tese completa - teoria do direito - márcio eduardo pedrosa morais

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EM FACE DO ENSINO RELIGIOSO Márcio Eduardo Pedrosa Morais Belo Horizonte 2014

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-Graduao em Direito

    A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ESTADO DEMOCRTICO DE

    DIREITO EM FACE DO ENSINO RELIGIOSO

    Mrcio Eduardo Pedrosa Morais

    Belo Horizonte 2014

  • Mrcio Eduardo Pedrosa Morais

    A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ESTADO DEMOCRTICO DE

    DIREITO EM FACE DO ENSINO RELIGIOSO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito.

    Orientador: Professor Doutor Mrio Lcio Quinto Soares

    Belo Horizonte 2014

  • FICHA CATALOGRFICA

    Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Morais, Mrcio Eduardo Pedrosa

    M829l A liberdade religiosa como direito fundamental no estado democrtico de

    direito em face do ensino religioso / Mrcio Eduardo Pedrosa Morais. Belo

    Horizonte, 2014.

    251f.

    Orientador: Mrio Lcio Quinto Soares

    Tese (Doutorado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito.

    1. Liberdade religiosa- Brasil. 2. Estado de direito. 3. Ensino religioso. 4.

    Leigos (Religio). I. Soares, Mrio Lcio Quinto. II. Pontifcia Universidade

    Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDU: 342.731

  • Mrcio Eduardo Pedrosa Morais A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

    NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO EM FACE DO ENSINO RELIGIOSO

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Direito.

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Mrio Lcio Quinto Soares (ORIENTADOR) PUC Minas

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Lucas de Alvarenga Gontijo PUC Minas

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Antnio da Cota Maral PUC Minas

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Gregrio Assagra de Almeida Universidade de Itana

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Carlos Alberto Simes de Tomaz Universidade de Itana

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Fabrcio Veiga Costa (SUPLENTE) Faculdade de Par de Minas

    __________________________________________________________

    Professor Doutor Lcio Aparecido Moreira (SUPLENTE) Universidade de Itana

    Belo Horizonte, 14 de fevereiro de 2014

  • Aos meus familiares, meus pais, Slvia e Geraldo, minha Carol: a todos eles, pelo

    carinho, fora e amor incondicionais. Ao professor, e acima de tudo, amigo, Doutor

    Mrio Lcio Quinto Soares, pela orientao, apoio e pacincia ao longo da pesquisa e a todos aqueles que sonham e lutam por uma

    sociedade mais justa.

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais, Slvia e Geraldo, pelo amor incondicional e pela vida, pelos exemplos e pelas advertncias, desculpem-me as brigas e minha ausncia em diversos momentos, estava lutando para deixar um legado nesta passagem por este mundo. Minha distncia e silncio, durante esse perodo, foi uma forma de dizer o quanto eu lhes amo! Quero agradec-los por ter me oferecido a possibilidade de estudar e conseguir minha emancipao!

    minha querida Carol, exemplo de amor e carinho, que conseguiu entender minha ausncia fsica em vrios momentos e por vrias noites, mas que jamais saiu um s minuto do meu pensamento. Carol, obrigado por um dia me ter concedido a oportunidade de uma conversa no jardim da universidade, ali nasceu uma bela histria de amor e de vida! J se passaram dez anos desde ento, mas sempre me lembro de seu rosto, sempre me lembro da emoo do primeiro beijo! Dedico este trabalho a voc!!!

    Aos meus irmos Marcos Vincius e Mara Lcia, frutos de um mesmo ventre, pelos momentos de alegrias e crescimento. Sigamos o caminho da virtude e da verdade! Aos meus sobrinhos, Arthur e Karen, os mimos do titio, verdadeiros mistrios da natureza, os quais a cada dia me surpreendem por suas inteligncias.

    Aos meus filhinhos Eduardo e Lilica, serezinhos que no falam minha lngua, mas que conseguem me compreender...

    Ao meu Orientador, Professor Doutor Mrio Lcio Quinto Soares, exemplo de competncia e maturidade intelectual, companheiro de caminhada e fonte de inspirao docncia. Obrigado pelos momentos de alegria, pelas advertncias, pelos elogios. Obrigado por acreditar em mim, mesmo nas adversidades do tempo perdido! Encontr-lo, inesperadamente, na recepo do Programa de Ps-Graduao em Direito da Pucminas foi coincidncia divina! A voc que confiou em mim, meu muito obrigado!

    Aos meus professores, colegas e amigos de caminhada, pelos momentos vividos juntos, momentos de alegria e ansiedade. Aos livros, todos foram teis e me enriqueceram, por intermdio deles diversos autores, muitos no mais fisicamente presentes entre ns, puderam me ensinar lies de Direito e de vida.

  • Em especial aos amigos Alexandre Dias, Hugo Schayer e Marcelo Moura, companheiros de angstias, brincadeiras e discusses. Que a distncia fsica jamais trinque os fortes alicerces de nossas amizades!

    Aos funcionrios da biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, pelo apoio, simpatia e compreenso durante os anos de mestrado e doutorado e aos demais funcionrios, colegas e amigos que fiz nesta Instituio.

    Aos alunos, fonte de inspirao da caminhada acadmica. Sem eles a tese no teria sentido! Agradeo tambm aos colegas de trabalho da Universidade de Itana e da Faculdade de Par de Minas, minhas segundas casas.

    A todas as vtimas silenciosas da desigualdade social brasileira. Existem pes suficientes para todos, mas eles no chegam s mesas de muitos, por mofarem em cozinhas saciadas.

    A todos que, mesmo sem saberem, ajudaram-me na concretizao de mais um passo da caminhada acadmica.

  • A liberdade um dos dons mais preciosos que o cu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra em seu peito, nem o mar guarda em seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida.

    Miguel de Cervantes

    Es un gran error creer que un Estado neutral en materia religiosa y una escuela pblica laica atentan contra la supervivencia de la religin em la sociedad civil. Un Estado laico no es enemigo de la religin; es un Estado que, para resguardar la libertad de los ciudadanos, ha desviado la prctica religiosa de la esfera pblica al mbito que le corresponde, que es el de la vida privada.

    Mario Vargas Llosa

  • RESUMO

    Objetiva-se analisar, por intermdio do presente trabalho, o tema A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL NO ESTADO DEMOCRTICO DE DIREITO EM FACE DO ENSINO RELIGIOSO. Nesta pesquisa, inicialmente, faz-se a abordagem do conceito e razes histricas da liberdade religiosa, compreendendo-a como componente do princpio da laicidade. Analisa-se ainda a liberdade religiosa em face da filosofia do direito, como tambm a caracterizao estrutural do direito liberdade religiosa, tendo como sustentculo a relao liberdade religiosa/dignidade da pessoa humana. Em seguida, esmia-se a liberdade religiosa durante o Imprio brasileiro (1822-1889). Debrua-se sobre a liberdade religiosa no constitucionalismo brasileiro at se chegar Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, dando-se nfase aos debates dessa Assembleia em relao ao princpio da liberdade religiosa, especificamente sobre a definio do ensino religioso no Estado Constitucional, objetivo principal desta tese.

    Palavras-chave: Assembleia Nacional Constituinte. Brasil. Constitucionalismo. Ensino Religioso. Estado Democrtico de Direito. Laicidade. Liberdade religiosa.

  • ABSTRACT

    The aim is to analyze through the present research the theme RELIGIOUS FREEDOM AS A FUNDAMENTAL RIGHT IN THE DEMOCRATIC STATE OF LAW IN THE FACE OF RELIGIOUS EDUCATION. Initially in this research, it will be done an approach of the concept and historical roots of religious freedom, understanding it as the principle of secularism component. The religious freedom in the face of the philosophy of law will be analyzed as well as the structural characterization of the right to religious freedom, having as a mainstay the relationship religious freedom/human dignity. Then, the religious freedom during the Brazilian Empire (1822-1889) will be scrutinized. Afterwards, this research will lean over the religious freedom in Brazilian constitutionalism until reaching the National Constituent Assembly of 1987-88, giving emphasis to the debates of this Assembly in relation to the principle of religious freedom specifically on the definition of religious education in the Constitutional State; which is the main objective of this thesis.

    Keywords: National Constituent Assembly. Brazil. Constitutionalism. Religious Education. Democratic State of Law. Secularism. Religious freedom.

  • RESUMEN

    El objetivo es analizar, a travs del presente trabajo, el tema de la LIBERTAD RELIGIOSA COMO DERECHO FUNDAMENTAL EN LA LEY DEL ESTADO DEMOCRTICO EN LA CARA DE LA EDUCACIN RELIGIOSA. En este estudio, en un principio, es acercarse al concepto y las races histricas de la libertad religiosa, entendido como componente del principio de laicidad. An as analizar la libertad religiosa en la faz de la filosofa del derecho, as como la caracterizacin estructural del derecho a la libertad religiosa, que tiene como pilar fundamental la relacin libertad religiosa/dignidad humana. A continuacin, se analiza la libertad religiosa durante el Imperio del Brasil (1822-1889). Se centra en la libertad religiosa en el constitucionalismo brasileo hasta llegar a la Asamblea Nacional Constituyente de 1987-1988, dando nfasis a los debates de la Asamblea en relacin con el principio de libertad religiosa, especficamente en la definicin de la educacin religiosa en el Estado Constitucional, el objetivo principal de esta tesis.

    Palabras clave: Asamblea Nacional Constituyente. Brasil. Constitucionalismo. Educacin Religiosa. Estado Democrtico. El secularismo. La libertad religiosa.

