tesedoutoradoi direito das religiões de matriz afriana

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HDIO SILVA JR.

A LIBERDADE DE CRENA OMO LIMITE REGULAMENTAO DO ENSINO RELIGIOSO

DOUTORADO EM DIREITO

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA SO PAULO 2003

HDIO SILVA JR.

A LIBERDADE DE CRENA COMO LIMITE REGULAMENTAO DO ENSINO RELIGIOSO

Tese apresentada banca examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito (Direito do Estado), sob orientao da Professora Doutora Maria Garcia.

SO PAULO 2003

RESUMO

O presente trabalho tem como escopo principal investigar os contornos constitucionais da liberdade de crena no Brasil, patenteando a relao de implicao existente entre o princpio da liberdade de crena e a regra do ensino religioso nas escolas pblicas do ensino fundamental. Considerando-se que o princpio da liberdade de crena veda qualquer forma de vinculao e subveno as atividades de natureza religiosa, buscamos promover uma reflexo sobre os limites constitucionais impostos disciplina jurdica do ensino religioso, com nfase na atividade regulamentadora. Do cnone constitucional da liberdade de crena decorrem dois princpios organizativos indispensveis para a descrio e a regulao da matria, quais sejam a laicidade estatal e a separao do Estado da religio. Irradiando-se por todo o sistema normativo, e cimentando o regime jurdico da liberdade de crena, a laicidade enlaa as vrias normas constitucionais pertinentes e incide sobre toda a matria infraconstitucional, fixando fronteiras e cometendo obrigaes positivas e negativas ao Estado e aos particulares. Verificar-se-, assim, que a norma do ensino religioso deve guardar rigorosa obedincia e sintonia com os limites e termos da laicidade estatal, pelo que a adoo de norma infraconstitucional, que permitiu o financiamento pblico do ensino religioso, bem como a ingerncia estatal nesta seara (Lei n. 9.475/1997), afigura-se irremediavelmente inconstitucional.

ABSTRACT

The main target of this work is to investigate the constitutional profile for freedom of belief in Brazil, confirming the relation of the existing implication between the principle of freedom of belief and the ruling for religious teaching in basic education at public schools. Considering that the principle of freedom of belief forbids any kind of bond and subsidy to religious activities, we are trying to promote a contemplation on the constitutional limits imposed on the legal discipline of religious teaching, with emphasis on the regulating activity. The constitutional decree for freedom of belief results in two organizing principles, indispensable for the description and regulation of the issue, namely, state laicity and the separation of the State from religion. Spreading throughout the entire ruling system and consolidating the legal regime for freedom of belief, laicity interlaces the different pertinent constitutional rules and reflects on all the infra-constitutional material, setting frontiers and charging positive and negative obligations to the State and to private people. Thus it is proved that the rules for religious teaching must remain rigorously obedient and harmonious with the limits and terms of state laicity. Therefore adoption of the infra-constitutional rule that allowed public financing for religious teaching, as well as state interference in this association (Law n. 9.475/1997), appears inevitably unconstitutional.

RSUM

La cible principale du prsent travail est base sur linvestigation des contours constitutionnels de la libert de croyance au Brsil, ce qui rend vident la relation de limplication existante entre le principe de libert de croyance et lobservance de lenseignement religieux dans les coles publiques de lenseignement fondamental. Si nous estimons que le principe de libert et croyance dfend toute forme dattache et de subvention aux activits de nature religieuse, nous recherchons favoriser une rflexion sur les limites constitutionnelles imposes la discipline juridique de lenseignement religieux tout en insistant sur limportance de lactivit rglementaire. Du canon constitutionnel de libert de croyance dcoule deux principes organisationnels indispensables la description et la rgularisation de la matire, quel que soit la lacit tatique et la sparation de lEtat de la religion. Se dissminant au travers de tout le systme normatif, et consolidant le rgime juridique de libert de croyance, la lacit enlace les diverses normes constitutionnelles pertinentes et survient sur toute la matire infra constitutionnelle, fixant des frontires et commettant des obligations positives et ngatives lEtat et aux particuliers. On vrifie, ainsi donc, que la norme de lenseignement religieux doit garder une rigoureuse soumission et syntonie envers les limites et termes de la lacit tatique, pour laquelle ladoption dune norme infra constitutionnelle qui a permit le financement publique de lenseignement religieux, aussi bien que lingrence tatique dans ce domaine (Loi n. 9.475/1997), reprsente une invitable inconstitutionnalit.

SUMRIO

INTRODUO CAPTULO 1 A IGUALDADE DE TODAS AS RELIGIES E CRENAS PERANTE A LEI 5 1.1 Estado e religio nas constituies brasileiras. 1.2 Intolerncia religiosa na legislao 1.3 Estado Confessional. Estado Laico. Estado Leigo 1.4 Religio: a inexigibilidade do reconhecimento estatal 1.5 A igualdade de todas as religies e crenas perante a lei 1.6 A igualdade considerada como no-discriminao CAPTULO 2 LIBERDADE DE CRENA 50

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5 18 21 32 39 42

2.1 A liberdade de crena como direito fundamental ...............................................51 2.2 Liberdade de crena...........................................................................................55 2.3 Crena................................................................................................................58 2.4 Normas de Direito Comparado...........................................................................62 2.5 Liberdade de crena nos tratados internacionais ...............................................68 2.6 Objeo de conscincia .....................................................................................742.6.1 Objeo de conscincia: registro de um caso aprecia do pelo Ministrio da Educao e de um pedido de ausncia justificada deferido pela Justia Eleitoral do Rio de Janeiro ..................................................................................................................... 80

CAPTULO 3 LIBERDADE DE CULTO, DE LITURGIA. E DE ORGANIZAO RELIGIOSA 82 3.1 Notas sobre a liberdade de reunio, de manifestao do pensamento e de circulao ..................................................................................................................82 3.2 Liberdade de culto e de liturgia ..........................................................................86 3.3 Ministro Religioso: uma proposta de definio jurdica ....................................101 3.4 Escolas confessionais e institutos teolgicos ...................................................108 3.5 Liberdade de organizao religiosa..................................................................118

CAPTULO 4 DEFESA DA LIBERDADE DE CRENA, DE CULTO, DE LITURGIA E DE ORGANIZAO RELIGIOSA 130 4.1 O bem jurdico tutelado ....................................................................................130 4.2 Tolerncia religiosa ..........................................................................................135 4.3 Tutela civil da liberdade de crena, de culto, de liturgia e de organizao religiosa ...................................................................................................................137 4.4 Tutela penal da liberdade de crena, de culto, de liturgia e de organizao religiosa ...................................................................................................................143 4.5 A qualificao da discriminao religiosa como espcie de prtica do racismo...................................................................................................................143 CAPTULO 5 O PRINCPIO DA LAICIDADE ESTATAL 165 5.1 . A meno a Deus no prembulo da Constituio Federal ...............................167 5.2 . A previso do uso da Bblia nos regimentos de casas legi slativas ..................172 5.3 . A fixao de crucifixos ou outros smbolos religiosos em edificaes pblicas ...................................................................................................................176 5.4 . A mensagem religiosa nas cdulas da moeda nacional...................................179 5.5 . A questo dos feriados religiosos.....................................................................181 CAPTULO 6 EDUCAO E ENSINO RELIGIOSO 187 6.1 O princpio constitucional da liberdade de crena e a regra do ensino religioso ...................................................................................................................187 6.2 Aspectos constitucionais do direito educao ...............................................192 6.3 Notas preliminares sobre o art. 210, 1, da Constituio Federal .................1996.3.1 Contedo jurdico do ensino religioso ............................................................... 201 6.3.2 Aplicabilidade da norma do ensino religioso ..................................................... 205

6.4 A inconstitucionalidade da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997......................213 6.5 Notas sobre a implementao do ensino religioso nos Estados de So Paulo e Rio de Janeiro .........................................................................................................217 CONCLUSES .......................................................................................................223 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................232

INTRODUO

O principal objetivo deste trabalho consiste na investigao dos contornos constitucionais da liberdade de crena, compreendendo, de um lado, a explicitao do regime jurdico que dela decorre, e, de outro, a demonstrao do liame que subordina a regra do ensino religioso ao princpio da liberdade de crena. Considerando-se que o cnone constitucional da liberdade de crena, do qual derivam os princpios organizativos da laicidade e da separao do Estado da religio, veda qualquer forma de vinculao e subveno pblica ao

empreendimento religioso, pareceu-nos vlido supor que a disciplina jurdica do ensino religioso deve guardar rigorosa obedincia e sintonia com os limites e termos daquele cnone. Irradiando-se por todo o sistema normativo, e cimentando o regime jurdico da liberdade de crena, a laicidade enlaa as vrias normas constitucionais e incide sobre toda a matria infraconstitucional pertinente, fixando fronteiras e cometendo obrigaes positivas e negativas ao Estado e aos particulares. Nossa hiptese, inspirada, inclusive, em raros mas fecundos estudos levados a efeito por juristas brasileiros, que o regime constitucional da liberdade de crena probe expressamente a vinculao e o financiamento pblico do ensino religioso. Para o enfrentamento desta temtica, buscamos conferir ao projeto uma perspectiva interdisciplinar, combinando, precipuamente, postulados e categorias tericas do direito constitucional, direito internacional pblico, administrativo,

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tributrio, previdencirio, civil, penal, alm do aporte terico da hermenutica, da histria, filosofia e da cincia poltica. Procuramos assegurar pesquisa um enfoque de natureza

fundamentalmente terica, tendo como ponto de partida uma reviso bibliogrfica do tema, bem como uma descrio minuciosa do contedo jurdico da liberdade de crena, em suas vrias facetas e dimenses. Para demonstrar a plausibilidade de nossa tese, empenhamo-nos na explorao de uma srie o mais possvel coerente e coesa de procedimentos, partindo da dogmtica, demarcando tendncias e regularidades histricas, acentuando significados e conceitos, assumindo definies, traando possibilidades de analogias e dedues, at o ponto em que os resultados da pesquisa permitiram, numa projeo dedutiva, patentear a delimitao constitucional do ensino religioso e a inconstitucionalidade da Lei n. 9.475/1997, que permitiu o financiamento pblico do ensino religioso, bem como a ingerncia estatal nessa seara. Seis captulos conformam o presente trabalho, secundados por um espao dedicado s concluses, no qual registramos uma sntese pessoal e a indicao de propostas de lege ferenda visando oferecer subsdios para o aperfeioamento do regime jurdico da liberdade de crena. No Captulo I, perscrutamos a trajetria histrica da norma constitucional referente matria, demarcamos os modelos de relao entre Estado e religio, e acentuamos o impacto do princpio da igualdade na fruio e no gozo da liberdade de crena.

