tese final

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS Benilde de Nazaré Lameira Rosa DE “JARDIM ENCANTADO” A “REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO”: uma análise de ethos ambientais Belém 2012

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  • SERVIO PBLICO FEDERAL

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    Benilde de Nazar Lameira Rosa

    DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE

    CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

    Belm

    2012

  • Benilde de Nazar Lameira Rosa

    DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE

    CONSERVAO: uma anlise de ethos ambientais

  • Benilde de Nazar Lameira Rosa

    DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO:

    uma anlise de ethos ambientais

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao strictu sensu em Cincias Sociais

    (PPGCS), rea de concentrao em Sociologia,

    junto ao Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas, Universidade Federal do Par UFPA, como pr-requisito para obteno do

    grau de Doutora em Cincias Sociais

    (SOCIOLOGIA).

    Orientadora: Professora PhD. Ktia Marly

    Leite Mendona.

    Belm

    2012

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

    (Biblioteca de Ps-Graduao do IFCH/UFPA, Belm-PA)

    Rosa, Benilde de Nazar Lameira

    De Jardim Encantado a Reino Desencantado das Unidades de Conservao: uma anlise de ethos ambientais / Benilde de Nazar Lameira Rosa; orientadora, Ktia Marly

    Leite Mendona. - 2012.

    Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Par. Instituto de Filosofia e Cincias

    Humanas, Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Belm, 2012.

    1. Reserva Extrativista Marinha Ara-Peroba (Augusto Corra, PA). 2. Reserva

    Extrativista Marinha de Soure (PA). 3. Proteo ambiental. 4. Meio ambiente. 5. Gesto

    ambiental. 6. Homem - Influncia sobre a natureza. 7. tica. I. Ttulo.

    CDD - 22. ed. 363.70098115

  • Benilde de Nazar Lameira Rosa

    DE JARDIM ENCANTADO A REINO DESENCANTADO DAS UNIDADES DE CONSERVAO:

    uma anlise de ethos ambientais

    Banca examinadora:

    __________________________________________

    Professora PhD Ktia Marly Leite Mendona

    (Orientadora - PPGCS/UFPA)

    __________________________________________

    Professora Dr Lourdes Gonalves Furtado

    (Examinador Interna PPGCS/UFPA/Emlio Goeldi)

    __________________________________________

    Professor Dr. Luis Fernando Cardoso e Cardoso

    (Examinador Interno PPGCS/UFPA) __________________________________________

    Professora Dr Denise Machado Cardoso (PPGCS/UFPA)

    (Examinadora Interna PPGCS/UFPA) __________________________________________

    Professor Dr. Jos Bittencourt da Silva

    (Examinador Externo PPGED/UFPA)

    __________________________________________

    Professora Dra Maria Dolores Lima da Silva

    (Examinadora Externa PPGCP/UFPA) _____________________________________________

    Professora Dr Vernica do Couto Abreu

    (Examinadora Suplente ICSA/UFPA)

    Aprovado em ____ /__________ / ________

    Belm

    2012

  • Ofereo o resultado deste trabalho a todos os usurios das RESEXs Ara-Peroba em

    Augusto Corra e de Soure na ilha do Maraj, na perspectiva de que possa contribuir, de

    alguma forma, com a qualidade de vida dessas populaes;

    Ofereo, ainda, a todos os profissionais tcnicos das instituies pblicas

    ambientais, que no af de uma sociedade mais justa, buscam por novas perspectivas a trilhar

    junto s populaes locais.

    Considerar a justia como uma virtude, ao lado da prudncia, da temperana,

    da coragem, admitir que ela contribui para orientar a ao humana para um

    cumprimento, uma perfeio, da qual a noo popular de felicidade d uma idia aproximada. (RICOEUR, 1991, p. 91).

  • Dedico, mais uma vez e sempre, como produto de meu empenho, ao Philippe Rosa Portela

    MEU ANJO DE LUZ, MEU FILHO, MINHA VIDA! Amigo e parceiro de todas as horas,

    inclusive nas que estive ausente em sua to doce e plena adolescncia, e agradeo pelas

    ajudas, todas elas... Eu amo voc!

  • Em sua homenagem, filho:

    Olha nos meus olhos,

    Esquece o que passou...

    Aqui, neste momento,

    Silncio e sentimento,

    Sou o teu poeta...

    Eu sou o teu cantor,

    Teu rei e teu escravo,

    Teu rio e tua estrada...

    Vem comigo, meu amado amigo,

    Nessa noite clara de vero.

    Seja sempre o meu melhor presente,

    Seja tudo sempre como .

    tudo que se quer!...

    Leve como o vento,

    Quente como o Sol,

    Em paz na claridade,

    Sem medo e sem saudade.

    Livre como o sonho,

    Alegre como a luz.

    Desejo e fantasia

    Em plena harmonia!

    Sou teu homem, sou teu pai, teu filho;

    Sou aquele que te tem amor...

    Sou teu par, o teu melhor amigo,

    Vou contigo, seja aonde for...

    E onde estiver, estou.

    Vem comigo, meu amado amigo,

    Sou teu barco neste mar de amor.

    Sou a vela que te leva longe

    Da tristeza... eu sei, eu vou.

    Onde estiver, estou!...

    E onde estiver, estou!...

    Tudo que se quer

    Composio: Andrew Lloyd Webber

    Verso: Nelson Motta

  • AGRADECIMENTOS

    A todos os trabalhadores das RESEXs em estudo que me acolheram permitindo a

    realizao da pesquisa de campo deste trabalho, em especial ao Sr. Jos Antero e ao Sr.

    Rodrigo Leal. Todos, pessoas imprescindveis, cuja inteno tica de viver bem com e para os

    outros se fez presente na criao das UCs.

    A todos os servidores e agentes institucionais que entrevistei em seus locais de

    trabalho, que cederam seu tempo e se dispuseram a colaborar e qualificar este estudo,

    permitindo que os entrevistasse. Especialmente ao socilogo Otvio Albuquerque, pela

    percepo e ao em prol da sustentabilidade ambiental e social nas Reservas Extrativistas

    Marinhas do Par e a Agrnoma Lisngela Cassiano, analista ambiental do ICMBio pelo

    apoio prestado durante a pesquisa de campo e pela amizade que se solidificou nessa

    caminhada;

    A todos aqueles que fazem parte desta minha histria, meu pai Raimundo Rosa

    Portela, meu irmo Carlos Augusto, minha me Benedita Mendona, amigas Lourdes Maciel,

    Maria Leonardo e ngela Azevedo;

    Ao mozinho, meu companheiro Moacir Miranda, que se desdobrou como pde na

    inteno de me ajudar nessa jornada. Obrigada por me ensinar, mesmo que por caminhos

    tortos, que no construmos a vida, em qualquer plano que queiramos galgar, na solido;

    s servidoras da Biblioteca Central da UFPA, que no mediram esforos para ajudar-

    me no acesso aos materiais ali disponveis;

    Aos meus colegas de trabalho Paulo Pinto e Rosngela Borges, pela amizade e

    disponibilidade constante em nos dar o apoio necessrio na secretaria do PPGCS;

    No poderia deixar de agradecer aos meus colegas de trabalho que sentiram comigo

    as minhas dores fsicas e psquicas, a todos, por suportarem minhas ausncias, meus anseios,

    minha qualificao rumo ao doutorado.

    Agradeo ainda, a minha colega de graduao, Maria Dolores Lima da Silva, a quem

    recorri diversas vezes no percurso deste doutoramento e que nunca se negou a compartilhar

    comigo todos os ritos pelos quais precisei passar. Inclusive a defesa de tese, na qual Dolores

    compe a banca. Obrigada pela disponibilidade, sempre;

    Aos demais Mestres que tambm se disponibilizaram a aceitar o convite para compor

    a banca de avaliao da tese: Professora Dr Lourdes Gonalves Furtado, Professsor Dr. Jos

  • Bittencourt da Silva, Professor Dr. Luis Fernando Cardoso e Cardoso; Professora Dr

    Vernica do Couto Abreu e Professsora Dr Denise Machado Cardoso;

    A todos os meus Mestres, que permitiram a mim e a tantos outros colegas alar voo na

    construo do conhecimento nas Cincias Sociais. Em especial, como no poderia deixar de

    ser, a dois anjos: ao professor Heraldo Maus e a professora Anglica Maus, pela serenidade

    e pelo afeto inerentes as suas pessoas e pela disponiblidade em compartilhar conosco suas

    sabedorias de vida. A professora Anglica em particular, por ouvir meus lamentos e

    aconselhar-me. Meu muito obrigada pela partilha nos momentos mais difceis desta trajetria;

    professora Leila Mouro, outro anjo que se fez em toda a minha trajetria

    acadmica;

    Agradeo ainda, imensamente pessoa Ktia Marly Leite Mendona, pela dedicao

    ao curso e:

    Pelas disciplinas ministradas, das quais fui aluna e sai maravilhada com a perspectiva

    de novas veredas a caminhar, por isso retornei a elas ainda mais uma vez, como ouvinte;

    Por aceitar minha orientao quando eu j trilhava o doutorado, e ainda assim, dando-

    me o suporte acadmico tico e solidrio que me permitiu o mais de qualificao que

    tanto busquei nesse curso;

    Pelas demonstraes de afetividade, serenidade, solidariedade, em uma nica palavra

    de humanidade em uma sociedade em que esses sentidos da vida pouco afloram;

    Por mediar meu encontro com uma perspectiva que no se faz s para a produo

    acadmica, mas como conduta da vida. Professora Ktia, meu obrigada, grato e fraterno;

    Agradeo, de forma muito especial, ao Magnfico Reitor da Universidade Federal do

    Par, Professor Carlos Edilson de Almeida Maneschy, com quem pude contar em todo esse

    percurso, mediando as minhas atividades de trabalho e o doutoramento;

    Mnica Lizardo pelo apoio, colocando-se a inteira disposio para a leitura

    minuciosa e primordial do sexto captulo e de minhas concluses, quando at esses

    agradecimentos j estavam prontos, por isso inclui voc de forma especial. Obrigada Mnica,

    voc tem sido meu apoio nesses momentos finais ante a defesa da tese j marcada;

    Aproveito para agradecer ao Renan, pela gentileza de compartilhar comigo o tempo de sua

    me, com a amabilidade de poucos;

    A todos que, de algum modo, colaboraram para que esse momento se tornasse

    possvel. Meus sinceros agradecimentos.

  • Enfim, agradeo a Deus e a Nossa Senhora de Nazar, que se fazem presentes na

    minha vida em diversas nuances, em particular colocando esses anjos ao meu redor,

    tornando essa jornada mais suave e a caminhada da vida mais serena.

    OBRIGADA MEU DEUS!

    Acreditem, hoje sou mais feliz do que ontem, e vocs estiveram comigo nessa

    caminhada.