  • LISTA DE ABREVIATURAS

    Ampl. Ampliada Atual. Atualizada Coord. Coordenador D. C. Depois de Cristo Ed. Edio Et. al. e outros N. Nmero Org. Organizador Prof. Professor Trad. Traduo V. Volume

  • LISTA DE SIGLAS

    ABESC Associao Brasileira de Escolas Superiores Catlicas ABI Associao Brasileira de Imprensa ABNT Associao Brasileira de Normas Tcnicas ADCT Ato das Disposies Constitucionais Transitrias AEC Associao de Educao Catlica AI Ato Institucional ANC Assembleia Nacional Constituinte ANDES Associao Nacional dos Docentes do Ensino Superior ANDE Associao Nacional de Educao ANPAE Associao Nacional dos Profissionais da Administrao

    Educacional ANPEd Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Educao CAS Comisso de Assuntos Sociais CCJC Comisso de Constituio, Justia e Cidadania CEC Comisso de Educao e Cultura CEDES Centro de Estudos Educao e Sociedade CGT Confederao Geral dos Trabalhadores CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNEC Campanha Nacional de Escolas da Comunidade CNJ Conselho Nacional de Justia CRECD Comisso de Relaes Exteriores e Defesa Nacional CRFB/88 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 CTASP Comisso de Trabalho, Administrao e Servio Pblico CUT Central nica dos Trabalhadores EC Emenda Constitucional ER Ensino Religioso FASUBRA Federao de Sindicatos de Trabalhadores Tcnico

    Administrativo em Instituies de Ensino Superior Pblicas do Brasil FENEN Federao Nacional dos Estabelecimentos IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

  • LDB Lei de Diretrizes e Bases OAB Ordem dos Advogados do Brasil ONU Organizao das Naes Unidas PCB Partido Comunista Brasileiro PC do B Partido Comunista do Brasil PDC Partido Democrata Cristo PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos PIDESC Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais PDS Partido Democrtico Social PDT Partido Democrtico Trabalhista PFL Partido da Frente Liberal PL Partido Liberal PL Projeto de Lei PMB Partido Militar Brasileiro PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro PNOC Por uma Nova Ordem Constitucional PRB Partido Republicano Brasileiro PSB Partido Socialista Brasileiro PSC Partido Social Cristo PSDB Partido Socialista Democrtico Brasileiro PTB Partido Trabalhista Brasileiro PT Partido dos Trabalhadores SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia SEAF Sociedade de Estudos e Atividades Filosficas STF Supremo Tribunal Federal UBES Unio Brasileira dos Estudantes Secundaristas UNE Unio Nacional dos Estudantes

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................................................ 15

    1 BREVES CONSIDERAES SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA ..................................................... 18

    2 CONCEITO E RAZES HISTRICO-FILOSFICAS DA LIBERDADE RELIGIOSA ............................. 24 2.1 A LIBERDADE RELIGIOSA COMO DIREITO FUNDAMENTAL .............................................................................. 51 2.2 A LIBERDADE RELIGIOSA EM FACE DA FILOSOFIA DO DIREITO ...................................................................... 73

    3 LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA NO ESTADO LIBERAL ........................................................ 90

    4 A LIBERDADE RELIGIOSA NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO ......................................... 112 4.1 A LIBERDADE RELIGIOSA NO IMPRIO BRASILEIRO: IGREJA CATLICA RELIGIO OFICIAL DO IMPRIO ......... 116 4.2 A LIBERDADE RELIGIOSA NA REPBLICA BRASILEIRA: DA CONSTITUIO DE 1891 S VSPERAS DA CONSTITUIO DE 1988 ............................................................................................................................... 130 4.3 A LIBERDADE RELIGIOSA NA CONSTITUIO DA REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 .................... 145

    5 LAICIDADE E LIBERDADE RELIGIOSA NOS DEBATES DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987-88: UMA ANLISE DOS DEBATES ACERCA DA INSTITUIO DO ENSINO RELIGIOSO NO TEXTO CONSTITUCIONAL DE 1988 ............................................................ 155 5.1 APUNTES HISTRICOS DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE DE 1987-88.......................................... 157 5.2 BREVE CARACTERIZAO E HISTRICO DO ENSINO RELIGIOSO NO BRASIL ................................................. 167 5.2.1 O debate na Subcomisso da Educao, Cultura e Esportes ......................................................... 174 5.2.2 O debate na Comisso da Famlia, da Educao, Cultura e Esportes, da Cincia e Tecnologia e da Comunicao........................................................................................................................................ 195

    6 ENSINO RELIGIOSO PS-CONSTITUINTE: OS DESAFIOS CONCRETOS A SEREM ENFRENTADOS NO ESTADO CONSTITUCIONAL ............................................................................... 207 6.1 A QUESTO DO ENSINO RELIGIOSO NO ARTIGO 11 DO ACORDO ENTRE A REPBLICA FEDERATIVA DO BRASIL E A SANTA S RELATIVO AO ESTATUTO JURDICO DA IGREJA CATLICA NO BRASIL .............................. 215

    7 CONCLUSO ........................................................................................................................................ 223

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................................................... 227

  • 15

    INTRODUO

    A liberdade religiosa, originariamente, no se apresenta como um dos pressupostos constitucionais da sociedade ocidental, no sentido de no existir, h muito tempo, a ideia de se garantir a liberdade de escolha da religio, como tambm a liberdade de no possuir uma.

    Na verdade, como se pode perceber nesta tese, a liberdade religiosa consiste em um princpio que se desenvolve, tardiamente, na histria do constitucionalismo, principalmente se considerando que o pluralismo religioso tambm surgiu em tempos posteriores da civilizao ocidental, sendo fruto da crise institucional ocasionada, dentre outros fatores, pelas guerras religiosas que assolaram a Europa, no incio do Estado Nacional.

    Nesse sentido, a liberdade religiosa, como pressuposto constitucional, passou a ser uma questo de interesse pela convivncia pacfica da sociedade poltica organizada, aps a Reforma Protestante, originando modificaes no modo de agir e pensar ocidental.

    Juntamente com a democracia e a igualdade, o princpio da liberdade religiosa compe o princpio da laicidade. A laicidade, deste modo, compreende o princpio da liberdade (inclusive religiosa), princpio da igualdade e princpio democrtico. No basta a liberdade religiosa para se caracterizar um Estado como laico, necessrio tambm que este Estado garanta a igualdade de tratamento entre crenas, dentre as regras do processo democrtico.

    Perpassando por tal marco terico, preconiza-se, nesta tese, a liberdade religiosa como um direito fundamental no Estado Democrtico de Direito.

    Em um primeiro momento, em termos conceituais, na seo inaugural, foram suscitadas as seguintes hipteses: Em que consiste a religio? Como se compreende o princpio da laicidade? O que liberdade religiosa? Quais as relaes do princpio da liberdade religiosa com a democracia e o Estado de Direito?

    No que se refere ao seu aspecto metodolgico, o tese adotou o mtodo lgico-descritivo, para analisar o referido tema, tendo como escopo a leitura hermenutica da liberdade religiosa no texto da Constituio, observando os debates pertinentes durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, instalada em 1 de fevereiro de 1987.

  • 16

    Serviram como fonte primria desta tese, obras jurdicas nacionais e estrangeiras, os Dirios da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, especificamente a discusso e positivao sobre o ensino religioso no texto constitucional, alm dos documentos oficiais do Estado brasileiro, da Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil CNBB, e encclicas papais do Vaticano.

    Como fontes secundrias foram utilizadas obras de referncias, artigos de peridicos especializados, notcias de jornais e de revistas especializadas.

    Na seo segunda, foram abordados o conceito e as razes histricas da liberdade religiosa moderna, mediante uma reconstruo da liberdade religiosa na Filosofia do Direito, como tambm a caracterizao estrutural do direito liberdade religiosa, tendo como base o primado da dignidade da pessoa humana.

    Na terceira seo, realizou-se pesquisa acerca da liberdade religiosa no Estado Liberal. O liberalismo proclamava a tolerncia com toda f religiosa ou crena metafsica, pela convico de que esse o nico meio de se manter a paz. Constri-se o discurso da tolerncia de todas as igrejas e cultos, estabelecendo-se sempre os limites constitucionais para atuao destas crenas.

    Na quarta seo, h o estudo sobre a liberdade religiosa no perodo imperial (1822-1889), No Brasil Imprio, sob a gide liberal, havia liberdade de crena sem liberdade de culto. Na poca, s se reconhecia como livre o culto catlico. Outras religies deveriam contentar-se em celebrar um culto domstico, vedada qualquer forma exterior de templo.

    Prepara-se, assim, a discusso seguinte sobre o Estado laico, institudo na Constituio de 1891, ao traar seu histrico no texto das constituies brasileiras at se chegar sexta seo, com a anlise do momento histrico da Assembleia.

    Assim, as pesquisas inseridas nas sees anteriores forneceram substratos fundamentais para a anlise dos Anais da Assembleia Constituinte, o foco principal da tese.

    Aps a reflexo dos debates constituintes, faz-se uma leitura crtica da questo do Acordo entre a Repblica Federativa do Brasil e a Santa S, relativo ao estatuto jurdico da Igreja Catlica no Brasil.

    Em sntese, a tese pretende analisar a garantia constitucional do princpio da liberdade religiosa, componente do princpio da laicidade, por intermdio da anlise da oferta do ensino religioso nas escolas pblicas.

  • 17

    Outras perguntas suscitadas: como o Estado Democrtico de Direito pode autorizar a oferta do ensino religioso nas escolas pblicas? Tal oferta no macularia os limites constitucionais da liberdade religiosa?

    Apesar de institudo no texto constitucional de 1988, como tambm em diplomas normativos anteriores, os fundamentos apresentados pelos constituintes durante a Assembleia Constituinte de 1987-88 geram curiosidade, ou seja, quais foram os argumentos do debate constituinte em relao instituio do ensino religioso no texto constitucional de 1988, que encontra sua positivao no pargrafo primeiro do artigo 2101 da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 CRFB/88?

    Percebe-se que as instituies democrticas brasileiras, ainda, so influenciadas por razes dogmticas religiosas, caracterizando-se o ensino religioso mecanismo de continuidade de dominao, por intermdio de atores que confundem, estrategicamente, as esferas pblica e privada, o que fere o primado do Estado Democrtico de Direito.

    1 Art. 210. Sero afixados contedos mnimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar

    formao bsica comum e respeito aos valores culturais e artsticos, nacionais e regionais. 1 O ensino religioso, de matrcula facultativa, constituir disciplina dos horrios normais das escolas pblicas de ensino fundamental. (BRASIL, 2013).

  • 18

    1 BREVES CONSIDERAES SOBRE A LIBERDADE RELIGIOSA

    O direito de liberdade religiosa consiste em gnero do qual derivam diversas categorias, podendo-se destacar, dentre outras: a liberdade de professar a prpria crena; o direito privacidade religiosa; a liberdade de informar e se informar sobre religio; o direito assistncia religiosa em situaes especiais; o direito de produo de obras cientficas sobre religio; o direito objeo de conscincia por motivo de crena religiosa; a liberdade de exerccio das funes religiosas e do culto.

    Para que uma sociedade possa estar alicerada em princpios publicamente aceitveis de justia, preciso que os cidados aceitem, como decorrncia da razoabilidade, inerente concepo pblica de pessoa numa sociedade democrtica, os limites do juzo. Ou seja, uma sociedade democrtica constituda por cidados que se percebem como livres e iguais, embora possam discordar do modo como vivem suas prprias vidas. 2

    A relao entre Direito e Religio, especificamente entre os princpios da liberdade religiosa e da laicidade, tem recebido tratamento mais especfico desde o advento do Estado de Direito, em sua dimenso laica, em contedo democrtico, em relao aos direitos fundamentais e em face da secularizao da sociedade.

    No que se refere religio, esta ocupa lugar central, desde os primrdios da civilizao, fato sublinhado pela Sociologia, que apresenta e aborda as diversas formas de religiosidade, as quais, todavia, apesar de diversas, possuem semelhanas e pontos de contato entre si.

    Nessa linha de argumentao, ao enfocar as origens da religio, Charles Hainchelin (1971) destaca ser possvel visualizar razes sociais como tambm razes gnoseolgicas.

