tese alice tavares 2003

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A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE E, AÍ, DAÍ E, AÍ, DAÍ E, AÍ, DAÍ E, AÍ, DAÍ E E E E ENTÃO ENTÃO ENTÃO ENTÃO: ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA NO DOMÍNIO FUNCIONAL DA NO DOMÍNIO FUNCIONAL DA NO DOMÍNIO FUNCIONAL DA NO DOMÍNIO FUNCIONAL DA SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA DE INFORMAÇÕES PROPULSORA DE INFORMAÇÕES PROPULSORA DE INFORMAÇÕES PROPULSORA DE INFORMAÇÕES – UM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTA UM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTA UM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTA UM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTA por por por por MARIA ALICE TAVARES MARIA ALICE TAVARES MARIA ALICE TAVARES MARIA ALICE TAVARES Curso de Pós Curso de Pós Curso de Pós Curso de Pós-Graduação em Lingüíst Graduação em Lingüíst Graduação em Lingüíst Graduação em Lingüística ica ica ica Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pós de Pós de Pós de Pós-Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título de Doutor em Lingüística. de Doutor em Lingüística. de Doutor em Lingüística. de Doutor em Lingüística. Orientadora: Profª. Dra. Edair Maria Görski Orientadora: Profª. Dra. Edair Maria Görski Orientadora: Profª. Dra. Edair Maria Görski Orientadora: Profª. Dra. Edair Maria Görski FLORIANÓPO FLORIANÓPO FLORIANÓPO FLORIANÓPOLIS LIS LIS LIS - 2003 2003 2003 2003

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A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE A GRAMATICALIZAÇÃO DE E, AÍ, DAÍE, AÍ, DAÍE, AÍ, DAÍE, AÍ, DAÍ E E E E ENTÃOENTÃOENTÃOENTÃO:::: ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇAESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇAESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇAESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA

NO DOMÍNIO FUNCIONAL DANO DOMÍNIO FUNCIONAL DANO DOMÍNIO FUNCIONAL DANO DOMÍNIO FUNCIONAL DA SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVOSEQÜENCIAÇÃO RETROATIVOSEQÜENCIAÇÃO RETROATIVOSEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO----PROPULSORA DE INFORMAÇÕESPROPULSORA DE INFORMAÇÕESPROPULSORA DE INFORMAÇÕESPROPULSORA DE INFORMAÇÕES

–––– UM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTAUM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTAUM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTAUM ESTUDO SOCIOFUNCIONALISTA

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MARIA ALICE TAVARESMARIA ALICE TAVARESMARIA ALICE TAVARESMARIA ALICE TAVARES

Curso de PósCurso de PósCurso de PósCurso de Pós----Graduação em LingüístGraduação em LingüístGraduação em LingüístGraduação em Lingüísticaicaicaica

Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso Tese de Doutorado apresentada ao Curso de Pósde Pósde Pósde Pós----Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Graduação em Lingüística da Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina Universidade Federal de Santa Catarina como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título como requisito para a obtenção do título de Doutor em Lingüística.de Doutor em Lingüística.de Doutor em Lingüística.de Doutor em Lingüística.

Orientadora: Profª. Dra. Edair Maria GörskiOrientadora: Profª. Dra. Edair Maria GörskiOrientadora: Profª. Dra. Edair Maria GörskiOrientadora: Profª. Dra. Edair Maria Görski

FLORIANÓPOFLORIANÓPOFLORIANÓPOFLORIANÓPOLIS LIS LIS LIS ---- 2003 2003 2003 2003

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Agradeço À prof. Edair M. Görski, orientadora-amiga de longa data, pela orientação sábia, paciente e atenta. Pelo exemplo de serenidade, força e alegria com que enfrenta os desafios. E, sobretudo, pela confiança no meu trabalho, que me faz confiar também. À prof. Izete Lehmkuhl Coelho, pela amizade com direito a incentivos constantes e consolo nos momentos difíceis. Ao prof. Paulino Vandresen, pelo apoio manifesto desde a época em que fui bolsista de iniciação científica no Projeto VARSUL. À Prof. Roberta Pires de Oliveira, pela grande disponibilidade em ajudar e pelo carinho com que sempre me recebe. Pelas conversas na diferença que tivemos e ainda teremos... Às profs. Odete Pereira da Silva Menon e Roberta Pires de Oliveira, que participaram da banca de qualificação do Projeto do qual brotou esta tese, trazendo sugestões muito importantes. À prof. Maria Luiza Braga, pela enriquecedora troca de informações acerca do nosso objeto de estudo em comum - aí e então. Aos profs. Izete Lehmkuhl Coelho, Gilvan Müller de Oliveira, Maria Luiza Braga, Odete Pereira da Silva Menon, Rosa Virgínia Mattos e Silva e Vera Lúcia Paredes da Silva, que indicaram e/ou gentilmente cederam materiais bibliográficos e/ou corpora para a coleta de dados. Um agradecimento especial à prof.ª Odete Menon pela indicação de As Vinhas da Ira. Às gurias da sociolingüística da UFSC: Adriana de Oliveira Gibbon, Ângela Back, Carla R. Martins Valle, Claúdia A. Rost, Diane Dal Mago, Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott, Márluce Coan e Raquel M. Ko. Freitag, pelos artigos e painéis que fizemos juntas. E, claro, pelas viagens, pelas festas, pelos passeios no shopping e no centro da cidade, pelas idas à praia, enfim, pela companhia. Às bolsistas e ex-bolsistas do VARSUL/UFSC - Joana Arduin, Maryualê M. Mittmann, Priscilla Neves e Simone Constante -, pelos momentos divertidos que passamos no VARSUL. À Juçá Fialho Vazzata Dias, pela amizade, pelo incentivo e pela preocupação. Pelos churrascos... Ao prof. Paul J. Hopper, que tão bem me recebeu em sua cidade e em sua casa (me ofertando alguns rangos feitos por ele mesmo, exímio cozinheiro!) e com quem tanto aprendi, nas tentativas que fizemos para alcançar convergência entre nossas gramáticas emergentes, frutos de experiências bastante diversas. A Florianópolis, em que me senti bem-vinda (tanto que fiquei por dez anos), e que me forneceu o material essencial para o desenvolvimento da pesquisa: a fala de seu povo. Ao CNPq, pelo suporte financeiro através de bolsas de estudo, por trinta e seis meses como aluna do curso de doutorado da Pós-Graduação em Lingüística da UFSC e por quatro meses como visiting scholar no English Department da Carnegie Mellon University, em Pittsburgh/PA (USA).

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RESUMO

Nesta tese, trato dos fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio funcional denominado “seqüenciação retroativo-propulsora de informações”, responsável pelo estabelecimento de uma relação coesiva entre um enunciado precedente e um posterior, gerando a expectativa de que algo nova será introduzido no discurso, em continuidade e consonância com o já dado. A relação de seqüenciação é codificada, em Florianópolis (SC), preferencialmente pelos conectores seqüenciadores e, aí, daí e então. Considero a seqüenciação retroativo-propulsora como uma das etapas dos processos de gramaticalização pelos quais e, aí, daí e então têm passado, processos que os têm transportado para usos gramaticais variados. O quadro teórico é composto pela associação de postulados do funcionalismo lingüístico e da sociolingüística variacionista, o que resulta em uma abordagem que pode ser dita “sociofuncionalista”. Tal abordagem é construída através de uma “conversa na diferença”, ao fim da qual é discutido o locus do sociofuncionalismo na pesquisa lingüística. A análise apresenta duas etapas principais. Na primeira, são traçadas as trajetórias de mudança funcional seguidas por e, aí, daí e então rumo à seqüenciação, salientando-se também evoluções de cada uma dessas formas após sua chegada no domínio em questão. Para tanto, são utilizados: (i) dados extraídos de entrevistas pertencentes ao Banco de Dados do Projeto VARSUL (Variação Lingüística Urbana na Região Sul do Brasil); (ii) dados extraídos de textos escritos em português do século XIII ao século XX.

Na segunda etapa, é abordada a estratificação/variação entre e, aí, daí e então no domínio da seqüenciação na fala da Florianópolis de hoje, a partir de dados extraídos das entrevistas do Banco VARSUL. O controle da influência exercida por grupos de fatores lingüísticos e sociais sobre o uso de e, aí, daí e então resulta em um quadro detalhado da distribuição sociolingüística desses conectores, revelando quais contextos favorecem, sob a pressão de motivações funcionais diversas, o uso de cada um deles. Na seqüência, é enfocado um período de tempo anterior, o final da primeira metade do século XX, em que o domínio da seqüenciação também apresentava uma situação de estratificação/variação. Valho-me de dados extraídos do romance As Vinhas da Ira, da autoria de John Steinbeck, cuja tradução para o português levou em conta marcas do dialeto das classes populares do Rio Grande do Sul. Avalio o condicionamento variável de diversos grupos de fatores lingüísticos e sociais, obtendo o quadro da distribuição sociolingüística dos conectores seqüenciadores no romance, a fim de compará-lo com os resultados obtidos para Florianópolis. As evidências angariadas nas duas etapas de análise apontam possibilidades de especialização de e, aí, daí e então em contextos sociolingüísticos específicos. Esses resultados também fornecem pistas acerca dos estágios dos processos de gramaticalização das formas sob enfoque e permitem aventar a hipótese de mudança em andamento, no sentido de as formas mais recentes no desempenho da seqüenciação (aí e daí) estarem gradualmente ocupando mais e mais espaços outrora pertencentes às formas mais antigas (e e então).

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ABSTRACT In this thesis I deal with the phenomena of stratification/variation and of linguistic change in the functional domain I designate “retroactive-propeller sequenciation of information”. This domain is responsible for establish a cohesive link between a past statement and a future one, creating the expectancy that something new will be introduced in discourse, in continuity and consonance with what was already said. In Florianópolis (SC), the sequenciation link is especially codified by the sequence connectors e, aí, daí and então. I consider the retroactive-propeller sequenciation as one of the stages of the processes of grammaticalization through which e, aí, daí and então have been passed, processes that have been conveyed these items to several grammatical usages. The theoretical guideline is composed through the combination of theoretical presuppositions of linguistic functionalism and of variacionist sociolinguistics, which has as outcome a theoretical approach that can be named “sociofuncionalism”. Such approach is built by means of a “conversation in the difference”, and it’s locus in linguistic research is discussed. The analysis has two parts. In the first, I investigate the trajectories of functional change followed by e, aí, daí and então in their way to the sequenciation domain. Furthermore, I underline developments of the sequence connectors occurred after their arrival in the domain under study. For this purpose, I make use of: (i) speech data from the VARSUL (Variação Lingüística Urbana na Região Sul) Project Data Base; (ii) data from texts written in Portuguese from XIII century to XX century.

In the second part, I approach the stratification/variation between e, aí, daí and então in the sequenciation domain found in the speech of present day Florianópolis. To this end, I make use of data from the VARSUL Data Base. The control of the influence from linguistic and social groups of factors on the usage of e, aí, daí and então results in a detailed picture of the sociolinguistic distributional patterns of the connectives. This picture shows what contexts condition, under the pressure of several functional motivations, the use of each connective. Then, I focus a previous period of time, namely the end of the first half of the XX century, where the sequenciation domain was also characterized by a stratification/variation situation. I draw on data from “The grapes of Wrath”, an novel by John Steinbeck, which Brazilian translation brings markers of the dialect used by the working classes in the southest state of the country, Rio Grande do Sul. I measure the variable conditioning from many linguistic and social groups of factors in order to arriving at the sociolinguistic distribution of the sequence connectives. This distribution is, then, compared to the distribution of Florianópolis. The results show possibilities of specialization of e, aí, daí and então in specific sociolinguistic contexts. These results also give some evidence about the steps of the processes of grammaticalization of the forms investigated here, and allow us to assume the hypothesis of change in progress, by which the most recent forms performing retroactive-propeller seqüenciation (aí and daí) can gradually prevailing over the oldest forms (e and então).

