tese sandra aparecida silva

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 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PÓS-GRADUAÇÃO EM TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA UM ALEPH:  BORGES, SEGUNDO O LIVRO DAS MIL E UMA NOITES. ESTUDO COMPARATIVO DA POÉTICA ÁRABE COMO ELEMENTO DE CONSTRUÇÃO DA POÉTICA NARRATIVA DE JORGE LUIS BORGES. SANDRA APARECIDA SILVA São Paulo 2008

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PS-GRADUAO EM TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA

    UM ALEPH: BORGES, SEGUNDO O LIVRO DAS MIL E UMA NOITES.

    ESTUDO COMPARATIVO DA POTICA RABE COMO

    ELEMENTO DE CONSTRUO DA POTICA NARRATIVA DE JORGE LUIS BORGES.

    SANDRA APARECIDA SILVA

    So Paulo

    2008

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    PS-GRADUAO EM TEORIA LITERRIA E LITERATURA COMPARADA

    UM ALEPH: BORGES, SEGUNDO O LIVRO DAS MIL E UMA NOITES.

    ESTUDO COMPARATIVO DA POTICA RABE COMO

    ELEMENTO DE CONSTRUO DA POTICA NARRATIVA DE JORGE LUIS BORGES.

    SANDRA APARECIDA SILVA

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutora em Letras. rea de Concentrao: Teoria Literria e Literatura Comparada. Orientadora:Profa. Dra. Aurora Fornoni Bernardini. Co-Orientador: Prof. Dr. Michel Sleiman.

    So Paulo

    2008

  • FOLHA DE APROVAO

    Sandra Aparecida Silva

    Um aleph: Borges, segundo o Livro das mil e uma noites.

    Estudo comparativo da potica rabe como elemento de construo da

    potica narrativa de Jorge Luis Borges.

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutora em Letras. rea de Concentrao: Teoria Literria e Literatura Comparada.

    Aprovado em: 07/08/2008.

    BANCA EXAMINADORA

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Aurora Fornoni Bernardini (Orientadora). Universidade de So Paulo (USP).

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Michel Sleiman. Universidade de So Paulo (USP) (Co-Orientador).

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Jos Amlio de Branco Pinheiro. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUCSP).

    _____________________________________________

    Profa. Dra. Miriam Viviana Grate. Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Mamede Mustaf Jarouche. Universidade de So Paulo (USP).

    _____________________________________________

    Prof. Dra. Adma Fadul Muhana. Universidade de So Paulo (USP).

  • memria de meu av, Joo Quibau,

    que aprendeu a ler e a escrever na areia.

    Para meus netos, Nicole e Pedro,

    gros de areia em outras mesmas estradas.

  • Agradecimentos.

    Profa. Dra. Aurora Fornoni Bernardini,

    que me acolheu e confiou neste projeto.

    Pelo carinho e as sempre palavras de incentivo para que eu chegasse ao destino.

    Ao Prof. Dr. Michel Sleiman,

    que amenizou os percalos da jornada e iluminou momentos de escurido.

    Pelo poeta (e tradutor), ao modo borgeano, que .

    Ao Prof. Dr. Mamede Mustaf Jarouche,

    pela profunda e sincera admirao de sua erudio quanto ao Livro das mil e uma noites.

    Profa. Dra. Mriam Viviana Grate,

    pelo corao amplo e fraterno, e pelo saber a respeito dos labirintos borgeanos.

    Ao Prof. Dr. Jos Amlio de Branco Pinheiro,

    Meu padrinho no amor primeira vista pelas Noites.

    Responsvel pela vereda que escolhi.

    Ao Luiz de Mattos Alves,

    do Departamento de Teoria Literria e Literatura Comparada,

    pela ateno e cuidado em todos os momentos.

    minha famlia: pais, irmos e filho.

    Pelo que e no . Pelo que nos torna irmanados nos caminhos da vida.

    Ao Lus Roberto Pinto Gil, companheiro de viagem.

    Juraci Beraldi, amiga e leitora do trabalho.

  • Em nome de Deus Allah MisericordiosoEm nome de Deus Allah MisericordiosoEm nome de Deus Allah MisericordiosoEm nome de Deus Allah Misericordioso

    Ns o descendemos

    cu-abaixo

    na Noite-Decreto

    Que sabes tu da Noite-Decreto?

    A Noite-Decreto mais

    que mil de meses

    Nela desceram o Esprito e os anjos

    no amm de seu Senhor a cumprir toda ordem

    Paz durvel

    ela

    at o romper-aurora

    Alcoro, 97 - Sura do Decreto Traduo: Michel Sleiman

  • RESUMO

    Este estudo compara a mmese potica do mundo rabe-islmico, especialmente no livro de contos As mil e uma noites, com a mmese potica do mundo hispano-americano na obra literria de Jorge Luis Borges. A obra annima das Noites tornou-se a principal referncia para especular tanto as formas e as estratgias de construo narrativa quanto os contedos temticos na criao potica do escritor argentino. Devido magnitude da produo literria borgeana, este estudo considerou o livro El Aleph (1946) e trs contos de El libro de arena (1975)- El espejo y la mscara, Undr e El disco. O trabalho se prope afirmar que a potica rabe-islmica, enquanto acervo da cultura universal constituiu-se num dos elementos vitais para a construo da potica narrativa de Jorge Luis Borges.

    Palavras-chave: Jorge Lus Borges; Livro das mil e uma noites; El Aleph; El libro de arena; Potica.

  • ABSTRACT

    This study compares the poetic mimesis of the Arabic-Islamic world, specially the book of tales The Arabian Nights, with the poetic mimesis of the American-Hispanic world in Jorge Luis Borges literary production. The anonymous literary composition The Arabian Nights became the main reference to speculate both the form and the narrative construction strategies as well as the thematic contents as a poetic creation of the Argentinian author. Due to the magnitude of the borgesian literary production, this study has only considered the book El Aleph (1946) and three narratives of El libro de arena (1975) El espejo y la mscara, Undr and El disco. As a result, the study proposes to state that the Arabic-Islamic Poetics, albeit a universal cultural patrimony, constituted itself in one of the vital elements to the construction of Jorge Luis Borges Narrative Poetics.

    Key-words: Jorge Luis Borges;The Arabian Nights; El Aleph; El libro de arena;

    Poetics.

  • SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................ 10 CAPTULO I - A POTICA DO LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, SEGUNDO BORGES. ............................................................................

    16

    Introduo................................................................................................. 16 1.1. O conceito de Oriente em Borges........................................................ 17 1.2. Alguns conceitos metafsicos orientais em Borges............................... 20 1.2.1. O sufismo ......................................................................................... 22 1.3. O tema do Infinito: a questo do nome As mil e uma noites.............. 29 1.4. A traduo e os tradutores do Livro das mil e uma noites................. 32 1.4.1. Os tradutores do Livro das mil e uma noites.......................................... 34 1.5. A construo da fico: realidade, magia e fantstico. ....................... 39 1.5.1. O fantstico....................................................................................... 44 1.6. Metforas para As mil e uma noites.................................................. 47 1.6.1. Consideraes gerais sobre o poema Metforas de Las mil y una noches.... 54 1.6.2. A primeira metfora o rio... .............................................................. 57 1.6.3. A segunda metfora a trama de um tapete... ...................................... 60 1.6.4. A terceira metfora um sonho... ........................................................ 62 1.6.5. A quarta metfora um mapa daquela regio indefinida, o Tempo... ....... 66 CAPTULO II - A POTICA DO LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, SEGUNDO A POTICA RABE...........................................

    71

    Introduo................................................................................................. 71 2.1. A mmese potica rabe no perodo Pr-Islmico................................ 72 2.2. A mmese potica com o Isl.............................................................. 75 2.3. Relaes/ Oposies: o poeta urbano e corteso x o narrador nas Noites........................................................................................................

    84

    2.4. Relaes do real x imaginrio, na Poesia e nas Noites. .................... 89 2.5. Elementos da mmese potica rabe em o Livro das mil e uma noites. .....................................................................................................

    91

    2.5.1. Dados histricos do Livro das mil e uma noites....................................... 91 2.5.2. O Conto-Moldura do Livro das mil e uma noites ..................................... 95 2.5.3. Estratgias de construo narrativa no Livro das mil e uma noites............ 98 2.6. Um conto de As mil e uma noites: A Cidade de Bronze....................... 108 2.6.1. A Cidade de Bronze e os seus blocos narrativos..................................... 109 2.6.2. Estratgias de construo narrativa em A Cidade de Bronze..................... 112 CAPTULO III. UM ALEPH: BORGES, SEGUNDO O LIVRO DAS MIL E UMA NOITES. ............................................................................

    120

    Introduo. .............................................................................................. 120 3.1. Algumas pegadas nas areias de El libro de arena.............................. 121 3.2. Trs contos de El libro de arena: El espejo y la mscara, Undr, El disco. .......................................................................................................

    124

    3.2.1. Proposta de organizao narrativa dos contos........................................ 124 3.2.2. Comentrios comparativos sobre os trs contos...................................... 129 3.3. O livro El Aleph: significado e proposta hexagonal de organizao do livro. ........................................................................................................

    133

    3.4. Primeiro Bloco Narrativo: O Infinito, ou El Aleph............................. 144 3.5. Segundo Bloco Narrativo: Metafsica e Razo. ................................ 151

  • 3.5.1. La busca de Averroes. ....................................................................... 152 3.5.2. El Zahir. .......................................................................................... 156 3.5.3. La escritura del dios. ....................................................................... 159 3.5.4. Los telogos. .................................................................................... 162 3.6. Terceiro Bloco Narrativo: A Ptria de Borges. Uma construo em mosaicos. ..............................................................................................

    168

    3.6.1. Historia del guerrero y de la cautiva. 170 3.6.2. Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874)......................................... 172 3.6.3. El muerto......................................................................................... 174 3.6.4. Emma Zunz...................................................................................... 178 3.7. Quarto Bloco Narrativo: O Labirinto, inslita imagem de sonho e de alucinao: a realidade. ............................................................................

    182

    3.7.1. La casa de Astrion. .......................................................................... 183 3.7.2. Abenjacn el Bojar, muerto en su laberinto. .......................................... 184 3.7.3. Los dos reyes y los dos laberintos. ....................................................... 187 3.8. Quinto Bloco Narrativo: Borges e o Mesmo. A questo da morte....... 188 3.8.1. La otra muerte. ................................................................................. 189 3.8.2. La espera. ........................................................................................ 193 3.8.3. Deutsches Requiem. ........................................................................... 196 3.8.4. El hombre en el umbral. ..................................................................... 199 3.9. Sexto Bloco Narrativo: A Eternidade. O conto El Inmortal................. 204 3.9.1. El Inmortal. ...................................................................................... 206 3.9.2. El inmortal e A Cidade de Bronze. ....................................................... 210

    DAS CONSIDERAES FINAIS. ....................................................... 215 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS. ................................................... 221 Sobre Borges............................................................................................. 221 Sobre As mil e uma noites......................................................................... 225 Geral......................................................................................................... 228 Sites ......................................................................................................... 231 ANEXOS. 1. Supplemental Nights Volume 2 Tale of the Two Kings and the Wazirs Daughters. (Noite 602). Verso Burton......................................................