  • RESUMO

    Este estudo trata das relaes entre agentes sociais cujas racionalidades distintas

    condicionam os sentidos dados s suas aes no processo de execuo da poltica de Unidades

    de Conservao (UCs) no caso, Reservas Extrativistas (RESEXs). Nosso ponto de partida

    a concepo de Encantamento e Desencantamento do mundo presente na obra de Max Weber,

    buscando mostrar, por meio de tipos ideais, como coabitam no mesmo contexto

    racionalidades e ethos distintos. O estudo parte de articulao terica entre os conceitos de

    racionalidade e de ethos em Weber. Foi analisado o cenrio de participao das populaes

    extrativistas na criao de duas RESEXs Marinhas: Ara-Peroba no municpio de Augusto

    Corra, no nordeste paraense e Soure na Ilha do Maraj. Ao mesmo tempo foi analisada a

    participao daquelas populaes na elaborao da fase I de seus Planos de Manejo (PM).

    Apontamos a existncia de ethos ambientais distintos, ou seja, formas particulares de ao dos

    extrativistas locais, de acordo com as particularidades de suas relaes com o Outro em suas

    dimenses do natural, do humano e do sagrado e suas respectivas conexes com a relao

    homem/natureza. luz do pensamento de Paul Ricoeur, assinalamos possibilidades para uma

    reflexo acerca das relaes intersubjetivas, bem como acerca das relaes entre esfera

    pblica e populaes locais em Unidades de Conservao. No percurso do estudo, trs pontos

    centrais foram elencados: em primeiro lugar a existncia de racionalidades e ethos locais

    como trao definidor da materialidade, que apontam para a existncia de racionalidades e

    ethos ambientais, aos quais se vinculam princpios ticos. O segundo ponto se refere ao

    contexto da gesto participativa das RESEXs h assimetrias nas relaes entre o rgo

    gestor e as populaes locais e uma sobreposio de interesses, de princpios e de valores

    reafirmados pelo modus operandi funcional (ethos institucional) da dominao racional-legal.

    Finalmente, no terceiro ponto, indicamos a possibilidade de mediao entre essas assimetrias

    que poder constituir-se atravs de novas perspectivas conciliatrias de sentidos, o que

    enfatizado pela tica e pela Hermenutica no pensamento de Paul Ricoeur.

    Palavras-chave: Unidades de Conservao. Meio-Ambiente. Ethos. tica. Racionalidade.

    Alteridade.

  • ABSTRACT

    This study discuss the relations between social agents whose different rationalities determine

    the meanings of their actions in the process of implementing the policy of conservation units

    (UCs) - in this case, extractive reserves (RESEXs). Our starting point is the conception of

    Enchantment and Disenchantment of the World present in the work of Max Weber, trying to

    show, by means of ideal types, as coexist in the same context distinct rationalities and ethos.

    The study explores the theoretical link between the concepts of rationality and ethos in

    Weber. We analyzed the scenario of participation of the local population in the creation of

    two marine extractive reserves: Ara-Peroba in the municipality of Augusto Corra

    (northeastern of Par) and Soure in the Maraj Island. At the same time we analyzed the

    participation of those locals in the development of phase I of their management plans (PM).

    We point out the existence of distinct environmental ethos, or particular forms of action of

    those local population, according to the particularities of its relations with the Other - natural,

    human and sacred - and their connections with the relations between man and nature. In light

    of the thought of Paul Ricoeur, we indicate a possible reflection about of interpersonal

    relations and about the relations between the public sphere and local population in protected

    areas. In the course of the study three central points were listed. First: the existence of local

    rationalities and ethos as a defining feature of materiality, which indicate the existence of

    environmental rationality and ethos linked to ethical principles. The second point concerns the

    context of management of RESEXs - there are asymmetries in the relations between the

    public instution and the local population and a overlapping of interests, values and principles

    reaffirmed by the functional modus operandi (institutional ethos) of rational-legal domination.

    Finally, in the third point is indicated the possibility of mediation between these asymmetries

    that may be managed through new conciliatory perspectives, which is emphasized by the

    Ethics and Hermeneutics in the Paul Ricoeur's thought.

    Keywords: Conservation Units. Environment. Ethos. Ethics. Rationality. Alterity.

  • LISTA DE SIGLAS

    ACS Associao dos Tiradores de Caranguejo de Soure

    AFA Associao de Futebol do Ara

    AGB Associao dos Gegrafos Brasileiros

    AMAM Associao dos Municpios do Arquiplago do Maraj

    AMCC Associao de Moradores da Comunidade do Cu

    APCC Associao de Pescadores da Comunidade do Cu

    APP reas de Preservao Permanente

    APA rea de Proteo Ambiental

    ARPA Programa reas Protegidas da Amaznia

    ASMUPESQ Associao de Mulheres do Pesqueiro

    ASPEPE Associao dos Pescadores do Pesqueiro

    ASSIBAMA Associao dos Servidores do IBAMA

    ASSUREMAS Associao de Usurios da Reserva Extrativista Marinha de Soure

    AUREMAP Associao de Usurios da Reserva Extrativista Marinha Ara-

    Peroba

    ASSUREMACATA Associao de Usurios da RESEX Caet-Tapera

    BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

    CEPLAC Comisso Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira

    CEPNOR Centro de Pesquisa e Gesto de Recursos Pesqueiros do Norte do

    Brasil

    CGEE Centro de Estudos e Gesto Estratgica

    CNPT Centro Integrado de Desenvolvimento Sustentado das Populaes

    Tradicionais

    CNS Conselho Nacional dos Seringueiros

    CNUMAD Conferncia das Naes Unidas para o Meio Ambiente e o

    Desenvolvimento

    CNUC Cadastro Nacional de Unidades de Conservao do MMA

    CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente

    CPNOR Centro de Pesquisa e Extenso Pesqueira do Norte do Brasil

    CR Coordenao Regional

  • DIUSP Diretoria de Unidades de Uso Sustentvel e Populaes

    Tradicionais

    DIREC Diretoria de Ecossistemas do IBAMA

    DRNR Departamento de Recursos Naturais Renovveis

    EMATER Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural

    FBCN Fundao Brasileira de Conservao da Natureza

    FCAP Faculdade de Cincias Agrrias do Par

    FLONA Floresta Nacional

    FSC Forest Stewardship Council

    FUNBio Fundo Brasileiro para a Biodiversidade

    GEF Fundo para o Meio Ambiente Global

    GT Grupo de Trabalho

    GTZ Deutsche Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit (Agncia

    de Cooperao da Alemanha)

    IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

    Renovveis

    IBC Instituto Brasileiro do Caf

    IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

    ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservao da Biodiversidade

    IDESP Instituto do Desenvolvimento Econmico Social do Par

    IDEFLOR Instituto de Desenvolvimento Florestal do Estado do Par

    IDH ndice de Desenvolvimento Humano

    IFES Instituies Federais de Ensino Superior

    IN Instrues Normativas

    INCRA Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria

    IPAM Instituto de Pesquisa Ambiental da Amaznia

    ISO International Standard Organization

    JICA Agncia Japonesa de Cooperao Internacional

    KFW Entwicklungsbank (Banco Alemo de Desenvolvimento)

    MMA Ministrio do Meio Ambiente

    MDS Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome

    MOPEPA Movimento dos Pescadores do estado do Par

    MRG Microrregio

    MPEG Museu Paraense Emlio Goeldi

  • MPF Ministrio Pblico Federal

    ONG Organizao No Governamental

    PA Par

    PAC Plano de Acelerao do Crescimento

    PAE Projetos de Assentamento Extrativista

    PM Plano de Manejo

    PMs Planos de Manejo

    PNMA Poltica Nacional do Meio Ambiente

    PNRA Programa Nacional de Reforma Agrria

    PNUD Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento

    RPPN Reserva Particular do Patrimnio Natural

    PPG-7 Programa Piloto para a Proteo das Florestas Tropicais do Brasil

    PPGCS Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais

    POLONOROESTE Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil

    PETROBRAS Empresa Petrleo Brasileiro S/A

    PU Plano de Utilizao

    RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentvel

    RESEX Reserva Extrativista

    SEAMA Secretaria Municipal de Agricultura e Meio Ambiente

    SECTAM Secretaria Executiva de Cincia, Tecnologia e Meio Ambiente

    SEMA Secretaria Especial do Meio Ambiente

    SIPAM Sistema de Proteo da Amaznia

    SISNAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente

    SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservao

    STR Sindicato dos Trabalhadores Rurais

    STF Supremo Tribunal Federal

    SUDEPE Superintendncia de desenvolvimento da Pesca

    SUDHEVEA Superintendncia da Borracha

    SUDECO Superintendncia de Desenvolvimento do Centro-Oeste

    UC Unidades de Conservao

    UFRA Universidade Federal Rural da Amaznia

    UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco

    WWF World Wide Fund For Nature

    ZEE Zoneamento Econmico Ecolgico

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Reservas extrativistas institudas no Brasil at 2010

    Quadro 2 RESEXs Marinhas e Florestais institudas no estado do Par

    Quadro 3 Unidades de Conservao por categorias de manejo segundo o SNUC

    Quadro 4 Unidades de Conservao por categorias de manejo no Par no ano de

    2010 distribudas pelas esferas de criao

    Quadro 5 Relao de proprietrios e fazendas abrangidas pela RESEX de Soure

    (2007)

  • LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1 rea desmatada em RESEXs no Brasil at 2007

    Grfico 2 Percentual do territrio paraense por reas protegidas (2009)

  • LISTA DE IMAGENS

    Imagem 1 Cartaz do defeso do caranguejo

    Imagem 2 Localizao dos bairros do distrito sede de Soure Ilha do Maraj

    Imagem 3 Imagem de satlite Soure/Salvaterra

    Imagem 4 Localizao do arquiplago, ilha do Maraj e do municpio de Soure

    Imagem 5 Microrregio bragantina, em destaque o municpio de Augusto Corra

    Imagem 6 Municpio de Augusto Corra rodovias, rios Urumaj, Embora e vila do Ara

    em relao sede municipal

    Imagem 7 Localizao da RESEX de Soure

    Imagem 8 Delimitao da RESEX de Soure e localizao das reas de manguezais

    Imagem 9 Localizao das vilas do Pesqueiro, Caju-una, Pedral, Cu e praias da Barra

