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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS: POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA

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Page 1: Tese de doutorado   patrícia porto  -narrativas memorialísticas_ por uma arte docente na escolarização da literatura_

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSECENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:

POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA

NITERÓI

2009

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PATRÍCIA DE CÁSSIA PEREIRA PORTO

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:

POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA LITERATURA

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação.

UFF/ NITERÓI

2009

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PORTO, Patrícia de C. P.. Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura. 285p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

Banca Examinadora:

_________________________________________________________Professora Dra. Iduina Mont’Alverne Braun Chaves

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________Professora Dra. Maria da Conceição Ferrer Botelho Sgadari Passeggi

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

_________________________________________________________Professora Dra. Eliana Braga Aloia Atihé

Universidade de São Paulo

_________________________________________________________Professora Dra. Valdelúcia Alves da Costa

Universidade Federal Fluminense

_________________________________________________________Professora Dra. Márcia Maria de Jesus Pessanha

Universidade Federal Fluminense

Data:

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O SUMÁRIO:

NARRATIVAS MEMORIALÍSTICAS:POR UMA ARTE DOCENTE NA ESCOLARIZAÇÃO DA

LITERATURA

O Prólogo.Pelo bosque....................................................................................................................................13Entre “odos” e “mythos”................................................................................................................23

“Odos”1 - Memória Singular e a escolarização da literatura: Narrar para não esquecer.......................................................................................................37

2 – Memória Plural e a cultura popular em sala de aula: Narrar para aprender..............................................................................................................612.1- No bosque da literatura: A cultura pelos tecidos da linguagem..............................................752.2 – A cultura popular como metáfora de uma memória plural: Pelas encantaria do Tambor de Crioula............................................................................................................................................81

3 – Cultura oral, Literatura e Folclore.......................................................................................1043.1- Cultura da infância: compreendendo o folclore infantil em Florestan Fernandes............... 1163.2 – A cultura oral como processo de significação e a relação entre folclore e literatura na escola: Cala boca já morreu... ...................................................................................................... 124

“Mythos”

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Narrativas Memorialísticas de Professores..................................................................................134

Água4 Memórias de um Porto: De véspera - Do mirante ao horizonte: Sebastianistas e Quixostecos na espiral da reinvenção....................137A memorialista.............................................................................................................................147 A Divina Pastora.........................................................................................................................150Ar5 Memórias de Rya-ne:– O fluxo memorialístico da Infância ou Memória Proustiana...................................................165– O fluxo da memória coletiva ou Memória Polifônica. ............................................................173Terra6 Memórias de Elzi Paixão- Poética da Linguagem:Um trançado de bilro entre oralidade e literatura........................................................................187

Fogo7Memórias de Magalhães – A crônica memorialista e a cidade:A possibilidade de diálogo entre literatura e história........210

Upaon-Açu e o Círculo8Memórias de Emanuel- Emanuel, o peixe, o rio, a lenda e o fantástico: por uma poética da imaginação.......................231

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Cazumbá e a Cidade dos Azulejos............................................................................................... 242

9 – O Epílogo...............................................................................................................................249 Bibliografia..................................................................................................................................255Anexos..........................................................................................................................................260

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ADVERTÊNCIA

Uma casa tem muita vez as suas relíquias, lembranças de um dia ou de outro,

da tristeza que passou, da felicidade que se perdeu. Supõe que o dono pense em

as arejar e expor para teu e meu desenfado. Nem todas serão interessantes, não

raras serão aborrecidas, mas, se o dono tiver cuidado, pode extrair uma dúzia

delas que mereçam sair cá fora.

Chama-lhe à minha vida uma casa, dá o nome de relíquias aos inéditos eimpressos que aqui vão, idéias, histórias, críticas, diálogos, e verás

explicados olivro e o título. Possivelmente não terão a mesma suposta fortuna

daquela dúziade outras, nem todas valerão a pena de sair cá fora. Depende da tua

impressão,leitor amigo, como dependerá de ti a absolvição da má escolha.

Machado de Assis

Dedicado aos artistas populares, aos professores que “amam” a literatura

e a todos os alunos e mestres que me trouxeram até aqui.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente à Universidade Federal Fluminense, minha segunda casa

por dezoito anos de formação. Muitos foram os encontros que transformaram a minha

trajetória nesse percurso. Agradeço ao professor Jorge de Sá, amigo e mestre que me

ensinou através de Todorov que “literatura não se ensina, se vive”. À professora Sônia

Monnerat tanto pela teoria literária quanto pela alegria literária. À professora Edwiges

Zaccur, inspiração e espelho de afinidades. Ao professor Osmar Fávero, uma fonte

abundante de narrativas e memórias da educação, um grande memorialista, um jequitibá e

um ser humano ímpar. A todos outros professores, aos funcionários, à Maura por tantos

anos de boa prosa e café. A UFF já me deu “régua e compasso”. E um ciclo se fecha.

Agradeço aos professores que com toda gentileza aceitaram e participam como co-

autores nessa viagem de múltiplas paisagens, de múltiplos acessos à arte literária numa

ponte aérea entre Rio de Janeiro e Maranhão, entre santos e cidades, entre São Luís e São

Gonçalo. Agradeço à Elzi Paixão, a terra, Ryane Pinto, o ar, ao professor Jorge

Magalhães, o fogo, a Emanuel Reis, o círculo, a Paulo Carré, as imagens. Agradeço a eles

a alquimia dos elementos que compuseram esse todo, esse tecido humano feito de

memórias, vozes, tambores, ladainhas, cantigas, acalantos... Oxalá!

Á minha orientadora e sempre amiga Iduina Chaves. Agradeço todo respeito, afeto

e apoio nas horas mais necessárias. Foi um caminho difícil e longa foi a batalha contra os

“moinhos de vento”. Iduina foi companheira e orientando - não para prender, mas para

libertar, fez renascer em mim o sentimento de coragem, de saber agir com o coração, o

sentimento que habita os Sertões e diz dele que “todo nordestino é antes de tudo um forte”.

Agradeço às companheiras e ao companheiro do grupo de pesquisa do

“Imaginário”: Jacyana, Adrianne, Bruna, Tatiana, Rosane e Eduardo. Agradeço a

amizade, as dicas, os livros emprestados, os textos, as mensagens de carinho e conforto, os

olhares de compreensão, o bom humor e toda boa energia trocada. Agradeço

especialmente à amiga Tânia Nhary por suas palavras sempre tão preci(o)sas. Agradeço ao

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amigo e companheiro de jornada Carlos Henrique por ter dividido comigo os altos e baixos

do percurso.

Agradeço à minha família por todo suporte recebido e pela necessária rede de

acolhimento. Aos queridos Raida, Ovídio, Isadora, Karen, Matheus, meus irmãos que se

perderam e se acharam na vida em busca de aventuras: Rojane, Cláudio, Mauro, Carmem e

Suely, meus cunhados e cunhadas, Rosana, Adalto, meus sobrinhos, minhas primas Andréa

Márcia, Márcia Andréa e a querida Yasmin, minhas tias Zica e Inácia, meu querido Marcus

André e a todos os outros afetos.

Agradeço à minha filha Alice, filha do meu coração e da minha alma. Agradeço ao

meu filho Pedro, minha rocha, minha força, meu pensamento.

Pedro pedreiro penseiro esperando o trem (...)

Pedro não sabe mas talvez no fundo espere alguma coisa mais linda que o mundo.

Chico Buarque

Agradeço ao querido Francisco Meirelles todas as prendas, a “capa” da tese e todo

o amor e toda paciência nos nossos momentos tão bem compartilhados.

Agradeço aos artistas, aos brincantes, às coreiras, aos ogãs, aos griots, aos poetas

populares, aos livreiros, ao povo todo, povo lindo que me recebeu com cheiros, estórias e

histórias pra contar.

E ao Milton Nascimento que com sua voz e suas lindas canções ajudou a embalar

minhas noites insones:

Há um meninoHá um molequeMorando sempre no meu coraçãoToda vez que o adulto balançaEle vem pra me dar a mão

Há um passado no meu presenteUm sol bem quente lá no meu quintalToda vez que a bruxa me assombraO menino me dá a mão

E um novo ciclo se abre...

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PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura. 285p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

RESUMO

As histórias do tempo de escola e do tempo da infância fazem parte da memória da nossa

passagem pelo mundo e essas memórias, espontâneas ou evocadas, se manifestam de forma

simbólica e imaginária. E as reminiscências que afloram desse tempo memorialístico nos aparecem,

no campo do visível e do dizível, como um redemoinho de imagens, um labirinto discursivo e

imagético. Nesta tese, para refletir sobre as “experiências memorialísticas” que se desvelam no

espaço poético entre ficção e realidade, entre memórias reais e memórias ficcionais – nos

aproximamos de abordagens teóricas que tratassem dessa temática plural entre a literatura e a

memória como continuum religare. Ao realizar o presente estudo, um dos objetivos iniciais foi

refletir sobre uma “arte docente” na escolarização da literatura a partir das experiências narrativas

literárias que possibilitassem o encontro e o diálogo entre a identidade cultural e o direito à palavra

encarnada da memória, palavra que, quando mesclada ao mundo imagético, desfaz as fronteiras entre

o que se vive e o que se inventa para viver, lembrar e narrar do tempo da experiência.

A metodologia desta pesquisa foi centrada na própria poiesis da narrativa que provinha da

materialidade de cada discurso memorialístico, discurso visto aqui como um dos acessos à busca do

homem pela significação da sua existência no mundo e com o mundo. Nós existimos com e para

além. E é assim que nos lançamos ao passado, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem, no

nosso universo mítico. O discurso memorialístico do contar, do narrar sua história, do refletir-se na

história do outro, reascendo o fogo primitivo que sobrevive num sujeito muitas vezes atrelado à

massificação das experiências e ao esvaziamento do significar.

Concluímos e defendemos assim que, ao compreender a persistência das reminiscências

diante de um esquecimento contemporâneo dilacerante e de uma crescente ausência da arte da

narrativa, como há muito nos advertiu Walter Benjamin, somos convocados a refletir sobre quem

fomos e sobre quem queremos nos tornar nas nossas próprias trajetórias docentes.

Palavras-chave: Literatura; Cultura; Memória.

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PORTO, Patrícia. Memorialistic Narratives: For a teacher’s art in the learning process of literature. 285p. (Doctorate Thesis) – College of Education, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

ABSTRACT

The stories of school and childhood time take part in the memories of our path through the world

– and these spontaneous or conjured memories come about in a symbolic and imaginary fashion. The

reminiscences that crop up from this memorialistic time appears to us, in the visible and sayable

fields, as in an eddy of images, a discursive and imagetic labyrinth. In respect to this work, in order

to think about the “memorialistic experiences” that are uncovered in the poetic area between fiction

and reality, real and fictional memories – we came close to theoretical approaches that addressed this

plural issue between literature and memories as a continuum religare. When performing this study,

one of the main objectives was to think about a “teacher’s art” within literature learning from literary

narrative experiences that allowed the meeting point, as well as the dialogue between cultural

identity and the right to the incarnate word of the memories. This word, when intertwined with the

imagetic world dissolves the boundaries between what is lived and what is created to live, remember

and narrate the time of experience.

The methodology of this research focused on the narrative poiesis itself, which came from the

materiality of each memorialistic discourse, whereas this discourse is considered here as one of the

ways to reach the quest for life meaning and existence in and with the world. We exist with and

beyond. And that is how we dive into the past, trying to recover our lineage in our mythic universe,

many times. The memorialistic discourse of narrating our own lifetime, of projecting ourselves in

someone else’s lifetime, reactivating the primitive fire that lives on in an individual many times

attached to the massification of experiences and to deflation of meaning.

We reach the conclusion and stand that, when understanding the persistence of the

reminiscences regards to a dilacerating contemporary oblivion and an increasing absence of

narrative art, as Walter Benjamin warned us long ago, we are impelled to think about who we were

and who we want to become in our teacher career.

Key words: Literature; Culture; Memories.

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PORTO, Patrícia. Narrativas Memorialísticas: Por un arte docente en la escolarización de la literatura. 285p. (Tesis de Doctorado) – Facultad de Educación, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

RESUMEN

Los cuentos del tiempo de escuela y del tiempo de la infancia hacen parte de la memoria de

nuestro pasaje por el mundo y esas memorias, espontáneas o evocadas, se manifiestan de forma

simbólica e imaginaria. Y las reminiscencias que afloran de ese tiempo memorialístico nos parece,

en el campo de lo visible y de lo decible, como un remolino de imágenes, un laberinto discursivo e

imagético. En esta tesis doctoral, a fin de reflexionar sobre las “experiencias memorialísticas” que se

desvelan en el espacio poético entre ficción y realidad, entre memorias reales y memorias ficcionales

– nos acercamos de abordajes teóricos que trataran de esa temática plural entre la literatura y la

memoria como un continuo religare. Al realizar el presente estudio, uno de los objetivos iniciales

fue reflexionar sobre un “arte docente” en la escolarización de la literatura a partir de las

experiencias narrativas literarias que possibilitaran el encuentro y el diálogo entre la identidad

cultural y el derecho a la palabra encarnada de la memoria, palabra ésta en que, cuando mezclada al

mundo imagético, deshace las fronteras entre lo que se vive y lo que se inventa para vivir, acordarse

y narrar a partir del tiempo de la experiencia.

La metodología de esta investigación se centró en la poiesis misma de la narrativa que era

proveniente de la materialidad de cada discurso memorialístico, discurso visto aquí como uno de los

accesos a la búsqueda del hombre por la significación de su existencia en el mundo y con el mundo.

Existimos con y para más allá. Y es así que nos lanzamos al pasado, al intentar por muchas veces

recomponer nuestro linaje, en nuestro universo mítico. El discurso memorialístico de lo contar, de lo

narrar su cuento, de lo reflejarse en el cuento del otro, reavivando el fuego primitivo que sobrevive

en un sujeto muchas veces atraillado a la masificación de las experiencias y al vaciamiento de lo

significar.

Concluímos y defendimos así que, al comprender la persistencia de las reminiscencias

delante de un olvido contemporáneo dilacerador además de una creciente ausencia del arte de la

narrativa, como hace mucho nos advertió Walter Benjamin, somos convocados a reflexionar sobre

quien fuimos y sobre quien queremos volvernos en nuestras trayectorias docentes mismas.

Palabras clave: Literatura; Cultura; Memoria.

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O PRÓLOGO

Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso.

Meu quintal é maior que o mundo.

Manoel de Barros

Tijolos e telhas feitas pelos quilombolas de Alcântara, Maranhão. Imagem: herdeiro legítimo das terras quilombolas.

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Pelo bosque

Um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda

ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção.

Umberto Eco

Um bosque pode ter um jardim de caminhos que se separam e que depois podem

voltar a ser no mesmo todo um jardim, não o mesmo do passado, aquele de trilhas já

marcadas e conhecidas, mas um outro, por sinal ainda mais bonito, que do passado faz no

presente o caminho reinventado. E de reinvenção em reinvenção se pode atravessar o bosque

criando e deixando novas trilhas, escolhendo árvores e direções, aumentando com muitos

pontos a narrativa que nos leva a um lugar de escolha e destino. De onde poderemos então

ouvir a voz do Eco:

(...) havia procurado no bosque uma coisa que estava em sua memória particular. Ao caminhar pelo bosque, posso muito bem utilizar cada experiência e cada descoberta para aprender mais sobre a vida, sobre o passado e o futuro. Sem embargo, considerando que um bosque é criado para todos, não posso procurar nele fatos e sentimentos que só a mim dizem respeito. (...) porém o devaneio não é uma coisa pública; leva-nos a caminhar pelo bosque da narrativa como se estivéssemos em nosso jardim particular. (Eco, Umberto. p.16, 2004)

Em muitos contos de fadas espalhados pelo mundo teremos a opção de escolha de

um ou mais caminhos pelo bosque. Sem dúvida, isso pode sugerir uma série de aventuras e

desventuras, trajetos com inúmeras trilhas, atalhos, desvios, clareiras acesas... Pensemos

então a fábula numa analogia com a nossa formação docente, ou melhor, com a nossa

formação humana. No caso dos contos fabulosos, desde tempos remotos até hoje, as crianças

que moram no centro das histórias e que partem sempre do centro de si mesmas para

cumprirem seus destinos, vivem trasnsgrediências e expelidas para as periferias vão habitar

por uma estação - ou mais - os nebulosos, os obscuros com sibilos e grilos, habitar os

silêncios do tempo e os mistérios sem fim. Elas precisam chegar do outro lado, precisam

vencer o medo do escuro e da morte, o julgo do veto e a armadilha de castração. Elas

precisam cumprir o que há de missão mítica assim como um herói épico, um herói de

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Virgílio, que já não busca somente a glória para os seus feitos, mas que imprime à sua

trajetória o valor da vida e da morte, da aprendizagem do caminho com a sabedoria do

coração e a alegria hospedada no desejo de chegar, desejo legítimo de uma alma buscante.

Por isso que pensado com o coração e sentido com a alma, o presente instrumento de

viagem ou viagens traz as narrativas de muitas vozes, vozes de muitos narradores, esperando

que, aos leitores amigos, se abra aqui mais uma possibilidade de olhar que una no mesmo

percurso - a arte popular como metáfora do imaginário coletivo e as memórias da infância

como o simbólico do imaginário de quem conta sua história com memórias reais e

ficcionais, verossímeis e inverossímeis; trazendo para o centro dessa bifurcação temática as

narrativas das memórias de educadores que, ao trabalharem com a literatura e suas

linguagens, vivem a literatura como amor.

Para viver uma literatura encarnada, que partisse do “individual” para o “coletivo”

sem fragmentar o individual, foi lançada uma primeira hipótese: a de que “só se vive a

literatura na escola por um primeiro engajamento: “o gosto” e que o professor, a professora

“que escrevesse literatura” ou que “gostasse de escrever” ou que “gostasse de ler” ou que

“gostasse de contar e ouvir estórias” era a princípio um professor, uma professora que

trabalhava em prol de uma “literatura” pelo gosto. Ora, essa hipótese criava um absoluto ao

descartar no reverso do gosto o seu des-gosto, pois “gostar” e “não gostar” são como duas

fases da mesma lua. Afinal, há tantos gostos que se tornam desgostos e vice-versa. Foi

preciso então lembrar Fernando Pessoa ou o poeta camponês Alberto Caeiro que nos deixa

simpaticamente uma deixa de herança: a de que há um “sol que doira sem literatura” e

ainda, para o desconforto de alguns, completa dizendo que não constava que Jesus Cristo

tivesse biblioteca.1 Ora, não é possível absolutizar o gosto ou até mesmo definir o que é

gosto, porque o gosto assim como a beleza está no campo do que é relativo. Diz um adágio

popular que “gosto não se discute, se lamenta”. David Hume2 foi um dos teóricos que ousou

discutir o conceito de gosto e o de estética. E sobre a beleza, disse o teórico que não se

tratava “a beleza” de uma qualidade das próprias coisas, pois ela existia apenas no espírito

de quem as contemplava, e cada espírito percebia uma beleza diferente. (1973, p. 316).

Assim como a beleza, o gosto existe de maneiras diferentes em cada espírito. E faz parte do

1 Poema: “LIBERDADE”. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003.2 HUME, David. Do Padrão do Gosto. In: Ensaios Morais, Políticos e Literários. São Paulo, Abril Cultural, 1973. Coleção "Os Pensadores", 1ª ed.

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nosso sentimento. “O sentimento está sempre certo – porque o sentimento não tem outro

referente senão ele mesmo, e sempre real, quando alguém tem consciência dele" (Ibidem,

ibid.).

E é claro que se aprende, até ao mesmo tempo, pelo gosto e pelo desgosto, se

aprende quando há alegria e liberdade e se aprende por obrigação e com punição. Peço

licença apenas para defender que não há aprendizagem alguma pela tortura. Há medo,

sofrimento e trauma. Numa de minhas entrevistas ouvi de uma professora que quando

criança ela obrigada por uma de suas tias a comer jiló, o que ela disse detestar hoje. A tia

sentava ao lado dela com uma colher de pau e a cada recusa da menina, a colher era batida

firme nas juntas dos seus pequenos dedos. Disse ela que até hoje não consegue olhar para

um jiló sem que lhe venha à mente a imagem da colher de pau, não consegue olhar para uma

colher de pau desvencilhada da imagem da tia - que em sua lembrança aparece amarga

como jiló.

Por pertencer a ideia de gosto a uma subjetividade relativa, não havia como definir

uma postura teórico-metodológica que não trouxesse em sua gestação o difuso e o movediço

dos paradoxos. E cabe aqui ressaltar que “paradoxo” não é necessariamente sinônimo de

“dicotomia”3. Talvez por isso essa escolha tenha trazido consigo uma responsabilidade

fundamental: fazer pesquisa com professores que diziam “amar” a literatura e que viviam a

literatura com seus alunos, no cotidiano das escolas e em suas trajetórias de vida e mundo -

como amor e morte – como salto e queda. Porque o amor também flecha o próprio amor e

também finge morrer de amor e morre também de amor no seu verso e avesso. Joel Rufino

dos Santos (2008) já na capa de seus “Ensaios indisciplinados” nos avisa: Mas o que seria,

enfim, amar literatura? Amar a literatura é um vício: o do gozo fingido, ou do fingimento

gozoso.

Nesse contexto tornou-se necessário pensar a literatura para além dos textos

literários que eram destinados “aos pacotes” para os professores, textos que nos livros

didáticos de português e literatura muitas vezes apareciam com a finalidade única de servir a

um método a ser reproduzido sistematicamente e mecanicamente através das cabeças e

3 Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “paradoxo”: Conceito que é ou parece contrário ao comum; contra-senso, absurdo, disparate; e “dicotomia”: Método de classificação em que cada uma das divisões e subdivisões não contém mais de dois termos. Sendo assim, quando nos referimos às contradições humanas, o que se aproxima da estética barroca com seus universos de trevas e luzes, corpo e alma, anjos e demônios, não o fazemos de forma dicotômica ou maniqueísta, mas sim de forma paradoxal.

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conteúdos fechados. Sobretudo tornou-se necessário pensar a literatura a partir das

possibilidades de acesso criadas pelos professores e pelas experiências que se davam pela

subversão do pré-estabelecido e ainda pela subversão silenciosa que se dava e dá na aparente

conformação do pré-estabelecido, práticas que não negavam uma metodologia, mas que,

quando criadas e centradas nas experiências com a literatura, apareciam plenas nas

narrativas livres desses educadores. Entendemos que a imaginação é livre, permissiva e

transgressora, o que não impede que ela se torne ativa e constante em ambientes regrados. O

regrado pode ser regado com a imaginação.

Os professores com os quais convivi durante esses anos de pesquisa os conheci em

momentos distintos ao longo das nossas diferentes e convergentes trajetórias - que ora se

cruzavam nos congressos da vida, ora nas esquinas da vida, ora nos corredores das escolas,

ora na universidade, ora no retorno de uma filha pródiga à terra natal. Foram vários os

encontros e os desencontros também. Fazer pesquisa foi “ação” e “espera atenta”, escuta

atenta, olhar atento. O que exigiu da pesquisadora uma disponibilidade para os avessos, os

reversos, os esquecimentos até. Não foram raras as vezes em que a casa construída urgiu ser

desabitada, colocada a baixo, para que assim pudesse ser novamente projetada. E a cada

projeção uma atenção, o desafio de aprender a ouvir com os ouvidos de dentro, a enxergar

com os olhos de dentro, a sentir com o coração de dentro e pensar com o coração exposto.

O desafio de pensar a literatura na escola veio balizado pelo desafio de compreender

como os professores na relação com o seu metapoeisis vivenciavam a literatura e as tantas

linguagens que dela provinham, linguagens que diziam de perto aos fluxos memorialísticos

das palavras e imagens que compunham o que eles chamavam real juntamente com o que

reinventavam ou re-significavam feito lembrança do vivido.

Entre tantos estilos de escrita, estéticas e gêneros literários que iam surgindo nas

conversas, nas entrevistas, nos e-mails e nos ricos encontros entre a pesquisadora e os

professores, todos escritores e poetas, a emergência e a permanência de um modelo ou

forma narrativa foi se colocando com maior ênfase. Tratava-se de um “memorial”, que ora

apresentava-se como conto baseado no real ora como prosa poética do real. Isso se deu de

maneira imbricada e foi tomando espaço e criando sua contextualização no próprio percurso,

ainda que os primeiros ensaios de narrativas escritas pelos professores tenham sido feitos

como poemas memorialísticos ou fragmentos poéticos. O interessante é que os poemas

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foram ganhando a voz e o corpo do prosador, fluindo narrativamente. Do verso veio a

“prosa”, “o conto”, a necessidade do contar a sua história, do contar-se. A escrita foi

cedendo ao oral e da narrativa oral se retomava a escrita numa ambivalência. Foi criado

então um segundo impasse, entre muitos que se seguiram. Como chamar esses “memoriais”?

Contos memorialísticos ou narrativas memorialísticas?

Para ajudar na definição, recorro então a Barthes:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral e escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disto, sob estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, (...) a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura (...) está aí, como a vida. (p.19)

Seguindo uma perspectiva metodológica que valoriza a narrativa de mundo que

“está aí, como a vida”, foi acordado que, para cada sujeito da pesquisa, haveria a criação de

uma narrativa escrita, um registro memorialístico de infância – um registro que fosse

autobiográfico e/ou ficcional, propondo desde o primeiro momento que, na carpintaria

desses escritos, fosse possível perfazer, juntamente ao texto dissertativo, um painel

narrativo-metodológico que criasse e/ou desvelasse “espaços potenciais” no intercruzamento

entre as imagens que sempre suscitam das narrativas e a teia por onde transpassam o mítico,

o simbólico e o fantástico – campos expressivos da literatura e da imaginação. Por isso

mesmo todos esses conceitos aqui trabalhos estarão entrelaçados a uma visão que não

condena ou despreza a escolarização da literatura, mas sim busca compreendê-la a partir de

um compromisso epistemológico e poético com outra arte – a de educar.

E tentando elucidar a dimensão desse tema-teia que se dá numa forma espiralada, em

camadas que não se fecham nem tampouco se sobrepõe uma à outra, mas, ao contrário, se

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alimentam e aprendem de si mutuamente nas tantas idas e voltas, é que me deparei com duas

citações e duas memórias. A primeira foi retirada de um conto infantil de José Saramago: A

Maior flor do Mundo (2001). Diz o narrador:

Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu... (...)

Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventura sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte, efeito literário de que ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder hoje aconchegar a frase. Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: “Vou ou não vou?” E foi.

As palavras de Saramago expressam um tempo subjetivo e cirandeiro, o tempo largo

pertencido à infância. O narrador nos conta a história de um menino que por meio de uma

janela pôde vislumbrar o mundo com seus “olhinhos” de desejo e vendo este mundo e toda

sua riqueza de cores e acontecimentos, tornou-se um ‘buscador’ de algo mais, algo mais a

bulir na alma, a mover o desejo de conhecer, de superar, de transgredir ultrapassando

limites internos e externos. Assim, ao se permitiu ir pela amplidão dos lugares da infância,

ele encontrou a sua flor, a maior flor do mundo, a flor que o libertava do ritual da jornada:

precisava crescer para poder voltar para casa. E o menino “foi” e “vai” ao sabor da estória,

aventurando-se às descobertas do encantamento de ser um todo existente, assim como o fez

Thamires, de quem trago a fala numa imagem de memória:

T (6 anos): Eu sou a chapeuzinho vermelho (com um fantoche na mão). Eu moro na floresta com a minha mamãezinha. Todos os dias eu saio de casa pra levar docinhos para a minha querida vovozinha. Ela mora na floresta numa casa branquinha. Branquinha não, rosinha. Um dia eu estava passeando na floresta quando o lobo, aquele malvado apareceu. Aí... aí... Essa parte eu esqueci... Como é mesmo? Ah, já lembrei! O lobo me perguntou...4

Thamires, a menina que viveu aquela realidade da escola e hoje passeia - para os

que vão ler essa passagem – no bosque de uma ficção, trata as palavras com o afeto dos

diminutivos e assim de braços dados com o menino da ficção de Saramago estão indo,

4 Aluna do pré-escolar da Escola Municipal Célia Pereira da Rosa (município de São Gonçalo, Rio de Janeiro).

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viajando num mundo maravilhoso cheio de imagens, de fantasias. Estão lá e aqui, no mundo

do imaginado e da ação, para conquistar algo, algo muito maior que o tamanho deles.

Como o menino do conto de Saramago, quantas vezes saímos da casa de nossos pais,

avós, saímos do nosso vilarejo, da nossa província, do nosso território, da nossa cidade e até

mesmo da terra que consideramos nossa pátria - para compreender algo maior que o nosso

próprio tamanho? Saímos para nos deparar e tentar compreender nossos desejos, nossas

atrações, nossas punções, volições, nossas vontades mais profundas, nossa mesma

profundidade.

E quantas são as vezes que nos tornamos a Chapeuzinho Vermelho da nossa própria

história para viver a imensidão do rito que é a floresta para abandonar a criança da qual

precisamos nos despedir. E ao adentrar nos imensos da floresta e nos perder em seus

labirintos é dela que vamos conseguir retirar as experiências, o bálsamo, as seivas, as ervas,

os unguentos que nos fortalecerão para enfrentar as realidades do cotidiano e o medo do

(des)conhecido que habita em nós, como o medo do lobo sedutor. Entrar na floresta tem o

seu “que” de assustador, porque é sempre um transgredir, é ir ao encontro do des-

conhecimento do conhecido. É a floresta que alimenta o nosso imaginário de esperança e de

novas morfoses, de novas culturas. É uma transição, uma passagem, uma busca, um

encontro, uma transformação e um trocar de pele para poder renascer. Nos contos de fada ou

“estórias para crianças”, Chapeuzinho Vermelho encontrou o seu lobo, os irmãos João e

Maria encontraram a bruxa, Branca de Neve encontrou o caçador que lhe queria arrancar o

coração.5

Sabe-se que a floresta, por conta de todo esse simbolismo, é uma imagem

freqüentemente usada nas narrativas de infância, nos contos orais arcaicos e também nos

contos de fada para crianças. Sobre isso disse Campbell (1990):

(...) embora a maioria dos contos de fadas tenham um final feliz, no meio do percurso ocorrem motivos mitológicos típicos; por exemplo, o motivo de nos encontrarmos, de repente, em grande dificuldade e ouvirmos uma voz ou vermos alguém que chega para nos salvar.

Histórias de fadas são para crianças. Elas freqüentemente falam de uma menininha que não quer crescer e se tornar uma mulher. Ela hesita

5 O cinema fortaleceu essa simbologia com imagens que vieram com as adaptações dos clássicos

infantis, como os desenhos de Walt Disney e “O mágico de Oz”.

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diante da crise desse limiar de passagem. Então adormece, enquanto o príncipe ultrapassa todas as barreiras e vem fornecer a ela uma boa razão para aceitar que crescer, afinal de contas, tem o seu lado agradável. Muitas das histórias dos irmãos Grimm representam a menininha paralisada. Todas aquelas matanças de dragões e travessias de limiares têm a ver com a ultrapassagem da paralisação. (p.151)

Por entender o sofrimento diante da crise que há em todo limiar e reconhecendo que

em todo percurso humano, em toda travessia também há a ultra-passagem da paralisação, o

imaginário será aqui pensado como a expressão de uma ambiguidade complexa,

ambiguidade provinda do campo das contradições que existem nas trajetórias de vida – seja

por entre as imagens que lembramos e inventamos da infância, seja por entre os bosques

repletos de imagens daquela criança remanescente que existe dentre de nós, seja por entre as

imagens que produzimos da experiência, diante do amadurecimento inevitável da vida. E a

noção escolhida para começar a definir o imaginário foi centrada em duas vertentes: uma

que se debruça sobre a relação do sujeito com o mundo real sensível e a outra que se espraia

no que o imaginário transcende do mundo sensível, criando assim o mundo da imaginação,

das coisas não tangíveis. Entendemos que nas nossas narrativas de vida há uma ambiguidade

entre o imaginário singular e o imaginário coletivo e entre eles não há fronteira que os

defina ou separe sem que um já esteja com as marcas e as pistas do outro.

No livro: Educação e imaginário – Introdução a uma filosofia do imaginário

educacional, a partir das contribuições de Gaston Bachelard, de Gilbert Duran e Henry

Gorbin, pode-se estabelecer, segundo Wunemberg e Araújo, os fundamentos de uma nova

teoria da imaginação e do imaginário, que podem ser considerados conhecimentos sólidos.

Entre as linhas mestras, cito uma que esclarece a escolha de “duas vertentes”, evidenciando

dessa maneira a complexidade epistemológica do trabalho de pesquisa com o imaginário.

Segundo Wunemberg e Araújo:

O imaginário é inseparável de obras, psíquicas ou materializadas, que servem para que cada consciência construa o sentido da sua vida, das suas acções e das experiências de pensamento. A este respeito, as imagens visuais e lingüísticas contribuem para enriquecer a representação do mundo (Bachelard, Durand) ou para elaborar a identidade do Eu (Ricouer). Assim, a imaginação surge de facto, e é algo que Sartre tinha previsto, como um modo de expressão da liberdade humana confrontada com o horizonte da morte (Durand). (grifo meu)

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A literatura – criatura da imaginação é criadora de imaginação. E essa imaginação é

viva, por isso inconclusa. Nosso imaginário se enche de representações que fazem da

floresta uma travessia com inúmeros ritos. A literatura com as suas imagens e todo seu

simbolismo, pode nos desvelar algumas dessas passagens.

Numa tentativa de arché ou palimpsesto, podemos encontrar na infância esse sair ou

fugir ou ser levado a enfrentar as nossas florestas como um “João sem medo”6, o menino

que também transgrediu limites para poder entrar na floresta. João sem medo morava numa

aldeia que se chamava Chora-que-logo-bebes. Diziam que por lá vivia uma gente muito

infeliz e que esta aldeia tinha um imenso muro que a separava da Floresta Branca, lugar

onde moravam os sonhos e os mitos. No muro que separava a aldeia da floresta estava

escrita a seguinte recomendação: É proibida a entrada a quem não andar espantado de

existir. João sem medo pulou este muro, viveu a floresta e ficou espantado de existir.

E de uma aldeia que constituí a própria matéria do “ser criança” com suas outras

tantas lógicas, muitas vezes saímos ou fugimos, através da imaginação, a fim de ver quanto

da terra se pode ver o Universo... Diz o menino de Saramago: Por isso a minha aldeia é tão

grande como outra qualquer. Porque eu sou do tamanho do que vejo. As crianças são quase

sempre do tamanho do mundo que vêem. E elas veem mágica e alegria onde alguns adultos

já não enxergam nada além de vazios.

E para as crianças é possível enxergar a escola como lugar de “ler mundos”, saber do

mundo e de nós, é possível fazer da escola um dos espaços mais convidativos para a criação,

a que nasce da curiosidade e que, pela experiência democrática vai se tornando compreensão

do conhecimento. Assim também podemos ver/ler a literatura – essa arte revolucionária da

linguagem, pelos olhos da infância, para que, embora adultos, re-tornemos ao tamanho das

nossas buscas imaginárias. Afinal, como diz Bachelard, em sua Poética do Devaneio:

Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la nos nossos devaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo o que ela poderia ter sido, sonhamos no limite da história e da lenda. (...) Essa infância, aliás, permanece como uma simpatia de abertura para a vida, permite-nos compreender e amar as crianças como se fôssemos os seus iguais numa vida primeira. (p. 85)

6 Ver Aventuras de João sem Medo (1963) de José Gomes Ferreira, poeta e escritor português.

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Memória, leitura, cultura oral e escrita sempre fizeram parte das narrativas literárias

que trabalham com os temas (auto)biográficos, com as trajetórias humanas e com as

projeções do ser no mundo. A literatura muitas vezes nos chega assim: através das vozes,

dos ouvidos, dos olhos, dos sentidos da infância. A infância: essa usina de memórias

inventadas, para usar a expressão do poeta Manoel de Barros.

Através do tempo da experiência e do que ele tece de memória, experimentamos

criativamente e coletivamente os nossos saberes, os nossos conhecimentos - escolarizados

ou não. E para não entrarmos numa relação antidialógica com o que há de sonho num

projeto que tem como lemas a esperança e a experiência, precisamos nos desarmar da

permanência única no já gasto e caduco discurso monológico do saber, o discurso que

uniformiza e não leva em conta a nossa diversidade, a nossa multiplicidade de temas e de

diálogos possíveis, os nossos diferentes olhares sobre o mundo e para o mundo.

Ora, mas se até com as pedras do caminho dialogamos é imprescindível que haja

diálogo numa educação que ser quer pelo gosto. Mas “educar pelo acesso ao gosto” não é

uma tarefa fácil, pois está na esfera da complexidade, a que exige de nós, educadores, um

“deixar-se ir com o outro” também ao gosto da permuta, numa alteridade que ultrapassa as

fronteiras de qualquer mecanismo de falsa segurança que tente rimar poder com saber.

Sendo nossa imaginação livre somos livres também, somos livros também, livros

vivos, livros abertos, entreabertos ou até mesmo livros fechados, sisudos. Livros com muitas

páginas vividas e escritas e reviradas, livros ceifados ao meio ou ainda no começo do

caminho - mas nunca livros em branco. Somos sempre livros de histórias a serem lidas,

narradas e rememoradas. Cada qual com uma narrativa ímpar, ordinária e extraordinária,

cada qual com uma história de mundo pra contar. A de uma menina “contadora de histórias”

e seu inseparável livro de poesia foi desde sempre a minha.

Em Um sopro de vida nos diz Clarice Lispector: Não posso ficar olhando demais um

objeto senão ele me deflagra. Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática

que o pensamento, é a “coisa”. A coisa que está às mãos milagrosamente concreta. (1988,

101) A “coisa literária” foi defendida por Clarice na materialidade de suas palavras, no

trabalho de artífice da linguagem - objeto que se esmerila com o próprio corpo no corpo da

linguagem. A “coisa literária” se faz pelo artesanato de pensamentos e palavras, pela poética

de experiências com a arte que nos permite os estranhamentos, os despertares, os enigmas

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do conhecimento. Sendo assim a poética da narrativa memorialística nasce de uma

ambigüidade de origem: é fonte e sede de rede-moinhos, pois repleta está de situações que

ao unir a arte à vida cria um caleidoscópio humano, um caleidoscópio onde são

constantemente recriados os sentidos da memória, essa memória dinâmica, irrequieta e

fluída que diz respeito à constituição da subjetividade num tempo volumoso. Por isso sendo

literatura não pode ser vista como um lugar distante, inacessível, destinado a poucos, mas

sim como possibilidade de inter-relação com a linguagem, oportunidade de viver a memória

pela voz da palavra, de expressar uma visão da existência pela composição da nossa história

no mundo.

Lembro que um dos objetivos iniciais foi justamente possibilitar uma abordagem

interdisciplinar entre literatura e educação, tratando a narrativa, a cultura e a memória como

tramas híbridas e indissociáveis, capazes de gerar uma reflexão substantiva sobre a

formação identitária dos professores que lidam com a arte literária, entendendo essa arte

docente como um direito à palavra encarnada, palavra que, mesclada ao mundo imagético,

ultrapassa os limites deterministas que separam o que se vive e o que se reinventa como

“tempo da experiência”, como se isso não fizesse parte relevante da nossa trajetória, do

nosso memorial de vida.

Este trabalho de tese e pesquisa tornou-se ao mesmo tempo um aceite e um convite

para a compreensão da vivência com a literatura em sala de aula ou ainda da escolarização

da literatura, isso pensado pelos vieses da poética que reside num fazer que é ao mesmo

tempo arte docente e que tem sua potencialidade num “fazer sensível”, num “fazer com

alma e coração”, num fazer que sempre leva em conta o quanto e “como” é possível pensar,

sonhar e intuir no “fazer com” a literatura em sala de aula a partir dos mais diversos recursos

lúdicos e simbólicos de uma rede de saberes e sabores, transformados estes em experiências

significativas, em “experiências plenas” (Benjamin, 1994).

Muitas foram os questionamentos e os anunciados aqui fizeram parte – direta ou

indiretamente – das entrevistas, conversas com os professores. Interessava saber de que

maneira inter-relacionadas estariam as narrativas de infância dos professores às vivências

com a literatura, isso de acordo com a presença de uma determinada identidade cultura

como também de uma certa estética literária memorialística. Diferente do aspecto puramente

biográfico, o foco não estava nos fatos vividos, mas na interpretação do vivido. Saber o

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quanto havia de reinvenção de si e da prática no que entendemos por “escolarização da

literatura” a partir das interpretações das experiências vividas e narradas. Saber como havia

surgido nos professores o desejo de trabalhar com a arte literária, quando e como se

formaram leitores de mundo e leitores dos livros, que memória eles traziam da infância, dos

livros ou das histórias orais que ouviram, que escolhas faziam ao trabalhar com a literatura

no cotidiano.

Os professores aparecem como autores das suas narrativas memorialísticas, reais e

ficcionais, apresentadas e entremeadas pelos símbolos que compõem a natureza narrativa

enquanto processo subjetivo, imagético e interpretativo de significação da subjetividade,

polifonia esta margeada por um universo de certezas e incertezas de um tempo “presente”. A

partir dos pressupostos apresentados foi possível refletir sobre um poiesis, esse que faz da

reinvenção da prática a reinvenção de si. E os desdobramentos deram à metodologia uma

vertente compreensiva da subjetividade, dando maior ênfase ainda às narrativas de vida de

professores que, quando entrecruzadas à teia memorialística de obras literárias tantas vezes

suscitadas, enfocavam pela experiência a poética da memória como elemento constitutivo

da narrativa via con-fabulações do imaginário. Assim dialogamos com Gilbert Duran7 e sua

teoria do imaginário, “imaginário entendido como o conjunto das imagens e das relações de

imagens que constituem o capital pensado do ser humano.”

7 DURAN. Gilbert. 2001, p.18.

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Entre Odos e Mythos

MOYERS: Mas todos esses mitos são sonhos de outras pessoas.CAMPBELL: Oh, não, não são. São os sonhos do mundo. São sonhos arquetípicos, e lidam

com os magnos problemas humanos. Eu hoje sei quando chego a um desses limiares. Omito me fala a esse respeito, como reagir diante de certas crises de decepção,

maravilhamento, fracasso ou sucesso. Os mitos me dizem onde estou.

(O Poder do Mito)

A problemática de um trabalho que se apóia na biografia, na trajetória de vida, no

contar a história de um homem, de uma mulher, de um povo, é, para quem o faz, um

trabalho “arriscoso”. E para assumir esse lugar de tanto risco, segundo o professor de

História Contemporânea da Universidade de Paris X, Didier Musiedlak 8, um dos principais

obstáculos metodológicos do pesquisador que pretende trabalhar com a biografia,

principalmente a dos ilustres, é que na sua relação com a História, é preciso reconhecer a

necessidade de se desconstruir “os personagens” para que se evite cair no “canto da

mistificação”, da valorização ou super valorização dos personagens. Lembrando que toda

biografia, toda narrativa de história de vida pertence a um contexto de escritura, contexto

histórico, social e ideológico. Quantas biografias foram escritas e reescritas sobre os grandes

ícones, “mitos” da História?

Para o Professor Didier Musiedlak, a construção da memória nacional seria como

reescrever o mito, e o mito, para ele, é mais forte que o registro. E o perigo que há na

valorização na escrita biográfica de um mito é, sobretudo a possibilidade, humana, de se

“banalizar” os crimes desse mito, banalizando os atos ocorridos de violência, obscurecendo

o lado negativo dessa trajetória. E para Musiedlak, essa é uma forma de recompor a

memória nacional apagando o negativo da história, apagando os seus paradoxos, as suas

fraturas. Musiedlak nos relatou que para escrever uma biografia era preciso ir aos porões

dos dados e de lá olhar o bem e o mal.

Um segundo problema ou obstáculo metodológico descrito por Musiedlak seriam as

fontes utilizadas, porque, segundo ele, freqüentemente as fontes estão contaminadas, por

isso seria quase impossível não desconfiar da narrativa perfeita, das biografias que parecem

8 O professor Didier Musiedlak proferiu a palestra “Fascismo, Fascismos; História, Memória e Biografia” na Universidade Federal Fluminense, no departamento de História. (Maio/ 2006)

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autênticas. Para Musiedlak seria preciso separar o objeto analisado de seu conteúdo místico,

concentrando-se na desmistificação, desconstruindo o objeto para olhar para ele quando ele

estiver nu, reconhecendo o que vem do imaginário. E completa: “(...) um homem nu não é

bonito de ser visto”.

Por isso se fala em biografias imaginárias, quando o mito é maior que o homem.

Quantas biografias foram reescritas ao longo da História? Quantas infâncias pode ter um

único homem? No Brasil, podemos também perguntar, quantas biografias dos mitos

históricos foram feitas e refeitas e o quanto há de ficção nelas? Quantas biografias pode ter

um homem?

Ainda segundo o professor Musiedlak, para quem ousa usar como método a

biografia, a história de vida, é necessário que saiba que há de ser feito um trabalho analítico

e crítico que permita reconstruir a dimensão ocupada pelo imaginário juntamente à

realidade de ação, a realidade do imaginário e a realidade do fato. Pois o imaginário faz

parte da construção do real. E sobre esse lugar de tensão na escrita da biografia, explica

Musiedlak (2006):

Como o lembra François Dosse, a biografia continua a ser um gênero híbrido, impuro, premido entre a necessidade de restituir um vivido real e passado, que seria ordenado, segundo as regras da Mimesis e a preocupação do biógrafo de dar livre curso ao seu imaginário. Dessa divisão decorre uma tensão constante entre as exigências da dimensão histórica e o domínio da ficção, o que expões aquele que aceita fazê-lo a um desequilíbrio. (p.103)

Embora o tema em questão: a biografia, as narrativas de vida, através do real e do

imaginário da ficção, seja já bastante difundido e analisado, inclusive na Universidade de

Paris, não foram poucas as vezes que ouvi dizer que essas especulações entre o real e o

ficcional não passavam de burburinhos dos poetas ou coisas de excêntricos. E como

descreve Didier Musiedlak entre “as exigências da dimensão histórica e o domínio da

ficção” ao pesquisador que se embrenha nesse tensionamento não há como se esquivar do

desequilíbrio e da exposição desse desequilíbrio.

Entre a realidade e a imaginação, seja na narrativa dos mitos históricos ou nas

narrativas anônimas não há como retirar das reminiscências os sinais intrínsecos do

simbólico, limpando os vestígios deste lugar de linhas imaginárias que é a memória. Um dia

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alguém me apresentou: - Veja, você está com os pés na linha do Equador. Então percebi

que os meus pés eram um limite imaginário e aquele limite que tinha vindo comigo partiria

comigo.

Por isso a escolha de um caminho (ou odos) hermenêutico se deu primeiro por uma

constatação: a impossibilidade de uma meta única, ou seja, de se chegar a um construído

acabado e definitivo. Portanto a metodologia não se fecha nem tampouco se concluí numa

única leitura do problema ou ainda no detalhamento deste ou daquele aspecto analisado da

narrativa (auto)biográfica ou ficcional, mas, sobretudo, este caminho metodológico se abre

às possibilidades interpretativas que surgirão pelo simbolismo, pelo mythos, pelo que

criamos e reinventamos de significação do real pela experiência. Aproximamos-nos de um

ponto de vista sobre o real que, segundo Marilena Chauí, não é constituído por

coisas. Para Chauí (2001):

Nossa experiência direta e imediata da realidade nos leva a imaginar que o real é feito de coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto é, de objetos físicos, psíquicos, culturais oferecidos à nossa percepção e às nossas vivências. Assim, por exemplo, costumamos dizer que uma montanha é real porque é uma coisa. No entanto, o simples fato de que essa “coisa” possua um nome, que a chamemos “montanha”, indica que ela é, pelo menos, uma “coisa-para-nós”, isto é, algo que possui um sentido em nossa experiência. ( p.7)

Do real compreendemos aquilo que faz sentido para nós, o que, de maneira

imbricada, existe como “coisa em si” e “coisa-para-nós”. Não há, de um lado, a coisa

em-si, e, de outro lado, a coisa para-nós, mas entrelaçamento do físico-

material e da significação, a unidade de um ser e de seu sentido, fazendo

com que aquilo que chamamos “coisa” seja sempre um campo

significativo. (ibidem) O que constituímos como significância, “como o sentido

de algo” se dá pela experiência. A narrativa das nossas reminiscências, das nossas coisas

lembradas é seletiva nesse sentido, de buscar o que fez sentido ou o que está fazendo sentido

no momento da lembrança. E isso pode ser refeito a cada experiência de memória do sujeito

que lembra de si mesmo e conta sua história. E a memória da experiência com o real ao se

tornar narrativa se reveste de mythos.

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E se pensarmos na cultura, na tradição das narrativas arcaicas e no legado que esses

lugares nos deixaram, nos embrenharemos numa questão inevitável: o que é o mito? O que é

a narrativa de um mito? O que faz o homem simples tornar-se um mito? Um mito nas artes?

Um mito no esporte? Um mito na política? Um mito na ciência? Se voltarmos num tempo

longínquo, bem nos primórdios, numa era anterior à escrita e ao pensamento guiado pela

razão, poderemos inquirir: de onde, afinal, os primeiros homens tiravam suas

perguntas¿ Quais eram as suas principais inquietações? O que poderia gerar curiosidades no

tempo do homem primitivo? A natureza? A sobrevivência? O instinto? E essa reflexão pode

nos levar ao seguinte pensamento: ao conhecemos os mitos, começamos a compreender o

que é cultura e o que é tradição; e por conseguinte, começamos também a compreender o

que vem a ser a narrativa e a narrativa do mito ou o seu conjunto de ilhas, a mitologia, um

arquipélago de histórias do mundo.

É claro que poderia parecer um reducionismo dizer que os mitos e as mitologias são

como o fogo da criação das histórias humanas, mas não me posso furtar de pensar que essa

gênese é de fundamental importância como significação de mundo se quisermos entender a

narrativa humana, a trajetória e a biografia de um homem, de uma mulher e de seu processo

único e singular de existência. E a memória entra nessa trama como o instrumento de

acesso, reconstituição e reinvenção da história desse existir. Por isso ao pensar na literatura e

nas pessoas que escolheram a literatura como viagem pela vida, não pude seguir um

caminho monolítico, já que a literatura não é sectária, não tem uma só lente e nem foco que

seja único. E já que todos essas noções fazem parte de uma mesma trama e essa trama

complexa é feita de múltiplas perspectivas, de múltiplos olhares e retornos

Vários teóricos em diversos campos de pesquisa e interesses se debruçaram sobre os

temas que envolvem os mitos e as mitologias, buscando conceituá-los ou empregá-los com

fundamento para novas teorias e novos conceitos. No campo da teoria psicanalítica,

Sigmund Freud foi um desses pesquisadores de inegável reconhecimento e grande destaque

na abordagem de temas como os mitos e a cultura. Mas foi Jung, discípulo de Freud e

pesquisador de grande intuição, que deu maior visibilidade, a partir da psicologia analítica,

ao tema da mitologia e dos mitos, criando um campo de pesquisa e analises consistentes e

profundas para os “arquétipos”, que do antigo verbete foi sendo redimensionado para ganhar

novo sentido e nova significação, uma nova concepção que tornou difícil não associar a

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palavra “arquétipo” à teoria de jungiana e ao conceito de Inconsciente coletivo. Disse Jung

em Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (2000, p.16):

“Archetypus” é uma pe-rífrase explicativa do είδος platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. (grifo meu)

Na tentativa de compreender as narrativas míticas do homem simples que eram, ao

meu ver, ao mesmo tempo narrativas míticas do mundo, narrativas mundanas, coletivas e

diante de muitas concepções teóricas, interessou-me a aproximação aos vários campos de

reflexão: o psicológico, o antropológico, o sociológico e o filosófico. Porque eles davam

coesão àquilo que à primeira vista parecia disperso e que na sua aparência já acusava um

mar de profundidade. E porque na literatura todos esses campos podem comungar do mesmo

corpo através da linguagem enquanto cultura, da memória enquanto poiesis, da língua

enquanto poder, do imaginário enquanto dinâmica e desvelamento da própria experiência

enquanto “mito”. Em O poder do Mito, Joseph Campbell nos diz que aquilo que os seres

humanos têm em comum se revela nos mitos, porque os mitos são as histórias de nossa vida, de

nossa busca pela verdade, da nossa busca pelo sentido de estarmos vivos. Mitos são pistas para as

potencialidades espirituais da vida humana. (Campbell, 1990, p.19)

E segundo o escritor e estudioso da linguagem simbólica, Mircea Eliade:

(...) o mito é considerado como uma história sagrada, e, portanto uma história verdadeira, porque se refere sempre a realidades. O mito cosmogónico é verdadeiro porque a existência do mundo está aí para o provar, o mito da origem da morte é também verdadeiro porque a mortalidade do homem prova-o...e pelo facto de o mito relatar as gestas dos seres sobrenaturais e manifestações dos seus poderes sagrados, ele torna-se o modelo exemplar de todas as actividades humanas significativas. (p.13)

A palavra mythos, nos orienta Chauí, vem do grego e deriva de dois verbos: do verbo

mytheyo: contar, narrar, falar alguma coisa para outros; e do verbo mytheo: conversar,

contar, anunciar, nomear, designar. Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou

proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele

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que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e

confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou

testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou

os acontecimentos narrados. (CHAUÍ, 200, p.28)

Nesse sentido, não se trata de fazer uma profunda análise arquetípica dos contos ou

detalhar a simbologia encontrada nas narrativas memorialísticas, tratando das analogias

entre os contos ou entre as imagens por elas suscitadas, mas sim se busca relacionar, por

uma heurística proximal, a simbologia de determinados arquétipos às reinvenções

memorialistas e míticas que se dão nos novos contextos culturais do existir, o que cria uma

substantiva aproximação ao que Jung definiu como “arquétipo”. Segundo o professor Junito

de Souza Brandão (2007):

Através do conceito de arquétipo, C. G. Jung abriu para a Psicologia a possibilidade de perceber nos mitos diferentes caminhos simbólicos para a formação da Consciência Coletiva. Nesse sentido, todos os símbolos existentes numa cultura e atuantes nas suas instituições são marcos do grande caminho da humanidade das trevas para a luz, do inconsciente para o consciente. Estes símbolos são as crenças, os costumes, as leis, as obras-de-arte, o conhecimento cientifico, os esportes, as festas, todas as atividades, enfim, que formam a identidade cultural. (p.9)

É pela cultura e do que dela sobrevive como tradição que voltamos aos afetos

primários, aos sonhos, às reminiscências da infância, à metaphorá da imaginação, todo esse

“transporte” que faz renascer em nós os heróis épicos, coletivos, os mitos de fundação. Mas

a questão é: há limite para a recriação dos mitos quando pensamos em literatura? Por

acreditar que não existe esse limite e, portanto, que não há também limite para as

reinterpretações dos mitos, ousamos trabalhar, talvez assumindo o lugar da contradição, para

além da origem datada construir pela reinvenção da memória novas formas de existir. Seria

então dizer que o adulto ao lembrar e narrar, sobretudo quando se trata das reminiscências

da infância, não apenas as tipifica, convocando certo número de arquétipos, mas também,

re-elabora o dito através desses elementos simbólicos, míticos reinventando a sua própria

memória.

A memória narrada e evocada no presente seria assim uma memória que transita,

reinventada num tempo-espaço potencial, que ora se apresenta sob uma atmosfera

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nostálgica, saudosista, acolhedora, e ora pode nos provocar a náusea, o horror de ter vivido,

de ter que emborcar o corpo para ver de dentro a dor, a dor de crescer diante da inexorável

passagem do tempo. É paradoxalmente humano. E se um dia, com o avanço da ciência, nos

for permitido decidir o que desejamos lembrar, com quais lembranças ficaríamos? Apenas

com as “boas” lembranças? “Deitaríamos fora” todas aquelas que foram difíceis ou

inconvenientes? Apagaríamos as nossas perdas? O que nos faria definir o bom de lembrar

se a idéia do que é bom muda constantemente? E se “o bom de lembrar” se molda e é

moldado por nossos valores e crenças que também mudam, também circulam,

transformando nosso modo de ser e lembrar, com quais instrumentos poderíamos julgar “o

bom de lembrar”? Como escolheríamos as nossas melhores lembranças?

Por enquanto nossas reminiscências estão repletas de luzes e trevas, de encantos e

desencantos, de sonhos e desventuras, de ganhos e perdas... E são todas essas experiências

que compõem a nossa narrativa de vida, a nossa biografia. E é também com elas que

compomos nossas memórias.

E para falar das memórias que diziam respeito às experiências da prática docente era

preciso também levar em conta o contexto sócio-histórico onde eram e são criadas “as

formas de fazer”, as formas de dizer, de sonhar e de acreditar nas coisas... Tudo isso atrelado

a um saber que contem tanto outros saberes: a literatura, essa sabedoria que a professamos

por um prisma poético-reflexivo entre Eros (o amor) e Thánatos (a morte)9 .

E na nossa história há sempre “o eco de vozes que emudeceram.” (Benjamin, 1984,

p.223) Nas nossas histórias, nas nossas trajetórias pelo mundo há sempre o eco de outras

vozes que nos antecederam e há o eco dos mitos que antecederam às vozes das nossas

histórias. Há o “eco”, como pedra e flor, a sorrir e dizer dos mitos que não deixarão as

nossas histórias emudecerem. E há o mito de Eco10, a ninfa que, na impossibilidade de viver

seu amor que é encontrar o belo Narciso, se vê numa gruta repetindo, “ecoando” a

eternidade das palavras de um outro – para que ele também se lembre da própria voz. E há a

estátua de cristal que, sobre a tarde a contemplava, florindo-a para sempre, com o seu

efêmero sorriso…11

9 BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. 1, 2 ed. Editora Vozes, Rio de Janeiro, 1991.10 O poeta latino Publius Ovídio Naso, (43 a.C – 18 d.C), escreveu as Metamorphoses, poema épico em 15 cantos que se tornou uma de suas obras mais significativas. A narrativa de amor e as metamorfoses de Eco e Narciso são contadas no livro III. 11 Poema: Epigrama de Cecília Meirelles. (Anexos)

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Na travessia do bosque, os caminhos ora se cruzam, se aproximam ora se bifurcam

para o afastamento necessário, proximidade e distanciamento inerentes à pesquisa

qualitativa. Na travessia da tese, os caminhos aqui traduzidos em capítulos, se revelam

interdependentes, cada um tratando de uma temática própria, mas todos partindo e

dialogando a partir da mesma matriz, respeitando assim o intercruzamento entre literatura e

educação, num dissertar muitas vezes recursivo. Cada capítulo traz como abertura um

arquétipo12 que simboliza e ao mesmo tempo sintetiza poeticamente as ressonâncias que

atravessam concomitantemente as narrativas memorialísticas, o tema a ser compreendido e a

abordagem teórica que os transpassa. E a cada abertura de capítulo, em sua introdução, uma

narrativa memorialística inaugural, narrativas de autores literários e/ou narrativas dos

sujeitos da pesquisa. No caso dos professores, as narrativas serão apresentadas a princípio

por seus escritos, depois pelas falas tecidas, vozes trazidas ao longo do texto dissertativo.

O primeiro capítulo, o capítulo teórico sobre Memória Singular, está centrado numa

perspectiva pertinentemente subjetiva, pois no percurso se fez a necessidade de ouvir, ler e

sentir cada memória narrada como evento muito particular de criação e a partir daí

compreender o que ela trazia de novo (neo). Veremos neste capítulo, no que diz respeito à

escolarização da literatura e a poética memorialística, que a evocação das memórias

transmutadas em narrativas não deveriam ser reduzidas a uma repetição estática nem

tampouco linear de gêneros e épocas. A partir de trechos de obras literárias memorialísticas,

especialmente as de Pedro Nava, nosso maior referencial literário, trataremos da evocação

das memórias transmutadas em palavras, enfatizando o que do vivido construímos como

narrado.

No capitulo dois, que trata da Memória Plural e da Cultura Popular, como metáfora

da memória social e coletiva, escolhemos dentro de um recorte necessário, dar ênfase, pelas

aproximações memorialísticas, ao ritual de uma manifestação cultural maranhense que é o

Tambor de Crioula, buscando tratar assim algumas de suas distintas expressões. Neste

capítulo também foi possível dialogar com uma leitura de Mário de Andrade e o acervo da

Missão de Pesquisas Folclóricas criada por ele enquanto diretor da secretaria de cultura de 12 Ao tentar traduzir os elementos simbólicos encontrados nas narrativas dos professores/ autores busquei distingui-los por elementos/ arquétipos. Nesse intuito uso como inspiração as obras de Gaston Bachelard: “A psicanálise do Fogo”, “O Ar e os Sonhos”, “A Terra e os Devaneios da Vontade”, “A Terra e os Devaneios do Repouso” e “A água e os Sonhos”. Em cada abertura de capítulo inicio por uma citação de Bachelard que se refira ao arquétipo/ elemento escolhido/ encontrado. Lembrando que a teoria de Bachelard não apenas “ilustra” a apresentação dos capítulos, mas ela neles estará inserida de forma intrínseca.

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São Paulo. Tratando-se de um capítulo empírico, para a elaboração da pesquisa, além da

preocupação documental através de diferentes registros como: fotografias, documentos e

relatos, sem dúvida, nela prevaleceu a pesquisa sensorial provinda da experiência vivida e

encarnada pela pesquisadora: sentir a cidade e as ruas, viver como recorte e corte o ritual do

Tambor de Crioula com os sentidos expandidos, sentir a linguagem oculta do corpo, dançar

sobre os séculos e as pedras colocadas por mãos negras e escravas, viver o ritual como

conceito, como embrião fecundado que gradativamente cresce alimentado por forças

coletivas até chegar à maturação, à clareza, à total visibilidade do que é, até atingir a forma

plena num processo lento e laborioso de gestação. Ser o cavalo, a linguagem da dança que

faz o corpo ser a própria expansão. E como fruto dessa expansão, nascido da “concepção”

do ritual, contemplar e celebrar a complexidade da existência humana no singular e plural.

No capítulo três, na tentativa de desvelar espaços potenciais para as experiências

plenas com a literatura em sala de aula, buscou-se compreender a criança enquanto sujeito

da sua própria cultura, trazendo para o centro da reflexão a cultura oral e a contribuição

teórica do educador e sociólogo Florestan Fernandes no que diz respeito à cultura infantil e à

arte folclórica, propondo como conclusão do capítulo a ênfase numa poética da linguagem

na escolarização da literatura.

Para o capítulo quatro, trago como referencial e arquétipo o elemento “água”. Nele

há a introdução às narrativas memorialísticas, às narrativas dos professores, sujeitos da

pesquisa. No primeiro deles trato da minha própria vivência com a literatura atrelada à

prática da cultura oral enquanto processo de significação. Na primeira narrativa trago as

minhas memórias num exercício delicado e frágil de investigar a mim mesma e refletir sobre

minhas próprias lembranças, emborcar sobre o meu próprio corpo de memórias. E como

alguém que se deixa olhar em suas entranças, apresento o elemento água, o mais receptivo

dos elementos. As águas do Mar, Maranhão, as águas do Rio – de janeiro. As águas que

alimentam de memória as fontes, as nascentes, as cascatas, os mananciais, as águas que

correm, que transbordam, inundam, afogam e alimentam.

No capítulo cinco, para simbolizar as memórias da professora e poetisa Ryane Pinto,

escolhemos o elemento ar, porque Ryane traz em suas memórias as imagens aéreas - líricas

e lúdicas - das palavras que sopram e ventilam os versos dos poetas alados. As memórias de

Ryane lembram bem as telas de Chagal com seres voadores e cores flutuantes. Ryane se

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lança às descobertas como as crianças do pré-escolar e fica suspensa apenas pelo vento,

sendo ela própria o espaço e o ar de sua inspiração. Neste capítulo também ressalto a

importância de uma educação sensível conjugada às duas concepções de memórias literárias

escolhidas para a abordagem estética e humanista dada às narrativas memorialísticas. À

memória literária da infância numa menção às obras memorialísticas do escritor francês

Marcel Proust, ícone desse estilo, sugiro a noção de “memória proustiana”. Pois, no retorno

ao “tempo perdido” da infância nos deparamos com o passado feito um Proust, provando

madeleines ao sabor das reminiscências. À memória social e coletiva, sugerimos a noção de

memória polifônica, tendo como principal referencial e fundamentação teórica o conceito

de polifonia do filólogo e crítico literário Mikhail Bakhtin. Neste capítulo ainda como

embasamento teórico e numa perspectiva compreensiva busco dialogar com os conceitos de

“narrativa” de Walter Benjamin, “memória” de Bérgson e “memória coletiva” de

Halbwachs. Portanto foram muitos os interlocutores, autores com os quais dialoguei neste e

em todo percurso.

A proposta do capítulo seis, para as memórias da professora Elzi Paixão, nossa

contadora de ‘hestórias’, escolhemos o elemento terra, porque Elzi nos traz em suas

memórias a imagem da poeira, do esterco que sustenta as raízes, do sujar-se com a terra, do

brincar de terra, das conversas com os seres ordinários e imaginários dos quintais, com os

bichinhos, as pedrinhas, os caquinhos, os brinquedos de pequenos nadas. Elzi que canta

como cigarra e enterra a cigarra se for preciso e que ao mesmo tempo em que levanta

paredes de cimento consegue contar “hestórias” sobre tijolos de asas. Suas memórias trazem

a concretude da rocha numa gravidade que serve para fertilizar de alma o chão. Ainda neste

capítulo buscou-se refletir sobre uma prática docente que propiciasse de fato a inclusão da

cultura oral através da contação de estórias, bem como a pluralidade de textos e saberes que

daí advém como tradição e reinvenção cultural e literária.

No sétimo capítulo, para simbolizar as memórias do professor Jorge Magalhães,

cronista e dramaturgo, escolhemos o elemento fogo, porque das memórias de Jorge surgem

do fogo de sua criação, o tempo de Kronos e os olhos de um flêneur, que faz gerar e girar o

tempo das crônicas, das memórias cotidianas das ruas e dos carnavais. Neste capítulo

buscou-se uma possibilidade dialógica entre a história e a literatura, no que diz respeito à

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cultura oral e à narrativa, buscando compreender a relação entre ficção e realidade, entre o

vivido e a percepção do vivido através da crônica literária e da perspectiva do cronista.

No capítulo oito, para simbolizar as memórias do professor e arte-educador Emanuel

Reis, escolhemos a imagem do círculo, pois com essa imagem simbolizamos a junção de

todos os outros elementos - como nas mandalas, nas cirandas, nas rodas e nas giras do

Tambor. Das memórias de Emanuel surgem a poeira da terra, a invencionice do ar, a

quentura do fogo que afina o tambor, a pororoca das águas pelas mãos do maravilhoso que

surge das lendas do folclore maranhense com suas encantarias e seus contos de

assombração. No sétimo capítulo, emerge como metáfora a imagem da “árvore”, uma da

formas mais primitivas de interpretação da psique que, neste caso, pode significar os ciclos

ininterruptos da vida e de suas possibilidades e potencialidades de narrativas. Neste capítulo

é enfatizada a relação imbricada entre o mito e o fantástico na contação e na reinvenção das

estórias na história do mundo.

No último capítulo ou epílogo que traz como imagem a mandala, além da reflexão

final sobre os temas anunciados e dissertados, trataremos das várias linguagens e memórias

que, como cordas, foram lançadas ao ar, à dispersão, para ao final serem recolhidas numa

embolada, à rede que intentou conjugar fios e peixes, conjugando culturas com o artesanal

dos homens e a sorte de seu alimento.

E talvez caiba aqui um último esclarecimento: esta tese reside, sobretudo na defesa

de uma literatura que pode parir a qualquer momento um gigante bufo, como Gargântua ou

Pantagruel, uma literatura em carne e água vivas feita pela defesa de uma prática que é

poética e que transgride - sem castigo, as práticas da casmurrice a favor de uma arte docente

que valorize as múltiplas linguagens, enfatizando sobremaneira a cultura oral como

importante universo de significação nas experiências literárias. Trataremos nos capítulos que

virão de não nos descuidar da “lúcida” (a diurna) e nem tampouco menosprezar a “louca” (a

noturna) que geraram juntas este feito. Convido a todos então a este banquete:

Agora, existe um outro sentido, mais profundo, do tempo do sonho, o de um tempo que é não tempo, apenas um estado de ser que se prolonga. Existe um importante mito, da Indonésia, que fala dessa era mitológica e seu término. No início, de acordo com essa história, os ancestrais não se distinguiam, em termos de sexo. Não havia nascimentos, não havia mortes. Então uma imensa dança coletiva foi celebrada e no seu curso um dos participantes foi pisoteado até a morte, cortado em pedaços, e os pedaços

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foram enterrados. No momento daquela morte, os sexos se separaram, para que a morte pudesse ser, a partir de então, equilibrada pela procriação, procriação pela morte, pois das partes enterradas do corpo desmembrado nasceram plantas comestíveis. Tinha chegado o tempo de ser, morrer, nascer, e de matar e comer outros seres vivos, para a preservação da vida. (Campbell, 1990, p.53-54)

Gargântua, pai de Pantagruel. 13

13 Ilustração de Gustave Doré, 1873.

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CAPÍTULO 1

Memória Singular e a escolarização da literatura:

Narrar para não esquecer...

Pedro Nava aos quatro anos de idade.14

Eu não teria sido um escritor de memórias se não tivesse tido minha época de exteriorização literária num momento em que nós estávamos debaixo de uma ditadura, uma ditadura militar. E

comecei a escrever, talvez para me livrar desse espantalho, para conversar comigo mesmo na impossibilidade de fazer isso com os outros.15

Pedro Nava

É com essa pergunta que entro nesta fase de minhas memórias, fase tão irreal e mágica e adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu fosse historiador, tudo se resolveria.