    233

    2. Nights 566578 - The story of the City of Brass/ A Cidade de Bronze. Verso Lane. ............................................................................................

    237

    3. Don Rodrigo y la prdida de Espaa...................................................... 254

  • 10

    Um aleph: Borges, segundo o Livro das mil e uma noites.

    Estudo comparativo da potica rabe como elemento de construo da

    potica narrativa de Jorge Luis Borges.

    INTRODUO

    Este trabalho estabelece alguns paralelos e alguns pontos de interseco

    em que dois universos literrios, o de Jorge Lus Borges e o do Livro das mil e

    uma noites, possam se vincular ou se atrair ou se combinar. Mesmo que

    aparentemente remetam a lugares diferentes e tempos distantes, esses

    universos dizem respeito ao Homem, numa tentativa de preservar a memria

    cultural, pela palavra, pois ao final de tudo, ya no quedan imgenes del

    recuerdo; solo quedan palabras1.

    Borges no pode estar ligado s Mil e uma noites apenas porque

    declaradamente se refere a elas em dois ensaios, Los traductores de las 1001

    noches (Histria de la eternidad, 1936) e Las mil y una noches (Siete noches,

    1980) bem como num poema, Metforas de Las mil y una noches (Historia de

    la noche, 1977). Sua ligao com as Noites2 parece ultrapassar os limites da

    preocupao com a traduo ou com a histria da incorporao da obra no

    Ocidente. bem verdade que seus textos no se dirigem a orientalistas e que

    haja um ponto de vista ocidental a respeito do mundo oriental.

    Porm, se As mil e uma noites podem ter se tornado um jogo literrio

    em suas mos, por valorizar o estranho, o indeterminado, o aparentemente

    ilgico, o estritamente literrio, o esttico3, isso acabou se transformando na

    problemtica deste trabalho: como esse jogo, aos moldes rabes, acontece em

    Borges? Ou: ser que acontece? E: por que acontece?

    Assim, este trabalho busca indcios da potica rabe e, mais de perto, do

    Livro das mil e uma noites, como tema e forma narrativa que possam esclarecer

    algo a mais sobre a construo literria borgeana. Estudar a cultura e a potica

    1 BORGES, Jorge Lus. El inmortal. In El aleph (1949). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1 :1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p.544. 2 O uso de Noites pelo nome completo da obra, Livro das mil e uma noites, est baseado no texto de JAROUCHE, Mamede Mustaf. Borges, autor das Mil e Uma Noites. In CULT Revista Brasileira de Literatura. Ano III, n. 25, 1999, p 67-71. 3 JAROUCHE, Mamede Mustaf. Borges, autor das Mil e uma noites .In CULT Revista Brasileira de Literatura. ano III, n. 25, 1999, p 68.

  • 11

    rabes acabou se tornando fundamental para entender um modo de produo

    literria que possa fornecer alguns subsdios ou dados na compreenso do

    trabalho literrio de Borges.

    Escritor erudito, Borges faz muitas referncias ao mundo oriental,

    cultura do Oriente Prximo. Por isso, medida que lamos a bibliografia sobre As

    mil e uma noites, mais nos aproximvamos do escritor argentino, decorrendo da

    algumas premissas que propomos:

    a. Enquanto o mundo rabe-islmico em geral tenha sido perifrico

    cultura ocidental, Borges mostrou uma predileo pelo que era

    marginalizado. H, por isso, uma postura poltica de sua parte, mesmo

    que tenha resistido a fazer uso poltico da literatura4. Valorizava a

    cultura arabizada, via a literatura e o mundo islmicos, pelo vis do

    sufismo.

    b. Borges gostava do que era extico. O exotismo, por sua vez, pode no

    ser apenas um fornecedor de clichs, mas constituir-se numa marca

    ocidental para enxergar o Oriente.

    c. Sendo latino, carrega em si um campo de afinidades e oposies5.

    No s faz uso de uma expresso barroca: cada escrita contm uma

    outra, como intertextualidade e intratextualidade... um mundo de

    duplos, de luz e sombra, de descentramento, de repetio, de labirintos

    e efeitos de claro e escuro6- lugar propcio de encontro e dilogo de

    obras; como tambm manifesta uma mestiagem, de raa e de cultura,

    uma multiplicidade e diversidade de origens, inclusive a rabe.

    d. Sente-se um escriba do mundo ocidental: detentor da cultura universal

    erudita, como uma biblioteca viva e um homem que possui adab7,

    traduz a cultura rabe para o mundo latino-americano ao apropriar-se

    dela e tornar-se, simultaneamente, o seu porta-voz, porque a atualiza

    4 Com base em: Borges se resisti siempre a un uso poltico de la literatura. Los textos de Borges se colocan en un campo histrico de fuerzas donde se enfrentam ideologas polticas. Siempre confes su aversin a una literatura que fuera sensible a las presiones de las ideologas. SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Compaia Editora Espasa Calpe Argentina S.A/ Ariel, 1995, p.177-178, 189. 5 CHIAMPI, Irlemar. Rodrguez Monegal : crtica e inveno. In MONEGAL, Emir R. Borges :uma potica da leitura. So Paulo : Perspectiva, 1980, p.10. 6 SARDUY, Severo. Barroco. Traduo de Maria de Lurdes Jdice e Jos Manuel de Vasconcelos. Lisboa: Veja, 1989, p.8-9, 62. 7 ADAB um conceito amplo e complexo na cultura rabe. Trata-se, em linhas gerais, do conjunto de conhecimentos necessrios ao homem corteso como parte do decoro. Envolve diversos campos do saber: literatura, tradio proverbial, filologia, filosofia, histria, geografia, etc. Ver a respeito desse conceito p. 78-79 deste trabalho.

  • 12

    no tempo a partir do espao multifacetado do mundo hispano-

    americano.

    e. Age como Cherazade. Embora Borges no assuma uma personagem

    que escreve (ou que conta), coloca-se sempre como ele-mesmo, mas

    um narrador que lida com o ldico, com o prazer do narrar e do

    registrar a memria, entre realidade e fico. Como detentor de adab,

    preserva ou at mesmo cria, pela palavra escrita, a memria de seu

    povo, ameaada pelo mundo moderno, desconexo, que no deixa

    pegadas na areia.

    f. Como homem das letras, articula questes de f e de razo. Mesmo

    no se filiando a nenhuma religio, busca a humanizao do homem, o

    seu questionamento sobre Deus e sua criao, o tempo, a eternidade,

    o infinito. Articula tambm questes de filosofia para repensar e refletir

    sobre o mesmo velho homem de sempre, com suas hesitaes, as suas

    amarguras e angstias, questes, enfim, sobre a vida e a morte.

    g. Literariamente, tem concepes muito claras acerca da traduo

    enquanto recriao.

    h. Utiliza temas e estratgias que invoquem a idia de infinito, labirinto,

    entretenimento, espelho, incrustao, descentramento.

    No estamos habituados ao mundo oriental rabe, j deformado pelas

    informaes orientalistas de longa data e veiculado pela mdia atual apenas nas e

    pelas atrocidades e o fanatismo religioso. O mundo rabe muito mais que isso,

    quando visto um pouco mais de perto, em particular sob o vis da literatura.

    Neste trabalho procura-se vincular os homens entre si pela palavra, esta criao

    humana que se burila na literatura, valendo-se do fictcio para falar do real, que,

    sendo sempre o mesmo, passa a ser diferente, dependendo do leitor ou do

    ouvinte.

    Tratando-se de um trabalho em literatura, na rea de Teoria Literria e

    Literatura Comparada, a metodologia a comparativa, tendo em vista o universo

    que se pretende abarcar. Foram necessrias leituras crticas acerca dos dois

    objetos de estudo para poder compar-los. Houve, portanto, um levantamento

    bibliogrfico de vrios campos temticos:

    1) O universo de Borges reunido em suas Obras completas, em espanhol e

    em portugus.

  • 13

    2) O universo de As mil e uma noites, na verso em espanhol de Rafael

    Cansinos Assens; na verso em portugus de Mamede Mustaf

    Jarouche, ainda incompleta; na verso em ingls de Edward Lane para

    o conto de A Cidade de Bronze e de Richard Burton para a Noite 602.

    3) Bibliografia crtica sobre As mil e uma noites, buscada a fundamentao

    terica em Jamel Eddine Bencheikh, Andr Miquel, Andras Hamori,

    Ferial Ghazoul, e outros.

    4) Bibliografia crtica sobre Borges, buscada a fundamentao terica em

    Ana Maria Barrenechea, Beatriz Sarlo, Adrin Huici, Cristina Grau,

    Jaime Alazraki, e outros.

    5) Bibliografia de assuntos tericos: Edward Said, Gilles Deleuze, Miguel

    Attie Filho, Mohammed Abed Al-Jabri, etc.

    Muitos estudos existem sobre a obra inesgotvel de Borges. Tambm o

    mesmo sobre As mil e uma noites. Ambas as produes tm um dado de infinito,

    parecendo quase impossvel delimit-las, como se no houvesse muros altos o

    suficiente para cerc-las.

    Em Borges, o mundo literrio, intertextualizado, cujas fontes de

    combinaes do mundo oriental e ocidental so sempre dissimuladas, foi tomado

    como amostragem de duas de suas obras, El Aleph, de1949 e El libro de arena,

    de 1975. Quanto ao Livro das mil e uma noites, a partir da anlise do conto-

    moldura de Cherazade, feita por Ferial Gahzoul, fizemos uma leitura do conto A

    Cidade de Bronze para encontrar possveis reflexos dele no conto El inmortal, de

    Borges.

    O estudo est estruturado em trs captulos, acrescidos da concluso, a

    bibliografia e trs contos em anexo: dois contos de As mil e uma noites, a Noite

    602, na verso de Burton que parece ser o texto original lido por Borges para

    tecer comentrios sobre o carter de mise en abyme, a eterna repetio da obra

    rabe e a coleo de noites do conto A Cidade de Bronze, na verso de Lane; o

    terceiro anexo o conto de Rodrigo e a perdida Espaa, que Borges cita no

    poema Metforas de Las mil y una noches, para ilustrar como uma palavra

    pode se tornar um aleph e conter um universo nela.

    O primeiro captulo - As mil e uma noites, segundo Borges - aborda os

    textos declaradamente estudados por Borges sobre As mil e uma noites. Trata-se

    de Los traductores de las 1001 noches (Historia de la eternidad, 1936), Las mil

  • 14

    y una noches (Siete noches, 1980) e o poema: Metforas de Las mil y una

    noches (Historia de la noche, 1977).