    Velha e Araruna

    Imagem 10 Localizao da RESEX Ara-Peroba e outras unidades no nordeste paraense

    Imagem 11 RESEX Marinha Ara-Peroba

  • LISTA DE FOTOS

    Foto 1 Festividade de So Pedro Sede do municpio de Soure

    Foto 2 Sede da Associao dos Caranguejeiros bairro do Tucumamduba

    Foto 3 Casas no bairro do Tucumamduba

    Foto 4 Vila do Caju-una

    Foto 5 Casas financiadas pelo INCRA

    Foto 6 Portes da fazenda Bom Jesus

    Foto 7 Portes da fazenda Bom Jesus

    Foto 8 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una

    Fotos 9 Recebimento de gua pelo carro pipa na Vila do Caju-una

    Foto 10 Caminho de acesso vila do Cu

    Foto 11 Viagem vila do Cu pelo rio Pesqueiro

    Foto 12 Reunio conjunta das vilas do Cu e Caju-una

    Foto 13 Associao de Mulheres do Pesqueiro

    Foto 14 Presena de gado na praia do Pesqueiro/Soure

    Foto 15 Tcnica da rabiola no Pesqueiro

    Foto 16 Tcnica da rabiola no Pesqueiro

    Foto 17 Reunio na vila do Pedral

    Foto 18 Larva do Tucum vila do Pedral

    Foto 19 Portos na vila do Ara

    Foto 20 Portos na vila do Ara

    Foto 21 Vila do Ara

    Foto 22 Cartaz do Crio da vila do Ara

    Foto 23 Placa da estrada de acesso vila do Porto do Campo

    Foto 24 Vila do Porto do Campo

    Foto 25 Criao de gado na rea da vila do Porto do Campo

    Foto 26 Criao de gado na regio da reserva Ara-Peroba

    Foto 27 Trabalho escolar sobre a vila do Ara sede da RESEX

    Foto 28 Trabalho escolar sobre os encantados na Vila do Ara

    Foto 29 Letra de Forr sobre a origem da Vila apresentada como trabalho escolar

    Fotos 30 e 31 Sr. Raimundo Leal Fico, usando e apresentando o dente do jacar-au

  • SUMRIO

    I INTRODUO 20

    I.I JUSTIFICANDO O PROBLEMA E DEFININDO CONCEITOS 24

    I.II A ESTRUTURA DE APRESENTAO dos captulos 32

    1 DA PESQUISA 38

    1.1 A HERMENUTICA COMO FUNDAMENTO DO ESTUDO 38

    1.2 A METODOLOGIA ADOTADA 46

    1.3 DA EXPERINCIA EM CAMPO 50

    2 TENSES E ARRANJOS NA TRAJETRIA DAS RESEXs 55

    2.1 DE MOVIMENTO SOCIAL A UNIDADE DE CONSERVAO 56

    2.2 AS RESEXs NO CONTEXTO DAS UCs NO PAR E A MATERIALIDADE

    JURDICA DO PRINCPIO DA PARTICIPAO

    66

    2.3 A INSTITUCIONALIDADE DAS UNIDADES DE CONSERVAO 79

    3 DE NOSSO LUGAR A RESEXs MARINHAS 92

    3.1 O LUGAR DAS POPULAES EXTRATIVISTAS 97

    3.1.1 Soure 97

    3.1.2 Vila do Caju-una 113

    3.1.3 Vila do Cu 118

    3.1.4 Vila do Pesqueiro 121

    3.1.5 Vila do Pedral 126

    3.1.6 As praias da Araruna, Barra Velha e Mata Fome 128

    3.2 O MUNICPIO DE AUGUSTO CORRA-PA LUGAR DE PESCADOR 128

    3.2.1 As vilas pesqueiras 133

    3.2.1.1 Ara 133

    3.2.1.2 Porto do Campo 137

    3.2.1.3 Nova Olinda e outras Vilas na rea de influncia da RESEX Marinha 141

    3.3 AS RESEXS MARINHAS uma nova territorialidade 143

    3.3.1 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha de Soure 144

    3.3.2 Aspectos geossocioambientais da RESEX Marinha Ara-Peroba 151

    4 E TUDO ERA ENCANTADO... 163

    4.1 EM TORNO DA COMPREENSO 163

    4.1.1 Racionalidade e ethos 167

  • 4.1.2 A tradio como substncia de racionalidade e ethos 174

    4.2 EM BUSCA DO JARDIM ENCANTADO 177

    4.2.1 Da racionalidade prtica ao ethos ambiental local 181

    4.2.2 O ethos ambiental local Tradio e mudana nas relaes de trabalho 198

    5 NO REINO DAS UNIDADES DE CONSERVAO... 213

    5.1 ESPECIALISTAS SEM ESPRITO? 219

    5.1.1 Onde esto os especialistas? 221

    5.1.2 Razo cientfica, mtodo e verdades 226

    5.2 UM REINO DESENCANTADO 233

    5.2.1 A poltica pblica ambiental brasileira no sculo XX nos marcos da

    racionalidade ecolgica

    233

    5.2.2 Trabalho desencantado e desencantador do IBAMA ao ICMBio 247

    5.2.2.1 O IBAMA no contexto da poltica pblica ambiental 249

    5.2.2.2 O ICMBio e a Poltica de Unidades de Conservao 256

    5.2.2.3 O ethos institucional o fazer de tcnicos, consultores e experts 263

    6 PARTICIPAO E PERSPECTIVAS TICAS 275

    6.1 NOVAS PERSPECTIVAS DE INTERAO tica e dilogo 276

    6.1.1 Da tica e da Moral em Ricoeur 277

    6.2 OS SENTIDOS DA PARTICIPAO - Perspectivas ticas 280

    6.2.1 Participao e Meio Ambiente 286

    6.2.2 O CONTEXTO PARTICIPATIVO NAS RESEXs MARINHAS 293

    6.2.2.1 O processo de criao das RESEXs Marinhas de Soure e Ara-Peroba 293

    6.2.2.2 A fase I de elaborao do Plano de manejo 321

    GUISA DE CONCLUSES - Viver bem... A busca por uma conduta tica

    conciliatria

    330

    REFERNCIAIS 345

    ANEXOS 361

  • O saber desencantado nos oferece a fcil tentao de buscar no senso

    comum, na crena ingnua na positividade do real, tal como aparece,

    as bases de critrios de objetividade que no discurso acadmico se

    apresentam como validados pela autoridade da cincia. [...] Um saber

    caleidoscpico pressupe de nossa parte, enquanto cientistas, uma

    sensibilidade aguada para captarmos matizes, tons, climas, e todo

    esse tecido multicolorido de que feita a vida social, bem como a

    capacidade de nos expressarmos em diversas linguagens, compondo

    vises hologrficas.

    Lazarte (1996, p. 107)

  • INTRODUO

  • Introduo 20

    I INTRODUO

    A tese intitulada De Jardim Encantado a Reino Desencantado das Unidades de

    Conservao uma anlise de ethos ambientais pretende ser uma narrativa das relaes

    que se estabelecem entre agentes sociais cujas racionalidades distintas condicionam os

    sentidos dados a suas aes no processo de execuo da poltica de Unidades de Conservao

    (UCs) no caso, Reserva Extrativista (RESEX). Partimos do ponto de referncia do

    Encantamento e Desencantamento do mundo em Weber, buscando mostrar, em tipos ideais,

    como coabitam no mesmo contexto perspectivas e ethos distintos. Para tanto, analisamos o

    cenrio de participao das populaes extrativistas tanto na criao de duas RESEXs a de

    Ara-Peroba, no nordeste paraense, no municpio de Augusto Corra e a RESEX de Soure, na

    Ilha do Maraj quanto na elaborao de seus planos de manejo (PM).

    O ttulo deste trabalho contrape duas metforas: Jardim Encantado,

    reconhecidamente de Weber, apesar do pouco uso em suas obras (Ensaios Reunidos de

    Sociologia da Religio, 1915/1920) para se referir a contextos especficos (as religies

    asiticas China e ndia) quando da anlise do tipo ideal do encantamento mgico-religioso;

    e Reino das Unidades de Conservao, que se refere expresso usada por Carlos Minc

    (Ministro do Meio Ambiente no segundo mandato do Presidente Luiz Incio Lula da Silva)

    em relao ao contexto das Unidades de Conservao enquanto poltica pblica. Adjetivamos

    a expresso Reino Desencantado das Unidades de Conservao, para evidenciar a

    carncia de relaes de alteridade1, o que se configura na sobreposio da objetividade das

    aes tecnocrticas sobre o ser e o fazer local.

    Jardim Encantado em nosso estudo nos reporta organizao mtico/religiosa das

    populaes extrativistas sob a qual se assentam as relaes desses grupos com a natureza, em

    especial, as atividades produtivas. Em uma correlao a um imenso jardim encantado

    mgico (in einem ungeheuren magischen Zaubergarden) (PIERUCCI, 2005, p. 127). A

    Reino desencantado das Unidades de Conservao corresponde a perspectiva da

    racionalizao crescente, ao desencantamento no sentido da racionalizao cientfico-

    1Quando duas pessoas se encontram e trocam experincias, trata-se sempre do encontro de dois mundos, duas vises e duas imagens de mundo. No a mesma viso a respeito do mesmo mundo [...] o dilogo com os

    outros, suas objees ou sua aprovao, sua compreenso ou seus mal-entendidos, representam uma espcie de

    expanso de nossa individualidade e um experimento da possvel comunidade a que nos convida a razo (GADAMER, 2002, p. 246). Partindo da percepo gadameriana, devemos compreender que a relao de

    alteridade supe sujeitos distintos em suas historicidades, abertos para o dilogo e, desse modo, permitindo-se

    para alm de seus horizontes singulares, uma fuso de horizontes. Desse modo, relaes de alteridade supem a

    troca, a percepo mtua na troca entre suas diferenas.

  • Introduo 21

    tecnocrtica dessacralizando a natureza e estabelecendo novos parmetros para as relaes

    entre os homens e homem/natureza nessas Unidades de Conservao.

    Partimos para nosso estudo, desse modo, de um ponto de referncia terico weberiano,

    tomando seus conceitos de racionalidade e ethos (1981, 1991, 1999). Cabe esclarecer que, de

    acordo com Weber, aos tipos puros de orientao ou racionalidades correspondem tipos de

    ao ou conduta social. Nossa abordagem adota, assim, a noo de racionalidade para

    compreender valores, crenas, perspectivas e sentidos determinados socioculturalmente que

    orientam a conduta social e, ethos para compreender a padronizao dessas condutas ou aes

    sociais, que mantm com aquela um estado de constante retroalimentao.

    Metodologicamente, adotamos tambm a elaborao de tipos ideais, por meio dos

    quais buscaremos compreender como os agentes sociais se relacionam mediados pelo

    preceito legal da participao na criao das RESEXs e elaborao de seus Planos de

    Manejo. Refletindo sobre racionalidades distintas as quais tipificamos enfatizadas em seus

    devidos contextos, procuramos compreender as diferentes formas de conceber e gerir o uso

    dos recursos naturais.

