tese de doutorado - wittgenstein e o argumento da linguagem privada

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Tese de doutorado sobre Wittgenstein e o Argumento da Linguagem Privada.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO CARLOS CENTRO DE EDUCAO E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    LINGUAGEM E SIGNIFICADO NAS INVESTIGAES FILOSFICAS DE WITTGENSTEIN: uma anlise do argumento da

    linguagem privada

    MIRIAN DONAT

    So Carlos

    2008

  • MIRIAN DONAT

    LINGUAGEM E SIGNIFICADO NAS INVESTIGAES

    FILOSFICAS DE WITTGENSTEIN: uma anlise do argumento da linguagem privada

    Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal de So Carlos como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutora em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Bento Prado de Almeida Ferraz Neto.

    So Carlos 2008

  • Ficha catalogrfica elaborada pelo DePT da Biblioteca Comunitria/UFSCar

    D677ls

    Donat, Mirian. Linguagem e significado nas investigaes filosficas de Wittgenstein : uma anlise do argumento da linguagem privada / Mirian Donat. -- So Carlos : UFSCar, 2008. 160 f. Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de So Carlos, 2008. 1. Linguagem. 2. Significado. 3. Wittgenstein, Ludwig Josef Johann, 1889-195. I. Ttulo. CDD: 100 (20a)

  • DEDICATRIA

    Para Octavio Donat e Bento Prado Jnior.

    In memorian.

  • AGRADECIMENTOS

    Ao meu orientador, Bento Prado Neto, por ter aceitado continuar a orientao

    desse trabalho num momento to delicado de sua vida, pelo apoio e confiana

    depositados e pelas orientaes e correes.

    Ao Programa de ps-graduao em Filosofia da Universidade Federal de So

    Carlos, aos seus professores e funcionrios.

    Aos professores Joo Verglio Cuter e Mark Julian Richter Cass, pela leitura atenta

    e pelas sugestes por ocasio da banca de qualificao.

    Ao Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Londrina e aos meus

    colegas professores, pela licena concedida no perodo de agosto de 2004 a

    agosto de 2006 e pelo apoio no desenvolvimento desse trabalho.

    Ao professor Ludoviko dos Santos, diretor do Centro de Letras e Cincias

    Humanas da UEL, pela grandeza, bondade e pacincia com que tem me

    presenteado em nossa convivncia.

    Aos alunos do curso de filosofia, em especial os alunos que tm participado dos

    meus projetos de pesquisa, por compartilharem das minhas preocupaes e

    inquietaes.

  • minha me, Sibila, pelo amor e apoio incondicionais de uma vida inteira.

    Aos meus irmos, cunhados, meus sobrinhos e minha sobrinha neta, enfim, minha

    famlia querida, por todo o amor que sempre me dedicaram, mesmo nas horas

    mais difceis e mesmo com toda essa distncia geogrfica que a vida colocou

    entre ns.

    minha colega e amiga Thamara Jurado, cuja generosidade me surpreendeu

    desde o momento em que a conheci.

    s minhas amigas e companheiras de travessia Claudia, Cristina e Sonia, pela

    amizade, compreenso e alegria, pela mo amiga em momentos difceis e pelas

    gostosas gargalhadas em momentos mais prazerosos.

    fabulosa famlia Ludo, Liana, Bianka, Karolina e Adriano, por terem me acolhido

    com tanto amor em sua casa e em suas vidas.

    Aos meus amigos queridos, pelo afeto e carinho, que tornam a vida mais

    agradvel.

  • H um tempo em que preciso abandonar as roupas

    usadas que j tm a forma do nosso corpo e esquecer os

    nossos caminhos que nos levam sempre aos mesmos

    lugares. o tempo da travessia e, se no ousarmos

    faz-la, teremos ficado, para sempre, margem de ns

    mesmos.

    Fernando Pessoa

  • Este livro foi escrito para aqueles que esto em sintonia com o seu esprito.

    Wittgenstein. Observaes filosficas.

    to difcil encontrar o comeo. Ou melhor, difcil comear no comeo. E no

    tentar recuar mais.

    Quero encarar aqui o homem como um animal; como um ser primitivo a quem se

    reconhece instinto, mas no raciocnio. Como uma criatura num estado primitivo.

    Qualquer lgica suficientemente boa para um meio de comunicao primitivo no

    motivo para que nos envergonhemos dela. A linguagem no surgiu de uma

    espcie de raciocnio.

    Wittgenstein. Da certeza.

    Se na vida estamos rodeados pela morte, tambm na sade de nosso intelecto

    estamos rodeados pela loucura.

    Wittgenstein. Cultura e valor

  • DONAT, Mirian. Linguagem e significado nas Investigaes Filosficas de Wittgenstein: uma anlise do argumento da linguagem privada. 2008, 164 p. Tese (Doutorado em Filosofia) Universidade Federal de So Carlos So Carlos - SP.

    RESUMO A tese analisa a concepo de significado como uso da linguagem, desenvolvida por Wittgenstein nas Investigaes Filosficas, mas com o objetivo especfico de compreender o papel desempenhado pelo assim chamado argumento da linguagem privada na elaborao dessa concepo. A concepo de significado como uso da linguagem, que se assenta nos conceitos de jogos de linguagem, formas de vida, semelhana de famlia e seguir regras apresentada por Wittgenstein como alternativa s concepes de significado que tinham como fundamento experincias subjetivas e privadas, que Wittgenstein considerou como uma das imagens que tm provocado os maiores equvocos para a correta compreenso do funcionamento da linguagem. Segundo Wittgenstein, a aceitao dessa imagem leva ao ceticismo acerca da significao, pois se temos que aceitar que o fundamento da significao a experincia subjetiva, temos tambm que aceitar que a associao entre palavra e experincia acontece privadamente e, com isso, aceitar tambm a existncia de critrios subjetivos de discriminao e identificao das experincias, portanto, critrios subjetivos para a correo ou no do uso das palavras correspondentes. Ora, segundo Wittgenstein, um critrio subjetivo na verdade no critrio algum e, contra essa noo, afirma que a linguagem tem sempre uma origem e um uso comuns e que, por isso, o significado sempre dependente desse uso comum das palavras, que acontece dentro de jogos de linguagem que, por sua vez se desenvolvem contra o pano de fundo das formas de vida. O argumento da linguagem privada tem um papel fundamental para a elaborao da concepo de significado como uso, pois com esse argumento Wittgenstein pretende demonstrar que mesmo para as experincias subjetivas, para aquilo que parece absolutamente privado, temos necessidade de critrios pblicos de discriminao e identificao

  • DONAT, Mirian. Language and meaning in Wittgensteins Philosophical Investigations: an analysis of the private language argument.2008, 164 p. Thesis (Doctors degree in Philosophy) Federal University of So Carlos So Carlos - SP.

    ABSTRACT

    This thesis analyzes the idea of meaning as language use, developed by Wittgenstein in the Philosophical Investigations, with the specific purpose of understanding the role played by the so-called private language argument in the elaboration of this concept. The concept of meaning as language use, which is based on the language games concepts, forms of life, family resemblance and the rules-following, is presented by Wittgenstein as an alternative to the concepts of meaning that were based on subjective and private experiences, that Wittgenstein considered as one of the images that has caused the greatest misunderstandings for the correct understanding of the language functioning. According to Wittgenstein, the acceptance of this image leads to skepticism concerning meaning, for if we have to accept that the basis of meaning is the subjective experience, we also have to accept that the association between word and experience takes place privately as well as accept the existence of subjective criteria of discrimination and identification of experiences, consequently subjective criteria for the correction or not of the use of the corresponding words. Now, according to Wittgenstein, a subjective criterion is not in fact a criterion and, opposing to this notion, he states that language has always a common origin and use and that, because of this, meaning always depends on this common use of words that happens in language games that, in turn, are developed in opposition to the forms of life background. The private language argument plays an important role for the elaboration of the concept of meaning as use, because with this argument Wittgenstein intends to demonstrate that, even for subjective experiences, for that which seems absolutely private, it is necessary to have public criteria of discrimination and identification.

  • COMISSO EXAMINADORA

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Bento Prado de Almeida Ferraz Neto (Orientador)

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Joo Verglio Galenari Cuter

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Mark Julian Richter Cass

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Eliane Christina de Souza

    _____________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Silva de Carvalho

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................13

    1 LINGUAGEM E SIGNIFICADO NAS INVESTIGAES FILOSFICAS........................................................................................................18 1.1 Significado: o modelo designativo....................................................................18

    1.2 Significado como uso da linguagem.................................................................26

    1.3 Jogos de linguagem e formas de vida..............................................................34

    1.4 Significado e vagueza.......................................................................................41

    1.5 Explicao e compreenso...............................................................................50

    1.6 Filosofia e gramtica.........................................................................................54

    2 REGRAS E SIGNIFICAO............................................................................64 2.1 O conceito de seguir regras e a compreenso lingstica................................66

    2.2 O conceito de regras nas Investigaes Filosficas.........................................71

    2.2.1 A regra e a formulao da regra....................................................................75

    2.3 Compreenso como capacidade......................................................................78

    2.4 O problema da interpretao da regra..............................................................80

    2.5 Regras como parte do arcabouo das formas de vida.....................................90

    3 O ARGUMENTO DA LINGUAGEM PRIVADA................................................95 3.1 A noo de linguagem privada segundo Wittgenstein....................................100

    3.2 Antecedentes..................................................................................................102

    3.3 Crtica definio ostensiva interna...............................................................107

    3.4 Seguir regras: necessidade de critrios pblicos...........................................114

    .

  • 12

    4 A GRAMTICA DOS TERMOS PSICOLGICOS: EXTERIORIZAES....120 4.1 A posse privada da experincia......................................................................126

    4.2 A privacidade epistmica da experincia........................................................132

    4.3 O jogo de linguagem das descries..............................................................135

    4.4 O jogo de linguagem das sensaes: exteriorizaes...................................138

    4.5 As emoes....................................................................................................147

    CONSIDERAES FINAIS.................................................................................153

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................................157

  • INTRODUO Segundo Ludwig Wittgenstein, grande parte do que se considerou tradicionalmente os problemas mais profundos em Filosofia deve sua origem a

    uma compreenso equivocada dos mecanismos que regem o funcionamento da

    nossa linguagem. Isso significa que, se tudo o que escreveu revela quase uma

    obsesso pela linguagem, porque a linguagem ser a ferramenta com a qual se

    poder dissolver esses problemas profundos e mostrar que eles s surgiram pela

    incompreenso da forma como a linguagem efetivamente funciona.