Se ficcionista, também. A questão é que o memorialista é forma anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua

interpretação.

14 Acervo Pedro Nava da Casa Rui Barbosa.15 Em entrevista. Texto publicado na Folha de S.Paulo, terça-feira, 15 de maio de 1984.

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(Pedro Nava, Chão de Ferro)

Há uma poética no tempo da narrativa literária, uma trama poética que faz da

narrativa de vida pela via do texto memorialístico uma ou mais de uma possibilidade de

existência e de resistência ao esquecimento. Existe uma poética do tempo que é um

mergulho único na eternidade, o tempo fluído da memória que se narra é Kairós, um tempo

que guarda dentro dos ponteiros a não-linearidade e que por isso é o próprio movimento e

também é a alquimia, numa mudança contínua de um estado para o outro.

Voltamos assim ao pensamento de Heráclito, filósofo que entendia o mundo como

fluxo contínuo de mudanças. Heráclito foi muito mais do que um filósofo que precedeu

Sócrates. Ele foi, sem dúvida, fonte para muitos pensadores que acreditaram - como ele – na

dinâmica das coisas. Para Heráclito o devir da existência não poderia ser estático já que o

mundo não era estático. Dessa cosmologia pré-socrática podemos retirar algumas pistas para

compreender o fluxo da narrativa memorialística que se localiza numa alternância sutil entre

ficção e história, entre o real e o imaginário, entre o natural e o maravilhoso, entre o

consciente e o inconsciente. E a busca pela verdade pertence a todos os tempos, a todas

épocas humanas. Nós buscamos a verdade nas divindades, na fé que remove montanhas,

buscamos a verdade como atividade intelectual e por isso refletimos sobre as coisas e

queremos saber o porquê das existências ordinárias e extraordinárias.

Enfim, a realidade o que é? E as verdades guardadas na realidade, quantas são?

Sim, nós queremos saber é das coisas, da matéria dos sonhos, como disse Shakespeare sobre

o teatro. A literatura memorialista é como um teatro da narrativa e as máscaras com os quais

o narrador se apresenta vêm em camadas num sutil palimpsesto de rostos. Sim, “o poeta é

um fingidor”, me alertou Célia16, anagrama de Alice. O narrador memorialista é um fingidor,

chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.17

Nas memórias de Pedro Nava, nosso principal escritor memorialista, encontramos

um narrador que carrega como questão central a linguagem poética da memória e como esta

vai ser um elemento fundamental de reflexão. Reflexão naquilo que Jung conceituou como

um voltar-se a si mesmo. Com isso, percebemos claramente no romance que o narrador fará

16 Conversa com a professora Célia Linhares quando ela destacou o lugar do imaginário na poética da palavra e o lugar da verdade, lembrando que “o poeta é um fingi-dor”.17 Poema: Autopsicografia. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. (Anexos)

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o uso da linguagem poética como ascese, uma busca do seu mundo ontológico e dialógico,

significando e situando a memória dentro do seu próprio texto memorialístico:

A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com ele estabelece contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na construção da tradição familiar. Esse folclore jorra e vai vivendo do contato do moço com o velho _ porque só este sabe que existiu em determinada ocasião o indivíduo cujo conhecimento pessoal não valia nada, mas cuja evocação é uma esmagadora oportunidade poética. 18

Graças às numerosas e “esmagadoras oportunidades poéticas” e à urdidura da

narrativa memorialística, o narrador vivenciará a sua consciência dialética: “que sujeito é

esse que eu sou?”, “que sujeito diz de mim?”, “quem é esse ser que diz que eu sou e o que

vivi”... Fazendo da escrita um fluxo imanente e analítico da própria constituição mnemônica

daquilo que narra, o narrador memorialista cria uma espécie de metamemória literária,

pensada sob a estrutura do rememorar e a partir do próprio discurso memorialístico num

jogo espelhar, num jogo de linguagem onde as entrelinhas são as linhas e vice-versa, onde o

profundo e a superfície interagem para compor o ato de criação. É diferente da tentativa de

escrita (auto)biográfica, quando se pretende escrevê-la unicamente como registro e “ilusão”

histórica, como se a existência humana e a memória ou até mesmo os documentos dessa

existência fossem lineares. Por sua vez a escrita memorialista se lança às reminiscências

para também pensá-las pelos seus avessos, nas idas e vindas, e ao pensá-las repensar

ressentimentos e esquecimentos, através das falhas, das lacunas de uma história, dos

“brancos” como numa “cegueira branca”19 também da História.

Autor e herói se unem para tecer a narrativa que se inscreve tanto no devir quanto

naquilo que permanece, lembrando o princípio pré-socrático da não-dicotomia do ser.

Só o velho sabe daquele vizinho de sua avó, há muita coisa mineral dos cemitérios, sem lembrança nos outros e sem rastro na terra _ mas que ele pode suscitar de repente (como o mágico que abre a caixa dos mistérios) na cor dos bigodes, no corte do paletó, na morrinha do fumo, no ranger das botinas de elástico, no andar, no pigarro, no jeito _para o menino que está

18 NAVA, Pedro. 1974, p.17.19 Referência ao livro de Saramago: Um ensaio sobre a cegueira.

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escutando e vai prolongar por mais cinquenta, mais sessenta anos e lembrança que lhe chega não como coisa morta, mas viva qual flor toda olorosa e colorida, límpida e nítida e flagrante como um fato presente. 20

Nenhuma lembrança poderá ser mais presente e flagrante que aquela que nos são

oferecidas pelos mais velhos e os mais experientes. Porque a lembrança do velho é uma

lembrança trabalhada artesanalmente pela memória de quem olha para a passagem do tempo

com a sabedoria da lavoura, do trabalho de quem semeia de memória a própria existência.

Em Galo das Trevas, quinto livro de memórias, Pedro Nava nos apresenta sua casa na

Glória, a última morada de um homem de memória irrequieta, de lembranças sem paradeiro:

Edifício Apiacá, Casa de Pedro. 21

Há trinta e cinco anos moro no Edifício Apiacá, à Rua da Glória, 190, apartamento 702. Quando para aqui mudei o número era 60. Nosso arranha-céu levanta-se em terreno onde existiu famoso bordel do bairro nunca completamente saneado. Aqui passei quase metade da minha vida. Aqui envelheci. Quer dizer: aqui tive contados minutos de paz e um roldão de dias noites de tormento. Aqui caminho no escuro como um cego nas noites de insônia como um cego. Ah!

20 Ibidem.21 Acervo pessoal.

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longe de mim maldizer de minha casa. Estou impregnado de suas paredes do seu ar do mesmo modo que ela o está de minha pessoa, dos desgastes do meu corpo cujos fragmentos ficam pulverizados nos revestimentos, no chão, no teto – cabelos caídos, esfoliações da pele, excretas pelo cano, ar expirado, palavras vivas um instante, gemidos murmúrios resmungos. Só que ela e outras que habitei vida afora não são mais a casa que deixei e que procuro para pedir de volta minha infância. 22

Meu avô... Minha avó... A casa de minha avó. A casa de meu avô. As águas da

casa... E um dia acordar avó, acordar avô de tanto beber das águas do tempo. Os avós sabem

bem da porosidade que há no corpo da memória e do quanto pode ser perecível viver, sabem

que a existência humana é frágil, falível e incompleta. Sabem que a morte é a maior certeza

que temos em relação à vida. E saber do perecível é desfazer-se de certa onipotência que não

nos permite a alteridade, é transformar a ferida de Narciso novamente em flor. Sartre

defendia que a experiência era a capacidade de aproveitar bem o que acontece conosco. Os

velhos já sabem da experiência o bolor e a sua irreversibilidade, conhecem da sabedoria a

capacidade de partindo do imaginário – significar o real. São grandes memorialistas e

ficcionistas.

Nas reminiscências de Nava, a reconstituição da saga e da gênese da família. A

importância do avô Pedro como marco de fundação da trajetória memorialista que o

narrador compõe para si mesmo:

Pedro da Silva Nava, meu avô, nasceu na freguesia de Nossa Senhora da Conceição de São Luís do Maranhão, a 19 de outubro de 1843, e foi batizado a 7 de setembro de 1844 na sua Matriz, pelo Reverendo Raimundo Alves dos Santos, tendo como padrinho João Joaquim Lopes de Souza e como madrinha D. Maria Euquéria Nava.

Meu avô, negociante e dono de casa comissária (...) Sua grandeza, como se verá, vinha das qualidades – de que basta o homem ter uma – para tornar-se merecedor da vida. A retidão, a bondade e a inteligência. O maranhense Pedro da Silva Nava tinha as três. 23

A narrativa dos detalhes, os detalhes do avô, os detalhes da genealogia... Eles vêm

com a reminiscência, com o minucioso e o que estava aéreo embalado em sonhos espoca

22Idem, 1987, p.26.

23 Op.cit., 1974, p.18.

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como espumas de ondas de imagens e passam do profundo oceano à superfície:

reminiscências de nossas vidas aonde vamos sempre andar confundidos entre o que

aconteceu e o que sonhamos do que aconteceu. Somos capazes de lembrar uma vida toda de

detalhes, de minúcias, da coleção de pequenos objetos que estão pousados como pássaros

nas cristaleiras, traços e rabiscos que estão nos desenhos das crianças, no desenho da

primeira palavra escrita colado na parede do quarto, nos cadernos do primário, nos pequenos

achados que guardamos talvez até que a nossa morte leve deles toda a nossa vida, toda sorte

de significância que lhes empregamos. Pois somos nós que damos alma ao objeto e ele vive

enquanto for coisa viva para nós.

E com o evocado vem o mistério das associações trazendo a rua, as casas antigas, outros jardins, outros homens fatos pretéritos toda a camada da vida de que o vizinho era parte inseparável e que também renasce quando ele revive – porque um e outro são condições recíprocas. Costumes de avô, responsos de avó, receitas de comida, crenças, canções, superstições familiares duram e são passadas adiante nas palestras de depois do jantar; nas tardes de calor, nas varandas que escurecem; nas dos dias de batizado, de casamento, de velório (Ah! As conversas vertiginosas e inimitáveis dos velórios esquentadas a café forte e vinho-do-porto enquanto os defuntos se regelam e começam a ser esquecidos...)24

A memória e a poética da linguagem dos textos literários é feita de imagens, de

palavras-símbolos, é por isso feita de significações. Para Aristóteles a História narra fatos

que se sucederam, enquanto que a poesia narra fatos que poderiam suceder. É a

verossimilhança. Segundo Aristóteles (2000):

A epopéia, a tragédia, assim como a poesia são, em geral, imitações. Diferem umas das outras por três aspectos, ou porque imitam por meios diversos ou porque imitam objetos diversos ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira. 25

A palavra que se funda no real se forma como um todo significante que muda

constantemente e não apenas de acordo com a singularidade do sujeito que pensa e fala, mas

também a cada novo contexto histórico-social e cultural, a cada mudança de conceito,

imagem de conceito, porque assim o forjamos. E algumas palavras surgidas como

24 Ibidem, p. 17.25 ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. São Paulo, Difusão Européia, p. 200.

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manifestações da memória são como fotografias, ainda que reveladas ou aparentemente

desbotadas, apagadas, continuam guardando dentro de si um mistério e esse mistério de

quem as vê, desvela o oculto do olhar, desvelando de uma janela para a alma a fresta ou um

vasto para o re-encantamento do mundo. Assim é para o leitor a leitura, um agente de

mudanças com suas muitas possibilidades de olhar e de ser outrem para além do dizível e do

crível às primeiras linhas. O leitor invade as entrelinhas quando não guiado por um discurso

monológico que ao dogmatizar a narrativa, fecha a potencialidade que há na interação do

leitor com as vozes do texto. Por isso a cada leitor é dada uma chave do mistério ou um

molho de chaves do mistério. O leitor criará com suas interpretações um texto oculto dentro

do texto lido, um novo mistério, uma nova polêmica e um “excedente de visão”26, um

excedente que surge a cada leitura interpretativa. Para Mikhail Bakhtin (2000):

Ora, se começo a contar meu devaneio ou meu sonho a alguém, sou levado a transpor a personagem principal para o plano em que se situam as outras personagens (mesmo quando a narrativa é feita na primeira pessoa), ou, pelo menos, preciso levar em conta o fato de que todas as personagens da minha narrativa, inclusive eu, serão percebidas num mesmo plano plástico-pictural pelo ouvinte, para quem todas as personagens são o outro. (p.48-49)

Bakhtin descreve o ato criador e o papel do “outro” no acabamento da consciência

individual e para explicar essa “exotopia”, parte do mais simples: a compreensão de que não

poderemos jamais ver a nós mesmos sem o excedente de visão de um outro, que nos enxerga

a incompletude e dela e por ela sente, vive – “amor, espanto, piedade, etc.” – que pode ter

para conosco.27

O leitor dos textos de Nava poderá imaginar a partir de sua memorialística um novo

texto, um novo acabamento, uma chave de mistério que o autor-criador jamais terá acesso.

Por isso as memórias singulares e coletivas trazem sempre a revelação de novas nuanças, até

mesmo porque passam a refletir as cores daquele contexto em que foram narradas

juntamente com a presença da voz de um narrador ou das muitas vozes da narrativa. E por

mais que queiramos lhes oferecer margens ou lhe esgotar a capacidade de criar várias

significâncias e com isso, lhe impedir as quase inevitáveis transgressões; elas, as 26 Conceitos-chave na teoria de Mikhail Bakhtin (Ver texto “O autor e o herói”. In.: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.43-113). 27 Ibidem, p.50.

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reminiscências, acabam nos desvelando uma das mais potentes facetas que há numa poética

da memória: a do reinventar-se a cada novo momento de evocação e a cada momento de

leitura dessa evocação. Vejamos essa passagem que trata da significação da memória pela

narrativa da infância de Pedro Nava:

O que assim parece, em verdade, liga-se e harmoniza-se no subconsciente pelas raízes subterrâneas – raízes lógicas! – de que emergem os pequenos caules isolados – aparentemente ilógicos! só aparentemente! – às vezes chegados à memória, vindos do esquecimento que é outra função ativa dessa mesma memória. Sobem como pés de tiririca, emergem como Açores e Madeiras, ilhas perdidas na superfície oceânica, entretanto pertencentes a um sistema entrosado de montanhas sbatlânticas. Assim a anarquia infantil do Tempo e do Espaço me impedem de contar Juiz de Fora em ordem certa, capítulo um, capítulo dois, capítulo três. São mil capítulos e inumeráveis – entretanto capítulo único.28

Pedro Nava convida o leitor a uma viagem instigante através de sua memorialística e

esta se dá numa confluência “anfíbia” entre o histórico e a ficção. Ao longo de sua narrativa

feita de memórias em carne-viva, a reflexão e a poética da linguagem se encontram para

contar a trajetória de um homem frente à perplexidade única de saber e contar a sua própria

história. No fluxo de consciência do narrador de Baú de Ossos, emerge da narrativa a “bio-

grafia”, a escrita da vida pela ótica do memorialista que reinterpreta, dispersando e

acolhendo as cenas difusas de suas reminiscências num movimento contínuo do regional

para o universal, do mundo interno para o mundo das externalidades, do universal de volta

ao regional. A memorialística de Pedro Nava é ao mesmo tempo pessoal e intelectual.

Nesse sentido o autor-criador transforma lampejos de idéias em torrentes de compreensão

sobre o seu próprio poiesis.

Pela narrativa da infância vamos reconstituindo as cenas e as imagens de um tempo

no qual nos era possível imaginar a todo o momento como fosse um sonhar sempre

acordado os nossos projetos de futuro e isso poderia ser feito com um pé nas nuvens e outro

no chão, um pé no devaneio e outro na realidade. Essa impressão da largueza do tempo,

desse tempo denso, vasto ou até mesmo infinito só a infância pode nos propiciar. E ela que

nos deleita com a fuga para a eternidade com viagens para o sem fim. Já a memória da

infância pode nos arrebatar e fazer bater num gasto coração um novo tipo de pulsar, porque

28 Op. Cit. 1974, p.234.

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ela fala diretamente à criança que guardamos dentro de nós e se a nossa criança vive, a

memória nos chega ainda insegura, mas logo seu sangue morno e seu tempo sempre fértil

nos invade e acelera nossos batimentos e faz brotar dentro do velho coração o novo. E isso

pode ser vivido e lembrado através da literatura num constante olhar “pela primeira tudo que

foi visto antes”.

Ao narrar estamos sempre no entorno e no centro, pois o sujeito que narra não conta

a história de si mesmo sem narrar a história dos que viveram com ele, dos que lutaram com

ele, dos que caíram com ele, dos que foram silenciados com ele, dos que voltaram a falar

com e através dele. Nessa percepção, o sujeito que narra literariamente num determinado

Tempo é Espaço, dilatado ele também como um coletivo de vozes, um ser plural, uma

legião, pois dele ouviremos e/ou leremos as ressonâncias de um ou vários grupos sociais

com os seus mais distintos signos, toda uma poética que singular é plural. Sobre essa

reflexão, tomemos como exemplo da poesia moderna do inicio do século XX, um poema

muito expressivo da obra do poeta russo Vladimir Maiakovski (1893-1930), o poeta de uma

revolução sensível29:

Brilhar para sempre, brilhar como um farol,brilhar com brilho eterno,gente é para brilhar...

A voz que sempre lembro e trago de Maiakovski já não é mais somente a voz do

poeta Maiakovski, mas a voz daqueles que se identificam com a voz do poeta e na voz do

poeta há o eco que pode nos fazer lembrar de toda uma geração russa e revolucionária de

atores, de artistas plásticos, de cineastas. Porque Maiakovski foi tudo isso ao longo da sua

curta trajetória de vida, um polimata. Foi poeta, cineasta, artista plástico, múltiplo na

correnteza da vida, múltiplo nas linguagens artísticas. E a voz do poeta foi também a voz

dos acreditavam no amor e na liberdade como utopias, a voz dos que não aceitaram a

supressão da liberdade, dos que se inquietaram diante da pátria oprimida. Essa voz não pode

ser calada em tempo algum. Porque ela renasce e urge para nos lembrar daqueles que

esperaram, nunca inutilmente, em celas de prisões, nos exílios, nas margens dos portos, nas

margens das cidades. E renasce como lembrança em carne e vida daqueles que ficaram para

29 Título da biografia de Maiakovski escrito por Aleksandr Mikhaloiv.

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não esquecer, como as mães da praça de Maio, as mães de Maia30 ou de Acari, as que

ficaram a fim de não deixar de lutar pela memória de seus filhos e netos, essas mulheres-

antígonas que levaram para os espaços públicos os nomes e as histórias dos que

desapareceram sem notícias, dos que tiveram seus corpos negados, usurpados. E essa voz

plural que renasce da narrativa mítica do universo ou que renasce do absurdo das almas dos

que foram censurados, torturados, exilados se aproxima de uma memória poética do mundo

e pelas mãos do imaginário, com os sentidos dos nossos corpos feitos de memórias,

ressuscitamos, através de sensações sinestésicas, através da nossa corporeidade e do nosso

espírito um pouco ou muito da voz de um Maia-kovski. Ressuscita-me. Como no poema

escrito para a musa Lila Brik, “um poema narrativo” ou uma narrativa poética com o qual

podemos vislumbrar pela ótica das palavras cotidianas o artesanal de uma estética poética, o

artesanal que é feito do simples tempo que se dilata e espera: “O Amor” 31

Um dia, quem sabe,ela, que também gostava de bichos,apareçanuma alameda do zôo,sorridente,tal como agora estáno retrato sobre a mesa,.Ela é tão bela,que, por certo, hão de ressuscitá-la.Vosso Trigésimo Séculoultrapassará o examede mil nadas,que dilaceravam o coração.Então,de todo amor não terminadoseremos pagosem enumeráveis noites de estrelas.Ressuscita-me,nem que seja só porque te esperavacomo um poeta,repelindo o absurdo quotidiano!Ressuscita-me,nem que seja só por isso!Ressuscita-me!Quero viver até o fim o que me cabe!Para que o amor não seja mais escravo

30 Menção em homenagem à Cleyde Prado Maia, mãe da estudante Gabriela Prado Maia Ribeiro, morta por uma bala perdida durante um assalto na Tijuca, Rio de Janeiro, em 2003.31 Ver MAIAKOVSKI, Vladimir. Maiakovski: Poemas. Ed. Perspectiva, Rio de Janeiro, 2006. (grifo meu)

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de casamentos,concupiscência,salários.Para que, maldizendo os leitos,saltando dos coxins,o amor se vá pelo universo inteiro.Para que o dia,que o sofrimento degrada,não vos seja chorado, mendigado.E que, ao primeiro apelo:- Camaradas!Atenta se volte a terra inteira.Para viverlivre dos nichos das casa.Para quedoravantea famíliasejao pai,pelo menos o Universo;a mãe,pelo menos a Terra.

A escrita memorialista é uma escrita que passeia entre os fatos e os devaneios, entre

as imagens da imaginação e da memória, entre os tempos pretéritos e o desejo do tempo

futuro. E na poesia podemos também encontrar a narrativa e a memória, como a versada

pelo poeta: “Um dia quem sabe ela, que também gostava de bichos apareça numa alameda

do zôo, sorridente...”

Nas narrativas de vida reconheceremos nas raízes, nas matrizes a fala de um pai, o

Universo, de uma mãe, a Terra. E retornaremos à velha casa de nossa infância, a casa que

inventaremos para a morada da saudade do nosso adulto. E muitas serão as ressonâncias

que poderão emergir de dentro de nós: as lembranças dos pais, dos avós, dos mestres, dos

amores, das pessoas que encontraremos pelo caminho e dos companheiros de jornada ou

ainda seremos habitados pelas vozes que apropriaremos dos livros, dos personagens que

conversarão conosco por uma vida inteira, as vozes dos poemas, dos poetas que capturaram

em versos sentimentos que pareciam antes ser só nossos, as vozes dos autores literários que

nos levarão a viver em épocas e lugares nunca antes imaginados, que nos levarão por mares

nunca antes navegados. E na literatura a escrita das lembranças, a memorialística poderá

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aparecer como verso ou prosa, verso e prosa simultaneamente, seja em relatos

(auto)biográficos, poesias ou romances de ficção. Sobre o tema disse Antônio Cândido32 :

(...) desejo comentar certos livros recentes produzidos por escritores mineiros, que podem ser qualificados de autobiografias poéticas e ficcionais, na medida em que, mesmo quando não acrescentam elementos imaginários à realidade, apresentam-na no todo ou em parte como se fosse produto da imaginação, graças a recursos expressivos próprios da ficção e da poesia, de maneira a efetuar uma alteração no seu objeto específico. (...) Boitempo, A idade do serrote e Baú de ossos, podemos aproveitar a ordem casual em que apareceram a fim de estabelecer uma gradação, porque o primeiro é escrito em verso, o segundo numa prosa-poesia e o terceiro em prosa; o primeiro é autobiografia através de poesia; o segundo, através de uma poesia inextricavelmente ligada à ficção; o terceiro, como se fosse ficção. Isto mostra que, apesar das diferenças, eles têm um substrato comum, que permite lê-los reversivelmente como recordação ou como invenção, como documento da memória ou como obra criativa, numa espécie de dupla leitura, ou leitura "de dupla entrada", cuja força, todavia, provém de ser ela simultânea, não alternativa. (1989, p.51-54)

E eis que, dialogando com todos, a trama memorialística inaugura um leque de re-

significados, que pela reinvenção do passado, tomam a forma da narrativa do imaginário,

falando bem próximo a um mito fundador que é o da criação da própria memória. Aqui

capacidade de lembrar e potencialidade de inventar se unem para a reinvenção do ser. E

desse mito fundador também surge o misterioso e o inaugural naquilo que há de profundo

numa visão “antropofilosófica” da literatura, de seu instrumento – a linguagem – e de sua

missão – construir a narrativa do homem, justificando-lhe a existência através da

constituição mítica e mágica da palavra.

Diz a voz de toda poesia de Cecília Meirelles no Romance LIII ou das palavras

aéreas:33

Ai, palavras, ai, palavras,que estranha potência a vossa!Ai, palavras, ai, palavras,Sois de vento, ides no vento,no vento que não retorna,e, em tão rápida existência,tudo se forma e transforma!

32 CÂNDIDO, Antônio. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.33 MEIRELLES, Cecília. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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As palavras que gravitam o nosso mundo linguistico e o nosso mundo poético

acabam se tornando constelações de significados, com milhares de novos significados, com

milhares de possibilidades, de descobertas e invenções. Nossos textos literários estão cheios

delas e de seus encantamentos. Porém durante muito tempo e até hoje, na escolarização da

literatura, os textos literários ficaram presos às representações que foram sendo forjadas ao

longo de uma teoria curricular que buscava fechar num determinado conceito o que era ou o

que não era a literatura, periodizando, fragmentando, dizendo contextualizar quando, muitas

vezes, deixava de fora o caráter plurissignificativo da arte literária.

E a representação mais usual, ainda hoje presente nas nossas salas de aula, é aquela

que diz que a literatura é de alguma maneira “o reflexo” linear dos períodos literários, uma

reprodução de determinados ideais, ou seja, feito ela própria simulacro ou reflexo da

sociedade. E seguindo essa idéia de origem, a literatura só poderia também ficar atrelada a

um determinado conceito, também distorcido de História. Ou ainda a literatura poderá ser

vista como um quase apêndice ou vestida como uma roupa “de época” através das teorias ou

de textos que só veem o que é do literário a partir de um único prisma: o da periodização,

das fatias dos estilos de época. Sendo assim, não é de se espantar que as práticas com a

literatura também tenham se tornado “sem sentido”, práticas que, burocratizadas, reduziram

a arte literária a “uma literatura de manual”, a uma aplicabilidade utilitarista que vê a

literatura apenas como “auxiliar” no ensino do “gramatiquês” ou a partir de certas

finalidades de cunho moralista. Vejamos o caso da literatura infantil que, para muitos

educadores, deve apresentar uma função moralizante para justificar a sua existência e

permanência na sala de aula. E essa função ainda precisa estar - por algum fio, amarrada às

justificativas encontradas para condução da leitura e da expressão das crianças a favor

daquilo que alguns escolheram representar como sendo o “certo”, o “correto” e “copiado”.

Uma prática que cria tabus, maniqueísmos, pode impedir que temas relevantes do

cotidiano apareçam, impedindo também que a criatividade e a curiosidade dos alunos

apareçam sem rédeas. E essa liberdade que mora num ser-criativo se dá através da

brincadeira, do imaginário que há no lúdico, no prazer de ler. Lembro então de um trecho do

livro de Alberto Manguel, Uma História da Leitura, quando ele narra como foram suas

primeiras experiências de leitor:

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(...) adolescente na biblioteca amplamente sem uso de meu pai em Buenos Aires (...) fiz outra descoberta. Eu começara a procurar na elefantina enciclopédia espanhola Espasa-Calpe os verbetes que de alguma forma eu imaginava relacionados com sexo: “Masturbação”, “Pênis”, “Vagina”, “Sífilis”, “prostituição”. (...) Eu tinha doze ou treze anos; estava enrodilhado em uma daquelas enormes poltronas, absorto em um artigo sobre os efeitos devastadores da gonorréia, quando meu pai entrou e sentou-se à escrivaninha. Por um instante fiquei aterrorizado com a possibilidade de ele perceber o que estava lendo, mas então me dei conta de que ninguém – nem mesmo meu pai, sentado a alguns passos de distância – poderia entrar em meu espaço de leitura, de que ninguém poderia decifrar o que estava sendo lascivamente contado pelo livro que eu tinha nas mãos e que nada, exceto minha própria vontade, poderia permitir que alguém ficasse sabendo. O pequeno milagre foi silencioso, e conhecido apenas por mim. 34

Quando falamos em literatura é possível ir ao encontro de uma “prática permissiva”,

uma prática que permita a criação de ambiências significativas com a literatura - fora e

dentro da sala de aula. A escolarização da literatura quando esvazia de sentidos os textos

literários, numa ortodoxia disciplinar rígida, recusa a própria literatura. Já é um paradoxo

ensinar literatura, mas dentro desse paradoxo é possível criar experiências significativas com

a literatura, principalmente quando há abertura para a criação do conhecimento que advém

das tantas relações de escolha: professores e alunos, professores e mundo, alunos e mundo.

Nos livros didáticos, geralmente a literatura tem uma abordagem dividida nas suas

fases cronológicas e de estilos de época. Estudando-se principalmente as principais

características de cada fase, tomando como exemplo textos de época, para procurar

identificá-las. Esse tratamento dado a literatura nos livros didáticos, principalmente os de

ensino médio, por vezes determinou e até hoje determina certa escolarização da literatura.

Pensemos sobre o movimento modernista, designação comum a diversos

movimentos da literatura, das artes plásticas, da arquitetura e da música surgidas no século

XIX. Nesta descrição do que foi o movimento modernista, percebemos claramente que ele

foi muito abrangente, pois não se fixou somente no campo literário. Aliás, foi uma

exposição de pintura feita pela pintora Anita Malfatti, praticamente a introdutora desse

movimento de vanguarda no Brasil. Percebemos então, que para entendermos esse

movimento, temos de ter a idéia de que o movimento requer outras análises, além da que se

faz nos livros didáticos, onde se privilegia o texto escrito, mas sabemos que todas as

34 MANGUEL, Carlos. Uma História da Leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 25.

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manifestações da arte possuem cada uma, na sua individualidade, um texto, então, essa

análise concentrada na literatura, deixaria escapar outras formas de expressão do

movimento.

A importância de falarmos nas outras formas de expressão da arte, é para nos

situarmos em relação ao que seria o texto. O texto, mais uma vez, não pode dar

exclusividade somente ao aspecto escrito de sua manifestação, pois, na pintura, na escultura

e numa foto, nas tantas imagens que nos cercam há também textos a serem explorados e

desvendados. Imaginarmos que todas as esculturas de Rodin foram feitas para preenchermos

o espaço geográfico com o peso de um bronze ou de algum material qualquer, seria no

mínimo uma imprudência, pois sem dúvida há por trás de cada obra a busca de um texto,

onde a liberdade de expressão de cada um deve ser desvelada.

A abordagem privilegiando o texto escrito em detrimento de outras possibilidades

textuais para caracterizar um movimento literário, acaba por distanciar outras formas de

expressão da arte, que poderiam da uma nova dimensão ao estudo da própria literatura, pois

seria muito mais interessante para o aluno estabelecer vínculos entre as várias formas de

expressão. Baseando-se nesta forma de criar interligações, poderemos nos aproximar

também das imagens da arte, do cinema e da fotografia, essas que estão presentes no

cotidiano dos alunos e dos professores.

Talvez fosse necessário deixar claro pelas práticas de sucesso que as experiências

que subvertem um modelo – não deixam de ser modelo, que uma proposta pedagógica

“diferente” e que já acontece em muitas salas de aula, tem nuvens sim, tem criaturas outras,

algumas fantásticas, mas que todo mundo pode entrar nela feito casa e que nessa casa pode

ter ou não ter “chão”, pode ter ou não ter teto, ter ou não ter rede e ter ou não ter parede.

Não precisamos ficar receosos de assumir o lugar da arte na escola. Nesse sentido, busca-se

romper com uma prática, ainda hegemônica nas escolas públicas, que é a que utiliza a

literatura apenas como exemplo gramatical ou ainda, no caso da literatura infantil, como

exemplo de comportamento adequado a ser seguido, geralmente um comportamento

docilizado, ou melhor, como nos ensina Paulo Freire, domesticado. Parece que a literatura

“serve” pra tudo, menos para ser arte. Sabendo que a arte não busca o consensual.

“Desimpregnar” as nossas práticas de certos costumes já tão condicionados não

parece fácil e não é fácil. Porque transgredir o modelo dominante por uma literatura

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encarnada, atrativa e experimental é romper com um determinado paradigma que pensa a

literatura numa linearidade prescritiva, que quer pensar pelo autor e pelos leitores numa

onipotência que exclui a pluralidade de significâncias que são geradas a cada leitura. A arte

literária não re-prova. O que reprova é a prova de literatura. Isso deveria ficar claro,

principalmente para as crianças.

A literatura que desestabelece, que dessacraliza a língua, porque é inventada e

inventiva, porque é parte do imaginário de quem a cria, é também a literatura que vem e

aflora da nossa subjetividade para torna-se muito mais interessante aos alunos e aos

professores, porque humanizada é humanizante. E um trançado de bilro: literatura,

linguagem, memória, narrativa num tempo dilatado, volumoso. Mas não é um tempo linear.

É um tempo que pode ser descontínuo, circular, interior, projetado... Porque também

pertence a um tempo subjetivo. Pelas veredas de um Riobaldo, “amor desse, cresce

primeiro; brota é depois”.35

Disse Rosenfeld (1969, 75): “A nossa consciência não passa por uma sucessão de

momentos neutros, como o ponteiro de um relógio, mas cada momento contém todos os

momentos anteriores(...)” Dessa forma, as narrativas que provém da materialidade do

discurso oral e memorialístico, tornam-se um dos acessos à busca do homem pela

significação da sua existência no mundo e com o mundo, a partir da constante relação social

que mantém com os outros no seu cotidiano. Nós existimos com. E é assim que nos

lançamos ao passado, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem, no nosso próprio

universo mítico. A narrativa memorialística do contar, do narrar sua história, do refletir-se

na história do outro, reascendo o fogo primitivo e mítico que sobrevive num sujeito

contemporâneo muitas vezes atrelado à massificação das experiências e ao esvaziamento

dos significados de um mundo que exige cada vez mais de todos: resultados, metas,

posicionamentos, estes que por vezes pregam a desvalorização da sensibilidade a favor de

um consumismo galopante, de ódios raciais, fundamentalismos acirrados e ações eticamente

degradantes.

No mundo da ausência de significação, a linguagem e suas intertextualidades

tomaram entre nós a função de uma urgência que é, nos parece, a de questionar os

silenciamentos e a cegueiras que sutilmente se instalaram entre as relações humanas,

35 ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 192.

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questionando a nossa rejeição à linguagem do outro antes mesmo de conhecê-la,

questionando também a nossa invisibilidade diante do que nos parece estranho, diferente,

esquisito. E é Greimas36que nos fala de uma determinada desmistificação da arte que

aparece para preencher vazios. Para Greimas a arte, também linguagem, corre o risco de

tornar-se estéril por não conseguir significar. Talvez o cuidado que tenhamos que ter com o

uso que fazemos da linguagem, mais atentos às possibilidades e potencialidades da

linguagem nas práticas cotidianas.

A linguagem muitas vezes nega-se para negar o mundo e fazer-se nele uma

revelação. Ela nos introduz em uma ontologia que é oposta à ontológica tradicional, baseada

na permanência da essência. Ai, palavras, ai, palavras... A linguagem é dialética e insere-se

em uma contradição: de um modo geral, destrói o mundo para fazê-lo renascer em estado de

sentidos e valores muito mais significativos. Que estranha potência a vossa! Mas, do ponto

de vista da força criadora, ela se fixa no único objeto negativo de sua empresa e torna-se

poder puro de contestação e transformação. E, em tão rápida existência, tudo se forma e

transforma! Conseqüentemente, a literatura , isto é, a linguagem consciente de sua vocação

existencial, é o domínio da ambigüidade e o sentido da morte aceita com vista a uma

ressurreição ulterior. Nós só compreendemos privando-nos do existir, tornando a morte

possível de forma que saímos do ser, excluímos a possibilidade da morte e a saída torna-se o

desaparecimento de qualquer saída. Nesse duplo sentido inicial, que é subjacente a qualquer

palavra, a literatura encontra sua origem, e a questão que esse sentido inaugural coloca é a

mesma da literatura. A literatura é assim, o drama ininterrupto de um Orfeu que busca,

perde, encontra e perde outra vez Eurídice e a intensidade do drama é a garantia da

qualidade literária.

Essa teoria da literatura é ao mesmo tempo compreensão da linguagem e ascese

interior, como iniciação necessária à literatura. Trata-se, de certa maneira, de uma

transparência, no plano da linguagem, do argumento ontológico dos teólogos. Estes se

esquivam sobre o problema da legitimidade de passagem; em Deus, da essência para a

existência. Dialogando com Sartre: a existência precede a essência. Logo, esse problema

tornou-se da literatura, é o problema da passagem do sentido para a existência, é a luta

condenada por antecipação à derrota, mas necessária ao sentido que tenta converter-se em

36 GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1973.

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existência; é o drama permanente de uma consciência crítica que recusa aceitar-se como

crítica e se transforma em tensão e ação no âmago dessa contradição ontológica que é a

linguagem vivida em si mesma. Eis por que esse drama é o objeto de toda literatura – que é

incessante retorno às origens da linguagem -, nesse milagroso instante em que o nada e o ser

se convertem um no outro é quando se realiza o mistério, o geheimns37 da linguagem. Por

isso há uma poética muito peculiar nos tempos da literatura, um poiesis que faz da escrita

das narrativas literárias novas possibilidades pródigas de existência no cronotopo.

O cronotopo como materialização privilegiada do tempo no espaço é o centro da concretização figurativa da encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do romance, as generalizações filosóficas e sociais, as idéias, as analises das causas e dos efeitos, gravitam ao redor do cronotopo, graças ao qual se enchem de carne de sangue e se iniciam no caráter imagístico da arte-literária. 38

Estamos diante da resistência ao esquecimento do tempo da memória fugidia. De

certo que a arte literária muitas vezes acaba por desembocar em questões abertas por

excelência: por que o mundo? Qual o sentido das coisas? Assim quem escreve acaba por

conceber a literatura como um encontro catártico e quem lê a encontra numa estética do

sentir que é por sua vez devolvida ao mundo como memória poética, como num trânsito

dialógico ininterrupto e é nessa infinita decepção do não-fim que a narrativa literária torna-

se o reencontrar o mundo, perdendo-se nele. É o que diz o narrador dA Hora da Estrela:

Escrevo por não ter nada a fazer no mundo. Sobrei e não há não há lugar para mim na

terra dos homens. (....) (LISPECTOR, Clarice. p.35). A linguagem literária é de construção

nunca acabada e a forma de trabalhá-la está sempre em desenvolvimento. Por isso a atração

pela literatura deveria começar com a voz, com o olhar de curiosidade, com o diálogo, com

o sentir o livro com todos os sentidos, com a energia que é vida e que advêm dos nossos

desejos. É que a imposição da leitura literária, vinda de forma verticalizada, transforma o

gosto de ler em desgosto de ler e até o mesmo o gosto de falar em desgosto e silenciamento.

Descubro então que o essencial do trabalho com a literatura é o que escapa ao

próprio texto para dialogar com o leitor. Mesmo porque o que se chama magia da literatura

37 Conceito utilizado por Heidegger para mistério ou segredo (Geheimnis).

38 BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A teoria do romance. 3 ed. São Paulo: Unesp, 1993, p. 356.

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está no encontro e nas entregas dúbias entre o texto e o leitor. Pois sabemos que cada vez

que o leitor retorna ao texto lido, ele não o retoma como o mesmo leitor. Um livro tem

muitas chaves. E qualquer que seja o livro, ele não poderá ser lido mais de uma vez da

mesma maneira. Isto porque o sujeito leitor não será mais o mesmo nas duas ou mais

leituras feitas do mesmo livro. Ele partirá sempre de outro lugar, com outro conjunto de

lentes. Ele será outro leitor, e conseqüentemente, lerá um outro livro no texto revisitado. E a

cada leitura, novas leituras das realidades serão feitas. O leitor poderá observar o que antes

não tinha visto por pressa, distração ou esquecimento. A leitura torna-se então uma relação

dúbia de entrega, habita na ambigüidade de um leitor não mais passivo diante do que lê, mas

criador dos seus caminhos. Estará então, caminhante, diante de um universo a desvendar -

que é o texto vivo, o texto em fruição.

Exemplo de uma singular e desconcertante fruição textual podemos vivenciar

enquanto leitores com “Um ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. Numa primeira

leitura, apanhados por uma linguagem desafiadora e “não-linear” somos convidados a ir,

voltar, ir de novo, estranhar aquele fluxo narrativo e ainda ao mesmo tempo somos

apanhados pela reflexão sobre as diversidades de uma sociedade que é excludente,

desumana, sectária e que, ao ser tomada por uma epidemia de cegueira, passa a lidar com

seus “cegos” com a força do domínio, da manipulação, da brutalidade, da tortura, de todo

tipo de violência. Uma sociedade de cegos que em determinado momento precisará

reaprender o valor da confiança e da partilha.

Ao lermos Saramago nos deparamos ou nos chocamos com a proximidade entre

ficção e realidade, entre a arte literária e os elementos históricos que permeiam a sociedade.

O livro de Saramago nos mostra uma história carregada de estranhamentos, contradições e

paradoxos, refletindo em singular esse nosso drama tão moderno (ou poderia dizer de todos

os tempos) do homem amarrado a um mundo desconcertantemente desumanizado e

desumanizante, materialista, pleno de angústias individuais e coletivas. Um mundo feito de

incertezas em face de um amanhã marcado de guerras, fomes, desvalorização de moedas,

desvalorização de pessoas e tantas outras aflições universais. Afinal, que humanidade é esta

senão a nossa?

A narrativa de Saramago é certamente uma narrativa que dá muito trabalho ao leitor,

pois ela não conduz, não venda ou guia o leitor. Goethe dizia que ler é o ato de desatar nós

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cegos. Podemos pensar a frase de Goethe num contexto polissêmico em que “nós cegos”

podem ser os nós difíceis da vida, os “nós” da garganta, os “nós” pelo corpo; ou ainda

podemos pensar em “nós cegos” a partir de algumas cegueiras que desenvolvemos em

relação ao mundo que vivemos. Ler não é apenas decodificar os códigos da língua. É

também desfazer os nós cegos de uma não compreensão sobre isto ou aquilo. É poder

enxergar no fora o que vai por dentro.

As experiências da leitura literária, escolarizadas ou não, permitem a alunos e

professores, experiências inúmeras com também inúmeras possibilidades de compreensão

dos textos. E a partir dessa dimensão ou desse redimensionamento poderemos ampliar nosso

conhecimento do mundo, da história, da antropologia, da sociologia... As aulas de literatura

e das outras disciplinas têm outro sabor quando os textos, principalmente os literários,

tornam-se vivos através das tantas vozes da narrativa.

A literatura, assim com a educação artística, a história, a geografia, a sociologia, a

filosofia, têm olhares ora semelhantes, ora diferenciados sobre o mesmo objeto: a

humanidade, o mundo. E quando trabalhamos essa relação transdisciplinar na sala de aula,

realmente enriquecemos o olhar e nos tornamos críticos sensíveis das realidades que nos

cercam.

Aprendemos do mundo, da sociedade, das relações, quando nos entregamos às

descobertas dessas e tantas leituras conjugando liberdade e alteridade. Por isso,

humanizados, podemos acreditar no outro, porque assim podemos acreditar nas nossas

relações sociais e compartilhar nossas memórias e nossos sentidos. Pois o essencial na

aprendizagem, seja da literatura, seja da história ou das duas interligadas, é o que fica e o

que, de repente, transcende como significância de mundo.

Mas muitas pessoas, em muitos lugares, ainda vêem a leitura literária como uma fuga

do cotidiano, fuga da realidade, como um “pântano poético de subjetivismos” ou como uma

viagem a um país estrangeiro, e se esquecem que o mais surpreendente da literatura é

justamente a capacidade de traçar paralelos entre o texto e a vida. A leitura literária torna-se

interessante ao aluno do ensino médio quando, de alguma maneira, se aproxima da sua

narrativa de vida. Não há envolvimento sem um sentido prático que aproxime a literatura da

vida. Proust dizia que quando lemos um livro encontramos pessoas que já conhecíamos. E

dialogando com este pensamento proustiano, poderíamos também dizer que nos

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encontramos com nossas humanidades ou desumanidades, com nossas misérias, nossas

fraquezas, nossas falências e esperanças. Como ler Dostoievski ou Maiakovski sem esbarrar

na nossa própria natureza ou desnatureza humana? O quanto de nós existe num “homem

do subsolo”? O quanto de nós existe nas paredes escritas com os versos de sangue de

Maiakovski? A literatura nos leva a esta possibilidade, também polifônica, de encontrar nas

narrativas escritas, o sentido de nunca estarmos sozinhos no nosso próprio narrar, mas sim

impregnados por palavras-símbolos que já foram pensadas, ditas e repetidas, ás vezes

exaustivamente repetidas.

Em sala de aula, estamos em constante interação, em constante diálogo com os

outros e com as falas impressas dos livros. Como pensa Bakhtin (1986, 123), o livro

também é um instrumento de comunicação. O livro, isto é, o ato da fala impresso, constitui

igualmente um elemento de comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a

forma de diálogo (...) Por isso mesmo ao trabalharmos com a leitura literária não podemos

continuar pensando a linguagem escrita longe da oralidade, a oralidade longe da memória -

como etapas apartadas. Há muito tempo a literatura vive a narrativa oral, coabitada por ela,

coabitando nela. Temos Graciliano Ramos, José Lins do Rego, João Ubaldo Ribeiro e tantos

outros escritores e poetas que viveram e vivem todo um processo que oraliza a narrativa

literária.

A fala de Riobaldo, personagem de Grande sertão – Veredas (Rosa, Guimarães.

1986, 4) nos coloca nesse redemoinho que é a vida e a linguagem, no redemoinho dos olhos

– e até dos ouvidos - no diálogo com o livro:

Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. (...) Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, esse vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemoinho...

O diabo na rua, no meio do redemoinho... Neste trabalho relacional e contínuo com

a linguagem nos formamos e somos formados. “Na verdade não são palavras o que

pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou

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triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo

ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e

somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes

à vida.” (Bakhtin, 1986, 95) Podemos ainda lembrar Sartre quando diz que “palavras são

como balas”. No universo da Polissemia, a palavra é a bala que machuca, humilha e mata.

Mas é também a bala que ao deslizar na língua, adoça o paladar, repara o mal e unifica os

homens. As palavras mudam, renovam-se de mudanças. Nós também mudamos, porque

mudar faz parte da nossa constituição, da nossa subjetividade.

Somos seres de linguagem. Nesse posicionamento, faz-se necessário compreender o

aluno como sujeito criador e pesquisador das palavras, capaz de discutir e construir novas

significâncias discursivas na sua relação com o mundo, na sua relação com o outro e na sua

relação com os textos. A escolarização pode limitar, selecionar e combinar, ritualizar. Mas

a mesma escolarização pode nos colocar diante de um horizonte de possibilidades, de

lugares de resistências, de lugares de interação, de lugares possíveis. E a linguagem pode ser

um instrumento de crença em mundos possíveis, tanto que não poderia passar despercebida

pelos que disseminaram intolerância e domínio. Na história do mundo e dos povos, a língua,

as linguagens sempre foram a primeira terra a ser salgada, violentada, devastada quando

houve dominação de uma nação sobre a outra.

Minha língua é minha pátria? Certamente, minha língua é o que antes me identifica

como brasileira em qualquer lugar do mundo. Mas de qual língua realmente estamos

falando? Com qual língua falamos? Que língua é a nossa portuguesa de tantos brasis dentro

do Brasil? Que linguagem brasileira é esta com recursos de um universo também tão

peculiarmente diversificado?

Assim, quando falamos em linguagem oral e “oralização” da literatura, comumente

nos deparamos com uma pretensiosa e frágil desvalorização dos conceitos dessas práticas.

Ao que pode parecer, aos olhos e ouvidos menos atentos que estamos falando de novidades,

modismos; quando na verdade, as novidades foram senão precursoras de tantos outros

movimentos posteriores a elas. O que pode haver é uma re-significação desses lugares.

Tanto a narrativa oral quanto a leitura da escrita e o mundo visual das imagens são

ferramentas capazes de potencializar o fluxo da memória e da criatividade nas nossas formas

de aprender e (com)preender a linguagem - fora e dentro da escola. São movimentos

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descontínuos no exercício da própria linguagem, movimentos estes que se inter-relacionam

dialeticamente e dialogicamente: lendo, escrevendo, falando, ouvindo ler (Chartier 1995)39.

Ler, falar, escrever são práticas da linguagem, da expressividade, da diversidade

léxica, da diversidade semântica. Priorizar apenas uma das práticas da linguagem,

desvinculada das outras, é recusar-se a ver a significância de todo um processo, que nunca

foi e nem será aprendido e compreendido seguindo regras “etiquetadas”: primeiro o aluno só

fala – depois ele lê e não pode falar mais – e por último, ele escreve o que se manda

escrever.

Pois para vivenciarmos a diversidade textual que existe ao nosso redor, precisamos

mais que olhos, precisamos compreender com todos os sentidos. Fazemos isto através da

leitura do sentir, da sensibilidade, do sabor ou do dissabor das coisas que permanecem em

nós, em nosso imaginário, na nossa memória, numa fruição ininterrupta. Assim fazemos

com as leituras que vamos fazendo ao longo da vida, interligando-as a partir de uma

memória funcional e/ou afetiva. Nesse sentido, aprender a ler é ter acesso a um mundo

distinto em que a oralidade se instala e se organiza (Silva, 2002,63).

Quando lemos, falamos ou escrevemos entramos em sintonia com a realidade e/ou

com a imaginação, unimos passado, presente e elaboramos perspectivas para o futuro. Como

sujeitos históricos e sociais que somos, lemos, falamos ou escrevemos sempre de um

determinado lugar, de um determinado tempo, com determinadas concepções de mundo.

Toda nossa leitura está impregnada de impressões muito pessoais, subjetivas; mas toda

nossa leitura parte de uma cultura socializada que cria e guarda as palavras que também

simbolizam um universo coletivo de referências.

A leitura literária é a ventania que varre o que foi pré-estabelecido pelo(s) próprios

autor(es), desmistificando a crença de que o passado é apenas fóssil a ser medido e

catalogado. O leitor reascende o fogo das palavras que adormecem em livros fechados. A

leitura torna-se, segundo esse ponto de vista, o que re-significamos com a memória e com a

experiência. Mas não estamos falando aqui de uma leitura esvaziada ou imposta. Para

provocar reflexões, questionamentos, inquietações, é preciso que se faça da “leitura de

mundo”, uma leitura de possibilidades, capaz de trazer para a sala de aula, através da leitura,

seja da literatura, seja da história ou das demais disciplinas em correlação umas com as

39 (...)‘ler’ significa, como na Castela do Século de Ouro, ouvir ler.CHARTIER, Roger. Em entrevista: Acervo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.8, n.1-2.

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outras, uma multiplicidade de vozes representada pela diversidade que se revela por meio de

marcas temporais, espaciais e socioculturais.

Quantas vozes existem dentro de nós? Uma infinidade por certo. E de uma

infinidade de vozes também nascem as narrativas memorialísticas – dos fios com os quais

tecemos a narrativa, com as vozes que nos habitam: a voz do passado amalgamado às vozes

do presente e da esperança de futuro. Esse fino e frágil tecer que agora cortamos com as

próprias mãos e com as mãos das parcas. Esse fio que pode ressurgir com a intimidade da

nossa casa, da nossa rua, com a nossa história singular que tem os mesmos fios de cultura e

arte que tecem o tempo que, ressuscitado, está em todos.

CAPITULO 2

Memória Plural e a cultura popular em sala de aula:

Narrar para aprender...

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Desenho feito por Pedro Nava para a capa do livro Macunaíma de Mário de Andrade, edição de 1929.40

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. (...) Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Mário de Andrade

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua

loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. O que foi feito de tudo isso?

Walter Benjamin

Só com o instinto de um descobridor, um desbravador, é que o escritor pode retirar

das palavras os seus mais diversos portos de significação. Assim como os descobridores,

que trouxeram durante a colonização parte da nossa herança cultural, mesmo que nela já

houvesse os indícios dos hábitos de corrupção, certamente era mais à aventura que eles se

lançavam. E esse desbravar, que é também um lançamento do local ao universal, esteve e

40 Acervo Pedro Nava, Casa Rui Barbosa.

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está presente em nossas memórias literárias. De Caminha a Saramago, quanto dos nossos

mares banharam o gigante Brasil com as lágrimas de Portugal?

Os autores-criadores41, para usar uma das noções de Bakhtin, se lançam a um mar de

significações e levantando velas como fossem asas, assim eles vão ao sabor dos ventos, ao

sabor da criação que é feita por um horizonte de escolhas e de linhas bem e mal traçadas.

Estão e não estão num exercício de interação e distanciamento, perto e longe num exercício

de dialogismo42, de todo tipo de interação dialógica. Considero esse “espaço” de dialogismo,

reflexão de Bakhtin, como um espaço de trânsito, um espaço transacional, lembrando aqui a

teoria do pediatra e psicanalista D.W. Winnicott, que via na criança e na sua interação com o

objeto do seu brincar, a capacidade de fazer descolamentos da realidade rumo à criatividade

e à experimentação. 43 Esse espaço que “é e não é”, que “está e não está”, como num teatro,

que abre um leque de cortinas e possibilidades para “ser não sendo” e que, de forma simples,

podemos tentar comparar a um trânsito onde A contem B e B contem A, mas A não é B e

nem B vai se tornar A. Esse hibridismo que é ao mesmo tempo um “transviver” que cria

esse terceiro espaço do “entre” e que dá à poética da memória um equipamento único: a de

que toda verdade narrada pode ser uma ilusão e uma invenção. Seguindo essa lógica de

pensamento, de uma extra-ordinária dialética, poderemos sugerir que é o reconhecimento da

nossa trajetória humana, o reconhecimento do nosso lugar no mundo, seja através da estética

literária, da poética das memórias ou ainda da cultura e de toda arte, que nos potencializa

contra um novo mito do determinismo que dita a falta, a ausência de narrativa.

41“No ato artístico especificamente, a realidade vivida (já em si atravessada por diferentes valorações sociais porque a vida se dá num complexo caldo axiológico) é transportada para um outro plano axiológico (o plano da obra): o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos sistemas de valores.

No ato artístico, aspectos do plano da vida são destacados (isolados) de sua eventicidade, são organizados de um modo novo, subordinados a uma nova unidade, condensados numa imagem autocontida e acabada. E é o autor-criador-materializado como uma certa posição axiológica frente a uma certa realidade vivida e valorada – que realiza essa transposição de um plano de valores para outro plano de valores, organizando um novo mundo (por assim dizer) e sustentando essa nova unidade.

O autor-criador é, assim, quem dá forma ao conteúdo: ele não apenas registra passivamente os eventos da vida (ele não é um estenógrafo desses eventos), mas, a partir de uma certa posição axiológica, recorta-os e reorganiza-os esteticamente.” BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2007, p.38) 42 “Dialogismo, (...) esse elemento constitutivo da linguagem, esse princípio que rege a produção e a compreensão dos sentidos, essa fronteira em que eu/outro se interdefinem, se interpenetram, sem se fundirem ou se confundirem.” (Ibidem, p.80)“A palavra diálogo (...) é bem entendida no contexto bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como reação da palavra à palavra de outrem”. (Op.cit. Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto 2006, p.123)

43 WINNICOTT, D.W. O Brincar & a Realidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1971.

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Se a sociedade produziu e continua produzindo seus guetos, agora com novos

eufemismos e outras cercas e muros, cabe à educação uma revolução pela narrativa que é

também uma revolução pelo não esquecimento. Cabe à educação uma revolução cultural

que é também uma revolução através da arte num sentido amplo. Até porque a arte

ultrapassa qualquer fronteira. A arte é a vida transformada e exige do ser uma capacidade de

transcendência, de criar mundos imaginários de forma que se possa com isso desejar uma

outra vida, de criar uma vida inteiramente nova. “Inventar antes para depois transformar a

realidade”, como disse Augusto Boal sobre a poiesis da criança, comparando a arte de ser

criança à arte do teatro do oprimido. A arte que é permeada pelo caráter ético e estético é a

arte que democratiza o conhecimento reconhecendo o legítimo valor da imaginação.

Não mudaremos nosso destino, o destino de homens, mulheres e crianças enquanto

houver fome, fome de alimento, fome de livros, fome de uma educação de qualidade, fome

de imaginação. Não mudaremos o nosso destino enquanto houver tortura e falta de

liberdade, liberdade de ir e vir, que é um direito civil e a liberdade do tempo que sobra para

o ócio criativo - de “poder voltar para casa”- para ler, escrever, sonhar, meditar, brincar. Por

isso, na escolarização da literatura, é de fundamental importância ampliar o campo de

atuação e de reflexão dos educandos a partir da vivência com a estética literária, com os

textos narrativos, com os textos memorialísticos, com as biografias e autobiografias.

Discutir os domínios das verdades que foram sendo criadas pelos grupos dominantes,

refletindo a própria idéia de verdade, sem que para isso seja assimetricamente usado nenhum

tipo de armadilha discursiva. Até porque nas escolas públicas, “as crianças precisam mais de

livros que de discurso”44. As crianças sabem ler e criar muitas narrativas antes mesmo de

serem apresentadas à escolarização da literatura. E se ao invés de escolarizar,

institucionalizamos a literatura, negamos a narrativa – e negar a narrativa é negar a

liberdade, que é negar a criação negando a aprendizagem do desejo. Negar as trajetórias

humanas é negar aos sujeitos uma história, uma identidade e o lugar de pertencimento e

autoria na própria narrativa. Negar, suprimir o direito à narrativa sempre foi uma das

principais estratégias de dominação usada por ditadores e seus regimes totalitários.

Talvez os mais puristas não concordem, mas a literatura, ou melhor, os livros de

literatura, ou ainda, os livros de literatura infantil, podem se tornar um importante

44 Fala de Wanderlei Geraldi na aula inaugural do curso de pós-graduação em Alfabetização das Crianças das Classes Populares (2000)

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instrumento de libertação. Nesse sentido, dizer que a literatura não tem finalidade em si é

uma coisa. Dizer que a literatura não tem finalidade na escola é outra bem diferente. A

literatura é uma das ambiências da narrativa e penso que, a literatura que trabalha com a

prosa poética e memorialística, assim como também com outros gêneros proximais, como a

biografia, autobiografia, os memoriais – para além de qualquer conteúdo nostálgico,

saudosista, revela através desses textos um universo de referências, de imagens, de

representações que nos remetem à história subjetiva e humana de cada um, de cada escritor;

seja pelo prisma de uma estética literária, no caso dos textos memorialísticos, seja pela

questão ética e também estética da narrativa de “quem esteve na sua história” como ator

e/ou autor. E essa se torna significativa parcela para com o zelo da nossa memória coletiva -

cultural e social. É claro que o Brasil tem memória, o Brasil que significa “ser brasileiro”

tem memória. Mas os cacos, os resquícios da escravidão, da ditadura e de toda uma História

repleta de autoritarismo e exclusão permeiam nossa memória de censura e antes mesmo que

comecemos a narrar “para não esquecer”, somos novamente lembrados de esquecer com o já

caducos axiomas: “o Brasil não tem memória”, “o brasileiro não sabe em quem votou nas

últimas eleições”. São clichês que aparecem em diversos discursos e que são sutilmente e

perversamente sugeridos como verdades quase inquestionáveis a respeito da nossa

identidade nacional. Creio que a finalidade de lutar por uma educação de qualidade muito

nos interessa nas aulas de literatura, principalmente quando pensamos nas escolas públicas.

Quando a memória é a voz, quando a memória é guardiã da força de todo um

povo, ela se faz ouvida. Quantas vozes emergem dos textos literários? Quantas vozes podem

emergir das nossas próprias narrativas? Um oceano de vozes, um oceano de significações. O

oceano traz nas profundezas de suas águas, a voz interior, as vozes dos interiores, das grutas

internas, dos grotões, da narrativa feita de “emoção”, palavra que, etimologicamente,

significa “movimento, comoção, ato de mover”. A narrativa é movimento e é filha da

emoção.

A voz do povo também é a voz da identidade nacional. Há um universo de histórias

individuais que se multiplicam e se cruzam na formação de um contexto memorialístico

coletivo; na formação de um uma tribo, de uma cidade, de um país. E nesse movimento de

novelo surge a nossa história que em algum tempo-espaço se encontrará com a história de

outra pessoa que nem imaginávamos conhecer e que de repente invade e cruza com a nossa

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vida com todas as suas sensações, reminiscências e vozes; são movimentos e junções

indissociáveis de fios e tecidos. De onde eles vêm? Pra onde vão? Podemos não saber, mas

o certo é que estamos, nós, humanos, na mesma saga, no mesmo novelo.

Na obra literária de João Ubaldo Ribeiro, Viva o Povo brasileiro, encontramos a

alegoria do novelo. É nesse movimento que o autor nos leva a conhecer uma saga de

fundação orquestrada por personagens como Dadinha, Júlio Dandão, Maria da Fé, Patrício

Macário, Nego Leléu e Amleto Ferreita, estes que se encarregam de dar voz e ritmo a

narrativa das palavras secretas e sagradas, a narrativa de um percurso conflituoso que aponta

para o próprio percurso do povo brasileiro, para a história mítica do povo brasileiro.

A obra de João Ubaldo Ribeiro celebra as tradições e as raízes populares através de

uma proposital inclinação neobarroca. Fazendo uma imersão na narrativa mítica da cultura

brasileira, que une ficção e história, Viva o Povo Brasileiro traz a voz mítica dos orixás, a

voz dos rituais, dos griots. Vozes que tentaram por meio de força e tortura suprimir nas

gargantas, nas senzalas, nas calçadas... E por meio de palavras simbólicas que traduzem a

expressão e a função gregária da cultura oral revela a voz da resistência à aculturação, de

todo um povo que faz da sabedoria popular um outro contexto de aprendizagem. E é através

das “palavras secretas”, trazidas na narrativa pela voz do negro Júlio Dandão, personagem

de Viva o Povo, que podemos refletir sobre essa sabedoria, esse tipo de conhecimento que

não estando completo não se fecha nunca.

Estes segredos_ disse sem tirar a mão da tampa_ são parte de um grande conhecimento, conhecimento este que ainda não está completo, mesmo porque nenhum conhecimento fica completo nunca, faz parte dele que sempre se queira que ele fique completo. E faz parte dele também por ser segredo e somente para certas pessoas, que cada um que saiba dele trabalhe para que ele fique completo. Se todos trabalharem, geração por geração, este é o conhecimento que vai vencer. (p.211)

E ainda inspirado na revitalização da estética barroca, João Ubaldo critica, por

meio de paródias e situações anedóticas, os excessos, as hipérboles e a verborragia das

palavras que ajudaram a forjar na história da cultura brasileira o discurso da auditividade,

conceito usado por Luíz Costa Lima para definir a cultura auditiva, aquela que nos faz

contar e reviver os efeitos persuasivos de um orador dentro da cultura escrita. Para Costa

Lima, na cultura auditiva, a dominância oral significa que as escolhas das palavras e a

composição das frases visam a suscitar um efeito de impacto sobre o receptor, sem que este

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se confunda com uma recepção propriamente intelectual. (1981, p. 16) Assim Costa Lima

distingue a auditividade da oralidade provinda da cultura oral. Na história da cultura

brasileira fortemente marcada pelo analfabetismo, segundo Antônio Cândido (1985, p.78),

para que fosse criado um público que se interessasse pela literatura foi preciso deixar a

cargo dos oradores, pelos vieses de uma apurada eloquência, o “florear” das palavras, o

excesso de adornos, os ornamentos, os rococós que não necessariamente precisavam criar

substâncias interpretativas. Surge daí o que Costa Lima definiu como persuasão sedutora da

cultura auditiva. Para Costa Lima, trata-se da “persuasão sem o entendimento”, pois na

nossa cultura auditiva:

O efeito de impacto produzido consistia em impressionar o auditório, em esmagar a sua capacidade dialogal, em deixá-lo pasmo e boquiaberto ante a perícia verbal e a teatralização gesticulatória, maneiras de rapidamente subjugar o auditório. (...) Ela se diferencia dos discursos persuasivos das culturas orais porquanto estes visam à integração dos participantes. (p.16)

Na obra de João Ubaldo Ribeiro, o fato histórico aparece numa perspectiva que

privilegia o ficcional, já que nela a História se transforma em “estórias”. O que nos serviu de

inspiração já que tratamos a memória como possibilidade de ficção e isso com a intenção de

buscar nas raízes da cultura popular brasileira a sua origem mítica a fim de pensá-la como

fundadora de uma legítima identidade nacional, brasileira, tomando como reflexão as

expressões culturais; mas não somente a partir do preconceito e de suas raízes etnológicas,

mas tentando mergulhar nas “alminhas” que de uma forma ou de outra vão estar presentes

em todas as gerações da cultura brasileira. Almas brasileirinhas, tão pequetitinhas (...)

Alminhas que tinham aprendido tão pouco e queriam mais, como é da natureza das

alminhas (...) (p.673)

Viva o Povo Brasileiro traz como narrativa o relato das minorias através da relação

entre o Brasil dos fatos de sua fundação e o Brasil da ficção numa saga histórica e heróica. E

ao pensar sobre a memória e a cultura popular, sobre a nossa cultura auditiva tão presente

no discurso oral da nossa história “oficiosa”, é imprescindível trazer à tona, a complexidade

que fundamenta a nossa noção de “identidade” brasileira. Dentro dessa perspectiva, vale a

pena ressaltar alguns aspectos, como os evolucionistas e os ligados à teoria da eugenia que

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dominaram o século XIX e que tanto corroboraram para o pensamento dominante do

“embranquecimento” . Para Renato Ortiz45:

O mestiço, enquanto produto do cruzamento entre raças desiguais, encerra, para os autores da época os defeitos e taras transmitidos pela herança biológica. A apatia, a imprevidência, o desequilíbrio moral, e intelectual, a inconsistência, seriam dessa forma qualidades naturais do elemento brasileiro. A mestiçagem simbólica traduz, assim, a realidade inferiorizada do elemento mestiço concreto. Dentro dessa perspectiva a miscigenação moral, intelectual e racial do povo brasileiro só pode existir enquanto possibilidade. O ideal nacional é na verdade uma utopia a ser realizada no futuro ou seja, no processo de branqueamento da sociedade brasileira. É na cadeia da evolução social que poderão ser eliminados os estigmas das ‘raças inferiores’, o que politicamente coloca a construção de um Estado nacional como meta e não como realidade presente (1994, p. 21).

Quando olhamos “a diferença” entre os homens como fator excludente, como

deficiência – carregamos neste ato a carga explícita do pré-conceito, resgatando assim a voz

da dominação, da opressão que segrega e aparta. Se pensarmos numa sala de aula de uma

escola pública com seus 30, 40 ou 50 alunos, nela reencontraremos as diferentes vozes do

Brasil e reencontraremos as “alminhas” da educação brasileira. E uma será diferente da

outra. Porque é próprio das alminhas que elas tenham vozes diferentes. Entrelaçando as

histórias (e as alminhas) dos nossos alunos com as nossas histórias, voltaremos a viver o

tempo da água viva da memória coletiva, da memória social e polifônica, construída em

sentidos e palavras que fazem parte da alma humana e brasileira. E é da fonte dessa grande

alma que traremos à tona questões da nossa nacionalidade, da nossa cultura e da nossa

identidade nacional. E o passado que sai do estático da moldura para a linguagem ativa das

vozes coletivas darão novo sentido e significado para o presente da nossa história.

O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa.. Alguém na terra está à nossa espera. (BENJAMIN, 1994, 223)

45 ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

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Emanuel Reis, professor entrevistado, arte-educador e co-autor nesta vereda, nos

traz em forma de reminiscência o que é bem da sabedoria das “alminhas brasileiras”:

...quando eu era criança, pode parecer crueldade, se bem que toda criança

tem seu tantinho de crueldade, eu gostava mesmo era de puxar o rabo da lagartixa...

Ah, era uma sandice, dizia Socorro. Eu não. Eu era um menino daqueles que queria

ver a lagartixa de se recriando... Ela tinha medo? Não, ela tinha uma força que pra

mim era algo assustadoramente belo. Ela até deixava para trás uma parte do corpo

pra poder seguir em frente. Isso eu gostava de ver. (...) E se a gente fizesse isso com

a educação no nosso Estado? Se perdêssemos o medo diante dos poderosos, diante

das dinastias que ainda hoje imperam por aqui, deixando ser cortado o que já não

nos serve? E se de nós, nós que não temos sobrenome, que não temos eira nem beira,

nós que ficamos à margem... E se de nós nascesse outra carne¿ Não seria bonito de

ver?

Emanuel numa evocação de memória nos desvela um instinto que nos fala à

sobrevivência dos seres. Resiliência46, resistência, superação de lugar e da profecia, negação

do determinismo, apropriação da própria narrativa. Descendente de índios, brancos e

brancos, o miscigenado Emanuel, o caboclo que não é “caboco”, o maranhense Emanuel

conheceu de perto os mapas da miséria e das palafitas. Conheceu de perto os índices de

pobreza, de analfabetismo e de mortalidade infantil. Só ainda não conheceu de perto a

revolução social que o Maranhão e todo Brasil ainda necessitam viver. Em um dos Sermões

do Padre Antônio Vieira, datado do século XVII, o Maranhão já aparece com as feições

que o retratamos nos dias atuais:

O Domingo das verdades. No Maranhão a corte da mentira. O galante apólogo do diabo. O M de Maranhão. No Maranhão até o sol e os céus mentem.

Si dixero quia non scio eum, ero similis vobis, mendax.47

46 Termo da Física que significa a capacidade que determinados corpos têm de resistirem aos choques, retornando depois ao estado natural. Toma-se o conceito de empréstimo para designar a capacidade que determinadas pessoas têm de enfrentarem obstáculos, sofrimentos, perdas, os superando. Mas diferente dos corpos da Física, depois dos choques, essas pessoas, para o espanto, continuam crescendo, expandindo.