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LISTA DE QUADROS, TABELAS E GRÁFICOS

QUADROS Quadro 1: Exemplo (1) Quadro 2: Exemplo (2) Quadro 3: Distribuição de e, aí, daí e então quanto à marcação Quadro 4: Estudos que também observaram uma ou mais das subfunções da seqüenciação Quadro 5: Freqüência de conectores ou construções seqüenciadoras introdutoras de efeito na fala de Florianópolis Quadro 6: Comparação entre duas abordagens à gramaticalização Quadro 7: Etapas da gramaticalização de be going to como marca de futuro: ação da reanálise e da analogia Quadro 8: Estágios do percurso ideacional > textual > interpessoal (Traugott, 1982) Quadro 9: Convergência entre postulados funcionalistas e variacionistas Quadro 10: Recorte do estágio atual de estratificação/variação no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora em Florianópolis Quadro 11: Trechos extraídos de estudos feitos na interface funcionalismo-sociolingüística Quadro 12: Síntese de características da interface funcionalismo-sociolingüística segundo os autores supracitados Quadro 13: Resumo da conversa entre o funcionalismo voltado à gramaticalização e a sociolingüística variacionista → convergindo no sociofuncionalismo Quadro 14: Pressupostos centrais da abordagem sociofuncionalista ora proposta Quadro 15: Distribuição dos informantes de acordo com as células sociais Quadro 16: Distribuição de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis Quadro 17: Distribuição de e, aí e então na fala dos personagens de As Vinhas da Ira Quadro 18: Percursos de gramaticalização de e, aí, daí e então Quadro 19: Síntese da aplicação dos critérios de marcação na distinção entre e, aí, daí e então Quadro 20: Marcação Quadro 21: Persistência Quadro 22: Grupos de fatores lingüísticos e sociais Quadro 23: Grupos de fatores selecionados para e, aí, daí e então Quadro 24: Distribuição das nuanças da seqüenciação quanto à marcação Quadro 25: Distribuição de e, aí, daí e então quanto às subfunções seqüenciadoras Quadro 26: Distribuição dos tipos de discurso quanto à marcação Quadro 27: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos tipos de discurso Quadro 28: Distribuição dos níveis de articulação quanto à marcação Quadro 29: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos níveis de articulação Quadro 30: Atribuição de valores aos graus de conexão Quadro 31: Graus definitivos e seus valores Quadro 32: Distribuição dos graus de conexão quanto à marcação Quadro 33: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos graus de conexão Quadro 34: Escala dos traços semântico-pragmáticos verbais Quadro 35: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos traços semântico-pragmáticos verbais Quadro 36: Panorama da distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então - Florianópolis Quadro 37: Grupos de fatores selecionados para e, aí e então Quadro 38: Panorama da distribuição sociolingüística de e, aí e então - As Vinhas da Ira Quadro 39: E, aí e então na fala de personagens de 09 a 12 anos e na fala de florianopolitanos com mais de 50 anos

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TABELAS

Tabela 1: Influência das subfunções seqüenciadoras sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 2: Influência dos tipos de discurso sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 3: Influência dos níveis de articulação sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 4: Influência dos graus de conexão sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 5: Influência dos traços semântico-pragmáticos verbais sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 6: Influência da idade sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 7: Influência da escolaridade sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 8: Influência do sexo sobre o uso de e, aí, daí e então Tabela 9: Cruzamento entre sexo e idade Tabela 10: Cruzamento entre sexo e escolaridade Tabela 11: Influência dos grupos de fatores lingüísticos e sociais sobre o uso de e, aí e então

GRÁFICOS

Gráfico 1: Idade e uso de e, aí, daí e então - Florianópolis Gráfico 2: Idade e uso de e, aí e então - As Vinhas da Ira

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......... 11 DISPUTA POR UM LUGAR AO SOL EM FLORIANÓPOLIS CAPÍTULO I – A TEIA FOCALIZANDO O FENÔMENO: SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA DE INFORMAÇÕES NA FALA DE FLORIANÓPOLIS 0. Introdução .......... 15 1. A gramática emergente .......... 15 2. O domínio da seqüenciação retroativo-propulsora de informações .......... 19 2.1 Apresentando a seqüenciação retroativo-propulsora .......... 20 2.2 Apresentando as formas da seqüenciação .......... 23 2.2.1 De onde vens? Para onde vais? .......... 23 2.2.2 Complexidade? O então quebra o galho .......... 25 2.2.3 Concorrentes co-ocorrendo .......... 27 2.3 Apresentando as subfunções da seqüenciação .......... 28 2.3.1 Matizes semântico-pragmáticos .......... 28 2.3.1.1 Seqüenciação textual .......... 29 2.3.1.2 Seqüenciação temporal .......... 29 2.3.1.3 Introdução de efeito .......... 30 2.3.1.4 Retomada .......... 31 2.3.1.5 Finalização .......... 32 2.3.2 Matizes que se mesclam .......... 33 2.3.3 Níveis funcionais superordenados: ver diferente .......... 35 2.3.4 Co-ocorrendo em diferentes matizes .......... 35 2.3.5 Penetrando através das fendas .......... 36 2.4 A poltrona preferida .......... 37 2.5 Descartando funções e formas .......... 38 2.5.1 Construções seqüenciadoras: um caso para a gramática? .......... 38 2.5.2 Outras concorrentes que não mostram muito a face .......... 38 2.5.3 Multiplicidade funcional .......... 39 2.6 Função-significação .......... 40 2.6.1 Significados lexicais e significados gramaticais .......... 40 2.6.2 O significado da seqüenciação retroativo-propulsora .......... 41 2.6.3 Tem que estar de corpo presente .......... 43 2.6.4 Não se pode deixar de mencionar... .......... 44 2.6.5 Gêmeos: grande semelhança .......... 47 3. Do duelo: tomem suas armas! .......... 48 4. Objetivos e hipóteses .......... 51

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CAPÍTULO II – A LUZ QUADRO TEÓRICO: TEORIA FUNCIONALISTA E TEORIA SOCIOLINGÜÍSTICA VARIACIONISTA 0. Introdução .......... 56 1. Introduzindo a gramática(lização) .......... 56 1.2 Pastiche sempre provisório .......... 58 1.2.1 Gramaticalização – duas abordagens em conflito? .......... 60 1.3 Devagar se vai ao longe: aclives de gramaticalização .......... 62 1.3.1 Candidatos à abstração crescente .......... 63 1.3.2 E por trás da mudança... Mecanismos cognitivos .......... 64 1.3.2.1 Extensão metafórica: saltos .......... 65 1.3.2.2 Metonímia, inferência, convencionalização: pulinhos .......... 65 1.3.2.3 Formem a torcida: metáfora versus metonímia .......... 67 1.3.2.4 Reanálise e analogia: uma reconstrói, a outra difunde e divulga .......... 68 1.3.2.5 Atuação diária dos mecanismos .......... 69 1.3.3 Retorno proibido .......... 70 1.3.4 Trajetórias de mudança universais .......... 70 1.4 Princípios de gramaticalização .......... 72 1.4.1 O princípio da marcação .......... 75 1.5 Sincronia + diacronia = pancronia .......... 75 1.6 O lado social da gramaticalização .......... 76 2. Introduzindo a sociolingüística variacionista .......... 78 2.1 Sistema de variáveis, variantes e regras variáveis .......... 80 2.2 ZO + MU + JQ + ED + AZ + LU + FR + TH = comunidade de fala .......... 81 2.3 Procuram-se vernáculos .......... 82 2.4 Problema! Problema! Problema! Problema! Problema! .......... 83 2.5 Passos metodológicos de um estudo variacionista .......... 85 2.6 Mudança lingüística .......... 85 2.6.1 Mudança em tempo aparente e mudança em tempo real .......... 86 2.6.1.1 Transmissão da mudança lingüística .......... 88 2.6.1.2 Ontem espelha hoje .......... 90 2.7 Estendendo a teia da variação: “temos em todas .......... 91 2.7.1 Da fonologia à morfossintaxe ao discurso .......... 91 2.7.2 Abordagem sociofuncionalista à variação e à mudança .......... 93 2.7.3 Não às explicações funcionais! .......... 95 CAPÍTULO III – O LUGAR SOCIOFUNCIONALISMO: REFLETINDO SOBRE UM CASAMENTO TEÓRICO 0. Introdução .......... 98 1. Tecendo uma conversa na diferença .......... 98 2. Batendo um papo teórico-metodológico .......... 104 2.1 Conceitos partilhados? .......... 104 2.2 Variação e gramaticalização: viéses distintos? .......... 107 2.3 Recortar é preciso .......... 113 2.4 Análise multivariada para casos de estratificação/variação? .......... 116 2.5 Entrevista sociolingüística: um corpus possível? .......... 117 2.6 Idade e transmissão da mudança .......... 118 3. Onde conversar fica mais difícil .......... 119 3.1 Prioridades: queijos cujos furos não se encaixam .......... 120 3.2 Com a palavra outros estudos casamenteiros .......... 121 3.3 Resumindo a conversa .......... 125 3.4 Finalizando o bate-papo: convergências possíveis .......... 130 3.4.1 Emergência de múltiplas abordagens .......... 131

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3.4.2 Assumindo uma posição teórico-metodológica: onde a conversa nos leva .......... 136 CAPÍTULO IV – OS INDÍCIOS METODOLOGIA: EM BUSCA DA ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E DA MUDANÇA 0. Introdução .......... 139 1. Falando no presente e no passado: 1ª etapa de análise .......... 139

1.1 Textos do século XIII ao XX .......... 140 2 Falando em Florianópolis e em As Vinhas da Ira: 2ª etapa de análise .......... 142 2.1 O Banco de Dados do Projeto VARSUL .......... 143 2.2 O corpus florianopolitano .......... 144 2.3 Dados que entram, dados que saem .......... 144 2.4 As Vinhas da Ira .......... 145 CAPÍTULO V - AS TRAJETÓRIAS FALANDO NO PRESENTE E NO PASSADO: GRAMATICALIZAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA PANCRÔNICA 0. Introdução .......... 148 1. E .......... 149 1.1 Um antigo combatente .......... 149 1.2 Ampliando o território .......... 151 1.3 Exibindo diferentes matizes .......... 153 2. Aí .......... 159 2.1. Espaço � (tempo) � articulação discursiva .......... 160 2.1.1 Dêixis locativa � anáfora locativa .......... 160 2.1.2 Anáfora locativa � anáfora temporal .......... 165 2.1.3 Anáfora � seqüenciação retroativo-propulsora .......... 166 2.1.4 Enfim .......... 171 2.2 Uma palavrinha quanto à candidatura do aí à seqüenciação .......... 174 3. Daí .......... 176 3.1. Nos reinos da dêixis e da anáfora .......... 176 3.2 Tomando assento na seqüenciação .......... 180 4. Então .......... 181 4.1 Começando com o tempo .......... 181 4.2 Continuando com o tempo .......... 183 5. E depois da chegada na seqüenciação... .......... 186 6. Fontes, percursos e vagas sob medida .......... 190 CAPÍTULO VI – HOJE E ONTEM FALANDO EM FLORIANÓPOLIS E EM AS VINHAS DA IRA: ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA – O COMBATE 0. Introdução .......... 198 1. As motivações funcionais .......... 198 1.1 Simples chama simples, complexo chama complexo .......... 198 1.2 O imã da persistência versus os passos além .......... 200 1.3 Marcação versus persistência, marcação & persistência .......... 201 1.4 Forças sociais são suspeitas de envolvimento .......... 202 2. Procedimentos estatísticos: obtendo os números! .......... 203 3. Análise dos dados – Comunidade de Florianópolis .......... 205 3.1 Grupos de fatores lingüísticos .......... 206 3.1.1 Subfunções da seqüenciação retroativo-propulsora .......... 206 3.1.1.1 Caracterização e hipóteses .......... 206