    Ele afirma que, ao filosofar, muitas vezes tem-se a tendncia a aceitar

    certas imagens como se fossem naturais. Entre estas imagens est a concepo

    segundo a qual a significao se baseia na relao das palavras com certas

    entidades correspondentes, sejam estas objetos fsicos ou idias na mente. Outra

    imagem aquela que contrape o mental e o fsico, que tem gerado toda sorte de

    confuso relativa ao interno e o externo, relao entre a mente e o corpo.

    Tambm est entre estas imagens a noo de que a compreenso e a explicao

    da significao ocorrem segundo processos mentais, que no so muito fceis de

    explicar e por isso mesmo so aceitos como algo oculto e misterioso.

    Esta ltima imagem decorrente da noo de que a significao lingstica

    tem como fundamento experincias subjetivas e privadas, o que tem provocado,

    segundo Wittgenstein, os maiores equvocos em relao compreenso da

    linguagem, gerando problemas profundos, de difcil soluo. Esta imagem teria

    acometido tanto filsofos quanto lingistas, que a aceitaram com naturalidade,

    bem como sua conseqncia inevitvel: a suposio de que a significao das

    expresses lingsticas acontece por meio da associao das mesmas com idias

    na mente do falante.

  • 14

    Ora, a aceitao dessa imagem provoca um ceticismo acerca da

    significao, pois se temos que aceitar que o fundamento da significao a

    experincia subjetiva, ento temos tambm que aceitar que a associao entre

    palavra e experincia deve acontecer privadamente, uma vez que apenas o

    prprio sujeito tem acesso s suas experincias e pode a elas associar palavras.

    Teramos tambm que aceitar a existncia de critrios subjetivos para a

    discriminao e identificao das experincias subjetivas, que serviriam ento de

    critrios para a correo ou no do uso das palavras correspondentes. Tais

    critrios devem ser privados, pois s o prprio sujeito tem acesso s suas

    experincias subjetivas, no sentido de que s ele tem tais experincias e que s

    ele pode saber o que est vivenciando, ou sentindo, em dado momento.

    De acordo com estas suposies, temos a conseqncia de que acerca das

    experincias de um outro poderamos ter apenas um conhecimento por analogia

    com as nossas prprias experincias. Associamos nossa experincia com o

    comportamento que dela se segue e, por analogia, associamos o comportamento

    do outro com a experincia que supomos ser a mesma que a nossa. Mas esta

    apenas uma suposio, pois nunca poderamos ter um conhecimento efetivo

    daquilo que se passa na mente de um outro. Estamos diante do ceticismo acerca

    das outras mentes e temos que aceitar o solipsismo, segundo o qual s o que

    existe o prprio sujeito com suas experincias.

    Nas Investigaes filosficas Wittgenstein elabora uma concepo de

    linguagem que visa dissolver aquelas falsas imagens acerca do seu

    funcionamento. Nessa nova concepo, os conceitos de uso, jogos de linguagem

    e formas de vida ocupam um lugar central. Mas com os conceitos de regras e de

    seguir regras que Wittgenstein realmente parece superar a tendncia ctica

    quanto ao significado. Com estes conceitos Wittgenstein tenta provar que a

    linguagem tem sempre uma origem e um uso comuns, ou seja, a possibilidade do

    significado seria sempre dependente de um uso comum das palavras, que

    acontece dentro de jogos de linguagem governados por regras pblicas, e

    pblicas no sentido de que no pode ser que uma nica pessoa tenha seguido

    uma regra, uma nica ocasio na vida.

  • 15

    Nosso objetivo nesse trabalho acompanhar a argumentao que

    Wittgenstein desenvolve nas Investigaes filosficas para a elaborao de sua

    concepo de significado como uso da linguagem, mas com o objetivo especfico

    de entender qual o papel do argumento da linguagem privada para essa

    concepo.

    Isso se explica tendo em vista duas possibilidades de interpretao desse

    argumento. Em primeiro lugar, poder-se-ia considerar que a soluo do ceticismo

    quanto ao significado j estivesse resolvido na passagem relativa s regras e

    seguir regras, na passagem que vai do pargrafo 185 ao 242 das Investigaes.

    Assim sendo, a argumentao sobre a linguagem privada, que vai do pargrafo

    243 ao pargrafo 315, no acrescentaria nada de novo em relao aos

    argumentos precedentes, podendo mesmo ser considerada uma argumentao

    desnecessria, como queria Saul Kripke. Em segundo lugar, temos a interpretao

    que, como no primeiro caso, considera que a argumentao sobre a significao

    j estaria resolvida nos pargrafos precedentes, mas esta passagem no seria

    desnecessria, embora no seja mais do que uma aplicao do critrio l

    encontrado para a linguagem das sensaes. Seria assim um esclarecimento do

    funcionamento do jogo de linguagem das sensaes com base nos critrios de

    significao desenvolvidos previamente.

    Contra a primeira interpretao, consideramos que o argumento da

    linguagem privada tem sim um papel fundamental para a elaborao da

    concepo de significado como uso da linguagem, pois com esse argumento

    Wittgenstein pretende demonstrar que mesmo para as experincias subjetivas,

    para aquilo que parece absolutamente privado, temos necessidade de critrios

    pblicos de identificao e discriminao. Assim, a linguagem que se refere s

    experincias subjetivas tambm dependente de critrios pblicos, sob pena de

    no possuir significado algum e, portanto, nem mesmo poder ser considerada

    linguagem.

    Acerca da segunda interpretao, consideramos que ela no suficiente

    para explicar o papel do argumento no conjunto da obra. Isso significa que essa

    argumentao pode ser aceita como um esclarecimento do jogo de linguagem das

  • 16

    experincias subjetivas, mas que vai alm disso, pois tem um papel decisivo no

    esclarecimento do funcionamento geral da linguagem, como j dissemos. Por isso,

    essa argumentao pode tambm desfazer aquela falsa imagem que Wittgenstein

    reconhecera como fundamento de outras concepes de significao, pois

    teremos esclarecido o modo como efetivamente se pode falar acerca do que a

    tradio considerou interno, privado, e com isso teremos dissolvido todos os

    aparentes problemas que surgem em decorrncia da sua incompreenso.

    O trabalho ser desenvolvido no sentido de mostrar os diversos passos

    dados por Wittgenstein na apresentao de sua nova concepo de significado e

    ter como pano de fundo suas crticas chamada viso agostiniana de linguagem,

    sendo esta considerada como o conjunto de pressuposies que teriam moldado a

    concepo tradicional de linguagem.

    No primeiro captulo mostraremos que, em contraposio concepo de

    linguagem segundo a qual o significado das palavras se d na relao das

    mesmas com os objetos que nomeiam, que defende ser o significado da palavra

    um objeto na realidade e que tem como modelo privilegiado de explicao a

    definio ostensiva, Wittgenstein apresenta uma concepo de significado que

    privilegia o uso das palavras, em que o seu significado deve ser buscado nos

    contextos de uso das mesmas, nos jogos de linguagem em que so aplicadas,

    revelando as regras que regulam e determinam essa aplicao.

    No segundo captulo, ser feita a anlise e o esclarecimento do conceito de

    seguir regras, com o objetivo de esclarecer os conceitos de significao em sua

    relao com os conceitos de explicao e compreenso lingsticas. Este

    esclarecimento se faz necessrio, pois idia de que o significado lingstico

    depende de regras que condicionam e determinam o uso das palavras em jogos

    de linguagem especficos liga-se a noo de que a compreenso e a explicao

    do significado esto relacionadas com a capacidade de seguir corretamente as

    regras do uso das expresses nos jogos de linguagem de que tomam parte. Desta

    forma, Wittgenstein nega que a significao e a compreenso lingsticas sejam

    processos mentais, tais como a capacidade de associar um objeto ou imagem

    mental expresso em questo. Este o segundo elemento da viso agostiniana

  • 17

    de linguagem que Wittgenstein critica e nessa crtica mostra que o esclarecimento

    do conceito de seguir regras fundamental para a correta compreenso da

    concepo de significado como uso da linguagem, demonstrando que o uso das

    palavras, sendo diverso e regido por regras especficas de cada jogo de

    linguagem, no pode ser reduzido a uma nica funo. Alm disso, com esses

    esclarecimentos Wittgenstein demonstra como se d a conexo entre as regras

    que determinam a significao e a prpria aplicao correta das mesmas,

    resolvendo os equvocos relativos aos conceitos de compreenso e explicao

    lingsticas da concepo mentalista.

    O terceiro elemento da viso agostiniana de linguagem para o qual

    Wittgenstein volta sua ateno o suposto fundamento privado da significao,

    que tem suas origens na noo de que os objetos ltimos que as palavras da

    linguagem referem so dados imediatos da experincia subjetiva. A crtica a essa

    concepo ser feita em dois momentos. Em primeiro lugar, no terceiro captulo,

    mostraremos as origens da idia de uma linguagem privada e a crtica que

    Wittgenstein lhes dirige, mostrando que essa linguagem no se sustenta porque

    os dois pressupostos sobre os quais se assenta so equivocados. Estes

    pressupostos so, por um lado, a noo de definio ostensiva interna e, por outro

    lado, a possibilidade de seguir regras privadamente. Wittgenstein mostra que

    estas duas noes so simplesmente absurdas.

    No quarto captulo faremos a apresentao do jogo de linguagem dos

    termos relativos s experincias subjetivas. Para isso, ser preciso tratar de duas

    questes relativas a esse problema: as supostas posse privada da experincia e

    privacidade epistmica da experincia. Depois disso, poderemos mostrar que,

    diferentemente dos nomes de objetos e das descries, as palavras para

    experincias subjetivas no so nomes de objetos nem as sentenas relativas a

    elas so descries, pois nada descrevem, nem podem ser verdadeiras ou falsas,

    como so as descries. As sentenas relativas s experincias subjetivas devem

    ser consideradas como exteriorizaes de sentimentos, sensaes, pensamentos,

    e assim por diante.