47 “Se disser que não o conheço, serei como vós, mentiroso.” (João, capítulo 8, versículo 55)

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A este Evangelho do Domingo Quinto da Quaresma chamais comumente o domingo das verdades. Para mim todos os domingos têm este sobrenome, porque em todos prego verdades, e muito claras, como tendes visto. Por me não sair, contudo, do que hoje todos esperam, estive considerando comigo que verdades vos diria, e, segundo as notícias que vou tendo desta nossa terra, resolvi-me a vos dizer uma só verdade. Mas que verdade será esta? Não gastemos tempo. A verdade que vos digo é que no Maranhão não há verdade.

O Maranhão “da mentira” que Padre Antônio Vieira48 se refere é o do atraso social, um dos

mais atrozes que os nossos olhos humanos podem ver e testemunhar. Do atraso econômico, do

anacronismo político que ajudou a multiplicar os corruptos e os “ismos”: coronelismo, nepotismo,

clientelismo, fisiologismo, termos e práticas que são cotidianamente re-visitados e sugeridos ao povo

como “lugares comuns”. E mais uma vez Padre Antonio Vieira nos oferece através de suas palavras

a inquietação e o conflito de se estar paradoxalmente em dois lugares. Neste caso, política e poética

convergem e se fazem arte literária. Vejamos neste trecho dos Sermões49 e na elegante marca da

erudição tão peculiar a Padre Antônio Vieira, o caráter recoletivo de suas imagens, próprio da

narrativa barroca:

Cuidavam e diziam os sábios antigos, que em diferentes ilhas do mundo reinavam diferentes deidades: que em Creta reinava Júpiter, que em Delos reinava Apolo, que em Samos reinava Juno, que em Chipre reinava Vênus, e assim de outras. Se o império da mentira não fora tão universal no mundo, pudera-se suspeitar que nesta nossa ilha tinha a sua corte a mentira. Todas as terras, assim como tem particulares estrelas, que naturalmente predominam sobre elas, assim padecem também diferentes vícios, a que geralmente são sujeitas. Fingiram a este propósito os alemães uma galante fábula. Dizem que quando o diabo caiu do céu, que no ar se fez em pedaços, e que estes pedaços se espalharam em diversas províncias da Europa, onde ficaram os vícios que nelas reinam. Dizem que a cabeça do diabo caiu em Espanha, e que por isso somos furiosos, altivos, e com arrogância graves. Dizem que o peito caiu em Itália, e que daqui lhes veio serem fabricadores de máquinas, não se darem a entender, e trazerem o coração sempre coberto. Dizem que o ventre caiu em Alemanha, e que esta é a causa de serem inclinados à gula, e gastarem mais que os outros com a mesa e com a taça. Dizem que os pés caíram em França, e que daqui nasce serem pouco sossegados, apressados no andar, e amigos de bailes. Dizem que os braços com as mãos e unhas crescidas, um caiu na Holanda, outro em Argel, e que daí lhes veio - ou nos veio - o serem corsários. Esta é a substância do apólogo, nem mal formado, nem mal repartido, porque, ainda que a aplicação dos vícios totalmente não seja verdadeira, tem contudo a semelhança de verdade, que basta para dar sal à sátira. E, suposto que à Espanha lhe coube a cabeça, cuido eu que a parte dela que nos toca ao nosso

48 VIEIRA, Padre Antônio. Sermões da Quinta Dominga da Quaresma. In.: Sermões Escolhidos, Vol. 1. São Paulo: Edameris, 1965. Igreja Maior da cidade de São Luís no Maranhão, 1654.49 Ibidem.

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Portugal é a língua, ao menos assim o entendem as nações estrangeiras que de mais perto nos tratam. Os vícios da língua são tantos, que fez Drexélio um abecedário inteiro e muito copioso deles. E se as letras deste abecedário se repartissem pelos estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida, que o M. M - Maranhão, M - murmurar, M - motejar, M - maldizer, M - malsinar, M - mexericar, e, sobretudo, M - mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente. Novelas e novelos, são as duas moedas correntes desta terra, mas têm uma diferença, que as novelas armam-se sobre nada, e os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa. (grifo meu)

Paradoxalmente o Maranhão é “isto e aquilo”, para usar uma expressão em largo uso

referida ao poema de Cecília Meireles e que, sem dúvida, nos ajuda a compreender o que é

próprio do terreno das contradições humanas. E neste caso especifico, tomando como

referência a constatação dos graves problemas econômicos e sociais que fazem parte do

cotidiano de muitas das cidades nordestinas e a tamanha profundidade desse quadro, não

podemos e não devemos reduzi-los ou situá-los no campo da analise das contradições numa

dimensão que, vista de forma apressada, poderá criar a idéia de irreversibilidade. A

paisagem do Maranhão é, sobretudo uma paisagem histórica e social e suas maiores

contradições são mazelas que podem e devem ser evitadas. E as políticas públicas precisam

ser exercidas nos mais diversos campos de atuação para evitar a atual disparidade social. E

nas escolas públicas elas podem ser feitas a partir de medidas também culturais, poéticas e

lúdicas que usem o poder transformador da arte como agente de transformação e de sensibilização.

E para isso não há nenhuma necessidade de se “gigolar a fome”50, mas sim de se

incomodar com a fome, não aceitando a miséria humana. Não há política compensatória,

nenhuma ação assistencialista ou paternalista que substitua a potencialidade que há num

trabalho lento de reconstituição de uma identidade local a partir das referências sócio-

culturais, da cultura que cria movimentos, que mobiliza para a crítica e para a sensibilidade.

Num convite a uma viagem estética pelas palafitas maranhenses, propomos entre as

faculdades que transcendem, uma de fundamental importância: “olhar”, olhar horizontes

para reconhecer nas narrativas submersas a textura líquida que é feita de um encontro de

águas e que nos propicia um “mar de histórias” ou Kathâsaritsâgara51. É o “mar de

50 Expressão usada por Sérgio Porto ou Stanislaw Ponte Preta.

51 Expressão indiana e também nome dado por Aurélio Buarque de Holanda e Paulo Rónai à Antologia, organizada por eles, que reúne contos do mundo inteiro.

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narrativas” que nos faz aprender do mar de histórias do Maranhão, narrativas do mundo

também – com as margens e os volumes de água que nós carregamos dentro de nós.

Palafitas maranhenses.

A imagem 152 retrata o Maranhão que está muito próximo ao do M-Mentir descrito

nos Sermões por Padre Antônio Vieira e as palafitas da capital dão passagem às casas e aos

novos prédios de luxo da cidade partida. Nesse caminho não será difícil encontrar crianças

pedintes, catando migalhas, expostas às piores provações possíveis. Entre elas, num

crescendo, o trabalho informal e a prostituição infantil. Pensando nisso, a fotografia foi

tirada a fim de registrar uma cidade aparentemente estática para justificar-lhe um

determinado estado de má conservação naquilo que se repete reforçando os lugares do

senhor e do escravo, da casa grande e senzala, da litorânea e das palafitas. Isso nos leva de

volta a um tema que foi pensado a partir de uma reflexão ético-política: sem o movimento

de sua gente, sem o movimento de suas águas, a cidade é somente no espelhado, naquilo que

52 Acervo pessoal. Material empírico da pesquisa.

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é de uma indesejada permanência, a triste exposição dos sintomas de uma doença

degenerativa causada pela corrupção.

O contingente negro é um dos mais expressivos na população maranhense atingindo cerca de 70/% dos habitantes. Retirado do continente africano e trazido para Brasil para trabalhar como escravo, em toda parte o elemento negro foi colocado no nível mais baixo da escala social, considerado como coisa e não como ser humano criador de cultura. As teorias racistas que vigoraram em toda parte no pensamento científico durante mais de cem anos a partir de meados do século XIX contribuíram para piorar esta situação e os preconceitos contra o negro. Só aos poucos, a partir da terceira década do século XX, este panorama começou a se alterar e começaram a surgiram estudiosos interessados na contribuição cultural do negro. (FERRETI, 2003, p.1)

Diz a nossa constituição brasileira que “todos os homens nascem iguais.” O que seria

dizer que todos partem do mesmo lugar, do mesmo ponto de partida. E todas as mazelas

humanas, sociais e econômicas continuam a fazer parte dos frios mapas estatísticos –

perfazendo a acomodação indiferente das porcentagens. Basta saber que mais de 50% da

população brasileira é composta por pobres e miseráveis. E para justificar nossa negação e

mais uma vez a nossa “cegueira branca”, nos ancoramos na Constituição (1989) ao dizer que

“todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Parece que para nós ainda

prevalece aquela alegoria ou mudança de escrita que “os porcos” fazem na porta do celeiro

da fazenda dos bichos:

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais que outros.”53

De acordo com o artigo Fato e Mito: descobrindo um problema racial no Brasil de

Thomas E. Skidmore, apesar da ausência de uma nítida linha de cor, a sociedade brasileira

baseava-se numa crença explícita na superioridade branca, embora não na supremacia

branca. Ainda segundo este artigo, nós somos herdeiros do racismo científico que se

dedicou a provar, com evidência física, histórica, biológica ou comportamental, a

superioridade dos brancos. Ao responder o Censo, muitos negros e mulatos ainda se

identificam como pardos e os “morenos” ou “não-brancos” como brancos.

53 Um dos sete mandamentos (dos modificados) da “Revolução dos bichos”, romance de George Orwell, 1945.

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Entre um negro puro e um mulato muito claro há inúmeras gradações, refletidas na quantidade de rótulos relativos à cor da pele(muitos pejorativos – como preto) em uso corrente no Brasil. (...) Deve ser notado que o termo “negro” é usado por militantes afro-brasileiros em sua campanha para convencer todos os não-brancos brasileiros, sobretudo os mulatos, a assumirem sua cor e não se renderem à crença _ difundida pela ideologia do branqueamento _ de que um não-branco mais claro pode aspirar a maior mobilidade social. (Cad.Pesq. n.79, 1991, p. 6)

Darcy Ribeiro comenta sobre “os culpados da miséria” que o negro e o mulato (que

saltou para o lado negro de sua natureza) assumiram sua condição de negro graças ao efeito

do sucesso do negro americano, que foi tido pelos brasileiros como uma vitória da raça.

Para Darcy Ribeiro54:

(...) essa passagem , de fato, era muito difícil, em razão da imensa massa negra, afundada na miséria mais atroz, com que não se podia confundir. Massa que compõe a imagem popular do negro, cuja condição é absolutamente indesejável, porque sobre ela recai com toda dureza, o pauperismo, as enfermidades, a criminalidade e a violência. Isso ocorre numa sociedade doentia, de consciência deformada, em que o negro e o pobre são considerados culpados de sua penúria.

Na tragédia de Sófocles, a conhecida frase: “Decifra-me ou devoro-te” faz parte do

enigma da esfinge a ser decifrado por Édipo. Atormentado por sua busca, Édipo pede então

ajuda ao sábio e cego Tirésias, que o adverte: Os dois olhos que tens pouco adiantam, pois

não vês a miséria que te cerca (...)55

Sem uma visão política do que nos cerca, de pouco adiantarão nossos dois olhos.

Sem qualquer caráter daquilo que é o positivo da permanência, sem o compromisso de criar

vínculos com o que entendemos de memória afetiva e social, de pouco adiantarão os nossos

dois olhos.

Talvez fique como desafio para as gerações vindouras desvendar o enigma dessa

nova esfinge: Decifra-me? Devoro-te? E se a resposta ainda estiver na nossa narrativa

“humana”, sinal que teremos resistido, escapando à total fragmentação e à indiferença. Sinal

que as potencialidades da cultura, de uma linguagem criativa do corpo e da alma com todas

as suas potencialidades e possibilidades de significação terão subvertido a lógica do capital e

54 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p.217-224.55 Ver SOFOCLES, Édipo Rei. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2002.

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do consumo exacerbado para a formação da subjetividade, e não “sujeição” da

subjetividade. Sinal que teremos usado nossos dois olhos, como nos adverte o sábio cego

Tirésias, para olhar as misérias que nos cercam. Para olhar também as belezas da colheita

de um presente que se quer um salto, uma entrega e uma invenção de futuro.

E retornamos como num espiral, ao que disse Cecília Meirelles num dos seus mais

conhecidos poemas: Quem sobe nos ares não fica no chão\ Quem fica no chão não sobe nos

ares. \É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares! (...)

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... Ao pensar sobre a desigualdade social e a miséria que

assolam o Maranhão somos inundados por imagens e re-sentimentos e não existe aí uma

fragmentação que possa ser positiva. Se este pedaço não nos serve então ficamos com o outro? Com

o Maranhão da cultura e da arte popular? Esses dois lugares podem co-existi? A potência de um

poderá se tornar a libertação do outro? Como poderíamos trabalhar essas questões nas escolas

públicas maranhenses? Por quais vieses?

Na arte, na literatura, no folclore são as tantas as potencialidades de aprendizagem

com os quais poderemos chegar a tantos objetivos. Mas se o ambiente da sala de aula não

for ou não se tornar um ambiente facilitador, todo um mar de narrativas será engolido e

teremos castrado como a um deus na sua vontade criativa, a sua fertilidade, a sua

fecundidade. Por isso precisamos pensar – para as aulas de literatura - numa ambiência não-

formal. Precisamos de uma ambiência onde será possível olhar a arte docente por dentro,

compreendendo – aí sim – a arte pela arte - para que todos, professores e alunos, possam

encontrar e reconhecer democraticamente e poeticamente nos seus próprios passos, os seus

próprios bosques e as suas próprias florestas.

2.1 No bosque da Literatura:

A cultura pelos tecidos da linguagem

“Pukapuka é um grupo de três ilhotas de coral no Oceano Pacífico, onde a base da alimentação é o cultivo do taro. Como a agricultura não pode desenvolver-se nas rochas de coral, a única terra onde o taro pode crescer teve que ser preparada pelos habitantes das ilhas. Os primeiros nativos, que ali se instalaram, cavaram poços, nos quais puseram folhas de coqueiro que apodreceram na água vinda do mar; nessa lama espessa o taro crescia muito bem. Os novos povoadores ajudaram a alargar os poços e hoje, as enormes escavações

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fornecem o solo necessário para o cultivo da planta que alimenta os vários grupos existentes em Pukapuka.”

(Herskovits, Melvilli J. Antropologia Cultural).

Escolhemos um texto da antropologia cultural como introdução à segunda parte deste

capítulo, já que sua questão central se fundamenta na idéia de cultura do povo. Pukapuka,

esse nome de conto e imaginário, é um conjunto de ilhas no Oceano Pacifico, lugar onde

homens, geração a geração, foram modificando a natureza através da cultura, a cultura que

estava presente nas formas de aprendizagens e que foi criando a partir delas uma tradição,

uma tradição que pertence aos seus habitantes. Talvez isto nos remeta ao conceito mais

abrangente de cultura e do qual também nos aproximamos e que busca entender a cultura,

em oposição à idéia de natureza, como o conjunto de hábitos, fazeres, linguagens, todo um

construído que forma o “ethos” coletivo, “um jeito de ser” que particulariza e distingue as

peculiaridades, as características de uma coletividade, de um povo. Partindo desse

pressuposto, entendemos a definição de cultura a partir de uma perspectiva antropológica, o

que nos traz à lembrança o título do livro do professor Roque Laraia: “Cultura – um

conceito antropológico”. E sobre o aspecto da cultura que mais nos interessa, nos explica

Laraia:

O homem é o resultado do meio cultural em que foi socializado. Ele é um herdeiro de um longo processo acumulativo, que reflete o conhecimento e a experiência adquiridas pelas numerosas gerações que o antecederam. A manipulação adequada e criativa desse patrimônio cultural permite as inovações e as invenções. Estas não são, pois, o produto da ação isolada de um gênio, mas o resultado do esforço de toda uma comunidade.

E nessa aproximação com o campo da antropologia, dialogando com Laraia e com

Roberto DaMatta, entendemos - pelo prisma do conhecimento cumulativo, que a cultura é

que define o indivíduo a partir de um contexto social no qual a linguagem constitui o

pensamento. A linguagem como construído social que passa da forma primitiva e

rudimentar por processos complexos de mudança até chegar ao nosso contexto atual.

Entendendo que é na relação com o outro e com o mundo que ela se desenvolverá enquanto

cultura. O homem então não poderá ser visto, segundo DaMatta, como um mero copiador da

natureza ou inventor de objetos. Mais que isso, ele é “capaz de pensar o seu próprio

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pensamento” (DaMatta, 1981, p.32). E esse povoamento de idéias se dará através de

operações intelectuais: raciocinar, aprender julgar; em que uma ação leva a outra numa

ordem de complexidade. Para DaMatta, uma das principais características da cultura reside

numa “tradição viva, conscientemente elaborada que passe de geração para geração, que

permita individualizar ou tornar singular e única uma dada comunidade relativamente às

outras.”56

Por isso voltamos à Pukapuka para aprender com seus habitantes que é preciso

vencer as limitações do solo, aprendendo do solo, compreendendo o solo, modificando o

solo. A esse complexo processo de “transformações”, a esse sistema de atitude e modos de

agir, de costumes e instruções de um povo, é que chamamos “cultura”. E é a cultura, como

já disse Laraia, que vai deixar à posteridade as nossas mais diversas heranças. E ratificando

a afirmação de DaMatta, “pode haver cultura sem sociedade, embora não possa existir uma

sociedade sem cultura.”57 Nós, humanos, temos tradição, temos herança cultural e memória

dessa herança. E falando dessa herança que diz respeito ao nosso “jeito de ser”, trago o

poema de Mário de Andrade, mestre na arte de compreender a nossa cultura brasileira e o

interlocutor com o qual não cansamos de dialogar.

(...) 58

Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...Silêncio! O imperador medita os seus versinhos.Os Caramurus conspiram à sombra das mangueiras ovais.Só o murmurejo dos cre'm-deus-padre irmanava os homens de meu país...Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... (...) Brasil...Mastigando na gostosura quente do amendoim...Falado numa língua curumimDe palavras incertas num remelexo melado melancólico...Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...Molham meus beiços que dão beijos alastrados

56 DAMATTA, Roberto. Relativizando – Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Racco, 1981.57 Ibidem.58 “O Poeta come Amendoim” In: Poesias Completas, São Paulo, Martins Editora, 1955. p. 157-158. (Anexos)

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E depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque sejam minha pátria,Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu braço aventuroso,O gosto dos meus descansos,O balanço das minhas cantigas amores e danças.Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento,Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

No campo da literatura, foi Mário de Andrade quem nos revelou uma nova

perspectiva de olhar para a cultura brasileira. Não se tratava mais de tomar o Brasil como

tema, visto ou contado de “fora para dentro”, como já haviam feito gerações anteriores; mas

tratava-se de “viver” o Brasil como linguagem e pensamento, como comportamento, como

hábito, como existência interna. Entretanto, europizados culturalmente, ainda tínhamos de

passar por um processo de reconquista da natureza íntima. E esse processo, para Mário de

Andrade, precisava ser mais espontâneo do que forçado, mais instintivo do que consciente;

deveria se constituir antes no nosso modo de ser, no nosso modo de deixar-se ser, do que no

buscar ser. Afinal, o ser brasileiro deveria estar dentro de nós, de forma genuína e autêntica.

Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir. Não se esforça o

poeta para alcançar o jeito de ser brasileiro, mediante deliberação consciente; dele quer

impregnar-se inconscientemente, para o que lhe bastará permitir que – “o seu jeito” – se lhe

implante no ser, se integrando, se definindo, enfim existindo por si mesmo. Nesse poema de

Mário de Andrade se condensa a concepção que então se fará do brasileiro: o tropicalismo, a

mestiçagem, a pachorra, a despreocupação, a imprevidência, o sentimentalismo fácil, a

mixórdia social, o compadrio político, o progresso mais por fatalidade do que pela ação dos

homens, o sincretismo religioso, a incerteza da língua, nesse conjunto vê-se que as

faculdades afetivas predominam sobre as intelectivas e volitivas. Na própria tessitura do

poema essa concepção primitivista se denuncia – o ritmo bambo, a linguagem apagada, o

raciocínio rudimentar. E por todo poema paira um tom joco-sério, um pouco porque o

modernismo julgava a joco-seriedade inerente ao caráter do brasileiro, outro porque o

movimento modernista, embora de origem culta, se fazia intencionalmente primitivo e não

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poderia, por isso, deixar de matizar de alguma ironia, proveniente de uma certa consciência,

a contradição que o habitava.

Mário de Andrade defendeu a necessidade de um conhecimento profundo da língua

portuguesa-brasileira, esta que lhe serviu bem como instrumento de expressão. Para ele só

tinha o direito de errar quem conhecesse o certo. Só então o erro deixaria de o ser, para se

tornar um ir além das convenções, tornadas então inúteis pelas exigências das novas

expressões. E foi Mário de Andrade que nos introduziu, através de Macunaíma, numa

“sonoridade mais familiar, num ritmo mais dengoso e balançado, que é bem o jeito desta

nossa raça misturada do índio deslizante e do negro dançador.”

E Macunaíma foi a obra literária de Mário de Andrade que, concebido dentro do

espírito modernista, trouxe o primitivismo, um primitivismo lúcido. Macunaíma revela as

características do povo brasileiro e traz à tona, de cambulhada, o que se pode considerar o

resíduo subliminar da nossa cultura: parlendas (palavreado, discurso), ditos, refrão,

evocações históricas e lendárias. Em Macunaíma, encontramos referências à modinha de

Catulo da paixão cearense, lá está “Zé Paquete” (p.154) “dandar para ganhar vintém” (p.

11), “Europa, França, e Bahia” (p. 95), “gente de Taubaté” (p. 167), “Chico vir de baixo”

(p. 168). E encontramos as frases e expressões inventadas por Macunaíma: “Tá solto”

(p.42), expressão “vá tomar banho” (p. 92); do gesto da banana; (p. 54), do jogo de truque

(p. 58); do futebol (p. 66), enquanto o Mano Maanape do bicho do café e o mano Jiguê da

largato-rosada. E em suas andanças encontra figuras históricas ou lendárias, o Bacharel em

Cananéia (p. 41), Maria Pereira (p.145), Bartolomeu de Gusmão (p.146), Anchieta (p.168),

João Ramalho (p.206), Jorge Velho e Zumbi (p.241), ainda encontra o rastro do Sumé

(p.50).

E em Macunaíma há assimilação da mentalidade indígena como forma de

aproximação da nossa cultura brasileira. Em todo o decorrer do livro existe uma tentativa de

assimilação da mentalidade indígena primitiva, através da qual se vê o mundo. Ocorre uma

inteira identificação entre autor e o tema; a concepção primitiva constitui o pano de fundo,

dentro da qual evoluem seres e coisas. Perceptível em toda a obra; salta à vista no capítulo

“macumba”, do qual trago um trecho:

Depois de bebida, entre bebidas, seguiram as rezas de invocação. Todos estavam inquietos ardentes desejando que um santo

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viesse na macumba daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não vinha por mais que os outros pedissem porque a macumba da tia Ciata não era que-nem essas macumbas falas não, em quem sempre o pai de terreiro fingia vir xangô ochosse qualquer, pra contentar os macumbeiros. Era uma macumba séria e quando santo aparecia, aparecia de deveras sem nenhuma falsidade. (p 80)

E com Macunaíma vem à tona todo o inconsciente nacional e todo um substrato

indígena, liberto pela supressão da censura, um substrato que, por influência de aculturação,

recalcamos, recalcando também o nosso primitivismo para contrafazê-lo numa cultura

positiva, com seu novo recorde e seu novo verniz.

E não de forma manifesta, mas sim de forma latente, através de figuras, fatos,

alusões e principalmente, imagens se pode chegar à síntese e ao arremate de Macunaíma,

nosso herói brasileiro sem nenhum caráter, um símbolo de libertação do inconsciente

nacional, a torrente por onde jorraram todos os resíduos nacionais. Macunaíma, camaleão

que muda segundo muda a cor, xexéu cuja garganta se afina a voz de todos os pássaros-

chuchu, que toma o gosto de todos os molhos e por cujas mil vezes metamorfoses - para

dizer com o autor – passa, perpassa e repassa, modifica-se, evolui, varia e ondula, toda a

gama de nosso primarismo, exacerbação sexual e madraçaria. Numa palavra de semi-

cultura, de que é amostra a carta para as Icamiabas, onde o confucionismo campeia, impera

o convencionalismo e se trai a ignorância pretensiosa cuja crosta, de quando em quando, a

libido fura, através de lapsos licenciosos. Macunaíma traz à consciência toda a escumalha do

ID (a escória social, a ralé, o substrato instintivo da psique) e a sublimação estaria na

consumação artística da própria obra literária, espelho e catarse da nossa cultura brasileira.

Primitivo na Amazônia, civilizado em São Paulo, pelo menos o verniz da civilização;

ali se socorre de poderes mágicos para vencer obstáculos e se utiliza “burguesmente” do

dinheiro. Avesso ao esforço, apela para o jogo do bicho; inimigo do trabalho; prefere

depender da liberdade das icamiabas; tem recursos, mas pleiteia viagem à Europa à custa do

governo; fala uma língua e escreve noutra; ostenta erudição, mas não cria cultura; títere dos

sentimentos, não dirige a volição nem disciplina a inteligência; percebe as afecções, mas não

é capaz de raciocínios abstratos; vive da mão para a boca; não planta o carvalho, como

pregava Rui Barbosa, mas apenas couve; não distingue o bem do mal: preexiste a ambos;

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não se dissocia da natureza, não descobriu ainda a possibilidade do domínio sobre ela e , por

isso , não sente necessidade de suplantá-la. Infantil, anímico, amórfico.

- Ai, que preguiça...- murmurava volta e meia. E nesse “constante” está a falar

exatamente da ausência do constante. Representativo do brasileiro, é também univocamente

e exclusivamente ele mesmo, Macunaíma. Por isso, não pode ser tomado ao “pé da letra”,

mas transladamente. Nem é uma representação positiva ou negativa, é uma tentativa de

compreensão da nossa cultura, nessa busca vivida “como amor” de Mário, mas a qual

também não lhe faltou espírito de análise, pesquisa e rigor. Claro que, se perguntassem, bem

preferiria essa ponta de amor, comunhão do artista com o herói pelo riso.

2.2 A cultura popular como metáfora de uma memória

plural:

Pelas encantaria do Tambor de Crioula

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Tambor de Crioula do Maranhão: Acervo

A questão da cultura popular, e especificamente, da cultura popular medieval, foi

amplamente pesquisada e analisada por Mikhail Bakhtin, em seus trabalhos de critica

literária. O que resultou num extenso estudo sobre as obras do visionário e incompreendido

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gênio literário, François Rabelais (1480-90/1553), principal expoente, diga-se “póstumo”,

por definição de estilo e filiação, da estética folclórica, e diria também, da estética

“antropofágica”, dentro do que foi o painel literário da cultura francesa do Renascimento, no

século XVI. Sem dúvida, as obras literárias de maior relevância do escritor francês, também

cônego e médico, foram as sagas heróico-cômicas de Gargantua (1532) e seu filho

Pantagruel, dois gigantes de apetite voraz, dois glutões e beberrões. Numa mistura de

gêneros populares e num efeito estético que destaca o riso cômico popular, Rabelais, traz os

feitos de seus heróis-anti-heróis através de aventuras e peripécias narradas em tom cômico e

jocoso, este revelado pela narrativa de ações e hábitos toscos e antropofágicos com o uso de

palavrões, palavras de “baixo calão” e duplo sentido, junto ao relato hiperbólico de cenas

grotescas envolvendo as práticas populares e cotidianas, como as festas regadas a muita

comida, bebida e orgias sexuais. Uma narrativa comungada entre os símbolos litúrgicos do

“sagrado”, marca da religiosidade feudal da época, e as ações burlescas e os destronamentos

próprios do profano, próprios das festividades do carnaval e da carnavalização. Sobre

Rabelais, disse Bakhtin (1999):

Rabelais influiu poderosamente não só nos destinos da literatura e da língua literária francesas, mas também na literatura mundial (....). É também indubitável que foi o mais democrático dos modernos mestres da literatura. Para nós, entretanto, sua principal qualidade é de estar ligado mais profunda e estreitamente que os outros às fontes populares (...); essas fontes determinaram o conjunto de seu sistema de imagens, assim como sua concepção artística. (p.2)

Para Bakhtin foi o caráter popular levado à radicalização de todas as imagens de

Rabelais que conferiram a ele “a grandeza” de seu futuro. E esse caráter também explicaria

“o aspecto não-literário de Rabelais”, ou seja, sua resistência aos cânones e regras da arte

literária que vigoravam no século XVI. Bakhtin dá destaque à obra de Rabelais como a

maior representante da literatura cômica popular. E nesse ínterim, ressalta uma das suas

características fundamentais: o riso popular. (ibid.)

O mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época. Dentro da sua diversidade, essas formas e manifestações – as festas públicas carnavalescas, os ritos e cultos cômicos especiais, os bufões e tolos, gigantes, anões e monstros, palhaços de diversos estilos e categorias, a literatura paródica,

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vasta e multiforme, etc – possuem uma unidade de estilo e constituem partes e parcelas da cultura cômica popular, principalmente da cultura carnavalesca, uma e indivisível.

Segundo Bakhtin, os festejos do carnaval, com toda a sua comicidade, sempre

ocuparam lugar de significativa referência na vida do homem medieval.

Além dos carnavais propriamente ditos, que eram acompanhados de atos e procissões complicadas, celebravam-se a “festa dos tolos” (festa stultorum) e a “festa do asno”; existia também um “riso pascal” (risus paschalis) muito especial e livre, consagrado pela tradição. Além disso, quase todas as festas religiosas possuíam um aspecto cômico popular e público, consagrado também pela tradição. (...)

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação à formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão de mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, (...) um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em ocasiões determinadas. (ibidem)

Escolhemos essa aproximação com a teoria de Bakhtin, por ela conter uma definição

mais abrangente, no campo específico da crítica literária, para o papel da cultura popular no

tocante ao discurso literário – este discurso que teve como elementos de ênfase a narrativa

das festividades, das manifestações populares e públicas, satíricas e carnavalescas da época

renascentista. Para Bakhtin esta fase marcou o ápice da presença da carnavalização nos

textos literários. O que nos interessa tanto pelos aspectos arcaicos do gênero revitalizado nas

expressões literárias e populares quanto pelo aspecto da tradição que atravessa os períodos

históricos através das imagens, das alegorias, dos ritos, dos festejos e da prática da oralidade

que se manifestam na literatura e na memória coletiva e social que guardamos da literatura.

Até porque, como nos explica Bakhtin, o carnaval era a segunda vida do povo, era a sua vida

festiva e era a festa a característica principal de todos os ritos e espetáculos da cultura

popular na Idade Média. Dessa forma, as festividades e o carnaval se tornaram uma fonte de

sentidos e significados capazes de mobilizar ações e integrar os participantes, criando

assim um modus viventi. E mesmo depois de seu inevitável declínio, as marcas, os signos

desta tradição permaneceram não como fósseis da Idade Média, mas como elemento

substantivo na gênese que constituiu universalmente a cultura popular. Evidentemente, o

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carnaval, no que concerne ao folclore e suas expressões, não se extinguiu como fonte, mas

sim se tornou ele também literatura, reinventado pelas outras e novas estruturas de gênero.

E esse processo de “carnavalização da literatura”, presente em muitas das obras e memórias

trazidas nesta tese, foi base da reflexão de Bakhtin, no livro intitulado Problemas da Poética

de Dostoiésvski (1997). Segundo Bakhtin:

O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (com toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca uma (porém complexa), que lhe penetra todas as formas. Tal linguagem não pode ser traduzida com o menor grau de plenitude e adequação para a linguagem verbal, especialmente para a linguagem dos conceitos abstratos; no entanto é suscetível de certa transposição para a linguagem cognata, por caráter concretamente sensorial, das imagens artísticas, ou seja, para a linguagem da literatura. É essa transposição do carnaval para a linguagem da literatura que chamamos carnavalização da literatura. (p.105) (grifo meu)

No Brasil, a carnavalização da literatura é uma das fontes a que recorreram

muitos dos nossos autores literários. E tratando a questão da escolarização da literatura

como sustentáculo da nossa pesquisa, entendendo-a como questão nodal de um fazer

pedagógico que tem na literatura sua centralidade, muito nos interessa “as potencialidades”

que existem numa prática pedagógica que propicie ambiências de fato com as experiências

que inter-relacionem literatura e folclore na escola. Para tanto, escolhemos como recorte da

pesquisa o Tambor de Crioula, que faz parte das festividades do nordeste brasileiro e é uma

entre as tantas manifestações do nosso rico universo cultural popular; e isso dá na tentativa

de demonstrar teoricamente e empiricamente como é possível trazer para a sala de aula a

riqueza da nossa mestiçagem, do nosso pluralismo cultural, problematizando-os

dialogicamente e dialeticamente através das chaves da cultura, da literatura e de suas

múltiplas linguagens.

As festividades (qualquer que seja o seu tipo) são uma forma primordial, marcante, da civilização humana. Não é preciso considerá-las nem explicá-las como um produto das condições e finalidades práticas do trabalho coletivo nem, interpretação mais vulgar ainda, da necessidade biológica (fisiológica) de descanso periódico. As festividades tiveram

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sempre um conteúdo essencial, um sentido profundo, exprimiram sempre uma concepção do mundo. (ibid.)

Tendo como seu primeiro registro de nascimento o período histórico de um Brasil

ainda colonial e escravocrata e sendo, reconhecidamente, a sua origem a da tradição afro-

brasileira, o Tambor de Crioula, que na traz como legado, as raízes e os valores dos clãs

maranhenses, é um ritual, um espetáculo e uma dança específica do estado do Maranhão.

No ano de 2008, o Tambor de Crioula recebeu do IPHAN (Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional), seu segundo registro: o de patrimônio imaterial da cultura

popular nacional59. No “parecer” do IPHAN60, “o Tambor de Crioula integraria a assim

chamada ‘família do samba’61, que inclui ainda os cocos e algumas modalidades do samba

carioca, como o samba de terreiro, o samba-enredo e o partido alto”. Para os pareceristas,

embora o Tambor de Crioula venha ganhando destaque e visibilidade em sua trajetória,

ainda não se contava até aquele momento (2007) com um volume de pesquisas à altura de

sua antiguidade, de sua importância e densidade no conjunto das práticas culturais de

tradição afro-descente do Maranhão.” No parecer do IPHAN, destacam-se ainda duas

pesquisas sobre o Tambor de Crioula de caráter etnográfico realizadas no estado do

Maranhão: a de Mário de Andrade, no início do século passado e que foi feita por todo no

norte e nordeste brasileiro, resultando na publicação dos registros de sua viagem, o diário

que se transformou no livro O Turista Aprendiz (1927)62; e a pesquisa feita pela equipe

técnica do DAC, Fundação Cultural do Maranhão entre 1977 e 1979.

59 O Tambor de Crioula foi registrado como patrimônio imaterial pelo IPHAN no dia 18 de junho de 2008. (Ver “Certidão” do IPHAN nos anexos). “Praticada no Maranhão desde a época da escravidão, é o décimo primeiro bem cultural de natureza imaterial inscrito em um dos quatro Livros de Registro do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.” Já haviam sido registrados: Ofício das Paneleiras de Goiabeiras (ES), Arte Kusiwa dos Wajãpi (AP), Círio de Nazaré (PA), Samba de Roda no Recôncavo Baiano (BA), Viola-de-Cocho (MT/MS), Ofício das Baianas de Acarajé (BA), Jongo no Sudeste (RJ), Cachoeira de Iauaretê (AM), Feira de Caruaru (PE) e Frevo (PE).” ( http://www.monumenta.gov.br)

60 Ver “Registro do Tambor de Crioula no Maranhão”, parecer nº. 01450.005742/ 2007-71. Site: http://www.portal.iphan.gov.br.

61 “Conforme pesquisa de Edison Cordeiro de 1982.”

62 ANDRADE, Mário. O Turista Aprendiz. São Paulo, Duas Cidades, 1976. O livro foi o resultado das viagens de Mário de Andrade ao que ele próprio chamou de “descoberta do Brasil”. Dessa escavação e aventura cultural de Mário de Andrade nasceram desenhos, fotos documentais, fotos de viagem e uma inspiração: Macunaíma.

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A cultura popular maranhense se divide em ciclos festivos ou ciclos de festividades:

o ciclo do carnaval, o ciclo das festas juninas e o ciclo natalino. Todos esses três ciclos têm

como marca em comum os rituais e o entrelaçamento entre o religioso e o profano que se

misturam à crença e à devoção aos santos católicos, às danças indígenas, às danças

portuguesas e africanas numa carnavalização que culmina com as festividades lúdicas

cotidianas.

Quando pensamos sobre a diversidade e as influências da cultura popular nos rituais

do Tambor de Crioula do Maranhão, vale a pena ressaltar o trabalho do antropólogo Sérgio

Ferreti63 que muito tem contribuído para o estudo da identidade cultural do povo

maranhense.

O maranhense do povo tem o costume de dançar, cantar e fazer teatro nas ruas. O maranhense gosta e sabe organizar festas bonitas e criativas. As religiões afro-maranhenses constituem uma das fontes de manutenção e preservação das festas do folclore e da cultura maranhense e contribuem indubitavelmente para a construção da identidade cultural maranhense. O bumba-meu-boi, o tambor de crioula, a festa do divino e outras são também festas dos terreiros de mina. O Maranhão é uma terra onde o povo gosta de festas numa dimensão que remete ao barroco brasileiro e se relaciona evidentemente com nossas tradições latinas, ibéricas e africanas. (FERRETTI, 2003, p.6-7).

Nas imagens a seguir poderemos encontrar três diferentes performances do Tambor

de Crioula. 64

63 Sérgio Figueiredo Ferretti é antropólogo e professor da Universidade Federal do maranhão (UFMA).

64 Acervo pessoal. Material empírico da pesquisa. Colaboração do fotógrafo maranhense Paulo Carré.

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1. Tambor de Crioula. Apresentação de rua.

2. Tambor de Crioula, Festa Junina.

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3. Apresentação dos grupos de Tambor de Crioula, São Luís, Maranhão.

As apresentações do Tambor de Crioula ocorrem durante todo ano e em lugares e

festas populares distintas. E tanto pode o Tambor pode ser apresentado como atração

turística nas ruas da cidade durante todo o ano ou ainda próximo à sua matriz, no chão

batido do interior, nos terreiros, nas festas dos santos durante os ciclos de festejos,

juntamente com o bumba-meu-boi e outras manifestações, como a dança do Coco, dançada

pelas quebradeiras de coco babaçu; a dança do Caroço e a dança do Lelê ou Péla-Porco,

também de origem africana. Segundo Ferretti:

No Maranhão, uma das danças que retém em si traços africanos é o Tambor de Crioula, tendo como uma de suas características principais a realização em louvor a São Benedito – santo preto. É ainda praticada predominantemente por descendentes de negros, tanto no meio rural como no urbano, apresentando variantes principalmente no que se refere ao ritmo e à forma de dançar. (FERRETI, 2002, p. 47).

Atualmente o Tambor de Crioula é dançado unicamente pelas mulheres. No

entanto, é fato e contam os mais antigos, que a história do Tambor, principalmente no

interior do Maranhão, teria sido iniciada e dançada pelos homens, algo dificilmente visto

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hoje em dia. Em tempos passados o Tambor dançado pelos homens consistia numa espécie

de tríade que unia luta, dança e jogo ao som das toadas, das cantorias. O dançarino-brincante

que ia dançando para a extremidade da roda escolhia o seu parceiro-oponente e depois os

dois iam se aproximando com um cumprimento e todo um gestual que, utilizando as mãos, a

um palmo de distância do corpo do outro brincante, fazia uma espécie de reconhecimento

num gestual de cumprimento e desafio. Num segundo momento, com o ritmo já mais forte

dos tambores, os dançarinos começavam num jogo de pernas, a dança-luta que culminava no

instante em que um deles conseguia derrubar o parceiro-adversário, jogando-o ao chão.

Esse movimento de perna ou “pernada” estava para os dançarinos como a “umbigada” para

as “coreiras”, as brincantes que dançam o Tambor de Crioula. Disse uma das coreiras do

grupo de dança de Mestre Felipe65:

“Ixe! Que a dança dos homen parecia mais uma dança de girar de dois beija-

flor... Ah, no nosso tempo sim, bonito no começo pra depois esquentar, mas não

tinha essa de desrespeitar na vez da punga. Mas duns tempo - de longe pra cá - foi

virando tudo grosseria, parecia mais briga de galo... Agora já não tem mais.”

O ponto alto da dança do Tambor de Crioula é justamente a “punga” ou a

“umbigada”, momento em que as mulheres que estão dentro da roda se aproximam

encostando e batendo os umbigos seguindo o ritmo dos tambores. É neste encontro de

umbigos, nesse encontro de ventres, de úteros, nesse encontro fluído de corpos e águas, que

se dá a troca entre aquela está no centro da roda por outra que chega da periferia da roda.

Lembrando que, como em qualquer dança, o ritmo é marcado por tempos.

A coreira que está na roda sabe quando deve girar no tempo ideal para encontrar a

coreira que entra na roda do tambor também girando. Elas sentem o tempo, o tempo que é

uma impressão, uma sensação de ritmos que combinam o som do coração e o som dos

tambores. Assim elas se cumprimentam com giros sincrônicos até o tempo da “punga”, que

geralmente se dá em frente ao tambor grande como gesto de louvação e agradecimento.

Como a maioria das danças populares a coreografia é livre e ritmada, até porque a intenção

65 Material empírico da pesquisa, transcrição da fala da coreira, Dona Zezé, extraída de conversa informal. Exímio tocador de tambor, Mestre Felipe (1924– 2008) é a própria Alma dessa manifestação popular. Também foi o presidente da Associação Folclórica e Cultural Tambor de Crioula União de São Benedito. E em 2002 gravou um CD com músicas de sua própria autoria.

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é incluir e não excluir com o pretexto do “não saber dançar”. Todas podem dançar e brincar

na gira do tambor. Lembrando que na dança e ritual do Tambor de Crioula todo esse o

cerimonial e esse festejo se dão através do sagrado e do profano, dos gestos de fé, das

cantigas oriundas das ladainhas e de todo um conteúdo também lúdico e satírico, típico das

brincadeiras de roda do Maranhão.

Os Tambores

Os tambores são ao mesmo tempo instrumentos de percussão e imagens de reverência,

distribuídos numa “trindade” sonora por ordem de tamanho. O tambor grande é chamado

de roncador ou rufador, o tambor médio de meião, socador ou chamador e o tambor

pequeno, de perengue, merengue ou crivador.

Tocadores de Tambor: Coureiros

Os três tambores vão ao fogo antes das apresentações e depois aquecidos e afinados

são tocados pelas mãos dos homens e dos meninos, os coureiros, numa tradição passada de

pai para filho, de avô para neto, de geração a geração como herança simbólica, como parte

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da narrativa de um povo. “Aqui a preocupação nossa é não deixar a tradição morrer.” Disse

um dos tocadores. O mestre e o aprendiz, o pai e o filho revivem pelo ritual o respeito e o

temor ao fogo, o encantamento de roubar o segredo divino numa significativa aprendizagem,

o que Bachelard vai chamar de “Complexo de Prometeu”:

Há no homem uma verdadeira vontade de intelectualidade. (...) Propomos, pois, agrupar, sob o nome de Complexo de Prometeu, todas as tendências que nos impedem a saber tanto quanto nossos pais, mais que nossos mestres. Ora, é ao manipular o objeto, é ao aperfeiçoar nosso conhecimento objetivo, que podemos esperar situar-nos mais claramente no nível intelectual que admiramos em nossos pais e em nossos mestres. (...) Se a intelectualidade pura é excepcional, ainda assim é muito característica de uma evolução especificamente humana. O complexo de Prometeu é o complexo de Édipo da vida intelectual.

E sobre as imagens que surgem do fogo e do devaneio, descreveu Bachelard,

O devaneio opera como estrela. Retorna a seu centro para emitir novos raios. E, precisamente, o doce devaneio diante do fogo, o doce devaneio consciente de seu bem-estar, é o mais naturalmente centrado. Figura entre os que melhor se prendem a seu objeto ou, se quiserem, a seu pretexto. Daí essa solidez e essa homogeneidade que lhe conferem tal encanto, que ninguém se desprende dele. Devaneio tão bem definido, que se tornou uma banalidade dizer que gostamos do fogo de lenha ardendo na lareira. Trata-se, então, do fogo calmo, regular, dominado, onde a grossa lenha queima em pequenas chamas. É um fenômeno monótono e brilhante, verdadeiramente total: ele fala e voa, ele canta.

Assim diz o fogo e a chama acesa pelas mãos dos homens acende o mito para

transformá-lo em história.

São Benedito

Nas apresentações, fortemente marcadas pelo sincretismo religioso, são muitos os

devotos de São Benedito66, o santo protetor dos negros, o santo negro e ainda sincretizado no

66 Benedito (1526-1589) nasceu na Sicília, Itália. Nascido escravo foi libertado ainda criança por seus senhores. Aos dez anos trabalhava como pastor de rebanhos e nessa época tinha como seus principais hábitos a solidão e as preces. Por ser negro, enfrentou inúmeros preconceitos e enfrentava as humilhações que sofria sempre recorrendo às orações. Em 1564, Benedito tornou-se “irmão leigo” da ordem franciscana do mosteiro de Palermo, onde passou a trabalhar como cozinheiro. Um dado interessante sobre a história de São Benedito é que mesmo não sabendo ler e escrever, ele tornou-se uma referência aos outros teólogos que vinham de todas as partes para consultá-lo, isso porque era reconhecido por sua grande sabedoria e inteligência e também por ter o dom divino da ciência infusa, a ciência das revelações naturais e sobrenaturais. São Benedito foi canonizado em 1807 e na sua imagem podemos vê-lo carregando o menino Jesus nos braços.

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culto Mina-jêje, na Casa das Minas do Maranhão, com o vodum Toi Averequete, que traz

como símbolo uma estrela cadente.

Das cantigas entoadas no Tambor de Crioula, muitas são feitas como pagamento de

promessa e devoção ao santo negro, que também tem sua imagem reverenciada, trazida com

grande esmero para o centro da roda, principalmente pelas mãos das “velhas”.

Coreira com São Benedito.

Na apresentação do Tambor de Crioula, muitas das cantigas entoadas são

anônimas e se tornam de conhecimento comum e com isso, ganhando autoria coletiva,

fazem com que o acervo popular e de domínio público seja de vasta produção sonora-

musical. Para exemplificar, um dos “cânticos” mais conhecidos do Tambor:

Eu vou, devoto, eu voucantar pra São Benedito eu vouFoi ele quem me chamou, eu vouCantar pra são Benedito, eu vou

Oh, meu senhor são Benedito, eu vouQue mandou me chamar, eu vou

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Pra uma festa de tambor eu vouCantar pra são Benedito eu vou

Vou ele quem me chamou, eu vouCantar pra são Benedito eu vou

Minha terra é Alcântara, eu vouMaranhão é meu lugar, eu vouEm agosto eu passeio, eu vouPra cidade do Mará eu vou

Devoto que é devoto eu vouFazer uma prece no mar eu vouAjoelhar na igreja eu vouPra Jesus me ajudar eu vou

Foi ele quem me chamou, eu vouCantar pra são Benedito eu vou

O Tambor de Crioula é uma gira coletiva, uma roda da fortuna, uma ciranda de sons,

um círculo de promessas, uma mandala feita de mulheres num retorno a um cordão

umbilical, numa “umbigada” com a mãe terra, num encontro com a natureza e todas as suas

entidades, todos os seus elementos feito um redemoinho. Quem dança o Tambor sente o

vento, vê o vento e sente em pleno ar o estar suspenso no espaço. O corpo da dançarina é só

espaço. É o tempo. Nessa mandala quem está no centro precisar conhecer a extremidade e

quem fica na extremidade se move para o centro num trans-lado ininterrupto. Ninguém fica

no centro por muito tempo, mas fica o tempo necessário de ser o centro, de ser a saia, a roda,

o movimento e o transe – o que transcende. Cada saia é uma mandala, cada mulher, cada

menina, a Terra.

As Crianças e as Mulheres

A dança como tradição cultural é passada de mãe para filha, de avó para neta, de

geração para geração como legado identitário e como herança cultural. Nas rodas de Tambor

de Crioula é possível encontrar crianças ainda muito pequenas já iniciadas no ritual.

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Grupo Infantil de Tambor de Crioula.

Como podemos perceber pelas imagens das brincantes do Tambor de Crioula, “(...) é

uma característica inerente à mulher negra o gostar de vestir-se bem, com suas saias rodadas

em cores vivas, anáguas largas, ponteadas com renda de almofada, blusas rendadas e

decotadas; enfeitam-se com flores, colares, pulseiras, torsos coloridos na cabeça,

principalmente em dias de festa.”67 (Ferreti, 2002, p. 61)

A imagem das saias coloridas de flores que giram como formas arredondadas, como

círculos concêntricos, nos lembram as mandalas e as mandalas nos remetem ao feminino, ao

útero, aos círculos encontrados na natureza, que também nos remete ao centro da mãe, ao

centro da terra. É no centro da mandala que encontramos a energia condensada, dançar no

centro da roda do tambor é ser um elo com as forças mais primitivas do mundo, é dançar no

meio das florestas com todos os orixás, todas as divindades, todos os elementos. Daí o transe

onde a dançarina é toda ela o corpo da dança com seus movimentos. Com seus giros ela é o

próprio“instante” - sem pensamentos, sem idéias.

67 Segundo Sérgio Ferreti: “(...) Em relação ao traje no Tambor de Crioula, ao contrário do que acontecia anteriormente, quando o tambor era dançado com exclusividade nos meios populares, sem determinação de roupa e quase sempre descalço, existe nos dias de hoje, principalmente nos grupos urbanos que costumam fazer apresentações programadas, uma padronização da indumentária, que eles chamam “farda”. (ibid., p.64)

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A gira no Tambor de Crioula.

A linguagem do corpo da dançarina é a síntese e é ela quem cria à sua imagem a

semelhança. Aqui vale a pena ressaltar o trabalho de Paul Zumthor que há décadas tem

pesquisado não somente a voz, mas toda a poesia da voz, todo desempenho da voz num

tratamento poético e holístico de fundamental importância para quem pensa, vive e se

expressa com a voz, com o corpo, com a alma, com as sensações e as vibrações unas na

multiplicidade de linguagens que é própria dos seres humanos. Para esse “empenho do

corpo” descreveu Paul Zumthor citando Harald Weinrich:

Harald Weinrich, retomando uma palavra de Valéry, escreveu recentemente que a gramática é uma memória do corpo. Máxima brilhante, que pede para ser explicada, mas da qual pode-se pensar que revela, e não dissimula, uma verdade profunda: a existência de uma lembrança orgânica das sensações, dos movimentos internos do corpo, ritmo do sangue, das vísceras, toda essa vida impressa de uma maneira indelével em minha consciência penumbral daquilo que eu sou, marca de um ser a cada instante desaparecido, e, no entanto, sempre eu mesmo. Ora, o corpo tem alguma coisa de indomável; de inapreensível. (ZHUMTHOR, 2007, p. 79)

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Apresentação do Tambor de Crioula, ciclo natalino/2008.

Tomando como inspiração as imagens do Tambor de Crioula, passaremos a uma

narrativa memorialista, que nos fala do Maranhão numa perspectiva que muito se aproxima

do movimento das saias das mulheres e dos corpos por dentro das saias e das almas que

dançam por dentro. Disse assim Pedro Nava em suas viagens e imagens do Maranhão:

É por ser neto do retrato que sou periodicamente atuado pela necessidade de ir a São Luís do Maranhão.

Essa sempre procrastinada viagem, se não a faço com o corpo, realizo em imaginação. Desde menino, quando, de tanto ouvir falar em Ceará e Maranhão, eu enchia cadernos e cadernos do desenho de navios inverossímeis, onde havia um exagero de âncoras pendentes(...) É sempre na mezena mais alta de um deles que levanto minha flâmula e orço para o setentrião – quando certos sons, certas sílabas e certos nomes mágicos abrem para mim os caminhos do oceano. Ilha, rei, São Luís Rei. Ou então, mar, amar, aranha, arranhão – que se entrelaçam e emaranham na graça da palavra Maranhão. E mais a sombra de Sinhá Graça que, menino eu vi passar todo de negro. E ainda, Heráclito Graça, Graça Aranha... Quando tudo isto me dá a chave dos mares, vou ter inevitavelmente às baías de São Marcos e São José e com meu companheiro de curso, Roberto Ave-Lallemant, chego a São Luís

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(que ele chamou de resplandecente e achou parecida com Funchal) naquele ano de 1859 – quando ela era a quarta cidade do Brasil , quando meu avô e Totó Ennes adolesciam e quando eu não tinha idade na antecipação do Tempo. Reluzem dominicalmente seus sobrados de vidraça e azulejo, treme de calor a distância das ruas limpas – que sobem e descem e se cruzam nas direções oeste-leste (Rua do Sal) e sul-norte (Rua dos Remédios). É nelas que, vindas da missa de São Tiago, de São Pantaleão, da Catedral, passam as mulatas, caboclas, negras e puris descritas pelo viajante – ombros, braços, colo, espáduas completamente nus. Na cabeça, o pente “como uma torre” e o toucado de flores. (22)

Tambor de Crioula, ciclo junino.

O Tambor pelas mãos de Mário de Andrade

No inicio do século XX, na década de 30, Mário de Andrade, à frente do então

Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, fez importante trabalho no campo da

cultura popular, incluindo no repertório de interesse da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, o

Tambor de Crioula do Maranhão. Na época, dos anos 20 aos 30, Mário de Andrade teve

como projeto e preocupação o registro de um material que captasse os sons, as músicas e a

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imagens, através de discos, filmes e fotografias, das mais diversas manifestações culturais

populares do Norte e Nordeste. Mário de Andrade criou assim importante acervo histórico

das músicas, imagens, textos, da cultura nortista e nordestina, sendo também um dos

responsáveis pela criação da discoteca Oneyda Alvarenga68, um catálogo histórico

fonográfico de músicas populares tradicionais das regiões pesquisadas69. Sendo a cultura

popular do Norte e Nordeste mananciais das tradições indígenas, portuguesas e africanas,

estamos falando também diretamente à herança cultural e diversificada que compõem as

nossas raízes brasileiras.

Foi então com Mário de Andrade e sua pesquisa sobre o folclore brasileiro que o

Tambor surgiu no cenário nacional como registro vivo da tradição popular afro-brasileira e

também como relevante fonte de elementos identitários numa dimensão ética e étnica contra

a desvalorização dos orixás, contra o preconceito à religiosidade que é também sincrética,

numa ação cultural afirmativa que desde as sua primeiras aparições já enaltecia e

valorizava a imagem do negro nas questões de nacionalidade.

Fazem parte do acervo da discoteca os registros fonográficos de várias manifestações

populares, entre as do Maranhão, além do Tambor de Crioula, o Tambor de Mina e o

Bumba-meu-boi. Assim como há um importante acervo de imagens70, fotografias que foram

também catalogadas pelos pesquisadores da Missão.

Dentre as tantas atividades de Mário de Andrade está a do musicólogo de matizes diversificados avesso ao sectarismo. Ele se mantinha obsessivamente a par de pesquisas e aproximações da cultura popular, no Brasil e na Europa. Se igualássemos criação musical e criação literária, poderíamos alinhar seu perfil profissional ao de um Béla Bartók, que a partir do início do século XX percorre sistematicamente vastas regiões do Leste Europeu em busca de definir a imagem sonora particular da tradição  próxima à qual ele próprio se criara. Ambos souberam associar à visão modernista as experiências realizadas com profundidade no domínio popular. É bom lembrar que a visitação a gêneros populares ocorria no início do século XX por razões de um anseio abstrato de identidade, mas era motivada também pela busca de uma combinação de originalidade técnica e poder comunicativo. Mário certamente não desconhecia o fato de que a idéia nacional auxiliara na reestruturação do pensamento artístico: novos materiais e objetividade de expressão ofereciam-se como uma possibilidade de cura da generalizada intoxicação romântica. 71 (grifo meu)

68 Folclorista e pesquisadora Oneyda Paolielo de Alvarenga (1991-1984). 69 Ver site: http://www.sescsp.org.br. 70 Idem.

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Missão de Pesquisas Folclóricas. Tambor de Crioula. 19/junho/1938 São Luís (MA) . Fotógrafo: Luis Saia72

Ao pensar na memória social e coletiva não podemos esquecer que a própria

formação da identidade nacional representa as inúmeras diversidades e desigualdades

existentes na base da nossa sociedade, mostrando a complexidade que há na abordagem e na

problematização deste eixo temático que envolve a cultura popular, a memória coletiva e a

narrativa oral. E isso diz respeito às pesquisas e aos vários campos de conhecimento que

podem juntos criar soluções não só para construir mais acervos das tradições, mas também

para criarem, respeitando as populações locais, re-significâncias das tradições culturais e

meios de divulgação, através das várias mídias, através da educação, para que esse material

humano não se perca, mas sim chegue às mãos das gerações que vivem hoje essas

71 LACERDA, Marcos Branda. Os registros Musicais da Missão de Pesquisas Folclóricas. Disponível em: http://www.sescsp.org.br. 72 Idem. Acesso: Agosto/2008.

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manifestações e importante - às mãos das gerações futuras. E a narrativa traz à tona a

questão da cultura popular, a cultura empreendida oralmente, que tende a desaparecer ou a

ficar cada vez mais abafada e esquecida se não houver o interesse e a preocupação de bem

em preservá-las contra o esquecimento, a indiferença e a intolerância.

As manifestações culturais do povo maranhense: o tambor de mina, o tambor de

crioula, o bumba-meu-boi, as festas dos santos de junho, a folia de reis, todos esses festejos

populares falam diretamente às crenças e às divindades, falando também sobre a intervenção

do mito na realidade quando todas as criaturas imaginárias e os deuses e os orixás e os

santos se reúnem numa grande celebração e numa forte expressividade que consegue unir o

sagrado ao profano, a ludicidade à fé num grande ritual sincrético. Para Campbell (1990):

A sociedade aí estava, antes de você; continua aí, depois que você se vai, e você é um membro dela. Os mitos que o ligam ao seu grupo social, os mitos tribais, afirmam que você é um órgão de um organismo maior. E a própria sociedade, por sua vez, também é um órgão de um organismo ainda maior, que é a paisagem, o mundo no qual a tribo se move. O tema básico do ritual é a vinculação do indivíduo a uma estrutura morfológica maior que a do seu próprio corpo físico. (p.86)

E podemos então nos perguntar que magia é essa? Que encantamento é esse? Que

religiosidade é essa inventada por nós? Que alma coletiva é essa que faz com que pessoas

tão diferentes, vindas de lugares tão diferentes, se unam para participar desses e de outros

rituais? Talvez uma reposta nos venha através da voz e da sabedoria de um velho ogã: “O

importante, minha filha, é não deixar morrer o nosso sotaque, nossas rezas, nossas

brincadeiras, essas que todo povo sabe fazer. E ser homem honesto, fazer o bem, não deixar

menino passar fome. Dá estudo pro menino. E ensinar ele também a tocar um tambor bem

tocado. Isso até me enche os olhos de lágrima.”

Os Velhos

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Tambor de Crioula, patrimônio cultural do Maranhão.

Segundo a mitologia greco-romana o homem nasceria da terra e de suas águas

aquecidas pelo sol. Dessa forma, toda sua natureza humana tornar-se-ia então co-participe

dos elementos que, imbricados, constituiriam sua herança mítica. E quando chegada fosse a

hora da morte desse homem, a mãe terra ao reconhecê-lo de volta guardar-lhe-ia

devotamente em seu seio. Por isso, nessa mitologia, quando se desconhecia a origem de um

homem ou até mesmo de um povo, a ele era dado o registro de “filho da terra”. A esse

exemplo de “fundação” na mitologia greco-romana, poderemos agregar outros tantos de

outras mitologias.

Nas sociedades arcaicas era através desse tipo de simbologia que se sintetizava tudo

quanto excedia do ordinário da vida cotidiana: o sagrado e o mágico-religioso com seus

prodígios, seus dogmas; os mistérios, os algures, as pragas de maldição, os seres

extraordinários. Tem um texto de Fernando Pessoa: “Mensagem” que, através de cinco

qualidade ou condições, o poeta nos ajuda na compreensão de como o símbolo é capaz de

expressar o não dizível e o não visível do mundo, àquela região que somente nos foi

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possível descrever por imagens e pelas interpretações e re-significações geradas por elas.

Disse o poeta:

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para eles mortos, e ele um morto para eles.

A primeira é a simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar.

A segunda é a intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que sente o que está além do símbolo, sem que se veja.

A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado.

A quarta é a compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminando por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser entendidos se não houver antes, ou no mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.

A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a outros, que é mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a mesma da maneira como os entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo. ( p. 69, 2003)

Nós, humanos, criamos do nada os mitos e não apenas como método interpretativo

para o que achávamos sem explicação. Mas os mitos surgem como uma espécie muita

distinta de baluarte do conhecimento e da criação humana. Não teríamos chegado a qualquer

conhecimento posteriormente racional e sistematizado se antes, na sua forma “germinante”,

não surgisse ele próprio do mesmo material inventivo e simbólico que também fomentava a

criação de mitos em tempos arcaicos: a curiosidade, a intuição e o “nada que é tudo”.

Afinal, não nasce o pensamento cientifico do mesmo princípio de ousadia investigativa com

as quais os homens primitivos buscavam responder as primeiras perguntas na busca por uma

experiência fundadora: De onde viemos? Para onde vamos? Qual é a nossa origem?

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Ora, para criar o que chamamos de explicações, lançamos mão de toda uma

simbologia, e para tanto recorremos aos mitos na tentativa de analisar aquilo que até então

desconhecíamos, isso porque possuímos desde sempre a vontade de saber de tudo e a

curiosidade de entender determinadas questões e dúvidas que surgem a todo o momento no

trajeto de nossas vidas, da nossa História, do nosso caminho pelo mundo. O surgimento das

respostas supostamente racionais e do sentimento das certezas não afastou o homem do

desejo intuitivo do mundo das perguntas, das descobertas, da imaginação. Assim como a

escrita não levou por terra o potencial imagético e simbólico da oralidade. E os mitos

renascem pela tradição oral pelos arquétipos, pelo inconsciente coletivo que nos leva à

consciência. Segundo o professor Junito Brandão (2007):

Todavia, os arquétipos são ainda mais do que a matriz que forma os símbolos para estruturar a Consciência. Eles são também a fonte que os realimenta. Por isso, os mitos além de gerarem padrões de comportamento humano, para vivermos criativamente, permanecem através da história como marcos referenciais através dos quais a Consciência pode voltar às suas raízes para se revigorar. A obra de Jung demonstrou fartamente que o Inconsciente não é somente a origem da Consciência, mas, também a sua fonte permanente de reabastecimento. Da mesma forma que a noite permite às plantas prepararem-se para cada novo dia e o sono descansa e reabastece o corpo, assim, também o Inconsciente renova a Consciência. Das trevas fez-se a luz, que através delas, se mantém. De noite, por meio dos sonhos; de dia, através da fantasia, os arquétipos produzem e revigoram os símbolos. A interação do Consciente com o Inconsciente Coletivo, através dos símbolos, forma, então, um relacionamento dinâmico, extraordinariamente criativo, cujo todo podemos denominar de Self Cultural. Os mitos são, por isso, os depositários de símbolos tradicionais no funcionamento do Self Cultural, cujo principal produto é a formação e a manutenção da identidade de um povo. (p.10)

A importância da memória para a cultura popular é a importância dos mitos, dos

rituais, dos ritos, das canções mágicas e dos guardiões, como Mário de Andrade, Mestre

Felipe, o professor Junito Brandão e tantos outros que não se cansaram e não se cansam de

preservar, de zelar pela identidade de um povo, de todo um acervo de imagens, das canções

da cultura do trabalho, das festas, das brincadeiras, da culinária, das cozinhas e seus cheiros

fantásticos, a cultura do plantio e da colheita, a cultura que há na forma de moer, na forma

de benzer, de rezar, de tecer, de cantar e ensinar às futuras gerações a forma de saber de tudo

isso.

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CAPÍTULO 3

Cultura Oral, Literatura e Folclore.

De tempos em tempos reivindicamos os nossos mitos. As sociedades antigas, durante

séculos, criaram mitos diversos em busca de explicações para as perguntas, para as tantas

curiosidades que iam surgindo na mente do homem. Para a origem da vida na terra houve

em línguas e povos distintos a invenção do mito da criação e dessa e de outras invenções

foram surgindo histórias que povoam até hoje nossa memória coletiva. E essas histórias,

antes do advento da escrita, eram contadas através da comunicação oral, através dos

menestréis, dos contadores arcaicos e cantadores de versos, através dos mais velhos que

traziam de uma sabedoria milenar os provérbios que aparecem como síntese da cultura oral

do povo.

A memória coletiva que está na fala, nos tecidos, nos bordados, na dança das

agulhas, das ferramentas que forjam a possibilidade de um conhecimento comum é a que

está também nas narrativas orais, na poética da linguagem, na poética da realidade e nas

relações sociais. Exemplo dessa poética pode ser encontrada nos poemas de Patativa do

Assaré, como aquele sobre: “uma triste partida”73

(...)Agora pensando segui ôtra tria,Chamando a famia,Começa a dizê: Eu vendo meu burro, meu jegue e o cavalo,Nós vamo a São PauloVivê ou morrê.

(...)Nós vamo a São Paulo, que a coisa tá feia;Por terras aleia,Nós vamo vagáSe o nosso destino não fô tão mesquinhoPro mêrmo cantinhoNós torna a vortá (...)

Em riba do carro se junta a famia;Chegou o triste dia,Já vai viajá.

73 In: ASSARÉ, Patativa do. Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino. Apres. Francisco Salatiel de Alencar. Petrópolis: Vozes, 1978. O poema-toada “A triste partida” de Patativa do Assaré foi gravado em disco por Luís Gonzaga em 1964.

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A seca terrive, que tudo devora,Lhe bota pra fora Da terra natá.

(...)Faz pena o nortista, tão forte, tão bravoVivê como escravoNas terra do su.

Literatura oral ou folclore? Qual seria a fronteira ou os limites que delimitariam o

que é da cultura literária e o que é da cultura folclórica no poema de Patativa? A única

passagem registrada do “poeta cantador” por uma escola teria sido aos doze anos de idade,

onde ele permaneceu apenas por um curto período de seis meses. Partindo desse poema tão

peculiar e de sua hoje aceitação dentro do cenário literário brasileiro, nos propomos a

seguinte reflexão: como analisaríamos a “bagagem lingüística e cultural” de alguém que

poderia vir a ser considerado, pelo prisma da educação formal, analfabeto ou mesmo

analfabeto funcional, sem correr o risco de cair num tipo qualquer de estigmatização do que

é “popular” na literatura brasileira? E se pensarmos nas salas de aula e na escolarização da

literatura, caberia justificar apenas pelo uso da “licença poética” versos como estes: “Vivê

como escravo/ Nas terras do su”, sem se levar em conta a significância do poema? Ou seria

o poema de Patativa do Assaré usado nas aulas de língua portuguesa como pré-texto para

correção ortográfica ou como exemplo de variação lingüística, privilegiando-se num

reducionismo qualquer o uso da linguagem padrão?

Paradoxalmente, encontramos no poema de Patativa de Assaré muitos pontos de

aproximação com a cultura escrita. Assim demonstrando que o poeta cantador de Assaré não

somente reconhecia a valorização dada a “cultura letrada” como a problematizava em

muitos dos seus versos. E essa valorização à “cultura letrada” também fica evidente na

literatura de cordel, escrita e cantada pelos violeiros. Pois quanto mais o cordelista se

aproxima da cultura escrita erudita mais ele é valorizado entre os outros cordelistas. E o

“desafio” para o repentista pode estar muitas vezes na própria tentativa de diálogo com a

“cultura letrada”.

Há um ponto de interseção ente literatura e folclore que é desvelado pela cultura

oral popular. Esta que traz em seu cerne uma “cultura literária” própria, uma cultura de

“povo”, que se fazia e se faz pela “oralidade” através das adivinhas, dos adágios, das

trocinhas, das parlendas, das ladainhas, da contação ou narração de histórias. O termo

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literatura “popular” se origina também do conceito de “cultura”, que etimologicamente,

provém do latim colere e que serve para designar as duas ações do cultivo: cultivar e colher.

Quando pensamos em cultura, cultivar já carrega na criação do ato o produto da própria

criação em semente: cultivar e colher o fazer para criar o saber.

E a literatura embora nomeada a partir da littera (letra), o que nos remete à escrita,

tem seu gérmen na cultura oral, nas primeiras tentativas humanas de registrar através de um

código memorialístico de narrativa, de um repetere e religare constantes, a sua existência e

a sua consciência temporal e cultural, repleta de significâncias. Walter Ong (1998, 21), em

seu livro “Oralidade e cultura escrita”, diz que pensar a tradição oral como “literatura oral”

é pensar em cavalos como automóveis sem rodas, é colocar o carro na frente dos bois.

Problematizando a afirmativa de Ong, recorro À Canção de Rolando, uma epopéia

anônima, que como todas as epopéias, nasce na oralidade (epos), é registrada por uma

memória coletiva, para passar depois ao registro da escrita. A Canção de Rolando relata os

feitos do Imperador Carlos Magno e seus Doze Pares da França (768-814). Muito lida no

nordeste, principalmente nas áreas de sertão, a História do Imperador Carlos Magno74

retorna à oralidade, através do teatro popular ao estilo vicentino, associando-se à cultura

popular nordestina. (Vassalo, 1988) E deste novo movimento de oralidade, a canção

“transfigurada” volta à escrita através da literatura de cordel. A canção de Rolando nasce

oral e coletiva, passa à escrita e à erudição, e por fim ainda vive seus dias de manifestação

folclórica.

