teste de memÓria de relatos: elaboraÇÃo de um … luciene... · according to the test, after the...

87
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE PSICOLOGIA TESTE DE MEMÓRIA DE RELATOS: ELABORAÇÃO DE UM INSTRUMENTO PARA SELEÇÃO DE POLICIAIS Luciene Luiza Rezende BRASÍLIA - 2006

Upload: others

Post on 23-Oct-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    TESTE DE MEMÓRIA DE RELATOS:

    ELABORAÇÃO DE UM INSTRUMENTO PARA SELEÇÃO DE POLICIAIS

    Luciene Luiza Rezende

    BRASÍLIA - 2006

  • UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    TESTE DE MEMÓRIA DE RELATOS:

    ELABORAÇÃO DE UM INSTRUMENTO PARA SELEÇÃO DE POLICIAIS

    Luciene Luiza Rezende

    Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia

    da Universidade de Brasília, como requisito parcial

    à obtenção do grau de Mestre em Psicologia.

    Orientador: Luiz Pasquali

    Brasília - 2006

    2

  • BANCA EXAMINADORA

    ______________________________

    Prof. Luiz Pasquali, Docteur

    Instituto de Psicologia - Universidade de Brasília

    Presidente

    ______________________________

    Prof. Gerson Janczura, Ph.D

    Instituto de Psicologia - Universidade de Brasília

    Membro

    ______________________________

    Prof. Carlos Alberto Bezerra Tomaz, Ph.D

    Instituto de Biologia - Universidade de Brasília

    Membro

    ______________________________

    Prof. Jacob Laros, Ph.D

    Instituto de Psicologia - Universidade de Brasília

    Suplente

    3

  • AGRADECIMENTOS

    A primeira pessoa a quem quero agradecer é na verdade não uma pessoa, um anjo:

    Aldi Roldão. Esse anjo foi quem me ajudou durante todo o mestrado. Desde antes de me

    tornar uma aluna regular do curso, você tem tido a boa vontade de me ajudar em tudo que

    precisei. Foi você quem tornou este trabalho possível, porque sua generosidade foi tamanha

    que me deu de presente a idéia inicial - a de construir um teste de memória de relatos. Você

    também foi a pessoa que pegou na minha mão e me “obrigou” a continuar o curso, quando

    eu não via mais a possibilidade de prosseguir. Aldi, obrigada por ser essa pessoa sempre

    disposta a ajudar. Se esse trabalho foi concluído, eu preciso pedir licença a todas as outras

    pessoas que merecem meu carinho e agradecer primeiramente a você. Valeu mesmo.

    Ao professor Luiz Pasquali, por se dispor a compartilhar seus conhecimentos, pelas

    orientações e pelas brincadeiras que transformaram momentos tensos em descontraídos.

    Ao professor Gerson A. Janczura, pela paciência nas muitas orientações

    brilhantemente prestadas e pelo entusiasmo com que tratou o meu trabalho. Sua ajuda foi

    fundamental para a qualidade desse trabalho. Obrigada pelos comentários elogiosos que

    fizeram parte de todas as reuniões que fizemos, afinal, elogios vindos de um profissional de

    sua importância são um incentivo e tanto!

    Ao professor Jacob A. Laros por se mostrar sempre disponível para colaborar.

    Obrigada pelas muitas orientações sobre procedimentos estatísticos que contribuíram

    muitíssimo para as análises do teste e para meu aprendizado.

    4

  • Ao professor Carlos A. B. Tomaz, pela gentileza de se dispor a compor a banca

    examinadora e pelas sugestões realizadas.

    Aos meus irmãos, Camila, Marcos Aurélio, Paulo Henrique e Rialdo Luiz, que

    torceram muito por mim e sempre me ajudaram, e aos meus pais, Rialdo Camargo e

    Dalgina, guerreiros que sempre foram e sempre serão um modelo a ser seguido. Vocês

    fizeram todo o possível para meu sucesso e são muito, muito, muito especiais.

    Ao amigo Sandro pela ajuda com o francês, à amiga Adriana pela ajuda na

    elaboração de perguntas sobre história e geografia que fizeram parte da 1ª versão do teste,

    às amigas Renata e Marília, pela ajuda com a análise semântica, à amiga Verusca pelas

    inúmeras e sempre muito frutíferas discussões e à amiga mais colega do mundo, Heloísa,

    pela força no dia-a-dia, pela atenção que dispensou ao meu trabalho, pelas críticas

    construtivas e pelas revisões gramaticais, às amigas Aline e Karina pelos incentivos.

    Vocês, meus amigos lindos, além de todos os outros amigos que me apoiaram, são uma

    inesgotável fonte de força e de alegria na minha vida. Amo muito vocês todos. Obrigada

    por tudo.

    À amiga Simone, por ter acreditado, por ter colaborado com as análises semânticas,

    por sempre ter me dado força e por todas as dicas que precisei. Você é muito especial.

    Valeu, Si!

    Aos alunos de pesquisa Bruno, Denise, Eduardo e Graziela, pelo trabalho, pelas

    ricas discussões e pela seriedade com o qual encararam as tarefas da pesquisa. Vocês foram

    ótimos.

    Aos colegas Raquel, Silvana, Aldair e principalmente José Horácio, por se

    disporem a ajudar como sujeitos em pilotos em primeiríssima mão.

    5

  • À Polícia Civil do DF, por ceder o espaço para coleta de dados e por toda a ajuda que

    me dispensaram. Obrigada.

    A todos os meus chefes, por sua paciência e tolerância com aquela que se desdobrou

    para cumprir suas obrigações laborais e acadêmicas.

    Aos participantes que colaboraram nesta pesquisa e a todos os professores que

    cederam espaços em suas aulas para que as aplicações do teste fossem possíveis.

    A todos os meus professores, que me ensinaram o valor do conhecimento, o valor do

    idealismo, que me fizeram gostar de aprender e me ensinaram o valor da pesquisa.

    Rafa, meu amor lindo, pela ajuda com o inglês, pelos momentos felizes e por ser uma

    motivação na busca para ser uma pessoa melhor. Obrigada, meu amor.

    Aos meus amados bebês, Guto e Belle, pelo carinho diário, por terem sido

    companheiros incondicionais e por me acalmarem e me divertirem em todos os momentos,

    principalmente nos difíceis. Vocês deram um colorido muito especial na minha vida.

    A Deus, que me proporcionou todas as condições para realização deste estudo,

    inclusive colocando todas essas pessoas maravilhosas no meu caminho.

    6

  • RESUMO

    Considerando o contexto policial, construiu-se um teste psicológico para medir

    memória de relatos. As bases teóricas que embasaram a construção do teste foram o

    Paradigma do Falso Testemunho, teoria estudada no contexto criminológico, e a literatura

    sobre Representações Baseadas no Significado. O teste construído é composto de um relato

    de uma história, que os sujeitos deveriam memorizar, para posteriormente responder a itens

    referentes àquele relato, numa avaliação do tipo reconhecimento, ou seja, julgamento dos

    itens em termos de verdadeiro ou falso. Os itens elaborados foram submetidos à análise de

    juízes, avaliação semântica e em seguida foram aplicados a 319 sujeitos. Os dados

    coletados foram submetidos à análise estrutural e foram encontrados dois componentes:

    memória e inferência. O KMO foi 0,81 e os alfas de Cronbach foram, respectivamente,

    0,83 e 0,66. Também foi realizada uma análise de regressão utilizando o método enter para

    cada um dos componentes, levando-se em conta os dados das variáveis demográficas e de

    autopercepção coletados. Os resultados mostram uma correlação negativa significativa

    entre os componentes memória e inferência e a variável autopercepção geral da memória.

    Palavras chave: teste psicológico, memória de relatos, inferência.

    7

  • ABSTRACT

    Considering the police context, a psychological test was built to measure memory of

    reports. The theoretical basis for the tests` construction were the Eyewitness Testimony

    Paradigm, which was analised on a criminological context, and the Meaning Based

    Representation literature. According to the test, after the narration of a story, the subjects

    should answer some questions about what they heard, on an avaliation sort as recognition,

    that is, judging the itens only as right or wrong. All the itens were submitted to judges`

    analysis, semantics evaluation, and then applied to 319 subjects. The collected data was

    submited to a strutural analysis and two components were found: memory and inference.

    The KMO was 0,81 and the alphas of Cronbach were, respectively, 0.83 and 0.66. A

    regression analysis was also realized to each of the components using the enter method.

    The predictive variables were the elements collected from demographical variables and

    self perception. The results showed a negative and significant correlation between the

    components memory and inference and the variable of general self perception of memory.

    Key words: psychological test, memory of reports, inference.