  • 1 LINGUAGEM E SIGNIFICADO NAS INVESTIGAES FILOSFICAS

    1.1 Significado: o modelo designativo

    Ao abrir as Investigaes filosficas com a aluso ao que chamou de viso

    agostiniana de linguagem, Wittgenstein pretendia revelar os contra-sensos a que

    fora levada a filosofia tradicional por considerar que todas as palavras tm a

    funo de nomear objetos e que todas as sentenas so combinaes de nomes e

    funcionam como descries dos fatos. Tal considerao acarretou o surgimento

    de teorias da linguagem que tm como fundamento a noo de que as expresses

    substituem na linguagem os objetos do mundo; as palavras servem para referir os

    objetos do mundo, na linguagem as palavras esto pelos objetos, substituindo-os1.

    De acordo com estes pressupostos, considera-se que o significado da palavra

    o prprio objeto que a palavra refere.

    Esta concepo estaria presente na passagem das Confisses de Santo

    Agostinho, em que este descreve o modo como aprendeu a linguagem quando

    criana e com a qual Wittgenstein abre as Investigaes :

    Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao faz-lo, se voltassem

    para ele, eu percebia isto e compreendia que o objeto fora designado

    pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indic-lo. Mas

    deduzi isto dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e

    da linguagem que, por meio da mmica e dos jogos com os olhos, por

    1 Na filosofia tradicional, essa idia apareceu nas teorias realistas como identificando o significado com os objetos no mundo e nas teorias idealistas concebendo o significado como sendo algum tipo de entidade na mente do falante, tal como idias ou imagens mentais. Em comum, a afirmao de que o significado das expresses deve ser um objeto de um tipo qualquer, ou seja, que o significado , em ltima instncia, determinado por algo que est fora da prpria linguagem.

  • 19

    meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as

    sensaes da alma, quando esta deseja algo, ou se detm, ou recusa

    ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas

    eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar

    repetidamente nos mesmos lugares determinados em frases

    diferentes. E quando habituara minha boca a esses signos, dava

    expresso aos meus desejos. (IF, 1)2.

    Na verdade, preciso observar que o fato de Wittgenstein usar esta citao

    para exemplificar uma concepo de linguagem que vai criticar no implica que

    ele esteja atribuindo ao prprio Santo Agostinho uma teoria da linguagem ou uma

    concepo de linguagem definidas. Sabe-se que Wittgenstein era um admirador

    da obra de Agostinho e simplesmente viu nessa passagem uma descrio

    privilegiada de uma maneira de compreender a linguagem que, ao longo do

    desenvolvimento de sua obra, passou a considerar incorreta e capaz de gerar

    confuses, principalmente ao filosofar.

    Segundo Gordon Baker e Peter Hacker (1983, p. 14), no houve nenhum

    filsofo que tenha tornado explcito o que Wittgenstein chamou de viso

    agostiniana da linguagem e que ela no pode ser propriamente considerada uma

    teoria acerca da linguagem, mas que funciona como uma proto-teoria ou um

    paradigma que serve como ncleo ao redor do qual se desenvolvem as teorias

    filosficas propriamente ditas. Seria, assim, uma Weltanschauung, uma viso de

    mundo envolvendo linguagem, mente e mundo, e que, como tal, no tem

    proprietrio ou autor, mas propriedade comum de muitos indivduos.

    A importncia que tem para Wittgenstein a viso agostiniana da linguagem

    est no fato de que ela representa uma determinada imagem da essncia de

    linguagem humana (IF, 1), que de uma maneira ou outra estaria presente em

    toda considerao tradicional da linguagem e do significado lingstico, podendo

    ser encontrada mesmo na obra de Plato, apesar de Wittgenstein ter como

    interlocutores preferenciais seus contemporneos Frege e Russell e sua prpria

    concepo de linguagem desenvolvida no Tractatus logico-philosophicus. 2 As citaes das Investigaes filosficas sero feitas com a abreviao IF e o nmero do pargrafo e do Tractatus logico-philosophicus com a abreviao TLP e o nmero do aforismo.

  • 20

    Assim, no se pode dizer que as noes que so criticadas por Wittgenstein

    possam ser unificadas em uma nica teoria da linguagem, mas que a concepo

    agostiniana engloba uma srie de elementos que aparecem ora em uma, ora em

    outra teoria. Nesse sentido, o objetivo de Wittgenstein no atacar uma teoria

    filosfica em particular, mas lanar luz sobre os diferentes aspectos da viso

    agostiniana da linguagem que podem ser percebidos em diferentes teorias. Nas

    Investigaes, diz que temos uma imagem do funcionamento da linguagem e

    somos constrangidos a aceit-la como se fosse a explicao da linguagem, a

    nica possvel e que traria em si a sua essncia. O objetivo da terapia filosfica

    nos libertar destas imagens que nos mantm presos, no nos permitindo perceber

    como realmente funciona a linguagem.

    Retornando citao de Agostinho, verificamos sua importncia para os

    objetivos de Wittgenstein quando nela encontramos a descrio das idias que

    considera fundamentais da viso tradicional da linguagem e que, juntas, permitem

    compreender o alcance da concepo de linguagem apresentada nas

    Investigaes filosficas.

    A primeira dessas idias se expressa na suposio de que as palavras da

    linguagem denominam objetos e frases so ligaes de tais denominaes, que

    remete idia de que a funo essencial das palavras nomear os objetos do mundo e de que a funo essencial das frases descrever os fatos do mundo por

    meio da combinao dos nomes. nesta formulao que Wittgenstein vai

    encontrar as razes da idia: cada palavra tem uma significao. Esta significao

    agregada palavra. o objeto que a palavra substitui (IF, 1). Este um

    exemplo do que se disse acima acerca de certas noes que so aceitas quase

    como se fossem naturais, tanto na filosofia como no senso comum.

    Frege, Russell e Wittgenstein, que impulsionaram a virada lingstica na

    filosofia contempornea, tinham como objetivo o esclarecimento da linguagem a

    partir de seus aspectos sintticos e semnticos, numa tentativa de estabelecer as

    condies segundo as quais a linguagem pode representar o mundo. O resultado

    das investigaes destes filsofos foi a renovao da lgica, que deu incio

  • 21

    semntica formal, para a qual interessa a linguagem no nvel da sentena que, por

    sua vez, expressa uma proposio passvel de ser verdadeira ou falsa.

    O sonho de Frege, Russell e Wittgenstein, nesse momento, era o

    estabelecimento da forma lgica da linguagem, a partir da definio dos clculos

    que determinam os valores de verdade de toda proposio. Com a formalizao

    da linguagem, acreditavam ser possvel determinar a estrutura lgica comum a

    toda linguagem, com a qual seria possvel eliminar todos os erros, imprecises,

    ambigidades, gerando assim um instrumento perfeito para a construo e a

    expresso da cincia3. Mais tarde Wittgenstein afirmaria que tais noes seriam

    fruto de uma generalizao da idia de que as palavras so nomes das coisas e

    de que sentenas so combinaes de nomes; em outras palavras, que uma das

    funes da linguagem teria sido eleita como aquela que poderia explicar a

    totalidade da linguagem.

    Este se tornou tambm o grande sonho dos filsofos do Crculo de Viena,

    expresso na determinao do empirismo lgico na construo de uma linguagem

    cientfica perfeita, possvel pelo estabelecimento de seus fundamentos lgico-

    semnticos. O princpio semntico que orienta o empirismo lgico o princpio de

    verificao, segundo o qual o significado de uma frase dado pela: descrio das

    condies em que a frase ou sentena formar uma proposio verdadeira, e das

    condies em que a proposio falsa. Em outras palavras: o significado de

    uma proposio constitui o mtodo de sua verificao. (SCHLICK, 1985, p. 85).

    Para a realizao dos objetivos desses filsofos, a anlise da linguagem

    tinha um papel central e decisivo. A anlise , nesse momento, compreendida

    como o mtodo pelo qual se poderia desvendar a natureza da linguagem, para

    com isso compreender como se ligam linguagem e realidade, proposio e fato,

    nome e objeto. Considerando que h uma relao entre os nomes e os objetos

    que explica a significao, torna-se fundamental, em primeiro lugar, descobrir

    3 No Tractatus Wittgenstein considerava que s com o estabelecimento da estrutura lgica da linguagem teramos uma linguagem que pudesse expressar claramente os pensamentos, pois: a linguagem um traje que disfara o pensamento. E, na verdade, de um modo tal que no se pode inferir, da forma exterior do traje, a forma do pensamento trajado; isso porque a forma exterior do traje foi constituda segundo fins inteiramente diferentes de tornar reconhecvel a forma do corpo. (TLP, 4.002).

  • 22

    como essa relao possvel e, em segundo lugar, descobrir como se relacionam

    entre si os nomes para formar proposies. Vejamos a resposta de Wittgenstein a

    esse problema.

    No Tractatus Wittgenstein tinha como objetivo central o esclarecimento da

    natureza da linguagem e do mundo e da relao entre eles, com o que esperava

    ser possvel estabelecer as categorias gerais da linguagem e as categorias gerais

    do real, ou seja, a essncia da linguagem e do mundo. Apenas depois de

    alcanado este objetivo poderia se dar uma resposta pergunta: o que se pode

    exprimir? Como afirma no prefcio ao Tractatus, a resposta a essa pergunta

    que o que se pode em geral dizer, pode-se dizer claramente; e sobre aquilo de

    que no se pode falar, deve-se calar.

    Tendo sido bastante influenciado pela teoria das descries de Russell,

    Wittgenstein acreditava que a verdadeira natureza da linguagem seria revelada

    quando se alcanasse a sua forma lgica, a estrutura lgica subjacente

    linguagem ordinria4. Seria o estabelecimento da forma lgica o que permitiria

    explicar a natureza da significao da linguagem e com isso a natureza do prprio

    pensamento, pois, como afirma no prefcio ao Tractatus, o livro pretende traar

    um limite para o pensar, ou melhor no para o pensar, mas para a expresso

    dos pensamentos... O limite s poder, pois, ser traado na linguagem.