Quando se fala em “epopéia” se quer identificar, sobretudo a voz coletiva, que vai

acabar suprimida no “romance burguês”. Diferente do herói coletivo das epopéias, a

personagem do romance é sempre um “indivíduo” que se constitui numa sociedade que tem

como pacto social o individualismo. E retomando ainda a citação de Walter Ong sobre

“carros na frente dos bois” , como ainda é possível no Brasil encontrar o chão barrento por

onde passavam “carros de boi", é possível ficar mais à vontade, não para colocar o carro à

frente dos bois, mas ao lado, ou melhor, indo com os bois. Portanto não acredito que haja

qualquer desuso ou contradição no termo “literatura oral” para as primeiras histórias que

surgem na oralidade e que permanecem por muito tempo assim – histórias que fizeram e

fazem parte de um vasto acervo popular, pois delas trazemos em forma de memória fluída e

74 Ver tradução: Vassalo, Ligia. A canção de Rolando. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1988.

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volumosa o que recebemos do passado de uma coletividade; memória coletiva que, re-

significada no presente, persiste através da voz, através de uma herança cultural coletiva,

poética e mítica, também pertencida ao folclore, pertencida ao povo que trabalha, se

alimenta, canta, brinca, dança e narra seus feitos, suas batalhas, suas tragédias. E é essa

narrativa que é ao mesmo tempo é trabalho e “ciranda”, circularidade de fazeres e saberes

que nomeamos por “cultura literária oral”. Trata-se então de pensar a literatura em sua

ampla expressividade, parafraseando aqui Antônio Cândido, procurando “chegar a uma

interpretação estética capaz de assimilar a dimensão social como fator de arte”, numa

perspectiva de entender a obra literária “fundindo texto e contexto, numa interpretação,

dialeticamente íntegra”( CÂNDIDO, 1985, p.4-7).

E na busca por uma compreensão que problematizasse uma possibilidade de

entrecruzamento entre literatura e folclore, bem como suas relações com a língua e a

linguagem, que me propus, mesmo que de forma introdutória, a uma possível aproximação

dialógica com o pensamento do sociológico e educador Florestan Fernandes, aqui no que

concerne ao estudo do folclore infantil, buscando sempre uma interface com a literatura,

principalmente a literatura oral. Havia o interesse de saber a princípio além dos pontos em

comum encontrados entre as temáticas já citadas, o desejo também de refletir a partir dos

textos de Florestan Fernandes sobre uma determinada metodologia de pesquisa, um fazer

pesquisa com pequenos grupos sociais, com os grupos infantis, sobretudo.

E dialogando com os escritos de Florestan, a primeira questão sobre a qual me

debrucei dizia respeito ao lugar do folclore nas escolas, nas salas de aula e nos textos.

Pensando aqui o texto para além do registro, texto em sentido amplo, designando toda e

qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano. (FÁVERO & KOCK, 1983, p.

25).

Se nos perguntarmos por qual porta tem entrado o folclore nas escolas brasileiras,

poderíamos ousar responder que até hoje, século XXI, certamente ainda não seria pela porta

da frente. Talvez entre até pela fresta de uma janela, aqui e acolá nas subversões feitas às

normas curriculares. O folclore como tema de relevância cultural e social é tratado ainda de

forma insipiente nas reuniões e mesas de debates entre os educadores e na mesma proporção

ou desproporção, nas tentativas e possibilidades de problematização dos processos que o

fundamentam e dos elementos que o constituem, o folclore que é hoje também parte da

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cultura contemporânea ou ainda como fruto da cultura de todos os tempos. Como o

conhecemos, ou melhor, como o significamos a partir de um mesmo solo já gasto, o folclore

seria a manifestação ou expressão das tradições populares, passada de geração em geração.

Requentada, reduzida e às vezes pré-conceituosa definição presente nos livros didáticos. E

parte dessa representação parece até ter saído da fonte das falas de Emília, quando, por

exemplo, a boneca de pano de Monteiro Lobato (1957, p.30) refere-se às Histórias de Tia

Nastácia:

Pois cá comigo - disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras - coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!75

Sabemos que, por sua especificidade social e cultural constitutiva, a temática do

folclore mereceria, sem dúvida, maior atenção e envolvimento dos educadores com um fazer

pesquisa na e com a escola que, unindo teoria e prática, desvelasse a multivalência desse

tema para a compreensão daquilo que passou a se chamar comumente de “bagagem

cultural” do aluno, e no caso específico deste texto, da criança.

Entretanto, mesmo com todo reconhecimento atual do folclore como temática de

pesquisa de fundamental importância para compreensão do que é a cultura popular provinda

da arte e do trabalho do povo, bastariam poucas incursões em escolas públicas ou mesmo

particulares em datas alternadas durante o ano letivo para nos certificarmos de que a

concepção de folclore, na maioria das vezes, ainda se restringe ao calendário das efemérides,

ora com tratamento ilustrativo ou figurativo, como mais uma data do calendário escolar, ora

como tema interdisciplinar, mas ainda visto como “obrigação curricular”, o que se

configurou e se estendeu, a partir do discurso “politicamente correto” retirado dos

Parâmetros Curriculares Nacionais, onde o folclore aparece inserido no tema transversal

“Pluralidade Cultural”. Para exemplificar essas afirmações, citarei parte de uma observação

feita numa escola pública da rede estadual do Rio de janeiro durante um “sábado letivo”

destinado à comemoração do dia do folclore:

75 Difícil será em qualquer tempo, polemizar com Monteiro Lobato. Mas acredito que pensar a “literatura infantil lobatiana” por essa postura crítica é uma forma também de homenageá-lo. É ser um pouco Emília.

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Agosto: “festa do folclore”. Estamos numa escola pública de grande porte. No pátio maior da escola, que fica na parte externa, há muitas barracas formando fileiras organizadas por cores, lembrando uma feira livre. As barracas têm nomes de acordo com as turmas e a seqüência se inicia pelas turmas de 3º e 2º anos com “o folclore no mundo”, perfilando-se em barracas árabes, portuguesas e italianas. Nessas barracas são vendidas rifas, salgados, doces e refrigerante e os alunos improvisam vestimentas que caracterizariam os países homenageados. As turmas de 1º ano fecham a última fileira de barracas, vendendo o que seria a “comida típica brasileira”: cuscuz branco, cachorro-quente, hambúrgueres e outros. São muitas barracas, pois há mais turmas de 1º ano. Não há nenhum painel nem qualquer tipo de artesanato nas barracas do ensino médio. No segundo pátio, que faz parte do prédio da escola, há uma concentração de cartazes nas paredes, neles encontramos o registro de lendas e personagens, como o curupira, o boto cor-de-rosa, o boi-ta-tá, a iara etc. Há também no mesmo pátio mesas com maquetes sobre “os índios brasileiros” – como está escrito no cartaz de entrada. Os trabalhos são das turmas de 5ª a 8ª. No terceiro e menor pátio, também dentro da escola, estão os trabalhos das turmas de 1ª a 4ª. Neste espaço muitas pipas enfeitando as paredes, mesas decoradas com peças de artesanato em papel reciclado, argila e vários outros materiais. Os alunos estão vestidos com roupas que lembram as usadas no maracatu pernambucano. Eles usam chapéus e fitas nas roupas.

No final da tarde houve uma apresentação dos alunos de 1ª a 4ª: o folguedo do bumba-meu-boi foi encenado num pequeno tablado erguido no centro do pátio maior da escola. As professoras disseram ter trabalhado com livros infantis para motivar as crianças que, segundo elas, desconheciam o folguedo e seus significados. Os livros nos ajudaram na hora de explicar o porquê da festa. Eles ficaram mais animados pras brincadeiras e também pra confeccionar os bois durantes as aulas. Disse uma das professoras.

Fala da criança-brincante que vestiu o boi estrela: Eu gostei foi de fazer o boi e de saber que ele ia morrer pra depois viver de novo, que nem Jesus.A professora foi que disse. Por isso que eu quis me vestir dele (o boi). Mas eu pareço mais é com o boi que eu sou preto.76

Fotos de alguns cartazes produzidos pelas crianças do Jardim e da Alfabetização:

76 O Bumba-meu-boi, que tem como uma das versões o Boi Estrela, narra a lenda de Pai Francisco e sua mulher Catirina. A lenda conta que Catirina, grávida, sente um enorme desejo de comer a língua do boi mais bonito e querido do dono da fazenda. Pai Francisco fica desesperado e com medo de Catirina perder o filho que espera, caso o desejo não seja atendido, resolve roubar o boi de seu patrão, cortando-lhe a língua. O boi sangra até a morte e o fazendeiro ao descobrir o feito manda seus empregados caçarem Pai Francisco, que aparece com um pajé para fazer ressuscitar o boi. Após várias pajelanças, o boi renasce numa grande festa.

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Partindo dessa “observação” como exemplo, não poderemos negar certa

contribuição na retórica dos “parâmetros curriculares nacionais”, mas ainda assim se faz

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necessário lançar um olhar mais atento, um olhar crítico ao uso do folclore nas escolas, ou

ainda ao seu “mau uso” ou ao seu “não uso disfarçado de uso”. Pois a fragmentação que

decorre das práticas discursivas se reflete diretamente nas práticas escolares, essas que

muitas vezes não condizem com a própria retórica anunciada nos parâmetros. E torna-se

ainda mais grave quando se privilegia uma teoria fragmentada, desvinculada ou mesmo

apartada da prática, num arremedo de sugestões prescritas em textos fechados,

centralizadores e aplicados de forma verticalizada, como se nesse baixo estivessem os

educadores e os educandos.

Dito isto, no que diz respeito ao âmbito escolar e à cultura infantil, poderíamos num

olhar aligeirado e um tanto generalista, dimensionar o folclore a um campo inesgotável de

manifestações banalizadas e mal traduzidas em quinquilharias feitas de macarrão colorido,

fitilho e papel crepom em cartazes pendurados indiscriminadamente nos murais ou

corredores das escolas brasileiras ou ainda em apresentações performáticas que ao buscar

uma certa verossimilhança com o “folclore antigo” ficariam longe, mas muito longe do que

seria a “cultura de folk”, a que se reinventa com matizes outras pelas novas práticas

culturais. Criam-se assim questionamentos importantes sem dúvida. Mas como não levar em

conta o que foi produzido a partir desse espaço de liberdade de criação? Como não

considerar as experiências instituintes dos professores e seus alunos que subvertem “o

imediatismo esperado”, os axiomas que visam determinar que “é tudo sempre igual?”

E é preciso tomar distância para expressar o que fala próximo a uma cultura que

ainda se faz presente em muitas das brincadeiras infantis? Ou o folclore se diluiu ou tomou

pra si outros elementos culturais, sobretudo os urbanos, tornando-se assim não mais possível

dissociar do diálogo o que é da cultura de massa e o que é da cultura tradicional.

O folclore pode até correr o risco de tornar-se um lugar distante num passado

longínquo sem conexão com o presente e o brincar das crianças. Mas se da própria voz

infantil surge uma fala como esta: eu pareço mais é com o boi que eu sou preto77, podemos

compreender que o folclore não está somente na “busca por um tempo perdido”, ele

77 Sendo Jesus Cristo representado como homem “branco” e estando referido diretamente à fala da professora, a criança se identifica mais com o boi-bumbá, cuja cor prevalecente da vestimenta é preta. Mas é lembrado pela própria criança no início da sua fala que assim como Jesus Cristo, o boi também ressuscita ao final do folguedo. E que por isso havia um aspecto importante em se vestir de boi: morrer para nascer de novo. A fala traz discussões importantes que não serão desdobradas nesse texto.

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reinventado está nas expressões culturais e nas representações sociais do nosso cotidiano

presente. Está nos cartazes criados pelas professoras e pelas crianças.

Ainda que nos centros urbanos e embora já se distanciando de seu caráter primitivo,

o folclore faz parte das mudanças sociais quando surge ressignificado pelas novas

manifestações culturais. Florestan Fernandes (1979) nos diz que:

(...) as manifestações folclóricas podem ser sobrevivências de um passado mais ou menos remoto. Nem por isso elas devem ser concebidas como algo universalmente vazio de interesses ou de utilidades para os seres humanos. Reciprocamente, as manifestações folclóricas podem inserir-se entre os elementos mais persistentes e visíveis de certas formas de atuação social.

Dessa maneira, Florestan Fernandes acreditava na possibilidade de se pensar o

folclore a partir de sua significância cultural, como parte viva da memória de uma

comunidade, de uma cidade, de um país. Essa parte da tradição cultural que, séculos depois,

diante da massificação de uma cultura agora civilizada, ainda sobrevive frente às tantas

mudanças urbanas. E o que interessa na análise sociológica de Florestan Fernandes é que

essa tradição não apenas sobrevive, mas ela também toma parte nessa mudança social. Ela

também se transmuta Segundo o sociólogo não bastaria ao pesquisador do folclore apenas

buscar fósseis de culturas já adormecidas e catalogá-las em coletâneas ou antologias. Mais

que isso, precisaria ele estar atento às dinâmicas dos elementos culturais encontrados nos

diferentes grupos sociais que vivenciam, reinventando e re-significando o folclore a cada

novo contexto.

As décadas de 20 e 30 foram de extrema importância no que concernia ao estudo e

inserção de temas folclóricos na literatura brasileira. Muitos foram os que se aproximaram

dessa temática, como Monteiro Lobato e os modernistas de 22, e entre eles, sem dúvida,

com maior ênfase, o literato, musicista e folclorista Mário Andrade. E tanto Monteiro

Lobato quanto Mário de Andrade, salvaguardando as diferenças intelectuais, mantiveram

intensa correspondência sobre a questão do folclore com o etnógrafo e o folclorista Luís da

Câmara Cascudo, um dos grandes defensores do conceito de “literatura oral”.

Podemos lembrar que ainda nos anos trinta tivemos trabalhos de grande expressão na

literatura com “os romances políticos contemporâneos”78 de José Américo de Almeida (A

78 Referência ao termo empregado por Florestan Fernandes na crônica “O Romance Político Contemporâneo”, publicado na Folha da Manhã, no dia 27 de julho de 1944. Para Florestan: O romance, como fenômeno

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bagaceira – 1928), Rachel de Queiroz (O quinze - 1930), José Lins do Rego (Menino de

engenho - 1932), Jorge Amado (Cacau - 1933) e Graciliano Ramos (Caetés - 1933). Cada

qual, à sua escrita e maneira, a busca por compor um retrato do povo brasileiro através de

suas obras literárias ou personagens literários. 79 Nessas obras podemos também destacar a

importância dos aspectos culturais que trazem à tona a formação da sociedade brasileira, do

povo brasileiro.

Mas coube à primeira geração modernista maior ênfase no tratamento dos estudos

folclóricos, poetas e pintores, incluindo Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Anita

Malfatti, Menotti Del Picchia e outros, mantiveram por anos a preocupação de uma relação

proximal entre cultura erudita e cultura popular. Da arte feita “pelo povo e para o povo”,

poderíamos dizer que numa atitude intrínseca antropofágica elementos do folclore nacional

foram sendo literalmente apropriados e integrados às obras artísticas de então.

Entre os modernistas vale ressaltar novamente a importância de Mário de Andrade ao

propor essa confluência entre o popular e o erudito. O Macunaíma de Mário de Andrade é

tão fortemente constituído por elementos folclóricos, que num dado momento, salta o herói

do personagem literário se personificando na imagem carnavalizada e representativa de uma

forma de “ser brasileiro” através de um “herói coletivo”, um herói às avessas. Macunaíma

vira a ursa Maior. Nesse sentido, sua conduta desconhece os padrões de comportamento

habituais – por ser herói mítico, mas principalmente por ser brasileiro e culturalmente

híbrido. (FERNANDES, 2003, p.177) Nosso herói que não tendo “nenhum caráter”

desmistifica a identificação pela cultura elitizada dos heróis oficias - para ser num fato

lúdico e transgressor Macunaíma na vida. (...) Florestan nos diz que:

Mário de Andrade vai compondo lentamente o seu herói e ao mesmo tempo um compêndio de folclore – Macunaíma é uma

cultural que é, tem sua evolução delimitada e determinada pela própria transformação da sociedade. Exemplo disso é a preocupação dos romancistas pelas massas, dando origem ao que muitos chamaram, erroneamente, de romances populistas e até romances intencionais de tese e romances sociais, que no fundo é uma das conseqüências das modificações das sociedades ocidentais e sua repercussão nas esferas da nossa cultura. 79 Esse movimento intelectual iniciado nos anos trinta (Era Vargas) e que tinha entre suas propostas pensar e retratar a formação do Brasil não se deu apenas na arte literária, mas também em outros campos da arte e do conhecimento, como na música, na antropologia, na sociologia e na história. Inegáveis foram as contribuições de Villa-Lobos (as Bachianas Brasileiras, O Trenzinho do caipira etc) ou ainda as oriundas das análises e estudos de Gilberto Freyre (Casa-grande e senzala – 1933) e Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil - 1936).

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introdução ao folclore brasileiro, a mais agradável que se poderia imaginar. Nele pode-se estudar a contribuição folclórica do branco, do negro, do índio, a função modificadora e criadora dos mestiços e dos imigrantes, as lentas, os contos, a paremiologia, as pegas, os acalantos, a escatologia, as práticas mágicas – da magia branca e da magia negra -, todo o folclore brasileiro, enfim, num corte horizontal de mestre. É um mosaico, uma síntese viva e uma biografia humanizada do folclore de nossa terra. (Idem, p.178)

Para Florestan, atuante foi a presença de Mário de Andrade em relação às análises

das questões históricas e sociais brasileiras, enfatizada sempre pela busca por dialogar com a

temática da identidade nacional e da arte popular, arte que habita e hospeda formas de fazer

literatura, de fazer cultura, de fazer música, de fazer história etc. Pegando de empréstimo as

palavras de Cecília Meireles (1976, p.90-92):

Foi essa riqueza humana (essa capacidade de compreender e sentir) que fez de Mário um poeta, um músico, um folclorista. Esse desejo de participação, esse entusiasmo de viver não uma, não a sua, mas inúmeras vidas, levaram-no até esse desdobramento do Macunaíma, tão misturadas ao Bem e ao Mal, tão entregue à experiência terrena e sem fim: ”Eu sou trezentos, sou trezentos e cinqüenta....” Basta ler os seus livros para se sentir o gosto com que ele os escrevia: gosto bem diferente do de um simples escritor; gosto do homem interessado pelo que viveu, ou sentiu em redor de si, e desejou fixar com palavras. (...) Na sua coleta de folclore, não é apenas um especialista que vemos prestar ouvido à melodia, captar a cantiga de texto ingênuo: é Mário mergulhando na música, impregnando-se de música, transformando-se em música e transmitindo-se com aquela voz, prisioneiro daquele encantamento de caçador deslumbrado que, por um momento esquecido de seu ofício, põe-se a correr também ao ritmo das vidas que palpitam na floresta, e ele mesmo é toda a floresta.

E é pela capacidade humana de pensar e sentir que a arte, a ciência, a cultura, a

política, a linguagem, a literatura – todo o conhecimento “controlado” e restrito a esfera da

dominação, deveria estar “de fato” ao alcance de todos. Pois os “grupos subalternos” podem

transformar o que chamam de realidade através da prática e da reflexão de um conhecimento

comunitário. E são esses saberes democratizados que provêm de uma determinada

concepção de mundo que podem tirá-los do isolamento, podem mobilizá-los, uni-los e

confortá-los nas angústias frente às incertezas e algures do mundo. Não seria, neste caso, a

linguagem entrecruzada por outros tantos conhecimentos, como os da literatura e do

folclore, fundamental via de acesso à produção do conhecimento crítico?

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Creio que tanto Mário de Andrade quanto Florestan Fernandes buscaram

compreender a arte folclórica como um elemento efetivo nos processos de mudança social

na cidade de São Paulo e no Brasil. E isso aparece tanto nas análises sociológicas propostas

por Florestan quanto nas contribuições não apenas literárias, mas de caráter curioso,

investigativo desenvolvido por Mário de Andrade em vários de seus estudos sobre a arte

folclórica. E se pensarmos em paixão pelo saber e fazer, o folclore certamente esteve para

Mario de Andrade assim como a sociologia esteve para Florestan Fernandes: “quase

amor”80.

3.1. Cultura da infância: compreendendo o folclore

infantil em Florestan Fernandes

80 Assim Mário de Andrade chamava o que sentia pelo povo e o folclore brasileiro. (FERNANDES, 2003, 169)

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Florestan Fernandes na infância.

Afirmo que iniciei a minha aprendizagem sociológica aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um

adulto e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade.81

(...)para um recém egresso dos quadros mentais da cultura de folk, aquela pesquisa era fascinante. Eu lancei-me a ela com um alvoroço de um primeiro amor.

Florestan Fernandes82

Florestan Fernandes nasce em São Paulo a 22 de julho de 1920. De origem muito

humilde, filho de uma costureira do Brás, conheceu o mundo do trabalho ainda muito cedo,

aos seis anos de idade. E como ele próprio afirma, se deu na infância o seu primeiro contato

81 FERNANDES, Florestan. A Sociologia no Brasil. Contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1980, p.142

82 Idem, 161.

117

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com a dura realidade concreta “do que é a convivência humana e a sociedade”, esta

realidade marcada pela injustiça social e pela desigualdade entre os homens.

A infância, que certamente pode ser um “viveiro de prazeres”, como diz uma crônica

de Luís Fernando Veríssimo, pode ser e ter juntamente com os prazeres um “viveiro de

desprezares”, principalmente se pensarmos na contingência da miserabilidade espalhada por

todo esse extenso território brasileiro de crianças e infâncias largadas à própria sorte ou à

falta de. Afinal, para aqueles que descendem das classes mais baixas a infância será já pré-

moldada com a expectativa de inúmeras superações. Comparadas às piores cenas dantescas,

podem se tornar filhos de uma espécie de mundo que os lança à invisibilidade e ao acaso das

calçadas, das ruas, vielas e barracos. Numa orfandade de cidadania, ou de políticas, logo de

início precisarão sobreviver e resistir à força bruta da opressão, neste caso: a própria vida

severina, já que não se tem outra de pia. E mesmo superando todas as primeiras etapas de

sobrevivência, difícil ou negado poderá ser o caminho que os levará à educação formal,

caminho fortemente marcado pelo desafio material e pela desconfiança quase sempre

punitiva daqueles que insistirão considerá-los à margem. Isso sem contar as intempéries e

todos os déficits de formação, decorrentes da distância abissal entre as camadas mais pobres

e as mais privilegiadas deste país.

Mas ainda assim, não podemos, numa visão reducionista, deixar de considerar a

capacidade de subversão do que pode parecer “destino definitivo”, afinal seria limitar toda

infância pobre a um rosário de dramas ininterruptos. O que também não se pode negar é que

mesmo vivida com mais “desprazeres” que prazeres, é na infância que mora a primeira

possibilidade de transgressão de lugar, de superação e não aceitação do factum. O primeiro

lugar de escolha e materialização da existência, do ser-no-mundo e do ser-com-o-mundo.

Tampouco podemos desconsiderar que a experiência concreta de uma dura realidade

social vivida desde a infância não se torne ela própria também responsável por uma visão de

mundo mais à derme dessa realidade, e conseqüentemente, mais sensível a essa realidade.

Mas também é essa experiência que cria em nós o desejo, o projeto de transgressão do

determinismo de origem. Foi o que Florestan Fernandes viveu – o pensamento sobre a

sociedade brasileira, a princípio, à derme e à flor da sua infância; depois, à flor da execução

de suas escolhas, de sua trajetória e existência. Como nas palavras de Antônio Cândido

(2001), que nos conta do sociólogo o caminho de vida por ele aberto:

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Falando de Florestan Fernandes, é preciso assinalar que, além da obra de sociólogo e da ação de intelectual empenhado nos problemas do tempo, além da atividade de professor, de formador de equipe, de criador de rumos na teoria e na investigação, ele realizou outra obra não menos admirável: a construção de si mesmo.

Quem leu as entrevistas em que conta a sua infância e a sua adolescência, as duras batalhas travadas para sair da mais extrema pobreza e alcançar posições elevadas, impondo-se à opinião culta do país e do estrangeiro; quem leu tais entrevistas sabe de que esferas partiu e a que esferas chegou. Mas talvez não avalie o trabalho consciente de aperfeiçoamento pessoal, sob todos os aspectos, que caracterizou a sua vida.

Com efeito, armado desde menino na campanha da sobrevivência difícil, ele manifestou frequentemente a sua energia por meio da combatividade e da intransigência dos lutadores íntegros, animados pelo “orgulho selvagem” – bela fórmula com que definiu a ele e a sua mãe, a indomável dona Maria Fernandes, sobreviverem e vencerem o mundo adverso. (p.65)

Por isso a trajetória humana e acadêmica do sociólogo Florestan Fernandes nos

instiga a um “querer saber” que é ao mesmo dinâmico e potencializador, “querer saber” que

precisa se fazer ação criativa, poiesis e práxis, transformação na luta contra as artimanhas

de um tipo de discurso estéril que esvazia de sentido qualquer possibilidade de reflexão.

Discurso que se dissemina, internalizado por muitos que deixam de acreditar numa educação

com esperança e para as mudanças, de uma educação que conjuga fatos e emoções,

objetividade e subjetividade.

O pensamento crítico e a ação mobilizadora são, de fato, possibilidades significativas

e efetivas de intervenção na realidade social. E que é necessário que o discurso da mudança

parta do pensamento e de um “sentimento” de mudança, de um desejo de mudança aliado à

ação da mudança. Mas como nos ensina Paulo Freire, não se faz isso sem assumir riscos,

sem que nos arrisquemos, até mesmo perdendo parte daquela falsa segurança, daquele

conhecido conformismo que nos protege da aventura e do sonho ou da dissipação “de tudo”

que nos protege do compromisso, do engajamento na ação transformadora.

Por isso torna-se mesmo inegável a contribuição de Florestan Fernandes aos campos

da Sociologia e da Educação no Brasil. E creio ser significativo notar que, mesmo mantendo

a sociologia como base de sua fundamentação e sustentação teórica, o que se refletiu em

toda sua contribuição acadêmica, Florestan Fernandes não se limitou a uma monocultura

temática, não se restringiu a único campo do conhecimento sociológico, o que, aliás, pode

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ser visto como qualidade inerente a sua notável inquietude e capacidade intelectual. E

nesse contexto e a partir de experiências diversas, datam de 1941 a 1962, uma série de

textos sobre o estudo sociológico do folclore, textos que foram reunidos e posteriormente

publicados nos livros “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo” (1979, 1ed.) e “O

folclore em questão” (1977, 1ed.). Esses estudos fizeram parte principalmente de um

período de formação em que o sociólogo paulistano ainda iniciava suas primeiras pesquisas

nas ciências sociais, passando nesse ínterim, de aluno de Sociologia da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras, em 1941, a segundo assistente na cadeira de sociologia II na

Universidade de São Paulo, em 1945.

Nesse primeiro período de estudo, Florestan Fernandes desenvolveu um intenso

trabalho de pesquisa na cidade de São Paulo. E dessa fase vale ressaltar a importante

contribuição empírica de um estudo sobre “a arte popular”, principalmente no que diz

respeito à criação de uma análise crítica que, debruçada sobre uma sociologia do folclore, se

amplia e se potencializa no chamamento para uma teorização de caráter investigativo, esta

centrada numa perspectiva prático-metodológica, ressaltando por sua vez “o folclore” como

relevante campo de conhecimento e pesquisa sociológica. Nota-se, desde então, a

objetividade e o rigor que Florestan Fernandes buscava empregar nesse fazer metodológico.

É com Florestan Fernandes que nasce então uma forma de reflexão metodológica que resulta

num “fazer sociológico”, este que ao legitimar a pesquisa é também legitimado por ela.

Movimento que se amplia e se modifica nas décadas seguintes e que pode ser compreendido

como umas das singularidades de um intelectual que buscou respeitar, sobretudo as suas

próprias mudanças com seus movimentos internos.

A década de 40 marcado pelo primeiro momento mais significativo de estudo e

formação de Florestan Fernandes pode ser descrito pela “construção do saber”, mas penso

que também possa imprimir à década “a construção de um fazer: um fazer sociologia”, a

construção que nas pesquisas e textos do sociólogo se evidencia num singular

intercruzamento metodológico: de um lado uma incontestável experiência empírica e do

outro, um enriquecedor universo de referências culturais da sociedade brasileira. Essa malha

teórico-prática vai se refletir no olhar crítico e rigoroso do pesquisador para questões nodais

da realidade social.

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Contextualizando aquele momento de formação, é interessante ressaltar “a

metodologia” adotada por Florestan Fernandes no trabalho realizado com pequenos grupos e

comunidades. E sobre essa escolha mais tarde ele próprio vai confirmar

(...) ser o melhor expediente para levar o aluno a refletir sociologicamente e aprender o respeito pelos dados de fato, a compreender e praticar a objetividade, a descobrir a utilidade dos conceitos e teorias sociológicas, a perceber o valor das hipóteses e dos critérios pelos quais elas podem ser submetidas à prova, a adquirir habilidades na identificação, classificação e tratamento analítico das evidências relevantes para a descrição e interpretação dos fenômenos considerados, a capacitar-se para lidar com a totalidade e a construir tipos etc. (FERNANDES, 1976, p.70-71)

Nota-se a preocupação do pesquisador com uma possível contaminação de elementos

não-objetivos que pudessem enfim criar uma episteme difusa, desviando o foco sociológico,

mas, no caminho da compreensão dessa metodologia, nos permitimos convergir em alguns

pontos e divergir em outros, sem retirar, é claro, o homem do seu contexto. Até porque

eram “outros tempos” e partindo daquele contexto e daquela possibilidade de referencial

metodológico, trabalhando com as comunidades paulistanas, Florestan Fernandes enfocou e

“investigou” o folclore como parte significativa de formação cultural e também como

elemento de mudança social. E é a aventura e o engajamento de Florestan nessa pesquisa

com o folclore que a torna ainda mais significativa que qualquer ruído de não-identificação

metodológica. Porque qualquer que seja a nossa escolha, ela será sempre em si – includente

e excludente.

Dessa fase de formação, talvez o texto mais exemplificativo seja “As Trocinhas do

Bom Retiro” (1979)83, uma pesquisa da fase inicial da vida universitária de Florestan

Fernandes. Para Florestan (1979, p.161), “esse pequeno trabalho” representou uma

passagem da iniciação didática para a iniciação científica, e nas suas palavras, ele lhe devia,

em termos de aprendizagem, muito mais do que ficara devendo aos cursos freqüentados

anteriormente.

Como bem disse Roger Bastide, no prefácio que faz a este significativo texto para o

estudo do folclore brasileiro, “não se pode compreender a cultura, separando-a do grupo

83 Com ele, concorreu ao concurso “Temas Brasileiros”, instituído pelo Departamento de Cultura do Grêmio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A primeira publicação é do ano de 1944.

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social que ela exprime”. (1979, p.134) Para Bastide, o folclore não era uma simples

curiosidade ou um trabalho de erudição, mas sim ciência do homem, e sendo ciência do

homem não poderia portanto esquecer o homem e no caso da pesquisa com grupos infantis,

não poderia esquecer “a criança que brinca”. (Idem, p. 154)

Na pesquisa com os grupos infantis, Florestan Fernandes elabora uma metodologia

de observação que não se esgota numa única “realidade vista”, mas que se amplia quando na

aproximação dessa realidade, abre um campo de distanciamento com o equilíbrio de quem

tem o olhar do pesquisador e a lente da pesquisa. Despindo-se do excesso de expectativas

lançadas a priori, desvela, de fato, o universo das brincadeiras infantis a partir do universo

brincante das crianças, sem carregá-lo assim também de respostas prévias. Como

pesquisador da cultura infantil era importante para ele que ao observar as brincadeiras das

crianças, fossem levadas em conta as características próprias do mundo infantil. Pois

afirmava existir uma cultura infantil constituída por elementos culturais quase que

exclusivamente das crianças. Esses caracterizados por uma natureza lúdica seriam elementos

folclóricos, passados aos grupos infantis muito remotamente. (Idem, p.171) Segundo ele,

quase toda totalidade desses elementos provinham da cultura do adulto numa espécie mais

de incorporação que de mimetismo, o que acabava por se constituir num processo de

aceitação e continuidade no tempo. Mas Florestan ressaltou também que era possível

encontrar “outros elementos” na cultura do grupo infantil, elementos provenientes da criação

de um patrimônio cultural próprio.

Partindo dessa leitura de Florestan Fernandes, consigo acreditar ainda mais que as

crianças tragam e guardem em si mesmas a herança de um velho mundo, um mistério lúdico

qualquer que, ao ultrapassar a possibilidade do registro adulto, renasça somente nelas, feito

semente do que houve de passado. Cada criança seria então “um patrimônio histórico e

cultural da humanidade”, precisando dessa forma cada uma receber o zelo necessário para

com o seu presente e futuro.

Para Florestan era a partir da junção dos elementos culturais, os aceitos da cultura do

adulto e também os elementos elaborados pela própria cultura infantil, que as crianças, na

interação com os aspectos culturais do adulto acrescentariam a essa interação, pensada aqui

também como simulação do real, uma dinâmica muito singular, numa lógica pertencente

apenas ao universo referencial do grupo infantil, que nas brincadeiras socializa brinquedos e

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experiências. Então haveria sempre algo de novo nas brincadeiras infantis. Aquilo que se

repete continuamente, mas de forma sempre diferente. Florestan diz que, os folguedos, por

exemplo, não seriam apenas a imitação do adulto por parte da criança, pois a criança não

estaria copiando quem quer que seja em seus folguedos, mesmo porque estes pertenceriam

ao patrimônio cultural do grupo e já estariam suficientemente despersonalizados, pela

duração no tempo e pelas transmissões sucessivas. (FERNANDES, 1979, p.175)

Exemplo dado pelo pesquisador para confirmar a apropriação dos elementos da

cultura do adulto, esta modificada pelos elementos referenciais da cultura infantil, poderia

ser encontrada nos folguedos “Papai e Mamãe” no qual

(...) a criança não imita o pai ou a mãe, mas executa as funções que lhes são atribuídas por sua posição e pelos seus papéis sociais, segundo a padronização da cultura ambiente. (Idem, Ibidem.)

Essa socialização da infância se dava num processo de educação informal dentro dos

próprios grupos infantis nas interações cotidianas. Tratava-se então de uma educação das

crianças, entre as crianças e pelas crianças”.(Idem, 176) Assim o pesquisador e sociólogo

Florestan Fernandes nos ajuda a pensar que a criança é um sujeito de memória, criatividade

e intuição, um ser cognoscente, capaz de interpretar e compreender o mundo a partir de

elementos elaborados por ela própria, brincando e reinventando interações e linguagens. É

um sujeito criativo que traz nas suas brincadeiras cotidianas elementos do mundo adulto, re-

significando-os a partir de uma cultura infantil. Por isso se faz necessário valorizar a criança

como sujeito criador de uma aprendizagem própria, capaz de discutir e construir novos

“sentidos e significados” na sua constante relação com o mundo e com os outros.

Quanto ao folclore infantil, Florestan chama a atenção para o fato desse ter sido

pouco estudado, não sendo o processo de transmissão dos elementos da cultura infantil

sequer analisado até aquele momento, década de 40, mesmo pelos mais dedicados

estudiosos dos fatos lúdicos. Pois para Florestan, os fatos referentes ao folclore infantil

consistiam, sobretudo nos “fatos lúdicos”, caracterizando-se por isso duplamente: sendo

recreativos e geralmente se restringindo ao círculo das crianças. (Idem, 190)

Como podemos notar, a pesquisa de Florestan Fernandes foi precursora em vários

aspectos hoje amplamente difundidos e pesquisados sobre a infância, assim como o lúdico,

as brincadeiras, o brinquedo. É esse princípio de reconhecimento de uma socialização da

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infância pela cultura infantil que também veio fortalecer as pesquisas que envolviam e hoje

envolvem muitos processos e práticas educacionais relativas à infância, bem como veio

também corroborar para com o respeito ampliado a essas questões e isso se deu pelo

surgimento de novos olhares para as tantas peculiaridades do universo cultural infantil. Pois

a criança é um sujeito de cultura inserido num contexto social assim como o adulto também

o é. O encontro desses sujeitos no espaço físico e temporal da escola faz do lúdico, da

brincadeira, do jogo, da linguagem e da cultura infantil, possibilidades de acesso a uma

educação democrática e emancipatória.

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3.2. A cultura oral como processo de significação e a

relação entre folclore e literatura na escola - Cala boca já

morreu...

Apresentação do Boi de Matraca, São Luís, Maranhão.84

Meu boi urrou, abalou os vagabundos, Cururuca não agüenta

as Mercês já foi ao fundo derribou uns bangalôs

que abalou o meio mundo.No mês de maio, quando amanhece

a sereia canta e a onda do mar sobe desce. No mês de junho, quando anoitece,

eu reúno a minha gente e o povo de longe já conhece.(Toada maranhense)85

Todo ano, no mês de junho, nas toadas de um folguedo de bumba-meu-boi como os

dos bois brincados em São Luís do Maranhão, a conhecida lenda de Pai José e Catirina é

renovada continuamente pelo cantar e pelo contar. E cada versão dessa história traz em si

84 Acervo pessoal. Junho/2009.85 Domínio público.

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novos elementos agregados pela inclusão de outras lendas, personagens míticos e históricos,

como Dom Sebastião e Ana Jansen, ou ainda personagens locais: repentistas, compositores,

cantadores, artesãos, poetas populares etc. E ainda que o bumba-meu-boi seja também

brincado em outras regiões do país, como no Pará e na Amazônia, as crianças dos outros

estados, certamente não terão um contato mais próximo com esse folguedo e sua

significância no quadro da cultura popular, a não ser pelas informações superficiais

veiculadas na mídia ou ainda pelos textos explicativos dos livros didáticos.86

Dessa maneira, dado o distanciamento espacial e temporal, a literatura infantil torna-

se hoje importante instrumento pedagógico de acesso a essa e outras artes populares,

justamente por buscar levar em conta a linguagem e a cultura infantil, até mesmo porque há

uma preocupação dos autores dessa literatura, principalmente os contemporâneos, com o

universo de referências das crianças, buscando não estereotipar a arte popular. Não

podemos generalizar ou até mesmo encontrar um consenso entre os críticos, mas é possível

encontrar autores infantis e ilustradores que tentam imprimir em seus textos e ilustrações as

sutilezas e as delicadezas de uma magia que habitava as narrativas antes apenas orais.

Quando pensamos na escolarização da literatura, devemos lembrar, que durante

séculos a literatura foi apenas narrativa oral e a própria arte popular que provinha do

discurso oral, como as trovas, as quadrinhas, as cantigas de roda, as adivinhações, todo esse

folclore como o concebemos hoje teve também como base constitutiva a contação de

histórias, causos, lendas. Assim, literatura oral e folclore foram sendo “transmitidos” e

preservados pela repetição narrativa dos feitos e saberes dos povos considerados agrafos.

Difícil dizer onde começa e termina o que é da literatura oral e o que é do folclore, dada as

tantas similitudes desse berço inicial. Isso nos faz pensar na importante tarefa da ação

narrativa dos primeiros grupos sociais. Pois era através da contação e permuta de suas

experiências, atravessadas por trocas lingüísticas e extra-linguisticas que se fazia a

preservação da cultura oral, podendo ela depois ser registrada como parte da literatura ou do

folclore ou ainda de ambos, se pensarmos no que de fato pertence ao campo da semiologia.

Afinal era pela semiologia que se dava a força imagética do uso da linguagem que fornecia

86 Em São Luís circula uma série de livros infantis que tratam das lendas locais de forma lúdica e com seriedade no tratamento. Ver as aventuras de Touchê e seus amigos, de Wilson Marques, que narras as estórias encantadas da cidade dos azulejos com as assombrações e as encantarias do Maranhão.

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aos homens de então subsídios semióticos potenciais necessários à criação do que viria a ser

escrito ou registro posterior.

Segundo Walter Benjamin (1987, 205), para a comunidade dos ouvintes: “contar

histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são

mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história”.

Benjamin nos instiga a pensar na troca de experiências que havia no ato de lembrar e narrar

dos povos antigos, povos que sabiam bem o que era contar, caçar e “colher” – essas palavras

que pertencendo ao mesmo campo semântico da palavra ler, nos levam ao campo semântico

das palavras fiar e tecer e nos desvelam do oral a escrita ou do tecido oral o registro do

texto.

E assim como o folclore foi e é uma arte do povo para o povo e pelo povo, a

literatura oral também o foi e é. E essas artes dialogadas criaram e criam, ainda que com

tramas distintas, uma conjugação única entre oralidade e memória. Isso se comprova na

persistência das narrativas que residem e ainda resistem ao esquecimento e à morte. Na

cultura oral mexicana, se diz que uma pessoa morre três vezes: quando morre fisicamente,

quando sepultam seu corpo e quando falam seu nome pela última vez. Porque carecendo

“ser” precisamos nos falar e falar e ouvir também nossos nomes, e assim carecemos também

nos contar e contar das nossas histórias, forma primeira de preservação de uma dada

inscrição de existência humana.

Mas não é somente através da transposição do discurso oral para o discurso escrito,

que conseguimos chegar à estrutura da língua, isso se faz também quando sempre, de

alguma maneira, refletimos sobre a finalidade dos textos orais e escritos, suas variações e

combinações, seus contextos linguísticos. Segundo Bakhtin “a língua não é o reflexo das

hesitações subjetivo-psicológicas, mas das relações sociais estáveis dos falantes”.(1986,

p.147) A língua está em constante mutação. Por isso ainda não conseguiram trancafiá-la na

silabação e palavração sem sentido que insiste dizer que o índio (brasileiro) tem dente de

elefante e que o coelho come repolho. A língua não como um ser acabado (ergon), mas

como um devir permanente, viva (energeia), dinâmica. Não se trata de um meio ou de um

instrumento que serve para atingir fins exteriores a ele, mas de um organismo vivo,

funcionando em si para si. (Bakhtin, 1986, 183).

127

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A oralidade, a leitura e a escrita são lugares com os quais interagimos com a

linguagem. Somos seres criadores dos mais diversos discursos e das mais diversas palavras.

E é através das palavras que nos comunicamos, que nos relacionamos. Bakhtin (Ibidem,

108-112) nomeou como dialogismo essa relação constituída no limite entre o meu discurso e

o discurso do outro. O ato comunicativo que parta de um princípio dialógico seria então

uma ponte entre mim e o outro, quando lanço minhas palavras ao outro, espero que ele, as

compreendendo, sinta-se estimulado a responder instigando-me a falar novamente. Dessa

maneira, quando interrompo a resposta do outro ou respondo por ele, bloqueio a

comunicação e caio nas teias dos monólogos disfarçados de diálogos. Segundo Bakthin, a

linguagem é, sobretudo, um fenômeno social, histórico e ideológico. Para ele, a

linguagem, assim como a consciência, não está apartada, inerte, distanciada da existência

humana. Ela é uma expressão dessa existência e se faz na alteridade, perpassada pelos

conflitos e pelos acentos peculiares inerentes à dinâmica comunicativa dos falantes.

A língua é nossa terra, é gaya, mas também é água, correnteza fluida que nasce

continuamente da nossa potência criativa através da cultura oral. O uso da língua nos

fortalece, por isso sem o reconhecimento do que falamos e do que produzimos enquanto

falantes, estaremos fadados à falta de território, pois sem uma identidade lingüística

valorada, sendo ela singular e coletiva, podemos nos tornar passivos diante dos perversos

processos de exclusão. Órfãos da nossa própria língua, submetidos às estruturas

hegemônicas previamente estabelecidas nos tornamos alvos fáceis de discursos que

fatalmente nos farão esquecer também a nossa própria história e o nosso próprio

humanismo. E citando Drummond, logo também esqueceremos a língua em que comíamos,

em que pedíamos para ir lá fora, em que levávamos e dávamos pontapés, a língua, breve,

entrecortada.87

Com o advento da escrita, as narrativas orais, importante campo de experiência e

aquisição do conhecimento, deixam de ter o caráter único de guardiã das histórias ágrafas

87 Poema: “Aula de português”. ANDRADE, Carlos Drummond de. Obra Poética, 7º Volume. Belo Horizonte: UFMG, 1990. Versos parafraseados:(....)Já esqueci a língua em que comia, em que pedia para ir lá fora,em que levava e dava pontapé,a língua, breve língua entrecortadado namoro com a prima.O português são dois; o outro, mistério.

128

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através das tradições culturais e passam a exercer o patamar de literatura universal através

dos registros literários. Mas quando escrita, primeiramente, protegida auspiciosamente pelos

monges em soturnas bibliotecas da idade média, tornava-se a literatura, privilégio de

poucos. E se a humanidade caminhou a passos rápidos para os tempos modernos, o que

dizer da literatura antes oral e compartilhada nos passeios públicos entre toda gente, ficando

isolada, restrita a partir de então aos domínios bem delimitados e fronteiriços de uma classe

elitista e privilegiada, tornando-se quase uma prisioneira das ilhas civilizatórias da escrita. E

isso sem dúvida fica mais evidenciado com o surgimento dos primeiros romances. A

literatura oral, assim como as prosas e as trocas comunitárias vão perdendo as ruas, as

praças, os centros públicos das cidades. Porém, por sua vez os homens e as mulheres vão no

pretenso silêncio do mundo privado, conhecendo pelo romance uma possibilidade única de

revitalização da arte que há no discurso oral. E quantas vozes surgiram.

Numa fase anterior ao romance e até mesmo à escrita era o repetere de uma estória a

sua única fonte de registro e há de se dizer que um registro sempre inédito, pois afinal a fala

guardava em si um ímpeto de movimento inaugural que, quando não interditada, seguia uma

fluidez enriquecedora. Daí o folclore e a literatura andarem confundidos no que concernia à

cultura oral, como bem evidenciou Florestan Fernandes numa de suas crônicas para o Folha

da Manhã em 1945:

O folclorista foi dos últimos a tratar dos fatos folclóricos - lendas, tradições, mitos, superstições, crendices, técnicas de cozimento do barro, de modelação, formas de cultivo da terra, estilos típicos de vida etc. - e quando êle surgia no Século XIX tinha diante de si um trabalho de notação tão grande, que poderia iniciar o estudo do folclore indiretamente, nas grandes obras, começando na antiguidade clássica no teatro grego e em Homero, passando por Vergílio e Petrônio, até chegar a Gil Vicente, Cervantes, Mistral... O folclore confundia-se na literatura, embora não houvesse preocupação alguma em se fazer arte popular. É, aliás, uma sobrevivência dessa fase muito extensa a idéia de que o folclore constitui uma parte da literatura.

Pois eram principalmente aos narradores primitivos e anônimos que se conferiam o

importante papel social de zelar pela cultura oral comunitária, de não deixar morrer a

história de um grupo, uma família, de um povo. Como griôs88 caçavam histórias e cantigas –

presas da criação humana. Portanto, o mundo simbólico e semiológico da oralidade fazia

parte da aprendizagem de mundo para esses povos sem grafia, mas não sem simbologia ou

88 Os mais velhos - sábios e contadores de histórias.

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semiologia. Esse processo de fruição sem separação entre oralidade e escrita foi vivido na

cantiga trovadoresca, a poesia da era medieval feita para ser cantada por um trovador, ao

som da lira. Lirismo compartilhado entre voz e música, cantiga e literatura.

Vimos assim que a literatura tem na voz o seu primeiro meio de expressão e na

escrita, tem por sua vez, enquanto registro, a garantia da permanência das sucessivas fases

de uma tekné, de um artesanato textual contínuo que se perpetua através dos séculos

laboriosamente renovado a cada leitura, a cada leitor.

Assim é que o suporte físico do papel tem contribuído para a “permanência da voz”.

Mas por outro lado, nem a representação escrita nem a icônica conseguem apreender por

completo todos os recursos que do texto oral, bem como as suas sucessivas modulações.

Quando usamos a nossa voz todo nosso corpo se movimenta e se expressa através dos

nossos gestos, das nossas entonações, dos acentos peculiares, da forma como nos

posicionamos em relação ao outro, falando e ouvindo.

A oralidade renova-se continuamente, podendo dar de empréstimo ao texto escrito,

novas cores, novas perspectivas, abrindo novos caminhos aos narradores. E isso se dá nas

manifestações da arte popular: nos folguedos, nas marujadas, nas pajelanças, nas ladainhas,

toda uma cultura oral nascida na coletividade. E essa expressão polifônica torna esse texto

coletivo oral semanticamente denso e quanto à forma, representativo de uma diversidade

fluída e multifacetada que se revela por meio das marcas dos seus produtores – os falantes,

os artistas, os brincantes.

Minha voz, minha vida, meu segredo e minha revelação, minha luz escondida, minha

bússola e minha desorientação...89 Percebemos que a voz transmite muito mais que

vocábulos, ela exprime nossos sentimentos e sensações, nos caracterizando como sujeitos.

É através da voz que conhecemos o estado em que se encontra quem fala. Nela inserimos

nossos desejos, emoções, crenças e vontades. Na teatralidade que envolve os folguedos é

também através da voz que chegamos a catarse, ao êxtase, ao aplauso que envolve a todos

durante a “performance”. Paul Zumthor (2003), nos ensina que

“performance” é um termo antropológico e não histórico, relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro,, performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um

89 Minha voz, minha vida. Letra e música de Caetano Veloso.

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momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de participantes implicadas nesse ato de maneira imediata. (p.50)

Na escolarização da literatura infantil90, ouvir e contar estórias é um importante passo

para a descoberta da leitura com gosto e da escrita com gosto. Pois quando narramos uma

história para as crianças permitimos a elas e a nós mesmos a oportunidade da observação, da

pesquisa com os sons e as letras, o que se dá no contato com a palavra falada e ouvida, que

difere da palavra lida e da palavra escrita. E ao lermos em voz alta, também mostramos às

crianças que há diferenças entre o som da “fala” (fonema) e o som da “escrita” (grafema),

entre os sons das letras. A criança passa a refletir sobre a língua e sobre sua diversidade,

sobre as possibilidades da escrita, até porque o sentido da escrita precede a escolarização da

escrita.

A audição de histórias descortina esse trinômio: “oralidade, leitura e escrita”,

desvelando o mundo “da linguagem verbal e não verbal, do processo interlocutivo no qual

se instaura a construção de sentidos” (Geraldi, 1993, 10). As crianças começam a perceber

que existem muitas possibilidades para os textos, aumentando assim seu repertório de

“palavras-mundo”. Aprendem que a voz também existe para levar leituras, histórias,

dramatizações e emoções aos ouvintes e desse feito, aprendem e ensinam as palavras

geradas e geradoras.

Nos sentimos mais próximos quando há uma voz por perto, ativamos nossa fantasia,

nosso imaginário. Pois existe e persiste no eco de nossas vozes o espírito dos avós, bisavós,

dos professores, dos contadores de histórias, dos poetas, dos compositores, dos artistas

populares. Inúmeras vozes que ao emudecerem falam e renascem através de nós.

Na educação das crianças, como também nos ensinou o mestre Paulo Freire, a leitura

de mundo precede a leitura da escrita. Pois ao chegar à escola em fase pré-escolar, a

criança ainda pode ser instigada a exercer sua cultura, sua linguagem, seja através de

brincadeiras, jogos lúdicos, relatos do seu cotidiano. São muitas as brincadeiras folclóricas,

as “rodas”, os teatros de marionetes, as contações de histórias, as cantigas, as trovas, os

versinhos, tudo isso num exercício contínuo de cognição e linguagem da fala e do corpo.

90 Ver sobre o termo: SOARES. Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. BH: Autêntica, 1999.

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Mas a continuidade dessas práticas escolares que trazem a brincadeira e a oralidade como

práticas centrais de aprendizagem, ou até mesmo circundantes, continuam a perder espaço

no cotidiano escolar quando pensamos na fase posterior – já no 1º ano ou alfabetização, o

que se agrava ainda mais nos anos subseqüentes do ensino fundamental. Como se a

oralidade, a brincadeira e o folclore fossem perdendo o “valor educativo” para dar lugar ao

“sério”. Para Florestan Fernandes (2003, p.65):

Sem dúvida, há diversão atrás das atividades folclóricas: mas há também uma mentalidade que se mantém, que se revigora e que orienta o comportamento ou as atitudes do homem. A criança ou o adulto, por seu intermédio, não só participam de um sistema de idéias, sentimentos e valores. Pensam e agem em função dele, quando as circunstâncias o exigem.

Ainda assim, privilegia-se a prática da escrita e dos “deveres” em detrimento das

práticas folclóricas que envolvam o lúdico e a oralidade, sem que se leve mais em conta o

fato da criança também construir aprendizagem a partir da sua própria cultura, da sua “fala”,

da sua “pesquisa” de mundo, amalgamando realidade e imaginação. É a partir do lúdico, da

linguagem, da “fala” que é voz e corpo que a criança conhece e experimenta as descobertas

do mundo, manipulando um universo de hipóteses, desvendando “o velho no novo”. O

professor não é o ponto final do desenvolvimento que os estudantes devem alcançar. Os

estudantes não são uma frota de barcos tentando alcançar o professor, que já terminou e os

espera na praia. O professor também é um dos barcos da frota. (1987, p.66.)

Sabemos que diferentes tipos de saberes convivem sob o mesmo teto do ambiente

escolar, mas ainda assim é o modelo “escrito-escolarizado” que prevalece como único a ser

seguido de forma normativa. Contar histórias parece ser uma perda tempo, retrocesso

saudosista ou ainda conhecimento atrelado a um passado de colônia com suas práticas de

dominação. E Monteiro Lobato (1957, p. 3) vai “fazendo escola” com as Histórias de tia

Nastácia e Dona Benta:

- As negras velhas - disse Pedrinho - são sempre muito sabidas. Mamãe conta de uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas, uma de nome Esméria, que foi uma escrava de meu avô. Todas as noites ela sentava-se na varanda e desfiava histórias e mais histórias.

A linguagem que provém do povo nas histórias folclóricas - a linguagem que é

fazimentos; que resiste viva ao silenciamento normativo da linguagem legitimada por um

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grupo seleto de donos do saber é a linguagem que emerge para nos fazer refletir sobre o

contexto ideológico que limita e separa as modalidades dos discursos. Pois linguagem é

conhecimento coletivo e assim deverá ser para que se mantenha livre, para que liberte e

humanize pela oralidade e pela oratória, ou seja, nos seus mais diversos usos e contextos.

Objetivo impossível de ser alcançado sem o exercício da compreensão dialógica entre os

homens.

Essa oralidade que pertence a todos os falantes pode ser compartilhada como

conhecimento a partir dos mais distintos contextos lingüísticos. Pois as palavras faladas se

tornam imagens e as imagens retornam ao texto oral, acompanhadas de perto por nosso

olhar atento, pousado ou na escritura do lido ou absorvida pela escuta atenta de quem ouve

uma história. E, se por acaso, nos distraímos na leitura do texto escrito ou na audição do

texto falado, o encanto meio que se quebra e então perdemos parte da magia. Neste caso, o

silêncio de quem ouve é tão importante quanto a voz de quem fala. Saber ouvir é então saber

participar da fala do outro, respeitando o encantamento de cada lugar. E são os dois juntos,

falante e ouvinte, que perfazem a leitura e a escuta dialogadas.

Ainda sobre a cultura oral, há ainda uma passagem muito bonita num texto de

Pierre Lévy (1993, 84): “Os três tempos do espírito: a oralidade primária, a escrita e a

informática” em que ele fala da persistência da oralidade nas sociedades modernas:

Finalmente, a literatura, pela qual a oralidade primária desapareceu, hoje tem talvez como vocação paradoxal a de reencontrar a força ativa e a magia da palavra, essa eficiência que ela possuía quando as palavras ainda não eram pequenas etiquetas vazias sobre as coisas ou idéias, mas sim poderes ligados à tal presença, tal sopro... A literatura, tarefa de restituição da linguagem para além de seus usos prosaicos, trabalho da voz sob o texto, origem da palavra, de um grandioso falar desaparecido e, no entanto sempre presente quando os verbos surgem, brilham repentinamente como acontecimentos do mundo, emitidos por alguma potência imemorial e anônima.

Gostaria de incluir nesta passagem de Lévy além dos verbos, os personagens: os

contadores de causos, de histórias – personificações da oralidade dentro da literatura,

sobretudo na literatura infantil. Seguindo de perto os dizeres de Lévy e entrecruzando-os às

palavras de Florestan Fernandes nesse desafio que é pensar as relações entre a literatura e o

folclore nas práticas textuais, é que me propus compreender o tempo ido da tradição oral e o

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tempo volumoso das cheganças da cultura infantil, tempo atravessado por uma memória

coletiva e mítica, tempo atravessado pela mudança que é também um construído cultural

feito em palavras, pois a palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (Bakhtin,

86, 37).

O tempo urge e se faz ainda mais necessário desejar que a linguagem oral e o

folclore entrem, enfim, pela porta da frente da escola, seja por via do cênico, do cômico, do

trágico, do fantástico ou do lúdico. E fica também expresso o desejo de ver banido das

práticas escolares o uso da escolarização “sem a experiência dos sentidos” e o desejo de não

ver mais a leitura de textos literários apenas como “dever obrigatório”, principalmente a

leitura dos poemas e dos textos infantis, lidos a fim das argüições que castram e reduzem o

texto à uma orquestração de sons a favor da guilhotina da palavra nossa de cada dia, palavra

que só nos pede a entrega. Mas não há entrega ou escolha sem riscos. Por isso as crianças se

lançam a descobrir a novidade do mundo arriscando-se: cutucando, virando de ponta à

cabeça, olhando pelo avesso, tirando as camadas, tirando de esquadro, subvertendo a lógica

do pré-estabelecido para reinventar o dito e o pensado do mundo com arte.

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Narrativas Memorialísticas

de Professores ...

"Todo mundo tem sua Madeleine, num cheiro, num gosto, numa cor, numa releitura - na minha vidraça iluminada de repente! - e cada um foi um pouco furtado pelo petit Marcel porque ele é quem deu forma poética decisiva e lancinante a esse sistema de recuperação do tempo. Essa retomada, a percepção desse processo de utilização da lembrança (até então inerte como a Bela Adormecida no Bosque do inconsciente) tem algo da violência e da subitaneidade de uma explosão, mas é justamente o seu contrário, porque concentra por precipitação e suscita crioscopicamente o passado diluído - doravante irresgatável e incorruptível. Cheiro de moringa nova, gosto de sua água, apito de fábrica cortando as madrugadas irremediáveis. Perfume de sumo de laranja no frio ácido das noites de junho. Escalas de piano ouvidas ao sol desolado das ruas desertas. Umas imagens puxam as outras e cada sucesso entregue assim devolve tempo e espaço comprimidos e expande, em quem evoca essas

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dimensões, revivescências povoadas do esquecido pronto para renascer."

Pedro Nava

Baú de ossos, p. 291/292

Água

Dona Dedé91

91 Josefa Alves Pereira, minha avó materna.

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Em especial, a água é o elemento mais favorável para ilustrar os temas da combinação dos poderes. Ela assinala tanta substância! Traz para

si tantas essências! Recebe com igual facilidade as matérias contrárias, o açúcar e o sal. Impregna-se de todas as cores, de todos

os sabores, de todos os cheiros. Compreende-se, pois, que o fenômeno da dissolução dos sólidos na água seja um dos principais fenômenos dessa química que continua a ser a química do senso comum e que, com um pouco de sonho, é a química dos poetas.

(Gaston Bachelard)

Uma vez, no auge do inverno, quando flocos de neve caem como plumas das nuvens, uma rainha estava sentada à janela de seu palácio,

costurando as camisas de seu marido. Nisto, levantou os olhos, espetou um dedo e caíram gotas de sangue na neve. E vendo o vermelho tão

bonito sobre o branco, a rainha pensou:-- Queria ter uma filha tão alva quanto a neve, tão vermelha como este sangue e tão negra como o

ébano desta janela. Pouco tempo depois lhe nasceu uma filha que era branca como a neve, vermelha como o sangue e com uns cabelos negros

como ébano. Por isso lhe puseram o nome de Branca de Neve. Mas, quando ela nasceu, a mãe morreu...

(Branca de Neve, Irmãos Grimm)

Memorial de um Porto:

De véspera

Eu já fui chamada de esquisita... E o meu esquisito também sempre foi para o dentro do umbigo das coisas. Embora eu sempre tenha sido – aparentemente – mais para o fora. Era a que vivia sonhando – ainda vivo, a que vivia escrevendo – meu Deus, sobre o quê? A que chorava à toa e à toa também ria do nada, a que matava aula pra fugir pro aeroporto, eu morava bem perto do aeroporto em São Luís. E ficava por lá, horas e horas perdidas a fio, vendo os aviões, as pessoas que chegavam e partiam com malas e notícias. Ficava imaginando como viviam, onde moravam, com quem. Reparava as expressões pra tentar adivinhar o que estavam sentindo: saudade por alguém que ficou, alegria por chegar, tristeza, solidão.

Nessa época eu morava com três velhos, três irmãos: vovó, tia Marta e tio Inácio. Éramos os extremos dentro de uma casa em ruínas, cheia de esquisitices. Tia Marta passava o dia inteiro

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falando sobre a sua própria morte: como iria, quem a carregaria, quem choraria, como seriam as horas, as flores, o padre, as muriçocas, planejava, planejava e nunca estava doente. Não. Era viva, viva até demais, tão viva que só pensava na morte – danada, que nunca chegava, nunca acontecia até acontecer como acontece mesmo. Minha avó, sobre suas muletas, era só os silêncios e afetos pra mim, como que me compensando pelas faltas, perdas, dores – nossas, todas, da família. E suspirava... Era costume suspirar naquela casa. Os fatos suspiravam e vovó contava as histórias dos que já se tinham ido pelos anos a distanciar. E eu olhava para o umbigo das coisas, para o olho das perguntas: quando? Por quê? Como se explica o tempo desentendido a respingar a lama velha dos dias de chuva, quanta chuva, nossa senhora, credo cruz, ave maria! Era uma danação de chuva. Todos choviam naquela casa. Tio Inácio. Tio Inácio ria sem dentes, ficava o dia todo naquela lentidão de existir, como alguém que diz pra si: a vida vai diminuindo de tamanho, ficando no corpo menor, como música que termina no som diminuído. A gente decrescendo até partir. Deviríamos sumir, isso sim, espoeirar, espalhando cinzas poucas para serem varridas para os quintais, misturadas com comida de galinha, esterco, adubo de planta comum. Sem dar satisfação de deixada. Deixou-se pela manhã, ninguém viu, deixou-se na ventania que correu a plantação de mato qualquer! Tio Inácio era a poeira do tempo, aguardando não sei quem, acho Dom Sebastião, chegando pelo Porto de São Mateus. Tio Inácio era o próprio tempo deitado e assombrado na rede. O dia todo. A noite toda. Era gente? Era rede? Os dois, parte a parte, imbricado, deixado corpo diminuto.

E eu?Eu amava os velhos, amava a morte, o silêncio e o tempo.

Sabia ali que nunca mais seria parecida com o restante das outras meninas ou mulheres. Eu olhava para o dentro das coisas e me perdia, esquecia até de ser gente. Era meio coisa também. De mente?! Eu ficara velha antes de ser menina, mulher antes de moça, ia andar ao revés, de trás pra frente, ficando cada vez mais criança e louca. Esquisita e esquecida de ser velha, e no tempo da velhice iria espoeirar. Pensei: tomara então alguém lembrar de mim quando ninguém mais lembrar nome ou idade. Tomara que ao tomar minha mão, eu criança, desmemoriada de futuros, saiba reconhecer nele ou nela o amor que existiu em

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alguma vida passada ou restante. Até o fim, quando eu perder toda linguagem, voltar pro ventre de minha terra salgada de mar e existência, liberta, deixada natureza, dando pé de raiz.

CAPÍTULO 4

Do mirante ao horizonte: Sebastianistas e Quixostecos na espiral da reinvenção

Como e por onde começar as minhas memórias? Hesito. Devo começá-las pelo início de minha existência ou pelo fim? Pois se é preciso começar comecemos pelo começo.

Oswald de Andrade

Desde a minha meninice venho aprendendo a contar estórias, aprendi com vovó e

com todos os contadores e cantadores da minha numerosa família maranhense: brincantes do

bumba-meu-boi, poetas populares, artistas da palavra e do cordel. E diziam os da ilha e de

todas as línguas - exímios “mentirosos”. E sobre “mentira” aprendi com Dona Marta: “se

mente uma coisa três vezes, na quarta, ra-paz, já é verdade”. Minha tia talvez nunca tenha

ouvido falar numa tal Emília de Monteiro Lobato, mas bem se parecia com ela em

eloqüência e chaves de tamanho, falando lá do alto de sua “sabença”. E disse também Marta

Emília ou Emilia Lobato que um dia leu de Mário Quintana92: a mentira é uma verdade que

se esqueceu de acontecer. E sobre os caminhos dialéticos e vertiginosos da “verdade” que,

também miticamente, não nos cansamos de buscar, disse também Drummond93:

92 Disse Mário Quintana em entrevista à Edla Van Steen: “Se você conhecesse o meu eletroencefalograma... Bem, temo o perigo das falsas recordações. Embora não acredite na observação direta, acontece que tenho tal poder de visualização que às vezes não sei se aquilo que evoco eu vi mesmo ou foi algo que me contaram, ou apenas imaginei. Mas há muito descobri que a mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer. Como vê, nada disto leva a um livro de memórias, só pode levar a um livro de poemas.

o poema,essa estranha máscara,mais verdadeira do que a própria face...”

* STEEN, Edla Van. Viver & escrever. V.1. Porto Alegre: L&PM, 2008. 93

? Poema: Verdade. Andrade, Carlos Drummond de Andrade. Alguma poesia. Belo Horizonte: Edições, 1930.

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A porta da verdade estava aberta,mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,porque a meia pessoa que entravasó trazia o perfil de meia verdade.E sua segunda metadevoltava igualmente com meio perfil.E os meios perfis não coincidiam.

Arrebataram a porta. Derrubaram a porta.Chegaram ao lugar luminosoonde a verdade esplendia seus fogos.Era dividida em metadesdiferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.Nenhuma das duas era totalmente bela.E carecia optar.Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Do mirante de onde pude enxergar minhas meias verdades, talvez conforme a minha

miopia ou a minha utopia, segui de perto um fluxo de rio que corre e morre mar, e

comungando com Drummond: carecendo optar, careci optar. Ah, se eu me chamasse

Raimundo... E a cada escolha de verdade ou horizonte, de certo que, inexoravelmente,

inaugurava outras tantas desescolhas de “estar sendo”. Daí que também aprendemos desde

cedo que quem se vale da narrativa - que era ali, naquela água morna e volumosa, a

contação de estórias e histórias, de ficção do ser, de ser múltiplo na mesma embolada, não

carecia ter qualquer compromisso com um único modelo de verdade, com uma única versão

de história ou de memória desta.

A narrativa da nossa própria história traz pelo fluxo da oralidade uma espécie de

persistência de não aceitação de verdades sociais e culturais deterministas e esta persistência

transmuta-se pela própria imaginação – ludus e potere.94 A imaginação guarda uma

potencialidade de reinvenção das estórias e das histórias pela reinvenção fluxa da narrativa,

pela materialidade da memória oral no mundo histórico através das metáforas, das imagens,

das invenções criadas para a existência. Contar sua história através das estórias é uma forma

94 Do latim, ludus: “jogo”, “brincar”; potere, no latim vulgar: “ser capaz”; “ter a faculdade de”.

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de insubordina-se a qualquer tipo de determinismo ou profecia. É água. Volume. Voz.

Fonte. Fluxo. Fluído, pois:

O lírio que dá no campoNa água nasce uma flor

A minhaEra flor de Oxum Pandá, Oxum Maré, Oxum Docô

Através da voz o contador e o cantador exercem desde sempre um “dizer” e uma

magia. E há em toda invenção de estória ou da história uma resistência, a sobre-vivência

“tinhosa” de uma gente que conta e canta de tudo e que de tudo que existe conta95 e que,

pela tradição oral, conta de ouvido contos de sedução e fantasia: águas que banham de

fascínio a palavra, pela falação de mundos, absurdos até: os surreais, os imaginantes. Os

prosopopéicos como ouvi um dia numa embolação que me chegava aos ouvidos. E que para

alguns, de certo, não passava de verborragia desconexa. E eu gostava mesmo era daquele

palavratório sem fim e de olhar bem dentro nos olhos de quem escutava uma história, os

olhos da escuta atenta, uma escuta afetuosa e sensível: “conta mais que eu quero ouvir –

conta mais que também depois quero contar.” Era apropriação legitimada da palavra do

outro, sem medo de encontrar o que do outro em nós ainda era mistério. Alteridade e

religare.

As emboladas – chamadas assim por lembrarem a imagem das redes de pesca antes

de serem lançadas ao mar - nos chegavam através da voz mítica das velhas tradições

maranhenses, dos contadores de causos e lendas, dos contos fantásticos e mentirosos. Das

emboladas surgiam os nós das estórias, os nós das narrativas orais.