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Dedicamos o Captulo II para um exame da liberdade de crena como direito fundamental, destacando o fenmeno da crena, sumariando normas de direito comparado, explorando tratados internacionais pertinentes, e pondo em realce a garantia da objeo de conscincia. A liberdade de culto, de liturgia e de organizao religiosa foi divisada no Captulo III, no qual registramos e comentamos a normativa infraconstitucional, propondo definies, e delimitando as fronteiras da liberdade de culto. A defesa da liberdade de crena foi posta em relevo no Captulo IV, com nfase para a noo de bem jurdico, e para a tutela civil e penal da liberdade de crena. No captulo V indagamos da eficcia da laicidade estatal, valendo-nos de estudos tpicos para demonstrar a tenso existente entre norma jurdica e fato social. Finalmente, no captulo VI, debruamo-nos sobre a noo de sistema constitucional, explicitando a relao de implicao entre princpios e regras constitucionais, inventariando o direito educao, ressaltando o contedo jurdico do ensino religioso e patenteando a inconstitucionalidade da aludida Lei n. 9.475/1997.

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CAPTULO 1 A IGUALDADE DE TODAS AS RELIGIES E CRENAS PERANTE A LEI1.1 Estado e religio nas constituies brasileiras. A histria do ocidente registra o Renascentismo como um movimento que redefiniu a literatura e as artes por meio da redescoberta de obras e autores da Antigidade, mas que notabilizou-se tambm porque, ao conferir novo valor s cincias naturais e s atividades terrenas, ps em questo o discurso teolgico, deslocando o teocentrismo da Idade Mdia em favor do antropocentrismo da Idade Moderna, instaurando, assim, um vigoroso debate acerca da delimitao do espao religioso. Fundando alguns dos pilares que viriam dar sustentao ao movimento Iluminista 1 , o Renascentismo provocou, a partir do sculo XVII, uma gradual separao entre o pensamento poltico e o raciocnio religioso, favorecendo a difuso de uma mentalidade leiga que alcanou sua plena afirmao no sc. XVIII, reivindicando a primazia da razo sobre o mistrio, e postulando uma concepo materialista dos seres humanos.

1

Na sua obra clssica sobre o movimento Iluminista, o filsofo Ernest Cassirer demonstra a profunda renovao que a idia de religio logrou nas filosofias da poca: a filosofia transcendental de I. Kant refuta a explicao teolgico-metafsica, e toma a investigao a partir da anlise das fac uldades do conhecimento, isto , trata a religio nos limites da simples razo; enquanto a filosofia de Rosseau transpe a religio para a anlise da sociedade e a crtica das instituies polticas. v. Ernst CASSIRER. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1997, p. 189.

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A busca por uma teoria racional do Estado colocou em xeque os postulados absolutistas ento em voga, segundo os quais o monarca receberia o poder das mos de Deus e, como tal, seria o seu representante na terra, conforme questionavam os enciclopedistas 2, entre os quais Denis Diderot:Na sociedade do Antigo Regime, a Igreja Catlica est intimamente ligada ao Estado. A monarquia refere-se essncia divina: o rei o representante de Deus na terra; o clero a primeira ordem do Estado e goza de imensos privilgios. A Igreja serviu -se sempre, no sculo XVIII, do apoio do poder do Estado para impor seus dogmas. Protestantes e judeus no tm nenhum direito, nem mesmo no Estado Civil. 3

Instala-se uma tenso entre norma jurdica e norma divina a lei no mais tomada como vontade de Deus, mas como construo humana, expresso da vontade geral. Estado e religio deixam de ser sinnimos. Emerge a distino entre homo politicus e homo religiosus, entre cidado e fiel, polis e communitas fidelium, sociedade civil e sociedade religiosa, ordenamento jurdico e ordenamento religioso. Tem incio um prolongado, complexo e acidentado processo de separao entre Estado e religio, denominado pela sociologia de Max Weber como separao das esferas de valor. 4 Debruando-se sobre esse fenmeno, assim se manifesta Norberto Bobbio:

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Considerada o marco intelectual do Iluminismo, a Enciclopdia foi planejada como uma descrio dos vrios ramos do conhecimento humano, e teve como principais protagonistas Diderot e DAlambert. Rousseau, Montesquieu e Voltaire, entre outros, figuraram como seus colaboradores. v. Simon BLACKBURN. Dicionrio Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 116.3

Denis DIDEROT. Textes Choisis de LEncyclopdie ou Dictionnaire Raisonn des Sciences, des Arts et des Mtiers. Introduction et Notes par Albert Soboul. Paris: ditions Sociales, , p. 249. s.d.4

Max Weber designa o processo de modernizao/secularizao empregando o conceito de separao das esferas de valor, seja a de valor religioso, poltico ou esttico, passa a ser regida por

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A histria do relacionamento entre Estado e Igreja (do cristianismo em diante) rica em conflitos. Durante sculos foram propostos vrios tipos de solues, classificadas das maneiras mais variadas. A classificao que mais sinttica nos parece a seguinte: 1) reductio ad unun. Distingue-se conforme se trate da reduo do Estado Igreja (teocracia) ou da Igreja ao Estado (cesaropapismo na poca imperial, erastianismo nos modernos Estados nacionais protestantes; 2) subordinao. Aqui tambm necessrio distinguir duas teorias ou sistemas, conforme se pretenda que o Estado seja subordinado Igreja (teoria prevalentemente seguida pela Igreja Catlica, da potestas indirecta ou da potestas directiva da Igreja sobre o Estado) ou que a Igreja seja subordinada ao Estado (jurisdicionalismo e territorialismo, durante o perodo das monarquias absolutistas); 3) coordenao. o sistema fundado sobre relacionamentos concordatrios, que pressupem o reconhecimento recproco dos dois poderes como cada um, na prpria ordem, independentes e soberanos (art. 7 da Constituio); 4) separao. Segundo o sistema do separatismo, em voga, por exemplo, nos Estados Unidos, as igrejas so consideradas a nvel de associaes privadas, s quais o Estado reconhece liberdade de desenvolver a sua misso dentro dos limites da lei. 5

Na trilha da demarcao das reas de domnio do Estado e da religio, surgem as reivindicaes por liberdades pblicas, no bojo da primeira gerao de direitos, dos direitos individuais, que derivaram da Bill of Rights inglesa, da Declarao Francesa dos Direitos do Homem e Cidado, e das primeiras Amendments Constituio dos Estados Unidos. J a primeira emenda Constituio norte-americana determinava queO Congresso no legislar no sentido de estabelecer uma religio, ou proibir o livre exerccio dos cultos, ou cercear a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao governo peties para a reparao de seus agravos.

Ningum pode ser molestado por suas opinies, incluindo as suas opinies religiosas, desde que a sua manifestao no perturbe a ordem pblica estabelecida

uma normatizao prpria. v. Max WEBER. Economia e Sociedade. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2000, p. 279.5

Norberto BOBBIO. Teoria do Ordenamento Jurdico. 10. ed. Braslia: Universidade de Braslia, 1999, p. 181.

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pela lei, acentuava o dcimo artigo da Declarao Francesa dos Direitos do Homem e do Cidado.6 Neutralidade religiosa do Estado, por um lado, e liberdade de crena, por outro, passam a ser normatizadas, consagrando os postulados de um dos mais eminentes puritanos 7 ingleses, John Locke, que, j no sculo XVII, oferecia os primeiros delineamentos tericos pertinentes aludida equao:Considero acima de tudo necessrio distinguir exatamente a funo do governo civil em relao da religio, estabelecendo justos limites entre uma e outra.(...) Estas consideraes, parecem-me suficientes para concluir que todo o poder do governo civil diz respeito tos aos interesses civis dos homens (...) tudo quanto a lei deixa livre em ocasies comuns da vida, que fique livre para qualquer igreja no culto divino.8

Mais de um sculo depois, em meados do sculo XIX, o filsofo Alexis de Tocqueville, na obra Democracia na Amrica, advogava que a natureza dos sistemas baseados na democracia implica a distino dos respectivos espaos de domnio:No tenho direito nem a inteno de examinar os meios sobrenaturais que Deus emprega para infundir a crena religiosa no corao do homem. Considero neste momento as religies sob um ponto de vista puramente humano; meu objetivo investigar os meios pelos quais elas podem mais facilmente reter o seu controle na era democrtica em que estamos entrando. J se tem demonstrado que, em tempos de cultura geral e igual dade, o esprito humano somente com relutncia adota opinies dogmticas, cuja necessidade s reconhece em questes espirituais. Isso prova, em primeiro lugar, que nessas pocas as religies

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Promulgada em 26 de Agosto de 1789, encontra-se em vigor, por fora do Prembulo da Constituio Francesa de 1958.7

O termo puritanismo designa uma corrente do protestantismo ingls que atacava vigorosamente certas facetas da Igreja Anglicana, exigindo base bblica para vesturio, uso de instrumentos de som e gestulia religiosa. v. George A. MATHER e Larry A. NICHOLS. Dicionrio de Religies, Crenas e Ocultismo. So Paulo: Vida, 2000, p. 369.8

A argumentao de John Locke progride no sentido de provar a noo de tolerncia religiosa no mbito do governo civil. v. John LOCKE. Carta a Respeito da Tolerncia. So Paulo: Instituio Brasileira de Difuso Cultural, 1964, p. 48.

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deveriam mais cautelosamente do que quaisquer outras conter-se dentro de sua prpria esfera. Porque, ao tentarem estender seu poder alm das questes religiosas, incorrem no risco de deixarem completamente de ser acreditadas. 9

Perfilhando o mesmo entendimento, Hans Kelsen assegura que a tendncia para a tolerncia, tpica das formas laicas de sociedade, pode ser assim caracterizada: A tolerncia, antes, a virtude daqueles cuja convico religiosa no forte o suficiente para superar sua inclinao poltica e impedir-lhes a incoerncia de reconhecer a possibilidade e a legitimidade de outras convices religiosas.10 Permeada por esta nova concepo da relao Estado/religio, a experincia jurdica passa a positivar regras preocupadas com o detalhamento dos termos de tal relao, ao mesmo tempo em que busca assegurar ao indivduo ampla liberdade diante da seara religiosa. Surgem as legislaes separatistas. Marco jurdico-histrico da distino Estado/religio no Brasil, o famoso Decreto n. 119-A, de 07 de janeiro de 1890, assinado por Deodoro da Fonseca, Prohibe a interveno da autoridade federal e dos Estados federados em matria religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras providencias:art. 1 prohibido autoridade federal, assim como dos Estados federados, expedir leis, regulamentos, ou actos administrativos, estabelecendo alguma religio, vedando-a, e crear differenas entre habitantes do paiz, ou nos servios sustentados custa do oramento, por motivo de crenas, ou opinies philosophicas ou religiosas.

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Alexander de TOCQUEVILLE. Democracia na Amrica. So Paulo: Companhia Editora Nacional, Ed. da Universidade de So Paulo, 1969, p. 272.10

Hans KELSEN. A Democracia. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 242.