    Perseguindo esse objetivo, Wittgenstein desenvolveu a teoria da figurao

    segundo a qual as proposies com sentido so aquelas que funcionam como

    uma imagem dos fatos, os quais so descritos pela proposio de modo

    verdadeiro ou falso; o papel das proposies descrever estados de coisas. O

    significado das proposies explicado pela existncia de um isomorfismo entre a

    estrutura lgica da linguagem e a estrutura ontolgica do real. H uma forma

    comum entre ambas, de modo que a estrutura da proposio corresponde

    estrutura da realidade; para cada elemento da proposio corresponde um

    elemento no real. A teoria da figurao apresentada nas seguintes passagens

    do Tractatus:

    4 Wittgenstein reconhece a influncia de Russell quando afirma que o mrito de Russell ter mostrado que a forma lgica aparente da proposio pode no ser sua forma real. (TLP, 4.0031).

  • 23

    2.12. A figurao um modelo da realidade.

    2.13 Aos objetos correspondem, na figurao, os elementos da

    figurao.

    2.131 Os elementos da figurao substituem nela os objetos.

    2.14 A figurao consiste em estarem seus elementos uns para os

    outros de uma determinada maneira.

    Wittgenstein supunha que tanto a linguagem quanto o mundo podiam ser

    analisados at se chegar aos seus elementos constituintes ltimos. Com base

    nesse pressuposto, ele procurou mostrar que a linguagem composta da

    totalidade das proposies, que estas so compostas de proposies

    elementares, que por sua vez so combinaes de nomes, sendo estes os

    elementos lingsticos ltimos, no podendo mais ser analisados: so o que h de

    mais simples na linguagem. O mundo, por sua vez, composto pela totalidade

    dos fatos, que so compostos de estados de coisas, que so combinaes de

    objetos, sendo estes os elementos ltimos que constituem o mundo, no podendo

    mais ser analisados: sendo o que h de mais simples, os objetos compem a

    substncia do mundo.

    Os nomes podem se combinar entre si de determinadas maneiras,

    formando uma proposio, do mesmo modo como podem se combinar entre si os

    objetos, formando estados de coisas. Essas maneiras de se combinar dos nomes

    reflete a maneira como as coisas podem se combinar na realidade, para formar

    fatos: a forma de se combinar dos nomes e a dos objetos se espelham

    mutuamente. Segundo Wittgenstein, isso possvel porque eles tm a mesma

    forma lgica: a forma lgica da proposio reflete a forma lgica do fato que

    representa. Assim, uma vez que possuem a mesma forma lgica, uma proposio

    significativa ser aquela que figura um fato (a possibilidade de um fato). O modo

    como se combinam os elementos da linguagem numa proposio forma uma

    figura do fato porque mostra que as coisas correspondentes a esses elementos

    podem se relacionar entre si da mesma maneira na realidade. O que a figurao

    representa uma possibilidade de combinao dos elementos da realidade; se

  • 24

    essa combinao se efetiva, temos uma proposio verdadeira, caso no se

    efetive, temos uma proposio falsa.

    Portanto, o que explica a correlao entre linguagem e mundo que as

    proposies elementares afiguram um estado de coisas. Entretanto, isso s

    possvel porque as proposies elementares so constitudas por nomes que

    designam diretamente os objetos pelos quais so constitudos os estados de

    coisas que elas afiguram. por isso que Wittgenstein afirma que os nomes

    substituem, na linguagem, os objetos do mundo. No Tractatus, Wittgenstein

    defendeu a concepo de que toda palavra nome de um objeto, que esse objeto

    designado pelo nome, sendo portanto o significado do nome. Isso aparece

    explicitamente nos seguintes aforismos:

    3.203. O nome significa o objeto. O objeto seu significado.

    3.22. O nome substitui, na proposio, o objeto.

    Nessas consideraes temos clara a concepo segundo a qual o papel da

    anlise decompor as proposies at se chegar a seus elementos ltimos, que

    no mais sero passveis de anlise e que fazem a ligao entre linguagem e

    realidade. O resultado da anlise mostra que os nomes designam os objetos da

    realidade, sendo assim os seus significados.

    Aplicando os instrumentais da nova lgica elaborada por Frege e Russell,

    Wittgenstein estabelece no Tractatus que toda proposio uma funo de

    verdade das proposies elementares que a constituem, o que significa que toda

    proposio tem como valor de verdade o resultado do clculo lgico aplicado s

    proposies elementares que a compem, sendo dependente dos valores de

    verdade de cada uma dessas proposies elementares.

    Entretanto, as proposies elementares so logicamente independentes

    entre si, por isso a verdade dessas proposies no se estabelece como o

    resultado de um clculo lgico, mas por meio de sua comparao com o fato que

    afiguram. Para explicar como isso acontece, torna-se necessrio ento explicar

    como se conectam os nomes com os objetos que denotam.

  • 25

    As teorias da linguagem que, como o Tractatus, se fundamentam em tais

    noes, tm na definio ostensiva um modelo privilegiado de explicao do

    significado. Nessas teorias considera-se que as definies das expresses

    lingsticas no podem ser indefinidamente dadas por outras expresses, mas

    devem terminar em algum momento, como os nomes simples do Tractatus, que

    no podem mais ser analisados. Este momento se d quando se chega a

    expresses que no mais podem ser explicadas por meio de palavras, mas que

    remetem diretamente a um objeto, que pode ser apontado, no momento em que

    se profere um enunciado do tipo Isto .... De acordo com Schlick:

    as regras gramaticais consistiro em parte em definies comuns, ou

    seja, em explanaes de palavras atravs de outros termos, e em parte

    no que se denomina definies indicativas, isto , explicaes atravs

    de um mtodo que utiliza as palavras segundo seu uso efetivo. A forma

    mais simples de uma definio indicativa consiste em um gesto

    indicativo combinado com a pronncia de uma palavra, assim como

    quando ensinamos a uma criana o sentido do termo azul mostrando

    um objeto azul... manifesto que, para compreendermos uma definio

    verbal, devemos antecipadamente conhecer o sentido das palavras

    explicativas, assim como bvio que a nica explicao que pode

    funcionar sem qualquer conhecimento prvio a definio indicativa.

    (SCHLICK, 1985, p. 85).

    Assim sendo, o objeto apontado passa a ser considerado o significado

    dessa palavra, e esse ato de apontar, a definio ostensiva, aceito como a

    explicao ltima do significado da palavra, ela considerada o modelo

    privilegiado de explicao do significado. importante perceber que estes termos

    considerados indefinveis por meio de palavras so elementos ltimos da

    linguagem, ou simples, que fazem diretamente a relao da linguagem com os

    objetos na realidade; estes no podem mais ser analisados, sendo portanto os

    fundamentos ltimos da significao.

    Segundo esta concepo, a definio ostensiva tem uma vantagem sobre

    qualquer outra definio porque ela no est sujeita a nenhuma interpretao,

  • 26

    sendo por isso considerada uma definio que expressa do modo mais autntico

    possvel o significado da palavra. As definies verbais levam de uma expresso

    verbal a outra, num processo em que se supem interpretaes sucessivas das

    definies. Mas esse processo no garante que teremos uma compreenso

    adequada do significado, pois podemos ter uma explicao que, devido sua no

    compreenso ou a uma m interpretao da mesma, est sempre sujeita a erros e

    imprecises. Isso no acontece com a definio ostensiva, pois esta remete a algo

    que a significao ltima da palavra: um objeto que est fora da linguagem,

    mas que explica o significado da palavra5. Em relao definio ostensiva,

    portanto, no resta nenhuma dvida quanto ao significado que explicado por

    meio dela e podemos afirmar que um significado absolutamente determinado. O

    fato de os sinais estarem numa relao direta com os elementos da realidade

    mostra que as definies ostensivas so inequvocas, finais e infalveis6.

    Apesar de Wittgenstein, no Tractatus, no ter defendido explicitamente a

    definio ostensiva como explicao do significado, admitiu que h termos simples

    na linguagem, os nomes, que no podem ser explicados atravs da anlise, e que

    se ligam diretamente a objetos, os elementos simples da realidade.

    1.2 Significado como uso da linguagem

    Nas Investigaes filosficas, Wittgenstein afirma que considerar todas as

    palavras como nomes e todas as sentenas como descries implica uma m

    compreenso do funcionamento da linguagem ou, no mnimo uma compreenso

    insuficiente, por gerar uma concepo equivocada de significao. Por isso

    acredita que aquele conceito filosfico da significao cabe bem numa

    representao primitiva da maneira pela qual a linguagem funciona. Mas, pode-se

    tambm dizer, a representao de uma linguagem mais primitiva do que a

    nossa. E complementa: Santo Agostinho descreve, podemos dizer, um sistema 5 nesse sentido que a anlise da linguagem deveria levar aos elementos ltimos que no podem mais ser definidos por outras expresses, so os indefinveis ou signos primitivos; tais expresses no podem mais ser analisadas. 6 Conforme tambm HACKER, P. M. S. Wittgenstein: connections and controversies. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 252.

  • 27

    de comunicao; s que esse sistema no tudo aquilo que chamamos

    linguagem (IF, 2 e 3). Wittgenstein deixa claro que o problema no est na

    prpria considerao de que palavras servem para nomear objetos e que

    sentenas servem como descries de fatos, mas o que tem em vista e critica a

    nsia de generalizao da filosofia tradicional, que a levou a considerar esta

    como a nica possibilidade e, a partir disso, tentou determinar as condies

    necessrias e suficientes da significao lingstica.

    Quando discute a citao de Agostinho, Wittgenstein diz:

    Santo Agostinho no fala de uma diferena entre espcies de

    palavras. Quem descreve o aprendizado da linguagem desse modo

    pensa, pelo menos acredito, primeiramente em substantivos tais como

    mesa, cadeira, po, em nomes de pessoas, e apenas em segundo

    lugar em nomes de certas atividades e qualidades, e nas restantes

    espcies de palavras como algo que se terminar por encontrar. (IF,

    1).