E foi tio Inácio quem me ensinou que a entonação era extremamente importante,

falar alto ou baixo conforme a ocasião, fazer voz de susto, de bruxa, de assombração, fazer

voz mansinha para criança que vive dentro da gente ficar acarinhada e dormir. Éguas,

menina, que coisa besta é falar pra dentro dos miolos. Que eu gosto é de falar vasto e

variado. Dizia tio Inácio. Era uma palavração com sentido, consentida num grande

parangolé. 96Aprendi com os contadores dali que o corpo falava linguagens só pertencidas a

ele, que era o corpo que amplificava a voz de dentro “dos miolos” para fora “no vasto e

variado”, o corpo era a caixa de ressonâncias, curvando-se, remexendo-se, variando com as

mãos, os dedos. “Variando” é que é bom. Porque o corpo trazia consigo instrumentos

95 “Tudo o que existe conta” é título de um conto de Adélia Prado. 96 Gíria:conversa fiada, prosa, lábia etc.

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únicos, metafóricos e lúdicos de gestos, jogos, mímica, dramaticidade e dança, outras vozes,

vozes milenares, vozes de todos os outros que nos habitavam e habitam. Estamos todos nós

cheios de vozes que o mais das vezes mal cabem em nossa voz...97

Cedo também o contador de estórias descobre que poderá manusear um mundo

artesanal de linguagens, um mundo dentro de outros mundos, como na simbologia de uma

“matrioshka”98, com camadas que podem a todo momento deflagrar novas formas de existir.

A voz e a performance criam múltiplas ambiências. A voz que é sempre única e é

insubstituível é também um intransferível instrumento de ação a disposição dos contadores e

cantadores.

A voz que não pode ser monótona, que precisa criar dinamizações, sons,

experiências com os sons, com o que há de linguagem antes da palavra. As crianças bem o

fazem porque experimentam os sons antes de falarem, experimentam texturas sonoras e

fazem isso com ludicidade, brincando com os sons, com os malabarismos sonoros, com os

mantras, as onomatopéias, “a repetição” – esse termo tão condenado, tão associado ao

fracasso e que tem também muitos aspectos positivos quando se trata da aprendizagem da

linguagem do mundo. Aprendemos por tentativas e repetições. Daí sairá o improviso, o

repente e o desafio com suas rimas desconcertantes e todo seu universo lúdico de escárnios,

parte herança das cantigas medievais trovadorescas. Por isso os cantadores estão próximos

dos trovadores e são criadores da poesia popular. E faz parte de uma voz coletiva que

precisa e merece ser cuidada para que não adoeça, para que não morra.

O medievalista Paul Zhumthor (1993, p.21), sobre a oralidade, que preferiu chamar

de “vocalidade”, esclarece que99

Uma longa tradição de pensamentos, é verdade, considera e valoriza a voz como portadora da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes. Não bastante, o que deve nos chamar mais a atenção é a importante função da voz, da qual a palavra constitui a manifestação mais evidente, mas não a única nem a mais vital: em suma, o

97 Gullar, Ferreira. Muitas Vozes, 1999.

98 Ou “matryona”, “boneca russa”, brinquedo da tradição russa que simboliza o feminino e a fertilidade. É composto por um conjunto de bonecas ocas colocadas uma dentro da outra.

99 Em seus estudos sobre “poesia medieval”, para se referir e definir a “oralidade”, Paul Zhumthor, usou o termo “vocalidade”.

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exercício de seu poder fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e de organizar a substância.

A voz revela o nosso estado, os nossos humores, de como nos sentimos diante do

mundo, se sofremos interdições, se somos silenciados, intimidados. Nada mais triste que

uma voz considerada sem ênfase ou de uma narrativa considerada sem ênfase.100 O que

gera essa substância tão significativa a partir desse aparente tecido frágil feito de linguagens,

que provém da cultura oral, para aquilo que se traduz de voz, sua concretude, é senão uma

poética, um fazer de imagens criadas e religadas que permitem um acesso único e imaterial à

memória ou memórias das narrativas arcaicas. E assim, quando se tornam elas, memórias

religantes, feitas então de imagens e palavras, o discurso encarnado na voz de quem conta

sua história retorna às memórias num fluxo descontínuo de improvisos, compondo-se de

fragmentos em mosaicos, desencaixes que se encaixam para além das fronteiras entre o que

havia do imaginário, do simbólico que se vive, do real que se inventa para viver e lembrar.

Nesse contexto, refletir sobre o lugar da voz que fala, da voz que canta, da voz que lê é

refletir sobre o lugar da literatura na escola.

A magia da linguagem é antes a magia dos sons, das explorações de sonoridades, dos

ensaios, das possibilidades acústicas que podemos produzir com nossa língua encostando-a

no palato ou com os sons guturais feitos na garganta, com os nossos vocalizes, com os sons

das nossas cavernas, das nossas cordas vocais, do ar que inspiramos e expiramos, dos

exercícios atonais desse laboratório de ressonâncias que é a voz. Os sons fazem parte antes

de outra aparelhagem, de outra linguagem antes da linguagem. E a sua desarticulação, suas

cacofonias, é que vão criar melodias inéditas, porque rompem com o previsto. Lembro de

minha avó nas suas improvisações de ninar, com seus acalantos únicos de “hum, hum,

huns...”, voz firme de quem embalou gerações de forma única:

Boi, boi, boi, boi da cara pretaPega essa criança que tem medo de careta...

Hum, hum, hum, hum, hum, humHum, hum, hum, hum, hum...

100 Vinicius de Moraes - Poesia Completa e Prosa, Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998, pág. 383.

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A voz da candura, do encantamento, da magia do sonho antes da chegada do sono e

do estado de vigília era também a voz da prece que nos livrava da morte que, principalmente

em tempos mais difíceis, podia ser sempre repentina.

Com Deus me deito,Com Deus me levanto,Com a graça de Deus

E do divino Espírito Santo,Que me cubra com o seu divino manto.

Se eu bem coberto for, Não terei medo, nem temor.

Senhor de mim quero a minha almaA Vós entregar.

Se eu dormir, acordai-me,Se eu morrer, alumiai-me...

Essa dimensão lúdica e fantástica dos acalantos que embalam a nossa infância é uma

dimensão que traz elementos do mundo da fantasia, do sonho antes do sono. A voz que

encanta é a voz que nos fala dos seres de outro mundo e desse mundo, dos seres

extraordinários como o bicho papão e a cuca ou côca, o boi da cara preta, boi do currá101.

Quem nunca ouviu ou nunca foi embalado por acalantos com seus espantos e sobrenaturais?

Bicho papão sai lá do telhadoDeixa esse menino dormir sossegado

(...)Dorme neném que a Cuca vem pegar...

As primeiras imagens nos são ofertadas desde pouca idade por nossas mães, nossas

avós, tias, as bás, todo um universo feminino que transita por nossa infância com muito de

presença e por isso mesmo muito de intimidade e todas as imagens superpostas falam das

preocupações, dos medos maternos, dos desejos e culpas maternas, todos esses lugares

líquidos com águas limpas e águas turvas, cachoeiras e pântanos. Depois das águas do

ventre serão essas as nossas primeiras experiências de água viva, as águas de imagens de um

imaginário mítico, com elementos do sublime e do grotesco, de representações paradoxais.

E que com gentileza nos são ofertados o temor do boi da cara preta que vem pra nos pegar e

a prece que vem pra nos guardar, contradições num jogo entre claros e escuros, entre luzes e

101 Ouvir Contos, cantos e acalantos, de José Mauro Brant com produção de Tim Rescala. Biscoito Fino.

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trevas, entre os anjos da vida e os anjos da morte, simbologia presente nas imagens com as

quais significamos a vida e a morte: a criança que é o anjinho, os anjos que protegem a

criança de serem comidas por seus predadores e que também podem ser comidas por nós:

ah, eu vou comer esse bebê, de serem seduzidas e dominadas por um demônio que também é

anjo ou por Lilith, a versão demoníaca do feminino. Imagens que saltam do nosso

primitivismo.

O lugar comum do imaginário infantil que aparece nos acalantos e contos orais

arcaicos está repleto de monstros, bichos ferozes, jacarés, dragões, faunos, unicórnios,

bruxas horrendas e fadas madrinhas, todo um mundo imagético habitado por lobos maus que

devoram nossa infância e comem a nossa vovozinha bem antes até do que supúnhamos ou

como nas lendas, um mundo habitado por um boi que além da “cara preta” tem um passado

mítico, pois descende de um Minotauro102, metade homem, metade touro, que num labirinto

vive a espreitar as nossas vidas também querendo nos devorar.

Assim como também nas preces e orações a presença da morte, de uma morte

eminente sonda a nossa alma. Se voltarmos às origens dos acalantos ou ainda das preces,

entenderemos que o lugar do mistério, do oculto do sono suscita uma avalanche de imagens

associadas “aos anjos da noite”, “dormir em paz”, “dormir nos braços de nossa senhora”,

“dormir com os anjos”, “ser anjo”, “subir aos céus”, “viver a queda”, “cair no abismo”. Na

infância vivemos imagens oníricas cheias de simbolismo e muitas delas surgem das palavras

de conforto e terror que apreendemos da relação tão delicada com a nossa primeira fonte de

estórias e memórias. Temos nessas primeiras narrativas orais a constante intervenção do

mito e do fantástico no real. E tudo isso tanto nos afaga quanto nos apavora num misto de

amor e medo, de desejo e horror. E não por acaso nossas memórias, nossas narrativas

memorialistas se assemelham quando tentamos reconstituir essa primeira paisagem da

Infância, porque as imagens dessa infância também fazem parte do nosso “Inconsciente

coletivo”.

Lembro a primeira vez que li as memórias de Jung e as fui confrontando com as

minhas próprias memórias, também eu apavorada com as similitudes que ia encontrando na

leitura. E me questionava: como pessoas em tempos e lugares tão distantes poderiam viver

102 Ver: BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Vol. 2, 2 ed. Ed. Vozes, Rio de Janeiro,

1991.

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na carne e sentir no espírito com elementos simbólicos tão aproximados significados tão

parecidos? Lembrando que parecer não é ser. Achei de uma ousadia a comparação e ao

mesmo tempo me senti menos sozinha no mundo. Eu e muitos e muitas compartilhávamos

de um sentimento profundo de religiosidade e tínhamos nós uma atração maior pelo vivido

dentro do que pelo vivido fora.

Narrou Jung103:

Nessa época eu sentia angústias vagas durante a noite. Aconteciam coisas estranhas. Ouvia-se incessantemente o estrondo abafado das quedas do Reno, toda a região em torno era perigosa. Homens se afogavam, um cadáver despencara do alto, sobre as rochas. No cemitério vizinho o sacristão cava um buraco revolvendo uma terra parda. Homens negros e solenes, de fraque, chapéus de uma altura incomum e sapatos pretos e lustrosos carregavam um caixão negro. Meu pai está presente, em seu traje de pastor luterano, e fala com voz ressoante. Mulheres choram. Parece que enterram alguém no fundo da cova. Depois certas pessoas que antes estavam entre nós subitamente desaparecem. Ouço dizer que foram enterradas, ou o que o Senhor Jesus as chamou para junto de si...

Minha mãe me ensinara uma oração que eu repetia todas as noites, de bom grato, pois isso me dava um certo sentimento de conforto diante das inseguranças e ambiguidades da noite:

Estende tuas duas asas,Ó Jesus, minha alegria,E protege teu pintinho.Se Satã quiser devorá-loFaz cantar os teus anjinhos:Que esta criança fique ilesa.

O Senhor Jesus era confortante, um senhor afável e benevolente como o senhor Wegenstein do castelo: rico, poderoso, estimado, cheio de solicitudes para com as crianças durante a noite.

Lembro que quando criança era costume nosso, da família, acompanhar os velórios

dos vizinhos e parentes. Isso numa época que ainda se velava o corpo na casa, no quarto, na

sala. Claro que nós, “crianças”, queríamos mesmo era comer bolinho de fubá e biscoitinhos

de nata. A morte era pública, devassada, todos sabiam do morto e a ele bebiam por toda 103 JUNG, Carl Gustav. Memória, Sonhos, Reflexões. Trad. Dora Ferreira da Silva. 1 ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p.39.

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noite. No enterro de minha avó, ouço o comentário de um dos tios: - Gente, Dedé agora está

entrando no céu, que felicidade! Já encontrou seu Mário, tio Bidu, Boró... Era impossível

não rir. Uma alegria fortuita de repente nos invadia. A imagem da morte nos permitia o

delírio, os espectros e os devaneios. Comecei a entender de onde nos chegavam os

fantasmas da infância. Eles também nos chegavam pelas perdas. No poema “One Art”104,

diz Elizabeth Bishop: “The art of losing isn't hard to master; so many things seem filled with

the intent to be lost that their loss is no disaster.”

As pessoas perdem diariamente: neurônios, células, cabelos, unhas, papéis, bilhetes,

máscaras, memórias... Perdas às vezes banalizadas. Um dia perdemos as chaves de casa e

nos pegamos com aquela sensação estranha de ter inaugurado, sem querer ou esperar, uma

avalanche ininterrupta de perdas cotidianas: lá se vão os documentos, a hora do almoço e a

hora de dormir, a hora de brincar com os filhos, de ligar para amiga que está de cama com

febre, de escrever um bilhetinho de amor para pendurar na geladeira. Com a geladeira vazia

por fora e por dentro, perdemos a alquimia de preparar nosso alimento, perdendo também a

mesa e a conversa na varanda, na sala, no quarto. Conversaremos então com os banheiros,

apertados de preferência, solitárias testemunhas das nossas ansiedades claustrofóbicas. E a

passos rápidos perderemos um dia a e-terna-idade do chá que nunca marcaremos. Porque

teremos passado anos a fio, ferro, fogo e açoite, perdendo um tempo danado investindo toda

quantia recebida no final do mês nos pagamentos do começo do mês: para os bancos, para

os impostos... E paranóicos trataremos de fazer cópias das chaves, das fotos, dos

documentos... E nos preocuparemos em ganhar mais dinheiro para não nos preocuparmos

em perder tanto dinheiro. Pequenas perdas visíveis se atrelam a um tempo imediato:

“aquele” que não se quer perder, mas já perdido está: estamos sem tempo! E é claro que nos

denunciaremos de quando em quando, lembrando uma, duas perdas, ou melhor,

esquecimentos... Nossos. Uma humanidade inteira de esquecimentos. Uma História inteira.

E é certo que perderemos ao longo da vida bens de um mundo excessivamente real,

perdendo objetos, coisas que se gastam pelo uso e até pelo bom ou mau abuso: brinquedos,

cartões, cartas (se os enviarmos e recebermos algum dia, é claro), perderemos bugigangas,

bibelôs, meias, livros, luvas, guarda-chuvas... Guarda-chuvas... Em algum lugar, no mundo

do excessivamente imaginado, deverá existir um reino de afeto para os guarda-chuvas

104 BISHOP, Elisabeth. The complete Poems 1927-1979. Farrar, Straus & Giroux. 1979. (Ver anexos)

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perdidos, esquecidos nos bancos das praças, nos lugares a ermo, nas calçadas, nos chafariz

tomando banho, nos sinais de trânsito equilibrando malabares.

Um dia acordaremos velhos e teremos perdido o primeiro amor... E como será difícil

perder! Dor no peito, sofreguidão que parecerá eternizar as horas e as distâncias. E logo

aprenderemos que doer não é somente parte do crescimento. Doer é o próprio crescimento e

aprenderemos – às vezes no susto - que dói mais perder pessoas que coisas e que pessoas

não são coisas. Não servem para qualquer tipo de uso ou abuso. Uma aprendizagem que

para alguns começará muito cedo, até mesmo antes do nascer da vida ou do dia. Mas que

para outros começará tão assustadoramente tarde que mal haverá tempo desprendido para a

descoberta de uma compreensão mais humana de mundo.

Dizem os mais antigos que algumas pessoas nasceriam com maior propensão a

perdas que outras. Seria uma questão de destino. O certo mesmo é que ninguém, nenhuma

pessoa humana passará pela própria vida sem nunca perder algo ou alguém – seja por

destino, livre arbítrio, resignação ou desejo. A gravidade, bem, a gravidade só saberá quem

viver e quem viver viverá. Existem conjunturas as mais diversas e até algumas difíceis de

resolver. Às vezes se chega ao auge, ao topo da montanha, da colina ou de uma escada,

quando, de repente, sem que se noticie, lá no esconderijo do sótão se encontra em estado

escondido uma perda imensa que se aloja na mente e no coração sem qualquer justificativa,

ocupando espaço demais. É um imprevisto de existir. Vive-se então o conflito de uma

felicidade vazia. Como quando entramos nos casarões antigos, bem mobiliados, limpos e

nos cantos nos deparamos com ratoeiras à espreita querendo ferir a frágil existência do rato,

o rato de Clarice.105 E não será o rato aquele que se espera prender e amordaçar com medo e

vingança? Tanto ódio sangrará o rato? Matará o rato? O cadáver do rato quebrará nossos

espelhos? Ou serão nossos os dedos presos e decepados pelas ratoeiras? Mas dizem também

os antigos que quando se vão os anéis, os dedos, esses ficam. Os dedos que vamos perdendo

das mãos. Pois para que mãos se elas não nos servem para o artesanato de afagos, para as

preces e os acenos?

105 Referência ao conto “Perdoando Deus” de Clarice Lispector. In.: Felicidade clandestina, Rio de Janeiro: Rocco, 1987. “Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. (...) Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. (...) E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. (p.40) (Ver anexos)

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Assim como é dito no belo poema de Elisabeth Bishop há uma arte de perder:

perderemos cidades, rios, continentes inteiros. Perderemos o sotaque e a gente que morava

com a gente, a gente que reconhecia a gente na rua, a gente que abraçava a gente por nada,

de graça: nas brincadeiras de roda, nos encontros entre amigos. Se uma alegria é uma ação

única e irrecuperável, a memória, mesmo a dessa esfumaçada alegria, é nada mais que o

vestígio, a pétala seca do que foi um dia vivido.

Não precisamos de tantos acúmulos. Imprecisamos. E as perdas fazem parte do que

somos. Há perdas necessárias – como lágrimas, sorrisos, a separação decorrente da liberdade

de quem se ama, o crescimento absurdo dos filhos, os frutos que amadurecem e as nossas

raízes, que quase sempre tortas, depois de viverem todas as suas estações se vão para o

dentro delas. São perdas, partos, despedidas que trazem à tona o nosso departamento interno

de “perdidos e achados”

Perdemos chaves, óculos, carteira, o trem fantasmagórico das coisas, um porão de

lembranças e urgências para as traças. E se o mundo for mesmo acabar pelo aviltamento dos

corações como professou Baudelaire, talvez possamos ainda nos empenhar um pouco mais

no zelo de nossas mãos para além da arquitetura das lutas e das ratoeiras. Dedilhar os dedos

de outras mãos, quem sabe... Atravessando a rua e o tempo. Para pedir junto com Clarice 106:

(...) faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão

humana amada para apertar a minha, amém.

A memorialista

Recriando as histórias que me contaram, re-contando e re-vivendo, re-fazendo fui me

fazendo gente. Menos coisa. Mais gente. Contar histórias é repetere e religare: de novo, de

novo, de novo... É ficcionar a realidade. Essa, sem dúvida, significativa e incontestável

herança deixada pelos antepassados: o exercício do oral, a experiência da linguagem do

corpo, da literatura oral, do recordar reinventando-se ao recontar. Afinal, nós somos feitos

das histórias que nos habitam, somos feitos das tantas vozes que nos constituem como seres

humanos e históricos. Somos feitos de tantas partes, tantas perdas, tantas lutas e tantos lutos

e todos nos dizem o que da superfície é sempre fundo, pro-fundo.

106 Do livro: Uma Aprendizagem Ou O Livro Dos Prazeres.

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Eu acompanho aquela menina que sobe a ladeira da Rua Grande, posso vê-la, senti-

la, estou ao seu lado e ela é eu, eu sou ela. Eu tive infância, eu nadava nos rios, eu conheci

a entrega do rio ao mar, o encontro entre as águas, aquele entre – lugar de trânsito fluido,

quando a abundância volumosa do rio se joga e se salga de mar. O rio é mar, mas ainda é

rio, como do corpo é a alma na impossibilidade de margear. E esse lugar líquido foi para

mim a água viva, a Poesia. A poesia era o escorrido, o trans-bordado, o eterno das ondas e o

feminino dos rios com suas deusas e sereias. Essas imagens da matéria nós as sonhamos

substancialmente, intimamente, afastando as formas, as formas perecíveis, as vãs imagens,

o devir das superfícies. Elas têm um peso, são um coração. (Bachelard, 2002, p. 2)

A poesia é feita de imagens, mas não são apenas imagens que a aproximam do real,

do concreto vivido ou ainda da fantasia, dos abstratos. São elas novas construções, imagens

únicas, criadas numa singularidade intransferível. Um poema pode até nos suscitar regiões

sensoriais de proximidade com “o que o poeta quis dizer”, mas não poderemos entrar no

universo de criação de imagens com as quais o poeta criou seu poema, o que fazemos é

interpretar o poema, sem ser como o poeta o criou, e assim recriaremos o poema com o

nosso universo de imagens a partir das interpretações que fazemos. Jamais dominaremos o

que poeta quis dizer com seu oceano de imagens, simplesmente porque para o poeta a

imagem não surge como mera “cópia” do que há do mundo real. E, trazendo a palavra de

Sartre (1987):

Na verdade, é preciso responder claramente: a imagem não poderá de forma nenhuma, se permanece conteúdo psíquico inerte, se conciliar com as necessidades da síntese. Ela não pode entrar na corrente da consciência a não ser que ela própria seja síntese e não elemento. Não há, não poderia haver imagens na consciência. Mas a imagem é um certo tipo de consciência. A imagem é um ato e não uma coisa. A imagem é consciência de alguma coisa. (p.107)

A “imagem” foi uma das maiores preocupações de Jean Paul Sartre, um ponto chave

em sua teoria, assim como a noção de imaginário. Poderíamos dizer que foram também

essas questões nodais, também pilares do pensamento sartreano. Em seus livros sobre

imaginação e imaginário, Sartre reforça a idéia de que a imagem ou as imagens não são

apenas frutos das nossas externalidades internalizadas. Para Sartre “a imaginação” não pode

ser reduzida a um jogo mimético feito por aproximações ou ainda por apropriações do que

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se dá no mundo real transmutadas em “percepções” do real, esse lugar que por vezes se

convencionou como o lugar da imagem.

A memória narrativa é feita também de uma contemplação de imagens e delas

surgem ficções para além da realidade visível ou crível. Essa é a memória dos “nossos

tempos”, contemplativa e reflexiva. E as histórias desses tempos passam pela memória de

forma descontínua, lançando mão do passado rememorado, do presente sentido e de um

futuro imaginado entre desejos e temores. E o rememorar sempre guarda surpresas – até

mesmo para aquelas reminiscências tão conhecidas e exploradas por nós, pois ao tentarmos

reconstituí-las já não seremos os mesmos. Seremos um outro, um eu que se biparte, e que ao

se contar ou recontar se reinventa, se debruça sobre o seu próprio relicário de lembranças.

A Divina Pastora

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*Livro: Divina coletânea: 50 anos do Instituto Divina Pastora107

Desde a sua fundação, o Divina Pastora é uma escola de formação cristã, com propósitos de Educação Libertadora. É considerada libertadora a educação que proporciona a valorização do ser

humano, sendo, portanto, um veículo de transformação da realidade social, impulsionando educador e educando à conquista de uma sociedade mais solidária.

Liliane Moreira

Sob um manto sagrado, há anos se refugia uma escola que tem nome e a proteção de Maria. A escola nasceu sob um manto de uma mulher, sob suas vestes brancas e azuis, um símbolo, uma

imagem que chegou àquela casa lá no bairro Roma Velha só para protegê-la na sua fundação.Irmã Heráclia Maria

A escola nasceu sob um manto de uma mulher, sob suas vestes brancas e azuis, um símbolo,

uma imagem... A memória espontânea ou a memória convocada tratam ambas dos temas e

dramas internos, da introspecção. A diferença é que o que jorra da memória espontânea,

aquela que nos invade sem pedir licença, fala diretamente aos interditos, aos não-ditos,

àquilo que pode não ter sido ainda articulado enquanto linguagem pensada ou falada. Ela

pode se manifestar como uma sensação, uma náusea, um desconforto, um aumento de

temperatura do corpo ou o contrário disso, uma empatia, uma familiaridade. Ela é

linguagem, mas não a que nos habituamos a entender como linguagem. É a linguagem do

indizível do consciente, do mistério, do silêncio que há nas vozes do passado, como o

silêncio dos claustros.

107 Moreira, Liliane. Divina coletânea: 50 anos do Instituto Divina Pastora. São Luís: Setagraf, 2008. p.39.

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No tempo da aventura religiosa, lembro que visitei um convento onde haviam irmãs

enclausuradas e que no mesmo dia sonhei com uma imensa ressaca do mar que invadia a

minha casa e me engolia. Seria a “baleia” de Jonas?108 Dizem que a ressaca mais perigosa é

a da elevação dinâmica do mar, ela é muito mais perigosa do que a estática. Tempos depois

interpretei aquele sonho como o rompimento de uma represa emocional interna e o que eu

lia como uma prisão voluntária me fazia pensar na emoção involuntária que poderia

transbordar daqueles quartos trancados. Pensei pela primeira vez na contenção dos instintos

e de quanto havia de atração e represa nos dogmas que eu também seguia numa intensa

contradição. Eram as águas do mar e da minha profundidade esquecida. O mar é maternal,

a água é um leite prodigioso; a terra prepara em suas matrizes um alimento tépido e

fecundo; nas margens se intumescem seios que darão a todas as criaturas átomos

gordurosos. (Bachelard, p. 124) E eu não poderia sentir e pensar por essas águas profundas

e receptivas se não tivesse vivido a experiência do colégio de freiras, se não tivesse

convivido com as irmãs capuchinhas do Divina Pastora e se não tivesse cedo na vida

conhecido e me deslumbrado com os sermões de Padre Antônio Vieira, que tempos depois

fui saber que tinha sido o fundador do convento das Mercês109. No tempo do Instituto Divina

Pastora eu aprendi palavras como recolhimento, virtude, sacrifício, vida austera, disciplina,

penitência, todo um campo semântico que fazem parte até hoje dos meus delírios poéticos e

litúrgicos. Imagens que me sondam e que me levaram ao gosto pela transcendência, por

gostar de compreender o que pertencia ao campo do inefável, ao campo do divino para além

das imagens do Divina.

108 O profeta Jonas, segundo a bíblia, teria sido salvo a mando de Deus, por uma baleia, que durante uma terrível tempestade o engoliu com intuito de levá-lo até a praia em segurança. 109 O Convento das Mercês, que fica em São Luís do Maranhão, foi fundado por Padre Antônio Vieira em 1654.

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Mural "A Divina Pastora”, pintado por Cândido Portinari em 1944.110

Trago muitas lembranças, imagens e sensações desse meu “tempo” de infância, dos

brancos e azuis do meu curto e expressivo tempo de Divina Pastora. Comecei a ler livros de

poesia aos dez de anos de idade. A professora Teresa, professora de Português, vivia me

falando de Cecília Meireles. Não lembro se foi aquele o meu primeiro livro de poesias, mas

foi, sem dúvida, o primeiro com o qual eu me identifiquei. E isso se deu porque ele me falou

fundo, indo de encontro às minhas próprias experiências, creio que as mais significativas de

então. Também eu escrevia poemas. Coloquei o livro na penteadeira de minha avó e o deixei

esperando por dias, meio que maturando, maturando também o meu desejo de ler.

O livro amadurece para quem o escreve, precisando ser lançado e amadurece para

quem o lê, precisando o leitor se lançar numa aventura “arriscosa”. Nós estávamos lá, eu e o

livro, amadurecendo... Cada vez que eu passava por ele maior ficava o meu desejo de

leitura, chegava ficar arrepiada, aquela história de borboletas passeando por dentro. Até que

um dia o objeto venceu. O livro enquanto objeto de desejos e relicário de um corpo santo de

linguagens carrega um mundo de imagens que vão do invisível ao visível, do visível ao

invisível. São inscrições de passados, de tradição, de enigmas.

110 O Mural pertence à Casa do Barão de Saavedra, que fica em Petrópolis, Rio de Janeiro. Imagem disponibilizada no site:http:// www.portinari.org.br. Acesso: 19/03/2008.

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Estava eu ali naquele quarto fechado, com meu livro e as muitas paredes numa

vivência amorosa. O imaginário refazendo a casa, infiltrando-se pelos tijolos da construção

velha. Podia percorrer cada canto, a suavidade da pintura a encobrir o cimento bruto. E

naquele silêncio de palavras e novas reinvenções eram novas também as leituras da palavra.

A poesia estava ali, abraçava-me e eu sentia tudo e com o meu corpo eu sentia o corpo da

escritura, esse corpo que não era mais que pensamentos soltos, irrequietos, livres, correndo

menina pela vida. Um outro corpo com outras vozes no meu rito de passagem.

Naquele lugar de liberdades, ninguém poderia aprisionar ou represar minhas

palavras, nossas palavras. Ali no corpo da linguagem se perfazia literatura o corpo do ser:

devir e advir. E eu li, li Cecília e toda sua natureza triste, alegre, poética, lírica, todos os seus

versos transbordantes. Com os poemas de Cecília fui aprendendo a emprestar minha voz à

poesia sabendo que a poesia também nos dá de empréstimo a sua voz. E o primeiro poema

que aprendi de “cor” – ainda no tempo da infância - foi o “Retrato”:

Eu não tinha este rosto de hoje,assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coraçãoque nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,tão simples, tão certa, tão fácil:

- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Aprendi com a poesia de Cecília que ser triste não era o antônimo, o contrário de ser

alegre. Ser triste era um estado de alma que não contrariava em nada a alegria. Eu canto

porque o instante existe. Não sou alegre, nem sou triste. Sou poeta. Era um olhar para

dentro, o olhar de uma criança de interiores. E isso sempre me fazia pensar: como aquela

professora do austero Instituto Divina Pastora conseguira me compreender sem que eu

jamais falasse palavras¿ Como Teresa conseguira ver em mim um certo gosto para a leitura

e a poesia, mesmo sendo tamanho o meu isolamento? Teresa tinha aos meus olhos uma

força delicada que me lembrava as mulheres brejeiras que ficavam à beira do mar, à beira

do cais a espera de seus companheiros, como tantas vezes tio Inácio relatara em suas estórias

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trágicas e líricas sobre os pescadores e seus tristes destinos, sobre as incertezas do retorno à

ilha e sobre a Rainha, Iemanjá, a mãe do mar, a grande mãe que os acolhia. Seria “um

peixe” a engoli-los? Na língua iorubá, “Yèyè omo ejá”, “mãe cujos filhos são peixes. E ela

também tinha um manto de uma mulher, sob suas vestes brancas e azuis, um símbolo, uma

imagem...

Imagem de Iemanjá, orixá africano. 111

A professora Teresa conhecia a arte de educar pelo respeito à natureza própria de

cada um compreendendo que essa natureza guardava em si a potencialidade de abrir

horizontes. Era preciso saber olhar a beleza e a poesia que estavam fora também. Para olhar

os que estavam longe da escala social. Ou de qualquer escala, desorganizados como as

músicas atonais, os corajosos, os miscigenados sem marca de sobrenome, porque não

seguiam escala prévia, acordes já montados e sabiam improvisar a vida numa flexibilidade

de alma. O que é o improviso, senão idéias que nascem de uma profunda acuidade de

interseção entre movimentos nossos e os movimentos do outro e que exige profunda

maestria de si e atenção a este terceiro lugar chamado “relação social”?111 Imagem de Ilê de Nanã Tolabi, Babalorixá Geraldo de Iemanjá. Disponível em: www.geraldodeiemanja.com.br . Acesso: 27/01/2009.

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Respeitar a minha introspecção e aquela mania de pensar era uma forma consciente

e crítica, uma forma libertadora de fazer ensino-aprendizagem. Não havia encontrado esse

respeito nas escolas anteriores por onde havia passado. Era chamada de esquisita. Daí eu

também tirar uma compreensão daquele e desse tempo. Pois o que eu via como

desassossego, meus excessos de metáforas, imagens e sensibilidade, tomaram uma forma e

uma vontade crescente de compartilhar os guardados do meu interior: a poesia, o

imaginário, a mística e a intuição.

A imagem de Teresa ficou na lembrança como a de uma estrada onde duas pessoas

abraçadas, conversando se acompanhavam durante um breve percurso. Um pouco a frente a

estrada se bifurcava, de maneira que o caminho de cada uma era tomar estradas que ali se

separavam para nunca mais se encontrar. O caminho então era este. Mas era o mesmo

caminho. Não havia rupturas nem melancolias.

O abraço e a despedida eram partes da mesma estrada. A distância que havia nos

causado a separação, também nos deixara em sonho uma mensagem. Antes da prova do

vestibular indecisa entre minhas escolhas, sonhei com Teresa que, vestida de azul e branco,

me entregava um anel dizendo: “passe adiante...” Então eu olhava para o lado e via uma

menina com as mãos abertas. Desconfio que Teresa tenha me passado um segredo nessa

despedida. Assim ela também me ensinou que saber passar o “anel”, saber compartilhar da

nossa voz, da vocação, significava um ato de imensa beleza. Saber reconhecer que chegará o

dia e a hora do aprendiz ir para o centro da roda. E ao mestre, olhar, o exercício, a alegria e a

generosidade da periferia.

Imagino que me tornei professora para me tornar gente. E para deixar de ser coisa o

tempo quase todo disfarçada de menina ou de onça, passei a contar estórias, porque elas

gritavam de dentro de mim. Então eu contava para os pequenos e as pequenas sobre seres

alados, florestas encantadas, pedras falantes que guardavam Jaçanã, a terrível serpente de

duas cabeças. Invencionices.

Foram as minhas experiências, as de “contadora de causos” em São Luís, e as

“experiências plenas” da sala de aula, já na rede pública em São Gonçalo, Rio de Janeiro,

que me fizeram acreditar na possibilidade dialógica entre as leituras do mundo, as leituras

da universidade e as leituras da escola numa teia única.

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Uma das mais experiências mais marcantes da minha trajetória como professora de

língua e literatura foi quando pedi a um aluno da sexta série que lesse em voz alta o poema

Pátria Minha de Vinicius de Moraes:

A minha pátria é como se não fosse, é íntimaDoçura e vontade de chorar; uma criança dormindoÉ minha pátria. Por isso, no exílioAssistindo dormir meu filhoChoro de saudades de minha pátria.

(...)

Eu era uma professora em início de carreira, “carreira” - essa palavra em desuso. Luís

Cláudio com seus quase dois metros de altura, um adolescente falante e de muitos gestos, de

repente ficara mudo, todo seu corpo gigante contorcido na pequena carteira escolar. Então

lembro que insisti com ar severo de exigência, impondo punições com minha boa dose de

crime e castigo: “Você precisa ler!” “Todos já leram!” “Vai perder ponto.” Luís Cláudio

não suportou, o corpo mais contorcido, chorou. “Eu não sei ler, professora. Eu não sei ler.”

Ainda mais autoritária tomei o livro das mãos de Luís e prossegui na leitura do poema:

(...)

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:Não sei. De fato, não seiComo, por que e quando a minha pátriaMas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a águaQue elaboram e liquefazem a minha mágoaEm longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátriaDe niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feiasDe minha pátria, de minha pátria sem sapatosE sem meias pátria minhaTão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenhoPátria, eu semente que nasci do ventoEu que não vou e não venho, eu que permaneçoEm contato com a dor do tempo, eu elementoDe ligação entre a ação o pensamentoEu fio invisível no espaço de todo adeusEu, o sem Deus! (...)

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Da leitura veio uma grande pausa. A pausa – esse momento tão necessário para o

reconhecimento da música, dos sons. É ela que refina a escuta depois de tocada a orquestra,

a sinfonia. O senhor sabe o que é o silêncio? É a gente mesmo, demais. 112 Foi preciso ouvir

o silêncio da pausa, naquele instante de fúria e preconceito, de olhar para o gigante preso à

carteira com os meus demônios à vista... A menina acuada contra o gigante falador. A fúria.

O poema. A pausa. Aquele poema se revestira de uma força e de uma beleza contagiantes

com seu tanto sal e sua tanta água, o soro das longas lágrimas de Luís, das longas lágrimas

dos exilados, dos apartados, dos que haviam ficado distante, à margem da pátria minha, da

pátria nossa, arrancados do seio da mãe, a mãe que nos deu tão pouco de leite e sorte. São

Luís. Luís. Naquele dia o poema passou a ser descoberto pelas vozes que o inundaram e

cada verso trazia naquele contexto o emergir de um sentimento profundo. Com essa

abertura, foram meses de trabalho e de leituras de mundo, de descobertas que só a prática,

que só a sala de aula poderia nos desvelar. Porque “para entender como alguém lê, é

necessário saber como são seus olhos.” 113

Devo lembrar que uma boa história deve guardar seu certo suspense, essa

“suspensão” curiosa do “espera, já conto”. O menino leu, afinal?” Diria que:

(...)Fonte de mel, bicho triste, pátria minhaAmada, idolatrada, salve, salve!Que mais doce esperança acorrentadaO não poder dizer-te: aguarda... Não tardo!(...)

O lugar da exposição constrangedora, do sisudo da leitura “que vale ponto ou perde

ponto” fazia com que Luís se sentisse também acuado, silenciava a sua voz. Porém nessa

breve e longa história mais importante que saber que “fim nos havia levado” foi poder,

sobretudo entender e viver a beleza do próprio percurso: descobrir que poderíamos ouvir

juntos, ler juntos, aprender juntos um do outro. E o melhor ainda foi constatar que uma

história da leitura e a história das leituras de um leitor como Luís não terminavam com

pontos finais. Elas continuam e se juntam às outras tantas histórias de leituras e leitores na

formação de um grande elo e isso é para nos revelar que esse é o tipo de história, é o tipo de

112 ROSA, Guimarães. 1986, p.371.113 BOFF, Leonardo. A águia e a galinha:Uma metáfora da condição humana. Rio de Janeiro, Ed. Vozes,

1997.

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letramento que não tem fim. Pois é feito de muitos caminhos e eles não se fecham, não se

abotoam.

(...) De caminhos, a minha pátria é terra sedentaE praia branca; a minha pátria é o grande rio secularQue bebe nuvem, come terra E urina mar.(...)

E foi através da tentativa de compreender esses universos de referências na educação

e na literatura, que me levaram a buscar compreender pelos vieses das narrativas de vida dos

sujeitos da escola uma perspectiva que, pela re-significação, unia a memória ao imaginário e

que de repente, não mais que de repente, poderia se tornar rara experiência com a literatura

em sala de aula. Era preciso então começar a pensar e defender uma prática de ensino que

subvertesse um modelo estagnado que não enxergava na literatura sua expressividade e sua

complexidade humana. A pré-ocupação tornou-se pensar uma didática que pudesse criar

instrumentos de ação: ferramentas, fios e pincéis capazes de mobilizar os educadores para

as experiências outras com a literatura em sala de aula, mesmo que para isso fosse preciso

abrir mão de uma “falsa segurança”, aquela que nos condicionava e nos prendia ao

imobilismo, à letargia e que nos fazia repetir práticas já esvaziadas de sentido, esvaziadas de

alma e coração.

E para transgredir um modelo a favor de outros é preciso ser a favor da ousadia e da

crença numa prática sensível, atrativa e experimental. É preciso crer na criação para viver

uma literatura que ao desestabelecer o pré-estabelecido, dessacralizava a língua a

reinventando pela força do imaginário, imaginário que está sobretudo na realidade de quem

se reinventa ao criar – falando, ouvindo, lendo e escrevendo, con-vivendo.

Pensando a relação do aluno com a literatura como “experiência” onde é possível

comungar das leituras literárias as tantas e diversas leituras do mundo, podemos

compreender que a oralidade e a leitura feita de tantas vozes - nossas e de outros, assim

como a escrita, registro da nossa projeção no mundo com seu repertório memorial, nos

oferece elas comungadas um horizonte de possibilidades de reinvenção “de ser” numa

espiral, num “a mise en abyme”. Pois mais importante que estudar literatura, é conhecê-la.

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A mise en abyme é uma expressão literária cunhada pelo escritor André Gide114 no

século XIX para o que ele definiu como emboîtement ou textos em camadas - o que seria

inserir uma narrativa dentro da outra, uma história dentro da outra, a história de um homem

dentro da história da humanidade. Assim é a experiência com a literatura: essa possibilidade

de reinvenção de si num livro próprio é também um “a mise em abyme”. Todas as vidas

dariam um romance, uma novela e muitos contos. Porque todas as vidas são histórias e

histórias com muitas versões e muitas mudanças de perspectivas, mudanças de lente, de

foco. Até porque a nossa trajetória pelo mundo não pode ser resumida numa via única de

narrativa. A nossa vida singular é plural, seria então talvez mais sensato falar em “nossas

vidas”, pois de acordo com a multiplicidade que temos de escolhas de sermos outros sendo

um, poderemos sempre criar desvios, descaminhos e até mesmo mudanças de escolhas

diante das tantas aberturas e dos tantos obstáculos que precisamos viver e não precisamos

viver.

E ao falar em “livro próprio” estou querendo dizer que os educadores e os alunos

podem sim permutar, inverter a lógica de lugares. E na escola pública, essa permuta é luta

para ir muito além dos tantos mandos e desmandos que chegam de forma direta ou indireta,

mas sempre de “cima para baixo” através de planos e reformas que não levam em conta as

vozes que habitam as escolas. Até porque não podemos pensar no “como ensinar”, na

escolarização da literatura ou de qualquer outro conhecimento sem pensar no currículo, na

malha de poder que está por trás das ações verticalizadas que se revestem de legitimidade

para justificar práticas e atitudes autoritárias no cotidiano da escola.

Pensando numa prática que não recusa as narrativas poderemos pensar nas nossas

salas de aula como ambiências onde poderemos trabalhar com os textos orais e escritos, com

os clássicos, os populares, os marginais, isso a partir das experiências de uma prática que

não se fundamente numa concepção utilitarista da arte, mas que traz entre seus princípios a

liberdade do querer ler, ouvir, dizer, apropriar-se do conhecimento da arte literária na sua

inteireza e não apenas de forma fragmentada, mutilada, como por vezes aparece citada nos

livros didáticos, servindo apenas para exemplificar o uso de um pronome, de um

substantivo, ou seja, apenas a serviço de uma determinada gramática. Podemos também

alternar a apresentação, a performance dos textos lidos em sala de aula, sair da “fôrma” da

114 Paris, Dictionnaries Le Robert, 1992.

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linearidade da leitura que mais mecaniza que dá prazer, que mais apavora e dogmatiza que

ensina, que mais cala que liberta. Mas para isso é preciso pensar que a literatura merece

outros tempos nas escolas, principalmente nas escolas públicas – não apenas o tempo dos

bimestres, dos semestres, do ano letivo, dos tempos fechados.

O tempo da literatura é o tempo da porta sempre aberta da biblioteca, o tempo da

ciranda de livros, da ciranda de estórias, do teatro, do parangolé, do cordel, da oficina de

textos, da hora dos contos, das crônicas, dos poemas... O tempo da literatura é também o

tempo da subversão, de ler os “impróprios”, os “proibidos”, “o que é não pra idade”. O

tempo de levar o livro para onde “der na telha”, de sentir a textura das palavras e das

imagens, de vivenciá-las como vozes, como segunda pele, o tempo de deixar fluir o

imaginário das narrativas, das memórias, do fluxo imagético que escorre para o real sendo o

real também imaginação. Pode ser o tempo de ler embaixo de uma árvore, perto de um rio,

dentro de um ônibus, entre o choro do irmão e o chamado de uma avó: o que você tanto lê

nesse livro, menino? E pode ser também o tempo da liberdade de não ler coisa nenhuma

quando se deseja viver coisas outras, como as brincadeiras de rua e as peraltices, as

traquinagens – essa poesia de criança. Talvez viver o tempo da “fruição da leitura”,

defendida por Barthes, de uma literatura que não doutrina, não fetichiza – e sim faz girar os

saberes. “(...) A literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou

melhor, que ela sabe das coisas – que sabe muito sobre os homens.”115

Com a arte literária se vive e se lê, se ouve, se escreve, se conta, se rememora... E a

meu ver, o fundamental, o que há de mais instigante nessa leitura é justamente o encontro,

que pode ser vivido também pelo embate, pelas arranhaduras que o texto pode nos causar.

O encontro: essa terceira margem, margem da palavra ou do silêncio, nosso pai. Ninguém

sabe ao certo como sairá dele depois. E foi, de certo, a voz da poesia que narrou as minhas

memórias, as que foram engolidas e moram na barriga do tempo:

Vou escrevendono lugar do amor as nódoas,

selecionando reticências, às vezes abreviando as horas em hi-atos quase perfeitos.

Se me dessem novamente a chance de nascer,

115 BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1992. p.18-19.

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certamente eu voltaria em forma de ondaou vento

sem mais véus entre mim e o sagrado futurodas quedas.

Seria então a verdade refluxa nos mares,desceria aos montes para

as águas pacíficas,os mares de Açores,

mares mediterrâneos,mares de trânsito em São Mateus

um porto insólito...

E seria do vento a voza correr sem ordem,

a dar de comer oo corpo da vida

pelos corredores friosdas cidades acesas .

E vento e marao me sentir, enfim, o chegado estrangeiro

perceberia ele então minha mensagemE ao me adentrar

perceberia ele então minha miragemE ao me deixar

ou molhar as pontas visíveisou o invisível do mergulho

ou me calar– e me colocar sempre muda –

nas pedras – quiçá -de tão estranhos enigmas,

eu me quebrando,quebrando toda na areia

...perceberia então o encanto do vosso silêncio

e a candura da vossa passagemsentindo a fundo a solidão comungada dos pássaros.

Assim quebrantede alma e viagem

lá onde reinaa vossa insemelhante beleza,vosso amor de encarnados

de naturezas,eu, vento e mar, onda e areia,tomada do corpo estrangeiro

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diria:

só lamento a incompletudena inabilidade de criar-vos, meu próprio Deus.

Patrícia Porto

AR

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Era, pois uma lembrança, lembrança de uma doçura tão grande! Lembrança de formas adormecidas, mas em que permanece, tão indestrutível, uma certeza de felicidade. Não haverá aí a lembrança imensa e sem data do estado aéreo, de um estado em que nada pesa, em que a matéria em nós é nativamente leve? Tudo nos eleva , tudo nos levanta, mesmo quando descemos “o suficiente para tirar ao passo de uma criança o seu pouco peso”. Essa mocidade da leveza não será a marca dessa força confiante que nos vai fazer deixar a terra, que nos vai acreditar que vamos subir naturalmente aos céus, com o vento, com um sopro, levados diretamente pela impressão de felicidade inefável? Se encontrardes, em vossos sonhos dinâmicos, esse mínimo de declive, essa rua que se inclina só um pouco, tão pouco que os olhos nunca o perceberiam, ele vos dará asas nos pés; vosso calcanhar terá um vigor voante, leve, delicado; vosso calcanhar, com um movimento bem simples, logo mudará a descida em subida, a marcha em impulso para o alto. Tereis a experiência da primeira tese da Estética nietzchiana: “Tudo o que é bom é leve, tudo o que é divino corre sobre pés delicados”.

(Bachelard, O Ar e os Sonhos)

Muitas horas felizes decorreram até que meu coraçãozinho quase rebentou: acabava de descobrir que estava quase completamente em solidão...

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Que tristeza... que tristeza dolirida as pessoas grandes não poderem conversar e entender as árvores.

(Coração de Vidro)

Memorial Rya-ne:

Eu + Literatura = Sala - de - aula!      Eu não sei exatamente quando começou o meu envolvimento com a literatura. O que sei é que não tenho memória minha sem ela. Eu sempre brinquei com os brinquedos e com os livros e, agora professora, continuo brincando com ambos. Não sei se a poesia está em mim ou nas coisas. Se é a poesia que está dentro de mim ou quem me espia através dos olhos o mundo e me faz ver literatura em tudo. Também não sei se ela está fora de mim e se existe em tudo e se é por isso que a vejo tão presente. O que sei é que a literatura é a minha grande paixão, meu grande amor e, por estar tão envolvida, não posso viver sem ela. Somos grandes amigas! Nos encontramos todos os dias, ela me dá muitos conselhos, é mestra! Eu escuto, aprendiz que sou. Às vezes discordamos, ela às vezes tão linda! Me faz chorar e sorrir com suas palavras. E eu, boa ouvinte, sinto e coleciono suas idéias e, às vezes pressionada pela poesia que não sei se está dentro ou fora de mim, escrevo. Assim eu vivo, sem isso não respiraria.

A literatura é como o ar: circula, renova meus pensamentos, está nos lugares aonde vou, respiro esse ar e, ao menor esforço, ela se espalha, ar, espaçosa como é, presente no meu trabalho, nas minhas palavras, nos meus fazeres diários. Talvez seja esse o motivo da literatura estar presente na minha sala - de - aula. E os meus alunos também gostam dela. Quando abro um livro, eles abrem os olhos e os ouvidos como quem abre a boca para saborear um brigadeiro. E a narrativa escorre como calda de chocolate no bolo quente e se mistura aos pensamentos dos pequenos. Pequenos olhos, grandes olhares! A sala inteira é literatura, o corpo inteiro envolvido no sabor das palavras ditas, cantadas. Literatura, leve e doce como música!      Talvez por esses motivos todos que mostrei minha vida esteja tão entrelaçada à arte literária. Essa necessidade de expressar-

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me e de ver expressas as palavras alheias, ora de autores novos, ora dos meus velhos conhecidos autores, aqueles que amo e falam diretamente comigo. E, como perfume, sei que por onde passo, deixo um pouco dela, para que também se faça indispensável a outros.      Foi dessa forma que a literatura chegou na minha sala - de - aula. E é dessa forma que ela continuará me ajudando a trabalhar e viver.

Ryane Pinto

CAPÍTULO 5

Entre a peleja e a boniteza do tempo :O fluxo memorialístico da Infância ou Memória Proustiana

Ryane: A poetisa

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Ryane Pinto116

O que é a memória? Uma caixa guardada não sei onde, cheia de chaves para

abri-la. Não está guardada no cérebro, senão, quando a gente lembrasse, sentiria a

cabeça. Mas, sabe quando você lembra daquele aluno que marcou? Não dá uma

dorzinha de saudade no coração? E aquele medo do primeiro dia de aula? Não dá um

friozinho na barriga só de pensar? Então, a memória, essa caixa ligada ao corpo

todo, pode ser aberta por várias chaves. Por uma música, um cheiro, um lugar...

Para que serve lembrar? Para reviver, voltar no tempo, sentir de novo, perceber os

detalhes, observar com calma, acertar algumas falhas, compreender, lembrar para

viver, para ser feliz, para não ser mais triste, para estar mais seguro, mais vivo. "A

memória é uma ilha de edição", frase do poeta Waly Salomão, traz uma boa reflexão

para a memória. Lembramos o que é importante, o que nos toca mais

profundamente, lembramos de acordo com nosso subjetivo, lembramos da mesma

coisa de maneiras diferentes, lembramos de acordo com nossas vivências, nossa

bagagem de vida. A memória é sim, editada pelos nossos sentimentos, pelas nossas

emoções. É uma ferramenta de vida, para seguirmos o curso do existir não perdendo

116 Foto de formatura na alfabetização, Colégio Gomes Pereira. Ryane Pinto graduou-se em Pedagogia pela UERJ-FFP. É professora das séries inicias em Saquarema. Estado do Rio de Janeiro.

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pontos importantes. E esses pontos importantes são ditados pela nossa experiência,

pela maneira como percebemos esse existir.

A narrativa memorialística é trabalho e é ciranda, seu labor é renovar a pele da

palavra pela poética da memória, para ao falar das histórias das mulheres, dos homens, das

crianças, dos bichos, das criaturas, justificarem-lhes as inteirezas da existência através da

narração.

Contrário às bonitezas e à leveza de uma estética sensível que é própria da matéria

poética dos sonhos e que se pode se revelada num tempo des-coberto, há um feroz tempo

que nos come os pés de vento e nos coloca diante da peleja de sermos da própria solidão a

correnteza. É que também vivemos um tempo de “ego-ísmos”, de um voltar-se para uma

história interior, muitas vezes estéril e carregada de idas e vindas, contradições e paradoxos,

que reflete em singular o drama moderno ou de todos os tempos, vendo-se o homem em sua

ânsia de conhecer a vida e seus mistérios, amarrado a um mundo desconcertantemente

desumanizado, tecnizado, pleno de angústias coletivas, feitas de incertezas em face de um

amanhã marcado de guerras e outras aflições universais. Comprimido, oprimido, diminuído

em sua necessidade, carência, porque a técnica e a evolução das ciências o esmaga sob seu

peso, o homem da atualidade é fugitivo dos (des)confortos que criou e da realidade única

que julga conhecer.

Vivemos um tempo no qual, como diz o escritor Eduardo Galeano, o individualismo

torna-se instituição. Todos se voltam para os seus próprios umbigos, deixando de ver e viver

as relações e realizações sociais coletivas. Fazemos parte de um mundo onde as tecnologias

alcançam descobertas inovadoras a cada dia, onde a concorrência e a aculturação galopante

ajudam a evidenciar a crescente desconfiança que cultivamos em relação aos outros, até

mesmo em relação aos nossos pares. Farinha pouca, meu pirão primeiro. Isso nos faz

deixar passar questões essenciais à vida, por estarmos sempre trancafiados nas cadeias

tecnológicas da segurança máxima, incutidos nas idéias e padrões pré-estabelecidos, nos

preconceitos incabíveis e infundados de uma sociedade que se torna cada vez mais

individualista. Somos comandados pelo “mercado” e pelas negociações e oscilações que o

envolvem. Isto tem valido até para as relações humanas. E aos poucos nos tornamos

“desmemoriados do presente”, a ponto de esquecermos que nascemos, criamos e

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reinventamos, re-significamos as realidades a partir do eu com o outro e o mundo, desses

lugares que, mediados pela experiência e por um poética da existência, nos impulsionam a

“ser” e “fazer”.

Essa angústia permanente, que caracteriza o homem moderno, resolve-se no tédio

infinito sem o mito da crença. De fato, se perdemos o contato com o mito, maior é a

sensação perene de perda. E vivemos uma solidão dilacerante, aumentada, e uma profunda

angústia em relação aos projetos de futuro. Se a crença está morta, e se humanamente não

vivemos sem mitos, só nos resta o tempo para “gastar”, “consumir”, “competir”.

Tempo-Deus: Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei... Por que estamos sempre tão

“ocupados”? Será que matamos o tempo ou é o tempo que nos mata? Quantos tempos

existem dentro do tempo? E dentro do poço? Quantos tempos existem dentro de nós e dentro

do próprio tempo? Quem poderá tentar dominar a universalidade do tempo além do relógio,

da memória e do registro?

Falando um pouco do tempo cronológico dos relógios e das ampulhetas, trazemos da

etimologia popular o mito do titã Cronos, o Tempo personificado. Segundo a mitologia

grega, Cronos (Kronos) era filho caçula de Úrano e Geia, pertencendo a linhagem dos Titãs,

numa época anterior aos deuses do Olimpo. Urano, com medo de ser destronado por um de

seus filhos, costumava devolvê-los ao seio da mulher. Geia, indignada, une-se a Cronos

num plano de vingança e morte contra Urano. Estimulado por Geia, Cronos corta a fonte

vida de Úrano, seus testículos. Com o pai morto, Cronos, torna-se Senhor do mundo. Ao

casar com sua irmã Réia, e diante da previsão de um possível destronamento, passa a

devorar os filhos que tem com ela. Até que um dia, cansada de ver os filhos sendo engolidos

pelo próprio irmão e marido, Réia foge para Creta e em segredo dá a luz ao senhor do

Olimpo: Zeus.

Após ser criado pelas ninfas, Zeus parte para combater o pai e para fazer cumprir a

sua profecia. Ajudado por Métis, a Prudência, Zeus obriga Cronos a tomar uma bebida

miraculosa. Uma vez ingerida, a bebida causou tal convulsão nas entranhas de Cronos que

ele se viu obrigado a devolver todos os filhos que havia engolido. Longa e árdua foi a guerra

entre pai e filho, até Zeus sair-se vitorioso. (BRANDÂO, Junito. 1991, p.252)

Qual seria então o tempo mítico das nossas memórias? O tempo da beberagem das

lembranças? Das memórias engolidas? Das reminiscências ancoradas que devolvemos mais

170

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tarde aos outros e a nós mesmos? Ou será o tempo de Zeus que vem para fechar o ciclo do

tempo de Cronos?

Acreditamos que o tempo das instituições está sim num tempo que impõem limites e

términos, mas está também no tempo das beberagens das lembranças que pode reascender e

alimentar o nosso sentimento de crença no passado e no futuro. E é paradoxal, é limitador e

ilimitado, objetivo e simbólico, é circular. A escola, como instituição, está no tempo

“disciplinado”, cronometrado, capitalizado, esquartejado entre as tantas “disciplinas”, o

tempo da grade curricular. E sendo o tempo escolar finito, marcado por “sinais” que ditam

términos, pelos fechamentos de bimestres e pelos conselhos de classe, como não ser

determinista em relação ao conhecimento dos conteúdos? Mas da outra margem sabemos

que é uma sabedoria reconhecer que precisamos finalizar ciclos que para que outros possam

ser começados. E é uma sabedoria reconhecer que um certo aprender das coisas está no

equilíbrio entre limites e liberdades.

Talvez a decisão imediatista de “quantificar” o tempo esquecendo de “qualificá-lo”

venha fazendo da escola o que faz com as mais diversas instituições, um lugar de onde se

quer fugir para “viver o tempo”, “perder o tempo”, “saborear o tempo” do lado de fora.

Mas apesar das “delimitações” do tempo das ampulhetas, o tempo da escola está

também no tempo do movimento de Kairós, o tempo da oportunidade que nos leva ao tempo

da mudança, da transformação. E é também o tempo da fertilidade de Cronos, cheio de

ciclos, com aberturas e fechamentos, com passagens a serem desvendadas, experimentadas

por nossa curiosidade e ousadia.

O tempo da escola também está no tempo da água viva, tempo que faz de nós

viventes e milagreiros de um mistério-mundo; ora como sebastianistas, saudosistas a espera

do “retorno” de Dom Sebastião, de uma glória que, inevitavelmente, nos escapa. Ora

quixotescos, enfrentando os moinhos de vento do presente como visionários a espera de um

novo tempo, de um horizonte de possibilidades.

Personificado e encarnado o tempo está - nas tantas narrativas que atravessam a

trama que cada um tece para si, pois a palavra está no tempo. E o tempo está dentro de nós -

entre tudo o que é vida e morte, morte e vida. Bakhtin nos convida a este lançamento, este

mergulho na grande temporalidade (81,413):

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Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, então não há limites para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). (...) Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia seu renascimento.

E assim caminhamos canhestros – nas incertezas do tempo: renascendo gente, luta e

palavra continuamente. E é no entrelaçamento entre o vivido, o lembrado e o narrado que

vamos fazendo o que é da urdidura narrativa nas reminiscências, mas não como passado

acabado onde buscamos velhas lembranças acomodadas. É justamente no tecido revisitado

e na trama de seus fragmentos, que nos lançamos, numa série não-sequencial de tomadas, às

possibilidades do rememorado. Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos

encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites,

porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. (Benjamin, 1994, 37)

A memória é tomada aqui como a memória viva do discurso narrativo, uma memória

que é fluxa e que emerge dos vários tempos que nos habitam. É a memória da infância, a

memória tenra do passado que mora conosco e habita nossas coleções, nossos esconderijos

mais secretos, nossas angústias e desejos perenes. Marcel Proust, No Caminho de Swann

(2003), narra sua infância através de um redemoinho imagético, que vai nos enchendo de

lembranças suas e nossas, como ao descrever os olhos afetuosos de sua avó:

(...) minha avó tinha o coração tão humilde e era tão doce que sua ternura pelos outros e a pouca importância que atribuía à própria pessoa e a seus sofrimentos conciliavam-se no seu olhar com um sorriso (...) e era para todos nós como um beijo de seus olhos, que não podiam ver os que ela amava sem os acariciar apaixonadamente com o olhar. (17)

No final do século XIX e início do século XX (1871-1922), na França da Belle

Époque, Marcel Proust lança ao mundo os sete livros117 de Em Busca do Tempo Perdido,

obra criadora de um estilo único de narrativa memorialística. A eternidade que Proust nos

faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e sim a do tempo entrecruzado. (Benjamin, 1994,

45) A partir da memória olfativa gerada por um biscoito de madeleine, o narrador proustiano

mergulha num universo de lembranças, que o remetem primeiramente à infância:

1171No caminho de Swann: Combray ,Um amor de Swann, Nomes de lugares: o nome; À sombra das moças em flor, Sodoma e Gomorra, A prisioneira e O Tempo Recuperado.

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Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. (...) Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines (...) Invadira-me um prazer delicioso(...) Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? (Proust, 2003, 48)

Na narrativa de Proust, uma cena vai gerando e sobrepujando a outra, numa corrente

narrativa que passa, sem constrangimento, da memória subjetiva à memória mítica, à

mnemósine. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida,

inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o

amor, enchendo-me de uma essência preciosa. (Benjamin, 1994, 37) Como uma câmera

inquieta que ora se aproxima, ora se afasta dos sujeitos e dos acontecimentos, Proust leva o

leitor a um grande painel cíclico de imagens significativas. Para Benjamin (ibidem):

Proust não descreveu em sua obra uma vida como ela de fato foi, e sim uma vida lembrada por quem a viveu. (...)Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência. (...)

Benjamin (ibidem) nos fala de um sutil entrelaçamento que envolve toda a tessitura

proustiana.: Se texto significava, para os romanos, aquilo que se tece, nenhum texto é mais

tecido que o de Proust, e de forma mais densa.

Este entrelaçamento entre o vivido e o lembrado que se faz urdidura narrativa e

proustiana está nas reminiscências, mas não como passado acabado onde buscamos velhas

lembranças acomodadas. É justamente no tecido revisitado e na trama de seus fragmentos,

que Proust nos lança, numa série não-seqüencial de tomadas, às possibilidades do

rememorado. Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do

vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave

para tudo o que veio antes e depois. (Benjamin, 1994, 37)

A memória proustiana é tomada aqui como a memória viva do discurso narrativo,

uma memória que é fluxa e que emerge dos vários tempos que nos habitam. É a memória da

infância, a memória tenra do passado que mora conosco e habita nossas coleções, nossos

esconderijos mais secretos, nossas angústias e desejos perenes. Proust narra sua infância

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através de um redemoinho imagético, como No Caminho de Swann (2003), ao descrever os

olhos afetuosos de sua avó:

(...) minha avó tinha o coração tão humilde e era tão doce que sua ternura pelos outros e a pouca importância que atribuía à própria pessoa e a seus sofrimentos conciliavam-se no seu olhar com um sorriso (...) e era para todos nós como um beijo de seus olhos, que não podiam ver os que ela amava sem os acariciar apaixonadamente com o olhar. (17)

A memória proustiana é a memória que comunga conosco aqueles desejos mais

antigos e pueris, como tomar banho de chuva, visitar velhas árvores, comer bolo de fubá,

sentir o cheiro das quitandas: camarão seco... Por isso essas memórias invadem nossas

mentes quando alimentadas por estímulos descontínuos – nossos e dos outros: Quando você

era pequeno nós costumávamos ir... Lembra daquele dia em que fomos àquele café? No dia

de nossa formatura... No dia em que quebramos aquela vidraça... No dia em que chegamos

à escola... No entanto, nem todas as lembranças serão boas ou alegres. Algumas podem até

nos aterrorizar quando revisitadas, sendo evocadas ou não. Como doem os ossos do

crescimento! E ainda assim, mesmo na dor dos guardados e dos retornos, re-aprendemos, re-

significamos sobre quem fomos e somos. Que sujeito é este que habita em mim? Que

sentimentos têm? Que ressentimentos preferiu viver?

Narrou Ryane:

Como aluna sempre tive medo da escola. Chorei quase minha vida escolar

inteira, achava tudo muito estranho, o espaço físico não era familiar, o cheiro não era

familiar, os alunos não eram meus amigos, eu era feia, esquisita, quieta e isolada. Foi

nesse contexto que tive esse sonho, eu tinha em torno de dez anos. Havia um

comercial de um brinquedo, o Lango-Lango, um monstrinho que era como um

fantoche. Dentro havia um mecanismo que fazia ele dar socos. Um dia, adormeci e

tive um pesadelo. Sonhei que eu tinha recebido de presente do meu pai o tal Lango-

Lango. E ele tinha um poder mágico, fazia a pele do meu rosto esticar feito chiclete

e depois voltar para o lugar. Fui para frente do espelho, no sonho, e comecei a esticar

a pele das bochechas. De repente, a pele passou a não voltar mais ao que era. Chorei

muito, imaginando ir para a escola com as bochechas esticadas.

174

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A professora Ryane, professora das séries iniciais, também divide conosco o que

vive nela, o que transborda de suas reminiscências, trazendo com sua poética memorialista,

o medo, a dúvida, o lirismo e a leveza dos sonhos, dos vôos de quem se emociona sem a

contenção de sua sensibilidade, de seu poiesis, pois (....) veremos que só o pássaro, de todos

os seres voantes, continua e realiza a imagem que, do ponto de vista humano, pode ser

chamada imagem primeira, aquela que vivemos nos sonos profundos de nossa juventude

feliz. (Bachelard, 2001, p. 67) Ryane traz entrelaçadas às suas memórias de infância o

também amor pelos livros e por educar numa visão que tem muito de onírico e “aéreo”. A

peleja e a boniteza de “ser educadora” e de poder olhar o tempo e o tanto de mundo que a

por-vir.

Ryane:

Tenho muitas memórias significativas da minha infância relacionadas à

leitura. Meu primeiro livro, O barquinho amarelo, que eu li e reli muitas vezes,

acompanhando a história do barquinho de papel que corria pela água da chuva e

agarrava num galhinho... Esse era lindo, eu li na alfabetização e nunca mais esqueci.

Outro livro que eu amei foi Coisa de lata com choro de prata... Eu decorei todinho,

contava a história do tartaruguinho Renato que tomou leite da flor copo de leite e

ficou prateado. Outro livro que eu adorei foi um que minha mãe me deu que se

chamava Coração de vidro, e eu achava o nome muito forte e às vezes tinha medo

dele. O livro era pequenininho, tinha três histórias das quais só me lembro de duas.

O peixinho na loja que tanto queria ter um dono mas morreu por maus tratos e uma

árvore amiga de um garoto que precisou ser cortada. Era um livro muito triste, me

deixava muito emocionada. Esse livro eu li quando já tinha uns dez anos. Minha

casa sempre teve muitos livros, eu adorava ler e acredito que a facilidade com que eu

encontrava os livros fez de mim a leitora que sou hoje. Li minha vida escolar inteira,

com os "extraclasse" que todo mundo odiava mas que eu ficava apaixonada: A ilha

perdida, o escaravelho do diabo... Os livros fazem parte da minha vida e da minha

rotina e seria muito difícil viver sem eles.

A memória de escola muitas vezes se confunde com a memória da infância.

Bachelard, em A Poética do devaneio, nos fala que ao sonhar com a infância, regressamos à

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morada dos devaneios que nos abriram o mundo. A memória da infância está atrelada à

memória da escola e ambas se fazem proustianas na busca pelos objetos, pelos odores, pelas

imagens, palavras e vozes que ficaram no tempo dos devaneios. É “a memória voluntária”,

repleta de simbolismos, requisitada por quem tenta muitas vezes ressignificá-la no presente.

Ai de quem não pode se lembrar de sua infância, reabsorvê-la em si mesmo, como um corpo

no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho. (Bachelard, 1988, 130)

O fluxo da memória coletiva ou Memória Polifônica

Ryane:

Lembro do meu avô contando suas histórias de quando era moço, suas

antigas músicas, ah, nos ensinando a dançar tango... Lembro do meu mundo vivido

muito mais com os adultos que com as crianças. Lembro da minha tia, que eu adoro,

que tinha livros na estante e eu querendo ser como ela, querendo aprender o

espanhol que ela falava, ler o livros que ela lia, viajar para onde ela viajava.

Lembro muito da casa do meu avô e da nossa casa quando morávamos perto

dele. Meus primos moravam também na mesma rua e brincávamos no quintal

enorme, cheio de árvores com frutas, construíamos casas em cima das árvores e

brincávamos de cemitério, construindo as covas com a areia da obra da casa do meu

tio. Meu avô ficava muito bravo quando descobria. Embora eu seja professora hoje,

não brincava muito de escolinha. Brincava de boneca com a vizinha e minha irmã.

Mas, normalmente, brincávamos todos no quintal fazendo as cabanas. Uma

experiência marcante desse tempo era construir a cabana em dia de chuva. A gente

montava ela todinha, bem firme com galho de árvore. Depois cobria com folhas de

bananeira, levava biscoito e o que precisasse e ficava esperando o temporal lá

dentro. É claro que nunca ficamos até o temporal chegar porque mamãe chamava

antes, mas era muito bacana aquele medo da chuva debaixo de uma cabaninha

prestes a cair!

Lembro... Afinal, quantas lembranças foram tecidas e guardadas do tempo da

infância? E do tempo da escola? Inumeráveis por certo. A mão “gigante” de nossa mãe no

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primeiro dia de aula, a alfabetização, as primeiras letras, hastear a bandeira, o hino nacional

dos anos de chumbo, o cheiro de peixe cozido feito pelas merendeiras, as brincadeiras no

recreio, a aula gazeteada, a argüição, dia de prova, dor de barriga, aquele 2,5

inesquecível, a bronca da professora, o beijo da professora, a formatura, a separação... Entre

lembranças boas e lembranças ruins, os amigos guardados no fundo da gaveta, no odor dos

objetos colecionáveis e esquecíveis...