    8

  • ÍNDICE

    BANCA EXAMINADORA ................................................................................................................................ 3

    AGRADECIMENTOS ....................................................................................................................................... 4

    ÍNDICE DE FIGURAS .................................................................................................................................... 11

    ........................................................................................................................................................................... 11

    ÍNDICE DE TABELAS .................................................................................................................................... 12

    MARCO TEÓRICO ......................................................................................................................................... 13

    A-INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................... 13 1 Seleção de Pessoal ................................................................................................................................. 14 2 A Importância da Seleção de Pessoal para o Cargo Policial ................................................................ 16

    B- MEMÓRIA ................................................................................................................................................ 18 1 Conceituação Geral ............................................................................................................................... 18 2 Representações Baseadas no Significado .............................................................................................. 23 3 Representações Proposicionais .............................................................................................................. 24 4 Formas de Avaliação da Memória ......................................................................................................... 25 5 Inferência .............................................................................................................................................. 26

    OBJETIVO DO ESTUDO ............................................................................................................................... 35

    MÉTODO .......................................................................................................................................................... 36

    1 O Teste de Memória de Relatos ............................................................................................................. 36 2 Entrevista com Grupo Focal .................................................................................................................. 38 3 Primeira Versão do Instrumento ............................................................................................................ 40 4 Segunda Versão do Instrumento ............................................................................................................ 43 4.1 Forma A e Forma B do Teste .............................................................................................................. 44 4. 2 Tipos de respostas .............................................................................................................................. 46 4.3 Análise Teórica dos Itens .................................................................................................................... 47 4.3.1 Análise Semântica ............................................................................................................................ 47 4.3.2 Análise dos Juízes ............................................................................................................................. 48 4.4 Construção do Gabarito ...................................................................................................................... 48 4.5 Padronização das Informações Auditivas ........................................................................................... 49 7 Estrutura do Teste .................................................................................................................................. 50 7.1 Instruções Iniciais ............................................................................................................................... 50 7.2 História ................................................................................................................................................ 51 7.3 Tarefa interpolada ............................................................................................................................... 52 7.4 Instruções finais .................................................................................................................................. 54 7.5 Folha de respostas .............................................................................................................................. 55 7.6 Resultados da 2ª Versão do Instrumento ............................................................................................. 55 8 Terceira versão do instrumento ............................................................................................................. 56

    RESULTADOS E DISCUSSÃO ...................................................................................................................... 57

    1 Características da Amostra .................................................................................................................... 57 2 Análise da Estrutura do Instrumento ..................................................................................................... 58 2.1 Extração de Dois Componentes .......................................................................................................... 62 3 Fidedignidade do Instrumento ............................................................................................................... 65

    9

  • 4 Análise dos Escores dos Sujeitos em cada Componente ........................................................................ 65 5 Tempo de Realização do Teste ............................................................................................................... 67 6 Análise de Regressão ............................................................................................................................. 67 7 Tabela de Normas ................................................................................................................................. 70

    CONCLUSÃO ................................................................................................................................................... 72

    LIMITAÇÕES DO ESTUDO .......................................................................................................................... 78

    COMENTÁRIOS FINAIS ............................................................................................................................... 80

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................................................ 82

    10

  • ÍNDICE DE FIGURAS

    FIGURA 1. MODELO REPRESENTANDO O PERCURSO NECESSÁRIO DE UMA INFORMAÇÃO ATÉ A MEMÓRIA DE LONGO PRAZO, SEGUNDO A TEORIA DOS MÚLTIPLOS ARMAZENAMENTOS................................................................................................................................... 21

    FIGURA 2. DISTRIBUIÇÃO DA DIFICULDADE DOS ITENS, NA PRIMEIRA VERSÃO DO INSTRUMENTO. ............................................................................................................................................ 42

    FIGURA 3. COMPARAÇÃO DOS SCREE-PLOTS QUANDO ELIMINADOS OS ITENS COM CARGA BAIXA. A FIGURA DA ESQUERDA REPRESENTA A ANÁLISE COM TODOS OS 53 ITENS DO TESTE E A FIGURA DA DIREITA, A ANÁLISE ELIMINANDO OS ITENS COM CARGAS BAIXAS. ......................................................................................................................................... 63

    FIGURA 4. DISTRIBUIÇÃO DOS ESCORES DOS COMPONENTES MEMÓRIA E INFERÊNCIA. ............................................................................................................................................................................ 66

    11

  • ÍNDICE DE TABELAS

    TABELA 1. FREQÜÊNCIA DAS PREFERÊNCIAS DE 65 SUJEITOS QUANTO ÀS VOZES APRESENTADAS............................................................................................................................................ 50

    TABELA 2. AMOSTRA PARA A VALIDAÇÃO DO TESTE DE MEMÓRIA DE RELATOS (N = 319).....................................................................................................................................................................58

    TABELA 3. EIGENVALUES EMPÍRICOS E ALEATÓRIOS DOS PRIMEIROS DEZ COMPONENTES.............................................................................................................................................59

    TABELA 4. EIGENVALUES E PORCENTAGEM DE VARIÂNCIA EXPLICADA DOS.................... 60

    TABELA 5. MATRIZ COMPONENCIAL DO TESTE DE MEMÓRIA DE............................................64

    TABELA 6. DISTRIBUIÇÃO DE FREQÜÊNCIA DOS ESCORES DOS COMPONENTES DO INSTRUMENTO. ............................................................................................................................................ 66

    TABELA 7. AUTOPERCEPÇÃO DE MEMÓRIA DOS SUJEITOS (N = 319)........................................68

    TABELA 8. RESULTADOS DA ANÁLISE DE REGRESSÃO MÚLTIPLA PARA O COMPONENTE MEMÓRIA. ......................................................................................................................................................69

    TABELA 9. RESULTADOS DA ANÁLISE DE REGRESSÃO MÚLTIPLA PARA O COMPONENTE INFERÊNCIA. .................................................................................................................................................69

    TABELA 10. NORMAS PARA O TESTE DE MEMÓRIA.........................................................................71

    12

  • MARCO TEÓRICO

    A-INTRODUÇÃO

    Existe uma diversidade de tipos de memória, cada uma delas geradas por mecanismos

    biológicos diferentes. Aparentemente, a função policial exige desse servidor, todos os tipos

    de memória. Entretanto, há um tipo de memória que, além de imprescindível, parece ser o

    mais freqüentemente utilizado nessa atividade: a memória de relatos. A memória de relatos

    seria a que armazena uma seqüência de informações que obedece a uma lógica cronológica,

    fornecidas por estímulo verbal. Esse processo mnemônico encontra diversas nomenclaturas

    na literatura, tais como “memória de materiais linguísticos” (Brewer, 1977); “memória

    semântica” (Anderson, 1974), “memória do discurso” ou “memória de sentenças”

    (Barsalou, 1993).

    O estudo da profissiografia do cargo de agente de polícia da Polícia Civil do DF

    demonstrou que a memória de relatos é uma característica desejável para o bom

    desempenho dessa função (Cabral, 2004). De acordo com esse estudo a importância da

    memória de relatos se torna mais evidente nas atividades de “Investigação de Delitos” e

    atividades relacionadas ao “Dever Funcional”, ou seja, participação em eventos ou fóruns

    para os quais o policial tenha sido convocado. Essas atividades exigem que o policial

    recorde relatos e que os reproduza fielmente em seus relatórios ou testemunhos, que se

    tornam peças fundamentais para o trabalho judiciário e a manutenção da justiça.

    Evidentemente, a reprodução dos diversos relatos colhidos deve, além de atentar para os

    13

  • detalhes, não distorcer as informações recebidas. Pela proximidade existente nas atividades

    dos diversos tipos de policiamentos existentes, polícia civil, militar e federal, funções nas

    quais freqüentemente existe a reprodução de relatos de partes envolvidas em delitos,

    entende-se que a memória de relatos seria importante em todas as funções policiais.

    No Brasil existem apenas dois testes com parecer favorável do Conselho Federal de

    Psicologia que medem memória: o TMV -Teste de Memória Visual, do Laboratório de

    Pesquisa em Avaliação e Medida – LabPam e o TEMPLAM– Teste de Memória de Placas

    para Motoristas, integrante da Bateria BFM2, Bateria de Funções Mentais para Motoristas,

    da Casa do Psicólogo. Os dois testes mencionados não avaliam memória de relatos. Além

    disso, também não existem no Brasil instrumentos específicos para seleção dos cargos de

    policiais.