    Aqui h duas questes a considerar: em primeiro lugar, a viso agostiniana

    desconsidera o fato de que as palavras so diferentes entre si, no sentido de que

    ocupam papis diferentes na linguagem e trata a todas elas uniformemente. Em

    segundo lugar, e como conseqncia dessa uniformidade das palavras, a viso

    agostiniana privilegia os substantivos (mesa, cadeira, po) e apenas em segundo

    plano considera outros tipos de palavras, que de alguma forma ainda funcionariam

    como nomes (de certas atividades e qualidades), e qualquer outra espcie de

    palavras como algo que se terminar por encontrar (palavras como agora, isto, e,

    mas, etc.).

    Na seqncia do pargrafo citado, Wittgenstein apresenta uma dificuldade

    que surge com esse modo de considerar a linguagem. Pede para que se pense

    como, a partir desse modelo, deveramos compreender a sentena cinco mas

    vermelhas, quando dita por uma pessoa no momento em que faz compras. A

    tendncia, de acordo com a viso agostiniana, pensar que cada palavra deve

    corresponder a um objeto, o que leva a considerar que as trs palavras nomeiam

  • 28

    algo, por exemplo: que cinco o nome de um nmero, que ma o nome de

    uma fruta e que vermelho o nome de uma cor. Ou seja, cada palavra envolve

    uma correlao com algum tipo de objeto: tanto a fruta, quanto o nmero e a cor

    so considerados como tipos de objetos que podem ser nomeados pelas palavras.

    Nessa concepo, a pergunta Qual o significado de x? remete questes do tipo

    X o nome de que? ou Por qual objeto x est?, o que mostra que a pergunta

    pelo significado envolve sempre a explicitao de um objeto que tem de

    corresponder palavra em questo. Mas, quando Wittgenstein pergunta sobre

    qual a significao da palavra cinco, ele mesmo responde: de tal significao

    nada foi falado aqui; apenas, de como a palavra cinco usada, deixando claro

    que as trs palavras, ma, cinco e vermelho, tm diferenas de uso que podem

    ser descritas e explicadas sem o recurso a algum tipo de objeto que a elas

    corresponda. nesse uso que se deve buscar a explicao do significado da

    palavra.

    No segundo pargrafo das Investigaes Wittgenstein apresenta uma

    linguagem que, segundo o autor, correta de acordo com a descrio de Santo

    Agostinho: uma linguagem que tem como finalidade a comunicao entre o

    construtor A e seu ajudante B, no momento de construo de um edifcio e que

    consta apenas das palavras cubos, colunas, lajotas e vigas. Estas palavras so

    ditas no momento em que A precisa das pedras assim nomeadas e B se

    encarrega de trazer as pedras que aprendeu ao ouvir esse chamado.

    Wittgenstein considera tal modelo uma linguagem totalmente primitiva e que

    descreve um sistema de comunicao til e correto em si mesmo, mas que no

    pode ser considerado como a totalidade do que se chama linguagem. Aceitar que

    aquela descrio explica a totalidade da linguagem seria o mesmo que explicar o

    que jogo pela descrio de um jogo particular, no caso um jogo que consiste em

    empurrar coisas, segundo certas regras, numa superfcie, desconsiderando o

    fato de que outros jogos podem funcionar de maneiras totalmente diferentes. O

    prprio exemplo dos construtores mostra a dificuldade de se pensar uma

    linguagem na qual as palavras servissem apenas para nomear coisas, pois se

    num primeiro momento as palavras cubo, coluna, lajota e viga nomeiam as pedras

  • 29

    de que se servem os construtores, num segundo momento, quando o construtor A

    diz: Cubo!, esta palavra no s nomeia a pedra em questo mas tambm funciona

    como ordem ou pedido para que o ajudante traga a pedra solicitada. Nesse

    sentido, torna-se fundamental avaliar o contexto em que a palavra proferida,

    onde se torna explcito o uso que feito da palavra.

    Considerar o significado das palavras a partir de seu uso dar nfase s

    diferentes funes que as palavras ocupam na linguagem. Da mesma maneira

    que diferentes ferramentas (martelo, tenaz, chave de fenda, serra, metro, etc.)

    exercem diferentes funes, diferentes palavras exercem diferentes funes: as

    palavras so ferramentas com as quais exercemos a linguagem. E mais, essas

    funes s so corretamente compreendidas no emprego das palavras, da mesma

    maneira que a funo das alavancas de uma locomotiva, apesar da sua aparente

    uniformidade, ser determinada pelo modo como o maquinista as emprega ou de

    acordo com o movimento realizado pelo maquinista, pois:

    o que nos confunde a uniformidade da aparncia das palavras,

    quando estas nos so ditas, ou quando com elas nos defrontamos na

    escrita e na imprensa. Pois seu emprego no nos to claro. E

    especialmente no o quando filosofamos. (IF, 11).

    Ou seja, principalmente quando filosofamos que nos deixamos levar pela

    aparente uniformidade das palavras. Parece que todas as palavras tm a mesma

    funo na linguagem e passa-se a acreditar que todas podem ser explicadas da

    mesma maneira.

    O pargrafo 10 apresenta a forma tradicional de explicao do significado

    de uma palavra, de acordo com a passagem em que Agostinho diz: aprendi

    pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que

    eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases

    diferentes. De acordo com esta viso, a explicao do significado deve ter a

    forma a palavra ... designa..., e de acordo com isso se diz: vermelho designa a

    cor vermelha, um designa o nmero um.

  • 30

    Porm, diz Wittgenstein, quando dizemos: cada palavra da linguagem

    designa algo, com isso ainda no dito absolutamente nada; a menos que

    esclareamos exatamente qual a diferena que desejamos fazer. Na verdade, a

    definio ostensiva s poder ser compreendida por aquele que j aprendeu a

    utiliz-la numa determinada linguagem. Em outras palavras, a definio ostensiva

    pressupe o conhecimento prvio da linguagem em que usada. A imagem

    agostiniana parece funcionar adequadamente somente no caso em que um

    determinado indivduo, que j aprendeu a linguagem materna, est aprendendo

    uma outra linguagem.

    At mesmo a funo de designar um objeto s pode ser corretamente

    compreendida se j se tem algum conhecimento da maneira como aquela palavra

    empregada, que muitas vezes pode ser o conhecimento de qual o aspecto ou

    caracterstica do objeto que se pretende designar. Um exemplo dado no Livro azul

    ilustrativo desse ponto: algum aponta para um lpis e diz Isto tove,

    pretendendo com isso explicar o significado da palavra tove. Mas Isto tove

    pode ser interpretado de diferentes maneiras, pode ser compreendido como Isto

    um lpis, como Isto madeira, Isto um, Isto duro e assim por diante; no

    se sabe a priori o que exatamente est sendo designado por tove.

    (WITTGENSTEIN, 1992, p. 26). A palavra s ser compreendida se, antes do

    apontar para o objeto, algo j estiver preparado na linguagem: a elucidao

    ostensiva elucida o uso a significao da palavra, quando j claro qual papel

    a palavra deve desempenhar na linguagem (IF, 30), se um nome prprio, uma

    palavra para cor, um nome de matria, uma palavra para nmero, o nome de um

    ponto cardeal, que, enquanto tais, podem todos ser definidos ostensivamente,

    mas h algo mais nessa definio, que justamente o papel a ser desempenhado

    pela palavra.

    Por exemplo, a pergunta O que a frase Tenho medo quer dizer? no

    tem uma resposta nica capaz de cobrir adequadamente todas as

    ocasies em que ela poderia ser usada... Para compreender o que

    Tenho medo significa em determinada circunstncia, talvez seja

    preciso levar em considerao a entonao e o contexto em que a

  • 31

    frase foi proferida. No h motivo para acreditar que uma teoria geral

    do medo fosse de muita valia aqui (e menos ainda uma teoria geral da

    linguagem). Muito mais pertinente seria uma sensibilidade alerta e

    atenta ao rosto e voz das pessoas, e s situaes em que elas se

    encontram. Essa sensibilidade s pode ser adquirida pela experincia

    olhando e ouvindo atentamente as pessoas ao nosso redor. (MONK,

    1995, p. 481).

    Estas observaes demonstram a insuficincia da considerao de que o

    significado se constitui na relao entre palavras e objetos7 e que, portanto, os

    usos possveis da palavra no se reduzem a nomear objetos, porque o significado

    das palavras no um objeto, seja ele de que tipo for . Tambm o significado das

    proposies no pode ser reduzido relao de figurao de fatos atravs das

    proposies, como queria o Tractatus. Alm disso, Wittgenstein acentua a idia de

    que a prpria relao entre nome e objeto no pode ser simplesmente uma

    relao baseada em definies ostensivas, pois mesmo essa relao deve ser

    compreendida considerando-se o modo em que elas tomam parte nas atividades

    lingsticas, nas ocasies de emprego das palavras. No se aprende xadrez

    simplesmente nomeando-se as peas com as quais se vai jogar, mas a partir do

    modo como as peas podem ser movimentadas no jogo, considerando-se as

    regras que determinam quais lances podem ser dados e assim por diante. Da

    mesma maneira a palavra no tem significado porque refere um objeto, mas sim

    porque tem um uso nas nossas prticas lingsticas e aprendemos seu significado

    ao utiliz-las nessas prticas lingsticas, junto com seu emprego e os lances

    que podem ser dados com estas palavras.

    Wittgenstein insiste que o significado dependente da existncia de um uso

    estabelecido e previsto para aquela palavra, de que efetivamente exista uma

    aplicao para a palavra. Por isso, preciso abandonar a tese do Tractatus e

    buscar compreender o significado a partir do uso que feito das palavras, como

    7 Insuficincia porque, como j foi dito, essa pode ser uma possibilidade, mas ela no pode se considerada a nica e deve, alm disso, ser considerada dentro de um contexto que lhe d sustentao.