    O segundo captulo - As mil e uma noites, segundo a Potica rabe - trata

    mais de perto do processo de construo e de criao literria rabe. O captulo

    visa a nos capacitar enxergar a potica do mundo rabe para alm do vu que

    recobre nossa mentalidade ocidental bipartida e fragmentada; reconhecer que

    desconhecemos em grande parte o mundo oriental rabe com fins ideolgicos;

    perceber como Borges deve realmente ter ido beber naquelas fontes, como a

    mesma gua de rios diferentes.

    No terceiro captulo - Borges, segundo o Livro das mil e uma noites faz-

    se um recorte da obra borgeana em que se estudam o livro El Aleph e apenas

    trs contos de El libro de arena. O recorte adota o prprio princpio do objeto

    aleph, que prope divisar o universo num nico ponto. Com isso, pretende-se

    perceber a intrincada rede de textos borgeanos os quais contm, citam,

    transformam, camuflam o texto de As mil e uma noites.

    verdade que muitas vezes a leitura pareceu-nos um labirinto, em que

    no sabamos mais a razo de estarmos ali, julgvamos ter perdido o fio de

    Ariadne que deveria nos conduzir comparao com As mil e uma noites. O que

    houve foi a mais pura seduo, um m que atraa sem saber muito direito para

    onde. Esse captulo d o nome ao trabalho, como forma de reenviar a parte ao

    todo, e certamente maneira de Borges.

    A inteno ao estudar todo El Aleph foi fundamental para ter uma viso

    global e no fragmentada de ao menos uma de suas obras. Todas as leituras que

    existem da obra do autor, tomam-no aos pedaos: um conto que contm algo

    que aparece tambm em x ou y. Tivemos o propsito de verificar a possibilidade

    de organizar o livro El Aleph ao modo de As mil e uma noites em que uma

    histria contada em muitas noites. Talvez Borges possa ter articulado suas

    histrias assim, formando blocos narrativos, disfarados, podendo os contos

    serem lidos isoladamente, como ocorre em As mil e uma noites, sem a

    necessidade de ser a primeira ou a ltima narrativa, podendo-se ler o livro da

    metade para a direita ou da metade para a esquerda, estando essas narrativas

    organizadas em temas maiores. Isto justifica a leitura dos trs contos de El libro

    de arena como se fossem pertencentes a um nico bloco narrativo.

    Tentamos com certo atrevimento, como escalando os muros de duas

    cidades, A Cidade de Bronze e A Cidade dos Imortais, ler Borges pelo vis de As

  • 15

    mil e uma noites. Ao insistir nesses universos literrios, inevitavelmente nos

    defrontamos com a questo da palavra, como uma construo humana

    imperfeita e divina, que cria, mas no consegue manifestar o homem por inteiro.

    Fizemo-nos um pouco como Cherazade.

    Este trabalho, ao estudar a Potica dos dois universos literrios aqui

    propostos, pretende chegar equao de uma potica narrativa de Borges, que

    parece indicar para um fazer potico em que Oriente e Ocidente no se

    colocam como antogonismos. Esta compreenso faz do escritor argentino o lugar

    de uma Literatura que parte de dois modos distintos de um fazer literrio, mas

    que em Borges, como um aleph, se revelam um.

  • 16

    CAPTULO I. A POTICA DO LIVRO DAS MIL E UMA NOITES, SEGUNDO BORGES.

    Introduo

    Borges nos conduz, por caminhos enviesados e bifurcados, ao labirinto do

    Livro das mil e uma noites em incontveis textos de sua autoria. Em trs deles,

    porm, tratou explicitamente da obra oriental. Isso tornou possvel, de algum

    modo, revelar a maneira como o Ocidente se apropriou do livro e o entendeu,

    bem como manifestar a sua procura pessoal, numa espcie de aleph, em

    compreender e apreender os temas e a estrutura narrativa das Noites,

    Trata-se, em ordem cronolgica, do ensaio escrito na dcada de 1930,

    composto a partir de dois artigos publicados primeiramente na Revista Multicolor

    de los Sbados8, inserido no livro Historia de la eternidad: Los traductores de

    las 1001 noches9; do poema Metforas de Las mil y una noches10 contido no

    livro Historia de la noche, da dcada de 1970; e de uma palestra da srie de

    conferncias realizadas em 1977 que foram transcritas para o livro Siete noches,

    publicado em 1980: Las mil y una noches.11

    A partir dos referidos trs textos, que parecem concentrar a viso

    borgeana quanto construo e criao da obra rabe, este captulo objetiva

    levantar dados que possam indicar o que Borges l e destaca no Livro das mil e

    uma noites, como ele mesmo incorpora o seu esprito, pensa problemas de

    teoria literria, pe em prtica as suas estratgias narrativas, inspira-se em seus

    temas como uma espcie de suporte para a sua potica.

    Como potica, entendemos a criao e a construo de um discurso

    literrio que representa e compreende o mundo em palavras, como dois lados de

    uma mesma moeda, em relao estreita e recproca. construo, cabe mais o

    conceito de ambiente da tcnica e do modo de fabricao de uma obra o

    8 Trata-se dos textos El pucntual Mardrus e Las 1001 noches que no foram exatamente reunidos para resultar em Los traductores de las mil y una noches, uma vez que o texto final foi acrescido de algumas passagens novas para justificar o ttulo. Cf. LOUIS, Annick. Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris : LHarmattan, 1997, p.293-300. 9 Histria da eternidade (1936), em Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 1.So Paulo: Globo, 2000, p.438-457. 10 Histria da noite (1977), em Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 3. So Paulo: Globo, 1999, p.186-187. 11 Sete noites (1980), em Obras completas de Jorge Luis Borges, volume 3. So Paulo: Globo, 1999, p.256-268.

  • 17

    campo do externo. criao, o conceito de relaes internas, de intenes de

    outras ordens de convenes por trs daquilo que se v, de descoberta dos

    implcitos num caminho da ignorncia conscincia, de manifestao cultural e

    historicamente construda do pensamento do artista cuja linguagem almeja

    decifrar o mundo.

    A potica das Noites, observada por Borges, tem bastante a ver com

    temas e estratgias narrativas que ele desenvolveu em seu trabalho e que

    procuramos identificar nesse captulo. quase impossvel colocar uma moldura

    em sua obra como delimitao, visto haver sempre um interstcio pelo qual ela

    flui, escapa, se deforma e se configura diferente. Corre-se permanentemente o

    risco de se perder em seus labirintos narrativos. Mesmo assim, a partir da leitura

    dos dois ensaios e do poema propostos, seguindo o vis do Livro das mil e uma

    noites, tentaremos, mais uma possibilidade de acesso potica borgeana.

    1.1 O conceito de Oriente em Borges.

    Em Las mil y una noches, texto contido no livro Siete noches e o mais

    tardio quanto a este assunto especfico, Borges faz um tipo de balano ou sntese

    de seu conhecimento sobre as Noites. Por se tratar de outra retomada do

    assunto, expe com mais clareza o seu conceito de Oriente que, para ele,

    originou-se a partir do Livro das mil e uma noites. Diz, por exemplo, sentir

    intimamente que las connotaciones de esa palabra [Oriente]... las debemos al

    Libro de las mil y una noches12, implicando a questes de ordem filolgica,

    geogrfica, histrica, filosfica, religiosa, cultural e poltica.

    Na palavra oriente, segundo Borges, h uma beleza nica: alm de

    indicar el lugar en que sale el sol... ya en ella est, por una feliz casualidad, el

    oro ... sentimos la palabra oro, ya que cuando amanece se ve el cielo de oro.

    inegvel que a imagem paisagstica dessa natureza impressiona, que h uma

    fora pictrica de cor e luz no vocbulo e um valor eterno conferido pelo metal

    precioso. Contudo, mais que descrever o que o termo sugere ou atentar para as

    suas conotaes sinestsicas, Borges define o que seja oriente e ocidente

    12 Todas as citaes desta parte do trabalho foram retiradas de: BORGES, Jorge Luis. Las mil y una noches. In Siete noches (1980). In Jorge Luis Borges. Obras completas 3.1975-1985. 13 ed. Buenos Aires: Emec, 2005, p.254-264.

  • 18

    utilizando a estratgia argumentativa de Santo Agostinho a respeito do tempo:

    quando lhe perguntam, ignora-o.

    As palavras oriente e ocidente, no seu entendimento, no se explicam,

    apenas so possveis por aproximaes, dependendo de uma conscincia para

    compreend-las. Apesar disso, reconhece que persistem as idias de um lugar

    vasto, inmvil, magnfico, incompreensible ou, de fascinacin que siempre habr

    ejercido sobre los hombres del Occidente ou mesmo, um lugar de el lejano

    porque el espacio se mide por el tiempo.

    Para Borges, o oriente real no existe. O que h so naes, espaos onde

    pessoas nascem, crescem, vivem, convivem, revivem e sobrevivem. Para o

    autor, ningum se sente oriental assim como ningum se sente latino-americano.

    O que de fato ocorre sentir-se argentino, ou brasileiro, ou iraquiano.

    Instituram-se esteretipos acerca desses indivduos, fixou-se um conceito e,

    nada gratuitamente.

    Para Edward Said, falar do oriente passa necessariamente pelo exame do

    discurso. ele que ratifica tanto a dominao quanto a autoridade ocidentais

    sobre o oriente por elaborar a imagem que fazemos do mundo oriental. Da a

    importncia da percepo de Borges quanto ao que ele entende como oriente

    porque, como intelectual, o seu discurso tem enorme importncia e influncia na

    formao de um conceito ou de uma representao desse lugar.

    Em princpio, o oriente de Borges significa o Oriente islmico y, por

    extensin, el Oriente del norte de la India, afeioando-se a ele por meio de

    livros, ou seja, atravs de discursos. A eliminao do extremo-oriente, como

    China, Japo e outras regies orientais no imaginrio de Borges, pelo menos nas

    argumentaes do texto de Siete noches, pode ter com o que Said alega ser um

    orientalismo pelo vis francs e britnico, cuja valorizao da regio se d tanto

    pela proximidade geogrfica com a Europa quanto pela nfase na discusso da

    experincia europia com o Oriente Prximo, ou com o Isl.

    Em Siete noches, Borges deixa claro uma conscincia geopoltica para

    alm da diviso do mundo em duas partes, quando questiona, por exemplo,

    onde pode ser o ocidente e o oriente, j que um ponto de vista, inclusive o

    geogrfico, sofre a corroso do tempo. Ou: o que os gregos e romanos viam

    como ocidente, j que o norte da frica oriente. Ou: hay algo que sentimos

    como el Oriente, que yo no he sentido en Israel y que he sentido en Granada y

    en Crdoba. He sentido la presencia del Oriente, y eso no s si puede definirse.

