texto 10 cerri vendendo o peixe

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Vendendo o peixe A análise da publicidade nos permite ver que até nossos sonhos e desejos são históricos, além de ajudar no exercício da cidadania no mundo contemporâneo Luis Fernando Cerri 17/9/2007 O período do “milagre econômico brasileiro” (1969-1973) é um laboratório interessante para o estudo do imaginário através da publicidade. Caracteriza-se por um regime político autoritário, dotado, por um lado, de uma grande capacidade de controle dos recursos políticos e de comunicação e, por outro, de uma necessidade de legitimação constante no país, especialmente por ter surgido de um golpe de estado e valer- se de medidas de força para governar. Durante o “milagre”, essa legitimação é facilitada por um desenvolvimento econômico sem precedentes e por fatores de orgulho pátrio, como a conquista da Copa do Mundo de 1970. É um tempo de ufanismo. Vive-se num círculo de idéias positivas sobre a brasilidade em que um fator positivo alimenta o outro, mantendo o clima de otimismo que é sustentado pela propaganda. Sob a ditadura militar, a propaganda política assume uma forma mista. Por um lado, o regime detém instrumentos próprios, mobilizados de forma centralizada pela Assessoria de Relações Públicas da Presidência da República, responsável por peças ainda hoje lembradas, como a canção “Este é um país que vai pra frente...” ou os comerciais de fim de ano com o tema "Este ano, quero paz no meu coração...". Por outro lado, o regime conseguiu a colaboração de empresas privadas, tanto por eventuais favorecimentos quanto por adesão ideológica, ou mesmo por necessidade de repercutir o clima social de euforia do momento, aproveitando-o para seduzir o público. Ao enfocarmos aquelas peças que se referem ou recorrem à nação, ao governo, à história nacional, "Eu devia agradecer ao Senhor/ Por ter tido sucesso na vida como artista / Eu devia estar feliz porque / consegui comprar um Corcel 73..." Assim cantava Raul Seixas no lançamento de "Ouro de Tolo". A crítica desiludida ao modo de vida assumido pela maior parte da classe média brasileira daquele momento permanece atual: mais que naquela época, estamos submetidos a fortes apelos de felicidade comprável em prestações e anunciada pela propaganda nos jornais, no rádio, nos outdoors, na TV. Se é verdade que o capitalismo não inventou a propaganda, também é preciso reconhecer que ele não pode viver sem ela. Hoje as agências publicitárias são parte imprescindível do ciclo de produção das sociedades de massa. A propaganda envolve bilhões de dólares, promove a continuidade do consumo elevado dos mais favorecidos, enfim, difunde comportamentos e valores que tornam possível a continuação do modo de vida globalizado dos "incluídos". Por essas características, é possível pensar a propaganda e seus suportes (impresso, som, audiovisual, hipertexto etc.) como recursos para o estudo dos conteúdos históricos usados nas mensagens publicitárias, assim como recursos para o ensino de História. Aliás, é urgente trabalhar este aspecto da vida em sala de aula: os Parâmetros Curriculares Nacionais reconhecem o desafio de se educar o consumidor desde a escola, e várias organizações da sociedade civil apontam o consumo consciente e solidário como forma de pressão por mudanças sociais e ambientais. O que dá riqueza às peças publicitárias como documentos históricos para uso científico ou didático é o objetivo para o qual são produzidas: vender produtos, idéias e instituições para o público consumidor. Tanto faz se estamos falando em peças comerciais ou institucionais e políticas: as características se confundem, principalmente dentro da idéia de que "o pessoal é político e o político é pessoal". A mensagem publicitária se dirige ao conjunto de imagens, símbolos, desejos e medos que, embora variem um pouco de pessoa para pessoa, constituem um padrão cultural de cada sociedade, chamado de imaginário pelos estudiosos das ciências humanas. Esse imaginário não é estático, e sim reorganizado conforme as necessidades e características de cada momento histórico. Ele inclui desde referências a práticas ancestrais – símbolos antigos como os do cristianismo, por exemplo – até as idéias e imagens decorrentes das recentes disputas pelo poder.