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art. 2 . A todas as confisses religiosas pertence por igual a faculdade de exercerem o seu culto, regerem -se segundo a sua f e no serem contrariadas nos actos particulares ou publicos, que interessem ao exerccio deste decreto.

Passada mais de uma dcada da edio do decreto brasileiro, mais precisamente em 05 de Dezembro de 1905, editada, na Frana, a Lei de Separao. Anos depois a vez de Portugal aprovar um Decreto-Lei regulamentando a separao do Estado e da Igreja, em 21 de Dezembro de 1911. A Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, exorta em seu artigo 18:Toda pessoa tem direito liberdade de pensamento, conscincia e religio; este direito inclui liberdade de mudar de religio ou crena e a liberdade de manifestar essa religio ou crena, pelo ensino, pela prtica, pelo culto e pela observncia, isolada ou coletivamente, em pblico ou em particular.

Um olhar sobre as constituies brasileiras descortina o impacto que a controvrsia acerca dos domnios Estado/religio exerceu na experincia jurdica brasileira, nomeadamente na trajetria do direito constitucional.

Constituio de 25 de Maro de 1824 Extratos do prembulo: (...) Dom Pedro Primeiro, por graa de Deos (...) Em nome da Santssima Trindade.Art. 5o . A Religio Catholica Apostolica Romana continuar a ser a Religio do Imperio. Todas as outras Religies sero permitidas com o seu culto domstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de Templo. Art. 102. O Imperador o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. So suas principaes atribuies:

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II. Nomear Bispos, e prover os Benefcios Eclesisticos. XIV. Conceder, ou negar Beneplacito aos Decretos dos Concilios, e Letras Apostolicas, e quaesquer outras Constituies Ecclesiasticas, que se no oppozerem Constituio; e precedendo approvao da Assembla, se contiverem disposio geral. Art. 103. O Imperador antes de ser acclamado prestar nas mos do Presidente do Senado, reunidas as duas Camaras, o seguinte Juramento Juro manter a Religio Catholica Apostolica Romana, a integridade, e indivisibilidade do Imperio; observar, e fazer observar a Constituio Politica da Nao Brazileira, e mais Leis do Imperio, e prover ao bem geral do Brazil, quanto em mim couber. Art. 141. Os conselheiros de Estado, antes de tomarem posse, prestaro juramento nas mos do Imperador de manter a Religio Catholica Apostolica Romana; observar a Constituio, e as Leis; ser fieis ao Imperador; aconselhal-O segundo suas consciencias, attendendo smente ao bem da Nao. Art. 179. V. Ningum pde ser perseguido por motivo de Religio, uma vez que respeite a do Estado, e no offenda a Moral Pblica.

Constituio de 24 de fevereiro de 1891 O prembulo no invoca nem faz referncia a qualquer divindade.Art. 11. vedado aos Estados, como Unio: 2. Estabelecer, subvencionar, ou embaraar o exerccio de cultos religiosos; Art. 72, 3. Todos os individuos e confisses religiosas podem exercer publica e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposies do direito commum. 4. A Republica s reconhece o casamento civil, cuja celebrao ser gratuita. 5. Os cemiterios tero caracter secular e sero administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relao aos seus crentes, desde que no offendam a moral publica e as leis. 11 6. Ser leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos publicos. 7. Nenhum culto ou igreja gozar de subveno official, nem ter relaes de dependencia ou alliana com o Governo da Unio, ou o do Estados. 28. Por motivo de crena ou funco religiosa, nenhum cidado brazileiro poder ser privado de seus direitos civis e polticos nem eximir-se do cumprimento de qualquer dever civico. 29. Os que allegaram motivo de crena religiosa com o fim de se isentarem de qualquer onus que as leis da Republica imponham aos cidados, e os que acceitarem condecoraes ou titulos nobiliarchicos estrangeiros perdero todos os direitos polticos.

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Trata-se de norma que revogou a Lei de 1 de outubro de 1828, denominada Regimento das Cmaras Municipais do Imprio (uma espcie de lei orgnica de todos os municpios, que vigeu at o advento da Constituio de 1891). Por fora do art. 66, 2, desta lei, a administrao dos cemitrios cabia autoridade religiosa local.

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Constituio de 16 de Julho de 1934 Extratos do prembulo: (...) Ns, os representantes do Povo Brasileiro, pondo a nossa confiana em Deus (...)Art. 17. vedado Unio, aos Estados, ao Districto Federal a os M unicipios: II. estabelecer, subvencionar ou embaraar o exerccio de cultos religiosos; III. ter relao de alliana ou dependencia com qualquer culto ou igreja, sem prejuzo da collaborao reciproca em prol do interesse colletivo; Art. 113. 4) Por motivo de convices philosophicas, politicas ou religiosas, ningum ser privado de qualquer dos seus direitos, salvo o caso do art.111, letra b. 5) inviolvel a liberdade de consciencia e de crena, e garantido o livre exerccio dos cultos religiosos, desde que no contravenham ordem pblica a aos bons costumes. As associaes religiosas adquirem personalidade juridica nos termos da lei civil. 6) Sempre que solicitada, ser permitida a assistencia religiosa nas expedies militares, nos hospitaes, nas penitenciarias e em outros estabelecimentos officiaes, sem onus para os cofres publicos, nem constrangimento ou coaco dos assistidos. Nas expedies militares a assistencia religiosa s poder ser exercida por sacerdotes brasileiros natos. 7) Os cemitrios tero caracter secular e sero administradas pela autoridade municipal, sendo livre a todos os cultos religiosos a pratica dos respectivos ritos em relao aos seus crentes. As associaes religiosas podero manter cemitrios particulares, sujeitos, porm, fiscalizao das autoridades competentes. -lhes prohibida a recusa de sepultura onde no houver cemiterio secular. Art. 111. Perdem-se os direitos politicos: b) pela iseno de onus ou servio que a lei imponha aos brasileiros, quando obtida por motivo de convico religiosa, philosophica ou politica. Art. 113, 1. Todos so iguaes perante a lei. No haver privilgios, nem distinces, por motivo de nascimento, sexo, raa, profisses proprias ou dos paes, classe social, riqueza, crenas religiosas ou ideas politicas. Art. 146. O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento perante ministro de qualquer confisso religiosa, cujo rito no contrarie a ordem publica ou os bons costumes, produzir, todavia, os mesmos effeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitao dos nubentes, na verificao dos impedimentos e no processo de opposio, sejam observadas as disposies da lei civil e seja elle inscripto no Registro Civil. O registro ser gratuito e obrigatrio. A lei estabelecer penalidades para a transgresso dos preceitos legaes attinentes celebrao do casamento. Art. 153. O ensino religioso ser de frequencia facultativa e ministrado de acrdo com os principios da confisso religiosa do alumno, manifestada pelos paes ou responsaveis, e constituir materia dos horarios nas escolas publicas primarias, secundarias, profissionaes e normaes.

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Constituio de 10 de Novembro de 1937 O prembulo no invoca nem faz referncia a qualquer divindade.Art. 32. vedado Unio, aos Estados e aos Municpios: b) estabelecer, subvencionar ou embaraar o exerccio de cultos religiosos; Art. 122, item 4 - Todos os indivduos e confisses religiosas podem exercer pblica e livremente o seu culto, associando-se para sse fim e adquirindo bens, observadas as disposies do direito comum, as exigncias da ordem pblica e dos bons costumes. Item 5 - Os cemitrios tero carter secular e sero administrados pela autoridade municipal. Art.133. O ensino religioso poder ser contemplado como matria do curso ordinrio das escolas pblicas primrias, normais e secundrias. No poder, porm, constituir objeto de obrigao dos mestres ou professores, nem de frequncia compulsria por parte dos alunos.

Constituio de 18 de Setembro de 1946 Extratos do prembulo: Ns, os representantes do povo brasileiro, reunidos, sob a proteo de Deus (...)Art.31. Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios vedado: II - estabelecer ou subvencionar cultos religiosos, ou embaraar-lhes o exerccio; III - ter relao de aliana ou dependncia com qualquer culto ou igreja, sem prejuzo da colaborao recproca em prol do intersse coletivo. V - lanar impsto sobre: b) templos de qualquer culto, bens e servios de partidos polticos, instituies de educao e de assistncia social, desde que as suas rendas sejam aplicadas integralmente no pas para os seus respectivos fins; (Emenda Constitucional n. 18/1965, publicada no DOU de 06 de Dezembro de 1965). Art. 141, 7. inviolvel a liberdade de conscincia e de crena e assegurado o livre exerccio dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pblica ou os bons costumes. As associaes religiosas adquiriro personalidade jurdica na forma da lei civil. 8. Por motivo de convico religiosa, filosfica ou poltica, ningum ser privado de nenhum dos seus direitos, salvo se a invocar para se eximir de obrigao, encargo ou servio impostos pela lei aos brasileiros em geral, ou recusar os que ela estabelecer em substituio d aqueles deveres, a fim de atender escusa de conscincia. 9. Sem constrangimento dos favorecidos, ser prestada por brasileiro (art. 129, nos I e II) assistncia religiosa s fras armadas e, quando solicitada pelos interessados ou seus representantes legais, tambm nos estabelecimentos de internao coletiva.

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10. Os cemitrios tero carter secular e sero administrados pela autoridade municipal. permitido a tdas as confisses religiosas praticar nles os seus ritos. As associaes religiosas podero, na forma da lei, manter cemitrios particulares. Art. 163, 1. O casamento ser civil, e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil se, observados os impedimentos e as prescries da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contando que seja o ato inscrito no registro pblico. 2. O casamento religioso, celebrado sem as formalidades dste artigo, ter efeitos civis, se a requerimento do casal, fr inscrito no registro pblico, mediante prvia habilita o perante a autoridade competente. Art. 168, V - o ensino religioso constitui disciplina dos horrios das escolas oficiais, de matrcula facultativa e ser ministrado de acrdo com a confisso religiosa do aluno, manifesta por le, se fr capaz, ou pelo seu representante legal ou responsvel.