    O maior temor humano, o conhecimento da sua mortalidade, ensejou no homem a busca de um meio para se compreender a sua prpria finitude, o que motiva a religio com sua proposta salvfica, proposta de vida eterna, meio para se superar as dificuldades da existncia humana. possvel perceber a insero da religio na sociedade, seja na oriental como na ocidental em vrios de seus

    2 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. Lisboa: Presena, 1993.

  • 19

    aspectos, como nos ritos de nascimento, na sua influncia sobre a construo da moral, datas cvicas, nomes de localidades, ritos de passagem, havendo a presena na histria do Estado Moderno da relao entre Estado e instituio religiosa, no caso do Ocidente a Igreja Catlica Apostlica Romana.

    Influenciando nas decises estatais, a religio percebida nas decises polticas, nas escolhas pblicas, enfim, no desenvolvimento das prticas e das instituies estatais. No caso brasileiro possvel visualizar sua influncia em diversos aspectos, principalmente no texto constitucional, no caso do presente trabalho, seu local de pesquisa, como tambm em momentos institucionais importantes da histria. Na Constituio possvel perceber a influncia religiosa no prembulo, na estruturao dos direitos e garantias fundamentais, no sistema tributrio, na instituio da laicidade estatal (apesar de no explcita), como tambm na definio e oferta do ensino religioso em escolas pblicas.3

    Essa religio foi imposta pela Europa a uma sociedade que a desconhecia. Antes da colonizao americana, o sentimento religioso imperava na Pennsula Ibrica, estando solidificado nas suas prticas sociais. O marco dessa f era a cruz, presente nos cemitrios, nas igrejas, escapulrios, ruas, praas, caravelas. As imagens de santos existiam por toda parte, e a missa e a procisso eram acontecimentos sociais, manifestaes coletivas que iriam se repetir no Novo Mundo. (RIOS, 1994). A cruz dominou e conquistou a Amrica, seja substituindo Quetzalcoatl a Guadalupe no Mxico, seja misturando religies africanas, Catolicismo e crenas indgenas no Brasil.4 Por intermdio do catolicismo vrias etnias foram dizimadas, populaes escravizadas.

    Frei Bartolom de Las Casas (1474-1566) narra na obra O Paraso Destrudo, escrita no ano de 1542: como essa gente seria feliz se tivesse o conhecimento do verdadeiro Deus. (LAS CASAS, 2013, p. 27). Essa justificativa foi usada pelos europeus para forar os nativos da Amrica converso ao Catolicismo. F, cruz e espada, trs objetos eficientes para sua submisso. Como

    3 Nessa pesquisa, todos esses aspectos poderiam ser abordados, porm, delimitando o tema, optou-

    se por analisar a questo do ensino religioso nas escolas pblicas, o que no exclui outros olhares sobre outros aspectos do princpio da liberdade religiosa no texto constitucional. 4 Em relao pluralidade religiosa no Brasil saliento que, em 1950, de uma populao total de

    51.806.591 de habitantes, a percentagem de catlicos era de 93,7% e de protestantes 3,4%; em 1991, de uma populao de 146.815.818 habitantes, 82,96% eram catlicos e 9,34% eram protestantes; em 2000, de uma populao de 169.799.170 habitantes, 73,60% eram catlicos e 15,41% protestantes. (MENDONA, 2003). No ano de 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE contabilizou 64,6% de catlicos no Brasil e 22,2% de protestantes no Brasil.

  • 20

    exemplo de instrumento de dominao utilizado pelos espanhis, h o Requerimento (Requirimiento), por intermdio do qual esse povo sancionou sua autoridade poltica sobre o Novo Mundo durante o perodo de suas mais extensivas conquistas (1512-1573). O Requerimento era lido em voz alta para os nativos do Novo Mundo, sendo um ultimato para que reconhecessem a superioridade do cristianismo, do contrrio, enfrentariam a guerra. (SEED, 1999).

    Em nome de Sua Majestade, [...] eu [...] seu servidor, mensageiro [...] notifico e fao saber da melhor forma possvel que Deus nosso Senhor nico e eterno criou o cu e a terra [...] Deus nosso Senhor confiou [todos os povos] a um nico homem chamado So Pedro, de modo que ele era o senhor, superior a todos os homens do mundo [...] e deu-lhe todo o mundo para seu domnio e jurisdio [seoro y jurisdiccin]. Um desses Pontfices fez a doao destas terras e deste continente do Mar Oceano aos reis catlicos da Espanha [...]. Quase todos os que foram notificados [disto] receberam Sua Majestade e o serviram e lhe obedeceram, e o servem como sditos [...] tornando-se cristos sem nenhuma recompensa ou estipulao. (SEED, 1999, p. 102).

    De modo idntico ao Estado espanhol, o Estado portugus, fruto do nacionalismo catlico da Reconquista da pennsula ibrica, era ao final do sculo XV uma potncia martima e, consequentemente, missionria (ALVES, 2008, p. 43), podendo-se afirmar ser o desenvolvimento histrico da Reconquista, como tambm das grandes navegaes, indissocivel do labor missionrio portugus, tendo sido as monarquias de Castela-Arago e de Portugal construdas na Reconquista, constituindo-se imprios cruzados de fronteira identificados com o catolicismo e contra a f muulmana, fato esse que auxilia na explicao da simbiose prxima entre Igreja e Estado em tais imprios. A bula papal InterCoetera dividir, sob o plio da Igreja de Roma, o mundo invadido entre portugueses e espanhis. Neste sentido, importante realar que:

    De fato, o surgimento jurdico do Brasil, isto , a transformao de mero espao geogrfico no-unificado e quase inteiramente desconhecido em objeto do Direito ocidental, ocorre justamente em um documento papal a Bula Inter Ctera, promulgada pelo papa Alexandre VI em 4 de maio de 1493, que divide a propriedade dos territrios das novas descobertas em dois hemisfrios pertencentes s coroas espanhola e portuguesa. (ALVES, 2008, p. 43).

  • 21

    Aps a diviso, com a chegada dos portugueses ao territrio brasileiro, Estado e Igreja5 empreenderam trabalho de colonizao, dividindo esse labor entre si. Ao Estado coube o papel de garantir a soberania portuguesa sobre a Colnia, dot-la de um sistema administrativo, desenvolver a poltica de povoamento do territrio, fornecer mo-de-obra, como tambm estabelecer o tipo de relacionamento que deveria existir entre Metrpole e Colnia. Por sua vez, Igreja caberia a educao das pessoas, o controle das almas. Em relao educao, Boris Fausto (2006) salienta que, na vida diria, era um instrumento muito eficaz para veicular a ideia geral de obedincia e, em especial, a de obedincia ao poder do Estado. (FAUSTO, 2006, p. 60).6

    Durante a evoluo da sociedade brasileira esta relao Igreja-Estado foi se desenvolvendo, sendo a mesma percebida nos hbitos de vida, nas decises pblicas, no cotidiano do pblico e do privado. A religio constituiu importante mecanismo de dominao, por intermdio do medo, do pecado, da ideia de purgatrio, pregando um deus iracundo que puniria aqueles pecadores que ousassem desrespeitar seus mandamentos.

    A institucionalizao oficial da separao Estado-Igreja ocorrer somente em 1890, havendo a constitucionalizao dessa separao em 1891. Aps 1891 todas as Constituies brasileiras posteriores prevero o modelo de separao, que um dos requisitos do Estado laico, que coaduna com o Estado Democrtico de Direito.

    No que se refere relao ao Estado Democrtico de Direito e laicidade estatal, destaco, de modo inicial que, o Estado Democrtico no suprime a religio da vida pblica, no atacando o aspecto religioso (o que caracteriza o laicismo), do contrrio, o Estado Democrtico deve manter a neutralidade em relao ao fator religioso.7 Porm, o Estado democrtico no pode aceitar a mistura entre religio e Estado, fazendo com que as decises estatais sejam impregnadas de aspecto

    5 Boris Fausto (2006) destaca que embora se trate de instituies distintas, naqueles tempos uma

    estava ligada outra. No existia na poca, como existe hoje, o conceito de cidadania, de pessoa com direitos e deveres com relao ao Estado, independentemente da religio. A religio do Estado era a catlica e os sditos, isto , os membros da sociedade, deviam ser catlicos. (FAUSTO, 2006, p. 59-60). 6 importante notabilizar ainda que, o papel da Igreja no se limitava a isso. Ela estava presente na

    vida e na morte das pessoas, nos episdios decisivos do nascimento, casamento e morte. O ingresso na comunidade, o enquadramento nos padres de uma vida decente, a partida sem pecado deste vale de lgrimas dependiam de atos monopolizados pela Igreja: o batismo, a crisma, o casamento religioso, a confisso e a extrema-uno na hora da morte, o enterro em um cemitrio designado pela significativa expresso campo santo. (FAUSTO, 2006, p. 60). 7 Jnatas Eduardo Mendes Machado (2013) enfatiza ser o Estado Constitucional racionalmente

    sustentado por um constitucionalismo testa de matriz judaico-crist.

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    religioso. A instituio do Estado laico indispensvel garantia das liberdades individuais e de uma convivncia pacfica entre os indivduos, tendo em vista ser esse Estado a forma de governo e de exerccio de poder no qual h a separao entre Poder Pblico e Religio, sendo a garantia da dignidade da pessoa humana fundamento constitucional explcito.

    A anlise da questo do ensino religioso8 na Constituio de 1988 ultrapassar o enunciado de seu texto, indo ao momento da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, para observar quais foram os fundamentos, quais os debates travados pelos constituintes nas Comisses, ou seja, qual a importncia do ensino religioso para a Constituinte? Qual a funo do ensino religioso numa sociedade laica e secularizada? Qual o seu modo de oferta? Assim, quais foram fundamentos abordados pelos constituintes para a positivao do ensino religioso na Constituio? Qual a identidade do sujeito constitucional em relao ao ensino religioso?

    Essas questes direcionam o desenvolvimento da tese para um questionamento especfico: fere o princpio da liberdade religiosa e, consequentemente, da laicidade estatal, a oferta do ensino religioso pelo Estado? Seria o ensino religioso mecanismo de continuidade e dominao estatal? Tendo as referidas perguntas como base, a presente pesquisa analisar a construo da liberdade religiosa na Constituio de 1988, tendo-se como ngulo a instituio do ensino religioso no texto constitucional,9 pesquisa que se realizar por intermdio da anlise dos Dirios da Assembleia Nacional Constituinte que culminaram na promulgao do referido texto constitucional.