    1 Seleção de Pessoal

    Uma boa seleção permite que empresas contratem pessoas que têm mais

    probabilidade de desempenharem adequadamente suas funções e evita que dispensem

    tempo e dinheiro investindo em treinamento de pessoas que, em curto prazo, se mostrarão

    inadequadas para o cargo e serão dispensadas ou abandonarão sua função por não conseguir

    desempenhá-la satisfatoriamente. Nesse sentido, um dos benefícios indiretos mais evidentes

    de uma boa seleção de pessoal é a economia monetária que fazem as empresas que a

    utilizam.

    14

  • As empresas aumentam seu ganho ao selecionar as pessoas com características

    psicológicas mais adequadas para desempenho do cargo e, ao mesmo tempo, evita o

    desperdício investindo nas pessoas com menos probabilidade de bom desempenho da

    função. Dessa forma, a sociedade economiza indiretamente. Isso porque os gastos de uma

    empresa são contabilizados nos valores finais de seus produtos ou serviços e, assim, é a

    sociedade quem paga, indiretamente, pelos gastos com contratações aleatórias de

    empregados.

    Embora os benefícios financeiros da seleção de pessoal sejam os mais aparentes e

    mais imediatos, não se deve pensar que esse é o único ou principal objetivo dessa atividade.

    Selecionar trabalhadores com traços psicológicos compatíveis com as características e

    exigências de cada cargo aumenta a probabilidade de satisfação no desempenho do

    trabalho, elevando a motivação e o crescimento pessoal na organização.

    Além de promover, indiretamente, o bom funcionamento de toda uma instituição,

    uma seleção de pessoal adequada também é uma forma de salvaguardar o indivíduo de um

    cargo cujas tarefas sejam desestruturantes para suas características psicológicas. Nesse

    sentido, realizar uma seleção de pessoal adequada se torna um compromisso ético com o

    cidadão e com a sociedade.

    Embora sejam evidentes os benefícios da realização de uma boa seleção de pessoal,

    nem sempre é assim que a sociedade enxerga essa atividade. A sociedade entende a

    avaliação psicológica como um momento específico e curto demais para se tirar conclusões

    sobre uma complexidade “inavaliável”, em sua concepção.

    Freqüentemente ouvem-se comentários colocando em dúvida a validade da seleção de

    pessoal. Não faltam também comentários que associam a seleção de pessoal a uma

    avaliação psiquiátrica, cujo objetivo seria avaliar a sanidade mental dos candidatos. Este

    15

  • último tipo de pensamento parece ser o mais danoso, visto que não ser recomendado para

    determinado cargo fica associado a uma fantasiosa e notoriamente discrepante condição de

    “loucura” do candidato, gerando raiva e indignação.

    Uma das maiores fontes das concepções errôneas a respeito da avaliação psicológica

    seria a falta de informação da sociedade. Entretanto, a população de modo algum deveria

    ser responsável por conhecer os valores de uma atividade, que, de acordo com a Lei Federal

    n. 4119/62 (Conselho Federal de Psicologia, 2006), é uma atividade técnica e restrita aos

    psicólogos.

    Uma melhor formação em avaliação psicológica dos graduandos em Psicologia, a

    construção e utilização de instrumentos mais adequados para este fim, uma comunicação

    mais clara entre entidades representantes da profissão e a sociedade, além de constantes

    discussões sobre a ética na profissão, são atitudes que devem minimizar o pensamento

    errôneo da população quanto à avaliação psicológica e à Psicologia enquanto profissão.

    Isso se torna, portanto, uma obrigação de cada profissional e principalmente dos

    especialistas da área.

    2 A Importância da Seleção de Pessoal para o Cargo Policial

    Apesar da deturpada visão da sociedade, a seleção de pessoal tem demonstrado cada

    vez mais a sua importância, garantindo seu espaço nas empresas e até mesmo em concursos

    públicos. O valor da seleção se mostra ainda mais evidente quando se trata de cargos

    16

  • extremamente estressantes, visto que exigem um processo seletivo ainda mais cuidadoso,

    como é o caso da função policial.

    O aumento constante do comportamento violento da sociedade, que tem implicações

    diversas em diferentes esferas, exige cada vez mais uma força repressora e preventiva de

    qualidade para o combate à violência. De acordo com a Constituição da República

    Federativa do Brasil de 1988, a força preventiva da violência é desempenhada pela Polícia

    Militar e a força repressora é incumbência das Polícias Civil e Federal. Assim, a Polícia, de

    forma geral, possui a responsabilidade de prestar um serviço de qualidade à população,

    prevenindo o crime, reprimindo-o e ainda garantindo o respeito e o tratamento cordial aos

    populares.

    A literatura mostra que a profissão policial é uma das mais estressantes (Anchieta &

    Galinkin, 2005; Brito & Souza, 2004; Vasconcelos, 2000). Isso gera uma maior

    responsabilidade da seleção de pessoal, visto que esse tipo de trabalho pode ser demasiado

    estressante para a maioria da população. A incompatibilidade das características de

    personalidade do trabalhador com suas atividades laborais gera sofrimento para o cidadão e

    seus entes, ou até mesmo conseqüências irreversíveis, como é o caso daqueles policiais que

    põem fim a suas vidas e (ou) de outros. Ocorre que, na maioria das vezes, a profissão

    policial é o meio de sobrevivência econômica de seus servidores e suas famílias,

    implicando uma resistência natural em abandonar o cargo, ainda que gere uma notória

    condição de sofrimento para o trabalhador. Cabe à seleção de pessoal identificar o

    candidato com potencial para a inadequação ao cargo e impedi-lo de ingressar na

    instituição, para sua própria segurança e de seus pares.

    Diante de tanta responsabilidade da seleção de pessoal com o cargo de policial, é

    natural a preocupação dos especialistas em avaliação no sentido de aperfeiçoar essa técnica.

    17

  • Por conseguinte, legítimos são os esforços para tornar a seleção para esse cargo mais

    específica e, portanto, mais eficiente.

    Uma medida que pode aumentar a eficácia e a precisão da seleção de pessoal é a

    utilização de instrumentos de medida construídos especificamente para o cargo que se

    deseja avaliar. De acordo com Pasquali (2001), existem poucos testes psicológicos

    construídos especificamente para serem utilizados em seleção de pessoal. Até o presente,

    não existem testes específicos para a função policial. Diante dessa escassez e da

    importância já descrita de se aperfeiçoar a seleção de policiais, observa-se a necessidade da

    construção de instrumentos de medidas para avaliar construtos psicológicos característicos

    da função policial, construídos de acordo com a realidade dessa função, respeitando as

    especificidades e peculiaridades do contexto dessa profissão, como é o caso do Teste de

    Memória de Relatos, proposto neste trabalho.

    B- MEMÓRIA

    1 Conceituação Geral

    Todos os dias recebemos inúmeras informações, as quais são selecionadas (de forma

    consciente ou não) para serem armazenadas ou descartadas. Esse procedimento de

    armazenamento de informações que possam ser recuperadas e utilizadas posteriormente é

    chamado de memória.

    18

  • Há relatos de que o interesse pela memória exista desde os gregos, mas foi o jovem

    filósofo Hermann Ebbinghaus o primeiro cientista a estudá-la experimentalmente, em 1885

    (Schacter, 2003). Ao estudar sua própria memória, Ebbinghaus descobriu que a maior parte

    do esquecimento ocorre em períodos recentes ao acontecimento e que depois vai

    diminuindo, o que foi denominado de curva do esquecimento. A curva gráfica do

    esquecimento foi comprovada por pesquisas mais recentes até mesmo fora do laboratório,

    mostrando-se uma representação da estrutura básica da relação entre a passagem do tempo

    e a memória (Slamecka, 1985).

    De acordo com Lent (2001), há uma seqüência de eventos nos processos

    mnemônicos. O primeiro deles é a aquisição, que corresponde à entrada de uma

    informação qualquer nos sistemas neurais ligados à memória. Em seguida, há uma seleção

    dos eventos mais importantes para a cognição, ou mais marcantes para a emoção, ou mais

    focalizados pela atenção, ou mais fortes sensorialmente, ou priorizados por critérios

    absolutamente desconhecidos. Posteriormente acontece a retenção da memória, processo

    pelo qual as informações selecionadas ficam disponíveis para serem lembradas, podendo

    durar de alguns milisegundos a vários anos.

    A capacidade de retenção varia de indivíduo para indivíduo, bem como de situação

    para situação. Contudo, sabe-se que, para alguns sistemas de memória, a capacidade de

    retenção é finita e parece não ultrapassar um pequeno número de itens de cada vez. Para

    outros sistemas a capacidade é praticamente infinita (Lent, 2001).

    Algumas informações permanecem na memória prolongadamente ou

    permanentemente, o que é possibilitado pelo processo de consolidação.