Ryane.:

Lembro dos livros que tínhamos que ler na escola e que eu gostava, amava,

adorava quando chegavam da livraria junto com o material novo do ano quando

papai ia comprar.

A escola da minha infância ficava bem perto de onde trabalho agora:

Colégio Gomes Pereira. Sempre encontro meus antigos professores que ainda se

lembram de mim. Tenho duas professoras que me lembro bem, Tia Regina e Tia

Graça. A tia Regina encontrei há duas semanas na rua, quando eu estava indo fazer a

revisão no dentista. Ela não mudou nadinha! Há algum tempo vi tia Sônia, minha tia

da alfabetização. Não falei com ela e acredito que ela já nem se lembre mais de mim.

Nossa, ela continua a mesma, os mesmos óculos, o mesmo cabelo! Mas tenho uma

memória menor de uma outra escola chamada Sonho de Infância, em São Gonçalo,

onde estudei antes de ir para o Gomes Pereira. Eu estudei um ano lá, mas a escola

era na frente da minha casa, meus pais eram amigos das professoras, ficou uma

amizade bacana que por muitos anos fomos visitá-los, depois de termos nos mudado.

No Colégio Gomes Pereira estudei sete anos, da alfabetização à 6ª série, eu, minha

irmã e meus primos, aqueles que brincavam com a gente de cabana.

Mas eis que um dia, vasculhando o baú das memórias, a fotografia amarelada rompe

o silêncio do passado e uma inundação de imagens e vozes, até então represadas, invadem a

mente e os ouvidos: Vem, vem por aqui... Impossível contê-las... Numa avalanche de

rememorações somos lançados ao passado e o passado amalgamado ao presente nos deixa

em trânsito de imagens. É a obra da mémorie involutaire, da força rejuvenescedora capaz

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de enfrentar o implacável envelhecimento.118 (Benjamin, 1994,45) A esta memória

involuntária Bérgson denominou de memória espontânea, memória que para ser fluída

precisa recuperar o passado em forma de imagem. E segundo ele, para ir ao encontro a esta

memória é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é

preciso querer sonhar (1990, p. 63). É com num ser em trânsito e desdobrado em dois:

sujeito-passado e sujeito-presente, que vamos sendo levados pela correnteza de uma

narrativa repleta de imprevistos: passagens adormecidas que fazem da arte da linguagem

narrativa a arte do encontro e do refazer-se. A memória é o trabalho artesanal, o poiesis que

tece as reminiscências na corrente narrativa.

Ryane:

Minha família é como a Grande família: "muito unida e também muito

ouriçada". Minha mãe leu muito quando jovem e comprava sempre livros para mim.

Meus pais participaram muito da minha formação, foram muito presentes e, talvez

por isso, eu tenha uma formação razoável. Lembro de mim quase sempre

acompanhada de um caderno. Eu sempre pedia, papai reclamava e sempre

comprava, fazíamos compras em um supermercado grande que vendia materiais de

papelaria e eu ficava louca com tanto papel. Nos cadernos, sempre escrevia, ora

livros, ora poesia. A poesia, minha antiga companheira, acompanha-me por muito

tempo, desde que li as primeiras e me apaixonei. Pode ser que minha necessidade de

escrever tenha trazido a minha necessidade de ler. O que sei é que na minha casa

tinha muito papel branco, muita caneta, muito lápis, muito tudo que pudesse me

deixar com uma vontade incontrolável de escrever.

Nesse movimento em que compreender quem somos faz parte do “desejar ser quem

somos”, em que o lembrar é também conhecer, a memória - e não a memorização tecnicista

- torna-se parte constitutiva da nossa expressividade no mundo, do nosso permanente “estar

entre” os outros. Pena que muitos estejam ensinando as crianças a competir desde muito

cedo, quando melhor seria deixá-las fazer o que elas bem sabem: celebrar a vida, viver

experiências. Afinal, não deveriam estar a felicidade e a experiência humana no centro do

processo pedagógico? Por que não deixar que vivam suas experiências de infância sem

competitividade, com arte e democracia, com desejo e criação de memórias?

118 Benjamin refere-se a Proust.

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O tempo da infância vive dentro de nós, na subjetividade que está “em nosso nome,

nossos corpos, nossas emoções, nossos estados internos” (Bakhtin, 2000,67):

É o amor de mãe e dos próximos que desde a infância proporciona, de fora, a forma ao homem, proporciona, ao longo de sua vida, consistência ao seu corpo interior, sem lhe dar, é verdade, uma imagem intuitivo-evidente de sua exterioridade, mas o torna, todavia, detentor de um potencial desse corpo que não poderia ser atualizado senão pelo outro (69)

Assim vamos nos tornamos, aos poucos, sujeitos de memória. Uma considerada

“única” e “nossa” , outra, compartilhada na coletividade, memória polifônica, memória

coletiva. Maurice Halbwachs, discípulo de Bérgson e pesquisador das relações entre

memória e história pública, dizia que “a memória individual é um ponto de vista sobre a

memória coletiva” (1990, 51). Para Halbwachs, a atividade mnêmica é a função social

exercida pelo sujeito que lembra. Sendo assim, a tapeçaria das reminiscências tornar-se-ia

um ato coletivo, impregnado pelas marcas “sutis” ou “drásticas” que os sujeitos e os objetos

deixam em nós. Mesmo naquele instante de isolamento profundo e que imaginamos

“solitariamente” vivido, ou mesmo quando tocamos com “exclusividade” um objeto nunca

antes tocado por outro, não estaríamos sozinhos. Porque dentro de nós um outro habitaria na

espreita, um outro que representa muitos outros discursos e outras memórias. Só temos

capacidade de nos lembrar quando nos colocamos no ponto de vista de um ou mais

grupos e de nos situar novamente em uma ou mais correntes do pensamento coletivo

(Ibidem, 36, grifo meu).

Pensando numa outra possibilidade teórica, diferente, mas aproximada da de

Halbwachs, e ainda fundamentada no conceito de “memória coletiva”, pensamos aqui

também a memória como prática individualizada, pois não podemos lembrar e reinventar

nossa história somente a partir das lembranças de um outro e ainda não podemos invadir as

lembranças alheias a qualquer hora. E as lembranças inventadas? É claro que a memória

pode ser também vivida coletivamente, sem que para isso se perca a singularidade própria

de cada um. Ora, a memória subjetiva comunga com a memória coletiva que se faz na

prática histórica e social a partir das relações que estabelecemos com os outros sujeitos ao

longo da nossa existência. Tomo consciência de mim, originalmente, através dos outros:

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deles recebo a palavra, a forma e o tom que servirão para a formação original da

representação que terei de mim mesmo. (Bakhtin, 1992, p. 378)

Quando uma terra é devastada, um país é invadido por outro, quando um povo é

humilhado, descaracterizado politicamente, culturalmente, lingüisticamente; quando toda

uma nação é dizimada ou quase extinta, os que viveram este tempo carregarão consigo

memórias latentes pertencidas a todos. Ser negro é ser um coletivo. Ser mulher é ser um

coletivo. Ser nordestino é ser um coletivo.

Pegando de empréstimo o que é da memória coletiva, busco ainda pensá-la como

uma memória polifônica, que se faz experiência através das relações, das ações, das

percepções compartilhadas no cotidiano do vivido e do narrado. Mas não apenas aquelas

conhecidas e compartilhadas por todos num mesmo tempo e espaço. Mas também aquelas

que nos chegam quase a todo o momento pelo olhar, pelos sentidos como: música, som,

imagem, toque, gosto, cheiro... Nesse “descobrir-se” nos tornamos também descobridores

dos outros sujeitos que conosco permanecem em estado latente de memória.

O desejo de transformação quando não provém de um espírito que coabite com a

idéia de coletividade corre o risco de cair na alienação, no vazio e até na impossibilidade

histórica. Quando nos isolamos, e isto é muito comum no mundo atual, perdemos a noção de

perspectiva para o futuro, o que nos faz decretar de forma apocalíptica e “ao quatro ventos”

o fim da história, o fim da humanidade, o fim da memória.

O sujeito, ameaçado na sua idéia de continuidade, acaba envolto num mundo de

signos na procura por construir um significado que materialize o mundo e o integre de novo,

social e historicamente. E uma das funções da linguagem aliada à narrativa das memórias, a

memorialística, acaba sendo hoje a de preencher esse espaço deixado pela idéia da falta de

significância da própria existência. A memória enquanto linguagem aparece então com a

função de fundamentar a nossa existência, dando a ela sentidos e significados.

No cruzamento dessas memórias, singular e coletiva, abrimos a possibilidade para

uma memória que se faz polifônica. Chamamos de memória polifônica a memória que se

constitui na interação com o(s) outro(s), ainda que mantendo parte do que é da singularidade

, afinal o sujeito é este misto entre o que é do individual e o que faz parte do coletivo. Para

tanto, recorremos ao conceito bakhtiniano de polifonia (1997, p.6): vozes diferentes,

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cantando diversamente o mesmo tema. Isto constitui precisamente a “polifonia”, que

desvenda o multifacetado da existência e a complexidade dos sofrimentos humanos.

Nesse sentido, a memória polifônica a qual nos referimos é uma memória formada

por um universo de vozes que convivem conosco, vozes do pensamento coletivo, do

Inconsciente coletivo, das memórias coletivas realimentadas pelas ações, pelos sonhos,

desejos e experiências da vida cotidiana e pelos projetos de futuro. A memória polifônica é

atravessada por uma rede de discursos e imagens a partir das inúmeras relações criadas-

desconstruídas-recriadas pelos sujeitos ao longo da vida. Desta engenhosa rede que une

palavra e imagem, a memória polifônica constrói-se múltipla de significados.

Quando nos encontramos com os velhos amigos da escola, uma memória se costura

na outra, a memória que não guardo de mim e mora no outro, alinhavava com choro e riso

na emoção dialogada. E é no outro que buscamos, certos de sermos seres inacabados, nosso

acabamento: o homem tem uma necessidade estética absoluta do outro, da sua visão e da

sua memória; memória que o junta e o unifica e que é capaz de lhe proporcionar um

acabamento externo. Nossa individualidade não teria existência se o outro não a criasse.

(Bakhtin, 2000,55)

A memória discursiva do cotidiano escolar torna-se aos olhos dos seus narradores,

principalmente dos narradores orais, esse coletivo polifônico, de múltiplas vozes, pois

pertence a todos que por ela passaram e passam sucessivamente.

Sobre a memória de sua arte docente, Ryane nos conta:

Fui escolhida pela profissão para ser professora. A pedagogia me fisgou.

Mas ser professora maluquinha sim, foi uma opção. A escolha de fazer algo para

mudar o mundo, promover a mudança e a expansão de pequenos mundos que

compartilham conosco o cotidiano. Trabalhar a linguagem, o acesso e o domínio do

nosso sistema gráfico de escrita, a formação do leitor que é influenciada pela nossa

formação de leitores de vida, a vida do outro, suas possibilidades, necessidades e

sonhos. Estimular o sonho, a esperança, dar aulas sobre o amor ao livro, ao próximo,

às palavras, à arte, ao sorriso, ao abraço, ao afeto, são características próprias de uma

professora maluquinha. Alguém que vê e sente poesia na sala de aula, no

aprendizado dos alunos, aquele nó na garganta quando algum deles avança, o

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carinho e o aconchego de quem exercita e compartilha a delicadeza e a paixão de

ensinar e aprender.

Acredito que eu ainda preciso estudar muito para fazer meu trabalho melhor.

O que faço é, sempre que tenho um novo conteúdo que posso introduzir com poesia,

eu o faço. Leio em voz alta, conversamos e chegamos às conclusões. Agora, estamos

ensaiando cachinhos dourados e os três ursos, eu e minha turma do 3º período. Será

uma tarde de teatro na escola, estou muito feliz. Gosto muito de ler para meus

alunos, conversar sobre os livros, ouvi-los dizer se a história é boa ou ruim, coisa

que eles fazem com muita sinceridade. Acredito que essa tarde de teatro será muito

importante para toda a escola, o processo de produção do cenário, o ensaio diário

com as crianças está sendo muito interessante, eles gostam muito e eu também.

A nossa história é também a história das pessoas e das situações que viveram e que

vivem conosco. E ao nos religar com nossa história somos tomados por um fluxo de

palavras e imagens, por um labirinto discursivo e imagético que constroem a narrativa das

nossas memórias. Sendo a própria palavra também imagem, nos aproximamos de um

universo de referências simbólicas que se materializam no discurso memorialístico.

Ryane e sua turma estão criando um material inédito de memórias de futuro. Ela e as

crianças, seus alunos, nos confirmam que somos sujeitos narradores do passado, do presente

e do desejo de futuro, falantes e ouvintes, leitores e herdeiros de uma “memória polifônica”,

tecida coletivamente – entre muitas linguagens e narrativas que ajudam a criar o tempo do

quando. E sobre o tempo do quando disse o poeta Manoel de Barros119: “Eu não amava que

botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data era o

quando. O quando mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse

advérbio.”

119 BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: a segunda infância. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.

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Alunas da professora Ryane.

Para Maffesoli (1995), discípulo de Gilbert Durand, a imagem é “religante”, uma

espécie de “mesocosmo”. Partindo desse pressuposto, da busca dinâmica e atenta de “uma

razão sensível” (Maffesoli, 1995, p. 102) aliada ao exercício de uma poética da realidade,

pensamos aqui a memória e a narrativa como constituição e compreensão da própria

subjetividade: eu como “ser no mundo”, “ser com o mundo”, esses conceitos capazes de

transformar os pré-determinismos sociais e históricos, que muitas vezes as relações de poder

nos ofertam como sina dogmática a ser seguida, aceita e normatizada. “A que será que se

destina?” E é na contracorrente desse lugar, que nos fortalecemos quando nos apropriamos

da nossa história como sujeitos singulares: autores, atores, contadores da nossa narrativa:

nossa relação com o mundo e com os outros. E é nessa dialética, que pode até causar ruídos

e dissonâncias, que penso a arte literária como possibilidade de democratização do

conhecimento. A arte, a imaginação, o pensamento simbólico, a oralidade, a cultura popular,

a ludicidade são respostas de resistências às interdições dos que ainda tentam oprimir os que

têm fome de voz, sonho, poesia.

Ao tematizar o imaginário, Maffesoli (1995, p.17) nos fala de um “mundo

imaginal”, de um conjunto complexo no qual as diversas manifestações da imagem, do

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imaginário, do simbólico e o jogo das aparências, ocupam, em todos os domínios, um lugar

primordial. Para Maffesoli a imagem não tem uma “racionalidade instrumental”, ela é feita

de fantasias e sonhos.

Nossa memória se encharca de palavras, imagens, sons, cheiros, fantasias de

situações e tempos diversos. No sentido que se instaura no trânsito entre o que chamamos

de realidade e o que buscamos simbolizar a partir do imaginário somos convidados à

narrativa de nossas histórias de vida, nos lançando a um fluxo interior, que comunga com o

que evidenciamos do exterior. Então somos capazes de ficcionar e recriar, poetizando até

mesmo a própria idéia de realidade. Quantas vezes nos lembrando de imagens que não

experimentamos como “fatos consumados”? Ou ainda, quantas vezes lembramos por uma

sugestão? Alguém nos contou parte de nossa história, aquela que, por tenra idade, não

conseguimos lembrar sozinhos: nossa mãe, nosso pai, nossos avós... E então lembramos de

um passado que mesmo sendo nosso, é rememorado a partir da memória de um outro e da

sua narrativa. Esse outro que nos presenteia com uma parte de nós que a ele pertenceu:

memória.

Para contar-se é preciso contar dos outros numa permuta, nessa tarefa de não deixar

cair no esquecimento, na morte - quem somos e o que fazemos. Em nossa formação docente,

muitas vezes nos encontramos, como diria o sertanejo de Guimarães Rosa (1986), com o

diabo na rua, no meio do redemoinho, entre questionamentos fáusticos e dúvidas perenes:

de um lado o silêncio que é silenciamento, a “ não ação”, a autonomia tutelada: “o educador

massa”. Na outra margem a palavra, o desejo, a ação e a reflexão: o educador-agente, o

educador participante e crítico. Entre o “dizer” e o “não-dito”, entre a fé e o desânimo, entre

a luta e o descaso(cansaço), “ser e não ser”. Talvez entre os sabores e dissabores desses

tantos “quereres” se busque uma terceira margem que foge à tentativa de categorização:

que nos faz ser ambos, amplos e múltiplos na correnteza da vida. Como diz Agnes Heller:

Mesmo nos contextos mais manipulados, produz-se constantemente a ‘recusa do papel’. Em

todos esses contextos, há excêntricos, rebeldes e revolucionários. Até mesmo os contextos

mais manipulados estão repletos de homens que vivem em ‘incógnito de oposição’ (1985,

p.106)

Refletir sobre os saberes docentes nos faz tentar compreender os instrumentais de

uma rede de conhecimento e de experiências que se desvelam no espaço transicional entre

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ficção e realidade, entre histórias reais e histórias ficcionais – sem querer tratá-las como

países estrangeiros que se limitam por fronteiras, mas revolvendo-as como terras da natureza

humana, terra de todos os humanos. A memória, o imaginário e a linguagem – esses

elementos da subjetividade - estão inter-relacionados à tessitura memorialística do discurso

materializado, aproximando-nos dos universos referenciais e transferenciais das nossas

narrativas de vida.

Nossas narrativas nos fazem viver os narradores arcaicos de Walter Benjamin (1994)

- o “marinheiro” conhecedor do mundo, com inúmeras histórias a contar sobre terras

estrangeiras e o “camponês”, enraizado em sua terra, conhecedor das tradições de seu povo.

Pensando sobre as possibilidades do tempo, sobre esse tempo idealizado e

(ir)recuperável da infância, lembramos Manuel Bandeira - poeta que registrou em muitos

versos sua “memória proustiana” de infância, lembranças repletas de imagens de um tempo

perdido, tempo que só poderia ser mesmo resgatado através das reminiscências, através do

olhar do homem que envelheceu para o espelho, mas não para o passado: Recife... meu avô

morto. Recife morto. Recife bom. Recife brasileiro como a casa de meu avô. (1966, 73)

Assim o poeta revela em versos o quanto a infância pode ser rememorada, re-significando a

existência do homem já entardecido, homem velho de muitas memórias: Teresa, você é a

coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida, inclusive o porquinho-da-índia que me

deram quando eu tinha seis anos. (Ibidem, 77)

A casa do avô. A nossa casa. A casa inteira é mais do que um lugar para se viver; é

um vivente. 120 E a escola. A nossa primeira aula. O tempo da infância se entrecruza com o

tempo da escola. E o tempo da escola é um tempo rítmico de várias modulações, um tempo

que se faz no movimento, fazendo interseções, a partir da memória, no chamado tempo

cronológico. Como faz Manoel de Barros em suas Memórias inventadas quando proclama

que tudo o que não inventa é falso. E assim diz:

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. (...)

Cresci brincando no chão, entre formigas. De um a infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz mais comunhão com: de

120 DURAN, Gilbert. 2001, 243.

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um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comugante e oblíqua das coisas.

O imaginário da poesia de Manoel de Barros nos conduz, como um viajante numa

noite de inverno - pelas cidades (in)visíveis, pelas leituras (in)visíveis, pelas memórias

(in)visíveis. Pois a cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui das

recordações e se dilata. (Calvino, Ítalo, 1998, 14). E era contigo que eu falava. Pois

também lembro de mim quase sempre acompanhada de um caderno.

"Ai, palavras, ai, palavras,

Elas. Ah! Elas...Vêm desnudas e belasE belas se mostram para seus pintores.

Pintores de cores em telasPintores de dores e amoresDe sonhos, emoções e rancoresDa reinvenção de outros autoresPintores...

E pintam a vida nas telasE olham para elas, tão belas!E reproduzem nas suas aquarelasO gosto das coisasO cheiro dos lugaresOs sorrisosOs olharesOs silênciosE os falares

E são elas: palavras!Multidões de expressõesConfusão de emoçõesMentes, corpos e canções...

Palavras são pessoas inteiras( São dizeres ditos de diversas maneiras )Mentirosas ou verdadeirasLutas, paixões e bandeirasDuras e derradeirasPalavras rotineirasFofoqueirasNamoradeiras.

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Ah! Palavras!Nuvens de pensamentosSensações e sentimentosPalavras refletem momentosE iniciam movimentos.

Ah! Céu de palavrasEste que agora me cobreEste mistério profundoEsta certeza tão nobre.

Que tudo pode ser ditoConcordem com isso ou nãoSeja com palavras ao ventoOu com as palavras do coração.

Ryane Pinto

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Terra

Elzi Paixão

... Camus diz de uma maneira enigmática: 'um rosto que sofre tão perto das pedras já é pedra também.' Diria eu, exatamente o contrário, que um

rochedo que recebe tão prodigioso esforço do homem já é homem também.

(Gaston Bachelard. , A terra e os devaneios da vontade)

Os majestosos cisnes nadaram à sua volta e acariciaram-no com admiração com os bicos. Umas criancinhas apareceram no jardim e atiraram pão para a água e a mais pequenina gritou alegremente:

— Há mais um!E as outras disseram, encantadas:

— E verdade, apareceu mais um cisne!Bateram palmas e dançaram de contentamento; depois foram a correr

contar aos pais. Deitaram mais pão e bolo para a água e todos disseram:— O novo é o mais bonito de todos. Olhem que belo que é, aquele novo!

E os cisnes mais velhos curvaram as cabeças diante dele.

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Ele sentia-se muito envergonhado e escondeu a cabeça debaixo de uma asa; não sabia o que fazer. Estava quase feliz de mais, porque um bom

coração nunca é orgulhoso nem vaidoso.

(Hans Christian Andersen, O Patinho Feio)

Memorial de Elzi Paixão:

O enterro da cigarra

Não era sábado nem domingo, mas era costume da família se reunir para pôr vovó Laura a par dos últimos acontecimentos. Vovó exibia sua experiência de forma cautelosa dando verdadeira lição de como administrar um lar com todos os percalços do dia-a-dia. Nessa hora, a criançada já sabia o que deveria ser feito: ir brincar, pois "em conversa de adulto, criança não se metia"! Pois bem, eu, minhas irmãs e minhas primas estávamos nos encaminhando para o pé de carambola quando, no meio do caminho, encontramos uma cigarra morta. Sim. No meio do caminho tinha uma cigarra. Tinha uma cigarra no meio do caminho. Assim como a pedra de Drummond, também tínhamos um desafio pela frente.

Imediatamente, nossos olhos brilharam e num "lampejo de solidariedade", chegamos à conclusão de que tal bichinho não podia ficar ali,  estirado, inerte, sem que fizéssemos o seu "enterro". Era preciso dar àquela cigarra-cantora, as honras merecidas. Afinal, de sol a sol, por longo tempo, ela havia alegrado todos  os  dias com suas cantorias sem ter ganhado nada em troca. Mas cemitério que se prezasse, não enterrava apenas um defunto por dia. Foi aí, que o lampejo de solidariedade deu lugar ao que, mais tarde, enxergaríamos como perversidade... Começamos um verdadeiro "assassinato coletivo" no quintal de vovó. Foi a caça mais divertida que inventamos. Como gargalhávamos!Ríamos incondicionalmente! Muitas vidas foram sacrificadas: borboletas, cigarras, moscas, camaleões, lagartas e lavadeiras...Fazíamos com a pureza e inocência de quem se esforçava para dar à pobre cigarra, aquilo que não tivera em vida: glamour, isto é, um enterro de celebridade.

Sem nos sentirmos ainda satisfeitas, colocamos panos na cabeça e fizemos óculos escuros de papel. Do jardim de vovó colhemos as flores (beijo), da amendoeira, folhas. E enfeitamos os "defuntos" que foram devidamente colocados em seus "caixões" (caixas de fósforos). Tudo ia bem se não estivesse aproximando a hora do almoço. Minha mãe, incumbida de nos chamar, gritava nossos nomes um a um repetidamente.

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Achando muito estranho não obter resposta, resolveu descobrir o que estava acontecendo. Ao nos encontrar a surpresa foi tamanha ao nos ver uma atrás da outra chorando copiosamente por aquele bando de bichinhos. O segredo para tantas lágrimas? Enchemos de água vidrinhos de desodorante que íamos espirrando em nossos olhos enquanto seguíamos em procissão para a "hora derradeira".

Sem perder tempo,   minha mãe pediu que entrássemos, mas estávamos na melhor parte da brincadeira! A situação agravou-se quando ao olhar mais à frente, mamãe avistou uma de minhas primas cavando os buracos para os sepultamentos... Foi a gota d'água! A pedra de Drummond virara um pedregulho...

Aos gritos mamãe tirou o chinelo do pé e saiu correndo a nosso encalço dizendo que estávamos trazendo mau agouro e, principalmente, que não amávamos a Deus, pois tínhamos feito aquela maldade com os "pobres bichinhos"! Não precisa nem dizer que ficamos sumidas pelo quintal o dia inteiro, ah, mas... "galinha de casa não se corre atrás"!

No final do dia, todos que passavam pelo portão de vovó estranhavam o choro em conjunto que se ouvia; éramos nós apanhando.

No outro dia, ao nos encontrarmos para novas brincadeiras, rimos muito uma da cara da outra e descobrimos, mesmo depois das chineladas e do castigo, que havia valido à pena. Nunca nos divertimos tanto como naquele dia! Assassinas, nós? Que nada! Foi apenas um jeito diferente de colocarmos nossas imaginações férteis para funcionar! 

CAPÍTULO 6

Poética da LinguagemUm trançado de bilro entre oralidade e literatura

Elzi Paixão: A contadora de “Hestórias”121:

Entrou numa perna de pato, saiu numa de pinto. Quem quiser que conte cinco...

121 Elzilane Paixão é graduada em Letras-Literaturas pela Universidade Federal Fluminense, tem pós-graduação em Alfabetização e Literatura Infanto-Juvenil. É professora e diretora em escolas da rede estadual e municipal de São Gonçalo, além de elaborar e coordenar projetos de leitura no município.

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       Éramos quatro. Quatro meninas. Motivo de chacota ao mesmo tempo de inveja.

Chacota por meu pai não ter tido a “competência” de gerar um filho homem. Inveja

porque valíamos muito mais que qualquer herdeiro de outra família. Éramos “pau

pra toda obra” – literalmente falando. Acordávamos bem cedo para buscar água no

poço de Seu Flavio. Lata d’água na cabeça e lá íamos nós...Depois, ainda catávamos

e carregávamos pedra para a construção de nosso muro, sem falar na areia ou areola

e até no cimento...Infância difícil. Trabalhávamos com a resignação de quem não

queria contrariar a um pai severo, autoritário, “assembleiano” por convicção. Não

podíamos ler. Somente a bíblia. Televisão não existia. Brinquedos? Era coisa do

diabo!Infância difícil. Infância feliz. Carregávamos água cantando e brincando.

Carregávamos pedra cantando e brincando.

      Morávamos num lar humilde, dinheiro contado, roupas, na maioria das vezes de

segunda, mas carinho de primeira... Tínhamos papai que mesmo com a sua sisudez

tratava-nos com cuidado de pai. Tínhamos mamãe, que mesmo submissa, se revestia

de autoridade e enfrentava a sisudez de papai para ver os nossos sorrisos. Tínhamos

vovó: a contadora de histórias reais e imaginárias, a que “dominava” a língua do “p”

– utilizava sempre em se tratando de assuntos confidenciais, a cantora – com

composições próprias e também do domínio popular, a ex-rezadeira, a conselheira,

uma das moradoras mais antigas do local respeitada por todos... Para muitos era

Vovó Laura, para outros, Papai Laura, Irmã Laura para os amigos da igreja ou

simplesmente D.Laura.

      Vovó tinha uma disposição para o trabalho inacreditável para sua idade. Além

disso, subia e descia o morro quantas vezes fosse preciso. E brincava. E conversava.

E contava. Era um causo aqui, outro ali, outro acolá. Com os netos era sempre uma

farra. Eu, a caçula, a mais grudada, a mais embevecida, a que lhe venerava. À noite,

nos reuníamos embaixo da amendoeira frondosa, exuberante que com seus galhos

curvava-se em reverência a nossa alegria. E vovó, contava uma história. E mais

outra... A literatura oral ia preenchendo o nosso mundo. "Entrou numa perna de pato

saiu numa de pinto. Quem quiser que conte cinco..." Vovó sempre terminava as

histórias do mesmo jeito e todos os dias era o mesmo ritual, todavia era um ritual

que se renovava, pois era revestido  de magia...  Livros?Havia um. Ganhara-o na

alfabetização: “O Patinho Feio”. Lia. Relia. Inventava. Reinventava. Sempre sob o

olhar de Vovó.

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      Fui crescendo. As dificuldades também. O lar era o mesmo, o dinheiro

continuava contado, no entanto, mamãe nos impunha a responsabilidade de sermos

estudantes. Livros? Sabrina. Júlia. Escondidos dentro de um livro didático para papai

não perceber que infligia seus mandamentos. Vovó Laura era então, sinônimo de

refúgio, de cumplicidade. Vovó não conhecia o código escrito, porém era uma

leitora que foi alfabetizada na vida e pela vida desde cedo. Era capaz de ler a si

própria com tamanha criticidade. Era capaz de ler o outro com tamanha

sensibilidade. Adolescência difícil? Adolescência feliz. Ler clandestinamente,

tornou-me uma leitora e escritora ávida, voraz. Sabrina, Julia... Pedro Bloch.

Ganymédes José. Machado. Alencar e tantos outros!

      Hoje, já não somos quatro. Somos três. Papai continua sisudo, porém mais

maleável com a chegada dos netos. Mamãe, cada vez menos submissa e seguidora

dos passos de vovó. Vovó também já se fora. Todavia me deixou o maior de todos

os legados: o gosto, o sabor e a melodia das palavras; a arte e a sedução de contar e

ouvir histórias. Vovó me ensinou a olhar a vida com doçura. A partir da história de

vida de vovó e das histórias contadas por ela, vou aos poucos tecendo e construindo

a minha.   

Miremos as crianças. São mestras e aprendizes de tecelãs, muitas trabalhadoras e

arteiras desde a infância e assim como a professora Elzi e suas irmãs, de “infância difícil”.

Disse José Saramago (2006) em suas memórias de infância:

Já não existe a casa em que nasci, mas esse facto é-me indiferente porque não guardo qualquer lembrança de ter vivido nela. Também desapareceu num montão de escombros a outra, aquela que durante dez ou doze anos foi o lar supremo, o mais íntimo e profundo, a pobríssima morada dos meus avós maternos, Josefa e Jerónimo. (p. 15)

E para além das dificuldades é possível aprender com as crianças a importância das

trocas simbólicas que habitam a arte do conhecimento comum, este compartilhado entre as

brincadeiras e os desafios, entre a alegria e a espera, entre a “lata d’água na cabeça” e o

carregar a água cantando e brincando”, no que há de imaginação que se compartilha entre o

vivido e o narrado, que quase sempre vem de lá: da pobríssima morada dos nossos avós.

Elzi:

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A literatura oral sempre fez parte do meu mundo. Foi através das histórias

contadas pela minha avó materna, Laura, que surgiu meu primeiro interesse pela

oralidade e em seguida pela leitura e escrita. Aos poucos ia tomando posse daquele

universo de relatos e desvelando esse universo eu descobria também as

letras. A minha leitura de mundo era feita com o auxílio de seus olhos experientes e

expressivos. Todas as tentativas de escrita, durante o tempo  de permanência de vovó

aqui na Terra, eram guardados com todo cuidado. E eram motivo de orgulho pra

toda família, pois aos quatro anos de idade, eu já lia e escrevia sem ter ido à escola.

A primeira semana no pré-escolar do IEPIC foi assustadora! Era semana de

sondagem e eu parecia um ET entre tantas crianças normais. Os diversos professores

que avaliavam os alunos admiravam-se com a minha inteligência... (risos) Como

podia uma menina negra, de olhos expressivos, pobre, morando em morro, ler e

escrever tão bem? Quando me lembro desse tempo me vem uma música na cabeça,

acho que ela traduz fundo essa minha memória. Vou cantar um pouquinho...

Como se foraBrincadeira de roda

(Memória)Jogo do trabalho

Na dança das mãos(Macias)

O suor dos corposNa canção da vida

(História)O suor da vida

No calor de irmãos(Magia)

Como um animal que sabeDa floresta(Perigosa)

Redescobrir o salQue está na própria pele

(Macia)Redescobrir o doce

No lamber das línguas(Macias)

Redescobrir o gostoE o sabor da festa

(Magia)

(...)

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Não tenha medoMeu menino bobo

(Memória)Tudo principia

Na própria pessoa(Beleza)

Vai como a criançaQue não teme o tempo

(Mistério)Amor se fazerÉ tão prazerQue é comoSe fosse dor

(Magia)

Como se foraBrincadeira de roda...

Por que cantávamos e cantamos canções diante dos enfrentamentos, dos sofrimentos,

das perdas, dos infortúnios? E diante das celebrações, das alegrias, dos festejos? Por que

homens e mulheres de culturas espalhadas por todos os continentes, ao longo da História e

das suas travessias de mundo, entoaram tantos cantos durante o trabalho na agricultura, nas

lavouras, nas plantações, nas colheitas? O canto para a terra, para sua natureza é o canto de

quem conhece da terra a vida e sua dura natureza. Com a palavra duro, o mundo expressa a

sua hostilidade e, em resposta, começam os devaneios da vontade. (...) É uma palavra que

não pode permanecer tranqüilamente nas coisas. (Bachelard, 2001, p. 51) Disse Elzi

Paixão:

Percebo ainda que certas infâncias também envelhecem. Vejo cada vez

menos meios de comparação entre a criança que fui e a criança que vejo hoje em

meu filho. Sim, poderíamos dizer, o mundo mudou. Só não contávamos com a

velocidade desse mundo que muda

. Por que há 30, 40 anos atrás as crianças ainda cantavam, estimuladas pela

comunidade, pelos pais, avós, professores, por toda uma cultural infantil que celebrava a

vida em cirandas e rodas que tanto se repetiam nos espaços públicos? Porque na nossa velha

criancice sabíamos que “cantar fazia nossos males espantar”, assim dizia a sabedoria do

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povo. Porque, descendentes dos africanos, dos portugueses, dos italianos, dos japoneses

cantávamos e contávamos pela tradição da cultura do trabalho, para não esquecer nossa

identidade, porque feitos herdeiros de uma Sherazade, herdeiros das Nornas, das Parcas, das

fiandeiras e dos griôs, precisávamos todos zelar pelas estórias e pelas histórias, pelos fios e

teares, por toda uma existência humana que se fazia narrativa num tecido polifônico que é a

passagem do homem pelo mundo.

Cantávamos e contávamos porque em algum momento seríamos convocados a nos

opor ou resistir à aculturação, à escravidão, à opressão, à submissão desmedida, mesmo que

de forma não re-velada. E era através da memória coletiva que encontrávamos ferramentas,

recursos para a preservação de uma cultura local que era ao mesmo tempo universal. Assim

a literatura oral que também pertence à arte do povo era um patrimônio cultural de um

coletivo e de toda uma ancestralidade mítica. E a cultura oral que também trazia e traz entre

seus elementos constitutivos a arte popular folclórica é enquanto território cultural, terra de

todos, fazendo renascer nos brincantes de hoje o mesmo pertencimento arcaico de antes, seja

nas ambiências rurais ou nas ambiências urbanas, seja por meio das cantigas, trocinhas,

adágios ou através dos contos e fábulas, pois toda essa cultura, mesmo que fragmentada,

consegue chegar aos nossos dias e para as crianças pequenas, isso se dá muito mais através

da escolarização que propriamente pela via oral transmitida de geração a geração.

O anel que tu me deste era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e

se acabou... Quantas crianças, nas rodas brincantes ou passando anéis em tempos passados

cantaram os versos de uma Ciranda Cirandinha? Ou como se fosse brincadeira de roda,

quantas vezes as mesmas rimas foram cantadas em épocas, lugares e culturas diferentes?

Para contar um pouco da ancestralidade mítica da história de vida da professora Elzi

através de sua seleção de memórias escolhi uma imagem, uma ilustração de Debret e duas

versões para a fábula de La Fontaine, a primeira de Monteiro Lobato e a segunda de José

Paulo Paes, ambas muito utilizadas nas aulas de língua e literatura:

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A CIGARRA E A FORMIGA (A FORMIGA BOA)122

Houve uma jovem cigarra que tinha o costume de chiar ao pé do formigueiro. Só parava quando cansadinha; e seu divertimento era observar as formigas na eterna faina de abastecer as tulhas.

Mas o bom tempo afinal passou e vieram as chuvas. Os animais todos, arrepiados, passavam o dia cochilando nas tocas.

A pobre cigarra, sem abrigo em seu galhinho seco e metida em grandes apuros, deliberou socorrer-se de alguém.

(...) A formiga olhou-a de alto a baixo. - E que fez durante o bom tempo que não construiu a sua casa?

A pobre cigarra, toda tremendo, respondeu depois dum acesso de tosse. - Eu cantava, bem sabe...

- Ah!... exclamou a formiga recordando-se. Era você então que cantava nessa árvore enquanto nós labutávamos para encher as tulhas?

- Isso mesmo, era eu...Pois entre, amiguinha! Nunca poderemos esquecer as boas

horas que sua cantoria nos proporcionou. (...) A cigarra entrou, sarou da tosse e voltou a ser a alegre cantora dos dias de sol. (grifo meu)

SEM BARRA123

122 LOBATO, Monteiro Fábulas, 1994.123 PAES, José Paulo. Poemas para brincar. Rio de Janeiro: Editora Ática, 1990.

196

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(...)A formiga é só trabalho.A cigarra é só cantiga.

Mas sem a cantiga da cigarraque distrai da fadiga,seria uma barrao trabalho da formiga

“A cigarra e a formiga” é uma entre tantas fábulas esópicas recontada por La

Fontaine. Tendo sua origem na tradição oral arcaica e de cunho popular, as fábulas, ao

longo dos séculos, foram adaptadas, reinventadas e “escolarizadas” e devido à função

didática de aconselhamento, acabaram muitas vezes tendo suas interpretações reduzidas à

“moral” da estória, “moral” que, segundo Manuel Aveleza, seria apenas um acréscimo

tardio, acrescentado por copistas já em épocas distantes da criação dos textos originais.

(2003, p.19) Para Benjamin, a natureza da verdadeira narrativa tem sempre em si, às vezes

de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade poderia consistir num ensinamento

moral, numa sugestão prática, num provérbio ou numa norma de vida. Segundo Benjamin,

o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (1994, p. 200)

Na versão bastante conhecida de La Fontaine para a “a cigarra e a formiga” assim

como na sua tradução feita por Bocage, no desenrolar da estória a cigarra vai se

encontrando numa situação muito difícil, pois mesmo depois de muito esforço para tentar

convencer a formiga a lhe dar um pouco de comida e um abrigo provisório – “nem que por

empréstimo”, a cantora acaba desprezada pela pequena operária que, sem dúvida, havia

trabalhado por todo um verão carregando e armazenando seu sustento a fim de enfrentar o

hostil e rigoroso inverno. Na versão de Bocage:

A formiga nunca empresta,Nunca dá, por isso junta.- "No verão em que lidavas?"À pedinte ela pergunta.Responde a outra: - "Eu cantavaNoite e dia, a toda a hora."- "Oh! bravo!", torna a formiga.- "Cantavas? Pois dança agora!"

197

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A estória da cigarra cantora e da formiga operária poderia bem se tornar a fábula de

um duplo canto em constante ambi-valência. Uma fábula humana de narrativas e

complexidades. As memórias da professora Elzi nos falam sobre um acreditar que é possível

pela trajetória docente aprender a olhar o novo e ver nele formas de enxergar o mundo e os

outros. Pela ótica das narrativas de Elzi é possível trazer à memória a memória da escola e

nessas narrativas unidas as narrativas das muitas professoras-cigarras-formigas que nos

fazem encontrar o que Elzi Paixão diz ser a imagem que precisa e identifica a sua trajetória:

uma travessia, um caminho. A travessia que também feita de pedras é feita de sonhos e

risos.

Pouco siso muito riso diz um adágio popular. Por quais vias e veias o riso, a dança e

o canto entram na escola? Sabemos que “o riso” liberta, aproxima, regenera. Na tradição

oral do contador de estórias, do menestrel, não há versão que não tenha um pouco de riso ou

muito de riso. Algumas trazem mesmo o riso jocoso que encontramos também em muitos

clássicos da literatura, nas paródias, nas sátiras, nos textos feitos com a ironia, como a ironia

que chocava os leitores de Machado de Assis ou ainda o riso popular da carnavalização das

obras de Rabelais.

Apenas as culturas dogmáticas e autoritárias são unilateralmente sérias. A violência não conhece o riso. (...) Tudo que é autenticamente grande deve comportar um elemento de riso, caso contrário fica ameaçador, aterrorizante ou grandiloquente e, em qualquer caso, limitado. O riso levanta barreiras, abre caminhos. (Bakhtin, 2000, p. 374)

Mas talvez por uma certa rotina deixemos de usar nossa retina e assim não nos

vamos não nos permitindo mudar. E aceitar que o caminho é a mudança e que é ela que nos

torna realmente livres. A literatura – sem pudor algum – constrange qualquer tentativa de

absolutos e com suas ironias e dramas, segue mudando e transgredindo a sintaxe,

subvertendo a lógica da língua, subvertendo a lógica de um pensamento, de uma ideologia.

A literatura muda a moral da estória. E ri de si mesma.

Sem dúvida há uma resistência que é uma marca da cultura oral primária quando se

pensa e, sobretudo, se vive a permanência e a persistência da oralidade que se faz pela

contação de estórias, pela entoação das cantigas, pela escuta ou ainda nas brincadeiras de

roda tão pertencentes a uma cultura infantil, a uma determinada cultura de infância.

198

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O teórico da poesia medieval, Paul Zumthor (2001) conseguiu, a partir de seu vasto

estudo e reflexões sobre “a letra e a voz” na literatura, distinguir três tipos de oralidade, que

corresponderiam a três situações de cultura. Seriam elas: a oralidade primária e imediata, a

que não comporta nenhum contato com a escritura e que se encontraria nas sociedades

ágrafas, sem qualquer sistema de simbolização gráfica, restrita ao uso dos grupos sociais

isolados e analfabetos. Na sequencia, Zumthor chama a atenção para os outros dois tipos de

oralidade, que seriam respectivamente: a oralidade mista, quando a influência do escrito

permanece externa, parcial e atrasada; e a oralidade segunda, quando se recompõe com base

na escritura num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário. A

oralidade mista procede da existência de uma cultura de uma cultura “escrita”; e a oralidade

segunda, de uma cultura “letrada”. (p.18)

Daí a importância de ressaltar o significativo papel da didática e das metodologias

em relação à pratica da oralidade na escola para que seja enfim possível repensar o papel da

escolarização na formação docente através de um projeto curricular que possa privilegiar

não apenas uma formação política, mas também uma formação poética, que leve para a sala

de aula toda a expressividade da língua portuguesa e a não exclusão de uma área do

conhecimento em detrimento de outra. Uma didática da língua portuguesa e da literatura

que possam abrir e abrigar um leque de escolhas e de abertura ao novo, abrindo um leque de

possibilidades com a natureza do oral. Porque é possível educar pelo sensível, pelo ouvido,

pela escuta, pelos olhos, pelos sentidos todos. É possível educar sem oferta de medo e culpa,

de castração da voz. É possível educar pelo gosto, pelo desejo de ler, escrever, narrar... E

essa não é uma responsabilidade única e absoluta do professor de língua e literatura. Ela é

uma abertura que se dá motivada pelas experiências desse percurso que é a trajetória

docente.

Elzi:

Sempre que reflito sobre a minha trajetória profissional, não penso no

caminho em si, mas na travessia ou seja, no quanto foi e é difícil, mas prazeroso

atravessar, cruzar este caminho. Minha frase de cabeceira é “a educação é do

tamanho da vida. Não há começo, não há fim, só travessia” do Rubem Alves.

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Nas falas, estórias e narrativas de Elzi além da majestade de um cisne e da voz dos

pássaros que habitam as densas florestas, encontramos “a poeira” da terra, os úmidos, as

pedras, os bichinhos que são en-terra-dos. Elzi e suas irmãs sujam as mãos de terra com a

própria terra sendo elas também filhas dessa terra. Elzi sabe da poesia de Manoel de Barros

a experiência da “criancice” dos que conhecem o chão e todo seu universo lúdico de

caquinhos, restos, pedacinhos da vida que caiem e germinam a terra. Claro, um sonhador de

rochas não se contenta com um jogo superficial, com um nome que graceja ao passar por

uma forma passageira. Mesmo quando a imaginação ainda brinca, ela necessita de “laços”

materiais. (Bachelard, 2001, p.150)

A história individual de Elzi Paixão é também a história de todo um povo que fala e

vive através dela. É a história da África, é a história do Brasil, é a história dos que viveram

nas favelas, é a história de alguém que viu o pai ir para a prisão, é a história de uma mulher

negra que chegou à universidade e que dela foi para além. É uma saga sobre a terra e é

também um novelo.

Narrou Elzi:

Ao longe o ressoar dos tambores e a cantoria dos negros misturam-se aos gritos,

ao choro e ao lamento. O barulho dos grilhões e das chibatadas é ensurdecedor.

Musicalidade aos ouvidos dos senhores de engenho, dos colonizadores. Realidade

distante, presa num livro didático de História do Brasil. Realidade que o tempo,

senhor do universo, não conseguiu apagar ou tampouco reduzir. A senzala dos dias

atuais se assemelha aos espaços subordinados à autoridade da classe dominante,

entre eles, a escola. Espaço de conflitos e preconceitos, de silêncio e dor. O sistema

autoritário de educação que ainda vivemos nos faz esquecer quem realmente somos.

Desde pequenos aprendemos a calar diante da miséria, da fome, da falta de recursos,

do preconceito, da injustiça, da ameaça, do castigo. Aprendemos a calar para não

morrer, para não sermos castigados. Por isso temos um alto índice de evasão escolar

e diante dessa estatística nos calamos. Por isso temos tanta injustiça nesse Brasil

Brasileiro, tantas desigualdades sociais e diante de tudo isso nos calamos. Somos um

povo pacato, não temos guerras além das civis-urbanas. E nos calamos, submissos

E o novo senhor usa maquiagem de cordeiro para não passar de rei déspota a rei

deposto. E desunidos nos calamos. Sentimos medo do ridículo, medo de falar

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bobagem, medo de ser espancado, medo até de existir. Cidadania. Liberdade.

Identidade. É um caminho de pedras, de muitas vozes, raças, credos e revelações e

de enxergar no outro um pouco ou muito da sua própria história, de traduzir-se e, de

certa forma, ser traduzido. É uma busca longa, sofrida, desigual entre o eu pronome

e o soberano verbo calar. (grifo meu)

  A polifonia gerada por essas vozes da narrativa faz da nossa voz a voz de um outro,

ou ainda a voz de um grupo, de uma coletividade - “vozes” que tecem inúmeras histórias

subjetivas dentro de uma história coletiva – narrativas pessoais entre mitos e memória, como

explica Jacques Le Goff.1

Cada escola como tecido social vivo contém em si um universo de histórias e um

texto histórico coletivo. E essa memória dialoga com a temática da identidade nacional,

composta por vozes da cultura oral. Na escola, o exercício da contação de estórias é um

importante passo para a descoberta da literatura “do gosto”. Pois quando narramos abrimos

um tempo-espaço para a observação do que está sendo contado, as palavras ganham texturas

outras e a imaginação de quem ouve cria as entrelinhas. Quem escuta tem a possibilidade de

refletir sobre o que está sendo narrado, concordando, discordando, perguntando.

Sempre nos sentimos mais aconchegados quando há uma voz por perto, ao alcance

dos nossos ouvidos. Quantas vezes chegamos em casa sozinhos e ligamos a TV, não para

assisti-la, mas para escutar a voz de quem quer que seja, ouvir um som humano. A TV acaba

tendo uma função meio uterina de nos livrar da solidão, mesmo que provisoriamente. Pois

através da voz se afetamos também somos afetados. A voz anuncia a nossa alegria, a nossa

esperança, o nosso desejo diante do mundo. E é ela ou sua ausência que pode denunciar o

nosso passageiro ou permanente sofrimento. A voz é nosso primeiro instrumento de diálogo,

nossa primeira inscrição de narrativa.

Quando se conta uma estória, as modulações feitas pela voz do contador, da

contadora, podem criar ambiências de afetividade e imaginação. Para as crianças, este

“laboratório acústico” poderá unir a realidade do mundo à fantasia ou o contrário, unir o

mundo da fantasia à realidade do mundo. Ouvir atentamente a voz do outro se torna tão

necessário quanto contar. E este “mover-se em direção ao outro” exige de quem narra com a

voz uma constante abertura ao diálogo. Paul Zumthor (1985), pesquisador da poesia oral

1 LE GOFF, Jacques. Memória – História. Lisboa, Imprensa Nacional, 1984.

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medieval, nos fala sobre o quanto o uso da voz pode nos fortalecer. Para ele:

A voz não traz a linguagem: a linguagem nela transita, sem deixar traço (...) Na voz a palavra se anuncia como lembrança, - em – ato de um contato inicial, na aurora de toda vida e cuja marca permanece em nós um tanto apagado, como a figura de uma promessa (...) Cada sílaba é sopro, ritmado pelo batimento do sangue; e a energia deste sopro, com otimismo da matéria, converte a questão em anuncio, a memória em profecia, dissimula as marcas do que se perdeu e que afeta irremediavelmente a linguagem e o tempo. Por isso a voz é palavra sem palavras, depurada, fio vocal que fragilmente nos liga ao único. (13)

Narrar uma história ou a sua própria história é um exercício de memória e de

linguagem. Benjamin (1994) denuncia que a experiência da arte de narrar está em vias de

extinção e poucos são aqueles que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que

alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma

faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (197-

198)

Para Benjamin a experiência está em baixa, bastando olhar um jornal para perceber

sua crescente desvalorização e decadência, num processo em que o mundo exterior e o

mundo ético sofreram transformações antes inimagináveis. Relatar as experiências fazia

parte de uma prática social espontânea, em que os vários sujeitos de um grupo ou de uma

comunidade exerciam o seu direito à fala e ao pensamento numa troca cotidiana e

contextualizada.

É possível que o nosso relato da experiência tenha perdido o caráter do convívio

social, do exercício mútuo do falar e ouvir, de aprender e ensinar, tamanho o individualismo

e a dificuldade em lidar com o aquilo que vai se tornando cada vez mais o alheio. E para

Benjamim, isto é percebido a cada manhã, quando recebemos notícias de todo o mundo . E,

no entanto, ainda continuamos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já

nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que

acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da

arte narrativa está em evitar explicações. (1994, p. 203)

Torna-se evidente, como bem coloca Benjamin que, a arte narrativa venha perdendo

ao longo do tempo a ampla espontaneidade do seu exercício. Simbolicamente, a ampulheta

e o tempo espesso da areia foi trocado pelo tempo escasso dos ponteiros. Não há tempo a

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perder, o tempo foi capitalizado: o tempo vale dinheiro, pagamos e recebemos por ele.

Pagamos pelo “ tempo do estacionamento”, pelo “tempo do lazer”, pelo “tempo do almoço e

do jantar”, “pelo tempo do consumo”. E quando temos “trabalho” recebemos pelo tempo

gasto e agradecemos o que pouco resta: hoje não, estou ocupado. Mas ainda assim – na

sobra do tempo - resiste dentro de nós um vontade inexorável de “contar” e “ouvir”

histórias, como no tempo, parece que cada vez mais “antigo”, dos nossos avós. De onde vem

essa vontade? Como conjugá-la com as nossas faltas?

A narrativa está na aprendizagem com e do desejo. Tomo aqui de empréstimo o

conceito benjaminiano de narrativa. Para Benjamin (1994) a narrativa é uma forma

artesanal de comunicação; é como tecer, como fiar. Em alguns momentos Benjamin chega a

usar o conceito de narrativa como sinônimo mesmo de “contar histórias”. Por isso, em seu

texto Narrador, ora utiliza um termo, ora outro. O que farei também aqui. O fato de

Benjamin não desassociar o contar do narrar nos leva a pensar numa figura mítica de

narrador: o contador de histórias, que fará do ato de contar uma prática de cunho milenar,

transmissora de um conhecimento ancestral, que baseado na reminiscência, levará adiante o

fiar de um tempo de múltiplas vozes e experiências. Para Benjamin (Ibidem, 221):

(...) o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer)..

Ao nos depararmos com a velocidade do mundo moderno, a narrativa oral das

nossas experiências, resumida ao poder das “telinhas”, chega a perder parte do caráter

espontâneo de algumas de suas características fundamentais: o senso lúdico, o prazer de ver

e ouvir, a contação, o jogo entre concentração e desconcentração, a expressividade do corpo

que fala e dança.

Com o contínuo avanço da tecnologia e das maravilhas eletrônicas parecíamos ter

encontrado um mundo perfeito. E há que se dizer que o mundo avançou deveras. Só que este

mundo “quase” perfeito avançou também na miséria humana, no desgaste das relações

sociais, nos bolsões da pobreza, no descaso dos poderosos, nas filas dos condenados, no

esvaziamento dos sentidos. Diante desse vazio e a da necessidade de re-significar, a

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narrativa oral e a memória assumem novamente, entre nós, grande importância contextual,

no sentido e na emergência de preencher esses vazios. Nos dias de hoje, em que tudo nos

parece “consumível” e “descartável”, incluindo as relações entre as pessoas, o papel

significativo do narrar e da memória discursiva, acaba tomando diferenciadas finalidades,

criando novas interações comunicativas, aproximando-se de outras linguagens.

E aos poucos, analisando também esse vazio existencial individual e coletivo, com

boa dose de esperteza e criatividade, os produtores de TV e de jogos eletrônicos, como os

RPGs (Role Playing Games124), se debruçam sobre a necessidade de rever o lugar da

narrativa no mundo contemporâneo, procurando então unir o fascínio das imagens à função

cognitiva que há na invenção de estórias.

As escolas “lentamente” também vêm vivendo este processo de apropriação ou re-

apropriação do narrativo e do narrativo-lúdico, principalmente na educação infantil e nas

séries iniciais do ensino fundamental. 125 E nesse movimento de re-valorização da narrativa,

vai se percebendo que a prática e os processos de significação do discurso oral são

potencialmente criativos e mobilizadores: quem conta ou ouve sente-se mais fortalecido

para narrar, escrever e ler sua própria história ou inventar outras. Porque inventar é preciso.

Drummond dizia no poema Infância: Minha mãe ficava cosendo | Olhando para mim (...)

Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda .| Eu não sabia que minha história

era mais bonita que a de Robinson Crusoé. (1999,10)

As histórias reais e ficcionais ou ainda o seu “meio termo”, até mesmo porque

ficcionamos o real, não podem estar somente remetidas, vinculadas aos livros didáticos ou

aos ícones literários e históricos. As nossas histórias singulares podem também ser contadas

e escritas por nós mesmos, através da memória das nossas reminiscências - com as suas

fraturas e ressentimentos, suas alegrias, com as nossas experiências de vida e as nossas

expectativas de mundo.

Nas memórias da arte docente da professora Elzi Paixão podemos encontrar uma

narrativa bastante peculiar que nos remete ao que Benjamin (1994), citando Paul Valéry, diz

ser a melhor descrição para a imagem espiritual do mundo de artífices, do qual provém o

124 “Jogo de interpretações de personagens”. Um jogo que cria narrativas em que os jogadores se tornam os personagens da estória.125 Mas isto ainda não é uma constante no que diz respeito à sala de aula. Não podemos generalizar, mesmo porque o universo das escolas públicas ou privadas é bastante diversificado. No mesmo município, ou até no mesmo bairro, é possível encontrar escolas com realidades totalmente diferentes.

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narrador. Ao falar das coisas perfeitas que se encontram na natureza: pérolas imaculadas,

vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, Paul Valéry as descreve como

“o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes.” (p.206) Perguntada sobre

as lembranças significativas de sua trajetória docente, Elzi nos contou uma história numa

“cadeia de causas semelhantes”:

Ednailton era um menino arisco. Tinha uma história de vida muito

difícil. Morava com a mãe, o padrasto e o irmão, fruto da nova união. Um

dia, Ednailton foi dormir com sua mãe e quando acordou percebeu que ela

estava morta. Por esse motivo estava sempre revoltado: com a vida, com

Deus, com tudo... Estudava e trabalhava à noite vigiando carros. E apanhava!

Do padrasto, da vida... Mas Ednaílton também dizia amar: seu irmão, a

professora (Eu) e seu pai que morava na Bahia e que ele nunca mais tinha

visto. Era uma turma de segunda série, com defasagem de série e idade e em

fase inicial no processo leitura e escrita. Minha estratégia? A literatura.

Ednailton dormia quase o tempo todo de aula, mas era na hora das estórias

que ele ficava atento e interagia, se vestia dos personagens, expunha suas

idéias, seus anseios. E, aos poucos, ele também foi aprendendo a amar a

literatura. Tenho três imagens muito fortes dessa época. A primeira foi a de

um dia bonito de sol que terminou numa ventania, com  relâmpagos, trovões,

ruas inundadas. Ednailton me levou até o ponto do ônibus com seu guarda-

chuva que mais nos molhava do que protegia. Em seguida, retirou seu casaco

todo poído e disse que não poderia me deixar sentir frio como a "Margarida

Friorenta" lembrando da estória contada em aula. A segunda imagem ou cena

vem de um dia em que a turma tinha produzido um texto coletivo e daquele

texto tínhamos desenvolvido vários conceitos. Depois na hora da contação de

estórias, um dos alunos ao ser xingado por Ednailton, revidou dizendo que

"era a mãe!”  No meio da confusão uma cadeira foi jogada quebrando a janela

do CIEP e eu precisei retirar Ednailton da sala, porque muito agressivo, ele

gritava, chorava, dizia que não podiam xingar a mãe dele. Peguei a Ednailton

pelo braço e o levei para a sala da direção. Num ataque de fúria, Ednailton

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começou a jogar tudo no chão gritando, chorando e eu o pegando com força o

sacudia tentava fazê-lo voltar a si e eu a mim. Comecei a falar que estava

cansada de seus rompantes, de suas atitudes agressivas, de sua falta de

respeito... O que é que faltava se eu lhe dava carinho, atenção¿... Neste

momento, ele me abraçou e me perguntou aos prantos: "Posso lhe chamar de

mãe?"... A terceira imagem: Ednailton queria voltar pra Bahia para encontrar

o pai e trabalhava muito pra isso. Vigiava carros e aos sábados e domingos

ajudava as "madamas" na feira. Foi juntando o seu dinheirinho aqui e ali. A

última história que lembro ter contado pra ele foi "O Macaquinho" - já não

lembro o autor - era a história de um macaquinho que não queria ficar na

cama sozinho e sempre inventava um motivo para ir ao encontro do pai até

que um dia o pai é quem foi dormir com ele e todo o medo se dissipou.

Naquele dia Ednailton me disse que  ia reencontrar o pai e que a história dele

também teria um final feliz. Fiquei preocupada, afinal ele só tinha 11 anos.

Tempos depois recebi uma carta do pai de Ednailton, ele me agradecia por ter

ajudado o filho a voltar pra casa.

A memória da infância é, sem dúvida, um dos acessos a busca incessante do homem

pela significação da sua existência no mundo. É o Santo Graal de cada um. O grande

momento do mito medieval é o despertar do coração para a compaixão, a transformação da

paixão em compaixão. Esse é todo o problema das histórias do Graal, compaixão pelo rei

ferido. (Campbell, 1991, p.129) Nesse eterno retorno mítico nos lançamos ao passado feito

Percival, tentando muitas vezes recompor nossa linhagem. O discurso memorialístico da

“infância”, o “contar histórias”, “o refletir-se na história do outro” reascende o fogo

primitivo que sobrevive no sujeito em meio à massificação dos significados e ao

esvaziamento dos sentidos.

Através do envolvimento entre a leitura literária e o discurso oral que narra as

experiências do cotidiano, chegamos ao tempo da busca, busca por uma consciência crítica

diante do mundo em que vivemos e da “literatura e da história escritas dos vencedores”.

Nesse cruzamento nossas memórias e experiências se confundem para atravessar nossas

histórias singulares. Nesse propósito somos tomados de questionamentos que nos levam a

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conviver com o acontecimento. E é o acontecimento – esperado ou inesperado - que nos

coloca em contato direto com a lógica do outro, confrontando-a com a nossa lógica, numa

relação potencializadora e dialógica de dizer o que não foi dito ou ainda de dizê-lo,

recuperando outras vozes, porém, de maneira quase sempre questionadora, crítica. Esse

movimento é que nos impulsiona numa busca significativa e constante, que é a de sermos

leitores incondicionais de nós mesmos. E o que poderia sugerir apenas uma posição

solitária, torna-se ato coletivo, conflitante sim, mas repleto de descobertas. Por isso

gostamos tanto de nos contar. Porque contar, narrar nossas memórias nos fortalece. O uso

que fazemos da linguagem nos instrumentaliza para reagir, para resistir à acomodação, à

inércia. O “não-uso” da linguagem é o que nos fragiliza. Por isso precisamos de todos.

Precisamos ser ouvidos e precisamos falar. Precisamos contar nossas histórias e as histórias

inventadas ou que inventamos. E isso faz pelo exercício do discurso oral. Como diz o

escritor Mário Vargas Llosa, no livro A senhorita de Tácna (1981):

Como para as sociedades, para o indivíduo também (o contar estórias) é uma atividade primordial, uma necessidade da existência, uma maneira de suportar a vida. Por que o homem necessita de contar e contar-se estórias? Talvez, porque (...) dessa forma luta contra a morte e os fracassos, adquire uma certa uma certa ilusão de permanência e desagravo. É uma maneira de recuperar, dentro de um sistema que a memória estrutura com a ajuda da fantasia, esse passado que quando era experiência vivida tinha a aparência do caos.

Em se tratando da formação de um professor de língua e literatura como não cuidar

da voz, como não zelar por ela¿ Como se pode exigir de uma criança que leia “bem” um

texto sem que lhe dar acessos aos instrumentos que possibilitem a “boa” leitura¿ Nenhuma

leitura poderá ser boa se vier pela voz dos imperativos. É claro que aprendemos com os

imperativos, aprendemos a obedecer, a temer a tirania, a abaixar a cabeça e o olhar.

Aprendemos a matar a língua e qualquer possibilidade de diálogo.

E sabemos que ainda hoje em muitos cursos de formação em letras não há um

entrelaçamento entre arte, cultura e língua assim como não encontramos a música, a dança,

o canto como possibilidades inter-relacionadas com um universo de referências provindos

da cultura oral como expressão e em diálogo com o erudito. E podemos questionar: como

trazer para a formação do futuro professor de língua e literatura o exercício de contemplar,

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de viver a arte nas suas várias expressões, de vivenciar uma compreensão estética que não

dogmatiza, de intercambiar experiências que envolvam as diversidades étnicas e culturais?

Disse Pascal que não podemos conhecer as partes sem conhecer o todo e nem o todo sem o

conhecimento das partes. Se a literatura não fetichiza, não é linear e sim o contrário disso, se

a literatura é viva, dinâmica, ampla na abordagem de temas que a circundam, como fechá-la

em temas estáticos tratados sem a transversalidade, sem que se vislumbre a sua pluralidade

de temas?

E se buscarmos na tessitura do conhecimento, quem sabe não possamos encontrar

algumas pistas através dos entrelaçamentos, da rede entre os conhecimentos, dos saberes que

estão interligados para formar um todo de inúmeras possibilidades e a partir das novas inter-

relações e intra-relações geradas das associações possíveis criarmos novos campos de estudo

que também se conectem de forma híbrida e ao mesmo tempo criativa?

P –  Qual “palavra-símbolo” você escolheria para a sua trajetória profissional?

Elzi:

Contação de História. "E agora minha gente uma história eu vou contar..." Assim

como nas histórias imaginárias, na história real que é a sala de aula, a cada dia

começo contando a minha história entrelaçada com a dos meus alunos, de outros

professores, da direção, da comunidade. São histórias escritas por várias mãos, com

um inicio, um meio e um fim. Só que quando pensamos que está no fim..."Entrou

numa perna de pato, saiu numa de pinto. Quem quiser que conte cinco..." Há sempre

o que contar, há sempre um ponto a ser alinhavado e depois costurado. E se não ficar

bom, podemos retirá-lo e colocá-lo em outro lugar. Eis a magia da profissão!"Não há

começo, não há fim. Só travessia". 

E essa foi a história de Elzi Paixão que começa como todas as histórias que já

aconteceram. Era uma vez... Era uma vez quatro meninas, quatro amigas, quatro irmãs:....

Quatro fadinhas, quatro bruxinhas. Elas estudavam numa escola chamada vida, porque lá se

aprendia de tudo um pouco. Mas essa escola era diferente de todas as escolas que nós já

ouvimos falar. Porque nessa escola a matéria principal era uma tal chamada Alegria.

Tinham também matérias vizinhas da Alegria, matérias não menos importantes. Tinha a

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matéria de “carregar lata d’água na cabeça” e “dar nó em pingo d’água”, matéria de “morder

menos e assoprar mais”, matéria de “gargalhar na ponta dos pés”, matéria de “fazer do nada

um espetáculo”. Mas todas essas matérias não eram dadas, elas eram trocadas, como

coleção de cacarecos e emoções... E essas meninas, as quatro da nossa história, sabiam todas

essas matérias de cor e salteando ou saltitando. Elas estudavam e ensinavam na escola de

fazer traquinagens e peraltices. Uma escola para gente com o coração maior que a cabeça.

Às vezes era permitido que gente com cabeça grande também entrasse, mas para isso era

preciso passar por um teste, um teste que constava de única questão importantíssima e que

devia ser respondida de chofre: você quer ser alegre ou não? Se o cabeça grande

respondesse que queria ser feliz, ele passava imediatamente a ter um coração maior que a

cabeça. As nossas irmãs e amigas tinham corações enormes que saiam do corpo e criavam

vida própria, então elas tinham que andar de mãos dadas com o próprio coração para que

todos pudessem ver e tocar. Ah, elas tinham também reis na barriga, pés de vento e orelhas

que viravam borboletas em horas inesperadas. Nossa, acho que elas eram de Marte, mas

como marte era um deus da guerra na mitologia, melhor que elas fossem de Saturno, com

todas aqueles bambolês. Mas, o que eu queria contar mesmo – desde o princípio – é que

essas quatro meninas um dia deram de inventar uma aula chamada “narrativa”. Elas fizeram

dobraduras com as palavras e criaram estórias incríveis, colocaram pó de pirlimpimpim e

esperança dentro das palavras e cada palavra que elas diziam ou sopravam virava uma caixa

surpresa e de dentro de cada caixa de surpresa saía um fio sem fim, um fio de histórias sem

fim. Um dia, uma delas resolveu recontar todas as histórias que elas haviam aprendido e

desde então ela ficou encarregada de encontrar crianças perdidas dentro de corpos de adultos

e essa fadinha ou bruxinha com sua varinha de condão e melado liberta os escravos de Jó e

desata os nós do desencanto, da preguiça, da incerteza, da vontade de ir embora antes de

poder rir de tudo isso, das promessas que se alongam, a-lon-gam... E até hoje ela guarda um

mundo de estórias no seu baú de memórias favoritas... E quem quiser que conte outra...

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Fogo

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Tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo. O fogo é ultrativo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu. Sobe das profundezas da substância e se oferece como amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como ódio e a vingança.

(Bachelard, A Psicanálise do Fogo)

(Maurício de Souza, Chico Bento)

Memorial de Magalhães

Prova de Amizade- Branquelo bobo!

- Olha aí o riquinho que mora naquele apartamento de luxo! Era assim que os colegas de J. na escola lhe chamavam e se referiam ao modesto conjunto habitacional onde vivia e que dava para os fundos de uma favela onde morava grande parte dos seus colegas de classe. Havia constantemente uma relação de ódio e hostilidade entre os meninos do conjunto habitacional com os da favela e a escola pública da comunidade era o

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principal cenário deste conflito. Os primeiros acusavam os meninos da favela de folgados e invejosos e os da favela julgavam seus rivais metidos e esnobes. Ambos os grupos eram pobres, mas se consideravam diferentes entre si.

J., devido às condições financeiras da mãe que trabalhava dia e noite para poder lhe dar uma vida e educação melhor do que ela tivera, era obrigado a estudar ali mesmo na única escola pública existente na comunidade e tinha que agradecer a Deus todos os dias por ter conseguido a tão disputada vaga em sua série que custou a mãe pernoitar numa imensa fila até conseguir uma matrícula.

Com apenas onze anos de idade tinha plena consciência disso e era muito grato à mãe, procurando se empenhar na escola, fazendo de tudo para não decepcioná-la. Por ser um menino muito pacato e educado e principalmente por morar no conjunto habitacional, um pouco menos pobre que a favela, J., quase sempre, era alvo da repulsa e da agressividade de seus colegas na escola. Um certo dia na hora do recreio, J. estava sozinho sentado no banco do pátio, como sempre lendo seu gibi, quando dois colegas de turma se aproximaram dele com palavrões e xingamentos. Ao tentar argumentar com os colegas sobre o porquê de tanta agressividade, teve como resposta chutes e pontapés.