  • 32

    afirma no pargrafo 43 das Investigaes: pode-se, para uma grande classe de

    casos de utilizao da palavra significao se no para todos os casos de sua

    utilizao, explic-la assim: a significao de uma palavra seu uso na

    linguagem.

    preciso ressaltar o fato de que em nenhum momento das Investigaes

    Wittgenstein oferece uma definio ou uma teoria sistemtica acerca da noo de

    significado como uso. Esta postura vem em primeiro lugar no sentido de marcar a

    diferena de atitude em relao ao Tractatus, onde a busca por uma teoria

    sistemtica do significado era vista como o objetivo central da filosofia. Nas

    Investigaes, Wittgenstein abandona essa perspectiva em relao ao papel da

    filosofia em defesa da idia de que a filosofia no deve explicar a natureza da

    linguagem, mas sim descrever suas possibilidades e seus diferentes usos. Assim,

    abandona-se a busca por uma explicao unitria da linguagem, que poderia

    elucidar todo o funcionamento da linguagem atravs de uma teoria sistemtica,

    tendo em vista que a linguagem comporta uma multiplicidade de usos que no

    podem ser reduzidos a um nico. A gramtica da linguagem deve ser esclarecida

    tendo sempre em vista que as atividades lingsticas so mltiplas e variadas, e

    nessa multiplicidade e variedade que se deve compreender o funcionamento da

    linguagem.

    Em segundo lugar, ao afirmar que o significado de uma palavra seu uso

    na linguagem, Wittgenstein ressalta que a prpria noo de significado no se

    presta a uma definio unitria e conclusiva. Os termos que emprega em

    diferentes passagens das Investigaes deixam isso muito claro, pois ele fala em

    funes e funcionamento das palavras, dos papis que as palavras podem

    desempenhar, dos diferentes objetivos e finalidades que se pretende alcanar com

    a linguagem, da multiplicidade de emprego das palavras.

    O uso s pode ser compreendido tendo o contexto de aplicao das

    palavras como pano de fundo, pois nele que se determina o modo como as

    palavras devem ser consideradas. Por isso, uma palavra como ma ou lajota

    pode ter um uso que no se restringe a ser nome de uma coisa, mas dependendo

  • 33

    do contexto pode ser compreendida como um pedido. isso que Wittgenstein

    ressalta no pargrafo 19, quando pergunta:

    E agora: o grito lajota no exemplo (2) uma frase ou uma palavra Se

    for uma palavra, ento no tem a mesma significao da palavra de

    mesmo som da nossa linguagem costumeira, pois no 2 na verdade

    um grito. Mas se for uma frase, ento no a frase elptica lajota! de

    nossa linguagem.

    Nessa passagem Wittgenstein ressalta a noo de que o uso que se faz

    da expresso num contexto normativo que demonstra em que sentido deve ser

    compreendida a expresso. A palavra lajota poderia ser compreendida como a

    frase Traga-me uma lajota!, mas isso depende da maneira como as expresses

    so usadas no jogo de linguagem em questo. O que demonstra as diferenas de

    significao justamente o uso diferenciado que se faz da expresso em cada um

    dos jogos de linguagem.

    Isso tudo mostra que a linguagem uma prxis, o que significa dizer que a

    linguagem nos fornece ferramentas que nos permitem tomar parte em diferentes

    tipos de atividades sociais e, da mesma maneira que estas so mltiplas e

    diversas entre si, o papel que as palavras desempenham em cada uma dessas

    atividades tambm ser diverso. Por isso, deve-se compreender o significado

    investigando as condies que tornam possvel o uso correto das palavras, o que

    leva idia de que o significado, considerado como uso da palavra, remete s

    regras que determinam o uso das palavras em uma situao especfica, ou seja,

    de acordo com as regras que determinam o funcionamento do que Wittgenstein

    chamou um jogo de linguagem. Essa noo fundamental, visto que sobre ela se

    assenta a prpria possibilidade de comunicao, pois se no considerarmos a

    significao como algo que se revela no uso que feito das palavras num espao

    pblico, num jogo de linguagem, ento estaramos condenados a aceitar que no

    temos um critrio objetivo de significao. Mas se consideramos o uso que

    fazemos de uma palavra, ento percebemos que esse uso tem um carter

    normativo, pois no uso que se pode perceber quando o falante est usando a

  • 34

    palavra correta ou incorretamente, e este ser o critrio objetivo de que

    precisamos para garantir o uso intersubjetivo das palavras, portanto a

    possibilidade de comunicao.

    Portanto, a significao determinada por um contexto normativo em que

    acontece o uso da linguagem. Esse contexto normativo o pano de fundo para o

    uso regrado das palavras e nada que no seja parte desse pano de fundo pode

    servir como critrio de significao lingstica.

    1.3 Jogos de linguagem e formas de vida O conceito de jogo de linguagem um dos conceitos fundamentais da

    filosofia madura de Wittgenstein e com este conceito que pretende dar conta de

    uma das questes centrais que ocupam seu pensamento desde sua volta

    filosofia no final da dcada de 20, que a questo relativa ao significado das

    palavras. poca do Tractatus Wittgenstein acreditava que o significado das

    palavras pudesse (e devesse) ser estabelecido de maneira exata e definitiva, de

    acordo com o essencialismo decorrente da viso agostiniana, presente em sua

    prpria filosofia, e que o levou a fazer perguntas tais como O que o

    significado? O que a palavra? O que a linguagem? O que o

    pensamento? Mas, afirma agora Wittgenstein, essas perguntas na verdade

    tornam turva a viso e no deixam perceber como a linguagem de fato funciona,

    pois o que na verdade acontece que o conceito significado tem diferentes

    possibilidades de uso, ou seja, pode ser definido de diferentes maneiras, de

    acordo com o uso numa situao efetiva. Isso vlido para todas as palavras de

    nossa linguagem: deve-se sempre indagar pelo uso da palavra quando se quer

    conhecer seu significado ao invs de buscar por uma essncia que de alguma

    maneira est oculta para ns.

    Quando Wittgenstein pede que se volte o olhar para o uso das palavras

    est chamando a ateno para o fato de que a linguagem no fixa nem tem uma

    nica funo. Pelo contrrio, a linguagem dinmica e pode ter diferentes

    funes, de acordo com o uso que dela feito. Este uso relacionado ao que o

  • 35

    nosso autor chamou de jogo de linguagem, enfatizando a semelhana entre a

    linguagem e os jogos, e mostrando que, como os jogos, a linguagem uma

    atividade e que, como tal, guiada por regras; sendo assim, o significado da

    palavra no o objeto que nomeia, mas determinado pelo conjunto de regras

    que condicionam seu uso, so as regras da gramtica que constituem o jogo de

    linguagem em questo.

    Segundo Ray Monk, a noo de jogo de linguagem foi introduzida no

    discurso filosfico no Livro azul, no incio dos anos 30, cuja tcnica teria sido

    concebida para romper com a tendncia de responder s perguntas do tipo O que

    significado? nomeando alguma coisa. O autor cita a passagem em que

    Wittgenstein faz a seguinte afirmao:

    No futuro, chamarei muitas vezes vossa ateno para aquilo a que

    chamarei jogos de linguagem. Estes so maneiras muito mais simples

    de usar signos do que as da nossa linguagem altamente complicada

    de todos os dias. Os jogos de linguagem so as formas de linguagem

    com que a criana comea a fazer uso das palavras. O estudo dos

    jogos de linguagem o estudo de formas primitivas da linguagem ou

    de linguagens primitivas. Se pretendemos estudar os problemas da

    verdade e da falsidade, de acordo e desacordo de proposies com a

    realidade, da natureza da assero , da suposio e da interrogao,

    teremos toda a vantagem em examinar as formas primitivas da

    linguagem em que estas formas de pensamento surgem, sem o pano

    de fundo perturbador de processos de pensamento muito complicados.

    Quando examinamos essas formas simples de linguagem, a nvoa

    mental que parece encobrir o uso habitual da linguagem desaparece.

    Descobrimos as atividades, reaes, que so ntidas e transparentes.

    (MONK, 1995, p. 305)8.

    8 Tambm para Baker e Hacker (1983, p. 47) o conceito de jogo de linguagem surge pela primeira vez no Livro azul. Porm, segundo estes autores, o conceito pode ser percebido anteriormente nas transformaes e reorientaes para repudiar a tese do Tractatus de que as proposies atmicas so logicamente independentes entre si. No nosso objetivo fazer uma gnese do conceito de jogo de linguagem neste momento, por isso nossa anlise ser restrita sua formulao nas Investigaes filosficas.

  • 36

    O estudo das formas primitivas de linguagem, que so os jogos de

    linguagem mais simples, permite perceber como de fato a linguagem funciona;

    esses jogos de linguagem mais simples que os nossos, que podem ser reais ou

    inventados, funcionam como objetos de comparao que atravs de semelhanas

    e dessemelhanas, devem lanar luz sobre as relaes de nossa linguagem (IF,

    130). Com eles podemos esclarecer nossos jogos de linguagem mais

    complicados que, justamente em virtude de sua complexidade no permitem

    perceber as semelhanas e dessemelhanas na significao das expresses

    lingsticas, bem como as relaes que as expresses podem estabelecer entre si

    para formar proposies e as conexes lgicas entre as proposies. O que se

    quer estabelecer uma ordem no nosso conhecimento do uso da linguagem e

    com este objetivo que salientaremos constantemente diferenas que nossas

    formas habituais de linguagem facilmente no deixam perceber. (IF, 132).

    Esta estratgia permite superar certas dificuldades que surgem,

    principalmente em filosofia, para compreender os termos com os quais lidamos em

    nossos jogos de linguagem complexos. Por exemplo, quando ao filosofar ficamos

    em dvida quanto ao significado de termos tais como linguagem, proposio,

    frase, palavra, entre outros, podemos elucid-los recorrendo a jogos de linguagem

    mais simples que permitem ver como de fato so usados tais termos nos jogos de

    linguagem nos quais se estabeleceu sua significao. E, segundo Wittgenstein:

    uma fonte principal de nossa incompreenso que no temos uma viso

    panormica do uso de nossas palavras... A representao panormica permite a

    compreenso, que consiste justamente em ver as conexes. (IF, 122). Atravs

    da investigao do funcionamento dos jogos de linguagem podemos trazer luz

    as regras que governam o uso das palavras e com isso eliminamos a

    incompreenso e as confuses filosficas.