    Compreendemos que nosso enquadramento conceitual por meio de tipos ideais

    enquanto recursos heursticos so simplificaes, a que procedemos com caracterizaes

    unilateralmente evidenciadas de fenmenos complexos, os quais podem ser hipoteticamente

    concebidos para depois serem comparados realidade que devem explicitar.

    A partir da definio de encantamento, buscamos demonstrar como se estabelece a

    racionalidade prtica das populaes extrativistas locais no que se refere aos valores, crenas

    e sentidos que norteiam as relaes simblicas e materiais que estabelecem com a natureza, o

    que redunda na compreenso do ethos ambiental local. De outro, a definio de

    desencantamento refere-se perspectiva tcnico/cientfica, conforme enunciado por Weber

    (1999) para referir-se ao processo de crescente racionalizao do mundo ocidental. A partir

    dessa perspectiva, abordaremos o padro de pensamento e ao tcnico/institucional na

    implementao da poltica ambiental de UCs. No caso em anlise, a noo de

    desencantamento quer tipificar os caracteres de percepes e aes que se sustentam sob

    outras bases, que no as locais, para a compreenso das relaes homem natureza.

    Importa, portanto, esclarecer que nesse estudo buscamos compreender o contexto da

    criao das Reservas Extrativistas Marinhas e da elaborao de seus planos de manejo, tendo

    como recorte o processo participativo que se materializa nas aes compartilhadas e no debate

    entre os saberes das populaes locais, tcnicos, consultores e experts, tendo como pano de

    fundo os diferentes sentidos que partilham a partir de suas perspectivas ticas.

  • Introduo 22

    Para compreendermos o processo participativo das populaes locais no contexto da

    poltica pblica das Unidades de Conservao, buscamos entender o sentido dado por esses

    agentes a suas aes a partir das racionalidades s quais esto vinculados, e por meio da

    compreenso do ethos ambiental grupal; ou seja, do modo como pensam e agem em relao

    ao uso dos recursos naturais. Nesse sentido, buscamos analisar os elementos constitutivos das

    racionalidades e ethos ambientais das populaes que vivem nessas reas protegidas em

    contraponto s formas de pensar e agir de tcnicos e experts que atuam na execuo da

    poltica pblica.

    Compreendemos, desse modo, as noes de racionalidade e ethos sustentadas sob

    tradies histricas distintas. Nosso suporte, para tanto, apoia-se no debate de Gadamer

    (2002, 2006, 2008), que resgata o conceito de tradio, por meio do qual podemos

    compreender esses agentes enquanto sujeitos histricos e finitos, portadores de sentidos,

    valores e percepes legados do passado que amoldam, em grande medida, o presente de suas

    aes. Desse modo, o sentido dado s aes pelos prprios agentes envolvidos no processo de

    criao e elaborao dos PM das RESEXs estrutura-se a partir do sistema de padres de

    pensamento e ao ao qual pertencem. Se pensado a partir de Heidegger (2008), esse sistema

    compe a situao histrica a que o ser-no-mundo modo de ser do homem, sua existncia

    est condicionado. O ser a (ser que interpreta) est imbricado em um contexto histrico, o

    que para ns determina o modo de ser e pensar a partir das particularidades que constituem o

    horizonte hermenutico.

    Desse modo, optamos pela estruturao do trabalho de modo a resgatar o histrico em

    termos de surgimento e criao das Reservas Extrativistas como produto de movimentos

    sociais apropriados pelas polticas agrria e ambiental brasileiras; situar a estrutura

    organizacional das reservas e apresentar o debate jurdico acerca dessa estrutura e,

    principalmente, sobre o princpio jurdico da participao das populaes locais no contexto

    da poltica.

    Apresentamos o contexto geossocioambiental das RESEXs Marinhas, locus do

    trabalho de campo. A partir desse cenrio de exposio de diversos aspectos que se

    apresentam, situamos o texto nas especificidades locais das RESEXs de Soure e Ara-Peroba.

    Situamos os meandros dos lugares onde vivem os extrativistas, usurios dessas unidades, com

    o objetivo de elucidar o cenrio de vida e trabalho dessas populaes.

    Buscamos, assim, apresentar o contexto no qual iremos evidenciar as simetrias e

    assimetrias do processo participativo de cogesto da poltica pblica de UCs, no caso,

  • Introduo 23

    RESEXs, tendo como parmetro as diferenas de racionalidades e de seus sistemas tico-

    morais e ethos ambientais dos agentes sociais envolvidos na poltica.

    So trs os pontos centrais desta tese, a saber: primeiro, a existncia de racionalidades

    e ethos locais que se determinam mutuamente referindo-se ao conjunto das percepes e

    saberes que estruturam as relaes e aes desses extrativistas em todas as esferas de

    organizao da vida, quer seja religiosa, econmica, poltica; consubstanciando-se

    respectivamente no sistema de pensamento, valores, crenas e princpios ticos dos grupos

    extrativistas locais e no comportamento nas aes o modo de ser e fazer desses grupos.

    Trao definidor da materialidade, que aponta para a existncia de racionalidades e ethos

    ambientais, considerada a inegvel relao humana com a natureza, que nos grupos de

    extrativistas em anlise consolidam-se em valores de sacralizao da natureza; ou, quando

    no, de respeito aos preceitos que esta lhes impe, como as safras, perodo de reproduo das

    espcieis, o tempo da mar, o movimento da areia (ROSA, 2007), isso coadunado com a

    prpria necessidade de sobrevivncia, nas suas diversas gradaes. Essa racionalidade pode

    assim ser definida como racionalidade prtica, e por isso instrumental, destinada a atender

    fins imediatos e determinados. Aos ethos locais coadunam-se ethos ambientais modos de ser

    e agir do homem em relao ao uso dos recursos naturais enquanto elementares na estrutura

    organizacional dos grupos de extrativistas, particularmente na organizao do trabalho.

    O segundo, dos trs pontos centrais anunciados acima, refere-se ao contexto da gesto

    participativa ou co-gesto das RESEXs. H assimetrias nas relaes entre o rgo gestor e as

    populaes locais e uma sobreposio de interesses e princpios reafirmados pelo modus

    operandi funcional (ethos institucional) que se afirmam pela via da dominao racional legal.

    Essas assimetrias podem ser pensadas tambm como resultantes da ausncia de relaes tico-

    conciliatrias conforme pensado pela proposta tica de Ricoeur (1991) - entre a esfera

    pblica e as populaes locais, o que pode ser observado na implementao participativa da

    poltica de Unidades de Conservao.

    E no terceiro ponto, iremos proceder anlise da viabilidade de uma via de mediao

    entre essas assimetrias, que poder constituir-se por meio de novas perspectivas conciliatrias

    de sentidos, o que ser abordado por meio das perspectivas tica e de dilogo em Ricoeur

    (1965, 1988, 1995, s.d). Iremos assim observar do ponto de vista da perspectiva tica de

    Ricoeur, como se contrapem de um lado os princpios ticos e morais das populaes locais

    em contraponto ao regramento, a moral legal das insituies pblicas, apontando princpios

    ticos possveis de conciliao para o fim ltimo das aes humanas e em especial das aes

    das instituies poltico-sociais O viver bem.

  • Introduo 24

    I.I JUSTIFICANDO O PROBLEMA E DEFININDO CONCEITOS

    No Brasil, as experincias observadas tm demonstrado que, entre a criao das

    Unidades de Conservao e a elaborao e implementao dos Planos de Manejo (PM),

    ocorrem lapsos significativos, existindo um expressivo nmero de unidades sem esse

    instrumento que orienta o uso sustentvel dos recursos naturais.

    A ausncia dos PM participativos, conforme so denominados pelas Instrues

    Normativas (IN) do rgo gestor, tem levado a tenses entre as populaes que

    tradicionalmente se relacionam com os recursos disponveis nesses territrios e outros

    segmentos sociais locais, bem como com as autoridades pblicas responsveis pelas reas

    (municipais, estaduais ou federais), cuja ao tem sido restrita fiscalizao e proibio de

    atividades consideradas predatrias.

    No ano de 2009, o Ministrio do Meio Ambiente (MMA) por meio do Instituto Chico

    Mendes de Conservao da Biodiversidade (ICMBio)2 iniciou o processo de elaborao da

    fase I dos planos de manejo das nove RESEXs Marinhas situadas no estado, com apoio do

    Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), por meio de uma doao do

    governo da Noruega, conforme o Acordo de Cooperao com o Governo Brasileiro

    (BRA/08/002), que objetiva apoiar o Projeto "Gesto de Reservas Extrativistas Federais na

    Amaznia Brasileira". (Termo de Referncia n. 08 ICMBio). E sendo reafirmando o

    preceito legal da participao contido no Sistema Nacional de Unidades de Conservao

    (SNUC)3, por meio da IN n. 01 do ICMBio, de 18 de setembro de 2007, que disciplina as

    normas e procedimentos para elaborao do Plano de Manejo participativo.

    Tomamos essa constatao como ponto de partida para pensar a participao das

    populaes locais na criao das UCs e implementao dos planos de manejo. O descompasso

    entre a criao de uma UC e a implantao de seu PM manifesta um distanciamento que pode

    ser relacionado ao baixo grau de participao dos extrativistas quer pela ausncia de

    compartilhamento de aes, quer pela ausncia de debate entre os saberes cientifico/tcnico e

    local.

    2 O ICMBio foi criado em 28 de agosto de 2007 por meio da lei 11.516, oriundo do desmembramento de outro

    rgo federal ligado ao MMA Ministrio do Meio Ambiente, o IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis. Tornando-se desde ento, em substituio ao Centro Nacional de

    Populaes Tradicionais CNPT/IBAMA, o rgo responsvel pelas aes da poltica de unidades de conservao da esfera federal, por meio da DIUSP Diretoria de Unidades de Conservao de Uso sustentvel e Populaes Tradicionais. 3 Lei n. 9.985 de 18 de junho de 2000, que regulamenta o art. 225, 1, incisos I, II, III, e VII da Constituio

    Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza e d outras providncias.

  • Introduo 25

    Considerando que a participao dessas populaes uma exigncia legal,

    particularmente a RESEX, enquanto UC de uso sustentvel possui essa exigncia, quer para

    sua criao, quer para as demais etapas, visto que se constitui para atender a demanda das

    populaes extrativistas e como produto de contrato concesso real de uso entre o poder

    pblico e essa populao, com vistas explorao sustentvel de recursos naturais.

    Essas unidades, as Reservas Extrativistas, constituem duas subcategorias considerando

    a natureza dos recursos explorados as florestais e as marinhas. Estas abrangem manguezais,

    rios, lagos e praias demarcadas em regies costeiras e estuarinas; aquelas constituem reas de

    explorao de produtos florestais como andiroba, castanha, aa, frutos nativos em geral. As

    RESEXs pretendem atender as populaes que vivem no interior dessas reas no caso das

    florestais, e em seu entorno em relao s marinhas enquanto usurios dos recursos naturais

    disponveis, como instrumento de manuteno e reproduo das prticas socioeconmicas de

    forma sustentvel em relao capacidade de suporte desses recursos naturais renovveis

    (SNUC).