  • 19

    Ainda outros argumentos contribuem para minar essa bipartio do

    mundo. Aponta, por exemplo, a questo de uma cultura ocidental impura en

    sentido de que solo es a medias occidental, dado duas fontes em sua formao:

    Grcia, Roma e, Israel considerado um pas oriental. Tambm, que esse largo

    dilogo entre el Oriente y el Occidente, esse dilogo no pocas veces trgico e

    ainda hoje to trgico quanto antes - foram sempre los encuentros, las guerras

    e las campaas, desde Alexandre, que conquista la Persia, que conquista la India

    e que muere finalmente en Babilonia, segn se sabe. Fue este el primer vasto

    encuentro con el Oriente, un encuentro que afect tanto a Alejandro, que dej de

    ser griego y se hizo parcialmente persa.

    Na literatura, Borges elabora um longo percurso histrico do contato no

    transcorrer de um tempo ocidental a respeito de um espao oriental. Trata-se da

    histria de Virglio quanto seda chinesa estampada com a paisagem dos

    ltimos confins do Oriente. De Plnio e sua histria natural; de Juvenal e a sua

    metfora para o oriente: ultra Auroram et Gangem, ou seja alm da aurora e do

    Ganges. De Harun al-Rachid e Carlos Magno quanto ao suposto presente de um

    elefante do primeiro ao segundo e, as razes do jogo de xadrez oriental ter a

    pea alfil (bispo) que significa elefante em rabe; de Ricardo Corao de Leo,

    em que o leo, sendo um animal do oriente, passa a fazer parte da herldica

    britnica; de Marco Plo e suas viagens registradas em livro no qual aparece

    Kubilai Khan, que reaparecer em Coleridge. E, mesmo a prpria descoberta da

    Amrica, que se deveu ao desejo e necessidade de encontrar outros caminhos

    que levassem para o Oriente.

    Neste sentido, Borges atenua a dicotomia oriente-ocidente imposta pela

    modernidade ocidental. Tal abrandamento decorre da viso de um trabalho

    literrio baseado na renovada construo e destruio do dilogo iniciado h

    sculos s margens do Mediterrneo, na lucidez consciente do instrumento

    verbal europeu com as vastas bibliotecas de volumes poliglotas na assimilao e

    no entremeio de diferenas e diversidades individuais ou nacionais de que a

    Amrica Latina feita, muito embora ele nunca tenha deixado de ser um homem

    e um escritor americano europeu, fundado na cultura ocidental, especialmente a

    anglo-saxnica e mais tardiamente, a eslava 13.

    Mesmo que o oriente de Borges seja livresco, dado a se conhecer pelas

    tradues do Livro das mil e uma noites que o fascinaram desde menino, h um

    13 MONEGAL, EMIR R. Borges :uma potica da leitura. So Paulo : perspectiva, 1980, p.47

  • 20

    oriente que ultrapassa esse mundo das letras, dos artifcios e das regras do jogo

    literrio, das estruturas e das formas narrativas das Noites. primeira vista,

    parece que a potica borgeana incorporou do universo literrio rabe apenas as

    ferramentas que o sustentam no estranho, (n)o indeterminado, (n)o

    aparentemente ilgico, [n]o estritamente literrio, enfim14. Mas, se levarmos em

    considerao apenas este aspecto, podemos estar empobrecendo o fazer potico

    do escritor argentino.

    Por isso, entendemos que o oriente de Borges envolve uma complexidade

    dada pela assimilao de uma cultura arabizante j proveniente da Pennsula

    Ibrica. Na Amrica Latina, por sua vez, ainda outros elementos vrios se

    juntaram e contriburam para a convergncia de mais combinaes, o que pode

    significar uma das razes da incluso ou da apropriao de elementos dessa

    cultura arabizante no tecido potico borgeano.

    Desse modo, as Noites para Borges podem significar de um lado a

    incorporao de un deseo de superar, por mdio del mito oriental, las normas

    estrechas impuestas por la cultura occidental como nico patrn de la realidad 15

    e, de outro, a inteno de tornar esse texto um pretexto no s como um

    discurso crtico, mas particularmente, como uma especulao filosfica, sobre o

    que h de mais humano, a linguagem, bem como uma especulao metafsica,

    para poder situar o homem diante dos mistrios do universo e de Deus.

    1.2. Alguns conceitos metafsicos orientais em Borges.

    A potica de Borges est permeada por especulaes de mbito teolgico

    e filosfico do mundo rabe que se revelam, devido sua intelectualidade e

    erudio na cultura universal, como conhecimentos mais profundos.

    No mundo rabe, o texto sagrado do Alcoro gerou trs linhas de

    pensamento para entend-lo:

    ... a teolgica (kalm) entendida a partir da f na revelao; a mstica (sfiya) isto , o sufismo, no sentido da experincia interior com Deus, abandonando a razo para fundir-se no divino; e a filosfica (falsafa)

    14 JAROUCHE, Mamede Mustaf. Borges, autor das mil e uma noites. In CULT Revista Brasileira de Literatura. So Paulo: Lemos Editorial. No. 25, Agosto de 1999, p. 67-71. 15 YOUNES, Ebtehal. Jorge Luis Borges y el patrimonio filosfico oriental. In Variaciones Borges 2/1996. Denmark: Borges Center/ Aarhus Universitet, p. 87.

  • 21

    como cincia independente que busca, a partir da razo, o entendimento dos fenmenos, o entendimento pela demonstrao lgica. 16

    A partir dessas linhas do pensamento rabe, acreditamos que Borges

    tenha feito uma apropriao particular desses conceitos para a sua leitura de

    mundo. Isto no quer dizer, no entanto, que ele tenha abraado a questo

    religiosa do Isl como dogma de f, mas que tenha havido um discernimento

    mais minucioso do mundo rabe medieval, em especial sobre a mstica e o

    esoterismo islmicos, ou seja, o sufismo.

    inegvel a percepo de Borges a respeito do pensamento filosfico no

    Isl (a falsafa), que historicamente se fortaleceu pela traduo, devido ao

    empenho por conhecimento, e reorganizou princpios filosficos gregos, em

    virtude da religio islmica. Se tal reorganizao gerou a preocupao de

    conciliar a concepo religiosa do mundo com a razo, e legitimar a concepo

    racional de um ponto de vista religioso17 para o mundo rabe, entendemos que

    esse mesmo princpio tenha sido apropriado pelas concepes borgeanas sobre

    o assunto.

    No mundo ocidental, Borges nos considera herdeiros de Plato ou de

    Aristteles18, ou seja, herdeiros de uma concepo de mundo que se dispe a ser

    idealista ou racionalista. Porm, ao amalgamar filosofia e lgica gregas a

    elementos teolgicos islmicos, a potica borgeana se enriquece com um

    material fecundo acerca dos mistrios que rondam o ser humano perante o

    Universo e Deus. Este pode ser um dos rumos ou temas que ocasionem a

    cosmoviso de Borges como labirinto.

    Plotino e Aristteles formam os dois pilares de sustentao do pensamento

    filosfico no Isl, ou seja, da falsafa. De um lado, a influncia de Aristteles, que

    se deu de maneira muito mais direta em virtude do rigor de seu pensamento

    filosfico (e que foi reconduzido e interpretado por Averris) por outro, as idias

    de Plotino (que nem sempre foram veiculadas como sendo dele). A principal

    16 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os rabes; uma herana esquecida. So Paulo: Palas Athena, 2002, p. 45 e 46. Grifos nossos. 17 ABED AL-JABRI, Mohammed. Introduo crtica da razo rabe/ Mohammed Abed al-Jabri; traduo de Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Editora UNESP, 1999, p.76. (biblioteca bsica). 18 Observa Coleridge que todos los hombres nacen aristotlicos o platnicos. Los ltimos sienten que las clases, las rdenes y los gneros son realidades; los primeros, que son generalizaciones; para stos, el lenguaje no es otra cosa que un aproximativo juego de smbolos; para aquellos es el mapa del universo. El platnico sabe que el universo es de algn modo un cosmos, un orden; ese orden, para el aristotlico, puede ser un error o una ficcin de nuestro conocimiento parcial. A travs de las latitudes y de las pocas, los dos antagonistas inmortales cambian de dialecto y de nombre: uno es Parmnides, Platn, Spinoza, Kant, Francis Bradley; el otro, Herclito, Aristteles, Locke, Hume, William James. BORGES, Jorge Lus. El ruiseor de Keats. In Otras inquisiciones (1952). In Jorge Luis Borges. Obras completas 2:1952-1972. 17 ed. Buenos Aires: Emec, 2007, p.117.

  • 22

    tese plotiniana a da emanao de Deus19, que se tornou a pedra angular da

    cosmologia de Al-Farabi e Ibn Sina, e cuja influncia se estendeu s tendncias

    esotricas e gnsticas que se espalharam pelo mundo islmico.20

    Entre aristotlico e neoplatnico, o pensamento mstico rabe - a sfiya,

    isto , o sufismo, parece se constituir numa das foras propulsoras, como

    ferramenta muito interessante para a criao e a construo literrias de

    Borges.

    In his fiction, he makes direct references to aspects of Islamic mysticism, as well as demonstrates a familiarity with Islamic esoteric writing that goes beyond superficial, mundane information. That Borges should be familiar with Islam is in no way surprising. He is an extremely erudite writer steeped in metaphysical tradition, but also in the Spanish heritage. That heritage itself reflects eight centuries of close interaction with Arabs (the Moors) a link between the author and Sufism.21

    1.2.1 O sufismo

    Focada num conhecimento em particular o conhecimento de Deus - a

    mstica sempre fez parte da cultura rabe, mesmo antes do advento do Isl. O

    sufismo, oriundo de correntes msticas do cristianismo como tambm de

    elementos do hindusmo e do budismo, no diz respeito a uma especulao

    filosfica ou racional que requeira demonstrao pela lgica, como falsafa, nem

    de especulao teolgica, como kalam, a respeito de Deus mas, especialmente,

    19 Para Plotino, os graus de conhecimento so quatro - sensibilidade, razo, intelecto, xtase - assim como quatro so os graus do ser: matria, alma, nos , Uno. O Uno, Deus - segundo Plotino - a raiz de todo ser e de todo conhecer, tudo depende dEle. No entanto, Ele transcende toda essncia e todo o conhecimento, de sorte que inteiramente indeterminado e inefvel, e em torno dEle pode-se dizer apenas o que no - teologia negativa. O universo deriva de Deus, no por criao consciente e livre, mas por emanao inconsciente e necessria, que procede de Deus degradando-se at matria. Deus certamente transcende o mundo, mas o mundo da sua mesma natureza. A primeira emanao representada pelo nos, inteligncia subsistente, intuitiva e imutvel, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanao do Uno a alma; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as idias - que esto no nos (um dos graus do Ser) - e enforma a matria, segundo o modelo delas. A alma universal, a alma do mundo, por sua vez se multiplica e especifica nas vrias almas individuais, que esto em escala decrescente do cu at os homens. Tambm Plotino sustenta que as almas humanas caram de uma vida pr-mundana para o crcere corpreo; tambm ensina a metempsicose e a converso. Com a alma termina o mundo inteligvel, divino, e comea o mundo sensvel, material. A matria plotiniana, pois, no apenas potencialidade, indeterminao, mas tambm mal, irracionalidade. Disponvel em http://www.mundodosfilosofos.com.br/neoplatonismo.htm. Acesso em 17 dez 2007. 20 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os rabes; uma herana esquecida. So Paulo: Palas Athena, 2002, p.154. 21 Em sua fico, faz referncias diretas a aspectos do misticismo islmico, tanto quanto demonstra uma familiaridade com a escrita esotrica islmica que vai alm do superficial, da informao mundana. Que Borges seria familiar com o Isl no uma surpresa. Ele um escritor extremamente erudito apoiado em tradio metafsica, bem como na herana espanhola. Tal herana em si reflete oito sculos de interao muito prxima com rabes (os mouros) ... uma ligao entre o autor e o sufismo. Traduo nossa. ELIA, Nada. Islamic esoteric concepts as Borges strategies. . In Variaciones Borges 5/1998. Denmark: Borges Center/ Aarhus Universitet., p. 129-130.