    Ensino religioso, educao religiosa e catequese religiosa se diferenciam pelos seguintes aspectos: a educao religiosa um conceito amplo, podendo ser compreendido como um conjunto de processos que fazem parte de vrios aspectos

    8 O presente trabalho nasce da problemtica acerca do ensino religioso nas escolas pblicas, por

    entend-la como a questo com maior possibilidade de questionamentos em relao ao objeto da pesquisa, por ser a educao a base estrutural de formao da pessoa humana, elemento fundamental de formao da autonomia do sujeito. 9 Como cedio, a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, stima Constituio da

    histria constitucional brasileira, promulgada em 15 de outubro de 1988, fruto de debates que perpassaram vrias ideologias e credos religiosos, a qual acolheu, dentre outros, o princpio da liberdade religiosa e garantiu a manuteno constitucional do Estado laico, classificando-se a mesma, doutrinariamente, como uma Constituio escrita, dogmtica, democrtica, rgida, dirigente, analtica e ecltica, com originariamente duzentos e cinquenta artigos em seu texto, ou seja, em tese, Constituio de todos os modos de vida, de todos os pensamentos, de vrias raas, de vrias cores, de vrios olhares.

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    humanos, relacionados ao seu carter, senso de responsabilidade, hbitos, como tambm a habilidade para enfrentar dificuldades, sendo, via de regra, repassado dentro do prprio grupo familiar. Por catequese religiosa entende-se a transmisso de princpios de f de determinada crena religiosa, introduzindo o crente na doutrina dessa religio. Em relao ao ensino religioso, o mesmo definido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (Resoluo n. 02/97) como uma disciplina da rea do conhecimento que visa educar para a convivncia democrtica e ao respeito do direito fundamental liberdade do homem. Em que pese a definio, em realidade, no h consenso entre os atores envolvidos no ensino religioso no que se refere sua forma, havendo prticas de ensino totalmente dissonantes entre si, mostrando, muitas vezes, o mecanismo de dominao, mais uma vez a religio como mecanismo de manuteno de poder. Entendendo apta, a educao religiosa privada, na famlia ou dentro das instituies religiosas, a cumprir o referido objetivo.

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    2 CONCEITO E RAZES HISTRICO-FILOSFICAS DA LIBERDADE RELIGIOSA

    Nesta seo abordarei o conceito de liberdade religiosa, apresentando um escoro histrico de seu desenvolvimento ao longo do pensamento jusfilosfico, focando nos mais relevantes eventos e caractersticas dessa liberdade fundamental, como tambm estudarei a estrutura da liberdade religiosa no ordenamento constitucional brasileiro, entrelaando a mesma com a liberdade de conscincia, de crena e de culto, como suas manifestaes e ramificaes. Objetivo, assim, apresentar o conceito de liberdade religiosa, como tambm sua evoluo histrica e caracterizao estrutural. O conceito de liberdade religiosa perpassar todo o trabalho, pois abordar a questo do ensino religioso nos debates da Assembleia Constituinte exige, inicialmente, a conceituao e estruturao do princpio da liberdade religiosa.

    Durante muito tempo acreditou-se que falar de religio na contemporaneidade seria meramente recordar os tempos passados, culturas passadas, ou seja, teorizou-se o fim da religio, com um mundo habitado pelo homem secular, um homem que entenderia a religio como um fenmeno esquecido. Acontece que, muito antes de haver desaparecido, como se percebe falsamente, as religies passaram a ocupar seu lugar dentro da sociedade civil diversificando, junto com esta, suas prprias manifestaes. Vivemos em sociedades onde a pluralidade religiosa uma realidade incontestvel10. (TRASLOSHEROS, 2012, p. 3, traduo nossa11).

    Um dos aspectos que podem ter ocasionado essa falsa ideia de fim da religio, o fato de ter o Cristianismo, principalmente sua vertente catlica, perdido fiis ao longo dos tempos, principalmente no Brasil. Assim, haveria a falsa ideia de que ter religio seria ser adepto do Catolicismo, do contrrio, o sujeito seria algum sem-religio, ateu. Acontece que, a religio no se resume a prticas, mas algo pessoal, que existe em cada pessoa, podendo se manifestar ou no em rituais, smbolos, cerimnias, conforme se percebe na anlise da histria da humanidade.

    10 Para Jorge Traslosheros (2012), pode-se renegar a religio, o que no se pode negar seu peso

    cultural na conformao da sociedade, nem sua presena em todos os mbitos da vida individual e social. 11

    [...] las religiones han pasado a ocupar su lugar dentro de la sociedad civil diversificando, junto con sta, sus propias manifestaciones. Vivimos en sociedades donde la pluralidad religiosa es una realidade inconstestable. (TRASLOSHEROS, 2012, p. 3).

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    Deste modo, a religio, como fenmeno humano, acompanha o homem desde seus primrdios, fazendo parte do ntimo de cada indivduo, no ficando adstrita ao interior da pessoa, expressando as aspiraes mais profundas do ser humano, determinando sua viso de mundo e orientando suas relaes com os demais. No comeo era o espanto, o medo do desconhecido, dos fenmenos da natureza, daquilo que era diferente, que no podia ser explicado; acreditava-se em vinganas divinas, na ira dos deuses, os quais se irritavam e lanavam pestes, inundaes, fome, como represlia. O homem buscava na religio possveis explicaes para tais acontecimentos,12 explicaes irracionais, mas que satisfizeram esse homem durante longo perodo de tempo: religio e mitologia foram a base de sustentao de vrias civilizaes durante milhares de anos, como so exemplos, principalmente, as civilizaes mesopotmicas13, hebraica14, fencia, persa, grega15, egpcia, todas elas com fortes influncias religiosas em suas estruturas e modos de organizao social e poltica.

    A religio no fundo, oferece a resposta questo sobre o verdadeiro sentido da existncia, tanto no mbito pessoal como social. (GUERRA LPEZ, 2012, p. 35, traduo nossa16), sendo considerada como uma parte do ser humano, parte essencial. Do medo do desconhecido, da explicao do inexplicvel, o homem se volta religio, ao sagrado, para tentar uma resposta, um alento para sua angstia existencial, uma compreenso para sua limitao. Apesar de se relacionar com aspectos ntimos, a religio possui matizes e manifestaes distintas, sendo sua

    12 Um olhar rpido sobre as civilizaes mostra o papel assumido pela religio em suas histrias: as

    pirmides egpcias como sepulcros, o Partenon de Atenas como centro de peregrinao religiosa, os sacrifcios maias, astecas e incas em honra ao Deus Sol, as pirmides construdas pelos povos pr-colombianos da Amrica com objetivos religiosos. Enfim, tudo se relacionava com a religio. Por um lado, de modo ambguo, possvel entender a religio como fator fundamental de coeso social e desenvolvimento das civilizaes; de outro lado, como fator de guerras e conflitos, sejam contemporneos ou em pocas passadas. 13

    (Mesopotmia), regio do Oriente Mdio localizada entre os rios Tigre e Eufrates, bero das primeiras civilizaes, as quais eram politestas. 14

    De acordo com Gilberto Cotrim (1997) a religio uma das principais bases da cultura hebraica e representa sua principal contribuio ao mundo ocidental. Atravs da crena no deus nico, edificaram o judasmo, que forneceu fundamentos ao cristianismo e ao islamismo. (COTRIM, 1997, p. 38). 15

    A religio, um dos elementos que davam unidade ao mundo grego, apresentava duas caractersticas fundamentais: o politesmo e o antropomorfismo. Alm dos deuses imortais [...], os gregos cultuavam heris ou semideuses, que eram filhos de um deus com uma pessoa mortal. [...] Relatando a vida dos deuses e dos heris, os gregos criaram uma rica mitologia, constituda por numerosas histrias, fabulosas e fascinantes, que inspiraram diversas obras da arte ocidental. (COTRIM, 1997, p. 56). 16

    En el fondo, oferece la respuesta a la cuestin sobre el verdadeiro sentido de la existencia, tanto en el mbito personal como social. (GUERRA LPEZ, 2012, p. 35).

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    prtica materializada em sociedade, abrigando a sociedade multiculturalista contempornea inmeras religies e prticas religiosas. Abordando a questo do limite entre intimidade, prtica social e diversidade religiosa, Helosa Sanches Querino Chehoud (2012) destaca que a religio:

    Extrapola esse limite, pois tem em si nsita a necessidade de ser exercida, o que s pode ocorrer no mundo onde se vive em sociedade. Da a necessidade de ordenao, a fim de que os crentes de todas as religies e os que no tem religio alguma possam conviver da forma mais harmnica e equnime possvel. (CHEHOUD, 2012, p. 11).

    Sendo a religio um aspecto importante para o ser humano, fundamental a liberdade de crer ou no crer, ou seja, a liberdade religiosa. Esse princpio da liberdade religiosa juntamente com o princpio democrtico e o princpio da igualdade compem o princpio da laicidade. Quando me refiro a Estado laico, sublinho tratar de um Estado que conecta esses trs princpios, ou seja, garante a democracia, a igualdade e a liberdade, principalmente liberdade religiosa. Neste sentido, fundamental frisar constituir a liberdade religiosa princpio do Estado Constitucional Democrtico de Direito, que consagra a dignidade da pessoa humana, princpio matriz do ordenamento jurdico brasileiro. Importante destacar tambm que, ao me referir a princpio no estou trabalhando os clssicos princpios gerais do Direito, de acordo com a teoria das fontes do Direito, mas sim os princpios na viso neoconstitucionalista,17 sob uma tica da reviso das fontes do Direito.

    Ao longo do texto, tornar-se-o claras as intersees entre liberdade religiosa, Estado Democrtico e dignidade da pessoa humana, tendo em vista ser a dignidade da pessoa humana a base de fundamentao do pluralismo que deve ser respeitado na sociedade multicultural caracterstica do Estado brasileiro, modelo adotado pela Constituio de 1988, estampado no seu primeiro artigo que salienta constituir a Repblica Federativa do Brasil um Estado Democrtico de Direito.18

    Partindo do fato de ser a liberdade religiosa um princpio, considerando princpio, de acordo com Robert Alexy (2008), como mandamento de otimizao,

    17 O trabalho tem como base constitucional interpretativa e terica o neoconstitucionalismo, que

    prioriza os princpios na compreenso e interpretao da Constituio, superando os postulados do jusnaturalismo e do positivismo jurdico, caracterizando a vertente neoconstitucionalista o primado dos princpios sobre o texto frio e seco da lei, como tambm sobre posies jusnaturalistas, sejam teolgicas ou racionalistas. 18

    Art. 1 A Repblica Federativa do Brasil, formada pela unio indissolvel dos Estados e Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...]. (BRASIL, 2013).

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    caracterizado por poder ser satisfeito em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibilidades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas, percebo que, a escolha desse entendimento de princpio no exclui outras concepes existentes na teoria do Direito.19

    Trs fases distintas apontam o desenvolvimento do conceito de princpios: a primeira delas, a fase jusnaturalista, posteriormente a fase juspositivista e, por derradeiro, a fase ps-positivista, quando ento se desenvolve o neoconstitucionalismo. Para o jusnaturalismo, a legitimidade da ordem jurdica estatal est condicionada a outra ordem superior e transcendental, defendendo a existncia do Direito Natural em posio superior s leis humanas, que confere suporte axiolgico s leis. O direito posto requer adequao aos postulados de um Direito superior, no se conformando com sua simples institucionalizao por um rgo com competncia para tanto.20 Assim, para o jusnaturalismo os princpios se situam nessa ordem superior, identificando-se com axiomas jurdicos universais decorrentes da natureza humana ou da razo, o que faz com que possuam normatividade e vinculatividade nula.

