste grupo representantes das seguintes instituições: Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN); Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPed); Ação Educativa; Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT); Centro do Estudante Afro-brasileiro (CEAFRO); Comissão Assessora (CADARA); Conselho Nacional de Educação (CNE); Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED); Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR); Secretaria de Direitos Humanos (SEDH); União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME); UNESCO e UNICEF. Este material foi entregue ao ministro da Educação, em 20 de novembro de 2008.

2. Revisão das Diretrizes Curriculares da Educação Infantil, incluindo a educação das relações étnico-raciais como um princípio desta etapa da educação;

3. A inclusão deste tema nos marcos regulatórios e documentos que tratam da educação infantil, com especial atenção destes aspectos pelos conselhos de educação, tanto nos âmbitos federal e estadual, quanto no municipal;

4. Realização de pesquisa junto às secretarias de educação estaduais e municipais, para identificar as propostas de políticas de educação infantil com o corte étnico-racial e o modo como este tema entra nos projetos pedagógicos.

Eixo 2 – Política de formação para gestores e profissionais de educação

A discussão sobre formação de professores sempre está presente quando se trata

de educação, seja para discutir a qualidade do ensino, a implementação de alguma

reforma, seja em qualquer outro tema. Para Jose M. Esteve (1995, p. 96), é na “[…]

atitude dos professores perante as reformas e no apoio da sociedade [que] está a chave

para levá-las a um bom termo. Sem o seu incondicional apoio não passarão do terreno

das disposições legais ao terreno da realidade: o trabalho cotidiano nas salas de aula”.

Apesar da importância atribuída ao papel do professor, o tema da formação não é o mais

pesquisado dentre a produção científica no campo educacional brasileiro. De acordo

com dados apresentados por Marli André (2002)44, essa produção quase dobrou,

passando de 460 teses de mestrado e doutorado, em 1990, para 834, em 1994. Porém, as

pesquisas que tratam tanto da formação inicial quanto da formação continuada

mantiveram a proporção de 5% a 7% sobre o total.

Nossa experiência sobre saberes empíricos – como professora – e sobre saberes

científicos – como pesquisadora – indica que a dimensão raça interfere nos processos de

ensino e aprendizagem. Tal conhecimento impele-nos, portanto, a procurar aportes

teóricos que considerem a raça uma dimensão importante no universo das pesquisas

educacionais e, particularmente, nas discussões dos mecanismos de formação de

professores.

44 ANDRÉ, Dalmazo Afonso Marli Eliza de (org.). Formação de professores no Brasil (1990-1998).

(Série: Estado do Conhecimento). Brasília: MEC/Inep/Comped, 2002.

Nesse sentido, tomamos como referência as concepções de Peter Maclaren

(2000), Paulo Freire (1987 e 1992) e Henry Giroux (1983 e 1986) para fundamentar

nossa opção, tanto no campo das teorias educacionais, de modo geral, quanto para

incursionar nas análises dos processos de formação de professores e na questão

multicultural. Para Giroux (1983):

[…] a base para uma nova sociologia da educação e do currículo deverá derivar

de uma compreensão teoricamente refinada a respeito da forma como o poder, a

estrutura e a ação humana funcionam para reproduzir não só a lógica da dominação,

mas também o cálculo da mediação, da resistência e da luta social. (GIROUX, 1983, p.

56).

Cogita-se, também, que essa discussão exige considerar a escola um espaço de

contradições, construções e desconstruções de concepções. Espaço onde os sujeitos

atuantes – professores, técnicos e alunos de todas as idades – são capazes, mesmo de

modo conflituoso, de pensar as suas existências e seus aportes culturais para afirmar

alguns e negar outros. Nos Referenciais para a Formação de Professores, da Secretaria

de Educação Fundamental do MEC, um dos pressupostos para a formação do professor

é:

O necessário compromisso com o sucesso das aprendizagens de todos os alunos,

de creche, escola de educação infantil e ensino fundamental, exige que o professor

considere suas diferenças culturais, sociais e pessoais e que, sob hipótese alguma, as

reafirme como causa de desigualdade ou exclusão. (RFP, Pressuposto nº. 5, 1999, p.19,

grifo nosso)

Ao incluir, nos pressupostos de formação do professor, a exigência de que esse

profissional pense nas diferenças culturais (e nós compreendemos que essas diferenças

incluem o pertencimento dos alunos a grupos étnicos ou raciais), justifica-se a

necessidade imperativa de os cursos de formação abarcarem a dimensão das relações

raciais. Tal perspectiva parece tornar cada vez mais concreta a compreensão de que os

saberes docentes devem incluir percepções sobre as diferenças culturais e raciais de seus

alunos e o modo como é possível trabalhar pedagogicamente com tais diferenças.

Essa perspectiva deveria fazer-se presente tanto na formação inicial quanto na

continuada. Em todas as possibilidades da formação, seria necessário contemplar, de

alguma forma, saberes que permitissem aos professores compreenderem questões

relativas à educação das relações étnico-raciais. Porém, esses temas estão sendo

abordados, quando são, na segunda dimensão do processo de formação, isto é, somente

na formação continuada. Por isso, reafirmamos a necessidade de as agências formadoras

reconhecerem que a temática da educação para as relações étnico-raciais consiste em

uma necessidade. Segundo Nóvoa (2002):

A formação contínua deve ser concebida como uma das componentes da

mudança, em conexão estreita com outros setores e áreas de intervenção, e não como

uma espécie de condição prévia da mudança. A formação não se faz antes da mudança,

faz-se durante, produz-se nesse esforço de inovação e de procura aqui e agora dos

melhores percursos para a transformação da escola. (NÓVOA, 2002, p. 60, grifos do

autor)

No sentido em que Nóvoa define a formação de professores, inclui-se, a nosso

ver, formar professores para atuar no combate ao racismo, já que o desenvolvimento de

ações, nessa área, colaboraria para a transformação da escola. Porém, ainda há uma

longa caminhada até que a formação inicial, ou continuada, contemple essa dimensão.

Para que isso ocorra, sugerimos:

1. Incluir, no Proinfantil45, um módulo específico que apresente boas práticas pedagógicas de promoção da igualdade racial;

2. Apresentar às instituições de ensino superior a inclusão, em seus cursos de formação inicial de professores, de disciplina que trate especificamente deste tema;

3. Ministrar seminários sobre o assunto, em parceria com as secretarias estaduais e municipais;

4. Organizar um módulo-disciplinar, isto é, uma disciplina com conteúdos sobre a diversidade de gênero, raça, etnia que seria disponibilizada nacionalmente para cumprir a implementação da LDB (alterada pelas leis 10.639/2003 e 11.645), tendo como base uma consulta às universidades, especialistas e ONGs negros;

5. Garantir que professores e gestores atuantes na rede pública tenham acesso a cursos de formação continuada sobre a temática da diversidade cultural e étnico-racial;

45 O Proinfantil é um curso em nível médio, a distância, na modalidade Normal. Destina-se aos professores da educação infantil em exercício nas creches e pré-escolas das redes públicas – municipais e estaduais – e da rede privada sem fins lucrativos – comunitárias, filantrópicas ou confessionais – conveniadas ou não.

6. Determinar que as licenciaturas e cursos de formação de professores dirigidos à educação infantil incluam temas relacionados à diversidade;

7. Adotar critérios e indicadores sobre valorização e desenvolvimento da diversidade étnico-racial, em todas as ações desenvolvidas pela COEDI/SEB que abordem aspectos da política de formação inicial e continuada;

8. Disseminar e publicar as propostas programáticas para a educação infantil que tratem da diversidade cultural e étnico-racial.

Eixo 3 – Política de material didático e paradidático

Uma proposta pedagógica na educação infantil deve possibilitar

aprendizagens e o desenvolvimento integral da criança desta faixa etária,

promovendo e ampliando as condições necessárias ao exercício da cidadania. É

necessário que a proposta seja integrada aos desenvolvimentos físico, cognitivo,

afetivo e social, em níveis de complexidade diferenciados para cada fase.