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3.1.1.2 Resultados e discussão .......... 210 3.1.2 Tipos de discurso .......... 212 3.1.2.1 Caracterização e hipóteses .......... 212 3.1.2.2 Resultados e discussão .......... 215 3.1.3 Níveis de articulação discursiva .......... 217 3.1.3.1 Caracterização e hipóteses .......... 217 3.1.3.2 Resultados e discussão .......... 223 3.1.4 Graus de conexão .......... 224 3.1.4.1 Caracterização e hipóteses .......... 224 3.1.4.2 Resultados e discussão .......... 231 3.1.5 Traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector .......... 232 3.1.5.1 Caracterização e hipóteses .......... 232 3.1.5.2 Resultados e discussão .......... 238 3.2 Grupos de fatores sociais .......... 240 3.2.1 Idade - Abuso adolescente? .......... 241 3.2.1.1 Caracterização e hipóteses .......... 241 3.2.1.2 Resultados e discussão .......... 244 3.2.2 Escolaridade - Barrados na escola .......... 249 3.2.2.1 Caracterização e hipóteses .......... 249 3.2.2.2 Resultados e discussão .......... 254

3.2.3 Sexo - As garotas são as maiores responsáveis? .......... 254 3.2.3.1 Caracterização e hipóteses .......... 254

3.2.3.2 Resultados e discussão .......... 255 3.3 O panorama .......... 259 4. Análise dos dados – As Vinhas da Ira .......... 267

4.1 Caracterização e hipóteses .......... 271 4.2 Resultados e discussão .......... 273 4.3 O passado, o presente e o futuro: rumos .......... 277 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......... 284 DEIXANDO BEM MARCADO: FINALIZAÇÃO E PROPOSTAS DE RETOMADA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......... 288 ANEXOS .......... 303

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INTRODUÇÃO DISPUTA POR UM LUGAR AO SOL EM FLORIANÓPOLIS

Quando um falante estabelece uma relação coesiva de continuidade e consonância entre informações seqüenciadas no discurso, está em jogo a função gramatical de seqüenciação retroativo-propulsora de informações, bastante recorrente nas diversas situações de interação cotidianas. Conectores como e, aí, daí e então são marcas freqüentes dessa função, podendo ser considerados suas camadas/variantes1 em combate por um lugar ao sol, delineando-se uma situação de estratificação/variação no domínio funcional da seqüenciação. Provenientes de fontes distintas e em épocas distintas, e, aí, daí e então chegaram à seqüenciação através da gramaticalização (processo de criação e re-criação constante da gramática). Cada conector recém-chegado passou a conviver e a competir por espaço com os demais, provavelmente ocasionando alterações quanto à distribuição dos nacos do território pertinentes ao domínio. No caso desta tese, o território em disputa vale a pena: o domínio da seqüenciação aqui tomado como objeto é o que se manifesta na fala dos habitantes de Florianópolis, município com mais de quarenta praias... Nesse cenário paradisíaco, sob a pressão de motivações funcionais diversas, os falantes optam variavelmente por e, aí, daí e então para exibir a seqüenciação de informações. Os conectores que são mais freqüentemente preferidos conquistam mais e mais lugares ao sol (e mesmo lugares à lua: os florianopolitanos podem levar seus seqüenciadores para participarem de luaus à beira-mar, por exemplo). Os conectores que são preteridos amargam a escuridão... Talvez estejam abandonando Florianópolis, já que têm sofrido desprezo por parte de seus habitantes. Nos capítulos que seguem, veremos... A batalha travada por um lugar ao sol no domínio da seqüenciação é abordada à luz de um referencial teórico constituído pela articulação de pressupostos teórico-metodológicos de duas teorias lingüísticas: o funcionalismo, especialmente no que diz respeito à gramaticalização, e a sociolingüística variacionista. Essa orientação de pesquisa aborda a estratificação/variação e a mudança lingüística sob o prisma da função desempenhada pelas camadas/variantes e propõe explicações de base funcionalista para os resultados quantitativos, podendo ser denominada sociofuncionalista (Neves, 1999). São buscadas, no fenômeno de gramaticalização, luzes para a compreensão da situação de estratificação/variação que caracteriza o domínio da seqüenciação na Florianópolis de hoje. Embora o foco da análise recaia especialmente sobre os desenvolvimentos da seqüenciação florianopolitana, os fenômenos de estratificação/variação e de mudança no âmbito da seqüenciação também são perscrutados em uma outra fatia de tempo - mais precisamente, com base em dados extraídos da tradução para o português do romance As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, datada de

1 O uso conjugado de certos termos, como estratificação/variação ou camadas/variantes, será esclarecido nos próximos capítulos.

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1940. Foram encontradas aí ocorrências suficientes para levar a cabo um estudo sociofuncionalista, seguindo a mesma metodologia de análise dos dados florianopolitanos, o que facilita a comparação. Apontariam ambos os recortes temporais para as mesmas direções de mudança? Para a realização desta pesquisa, faço uso de dados referentes ao corpus do município de Florianópolis, um dos corpora integrantes do Banco de Dados do Projeto VARSUL (Variação Lingüística Urbana na Região Sul). Analiso quarenta e oito entrevistas de quarenta e oito informantes nativos de Florianópolis, estratificados de acordo com as variáveis sociais sexo, idade e escolaridade. Outras fontes de dados utilizadas são textos escritos em língua portuguesa do século XIII ao final do século XX, além de textos em latim. Esta tese está organizada em seis capítulos: O capítulo I apresenta o objeto de estudo, a seqüenciação retroativo-propulsora e muito do que lhe diz respeito – suas formas, suas subfunções, a posição sintática que suas formas ocupam, funções e formas descartadas da análise, bem como algumas questões referentes ao significado e à função no âmbito gramatical. Também é traçado o caminho de análise a ser seguido rumo ao desenlace dos elos da corrente de inter-relações que caracteriza o domínio da seqüenciação, apontando-se as armas que cada forma seqüenciadora possui a seu favor na disputa territorial e identificando-se as motivações funcionais que atuam na retaguarda do conflito. O capítulo II está subdividido em duas seções principais. A primeira seção traz conceitos do funcionalismo lingüístico. Destacam-se nas subseções: (i) a proposta de gramática emergente; (ii) duas abordagens divergentes/complementares à gramaticalização; (iii) os mecanismos de mudança cognitivo-comunicativos metáfora, metonímia, reanálise e analogia; (iv) fontes, alvos e percursos de gramaticalização; (v) princípios de gramaticalização; (vi) três perspectivas de abordagem a fenômenos de variação e mudança: sincrônica, diacrônica e pancrônica; (vii) relações entre a gramaticalização e o contexto social. A segunda seção introduz a sociolingüística variacionista. Primeiro, são esmiuçados alguns de seus conceitos básicos, como variáveis, variantes, regras variáveis, comunidades de fala, vernáculo. Na seqüência, são detalhados os estágios da mudança lingüística e os passos do estudo da variação. Logo depois, examinam-se tópicos relacionados à mudança, em especial quanto à sua transmissão. O capítulo é concluído com a descrição de extensões feitas à sociolingüística, voltada inicialmente à fonologia. Uma dessas extensões interessa mais diretamente a esta tese, a que se insere na confluência do funcionalismo lingüístico e da sociolingüística variacionista, e que recebe discussão mais refinada no terceiro capítulo. O capítulo III possui três seções principais. A primeira apresenta a postura epistemológica subjacente à constituição do quadro teórico que baseia esta pesquisa: a de que é possível haver a associação de pressupostos vindos de fontes distintas se ela for entendida como resultado de uma conversa travada em meio às diferenças. A segunda seção é dedicada à “conversa na diferença” entre o funcionalismo e a sociolingüística variacionista. Na terceira, é delimitada a perspectiva teórica assumida para guiar o estudo da seqüenciação - o sociofuncionalismo - e é definido o lugar ocupado por tal perspectiva na pesquisa lingüística. O capítulo IV detalha os procedimentos metodológicos adotados para a abordagem ao domínio da seqüenciação. São descritas as duas etapas em que foi subdividida a análise – Falando no presente e no passado, Falando em Florianópolis e em As Vinhas da Ira. No capítulo V, são traçadas as trajetórias de mudança funcional seguidas, ao longo do tempo, por e, aí, daí e então. A primeira trajetória versada é a do e, iniciando-se com um passeio pelo

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latim, em que a forma ‘mãe’, et, já atuava no ramo da seqüenciação, aparecendo inclusive com matizes de função-significação idênticos ou similares aos do e de hoje. Após, recebem destaque os usos dados ao e nas fases iniciais da língua portuguesa e, finalmente, seus usos presentes, na fala florianopolitana. As seções seguintes tratam, respectivamente, dos desenvolvimentos de aí, daí e então, lançando um rápido olhar sobre suas fontes latinas, para passar, logo em seguida, para o português, língua em que as três formas conquistam o direito a representar nuanças seqüenciadoras diversas. Também é feito o mapeamento de: (i) situações de estratificação/variação no domínio da seqüenciação em diferentes períodos do português; (ii) novas funções atribuídas a e, aí, daí e então após seu ingresso na seqüenciação. Como finalização do capítulo, com inspiração nas trajetórias de gramaticalização de e, aí, daí e então, são delineadas hipóteses acerca de seus padrões de distribuição preferenciais como marcas da seqüenciação, a serem testadas nos capítulos seguintes. No capítulo VI, são propostas hipóteses acerca das preferências distribucionais de e, aí, daí e então, hipóteses essas baseadas no efeito das motivações funcionais possivelmente subjacentes aos fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação na fala da Florianópolis de hoje: marcação; persistência; abstração e/ou generalização crescentes; forças sociais. Subseqüentemente, é realizada a primeira etapa da análise dessa distribuição, considerando-se o panorama da comunidade florianopolitana. Por fim, é abordado um período de tempo anterior, o final da primeira metade do século XX, em que o domínio da seqüenciação também apresentava uma situação de estratificação/variação, com base em dados extraídos do romance traduzido para o português As Vinhas da Ira. Em um primeiro momento, é avaliado o condicionamento variável de diversos grupos de fatores lingüísticos e sociais. Em um segundo momento, os resultados obtidos são comparados aos resultados relativos à fala florianopolitana atual, do que derivam achados importantes quanto a continuidades e descontinuidades na trajetória de gramaticalização de e, aí, daí e então, configurando-se um estudo de mudança em tempo real.