Constituio de 18 de Setembro de 1967 Extratos do prembulo: O Congresso Nacional, invocando a proteo de Deus (...)Art 9. Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios vedado: II- estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los; embaraar-lhes o exerccio; ou manter com les ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana, ressalvada a colaborao de interesse pblico, notadamente nos setores educacional, assistencial e hospitalar. Art. 20. vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: III- criar impostos sbre: b) templos de qualquer culto; Art.150, 1. Todos so iguais perante a lei, sem distino de sexo, raa, trabalho, credo religioso e convices polticas. O preconceito de raa ser punido pela lei. 5. plena a liberdade de conscincia e fica assegurado aos crentes o exerccio dos cultos religiosos, que no contrariem a ordem pblica e os bons costumes. 6. Por motivo de crena religiosa, ou de convico filosfica ou poltica, ningum ser privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigao legal imposta a todos, caso em que a lei poder determinar a perda dos direitos incompatveis com a escusa de conscincia. 7. Sem constrangimento dos favorecidos, ser prestada por brasileiros, nos trmos da lei, assistncia religiosa s foras armadas e auxiliares e, quando solicitada pelos interessados ou seus representantes legais, tambm nos estabelecimentos de internao coletiva. Art. 167, 2. O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil se observados os impedimentos e as prescries da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no registro pblico. 3. O casamento religioso celebrado sem as formalidades dste artigo ter efeitos civis se, o

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requerimento do casal, fr inscrito no registro pblico, mediante prvia habilitao perante a autoridade competente. Art. 168, 3, IV- o ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios normais das escolas oficias de grau primrio e mdio.

Constituio de 17 de Outubro de 1969 Extratos do prembulo: O Congresso Nacional, invocando a proteo de Deus (...)Art. 9. Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios vedado: II. estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los; embaraar-lhes o exerccio ou manter com eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana, ressalvada a colaborao de interesse pblico, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar. Art. 19. vedado Unio, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municpios: III- instituir imposto sobre: b) os templos de qualquer culto; Art. 153, 1. Todos so iguais perante a lei, sem distino de sexo, raa, trabalho, credo religioso e convices polticas. Ser punido pela lei o preconceito de raa. 5. plena a liberdade de conscincia e fica assegurado aos crentes o exerccio dos cultos religiosos, que no contrariem a ordem pblica e os bons costumes. 6. Por motivo de crena religiosa, ou de convico filosfica ou poltica, ningum ser privado de qualquer dos seus direitos, salvo se o invocar para eximir-se de obrigao legal a todos imposta, caso em que a lei poder determinar a perda dos direitos incompatveis com a escusa de conscincia. 7. Sem carter de obrigatoriedade, ser prestada por brasileiros, nos termos da lei, assistncia religiosa s foras armadas e auxiliares e, nos estabelecimentos de internao coletiva, aos interessados que a solicitarem, diretamente ou por intermdio de seus representantes legais. Art. 175, 2. O casamento ser civil e gratuita a sua celebrao. O casamento religioso equivaler ao civil se, observados os impedimentos e as prescries da lei, o ato for inscrito no registro pblico, a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado. 3. O casamento religioso celebrado sem as formalidades do pargrafo anterior ter efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no registro publico, mediante prvia habilitao perante a autoridade competente. Art. 176, 3, V O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios normais das escolas oficiais de grau primrio e mdio.

Cabe consignar algumas observaes, ainda que esquemticas e breves.

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Dispensvel realar que a Constituio do Imprio conferia ao Estado um carter eminentemente confessional, no apenas porque operava com a noo de religio oficial, religio de Estado, como tambm porque limitava o culto das confisses dissidentes ao espao privado, domstico, vedando inclusive a edificao de templos no-catlicos. Investido de atribuies prprias de autoridade religiosa, alm das prerrogativas de chefe de governo, o Imperador detinha poderes para nomear bispos, abastecer a Igreja Catlica com recursos do errio e homologar normativas internacionais deliberadas pela hierarquia catlica. cone robusto da simbiose entre Estado e religio, o juramento de posse do Imperador apresentava termos que atribuam primazia defesa da Igreja Catlica, dispondo num lugar secundrio a integridade e a indivisibilidade do Imprio. Eloqente e inequvoca nesta matria, a Constituio de 1891, elaborada por uma Assemblia Constituinte, instituiu o mais rigoroso arcabouo separatista no que diz respeito relao entre Estado e Religio, assegurando ampla liberdade de culto, reconhecendo to somente o casamento de natureza civil, secularizando 12 os cemitrios e fixando expressamente o carter laico do ensino pblico. A Constituio de 1891 tambm foi expressa ao proibir o financiamento pblico da atividade religiosa, ao assegurar ampla liberdade de culto, e ao introduzir o instituto da objeo de conscincia (art. 72, 29, primeira parte), ressalvado que o objetor sujeitava-se perda dos direitos polticos.

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Expresso que em sua acepo jurdica designa objetos ou condutas das quais a lei retirou o carter religioso, passando a ser qualificadas como civis (no-religiosas).

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A Constituio de 1934 inaugurou a previso de assistncia religiosa nas unidades e expedies militares, e nos hospitais e penitencirias, sem nus para os cofres pblicos. Mantendo como regra a secularizao dos cemitrios, aquela Carta passou a prever, tambm, a existncia de cemitrios particulares mantidos por associaes religiosas. A validao civil do casamento religioso, bem como a adoo do ensino religioso, de freqncia facultativa, passaram a constar no direito constitucional. De seu turno, a Carta de 1937 manteve-se silente em relao ao casamento religioso, assistncia religiosa nas instituies de internao coletiva e objeo de conscincia. Ao referir-se ao ensino religioso, aquela Constituio facultava a incluso de tal disciplina como matria do curso regular das escolas pblicas, proibindo, porm, o engajamento compulsrio dos professores ou a freqncia obrigatria dos alunos. A Carta de 1946 apresenta dois traos peculiares: 1. a introduo da imunidade tributria do templo, decerto visando impedir a obstruo, por meio de impostos, do funcionamento das confisses religiosas; 2. o aperfeioamento do instituto da objeo de conscincia, proibindo a perda de quaisquer direitos, desde que o objetor cumprisse prestao alternativa fixada em lei. A Constituio de 1967 notabilizou-se por associar o princpio da igualdade proibio de discriminao em razo de credo religioso, entre outros, como j o fizera o Texto de 1934. O enunciado Todos so iguais perante a lei passou a ser acompanhado de vedaes que apuram e decompem seu significado, acentuando-

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o: sem distino de (...) credo religioso (...). A Constituio de 1969 aboliu a obrigatoriedade da assistncia religiosa s foras armadas. Vale notar ainda que, na trilha de suas antecessoras, excetuandose a primeira Constituio republicana, referida Carta assegurava ampla liberdade de crena, mas condicionava o culto religioso observncia da ordem pblica e dos bons costumes, previso esta abolida do Texto Constitucional de 1988. 1.2 Intolerncia religiosa na legislao Conforme salientado, a Constituio de 1891 adotou a mais rgida demarcao das reas de domnio do Estado e da religio. Fosse necessrio referir algo para encarecer o relevo deste atributo da primeira Constituio republicana, bastaria mencionar a ruptura com a legislao colonial e, conseqentemente, com a intolerncia religiosa que imperava at ento. Com efeito, at a outorga da Constituio do Imprio, seguida da edio do Cdigo Criminal do Imprio do Brasil, de 1830, o Brasil esteve sob a gide das chamadas Ordenaes do Reino: as Ordenaes Afonsinas (1446-1521), as Manoelinas (1521-1603) e as Filipinas (1603-1830), assinaladas as influncias do Direito Cannico e especialmente, do Direito Romano. 13 Segundo anotaes de Ruy Rebello Pinho,Ordenaes Afonsinas foram lei no Brasil logo aps a descoberta de Cabral e j tinham quase sessenta anos de vida quando aqui chegaram.

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A Lei da Boa Razo, de agosto de 1769, prescrevia a adoo do Direito Romano como fonte normativa subsidiria das Ordenaes.

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As Manoelinas dirigiram nosso direito cerca de noventa anos. E de mais de dois sculos foi a vida do Cdigo Filipino. Durante trezentos e trinta anos, de 1500 a 1830, o combate ao crime e ao criminoso se fez, em nossa terra, atravs das velhas leis de Portugal. 14

Entre os trs, o Cdigo Filipino foi o mais amplamente empregado no Brasil. Um exame exploratrio do famoso Livro V das Ordenaes Filipinas aponta as seguintes regras: . criminalizava a heresia, punindo-a com penas corporais. (Ttulo I); . criminalizava a negao ou blasfmia de Deus ou dos Santos. (Ttulo II); . criminalizava a feitiaria, punindo o feiticeiro com pena capital. (Ttulo III). Modificaes neste quadro foram introduzidas pela Constituio Poltica do Imprio, e pelo Cdigo Criminal editado seis anos depois. Leis, avisos e posturas municipais asseguravam Religio Catlica o privilgio de religio oficial, merecendo destaque, entre outros, o decreto de 21 de fevereiro de 1832, que tratou do trabalho escravo no Arsenal de Guerra da Corte e que previa a atuao de um Capelo que, alm de celebrar a missa aos domingos e dias santos, instrura a escravatura nos princpios da religio crist. 15 O Cdigo Criminal do Imprio, editado em 16 de Dezembro de 1830, punia a celebrao ou culto de confisso religiosa que no fosse o oficial (art. 276); proibia a

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Ruy Rebello PINHO. Histria do Direito Penal Brasileiro - Perodo Colonial. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1973, p. 19.15

BAHIA. Secretaria da Cultura. Documentao Jurdica sobre o Negro no Brasil, 1800 1888. Francisco Sergio Mota Soares et. al. (org). Salvador: Empresa Grfica da Bahia, 1989, p. 36.

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zombaria contra o culto estabelecido pelo Imprio (art. 277) e criminalizava a manifestao de idias contrrias existncia de Deus (art. 278). Proclamada a Repblica, o Governo Provisrio encomenda a organizao de um projeto de Cdigo Penal, convertido em lei em 11 de outubro de 1890. Dentre seus artigos convm destacar o tipo penal de curandeirismo (art. 156) e o delito de espiritismo (art. 157). Sobre o delito de espiritismo, Antonio Bento Faria atribui ao aludido termo o significado de feitiaria, evocao de espritos, bruxaria. 16 O Cdigo Penal vigente, de 1940, manteve os delitos de charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284). Pesquisando julgamentos de charlatanismo e curandeirismo no Brasil, desde o inicio do sculo passado, Ana Lucia Pastore Schirtzmeyr observa a freqente associao entre tais delitos e prticas religiosas de origem africana, vistas como brbaras e primitivas.17 Devemos assinalar, ainda, no campo do direito estadual, que no Estado da Bahia a Lei n. 3.097, de 29 de dezembro de 1972, obrigou, at o ano de 1976, as sociedades de culto afro-brasileiro a se registrarem na Delegacia de Polcia da circunscrio. No Estado da Paraba, a Lei n. 3.443, de 06 de novembro de 1966,

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Antonio Bento FARIA. Annotaes Theorico-Praticas ao Cdigo Civil Penal do Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Jacinto Ribeiro dos Santos, v.I, 1929, pp. 307-310.17

Ana Lcia Pastore SCHRITZMEYR. Direito e Antropologia: Uma Historia de Encontros e Desencontros Julgamentos de Curandeirismo e Charlatarismo (Brasil 1900/1990) in Revista Brasileira de Cincias Criminais. So Paulo: Revistas dos Tribunais, n. 18, abr/jun, 1997, pp. 135 145.