    O jusnaturalismo se desenvolve desde as representaes primitivas de uma ordem legal divina, chegando moderna filosofia do Direito Natural de Rudolf Stammler (1856-1938) e Giorgio Del Vecchio (1878-1970), passando tambm pelo pensamento sofista, estico, da patrstica, escolstica, do Iluminismo e do Racionalismo dos sculos XVII e XVIII. Durante a Idade Mdia, dominada pela patrstica e pela escolstica, a teoria jusnaturalista apresenta contedo teolgico, sendo a inteligncia e a vontade divina os fundamentos do direito natural, prevalecendo uma concepo do direito natural objetivo e material, de esprito tomista. Para os escolsticos, o direito natural era concebido como um conjunto de normas e de princpios morais imutveis, os quais poderiam estar ou no inseridos na legislao, tendo em vista o fato de resultarem da natureza humana, sendo

    19 possvel visualizar contemporaneamente vrias teorias que objetivam explicar o que so os

    princpios do Direito. A primeira delas, de acordo com Marcelo Campos Galuppo (1999), identifica princpios com normas gerais ou generalssimas de um sistema. Desde o incio do sculo, autores como Del Vecchio e Bobbio tentaram compreender os princpios jurdicos como fruto de processos de generalizao operada pela cincia do direito. (GALUPPO, 1999, p. 192). Outra teoria, defendida principalmente por Robert Alexy, entende que os princpios no se aplicam integral e plenamente em qualquer situao, os princpios so identificados com mandados de otimizao, podendo ser cumpridos em diferentes graus. 20

    Nesse sentido, pode-se afirmar que para o jusnaturalismo no basta a elaborao de uma lei pelo Poder Legislativo, a lei deve estar em consonncia com o Direito Natural.

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    imediatamente apreendidos pela inteligncia humana como verdadeiros, correspondendo os primeiros princpios de moralidade quilo que permanente e universal na natureza humana, sendo deveres dos homens consigo prprios, para com os outros e para com Deus. Neste sentido, o princpio fundamental o da obrigatoriedade de se realizar o bem e de se evitar o mal.

    A concepo teolgica do jusnaturalismo foi substituda, paulatinamente, a partir do sculo XVII por uma doutrina junaturalista fundada na razo humana, quando o direito natural passa a ter seu fundamento de validade na razo humana, por influncia do racionalismo matematicista dominante poca. Essa concepo jusnaturalista que concebe a natureza humana como genuinamente social est sustentada nos pensamentos de Hugo Grcio (1583-1645), Samuel Pufendorf (1632-1694) e John Locke (1632-1704).

    Grcio divide o direito em duas categorias distintas: o jus voluntarium, originria da vontade divina ou humana e o jus naturale, oriunda da natureza humana. O direito natural o ditame da razo, no estando a cincia do direito fundamentada teologicamente, sendo o senso social a fonte do direito. Por sua vez, John Locke afirma ser a lei natural aquela acorde com aquilo que cada conduta humana deve fazer, e no com que cada pessoa efetivamente faz, conforme assinala D. A. Lloyd Thomas (1995). Neste sentido, cada homem tem, sem necessariamente recorrer aos poderes estatais, o direito de punir qualquer ofensa a um direito natural. Para Locke o Estado liberal-democrtico a sociedade poltica condizente com a natureza humana.

    Pufendorf, por sua vez, elaborar um sistema completo do direito natural, sistematizando o processo de secularizao do jusnaturalismo, processo iniciado com Hugo Grcio, todavia, diferente desse. Pufendorf defendia ser a lex naturalis resultado de foras exteriores, foras sociais, e no originada da voz interior da natureza humana. Para Pufendorf, as prescries do direito natural pressupem a natureza decada do homem, por isso, todo direito contm uma proibio, e seu carter fundamental repousa em sua funo imperativa. (DINIZ, 2003, p. 39). A imbecillitas (desamparo humano) a principal propriedade humana, da qual decorrer o principal princpio jusnaturalista, a socialitas, ou seja, a necessidade inerente ao homem de viver em sociedade.

    Outra corrente defende a natureza humana como originariamente a-social ou individualista, sendo a mesma sustentada filosoficamente por Thomas Hobbes

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    (1588-1679), Baruch Spinoza (1632-1677) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Hobbes entende o estado natural como um estado no qual o homem se encontra livre de qualquer obrigao social, tendo o direito de agir livremente, no havendo distino entre bem e mal, situao de liberdade que provocar um estado de guerra, originado da cobia, instinto de segurana e do desejo de glria. Com toda a situao de insegurana, os homens celebraro um contrato social, sendo as leis naturais as normas morais que incutiro no homem o desejo de assegurar sua autoconservao e defesa por intermdio de um poder coercitivo absoluto.

    Spinoza, de modo semelhante ao pensamento poltico de Hobbes, sustenta que os cidados cedem direitos ao Estado em troca de sua proteo. Diferentemente de Hobbes, que considera o contrato como quase absoluto, cedendo os cidados todos os seus direitos, exceto o direito de resistir morte, Spinoza, por sua vez, enfatiza que os cidados no podem ceder o direito de buscar sua prpria vantagem como a vem na sua plena generalidade, e, consequentemente, que o poder, e o direito, de qualquer estado real sempre limitado. (GARRET, 2011, p. 878). Nesse sentido, Spinoza21 recomendar um Estado limitado que encorage a liberdade de expresso e a tolerncia religiosa. (GARRET, 2011, p. 878). Em relao questo da liberdade religiosa, interessante destacar o posicionamento de Hobbes (1999), para o qual os homens somente poderiam viver em paz caso concordassem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado, formando a Igreja crist e o Estado cristo um mesmo corpo, governado pelo monarca, que teria o poder de decidir questes religiosas, presidir o culto, como tambm o direito de interpretar as Escrituras, no que contestar e criticar a livre interpretao da Bblia sustentada pela Reforma Protestante, por, de certa forma, enfraquecer o monarca.

    Para Rousseau, os indivduos assentem livremente a um pacto social e transferem seus direitos comunidade, tendo assim garantidas as liberdades e a igualdade da cidadania poltica encontrada no contrato. Somente como cidado o indvduo pode realizar plenamente sua liberdade e exercer seus direitos e deveres morais. Embora o indivduo seja naturalmente bom, precisa estar prevenido contra o perigo de ser dominado ou de dominar. (BIEN, 2011, p. 823).

    21 Por causa da sua identificao de Deus com a Natureza e do seu tratamento da religio popular,

    no poucos dos contemporneos de Spinoza consideraram sua filosofia como um atesmo tenuamente disfarado. Todavia, paradoxalmente, o romantismo do sculo XIX o acolheu pelo seu pantesmo. (GARRET, 2011, p. 878-879).

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    Essa concepo jusnaturalista levada s ltimas consequncias por Immanuel Kant (1724-1804), o qual separar direito e moral, sob o prisma formal, distinguindo direito de moral pelo motivo pelo qual se cumpre a norma jurdica ou moral. Para Kant, o homem capaz de impor para si normas de conduta, as quais so designadas por normas ticas vlidas para todos os seres racionais. A obedincia do homem sua prpria vontade livre e autnoma constituir a essncia da moral e do direito natural.22

    Outras vertentes do jusnaturalismo foram desenvolvidas ao longo da cincia do Direito, porm todas embasadas nos aspectos citados. Assim, posteriormente ao jusnaturalismo, concepes legalistas ou mecnicas da interpretao do fenmeno jurdico foram elaboradas, sendo a Escola de Exegese o primeiro exemplo, a qual identificava a lei escrita como a totalidade do direito positivo, sendo o Cdigo Napolenico de 1804 a expresso histrica dessa concepo legalista.

    Para as concepes positivistas os princpios esto inseridos no ordenamento jurdico positivo, no se falando mais em princpios supralegais, existindo primazia da lei na resoluo dos conflitos. Nesse sentido, os princpios restringem-se a desempenhar funo supletiva na aplicao do direito, aproximando-se dos princpios gerais de direito, estampados na legislao brasileira por intermdio do artigo 4 da Lei de Introduo s Normas do Direito Brasileiro23, o qual dispe que quando a lei for omissa, o juiz decidir o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princpios gerais do direito. (BRASIL, 2013, grifo nosso). Por intermdio de interpretao literal do referido dispositivo, percebe-se o carter supletivo dos princpios para o positivismo, o qual sustentar, durante considervel perodo de tempo, a interpretao e aplicao do direito, persistindo nos dias atuais com representatividade considervel na doutrina e jurisprudncia.

    Posteriormente, com a instituio de princpios gerais em constituies escritas, vrios desses princpios recebem contornos de status constitucional, migrando-se dos cdigos para o texto constitucional, percorrendo um processo de constitucionalizao e transformando-se em princpios constitucionais. Nesta fase, denominada por Paulo Bonavides (2001) de ps-positivista, os princpios assumem

    22 Sem aprofundar na problemtica dos ataques contra o jusnaturalismo operados no sculo XIX,

    originados do historicismo, sociologismo e positivismo jurdico, destaco o renascimento do jusnaturalismo no sculo XX por intermdio das doutrinas de Stammler, Giorgio Del Vecchio, Jean Dabin, Helmut Coing. 23

    Anteriormente denominada Lei de Introduo ao Cdigo Civil.

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    normatividade mxima, deixando de assumir funo secundria (supletiva) na aplicao do direito para assumir trao de normatividade e supremacia jurdico-normativa. Assim, para este ncleo de pensamento, os princpios tem positividade, vinculatividade, so normas, obrigam, tem eficcia positiva e negativa sobre comportamentos pblicos ou privados. (ESPNDOLA, 1999, p. 55).