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CAPÍTULO I – A TEIA FOCALIZANDO O FENÔMEMO: SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA DE INFORMAÇÕES NA FALA DE FLORIANÓPOLIS

“It is the tragedy of lexical items young and pure and strong in heart but carrying within them the fatal flaw of original sin; their inexorable weakening as they encounter the corrupt world of Discourse; their fall into the Slough of Grammar; and their eventual redemption in the cleansing waters of Pragmatics.” (Hopper, 1998:148)

“But in our own language, it is difficult to avoid being caught up in the storm of emotions generated by the contrast between newer and older ways of saying the same thing.” (Labov, 2001:04) E elle lhe disse: “Senhor, eu vos direi novas verdadeiras(...) E nõ ficaron na villa se nõ os velhos. E da villa vos digi que he muy forte.” E enton lhe disse Mugit: Entendes que aja hi logar per onde homem possa entrar? (p. 334) E Tarife disse que faria todo o que lhe elle consselhasse, ca elle nõ avya feita nê hûa cousa sen seu conselho. Enton o conde dom Ilham lhes disse: “Amigos, vos avedes mester de tragerdes vosso feito con recado (...).” (p. 334)2

��������

E eu perguntei: “Por que não escreve pra êle?” E êle me disse: “Acho que eu vou, sim, talvez eu escreva. Mas se não escrever, eu queria que você avisasse o Tommy, se você ainda ficasse por aqui.” Então eu disse: “Tá bem, eu acho que eu vou ficar ainda.” (p. 47)

Willy só andava pra cima e pra baixo e ‘tava com uma vergonha que lhe digo. Aí, a Elsie disse: “Eu sei porque tu veio pra cá.” (p. 72) 3

�������� Aí ele viu que não tinha mais jeito, ficamos naquele (hes) E ele: “Vou ficar.” “Não, tu não vais ficar.” E ele: “Eu não vou.” Eu digo: “Não, tu não vais ficar.” (RO/FLP03:735)

A pessoa já está vendo que terminou, então vai na pessoa que é encarregada, então diz a ela: “Está faltando uma caixa de tomate”, ou “está faltando vinagre” ou “está faltando tal coisa”, aí ela passa a ordem, vai lá pro almoxarifado, faz o pedido, a pessoa tem saca pra continuar o serviço. (ID/FLP07:469)

Ela falou: “Ah, vai ser menino e o nome vai ser Mateus.” Aí eu disse assim: “Então, se for menina, tu bota o nome de Bárbara, porque eu gosto.” Daí nasceu menina, daí ela botou. (DE/FLP06J:552) Daí ela diz: “Ah, vai fazer deveres.” “Não tem deveres.” Daí ela diz: “Ah, que escola é essa que nunca tem deveres, professor nunca passa deveres?” (DE/FLP06J:188)4

2 Trechos de texto do século XIV: Crónica Geral de Espanha de 1344. (cf. anexo 2) 3 Trechos de texto do início do século XX: As Vinhas da Ira. (cf. anexo 2) 4 Trechos de fala florianopolitana do final do século XX, extraídos de entrevistas pertencentes ao Banco VARSUL.

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0. INTRODUÇÃO Este capítulo inicial leva a cabo a tarefa de descrever detalhadamente o domínio da seqüenciação, em quatro seções principais. Na primeira, é exposta a concepção de gramática que norteia a pesquisa – procedimento importante para que se compreenda o que está subjacente ao modo como é recortado o objeto de estudo desta tese. A seguir, é apresentada a seqüenciação e muito do que lhe diz respeito – suas formas, suas subfunções, a posição sintática que suas formas ocupam, funções e formas descartadas da análise, bem como algumas questões referentes ao significado e à função no âmbito gramatical. Na seção 3, é traçado o caminho de análise a ser seguido rumo ao desenlace dos elos da corrente de inter-relações que caracteriza o domínio da seqüenciação, apresentando-se as armas que cada forma seqüenciadora possui a seu favor na disputa territorial travada no âmbito da seqüenciação e identificando-se as motivações funcionais que atuam na retaguarda do conflito. A par disso, são pinceladas algumas considerações sobre a associação de postulados funcionalistas e variacionistas que fundamenta este estudo. Só para deixar com a pulga atrás da orelha! Na seção 4, são listados os objetivos e hipóteses. Na próxima seção, veremos que o que está em itálico no parágrafo anterior é uma fórmula gramatical. Vamos à gramática emergente... 1. A GRAMÁTICA EMERGENTE

“Because grammar is always emergent but never present, it could be said that it never exists as such, but is always coming into being. There is, in other words, no ‘grammar’ but only ‘grammaticization’ - movement toward structure.” (Hopper, 1987:148) “…grammar … is only the ideal telos of a continuous process of development towards grammar, a telos that cannot be realized because of the very sociality and temporality of the process.” (Weber, 1997:180)

Não é minha intenção comentar aqui o aparato teórico que guia esta pesquisa – resultante da combinação de pressupostos funcionalistas e variacionistas -, mas sim traçar algumas linhas apresentando a proposta de gramática em que me baseio para o recorte da seqüenciação retroativo-propulsora de informações como objeto de estudo. Trata-se da “gramática emergente”, especialmente como definida e defendida por Paul J. Hopper (1987, 1988).5 A gramática na perspectiva emergente é uma atividade em tempo real, on-line, que emerge cotidianamente no discurso. No uso diário da língua, temos, por um lado, a repetição de fórmulas gramaticais (palavras, construções),6 reforçando-se assim sua regularização. Por outro lado, tais fórmulas são re-arranjadas, desmanteladas e remontadas de modos diferentes a cada situação comunicativa, podendo dar origem a fórmulas inovadoras. Além das transformações internas à gramática, temos a possibilidade da migração de itens ou construções lexicais rumo a funções no âmbito gramatical, também via regularização a partir do uso. 5 O capítulo II traz o referencial teórico da pesquisa, inclusive fornecendo maiores especificações sobre a gramática emergente, apresentada neste capítulo inicial apenas nos aspectos mais relevantes para a descrição da seqüenciação como domínio sujeito à inovações e rotinizações constantes. 6 O termo construção é empregado em referência a qualquer porção de língua constituída por mais de um vocábulo, incluindo desde sintagmas a orações ou mesmo partes mais extensas.

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Por sua vez, o discurso é uma cadeia de fluxo linear contínuo composta pela organização em andamento de fórmulas lexicais e gramaticais, concatenadas e encaixadas umas nas outras. A gramática não é, portanto, algo distinto do discurso, e sim toma parte ativa em sua constituição, sempre que interagimos. Ela pode ser definida como um repertório de estratégias rotinizadas de construção de discursos, estratégias que são agrupadas de modo improvisado a cada situação de comunicação. Desse agrupamento diversificado, podem surgir novas estratégias candidatas à gramaticalização, das quais apenas umas poucas tornam-se de fato gramaticais. Podemos dizer que a gramática é o discurso em sua face mais habitual, aquela que tende ao re-aparecimento na fala de diversos indivíduos, em oposição às novas estratégias que não re-aparecem jamais. A gramática é constantemente alimentada pela rotinização das inovações - estratégias lingüísticas e recursos retóricos envolvendo itens lexicais e/ou gramaticais que, de inicialmente criativos e expressivos, tornam-se habituais por aparecerem com freqüência em certo tipo de contexto interacional. Ao se tornarem habituais, gramaticalizam-se, e, se já eram gramaticais, gramaticalizam-se em encargos ainda mais gramaticais. Há, portanto, duas possibilidades de gramaticalização: a que tem como fonte o léxico e a que tem como fonte a própria gramática. Pode haver também a continuidade entre a migração de um item lexical para uma função gramatical e desta para funções ainda mais gramaticais.7 E há só um espaço para a ocorrência da gramaticalização: o discurso, isto é, a língua posta em uso, onde a gramática existe e muda. A gramática não é estável, fechada e auto-contida, mas sim aberta, fortemente suscetível à mudança e intensamente afetada pelo uso que lhe é dado no dia-a-dia. A organização das estratégias gramaticais é uma resposta a fatores diversos - cognitivos, comunicativos, estruturais e sociais.8 Dessa guisa, as regularidades encontradas em certa fatia de tempo são provisórias e continuamente sujeitas à renovação e ao abandono. O sistema gramatical existe, mas no sentido da re-leitura de Saussure por Coseriu (1979), em que temos não um sistema de inter-relações estáticas, mas sim a constante re-sistematização do feixe de relações imbricadas que constitui a língua. O estabelecimento de porções lingüísticas como unidades estruturais rotinizadas e reconhecíveis (palavras, sintagmas e demais construções) é um processo em movimento. Assim, o que é fixo hoje pode não sê-lo amanhã. Do mesmo modo, o que é um recurso retórico passível de nunca mais ser repetido pode, porventura, reaparecer e quiçá se fixar como gramatical. A gramática está sempre recebendo novos membros e se despedindo de antigos usos, agora abandonados. A mudança acontece porque as fórmulas gramaticais rotinizadas não são eternamente estáveis, mas sim adaptáveis e negociáveis na interação face-a-face. As adaptações e negociações se dão a partir das experiências anteriores imediatas e de longa duração de cada um dos interlocutores 7 Deve-se apontar, porém, que há estudiosos da gramática emergente que questionam a existência do léxico (cf. capítulo II). Optando por essa linha, teríamos provavelmente uma só possibilidade de gramaticalização: rumo a âmbitos mais gramaticais. É importante notar que os nacos da língua, cuja organização variada resulta em discursos diversos, são ou lexicais ou gramaticais, se o léxico for considerado à parte da gramática. Se não, são apenas gramaticais, de diversas funções e graus de gramaticalização. Em ambos os casos, o uso cotidiano sujeita as fórmulas lingüísticas a recortes múltiplos, dos quais podem surgir construções gramaticais inovadoras. 8 As motivações que creio estar envolvidas na mudança e na regularização do domínio da seqüenciação são melhor detalhadas na seção 3 deste capítulo e nos capítulos V e VI. É importante observar que a distinção das motivações por trás da constituição da gramática em quatro tipos – cognitivas, comunicativas, estruturais e sociais – não implica a existência de um recorte rígido entre esses tipos, pois, a cada situação comunicativa (e na vida humana em geral), motivações diversas atuam conjuntamente. Além disso, o estabelecimento de fronteiras claras entre o que é cognitivo, o que é comunicativo, o que é estrutural e o que é social é difícil, pois se trata de conceitos que por vezes se inter-relacionam e se interpenetram.