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subordinava o funcionamento dos cultos africanos autorizao concedida pela Secretaria de Segurana Pblica, bem como apresentao de prova de sanidade mental do responsvel pelo culto, mediante realizao de exame psiquitrico. Tendo em conta esta breve digresso histrica, poderamos afirmar a existncia de uma tumultuada trajetria histrica do Estado brasileiro no que diz respeito liberdade de crena, do que deriva um acidentado movimento de passagem do Estado confessional, intransigente, para um Estado laico, ou leigo, conforme veremos adiante. 1.3 Estado Confessional. Estado Laico. Estado Leigo. Em obsquio taxinomia, poder ser til, neste ponto, adotarmos uma posio no que diz respeito definio de Estado e de religio. Geraldo Ataliba conceitua Estado nos seguintes termos: Estado a sociedade soberana, surgida com a ordenao jurdica, cuja finalidade regular globalmente as relaes sociais de determinado povo fixo em dado territrio sob um poder. 18 Quanto finalidade, Dalmo de Abreu Dallari acrescenta ainda que este busca o bem comum de um certo povo, situado em determinado territrio.19 No dizer de mile Durkheim, Uma religio um sistema solidrio de crenas e de prticas relativas a coisas sagradas, isto , separadas, proibidas, crenas e

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Geraldo ATALIBA. Lies de Teoria Geral do Estado. So Paulo: Instituto de Direito Pblico, 1976, p. 67.19

Dalmo de Abreu DALLARI. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16. ed. So Paulo: Saraiva, 1991, p. 91.

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prticas que renem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderem. 20 Estabelecida a classificao das duas entidades cuja interseo nos interessa mais diretamente nesta parte, podemos retomar a noo de Estado confessional, que, de acordo com Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, apresenta os seguintes atributos:O termo confessionalismo indica uma atitude especfica do Estado em matria religiosa, que se manifesta privilegiando um grupo ou uma confisso religiosa, assumindo seus princpios e sua doutrina e incorporando na prpria legislao ou nos prprios comportamentos aspectos doutrinais decorrentes diretamente daquela doutrina, superando tambm qualquer mediao das conscincias individuais. 21

A Dinamarca, pas de maioria luterana, oferece um exemplo interessante de Estado confessional. Segundo a Constituio dinamarqueza,Os cidados tm o direito de se reunir em comunidades para o culto de Deus segundo as suas convices, desde que eles no ensinem nem pratiquem nada que seja contrrio aos bons costumes ou ordem pblica. (art. 67) Ningum obrigado a dar contribuies pessoais a um culto que no seja o seu. (art. 68) A situao das Igrejas dissidentes fixada em lei. (art. 69)

Seguindo uma linha intermediria entre o confessionalismo e o laicismo, a Constituio italiana defere ntida primazia Igreja Catlica, embora preceitue:O Estado e a Igreja Catlica so, cada um na prpria esfera, independentes e soberanos. Suas relaes so regulamentadas por pactos Lateranenses, e as modificaes dos pactos, aceitas pelas duas partes, no requerem procedimento de reviso constituicional. (art. 7o )

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mile DURKHEIM. As Formas Elementares da Vida Religiosa. So Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 32.21

Norberto BOBBIO, Nicola MATTEUCI e Gianfranco PASQUINO. Dicionrio de Poltica. Braslia: Universidade de Braslia, 1986, p. 121.

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Todas as confisses religiosas so igualmente livres perante a lei. As confisses religiosas diversas da Catlica tm direito de organizaremse conforme os prprios estatutos, desde que no conflitem com o ordenamento jurdico italiano. As suas relaes com o Estado so regulamentadas por lei na base de um entendimento com as respectivas representaes. (art. 8o )

A respeito do laicismo, Jos Joaquim Gomes Canotilho leciona queO laicismo, produto ainda de uma viso individualista e racionalista, desdobrava-se em vrios postulados republicanos: a separao do Estado e da Igreja, igualdade de cultos, liberdade de cultos, laicizao do ensino, manuteno da legislao referente extino das ordens religiosas (...) Relativamente autoridade poltica, a religio deixa de ser um tema pblico para se enquadrar na esfera dos assuntos privados, a no ser quanto vigilncia da prpria liberdade religiosa. (...) uma sociedade politicamente democrtica, assente no relativismo poltico, postula tambm uma sociedade religiosamente liberal, tolerante para com todos os credos, aceites e praticados pelos cidados. O equilbrio religioso origina como conseqncia inevitvel a secularizao da educao, dado que o estado laico no pode tolerar um monoplio de uma orientao a favor de uma religio. 22

Do ponto de tenso entre confessionalismo e laicismo brotou o aludido movimento separatista, cuja concepo tcnico-jurdica e poltica assim definida por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino:Um sistema de separao entre as duas instituies, sistema que envolve, em sua extrema configurao e com interferncias inevitveis, no s a indiferena do Estado pelas vrias dogmticas religiosas, como tambm o seu desinteresse pelas manifestaes sociais de qualquer das confisses: nada de regulamentaes especiais, nem favorveis, nem limitativas, das organizaes eclesisticas. 23

Ainda segundo os autores, trata-se deUm conceito limite, em virtude do qual se tende , enquanto possvel, a subtrair ao Estado toda a ingerncia em matria de culto e de doutrina eclesistica e se exclui, reciprocamente, toda a concorrncia da

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Jose Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituio. 3. ed. Coimbra: Ed. Livraria Almedina, 1998, p. 159.23

N. BOBBIO, N. MATTEUCCI e G. PASQUINO, Dicionrio de Poltica, p.1.146.

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Igreja no desempenho de tarefas que pertencem ao Estado, conforme seu ordenamento interno. 24

Por este ngulo, confessionalismo e laicismo se afiguram como conceitos antagnicos, antitticos. No obstante, estado leigo, anttese de estado confessional, pode ser distinguido de Estado laico, se com o termo laicismo pretende-se significar uma profisso irreligiosa, ou anti-religiosa. Na trilha dos postulados bobbianos j poderamos, esquematicamente, esboar as trs configuraes estatais aludidas no ttulo deste item: Estado confessional: regido pelo amlgama, pela sobreposio entre ordenamento jurdico e ordenamento religioso, no qual inexiste distino entre cidado e fiel; Estado laico: que se caracteriza pela neutralidade estatal em face do discurso religioso, bem como pela separao das esferas de domnio do Estado e da religio, de modo que ordenamento jurdico e ordenamento religioso mantm uma relao de independncia, cada qual incidin do em dimenses diferentes da existncia humana: o primeiro, sobre o cidado; o segundo, sobre o fiel; Estado leigo: de natureza anti-religiosa, no qual o ordenamento jurdico rejeita quaisquer preceitos de ordenamentos do tipo religioso; a esta modalidade de Estado interessam to somente os assuntos concernentes ao cidado, pelo que so desprezados ou mesmo repudiados os temas referentes condio de fiel.

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Ibidem, mesma pgina.

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O princpio laico consistiria, assim, em uma importante regra, a saber: no ter a pretenso de possuir a verdade mais do que qualquer outro possa ter a pretenso de possu-la, tal como sintetizado por Hans Kelsen.25 No caso do sistema jurdico brasileiro, merece realce que o Texto Constitucional no imprime Repblica um carter anti-religioso, tanto que o art. 5o, inciso VII, assegura a prestao de assistncia religiosa nas entidades civis e militares de internao coletiva; o art. 150, inciso VI, alnea b, prescreve a imunidade tributria de templos de qualquer culto, e o art. 226, 2, confere efeitos civis ao casamento religioso. Ademais, o Cdigo Penal contm um captulo especialmente destinado proteo do sentimento religioso (art. 208 e ss.). Tais normas encerram determinadas condies de possibilidade por meio das quais o sistema jurdico assegura o exerccio livre e desembaraado da liberdade de crena, seja protegendo os cultos (tutela penal do sentimento religioso), garantindo o culto em instituies de internao coletiva, ou impedindo que o Estado possa estorvar, por meio de tributos, o funcionamento dos templos religiosos. No h dvida de que da natureza da tica religiosa, da normativa religiosa, posicionar-se a respeito de temas como aborto, casamento, divrcio, eutansia, suicdio, transplante de rgos, inseminao artificial, fertilizao in vitro, doao de rgos, cremao, transfuso de sangue, entre outros. No obstante, ao menos no

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Hans KELSEN, A Democracia, p. 242.

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plano formal, a disciplina jurdica dessas matrias revela a preservao de um amplo espao de independncia do Estado e dos indivduos em face do discurso religioso. No caso da transfuso de sangue, por exemplo, a jurisprudncia registra eloqentes construes:1.Indenizatria. Reparao de danos. Testemunha de Jeov. Recebimento de transfuso de sangue quando de sua internao. Convices religiosas que no podem prevalecer perante o bem maior tutelado pela Constituio Federal que a vida. Conduta dos mdicos, por outro lado, que pautou-se dentro da lei e tica profissional, posto que somente efetuaram as transfuses sangneas aps esgotados todos os tratamentos alternativos. Inexistncia, ademais, de recusa expressa a receber transfuso de sangue quando da internao da autora. Ressarcimento, por outro lado, de despesas efetuadas com exames mdicos, entre outras, que no merece acolhida, posto no terem sido os valores despendidos pela apelante (TJ/SP Apelao Cvel n 123.430-4 3 Cmara de Direito Privado Rel. Flvio Pinheiro j. 07/05/02); 2.Omisso de socorro e periclitao de vida. Negativa de autorizao para transfuso de sangue por motivos religiosos. Crime impossvel. Inocorrncia. Inteligncia: art. 132 do Cdigo Penal, art. 135 do Cdigo Penal, art. 17 do Cdigo Penal, art. 146, 3, I do Cdigo Penal 162(b). Acusadas que em nome de seita religiosa e das orientaes nela recebidas deixam de permitir transfuso de sangue em menor, possibilitando a consumao da omisso de socorro e da periclitao de vida, praticam em tese os delitos dos arts. 132 e 135 do CP, no havendo falar em expor a perigo a vida de pessoa morta (impropriedade absoluta do objeto) ou em ministrao de substncia incua guisa de veneno (ineficcia absoluta do meio), ou em deixar sem socorro pessoa que dele no necessitasse, hiptese em que se poderia cogitar de crime impossvel (TJ/SP Habeas Corpus n 184.642/5 9 Cmara Rel. Marrey Neto j. 30/08/89 RJDTACRIM 7/175); 3.Pretendido trancamento de ao penal. Homicdio. Paciente que influenciou para que a vtima fatal, testemunha de Jeov, no recebesse transfuso de sangue. Alegando os motivos espirituais e de religio. Fato tpico. Ausente a falta de justa causa (TJ/SP - Habeas Corpus n 253.4583 3 Cmara Criminal Rel. Pereira Silva - j. 05/05/98).