_ Olha pra ele! Riquinho! Filhinho da mamãe! Teria levado uma surra feia se não fosse pela intervenção

de C., um colega de sala que morava na favela e que foi ao seu socorro enfrentando sozinho seus algozes. Logo após colocar os agressores pra correr, C. foi ao socorro de J. dizendo que se qualquer um tentasse lhe bater poderia falar com ele, que ele o protegeria. J. nem sabia como agradecer ao seu novo amigo e a partir desse dia tornaram-se inseparáveis, eram vistos sempre juntos. Embora os demais colegas da favela alimentassem uma raiva incontida por J. e achassem C. um traidor se aliando a um riquinho do asfalto, não se atreviam a mexer com eles, pois sabiam que C. era o que melhor brigava em todo o colégio. Tinham a mesma idade, mas vivências bastante diferentes. Mas devido à proteção do novo amigo, J. passou a ser respeitado em toda a escola e, apesar de ruim de bola, tinha sempre vaga na pelada dos colegas, encaixado, é claro, por C.

J. tinha uma enorme admiração pelo amigo devido à sua esperteza e coragem, nunca lhe vira chorando nem com medo

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de nada, e mesmo com seu corpo franzino era realmente muito forte e valente. Por outro lado C. também admirava a inteligência e os hábitos educados de J. No fundo se achavam um complemento do outro.

Tempos depois, C sumiu da escola, um dia, dois, mais de uma semana, fato que muito preocupou J., que não tinha nenhuma notícia, mas ninguém além dele mesmo demonstrava qualquer interesse em saber do paradeiro de C. Alguns colegas pareciam até satisfeitos com a aquele sumiço e J., agora sozinho, se enchia de coragem, criando forças para enfrentar os primeiros que se atreveram a desdenhar dele aproveitando a ausência de C. Acreditava piamente que, por uma espécie de mágica, havia recebido a coragem e a esperteza do amigo e que por isso não precisava mais sentir medo nenhum.

Quase duas semanas sem C. aparecer. No final de mais uma aula, a professora entregou as provas da turma e J. se comprometeu a entregar a do amigo. Os demais colegas se entreolharam surpresos, embora nada falassem. Saiu da escola, olhou a prova de C. que tinha uma enorme nota vermelha e pensou na coragem e no destemor que havia herdado do amigo, chegando a uma conclusão: deveria também dar a ele uma “prova” de amizade.

Estava decidido a entrar na favela para encontrar o amigo, não sabia exatamente o local, mas seguiria perguntando até descobrir. Chegando na entrada da favela sentiu um enorme calafrio e pensou em desistir, sua mãe havia lhe avisado para nunca entrar naquele lugar e ele nunca a desobedecia, mas sua amizade por C. falou mais alto e, muito decidido, seguiu em frente. Achou tudo muito estranho com becos estreitos e casas mal construídas, até parecia um labirinto. Lembrou da história do minotauro que a professora havia contado.

Perguntava a um e a outro morador onde era a casa de C. e as pessoas indicavam o caminho sempre olhando pra ele como uma certa curiosidade. Durante o trajeto chegou a se assustar com alguns homens e até meninos, um pouco mais velhos que ele, transitando pelas vielas expondo armas de fogo em punho. Finalmente um homem que bebia numa birosca mostrou onde era a casa de C. “que ficava logo ali perto”. Dirigiu-se até a frente do humilde barraco e chamou pelo nome do amigo. Chamou uma, duas e só na terceira vez uma mulher com uma criança no colo chegou até a porta perguntando o que ele queria

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com o filho dela. J., meio assustado, se apresentou dizendo que era um colega de turma de C. e que precisava muito falar com ele, mentindo para ela. ao dizer que todos na escola estavam muito preocupados com o sumiço do filho e que queriam saber o que realmente tinha acontecido. Ela mandou que J. aguardasse um pouco, desaparecendo casa adentro. Quase dez minutos de espera e C. apareceu na porta de cabeça baixa, evitando encarar o amigo. J. entregou a prova de matemática e perguntou o motivo dele ter desaparecido da escola, mas C., ainda de cabeça baixa e quase sem voz, mandou que ele fosse embora.

J. percebeu que, na verdade, o amigo estava prendendo o choro e que seu olho direito estava roxo e inchado. Entendeu tudo o que estava acontecendo quando viu aquele homem surgir do interior da casa, cambaleando, parecia estar bêbado e xingava C. de todos os nomes feios, ordenando que ele entrasse logo, pois senão lhe daria mais uma surra. Arrasado, derrotado, C. entrou sem ao menos agradecer ou se despedir.

Apesar da pouca idade, J. já tinha maturidade suficiente para entender a atitude de C.. Afinal de contas, ele era o mais valente de toda a escola e não queria de jeito nenhum que ninguém o visse chorando. Soube mais tarde que C. tinha fugido de casa e que não retornaria mais à escola.

Embora sentisse saudade do amigo, J. tinha plena certeza que havia dado a ele uma “prova” de amizade e esperando que C. estivesse bem, torcia para que algum dia eles pudessem se encontrar de novo.

Jorge Eduardo Magalhães

CAPÍTULO 7

A crônica memorialista e a cidade:

A possibilidade de diálogo entre Literatura e História126

Jorge Magalhães: O cronista

126 No decorrer deste texto não há a utilização de termos distintos para diferenciar história oficial da história pessoal e singular, acreditando que essas distinções fiquem claras no próprio contexto.

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Jorge Magalhães127

As memórias de Jorge Magalhães:

Eu tive dificuldade de aprender muitas coisas - como ler, por exemplo.

Quando eu era ainda bem pequeno minha mãe comprava livros para mim, não

lembro quais eram os nomes, mas sei que eram da série “Vaga-lume” . A partir da

quarta série comecei a ler vários livros e muitas histórias em quadrinhos, os da

“Turma da Mônica” principalmente. Eu não sofri com isso na minha época na

escola, só comecei a sofrer mesmo quando a minha mãe me proibiu de ler os gibis

porque eu só “queria ler” e não queria mais estudar. Os livros que mais me

marcaram foram “ Tonico e a carniça” , esse na escola e depois lendo por conta

própria: o “Spharion”, “ O caso da borboleta atíria“ ,”Aventuras de xisto”, “A ilha

perdida”, “Tonico” ,”Deus me livre!”, “Menino de asas” e” O mistério do cinco

estrelas”.

Não me lembro de nenhum professor do ensino fundamental que tenha

marcado essa fase da minha vida, só depois de anos encontrei um “exemplo” no qual

127 O terceiro da direita para a esquerda dos que estão agachados. Escola Municipal Joaquim Nabuco, 1982.

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eu pude me inspirar, isso já no ensino médio no Colégio Estadual São Alfredo. Era

uma professora de português e literatura chamada Corina Gullar, nessa época ela

dizia ter 35 anos de magistério e dizia também ter sido aluna de Manuel Bandeira.

Um dia ela nos fez fazer um trabalho falando sobre a obra de Dom Casmurro. Nesse

trabalho faríamos o julgamento de Capitu para desvendar se ela realmente tinha

traído ou não, esse já conhecido dilema. No nosso final Capitu acabou sendo

absolvida por falta de provas que comprovassem a sua traição. Então foi por essa

experiência e outras mais, como a minha então facilidade com a leitura e a escrita,

que fizeram com que eu me tornasse professor.

História e literatura: como desuni-las sem que para isso não seja preciso sacrificar

uma delas? 128 João do Rio, grande cronista carioca do início do século XX, costumava

trazer para as suas crônicas, personagens reais. Era de seu costume como bom flâneur,

andar pelas ruas do Centro da cidade do Rio de Janeiro, observando os transeuntes, os

trabalhadores de rua: os ambulantes, os homens-sanduíches, as prostitutas, os malandros da

Lapa, os artistas da noite:

Eu amo a rua. Esse sentimento e natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com ao dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua.129 (grifo meu)

Eis a polifonia da rua e de seus espaços-tempos públicos que invadem o texto

literário com uma avalanche de vozes dos que atravessam às pressas, ou dos transeuntes sem

pressa, ou dos trabalhadores com suas marmitas, ou da gente que mora nas ruas, ou dos

malandros e vira-latas, ou dos trabalhadores informais que invadem as ruas com suas

bugigangas importadas da China, ora, todos eles, na ressonância da rua, pertenceram e

128 Fala de Jorge Magalhães. Jorge Eduardo Magalhães graduou-se em Letras pela Faculdade de Humanidades Pedro II (1997), tendo especialização em Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa, ambas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente cursa o mestrado em Literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e leciona na Rede Estadual de Ensino e na Prefeitura Municipal de São Gonçalo.Publicações: O amor e o escarro (Contos-2001), Coração Venal (Romance-2002), Moleque João e o Rio Sarapuí (Infantil-2003), O menino da Portela (Infantil-2003), além de ter publicado contos na Revista do Clube dos Escritores de Piracicaba e do jornal "O debate".

129 RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. de Raul Antelo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.45.

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pertencem às mais diversas histórias de vida da cidade - ou ainda – às mais diversas vidas

inventadas como “estórias” da cidade. Disse Roberto da Matta em seu livro: “A Casa e a

Rua....”:

Deus é brasileiro, conforme sabemos todos não porque com Ele (e com o Brasil) tudo poderá dar certo; mas sobretudo porque Ele é feito - como nós - de três pessoas ou espaços distintos e absolutamente complementares. O Pai é a rua, o Estado e o universo implacável das leis impessoais. O Filho é a casa com suas relações calorosas, sua humanidade e seu sentido da pessoa feita de carne e osso. E, finalmente, o Espírito Santo é a relação entre os dois, o "outro lado" do mistério. A virtude que fica no meio - em cima de um muro! (1997, p.20)

Afinal, quantas pessoas, quantas personalidades da história dita oficial já se tornaram

personagens, mitos e quantos personagens das ruas literárias já se tornaram quase pessoas do

nosso convívio, da nossa vida íntima:

Jorge Magalhães:

Nasci no subúrbio do Rio de Janeiro no dia 13 de Fevereiro de 1972 no

bairro de Campinho. Em 1974 fui morar em Inhaúma e de lá fui para o Lins. Nasci

no dia do centenário da semana de arte moderna e meus pais comentaram na época

que talvez o filho deles fosse gostar de literatura. Como são as coisas...

O Rio de Janeiro sempre foi minha casa e minha rua. Nessa cidade eu nasci

e cresci, vivi todas as experiências da minha vida. Fui policial, escritor, sambista,

professor, fui do Rio, fui como sua gente, como a imagem da procissão de São Jorge.

Salve Jorge! A imagem que eu escolheria para definir essa passagem de vida, porque

eu vim vestido com as armas e as roupas de Jorge.

Por isso, para mim o Rio de Janeiro é uma cidade única. Em poucos

quilômetros temos praia, museus, centros culturais, bibliotecas, bares e um povo

super descontraído. Mas, é claro, que basta olhar para o lado para encontrarmos

crianças nas ruas e toda uma gente abandonada, vemos nossas águas e a nossa Baía

de Guanabara poluídas. É uma pena que os interesses políticos e a hipocrisia

queiram destruir nossa cidade, mas ainda assim o povo carioca resiste. É guerreiro.

Das aulas de literatura e das aulas do professor Jorge Magalhães surgem nomes

como Capitu, Bentinho, Escobar, Dom Casmurro – personagens da obra de Machado de

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Assis. E os alunos de Jorge e nós nos pegaremos, nessa sugestão de labirinto, voltando para

dentro, tentando resolver um velho dilema: Capitu traiu ou não traiu? E os olhos de ressaca

da mulher-cigana invadirão novamente as nossas vidas com seus olhos e fantasmas

literários. Não será este o encontro desafiador entre a literatura e o espírito do leitor?

Jorge Magalhães:

O que mais me fascinava na obra de Machado de Assis era a forma corajosa

com a qual ele fazia as suas críticas, muitas vezes, claro, sendo mal interpretado. No

conto "Entre santos", um padre velho relata um devaneio que teve quando ainda era

um jovem pároco, fala da conversa que havia entre as imagens de santos e sobre

como as pessoas praticavam a fé. Uma crítica contundente sobre o exercício da

religião. Na crônica de 19 de maio de 1888, da série "Bons dias", logo após a

abolição da escravatura, Machado, através da figura de um narrador-

personagem, narra um banquete que fez em casa para dar alforria a Pancrácio, seu

“negrinho”, uma semana antes da princesa Isabel assinar a Lei Áurea. Pancrácio

continuava trabalhando como sempre fizera antes e de vez quando seu novo padrão

acabava esquecendo que ele não era mais escravo e “sentava a mão” nele. Outra

crítica contundente, dessa vez à escravidão e a forma como os ex-escravos eram

tratados, por não terem para onde ir, por continuarem na casa dos seus ex-donos.

Muitos até hoje dizem que Machado de Assis era um escravocrata, penso que não

entenderam a crítica e a ironia desse grande autor.

Quantas ruas do Rio Antigo podemos conhecer caminhando com Machado de Assis

e seus livros? A Cinelândia, a Rua do Ouvidor e da Uruguaiana, a Confeitaria Cavé, o

Morro do Livramento, O Lago do Rossio, hoje Praça Tiradentes, um dos lugares preferidos

do autor. Machado deixou pegadas, marcas de autoria pelo olhar de um também cronista e

flâuner que, pelo registro dos lugares e dos tipos humanos, trazia da memória da cidade, o

imaginário que ao se fundir com o real, escava o passado no presente, mergulhando nas

reminiscências do espaço e nos dramas psicológicos, nos terrores e absurdos humanos. E

Machado foi um cronista irônico que fazia críticas ácidas sem nenhum constrangimento. No

texto: “Nascimento da Crônica”, narra Machado de Assis130:

130 A crônica foi publicada no livro Crônicas Escolhidas, Editora Ática – São Paulo, 1994, pág. 13, e extraído do livro As Cem Melhores Crônicas Brasileiras, Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2007, pág. 27, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

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Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

Como poderíamos, na atualidade, voltar ao Rio Antigo se não fosse através da

narrativa memorialista de autores que fizeram da arte literária um patrimônio e um

instrumento de preservação da história cultural da(s) cidade(s)? O Rio Antigo foi, durante

décadas, demolido. Hoje, mesmo com as restaurações dos prédios antigos de épocas

diversas, como diria Drummond, boa parte desse tempo não passa de um quadro na parede

da memória da cidade. E os velhos carnavais..., lembra o professor Jorge Magalhães:

Quantas saudades...

Baianas da Escola de Samba “Caprichosos de Pilares”.131

Oh saudades!Meu carnaval é vocêCaprichosamente

131Carnaval 2007, Imagem disponível em: http://www.fototeca.rio.rj.gov.br.

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Vamos reviver (...).

Quem não se lembra desse inesquecível samba da Caprichosos de Pilares

no carnaval de 1985? Aquele era um ano de transição no país, estávamos finalmente

saindo da ditadura. Aliás, na televisão passava uma propaganda com dicas para o

carnaval que tinha o jingle: “Caia na folia! Caia na folia! No carnaval da

democracia!”

O brasileiro vivia uma época de muitas esperanças e também de saudades de

tempos passados que provavelmente não voltariam mais. Saudades era o enredo da

Caprichosos naquele ano e, conforme o samba dizia, saudades do amolador de faca,

do leite sem água, da gasolina barata. Lembrava que diretamente o povo elegia o

presidente, pois estávamos saindo do governo militar. Daquela seleção nacional, pois

desde 1970 o Brasil não vencia uma copa do mundo; do Botafogo, que amargava o

título desde 1968 (...).

De lá para cá, muitas coisas mudaram no país, outras não: o bonde, como em

85, só podemos ver no Corcovado ou em Santa Teresa, o amolador de facas, ainda é

possível ver muito raramente perdido em alguma rua do subúrbio (...)

De várias coisas que os cariocas sentem saudades, uma delas são os velhos

carnavais da Caprichosos com seus enredos e sambas irreverentes e por isso em

nome de todos os apaixonados pelo carnaval pergunto – onde anda você Caprichosos

de Pilares com seus antigos carnavais?

O ZIRINGUIDUM DA MOCIDADE

Na terça-feira do carnaval de 1985, fui passar o dia na casa da minha avó

na antiga Rua C, em Padre Miguel. O carnaval do bairro era muito animado com

diversos blocos passando pelo Ponto Chic, ponto de encontro do bairro.

Achei fascinante no bairro o fato de praticamente todos os moradores torcerem pela

Mocidade Independente de Padre Miguel, que seria a campeã do carnaval daquele

ano com o enredo Ziringuidum 2001, um carnaval nas estrelas.

Outra coisa que também me chamou atenção foi o fato de muitas pessoas usarem a

camisa do Bangu, que estava em seu auge. Naquele ano o time alvi-rubro deixaria

escorregar pelas mãos o título de campeão brasileiro para o Curitiba nos pênaltis, em

pleno Maracanã.

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Mas voltando a falar do carnaval de 1985, lembro-me que naquele dia a

Mocidade fez um desfile para a comunidade pelas ruas de Padre Miguel e, mesmo

sendo um desfile informal, eu e todos os que assistiam àquele espetáculo ficamos

fascinados com o que víamos, pois eram encantadoras suas fantasias e os adereços

com caráter futurista em harmonia com o samba e a inconfundível bateria da escola.

A Unidos de Padre Miguel também fez seu desfile para a comunidade, com menos

glamour, mas com a mesma garra e amor com o enredo Folia, amor e fantasia.

A Mocidade, merecidamente, foi a campeã do carnaval daquele ano causando uma

grande euforia à comunidade daquele bairro da Zona Oeste, mas, infelizmente, a

Unidos de Padre Miguel ficou em último lugar do Grupo 1-B, sendo rebaixada.

Naquele ano de grandes surpresas e transformações no país como a abertura política,

a morte de Tancredo Neves e o sucesso estrondoso da novela Roque Santeiro, só

faltaram duas coisas para completarem a felicidade do povo de Padre Miguel: o

Bangu ter sido campeão brasileiro e a Unidos de Padre Miguel em vez de rebaixada,

ter sido campeã do grupo 1-B para no ano seguinte desfilar junto com a Mocidade.

As nossas escolhas são sempre simbólicas e dizem respeito a nossa identidade, elas

expressam a forma como entendemos e vemos o mundo. São as nossas escolhas - que se dão

numa conjugação de fatores complexos e contraditórios, que apresentam, que comunicam a

nossa identidade cultural. E é através da cultura que revelamos a nossa identidade nacional e

reconhecer, valorizar nossas tradições, para além dos clichês, é realmente valorizar a nossa

história, o nosso lugar no mundo. O carnaval, mistura de artes diferentes, com suas cores,

suas fantasias e toda sua linguagem multifacetada é uma das mais conhecidas manifestações

culturais do povo brasileiro e aqui em particular, do povo fluminense. A inesquecível ala das

baianas da Caprichosos de Pilares, escola de samba que das saudades de Jorge Magalhães,

também nos lembra da fusão que há na mandala, lembrando também a sincronia e a união

feminina que encontramos no Tambor de Crioula: as saias e os giros das mulheres rendeiras,

bordadeiras, costureiras, artesãs, cozinheiras, parteiras, empregadas domésticas, mulheres do

povo, mulheres que carregam o velho e o novo dentro delas, sempre grávidas do espírito de

uma tribo, de uma sociedade, de uma comunidade, de uma nação. O carnaval como

expressão do povo assim como o futebol foram e são temas corriqueiros dos cronistas, dos

que veem nas cidades numa imersão de olhar e numa inversão de ponto de vista, mudanças

de ângulos e novas perspectivas, o que na confusão dos nossos dias pode se tornar

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banalizado. O cronista transforma o ordinário e o invisível em narrativas com a significância

visual de um singular tempo-espaço.

As experiências e as memórias vividas nas ruas, nas avenidas das cidades poderão

não pertencer a uma determinada época da historiografia tradicional, mesmo porque trarão

dentro de si inúmeras versões e ramificações, fugindo à literatura das histórias ditas oficiais,

de versões definitivas. Mas é nesse cotidiano de Cronos das cidades, que aprendemos do

definitivo que é provisório, nos remetendo a própria reformulação das experiências do que

é a cidade para nós. Estamos neste sentido a nos re-dizer cotidianamente, tentando remontar

os números das agendas que não seguimos – os números que se perdem na produção diária

da vida, na “produção do material, do espiritual e das relações sociais”. (Lefebvre, 1991,

37)

O professor Jorge Magalhães nos conta em suas “crônicas” o que da cidade se

entrelaça com sua arte docente e nos desvela o quanto a Crônica pode nos ofertar de

memórias:

NA CASA DE TIA SURICA132

Lecionei durante todo o ano de 2003 no Colégio Estadual Paulo da Portela, em

Irajá, onde minha esposa era diretora. Naquele ano o patrono do colégio completaria

cento e dois anos de nascimento e junto com os outros professores e alunos

elaboramos um projeto que chamamos de “Primeira Semana Paulo da Portela”

quando seriam apresentados atrações e trabalhos em homenagem ao fundador da

escola de samba de Madureira, pois nosso colégio levava o nome dele. Fomos então

à quadra da Portela conversar com a Velha Guarda onde fomos recebidos com muito

carinho por Monarco, que rapidamente nos integrou com todo o restante do grupo.

Fizemos entrevistas, escutamos suas histórias e tudo foi registrado num gravador por

um dos professores. No final todos nós fomos convidados para desfilar. O que

aceitamos imediatamente e nos deixou lisonjeados.

Num outro dia formamos uma comissão da qual fazia parte professores,

funcionários e uma aluna, que dizia ser vizinha do filho da Paulo da Portela para

irmos à casa de Tia Surica, em Madureira. Passamos uma tarde muito agradável

132 Intérprete de samba enredo dos antigos carnavais, Iranette Ferreira Barcellos, nasceu em Madureira (1940), “berço do samba carioca”, e é sambista de grande destaque da velha-guarda da Portela.

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ouvindo as histórias daquela tradicional componente da Velha Guarda da Portela e

quando a aluna disse que conhecia o filho de Paulo da Portela, Tia Surica foi logo

falando desconfiada:

- Filho? Paulo da Portela não teve filho!

Ficou pensativa por algum tempo e perguntou pra aluna:

- Vem cá, é um negão que estica o cabelo?

E quando a aluna respondeu que sim, ela teve certeza:

- Mentira, aquele lá é o Cabelo Frito, ele fala pra todo mundo que é filho do Paulo da

Portela!

Rimos do caso e depois em casa comentei com minha esposa:

- Já pensou que vergonha, se no dia da festa, nós homenageássemos o falso

filho do Paulo da Portela diante da Velha Guarda?

A crônica narrativa133 e toda sua estética cheia de trivialidades e humor conseguem

capturar como numa fotografia uma representação de um tempo e lugar feito registro, uma

certidão literária dos acontecimentos de uma época e dela, ultrapassando o registro, nascem

a fantasia e os novos mitos da cidade como parte da nossa história. Viver historicamente é

próprio da nossa natureza humana. Cada um de nós tem natureza e esta natureza é histórica

e sendo histórica também é narrativa, também precisa contar para os que virão. Temos um

tempo que nos antecedeu e alguém, como diz Benjamin (1994), que está a nossa espera.

A reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas, encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula a outra, como demonstraram todos os narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Scherazade, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando Tal é a memória, que imagina uma nova história em cada passagem da história que está contando. (p. 211)

133 As primeiras crônicas publicadas surgiram com o caráter documental e eram escritas para a imprensa, isso no final do século XVIII. Aos poucos o gênero foi se modificando conforme o contexto histórico cultural e o estilo literário de cada autor. Os cronistas brasileiros têm como marcas em comum a ironia, o humor e a narrativa do cotidiano.

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Sendo assim somos crônicas continuas de histórias e a grande importância dos

acontecimentos do nosso cotidiano não está somente nos acontecimentos, mas sim em todo

um coletivo, toda uma gente que faz do o acontecimento. Como pensar em Canudos sem

pensar naquele povo que enfrenta a seca e até a morte, até o demo por Antônio Conselheiro?

Como pensar as grandes revoluções populares sem pensar na gana, na vontade que mobiliza

e impulsiona o coletivo através de um homem, de uma mulher, de uma figura mítica com a

qual nos identificamos? Como pensar, por exemplo, na história pessoal e na vitória de Luís

Inácio Lula da Silva para a presidência do Brasil sem pensar nos retirantes nordestinos

viajando em paus de araras, sem pensar nos metalúrgicos do ABC paulista, na origem do

partido dos trabalhadores ou no povo que o elegia naquele momento? Uma grande

responsabilidade ser porta-voz de tantos coletivos. O mito se ascende sobre nós e nos inspira

com sua presença e força auditiva que une o discurso e a narrativa, fatos e memórias numa

só voz. Vejamos a seguinte imagem de Lula, início dos anos 80, na época líder sindical,

durante greve dos metalúrgicos do ABC Paulista; e na sequência, o discurso-narrativa de

Lula, Presidente do Brasil, feito também no ABC paulista, em São Bernardo do Campo, no

dia do trabalho, 1º de maio de 2003:

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Luís Inácio Lula da Silva. Fotojornalismo.134

(...) Na vida de um ser humano, acontecem muitas coisas que normalmente ele não prevê que vai acontecer. Eu, na minha vida, até a fundação do PT, quase tudo na minha vida aconteceu sem que eu esperasse que fosse acontecer. Aconteceu porque tinha que acontecer, porque, como eu acredito em Deus, eu penso que Deus fez acontecer.

Eu nunca, na minha vida, D. Cláudio, tinha pensado em ser dirigente sindical. Aliás, meu irmão mais velho me convidava para o sindicato e eu nunca aceitei vir ao sindicato, porque eu achava uma coisa tremendamente chata as discussões que, normalmente, eu não entendia. E eu vim ao sindicato em 1968, pela primeira vez. Houve uma briga no sindicato, não sei por que, mas houve uma briga. E por conta da briga eu passei, então, a gostar de vir e passei a freqüentar o sindicato.

Um ano depois eu era diretor do sindicato, três anos depois eu era presidente do sindicato, e eu lembro que em 1978, depois da primeira greve, era o meu segundo mandato no sindicato.

Eu disse para dona Marisa: "Dona Marisa, este será o meu último mandato. Eu aprovei, numa assembléia, que nenhum presidente poderia ficar mais que dois mandatos na Presidência." E eu falei: "Eu vou voltar para casa e vamos cuidar da nossa família.”

134 Época, 28 de outubro, 2002. Diretor de redação: Paulo Moreira Leite.

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Ou seja, de 78 até agora, D. Cláudio, já são 25 anos e eu voltei para casa. Ou seja, voltei em parte, em termos. Mas a verdade é que, cada vez mais, eu me "meti em encrenca." Até que fundamos o PT, e até que um conjunto de companheiros entendeu que este partido deveria ter candidato a presidente da República.É importante lembrar que, em 1978, eu dizia para quem quisesse ouvir, que eu não gostava de política e tinha ódio de quem gostava de política. Isso, em 1978. Em 80 eu já estava fundando o PT, em 82 fui candidato a governador, em 89 a presidente, em 94 a presidente, em 98 a presidente. E graças à teimosia de vocês eu fui eleito presidente da República e cá estou.

(...) A minha eleição é a consumação de uma história em que eu sou apenas uma peça dessa história. Há muita gente, mas muita gente mesmo, que teve uma importância tremenda para fazer acontecer o que aconteceu no Brasil, e essa pessoa possivelmente esteja desempregada, e a gente não sabe que está desempregada.Essa pessoa, possivelmente, esteja passando fome, a gente não sabe que está passando fome, ou muitos companheiros nossos metalúrgicos até já morreram sem que a gente saiba que eles tenham morrido. Por isso é que eu sempre faço questão de dizer: a minha chegada à Presidência da República é o resultado do crescimento da consciência política da classe trabalhadora brasileira. O mérito, portanto, não é pessoal do presidente ou do meu partido, que tem méritos, mas o mérito muito maior é de uma sociedade que acordou e que resolveu tomar para si a responsabilidade de governar o nosso país.

E eu, D. Cláudio, tenho, na minha cabeça, cada discurso que fiz na minha vida, eu tenho na minha cabeça cada compromisso que eu assumi em praça pública, eu tenho na minha cabeça programas de governo e eu tenho na minha cabeça, D. Cláudio, que, se falhar, quem falhou foi como um pedaço da história deste país e, possivelmente, iremos passar muitos anos para que a gente possa reconstruir a esperança que brotou no nosso país.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores. E, entre as narrativas, as melhores são as que menos se distinguem das

histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. (p.198) Na história de Lula

reside a história de muitos(as) narradores(as) anônimo(as), como a história de Socorro ou

Maria do Socorro Lira Feitosa, líder oral de um grupo de famintos, narradora cabralina que

durante uma viagem da Caravana da Cidadania pelo interior de Pernambuco, próximo a

Garanhuns, interrompe o trajeto dos ônibus, pondo-se a frente deles para denunciar a

existência de um Brasil de misérias: Nóis não ta aqui por boniteza. Nóis tá por precisão. A

gente tamus passando fome. Zuenir Ventura, autor e também ator nesta narrativa traz de

um passado recente de Brasil, a figura daquela mulher, que é a própria pernambucana135,

convidando-nos a uma viagem pelo Brasil real, uma “viagem ao coração do Brasil”. E é

Zuenir quem narra na crônica “Lula no coração do Brasil”136:

135 Faca afiada, longa e estreita ou lambedeira. 136 O Globo, segundo caderno, p.10. Rio de Janeiro, 02 de nov. de 2002.

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Eram 10 horas quando uma senhora, sob o efeito da fome e do sol, desmaiou. Socorro segurava o microfone pela primeira vez e exigia mais vagas nas frentes de trabalho, comida imediata e um caminhão para conduzi-los de volta: Nóis num vorta a pés. Tendo que seguir viagem, Lula deixou uma comissão chefiada pelo senador Eduardo Suplicy para acompanhar a líder dos famélicos da terra até a prefeitura, onde apresentaria suas exigências.Foram negociações tensas, porque na região estavam ocorrendo muitos saques a lojas e feira livres. O prefeito reclamou da insuficiência de recursos, da dimensão da miséria e alegou que as coisas não podiam ser resolvidas de uma hora para a outra. Foi então que ouvi pela primeira vez uma frase muito comum hoje: A gente temus pressa, disse-lhe Socorro, porque quem tem fome tem pressa. (grifo meu)

Segundo a narrativa de Zuenir Ventura o prefeito nada fez por Socorro e quem teve

que resolver o impasse da situação foi o senador Eduardo Suplicy, que tirando dinheiro do

próprio bolso exigiu que todos os presentes fizessem o mesmo, entre eles o prefeito e os

secretários. Com o dinheiro foi possível comprar 300 pães e alugar um caminhão. Havia

mais de 200 famintos esperando pela volta de Socorro, sob o sol escaldante do começo de

tarde. E Zuenir espantado relembra: Eu nunca tinha visto tantas pessoas juntas com fome.

A vitória de Lula leva Zuenir de volta ao trevo da memória, lugar onde reencontra

Socorro, nordestina, faminta, 32 anos, nove filhos. Líder oral de poucas palavras, seca de

corpo e de linguagem, feito um personagem de Vidas Secas, feito Fabiano e a saga

desgracenta dos retirantes, feito Macabéa na Hora da Estrela, numa incômoda economia

lingüística de saliva, onde o sol racha a pele e água é salobra como a própria língua, que de

materna só tem dois seios murchos que mal alimentam.

As histórias que provêm da memória sobrevivem ao esquecimento para serem

contadas, ouvidas e (re)vividas. Contar e recontar a história de Socorro, Zuenir e Lula é uma

maneira de perpetuá-los para além de nós - para as gerações futuras. E a junção destes

discursos – oral (Maria do Socorro) e escrito (Zuenir Ventura) - insere-se no cotidiano da

escola como texto legítimo de toda uma coletividade que historiciza e significa o mundo na

e pela experiência. A experiência que está no trabalho e está nas idéias, e que por isto faz-se

híbrida fusão entre “saber” e “fazer”. A palavra “idéia” não aparece aqui como parte de

uma concepção platônica, mas sim como parte constitutiva desses saberes , que mesmo

escolarizados, desejamos mais espontâneos.

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Vários foram os autores que teorizaram sobre as aproximações e os limites existentes

entre a história e a literatura, ou ainda sobre essas senhoras tão intrigantes, como as chama

Marisa Lajolo (1995) quando reflete sobre os tipos de entrelaçamentos entre esses saberes

no estudo do texto literário:

O texto literário como documento da história ou a história como contexto que atribui significado ao texto literário são caminhos que podem colidir no congestionamento da mão única por onde enveredam. Neste sentido, reflexo, expressão, testemunho, articulação, influência e termos similares são o léxico que costuma vincular o texto literário ao que há de coletivo e social para aquém e para além de suas páginas. Aliás, a escolha de um ou de outro termo já implica não só menor ou maior grau do entrelaçamento postulado entre literatura e história, como também e sobretudo o modo como se postula tal entrelaçamento.(21)

Exemplificando esse entrelaçamento, escolhemos um texto literário que também é

registro documental da história: a Carta a El-Rei Dom Manuel (1500) A carta de pero Vaz

de Caminha aparece no conteúdo dos livros didáticos de literatura, segundo a periodização

literária, como o primeiro e mais importante texto literário do “quinhentismo brasileiro”.

Caminha, sendo o principal cronista do Rei de Portugal, tem como função detalhar

minuciosamente as características naturais, as riquezas da “nova terra”, assim com também

descrever “fisicamente” e “culturalmente” o povo que nela habitava. Isto ele faz a partir de

uma visão etnocêntrica do europeu colonizador. No entanto, a arquitetura do que seria um

texto descritivo, por vezes, ultrapassa esse papel para desembocar numa rica e instigante

narrativa literária. É o que tentaremos exemplificar com trechos da própria Carta (Roncari,

Luiz. 1995, p. 29-39):     

    Senhor,

posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar – o saiba pior que todos fazer!

Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.

     (...) Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis,

com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão

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altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam.

(...) E além do rio andavam muitos deles dançando e folgando, uns

diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais montezes, e foram-se para cima.

(...)  Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a

pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.

(...)Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira,

primeiro dia de maio de 1500.     Pero Vaz de Caminha.

Na Carta de Caminha podemos perceber que há todo um processo narrativo literário

que aflora e que se antecede à “descrição pela descrição”, assim como evidenciado se faz o

contexto histórico, através da sua extrema definição discursiva.

As marcas da autoria são plenamente visíveis na forma como Caminha adjetiva a

terra e os nativos. As impressões do cronista, as pegadas deixadas no texto, que poderíamos

talvez chamar de indícios impressionistas, se mostram presentes naquilo que lhe agrada,

desagrada ou que lhe desperta interesse para além das evidências do texto. Estão nas

evidências e nas entrelinhas. O subjetivismo de Caminha diante da natureza exuberante da

terra e do nativo, que é ao mesmo tempo bonito e ingênuo, já antecipa, guardando as devidas

proporções, a nossa perspectiva romântica indianista. Na escrita de Caminha habita o

gérmen de Iracema, de Ubirajara e Peri, os índios e os heróis revestidos pela cultura

européia do nosso Romantismo.

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     A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. (...)

Concomitantemente a uma visão subjetiva diante daquilo que está sendo visto, a

Carta de Pero Vaz de Caminha marca com determinada objetividade o início do contato

superior que se estabelece entre o mundo português, pretensiosamente civilizado, e o da

nova colônia de exploração, marcando assim a dependência cultural superior selada pelos

olhos do mundo europeu. O nativo bonzinho, hospitaleiro, gentil, o exotismo da terra

tropical e das mulheres “desavergonhadas”.

Esta carta trouxe-nos a possibilidade de conhecer a primeira impressão do

colonizador em nossas terras e, sem dúvida, observar que o que prevalece é uma atitude de

“aparente compaixão” mediante a presença daquilo que eles consideravam “índios”, quando

na verdade nem nas Índias estavam. O português ao chegar em nossa terra, chega com um

ideal basicamente econômico. É claro que não podemos também ignorar o ideal religioso.

Na Carta, o cronista antes da análise geográfica, diz que o que de melhor havia nessa nossa

terra, era o seu povo e que cabia ao rei fazer de tudo para “salvá-lo”. Salvar o povo consistia

basicamente colonizá-lo tendo por molde o pensamento europeu etnocêntrico. É o

pensamento do explorador impondo-se ao pensamento que eles tanto chamam de exótico. A

superioridade estabelece-se desde já na colocação de um pensamento sobre o outro, depois

de uma língua sobre a outra e de uma economia sobre a outra. Tudo gira sempre na

colocação de que a Europa é o centro do mundo e Portugal o país, naquela época, que tem a

principal função de difundir suas idéias de dominação pelo mundo. Poderíamos nos

perguntar: será que isto é coisa somente do passado?

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!

Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. (...)

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Salvar esta gente? Quantos questionamentos podem surgir daí, desta frase tão curta,

mas ao mesmo tempo tão forte e ainda tão atualizada? Podemos assim, utilizar o texto de

Caminha, tanto nas aulas de literatura como também nas aulas de história, de geografia, de

biologia, de filosofia. Nestas relações reside a importância da crônica e de todo um contexto

histórico-social e cultural, quando este não vem desassociado do texto, quando não aparece

distanciado, por vezes numa cronologia esvaziada de significados. Através da leitura do

texto de Caminha poderemos evidenciar a forma como um pensamento histórico europeu de

superioridade poderá refletir na forma como vivemos e vemos o mundo de hoje. Dessa

maneira o texto literário pode ser trabalhado em sala de aula como motivo para

argumentação e para a reflexão. Podemos assim estreitar a relação dialética e dialógica entre

a literatura e o cotidiano, entre a literatura e a história.

A literatura na escola ou a experiência com a literatura na escola está impregnada de

representações que foram feitas ao longo de muitas teorias sobre o que é a literatura. E a

visão mais usual é a de que a literatura é o retrato datado da sociedade através das épocas,

cada uma com seu estilo. Então, dentro dessa concepção, ela só poderia estar muito atrelada

a uma reconstituição histórica linear que atravessa com suas datas e características uma

teoria literária burocrática voltada para uma literatura “de manual”, que tem apenas como

função o papel de descrever e exemplificar os contextos datados por meio dos períodos

literários.

Os interstícios e as ações interdisciplinares entre a literatura e a história poderão vir a

criar outras ações e muitas possibilidades dialógicas entre os leitores de textos literários e os

leitores dos textos históricos, os mesmos talvez, e também entre os leitores-educandos e os

leitores-educadores. E a partir disto, desta relação empírica com a pluralidade textual,

provocar o pensamento crítico e criativo desses sujeitos da escola, provocando também a

criação de novos textos, de novas narrativas – individuais e coletivas. Não se quer afirmar

com isso que a escola tenha o dever de formar historiadores, poetas, escritores ou literatos,

mas que ela tem sim o importante papel de possibilitar o encontro do sujeito com a palavra –

na oralidade e na escrita, com a ajuda, o afeto e a força da literatura, da história, e de todos

os outros saberes democratizados – mas não de forma fragmentada e inconsistente, mas por

uma via ou muitas vias que permitam o acesso ao desejo legítimo da apropriação desses

conhecimentos, o que até hoje não foi devidamente vivido neste país.

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Podemos verificar assim que tão importante quanto trabalhar as características de

gênero e estilo da Carta de Caminha em sala de aula, é também trabalhar, de forma crítica e

contextualizada, este texto literário enquanto documento da vida, da história dos homens.

Assim como podemos trabalhar a crônica de Machado de Assis enquanto discurso de um

homem e a fala de Lula num duplo discurso de um homem. Isto possibilita aos nossos

alunos um mergulho na leitura de mundo através da palavra, através das narrativas, das

biografias dos homens que habitam a nossa História.

Gonçalves Filho (1990) reflete sobre “educação e literatura”, focalizando o texto

literário como mediação para articulação de situações existenciais e históricas do presente,

articulando-as com as situações existenciais e históricas do passado. Para isso, diz ser

preciso superar o ensino da literatura que se concentra apenas na apresentação linear da

história literária, como se ela fosse também apenas uma sucessão cronológica de estilos e

figuras. E faz essas reflexões, baseando-se no que ele compreende ser a literatura que se

situa no plano da emoção, cuja “teoria” compreende uma estética da paixão, do artesanato

do estranho, daquilo que nos causa espanto e admiração. (38)

Paulo Freire (1987) sobre as situações-limites nos diz que elas se apresentam aos

homens como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes

cabe outra alternativa senão adaptar-se. E afirma que para alcançar a meta da humanização,

que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível

a superação das situações-limites em que os homens se acham quase coisificados. (94-95)

Resistir às situações-limites está na busca do “ser mais”. Está no inconformismo que nos

mobiliza para a mudança. Está na idéia do homem como ser inconcluso, consciente de sua

incompletude.

Nesse dialogismo, Guimarães Rosa em suas Veredas (1986), nos traz o que poderia

também ter sido dito por Paulo Freire: O senhor...Mire veja: o mais importante e bonito, do

mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas

que elas vão sempre mudando. (374)

E a partir das palavras de Bakhtin (2000, 33) poderíamos pensar numa espécie de

entrelaçamento com as palavras de Guimarães Rosa:

Se eu mesmo sou um ser acabado e se o acontecimento é algo acabado, não posso nem viver nem agir: para viver, devo ser inacabado,

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aberto para mim mesmo – pelo menos no que constitui o essencial da minha vida -, devo ser para mim mesmo um valor ainda por-vir, devo não coincidir com a minha própria atualidade.

Sabemos o quanto é relevante no cotidiano das escolas brasileiras, o fato de

refletirmos sobre as possibilidades e a potencialidades existentes no ato de relacionar a

literatura com o que se vive, nisso incluo a história, numa ação dialogada, pois a literatura

está na vida, e a vida como disse Todorov (1981,149) é dialógica por natureza. Viver

significa participar de um diálogo, interrogar, escutar, responder, concordar etc.

Os textos, principalmente os literários, estão marcados por valores éticos, estéticos,

políticos, culturais, religiosos. Os textos históricos também. Os estudos da historiografia

têm se debruçado sobre essas marcas sócio-temporais dos documentos históricos,

revalorizando o lugar desses documentos, re-significando o lugar da história oral e da

memória social, na tentativa de encontrar indícios, pistas, reflexões cada vez mais

significativas sobre as formas de ser, de estar e viver dos homens nas cidades, nas

sociedades. E para compreender as dinâmicas das sociedades, entendo-as como “coisas

vivas”, seja através da ótica da história, ou da literatura ou da antropologia, podemos utilizar

uma operação: a do “englobamento”. (Da Matta, 1997)

O "englobamento" é uma operação lógica em que um elemento é capaz de totalizar o outro em certas situações específicas. No caso brasileiro, a dinâmica é muito familiar. Diante de certos problemas e relações, preferimos englobar a rua na casa, tratando a sociedade brasileira como se ela fosse uma "grande família", vivendo "debaixo de um amplo e generoso teto", obedecendo naturalmente às leis e seguindo a liderança de quem produz o discurso que é, naquele momento, o "nosso líder" e o "nosso guia e pai". (p.11)

Nas imagens de Jorge, a imagem da cidade do Rio de Janeiro é a imagem de um Rio

com uma casa e uma “rua” que tem cadeiras na calçada, com “a cara” e as ruas do subúrbio

do Rio: “da criançada empinando pipa, brincando de elástico, jogando bola de gude, pique

esconde e pique pega, polícia e ladrão, carrinho de rolimã...” O Rio que tem a imagem do

samba, do carnaval, dos malandros da Lapa, da “pelada” de domingo, do jogo lúdico do

futebol e da torcida reunida no Maracanã, “numa grande mandala”, como me disse outro

Jorge137. Salve Jorge!

137 Menção à fala do professor, psicólogo e amigo Jorge Luiz de Oliveira Braga.

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São Jorge

(Franceschini, 1718)138

Sugestionada por essas imagens e numa proposta caleidoscópica nos propomos neste

capítulo buscar os encaixes que nos fizessem retirar uma história de dentro da outra, também

feito bonecas russas, myse en abyme, uma história dentro da outra, folheando a História

pelas histórias, abrindo uma potência em espiral onde é possível ver de uma trajetória

humana o espelho da história de um outro. A história do professor Jorge Magalhães se abre

à história de tia Surica, que se abre à história de Luis Inácio Lula da Silva, que se abre à

história de Maria do Socorro, que se abre à história de Zuenir Ventura, que volta e se abre à

história de Machado de Assis, que se toca na história de João do Rio e que vai sair lá na

história de Pero Vaz de Caminha, nosso primeiro cronista. Não tratamos de linearidades,

porque não há na história dos homens algo que seja linear, por isso tratamos aqui das

histórias que circulam, descontinuamente, aqui a história de homens e mulheres que

138 Imagem disponibilizada em www.images.google.com.br.

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ousaram viver pelo fogo, pela chama e pela herança dos homens primitivos que souberam

fazer do fogo a descoberta, a palavra e a revelação do caminho. “Lâmpada para os meus

pés...”, diz uma passagem da Bíblia. A simbologia do fogo e a coragem do fogo podem

reascender na história dos vencidos o mito que do nada aparente pode se tornar a história de

um herói, de uma heroína, basta mergulharmos para olhar o que há por trás do iceberg e das

fogueiras, para olhar as cinzas da fênix e nelas os vestígios históricos da nossa civilização.

O fogo que está no princípio e nos elementos ígneos, está na luta pela sobrevivência, está no

alimento, está na sexualidade, está na guerra, está no amor e está na morte. Todas essas

imagens estiveram presentes nas narrativas memorialísticas de Jorge Magalhães e também

nas narrativas de vida dos autores das histórias que passaram neste bosque, interlocutores

desta jornada; e a chama, passada de mão a mão, perpassou cada uma dessas histórias

reascendendo a vontade dialética da verdade e a busca dialógica da esperança. Pelas armas

de Jorge:

Não estamos longe de acreditar que o fogo é precisamente o primeiro objeto, o primeiro fenômeno no qual o espírito humano é refletido; entre todos os fenômenos, só o fogo merece para o homem pré-histórico, o desejo de conhecer, exatamente porque acompanha o desejo de amar. Por certo, repetiu-se amiúde que a conquista do fogo separava definitivamente o homem do animal, mas talvez não se tenha percebido que o espírito, em seu destino primitivo, com sua poesia e sua ciência, formou-se na meditação do fogo. O homo faber é o homem das superfícies, seu espírito fixa-se em alguns objetos familiares, em algumas formas geométricas grosseiras. (...) O homem sonhador diante da lareira é, ao contrário, o homem das profundezas e o homem de um devir. Ou ainda, melhor dizendo, o fogo dá ao homem que sonha a lição de uma profundidade que contém um devir: a chama brota do coração dos ramos. (Bachelard, 2008, p.83-84)

O CÍRCULO e UPAON-AÇU

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Acervo de Emanuel Reis: “A Literatura de Cordel”

Upaon-açu – Ilha Grande,nome dado à Ilha de São Luis pelos índios Tupinambás.

A árvore é um ser que o sonho profundo não mutila.Bachelard

O círculo é também símbolo do tempo: a roda gira. Desde a mais remota Antiguidade, o círculo tem servido para indicar a totalidade,

a perfeição, englobando o tempo para melhor o medir. Os babilônicos usavam para medir o tempo: dividiram-no em 360°,

decomposto em seis segmentos de 60°; seu nome, shar, designava o universo, o cosmo. A especulação religiosa babilônica daí retirou,

mais tarde, a noção do tempo infinito, cíclico, universal, que foi transmitida na Antiguidade – na época grega, por exemplo –

através da imagem da serpente que morde a própria calda. Na iconografia cristã, o motivo do círculo simboliza a eternidade; três círculos unidos entre si evocam a Trindade do pai, do Filho e do

Espírito Santo.

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(Chevalier e Gheerbrant, Dicionário de Símbolos).

Memorial de Emanuel

A árvore de sonho

Ciloca era uma mulher feia. Pra mim era a mulher mais feia do mundo com aquele tudo seu exagerado, tudo grande: boca, nariz, olhos, orelhas... Nada que combinasse com nada naquela estampa fina, magra, quase de fome... A Ciloca tinha uma cara que não sei, cara de quem podia comer criancinha sem piscar. Mas eu menino gostava de ficar olhando pra ela, gostava de ficar olhando praquela sua feiúra, porque era quase que bonita de tão feia. Um dia olhei tanto até ela ralhar comigo:- Sai já daí seu menino! Ta pensando no quê?E não é que eu tava justamente pensando, pensar naquele lugar onde Judas tinha perdido as botas pra nunca mais achar era coisa de gente insana. - Menino doido!

A Ciloca foi a primeira pessoa a me chamar de doido. Logo depois vieram tantos mais outros que... nem me lembre! Mas, se bem, que falavam até com certo carinho: o doidinho de dona Zefa... Tadinho do pobre, tão novinho já desmiolado. Aqui com meus botões, hoje acho que eles tinham um tantinho de razão. Não é que eu aprontasse muito, mas é que o pouco que aprontasse virava sempre grande traquinagem. Essas coisas de sorte ao contrário pra não ter que falar o nome da dita cuja. Como de certa vez que fui ajudar o Juca com a bicicleta que ele tinha acabado de ganhar do tio Evaldo. Tava quebrada, mas tinha jeito. Então nós nos danamos atrás de ferro velho pra procurar as peças. Éguas! Fomos andando tanto e nada! Às vezes a gente encontrava a peça, mas a bicha não casava com o arrancho. Eu e o primo fomos naquela sandice de procurar até onde os pés alcançavam. Pois bem, andamos o dia inteiro e nos perdemos na hora de voltar, que tava já escuro como breu e não tinha mais uma luzinha pra guiar a gente pela estrada. O Juca que não era lá muito esperto, ficou logo cheio de manha. E lascou-se a chorar sentado no chão; - Quero minha mãe! Quero minha casa! Quero minha cama! Essa coisa então de ficar forte

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pelos outros começava assim - Fica calmo, primo, que eu vou tirar a gente daqui. É caso de minuto, cê vai ver! - Isso eu falei sem pensar. E eu lá sabia como é que a gente ia sair daquele buraco de lugar. Sabia nada. Mas carecia bancar o valentão.

- Tá com medo, Nezinho?- E eu lá sou cabra de sentir de medo?! Medo é coisa de

gente covarde, gente que borra nas calças por qualquer querelinha!

- Mas, Nezinho, a gente num tem nem doze... - Oh... olhe só, Juca! Se tu ainda num é homem tu fique

calado que vai ajudar mais! Falando assim feito um bezerro chorão vai chamar atenção dos bicho. Será que tem bicho aqui, o Juca? - Sei não, Nezinho...Sei não.

Pra encurtar a história, foi assim que nós ficamos no meio do nada, na escuridão das profundezas esperando o dia chegar. Foi a noite mais esticada da minha vida. E o tonto do primo dormindo, babando, roncando. E quando a gente começou a ver aquele solão abrindo, que beleza! Foi alívio de sobra. E só não foi melhor porque a bicicleta do Juca resolveu desaparecer por ali mesmo. E pra variar, na chegada em cada, a encrenca se armou. Foi pisa pra todo lado. Mamãe gritava: - Menino, te dô-lhe! Te dô-lhe! E a gente fugindo, se rindo todo.

Só voltei pra casa bem de noitinha a fim de cansar a zanga da mãe. E fui me embrenhando lá pelos fundos do quintal de Ciloca que fazia fronteira com o nosso. Lá fui eu de levinho...

- Ta fazendo o quê aqui, menino?! Era Ciloca, mais feia que nunca, tava com o cabelo todo

alvoroçado e de chambre! Parecia até que tinha acabado de ter um encontro marcado com o capeta.

- Alma penada existe, Ciloca?- Hem hem! Mas por que tu ta me perguntando isso? - Oh, Ciloca, tu parece mais alma penada que gente! E sai

fugindo, rindo, correndo feito um saci danado, deixando Ciloca pra trás numa nuvem bem da estranha que se formou em volta dela.

Cheguei em casa. A mãe já calma nem ralhou nem nada. Fui pra cama sem rezar, suado de tanta alegria de menino. Que alegria de menino é coisa que empolga, coração bate tanto que parece que vai soltar pela boca!

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Foi então que dormi e sonhei muito comprido. Tava eu andando pela estrada, aquela mesminha que eu tinha me perdido mais o Juca. Tudo breu, igualzinho. Só que a gente tava de bicicleta, o Juca na garupa e eu guiando. No caminhar do sonho a gente se deparou com uma árvore, mas não era uma árvore assim normal não. Era uma árvore de sonho, árvore com tronco demais, folha de demais, grande demais, medonha. E, só chamando meu São José de Ribamar pra ajudar, que lá de dentro, de dentro da tinhosa saiu aquele ser mais medonho ainda: era Ciloca, rapaz! De pé, caminhando na minha direção, de chambre e de cabelo solto, alvoroçado. Só que pra piorar mais um tiquinho, os olhos tavam vermelhos, dentro dos olhos tinham duas bolas de fogo, faiscando. Era o coisa ruim em pessoa! E lá ela ou o coisa ruim começou a falar com voz que não era de gente:- Emanuel, Emanuel... Tu mangaste de mim! - Porque o capeta também usa o linguajar correto. - Agora, se quiseres acordar, terás que ajudar dois meninos que estão perdidos aqui no meio do mato a encontrarem o caminho de volta pra casa. Se tu não fizeres, jamais sairás desse sonho. – Era tanto tu farás, tu terás... que eu fiquei foi tonto por demais mesmo.

- Então, dona...,_ pois não cabia intimidade_ me diga como eu faço pra achar esses meninos? E outra coisa: será que eles ao invés de perdidos não estão é fugidos? Será que vão querer voltar pra casa? Será que eles não querem é ficar assim meio perdido por lá?

- Sem mais perguntas! _ Que essas assombrações de sonho não são de explicar muito as coisas não. Pra encurtar, fui eu e mais o Juca na garupa atrás dos meninos e aí vai que logo na nossa frente, no escuro da estrada, que no sonho tudo é muito providenciado, lá estavam os dois meninos que, nossa, valei-me os santos todinhos, tinham a minha cara e mais a do Juca! E vai daí que a gente oferece ajuda.

- Tão perdido, é? A gente tá aqui pra ajudar vocês dois a voltarem pra casa, não é Juca? _ o Juca se tremendo todinho só balançava a cabeça. Que o cabra era medroso até em sonho.

- Eu me chamo Aquiles e o nome dele é Moisés. Vocês conhecem o caminho que vai pro rio?

- Tem um rio aqui pertinho, passa aqui rentinho da estrada. A gente sabe onde é. É pra lá que vocês tão indo?

- É sim. Nossa mãe mora lá.

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- Então vai ser é fácil. Quer ir na magrela?- Não não, nós vamos andando que é melhor.E fomos os quatro rumo ao rio das pedrinhas. Vixe, como

demorou! Chegamos lá quase de manhãzinha, mas ainda meio escuro. Os meninos foram até a beirada e a gente ficou ali, os dois parados espiando, sem entender o que eles tavam pretendendo. Os meninos subiram nas pedras mais altas e de repente, num susto, pularam pra água do rio. E bem no meio da queda os dois foram virando peixe. Dois peixões! Lá espocaram na água e saíram nadando. Fiquei mudo. O primo também.

O sonho foi pra lá de comprido. Deu até tempo de eu mais o Juca voltar de bicicleta pra casa. Quando deu de acordar, tratei de levantar e ir correndo pedir pra Ciloca esquecer minhas peraltices que eu tava arrependido. Não queria era mais ter que sonhar com ela, isso de jeito nenhum! Era castigo demais! A Ciloca nem me deu trela nem nada. Disse que não acreditava em palavra de menino, ainda mais de um menino sem juízo feito eu. Mas na volta, todo satisfeito da ação, entrando pelos fundos do quintal, foi então que eu vi: a bicicleta do Juca, escorada no cajuzeiro. Tava novinha, toda aparelhada. Fui correndo, pedalando, rindo da vida, contar a novidade pra ele. Sem perguntas, que essa coisa de explicação demorava era muito.

Emanuel Reis

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CAPÍTULO 8

Emanuel, o peixe, o rio, a lenda e o fantástico: por uma

poética da imaginação.

Narrativa Memorialística – O alquimista

O que eu gostava quando pequeno era seguir o cortejo do divino espírito santo, olhar de perto as caixeiras com seus tambores. Como dizia minha finada avó: “Tu tá ouvindo esse tambor, Nezinho? Esse batuque vem de baixo, do fundo d’água. É o tambor de mina que vem lá de baixo, do povo do fundo, porque o mato e o mar, meu filho, eles têm dono. E a gente tem de respeitar os

donos da mata e do mar.

(Memórias de Emanuel Reis139)

As lendas surgem pela primeira vez no cenário literário através da cultura oral, tendo

como uma de suas características a arte mitológica da narrativa, a que traz guardada pela

tradição o que há de imaginação criativa e de fantástico na contação de estórias. Afinal, elas

dramatizam as estórias da cultura popular e todo esse universo maravilhoso aparece como

parte constituída de mitos. E são esses elementos míticos que, ao se unirem aos elementos

do cotidiano transformam a narrativa de ficção num constante reinventar-se coletivo,

revelando também o fantástico através da criação imaginativa de tipos alegóricos, de

criaturas deste e “de outro mundo”, das assombrações e mitos de encantamentos que

povoam o imaginário com seus muitos arquétipos. O imaginário torna-se então o encontro

dos leitores, dos ouvintes e dos brincantes com um mundo de imagens míticas e de

encantarias numa explosão de sentidos.

Nas lendas há uma alternância entre acontecimentos e reinvenções que promove um

permanente repertório de criação. Por isso são muitas as versões. Nas festas populares, onde

há uma carnavalização espontânea e uma constante permuta de lugares, o fantástico 139 Emanuel de Jesus Reis graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Maranhão. É professor da rede municipal e estadual, músico, professor de violão, arte-educador e trabalha com movimentos folclóricos populares.

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protagoniza as ações dos brincantes e assim eles se movimentam, intervindo e modificando

qualquer possibilidade de linearidade narrativa. Mesmo quando um folguedo parte de um

motivo já conhecido, a criatividade e a ludicidade são tamanhas que, no decorrer do

espetáculo ou da festa, a tentativa de se contar uma única versão da lenda é desfeita, dando

lugar às novas leituras, releituras da narrativa. E é isso que dá longevidade às manifestações

populares. Sem dúvida há o desejo de determinados grupos sociais na preservação da

tradição oral e da memória coletiva enquanto heranças culturais as lendas se tornam.

Segundo o folclorista Câmara Cascudo a lenda (legere, legenda) conserva as quatro

características do conto popular: antiguidade, persistência, anonimato e oralidade. E se

distingue do mito pela função e o confronto. O mito pode ser um sistema de lendas,

gravitando ao redor de um tema central com área geográfica mais ampla e sem exigências

de fixação no tempo e no espaço.140

Ao visitar ou re-visitar uma lenda pelo escrito – o leitor da escrita pode criar a sua

própria interpretação ressignificando o que foi escrito. Pois todo escrito pode ser lido e

compreendido por diversos sujeitos em tempos e lugares diversos. Num mundo

grafocêntrico, a lenda, que tem como característica a oralidade se encontra hoje também

impregnada da presença da cultura escrita. E escrevemos para argumentar, demover,

convencer, iludir, seduzir e isso também está presente no discurso oral. Mas enquanto a

oralidade é fluxo na irreversibilidade, a escrita é o registro pensado e repensado. Nesse

aspecto, o processo de significação da escrita se diferencia do processo de significação do

discurso oral. E essa diferença provém principalmente da tradição que permanece como

narrativa oral e persiste com essa funcionalidade enquanto elemento cultural de uma

determinada sociedade.

Nas lendas, provindas da oralidade, a autoria é coletiva e\ou anônima, a

subjetividade é plural e é feita de uma dada criatividade que surge, a todo o momento, dos

imprevistos, das improvisações, de um domínio cultural que é público. E sua constituição

textual se materializa pela voz, pela tradição de um contador que vai em busca de um outro

tipo de imortalidade, que é a da própria tradição num repetere contínuo como acontece com

as palavras sagradas dos mantras. É pela repetição que o contador encontra sua melodia

harmoniosa e essa melodia encanta os ouvintes.

140 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9 ed. Brasília: J. Olympio, INL, 1976, p.348.

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Quando crianças, o arte-educador Emanuel Reis e seus irmãos tinham medo de

assombração. Causar medo, espanto, susto, o terror da existência e de se encontrar perdido

de casa, da mãe, do útero, todas essas percepções que se dão no mundo real se encontram

intimamente ligadas ao fantástico e a todo seu potencial de imaginação. Por que sentimos

medo? Por que buscamos abrigo, zelo? Abrigo no afeto? Zelo pelas histórias que ouvimos

ou contamos? É porque este medo, este zelo e este afeto estão atrelados às nossas ilusões,

aos nossos devaneios, aos nossos sonhos e às nossas potencialidades criativas. E são

inerentes ao nosso afeto pela existência. Sentimos o afeto que é também uma linguagem

humana. Por isso somos sujeitos de afeto. E somos capazes das mais profundas volições

para defender nossas idéias, nossos sonhos, nossas crias. Parafraseando Sartre, é porque

somos condenados à criação. E a criação é o fogo roubado de Prometeu.

A memória, por sua vez, é lugar da criação, da invenção e é na memória ilusória que

encontramos uma forma peculiar de reconstituição dos fios da existência. Acredito que

sendo tudo isso linguagem é também a significação mais íntima das nossas formas de

existir, da expressão mais humana da alegria de estar com o outro ou ainda da saudade

dramática que esse outro poderá nos provocar. Nascemos sozinhos e imediatamente

abandonados somos por nossas águas e assim passaremos a vida inteira com essa sede,

carecendo da boa sorte do acolhimento, do afeto que nos vem e é vão de tantos ao longo da

nossa história que pode ser tão íntima e particular.

Quando era criança minha avó e tias não se cansavam de contar histórias que

só me causavam medo, ou melhor, terror. Sempre demorava horas pra dormir

pensando que alguém apareceria bem no meio do quarto que eu dividia com meus

outros quatro irmãos. Muitos anos depois descobrimos entre nós que todos morriam

de medo, mas acanhados, fingíamos dormir. Um dia, acordei no meio da madrugada,

tinha tido um pesadelo daqueles:

_ Socorrinha, acorda! Socorrinha!

Socorro era nossa irmã mais velha, que defendia a todos e a todos consolava.

A todos consolou.

_ Dorme, Nezinho, é sonho.

Sonho de criança, de um menino que vivia inventando histórias, que sonhava

até ser rei, que sonhava ter uma terra pra poder a vista se perder. Mas essas histórias

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eram sempre de magia, de feitiço, de gente de outro mundo. Os fantasmas sempre

tiveram boa morada na minha história, nas histórias da minha história. Primeiro

vieram pela experiência do medo, depois pela do conforto. E assim tem sido.

A literatura de cordel foi a primeira leitura por desejo. E ela não era

diferente das histórias que ouvia em casa. Tinha uma entre todas que me fascinava

mais, até porque antes de ler eu já ouvia falar, os repentistas cantavam as diabruras

da mulher garrafada. Era a história da mulher garrafada. Como a gente não podia

compra o livreto, todo dia eu e meu irmão mais novo, Eliseu, voltávamos a feira e

então líamos uma folhinha a mais. Uma folhinha a mais, uma folhinha a menos. No

fim dava quase saudade do começo.

Tivemos infância pobre, sem livros. Era uma extravagância ter livros numa

casa que faltava até o pão. Nossos provimentos vinham de mamãe, lavadeira e

passadeira, e da minguada aposentadoria de vovó. Era bastante comum encontrar

famílias, como a minha, providas apenas pelo trabalho das mulheres da casa. Os

homens iam embora, jovens ainda, em busca do sonho de fazer a vida no sudeste, no

Rio, em São Paulo. Era meio que sina se tornar um dia migrante. Também precisei

viver a minha. Também sonhei com ela por muito tempo e desejava que a sina

esquecesse de me levar com os outros. Aquele mundo tão feminino me deixou mole

de coração.

Nossa casa era de alvenaria, vovô tinha erguido antes de morrer. Mas como

tinha morrido antes que terminasse, faltava nela os acabamentos. Ao invés de portas,

cortinas, que vovó remendava incansavelmente em cima de uma máquina ve-lha de

costura. Talvez esse seja o som da minha infância, o som da máquina de costura, dos

pés delicadinhos de minha avó cosendo, cosendo... Thiqui...thiqui...thiqui... Eu

também tive uma avó proustiana.

Um dia cheguei em casa e não encontrei mais aquele som. Sabia que o

inevitável tinha acontecido. Mamãe chorava na cozinha catando feijão. A infância

pobre tinha ficado ali mais pobre ainda. Ela disse, seca como a carnaúba: o almoço

atrasou, sua avó tá doente.

Quem tem medo de assombração? Emanuel narra que cresceu ouvindo estórias,

lendas de assombração, de fantasmas e almas penadas...

A cidade de São Luís, a Upaon-açu, terra natal de Emanuel, ainda hoje é freqüentada

por muitos mitos de assombração e encantamento. Diz certa tradição que as crianças que lá

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nasceram foram batizadas por águas doces e salgadas, nas águas de um mundo ilimitado de

lendas, causos, estórias, são filhos da pororoca, são filhos da ilha e de suas águas mornas -

entre o sal do profano e o doce do sagrado, entre o doce do profano e o sal do sagrado.

A ilha é o círculo. Está a ilha cercada de águas, uma casa de águas. A ilha é o lugar

onde podemos nos recolher do mundo e é um lugar fora do mundo também. Robinson

Crusoe tentou civilizar sua ilha, mas vou desafiado pela companhia de Sexta-feira. Na ilha

da utopia de Thomas More, aquele lugar onde todos podem ser livres para bem viver o

prazer e a alegria, onde seus habitantes trabalham coletivamente e há acesso à educação e

todos se preocupam com ela, esse ou-topos, esse não-lugar poderia bem ser a ilha de

Emanuel - a ilha que fica na América e que fica no Brasil. Em 1907, escreveu o poeta russo

Maiakóvski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.”

Memórias de Emanuel, “um homem feliz”:

A minha alegria que faz parte do meu jeito de ser foi que primeiro me

influenciou pro caminho da arte. Eu queria ser artista ou alquimista. O artista porque

criança eu ia com minhas irmãs pras rodas de tambor do Madre Deus. E via minhas

irmãs e primas dançando, rodando e quando elas se distraiam lá tava eu no meio da

roda: _ sai menino! Que isso é coisa de mulher! Vai aprender a tocar o tambor! E eu

aprendi a tocar o tambor e também a matraca com Seu Geraldo e ia pra

apresentações de tambor e de boi que nem “pinto no lixo”, numa só felicidade. Eu

não precisava de muita coisa pra ser feliz, não preciso até hoje. Eu me alimento da

arte das ruas, eu participo desses movimentos, eu vivo a arte, eu respiro arte. Ah, o

alquimista. Um dia o povo tava reunido vendo o fantástico, me lembro como hoje,

era 1974, eu como meus 13 anos vi aquele sujeito da minha cor, de óculos como eu,

cantando na televisão. E ele dizia: “Os alquimistas estão chegando... Eles são

discretos e silenciosos/ Moram bem longe dos homens/ Escolhem com carinho a

hora e o tempo/ Do seu precioso trabalho....” Ah, eu descobri com Jorge Ben que eu

queria ser um alquimista, um artista alquimista. Eu já gostava muito de João do

Vale, mas aquele camarada, Jorge Ben Jor agora, né, fazia um som que eu também

queria fazer. Daí veio o violão, os outros instrumentos de percussão, a verdadeira

arte do tambor que comunica, que bate como o coração da gente... E vieram as

histórias porque eu gostava de inventar coisas, lorotas, gostava do lendário

maranhense e das figuras das lendas, Ana Jansen, Jaçanã, Catirina, Janaína...

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Janaína, Ana Jansen, Jaçanã e Catirina. Deu até um samba, rapaz. E aí veio a

contação das lendas e vieram as lendas que eu musicava.

As lendas maranhenses, as narrativas orais como as de Trancoso141, que fazem parte

do patrimônio cultural do Maranhão, trazem de um lado as estórias tradicionais, e do outro,

a reinvenção das estórias, ou seja, as reinvenções contínuas do lendário. Isso fez e faz da

cultura popular maranhense um campo fértil para a arte da ficção que, ao aliar o inventado

aos fatos históricos, nos permite uma reinterpretação do quanto há de épico, de mitológico,

de linguagem mimética do real na ficção e o quanto há de linguagem mimética do

imaginário na representação do que convencionamos chamar realidade de mundo. Onde

encontraríamos tamanha liberdade de expressão do humano se não na arte, na cultura, na

ficção, no fantástico, no fingir? As crianças sabem bem disso, até porque não se cansam de

acrescentar novos “pontos” às histórias e assim o fazem pelo uso de múltiplas linguagens do

pensamento simbólico e do registro desse pensamento simbólico.

As crianças não se cansam de ser artistas e alquimistas. Infelizmente essa linguagem

que, no plano da insensibilidade, pode figurar “sem sentido” é em si mesma o fazer sentido,

que também é um fazer sentido para a vida. Essa teia de significância vai sendo perdida

pelos excessos de uma determinada escolarização que falha ao excluir da brincadeira, do

jogo lúdico, a invenção, a experiência de aprender pelo “fantástico”, pelo viés do mítico-

poético e de tudo aquilo que não deveria e nem precisaria ser explicado.

Infelizmente esse material maravilhoso que é próprio da literatura tradicional acaba

sendo descartado, sofrendo interdições, controles, porque o encantamento, o riso, a

invencionice subvertem a lógica nas relações de poder que só hierarquizam e empobrecem a

experiência com a literatura. Na defesa dessa literatura encarnada e com a preocupação, que

lhe era constante, com a aprendizagem da linguagem oral e escrita pelas crianças, disse a

educadora e poeta Cecília Meireles (1979):

A Literatura Tradicional apresenta esta particularidade: sendo diversa em cada país, é a mesma no mundo todo. (...) Se cada um conhecer bem a herança tradicional do seu povo, é certo que se admirará com a semelhança que encontra, confrontando-a com a dos outros povos. (...)