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  • Vendendo o peixe

    A anlise da publicidade nos permite ver que at nossos sonhos e desejos so

    histricos, alm de ajudar no exerccio da cidadania no mundo contemporneo

    Luis Fernando Cerri

    17/9/2007

    O perodo do milagre econmico brasileiro (1969-1973) um laboratrio interessante para o estudo doimaginrio atravs da publicidade. Caracteriza-se por um regime poltico autoritrio, dotado, por um lado,de uma grande capacidade de controle dos recursos polticos e de comunicao e, por outro, de umanecessidade de legitimao constante no pas, especialmente por ter surgido de um golpe de estado e valer-se de medidas de fora para governar. Durante o milagre, essa legitimao facilitada por umdesenvolvimento econmico sem precedentes e por fatores de orgulho ptrio, como a conquista da Copa doMundo de 1970. um tempo de ufanismo. Vive-se num crculo de idias positivas sobre a brasilidade em queum fator positivo alimenta o outro, mantendo o clima de otimismo que sustentado pela propaganda.

    Sob a ditadura militar, a propaganda poltica assume uma forma mista. Por um lado, o regime detminstrumentos prprios, mobilizados de forma centralizada pela Assessoria de Relaes Pblicas da Presidnciada Repblica, responsvel por peas ainda hoje lembradas, como a cano Este um pas que vai prafrente... ou os comerciais de fim de ano com o tema "Este ano, quero paz no meu corao...". Por outrolado, o regime conseguiu a colaborao de empresas privadas, tanto por eventuais favorecimentos quantopor adeso ideolgica, ou mesmo por necessidade de repercutir o clima social de euforia do momento,aproveitando-o para seduzir o pblico.

    Ao enfocarmos aquelas peas que se referem ou recorrem nao, ao governo, histria nacional,

    "Eu devia agradecer ao Senhor/ Por ter tido sucesso na vida como artista / Eu devia estar feliz porque /consegui comprar um Corcel 73..." Assim cantava Raul Seixas no lanamento de "Ouro de Tolo". A crticadesiludida ao modo de vida assumido pela maior parte da classe mdia brasileira daquele momentopermanece atual: mais que naquela poca, estamos submetidos a fortes apelos de felicidade comprvel emprestaes e anunciada pela propaganda nos jornais, no rdio, nos outdoors, na TV.

    Se verdade que o capitalismo no inventou a propaganda, tambm preciso reconhecer que ele no podeviver sem ela. Hoje as agncias publicitrias so parte imprescindvel do ciclo de produo das sociedades demassa. A propaganda envolve bilhes de dlares, promove a continuidade do consumo elevado dos maisfavorecidos, enfim, difunde comportamentos e valores que tornam possvel a continuao do modo de vidaglobalizado dos "includos". Por essas caractersticas, possvel pensar a propaganda e seus suportes(impresso, som, audiovisual, hipertexto etc.) como recursos para o estudo dos contedos histricos usadosnas mensagens publicitrias, assim como recursos para o ensino de Histria. Alis, urgente trabalhar esteaspecto da vida em sala de aula: os Parmetros Curriculares Nacionais reconhecem o desafio de se educar oconsumidor desde a escola, e vrias organizaes da sociedade civil apontam o consumo consciente esolidrio como forma de presso por mudanas sociais e ambientais.

    O que d riqueza s peas publicitrias como documentos histricos para uso cientfico ou didtico oobjetivo para o qual so produzidas: vender produtos, idias e instituies para o pblico consumidor. Tantofaz se estamos falando em peas comerciais ou institucionais e polticas: as caractersticas se confundem,principalmente dentro da idia de que "o pessoal poltico e o poltico pessoal". A mensagem publicitriase dirige ao conjunto de imagens, smbolos, desejos e medos que, embora variem um pouco de pessoa parapessoa, constituem um padro cultural de cada sociedade, chamado de imaginrio pelos estudiosos dascincias humanas. Esse imaginrio no esttico, e sim reorganizado conforme as necessidades ecaractersticas de cada momento histrico. Ele inclui desde referncias a prticas ancestrais smbolosantigos como os do cristianismo, por exemplo at as idias e imagens decorrentes das recentes disputaspelo poder.