Interessante observar que nos trs julgados aduzidos, o ponto de tangncia entre norma jurdica e norma religiosa assumiu aparncia de conflito somente at o momento em que o Poder Judicirio manifestou-se, visto que foi inequvoca a afirmao de que sob nenhuma hiptese a norma religiosa pode equiparar-se ou sobrepor-se norma jurdica.

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O procedimento de anlise deste tipo de conflito encontra na obra de Norberto Bobbio um interessante instrumental. Diferenciando certas escolas tericas do direito, entre as quais o historicismo e o positivismo jurdico, ensina o autor:A segunda fase do pluralismo jurdico aquela que podemos chamar de institucional (para distingui-la da primeira, que podemos chamar de estatal ou nacional). Aqui pluralismo tem um significado mais pleno (tanto que, se se fala em pluralismo sem maiores especificaes, nos referimos a esta corrente e no precedente): significa no somente que h muitos ordenamentos jurdicos (mas todos do mesmo tipo), em contraposio ao Direito universal nico, mas que h ordenamentos jurdicos de muitos e variados tipos. Chamamo-lo de institucional porque a sua tese principal a de que existe um ordenamento jurdico onde exista uma instituio, ou seja, um grupo social organizado.26

Aderindo teoria pluralista institucional, o jusfilsofo italiano admite, assim, a idia de um ordenamento religioso 27, evidentemente no-estatal e que figuraria ao lado do Estado.28 Perscrutando a interseo entre tais ordenamentos, afirma Norberto Bobbio quePodem-se distinguir trs tipos de relacionamento entre ordenamentos, conforme o mbito diferente seja temporal, espacial ou material: (...) dois ordenamentos tm em comum o mbito temporal e espacial, mas no o material. Trata-se do relacionamento caracterstico entre um ordenamento estatal e ordenamento da Igreja com particular ateno s igrejas crists, sobretudo a Igreja Catlica: Estado e Igreja estendem sua jurisdio no mesmo territrio e ao mesmo tempo, mas as matrias reguladas por um e por outro so diferentes. 29

26 27

Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurdico, p. 163.

Bobbio divisa ordenamento como um contexto de normas hierarquizadas e articuladas entre si. O autor considera ordenamento jurdico e sistema normativo como sinnimos. Norberto BOBBIO, Teoria do Ordenamento Jurdico, pp. 20/75.28 29

Ibidem, p. 164. Ibidem, pp. 174-5.

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Vale anotar que, no caso especfico do sistema jurdico brasileiro, h apenas uma hiptese, salvo melhor juzo, de um ato cuja ocorrncia na seara estritamente religiosa reconhecida pelo sistema: o casamento religioso, o qual, observadas certas prescries legais, equipara-se ao casamento civil. Consignada a exceo, podemos afirmar, valendo-nos do instrumental bobbiano, que, no sistema jurdico brasileiro, a relao entre ordenamento jurdico e ordenamento religioso apresenta traos de induvidosa independncia e autonomia recproca, sem olvidarmos, por certo, do princpio constitucional da legalidade, do qual nenhum ordenamento religioso estar imune. Retomando, o enunciado do artigo 19, inciso I, da Carta da Repblica, encerra a frmula nuclear encontrada pelo constituinte para fixar as balizas da relao entre Estado e religio, qual seja: vedado Unio, aos Estados, e ao Distrito Federal e aos Municpios: I - Estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencion-los, embaraar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relaes de dependncia ou aliana, ressalvada, na forma da lei, a colaborao de interesse pblico.

A norma proibitiva comete ao Estado uma obrigao de no-fazer, uma absteno, perfazendo uma rea de abrangncia na qual esto localizadas textualmente: . a proibio de criar, instituir, fundar, firmar ou celebrar qualquer culto ou igreja; . a proibio de destinar auxlio ou contribuio financeira, permanente ou eventual, para suportar quaisquer tipos de despesas de quaisquer cultos ou igrejas;

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. a proibio de obstruir, impedir, tolher, perturbar ou estorvar o funcionamento de qualquer culto ou igreja; . a proibio de manter, com quaisquer cultos, igrejas, ou representantes destas, relao de sujeio, subordinao ou anexao; . a proibio de realizar qualquer pacto, acordo ou unio a qualquer ttulo com culto ou igreja. No que se refere a estes dois ltimos aspectos, a saber, a relao de dependncia ou aliana, esta admissvel em carter excepcional, visando satisfazer interesse pblico, lembrando que interesse pblico conceito jurdico fixado em regra de direito positivo, de modo que apenas e to somente a lei possui autoridade para determinar os casos em que o interesse pblico justifica relao de aliana entre Estado e culto ou igreja. No h negar-se que uma certa colaborao possvel, como reza o mesmo dispositivo. Contudo, cabe lei definir as modalidades desta cooperao, diro Celso Ribeiro Bastos e Samantha Meyer-Pflug.30 Temos assim que o enunciado em tela aponta a inscrio de dois princpios organizativos31 de alta relevncia para a questo da liberdade de crena: o princpio

30

Celso Ribeiro BASTOS e Samantha MEYER-PFLUG. Do Direito Fundamental Liberdade de Conscincia e de Crena in Revista de Direito Constitucional e Internacional. So Paulo: Revistas dos Tribunais, v. 36, jul/set, 2001, pp. 112-113.31

Normas que contm esquemas gerais, um como que incio de estruturao de instituies, rgos ou entidades. v. Jos AFONSO DA SILVA. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 123.

29

da separao Estado/religio e o princpio da laicidade estatal, sobre os quais j discorremos e aos quais retornaremos em vrias oportunidades neste trabalho. Nota deve ser dedicada a uma possvel impropriedade semntica: o Texto Constitucional emprega o vocbulo igreja, equiparando-o a culto religioso. Igreja, do hebraico qahal assemblia do povo de Deus e do grego ekklesia (assemblia pblica), aparece no Novo Testamento designando um ajuntamento de fiis, num determinado lugar, para adorar a Deus, fortalecer a comunho crist e desenvolver o servio cristo (Epstola aos Efsios, 5, 30-33). Na linguagem comum, alm de significar templo, o termo tambm empregado para designar uma diversidade de confisses religiosas, sobretudo crists, o que evidencia a associao daquele vocbulo a uma especfica religio - o cristianismo. Mais apropriado seria, tendo em conta o carter laico do Estado brasileiro, o uso do termo religio, gnero do qual so espcies as diversas denominaes religiosas professadas pelo povo brasileiro. Parntese deve ser aberto para um comentrio a respeito do uso da expresso seita religiosa, no-referida no direito positivo, mas no raro presente na jurisprudncia. Examinando o fenmeno dos movimentos religiosos minoritrios, na tica do direito, assevera Jnatas Machado:Em primeiro lugar, entendemos que a expresso seita transporta um sentido pejorativo, traduzindo muitas vezes uma arrogncia prconceitual, mais ou menos explcita e autoconsciente, por parte dos membros da confisso religiosa dominante ou das confisses mais tradicionais. (...) Assim, a sua utilizao conduz a que sejam tratadas como meras seitas certas confisses religiosas que, embora possam ser minoritrias num certo local, gozam, noutros, de significativa

30

credibilidade histrica e elevado nvel de institucionalizao. Alm disso, a utilizao de tal expresso parece querer ignorar a realidade bvia de que mesmo as grandes religies tradicionais comearam por ser meras seitas, no sentido comum da expresso, susceptveis de ser ainda consideradas como tais em stios em que a sua presena praticamente nula. 32

Dispensando quaisquer comentrios complementares, conclui o autor portugus:Por outro lado, como anteriormente se disse, a expresso seita no deve ser considerada um conceito juridicamente relevante, mostrando-se frequentemente indeterminado, destituido de objectividade e passvel de manipulaes arbitrrias ao servio dos interesses e das aspiraes de domnio da confisso religiosa dominante.33

Nesta ordem de idias, uma outra considerao de natureza aparentemente semntica faz-se necessria. A Constituio Federal menciona o vocbulo eclesistico, verbis: As mulheres e os eclesisticos ficam isentos do servio militar obrigatrio em tempo de paz, sujeitos, porm, a outros encargos que a lei lhes atribuir (art. 143, 2). Uma vez mais deparamo-nos com a utilizao de uma palavra que certamente pretendeu designar autoridade e/ou ministro religioso de quaisquer religies, mas que terminou assumindo uma denotao circunscrita aos sacerdotes do catolicismo. No Dicionrio Aurlio, por exemplo, o verbete eclesistico ostenta os seguintes significados: pertencente ou relativo Igreja; eclesial; membro do clero,

32

Jnatas MACHADO. A Constituio e os Movimentos Religiosos Minoritrios in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Faculdade de Direito. v. LXXII, 1996, p. 218.33

Ibidem, p. 265.

31

sacerdote, clrigo, padre. 34 Se ainda assim pairassem dvidas sobre a gnese catlica do vocbulo em exame, restar-nos-ia lembrar a existncia dos Tribunais Eclesisticos que figuram na estrutura de todas as dioceses do pas. evidncia, estamos diante de uma incorreo semntica do Constituinte de 88, que poderia ter sido evitada, entre outros, com o emprstimo dos termos empregados pela Lei dos Registros Pblicos, a Lei 6.015/73, verbis:Os nubentes habilitados para o casamento podero pedir ao oficial que lhes fornea a respectiva certido, para se casarem perante autoridade ou ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitao (art. 71).

Admitindo-se, insistimos, o carter laico do Estado brasileiro, a expresso eclesistico h que ser entendida como autoridade ou ministro religioso de quaisquer profisses religiosas. Tomadas estas consideraes em conjunto evidencia-se o fato de que, no que diz respeito relao entre Estado e religio, a Constituio brasileira atribui Repblica um estatuto jurdico inequvoco, induvidoso: uma Repblica laica. 1.4 Religio: a inexigibilidade do reconhecimento estatal Do ponto de vista da disciplina jurdica das confisses religiosas, h os estados que exigem reconhecimento oficial para que uma determinada confisso adquira estatuto jurdico de religio; e os que se abstm de qualific-las juridicamente, ou de fixar os contornos legais de seu funcionamento, baseado no pressuposto de que trata-se de matria de carter eminentemente privado.

34

Aurlio Buarque de Holanda FERREIRA. Aurlio Sculo XXI O Novo Dicionrio Aurlio da Lngua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 714.