    Por fim, existe a evocação, também chamada de lembrança ou recuperação, que é o

    processo mneumônico que permite o acesso à informação que foi armazenada e sua

    19

  • utilização mentalmente na cognição e na emoção, ou para expressá-la por meio de um

    comportamento.

    A memória pode ser divida em tipos e subtipos que são, inclusive, operados por

    mecanismos e bases neurais diferentes. De acordo com Lent (2001), a memória pode ser

    classificada quanto ao tempo de retenção em: memória ultra rápida ou memória

    sensorial, que dura apenas milisegundos; memória de curta duração, com retenção de

    segundos e com a função de possibilitar a continuidade do nosso sentido do presente; e

    memória de longa duração, com retenção mais prolongada, podendo durar dias, semanas,

    anos ou a vida toda.

    De acordo com a literatura (Nelson, 1971), para que a evocação seja de longo e não

    de curto prazo, é necessário um lapso temporal de 30 segundos entre a apresentação do

    estímulo e a recordação. Isso é verdade, porém, se durante esse lapso temporal o indivíduo

    desvia sua atenção do estímulo a ser recordado. Se, por outro lado, o indivíduo reproduz

    mentalmente o estímulo apresentado, esse fator impede que as informações recebidas sejam

    enviadas para a memória de longo prazo, mas, ao contrário, reforçam a memória de curto

    prazo.

    No que se refere à memória de curta duração, ou memória de curto prazo, como é

    mais conhecida, Anderson (2004) explica que nos anos 60 essa teoria foi muito importante

    para a história da Psicologia cognitiva. De acordo com essa teoria, as informações

    provindas da memória sensorial, conforme obtivessem atenção, iam para uma memória de

    curto prazo intermediária na qual deveriam ser repetidas para que pudessem passar para

    memória de longo prazo. Dessa forma, a teoria da memória de curto prazo propunha um

    percurso necessário pelo qual passariam as informações, o qual é representado na figura 1.

    20

  • Figura 1. Modelo representando o percurso necessário de uma informação até a memória de longo prazo, segundo a teoria dos múltiplos armazenamentos.

    Com o avanço das pesquisas, no entanto, foi proposto que não importava o tempo que

    a informação era retida, mas sim a profundidade com que era processada (Craik &

    Lockhart, 1972, conforme citado por Anderson, 2004). Dessa forma, a repetição poderia até

    promover um melhoramento da memória, contanto que a informação fosse repetida de

    maneira profunda e significativa. Essa teoria, chamada de profundidade de processamento,

    quebrou a crença de que havia um caminho intermediário necessário para a informação

    chegar à memória de longo prazo, sendo uma das causas que levou à queda da teoria da

    memória de curto prazo.

    Ainda que não exista uma passagem obrigatória da informação por uma estação

    intermediária antes de continuar seu percurso à memória de longo prazo, permanecem as

    observações de que existe um limite para a quantidade de informações que as pessoas

    podem repetir em um determinado momento. Essas informações seriam guardadas na

    memória de trabalho. A memória de trabalho, em oposição à memória de curto prazo, é

    uma proposta de que possuímos um circuito de articulação o qual mantém tantas

    informações auditivas quanto formos capazes de repetir em um período fixo (Baddeley

    1986; Vallar & Baddeley, 1982, conforme citados por Anderson 2004). De acordo com

    21

    Memóriasensorial

    Memóriade curto

    prazo

    Memóriade longo

    prazoAtenção Repetição

  • Baddeley, podemos conservar durante cerca de 1,5 a 2,0 segundos o material repetido no

    circuito de articulação. Baddeley acrescenta que também possuímos um esboço

    visoespacial para a repetição de imagens. Dessa forma, o circuito de articulação e o esboço

    visoespacial seriam dois sistemas intermediados por um executivo central para manter as

    informações disponíveis na memória de trabalho.

    Já quanto à natureza, a memória pode ser classificada em memória explícita ou

    declarativa, memória implícita ou não declarativa.

    A memória explícita contém as informações que podemos acessar conscientemente.

    A memória implícita difere da explícita porque não temos consciência de termos tais

    conhecimentos, embora eles se manifestem no bom desempenho de algumas tarefas.

    A perda de informação da memória, ou esquecimento, é uma das questões mais

    investigadas. De acordo com Altmann e Gray (2002), duas visões concorriam para explicar

    o esquecimento, a da deteriorização e da interferência. A da deteriorização era uma visão de

    que a informação desapareceria com o tempo, a menos que fosse constantemente ativada; e

    a da interferência era o esquecimento causado por várias associações à informação a ser

    lembrada. Altmann e Gray (2002) afirmam que a deterioração e a interferência são

    funcionalmente relacionadas, ou seja, se uma informação se deteriora, isso vai interferir

    menos em futuras aquisições de informações.

    Para Anderson (2004) existem dois motivos que levariam ao esquecimento: ou a

    informação desaparece de nossa memória, ou seja, a memória se perde; ou a informação

    continua em nossa memória e não conseguimos acessá-la por algum motivo. Alguns

    estudos de Nelson (1971, 1978) mostram que se for possível criar uma medida sensível o

    suficiente, pode-se demonstrar que as memórias aparentemente esquecidas ainda

    permanecem. Independente dessa discussão, o fato é que o esquecimento talvez

    22

  • desempenhe uma função de extrema importância para impedir que haja uma sobrecarga nos

    sistemas cerebrais da memória.

    2 Representações Baseadas no Significado

    A hipótese das representações baseadas no significado explica de que maneira as

    informações mais importantes de um evento são armazenadas em nossa memória

    (Anderson, 2004).

    A literatura indica que nossa memória de comunicações verbais mostra-se melhor ao

    recordar o significado de uma mensagem quando comparada com recordações das exatas

    palavras de uma mensagem complexa (Anderson, 1974). Dessa forma, temos mais

    facilidade para lembrar o essencial de um evento (memória do significado) e mais

    dificuldade para guardarmos o que é específico (memória estilística). Lembrar-se do que é

    essencial faz parte de um processo natural, enquanto que se lembrar de especificidades

    requer uma atenção diferenciada para tais informações.

    A retenção do significado é um fenômeno que também pode ser observado nas

    informações visuais (Bower, Karlin & Duek, 1975; Gernsbacher, 1985; Mandler &

    Ritchey, 1977).

    23

  • 3 Representações Proposicionais

    A Psicologia Cognitiva utiliza diferentes tipos de sistemas de representações para

    expressar o significado de frases e figuras, resumindo as informações mais importantes da

    mensagem (Anderson, 2004). Uma dessas formas de representação, que é a mais

    comumente utilizada, é a representação proposicional (Frederiksen, 1975; Kintsch, 1974).

    O conceito de proposição é expresso por Anderson (2004) como sendo “a menor

    unidade de conhecimento que se pode sustentar em uma asserção separada; ou seja, é a

    menor unidade sobre a qual faz sentido fazer um julgamento de falso-verdadeiro” (p. 85).

    Segundo esse autor, a análise proposicional representa a memória de sentenças complexas

    em termos de unidades proposicionais simples e abstratas.

    Kintsch (1974) propõe uma forma de representação proposicional, na qual cada

    proposição é representada por relações e argumentos. Os argumentos geralmente são

    representados por substantivos e referem-se a momentos, lugares, pessoas e objetos. As

    relações geralmente são os verbos, adjetivos e outros termos relacionais. São as relações

    que organizam os argumentos. De acordo com essa proposta, podemos analisar a seguinte

    sentença:

    Viviane, professora de uma escola exemplar, vai se casar em breve.

    A decomposição da sentença acima produz as seguintes proposições:

    A. Viviane é professora.

    B. A escola na qual Viviane leciona é exemplar.

    24

  • C. Viviane vai se casar em breve.

    De acordo com a proposta de Kintsch (1974), representam-se as proposições da

    seguinte forma:

    A’. (Viviane, professora)

    B’. (escola, Viviane, exemplar)

    C’. (Viviane, casar, breve)

    Deve ser salientado que as considerações dispostas sobre memória nesse trabalho não

    pretendem abarcar todas as características e variáveis envolvidas no processo mnemônico.

    Existem muitas outras variáveis a serem consideradas a respeito do construto memória,

    embora descrevê-las fugiria aos objetivos deste trabalho.

    4 Formas de Avaliação da Memória

    Podem ser utilizadas diversas formas de testagem para avaliar memória, sendo as

    mais freqüentemente utilizadas do tipo reconhecimento (memória de reconhecimento), do

    tipo recuperação com pistas e do tipo recuperação livre (memória de evocação). No tipo

    reconhecimento são dadas várias opções para o sujeito, dentre elas, aquela que corresponde

    à informação original e sujeito escolhe dentre as alternativas, aquela que corresponde à sua

    memória. Como exemplo pode ser citado um caso que acontece rotineiramente em

    25

  • delegacias de polícia. Uma vítima reconhece, dentre várias pessoas com características

    semelhantes, o seu agressor.