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com o uso das fórmulas. O material gramatical é, em sua base, variável e probabilístico por natureza e derivado da experiência do usuário com a língua (cf. Pierrehumbert, 1994). Como as experiências podem ser distintas em diversos graus,9 os interlocutores têm de se esforçar – inferir, metaforizar, reanalisar, analogicizar... - para se fazer entender e para tentar entender. Isso permite que padrões gramaticais existentes, relativamente rotinizados ou fixos, possam servir de modelo para novos padrões comunicativos, também candidatos à gramaticalização. Tentando ajustar suas gramáticas, os falantes experienciam diariamente inovações. Esses novos modos de dizer, de recortar a língua, são novos modos de fazer discurso, que, se habitualizados, tornam-se construções gramaticais. Como já mencionei, nem todos os novos modos de fazer discurso que assim emergem farão parte da gramática. Somente alguns poucos aspectos são convencionalizados: os mais “vivos”, mais em uso pelos falantes de uma língua (cf. Thompson, 1993:231). A freqüência de ocorrência das fórmulas é fundamental para que adquiram status gramatical. Uma palavra que tem sua freqüência aumentada passa de um modo não usual de constituir ou reforçar um ponto no discurso para um modo usual de fazê-lo. Transforma-se, dessa maneira, em uma estratégia comum, previsível (cf. Hopper & Traugott, 1993:201). Essa compreensão de como as estratégias gramaticais surgem é de suma importância para o estudo da mudança lingüística. É possível observar, em padrões discursivos que sofrem alterações, construções gramaticais sendo geradas. O papel do lingüista é identificar estratégias recorrentes de construção de discursos, buscando assim as regularidades – a gramática. Tais regularidades podem estar enraizadas a bastante tempo ou ser mais recentes (e talvez menos difundidas na gramática da comunidade como um todo), o que somente um estudo diacrônico pode revelar. As situações comunicativas se desenrolam em meio a pressões facilitadoras da inovação, quais sejam as exigências pragmáticas e sociolingüísticas on-line. Essas exigências levam ao ajuste de diferentes experiências, negociando-se fórmulas lingüísticas à medida que a troca comunicativa avança. A cada troca, nossa própria experiência é modificada pela inclusão de novas formas de organizar e concatenar as fórmulas gramaticais, ou, ao menos, por alterações na freqüência com que optamos por certos modos de organizar o material lingüístico. Dentre as pressões envolvidas no processo de inovação, não se pode desprezar as pressões que o discurso recebe por parte das estratégias discursivas caracterizadas, a dado momento histórico da língua, como mais fixas, regulares e automáticas.10 Utilizamos com freqüência itens e construções gramaticais com os quais temos maior experiência, o que reforça seu caráter gramatical. No caso da mudança, tendemos a nos valer das estratégias gramaticais de construir discurso com as quais já temos familiaridade. Conseqüentemente, quando as inovações surgem, não são frutas caídas muito longe do pé. O normal é o uso de formas já existentes em funções diferentes das que tinham anteriormente e não a criação de novas formas. Além disso, geralmente a

9 Quanto mais integrados numa mesma comunidade de fala estão os falantes, mais próximos tendem a ser os usos que dão aos itens lingüísticos, pois os partilham recorrentemente quando se comunicam. A gramática é, portanto, de natureza bastante local. 10 A proposta de motivações em competição pelos rumos da gramática é de Du Bois (1985). Quando nos comunicamos, sofremos influências de um entrelaçamento de forças de naturezas diversas – cognitivas, comunicativas, sociais, estruturais. Uma ou mais delas podem exercer pressão maior sobre um dado fenômeno, o que pode ser medido através do controle da influência de grupos de fatores relacionados a cada uma delas. No caso da seqüenciação, motivações estruturais não entram em ação: os grupos de fatores estruturais testados, como posição, não se mostraram relevantes no condicionamento do uso dos conectores. Os grupos apontados como significativos revelam a competição de motivações de ordem funcional, aqui compreendidas como cognitivas, comunicativas e sociais (cf. seção 3). Görski (2000) também constatou a disputa entre motivações unicamente funcionais na ordenação de orações temporais.

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função nova avizinha-se da que lhe deu origem, possuindo traços semântico-pragmáticos e estruturais em comum ou próximos.11 A gramática na ótica emergente não abriga apenas as palavras ou construções tradicionalmente consideradas como pertinentes ao âmbito gramatical, mas também quaisquer porções lingüísticas recorrentes, como expressões idiomáticas, provérbios, clichês, fórmulas, sintagmas especializados, transições, aberturas, fechamentos. Tais elementos tendem à rotinização e à fixação, e são sujeitos às pressões contextuais, como todas as formas gramaticais (cf. Hopper, 1987). Podemos incluir ainda no elenco gramatical itens ou construções do tipo reformuladores (quer dizer, vamos dizer, etc), requisitos de apoio discursivo (entende?, sabe?, não tem?, etc), chamadores de atenção do ouvinte (olhe, veja, etc), modalizadores epistêmicos (acho, parece, etc), dentre outros nem sempre pensados como gramaticais.12 Trata-se de fórmulas bastante recorrentes, que têm seu uso restringindo por condicionamentos lingüísticos e por vezes sociais, além de preencherem um espaço sintático previsível.13 Tabor & Traugott (1998:255), fazendo coro com Fraser (1988:32), afirmam que elementos de alta freqüência, sintática e entoacionalmente restritos, devem ser considerados “parte da gramática de uma língua”. Atentemos ainda para alguns aspectos metodológicos implicados na proposta de estudo da emergência de itens gramaticais: (i) a visão de gramática emergente requer que o analista examine o item em que está interessado apenas quando usado por falantes reais em contextos reais; (ii) há a necessidade de que o item seja atestado por um bom número de ocorrências para que se confirme que realmente faz parte do repertório e das estratégias discursivas dos usuários da língua (cf. Bybee & Hopper, 2001). Destarte, esta pesquisa se define quantitativa: gramática é efeito de freqüência e o estudo de quaisquer domínios encapsulados no âmbito gramatical exige o olhar sobre os números: freqüências, porcentagens, pesos relativos. Assim é que pipocam números do início ao fim da análise e é a partir deles que se interpretam indícios de regularizações e de novidades. É à luz da perspectiva da gramática como emergente que analiso a seqüenciação retroativo-propulsora, pensando-a como função gramatical sujeita à habitualização e à fixação cada vez maiores e, ao mesmo tempo, à mudança, à tomada de novos rumos. Quais as regularidades reveladas por uma análise mais refinada dos contextos em que a seqüenciação aparece? É possível observar indícios de inovações? Garanto que uma ligeira espiada nos números, expostos no capítulo VI, revelaria a ocorrência de grandes e muito interessantes... Mas o leitor bem comportado vai fazer uma leitura linear, familiarizando-se primeiro com a seqüenciação (logo a seguir) e com o quadro teórico proposto nesta tese (dissecado e discutido nos capítulos II e III), para só depois se inteirar acerca dos resultados quantitativos e de como os interpretei, no capítulo final. Prossigamos, que as grandes e muito interessantes... estão esperando!

11 O termo forma é tomado com ênfase na unidade ou construção codificada, independentemente de eventual mudança categorial. Desse modo, então é uma única forma, seja funcionando como anafórico temporal (cf. capítulo V) ou como conector (cf. a seguir). 12 Por exemplo, Martelotta, Votre & Cezário (1996:60-74) incluem requisitos de apoio discursivo e reformuladores no rol de itens “marcadores discursivos”, que surgiriam por meio de um processo de mudança denominado “discursivização”, considerado responsável por levar “o elemento lingüístico a perder suas restrições gramaticais, sobretudo de ordenação vocabular, e a assumir restrições de caráter pragmático e interativo.” Nessa perspectiva, a discursivização é tida como um processo distinto da gramaticalização, gerando material discursivo e não gramatical: “abrange elementos que funcionam em um campo de atuação mais vasto do que o da gramática, marcando relações entre os participantes ou entre os participantes e seu discurso, sem estabelecer necessariamente relações entre elementos da gramática.” 13 Conferir os estudos de Gibbon, 2000; Dal Mago, 2001; Valle, 2001; Rost, 2002; Dal Mago & Görski, 2002; Görski et alii, 2002a; Görski et alii, 2002b; Görski et alii, 2002c; Tavares & Görski, 2002; Freitag, 2003; Tavares, 1999c e 2001b, que abordam os domínios funcionais supracitados, desvelando os meandros de seu uso na fala de Florianópolis, bem como investigando seu processo de gramaticalização.

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2. O DOMÍNIO DA SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA DE INFORMAÇÕES Nesta seção, o leitor será conduzido a um passeio de apresentação do domínio funcional denominado seqüenciação retroativo-propulsora de informações. Na primeira estação, teremos o contato inicial com a seqüenciação, observando sua definição e o que guiou a tesoura quando do seu recorte como objeto de estudo lingüístico. Além disso, examinaremos conceitos importantes para a compreensão do recorte: domínio funcional e camadas/variantes. Na seqüência, conheceremos as formas que mais freqüentemente marcam contextos de seqüenciação e, em uma estação próxima, testemunharemos as subfunções seqüenciadoras delineando-se. Depois de uma pequena pausa para sentar na poltrona preferida da seqüenciação – a posição sintática que suas formas ocupam -, logo prosseguiremos em nossa trajetória, passando por funções e formas abandonadas no meio do caminho. Dar-lhes-emos um abano de mão e seguiremos viagem. Na última estação que perscrutaremos, teremos de lidar com a questão do significado no plano da seqüenciação. Findo o passeio, estaremos prontos para presenciar um acirrado combate. 2.1 APRESENTANDO A SEQUENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA A seqüenciação retroativo-propulsora é um domínio funcional responsável por marcar a introdução de informações14 no discurso. Estabelece uma relação coesiva de seqüenciação entre enunciados, de modo que o primeiro serve de base para o que será dito no segundo.15 A seqüenciação realiza um movimento duplo: anafórico e catafórico (��), pois, ao mesmo tempo em que se volta para o enunciado passado como uma fonte de informações para o discurso subseqüente, direciona a atenção para um enunciado que está por vir, o qual tem por escopo.16 É o que se tenta apreender com a denominação seqüenciação retroativo-propulsora: os movimentos simultâneos de retroagir – guiando a atenção para trás – e de propulsionar – guiando a atenção para a frente. Em resumo, a seqüenciação gera a expectativa de que algo novo será dito ou escrito, em continuidade e consonância com o já dado - indica que o que vem depois no discurso tem a ver com o que vem antes. A forma material da seqüenciação é um conector seqüenciador que interliga nacos do discurso, tecendo partes de proporções variadas, desde informações interligadas localmente em orações, a tópicos/assuntos conectados globalmente. (cf. capítulo VI) Foram diferenciadas, com base nas amostras consideradas, cinco nuanças da seqüenciação, denominadas aqui de subfunções seqüenciadoras: a seqüenciação textual, a seqüenciação temporal, a introdução de efeito, a retomada e a finalização, que são descritas e exemplificadas na seção 2.3. Vejamos em alguns exemplos o funcionamento da seqüenciação: 14 Por informação compreendo o que é dito/escrito, sejam fatos/eventos ou argumentos/idéias. Todas essas unidades seguem uma organização linear no discurso: fatos/eventos podem ser ordenados temporalmente de acordo com o momento em que ocorrem no mundo real; argumentos/idéias podem se preceder ou seguir logicamente (cf. Schiffrin, 1987:262). De qualquer modo, as informações seguem a ordenação impingida pelo falante a seu discurso. 15 A inspiração para o nome foi a leitura do excelente texto “O articulador discursivo então” (Risso, 1996), em que então é caracterizado como item “remissivo retroativo”. 16 Escopo refere-se à área de abrangência de um determinado vocábulo na cadeia lingüística linear.

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(1) Íamos todos pra lá. Então a gente descia assim com- com as cestas, com- quer dizer, descia de táxi e levava até

lá. E era combinado assim: ele ia nos buscar às cinco horas. Se chovesse, que não dava pra descer o morro, ele ficava lá em cima no morro e fazia sinal com o farol, aí a gente subia o morro com aquelas tralhas todas. (ZO/FLP24:1258)1718

(2) Ela tava assim fazendo um barulhinho, esse barulhinho é quando ela chora, então tu vai dando uma coisa. Daí foi doendo a perna que a minha prima jogou, aí bateu nela. (FR/FLP02C:42)

Para facilitar a análise, os exemplos (1) e (2) foram recortados e organizados nos seguintes quadros:

Quadro 1: Exemplo (1) Informação prévia Conector Informação subseqüente

(1) Íamos todos pra lá.