32

O Brasil alinha-se a esta segunda corrente, de sorte que inexiste, no sistema jurdico brasileiro, uma definio legal de religio, tampouco o estabelecimento de religio oficial ou reconhecida, pelo que religio encerra menos um conceito, um contedo essencial, um ncleo qualificado, e muito mais uma manifestao cultural alada pela Constituio categoria de bem jurdico, a partir do que so reguladas as condies de possibilidade para o seu exerccio, bem como as obrigaes positivas e negativas cometidas ao Estado e aos particulares. Note-se que mesmo aqueles pases como Dinamarca ou Itlia, que deferem privilgios a religies oficiais, ou Ir, que toma os preceitos islmicos como fonte para a formulao de direitos, se abstm de definir a dimenso jurdica do funcionamento das confisses religiosas. Com efeito, a questo da liberdade de crena situa-se numa esfera da existncia humana, individual e coletivamente, que refoge ao imperium do Estado, sujeitando-se leis infensas ao domnio jurdico, pois que, no limite, remontam metafsica, ao transcendental. Pertence ao foro ntimo da pessoa, liberdade interna do indivduo, a complexa correlao entre realidade terrena e prospeco ultraterrena. Crena religiosa diz respeito a leituras e interpretaes de uma dimenso metafsica, de uma realidade no demonstrvel, no mais das vezes expressas em categorias abstratas, espirituais, temporais. Deste modo, delas no se pode exigir que sejam aceitveis, racionais, lgicas, consistentes ou compreensveis, seja para ateus, tanto menos para adeptos de religies distintas daquela posta eventualmente

33

em exame. Consoante lio magistral de John Locke,Porque cada igreja ortodoxa para si consigo mesma; para as outras, errnea ou herege. E ainda: (...) todo o poder do governo civil diz respeito to s aos interesses civis dos homens, limitando-se ao cuidado enquanto pertence a este mundo, nada tendo a ver com o mundo a vir. 35

Veja-se o postulado de Cristobal Orrego Sanchez e Javier Saldaa Serrano: O Estado no pode determinar a verdade ou falsidade de qualquer credo religioso. Logo, no poder discriminar nenhuma confisso com base na verdade ou falsidade religiosa. 36 Deste entendimento no se aparta Jnatas Machado:O Estado encontra-se, pois, obrigado a uma neutralidade e no identificao em matria religiosa. Significa isso, desde logo, que o exerccio do direito liberdade religiosa no pressupe, antes proscreve, qualquer assentimento estadual prvio, ou juzo de racionalidade ou plausibilidade, relativamente ao contedo das diferentes crenas em presena.37

Da advm, acrescentaramos, a inviabilidade de uma definio legal de religio, ou, no Estado Democrtico de Direito, a impropriedade da qualificao de uma dada religio como religio oficial, ou, reconhecida. Por evidente, isto no quer significar que as confisses religiosas e as prticas que dela decorrem possam escapar ao controle da legalidade. Contudo, uma vez observada a fronteira da licitude, quaisquer agrupamentos de pessoas, institudos segundo as leis do pas,

35 36

John LOCKE, Carta a Respeito da Tolerncia, pp. 12-20.

Cristobal Orrego SANCHEZ e Javier Saldaa SERRANO. Principios del Derecho y Libertad Religiosa in Revista de Derecho da Universidad de Concepcion. Chile: Facultad de Ciencias Jurdicas y Sociales, Ano LXVII, 1999, passim.37

Jnatas MACHADO, A Constituio e os Movimentos Religiosos Minoritrios, p. 229.

34

que reivindiquem a condio de associao religiosa, devero ser considerados como tal pelo Estado e pelos particulares, sem quaisquer restries ao exerccio e gozo dos direitos e prerrogativas deferidos aos fiis, ministros religiosos, associa es, cultos e templos religiosos. A esse respeito, ntida a disposio do artigo 150, inciso VI, alnea b, da Constituio Federal, segundo o qual vedado Unio, aos Estados e ao Distrito Federal e aos municpios, instituir impostos sobre templos de qualquer culto. O emprego do pronome indefinido qualquer desautoriza especulaes a respeito de qual seja o culto salvaguardado de ingerncias estatais, inclusive as que poderiam manifestar-se por meio de tributos: todo e qualquer culto encontra-se no campo de incidncia dessa norma constitucional. Trata-se de preceito que deve ser examinado em concordncia prtica com a prescrio constitucional do pluralismo de idias (Constituio Federal, art.1, inciso V; artigo 206, inciso III) e, especialmente com a regra esculpida no art. 5, inciso VIII, do Texto Constitucional: ningum ser privado de direitos por motivo de crena religiosa (...). Aqui, uma vez mais deparando-nos com a utilizao de um pronome indefinido, ningum, realando a vontade do Constituinte de 1988 de indivisar pessoas em razo do seu credo religioso, assegurando a todos os fiis, independentemente da f que professem, igualdade de tratamento e de oportunidades. Em ltima instncia, a Carta da Repblica assegura a inviolabilidade da liberdade de crena (art. 5o, inciso VI) sem adjetivar tal crena, e outorga o livre

35

exerccio dos cultos (no plural), alm de garantir a proteo dos locais de culto e suas liturgias sempre empregado no plural pelo que quaisquer tergiversaes acerca da classificao e/ou hierarquizao de confisso religiosa no Brasil configuram ofensa frontal e direta Constituio vigente. Tomemos emprestado o juzo de Paulo de Barros Carvalho:Esto imunes templos de qualquer culto. Trata-se de reafirmao do princpio da liberdade de crena e prtica religiosa, que a Constituio prestigia no artigo 5, incisos de VI a VII. Nenhum bice h de ser criado para impedir ou dificultar esse direito de todo o cidado. E entendeu o constituinte de eximi-lo tambm do nus representado pela exigncia de impostos (art. 150, VI, b). Dvidas surgiram sobre a amplitude semntica do vocabulrio culto, pois, na conformidade da acepo que tomamos, a outra palavra - templo - ficar prejudicada. Somos por uma interpretao extremamente lassa da locuo culto religioso. Cabem no campo de sua irradiao semntica, todas as formas racionalmente possveis de manifestao organizada de religiosidade, por mais estrambticas, extravagantes ou exticas que sejam. E as edificaes onde se realizam esses rituais havero de ser consideradas templos.38

Interessante observar que j nos idos dos anos sessenta do sculo passado, Aliomar Baleeiro realava a transigncia, a maleabilidade com que o sistema jurdico tratou a matria da liberdade de crena, de tal modo que advertia: Mas existe o perigo remoto de intolerncia para com o culto das minorias, sobretudo se estas se formam de elementos tnicos diversos.39 A sabedoria de Aliomar Baleeiro prossegue ecoando, mas no o bastante para impedir a produo de uma certa doutrina, e mesmo de atos normativos obstinados em subordinar a norma jurdica s preferncias religiosas pessoais.

38 39

Paulo de Barros CARVALHO. Curso de Direito Tributrio. 12. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p.183.

Aliomar BALEEIRO. Limitaes Constitucionais ao Poder de Tributar. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 182.

36

No se deve ter dvida quanto ao fato de que o sistema jurdico brasileiro repudia veementemente tal ordem de especulaes e de intransigncia. desnecessrio lembrar que a histria da humanidade repleta de tragdias decorrentes do monolitismo religioso e da manipulao poltico-ideolgica do sentimento religioso: guerras, genocdios, massacres, estupros em massa e outras iniqidades, no passado e mesmo no presente, continuam brotando da

intransigncia religiosa, agredindo a conscincia democrtica e vulnerando os mais elementares direitos da pessoa humana. A tristemente famosa inquisio, o caso Jean Calas40, o caso Dreyfus41, o nazismo, a questo Palestina, os conflitos no Reino Unido, no Oriente Mdio, a guerra na Bsnia, os massacres praticados na ndia, ou em certas regies do continente africano, so apenas alguns exemplos dos frutos produzidos pelo germe da intransigncia religiosa. No por mera casualidade, portanto, o Estado Democrtico de Direito est terminantemente desautorizado, sob qualquer pretexto, a permitir a superposio de papis entre Estado e religio, tampouco a transigir na proteo da liberdade de crena e de culto.

40

Ocorrido em Toulouse em 1762, no qual o ancio Jean Calas, protestante, foi condenado morte, acusado de parricdio. O julgamento foi fortem ente influenciado por catlicos, com o argumento de que os protestantes tinham o hbito de sacrificar os prprios filhos. O filho morto, Marc-Antonie, havia cometido suicdio, conforme terminou comprovado. Jean Calas foi executado no dia 9 de julho de 1762. v. VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerncia. So Paulo: Martins Fontes, 1993, passim.41

Fato clebre ocorrido entre 1894 e 1914, na Frana, que decorreu da priso de um militar francs, judeu, Alfred Dreyfus, condenado e degregado injustamente sob a acusao de traio e venda de segredos militares. O caso deu ensejo a manifestaes anti -semitas na Frana, sendo que anos depois o verdadeiro culpado acabou identificado, resultando na reabilitao de Dreyfus. v. Antonio Carlos do Amaral AZEVEDO. Dicionrio de Nomes, Termos e Conceitos Histricos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 152.

37

Um caso emblemtico, julgado pela Suprema Corte norte-americana, Church of The Lukumi Babalu Aye versus City of Hialeah42, ilustra a transigncia exigvel do Estado e dos particulares no que se refere liberdade religiosa. A Church of the Lukumi Babalu Aye, pertencente confisso religiosa denominada Santera (levada para os Estados Unidos no sculo XIX, por negros cubanos), atribuiu ao sacrifcio de animais um lugar destacado entre os seus ritos, a despeito de tratar-se de uma prtica formalmente proibida por norma da comunidade de Hieleah (Flrida). Invocando a Primeira Emenda da Constituio dos Estados Unidos, a Suprema Corte entendeu que os funcionrios pblicos deveriam ater-se aos princpios maiores da Constituio, entre os quais a tolerncia religiosa, e lembrou que as mesmas normas municipais conviviam com a matana de animais praticada pelos judeus - uma regra da dieta alimentar judaica - sem que tais matanas fossem condenadas, pelo que a hostilidade em relao Church of the Lukumi configurava uma indisfarvel discriminao por parte dos reclamantes. No contexto brasileiro, Celso Bastos tambm pronuncia-se a respeito do princpio da no-discriminao de natureza religiosa: Outro princpio fundamental que o Estado deve manter-se absolutamente neutro, no podendo discriminar entre as diversas igrejas, quer para benefici-las, quer para prejudic-las.43

42

Church of the Lukumi Babalu Aye versus City of Hialeah/Florida (113 S. Ct. 2217, 1993), publicado em J, 1995-I-320.43

Celso Ribeiro BASTOS. Curso de Direito Constitucional. 20. ed. So Paulo: Saraiva, 1999, p.192.