    A avaliação do tipo recuperação com pistas seria quando a pessoa deve recuperar a

    informação original livremente, ou seja, ela deve verbalizar espontaneamente, porém, com

    a ajuda de uma pista. Já na recuperação livre seria o mesmo processo anterior, mas sem a

    ajuda de uma pista. Um exemplo de recuperação livre seria uma pessoa narrando

    livremente um fato qualquer que aconteceu com ela ou com outra pessoa.

    Quanto ao nível de dificuldade de cada uma dessas formas de avaliação, o

    reconhecimento seria o considerado mais fácil, seguido pela recuperação com pistas até

    chegar ao mais difícil, a recuperação livre. A facilidade da memória de reconhecimento

    pode ser explicada porque pode depender de um tipo de julgamento de familiaridade que

    não exige a criação explícita de novos registros de memória (Glenberg, Smith & Green,

    1977, conforme citado por Anderson, 2004).

    5 Inferência

    Uma outra característica da memória que deve ser mencionada diz respeito às

    interferências que acontecem no processo de armazenamento de informações. O processo

    mnemônico não é passivo como pode parecer. A literatura que estuda a memória de

    sentenças complexas em detrimento daquela que estuda memória de palavras individuais

    entende que, ao armazenarmos informações, integralizamo-as com outras informações que

    já estão armazenadas, formando novas combinações sobre o evento original. Ao narrarmos

    26

  • determinado fato, podemos fazê-lo sem nos darmos conta de que estamos narrando não o

    evento original, mas sim uma mistura entre o evento original e muitas informações que

    acreditamos que estavam presentes no evento original, mas não estavam.

    Como mostra a teoria das representações baseadas no significado, nossa memória

    funciona melhor para recordar o significado de uma mensagem. Quando não conseguimos

    recordar determinada informação, podemos recordar fatos relacionados e assim, concluir a

    informação que não conseguimos recordar. Narrar um fato inserindo conclusões, ainda que

    plausíveis, é um processo natural e imperceptível para todos os seres humanos, chamado de

    inferência. De acordo com o Novo Discionário Aurélio (1975), inferência vem do latim,

    inferentia e possui os seguintes significados: “1.ato ou efeito de inferir, indução, conclusão.

    2. Log. Admissão da verdade de uma proposição, que não é conhecida diretamente, em

    virtude da ligação dela com outras proposições já admitidas como verdadeiras”. Já o

    Dicionário Melhoramentos da Língua Portuguesa (1977) define inferência como “o ato de

    deduzir por meio de raciocínio, tirar por conclusão ou conseqüência”.

    Brewer (1977) propôs uma classificação entre dois tipos de inferências. O primeiro

    tipo trata-se da inferência que é uma “implicação lógica” entre sentenças, ou seja, uma

    sentença parece ser necessariamente uma implicação de outra. Um exemplo desse tipo de

    inferência seria: O urso era mais esperto que o falcão, o falcão era mais esperto que o lobo

    implica em O urso era mais esperto que o lobo. O outro tipo de inferência seria a

    “implicação pragmática”. Neste tipo, há uma expectativa do ouvinte de uma conclusão

    entre sentenças que não é uma implicação necessária. Um exemplo de implicação

    pragmática seria: Roberto disse que está chovendo lá fora pragmaticamente implica que

    Está chovendo lá fora. Brewer propõe o uso da conjunção “mas” como teste de implicações

    pragmáticas. No caso do exemplo citado, há uma expectativa de que esteja chovendo lá

    27

  • fora, embora seja possível a seguinte implicação: Roberto disse que está chovendo lá fora,

    mas Não está chovendo lá fora, sendo esta última uma sentença possível, logo, há uma

    implicação pragmática.

    Inferência é um processo que faz parte do cotidiano dos seres humanos. Em

    determinadas profissões, a inferência faz parte das técnicas de trabalho, como no caso da

    Psicologia. Entende-se, portanto, a inferência como um processo natural do comportamento

    dos seres humanos. Entretanto, na profissão policial, a inferência pode ser prejudicial

    porque se trata de uma função que trabalha com fatos comprovados. Na falta de provas,

    muitas vezes as pessoas inferem e tiram suas próprias conclusões sobre determinado

    episódio, mas esse não deve ser o papel do policial. O policial não tira suas próprias

    conclusões baseadas no que parece ser, de acordo com suas experiências. O policial

    disponibiliza para o Poder Judiciário apenas os fatos, permitindo um julgamento mais

    imparcial possível. A inferência pode até ser permitida ao policial, desde que esse servidor

    reconheça que se trata de uma conclusão plausível, e não de um fato em si. Para que isso

    seja possível, esse profissional deve saber diferenciar o evento da inferência e deve

    certificar nos documentos expedidos, caso tenha feito alguma inferência.

    A literatura mostra que os construtos psicológicos são distribuídos normalmente na

    população (Hays, 1963, Stigler, 1986, Pasquali, no prelo). Dessa forma, a suscetibilidade à

    inclusão de inferência ao relatar um fato provavelmente obedece a uma distribuição normal

    na população. A maioria das pessoas está sujeita a incluir inferências e crenças ao recordar

    um fato, num grau considerado mediano. Também existe uma minoria que estará menos

    sujeita a esse tipo de distorção de memória, e outra minoria que estará sujeita ao mesmo

    atributo num grau acentuado. Aqueles sujeitos que conseguem diferenciar uma inferência

    28

  • de um fato e são menos propensos ao processo de inferência, certamente são aqueles que,

    nesse sentido, seriam mais adequados para exercer a função policial.

    5.1 Falso Testemunho e Suscetibilidade à Inferência

    Normalmente, o primeiro dos elementos que correlacionamos com o esquecimento é

    o passar do tempo. A idéia de que os registros de memória simplesmente perdem força com

    o passar do tempo é uma das explicações comuns do esquecimento. Ela é denominada

    teoria da deterioração do esquecimento e é demonstrada por Schacter (2003) como o

    primeiro dos sete motivos pelos quais esquecemos, ou pecados da memória, como nomeia o

    autor. Os outros “pecados da memória” seriam a distração, o bloqueio, a atribuição errada,

    a sugestionabilidade, a distorção e a persistência.

    No entanto, ocorre que as pessoas não conseguem recordar determinado evento, mas

    conseguem recuperar fatos relacionados e assim inferir o evento original em função desses

    fatos relacionados (Anderson, 2004). Quando inferimos, não percebemos que fazemos isso

    e acreditamos que estamos recordando o que de fato ocorreu. Porém, o processo de

    reconstruções de fatos que desejamos lembrar pode levar a recordações incorretas, sem que

    percebamos (Bransford & Franks, 1971, Sulin & Dooling, 1974). Estudos indicam que, na

    medida em que os sujeitos elaboram sobre as informações que serão recordadas, tendem a

    recordar inferências que não estudaram (Owens, Bower & Black, 1979).

    Elizabeth Loftus iniciou toda uma linha de pesquisa sobre os efeitos da interferência

    na memória de informações reais. Seu trabalho se iniciou com estudos sobre como a

    29

  • maneira de realizar uma pergunta pode alterar a resposta das pessoas. De acordo com essa

    autora, a forma como a pergunta é apresentada faz com que o sujeito reinterprete o evento,

    transformando permanentemente a memória original do evento. Por exemplo: um vídeo

    sobre um acidente automobilístico é mostrado a dois grupos de sujeitos. Para um grupo,

    perguntou-se qual a velocidade do carro quando bateu no poste. Para outro grupo

    perguntou-se qual a velocidade do carro quando ele esmagou o poste. A média da

    velocidade obtida pelas respostas do grupo que recebeu a pergunta com a palavra

    “esmagou” foi significativamente maior que a do outro grupo. Ao se questionar se os

    sujeitos haviam visto estilhaços de vidro no vídeo, o grupo que recebeu a palavra

    “esmagou” respondeu positivamente com maior freqüência, apesar de não haver sido

    mostrado nenhum estilhaço de vidro no filme. Dessa forma, a memória original do evento

    desapareceria e seria formada uma nova memória na qual estaria inserido algo sobre a

    pergunta feita (Loftus & Palmer, 1974).