    Percebe-se no serem os princpios meras diretrizes a serem perseguidas pelos destinatrios, como tambm no serem simples recomendaes utilizveis em decorrncia de insuficincia regulatria dos diplomas legais, mas sim normas jurdicas que impe um dever-ser. Ao lado dos princpios situam-se as regras, sendo princpios e regras as duas espcies do gnero normas jurdicas, os quais diferenciam-se, de acordo com Jos Joaquim Gomes Canotilho (1993), primeiramente pelo grau de abstrao para o jurista portugus os princpios possuem grau de abstrao relativamente elevado, ao passo que as regras possuem grau baixo de abstrao; pelo grau de determinabilidade na aplicao do caso concreto assim os princpios reclamam mediaes para serem aplicados, enquanto as regras dispensam tal mediao, podendo ser aplicadas diretamente; pelo carter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito os princpios desempenham papel fundamental no ordenamento jurdico, em decorrncia de sua posio hierrquica superior ou por fora de sua importncia estruturante no sistema jurdico; pela proximidade da ideia de direito os princpios so modelos juridicamente vinculantes que decorrem da exigncia da justia, enquanto as regras podem possuir um contedo meramente funcional; e pela sua natureza normogentica os princpios so fundamento das regras, podendo um princpio por si s fundamentar diversas regras.24

    Interpretando a afirmao de que os princpios ostentam grau elevado de generalidade, seguindo o magistrio de Ral Canosa Usera (1988), destaco que ambos, princpios e regras, possuem a generalidade, abstrao e impessoalidade como caractersticas. O que a generalidade dos princpios quer mencionar sua srie indefinida de aplicaes, ou seja, os princpios tendem a acobertar um nmero, quanto mais alto melhor, de questes de fato, ao passo que as regras so gerais na medida em que so estabelecidas com o intuito de abranger um nmero

    24 Como exemplo pode-se citar o princpio constitucional da proteo vida (estampado no artigo 5

    da CRFB/88), do qual decorrem as regras no matar tipificada no artigo 121 do Cdigo Penal brasileiro, no abortar, tipificada no artigo 124 tambm do Cdigo Penal brasileiro.

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    indeterminado de fatos ou atos, mas regendo apenas tais fatos ou atos, abrangendo uma situao jurdica determinada.

    Para Ronald Dworkin (2002), princpios e regras distinguem-se por uma diferena lgica, sendo, tantos os princpios quanto as regras, standards. As regras operam-se no critrio do tudo ou nada, ou seja, ou se verificam os fatos previstos na regra e ela ser vlida, devendo ser aplicada, ou, caso contrrio, a regra ser invlida, por sua vez, para os princpios, vigora a dimenso do peso ou da importncia.25 Deste modo, os enunciados principiolgicos26 no esgotam todas as condies e situaes de sua aplicao, devendo-se analisar no caso concreto sua aplicao por intermdio do peso relativo dos princpios envolvidos. Dessa forma, ainda que presentes as condies estabelecidas para aplicao de um princpio, isso no significa que ele dever ser definitivamente aplicado, pois que poder haver outros princpios incidentes na mesma situao (LEITE; LEITE, 2008, p. 25), devendo ser avaliado o peso de cada princpio envolvido, com o objetivo de se determinar qual ser aplicado. Em relao conceituao de princpio, importante apresentar o clssico magistrio de Robert Alexy (2008), para quem:

    O ponto decisivo na distino entre regras e princpios que princpios so normas que ordenam eu algo seja realizado na maior medida possvel dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Princpios so, por conseguinte, mandamentos de otimizao, que so caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das possibilidades ftica, mas tambm das possibilidades jurdicas. O mbito das possibilidades jurdicas determinado pelos princpios e regras colidentes. (ALEXY, 2008, p. 90).

    25 Como pode se resolver uma coliso entre princpios? Alexy (2008) em lio clssica enuncia: Se

    dois princpios colidem o que ocorre, por exemplo, quando algo proibido de acordo com um princpio e, de acordo com o outro, permitido , um dos princpios ter que ceder. Isso no significa, contudo, nem que o princpio cedente deva ser declarado invlido, nem que nele dever ser introduzida uma clusula de exceo. Na verdade, o que ocorre que um dos princpios tem precedncia em face do outro sob determinadas condies. Sob outras condies a questo da precedncia pode ser resolvida de forma oposta. (ALEXY, 2008, p. 93). Nestes termos, um princpio no anular o outro, apenas haver a prevalncia, no caso concreto, de um em relao ao outro, no se declarando invlido o princpio que foi preterido em face do outro. Assim, um princpio ser prefervel ao outro num caso concreto, de acordo com as particularidades existentes, ao contrrio do que acontece com as regras, que so resolvidas no sistema do tudo ou nada. 26

    Acusar uma norma de principiolgica significa dizer que faz parte das normas jurdicas abstratas, as quais tem sua hiptese de incidncia aberta, ou seja, tem a capacidade de expandir seu comando consoante as situaes concretas que se forem apresentando. (TAVARES, 2008). Para Walter Claudius Rothenburg (1999) a norma principiolgica de alguma maneira, aberta, tanto pelo seu contedo quanto pela sua expansividade, ou seja, apresenta eficcia irradiante.

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    Por sua vez, as regras so, para Alexy (2008) normas que so sempre satisfeitas ou no satisfeitas. Assim, se uma regra vale, ento, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contem, portanto, determinaes no mbito daquilo que ftica e juridicamente possvel. (ALEXY, 2008, p. 91). Concluindo, a distino entre regras e princpios qualitativa e no de grau. Toda norma ou uma regra ou um princpio. (ALEXY, 2008, p. 91).

    Tratando a liberdade religiosa como direito humano, um dos pilares do Estado Constitucional Democrtico, no abordo algo presente na histria da humanidade desde os seus primrdios, do contrrio, a liberdade de religio um postulado da Era Moderna. Isso ocorre por no haver diversidade religiosa at a Reforma Protestante iniciada em 1517 com Martinho Lutero, quando ento havia a primazia do Catolicismo no ocidente, fator existente, seja por intermdio da fora, seja por doutrinao ideolgica (principalmente por intermdio do medo), seja realmente por ausncia de outra religio como opo ao indivduo.

    Durante a Antiguidade vigorou o monismo, identificao entre o poder poltico e a religio, entre comunidade poltica e comunidade religiosa, estando a religio associada de modo ntimo vida da comunidade, possuindo cada povo os seus deuses, que protegiam e defendiam a cidade, muitas vezes tornando-se deuses irascveis, os quais vingavam-se da desobedincia, dos excessos, estando tal vingana relacionada aos eventos da natureza e sendo aplacada por intermdio de sacrifcios humanos e animais, como tambm por intermdio de rituais. Esta manifestao do divino est presente em vrios monumentos da humanidade, como tambm nas primeiras legislaes escritas, como exemplo o Cdigo de Hamurabi (aproximadamente 1700 a.C.), o qual trazia em seu prembulo a informao de ter Hamurabi recebido dos prprios deuses o poder de governar os homens, como tambm de sido o Cdigo uma ddiva divina, ou seja, j se percebe nesse momento a presena do monismo. Para Paulo Pulido Adrago (2002), o monismo:

    [...] caracterstica fundamental do mundo pr-cristo: a esta realidade correspondem, dentro do mbito geogrfico em que se vai desenvolver a civilizao ocidental, sistemas que abarcam desde o regime faranico aos imprios pr-colombianos, passando pela Prsia e por Roma: salvando todas as reservas que uma tal simplificao da histria leva consigo, pode com efeito afirmar-se o monismo (identidade ou confuso das esferas religiosa e poltica e dos correspondentes rgos do poder) do mundo pr-cristo na sua representao poltica mais tpica, os grandes imprios teocrticos. (ADRAGO, 2002, p. 32).

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    Tal identificao entre poder poltico e poder religioso podia se caracterizar de duas formas: a teocracia, havendo nesta forma a prevalncia do poder religioso, e o cesarismo, sendo o mesmo caracterizado como o predomnio do poder poltico. Dentro deste ambiente, destaco a experincia de Atenas, o principal exemplo de um sistema poltico desvinculado, em boas medidas, de implicaes teocrticas. A experincia ateniense no tem neste momento consequncias, tendo em o seu trmino no ano de 338 da era pr-crist, quando ento ocorre a ocupao macednica, no sendo tal experincia repassada civilizao romana. Por sua vez, no ano doze antes de Cristo, Augusto (63 a.C-14 d.C), prximo do final de seu reinado, incorpora sua dignidade imperial o ttulo de Pontfice Mximo: a Repblica romana d de novo lugar ao monismo. (ADRAGO, 2002, p. 33).

    Neste ambiente cultural surge o cristianismo e o seu pensamento basilar, difundindo-se uma nova proposta poltica em relao ao indivduo-polis, sendo tal proposta um desafio ao pensamento antigo: a autonomia da pessoa em relao ao mundo, ao Estado, ao direito, tendo o seu fundamento numa entidade realmente, no ficticiamente diversa do mundo, do Estado, do direito: em Deus, ser subsistente por si prprio. Neste sentido:

    A existncia de um Deus transcendente fundamenta assim, solidamente, a subtrao da ordem religiosa ao imprio do chefe poltico e constitui por isso um pressuposto essencial para a afirmao, indita na histria humana, da liberdade religiosa. A noo de liberdade religiosa como espao de autonomia da pessoa e das comunidades religiosas em relao ao Estado e na sociedade tem fundamento na mais autntica tradio crist. (ADRAGO, 2002, p. 33).

    Dentro deste ambiente cultural cristo inaugurado, interessante salientar a presena de aspectos referentes questo religiosa e sua relao social e poltica presentes nas fontes bblicas:

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    1. A f uma adeso da conscincia que deve decidir-se livremente [...] (cf. Mc. 1,17; Mt 19,21-22) A f no pode ser imposta pela fora. 2. Cristo estabeleceu a distino entre o que de Csar e o que de Deus. (Mt. 22, 21; Jo.18,36). [...] Alm do mais, a autoridade do Estado tambm vem de Deus (cfr. Jo. 19,11;Ro. 13,1): portanto, ele no dispe de poder absoluto no seu prprio domnio temporal mas continua vinculado pelas prescries de ordem natural. Se ele violar estes limites, os crentes sabem que eles devem obedecer antes a Deus do que aos homens. (Act. 5,29). 3. O Evangelho separou a f religiosa da pertena a uma nao particular [...] (cf. J. 4,23; Ga. 3,28; Ef. 2, 13-16). 4. A comunidade religiosa, a Igreja, livre de se organizar segundo os seus prprios critrios [...] (cfr.Mt. 18, 17; 1 Cor. 5,5.13), como o confirmar os exemplos da deciso de sanes no mbito eclesial, independentemente do mbito do poder poltico. (MINERATH, 1991, p. 26).

    Percebe-se, deste modo, que os textos bblicos frisam, de modo indito, a liberdade do ato de f (liberdade de crena), o pluralismo de formaes sociais, ou seja, os grupos religiosos no coincidem com as comunidades polticas, a limitao do poder poltico decorrente do dualismo de autoridades polticas e religiosas, os quais so caracterizados como elementos basilares da liberdade religiosa, seja ela individual ou coletiva.

    Dentro do teor bblico, outra passagem merece destaque: o texto de Mateus no Novo Testamento, captulo 22, versculo 21 Devolvei, pois, o que de Csar a Csar, e o que de Deus a Deus. Tal passagem mostra a superao do monismo teocrtico, como tambm a consagrao do dualismo, expresso pela ideia de que a sociedade composta de duas partes, de um lado a Igreja, de outro lado, o Estado. Neste sentido, atribui-se referida passagem bblica a importncia imensurvel de ter, pela primeira vez na histria, separado a religio (Deus) do Estado (Csar). (CHEHOUD, 2012, p. 26). O dualismo no representou uma igualdade entre Estado e Igreja, o que de fato no ocorreu. Do contrrio, percebe-se da histria que a Igreja ocupou posio de superioridade em relao ao Estado, impondo-se em relao ao mesmo, servindo como referncia legitimadora para os governantes de ento.