    No curso da crtica concepo agostiniana da linguagem, j no incio das

    Investigaes, Wittgenstein afirma que o modelo de linguagem pensado naquela

    concepo caberia bem numa representao primitiva da maneira pela qual a

    linguagem funciona (IF, 2), usando como exemplo o jogo de linguagem entre o

    construtor e seu ajudante. O que Wittgenstein ressalta que este jogo de

  • 37

    linguagem pode ser suficiente para a finalidade pretendida. Tal jogo de linguagem

    pode ser considerado um sistema de comunicao til e correto em si mesmo, o

    problema que no pode ser considerado suficiente para a compreenso do todo

    da linguagem. Em outras palavras, este um jogo de linguagem que tem uma

    finalidade e objetivos especficos, mas que no pode ser confundido com a

    totalidade da linguagem. A linguagem envolve diferentes situaes, nas quais as

    finalidades e os objetivos dos envolvidos podem ser totalmente distintos e por isso

    o jogo de linguagem em que esto inseridos ser constitudo de maneira

    completamente diferente.

    Com o conceito jogo de linguagem Wittgenstein salienta que as palavras

    no funcionam sempre da mesma maneira, apesar da aparncia de uniformidade.

    As palavras no servem apenas para nomear as coisas para que com elas se

    possa descrever o mundo; no, as palavras podem ocupar diferentes papis,

    considerando-se a situao e o momento de uso efetivos. S se pode

    compreender corretamente o que determinada palavra significa quando se atenta

    para o jogo de linguagem na qual empregada; quando no se toma este dado

    em considerao ficamos como que entorpecidos, cegos para o modo como

    realmente a linguagem funciona.

    No pargrafo 7 Wittgenstein nos d algumas indicaes do que pode ser

    considerado um jogo de linguagem:

    Na prxis do uso da linguagem (2), um parceiro enuncia as palavras, o outro

    age de acordo com elas; na lio de linguagem, porm, encontrar-se- este

    processo: o que aprende denomina os objetos. Isto , fala a palavra, quando

    o professor aponta para a pedra. Sim, encontrar-se- aqui o exerccio

    ainda mais simples: o aluno repete a palavra que o professor pronuncia

    ambos processos de linguagem semelhantes.

    Podemos tambm imaginar que todo o processo de uso das palavras em (2)

    um daqueles jogos por meio dos quais as crianas aprendem sua lngua

    materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem, e falarei muitas

    vezes de uma linguagem primitiva como de um jogo de linguagem.

  • 38

    E poder-se-iam chamar tambm de jogos de linguagem os processos de

    denominao das pedras e da repetio da palavra pronunciada. Pense os

    vrios usos das palavras ao se brincar de roda.

    Chamarei tambm de jogos de linguagem o conjunto da linguagem e das

    atividades com as quais est interligada9.

    Aqui j est evidenciado o carter dinmico da linguagem, que reforado

    no pargrafo 23:

    Quantas espcies de frases existem? Afirmao, pergunta e comando,

    talvez? H inmeras de tais espcies: inmeras espcies diferentes de

    emprego daquilo que chamamos de signo, palavras, frases. E essa

    pluralidade no nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos de

    linguagem, novos jogos de linguagem, como poderamos dizer, nascem e

    outros envelhecem e so esquecidos.

    Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos

    e outros:

    Comandar, e agir segundo comandos

    Descrever um objeto conforme a aparncia ou conforme medidas

    Produzir um objeto segundo uma descrio (desenho)

    Relatar um acontecimento

    Conjeturar sobre o acontecimento

    Expor uma hiptese e prov-la

    Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e

    diagramas

    Inventar uma histria; ler

    Representar teatro

    Cantar uma cantiga de roda

    Resolver um enigma

    Fazer uma anedota; contar

    Resolver um exemplo de clculo aplicado

    Traduzir de uma lngua para outra

    Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar.

    9 O nmero que aparece entre parnteses no texto remete ao jogo de linguagem entre o construtor e seu ajudante, descrito no pargrafo 2.

  • 39

    Est claro que no se pode limitar a linguagem funo de denominar os

    objetos; denominar objetos apenas mais um de uma infinidade de jogos de

    linguagem, sem nenhuma caracterstica que faa com que deva ser considerado

    modelo ou paradigma para toda a linguagem. Com as frases da nossa linguagem

    fazemos as coisas mais diferentes, e Wittgenstein d como exemplo as

    exclamaes e pergunta pelo que estaria sendo nomeado com expresses tais

    como: gua! Fora! Ai! Socorro! e outras. Para ficarmos com a primeira delas, v-

    se que num primeiro momento funciona como nome, mas se pensarmos em

    algum atravessando o deserto e que grita gua! certamente esta pessoa est

    clamando por socorro, ou ainda algum que perceba uma poa e que com esta

    expresso queira indicar que tenha chovido recentemente. Cada uma dessas

    situaes comporta usos diferentes, guiados por regras distintas; a

    desconsiderao dessas diferenas pode levar a generalizaes indevidas.

    Um aspecto importante a ser considerado diz respeito afirmao de

    Wittgenstein de que chamarei tambm jogos de linguagem o conjunto da

    linguagem e das atividades com as quais est interligada que remete afirmao

    do pargrafo 23 de que o termo jogo de linguagem deve aqui salientar que o

    falar da linguagem uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.

    Nessas afirmaes Wittgenstein enfatiza o fato de que a linguagem humana s

    pode ser compreendida em relao com o conjunto das atividades, lingsticas e

    no lingsticas, que constituem as prticas comuns de uma comunidade. Os

    jogos de linguagem so parte de uma totalidade de comunicao e

    comportamento, eles se formam dentro de contextos sociais, esto

    convencionalmente ligados a estes contextos, que Wittgenstein chamou de formas

    de vida: e representar uma linguagem significa representar-se uma forma de

    vida. (IF, 19).

    Com o conceito de formas de vida evidencia-se a dimenso pragmtica da

    linguagem, pois ela passa a ser considerada como uma atividade, atividade esta

    que depende de todo um conjunto de elementos que compem o contexto no qual

    praticada. Desse modo, a significao de uma palavra est relacionada ao

  • 40

    momento de sua aplicao, com todos os elementos e circunstncias que

    envolvem essa aplicao.

    As formas de vida podem ser consideradas o fundamento para as nossas

    prticas lingsticas, uma vez que fornecem o pano de fundo sobre os quais se

    desenvolvem os possveis jogos de linguagem, elas fornecem uma regularidade

    nas aes que permite uma regularidade nos modos de uso das expresses

    lingsticas. Em outras palavras, para que uma linguagem possa ser

    compreendida, pressupe-se uma certa regularidade entre as aes e as palavras

    usadas pelos participantes dos jogos de linguagem em questo. Somos treinados

    para reagir de uma determinada forma, espera-se que as palavras sejam

    acompanhadas de um comportamento adequado. Por exemplo, espera-se que

    determinada reao ocorra frente a um pedido ou a uma ordem, e essa reao,

    esse comportamento comum a todos que participam desse jogo de linguagem:

    ele faz parte da forma de vida em que se insere este jogo de linguagem.

    Mas se a forma de vida o fundamento de nossas prticas lingsticas

    um fundamento sem fundamentos, a descrio dos usos no se lana aqum das

    formas de vida, parte delas e descreve seu funcionamento efetivo e possvel.

    Como vimos acima, Wittgenstein salienta o fato de que os jogos de

    linguagem so atividades guiadas por regras e, com isso, reafirma-se o aspecto

    pblico da linguagem, pois toda atividade regulada por regras uma prtica social,

    uma ao junto uma comunidade:

    no pode ser que apenas uma pessoa tenha, uma nica vez, seguido

    uma regra. No possvel que apenas uma nica vez tenha sido feita uma comunicao, dada ou compreendida uma ordem, etc. Seguir

    uma regra, fazer uma comunicao, dar uma ordem, jogar uma partida

    de xadrez so hbitos (costumes, instituies). (IF, 199).

    A linguagem um comportamento inserido no interior de uma instituio,

    nela que se segue ou no as regras que determinam o modo como devem ser

    usadas as palavras. As regras constituem nossos padres de correo, elas

    funcionam como o critrio de uso correto das palavras.

  • 41

    Que algum compreende o significado de uma determinada palavra ou

    expresso mostra-se quando se torna capaz de agir de acordo com o esperado.

    Ao se ensinar o significado de uma palavra no se ensina uma essncia

    correspondente a essa palavra, mas sim o modo como tal palavra pode ser

    aplicada e essa aplicao depende de uma srie de critrios que so

    determinados pelo jogo de linguagem que se est a jogar. Portanto, o significado

    ser determinado pelas regras que condicionam este agir, as quais esto

    convencionalmente ligadas ao contexto, lingstico e extra-lingstico, de

    comunicao.

    1.4 Significado e vagueza

    Na passagem que inicia no pargrafo 65 das Investigaes filosficas,

    Wittgenstein faz uma crtica ao ideal de determinao do sentido e prope o

    abandono desse ideal, que era um dos pilares do Tractatus logico-philosophicus, e

    segundo o qual uma expresso (ou sentena) tem um sentido completamente

    determinado ou um sem sentido, no podendo haver graus na determinao do

    sentido. Este tema acompanha sua crtica concepo agostiniana de linguagem.