    Loftus também estudou como a memória das pessoas pode ser alterada por falsos

    pressupostos, ou seja, inserindo afirmações da existência de um objeto que não existia no

    evento original. Por exemplo, considere um grupo de sujeitos assistindo a um vídeo, que

    mostra oito manifestantes interrompendo uma sala de aula. Em seguida os sujeitos

    respondiam a um questionário. Alguns sujeitos receberam um questionário que continha a

    pergunta: “A pessoa que liderava os quatro manifestantes que entraram na sala era do sexo

    masculino?”. Os outros sujeitos receberam a pergunta: “A pessoa que liderava os doze

    manifestantes que entraram na sala era do sexo masculino?”. Uma semana depois os

    sujeitos responderam à seguinte pergunta: “Quantos manifestantes você viu entrando na

    sala de aula”. O grupo que recebeu a falsa proposição de que havia doze manifestantes na

    sala de aula superestimaram o verdadeiro número de manifestantes quando perguntados. Já

    30

  • os sujeitos que receberam a falsa proposição com quatro manifestantes subestimaram o

    número real de pessoas que viram no vídeo (Loftus, 1975). Essa metodologia foi utilizada

    em diversos estudos, nos quais os resultados indicam que uma falsa proposição torna a

    resposta dos sujeitos tendenciosa (Loftus & Hoffman, 1989; Greene, 1992).

    Os estudos de Loftus mostraram a vulnerabilidade do relato de testemunhas oculares.

    Mostraram que o relato do que as testemunhas viram pode ser influenciado não apenas por

    como a pergunta é feita, mas também por como expressões anteriores e questões

    preliminares são expressas.

    Loftus e Hoffman (1989) contabilizaram o tempo de resposta e observaram a

    diferença entre a velocidade da emissão de respostas do grupo controle e de indivíduos que

    foram enviesados propositadamente por um falso pressuposto ou pela elaboração da

    pergunta. Os resultados mostraram não existir diferença significativa entre os dois grupos, o

    que sugere que indivíduos que tiveram sua memória “contaminada”, não ficam inseguros

    ao responder.

    Uma vez que essa interferência foi estabelecida, a atenção se concentrou nas

    condições em que essas interferências ocorrem. Foi constatado que a discrepância entre o

    evento original e o falso pressuposto subseqüente não deve ser grande, mas deve ser

    introduzida sutilmente. Do contrário, o efeito não existe ou é minimizado. Sujeitos que

    lêem o texto mais devagar e mais cuidadosamente são menos propensos a qualquer falsa

    pressuposição. Pessoas com memória particularmente boa são mais resistentes à

    interferência que outras pessoas (Greene, 1992).

    Para explicar os resultados de seus estudos, Loftus apresentou uma hipótese da

    substituição. De acordo com essa hipótese, informações posteriores podem alterar

    memórias estabelecidas, ou seja, informações subseqüentes substituem traços do evento

    31

  • original. Da hipótese de substituição apresentada por Loftus podem-se observar três

    conseqüências: 1) temos dificuldade em discriminar entre o evento original e a memória

    das informações subseqüentes que adquirimos sobre o evento; 2): alguns aspectos do

    evento original serão substituídos por informações subseqüentes e desaparecerão

    permanentemente e 3) esse processo é irreversível.

    De acordo com Greene (1992), a resistência dos teóricos à teoria de substituição da

    memória original proposta por Loftus foi imediata. A maioria dos psicólogos e não

    psicólogos acredita, como já foi explicitado anteriormente, que uma vez que a informação é

    armazenada, ela não desaparece. O esquecimento não seria a perda da informação, mas a

    impossibilidade de acessar a informação desejada. Essa teoria se sustenta nos casos em que

    sujeitos não conseguem se lembrar de uma informação em determinadas circunstâncias,

    mas em outras circunstâncias eles conseguem, tais como a mudanças no ambiente físico

    (Anderson, 2004; Nelson 1971, 1978).

    Loftus argumenta que o fato de alguns esquecimentos serem conseqüência de falhas

    na recuperação não significa que todos os casos de esquecimentos se devam por esse fator.

    Loftus acredita que a falha na memória se dá por um processo de desaprendizagem do

    evento original quando o sujeito se depara com uma falsa proposição. Ainda que os sujeitos

    “contaminados” estivessem altamente motivados para recuperar uma informação original,

    não conseguiram fazê-lo (pagava-se mais de 85 dólares pela precisão). Permitir que os

    sujeitos dessem um segundo palpite dentre três opções também não foi suficiente.

    De fato, com os métodos atuais é impossível provar que todas as informações

    aprendidas estão guardadas na memória. Para Loftus, seus experimentos seriam uma

    evidência contra a noção de armazenamento permanente. Entretanto, uma vez que a teoria

    32

  • da substituição de Loftus ia contra a opinião dominante sobre memória, seria natural que

    surgissem outras explicações para os resultados encontrados por ela.

    De acordo com Greene (1992), a explicação alternativa mais influente foi a de

    McCloskey e Zaragoza (1985). Esses autores argumentaram que a apresentação da falsa

    proposição não tinha efeito na memória do sujeito, mas sim na estratégia que ele utilizava

    quando não conseguia se lembrar do evento original e era forçado a chutar. Nesse sentido,

    parecia haver para o sujeito uma competição entre duas possíveis respostas e a falsa

    proposição apresentada apenas alterava o processo de chute dos sujeitos. Assim, se um

    sujeito não se lembra da informação original e em princípio chutaria aleatoriamente, ao ser

    apresentado à falsa proposição, parece se lembrar dela e chuta essa alternativa. Dessa

    forma, esses autores propuseram novos delineamentos de pesquisa, nos quais eliminavam a

    competição entre possíveis respostas. Para McCloskey e Zaragoza (1985), se não houvesse

    uma competição entre o evento original e a falsa proposição, não deveria haver diferença

    nas respostas entre o grupo “enviesado” e o grupo controle. Uma série de experimentos foi

    realizada com esse novo delineamento, os quais levaram aos resultados previstos por

    McCloskey e Zaragoza, ou seja, não houve diferença entre os dois grupos (Greene, 1992).

    Estes achados contradizem a teoria da substituição proposta por Loftus.

    Não se pode dizer que há evidências fortes contrárias à idéia de que os traços de

    memória são permanentes. Porém, também não há evidências fortes de que a memória não

    é permanente. Talvez, a competição entre possíveis respostas pode ser a principal

    responsável pelos erros de memória na presença de falsas proposições. Como propuseram

    McCloskey e Zaragoza (1985), o fato de haver duas lembranças plausíveis na memória dos

    sujeitos parece fazer com que, pelo menos boa parte deles, julgue a lembrança falsa como

    33

  • sendo a original. Se não há esse efeito de interferência de competição entre respostas, não

    parece haver diferenças significativas entre os grupos estudados.

    Os estudos mencionados mostraram a imensa fragilidade do relato de testemunhas

    oculares. Informações que são aprendidas posteriormente, ou tipo de questões apresentadas

    ou até mesmo a forma com uma pergunta é feita, tudo isso possui um efeito dramático na

    maneira como a testemunha relata um evento. Essa área de estudo ganhou tanta notoriedade

    que até mesmo estudiosos se dedicam para especializar a nomenclatura para o tipo de erro

    de memória, tornando-a mais específica (DePrince, Allard, Oh, & Freyd, 2004). No

    entanto, a questão central é que testemunhas muito provavelmente serão imprecisas em

    seus relatos, ou relatarão fatos baseados não no evento original, mas influenciados por

    informações aprendidas posteriormente.

    O fato de os sujeitos que foram enviesados com falsas proposições serem tão seguros

    de suas respostas quanto os sujeitos que não foram “contaminados” é particularmente

    preocupante. Isso significa que pessoas (tais como juízes) que avaliam a veracidade de um

    relato, não devem se basear exclusivamente na confiança apresentada pelo relator como um

    indicador de sua confiabilidade. Isso porque uma pessoa pode estar absolutamente

    confiante de seu relato, justamente porque não faz idéia de que seu relato é cheio de

    imprecisões.

    A linha de pesquisa apresentada mostra como as pessoas acabam esquecendo detalhes

    de episódios e preenchendo esses elementos faltosos com detalhes da sua experiência. Já foi

    demonstrado que as testemunhas muitas vezes são bastante inexatas nos depoimentos

    prestados, embora se atribua grande importância a esses relatos (Neisser, 1981). Um dos

    motivos dessa pouca exatidão é o fato de que as pessoas confundem o que realmente

    observam sobre um incidente com o que ouvem de outras fontes, ou produzem inferências

    34

  • sobre o evento (Ceci, Loftus, Leichtman & Bruck, 1995; Loftus, 1975; Loftus, Miller &

    Burns, 1978; Loftus & Pickerall, 1995; Wright & Loftus, 1998).