Então

a gente descia assim com- com as cestas, com- quer dizer, descia de táxi e levava até lá.

descia de táxi

e

levava até lá.

Íamos todos pra lá. Então a gente descia assim com- com as cestas, com- quer dizer, descia de táxi e levava até lá.

E

era combinado assim: ele ia nos buscar às cinco horas.

Se chovesse, que não dava pra descer o morro, ele ficava lá em cima no morro

e

fazia sinal com o farol

Se chovesse, que não dava pra descer o morro, ele ficava lá em cima no morro e fazia sinal com o farol,

a gente subia o morro com aquelas tralhas todas.

No exemplo (1), as informações introduzidas pelos conectores (terceira coluna do quadro (1)) sucedem-se temporalmente em relação às informações já dadas (primeira coluna do quadro (1)). Em cada caso, as informações prévias - os eventos anteriores - servem de base para as informações que se seguem - os eventos posteriores. O conector seqüenciador aponta para a informação passada ressaltando que ela se relacionará com algo que aparecerá a seguir, e, assim, criando a expectativa desse aparecimento e instigando a procura por relações entre as informações interligadas.

17 O código que segue o trecho da entrevista a identifica. Por exemplo, (ZO/FLP24:1258) = informante ZO, natural de Florianópolis (FLP), entrevista número 24, linha 1258. E é o código que marca a fala do entrevistador, F a fala do informante e I identifica um indivíduo interveniente. Nos casos em que há uma letra após o número da entrevista, podemos ter ou J = informante de 15 a 21 anos ou C = informante de 09 a 12 anos. Nos códigos referentes a entrevistas com informantes de 09 a 12 anos, o número final não remete à linha, mas à página em que consta o dado. O costume variacionista é analisar somente a fala do informante, procedimento que é mantido aqui. 18 Optei por apresentar os exemplos de acordo com a transcrição costumeira da 1ª linha das entrevistas do Projeto VARSUL, que geralmente segue regras de ortografia e de morfo-sintaxe padrão, em contraste com a 2ª linha, em que é feita a transcrição real da fala. Assim, as variações fonéticas e morfossintáticas (por exemplo, a concordância nominal e a concordância verbal), as sinalizações de pausas e de aumento ou diminuição de velocidade da fala não estão marcadas nos exemplos. Seria muito trabalhoso especificar todos esses detalhes - e muito difícil selecionar os mais relevantes. Apenas aqueles importantes para algumas discussões - notadamente a pausa - são acrescentados aos dados, quando necessário.

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Quadro 2: Exemplo (2)

Informação prévia Conector Informação subseqüente (2) Ela tava assim fazendo um barulhinho, esse barulhinho é quando ela chora,

então

tu vai dando uma coisa.

Ela tava assim fazendo um barulhinho, esse barulhinho é quando ela chora, então tu vai dando uma coisa.

Daí

foi doendo a perna que a minha prima jogou, aí bateu nela.

Daí foi doendo a perna que a minha prima jogou,

bateu nela.

Em (2), o então introduz tu vai dando uma coisa, que é conseqüência da informação anterior esse barulhinho é quando ela chora. Uma interpretação possível é que, quando a porquinha da índia - referida como ela - chora, sua dona, a informante, fica nervosa. Daí seqüencia textualmente uma informação que acaba por explicar porque a porquinha estava chorando: a prima da informante havia jogado o animal e batido nele, machucando sua perna. Finalmente, aí introduz bateu nela, que se conecta a que a minha prima jogou, revelando seqüência temporal: primeiro a prima jogou a porquinha, depois bateu nela. Cada um desses conectores marca a indicação de um ponto passado no discurso e, concomitantemente, marca a indicação de um ponto futuro, que se relaciona ao primeiro por se seguir a ele. O movimento anafórico/catafórico da seqüenciação (��) refere-se ao movimento de retroação/propulsão entre informações exibido pelos seqüenciadores, não devendo ser confundido com a relação estabelecida por itens anafóricos e catafóricos, que põem em foco um ponto do discurso antes referido ou que será referido logo a seguir. Tais itens manifestam uma relação que pode ser dita de co-referência, o que não é o caso da relação estabelecida pela seqüenciação. Aí possui usos anafóricos, os quais não devem ser confundidos com o movimento anafórico supracitado. Por exemplo, em (3) e (4), aí não é um conector seqüenciador, apontando para trás e para frente no discurso, e sim anafórico locativo, apontando para um lugar mencionado anteriormente pelo falante (nesse hospital e no armário respectivamente). Em (5), aí é anafórico temporal, apontando para um período de tempo previamente referido (cf. anáforas no capítulo V)

(3) Aí procuramos, procuramos, batemos nesse hospital, que é um hospital e maternidade, aí que ele estava. (RO/FLP03:889)

(4) Nós gostávamos de abrir o armário porque ele era muito grande e era muito alto. Então a gente se pendurava aí e ficava assim. (RO/FLP03:770)

(5) Quando os policiais já tinham ido embora, os homens deixaram as suas terras. O sol aí já declinara por completo. (As Vinhas da Ira, p. 284)

Qual a justificativa para se fazer o recorte com fins de estudo de um objeto lingüístico de nome tão estranho? A seqüenciação retroativo-propulsora é uma função bastante freqüente e que aparece com regularidade em contextos identificáveis – a interligação anafórica/catafórica entre uma parte e outra do discurso. A repetição da seqüenciação na fala de diversos informantes a torna visível e existente aos nossos olhos. Sua visibilidade nos permite destacá-la da cadeia de fluxo linear contínuo que caracteriza o discurso. A freqüência alta não põe dúvida de que se trata de função de

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âmbito gramatical: temos um total de 4.394 dados referentes à amostra de fala atual de Florianópolis – que considera cerca de 30 minutos de fala de 48 entrevistas. Cumpre esclarecer a expressão “domínio funcional” aplicada à seqüenciação retroativo-propulsora. Emprego “domínio funcional” no sentido de Givón (1984) em referência a áreas funcionais gerais (ou macro-domínios) como TAM (tempo/ aspecto/ modalidade), caso, referência, passivização, detransitivização, impessoalização ou áreas mais estritas (micro-domínios), como o tempo futuro, o modo subjuntivo, o sujeito, o tópico, a dêixis, a anáfora, etc. A noção de domínio é válida, portanto, para diferentes domínios super-ordenados nas hierarquias funcionais em que se distribuem as funções da língua: um certo tempo é um micro-domínio em relação ao domínio TAM, por exemplo, mas podemos tratar qualquer dos tempos por “domínio funcional”. Assim, temos a seqüenciação retroativo-propulsora como um domínio funcional, micro em relação ao da articulação/conjunção geral entre informações, que engloba a seqüenciação, a adversão, a concessão, a causalidade, e todos os demais tipos de relações conjuntivas. A forma ou formas pertinentes a cada domínio funcional são entendidas como um elemento que desempenha uma dada função ou um conjunto de elementos “unificados funcionalmente” (Nichols, 1984:111), isto é, que desempenham o mesmo ou semelhante papel. Cada uma das unidades que atuam como marca de um domínio funcional representa uma camada do domínio. O termo “camada” (cf. Hopper, 1991) refere-se a formas alternantes de realização existentes em relação de estratificação na mesma etapa histórica de uma língua. Essas formas provavelmente emergiram na gramática em diferentes épocas, somando-se às já existentes no domínio, pois o surgimento de uma nova forma em certa função não acarreta necessariamente o desaparecimento das mais antigas. Os itens inovadores passam a conviver e a competir por espaço com os demais tanto na gramática dos indivíduos quanto na gramática da comunidade. Têm seu uso condicionado pela interação de motivações cognitivas, comunicativas, estruturais e sociais, que se constituem em armas que cada item possui, fazendo-o avançar, estacionar ou recuar em seu processo de mudança. A seguir, são apresentadas as formas que disputam território no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora. 2.2 APRESENTANDO AS FORMAS DA SEQÜENCIAÇÃO Nesta seção, os refletores iluminam os conectores seqüenciadores. Eles são apresentados e têm seu tempo de serviço em língua portuguesa estipulado. Na seqüência, são rapidamente traçadas possíveis trajetórias de mudança por gramaticalização seguidas pelas formas desde seus primórdios latinos até os usos atuais. Como subseções vinculadas a apresentação dos seqüenciadores, constam ainda: (i) sua diferenciação em termos de complexidade cognitivo-comunicativa, feita com base nos três critérios de marcação de Givón (1995); (ii) o exame da possibilidade de co-ocorrência dos itens seqüenciadores no mesmo contexto.

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2.2.1 DE ONDE VENS? PARA ONDE VAIS? As formas seqüenciadoras retroativo-propulsoras são marcas de coesão, indícios lingüísticos para que o ouvinte perceba a relação de seqüenciação entre informações imposta pelo falante. No decorrer deste estudo, são referidas de várias modos: conectores, conectivos, conjunções, seqüenciadores, itens/unidades/elementos de seqüenciação, articuladores discursivos, articuladores textuais, entre outros.19 Não faço distinção entre essas denominações, empregando-as intercambiavelmente. Atualmente, em Florianópolis, a parte do leão na seqüenciação é partilhada por quatro itens de freqüência elevada: e, aí, daí e então. Tais formas aparecem repetidamente em contextos de seqüenciação, o que nos permite considerá-las camadas - termo ligado aos estudos de gramaticalização - ou variantes - termo ligado à teoria variacionista - regularmente em ação nesse domínio funcional. Existem também outras formas de seqüenciação, porém menos freqüentes e de distribuição diferenciada, que são descritas na seção 2.5.2. E, aí, daí e então são unidades seqüenciadoras de idades variadas, que chegaram à seqüenciação provenientes de fontes distintas. Duas delas estão no ramo há bastante tempo, conforme um passeio por dicionários etimológicos revela.20 Já foi com usos conectivos que o e surgiu no português. Geralmente denominada conjunção aditiva21, provém da conjunção latina et, que tem origem no advérbio et, proveniente do advérbio ~eti, ‘além de’, do indo-europeu. No latim arcaico, et, como advérbio, substituía etiam ‘também’. Posteriormente, passou a ser utilizada para indicar a junção de elementos (cópula), transformando-se em conjunção, já com usos seqüenciadores (cf. capítulo V) e passou ao português com a forma e (Ernout & Meillet, 1951 apud Barreto, 1999b). Os dados que obtive do e na fala de Florianópolis atual são apenas conjuntivos (além de outros empregos vinculados a este, especificados na seção 2.5.3). Então é proveniente do advérbio latino intunc (in + tunc), que significava nesse/naquele momento/ocasião. O elemento aí provém do arcaico i (ou hi), que, por ser palavra muito curta, se aglutinou a a, um prefixo de valor intensivo ou enfático. O advérbio arcaico i é proveniente do latim ibi, termo que pode significar nesse lugar; nesse momento. Da história do daí, obtive apenas a informação de que se trata da contração da preposição de com o advérbio aí. Usos de aí e daí indicando lugar e de aí, daí e então indicando tempo existem ainda hoje, ao lado dos usos como seqüenciadores (cf. capítulo V). As formas e, aí e então (ou as variações hy, y, ahi para aí; entõ, enton, entonce para então) foram mapeados por Cunha (1991) desde o século XIII, mas a forma daí, apenas a partir do século XIV (ou as variações dy, di, dj). Os dicionários etimológicos consultados classificam os empregos das formas correspondentes a aí e a então no latim como adverbiais (advérbios de lugar e de tempo respectivamente). Já nos primórdios da língua portuguesa, então era utilizado como seqüenciador (cf. capítulo V). Quanto a aí e a daí, é menos definida a época em que surgiram seus empregos

19 Alguns autores consideram e, aí, daí e então seqüenciadores como marcadores discursivos ou marcadores conversacionais, opção não assumida por mim, por razões que podem ser conferidas em Tavares, 1999a e Tavares 1999c. 20 Os dicionários etimológicos dos quais obtive as informações acerca das origens de aí, daí e então são: Cunha, 1991; Silveira Bueno, 1965; Nascentes, s/d. 21 A relação entre a adição e a seqüenciação retroativo-propulsora é discutida na seção 2.6.4.