  • 23

    refere-se a uma prtica como experincia interna com a divindade que se reflete

    no modo de viver e de se comportar do homem sufi e no convite experincia

    do xtase na unio com Deus.22

    Para o sufismo, Deus se manifesta em todas as coisas do universo porque

    todos os fenmenos emanam dEle, como concepo de um ser Uno e Eterno,

    idias advindas de Plotino: a unidade... que envolve uma multiplicidade, que,

    por sua vez, desenvolve o Uno maneira de uma srie.23 El problema filosfico

    central del pensamiento de Borges es el de lo uno y lo mltiple24, temas

    fundamentais na mstica islmica. Nesses conceitos, do Uno e do Mltiplo, est

    posta a questo de Deus, e a partir deles, decorrem outros temas sufistas que os

    amplificam e tm eco em Borges.

    Trata-se de temas como o do espelho, servindo como reflexo e

    multiplicao do mesmo; do zahir e do batin, como o aparente e o oculto; do

    sonho, como vida e iluso e o despertar dele, como morte e realidade; do

    labirinto, como multiplicidade de caminhos e eternamente se fazendo; do Mesmo

    e o Diferente/ Eu e o Outro, como limitao humana na compreenso do

    universo.

    No ensaio El Enigma de Edward Fitzgerald25, por exemplo, Borges trabalha

    esses conceitos, do uno e do mltiplo, que se referendam na fonte rabe, como

    apoio e como material argumentativo do texto.

    la hertica y mstica Enciclopedia de los Hermanos de la Pureza, donde se razona que el universo es una emanacin de la Unidad, y regresar a la Unidad Lo dicen proslito de Alfarabi, que entendi que las formas universales no existen fuera de las cosas, y de Avicena, que ense que el mundo es eterno.26

    A partir das idias do mstico persa Farid-ud-din Attar (sc. XII) em sua

    22 ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa: a filosofia entre os rabes; uma herana esquecida. So Paulo: Palas Athena, 2002, p. 56. 23 DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco / Gilles Deleuze. Traduo Luiz B.L.Orlandi.- Campinas, SP: Papirus, 1991. P.46 24 YOUNES, Ebtehal. Jorge Luis Borges y el patrimonio filosfico oriental. In Variaciones Borges 2/1996. Denmark: Borges Center/ Aarhus Universitet., p. 88. 25 BORGES, Jorge Lus. El enigma de Edward Fitzgerald. In Otras inquisiciones (1952). In Jorge Luis Borges. Obras completas 2:1952-1972. 17 ed. Buenos Aires: Emec, 2007, p. 80. 26 Id, 2007, p.80.

  • 24

    obra Colquio dos pssaros (citado em El acercamiento a Almotsim27), Borges

    trabalha o conceito de multiplicidade, que no significa pluralidade, mas diz

    respeito a una serie de diversas emanaciones y reflejos de una verdade nica,

    implcita y oculta, imperceptible e inconcebible28, inerentes essncia divina,

    segundo o sufismo.

    Em El enigma de Edward Fitzgerald, as pessoas dos dois poetas, o persa

    Umar ben Ibrahim e o ingls Edward Fitzgerald, nascidos em sculos e pases

    diferentes, desconhecidos entre si pela distncia no tempo e no espao, so

    tomados como espelhos dada a possibilidade de refletirem o mesmo, mas de

    modo variado. Esta variao se refere aos versos originais escritos em persa, do

    livro Rubayat, pelo primeiro, e a sua traduo e transliterao para o ingls, pelo

    segundo, alm do ponto de vista que provoca a variao, a multiplicidade, a

    dobra.

    Un hombre, Umar ben Ibrahim, nace en Persia, en el siglo XI de la era cristiana (aquel siglo fue para l el quinto de la Hgira), y aprende el Alcorn y las tradiciones Siete siglos transcurren, con sus luces y agonas y mutaciones, y en Inglaterra nace un hombre, Fitzgerald, menos intelectual que Umar, pero acaso ms sensible y ms triste. 29

    Graas traduo, que Borges entende como recriao, sendo quase uma

    opinio e uma inveno, os dois poetas, como espelhos diversos e de formas

    variadas, refletem a mesma idia que se mostra diferente, porque dependeu de

    um ponto de vista, daquilo que o tradutor-autor, Fitzgerald, alcanou ou pde

    ver nos versos persas e que repercute infinitamente em outros poetas, no tempo

    e no espao, como outros reflexos do mesmo.

    En las Rubaiyat se lee que la historia universal es un espectculo que Dios concibe, representa y contempla; esta especulacin (cuyo nombre tcnico es pantesmo) nos dejara pensar que el ingls pudo recrear al persa, porque ambos eran, esencialmente, Dios o caras momentneas de Dios. Las nubes configuran, a veces, formas de montaas o leones eran muy

    27 En el decurso de esta noticia, me he referido al Mantiq al-Tayr (Coloquio de los pjaros) del mstico persa Farid al-Din Ab Talib Muhmmad ben Ibrahim Attar, a quien mataron los soldados de Tule, hijo de Zinjis Jan, cuando Nishpur fue espoliada. Quiz no huelgue resumir el poema. (Tambin Plotino Enadas, V, 8,4 declara una extensin del princpio de identidad: Todo, en el cielo inteligible, est en todas partes. Cualquier cosa es todas las cosas. El sol es todas las estrellas, y cada estrella es todas las estrellas y el sol). El Mantis al-Tayr ha sido vertido al francs por Garcin de Tassy; al ingls por Edward FitzGerald; para esta nota he consultado el dcimo tomo de Las 1001 Noches de Burton y la monografa The Persian Mystics: Attar (1932) de Margaret Simit. Citao em nota de rodap, p. 418. BORGES, Jorge Lus. Dos notas. El acercamiento a Almotsim. In Histria de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 414-418. 28 YOUNES, Ebtehal. Jorge Luis Borges y el patrimonio filosfico oriental. In Variaciones Borges 2/1996. Denmark : Borges Center/ Aarhus Universitet., p. 95. 29 BORGES, Jorge Lus. El enigma de Edward Fitzgerald. In Otras inquisiciones (1952). In Jorge Luis Borges. Obras completas 2:1952-1972. 17 ed. Buenos Aires: Emec, 2007, p. 80-81.

  • 25

    distintos los dos y acaso en vida no hubieran trabado amistad y la muerte y las vicisitudes y el tiempo sirvieron para que uno supiera del otro y fueron un solo poeta. 30

    Da conjuno fortuita, ou talvez nem tanto, entre os dois poetas, emerge

    um outro totalmente diferente, um terceiro poeta, conhecido no Ocidente como

    Omar Khayyam. A conversa entre si dos livros devido s tradues, aos estilos e

    s opinies permite o dilogo entre os mais variados poetas de pocas e lugares

    diferentes, de lnguas e de culturas diversas, que so verdadeiros espelhos da

    mesma idia. O que eles tm a dizer e, apesar de como o dizem, to prximo,

    que mais parece terem eles estado juntos, na mesma mesa daquela taverna, ou

    daquele bar, ou daquela biblioteca refletindo o mesmo, mas de outro jeito.

    Na viso sufi de Al-Ghazali, o espelho, seja como o objeto em si ou como

    recurso para refletir uma imagem, permite interpretar a existncia de um

    mundo inferior como reflexo do superior, onde Deus, neste espelho contempla a

    sua prpria imagem. Em havendo espelho, h imagem dupla: a dualidade do

    aparente (Zahir) e do oculto (Batin), do implcito e do explcito, emanados da

    divindade e que se manifestam no universo, no ser humano e na interpretao

    de ambos. Para llegar al sentido oculto Batin hay que interpretar lo explcito

    Zahir como se interpretan las apariencias de un sueo, a fin de llegar a su

    sentido implcito.31

    Ao produzir imagens ilimitadas, o espelho tanto origina quanto inclui todas

    as possveis imagens, concretas ou abstratas, provocando

    la idea de la esfericidad del universo, de la esfera como metfora de las metforas, presente tanto en Ibn Arabi como en Borges: el universo es una esfera cuyo centro es la esencia divina y cuya circunferencia es ilimitada y absoluta porque abarca todas las cosas, antiguas e nuevas, al mismo tiempo Segn esta visin circular, el mundo para Ibn Arabi no es un proyecto cumplido, sino una operacin de creacin infinita, continua y perpetua.32

    A criao, sempre inacabada e contnua, emanada da essncia divina, s

    possvel de ser abarcada pelo homem atravs do mundo do imaginrio e, que em

    Borges se revela como o mundo do fantstico. O caminho do imaginrio torna-

    se o intermediario y vnculo entre Dios y el mundo, tanto en el plano de la

    30 Ibid, p. 82-83. 31 YOUNES, Ebtehal. Jorge Luis Borges y el patrimonio filosfico oriental. In Variaciones Borges 2/1996. Denmark: Borges Center/ Aarhus Universitet., p.92. 32 Ibid, p. 95.

  • 26

    existencia como en el de la interpretacin, puesto que el mundo inferior no es

    sino meras imgenes.33

    Como imagens, referimo-nos ao reflexo, ao aparente, ou seja, ao aspecto

    Zahir. Nesse mundo inferior, em que somos apenas uma cpia e uma criao do

    sonho divino, nossa viso dele nunca ntida, parece sempre recoberta de vus,

    necessitando de interpretao e decifrao para atingir o seu sentido oculto, ou

    seja, o seu aspecto Batin. No pensamento sufi, s a imaginao tem fora de

    percepo para superar a dualidade Zahir / Batin - o aparente e o oculto. um

    processo que comea pelo mundo de si mesmo, como microcosmo, para chegar

    ao sentido do universo, como macrocosmo. Nessa viagem circular, como eterno

    retorno, h a volta origem nica e eterna.