141 Ver RONDELLI, Beth. O Narrado e o Vivido. O processo comunicativo das narrativas orais entre pescadores do Maranhão. Rio de Janeiro: FUNARTE/IBAC, Coordenação de Folclore e Cultura Popular, 1993. prêmio Silvio Romero, 1999.

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Em todas as grandes vidas, esse elemento tradicional aparece como raiz profunda, que penetra igualmente o solo da pátria e o solo do mundo; que vem da infância de todos, e concorre para essa fusão do individual no coletivo, do coletivo no individual, essa identificação do homem com a humanidade. (...)

Por esse caminho, recebe a infância a visão do mundo sentido, antes de explicado; do mundo ainda em estado mágico. Ainda mal acordada para a realidade da vida, é por essa ponte de sonho que a criança caminha, tonta do nascimento, na paisagem do seu próprio mistério. Essa pedagogia secular explica-se, em forma poética, fluida, com as incertezas tão sugestivas do empirismo, o ambiente que a rodeia, - seus habitantes, seu comportamento, sua auréola.

Vagarosamente elaborada, pela contribuição de todos, essa literatura possui todas as qualidades necessárias à formação humana. (p. 64-66)

Vejo ainda bons professores preocupados em pormenorizar, decifrar trecho a trecho

os livros que trabalham com seus alunos, como se as crianças e até mesmo os jovens e

adultos fossem incapazes de pensar por si mesmos e interpretar à sua maneira o que lêem

nos livros ou ainda o que escutam nas contações de estórias.

“O que o poeta quis dizer?” Quando uma pergunta como essa aparece numa

avaliação de literatura podemos notar que aí se deu o esquecimento de que só há arte na

liberdade, a liberdade de pensar, de criar, de interpretar, afinal de ser a arte a própria arte,

imprópria arte talvez para alguns. E a literatura, o que é? Por isso mesmo deve ser muito

difícil tentar controlar o incontrolável, colocar margens na transgressão, arreios no selvagem

da língua, acreditar que é preciso explicar de uma única maneira o que é plurissignificativo e

o pior, tentar criar absolutos que tentam dogmatizar o que é de natureza permissiva.

O universo da literatura é vasto e está sempre em expansão. Então não será com

“receitas” práticas e insipientes, sem sabor, sem alquimia, que conseguiremos ampliar o

gosto pela leitura literária na escola. Nesse sentido pode ocorrer uma distorção da

finalidade, pois a literatura não pode “servir” a um método, não pode ser encarada como

uma doutrina. Ela é, sobretudo, exploratória e nesse caminho se expande para o campo das

significações. E no trabalho com a literatura que envolve crianças pequenas é fundamental,

mesmo parecendo lugar comum: “dar asas a imaginação”, asas a quem já nasceu sabendo

voar.

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Cazumbá142 e a Cidade dos Azulejos

Azulejos de São Luís. 143

...um livro, uma página de livro apenas, por menos ainda, uma simples gravura em um exemplar antigo, herdado

talvez da mãe ou da avó, poderá fertilizar o terreno no qual a primeira e delicada raiz desse impulso começa a se

desenvolver.

Walter Benjamin

Memórias de Emanuel:

Sim, eu posso lembrar, mas perdi meu pai tão cedo que parte do que eu me

lembro se confunde com parte de invenção. Às vezes penso que ele foi somente um

142 Cazumbá: personagem mascarado que personifica o espírito da floresta no folguedo do “bumba-meu-boi”. Paramenta-se com cores viva sobre armação que lhe aumenta os quadris, proporcionando-lhe requebros exagerados quando se movimenta. In.: MARTINS, José Ribamar. Pequeno Dicionário de Termos e Expressões Populares Maranhenses. Brasília:2008.

143 Acervo de Emanuel Reis.

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desses amigos imaginários, a quem eu recorria quando precisava ser mais forte, essa

exigência que jogam pro menino. Que sina! Homem não chora! Seja homem,

Nezinho! Seja duro! Não fraqueje, não pragueje! A vida é dura! A vida cobra!

Muito riso pouco siso. Sei lá de quando eu realmente me lembro, do que foi fato

acontecido, não sei. Acho que quase tudo que lembro dele veio através das falas de

minha mãe e avó, elas é que primeiro inventaram um pai pra mim. Ele era o

exemplo maior do que eu devia ser e do que eu não devia ser. “Esse menino parece

com o pai dele.” E essa frase era usada pra tudo. Era muita carga de

responsabilidade, ser homem ainda sendo menino. O retrato de meu pai ficava na

soleira da porta e eu me assustava com ele, meu pai olhando o tempo todo pra gente

como um deus pronto a ralhar a qualquer hora, lançando toda sua ira sobre nós.

Ficava com raiva dele, afinal tinha deixado a gente. Ficava com pena, um pobre

diabo, não tinha agüentado tudo aquilo, toda aquela vida, que eu também achava

pequena. Ás vezes eu também queria fugir como meu pai... Um herói? Um covarde?

Os dois num só. (...) Eu lembro, lembro de uma viagem pra Caxias, eu muito

pequeno ainda, saindo dos cueiros. Caxias, “a princesa do sertão” e que foi um dia

uma cidade muito importante na história do Maranhão. Cidade de heróis, da

Balaiada, já dizia minha mãe. Terra natal do poeta Gonçalves Dias, terra de Coelho

Neto e do positivista Raimundo Teixeira Mendes. “Minha terra tem palmeiras onde

canta o sabiá...” A Caxias do poeta romântico ficou para sempre nos versos dO

morro do alecrim. Poema que aprendi a recitar. E Caxias ficou assim como cidade

encantada da minha infância. Era pra lá que eu fugia no meu sonho acordado, minha

Pasárgada. Posso fechar meus olhos e assistir a cidade, como se ela passasse num

feixe de cenas, suas casas, sua gente. Nossa gente também. Quando li Dom Quixote,

não podia imaginar outro lugar que não fosse Caxias. Dom Quixote feito um

cazumbá, sertanejo, faminto em cima de um burro chucro... Dulcinéia morava em

Caxias!

São pedaços do meu pai, como se a memória fosse a cola entre os caquinhos

que eu tratei de juntar. Aí me vem uma ou outra cena mais viva, como numa certa

vez, ele abraçando minha mãe por trás, feliz, rindo. Ele se apertando todo junto aos

quadris dela. Fiquei em pé, colado na coluna da porta, espiando... Coisa boa espiar

os outros. Eu apertando a coluna. Ela, minha mãe, querendo meio fugir, mas não

querendo muito. Ele roçando a barba no rosto dela, ela se dobrando, rindo também.

“Pará, Messias, olha as crianças!” “Pará, homem...” Uma fala melosa, escorregada.

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Ele bulindo por debaixo da saia dela. Achei bonito de ver, gostei demais. Daí

apareceu Socorrinha já gritando. _Sai daí menino enxerido! Sai daí!

E quando estou sozinho, no meu silêncio, eu ainda vejo e escuto tudo isso,

todo esse lampejo de memória vem e me invade.

Com todos dialogamos. Diz Drummond. Até com o silêncio dialogamos. Até porque

o silêncio pode não ser sinônimo de estar sozinho e ao contrário do que muitos podem achar

é por vezes no silêncio que encontramos com as muitas vozes que nos habitam, as vozes

desse tecido humano que é a própria existência. Pois apenas no silêncio podemos encontrar

a mais densa reflexão do mundo, ampliando nossa capacidade de sentir com os sentidos

aguçados, de ouvir as palavras que há tempos ficaram pousadas no esquecimento. E é para o

silêncio que nos voltamos ora com um segredo íntimo ora com o desejo que não é falta.

Mas para ouvir essas vozes precisamos exercitar o ouvido de dentro, de uma escuta sensível

de mundo, lapidando a pedra, lapidando o instrumento. Ouvir de dentro o silêncio, o silêncio

por dentro. Sabendo, é claro, que tecemos e destecemos, feito uma moça tecelã, feito a

Penélope das nossas memórias. Por isso nossas reminiscências não poderiam pertencer

unicamente a um passado estático, hermético, feito a soma aleatória dos ossos guardados

numa nossa caixa oculta ou na caixa de relíquias do corpo santo. Da cultura da memória

nascem e saem todos os seres e todos os movimentos que lá habitam.

A reminiscência para além do movimento, da ação de lembrar está também no

contraditório que é misto de desprazer e prazer. E a arte chega nesse interstício para nos

alimentar a alma com a imaginação, com a ficção da realidade, com a fantasia. Como

viveríamos sem a fantasia?

Para além das conceituações, quando se trata de literatura, o imaginário e o real

seguem imbricados, se alimentando um do outro sem rastro de dicotomia. Eis que a tampa

de Pandora, misto de lembrado e vivido, se abre e, de dentro, delicadamente ou

visceralmente, a reminiscência que reside no movimento de lembrar se faz também ação de

imaginar. E da imaginação e de suas ondas, de seus ventos, de suas areias e suas chamas

nascem as reminiscências que imaginam o real. Mas é uma imaginação dialogada,

debruçada sobre um ponto do passado ou vários pontos do passado, um corpo não mais

adormecido de passado, um corpo que emerge de águas rasas ou profundas para não se dar

por perdido entre fantasmas.

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Por que lembramos? Por que é para o ser humano tão significativo buscar

explicações no passado para as ações do presente, até as mais rotineiras, dos hábitos

cotidianos? Por que simplesmente não deixamos o passado no passado, como baú de coisas

velhas, gastas, sem mais interesse?

Lembramos do passado porque precisamos entrar nele, corpo e casa, convidados ou

não, para nos lançar às escadarias de um sótão, com propósitos, às vezes já diluídos. E nos

pegaremos vasculhando, ávidos de velhas notícias, as mesmas gavetas, os mesmos armários,

os novos velhos esconderijos da alma. Porque dele - passado, nos lançamos à utopia do

futuro, à memória que queremos construir de futuro. De certo que evocando o passado não o

presentificamos, de certo que não seria um tema do desejo acordar abraçado aos velhos

fantasmas ou às sombras do que fomos. Por isso reinventamos o passado e das

reminiscências acordadas, erguemos da arquitetura dessa reinvenção as pontes, os pontilhões

para o que há de vir. Ponte, trânsito, passagem necessária ao caminhante e à travessia - que

é feita do que há de vida e morte em nós. Volte, volte para lá e me fale dos anos que

escolheu viver.

Pedro Nava, em seu livro Baú de ossos, nos alerta para a resistência à fruição

inexorável do tempo, não enterrar os ossos para deixá-los por perto, ao alcance das mãos,

como os ossos guardados nos baús. Há uma cidade proibida e imaginária que transforma em

ossos e sal nossas memórias. Com quantas cidades proibidas povoamos o nosso imaginário?

E nossa arquitetura imaginária das nossas cidades imaginárias? A Caxias descrita por

Emanuel é de Emanuel, porque ninguém mais viveu aquela cidade daquela maneira.

Somente ele viu Dom Quixote, um cazumbá sertanejo, um homem faminto adentrando

aquela cidade a fim de enfrentar moinhos de vento. Parte da originalidade da obra literária

está na apropriação que o leitor toma pra si reescrevendo o lido. Dom Quixote é um

personagem de Cervantes. O cazumbá é um personagem do folclore maranhense. E eles se

unem para formar um terceiro e único personagem híbrido, fruto da imaginação

memorialística de Emanuel.

A narrativa memorialística pode muitas vezes ganhar os tons de epopéia, ao misturar

lenda e a realidade real. Ao contar os feitos e o legado de um povo, de uma cidade através

dos seus heróis. E essa narrativa surpreende não pelos fatos que ocorreram, mas, sobretudo

pelo que poderia ter ocorrido ou do ocorrido no mundo imaginado. A isso chamamos

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criação, reinvenção da memória. Esse laço que liga os pontos do desenho que queremos

compor e que reúne de forma inusitada pedaços de gente, de cidades inteiras. Laços de

memória não são como nós, porque os nós nos prendem. Os laços têm um quê de

afrouxamento e assim seguram por pouco tempo o volume que inexoravelmente os libertará

um dia a fim de que se possibilite novos encontros, novas significâncias, outras

permanências provisórias de memória. E a importância que há na província. Penso que é no

reconhecimento da província que o homem dialoga com o universal. De quantas províncias

precisamos para contar a nossa história? Províncias existenciais, províncias imaginárias,

terras da utopia – essa utopia que carecemos para andar um pouco mais adiante.

É uma busca ontológica recompor o que foi passado. Emanuel volta ao círculo e ao

centro de sua fabulação, percorrendo numa multiplicidade de vozes o que elas dizem das

perdas, dos sonhos, dos encontros e com esse “retorno” cria imagens que agregam -

passagens coletivas à lembrança viva de um menino e à uma cena regida por Eros, deus

grego do amor. E nesse encontro da narrativa, puer (a criança) e senex (o velho) se

encontram. Porque ambos tecem a mesma teia memorialística. Um senex segue de braços

dados com um puer a visitar reminiscências, o sábio encontra e não despreza a sua criança.

Eles se aconselham e seguem de mãos dadas pelo caminho. Permanecendo os dois num elo,

habitantes de sentimentos que se integram, compartilham de sonhos, angustias, toda uma

trajetória humana pelo mundo, longe de qualquer possibilidade de empobrecimento forjado

por pensamentos preconceituosos ou maniqueístas que tratam de separar, apartar o que só

faz sentido ser for vivido e narrado “junto com”.

Emanuel:

No final da década de sessenta, antes de ir para escola, já com meus oito

anos de idade, foi numa mesinha velha de fórmica que eu tive o meu primeiro

encontro com as letras. Ah, os meus oito anos! Fui alfabetizado primeiro por minha

tia Emília que tinha acabado de chegar de Recife. Depois ela também alfabetizou

Eliseu e Ledinha.

Irmã mais velha de meu pai, enfermeira, a primeira com um diploma na

família, minha tia foi mãe de muitos sem nunca ter sido mãe de um filho seu.

Elegante, alta, sempre bem alinhada, de calça comprida, pele muito alva, “cabelos

pretos como a noite”. Tinha uns olhos verdes tristes, os olhos de peixe morto mais

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bonitos que eu vi na vida. Ela era um tipo muito diferente pra São Luís. Aquela

altura, aquela pele... Dobrava sempre as pernas de um jeito só dela e isso nos fazia

pensar que ela realmente tinha saído de um daqueles filmes estrangeiros. Se bem que

filme estrangeiro eu só fui ver mesmo na adolescência. Um tipo físico incomum

entre nós. A tia era a nossa bela. Mas só que nunca a espera de um príncipe, porque

era uma princesa que não gostava de príncipes. Por isso mesmo na sua mocidade foi

perseguida. Tão bela e diferente! Acho que por isso as futriqueiras queriam devorar

seu coração. A tia era ousada sem nunca ser arrogante e fazia o que lhe dava na telha

porque era assim mesmo. Foi a primeira pessoa livre que conheci. Não que eu tenha

conhecido muitas... Sobre aprender a ler, o interessante é que me alfabetizei pela

velha cartilha do B A-BA, repetia, repetia tudo, ia brincando com os pedaços das

palavras e repetia e tentava rimar. Veio daí o interesse pela literatura de cordel que

nós, Eu e Eliseu, passamos a devorar. No meu entender nascia assim, naquele lugar

sem nenhum adereço, o que considero como um dos mais bonitos períodos da

minha vida e isso eu sempre gosto e vou gostar de lembrar. Se eu tivesse que resumir

em poucas palavras esse início da minha vida, eu diria que ele foi feito da minha

vontade de aprender a ler e da vontade de tia Emília de me ensinar a ler. O primeiro

método de aprendizagem que tive contato foi esse. O primeiro livro de histórias que

ganhei foi de tia Emília, o primeiro e os outros que vieram depois já na adolescência.

Quando ela se mudou para Recife de vez, foi a mim que entregou o que disse ser

uma fortuna. “Venha cá, Emanuel. Isso aqui vai ficar pra vocês. E esse livro aqui em

especial eu quero que você leia logo, porque Monteiro Lobato é uma das maiores

riquezas desse país.” E quando li Monteiro Lobato descobri então que a tia Emília

tinha sido era inventada por ele. Era isso. Eu soube logo.

A narrativa memorialística de Emanuel nos faz pensar na “amplivalência” da

nossa natureza humana e no espaço de ressignificação que há no lembrar. É por isso que

entrelaçando todos os fios que foram usados nesse tapete mágico de memórias, para

começarmos a destecer essas lembranças, esses memoriais, nos lançaremos ao começo de

tudo, de novo, de novo, às memórias que um dia uniram a vida de menino, a vida escolar de

Emanuel à sua arte docente e à alquimia da sua existência.

Nasci e me criei, me criaram, por bom tempo no Madre Deus. Estudei

naquele tempo na única escola municipal de lá. Tive apenas uns dois professores que

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ficaram na memória, os outros se perderam. E fazendo essa regressão é realmente

pouco o que consigo trazer dessa memória de escola, do convício com os

professores. Lembro muito mais da rua, das ruas daquela época de infância, das

brincadeiras de rua, das festas. A imagem que me vem à memória, a lembrança mais

viva de escola está muito mais relacionada aos colegas de turma e aos espaços da

escola, do prédio, de um pequeno pátio, do portão de entrada... E saída, é claro... Os

detalhes do prédio. Sou capaz de lembrar de rachaduras nas paredes, da pintura

falhada de cal, da pintura gasta da sala de aula, num azul claro. Lembro de figas de

madeiras no teto. Do meu primeiro grau lembro pouco, não fica claro pra mim o que

realmente aprendi. A literatura também aprendi a gostar primeiro fora da escola. A

arte como um todo, a música, os tambores, as lendas... Tudo me veio pelas mãos das

ruas, da casa, da família, das mulheres da minha família. Não querendo desmerecer

essa escola, mas pra mim, na minha infância, a rua era um lugar de encontro,

encantamento, interação e aprendizagem que me instigava mais que a escola. Na

verdade, eu vivia fugindo da escola, não fui a representação do “bom aluno” que a

escola e os professores esperavam. Fui suspenso e expulso. Tive problemas de

indisciplina, problema de bicho carpinteiro, de curiosidade excessiva. Era

mexeriqueiro, tava sempre futucando um negócio aqui, fazendo um som com uma

lata, uma caixa, o que pintasse na mão virava uma possibilidade de som, de

instrumento. Comento isso hoje com os meus alunos e muitos se reconhecem em

mim. Hoje trabalho em duas escolas públicas na periferia da ilha e tenho muito

orgulho disso. Trabalho no movimento folclórico da cidade como arte-educador,

trabalho nas ruas com os meninos e as meninas que precisam de literatura, de

música, de arte, que precisam de tudo, sabe, de boa alimentação, boa escola,

condições melhores de vida, de paz, amor e que precisam também de muita

orientação, porque sofrem violência doméstica, praticam violência também. Não sei

dizer que marcas positivas ou negativas a primeira fase de escola me deixou, mas sei

o que eu carrego dessa tradição como instrumento pro meu trabalho hoje. No ensino

médio isso ficou mais claro. Na minha vida, o ensino médio foi uma mudança de

paradigma. Foi aí que eu redescobri de vez a literatura, a que tinha começado lá atrás

com os livros de Monteiro Lobato e com a literatura de cordel. As duas faces ou as

múltiplas faces de uma literatura que parecia estar meio morta, mas que foi reativada

dentro de mim com uma força extraordinária.

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EPÍLOGO

Khyl-khor ou Mandala Tibetana. 144

(...) as mandalas não provêm dos sonhos, mas da imaginaçãoativa (...) As mandalas melhores e mais significativas são encontradas

no âmbito do budismo tibetano [...] Uma mandala destetipo é assim chamado “yantra”, de uso ritual, instrumento de

contemplação. Ela ajuda a concentração, diminuindo o campopsíquico circular da visão, restringindo-o até o centro.

Este centro não pensando como sendo o “eu”, mas se assim sepode dizer, como o “si mesmo”. Embora o centro represente,por um lado, um ponto mais interior, a ele pertence também,

por outro lado, uma periferia ou área circundante, que contémtudo quanto pertence a si mesmo, isto é, os pares de opostos,

que constituem o todo da personalidade. (C. G. Jung 2002, p. 352)

144 Disponível em http://www.salves.com.br/mandala.htm.

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Não voltamos ao passado, nos abraçamos, nos envolvemos com ele no presente. Ou

ainda somos por ele surpreendidos – com as suas cores, as texturas, com seus odores que

exalam dos armários da casa da memória e dos corpos que nela transitam, nos obrigando a

exercer nossos sentidos. E é a memória com sua seletividade que agrega todos os sentidos

dentro de si. A memória é a junção de todos os sentidos. Mas isso não faz dela um arquivo

esquecido, inerte aos acontecimentos e a imaginação, ela é ainda muito menos um depósito

morto de lembranças. Embora nossas imagens de passado estejam associadas aos lugares

fechados, geralmente aqueles que estão dentro da casa ou pertencem a casa, como caixas,

baús, sótãos e porões. Esses lugares que nas estórias, nos contos e nos filmes aparecem

habitados por fantasmas para capturar as nossas almas, são desses lugares também que,

paradoxalmente, olhamos de fora o dentro para libertar as nossas almas. Esses lugares

pertencem ao nosso pensamento, aos nossos corpos, esses lugares que refletem o nosso

Inconsciente é que vão dizer muito da nossa personalidade.

Mas se o passado só assombra o presente, se no presente há sombra do passado não

deixa o sopro de futuro pressentir, então o que só-tão, sova, sanha noturna, precisará

reconhecer uma passagem para o esquecimento. Esse trabalho subjetivo da memória,

selecionando os bilhetes das viagens que intenciona fazer, não é feita de trajetos lineares,

nem tampouco será garantida a ausência da dor, da perda ou dos danos. Em se tratando das

memórias dos seres humanos, não conseguimos ainda encontrar, na nossa

contemporaneidade, uma solução coerente e viável que aparte do joio o trigo da memória. E

enquanto não houver a pílula do esquecimento, a pílula já pensada por Monteiro Lobato nas

histórias da carochinha, cada ser humano de forma original viverá a sua “lavoura arcaica”, o

seu voltar para casa, para a pátria perdida, para o ventre da natureza, para a mesa do pai que

está sentado a cabeceira. O pai que é tempo, o tempo de viver, o tempo de morrer, o tempo

do mito.

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor; embora inconsumível, o tempo é o nosso melhor alimento; sem medida que o conheça, o tempo é, contudo nosso bem de maior grandeza: não tem começo, não tem fim; é um pomo exótico que não pode ser repartido, podendo, entretanto prover igualmente a todo mundo; onipresente, o tempo está em tudo; existe tempo, por exemplo, nesta mesa antiga: existiu primeiro uma terra propícia, existiu depois uma árvore secular feita de anos sossegados, e existiu finalmente uma prancha nodosa e dura trabalhada pelas mãos de um artesão dia após

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dia; existe tempo nas cadeiras que sentamos, nos outros móveis da família, nas paredes de nossa casa, na água que bebemos, na terra que fecunda, na semente que germina, nos frutos que colhemos, no pão em cima da mesa, na massa fértil dos nosso corpos, na luz que nos ilumina, nas coisas que passam pela cabeça, no pó que dissemina, assim como em tudo que nos rodeia.145

A vida de um ser humano simplesmente não pode ser reduzida a uma coleção de

fragmentos aleatórios, porque ela é uma narrativa única e insubstituível, como a íris dos

seus olhos. Cada um de nós é uma história, apesar de sermos bilhões espelhados pelo mundo

e apesar da teoria de alguns catastrofistas que dizem sermos uma multidão de

insignificâncias caminhando para o fim. Nonada146.

Quando pensamos na memorialística e na escrita poética e literária,

imediatamente nos desviamos. Somos seres desviantes, como nos alerta Sartre. Não há

literatura a não ser no desvio, no abismo da alma, nas entrelinhas do coração. São os

fragmentos do meu pai, como se a memória fosse colando os caquinhos que eu colecionei.

Parafraseando Emanuel. A memorialística se banha com essas reminiscências e as palavras

se tornam acesas. Acendem a luz daquele cômodo que havia sido fechado por falta de uso.

E como em dia de festa no interior, como em dia de procissão, tudo vai se iluminando dentro

da escuridão, com o acender de velas e outras lâmpadas que por sua vez acendem os lugares

e os fazem aparecer, acendem as pessoas que vão trazendo outras pelas mãos, outras

pessoas, outros lugares, outras paisagens. Mas a luz não existiria sem a presença da

escuridão, das sombras, das trevas. São elas que nos fazem compreender e ver a luz.

Escuro e iluminado, por entre névoas e contradições, o fluxo memorialístico se

instaura para compor surpreendentes cenários numa temporalidade circular e espiralada. E a

memória é a grande roda onde todos giram e tudo gira, numa alternância de lugares, indo do

centro para as extremidades, das extremidades para o centro como nas “giras” do tambor de

crioula ou no giro da ala das baianas dos nossos carnavais - grandes mandalas humanas.

Nas “giras” das reminiscências, o fluxo memorialístico segue criando cenários como num

caleidoscópio. E de quantos espelhos precisamos para nos ver como devir? Quantos

momentos cabem em cada imagem refletida de espelho?

145 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 1995, p.54-55.146 Uma palavra arcaica trazida por Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas. “Não é nada”.

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O rememorar se dá como uma teia de referências, onde cada ação e cada escolha do

presente é uma ação\escolha desencadeada a partir de outras ações\escolhas que a

antecederam. Se as ações\escolhas que fazemos no presente estão condicionada às ações\

escolhas pretéritas, nos tornamos então os maiores responsáveis por elas. E assim vamos

objetivando nossa subjetividade nos objetos externos e em todo simbólico que eles

representam. E nenhum desmame poderá ser tão doloroso quanto o que diz respeito às

fantasias que compomos do passado. Porque o passado também pode se forjar com uma

dimensão pessimista da existência e se a realidade vivida se tornar insuportável ou se nela

encontrarmos tão grave sofrimento, uma dor de existir com a qual não sabemos lidar, é

muitas vezes no passado imaginado que buscamos reorganizar nossa motivação para

continuar vivendo. E é no passado, muitas vezes no plano do inconsciente, que buscamos

encontrar significações para a existência no presente.

As memórias ilusórias nos alimentam com sua abundância de imagens e somos por

elas reinventados também. Sendo assim, as narrativas das nossas memórias poderão se

tornar muito mais um lugar de fantasia que um lugar de pacto com o real vivido. E mesmo o

seu registro é uma re-interpretação, uma ressignificação da experiência de passado.

A memória de infância, aqui nomeada como memória proustiana foi pensada como

uma memória poética ou poética da memória, porque a criança que vive dentro de nós é o

poeta que pode nos faz olhar como primeira vez o já visto e o já vivido - sem banalizar ou

descartar as imagens que dessa memória emergem. Com olhos da infância somos capazes de

olhar os movimentos criativos da humanidade e do universo sem entraves, sem antolhos

quaisquer. E fazemos isso com os olhos de dentro mais do que com os olhos de fora, nas

nossas reminiscências também estão olhos da imaginação e por isso mesmo esse olhar nos

privilegia com horizontes numa visão que enxerga no passado uma possibilidade de

reinvenção.

O fluxo da memória coletiva ou memória polifônica foi trazido pelos fios e tecidos

narrativos das memórias vividas e até mesmo lembradas coletivamente através da arte e da

cultura popular. Essa memória mítica que reacende pelas manifestações coletivas o fogo

ancestral e todos outros elementos da nossa identidade cultural.

Dessa forma, foi através das narrativas literárias dos professores que me empenhei

numa busca poética de reflexões sobre a esperança, aquela que resistia no espírito daqueles

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que tiveram sonhos estraçalhados, infâncias difíceis, e que apesar de, aprenderam do afeto,

da reparação, do amor “à arte literária”. E essas narrativas nasceram das evocações da

memória através das reminiscências enquanto poiesis e não sob a exegese da memória pela

memória ou na defesa de uma arqueologia do passado, mas sim numa tentativa palimpsesta

de criar uma perspectiva literária-memorialística, isso para tentar compreender o que essas

evocações traziam em seus meandros de ficção, de imaginário popular. Por isso dei ênfase

ao longo da pesquisa a “outras possibilidades de ambiências com a literatura” em sala de

aula. Essas apareceram nas narrativas literárias e na articulação com a prática da leitura, da

escrita e da oralidade unidas às narrativas memorialísticas de vida.

A narrativa foi tratada neste percurso como reinvenção de si na composição da

história narrada na História humana, propondo, implicitamente, a recuperação da memória

singular e coletiva como possibilidade de transformação social, sem ter que para isso cair

nas ilusões ingênuas de um ufanismo patriótico. E este artesanato inconcluso não buscou

encontrar soluções para as possíveis falhas na escolarização da literatura; porém, em suas

entrelinhas, poderá ser lido e compreendido toda a problemática que envolve essa

escolarização juntamente com um pensar sobre a perda da memória individual e social

conflitando essa perda com a cultura massificada, com o vazio do sem sentido. Essa

compreensão se deu, ao longo da pesquisa, como uma preocupação em preservar, até com

certo zelo, a memória mitológica, que não ainda perdeu a faculdade de criar lendas e mitos.

Assim, penso que neste trabalho a narrativa memorialística trabalhada entre o real e o mítico

deixa também seu legado: um olhar diferente sobre a prática docente, sobre a escolarização

da literatura. Propondo o que se poderia chamar de arte docente, que faz com professores e

alunos se revezem, cúmplices, na guarda de uma memória brasileira, que aposta todas as

esperanças, desejos, lutas - na educação, e sua aposta diametralmente se apóia na política e

na arte, na literatura que pode abraçá-las. Essa imersão me leva a crer que através de quem

somos e de quem já fomos, seremos ainda mais – humanamente felizes.

Vivemos diariamente numa profusão de pensamentos e sensações que podem nos

chegar pelas mais diversas possibilidades de sensibilização do corpo ou ainda pelas

ondulações da alma. Mas para isso precisamos exercitar os nossos sentidos para que eles

também não morram, não deixem de existir. Precisamos exercitar o olhar através da criação

de novas metáforas visuais, novas imagens do mundo. Precisamos exercitar o nosso olfato

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para sentir o aroma que faz da rosa uma rosa. E não é uma quimera uma aprendizagem que

valorize o sensível que há na condição de ser humano. Por isso defendemos que é preciso

positivar uma escolarização da literatura pela linguagem do afeto com ações amorosas para

lidar assim com as delicadezas que existem no outro.

Pela voz da poética de Bartolomeu de Campos Queirós147 compreendemos que:

Por meio dos sentidos suspeitamos o mundo (...)Olhar dói.(Se vemos alguém chupando limão,sentimos dores no canto da boca.)

Mas enquanto vemosNós sonhamos com nascimentos.

Olhando,imaginamos mistérios.

Olhar é fantasiarsobre aquilo que está escondidoatrás das coisas

Quando olhamosnós acordamos alegrias, tristezas,saudades, amores, lembranças,que dormem em nossos corações

Os olhos têm raízes pelo corpo inteiro.

E para onde vão as histórias que não tivemos de tempo de contar? Não se

preocupem, caros leitores, elas permanecerão a espera de alguém que apareça para acordá-

las, alguém de um tempo novo. Os filhos, os netos, um aprendiz, uma memorialista, uma

poetisa, uma contadora de histórias, um cronista, um alquimista.... Eles nos acordarão do

tempo do esquecimento e nossas vozes seguirão com eles – na vida, na literatura, na

“história” – sem querer ofender.

El tiempo es un problema para nos outros, um tenebroso y exigente problema, acaso el más

vital de la metafísica; la eternidad, un juego o una fadigada esperanza.

(Borges, Jorge Luis in Histoira de la eternidad)

147 Poema: Os cinco sentidos. In: “Os cinco sentidos”. Ed. Miguilim,1999.

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Anexos...

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Deixa-te levar pela criança que foste.

(O Livro dos Conselhos)José Saramago

Tese: Narrativas Memorialísticas:

Por uma arte docente na escolarização da literatura

Patrícia Porto

Imagens e Narrativas

Entrevista (ou conversa) semi-estruturada realizada com os professores.

Nome:Formação (graduação):Tempo de formação:

1 - Que “imagem” você escolheria para significar a sua trajetória profissional? (Ex: Leão... Um caminho... Uma árvore...) - (imagem)

2 – Qual “palavra-símbolo” você escolheria para a sua trajetória profissional? Você poderá dividi-la em fases se quiser. (imagem)

3 – Você poderia narrar alguma memória significativa da infância relacionada às primeiras leituras? Como contaria a história da sua formação de leitor? Que livros marcaram a sua infância? (narrativa)

4 – Uma memória significativa da infância relacionada à escola e professores? (narrativa)

5 – Uma memória significativa relacionada à família (pode estar ou não relacionada à leitura literária)? (narrativa)

6 – Você tem uma memória significativa da infância relacionada à contação de histórias? Quem lhe contava histórias? Quais histórias lhe contavam? (narrativa)

7 – Consegue narrar uma memória significativa da sua trajetória profissional relacionada à vivência com a literatura em sala de aula ? (narrativa)

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8 - Que tipo brincadeiras você fazia na infância? Com quem brincava? Conte uma travessura, uma  experiência desse tempo. 9 – Qual foi a escola que marcou a sua infância, a professora, o professor que mais lembra?

Tese: Narrativas Memorialísticas:

Por uma arte docente na escolarização da literatura

Fontes: Cultura e representações do “ser brasileiro”

Affonso Celso

Porque me ufano de meu país

“Ousa muita gente afirmar que ser Brasileiro importa condições de inferioridade. Ignorância

ou má fé: Ser brasileiro significa distinção e vantagem”.

Gilberto Freire

Não tem discurso específico sobre o caráter do brasileiro. Mas são relativamente

abundantes suas referências a qualidades psicológicas do brasileiro:

A)A Luxúria: conseqüência da escravidão, não do negro. Sobretudo originada do próprio

português (... “A mesma coisa do Brasil, onde esse erotismo lusitano só fez encontrar

ambiente propício nas condições lúbricas da colonização. A maior delícia do brasileiro é

conversar safadeza” Casa Grande... V.I , p. 483)

B)Tolerância e a adaptabilidade, notadas na aceitação de técnicas ou processos indígenas, na

convivência com os escravos.

C)O gosto pelo jogo: Os jogos infantis, de arremedo de animais, seriam resultantes de

hábitos indígenas, “O próprio jogo de azar, chamado de bicho, tão popular no Brasil,

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encontra base para tamanha popularidade no resíduo animista e totêmico da cultura

ameríndia reforçada depois pela africana”. Casa Grande ... V.I , p. 273

D)A simpatia, a cordialidade: Gilberto Freire descreve esses traços como particularmente

notáveis no mulato, mas atribui sua origem a fatores sociais (ascensão sócia) e não raciais.

Sobrados e mocambos. V.II; p. 1060.

E) A simpatia, a cordialidade: Gilberto Freire descreve esses traços como particularmente

notáveis no mulato, mas atribui sua origem a fatores sociais (ascensão social) e não raciais.

Sobrados e mucambos. V.II p. 1060.

Arthur Ramos

1) O culto da palavra: “É uma sobrevivência da mentalidade primitiva no primitivo, o

pensamento está ligado intimamente aos símbolos concretos”, Por isso o primitivo fala por

gestos, com mímica exuberante o brasileiro tem tendência a esta dispersão verbal. Nossa

história está cheia de discursos empolados, onde a idéia é sacrificada á forma; nem é por

outra razão que as nossas figuras mais representativas sempre foram discursador. A fórmula

verbal é sagrada, e chegamos a confundir o decreto com o fato realizado. “Há uma

confluência do pensamento imaginativo e realístico, pelo poder mágico concedido às

fórmulas verbais”.

2) O culto do doutor e a caça ao diploma: No Brasil, o objetivo dos estudos não é a

aquisição do saber, mas a do diploma e do anel, por qual quer meio possível. “Sobrevivência

do amor primitivo aos enfeites, os adornos, símbolos de poder e de dominação”.

3) Primarismo, autodidatismo, narcisismo: Estas três características estão intimamente

ligadas. Como não há orientação eficaz no ensino superior, o indivíduo deve despender um

enorme esforço para adquirir cultura, lendo tudo, sem seleção, “O autodidatismo reforça, no

Brasil, aquela percentagem de narcisismo, que é quase generalizada entre nós”.

Nas ciências e nas artes, os autodidatas tornam-se “donos de assuntos” e por isso,

inatacáveis.

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Na administração, o narcisismo é responsável pela descontinuidade da vida

administrativa, pois cada um nega a obra do seu antecessor. “Esta é a história psicológica de

nossas reforma sucessivas, e das soluções de continuidade de nossa vida cultural”.

4) Culto das coisas concretas: “Entre nós, ainda é ciência apenas aquilo que vê, as coisas

tidas como positivas ou reais”. Ainda uma modalidade do pensamento positivo primitivo

que pensa em imagens reais ““.Isto explica que apenas médicos e naturalistas sejam

considerados cientistas no Brasil “. A psicóloga e a sociologia, apenas função de

cartomantes”.

5) Totens estrangeiros: Temos vivido o culto da “Última moda”, em ciência ou literatura.

Assim, as teorias são refutadas em nome de autoridades estrangeiras, ou como fora de moda.

Por isso, se atribui tão grande importância às viagens de estudo ao estrangeiro. “O culto da

última geração”. É ainda uma sobrevivência pré-lógica: o que vem por último é que é

verdadeiro.

6) “Indoctrination”: Muitos setores do pensamento brasileiro estão hoje.

“Discurso pronunciado no salão nobre daFaculdade de Direito de Recife, no atoSolene de colação de grau dos bacharéis Formados em Direito, em 1913, pelo oradoOficial da turma Dr. Herrman Byron de AraújoSoares (de alagoas)” .

Os ingleses, os norte-americanos, descendentes de outra raça, são povos

predestinados às grandes conquistas do universo, o mesmo já não se pode dizer do Brasil.

Colonizado por portugueses, povo em decadência, e nessa fusão com a raça indígena, de

uma indolência que não padece contestação, apesar de uma perspicácia, e com esses

infelizes vindos da áfrica, num trafico nojento de carne humana, descendentes da raça negra,

desprestigiada de inteligência e caráter, como todos os filhos da Etiópia inculta, não pode

conquistar os mais altos graus de desenvolvimento, como a norte América.

“Todos os países, diz le bon, que apresentarem um excessivo número de mestiços

estão votados, só por esse motivo, á perpétua anarquia, desde que não seja dominado por

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mão de ferro. Tal será fatalmente o caso do Brasil; conta apenas com 1/3 de brancos, sendo

o resto da população constituídos de negros e mulatos”. “O célebre agassiz diz com muita

razão que basta ter-se estado no Brasil, para não se poder negar a decadência resultante dos

cruzamentos, continua ele, apagam as melhores qualidades, quer do branco, quer do negro,

quer do índio, e produzem um tipo indescritível, cuja energia, tanto física como moral, se

enfraquecem”.

Fernando Azevedo

A instabilidade econômica social e a fragmentação dos núcleos de povoação podem

explicar o sentido da cultura entre nós, considerada não como uma atividade prática ou um

valor moral, mas sinal de classe e distinção: “não é que faltasse ao brasileiro interesse pela

cultura a sua sensibilidade delicada e excitável, a sua inteligência vivaz, mais superficial, a

sua facilidade de adaptar-se ao mínimo de vida material e a sua própria tradição religiosa

não só lhe despertaram uma noção viva de subordinação dos valores materiais aos valores

morais, mas lhe trouxeram uma forte atração pelas coisas do espírito. Mas a nossa cultura é,

geralmente uma cultura literária de superfície”, ora, não foi apenas a tradição escolástica

portuguesa que nos manteve aferrados ao encontro da forma e as pompas da erudição. A sua

sensibilidade contribui para mantê-lo afastado da ciência e da filosofia. Que exigem uma

técnica severa e uma forte disciplina de pensamento. O brasileiro não apresenta vigor ou

penetração de pensamento, mas sim a facilidade, a graça, o brilho. Por outro lado, as

próprias condições de vida social não permitiam o desenvolvimento das ciências e da

filosofia, e o verbalismo pode perfeitamente transformar-se sob uma orientação diferente, o

que indica não uma inteligência fraca, mas uma inteligência mal formada.

Arthur Ramos

“Nós vivemos ainda em pleno domínio de um mundo mágico, impermeável, de uma

certa maneira ainda aos influxos de verdadeira cultura ”. Para afastar essa barreira devemos

“conhecer o substrato emocional que jaz nas primitivas capas estruturais da nossa psique”.

Sérgio Buarque de Holanda

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E possível distinguir dois tipos humanos: o aventureiro e o trabalhador, o primeiro

ignora fronteiras e obstáculos, vivendo de esforços ilimitados, dos projetos vastos, dos

horizontes distantes. As características do aventureiro são: audácia, imprevidência,

irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem e, sem duvida, foi este o tipo fundamental

na obra da conquista e colonização. Donde estas se terem feito por portugueses, espanhóis e

ingleses, onde o trabalhador encontrou ambiente menos propício:

“Essa ânsia de prosperidade em custo, de títulos honoríficos, de posições de riqueza

fáceis, tão notoriamente característicos do povo de nossa terra, não é bem uma das

manifestações mais ricas do espírito de aventura”. (p. 40)

O Homem Cordial

Sérgio Buarque de Holanda

Empregando uma expressão de Ribeiro Couto, diz que daremos ao mundo o “homem

cordial”: A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade... Representam, com efeito, em

traço definido do brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa a fecunda a

influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.

Mas esses caracteres não representam no fundo um aspecto de civilidade, mas indicam

fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Ao contrário da civilidade que antes

defesa do indivíduo que se preserva dos outros, a cordialidade nos leva a “viver nos outros”

através da vida em sociedade. Que não somos ritualistas, percebe-se pela nossa aversão à

reverência prolongada diante de superiores. O mesmo horror a distancia, que parece

constituir, ao menos até agora, o traço mais especifico do espírito brasileiro, pode ser

observado na forma intimista assumida pela religião católica no Brasil.

Quadro geral das características psicológicas indicadas pelos ideólogos.

Individualista – 4

Serviçal - 1

Sentimental – 4

Sem iniciativa – 1

Afeito a Ordem - 1

Indolente – 4

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Hospitaleiro – 4

Paciente - 1

Imita o Estrangeiro – 4

Longânime - 1

Cumpridor de Obrigações - 1

Neurastênico - 1

Conservador - 1

Tolerante – 4

Acessível – 4

Independente – 4

Sóbrio – 3

Resistente - 1

Erótico – 3

Patriota - 1

Generoso – 3

Carola - 1

Doce – 3

Pacífico – 3

Fiel a Palavra Dada - 1

Respeitável - 1

Bom – 2

Imoral - 1

Indisciplinado – 2

Desleixo nos Costume - 1

Corajoso - 1

Desorganizado – 2

Sincero - 1

Cordial – 2

Primário - 1

Prático – 2

Jogador – 2

Sem Firmeza – 2

Sem decisão – 2

Desinteressado – 2

Honrado – 2

Aventureiro – 2

Triste – 2

Desperdiçador – 2

Imprevidente – 2

Gosto da Palavra – 2

Sem Preconceitos – 1

Caridoso – 1

Reservado – 1

Trabalho sem Continuidade – 1

Desconfiado – 1

Altruísta – 1

Sem Hierarquia – 1

Desaprecia a Terra – 1

Supersticioso – 1

Gosto da Ostentação – 1

Quadro das características descritas do Brasileiro

Affonso Celso: bom, pacifico, sensível, sem preconceito, falta de iniciativa, falta de firmeza,

falta de decisão, indolência, sentimento de independência, (indisciplina), hospitalidade,

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afeição à ordem, paciência, doçura, desinteresse, longanimidade (bondoso, magnânimo),

cumprimento de obrigação, sensibilidade (imitação ao estrangeiro), tolerância; holandês.

Paulo Prado: tristeza, erotismo, individualismo, imoralidade, preguiça, desleixo nos

costumes, desperdícios, sobriedade, desinteresse, doçura nas mulheres.

Manoel Bonfim: preguiça, conservantismo, resistência, sobriedade, patriotismo, (poder de

assimilação social), tristeza, carola, inconsciente, puro sem rijeza, imprevidência,

subserviência, imitação, gosta da palavra, ambição.

Euclides da Cunha: paulistas: rio, minas, São Paulo. Autônomo, aventuroso, rebelde,

libérrimo, mestiço do litoral: neurastênico.

Sérgio Buarque de Holanda: individualismo, desordem, falta de hierarquização, não

trabalhar, aventureiro, (procura de títulos e riquezas fáceis), acessibilidade, horror à

distância, cordialidade, hospitalidade, generosidade, emotividade, (sentimentabilidade),

prático.

Oliveira Viana (tipo rural: Nobreza): Fidelidade à palavra, probidade, respeitabilidade,

independência moral.

Fernando de Azevedo: bondade reserva, desconfiança, sobriedade, afetividade,

individualismo, tendência igualitária (acessibilidade), altruísmo, sentimentalidade, sincero,

generoso, hospitaleiro.

Arthur Ramos: culto da palavra, culto de doutor, primarismo, autodidatismo narcisismo,

culto das coisas concretas, totens estrangeiros.

Gilberto Freire: luxúria, tolerância, gosto do jogo, simpatia, (cordialidade), individualismo.

João Cruz Costa: prático (pragmático).

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Tese: Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literaturaFontes: Documentos - IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico

e Artístico Nacional)Certidão do Tambor de Crioula

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Tese: Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura

Fontes: Textos

EPIGRAMA (ref.p.30) Cecília Meireles

Narciso, foste caluniado pelos homens,por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.

Narciso, ei sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda:sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhavagerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde a contemplava,florindo-a para sempre, com o seu efêmero sorriso…

O POETA COME AMENDOIM (ref. p.73)Mário de Andrade

Noites pesadas de cheiros e calores amontoados...Foi o sol que por todo o sítio do BrasilAndou marcando de moreno os brasileiros. Estou pensando nos tempos de antes de eu nascer... A noite era pra descansar. As gargalhadas brancas dos mulatos...Silêncio! O imperador medita os seus versinhos.Os Caramurus conspiram à sombra das mangueiras ovais.Só o murmurejo dos cre'm-deus-padre irmanava os homens de meu país...Duma feita os canhamboras perceberam que não tinha mais escravos,Por causa disso muita virgem-do-rosário se perdeu... Porém o desastre verdadeiro foi embonecar esta República temporã.A gente inda não sabia se governar...Progredir, progredimos um tiquinhoQue o progresso também é uma fatalidade...Será o que Nosso Senhor quiser!... Estou com desejos de desastres...Com desejo do Amazonas e dos ventos muriçocasSe encostando na canjerana dos batentes...Tenho desejos de violas e solidões sem sentido...Tenho desejos de gemer e de morrer... ref.p Brasil...

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Mastigando na gostosura quente do amendoim...Falado numa língua curumimDe palavras incertas num remelexo melado melancólico...Saem lentas frescas trituradas pelos meus dentes bons...Molham meus beiços que dão beijos alastradosE depois semitoam sem malícia as rezas bem nascidas... Brasil amado não porque sejam minha pátria,Pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der...Brasil que eu amo porque é o ritmo no meu braço aventuroso,O gosto dos meus descansos,O balanço das minhas cantigas amores e danças.Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada, Porque é o meu sentimento pachorrento,Porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir.

“O Poeta come Amendoim” in Poesias Completas, São Paulo, Martins Editora, 1955. p. 157-158.

One Art (Ref. p. 137)Elizabeth Bishop

The art of losing isn't hard to master;so many things seem filled with the intentto be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the flusterof lost door keys, the hour badly spent.The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:places, and names, and where it was you meant to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, ornext-to-last, of three loved houses went.The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,some realms I owned, two rivers, a continent.I miss them, but it wasn't a disaster.

--Even losing you (the joking voice, a gestureI love) I shan't have lied. It's evidentthe art of losing's not too hard to masterthough it may look like (Write it!) like disaster.

BISHOP, Elisabeth. The complete Poems 1927-1979. Farrar, Straus & Giroux. 1979.

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Perdoando Deus (Ref. p. 138)

Clarice Lispector

  Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas

vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

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... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.

In.: Felicidade clandestina, Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

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01/05/2003 - 14h34 Leia íntegra do discurso de Lula em São Bernardo do Campo (Ref. p. 211) da Folha Online

Leia abaixo a íntegra do discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Igreja da Matriz, em São Bernardo do Campo (ABC Paulista), feito de improviso e que marcou as comemorações do Dia do Trabalho:

"Eu quero cumprimentar o bispo desta diocese, d. Ailton,

Quero cumprimentar o meu companheiro cardeal de São Paulo, d. Cláudio Hummes,Quero cumprimentar todos os padres aqui presentes, em especial o meu querido padre Adelino, companheiro de velhas e longas jornadas aqui na região do ABC e São Bernardo do Campo, nos momentos em que as missas não eram feitas com a tranqüilidade com que estamos fazendo esta, no momento em que a polícia não estava aqui para nos guardar, mas para nos bater.Eu quero dizer, padre Adelino, que a sua trajetória política como padre do nosso país faz parte da história do movimento sindical brasileiro, faz parte da história do PT e faz parte da história deste que vos fala.Quero agradecer a presença aqui dos nossos deputados federais, estaduais, dos nossos prefeitos, dos nossos dirigentes sindicais, dos nossos ministros e ministras, dos nossos senadores e, sobretudo, dos companheiros e companheiras que frequentam este 1º de Maio.É importante lembrar que o grande 1º de Maio feito junto com a igreja foi com Vinícius de Moraes, no Paço Municipal, no 1º de Maio de 1979.No 1º de Maio de 80 eu não pude vir aqui, à missa, porque estava preso. Mas vocês fizeram a primeira missa, dentro desta igreja, no 1º de Maio e já completa 23 anos que todo santo 1º Maio, não tanta gente como tem agora, mas os mais fiéis, como eu, Frei Betto, os padres, o Vicentinho, o Marinho, todo ano a gente está aqui. Tenha pouca gente ou muita gente. Pode ter meia dúzia de pessoas você nem comparece aqui, Gilberto Carvalho, mas nós cá estamos fazendo o nosso 1º de Maio.Na vida de um ser humano, acontecem muitas coisas que normalmente ele não prevê que vai acontecer. Eu, na minha vida, até a fundação do PT, quase tudo na minha vida aconteceu sem que eu esperasse que fosse acontecer. Aconteceu porque tinha que acontecer, porque, como eu acredito em Deus, eu penso que Deus fez acontecer.Eu nunca, na minha vida, d. Cláudio, tinha pensado em ser dirigente sindical. Aliás, meu irmão mais velho me convidava para o sindicato e eu nunca aceitei vir ao sindicato, porque eu achava uma coisa tremendamente chata as discussões que, normalmente, eu não entendia. E eu vim ao sindicato em 1968, pela primeira vez. Houve uma briga no sindicato, não sei por que, mas houve uma briga. E por conta da briga eu passei, então, a gostar de vir e passei a freqüentar o sindicato. Um ano depois eu era diretor do sindicato, três anos depois eu era presidente do sindicato, e eu lembro que em 1978, depois da primeira greve, era o meu segundo mandato no sindicato.Eu disse para dona Marisa: "Dona Marisa, este será o meu último mandato. Eu aprovei, numa assembléia, que nenhum presidente poderia ficar mais que dois mandatos na Presidência." E eu falei: "Eu vou voltar para casa e vamos cuidar da nossa família."Ou seja, de 78 até agora, d. Cláudio, já são 25 anos e eu voltei para casa. Ou seja, voltei em parte, em termos. Mas a verdade é que, cada vez mais, eu me "meti em encrenca." Até que fundamos o PT, e até que um conjunto de companheiros entendeu que este partido deveria ter candidato a presidente da República.É importante lembrar que, em 1978, eu dizia para quem quisesse ouvir, que eu não gostava de política e tinha ódio de quem gostava de política. Isso, em 1978. Em 80 eu já estava fundando o

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PT, em 82 fui candidato a governador, em 89 a presidente, em 94 a presidente, em 98 a presidente. E graças à teimosia de vocês eu fui eleito presidente da República e cá estou.Uma coisa muito importante que eu gostaria, pela relação de amizade que nós temos, há tantos e tantos anos, é que os meus companheiros trabalhadores, os desempregados, as mulheres aqui presentes, compreendessem o seguinte: a minha eleição é mais do que a eleição de um homem para presidir este país.A minha eleição é a consumação de uma história em que eu sou apenas uma peça dessa história. Há muita gente, mas muita gente mesmo, que teve uma importância tremenda para fazer acontecer o que aconteceu no Brasil, e essa pessoa possivelmente esteja desempregada, e a gente não sabe que está desempregada.Essa pessoa, possivelmente, esteja passando fome, a gente não sabe que está passando fome, ou muitos companheiros nossos metalúrgicos até já morreram sem que a gente saiba que eles tenham morrido. Por isso é que eu sempre faço questão de dizer: a minha chegada à Presidência da República é o resultado do crescimento da consciência política da classe trabalhadora brasileira. O mérito, portanto, não é pessoal do presidente ou do meu partido, que tem méritos, mas o mérito muito maior é de uma sociedade que acordou e que resolveu tomar para si a responsabilidade de governar o nosso país.E eu, d. Cláudio, tenho, na minha cabeça, cada discurso que fiz na minha vida, eu tenho na minha cabeça cada compromisso que eu assumi em praça pública, eu tenho na minha cabeça programas de governo e eu tenho na minha cabeça, d. Cláudio, que, se falhar, quem falhou foi como um pedaço da história deste país e, possivelmente, iremos passar muitos anos para que a gente possa reconstruir a esperança que brotou no nosso país.Eu não me esqueço nunca, e me marca profundamente, 1979. Aqui há muitos companheiros daquela época e nós tivemos, possivelmente, um dos melhores acordos que o sindicato já fez. E eu tinha preparado a categoria para uma guerra, não para uma greve. E qualquer que fosse a proposta que não fosse 100%, os companheiros achavam pouco.Não sei se d. Cláudio está lembrado, foi a assembléia mais difícil da minha vida, em que cada vez que alguém tentava falar num acordo, tomava vaia dos trabalhadores. E eu consegui convencer os meus companheiros a aceitar o acordo, mas foi o ano mais difícil da minha vida, porque os trabalhadores aceitaram o acordo, mas voltaram para dentro da fábrica com a sensação de que eu tinha traído todos eles. Uma sensação que a greve deveria ir até as últimas conseqüências. Foi o ano mais duro da minha vida sindical.No ano de 1980, eu pensei com meus botões, se os trabalhadores acham que podem levar a greve até o limite do impossível, vão levar. E vocês estão lembrados que, com 41 dias de greve, a greve terminou e eu estava preso ainda. E aquela greve foi a greve em que nós mais perdemos economicamente, foi a greve em que nós ganhamos absolutamente nada. E milhares de trabalhadores foram mandados embora. Entretanto, o ganho político que nós tivemos naquela greve, resultou na criação do PT, resultou na criação da CUT e resultou na chegada daquele líder do sindicato à Presidência da República.Vocês podem ter a certeza de que nós temos consciência de cada compromisso assumido. Nós temos consciência de cada coisa que nós temos que fazer. Nós temos consciência do problema da moradia, nós temos consciência dos problemas deste país.Hoje a gente não está lançando aqui a proposta do Primeiro Emprego. Não estamos lançando, porque nós queremos trabalhar melhor, para que, quando lançarmos, seja uma proposta que entre em execução imediatamente, porque, para nós, o emprego é uma obsessão.Aquele jovem disse aqui e disse muito bem: se nós não dermos perspectiva de vida e de futuro para jovens de 17 ou 18 anos hoje, possivelmente amanhã eles sejam ocupantes de uma vaga na Febem, pagando por crimes que, muitas vezes, uma situação econômica perversa obrigou-o a se submeter.Nós temos consciência de tudo isso, meu querido d. Cláudio e meus companheiros, e podem ficar certos de que a cada 1º de Maio eu estarei aqui, nesta igreja, neste mesmo horário, para, a cada ano, ir prestando contas das coisas que nós vamos fazer.O que aconteceu ontem, neste país, possivelmente a História futura dará mais importância do que a história contemporânea. Porque, convencer 27 governadores de Estado a descerem comigo do Palácio do Planalto e olha que PT só tem 3 governadores e irmos levar as propostas

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de reforma ao Congresso Nacional que, numa véspera de feriado, costumeiramente está vazio, estava lotado com todos os deputados e senadores, foi um fato histórico fantástico.Vocês estão lembrados que, quando ganhamos as eleições, algumas pessoas diziam: o dólar vai a 5 reais agora, o risco-Brasil vai para 10 mil pontos, o PT não vai conseguir controlar a economia.Pois bem, d. Cláudio, ontem nós colocamos US$1 bilhão em títulos para vender no mercado externo. Apareceram US$ 6 bilhões para comprar, Suplicy, e nós vendemos os títulos pelo maior valor já vendido por um título brasileiro. Ou seja, conquistamos a credibilidade que precisávamos conquistar. E podem ficar certos de que, no momento certo, iremos fazer as mudanças que a política econômica exige que sejam feitas.Tinha gente que achava que o dólar ia a R$ 5 e agora estão reclamando porque o dólar já está a R$ 2,91. E, Vicentinho, se prepare porque qualquer hora dessas eu entro no Congresso Nacional para lhe comunicar: "Vicentinho, o salário mínimo já vale cem dólares." Porque nós também não queremos que o dólar caia demais, porque também temos responsabilidade com as nossas exportações e precisamos que o dólar se mantenha numa certa estabilidade.Mas pode ficar certo, meu companheiro d. Cláudio Hummes, de que, a cada ano, eu pretendo vir aqui prestar contas, aos trabalhadores, das coisas que estamos fazendo no campo social. Porque se nós não fizermos, dificilmente aparecerá alguém para fazer, num curto espaço de tempo.O que eu quero que todo mundo compreenda é que a nossa responsabilidade é infinitamente maior do que a de qualquer outro presidente em qualquer outro momento da história deste país. Exatamente porque eu não sou um homem que vim de cima para baixo, eu sou um homem que vocês fizeram brotar do chão da fábrica, entrar na política e virar presidente da República.Eu, portanto, sei o que passa na cabeça de cada um de vocês, sei o sofrimento de um desempregado, porque já vivi a crise de 1965, vivendo 11 meses desempregado. Então eu sei o que se passa na casa de um desempregado. E é por isso que eu não quero passar para história do Brasil como o presidente que será lembrado por que tem uma fotografia exposta no salão nobre do Palácio. Não. Eu quero ser lembrado como presidente da República, pelas políticas sociais que nós implementarmos neste país. Nessa mudança da qualidade de vida de homens e mulheres deste país. E, sobretudo, pela qualidade da educação e da saúde que a gente quer implantar neste país.O nosso ministro da Educação, d. Cláudio, assumiu publicamente o compromisso de alfabetizar 20 milhões de pessoas analfabetas neste país. Não é qualquer coisa. E não é uma tarefa fácil. Se depender só do governo, certamente d. Cláudio, o governo não conseguirá fazer. Mas se o governo tiver a habilidade de envolver a sociedade brasileira para se tornar cúmplice do governo, eu não tenho dúvida de que a gente vai alfabetizar este país.Da mesma forma que o Graziano e Oded Grajew que está aqui, que tem a responsabilidade maior pela implantação e pela execução do programa Fome Zero, podem ficar certos. É bem possível que, em quatro anos, a gente não consiga fazer tudo o que a gente se propôs a fazer. Mas eu duvido que em quatro anos alguém já terá feito, na História deste país, mais do que nós vamos fazer pelo povo pobre do Brasil.É com esses compromissos, meu querido d. Cláudio, que eu participo desse 1º de Maio, reafirmando aqui parte dos discursos que o senhor já conhece, que eu fiz há muito tempo nesta igreja, para dizer a vocês, companheiros da Pastoral Operária, que podem ficar certos que todo 1º de Maio, às 9h da manhã, o presidente da República estará aqui para prestar contas do que estamos fazendo neste país.

Muito obrigado e que Deus abençoe todos nós."

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  Tese: Narrativas Memorialísticas: Por uma arte docente na escolarização da literatura

Fontes: Publicações de textos da Tese

 

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Sebastianistas e quixotescos na espiral da reinvenção

Com os tempos da escola

Vivemos um tempo de “ego-ísmos”, de um voltar-se para um universo interior, muitas vezes estéril e carregado de tensões e contradições, estas que atravessam singularmente o drama da contemporaneidade ou ainda - de todos os tempos, se pensarmos o  homem em sua ânsia de conhecer a vida e o que há nela de mistério, o homem amarrado a um mundo desconcertantemente desumanizado, pleno de angústias coletivas,  de incertezas em face de um amanhã, marcado por guerras, medos e outras aflições universais. Sentindo-se comprimido, diminuído em sua essência, ao pensar que a técnica e a evolução das ciências o esmagam sob seu peso, o homem da atualidade, da sociedade da informação, torna-se ao mesmo tempo inventor e fugitivo dos (des)confortos que cria, fugindo da realidade única que  julga  conhecer.Vivemos um tempo no qual, como diria Eduardo Galeano, o individualismo torna-se instituição. Todos se voltam para os seus próprios umbigos, deixando de ver e viver as relações e realizações sociais coletivas. Fazemos parte de um mundo onde as tecnologias alcançam descobertas inovadoras a cada dia, onde  a concorrência e a aculturação desmedida ajudam a evidenciar a crescente desconfiança que cultivamos em relação aos outros, até mesmo em relação aos nossos pares.  Isso nos faz deixar passar questões essenciais à vida, por estarmos sempre trancafiados nas cadeias de segurança máxima, incutidos nas idéias e padrões pré-estabelecidos, nos preconceitos

  Autor do Artigo

Patrícia de Cássia Pereira PortoMestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, [email protected]

 Inf. sobre o artigo

Jornal "a Página"Nº 159 Ano 15  | Agosto/Setembro 2006Pag. 18

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incabíveis e infundados de uma sociedade que se torna cada vez menos relacional. Somos comandados pelo “mercado”  e pelas negociações e oscilações que o envolvem. Isto tem valido até para as relações humanas.   E aos poucos nos tornamos “desmemoriados do presente”,  a ponto de esquecermos que nascemos, criamos e reinventamos a vida, re-significando as diversas realidades a partir da interação com os outros e com o mundo, desse lugar da real-ação que, mediado pela experiência e por uma poética da existência,  nos impulsiona a “ser”e “fazer”.  Vivemos um tempo de solidão dilacerante, aumentada por uma profunda angústia frente aos projetos de futuro.  Essa angústia permanente, que caracteriza uma determinada face do cotidiano, resolve-se no tédio infinito sem o mito da crença. De fato, se perdemos o contato com o que há de esperança na crença, maior é a sensação perene de perda.  Se a fé está morta, e se humanamente não vivemos sem crenças, só nos resta um longo tempo para “gastar” e “consumir”.Diante disso, será que matamos o tempo ou é ele nosso assassino? Quantos tempos existem dentro de nós e dentro do próprio tempo? Qual deles prevalecerá? O tempo dos ressentimentos? Das memórias engolidas? Das reminiscências ancoradas que devolvemos mais tarde aos outros e a nós mesmos? O tempo de Zeus? O tempo que virá para fechar o ciclo de domínios de Cronos que, ao engolir os seus e os nossos filhos, tenta devorar nossas esperanças?Acredito que o tempo das instituições esteja sim no tempo de Cronos, mas sei que há também o tempo poético das beberagens que vivem de lembranças e projetos, podendo sempre reascender e alimentar o nosso sentimento de crença no passado e no futuro, sendo os dois apenas o que há de presente. A escola, sendo instituição, está no tempo “cronometrado”, capitalizado, esquartejado

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entre as tantas “disciplinas”, o tempo da grade curricular. E é possível indagar: de quantos tempos nós, educadores, precisamos para orquestrar o  tempo que a escola “demanda”  ao tempo que desejamos para as nossas práticas instituintes: seis, quatro, dois? E sendo os tempos escolares finitos, marcados por vários términos e começos, como libertar da chaga do determinismo a relação que se mantém com  “os conteúdos”, aqueles trancados em armários e cabeças, por vezes reduzidos à arrumação dos escaninhos?  Talvez a decisão de quantificar o tempo ao invés de qualificá-lo  venha fazendo de muitas escolas o que faz com as mais diversas instituições, um lugar de onde se quer fugir para viver o tempo, perder o tempo, saborear o tempo do lado de fora.Mas apesar das limitações do  tempo de Cronos, o tempo da escola está também no tempo de Kairós, no tempo da oportunidade que nos leva ao tempo do imaginário e da transformação. O tempo da escola se faz cheio de passagens a serem desvendadas, experimentadas por nossa curiosidade e ousadia. Está no tempo da água viva, tempo que faz de nós, educadores e educandos, viventes e milagreiros de um mistério-mundo, ora  sebastianistas, saudosistas a espera do retorno de Dom Sebastião, renascidos coragem. Ora quixotescos,  enfrentando os moinhos de vento do presente  como ternos visionários a espera de vivermos um tempo de luta, mas com crença  e encanto.

Todos Nós

Criamos um espaço exclusivo para os autores novos, o Todos Nós. Teremos o maior prazer em ler seu trabalho inédito. Os melhores serão publicados no nosso site, e o autor ganhará um prêmio-surpresa. Participe, caro escritor. Envie o texto com seu nome, endereço completo e telefone para [email protected]

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De véspera 15-02-2007

Por Patrícia Porto

[email protected]

Eu já fui chamada de esquisita... E o meu esquisito também sempre foi para o dento do umbigo das coisas. Embora eu sempre tenha sido – aparentemente – mais para o fora. Era a que vivia sonhando – ainda vivo, a que vivia escrevendo – meu Deus, sobre o quê? A que chorava à toa e à toa também ria do nada, a que matava aula pra fugir pro aeroporto, eu morava bem perto do aeroporto em São Luís.  E ficava por lá, horas e horas perdidas a fio, vendo os aviões, as pessoas que chegavam e partiam com malas e notícias. Ficava imaginando como viviam, onde moravam, com quem. Reparava as expressões pra tentar adivinhar o que estavam sentindo: saudade por alguém que ficou, alegria por chegar, tristeza, solidão.

Nessa época eu morava com três velhos, três irmãos: vovó, tia Marta e tio Inácio. Éramos os extremos dentro de uma casa em ruínas, cheia de esquisitices. Tia Marta passava o dia inteiro falando sobre a sua própria morte: como iria, quem a carregaria, quem choraria, como seriam as horas, as flores, o padre, as muriçocas, planejava, planejava e nunca estava doente. Não. Era viva, viva até demais, tão viva que só pensava na morte – danada, que nunca chegava, nunca acontecia até acontecer como acontece mesmo. Minha avó, sobre suas muletas, era só os silêncios e afetos pra mim, como que me compensando pelas faltas, perdas, dores – nossas, todas, da família.  E suspirava... Era costume suspirar naquela casa. Os fatos suspiravam e vovó contava as histórias dos que já se tinham ido pelos anos a distanciar. E eu olhava para o umbigo das coisas, para o olho das perguntas: quando? Por quê? Como se explica o tempo desentendido a respingar a lama velha dos dias de chuva, quanta chuva, nossa senhora, credo cruz, ave maria! Era uma danação de chuva. Todos choviam naquela casa.  Tio Inácio. Tio Inácio ria sem dentes, ficava o dia todo naquela lentidão de existir, como alguém que diz pra si: a vida vai diminuindo de tamanho, ficando no corpo menor, como música que termina no som diminuído. A gente decrescendo até partir. Deviríamos sumir, isso sim, espoeirar, espalhando cinzas poucas para serem varridas para os quintais, misturadas com comida de galinha, esterco, adubo de planta comum. Sem dar satisfação de deixada. Deixou-se pela manhã, ninguém viu, deixou-se na ventania que correu a plantação de mato qualquer! Tio Inácio era a poeira do tempo, aguardando não sei quem, acho Dom Sebastião, chegando pelo Porto de São Mateus. Tio Inácio era o próprio tempo deitado e assombrado na rede. O dia todo. A noite toda. Era gente? Era rede? Os dois, parte a parte, imbricado, deixado corpo diminuto.

E eu?

Eu amava os velhos, amava a morte, o silêncio e o tempo. Sabia ali que nunca mais seria parecida com o restante das outras meninas ou

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mulheres. Eu olhava para o dentro das coisas e me perdia, esquecia até de ser gente. Era meio coisa também. De mente?! Eu ficara velha antes de ser menina, mulher antes de moça, ia andar ao revés, de trás pra frente, ficando cada vez mais criança e louca. Esquisita e esquecida de ser velha, e no tempo da velhice iria espoeirar. Pensei: tomara então alguém lembrar de mim quando ninguém mais lembrar nome ou idade. Tomara que ao tomar minha mão, eu criança, desmemoriada de futuros, saiba reconhecer nele ou nela o amor que existiu em alguma vida passada ou restante.

Até o fim, quando eu perder toda linguagem, voltar pro ventre de minha terra salgada de existência, liberta, deixada natureza, dando pé de raiz.

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Deus é brasileiro, conforme sabemos todos não porque com Ele (e com o Brasil) tudo poderá dar certo; mas sobretudo porque Ele é feito - como nós - de três pessoas ou espaços distintos e absolutamente complementares. O Pai é a rua, o Estado e o universo implacável das leis impessoais. O Filho é a casa com suas relações calorosas, sua humanidade e seu sentido da pessoa feita de carne e osso. E, finalmente, o Espírito Santo é a relação entre os dois, o "outro lado" do mistério.

Roberto DaMatta

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Universidade Federal FluminensePatrícia Porto

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