    A escolha da categoria RESEX Marinha para nosso estudo justifica-se pela sua

    caracterstica peculiar, de acordo com as disposies legais, de ter como agente primordial

    para sua criao e administrao os segmentos sociais tradicionais/extrativistas do lugar a ser

    decretado uma RESEX, associado ao fato de voltar-se para a produo para o mercado e pela

    sustentabilidade econmica baseada na capacidade de suporte dos recursos naturais

    renovveis com vistas sustentabilidade socioambiental.

    O significado social e econmico da pesca artesanal principal atividade das RESEXs

    Marinhas localizadas no litoral paraense evidencia a importncia dessa modalidade de pesca

    no contexto regional e nacional e a significncia da criao das RESEXs Marinhas. Destaque-

    se aqui o nordeste paraense, caracterizado pela produo pesqueira, em particular artesanal,

    onde incide oito das nove RESEXs Marinhas do estado do Par.

    Elegemos assim, duas RESEXs Marinhas como locus de nosso estudo a de Soure

    localizada na Ilha do Maraj, por permitir o contraponto com as demais RESEXs Marinhas

    que esto situadas no nordeste paraense e com intensa atividade pesqueira. A RESEX

    Marinha de Soure foi a primeira reserva decretada no estado, relatos manifestam indcios de

    organizao social que favoreceu sua criao movimento dos de caranguejeiros, ONGs e

    debates ambientais no campus da UFPA do municpio. Alm do contexto econmico da Ilha

    do Maraj, considerando que apesar de compor reas de manguezais e da realizao de

    atividades extrativistas pesqueiras, visto que vilas de Soure foram feitorias de pesca

    determinada pela coroa portuguesa, o contexto do uso dos recursos naturais apresenta-se

  • Introduo 26

    perpassado por uma diversidade de questes bem diferenciadas, sustentada principalmente

    nas fazendas de criao de bfalos, grandes latifndios e diversos conflitos que envolvem o

    uso dos recursos naturais na rea decretada reserva.

    A segunda RESEX Marinha a Ara-Peroba no nordeste paraense contexto

    peculiar da pesca artesanal paraense. Sua criao, contudo, no foi caracterizada pela presena

    imediata de uma organizao social que favorecesse a proposta de criao de uma reserva,

    mas tendo sido criada juntamente com mais quatro reservas contguas fomentadas pela

    iniciativa do IBAMA, que criou as condies legais junto populao local.

    As questes enunciadas abaixo se somam como elementos importantes para definir

    essas RESEXs como referncia para nosso estudo: os desdobramentos da problemtica

    socioambiental apresentada na relao dos usurios da RESEX de Soure com fazendeiros

    locais e com pescadores artesanais do nordeste paraense, dado o circuito da pesca4, os quais

    so os usurios das outras oito RESEXs localizadas na mesorregio referida e, de outro, no

    caso da RESEX Ara-Peroba; a forte influncia do poder pblico federal representado pelo

    IBAMA em relao direta com o poder publico local para a criao da reserva, envolvido

    tambm, poca, com a criao da APA da Costa do Urumaj. Alm desse contexto da

    criao, incide a a elaborao do plano de manejo que congrega um mosaico das oito

    unidades federais na mesorregio.

    Desse modo, considerando as particularidades socioambientais das RESEXs em

    debate Soure e Ara-Peroba, buscamos compreender como se d essa relao entre o ser e o

    fazer-se local e o procedimento institucional diante dessas especificidades. Consideramos

    como principais aspectos norteadores do nosso estudo, a partir das observaes, o baixo grau

    de participao/estranhamento da populao local e forte influncia do poder pblico local e

    institucional no caso da RESEX Ara-Peroba no municpio de Augusto Corra. No caso da

    RESEX de Soure, os dados indicam uma experincia institucional sustentada na perspectiva

    dos caranguejeiros locais em resguardar o ambiente de trabalho e que suscitou a oportunidade

    para a criao da RESEX.

    Assim, o grande nmero de associaes (de moradores, usurios, categorias vrias de

    extrativistas) existentes na rea que compe essas RESEXs poderia indicar uma organizao

    social com um poder de representatividade, contudo mostra-se fragilizado e um apndice do

    processo de influncia institucional, conferindo certa legitimidade ao processo de

    institucionalizao desta nova territorialidade; isso principalmente na RESEX de Soure,

    4 Acerca do movimento dos pescadores do nordeste paraense pelo litoral, vide Leito (1995).

  • Introduo 27

    visto que na Ara-Peroba as associaes pr-existiam ao trabalho do IBAMA e esto mais

    organizadas em prol dos interesses de seus associados.

    Pela significncia estabelecida legalmente populao extrativista no processo de

    criao e gesto das RESEXs e pela importncia social das populaes pesqueiras na regio

    amaznica, particularmente no Par, onde a pesca artesanal desenvolveu-se tradicionalmente

    por indgenas e por populaes que foram se estabelecendo desde a colonizao at a

    atualidade, constituindo assim comunidades que tm nessas relaes sociais de produo sua

    principal atividade, justificamos a relevncia social deste estudo.

    Em especial, o estudo em questo poder contribuir para dar visibilidade ao papel

    social e poltico desses extrativistas no contexto das Unidades de Conservao de uso

    sustentvel, no qual deveriam estar inseridos enquanto agentes primordiais desse processo.

    Alm de contribuir com a constituio dos PMs ainda no elaborados, dada a estagnao da

    fase I dos PMs iniciados em 2009 que considere o saber local como fundamental para que o

    projeto de sustentabilidade se efetive, por meio da apreenso sociolgica acerca das

    perspectivas dos agentes locais e outros envolvidos.

    Nossa hiptese principal de trabalho que as formas de ser e agir desses grupos locais,

    includos a os saberes locais, no esto contemplados, tendo em vista a relao assimtrica

    entre os tomadores de decises e as populaes humanas atingidas pela poltica ambiental. Ou

    seja, a racionalidade mtico/prtica da populao local subordina-se racionalidade

    tecnocrtica por meio de seus arranjos instrumentais, aos quais a participao dessa populao

    est submetida no mbito da poltica pblica de Unidades de Conservao.

    Sustentamos ainda haver uma unicidade nas aes do IBAMA e ICMBio, que so

    condutoras de um esvaziamento ou degradao do contedo sociocultural desses grupos de

    extrativistas, no sentido de adequar os contextos especficos ao procedimento preestabelecido

    pelo rgo. Enquanto as respostas das populaes locais manifestam uma pluralidade e

    diversidade de formas de acordo com suas habituais formas de ser e agir ambientais.

    Diante dessas verificaes, nosso estudo priorizou a anlise da participao dos grupos

    extrativistas na criao das RESEXs Marinhas e implementao da fase I de seus PMs,

    entendendo que essa participao mediada por tcnicos, consultores5, e experts

    6, agentes do

    5Compreende-se para efeitos deste estudo a distino entre tcnicos e consultores, posta a contratao temporria

    e especfica destes para a coordenao, execuo e monitoramento das atividades descritas no termo de

    referncia, tanto no caso da criao das UCs quanto na fase I de elaborao do PM. 6 Para efeito deste estudo, nominamos de forma distinta os agentes que atuam em nome institucional, de acordo

    com as funes desempenhadas. Experts refere-se aos estudiosos, pesquisadores que atuam como profissionais

    contratados ou no para realizar os estudos preliminares e complementares que subsidiam o conhecimento sobre

    as regies que sero decretadas Reservas e, portanto, norteadoras das aes institucionais na poltica de UCs.

  • Introduo 28

    Estado que atuam na efetivao desse reordenamento que no somente territorial, mas

    tambm socioeconmico, ambiental e cultural.

    Para o debate da participao das populaes locais na poltica de Unidades de

    Conservao, mediada pelas aes de tcnicos e outros profissionais responsveis pela

    implementao tcnica dessa poltica, objetiva-se pensar as interaes entre esses agentes por

    meio das noes de racionalidade7 que Weber (1981, 1991, 1999) compreende como as

    normas institudas do pensamento ocidental que se estabelece em uma conduta ordenada e

    sistematizada de vida, podendo conduzir para vrios tipos de agir social, o que depende do

    tipo de orientao dessa conduta e ethos8 como a materialidade dessa conduta orientada,

    compreendido desse modo como uma prtica, um comportamento condicionado e

    condicionante da racionalidade que se traduzem na forma de pensar, sentir e agir dos

    agentes, no apenas como produto da sociedade sobre o indivduo, mas tambm a partir da

    capacidade criativa desses indivduos responderem a seu meio, atravs de suas aes e

    reaes face ao que se coloca em termos de interao que interfere, de forma mais ampla, na

    estrutura organizacional da vida coletiva.

    Desse modo, propomo-nos pensar a especificidade do comportamento das populaes

    locais, sustentada nas peculiaridades de suas inter-relaes no uso dos recursos naturais.

    Partimos assim da ideia de racionalidade e de ethos particularizados, entendidos como um

    sistema culturalmente padronizado de pensamento-ao que organiza os instintos, emoes,

    aes, como o esprito que anima essa coletividade, conforme caracterizado por Weber

    (1999, p. 20): De fato, o que nos aqui pregado no apenas um meio de fazer a prpria

    vida, mas uma tica peculiar. A infrao de suas regras no tratada como uma tolice, mas

    como um esquecimento do dever. Racionalidade e ethos ambientais, portanto, entendidos

    como no caso em estudo a padronizao de pensamentos, valores, princpios ticos,

    crenas singulares e de comportamentos sedimentados nesse horizonte estabelecido em

    relao ao uso dos recursos naturais, que cria modelos prprios de uso e conservao da

    natureza e que devem ser considerados como condutores da participao da coletividade na

    cogesto ou gesto participativa dos recursos naturais no caso das Unidades de Conservao.

    Importa ainda destacar que o padro de comportamento, no caso em estudo, muito

    marcado pela relao com a natureza, sustenta-se na tradio. Como afirma Gadamer (2002,

    7Para Leff, o conceito de racionalidade em Weber abre perspectivas de anlise sobre a questo ambiental.

    Weber abre assim a possibilidade de incorporar ao estudo da racionalidade social uma multiplicidade de motivaes e foras sociais de mudana para analisar a transio para uma sociedade construda sobre os valores

    do ambientalismo (2006a, p. 122). 8 Em Weber (1999), ethos define uma conduta racional prtica, demarca o comportamento de um grupo guiado

    por regras de conduta, princpios ticos e valores.