    Segundo o ideal de determinao do Tractatus, o significado de uma

    palavra deve ser invarivel em todas as suas aplicaes, ou seja, o significado

    deve ser completa e absolutamente determinado; no podem acontecer situaes

    em que o significado da palavra seja vago, o que poderia deix-la sem uso. O

    nomear as coisas pressupe que se possa determinar a essncia do objeto ou o

    que h em comum entre diversos objetos, ou seja, determinar qual a essncia

    da coisa que pode ser expressa como definio da mesma, que surge ento como

    conceito. Esta idia, segundo Wittgenstein, perpassa toda a filosofia ocidental e se

    expressa na compreenso de que o papel da filosofia alcanar a essncia do

    conceito, dar uma definio exata para ele, e assim prever todas as possibilidades

    na qual se pode usar tal conceito, de uma vez por todas. Esta postura torna-se

    explcita quando perguntamos: o que a linguagem? O que a proposio? E a

    resposta a estas questes deve ser dada de uma vez por todas; e

  • 42

    independentemente de toda experincia futura. (IF, 92). como se a essncia

    fosse algo oculto que cabe anlise trazer tona; algo que se encontra abaixo

    da superfcie, no interior e que ser revelado pela anlise. com essa concepo

    metafsica, essencialista, que o autor do Tractatus se via envolvido e que o fazia

    buscar a essncia da proposio, compreender a essncia da linguagem, que

    transpareceu na busca da forma lgica da proposio, a qual deveria expressar a

    forma geral universal, que toda proposio tem em comum, e que, portanto, pode

    explicar o funcionamento da linguagem exata e definitivamente.

    isto o que Wittgenstein considera ser a nsia de generalizao da

    filosofia tradicional: considerar que a explicao do significado de uma palavra

    deve remeter a uma definio na qual o significado seja determinado pelas

    propriedades comuns dos objetos denotados, revelando sua essncia. A essncia

    revela quais as propriedades comuns de um conceito que podem explicar o seu

    significado em cada aplicao, sendo portanto descartadas aquelas propriedades

    que no se revelam universais, pois a considerao destas poderia tornar o

    significado ambguo, portanto intil.

    Nessa concepo, o uso de qualquer conceito depende de que em cada

    situao expresse sempre o mesmo significado, pois refere sempre o mesmo

    objeto, ou melhor, as propriedades comuns daquele objeto que denota. O que

    permite dizer que em todos os casos de uso o conceito usado com o mesmo

    significado o fato de expressar a essncia daquilo que denota, o algo em comum

    a tudo aquilo que a palavra refere. A nsia de generalidade pode ser

    compreendida, ento, como sendo aquela tendncia em procurar, em cada caso

    particular de emprego de uma palavra, a essncia universal que acompanha o uso

    do conceito. As regras de uso da expresso deveriam revelar as condies

    necessrias e suficiente de sua aplicao a partir dessas propriedades universais.

    No Tractatus Wittgenstein acreditava que a anlise lgica da linguagem

    deveria levar ao estabelecimento da forma proposicional geral que diz as coisas

    esto assim10. Ela compreendida como a essncia da proposio e representa

    10 a crena de que a proposio e o smbolo devem ter uma essncia, como mostra o Tractatus em 3.341: O essencial na proposio , portanto, o que tm em comum todas as proposies que

  • 43

    as condies necessrias e suficientes da proposio significativa. A forma

    proposicional geral exibe todas as formas proposicionais possveis e unifica todas

    as lnguas, independente de suas diferenas especficas, que seriam apenas

    diferenas superficiais, eliminadas a partir da descoberta do que h em comum a

    todas elas.

    E a idia de que a forma proposicional geral expressa a essncia da

    proposio implica que a prpria realidade tenha uma essncia que pode ser

    expressa na proposio. A essncia da proposio expressa a essncia da

    realidade: especificar a essncia da proposio significa especificar a essncia de

    toda descrio e, portanto, a essncia do mundo. (TLP, 5.4711). Essa noo est

    relacionada com a considerao de que os nomes substituem, na linguagem, os

    objetos. Os objetos tm uma essncia, que so as suas possibilidades de

    combinao para formar estados de coisa. A possibilidade de usar um nome com

    sentido deve espelhar as possibilidades de combinao dos objetos; as regras de

    uso de um nome devem revelar todas as possibilidades segundo as quais ele

    pode se combinar com outros nomes para formar proposies. A regra de

    aplicao dos nomes expressa, portanto, as condies necessrias e suficientes

    da sua aplicao11. A concluso que Wittgenstein tirou disso que a regra de

    aplicao de uma palavra j traz em si mesma todas as possibilidades de

    aplicao futura, a regra determina a priori todas as aplicaes da palavra.

    De acordo com este ideal de determinao as teorias tradicionais tratam

    dos problemas relativos linguagem tentando dar-lhes solues definitivas:

    preciso explicar de uma vez por todas o que a linguagem, o significado, a

    proposio, a palavra, a frase. preciso dar a estes conceitos definies exatas,

    bem determinadas e rigidamente delimitadas, do contrrio no seremos capazes

    de dar uma explicao aceitvel do funcionamento da linguagem. Persegue-se,

    portanto, um ideal de exatido que Wittgenstein mais tarde chamou de iluso

    metafsica, que leva a um essencialismo na linguagem e a postulao de

    podem exprimir o mesmo sentido. Do mesmo modo, o essencial no smbolo , em geral, o que tm em comum todos os smbolos que podem cumprir o mesmo fim. 11 o que Wittgenstein afirma no Tractatus, 3.23: o postulado da possibilidade dos sinais simples o postulado do carter determinado do sentido.

  • 44

    entidades misteriosas, transcendentes e que no Tractatus foram consideradas

    inefveis, no podendo ser descritas, mas apenas mostradas na linguagem.

    Grande parte das Investigaes filosficas destinada a desfazer essa

    iluso. Ao tratar da questo relativa essncia da linguagem, da proposio, do

    pensamento, Wittgenstein diz: perguntamos: o que a linguagem? O que a

    proposio? E a resposta a estas questes deve ser dada de uma vez por todas; e

    independentemente de toda experincia futura. (IF, 92).

    Segundo Baker e Hacker (1983, p. 209), a exigncia de determinao do

    sentido um exemplo notvel de dogmatismo filosfico. No a descrio de

    como a linguagem efetivamente funciona, baseada na observao, mas parte de

    uma tentativa de demonstrar que a linguagem e a comunicao so realmente

    possveis. Mas, ainda segundo esses autores, para este propsito, isto se faz

    tanto desnecessrio quanto injustificado, porque conceitos com limites

    indeterminados no so inteis e as Investigaes revelam que, na verdade, a

    exigncia pela determinao do sentido obstrui a compreenso filosfica da

    linguagem.

    Com a concepo de linguagem apresentada nas Investigaes, alicerada

    nos conceitos de jogos de linguagem, formas de vida, linguagem como uso,

    Wittgenstein contrape-se a essa iluso gramatical e mostra que uma

    investigao acerca do modo como a linguagem de fato funciona permite lanar

    luz sobre os equvocos sobre os quais se erige tal iluso.

    As exigncias da concepo tradicional so apresentadas por Wittgenstein

    no pargrafo 65, quando pondera uma possvel objeo s suas consideraes:

    Aqui encontramos a grande questo que est por trs de todas essas consideraes. Pois poderiam objetar-me: Voc simplifica tudo! Voc

    fala de todas as espcies de jogos de linguagem possveis, mas em

    nenhum momento disse o que o essencial do jogo de linguagem, e

    portanto da prpria linguagem. O que comum a todos esses

    processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Voc se

    dispensa, pois, justamente da parte da investigao que outrora lhe

    proporcionara as maiores dores de cabea, a saber, aquela

    concernente forma geral da proposio e da linguagem.

  • 45

    E logo na seqncia Wittgenstein d sua resposta, antecipando o conceito

    de semelhana de famlia:

    E isso verdade. Em vez de indicar algo que comum a tudo aquilo

    que chamamos de linguagem, digo que no h uma coisa comum a

    esses fenmenos, em virtude da qual empregamos para todos a

    mesma palavra, - mas sim que esto aparentados uns com os outros

    de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses

    parentescos chamamo-los todos de linguagens.

    Em outras palavras, deve-se abandonar a idia de que apenas ao se

    alcanar a essncia comum de tudo aquilo que entendemos como linguagem

    seremos realmente capazes de compreender o que significa linguagem, e passar

    a aceitar que, ao contrrio, existe uma multiplicidade de possibilidades de uso

    para o que chamamos de linguagem, e a explicao (bem como a compreenso)

    do que linguagem dever a cada momento considerar seu uso efetivo: a

    linguagem uma coleo de ferramentas com as quais realizamos diferentes

    atividades, cada ferramenta (palavra) tem uma funo especfica, de acordo com o

    jogo de linguagem na qual empregada. No pargrafo citado Wittgenstein se

    contrape quilo que lhe era mais importante quando escreveu o Tractatus: a

    busca do algo em comum na linguagem a partir do que se poderia dar a ela uma

    definio (esse algo em comum que no Tractatus era a forma lgica da

    proposio). Agora, afirma que aquilo que lhe dera as maiores dores de cabea

    no passava de uma iluso metafsica: considerando que no existe o algo em

    comum linguagem, no h a linguagem, a proposio, o pensamento. Essa

    uma postura essencialista que precisa ser desmascarada nas Investigaes: o

    essencialismo no passa de uma iluso gerada por uma m compreenso do

    funcionamento da linguagem.

    Para exemplificar sua posio, no pargrafo 66 Wittgenstein pede que

    consideremos o que chamamos jogos (de tabuleiro, de cartas, de bola, etc.). Na

    postura essencialista tradicional, a definio do que so jogos dependeria da

  • 46

    compreenso do que h em comum a tudo que chamamos jogos, ou seja, da

    essncia de jogo, para ento definir jogo. Wittgenstein convida o leitor a deixar de

    afirmar algo deve ser comum a eles, seno no se chamariam jogos e pede que

    se veja se algo comum e diz que nessa atitude no encontraremos esse

    elemento em comum que nos poderia dar a definio de jogo, mas apenas

    semelhanas, parentescos, que formam uma rede, que se envolvem e se cruzam.

    E so todos esses elementos que nos permitem compreender o que significa jogo.

    No pense, mas veja. E ento veremos que eles no possuem uma tal

    propriedade comum que permita uma definio exata e definitiva, mas elementos

    comuns que se relacionam uns com os outros. Na realidade, h semelhanas e

    parentescos entre os diversos tipos de jogos, que ele tenta mostrar examinando

    os diferentes usos da palavra jogo. E essas semelhanas so como as

    semelhanas entre os membros de uma famlia12, que se envolvem e se cruzam,

    por isso pode-se tambm afirmar: os diferentes usos da palavra jogo formam uma

    famlia, por isso um conceito que encerra uma infinidade de caractersticas que

    fazem dele o que , caractersticas que no so acessadas sempre em conjunto,

    mas combinadas de diferentes maneiras em cada jogo de linguagem de que faz

    parte.

    Poder-se-ia dizer que o conceito jogo um conceit