38

Comentando a possibilidade de colaborao entre Estado e religio, o autor sublinha que, No entanto, esta colaborao ser sempre difcil, uma vez que dever estar adstrita ao princpio de uma absoluta igualdade entre todas as igrejas.44 Interessante constatar que Celso Bastos aplica o pronome indefinido todas, decerto com o objetivo de salientar o imperativo da igualdade que o sistema jurdico outorga a todas e quaisquer crenas e religies. Faamos ento uma breve digresso sobre a aplicao do princpio da igualdade s profisses religiosas, mesmo porque, diria Jos Afonso da Silva que:Embora seja uma declarao formal, no deixa de ter sentido especial essa primazia ao direito de igualdade, que, por isso, servir de orientao ao intrprete, que necessitar de ter sempre presente o princpio da igualdade na considerao dos direitos fundamentais do homem.45

1.5

A igualdade de todas as religies e crenas perante a lei Sntese dicionarizada de autoria de Aurlio Buarque de Holanda Ferreira

atribui ao substantivo igualdade, derivado do latim aequalitate, o significado de qualidade ou estado de igual; paridade; uniformidade; identidade; justia; propriedade de ser igual.46

44 45

Ibidem, p.192.

Jos AFONSO DA SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 174.46

Aurlio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 915.

39

Recepcionando o sentido operado pelo vocabulrio comum, a doutrina e a jurisprudncia estendem para o vocbulo isonomia o mesmo contedo de significado atribudo igualdade, tratando-os como sinnimos.47 Tratada vez por outra como sinnimo de igualdade e isonomia, a noo de eqidade tambm demanda especial ateno. Derivada do francs quit, cujas razes remontam expresso latina aequitate, eqidade quer significar igualdade, igualdade da alma, calma, equilbrio moral; eqidade, esprito de justia, enfim, justa proporo. 48 A despeito de sua dimenso etimolgica e semntica, o vocbulo eqidade admite acepo plurvoca no sistema jurdico brasileiro. Com efeito, ao relacionar os objetivos que orientam a seguridade social, a Constituio da Repblica refere eqidade na forma de participao no custeio (art. 194, inciso V). Neste plano, o vocbulo eqidade assume a significao de justa proporo, de proporcionalidade, lembrando o princpio constitucional da capacidade contributiva, segundo o qual, Sempre que possvel, os impostos tero carter pessoal e sero graduados segundo a capacidade econmica do contribuinte (...) (art. 145, 1). Trata-se, por evidente, de comando nitidamente endereado ao legislador ordinrio, que dever observ-lo sempre que disciplinar o custeio da previdncia social.

47

v.g., Jos AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 195; Celso Antonio Bandeira de MELLO. Contedo Jurdico do Princpio da Igualdade. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 1993, p. 15; Antonio Carlos de Arajo CINTRA, Ada Pellegrini GRINOVER e Cndido R. DINAMARCO. Teoria Geral do Processo. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 1992, p. 52; STF Recurso Extraordinrio n. 82.520 Rel. Cunha Peixoto - j. 04.11.75.48

Jos Pedro MACHADO. Dicionrio Etimolgico da Lngua Portuguesa. 6. ed. Lisboa: Livros Horizonte, v. 2, 1990, p 521.

40

No obstante esta especificidade, a eqidade, a par da analogia e da interpretao extensiva, designa, via de regra, uma tcnica de integrao, um instrumento posto disposio do intrprete, notadamente o Juiz, para densificar a lacuna legal. Tal procedimento encontrava previso, entre outros, no art. 1.456 do Cdigo Civil de 1916, verbis: No aplicar a pena do art. 1.454, proceder o juiz com eqidade, atentando nas circunstncias reais, e no em probabilidades infundadas, quanto agravao dos riscos. Ancoram-se neste anunciado as construes doutrinrias, a exemplo da assertiva de Trcio Sampaio Ferraz Jr.: O juzo por eqidade, na falta de norma positiva, o recurso a uma espcie de intuio, no concreto, das exigncias da justia enquanto igualmente proporcional. 49 O mesmo entendimento perfilhado por Andr Franco Montoro, segundo o qual,Eqidade (epiekeia), que Aristteles definiu como uma adaptao da lei quando ela deficiente por causa da sua universalidade, implica sempre uma moderao das palavras da lei, em casos particulares, para atender melhor sua finalidade e ao seu esprito; por isso, ela no pode ser exigida e constitui, como diz S. Toms, uma virtude anexa justia legal.50

Assinale-se, contudo, que o emprego da eqidade refoge do poder discricionrio do juiz, visto que o art. 127, do Cdigo de Processo Civil, determina que O juiz s decidir por eqidade nos casos previstos em lei.

49 50

Tercio Sampaio FERRAZ JR. Introduo ao Estudo do Direito. So Paulo: Atlas, 1991, p. 277.

Andr Franco MONTORO. Introduo Cincia do Direito. 24. ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 143.

41

Demarcada a semntica dos vocbulos igualdade, isonomia e eqidade, cabe notar que, debruando-se sobre o princpio constitucional da igualdade, Manoel Gonalves Ferreira Filho distingue as noes de igualdade na lei e igualdade perante a lei. 51 A respeito dessa matria, leciona Norberto Bobbio:A igualdade nos direitos (ou dos direitos) significa algo mais do que a simples igualdade perante a lei enquanto excluso de qualquer discriminao no justificada: significa o igual gozo, por parte dos cidados, de alguns direitos fundamentais constitucionalmente assegurados, como resulta de algumas formulaes clebres. 52

Prossegue o jusfilsofo italianoA igualdade perante a lei apenas uma forma especfica e historicamente determinada de igualdade de direito ou dos direitos, por exemplo, do direito de todos de terem acesso jurisdio comum, ou aos principais cargos civis e militares, independentemente do nascimento. 53

1.6

A igualdade considerada como no-discriminao Remonta aos anos setenta uma elucidativa diferenciao entre concepo

negativa e concepo positiva da igualdade. Anacleto de Oliveira Faria denomina concepo negativa da igualdade:Aquela concepo que no tinha por escopo a adoo de quaisquer medidas tendentes a diminuir as diversidades sociais e

51

Manoel Gonalves FERREIRA FILHO. Curso de Direito Constitucional de Acordo com a Constituio de 1988. 20. ed. So Paulo: Saraiva, 1993, p. 276.52 53

Norberto BOBBIO. Igualdade e Liberdade. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 29. Ibidem, mesma pgina.

42

econmicas entre os homens, porm, que se limitava a acentuar a regra de plena nivelao de todos perante a lei (...) 54.

Tratava-se de concepo da igualdade jurdica em sentido subjetivo, pessoal, cabendo ao Governo apenas fiscalizar o rigoroso cumprimento do preceito, considerado de forma negativa e abstrata. J no que concerne concepo positiva da igualdade, assevera o autor:At alguns anos atrs, a esse aspecto negativo se limitava o dever do executivo em face do preceito da igualdade. Entretanto, aps a primeira grande guerra, passou a prevalecer a tese de que o Estado no podia permanecer num plano meramente jurdico, devendo, alm de manter a ordem, promover o que hoje se convencionou chamar de bem-estar social. Por isso, ao lado da ao jurdica e negativa do Estado, impe-se tambm a ao social e positiva. O Poder Pblico deixa de ser simples policial para adotar medidas tendentes a fomentar o bem comum. (...) Assim, no que tange a esse princpio, a Administrao tem obrigaes positivas, a par das negativas, acima referidas. 55

Vista, grosso modo, a distino entre dimenso positiva e negativa da igualdade, j poderamos afirmar que a proclamao da igualdade de todos perante a lei, insculpida na primeira parte do caput do art. 5o da Carta de 88, sintetiza a dimenso negativa do princpio da igualdade, desdobrando-se em um amplo leque de regras constitucionais que, no limite, visam coibir a ocorrncia de discriminao injusta. Discriminao, palavra derivada do latim discriminatione, designa, segundo sntese dicionarizada de Aurlio Buarque de Holanda Ferreira, ato ou efeito de

54

Anacleto de Oliveira FARIA. Do Princpio da Igualdade Jurdica. So Paulo: Revista dos Tribunais e Ed. da Universidade de So Paulo, 1973, pp. 48/98.55

Ibidem, mesma pgina.

43

discriminar; faculdade de distinguir ou discernir; discernimento; separao, apartao, segregao: discriminao racial. 56 O vocbulo, grafado quatro vezes no texto de 88 (duas vezes na acepo genrica e duas com sentido especfico), no , todavia, o nico empregado pelo constituinte para indicar violao de direitos motivada por atributos da pessoa, seja a origem (art. 3, IV); cor ou raa (arts. 3, IV, 4, VIII, 5, XLII, e 7, XXX); sexo (arts. 3, IV, 5, I, e 7, XXX); idade (arts. 3, IV, e 7, XXX); estado civil (art. 7, XXX), porte de deficincia (arts. 7, XXXI, 227, II); credo religioso (art. 5, VIII); convices filosficas ou polticas (art. 5, VIII); tipo de trabalho (art. 7, XXXII) ou natureza da filiao (art. 227, 6), entre outros recolhidos na realidade social e reputados como fontes de desigualao. Um exame perfunctrio da Constituio Federal permite captar a aparente sinonmia com que as expresses discriminao lato sensu (arts. 3, IV e 227), discriminao stricto sensu (arts. 5, XLI, e 7, XXXI), distino entre pessoas (arts. 5, caput, 7, XXXII, e 12, 2), diferena de tratamento (art. 7, XXX), tratamento desigual (art. 150, II) e prtica do racismo (art. 5, XLII) so utilizadas, resguardada a nfase conferida pelo constituinte prtica do racismo comparativamente a outras possveis modalidades de discriminao, seno porque a criminaliza, atribuindo-lhe os gravosos estatutos da inafianabilidade e da imprescritibilidade, tambm porque sujeita o infrator mais severa das penas privativas de liberdade a recluso.

56

Aurlio Buarque de Holanda FERREIRA, op. cit., p. 596.

44

Assim, o prembulo da Constituio Federal consigna o repdio ao preconceito 57 ; o art. 3, IV, probe o preconceito e qualquer outra forma de discriminao (de onde se poderia inferir que preconceito seria espcie do gnero discriminao); o art. 4, VIII, assinala a repulsa ao racismo no mbito das relaes internacionais; o art. 5, XLI, prescreve que a lei punir qualquer forma de discriminao atentatria dos direitos e garantias fundamentais; o mesmo art. 5, XLII, criminaliza a prtica do racismo; o art. 7, XXX, probe diferena de salrios e de critrio de admisso por motivo de cor, entre outras motivaes, e, finalmente, o art. 227, que atribui ao Estado o dever de colocar a criana a salvo de toda forma de discriminao e repudia o preconceito contra portadores de deficincia. Note-se que em sua acepo jurdica, formal, negativa, o princpio da igualdade aparece como um direito fundamental da cidadania, contrapondo-se a um dever negativo cometido ao Estado e aos particulares, qual seja, a obrigao de no-discriminar. Trata-se de uma obrigao negativa, a partir do que ficam vedadas:58 . elaborao de leis que estabel