    Se o mundo da realidade aparente sonho, despertar deste sonho

    significa atingir a verdade, obter a revelao da prpria identidade, conseguir a

    prpria imortalidade, o que s se alcana na morte. Por isso a potncia do dito

    de Maom: La gente est durmiendo. Cuando mueren se despiertan 34. Na iluso

    do espao-tempo entre a vida e a morte, os conceitos de predestinao e de

    livre-arbtrio se colocam como caminhos humanos que se bifurcam a todo

    instante, prevalecendo ou no a vontade divina. O universo, como obra divina e

    eternamente se fazendo, um caminho de labirinto, tema freqente em Borges.

    Desvendar a mente de Deus e/ou tentar solucionar os mistrios ocultos

    que encerram a criao do Universo tornam-se o maior e o mais atrevido intento

    humano. Entretanto, a mente humana, sendo limitada, consegue ver apenas

    uma pequena dimenso da verdade divina, pois no concebe nem percebe ou

    racionaliza uma verdade ilimitada e absoluta. O que consegue enxergar s a

    partir de si mesma. O microcosmo humano para unir-se a Deus, perder-se nEle

    e at chegar a ser Ele precisa percorrer um caminho e, no caso mstico sufi, se

    acaso repetir todos os nomes de Deus, concepo escolhida por Borges em seu

    conto El Zahir.

    Un comentador del Gulshan i Raz dice que quien ha visto al Zahir pronto ver la Rosa y alega un verso interpolado en el Asrar Nama (Libro de cosas que se ignoran) de Attar: el Zahir es la sombra de la Rosa y la rasgadura Del Velo.

    Vinculo ese dictamen a esta noticia: Para perderse en Dios, los sufies repiten su propio nombre o los noventa y nueve nombre divinos hasta que stos ya nada quieren decir. Yo anhelo recorrer esa senda. Quiz yo acabe

    33 Ibid, p. 96. 34 Ibid, p. 93.

  • 27

    por gastar el Zahir a fuerza de pensarlo y de repensarlo; quiz detrs de la moneda est Dios.35

    Por haver uma multiplicidade da verdade nica, que se manifesta em tudo

    e em todos, possvel identificar o universo como sendo um texto. Todas as

    coisas existentes so infinitas palavras, letras e nmeros divinos que compem

    esse Texto Divino, como verdade nica, expresso em um idioma e registrado

    em um Livro. Para o mundo rabe-islmico, o idioma o rabe, e o livro por

    excelncia o Alcoro. A diversidade de seu entendimento se deve variedade

    dos leitores e a toda a gama de circunstncias que os envolve, o que assegura

    ao Livro um movimento dialtico de recriao, de descoberta, de eternidade e de

    imortalidade do Texto tal qual ocorre no universo: sempre incompleto e

    inacabado.

    A la nocin de un Dios que habla con los hombres para ordenarles algo o prohibirles algo, se superpone la del Libro Absoluto, la de una Escritura Sagrada. Para los musulmanes, el Alcorn (tambin llamado El Libro, Al Kitab), no es una mera obra de Dios, como las almas de los hombres o el universo; es uno de los atributos de Dios como Su eternidad o Su ira. En el captulo XIII, leemos que el texto original, La Madre del Libro, est depositado en el Cielo. Muhammad al Ghazali, el Algazel de los escolsticos, declar: El Alcorn se copia en un libro, se pronuncia con la lengua, se recuerda en el corazn y, sen embargo sigue perdurando en el centro de Dios y no lo altera su pasaje por las hoja escritas y por los entendimientos humanos.36

    Para Borges, ento, todos os livros so um nico livro, independentemente

    das mltiplas tradies existentes e passveis de leitura de um texto, quer

    ocidentais ou orientais, como reflexos do Livro Absoluto, eternamente

    inconcluso, sem um texto definitivo. Cabe a cada gerao, infindavelmente, ler e

    reescrever este Livro at o infinito para assegurar a prpria imortalidade,

    garantir o sentido da vida humana: da el concepto del libro como fin, no como

    instrumento de un fin. 37

    Nessa linha de raciocnio, sobre a condio humana em torno do tema do

    Uno e do Mltiplo, Borges desenvolve o conceito de que um homem todos os

    homens. A histria diz respeito a um interminvel e perplexo sonho da

    humanidade cujas formas se repetem continuamente, mas de modo diferente,

    35 BORGES, Jorge Lus. El zahir. In El aleph(1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 594-595. 36 BORGES, Jorge Lus. Del culto de los libros. In Otras inquisiciones (1952). In Jorge Luis Borges. Obras completas 2:1952-1972. 17 ed. Buenos Aires: Emec, 2007, p. 112. 37 Id, p. 112.

  • 28

    como em Los Telogos 38 - um mesmo destino o nico possvel abarca todos

    os homens.

    O mesmo se d com a questo do Tempo, em que todos os dias vividos

    podem se reduzir a um nico dia ou a uma nica noite como a noite da

    Revelao (Qadr), em que todos os momentos de uma vida inteira se reduzem a

    um nico instante, o mais fundamental de todos, como em La otra muerte39.

    H, ento, uma diferena especulada entre tempo divino, que

    simultneo, e tempo humano, que sucessivo. Esses conceitos apiam-se em

    versculos do Alcoro: 1) Um dia junto a teu Senhor equivale a mil anos dos que

    vs contais (22, 47); 2) Dispe a Ordem desde o Cu at a terra. Logo

    remonta a Ordem at Ele em um dia, cuja medida so mil anos dos que contais.

    (32,5). Em El milagro secreto40, explora-se tal idia a partir mesmo da epgrafe,

    que registra o seguinte versculo: Y Dios lo hizo morir durante cien aos y luego

    lo anim y le dijo: Cunto tiempo has estado aqu? - Un da o parte de un da,

    respondi. (Alcorn, II, 261)41

    O patrimnio rabe-islmico, em vista do que expusemos, inegavelmente

    contribui de modo marcante na combinatria de grande complexidade da potica

    de Borges, que junta trabalhos desse Outro, escolhe o que lhe convm para

    fortalecer a dimenso do fantstico, articula encaixes das diferenas no tempo e

    no espao, promove uma incansvel repetio de textos eruditos, longnquos

    ou no, e de seus prprios textos como reescritura maneira de uma escrita

    em arabesco cuja repetio d a iluso de ser diferente devido variao pela

    multiplicao.

    O seu processo criativo diz respeito relao entre mundos nada

    dicotmicos que, na superfcie, como num tapete, so aparentemente diferentes,

    mas, na profundidade tm algo muito semelhante quanto s preocupaes

    humanas eternas, podendo por isso se entrelaar, se abraar, se enriquecer, se

    assimilar como estranhos e se manter estranhos.

    Borges who does it [brings together the Eastern and Western elements in order] to fuse and harmonize them. blends the Buenos Aires setting with English ones, medieval Oriental concerns with those of Spanish Renaissance, and the Argentine twentieth-century Borges with the

    38 BORGES, Jorge Lus. Los telogos. In El aleph (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 550-556. 39 BORGES, Jorge Lus. La otra muerte. In El Aleph (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 571-575. 40 BORGES, Jorge Lus. El milagro secreto. In Ficciones (1944). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 508-513. 41 Ibid, p. 508.

  • 29

    twelfth-century Andalusian Averros because he sees all these manifestations as variations on a single axis or metaphors of a central core.42

    O Oriente de Borges tem a ver, portanto, com o mundo que posto

    margem pelo Ocidente, ao qual ele nos introduz pelo Livro das mil e uma noites,

    tambm uma obra marginalizada no Oriente. Borges, sendo de um pas e de um

    continente marginalizados pelo mundo ocidental, hace del margen uma

    esttica43. O fio entrelaado de tais culturas, oriental e ocidental, possibilita,

    portanto, deslocar-se por outras culturas, fazer uso de palavras e expresses

    estrangeiras, desestabilizar cnones e tradies ocidentais, mostrar uma obra

    sempre no limiar de uma tenso ou de um conflito, quer nos temas quer na

    estrutura narrativa, e que nem sempre a palavra capaz de expressar.

    1.3. O tema do Infinito: a questo do nome As mil e uma noites.

    O nome da obra - Livro das mil e uma noites - considerado por Borges

    um dos mais belos de toda a literatura e em si consubstancia duas idias que

    aliceram sua potica: a de ser uma experincia com o Tempo e a de significar

    Infinito: el infinito tiempo de Las mil y una noches.44

    Os nmeros desempenham papel fundamental nessa idia de vastido,

    pois sugerem as inumerveis ou incontveis noites. Dizer mil e uma noites

    acrescentar mais uma ao infinito e tornar o prprio livro infinito, que

    virtualmente o .

    Vrias so as explicaes dadas pelos tradutores45 sobre a incorporao do

    legendrio nmero. Littmann sugere a influncia turca da expresso bin bir que

    literalmente significa mil e um, e conota muitos. Para Lane, h el mgico temor

    de las cifras pares entre os rabes, que poderiam trazer mau agouro. Galland, de

    sada eliminou a repetio do original e traduziu, desde 1704, como Mil e Uma

    42 Borges quem o faz [junta elementos do Ocidente e do Oriente de modo] a fundi-los e harmoniz-los... mesclando os cenrios de Buenos Aires com os ingleses, coisas que dizem respeito ao mundo oriental medieval com os da renascena espanhola, e o sculo XX argentino de Borges com o sculo XII andaluz de Averris, porque ele v todas estas manifestaes como variaes em um nico eixo ou como metforas de um ncleo central. Traduo nossa. GHAZOUL, Ferial J. Nocturnal poetics. The Arabian Nights in comparative context. Cairo: The American University in Cairo Press, 1996, p. 126. 43 SARLO, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995, p.16. 44 BORGES, Jorge Lus. Las mil y una noches . In Siete noches (1980). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 3. 13 edio. Buenos Aires: Emec, 2005, p.264. 45 BORGES, Jorge Lus. Los traductores de las 1001 noches. In Historia de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 406.

  • 30

    Noites, nome conhecido e reconhecido pelo mundo ocidental, exceto na

    Inglaterra que prefere Noites rabes/ The Arabian nights.

    O acrscimo da palavra livro ao nome da obra se deve a W.H.Macnagthen,

    em 1839, que escrupulosamente traduziu Quitab Alif Laila Ua Laila por Livro das

    mil e uma noites. Payne deu-lhe o nome de Book of the thousand nights and

    one night; Burton, desde 1885, Book of the thousand nights and a night e,

    Mardrus, em 1899, Livre des mille nuits et une nuit.

    Historicamente, no livro As pradarias de ouro e minas de pedras preciosas,

    de al-Masudi, fala-se da coletnea de histrias intitulada Hezar Afsane, que em

    persa significa, literalmente, Mil aventuras, mas que o povo chama de Mil noites.