  • Introduo 29

    2008), a tradio substncia da razo, que exerce suas funes a partir da realidade histrica

    em que se insere. Tradio, para o autor, a substncia histrica que permanece apesar das

    mudanas. A tradio em Gadamer reabilitada por meio da compreenso de que h um

    movimento histrico no qual o passado lega ao presente e ao futuro perspectivas ticas,

    valores, costumes, percepes (um sistema de pensamento-ao) que se integram ao novo que

    se instaura. De acordo com Gadamer (2008):

    Reconhecer que, ao lado dos fundamentos da razo, a tradio conserva

    algum direito e determina amplamente as nossas instituies e comportamentos [...] A tradio essencialmente conservao e como tal

    sempre est atuante nas mudanas histricas. Mas a conservao um ato da

    razo, e se caracteriza por no atrair a ateno sobre si. (p. 372-373).

    Abordaremos como Gadamer compreende e resgata a tradio, e por isso importa o

    sentido dado a ela, para que possamos entend-la como substncia constitutiva de

    racionalidades e de ethos. O resgate de racionalidades distintas apresenta-se por meio do

    resgate da tradio. Do passado, da tradio vem a substncia tica que compe o ethos

    histrico ao qual pertencemos.

    Compreender a participao das populaes locais necessariamente se faz a partir das

    relaes sociais que se estabelecem sustentadas em racionalidades e ethos distintos. De um

    lado, uma racionalidade sustentada na compreenso tcnica e cientfica, que determina a

    poltica pblica de Unidades de Conservao e que, portanto, sustenta-se em uma tradio

    gerada no escopo da verdade cientfica moderna, que norteia o modo de fazer institucional. E

    de outro, as populaes locais sustentadas em uma racionalidade prtica e um ethos

    constitudo e sustentado por valores enraizados por uma tradio de verdades vivenciadas.

    Ao dar nfase instituio das RESEXS Marinhas no estado do Par, nosso objetivo

    destacar as formas institucionais indicadas de participao das populaes locais nesse

    processo, documentadas nos laudos e diagnsticos elaborados pelo Centro Integrado de

    Desenvolvimento Sustentado das Populaes Tradicionais (CNPT/IBAMA) e analisar a

    participao das populaes locais na implementao das Unidades como produto de uma

    gesto ambiental compartilhada, dando-se nfase assim no s a esse processo prvio que

    gera um procedimento legal e institucional de criao da Reserva, mas tambm a elaborao

    do Plano de Utilizao.

  • Introduo 30

    Outro aspecto que congrega nesse sentido, da anlise da participao das populaes

    locais, a observao da chamada fase I9 dos planos de manejo como um aspecto

    imprescindvel de percepo das formas de insero das populaes que habitam essas reas

    nesses processos.

    importante salientar que o uso dos referenciais de Weber (1967, 1981, 1991, 1999),

    Gadamer (2002, 2006, 2007, 2008) e Ricoeur (s.d., 1968, 1970, 1988, 1991, 1995) norteiam a

    constituio da problemtica apresentada neste estudo e iro conduzir o debate de base da

    tese. Sendo, portanto, entendidos como fio condutor de nossa compreenso, no suprindo um

    debate mais dirigido que ocorrer na elaborao dos captulos luz de debates como de Leff

    (2004, 2006a, 2006b), Adorno e Horkheimer (1985), Sahlins (2003), Gohn (2000, 2008),

    Diegues (2001, 2008), Simonian (2000), Maneschy, (1995), Furtado (1987), Maus (1980,

    1999), Melo (1985), e Loureiro (1985), dentre outros referidos no corpo do trabalho.

    Partimos assim, da compreenso de Weber, analisando a constituio dos tipos ideais

    de racionalidade, em particular a racionalidade instrumental, como conceito chave para a

    compreenso das regras de pensamento e ao dos agentes tcnicos dessa poltica, que

    implica no direcionamento para alcanar fins prticos de modo formal. Quer seja pelo uso da

    razo, enquanto capacidade subjetiva de pensar "o uso da sua capacidade lgica e de

    clculo", quer seja, por sua objetivao processo pelo qual a subjetividade ou conscincia

    humana se corporifica em produtos avaliveis para ela e para os outros como elementos de

    um mundo comum; ou seja, quando essa capacidade se materializa em regras do

    comportamento grupal.

    Assim tambm podemos pensar sob a tica do debate de Horkheimer que as

    populaes locais so agentes de uma racionalidade instrumental tanto quanto os agentes

    tcnicos, pois tambm so portadores dessa "capacidade de calcular probabilidades e, desse

    modo, coordenar os meios corretos com um fim determinado" (2002, p. 15) considerando a

    seus interesses.

    Um tcnico, um consultor ou um expert possui a capacidade de estabelecer os nexos,

    calculando, refletindo, dimensionando seus comportamentos para atingir os resultados a que

    suas aes se destinam. Um pescador pode, por exemplo conhecedor da realidade em que

    9Segundo a Instruo Normativa IN 01/2007 do ICMBio a fase I corresponde a: Levantar, compilar e analisar dados e informaes disponveis sobre a rea e a regio, analisando as informaes em conjunto com a

    populao tradicional da Unidade e identificando e indicando se h necessidade de estudos complementares";

    Alm disso, os consultores e tcnicos tm procedido reviso do PU e aos trabalhos de zoneamento das reas,

    conforme pde ser observado na pesquisa de campo.

  • Introduo 31

    atua , estabelecer correlaes entre os tipos de armadilhas e as formas de serem usadas para

    render-lhe o pescado. Nas duas situaes est sendo usada a racionalidade instrumental.

    So trs as formas de racionalidade que orientam os tipos de ao. De acordo com

    Weber (1991), dentre os quatro tipos de ao social, a ao racional referente a fins pressupe

    que esse tipo mediado por determinados interesses com um sentido subjetivo para o agente

    ou agentes. Objetiva alcanar determinados resultados que fazem parte de suas expectativas e

    que so perseguidos racionalmente. Essa a definio que nortear de forma direta o estudo

    proposto, no entendimento das aes dos agentes individuais e coletivos envolvidos na

    poltica de Unidades de Conservao.

    A racionalidade materializa-se em ao, a esse processo Weber denomina

    racionalizao, referindo-se aplicabilidade de valores, normas e princpios no exerccio

    prtico, e tem a ver com a organizao social, com a organizao da vida coletiva por meio da

    formao do ethos. E atravs de Weber que podemos pensar em ethos distintos e diversos,

    conforme afirma:

    Temos as racionalizaes da vida econmica, da tcnica, da pesquisa

    cientfica, do treino militar, do direito e da administrao. Alm disso, cada um desses campos pode ser racionalizado em termos consoantes com valores

    ltimos e finalidades muito diferentes, e o que racional de um certo ponto

    de vista, poder ser irracional de outro. Racionalizaes dos mais variados

    tipos tm existido em vrios setores da vida, e todas as reas da cultura. (WEBER, 1999, p. 09).

    Assim, podemos pensar no regramento jurdico formal legal como base de sustentao

    como fator de importncia incontestvel para a racionalizao da ao nas diversas esferas

    pblicas, conforme norteia as aes institucionais IBAMA e ICMBio. Bem como podemos

    pensar na constituio de princpios ticos e uma moral tacitamente estabelecidos e

    respeitados como o que foi convencionado para organizar de forma especfica a vida de

    grupos sociais, ou seja, as suas aes. Conforme iremos observar a partir da distino entre

    tica e moral na proposta tica de Ricoeur (1995) exposta no captulo 6.

    A partir de Weber e da hermenutica da ao temos, desse modo, a ajuda para pensar

    os sentidos aproximados ou distintos entre grupos sociais que se inter-relacionam dentro do

    debate ambiental que se apresenta na poltica de UCs. De um lado, experts e tcnicos guiados

    por uma racionalidade sustentada em informaes tcnica e cientificamente sistematizadas e

    com fins claramente determinados, o que envolve as instituies responsveis pela poltica

    pblica em implementao. E de outro, as populaes locais amparadas em uma racionalidade

  • Introduo 32

    mantida nos modos de ver e agir, claramente sustentados em formas culturais prprias de uso

    da natureza. Um contraponto entre a racionalidade formal-legal e a racionalidade mtico-

    prtica das populaes locais, observadas ambas, como tipos ideais.

    Podemos pensar assim no contexto da poltica de Unidades de Conservao, em

    racionalidades a partir de tradies distintas de acordo com a realidade dos agentes

    envolvidos. Tcnico, consultores e experts sustentados numa racionalidade ecolgica10

    dentro dos marcos da racionalidade econmica dominante, sustentando-se em fins

    determinados e claros voltados para um manejo integrado e sustentvel dos recursos naturais,

    aliados a uma racionalidade tcnica que estabelece os meios para a eficcia desses fins de

    gesto ambiental. E, as populaes locais, cuja racionalidade sustenta-se em representaes e

    simbologias constitudas no exerccio cotidiano da vida local, com uma significao cultural

    de algum modo singular. possvel assim, pensar as aes sociais desses agentes em relao

    questo ambiental a partir das intenes ou do sentido visado de suas aes, seus

    desdobramentos e nexos.

    Para seguirmos nessa perspectiva terica que prope alternativas dentro dessa

    discusso da racionalidade, adotamos o debate de Gadamer e Ricoeur, por meio de uma

    discusso terica que valoriza a relao dialgica. Pretendemos analisar, portanto, interaes

    sociais que se sustentam em racionalidades distintas e que visam a fins tambm distintos. De

    acordo com Soares (1988, p. 101), o reconhecimento da relatividade das razes, acionadas

    na prtica singularizante de individualidades radicadas em horizontes particulares.

    I.II A ESTRUTURA DE APRESENTAO Dos captulos

    Nos captulos, procuramos, a partir dos caracteres enunciados no seu processo de

    elaborao, compreender a partir do conceito de racionalidade instrumental em Weber,

    enquanto tipo ideal a materializao de racionalidades que se apresentam no fazer estatal e

    no fazer-se local apreendidos por meio da noo de ethos. Desse modo, passamos a

    enunciar essas racionalidades designando-as a partir do que se apresenta como mais peculiar,

    a partir de referenciais como racionalidade institucional, cientfica, ecolgica, tcnica, prtica

    ou cultural, apoiando-nos em referenciais como Leff (2004, 2006a, 2006b) Gadamer (2002,

    2007a, 2007b, 2008) e Sahlins (2003). Essa sequncia de categorizao nos ajuda a

    10 Acerca da definio de racionalidade ecolgica, vide Leff (2004, 2006a, 2006b).

  • Introduo 33

    contextualizar o cenrio constitudo no bojo da poltica de Unidades de Conservao e a

    compreender diante da diversidade o processo participativo dos agentes sociais envolvidos.