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conectivos (não encontrei nenhum registro acerca disso). Acredito que seus usos seqüenciadores tenham surgido apenas em língua portuguesa e em tempos não tão antigos, pois, mesmo buscando desesperadamente por eles em textos escritos do século XIII ao XX, só obtive dados em romances escritos a partir da primeira metade do século XX. Além disso, em um estudo comparando os domínios da seqüenciação retroativo-propulsora na fala do português brasileiro e do português europeu, não localizei nenhum dado do aí e do daí como conectores além mar, o que é forte indício de que se desenvolveram apenas no português brasileiro.22 As fontes do uso seqüenciador do e parecem vincular-se ao longo do tempo a papéis relativos à soma entre informações (além de, também, junção de elementos). Já aí, daí e então parecem ter desembocado na seqüenciação retroativo-propulsora seguindo um percurso universal tipicamente envolvido na emergência de conectores: espaço � tempo � texto23 (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:182). De acordo com esse percurso, elementos indicadores de espaço externo passam a ser empregados como indicadores temporais e, por fim, como organizadores do espaço textual. É previsto aí um movimento de abstração crescente rumo a níveis cada vez mais gramaticais, o que é comum a muitas trajetórias de gramaticalização e aponta a existência de mecanismos cognitivos universais pelos quais os usuários da língua tendem a guiar em uma mesma direção os novos usos que dão às velhas formas. Lembremos, porém, que o e chega a seqüenciação por outro rumo. Teria percorrido também um caminho de abstração crescente? Trajetórias de gramaticalização diversas resultariam em usos gramaticais diversos? Estariam as conjunções seqüenciadoras duelando por espaços lingüísticos e sociais que antes da emergência de aí e de daí provavelmente eram partilhados de modos distintos, com freqüências outras desvelando posses territoriais diferentes das existentes hoje? Contudo, apenas a entrada de novos membros não provocaria embates de morte, mas o aumento da freqüência de uso destes às expensas dos mais antigos pode sim levar à retração do emprego de velhas formas em alguns ou todos os contextos de seqüenciação e mesmo à sua eliminação. 2.2.2 COMPLEXIDADE? O ENTÃO QUEBRA O GALHO... Conforme já mencionado, a gramática constitui-se e reconstitui-se em meio a motivações de natureza diversa - cognitiva, comunicativa, estrutural, social. Um dos imperativos cognitivos que influi na gama de inter-relações gramaticais é representado pelo princípio da marcação, pelo qual o 22 Os indícios encontrados e não encontrados serão retomados no capítulo V. 23 Cumpre salientar que o termo texto (e variações como textual) é utilizado com duas acepções nesta tese: (i) em referência aos textos de modalidade escrita integrantes de um dos corpora que servem de fonte para a coleta de dados da seqüenciação (cf. capítulo IV e seguintes), em oposição às entrevistas de modalidade oral feitas com informantes florianopolitanos, as quais constituem outro dos corpora; (ii) em referência à discurso, isto é, à língua em uso, onde a gramática existe, emerge e muda. Nesse último caso, o termo em questão é aplicado tanto à articulação entre nacos maiores e menores da cadeia contínua da fala e da escrita – a articulação discursiva ou textual -, domínio funcional que é de interesse central deste estudo, por ser a seqüenciação retroativo-propulsora uma função vinculada a ele (cf. seção 2.1), bem como é aplicado a tudo mais que diz respeito ao discurso: quaisquer funções-significações ligadas a pessoa, objeto, espaço, tempo, aspecto, modo, qualidade, etc. Todavia, alguns dos estudiosos citados nesta tese utilizam texto de modo distinto. Por exemplo, na trajetória de gramaticalização proposta por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a), espaço � tempo � texto, texto representa somente a etapa final de uma trajetória de gramaticalização da qual derivam conjunções/conectores, não sendo empregado em referência às duas etapas iniciais, espaço e tempo. A questão é que, ao se tomar texto como discurso (como faço), todas as etapas dessa trajetória de mudança devem ser consideradas textuais: quaisquer funções lingüísticas – indicação locativa, indicação temporal, seqüenciação, etc – contribuem para a organização do discurso, podendo ser definidas como funções discursivas ou textuais. É importante ter esse aspecto sempre em mente, para não haver confusão entre citações de fontes diversas e as duas acepções de texto assumidas aqui.

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marcado é estruturalmente mais complexo e o não marcado, mais simples. De acordo com Givón (1995:28), há três critérios básicos de marcação: (a) complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior) que a não marcada; (b) distribuição de freqüência: a categoria marcada tende a ser menos freqüente que a não marcada; (c) complexidade cognitiva: a categoria marcada tende a ser cognitivamente mais complexa, em termos de demandar maior atenção, mais esforço mental e tempo de processamento, que a não marcada.24 Itens que convivem em um mesmo âmbito como camadas mais velhas e mais novas, caso dos conectores seqüenciadores retroativo-propulsores, comumente manifestam diferenças quanto à marcação lingüística que não devem ser deixadas de lado em sua caracterização. Tais distinções podem restringir ou favorecer o uso de uma das formas em determinado contexto. Emprego os critérios propostos por Givón (1995) na distinção das unidades sob estudo quanto à marcação. Como, no caso da seqüenciação retroativo-propulsora, estou lidando com quatro formas, não vou me valer da dicotomia marcado/não marcado, mas sim tratar o fenômeno como escalar, distribuindo e, aí, daí e então em uma escala de menos a mais marcado: Quadro 3: Distribuição de e, aí, daí e então quanto à marcação

e aí daí então - marcado + marcado

Entre os retroativo-propulsores, e é a forma menos marcada: é a mais recorrente, sendo responsável por 1.798 dados (41%) do total de 4.300 casos de seqüenciação por conectores não combinados (cf. seção 2.2.3).25 Além disso, e parece ser a forma mais fácil de processar: é a menor, além de ser átona, em oposição a aí, daí e então, que são tônicas. Aí e daí possuem marcação intermediária, com freqüência de 924 (22%) e 887 dados (21%), respectivamente. Daí é ligeiramente maior que aí e é um pouco menos freqüente, sendo um tanto mais marcado. Então é a forma mais longa e menos freqüente (690 dados e 16%), possivelmente exigindo mais atenção e tempo de processamento que as demais.26 Estariam essas diferenças contribuindo para a regularização e a continuidade do aparecimento de alguns dos seqüenciadores em certos contextos - a trajetória rumo à rotinização

24 Givón (1995:29-58) apresenta propostas de distinção relativamente à marcação envolvendo diversos âmbitos lingüísticos, de tipo de discurso (oral-informal vs. escrito-formal), passando por tipos de oração (principal/coordenada vs. subordinada; afirmativa vs. negativa) a categorias verbais (perfectivo vs. imperfectivo; pretérito vs. perfeito). 25 Também encontrei 94 dados de conectores combinados (e aí, daí então, etc), que, somados aos 4.300 dados de formas seqüenciadoras individuais (e, aí, daí e então), perfazem o total de 4.394 dados apontados na seção 2.1 como o total de seqüenciadores mapeados na fala de Florianópolis. 26 Urge ressaltar que termos como marca e marcar não devem ser relacionados, nesta tese, à noção de marcação. Para evitar confusão, os primeiros são aqui utilizados com apenas duas acepções: (i) em referência ao papel de e, aí, daí e então como conectores: eles são marcas da seqüenciação, exibindo-a, codificando-a, desempenhando-a – marcando-a; (ii) no sentido de sinalização de identidade (certos grupos sociais valem-se de formas lingüísticas como marcas de identidade grupal). Já o termo marcação é reservado para a referência ao princípio de marcação. É preciso ter cuidado, porém, com marcado e marcada, pois são aplicados tanto à tarefa dos seqüenciadores quanto ao princípio cognitivo: a seqüenciação é marcada por quatro conectores (isto é, a seqüenciação é exibida por quatro conectores) e a forma mais marcada tende a aparecer nos contextos mais marcados (isto é, a forma mais complexa tende a aparecer nos contextos mais complexos). Embora o termo pudesse aparecer em um mesmo enunciado com ambas as acepções (por exemplo, o contexto mais marcado é marcado pela forma mais marcada), isso nunca ocorre, o que previne grande parte das confusões.

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gramatical - e/ou permitindo o alastramento dos seqüenciadores para novos contextos gramaticais - a trajetória rumo à inovação? 2.2.3 CONCORRENTES CO-OCORRENDO E, aí, daí e então, ao mesmo tempo em que se comportam como formas variantes e concorrentes no âmbito da seqüenciação retroativo-propulsora, também aparecem como co-ocorrentes, quando usados combinados dois a dois ou mesmo três a três em contextos em que “conjuntamente preenchem, reforçam ou reciprocamente complementam” (Risso, Silva & Urbano, 1996:32) a função de seqüenciação. Como a co-ocorrência de itens de mesma função pode ser explicada? De acordo com Bybee, Perkins & Pagliuca (1994:07), ao passar pela gramaticalização, o item lingüístico torna-se mais reduzido e dependente semanticamente, o que ocasiona um aumento na rigidez de sua posição sintática e em suas relações de escopo com outros elementos. Relacionado à fixação do escopo, está o desenvolvimento de exclusividade mútua entre membros de um domínio funcional, o que permite seu emprego simultâneo.27 Portanto, a co-ocorrência é sintoma de que e, aí, daí e então estão sofrendo gramaticalização. Vejamos alguns exemplos:

(6) Só que eu me perdi no sal, eu botei sal de menos. E aí o arroz ficou direitinho assim, né? mas ficou com sal de menos, aí eu, bem tansa, fui lá e pau no prato da minha mãe, enchi de sal. (JA/FLP11J:1146)

(7) Não- não me apegava a po- o programa político, nada, né? Eu- eu me simpatizava com ela e daí escolhi e fui- fui ela e nem pensava nisso. (LE/FLP05J:667)

(8) F: Ele levava bem o quê? (hes) Talvez uma hora pra chegar da i- não, acho que era menos, uma meia hora da Ilha do Carvão até- até a praia levava mais ou menos, dependendo do vento. Aí então eles faziam as compras, depois voltavam. Aí ela remava um pouco e ele outro pouco, porque aí o bote ia [1cheio.1]

E: [1Cheio.1] F: Né? E aí então é uma das coisas assim que dá uma saudade! (ZO/FLP24:748)

Em um total de 94 casos de co-ocorrência de seqüenciadores, encontrei as seguintes combinações e freqüências: e aí (31 dados), e daí (31), e então (12), então aí (12), então daí (1), aí então (3), daí então (4). Também encontrei um dado com e, aí e então juntos (cf. exemplo (8)). Aí, daí e então ocupam a primeira ou a segunda posição das expressões resultantes da junção dos conectores. Já o e é mais fixo quanto à posição, aparecendo apenas no início das expressões, o que pode significar que está mais gramaticalizado como seqüenciador em relação às demais formas. (cf. seção 2.4) É possível aventar a hipótese de que o emprego combinado de dois ou três seqüenciadores represente a emergência de novas construções gramaticais. Os casos de co-ocorrência são freqüentes e de uso regular o suficiente para serem considerados porções lingüísticas à parte? Seriam construções seqüenciadoras em processo de emergência ou mesmo já gramaticalizadas? Uma investigação detalhada das condições dos usos conjugados não será levada a cabo aqui, pois certamente se faz necessário um estudo à parte, incluindo mais dados do que disponho para buscar indícios de emergência e de rumos seguidos por essas construções, bem como para analisar as relações entre expressões seqüenciadoras e seqüenciadores individuais. Fica a sugestão.