    Em outro documento, datado do sculo X da era crist, o Fihrist, existe a fico

    de um rei que desposa uma virgem e manda decapit-la na manh seguinte,

    bem como o surgimento da personagem Cherazade para salvar todas as

    mulheres do reino.

    Para Borges, em Siete noches, o surgimento do livro possui algo de

    misterioso e quase mgico porque foram mos de milhares de autores annimos

    que, sem se darem conta, estavam construindo uma obra de arte. A difuso do

    livro dependeu dos contadores de histrias, homens que narravam histrias

    noite, a quem o orientalista Hammer Purgstall nomeia de confabulatores

    nocturni. Que histrias contavam? Borges supe que fossem fbulas, cujo

    encanto estava em imaginar os animais agindo como humanos em suas

    comdias e tragdias, sem a questo da moral que foi agregada mais tarde. De

    onde procediam tais contos? A ndia deve ter formado o ncleo central. Na Prsia

    foram enriquecidos, modificados e arabizados. Finalmente no Egito, sculo XV da

    era crist, foram compilados pela primeira vez: Hazar Afsana, Os mil contos.46

    Mas, o que mais atrai e fascina Borges a idia de infinito das Noites. Los

    rabes dicen que nadie puede leer Las mil y una noches hasta el fin. No por

    razones de tdio: se siente que el libro es infinito.47 Entretanto, no por

    sentirem a infinitude do livro que os rabes dizem que ningum pode ler as

    Noites at o fim (segundo informa Mahmoud Tarchouna, o que a lenda reza, com

    efeito, que sobrevir ao leitor uma grande desgraa no ano em que terminar a

    46 Observemos que Borges escreve Hezar (em Los traductores) e Hazar (em Siete noches). 47 BORGES, Jorge Lus. Las mil y una noches . In Siete noches (1980). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 3. Buenos Aires: Emec, 2005, p. 260.

  • 31

    leitura: o raciocnio mgico, e no metafsico).48 Quanto ao contar/ escrever,

    hay una ilusin de la ptica espiritual que inclina a atribuir al narrador la

    longevidad de las historias que cuenta. 49

    Ao Livro das mil e uma noites fica sempre associada a idia de cifras

    gigantescas e incontveis, o que lhe assegura o conceito de infinito. Tudo o que

    se refere a ele tem conotao hiperblica: a quantidade imensa de volumes que

    formam o livro, a enormidade de histrias contadas por Cherazade, o incontvel

    nmero de noites, as diversas verses traduzidas em muitas lnguas como

    caminhos bifurcados para diferentes destinos e desfechos, as geraes de

    homens que participaram da confeco da obra.

    Quanto palavra noite, trata-se de compreend-la no contexto do real e

    do fictcio. No real, diz respeito marcao do tempo rabe que flui, ao conceito

    de yawm como o dia que comea noitinha quando aparece a lua, referindo-se

    ao calendrio regido pela lua.

    ... a partir do Isl, em princpio, s se admite o calendrio puramente lunar [...] A vida muulmana se acha como que situada sob o signo da lua, mais especificamente sob o signo do Crescente em seu aparecimento[...] A lua cheia evoca a perfeio [...] O instante primordial sempre o levantar da lua, na hora do crepsculo.50

    No fictcio, conota o mundo dos mistrios que propcio aos sonhos ou aos

    pesadelos, entre luz e sombra; ao irreal como realidade privilegiada; ao fabuloso,

    ao mgico e ao fantstico; ao poder de enxergar para alm do que os olhos

    vem e a alma acredita. Trata-se do infinito tempo da eternidade da imaginao

    transcendental,

    Mas o mistrio, o infinito leva a uma imerso na noite. , por isso, que as histrias so contadas noite; por isso que Muhammad recomenda que o Alcoro seja lido noite; e por isso que a revelao obtida na noite: a noite da Revelao. por isso que, no calendrio muulmano, h a noite do Qaddar (predestinao), ou seja a noite do Destino. O Destino nosso uma realidade noturna. O Ramadan, com sua lua de Ramadan, evidentemente, a noite. A viagem que faz Muhammad de Makkah a Jerusalm a Viagem Noturna. E, ali adiante, na maonaria, no

    48 JAROUCHE, Mamede M. Borges, autor das mil e uma noites. In CULT- Revista Brasileira de Literatura. Ano III, n.25. So Paulo: Lemos Editorial. Agosto, 1999, p. 70. 49 CANSINOS-ASSENS, Raphael. Estudio literario-crtico de Las mil y una noches. In Libro de Las mil y una noches. tomo I. 5 ed. Mxico: Aguilar, 1993, p.32. 50 GARDET, Louis. Concepes muulmanas sobre o tempo e a histria. In As culturas e o tempo. Estudos reunidos pela Unesco. Paul Ricoeur [e outros]. Trad. de Gentil Titton, Orlando dos Reis e Ephraim F. Alves. Introduo de Paul Ricoeur. Petrpolis: Vozes; So Paulo: Edusp., 1975, p. 234-235.

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    carbonarismo, os olhos vendados, a persistncia da noite. A noite das cavernas, a noite das grutas iniciticas... .51

    1.4. A traduo e os tradutores do Livro das mil e uma noites.

    ...las traducciones no pueden ser un sucedneo del texto original. La traduccin puede ser, en todo caso, un medio y un estmulo para acercar al lector al original 52

    O ensaio Los traductores de las 1001 noches53, como parte de um mao de

    textos sobre um mesmo assunto, serve de pretexto para debater os conceitos de

    Borges sobre a traduo, tema que j vinha ocorrendo nos dois textos que o

    antecederam, Las dos maneras de traducir54 e Las versiones homricas 55.

    Nele, revela-se um mtodo em Borges: ao tratar de uma questo terica,

    como a da traduo, o autor utiliza a forma de narrativa partindo de um

    exemplo concreto de uma obra traduzida. Essa estratgia de escrita talvez

    explique os motivos pelos quais seus conceitos sobre o tema no chegaram a ter

    um estatuto de teoria e nem repercutiram de modo mais enftico na teoria

    literria contempornea, acabando por se tornar apenas um ponto de vista dele.

    Em Las dos maneras de traducir, Borges questiona as duas tendncias

    universais desta tarefa, e que so retomadas tanto em Las versiones homricas

    quanto em Los traductores. Trata-se da querela estabelecida entre Newman e

    Arnold (1861-1862)56. O primeiro, defendia el modo literal, la retencin de todas

    las singularidades verbales da lngua original para causar prazer e surpresa do

    inusitado. O segundo, la severa eliminacin de los detalles que distraem o

    51 HADDAD, Jamil Almansur. Interpretaes das Mil e uma noites. Palestra de 1986. Disponvel em http://www.hottopos.com/collat6/jamyl.htm Acesso em 02 nov 2007. 52 BORGES, Jorge Lus. La divina comedia . In Siete noches (1980). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 3. 13 edio. Buenos Aires: Emec, 2005, p.229. 53 BORGES, Jorge Lus. Los traductores de las 1001 noches. In Historia de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas 1:1923-1949. 2 ed., 14 reimpresin. Buenos Aires: Emec, 2002, p. 397-413. 54 Um dos primeiros textos crticos de Borges de 1926 a respeito da traduo e no includo em seus livros de ensaios da dcada de 20 mas que antecipa praticamente toda a sua idia sobre este tema da traduo. Cf. LOUIS, Annick. Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris: LHarmattan, 1997. 55 Ensaio contido em Discusin, de 1932. In Jorge Luis Borges. Obras completas. volume 1. Buenos Aires: Emec, 2002, p.239-243. 56 Trata-se da discusso entre Matthew Arnold e John Henry Newman devido publicao da traduo de Homero por Newman. Arnold critica duramente tal verso em trs conferncias realizadas em Oxford e que se tornaram um livro, On Translating Homer: Three Lectures Given at Oxford, 1861. Houve resposta de Newman e Arnold realizou a 4 e ltima conferncia sobre o assunto, que tambm se tornou livro no ano seguinte, 1862: On translating Homer:last words: a lecture given at Oxford. Traduo nossa. Cf. LOUIS, Annick. Jorge Luis Borges: oeuvre et manoeuvres. Paris: LHarmattan. 1997, p.319/320.

  • 33

    detienen57, propondo uma infidelidad criadora na traduo, isto , livre da rigidez

    literal.

    Como observa Pastormerlo58, mais que uma maneira de traduzir, Borges

    se pergunta o que h por trs destas formas, implicando bem provavelmente

    uma ideologia na maneira de conceber literatura: uma mentalidade clssica e

    uma mentalidade romntica.

    La oposicin entre estas dos ideologas literarias es una constante en la crtica borgiana. A la ideologa clsica de la literatura le importan menos los escritores que los textos; para esta concepcin, que desdea los localismos, las rarezas, los nfasis personales, el traductor no est obligado a retener todas las irregularidades del texto original, ya que estas irregularidades (caractersticas, irreemplazables, preciosas, para una ideologa romntica) importan poco o nada desde la perspectiva impersonal de una ideologa clsica. Para esta ideologa, la literatura es annima y es de todos, los textos originales son borradores que admiten siempre una correccin, y los traductores son quienes tienen la oportunidad de llevarla a cabo sin rendir homenaje a las manas o a las distracciones del escritor anterior.

    Para la ideologa romntica, en cambio, la individualidad de los autores importa ms que los textos, y el traductor es un mal necesario que se interpone entre el tesoro del texto original y la ignorancia del lector. "Los romnticos", escribe Borges, "no solicitan jams la obra de arte, solicitan el hombre. Y el hombre (ya se sabe) no es intemporal ni arquetpico, es Diego Fulano, no Juan Mengano, es poseedor de un clima, de un cuerpo, de una ascendencia, de un hacer algo, de un no hacer nada, de un presente, de un pasado, de un porvenir y hasta de una muerte que es suya. Cuidado con torcerle una sola palabra de las que dej escritas!". Los romnticos, no es necesario decirlo, somos nosotros; desde hace unos dos siglos, dira Borges, nadie se declara romntico porque no hay quien sea otra cosa.59

    Em Las versiones homricas, embora desconhecendo a lngua grega,

    Borges constata que no interior de uma mesma lngua, as verses de uma obra

    revelam-se como proliferao dela mesma. So variaes possveis de um nico

    texto, como se pudesse haver um jogo entre o texto original e cada verso ou,

    entre as prprias verses.

    Em Los traductores, ainda que tambm desconhecesse a lngua rabe,

    Borges explora o problema da traduo no apenas como uma relao [com a

    literatura na qual o texto est sendo traduzido], j intrincadamente complexa, de

    57 BORGES, Jorge Lus. Las versiones homricas. In Discusin (1932). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 1. Buenos Aires: Emec, 2002, p.241. 58 PASTORMERLO, Sergio. "Borges y la traduccin" Borges Studies Online. On line. J. L. Borges Center for Studies & Documentation. Internet: Disponvel em http://www.uiowa.edu/borges/ bsol/pastorm1.shtml. Acesso em 25 set 2006. 59 Id., Acesso em 25 set 2006.