    Assim, concordo com Adrago (2002), quando o mesmo salienta ter o dualismo cristo contribudo para a conscientizao da necessidade de limitao do poder poltico pelo direito, e, portanto, para a formao do Direito Pblico: a comunidade poltica no nica, devendo relacionar-se com outras, designadamente com outras comunidades religiosas. Tais ideias dualistas esto previstas no primeiro tratado cristo favorvel liberdade religiosa: o Ad Scapulam de Tertuliano (160-220?). Tratando da natureza jurdica da liberdade religiosa,

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    Tertuliano, jurista de Cartago, elabora a expresso libertas religionis, a qual consiste na optio divinitatis, ou seja, uma escolha pessoal. Neste sentido, para Tertuliano, a liberdade religiosa um direito prprio da pessoa, sendo tambm considerada um direito humano (ius humanum), fundado na natureza, um direito natural (naturalis potestas). Tecendo importantes consideraes relativas religio como fenmeno social e o seu tratamento pelo poder poltico, Tertuliano salienta no poder ser a religio um pretexto para a discriminao civil, no tendo a prtica religiosa valor algum se no for uma prtica livre, distante de coao ou imposio. O Estado no deve ocupar o lugar de Deus, como Deus no deve ocupar o lugar do Estado.

    Assim, o monismo, ou seja, a identificao entre o poder poltico e a religio, a caracterstica fundamental do mundo pr-cristo, o modelo tpico da Antiguidade, surgindo aps a difuso do cristianismo, um dualismo, separando mbito religioso de mbito poltico. Porm, o dualismo, base da primeira noo de liberdade religiosa, no se estabeleceu, tendo que esperar longamente pela sua formalizao jurdica, o que s ocorrer tempos depois, j na Era das Revolues (sculos XVI e XVII).

    Historicamente, o Estado Antigo foi dominado por normas e sentimentos religiosos, regulando a religio a sociedade e o poder, a comear pelo prprio calendrio, que era regulado apenas pelas misteriosas leis da religio, que s os sacerdotes conheciam. (CHEHOUD, 2012, p. 22). Havendo, tambm, durante a Antiguidade, a influncia dos sentimentos pagos, tendo as primeiras civilizaes, principalmente a mesopotmica, egpcia e grega, cultuado diversos deuses (povos politestas), que representavam inclusive os governantes celestiais da sociedade.

    De acordo com Fustel de Coulanges (2007), no que se refere ao poder da religio na Antiguidade, no havia um nico ato da vida pblica que no sofresse a interveno dos deuses, inclusive reunindo-se o povo em assembleia somente nos dias permitidos pela religio. Em suma, na Antiguidade, religio, direito e governo confundiam-se em um s poder: o divino. Em relao ao culto religioso na Antiguidade, Chehoud (2012) sublinha que:

    O culto religioso era domstico e consistia num banquete, chamado sacrifcio. A comunicao que o homem fazia para com a divindade era preenchida por essa refeio, que se acreditava ter o poder de salvar a cidade. Esses banquetes eram verdadeiras cerimnias religiosas, e o seu ritual, tradio advinda dos antepassados, deveria ser rigorosamente seguido, de forma que qualquer modificao que se fizesse poderia

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    provocar a fria dos deuses em prejuzo de toda a cidade. [...] A rigor, religio, para os antigos, consistia em ritos, cerimnias e prticas de culto exterior, ideia bem diferente da que se tem atualmente, em que prevalece a orao a um Deus, smbolo de f. (CHEHOUD, 2012, p. 23).

    Era funo do pater familias a manuteno do fogo sagrado domstico, smbolo da coeso e da sagrao familiar. Em Roma, o templo de Vesta mantinha o fogo sagrado como garantia da eternidade daquela civilizao. As religies pags oficiais de Roma so confrontadas com o cristianismo, que ento perseguido pelos governantes romanos que dominam o mundo antigo. Acossada por Diocleciano, a religio crist ser reconhecida em 313 pelo novo imperador Constantino, um ano aps a vitria na ponte Mlvia, contra Magncio. Constantino assina o Edito de Milo (313) concedendo aos cristos o direito de praticar seu culto, com a inteno de favorecer a reunificao dos povos do Imprio. o fim da perseguio contra a nova religio, que havia culminado quando dos Editos de Diocleciano em 303-304, origem da Grande Perseguio, particularmente cruel. (SALLES, 2013, p. 35).

    O Edito de tolerncia talvez no tenha significado a converso de Constantino ao cristianismo, algo improvvel tendo em vista ter o mesmo recebido seu batismo apenas no ano de 337, em seu leito de morte. Ademais, durante o seu reinado no houve rompimento com o paganismo,27 o que ocorreu foi tolerncia ao cristianismo, at ento proibido no Imprio, ou seja, de religio martirizada, o Cristianismo passa a ser tolerado, antes de se tornar, no final do sculo, religio obrigatria para todos os habitantes do Imprio.

    Depois do breve reinado do Imperador pago Juliano (331/2-363), o Apstata, ocorre durante o reinado de Graciano (375-383) a ruptura total entre cristianismo e paganismo, por intermdio de uma srie de decretos consagrando o desaparecimento oficial da religio ancestral. Neste sentido:

    O Altar da Vitria, smbolo do poder romano pavoneando-se na cria senatorial do Frum, retirado. Todas as subvenes oficiais pagas aos sacerdotes dos cultos pagos so retiradas. Os templos perdem seus privilgios de imunidade. Os feriados at ento respeitados por ocasio das festas pags so suprimidos. No final do sculo IV, o cristianismo sai, enfim, definitivamente vencedor de sua luta contra o paganismo. Em 380,

    27 Constantino quer evitar os conflitos e mantm um equilbrio mais ou menos satisfatrio entre

    pagos e cristos. A tolerncia imperial realada por medidas pontuais. O magistrado intervm apenas ocasionalmente para condenar certos ritos do paganismo que para ele soam mais como superstio do que como religio, a exemplo da bruxaria e da magia. Uma etapa decisiva transposta em 331, quando o poder decreta o inventrio dos bens dos templos pagos, o que deixa a porta aberta para seu confisco. (SALLES, 2013, p. 36).

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    proclamado religio de Estado e todas as heresias so condenadas. Os sditos do imperador devem professar a f estabelecida pelo Conclio de Nicia. (SALLES, 2013, p. 36).

    O cristianismo ser imposto como religio do Imprio a toda Roma, obviamente que a institucionalizao dessa nova religio no ocorre de forma pacfica. As crenas pags estavam impregnadas no cotidiano da civilizao, o que provoca combates entre paganismo e cristianismo, principalmente durante o sculo quatro. Porm, a partir do sculo V, num mundo em plena transformao, os locais de culto pago sero paulatinamente abandonados ou destrudos, conquistando espao o cristianismo em todo o Imprio, aproximava-se a Idade Mdia.

    O Estado Medieval sofreu de modo contundente a influncia da religio, especificamente do Cristianismo, no havendo que se falar em liberdade religiosa como um direito formalizado, tendo em vista a imposio de uma nica religio no mundo ocidental, com o Catolicismo Apostlico Romano influenciando e dominando a vida poltica e social do Ocidente, por intermdio da sua imposio pelo Imprio Romano.28 Essa influncia do Catolicismo decorre do fato de a queda do Imprio Romano do Ocidente ter transformado a Europa num espao poltico rarefeito, constitudo por estamentos e corporaes. Neste ambiente, somente a Igreja Catlica estava em condies de preencher o vazio poltico e cultural deixado pelo Imprio de Roma, como tambm reconduzir o pluralismo feudal a uma unidade de sentido. O resultado de tal situao foi a gradual substituio do natural pelo sobrenatural, ou seja, uma subordinao de todas as esferas da vida a uma mundividncia teolgica fechada.29 (MACHADO, 1996). De acordo com Jnatas Eduardo Mendes Machado (2009):

    Como sucessor de Csar, o Papa reclamava para si a suprema autoridade em questes polticas, exigindo a subordinao de todos os monarcas. Comea, assim todo um processo de verdadeira imitatio imperii, que culminar na apropriao pelo Papa dos ttulos sacerdotais dos antigos imperadores romanos, como sejam, por exemplo, os de summus pontifex e pontifex maximus. No plano teolgico, verdadeiramente decisivo, mobiliza-se o argumento da sucesso ininterrupta da ctedra de Pedro que coloca o Papa como Vigrio de Cristo na terra, titular de todo o poder e condio ltima de legitimao e legitimidade de todo o poder temporal, considerado

    28 Jos Scampini traz que: Os papas nomeavam e demitiam imperadores, erguiam e derrubavam

    imprios. (SCAMPINI, 1978, p. 13). 29

    Dentro deste ambiente medieval, no se pode esquecer o fato de a Igreja e, consequentemente o papado, regular de modo amplo a vida secular de ento, que passou a ser constituda de regras, cerimnias e rituais religiosos que disciplinavam, no apenas a vida dos clrigos, mas tambm todas as demais relaes sociais. (BEDIN, 2008, p. 61).

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    fundado numa delegao e numa investidura papal, devendo ser exercido dentro dos limites por elas determinado. (MACHADO, 2009, p. 29).

    Evento importante ocorre no ano de 476, com as invases brbaras, quando a parte ocidental do Imprio Romano sucumbir, subsistindo o Imprio somente no Oriente, o que diferenciar os rumos histricos entre Oriente e Ocidente. Esse Cisma na Igreja do Ocidente decorreu da crise da sociedade feudal, levando, consequentemente, ao declnio do Papado, dividindo-se a Igreja em Ocidental (catlica) e Oriental (ortodoxa). De acordo com Gilmar Antonio Bedin (2008):

    Esse grande cisma e esse declnio, na verdade, podem ser vistos como uma das consequncias das transformaes gerais daquele perodo da histria, uma vez que, ao serem modificados a estrutura e os fundamentos da sociedade feudal em especial com o florescimento do comrcio e a ascenso da vida urbana -, rompeu tambm com aquela ordenao perfeita dos rituais catlicos presentes nos diversos setores da sociedade de ento e com a clericalizao absoluta da vida secular. (BEDIN, 2008, p. 61).

    Estando nesta mesma situao at o sculo XII, o panorama comeou a sofrer mudanas por intermdio do tratado do monge Graciano, intitulado Uma concordncia de cnones discordantes, tambm conhecido como Decretum Gratiani, ou simplesmente Decretum, redigido por volta de 1140, o primeiro tratado legal abrangente e sistemtico na histria do Ocidente, ou talvez na histria da humanidade. (BERMAN, 2006).