Os recursos didáticos precisam encorajar a expressão pessoal de cada aluno e o

uso de diferentes recursos para que cada um manifeste seus pensamentos e sensações. O

material deve ser um dos instrumentos utilizados pelos educadores para que as crianças

desenvolvam sua capacidade expressiva e a cidadania. Entre os muitos recursos

didáticos empregados na educação infantil, destacam-se livros de literatura, jogos,

material de pintura, brinquedos, etc., essenciais no trabalho dos conteúdos, pois têm a

função de mediar as relações que ocorrem no processo de ensino e aprendizagem.

Muitas vezes, possibilitam que os alunos reflitam sobre determinado tema.

Assim, consideramos fundamental que a COEDI/SEB desenvolva ações

dirigidas a este tema. Acreditamos que o Programa Nacional do Livro Didático46 seja

uma das principais ferramentas da democratização do acesso ao conjunto de saberes e

conhecimentos que estão na base do processo de desenvolvimento do país, mas também

nos seus entraves. Desse modo, uma política de material didático deve necessariamente

refletir a diversidade regional de saberes. Nossas propostas:

1. Promover seminários e reuniões-técnicas com especialistas em educação infantil para definir orientações curriculares dirigidas à diversidade étnico-racial;

46 PNLD – Programa Nacional do Livro Didático.

2. Garantir pareceres de especialistas sobre relações étnico-raciais na educação infantil na compra de material didático destinado a esta etapa de aprendizagem;

3. Valorizar o material didático produzido por educadores, organizações do movimento social negro, ONG’s, etc.;

4. Fazer um levantamento de bons materiais existentes e divulgá-los;

5. Identificar lacunas na produção editorial e estimular esse mercado a desenvolver novos materiais didáticos e paradidáticos, sintonizados com os conteúdos das diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana;

6. Incluir livros com personagens negros, indígenas e crianças portadoras de necessidades especiais, entre os títulos adquiridos e distribuídos para as redes;

7. Orientar a aquisição de brinquedos, especialmente bonecos, que contemplem a diversidade cultural e étnico-racial;

8. Distribuir às redes de ensino materiais como DVDs, cartilhas e livros teóricos, que colaborem na prática pedagógica dos educadores de 0 a 6 anos, para que sejam promotores da igualdade racial;

9. Promover seminários com as editoras para fomentar a produção e melhoria dos livros paradidáticos que tratam deste tema;

10. Apoiar as iniciativas que dêem visibilidade às boas práticas de promoção da igualdade racial nesta etapa educacional;

11. Organizar um guia para as redes estaduais e municipais para a aquisição de filmes, livros e brinquedos que estimulem a promoção da igualdade racial.

Eixo 4 – Condições institucionais

a) Financiamento e condições institucionais

1. Definir uma linha de financiamento para a elaboração da política de promoção da igualdade racial na educação infantil;

2. Garantir apoio financeiro e técnico para os municípios que aderirem à política de promoção da igualdade racial na educação infantil;

3. Estimular e fortalecer a manutenção de equipes de implementação da política de promoção da igualdade racial na educação infantil;

4. Determinar que o orçamento da rede de ensino inclua um programa para desenvolver a política de promoção da igualdade racial na educação infantil.

b) Sensibilização e comunicação

1. Disponibilizar, no site do MEC, um link sobre a educação das relações étnico-raciais, destinado aos profissionais de educação e gestores;

2. Criar peças publicitárias sobre o tema, dirigidas às famílias, comunidade escolar e ao público em geral, que sensibilizem a sociedade para colaborar com a política de promoção da igualdade racial na educação infantil.

c) Pesquisas

1. Fornecer recursos materiais para o fortalecimento institucional das equipes de secretarias de educação;

2. Fazer editais de financiamento de pesquisas sobre questões relativas à educação e às relações étnico-raciais na infância;