    Os estudos apresentados retratam a necessidade da construção de um teste de

    memória de relatos que permita avaliar não só a capacidade de memorização de um

    episódio, mas também se o indivíduo está diferenciando o que realmente experienciou de

    inferências possíveis.

    OBJETIVO DO ESTUDO

    Tendo em vista a importância de se avaliar de forma mais precisa as características

    para cargos de segurança pública, faz-se necessária a construção de testes específicos que

    possam ser utilizados na seleção de pessoal para este cargo. Sendo a memória de relatos de

    crucial importância para a atividade investigativa, função precípua da atividade policial, o

    objetivo desse estudo foi a construção e validação um teste de memória de relatos,

    especificamente elaborado para ser utilizado em seleção de pessoal de policiais.

    35

  • MÉTODO

    1 O Teste de Memória de Relatos

    O Teste de Memória de Relatos foi construído para avaliar a memória de relatos e a

    capacidade dos indivíduos de diferenciarem fatos de inferências. O referido teste pode ser

    utilizado de forma individual ou coletiva. A forma de aplicação do teste é apropriada para

    sujeitos que possam ler e escrever, embora seja possível que o aplicador anote as respostas

    do indivíduo numa aplicação individual.

    Em virtude dos achados explicitados anteriormente sobre inferência, foi incluída no

    teste uma escala para analisar a suscetibilidade dos sujeitos à produção de inferências, a

    qual é composta de itens com afirmações que, embora pudessem ser conclusões razoáveis,

    não foram citadas na história. Tratam-se de itens falsos, porque são afirmações que, embora

    possam ser concluídas a partir das informações narradas na história, não foram ditas na

    narração.

    O Teste de Memória de Relatos é uma atividade composta de cinco etapas: narração

    das instruções iniciais, narração de uma história, inserção de uma tarefa interpolada,

    narração das instruções finais e preenchimento da folha de respostas contendo itens que se

    referem ao conteúdo da história que foi narrada. Cada uma dessas etapas será detalhada

    posteriormente.

    Uma primeira versão do instrumento foi elaborada, na qual foram observadas

    diversas inadequações que serão expostas posteriormente. As inadequações observadas

    36

  • foram corrigidas, formando-se uma segunda versão do instrumento. Foi feita uma aplicação

    dessa nova versão, cujos resultados ainda apontaram a necessidade de modificações no

    instrumento. Uma terceira versão do instrumento foi elaborada para que fossem realizadas

    as adequações necessárias. Essa terceira versão passou por uma cuidadosa análise de sua

    validade e fidedignidade para que se chegasse à versão final do instrumento. Todas as fases

    de construção das três versões do instrumento serão expostas a seguir.

    Cabe ressaltar que todos os cuidados éticos necessários foram rigorosamente

    respeitados nesse estudo. Os juízes e os sujeitos que compuseram as amostras dessa

    pesquisa foram informados de que se tratava de uma pesquisa acadêmica, de que sua

    participação era absolutamente voluntária, de que eles não teriam qualquer tipo de

    benefício ou punição se não participassem e de que não necessitariam se identificar.

    Também foi informado que o único benefício que teriam ao participar do estudo seria terem

    contribuído para a pesquisa.

    Também é importante explicitar que o teste construído não será mostrado nesse

    trabalho, tendo em vista que foi construído para ser utilizado em seleções de pessoal e sua

    disponibilização ao público poderia facilitar tentativas deliberadas de fraudes, invalidando

    suas aplicações1.

    1 Contatos com a autora podem ser estabelecidos por meio do endereço eletrônico [email protected]

    37

  • 2 Entrevista com Grupo Focal

    Buscando conhecer melhor as características da função policial para que o teste fosse

    adequado à realidade dessa profissão, foi realizada uma entrevista livre com um grupo focal

    de policiais. Participaram dessa entrevista quatro policiais que executam funções distintas,

    servidores estrategicamente selecionados pela excelência no desempenho de seus trabalhos.

    O primeiro quesito investigado nessa entrevista foi o tipo de avaliação da memória

    que mais se adequaria ao contexto da atividade policial. A entrevista indicou que a

    recuperação livre seria a forma que mais se aproxima da atividade policial. De acordo com

    os entrevistados, o trabalho do policial exige a oitiva de envolvidos e posterior recuperação

    livre no momento de elaboração de relatórios ou de testemunhos perante juízes, por

    exemplo. Eventualmente, ocorre na função policial a forma de reconhecimento, quando,

    por exemplo, o policial é solicitado a indicar, dentre várias pessoas que lhe são

    apresentadas, aquela que foi vista por ele em determinado episódio. Também ocorre que,

    quando os policiais vão redigir seus relatórios, muitas vezes utilizam algumas anotações

    que fizeram durante as investigações, o que se aproximaria da recuperação com pistas.

    Assim, os tipos de avaliação da memória mais freqüentemente utilizados por policiais

    seriam a recuperação livre, seguida da recuperação com pistas e, finalmente, o

    reconhecimento.

    Nesta entrevista também foram verificados quais estímulos sensoriais seriam mais

    utilizados na atividade policial, se seriam os estímulos ecóicos ou os icônicos. Esse

    procedimento se justifica porque conforme uma mensagem seja fornecida por meio de

    estímulos verbais ou por meio de estímulos visuais, haverá efeitos diferentes no que se

    38

  • refere ao processamento dessa informação em termos mnemônicos (Anderson 2004). Era

    necessário saber, então, se na atividade policial, é mais freqüente a recordação de

    informações que os policiais ouviram ou leram, ou de informações de cenas que

    presenciaram. Assim, durante a entrevista, foi verificado que a maior parte das informações

    que garantem o exercício da profissão é de natureza auditiva, para todos os cargos policiais.

    Os entrevistados esclareceram que os policiais civis e federais dificilmente visualizam o

    crime no momento de sua consumação, sendo apenas acionados após o crime já ter

    ocorrido e, assim, buscam elucidar o fato com as provas existentes. Uma das provas mais

    valiosas para o policial é o relato de partes envolvidas e de testemunhas. Dessa forma,

    como já foi dito, uma boa memória de relatos é fundamental para o bom exercício da

    profissão policial, civil e federal. Já o policial militar é mais sujeito a presenciar fatos

    criminosos já que é responsável pelo trabalho ostensivo e, por conseguinte, trabalha mais

    tempo nas ruas que os policiais civis e federais. Porém, isso não diminui a importância da

    memória de relatos nessa profissão, visto que o policial militar também ouve e reproduz

    relatos de partes e testemunhas, tanto na fase investigativa, quanto na fase de julgamento de

    um processo.

    Objetivando identificar se a memória mais utilizada pelos policiais seria a memória

    explícita ou implícita, novas questões foram apresentadas ao grupo focal. De acordo com os

    entrevistados, o policial sabe claramente que as informações que estão sendo narradas a ele

    poderão ser evocadas posteriormente para fins das investigações ou para prestar

    declarações como testemunha em âmbito policial ou judicial. O policial tem consciência

    das possíveis conseqüências que são passíveis de ocorrer quando a informação que lhe foi

    confiada não é reproduzida com a devida precisão, conseqüências essas que vão desde o

    fracasso das investigações até ser condenado por falso testemunho, cuja pena pode chegar a

    39

  • até 4 anos de reclusão2. O policial sabe que precisa estar com sua atenção focada nas

    informações que lhe são passadas. Entende-se, portanto, que a memória mais utilizada por

    esse trabalhador seria a memória explícita.

    Outra questão investigada na entrevista foi quanto ao tempo de retenção das

    informações trabalhadas pelo policial. Os entrevistados relataram que na função policial,

    entre a oitiva de relatos e a recordação dessas informações, normalmente existe um lapso

    temporal significativo variando de alguns minutos até dias depois. Um policial pode ser

    chamado em Juízo para explicar detalhes de investigações até mesmo anos depois de ter

    trabalhado em determinado caso. Dessa forma, observa-se que a recuperação de

    informações na função policial parece acontecer, principalmente, com memória de longo

    prazo.

    3 Primeira Versão do Instrumento

    Uma primeira versão do instrumento foi elaborada, contendo 40 itens aleatoriamente

    retirados da história. Os 40 itens foram aplicados numa amostra de 35 pessoas. Os itens

    foram dispostos em duas folhas e entregues aos sujeitos, além de uma terceira folha, que

    continha duas partes, o questionário demográfico e espaços para que os testandos

    indicassem se o item era verdadeiro ou falso.

    Esse estudo demonstrou uma série de inadequações da primeira versão do

    instrumento. O primeiro problema apontado foi quanto à representação adequada de todas

    2 Art. 342 do Decreto-Lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Código Penal).

    40

  • as partes da história nos itens. Foi observado que os itens construídos não cobriam toda a

    extensão da história, havendo partes da história que eram privilegiadas por diversos itens,

    enquanto outras partes não estavam representadas por nenhum item.