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    O trabalho com publicidade pode levar os alunos a entender porque aquelas mensagens eram atraentes, qualera a graa que tinham para as pessoas da poca. Eles podero reconhecer o valor relativo da moda e dospadres de beleza, e tambm entender os significados do consumo e do consumismo. Podero, ainda,perceber que os grupos de afinidades as chamadas tribos ou galeras muitas vezes no se formamespontaneamente, mas sim para executar rituais de consumo que interessam mais s empresas do que spessoas envolvidas. Com tudo isso, os alunos estaro capacitados para construir recursos de autodefesacontra a propaganda e usar da prerrogativa de consumidor consciente para subvert-la e dirigi-la a favor dosseus interesses e de sua conscincia.

    Luis Fernando Cerri professor do curso de Histria e do mestrado em Educao da Universidade Estadualde Ponta Grossa e organizador da coletnea O ensino de Histria e a ditadura militar, Editora Aos 4 Ventos,2003.

    Uma outra face desse tipo de propaganda na poca o apelo paz social e ao trabalho. Sem citar aoposio armada ditadura, as peas governamentais e privadas apontam o trabalho duro comoresponsabilidade de todos, a passividade e o consentimento patritico de cada um ao regime, e o direito aoconsumo e paz como recompensa. O alheamento poltico e o consumo so, no fundo, os maiores apelosdessa propaganda ao imaginrio da classe mdia, o que recebe grande acolhida.

    Para o ensino de Histria, o uso de peas publicitrias como fonte histrica beneficia-se de um mtodorazoavelmente simples de anlise da linguagem publicitria, baseado nos estudos do escritor francs RolandBarthes. Para ele, a mensagem publicitria pode ser dividida em trs mensagens concomitantes: amensagem denotativa (que consiste na transmisso dos cdigos em si, textuais, visuais, sonoros, e suacompreenso simples, ou seja, saber do que se trata), a mensagem conotativa (que se refere ao que amensagem quer dizer, e a mobilizam-se os fatores que o pblico usar para interpretar o sentido) e, porfim, a mensagem referencial (ou seja, o sujeito empresa, pessoa, instituio que se beneficia daaceitao da mensagem, o vendedor do produto ou idia). Um bom conhecimento do contexto no qual apea chegou ao pblico pode ser fornecido pelo professor, pelo material didtico ou pela pesquisa dos alunos.Associado a isso, o trabalho de reconhecer esses nveis da mensagem publicitria torna-se capaz decontribuir para a compreenso e interpretao de quaisquer peas publicitrias e, sobretudo, do perodo dacomunicao de massas, em que a propaganda se desenvolve de forma espetacular. A anlise da publicidadepermite, por exemplo, trabalhar com os imaginrios coletivos, dado importante da compreenso histrica,que nem sempre facilmente apreendido.

    Outra clara vantagem desse estudo a reflexo sobre os sujeitos histricos, latente na descoberta e anliseda mensagem referencial, que pode contribuir para o aperfeioamento dessa noo central, tanto para oconhecimento da histria quanto para o exerccio da cidadania.

    podemos identificar algumas caractersticas comuns. O Brasil aparece como um dos grandes temas.Retomando uma tradio que vem desde o perodo colonial, o Brasil louvado por suas caractersticasnaturais e histricas, mas com uma particularidade: ao observador daquele momento parecia quefinalmente o futuro tinha chegado, que todas a possibilidades do pas encontravam sua realizao. O Brasil apresentado como um gigante, mas esse gigante no representado visualmente. O apelo ao giganteBrasil encontrou eco tambm nas opes das polticas pblicas, visivelmente marcadas pela necessidade dealimentar o ciclo do otimismo e da grandeza nacionais. Obras como a rodovia Transamaznica, a ponte Rio-Niteri, decises como a extenso do mar territorial para 200 milhas e, posteriormente, a construo dasusinas de Itaipu e de Angra so a outra face do clima de ento. De certa forma, essas aes tm umcomponente propagandstico inegvel. Ao criar fatos polticos, o regime gerava uma matria-primaimportante para as peas publicitrias.