    A estruturao dos captulos desta tese segue organizada em uma lgica que permita a

    compreenso da constituio originria das RESEXs at a apresentao dos meandros da

    cogesto ou gesto participativa dessas unidades. Para tanto, procuramos demonstrar, o

    contexto de vida e organizao social das populaes locais e o contexto de aes

    institucionais, para na sequncia compreender o processo participativo institudo pela poltica

    pblica. Conforme segue:

    O primeiro captulo destina-se a demonstrar o percurso da pesquisa, desde o contato

    com a realidade em anlise, o uso dos recursos metodolgicos, bem como o relato, em parte,

    da experincia em campo. Compartilhamos assim com o leitor ansiedades, angstias e

    surpresas que o trabalho de campo reserva, fazendo-nos repensar nossas estratgias a fim de

    alcanarmos os objetivos propostos, sem ultrapassar os limites impostos pelas relaes

    construdas nesse processo. Ainda nesse captulo, apresentamos, minimamente, nossa

    tentativa em tomar a hermenutica fenomenolgica como suporte de nossa interpretao e

    condutora de nossas aes.

    No segundo captulo, para melhor compreenso do contexto em anlise nos

    propusemos a resgatar o histrico em termos de surgimento e criao das Reservas

    Extrativistas como resultante de movimentos sociais apropriados pelas polticas agrria e

    ambiental que se instituem no Brasil. Pretendemos situar a estrutura organizacional das

    reservas, apresentar o debate jurdico acerca dessa estruturao e, principalmente, acerca do

    princpio jurdico da participao que coloca as populaes locais como agentes primordiais

    no contexto dessa poltica. Esse resgate, alm de situar o contexto histrico social das

    RESEXs, subsidiar a anlise do ltimo captulo desse trabalho, que analisa efetivamente o

    processo participativo das populaes locais no contexto da criao das RESEXs.

    Neste captulo retomamos um breve histrico acerca da criao das RESEXs,

    enfatizando o movimento social dos seringueiros e as conexes estabelecidas com o

    ambientalismo, bem como destacamos o processo de acomodao dessa ideia pelas

    instituies estatais, como poltica agrria e ambiental, atendendo a interesses e demandas de

    outras esferas por vezes contraditrias a demanda dos ento definidos como populaes

    tradicionais.

    A inteno do terceiro captulo situar o leitor nas especificidades das localidades

    onde foram decretadas as RESEXs de Soure e Ara-Peroba. Apresentamos os meandros de

    cada lugar vila ou bairro onde vivem os usurios dessas unidades, com o objetivo de

  • Introduo 34

    elucidar o cenrio de vida e trabalho dessas populaes. Sustentamos para tanto nossa anlise

    nas noes antropolgicas de lugar e territorialidade social.

    Apresentamos tambm a constituio e a demarcao poltico/institucional das

    RESEXs Marinhas, particularmente das duas, locus do trabalho de campo, ainda na inteno

    de explicitar sob que aspectos geossocioambientais essas UCs so institudas, pois a

    uniformizao institucionalmente estabelecida, alm de sustentar-se sobre outra racionalidade

    acerca das relaes com a natureza, restabelece tambm, por meio da institucionalizao, o

    esvaziamento dos sentidos locais que apreendemos pela noo de no-lugar e o controle

    do poder estatal sobre as reas delimitadas como UC, o que define para ns uma nova

    territorialidade, agora no marco da retomada do controle poltico/institucional.

    A ideia central do quarto captulo E tudo era encantado... mostrar como se

    consubstanciam os ethos ambientais locais, tendo principalmente a inteno de destacar os

    sentidos dados pela racionalidade prtica local aos ethos ambientais locais em suas

    particularidades no uso dos recursos naturais, ou seja, por meio da ao social do trabalho.

    Isto posto, apresentamos uma interpretao do contexto desses ethos nas RESEXs a fim de

    apresentar no captulo quinto especificamente a racionalidade e o modus operandi

    institucional mostrando os contrapontos que se apresentam no processo participativo

    necessrio criao e elaborao dos PMs, haja vista o preceito legal da participao.

    Procuramos compreender nesse quarto captulo um ethos tecido na trama de relaes

    sacralizadas, por vezes mais no sentido da relao mtica e, por vezes, com forte influncia de

    elementos do cristianismo, mas primeiramente estruturado sob essas bases encantadas com

    sentidos particularizados.

    No quinto captulo No Reino das Unidades de Conservao... nossa proposta

    apresentar o outro lado do debate. Se no captulo anterior apresentamos o contexto local das

    populaes que vivem tradicionalmente em relaes diretas com a natureza , em que as

    subjetividades e intersubjetividades so ressaltadas, neste procuramos demonstrar o quanto as

    subjetividades so relegadas ao campo do irracional em nome da objetividade cientfica e

    tecnocracia institucional.

    Tomamos o debate acerca da coisificao das relaes humanas, impostas pela

    transferncia da racionalidade do mtodo cartesiano das cincias naturais transportada para as

    cincias humanas ou do esprito. Esse debate apresenta-se perpassado pelo debate filosfico,

    particularmente acerca da hermenutica filosfica de Gadamer, que apresenta a essas cincias

    uma nova perspectiva para a anlise dos fatos sociais. Compreend-los a partir do horizonte

    histrico, compreend-los compreendendo a ns mesmos. Compreender colocando em

  • Introduo 35

    perspectiva verdades outras que no a verdade absoluta e universal que a cincia cartesiana

    impe.

    A partir dessa perspectiva, pretendemos demonstrar como essa cincia reificadora se

    constitui como a base sobre a qual se erigem as aes institucionais da poltica pblica de

    UCs. Nossa anlise se d, nesse ponto, sobre os estudos laudos e diagnsticos que se

    instituem como imprescindveis, por preceito legal, para a compreenso dos contextos a serem

    decretados RESEXs. Como se constitui esse conhecimento que, embora realizado sobre os

    contextos das localidades onde vivem as populaes extrativistas , no entorno das

    RESEXs, associado aos preceitos legais, orienta um trabalho desencantado que se quer

    objetivo, neutro e universal e por isso desencantador dos contextos simblicos e materiais

    das populaes locais que se coaduna ao contexto mais amplo dos interesses subsumidos na

    poltica pblica ambiental.

    Analisamos, a partir do referencial de desencantamento do mundo, essas relaes

    objetivadas e efetivamente calculadas que sustentam a implementao das RESEXs e

    elaborao da fase I dos PMs, ou pelo menos o que foi realizado dessa fase, por meio da ao

    do corpo tcnico institucional e de seus consultores.

    Para finalizar nossa anlise nesse captulo, apresentamos a forma como o

    comportamento ou ethos institucional se constitui nos (des)encontros dos interesses que se

    efetuam como dever institucional diante do outro local e diante das suas prprias

    subjetividade. Um outro ethos forjado na constituio de um estilo de ser moderno,

    sustentando-se nos aportes cientficos e legais objetivados e, portanto, portador de uma

    dessacralizao das relaes em que as particularidades se perdem pela falta de sentido

    subjetivo.

    No sexto captulo Participao e perspectivas ticas , buscamos por meio da

    sustentao na hermenutica fenomenolgica, interpretar os sentidos que orientam as aes

    das populaes locais mediante as aes dos agentes institucionais. Nossa proposta aqui

    colocar em contraponto perspectivas distintas para o mesmo contexto, apresentando as

    assimetrias que se instituem a partir dos sentidos distintos dado a suas aes, posto partirem

    de perspectivas diferenciadas.

    Apontamos, luz de Ricoeur (s.d., 1965, 1968, 1988, 1991, 1995), possibilidades para

    pensar as relaes entre sujeitos bem como as relaes entre a esfera pblica e populaes

    locais em Unidades de Conservao por meio de novas perspectivas tica e de dilogo.

    Nosso objetivo ltimo ao apresentar nos captulos deste trabalho a tenso constante

    entre a organizao social das populaes locais e a ao institucional pblica no contexto da

  • Introduo 36

    poltica de UCs constitui-se pela tentativa de apresentar a perspectiva tica como uma

    alternativa possvel de relao dialgica e de considerao a alteridade entre a racionalidade

    cientfico-tcnica e a racionalidade prtica local, a partir da apreenso do processo de

    interao entre seus agentes nas UCs. No bojo das relaes sociais e institucionais no marco

    da poltica de UCs seriam possveis vias de conciliao?

    Finalizamos esta introduo pretendendo que, por meio dessas novas perspectivas,

    torne-se possvel pensar em relaes ticas demarcadas pelo dilogo. Que esse dilogo torne

    menos dspares os diversos olhares sobre uma mesma realidade, podendo ampliar as

    perspectivas de ao conjunta em prol da conservao da biodiversidade e sociodiversidade

    amaznica.

  • DA PESQUISA

  • Da pesquisa 38

    1 DA PESQUISA

    1.1 A HERMENUTICA COMO FUNDAMENTO DO ESTUDO

    A hermenutica da forma como buscamos apreender para nosso estudo no se situa no

    contexto de um mtodo, ou, no dizer de Gadamer (2006, p. 10), uma metodologia

    hermenutica concebida maneira de Schleiermacher ou de Dilthey, ou como um corpo

    geral de princpios metodolgicos que subjazem a interpretao (PALMER, 2006, p. 55),

    mas sim como uma postura compreensiva perante o mundo, visto que, de acordo com a

    filosofia de Heidegger retomada por Gadamer (2008), a compreenso/interpretao inerente

    a todos, no se constitui em uma capacidade mental possvel ou no, constitui o ser-no-

    mundo, um ser relacional, um modo de estar no mundo: Compreender [...] , ao contrrio, a

    forma originria de realizao da pre-sena (p. 347).

    Se encontramos sempre a interpretao no cotidiano e nos livros, para que serve a reflexo hermenutica? Certamente no para gerar um mtodo capaz

    de orientar as prticas interpretativas, na vida cotidiana ou na academia. Pelo

    menos se nos situarmos, como pretendemos, neste ensaio, prximos

    perspectiva de Hans-Georg Gadamer. (SOARES, 1988, p. 101).

    A entrada do debate da hermenutica na construo cientfica, particularmente na

    produo sociolgica, constitui-se como referncia para uma nova racionalidade cientfica,

    cuja propenso se d mediante uma disposio da construo de um conhecimento dialgico

    no qual o texto, a ao social, o fato ou a obra se transforma em objeto de interpretao

    quando conduz o intrprete a uma pergunta e lhe acarreta uma abertura a outras perguntas e a

    novas possibilidades de sentidos voltado para uma interveno tica por meio do

    desvelamento dos saberes e experincias, princpios ticos e conforme afirma Souza Santos

    (2006), revelando experincias sociais desperdiadas, ou em parte invisibilizadas pela

    modelo racional dominante da cincia ocidental moderna.