    A formatação da primeira versão do teste também se mostrou inadequada, além de

    esteticamente desajustada. Eram necessárias duas folhas para a apresentação de apenas 40

    itens, o que dificultava o manuseio do teste por parte dos testandos, apontando uma

    inadaptação ergonômica do layout das folhas de respostas.

    Um outro problema apresentado pela primeira versão do teste refere-se ao desajuste

    psicométrico dos itens. De acordo com Pasquali (2001), a dificuldade dos itens deve ser

    distribuída de tal maneira que haja um equilíbrio entre eles, de forma que se tenha uma

    curva normal de dificuldade dos itens. Assim, ter-se-ia alguns itens com graus de

    dificuldade baixo e alto, e a maioria oscilando entre o grau médio de dificuldade. A

    primeira versão do teste apresentou uma assimetria na distribuição da dificuldade dos itens,

    conforme mostrado na figura 2.

    41

  • Distribuição da dificuldade dos itens

    0

    10

    20

    30

    40

    50

    60

    70

    80

    90

    100

    1 3 5 7 9 11 13 15 17 19 21 23 25 27 29 31 33 35 37 39

    Itens

    Porc

    enta

    gem

    de

    acer

    tos

    Figura 2. Distribuição da dificuldade dos itens, na primeira versão do instrumento.

    A figura 2 mostra uma distribuição da porcentagem de acertos em relação a cada um

    dos 40 itens do instrumento. Observa-se que a maior parte dos itens possui uma

    porcentagem de acertos maior que 80%. Na verdade apenas dois itens são acertados menos

    que 50% das vezes. Esse resultado mostra que os sujeitos tiveram facilidade para acertar os

    itens. Com esses itens, o instrumento traria pouca informação na discriminação entre os

    sujeitos, dificultando tomadas de decisões em seleções de pessoal.

    42

  • 4 Segunda Versão do Instrumento

    Uma nova versão do instrumento foi elaborada, para modificar as inadequações

    observadas na primeira versão.

    Foram feitos ajustamentos no layout do instrumento e os itens do teste passaram a

    ocupar apenas uma folha, utilizando fonte Arial Narrow, tamanho 11,5. A diminuição do

    número de folhas a ser utilizado pelo teste, além de trazer benefícios econômicos e

    ambientais, também facilita o manuseio do teste por parte dos sujeitos.

    A construção dos itens da segunda versão do instrumento não foi realizada de forma

    aleatória, como na primeira versão. Desta vez, foram obedecidas as orientações dos estudos

    sobre as representações baseadas no significado e as representações proposicionais

    (Anderson, 2004).

    Os itens do teste construído seriam unidades representativas de um sistema mais

    complexo, que é a história contada, buscou-se um tipo de notação que fizesse essa

    representação. A análise proposicional se mostra um meio eficaz de representação para

    sentenças complexas em termos de unidades simples, tendo sido, então, a metodologia

    subsidiou a decomposição da história do teste, permitindo, assim, a construção dos itens do

    teste. Dessa forma, toda a história do teste foi decomposta em 17 frases. Cada frase gerou

    70 unidades proposicionais e cada unidade proposicional resultou num ou mais itens que

    compuseram um protótipo do teste com 105 itens. Essa técnica também garantiu a validade

    de conteúdo do teste, visto que todas as partes da história estão representadas nos itens, o

    que não aconteceu quando os itens foram construídos aleatoriamente.

    43

  • 4.1 Forma A e Forma B do Teste

    Como foi mencionado, a decomposição da história gerou 105 itens. Esse número de

    itens em um teste poderia ser insuficiente para compor uma amostra satisfatória do

    comportamento do sujeito, o que dificulta a elaboração de conclusões sobre o desempenho

    dos testandos. Entretanto, esse mesmo número poderia ser demasiado grande e levar os

    testandos à exaustão. Há que se considerar que a recuperação das informações citadas numa

    história e o julgamento das afirmações dos itens são tarefas que demandam processos

    cognitivos complexos, tornando-se um esforço manter a atenção concentrada em tal tarefa.

    Esse esforço, com facilidade, leva o sujeito à exaustão e à conseqüente desmotivação no

    preenchimento das respostas, aumentando a probabilidade da ocorrência de respostas

    sistemáticas como efeito halo, tendência central, etc (Pasquali, 2001).

    Solicitou-se, então, que alguns sujeitos respondessem a uma amostra de 94 itens para

    avaliar possíveis efeitos de cansaço. Esses sujeitos informaram que, quando estavam

    respondendo entre o 50º e 70º item, começaram a sentir os efeitos do cansaço. Dessa forma,

    foi estabelecido que o número de itens que compõem o teste deveria ser próximo de 50.

    Os itens foram divididos e ajustados, formando duas formas equivalentes do teste,

    Forma A e Forma B. De acordo com Anastasi (2000), a disponibilização de formas

    paralelas é benéfica porque permite a realização de diversos estudos sobre validade e

    fidedignidade do instrumento, por permitir que o mesmo sujeito seja submetido mais de

    uma vez à avaliação do construto memória de relatos, além de possibilitar um maior

    44

  • controle nas tentativas explícitas de fraudes quando o instrumento estiver sendo utilizado

    em seleção de pessoal.

    Cada forma respeitou o número limite de itens estabelecido, bem como a equivalência

    quanto ao número de respostas falsas, verdadeiras e inferenciais. Buscou-se, também, uma

    equivalência de dificuldade nas duas formas, considerando a teoria das representações

    baseadas no significado e a ordem cronológica da apresentação das informações na história.

    Assim, foi feita uma classificação dos itens em duas categorias: aqueles que se referem ao

    significado da mensagem da história e os que se referem a especificidades da história. A

    separação dos itens nas duas formas buscou uma equivalência de dificuldade de acordo

    com essa classificação. Além disso, os itens também foram classificados quanto à ordem

    cronológica de fornecimento das informações, considerando que o momento de

    apresentação das informações é uma variável que interfere na memorização (Pergher &

    Stein, 2003). Por exemplo: se houvesse um item referindo-se especificidades das

    mensagens narradas e que se referisse ao início da história, tomava-se um outro item nas

    mesmas condições e colocava-se um deles na Forma A e o outro na Forma B, para haver

    uma equivalência de dificuldade entre as duas formas.

    Os itens que compõem as duas formas foram cuidadosamente selecionados, a fim de

    garantir que cada frase estivesse igualmente representada em cada uma das formas. Cinco

    frases só produziram um item cada e, portanto, tais itens participam das duas formas do

    teste. Esse procedimento se mostra fundamental para garantir a validade de conteúdo de

    ambas as formas.

    Cada uma das formas possuía 53 itens. Esse número de itens está de acordo com o

    que propõe Pasquali (1999). De acordo com esse autor, não há regras para estabelecer o

    número de itens de um instrumento, mas a experiência indica que cerca de 20 itens seriam

    45

  • suficientes para cobrir um construto. No entanto, deve-se considerar que o construto

    memória de relatos é de complexidade considerável e que devemos iniciar um teste com

    número superior àquele desejado ao final, visto que na fase de validação possivelmente

    alguns itens se perderão. Portanto, considera-se que 53 itens é um número adequado para

    iniciar a validação deste teste.

    A ordem em que os itens aparecem no teste não corresponde à ordem cronológica de

    apresentação dos fatos na história. Se houvesse essa correspondência, isso seria um

    estímulo para que a história se repetisse mentalmente para o indivíduo, facilitando, assim, a

    recuperação das informações.

    4. 2 Tipos de respostas

    A segunda versão do instrumento possuía quatro tipos de respostas possíveis para

    cada item. Os itens cujo conteúdo correspondia ao que foi dito na história deveriam ser

    julgados como “fato real”. Já os itens cujo conteúdo era diferente da história narrada,

    deveriam ser julgados como “fato irreal”. Os itens com conteúdo inferencial deveriam ser

    julgados como “inferência”. Os sujeitos ainda tinham a possibilidade de preencher a coluna

    “não lembro”. Dos 53 itens, 18 eram verdadeiros, 24 eram falsos e 11 eram, na verdade,

    inferências.

    46

  • 4.3 Análise Teórica dos Itens

    A análise teórica dos itens é composta pela análise semântica e pela análise de juízes

    (Pasquali, 2003).

    A análise semântica tem o objetivo de verificar se a linguagem utilizada no item é

    compreensível para a população para a qual o teste é desenvolvido, cuidando, no entanto,

    que não se perca a elegância de tal escrita. A elegância da escrita não se trata apenas de um

    cuidado estético já