    Tendo sobrevivido o Imprio oriental, subsistir o cesarismo imperial, o que permanecer at a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453. Por sua vez, no Ocidente permanecer a tradio do dualismo que, com o vazio de poder e de cultura, dar lugar ao hierocratismo, sendo a Igreja chamada a preencher o vazio, a partir dos seus prprios recursos organizativos e culturais. (ADRAGO, 2007).

    O hierocratismo implicou a debilitao da autonomia do poder temporal. A conjuntura histrica da derrocada do Imprio Romano ocidental acabou por levar doutrina segundo a qual o poder poltico dos prncipes est sujeito jurisdio da Igreja, atravs de uma considerao excessivamente ampla da competncia eclesial quanto moralidade das aes. Assim se explica a formulao de um modelo de unio do poder poltico e do poder religioso, pressuposta a sua no-identificao, com ascendncia do poder religioso, tambm conhecida por clericalismo. (ADRAGO, 2002, p. 57).

    Com os acontecimentos histricos subjacentes, ocorre a teorizao do dualismo, realizada pelo Papa Gelsio I (492-496), esboada em carta a Anastsio,

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    Imperador do Oriente, em 494. O dualismo gelasiano , assim, a primeira formulao papal temtica de algo que j estava na conscincia da comunidade crist desde os comeos, neste sentido, a sistematizao das teses de Gelsio podem ser sintetizadas nos seguintes pontos, de acordo com Adrago (2007):

    1 Existem dois poderes diferentes para o governo do mundo, a sagrada autoridade dos pontfices e o poder real. 2 Ambos so de origem divina. 3 So independentes entre si nas respectivas ordens de competncia. 4 Nenhum dos poderes ser submetido ao outro. 5 D-se uma submisso pessoal dos titulares de um poder ao outro, quanto s funes prprias daquele. 6 A vida espiritual rege-se pelo poder do Papa e dos bispos. 7 Este poder merece mais alta reverncia a dignidade da vida religiosa superior da vida temporal. 8 Essa maior reverncia no se traduz num poder do Papa sobre o Imperador. (ADRAGO, 2007, p 41).

    Neste sentido, a Igreja foi durante a Idade Mdia a instituio dominante no Ocidente, tendo em vista ainda no existir a ideia de Estado Moderno, estando o mundo ocidental dividido em feudos governados por vassalos, no havendo o primado da lei escrita, geral, impessoal e abstrata. O Cisma do Oriente, ocorrido em 1093, do qual originou a Igreja Ortodoxa grega, como tambm o Cisma do Ocidente (1450), com o duplo Papado, Roma e Avinho, no abalaram o exclusivismo religioso; nem sequer o advento da Igreja Anglicana (1534) e mais tarde o da Igreja Ortodoxa Russa conseguiram infirmar tal excluvisismo. (SCAMPINI, 1978, p. 14).

    Durante a Idade Medieval experimenta a Igreja seu momento de maior poder, estando toda a vida secular regulada pela observao das regras crists, as quais vigoravam na vida pblica e privada: as estaes do ano agrcola, o calendrio anual, as reunies assembleares estavam marcados por atividades religiosas; nas universidades os exames e provas eram realizados dentro das igrejas, sendo acompanhados de missas, salmos e cnticos, ou seja, o mundo medieval concentrava sua vida ao redor da religio catlica. Alm do que:

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    A vida cotidiana era toda impregnada por pequenos rituais catlicos: frmulas para benzer os alimentos que iam ser ingeridos, a gua, as frutas, o leo, o po; rezas pedindo proteo contra as catstrofes, contra os perigos das viagens, dos animais selvagens, das pragas. Praticamente todas as formas de doena e loucura eram atribudos a feitios do diabo, e eram resolvidas por meio de exorcismos, sinais-da-cruz, gua benta, preces, missas. Todas as manifestaes culturais pintura, msica, literatura, escultura, arquitetura... utilizavam elementos ligados ao sagrado. (SEFFNER, 1993, p. 5).

    Apesar de toda a influncia do catolicismo na vida medieval, havia ideias divergentes do pensamento e do modo de viver catlico. Neste sentido, ainda nesse momento da Idade Mdia, esto inseridos os movimentos herticos, movimentos constitudos predominantemente por indivduos pobres (servos e camponeses em sua maioria), os quais reivindicavam modificaes no campo religioso, como tambm no social, condenando privilgios e diferenas que, segundo eles, estavam contra a lei de Deus e os ensinamentos da Bblia. (SEFFNER, 1993, p. 7). Importante salientar o fato de se encontrar nesses movimentos herticos muitas das ideias que comporo o ncleo essencial do protestantismo, como por exemplo: a possibilidade de cada fiel interpretar a Bblia; o ideal de uma religio simplificada, com padres e pastores com maior dedicao a seus fiis.

    Essas ideias esto presentes nos movimentos herticos de Wyclif (1320-1384) e Joo Huss (1369-1415). O movimento liderado por Huss, ao atacar a Igreja rica e desregrada, ganhou o apoio dos camponeses e artesos das cidades tchecas, dos mendigos e dos assalariados. Mesmo aps ter sido queimado na fogueira, em 6 de julho de 1415, suas ideais continuaram a se espalhar, pois, na poca da Reforma, ainda vamos encontrar grupos de hussitas atuantes na Alemanha. (SEFFNER, 1993, p. 7).

    Nesse clima de ideias contrrias Igreja Catlica, irromper, no sculo XVI, a Reforma Protestante, com Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha, Joo Calvino (1509-1564) na Frana, Ulrico Zwnglio (1484-1531) na Sua, (evento de importncia considervel no curso da histria da liberdade religiosa, tendo em vista o fato de a mesma ter dividido a cristandade em catlicos e protestantes), destruindo definitivamente o ideal de uma comunidade crist mundial conduzida pelo Papa, vigrio de Cristo (PERRY, 1999), surgindo, a partir de ento, o problema da

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    intolerncia religiosa.30 Entendo marcar a Reforma Protestante o incio da Idade Moderna, em decorrncia de sua importncia para a histria da humanidade.

    A Reforma, como um complexo de fatos ocorridos durante a maior parte do sculo XVI, pelo qual uma significativa maioria dos membros da Igreja catlica foi perdida para as novas igrejas protestantes que se estabeleceram como rivais da Igreja de Roma, (RANDELL, 1995, p. 9), constitui-se de dois conjuntos de acontecimentos. O primeiro deles a sua origem, a qual se d em toda a Alemanha, centrando-se na vida de Martinho Lutero; o segundo momento a Reforma tardia, a qual pode ser situada na Sua, de onde se disseminou para regies distantes, girando seus postulados em torno dos ensinamentos de Joo Calvino.

    Essa mudana constituiu marco importante na histria europeia porque abriu a porta para uma incerteza espiritual generalizada. Onde antes havia apenas um conjunto de crenas amplamente aceitas como corretas, agora havia dois. Todos podiam ver que um dos dois deveria estar errado, e muitos comearam a perguntar qual deles. (RANDELL, 1995, p. 9).

    Todavia, no se pode centrar a definio da Reforma apenas no aspecto religioso, mais do que isso, a Reforma irradiou efeitos nos campos poltico, social e econmico, principalmente levando-se em considerao o fato de a mesma ter ocorrido durante um perodo histrico no qual as estruturas do mundo feudal estavam sacudidas, e as primeiras estruturas do mundo capitalista comeavam a surgir, ou seja, a Reforma ocorre durante a transio do feudalismo ao capitalismo. Assim, apesar de estar diretamente relacionada com a religio, fundamental questionar se o motivo da Reforma era realmente o religioso, ou seja, as desejadas mudanas foram recebidas por questes espirituais ou materialistas? Neste sentido:

    30 De acordo com Jnatas Eduardo Mendes Machado (1996) a tolerncia religiosa constituiu, assim,

    num momento de transio no processo que conduziu consagrao constitucional do direito liberdade religiosa. (MACHADO, 1996, p. 73).

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    Argumenta-se que na Alemanha, por exemplo, o desenvolvimento e a disseminao do luteranismo s ocorreram por causa de certos representantes da populao, em especial os relativamente prsperos habitantes das cidades, que se ressentiam profundamente das rgidas normas da Igreja sobre detalhes como, por exemplo, as regras sobre jejum. Assim, muitas das pessoas que abraaram a religio reformada faziam isso em grande parte na expectativa de se libertarem das restries mesquinhas e, finalmente, resolverem suas vidas da maneira como bem entendessem. As crenas religiosas e a forma de venerao tinham apenas importncia secundria. A meta primordial era eliminar o controle social exercido pela Igreja. (RANDELL, 1995, p. 10).

    Por sua vez, outra parte da Histria visualiza a Reforma sobre uma base poltica, sendo considerada como o primeiro exemplo do nacionalismo alemo, representando um movimento de recusa contra estrangeiros, principalmente, italianos, que viviam em Roma, todavia controlavam muitos aspectos da vida alem, extorquindo parte da riqueza do pas; podendo tambm ser vista como um meio utilizado pelos governantes alemes para suprimir a influncia externa sobre seus territrios. Assim, os prncipes luteranos ganharam o controle da Igreja, em vez de este ficar nas mos do papa em Roma, o que significava que as decises legais que envolvessem questes como casamento e herana, [...] agora estavam inteiramente em suas mos. (RANDELL, 1995, p. 10).

    Por sua vez, outra vertente da Histria observa na Reforma motivos econmicos. Um perodo de alta inflao motivou o rompimento da Alemanha com Roma, o que seria um excelente meio para se reduzir os problemas financeiros. Neste sentido:

    Havia a perspectiva de ganhos financeiros: do campons mais humilde, que equivocadamente imaginava que no teria mais de pagar dzimos (os impostos sobre a produo agrcola, pagos Igreja), ao prncipe, que antevia a possibilidade de tomar para si as terras da Igreja. H quem afirme que essa situao provocou o apoio generalizado Reforma e o que d real significado. (RANDELL, 1995, p. 10-11).

    Motivaes orgnicas parte, fato que a Reforma deve ser considerada num contexto amplo, como um rompimento com a viso medieval de mundo, o que passa necessariamente por uma superao da viso religiosa. A certeza de que Deus criou o mundo e que no caberia ao homem nada mais do que aceitar a vida do modo em que o mesmo a recebeu, vai sendo superada por um conhecimento que comea com a Era das Navegaes e, principalmente, com o desenvolvimento das Cincias durante o sculo dezesseis.

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    Analisando as causas de longo prazo, destaco o modo de vida do alemo tpico do incio do sculo XVI, o qual tambm pode-se aplicar aos outros habitantes da Europa ocidental:

    O fato de estar profundamente interessado tanto neste mundo como no outro mundo. A mortalidade infantil era elevada, os adultos sobreviventes j eram velhos aos 40 anos e apenas uma minscula parcela