    No caso de nossa pesquisa, o debate da hermenutica orienta-nos a uma justaposio

    entre os saberes, experincias e sentidos enquanto constructum que possa deixar e fazer ver

    (HEIDEGGER, 2008, p. 72) perspectivas distintas sobre o mesmo contexto. Visto que a

    circularidade gadameriana sugere um processo hermenutico em espiral, que se faz pelo

    movimento dialgico demarcado pela temporalidade histrica.

    De acordo com Palmer (2006, p. 24), a raiz grega mais antiga da palavra hermenutica

    sugere o processo de tornar compreensvel, sendo que sua forma verbal (hermneuein)

  • Da pesquisa 39

    exprime o dizer, o explicar e o traduzir, trs significados que imprimem sentido ao verbo

    interpretar.

    Distinguindo a interpretao do compreender, Heidegger, em Ser e Tempo (2008),

    define a primeira como as elaboraes possveis esquematizadas pelo compreender. Para o

    autor interpretar no tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as

    possibilidades projetadas na compreenso, a interpretao explicita a compreenso (p. 209).

    A interpretao resulta da relao entre partes que se constituem a partir das suas

    experincias, ou seja, resultante do encontro dos horizontes histricos em que se inserem.

    Para Gadamer (2008), a interpretao a expresso da situao concreta em que se encontra o

    homem, pressupe assim as pr-compreenses historicamente determinadas (os preconceitos),

    uma relao dialgica e, portanto envolve os horizontes hermenuticos e pressupe uma fuso

    de horizontes: [...] toda a interpretao correta tem que proteger-se da arbitrariedade de

    intuies repentinas e da estreiteza dos hbitos de pensar imperceptveis, e voltar seu olhar

    para as coisas elas mesmas (GADAMER, 2008, p. 355).

    Toda interpretao apenas um ponto de vista, uma possibilidade dentre outras

    possveis, demarcada pela finitude e historicidade do ser. Quando interpretamos um texto, um

    objeto, uma obra ou um fato, estamos investigando o contexto no qual se deu a produo de

    seus agentes, j estamos situados no horizonte aberto pelo texto, assim como nos deparamos

    com nossas prprias pr-compreenses, visto que todo compreender acaba sendo um

    compreender-se (GADAMER, 2008, p. 349). Para esse autor, compreender sempre um

    movimento recorrente, contnuo e inacabado de interpretao. Esse crculo hermenutico

    abrange um movimento e uma totalidade relacional, se a compreenso materializa-se na

    relao, logo ao compreender, compreendemo-nos enquanto ser-no-mundo.

    Desse modo, para alm da ideia de interpretaes, cabe em sentido mais amplo o

    compreender, compreender-se, como um movimento da existncia humana, como um

    compreender o outro e um compreender-se a si mesmo enquanto dasein a complexa

    conjugao da presena humana em seus vrios nveis de realizao finita (HEIDEGGER,

    2008, p. 29).

    Dasein indicao de experincia, onde compreender no diz agarrar a

    realidade com esquemas j dados, mas deixar-se tomar pelo que faz a

    compreenso buscar compreender. Dasein assim palavra indicativa,

    palavra condutora como o fio de Ariadne, a servio do pensamento. (HEIDEGGER, 2008, p. 17).

  • Da pesquisa 40

    O compreender, desse modo, como experincia da vida, em que j somos de acordo

    com Gadamer (2002, p. 79), o sentido de pertena refere-se ao fato de que antes de pensarmos

    o mundo j estamos no mundo e, portanto, j temos uma histria e uma tradio e nos

    compreendemos a partir da estrutura prvia do sentido, sugere-nos um movimento de

    interpretao e reinterpretao, tendo em vista a parcialidade que a interpretao introduz pelo

    carter finito e histrico do ser (GADAMER, 2006), e ainda o entendimento de que a

    compreenso/interpretao no se faz unicamente pela via da cincia; compreender/interpretar

    est para o ser nas suas mltiplas possibilidades. Conforme afirma Geertz acerca da

    interpretao antropolgica, os textos antropolgicos, so eles mesmos, interpretaes e, na

    verdade, de segunda e terceira mo (1989, p. 25).

    Logo partimos dessa anlise para nosso estudo com o entendimento de dois planos de

    compreenso, o primeiro refere-se percepo do que se d imediatamente, uma

    compreenso elementar (preconceito), conforme Gadamer (2006), e o outro uma compreenso

    que vai alm do significado imediato e coerente para os sentidos ocultos:

    A compreenso implica sempre uma pr-compreenso que, por sua vez,

    prefigurada por uma tradio determinada em que vive o intrprete e que modela os seus preconceitos. (GADAMER, 2008, p. 347).

    A hermenutica o processo de decifrao que vai de um contedo e de um

    significado manifestos para um significado latente e escondido. O objecto de interpretao, i.., o texto no seu sentido mais lato, pode ser constitudo

    pelos smbolos de um sonho ou mesmo por mitos e smbolos sociais ou

    literrios. (PALMER, 2006, p. 52).

    Para alm da sociologia compreensiva de Weber como ponto de referncia inicial,

    buscamos a um aprofundamento no sentido de uma orientao com vistas a uma postura

    sociolgica que imprima uma possibilidade de apreenso dos sentidos das aes sociais e das

    relaes que se estabelecem entre seus agentes, na busca da compreenso do modo de ser e

    fazer-se desses agentes a que estamos definindo como racionalidade e ethos. Sentidos esses

    subjacentes em suas narrativas, discursos, simbologias, ritos, mitos. Para Ricoeur (1965), esse

    universo constitui o campo privilegiado da hermenutica. Para o autor, os significados literais

    dissimulam os sentidos simblicos, exigindo, desse modo, o trabalho interpretativo para

    compreenso desses sentidos.

    Partimos, assim, para nosso estudo compreendendo que o conhecimento que se

    constitui da relao eu (pesquisador) tu (agentes/sujeitos do contexto em anlise) sofre a

    influncia do ser histrico de cada uma dessas partes, da tradio que lhes determina o

  • Da pesquisa 41

    horizonte hermenutico, em uma dialtica entre os contextos desses agentes e o contexto

    histrico-social do pesquisador.

    Esses aspectos levantados sugerem uma trilha, uma perspectiva no processo de

    amadurecimento enquanto pesquisador e que hoje nos indicam uma dupla postura sociolgica

    no movimento de compreenso compreender a si mesmo enquanto sujeito histrico nessa

    interao com o outro, consciente da elaborao de uma interpretao que prioriza um

    aspecto dentre uma multiplicidade e buscando a compreenso do contexto em anlise,

    considerando os sentidos subjacentes s interpretaes de seus agentes; o exerccio de uma

    sociologia da tica e da alteridade, situando a si mesmo enquanto sujeito histrico e

    percebendo os agentes como portadores de horizontes distintos em interao.

    A hermenutica, para Heidegger (2008), a busca do sentido do ser em geral, contudo,

    apenas o homem, entre todos os entes, capaz de se questionar e, portanto, compreender

    sobre o sentido do ser, sobre o modo de ser do homem, a sua existncia (dasein). Essa

    ontologia Heidegger entende como hermenutica.

    Esse aporte sobre a compreenso/interpetao alimenta-se tambm, para ns, junto ao

    debate da fenomenologia, particularmente ao que Gadamer (2008) analisa como o projeto de

    Heidegger de uma fenomenologia hermenutica (p. 341). Conceitos-chave para a

    fenomenologia de Heidegger esto na fenomenologia de Husserl, como Lebenswelt (mundo

    da vida). A hermenutica da facticidade em Heidegger sustenta que a pre-sena, a

    existncia do ser-a (dasein), a existncia comprometida com uma situao histrica no

    escolhida a base ontolgica do questionamento fenomenolgico. Distanciando-se da

    interpretao idealista da fenomenologia husserliana. Para Heidegger (2008),

    ontologia s possvel como fenomenologia. O conceito fenomenolgico de

    fenmeno prope, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificaes e seus derivados. [...] Atrs dos fenmenos da fenomenologia no h absolutamente nada. Contudo aquilo que deve tornar-

    se fenmeno pode velar-se. A fenomenologia necessria justamente porque, numa primeira aproximao e na maioria das vezes, os fenmenos

    no esto dados. (p. 76-77, grifos do autor).

    De acordo com Heidegger, para compreender o que fenomenologia deve-se ir

    origem do termo. Fenomenologia tem dois componentes: fenmeno e logos. O primeiro

    refere-se ao que se mostra, ao que se revela em si mesmo, pondo-se a claro, tornando-se

    visvel em si mesmo para alm da aparncia e, logos, apesar de polissmico, refere-se em seu

    exerccio concreto, a fala deixar ver. De acordo com Heidegger, reside no deixar e fazer

  • Da pesquisa 42

    ver algo (2008, p. 72), reside no desvelamento. Ou seja, refere-se ao que dito enquanto

    comunicao entre interlocutores. O logos como discurso refere-se quilo de que se fala, uma

    revelao daquilo a que se diz respeito (DARTIGUES 1992, p. 128).

    A palavra fenomenologia exprime uma mxima que se pode formular na

    expresso para as coisas elas mesmas! [...] Contudo poder-se-ia objetar que se trata de uma mxima evidente por si mesma e que, ademais, exprime o princpio de todo conhecimento cientfico [...] com efeito uma

    evidencia que desejamos assumir mais de perto. (HEIDEGGER, 2008, p. 66, grifo do autor).

    Ainda segundo Dartigues (1992), ir s coisas mesmas prolongar a investigao alm

    do dado, enraizando a inteno da anlise nas estruturas essenciais concretas. Substituindo o

    ser transcendental pela existncia em sua facticidade, o que o autor considera como uma

    passagem para a fenomenologia hermenutica consubstanciada em Heidegger, para o qual a

    fenomenologia trata do velamento e do desvelamento do ser-a, de um ser familiarizado

    com um conjunto de sentidos e significados dados espao-temporalmente.

    Hermenutica e fenomenologia, ambas referem-se inteno de trazer luz o que se

    oculta naquilo que se mostra, visam a interpretar o que se mostra, o que se manifesta a, visto

    que, na maioria das vezes, no se deixa ver de imediato.

    A partir desse debate da hermenutica e da fenomenologia, buscamos compreender as

    perspectivas de relao com as cincias do esprito, para da ocuparmo-nos, nesse ensaio,

    buscando seu norte de orientao.

    A grande questo que a fenomenologia coloca no princpio das cincias

    humanas consequentemente a seguinte: "De que essas cincias so cincias?" evidentemente fcil responder: "Do homem", mas preciso

    ainda saber o que se deve entender por "o homem". (DARTIGUES, 1992, p.

    61).

    O paradigma predominante na cincia moderna constitui-se sustentado em uma

    racionalidade tcnico-especializada que estabelece uma desumanizao, posto o rigor

    cientfico que condiciona sua dimenso unssona por meio da busca da objetividade de