3. Criar uma base de dados de pesquisadores em relações étnico-raciais e educação infantil;

4. Organizar pesquisa e/ou consulta que problematize as relações étnico-raciais no ambiente escolar, nesta etapa da educação;

5. Divulgar pesquisas sobre o tema, feitas por ONGs e secretarias de Educação, que colaborem com a prática pedagógica dos educadores e também possibilite à comunidade escolar refletir no tema;

6. Discutir com o INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira e IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada os dados que colaborem para uma melhor compreensão da situação da criança, considerando as dimensões de cor/raça e classe social;

7. Divulgar e dar visibilidade aos trabalhos acadêmicos que tratem das relações étnico-raciais e educação infantil;

8. Incluir, no site do MEC, indicações bibliográficas de pesquisas acadêmicas sobre o tema;

9. Incluir, no site do MEC, as boas práticas desenvolvidas por secretarias estaduais e municipais e por ONGs na promoção da igualdade racial;

10. Verificar, em instituição de educação infantil, a situação das relações étnico-raciais, identificando a existência de preconceito e discriminação racial.

d) Equipes e regime de colaboração

1. Estimular os sistemas de ensino e/ou redes a organizarem equipes de trabalho para tratar do tema e produzam materiais;

2. Garantir ações de formação continuada em regime de colaboração com a COEDI/MEC;

3. Criar um guia que oriente as redes estaduais e municipais na implementação da política de promoção da igualdade racial da educação infantil.

Eixo 5 – Gestão democrática e mecanismos de participação social

1. Dar orientações para que os projetos pedagógicos contemplem a promoção da igualdade racial e sejam debatidos amplamente com a comunidade escolar;

2. Fazer um levantamento de grupos de cultura negra e indígenas existentes na comunidade, para que eles colaborem nas discussões e no redimensionamento de um currículo multicultural;

3. Promover um encontro nacional para discutir as relações étnico-raciais com especialistas, professores, governo, etc.

4. Realizar reuniões-técnicas com especialistas em educação infantil e relações raciais;

5. Ministrar seminário estratégico com diferentes parceiros que trabalham com a educação infantil.

Eixo 6 – Avaliação e monitoramento

1. Definir metas e metodologias para o monitoramento da implementação de uma política de promoção da igualdade racial na educação infantil, para a COEDI/SEB;

2. Organizar instrumentos que avaliem a chegada e o uso dos materiais de apoio nas escolas;

3. Acompanhar uma escola que realize práticas promotoras da igualdade racial na educação infantil, para obter instrumentos e aportes que viabilizem propostas às redes de ensino;

4. Sistematizar e analisar políticas, programas, ações, práticas pedagógicas e material didático em educação infantil das redes pública e privada de educação infantil.

Considerações finais:

Reiteramos nossa indicação inicial de que uma política como esta, que a

COEDI/SEB pretende implementar, seja constituída com a comunidade científica que

aborda o tema das relações étnico-raciais, organismos internacionais que tratem da

infância, organizações não-governamentais com expertise, e também com o Movimento

Negro e com profissionais do poder público envolvidos com essa causa.

Os movimentos negro e indígena são fundamentais neste processo porque a

participação desses atores sociais traz para dentro da instituição educativa uma reflexão

sistemática sobre a situação de desigualdade vivida por estas populações, além das

construções identitárias capazes de modificar o modo como o gestor e os professores

vêem os alunos.

Acreditamos que as orientações ora apresentadas podem se constituir no texto de

referência para que a coordenadoria organize um grande e fértil debate nacional,

visando assegurar a política que todos nós consideramos de extrema importância.

Por fim, sugerimos que os professores, especialmente os gestores, sejam

convidados a repensar o seu papel de educadores a partir de outros referenciais. Desta

forma, propomos que a construção de uma política de promoção da igualdade na

educação infantil ultrapasse as barreiras dos sistemas e convoque os que estão na ponta

do processo a participar.

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