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    uma dada verso com o original [...], mas como impossibilidade de se ignorar a

    necessidade de diferir das tradues j existentes desse mesmo original60.

    O espao da traduo, portanto, na concepo de Borges, no o lugar de

    reencontro entre o texto estrangeiro e o texto traduzido, mas o lugar onde o

    tradutor pode ser considerado um escritor, por se inscrever no texto pela sua

    lngua, pela sua cultura, na sua poca e devido ao seu carter particular. uma

    leitura do texto que est sendo traduzida ou concebida, sendo quase impossvel

    uma traduo autntica. Por isso, a traduo pode ser considerada um campo de

    enfrentamento entre culturas, entre concepes literrias, entre tempos

    historicamente demarcados.

    A traduo acaba sendo, ento, o terreno em que uma obra apropriada

    por outra literatura e, no caso do Livro das mil e uma noites, vai alm porque se

    trata de sua incorporao ao Ocidente. O texto Los traductores de las 1001

    noches tornou-se o registro da histria desta incorporao e o campo de luta em

    que ela se deu.

    1.4.1. Os tradutores do Livro das mil e uma noites.

    A estratgia de estabelecer uma srie de comparaes entre os diversos

    tradutores das Noites em diferentes lnguas, Galland, Lane, Burton, Cansinos

    Assens, W.H.Macnaghten (publicao de Calcut, 1839), John Payne,

    J.C.Mardrus, Littmann fortaleceram as idias bsicas de Borges sobre traduo:

    a do tradutor-escritor inscrever-se no texto, e a conotao de qualidade

    negativa ao haver uma traduo fiel e literal. Por isso Los traductores contm a

    idia de que o mais difcil e o mais importante numa traduo, a traduo do

    esprito do texto.

    Ao explorar a questo do gosto esttico do tradutor, o texto fica composto

    por trs partes: El capitn Burton; El doctor Mardrus e Enno Littmann. Desde o

    incio, o ensaio centra-se na questo das relaes que as diversas verses do

    Livro das mil e uma noites, em francs, ingls e alemo (e lateralmente em

    espanhol, com a verso de Cansinos Assns) mantm entre si e de como os

    tradutores formaram uma dinasta enemiga, uma querendo aniquilar e sobrepor-

    60 SANTAELLA, Lcia. Literatura traduo: J.L.Borges. In Borges centenrio/ Marcelo Cid, Cludio Csar Montoto (orgs.). So Paulo: EDUC, 1999, p.148.

  • 35

    se outra, numa investida prpria da tradio ocidental. A produo de uma

    nova verso ou adaptao acaba por valorizar mais a traduo que o prprio

    texto original. Los traductores organiza-se, ento, de tal modo que o seu enredo

    no mostra o Oriente e nem reala o texto rabe.

    El capitn Burton, como parte inicial do texto, estabelece um tipo de

    brincadeira como o jogo de domin, em que uma pea pede a outra ao mesmo

    tempo que a elimina: Lane tradujo contra Galland, Burton contra Lane; para

    entender a Burton hay que entender esa dinasta enemiga.61.

    Jean Antoine Galland, sendo o primeiro tradutor do livro para a Europa,

    entre 1704-1717, apresentado como o fundador de um texto ocidental que

    passa a ser considerado um cnone, inclusive no mundo rabe. Galland ignorava

    toda preciso literal e no se preocupava com anotaes.

    Utilizou um manuscrito e um texto oral, graas memria de um

    maronita, o que o fez incluir contos, provavelmente considerados apcrifos62, e

    que foram incorporados tornando-se fundamentais s Noites: el de Aladino, el de

    los Cuarenta Ladrones, el del prncipe Ahmed y el hada Peri Ban, el de

    Abulhasn el dormido despierto, el de la aventura nocturna de Harn Arrashid, el

    de las dos hermanas envidiosas de hermana menor.63

    Galland instituiu a tradio de se inscrever no texto traduzido, e no caso

    dele, ao gosto francs de sua poca, com sabor adocicado do sculo XVIII.

    Utilizou expresses que no caberiam ao espao rabe, censurou o texto por

    considerar as baixezas de mau gosto que, segundo Borges, inspiraram-se pelo

    decoro, no pela moral.

    Los musulmanes de Galland se saludan a la francesa: H Monsieur! H Madame!; para expresar su asombro exclaman: Bon Dieu! y no Ua-I-Lah! En sus comidas les sirven manjares franceses, y el dulce de pipas de granada en la cocina de Galland se convierte en una tarte la crme. Y finalmente -esta si que es gorda! -, en la Historia del mercader y el efrit (Noches 1 y 2), que va al comienzo del libro, Galland traduce pellejillo, pelcula el naua rabe, que significa hueso de fruta, de lo que resulta que es con un pellejillo o telita de dtil, que el mercader lanza al aire,

    61 BORGES, Jorge Lus. Los traductores de las 1001 noches. In Historia de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 1. Buenos Aires: Emec, 2002, p.397. 62 Las historias de Las mil y una noches eran fondo comn de los narradores antes que se juntasen bajo ese epgrafe []. Sucede que la distincin entre lo autntico y apcrifo se inspira esencialmente en impresiones subjetivas. CANSINOS-ASSENS, Raphael. Estudio literario-crtico de Las mil y una noches In Libro de Las mil y una noches. tomo I. 5 ed. Mxico: Aguilar, 1993, p.37. 63 BORGES, Jorge Lus. Los traductores de las 1001 noches. In Historia de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 1. Buenos Aires: Emec, 2002, p.397.

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    despus de comerse la pulpa, con lo que hiere en un ojo y mata al hijo del alifrite, que por ello pide el precio de su sangre.64

    O que importava, no entanto, aos leitores de Galland, eram as magias e as

    preciosidades, a felicidade e o assombro. Palabra por palabra, la versin de

    Galland es la peor escrita de todas, la ms embustera y ms dbil, pero fue la

    mejor leda.65 Entre alguns leitores de Galland, Borges cita Coleridge, De

    Quincey, Stendhal, Tennyson, Edgar Allan Poe.

    Aps Galland, todas as demais verses tero como pretenso ser

    diferentes das precursoras. O ingls arabizado, Edward Lane, 90 anos aps

    Galland, escreveu uma verso eruditssima das Noites, mais parecida com uma

    enciclopdia. Mesmo tendo vivido cinco anos no Cairo, Lane no se deixou

    envolver pelo mundo rabe: manteve-se um britnico cheio de pudores,

    perseguindo como um inquisidor o que pudesse ir contra o seu puritanismo,

    mutilando o texto ao excluir ou omitir trechos e contos na ntegra justificando-se

    em numerosas notas de letras midas e acumulando um caos de

    esclarecimentos que dariam um outro livro. A purificao do seu texto passou

    por uma destruio. O objetivo de Lane nunca foi o de ressaltar o colorido

    brbaro das Noites, como Burton, nem o de ameniz-lo, como Galland. Galland

    e Lane, nas palavras de Borges, desinfetaram as Noites, provocaram uma

    espcie de fraude, queriam apenas destacar o ambiente mgico.

    De maneira geral, essas acusaes dizem respeito mais prtica de

    traduzir como um desvio, apresentao de um universo literrio desconhecido

    ao leitor, s verses diferentes como outros pontos de vista e multiplicao das

    variaes. Como crtico literrio, Borges expe sua viso pessoal, um tanto

    quanto orientalista, sobre o Livro das mil e uma noites.

    Apresenta-o como sendo uma adaptao de histrias antigas ao gosto

    plebeu e vulgar da classe mdia do Cairo e cujas personagens so apresentadas

    como velhacos, mendigos ou eunucos (sucede, por mais de uma vez, serem reis

    e rainhas)66. Talvez, assim, justifique os apagamentos dos impudores a que os

    tradutores submeteram o original e a distncia que se estabeleceu entre o texto

    rabe e a traduo.

    64 CANSINOS-ASSENS, Raphael. Estudio literario-crtico de Las mil y una noches In Libro de Las mil y una noches. tomo I. 5 ed. Mxico: Aguilar, 1993, p.40. 65 BORGES, Jorge Lus. Los traductores de las 1001 noches. In Historia de la eternidad (1936). In Jorge Luis Borges. Obras completas, volume 1. Buenos Aires: Emec, 2002, p.398. 66 JAROUCHE, Mamede M. Borges, autor das Mil e uma noites. In CULT Revista Brasileira de Literatura. Ano III, n.25. So Paulo: Lemos Editorial. Agosto, 1999, p. 70.

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    Los detractores argumentan que ese proceso [de desinfeccin] aniquila o lastima la buena ingenuidad del original. Estn en un error: el Libro de mil noches y una noche no es (moralmente) ingenuo; es una adaptacin de antiguas historias al gusto aplebeyado, o soez, de las clases medias de El Cairo. Salvo en los cuentos ejemplares del Sendebar, los impudores de Las 1001 Noches nada tienen que ver con la libertad del estado paradisaco. Son especulaciones del editor: su objeto es una risotada, sus hroes nunca pasan de changadores, de mendigos o eunucos. Las antiguas historias amorosas del repertorio, las que refieren casos del Desierto o de las ciudades de Arabia, no son obscenas, como no lo es ninguna produccin de la literatura preislmica. Son apasionadas y tristes, y uno de los motivos que prefieren es la muerte de amor, esa muerte que un juicio de los ulemas ha declarado no menos santa que la del mrtir que atestigua la fe 67

    Quanto ao que cabe verso Burton, este parece ser o tradutor preferido

    de Borges: o capito Burton, homem legendrio que falava 17 idiomas, que

    publicou 70 livros, que venerava Lord Byron e o Isl entre outras coisas. El

    Burton de la leyenda de Burton, es el traductor de las Noches.[] Aventuro la

    hiprbole: recorrer Las 1001 Noches en la traslacin de Sir Richard no es menos

    increble que recorrerlas vertidas literalmente del rabe y comentadas por

    Simbad el Marino.68

    Para Borges, Burton persegue trs objetivos em sua traduo. Justificar e

    ampliar sua reputao de arabista, pura redundncia; ser ostensivamente

    diferente de Lane, porm incorre na mesma falta por inscrever-se

    completamente no texto: traduz versos rabes ao modo ingls, junta vocabulrio

    tpico de seu ambiente, cria neologismos e estrangeirismos, abundante em

    notas como Lane, especialmente para a edio em paralelo dos mil exemplares

    do Burton Club, de textos apcrifos e onde Borges diz estar a famosa noite 602.

    O que realmente diferencia Burton de Lane a ertica, cuidadosamente ausente

    em La