27 Um exemplo é o uso conjunto dos auxiliares modais no inglês, como em “You might should go now” (Bybee, Perkins & Pagliuca, 1994:07).

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2.3 APRESENTANDO AS SUBFUNÇÕES DA SEQÜENCIAÇÃO Esta seção é iniciada pela caracterização e exemplificação das subfunções da seqüenciação, ao que se segue a exposição das razões que levaram à distinção entre essas diversas nuanças seqüenciadoras. Depois, recebe destaque a mescla de matizes que pode ocorrer quando a seqüenciação está em jogo, examinando-se casos de ambigüidade e de sobreposição de tonalidades. Na próxima etapa, é abordada a questão dos níveis de análise funcional superordenados, seguindo-se uma reflexão sobre o estudo da seqüenciação à luz da perspectiva de gramática emergente. Serão observados ainda casos de co-ocorrência de conectores em cada uma das subfunções, finalizando-se a seção com uma proposta relativa ao papel das nuanças da seqüenciação na entrada das formas no domínio. 2.3.1 MATIZES SEMÂNTICO-PRAGMÁTICOS A seqüenciação retroativo-propulsora possui matizes de significado os quais denominei subfunções. Essas nuanças da seqüenciação são efeitos contextuais que podem ser atingidos a partir de indícios on-line vários: o que foi dito antes, o que se seguiu, inferências e implicaturas em jogo no momento da interação. Também contam as experiências anteriores dos interlocutores, a sua familiaridade com a miríade de tonalidades semântico-pragmáticas passíveis de estarem envolvidas nas teias trançadas entre partes do discurso pela seqüenciação. Somando todos os indícios, a cada situação comunicativa o ouvinte busca chegar ao tipo de relação seqüenciadora estabelecido pelo falante. Delimitei, a partir da análise dos usos dados à seqüenciação pelos florianopolitanos, cinco subfunções, vizinhas que por vezes se interpenetram no espectro multicolorido da seqüenciação, e por isso muitas vezes difíceis de serem distinguidas: a seqüenciação textual, a seqüenciação temporal, a introdução de efeito, a retomada e a finalização. Vamos a elas, lembrando que o movimento anafórico/catafórico de retroação/propulsão (��) se faz presente a cada caso:

2.3.1.1 SEQÜENCIAÇÃO TEXTUAL

A seqüenciação textual é uma estratégia lingüística coesiva que assinala a ordem pela qual as unidades conectadas sucedem-se ao longo do tempo discursivo.28 Despida de caráter argumentativo ou de indicação de cronologia temporal, a seqüenciação textual simplesmente salienta o encadeamento de uma porção discursiva anterior com uma posterior, evidenciando que aquela é mais uma informação que se relaciona com informações já dadas. Exemplos:

28 Tempo discursivo refere-se à organização interna do discurso, isto é, a ordem pela qual as porções lingüísticas (tópicos, subtópicos e segmentos menores) são apresentadas de modo sucessivo, sendo uma delas compreendida como posterior a uma outra (cf. Schiffrin, 1987:246).

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(9) Quando ela- nós pegávamos goiaba, que ela tirava tudo da nossa mão, corria atrás de nós, às vezes até

chegava dar em nós, né? Eram as coisas mais engraçadas. E às vezes nós brincávamos de bandeirinha, de pegar, essas coisas, quando éramos mais pequenas, né? (JR/FLP02J:1041)

(10) No verão é assim, pra praia, pra ir à praia, (hes) tem acesso assim não muito bom, né? assim, é o que eu digo a- a- o asfalto é bom, só que as pistas poderiam ser duplas, né pra evitar congestionamento. Aí pegando as praias mais movimentadas como é Canasvieiras, eu acho um nojo aquela praia lá, um nojo, um lixo, um lixo mesmo. (LU/FLP01J:1105)

(11) Eles estão destruindo as estradas e eles falaram que não têm certeza se vão arrumar a estrada, daí está todo mundo reclamando da poeira, todo sábado eu tenho que limpar a casa, daí os moradores quando vão no banco de ônibus está tudo empoeirado, não dá nem pra sentar (KA/FLP08C:43-44)

(12) E sexta-feira eu não trabalhei, e eu fui lá. A criança está amarrada assim numa corrente. Criança tem treze anos. Então é uma família que o pai teve um acidente, não trabalha. Ganha o salário mínimo, é do INAMPS. E a mãe é toda complicada, também. (TE/FLP16:645)

2.3.1.2 SEQÜENCIAÇÃO TEMPORAL

A seqüenciação temporal emerge quando eventos são apresentados no discurso de acordo com a ordem em que ocorreram no tempo, envolvendo a pressuposição de que o segundo evento ocorreu mais tarde em relação ao primeiro. Exemplos: (13) Ele pegava o bambu, pegava- amarrava uma tocha e tocava fogo. (JQ/FLP01:1233) (14) Tem que lavar o arroz, botar na- na- no fo- ah, não! Tem que botar a água, aí bota o óleo, bota o sal, aí

bota o arroz. Deixa eu ver o que mais. (JA/FLP11J:1156) (15) Ela vai lá, cheira o rato, vê se tem um ratinho ali, daí ele pega a patinha e esmaga ele com a patinha,

aqueles que são bem pequenininhos. (FR/FLP02C:38) (16) É, eu conheço o Boi de Mamão, e conheço e co- o Terno de Reis, que eles saíam, assim, pelas portas, né?

tarde da noite, e a gente estava dormindo. A gente se acordava com aquela cantoria, né? gaita, outros com violão. Então a- o pessoal se levantavam, davam um dinheiro, né? pras pessoas e depois eles saíam dali. Eles iam cantar em tudo quanto era casa. (LZ/FLP15:935)

Nos casos de seqüenciação temporal, a ordenação das informações se dá em

relação icônica com o mundo, já que os eventos são encadeados de um modo que reflete sua ordem de ocorrência no mundo. No entanto, não se pode deixar de considerar que as informações seqüenciadas temporalmente seguem uma ordenação discursiva. Conforme Smith (1981:225), os fragmentos narrativos não envolvem enredos ou conjuntos de eventos organizados de acordo com uma certa seqüência anterior e independente da própria narrativa pela qual o autor os faz se manifestar. Ou seja, a seqüenciação temporal é fruto do tipo de ordenação no tempo discursivo que o falante quis dar a seu texto, assim como todas as subfunções da seqüenciação retroativo-propulsora.

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2.3.1.3 INTRODUÇÃO DE EFEITO

A introdução de efeito exibe a introdução de informações que representam conseqüência, conclusão, efeito ou resultado em relação ao que foi dito previamente. Exemplos: (17) É nessa área do Santa Mônica, ali tem muito, muito cachorro e o carteiro ali é bem incomodado.

(MA/FLP14:1143) (18) A gente dava o banho, dava um purgante, aí a criança ficava boa. (NI/FLP08:588) (19) Talvez ela vai vender um terreno que ela ganhou e talvez ela compre um terreno e compre um cachorro

pra gente, porque lá em casa não tem muito espaço, daí ela não quer comprar um cachorro. (TH/FLP07C:26)

(20) É como se tivesse sempre alguém vigiando a pessoa. Não tens liberdade. Então é melhor viver sem o vício, né? (DA/FLP17:1360)

2.3.1.4 RETOMADA

Em contextos de retomada, temos um alerta direcionado ao ouvinte para que este perceba um movimento de recuperação do fluxo temático anterior, interrompido por uma digressão.29 Após a retomada, a fala progride ao longo da orientação discursiva anterior. O elo não é estabelecido entre informações imediatamente contíguas, pois a digressão constitui-se em material interveniente entre uma parte do tópico/assunto e sua continuidade. Geralmente, no processo de retomada, a informação reatada com o trecho discursivo subseqüente reaparece de forma literal ou com a alteração de alguns vocábulos (cf. construções sublinhadas em (21), (22) e (23)):30

(21) Contar o filme? Contar uma coisa só, né? Uma moça que ela era freira, era noviça, né? Eu adoro filmes

assim. Realmente é dois- Eu gosto de filmes assim. Lá uma vez ou outra eu gosto de assis- de filmes de guerra, assim como Rambo, essas coisas assim. Mas não é filme que me atrai, né? E ela é noviça. E ela- ela- onde ela estava, que ela foi estudar, ela queria sair, ela queria conhecer a vida fora. Ela foi numa imagem duma san- duma Nossa Senhora, que Nossa Senhora é Nossa Senhora, santas são santos, né? Tem a Santa Teresinha, a Santa Rita de Cássia, são santas, pessoas que morreram santas. Nossa Senhora é só uma. É Nossa Senhora porque ela apareceu em diversos lugares, né? Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora- Então ela foi na frente da Nossa Senhora e tirou a- a roupa de freira que ela vestia, deixou ali e saiu pro mundo. Nossa Senhora saiu do altar aonde ela estava, sabes? Se vestiu com a roupa dela e ficou no lugar dela ali no convento. (JU/FLP11:1325)31

(22) E a minha tia também contava que- que de noite, às vezes elas estavam fazendo renda, que lá no sítio nós fazíamos muita renda, né? Eles estavam fazendo renda, daqui a pouco saía aquela barulhada, aquelas gargalhadas, aí ela diz que ia (inint): “Quem que está aí na rua?” Aí elas foram, espiaram pelo buraquinho da porta, apagaram a luz de dentro de casa, que era luz de querosene, e eles tratavam pomboca, aquela lamparina grande, eles tratavam pomboca porque não tinha (inint) luz elétrica. Aí eles apagaram a tal de pomboca e aí ficaram espiando, assim, pela janela, diz que era um- umas- umas sete mulheres. Uma

29 Digressão pode ser definida como uma porção do discurso que não se acha diretamente relacionada com o tópico em andamento (cf. Fávero, 1997:50), uma unidade parentética inserida na linha focal de uma informação que vinha em curso (cf. Risso, 1996:438). 30 A informação assim recuperada está sublinhada em todos os exemplos de retomada fornecidos nesta tese. 31 O símbolo , acrescentado nos exemplos por mim, marca o início da digressão feita pelo falante, e marca o seu final.

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mulher vestida de branco, outra- outras sem roupas pegando uma canoa. Tudo naquele barulho, atravessaram o rio que foram pro outro lado do rio. (NI/FLP08:499)

(23) F: Entramos debaixo da- da pilha de madeira e virou. Era desse tamanho assim (inint). Eu quebrei o fêmur. A mãe quase se matando, gritando. A mãe do outro também, berrando a mãe do outro, porque eram dois- dois irmãos, né?

E: Eram os vizinhos? F: Daí estávamos todos juntos. Sei que me levaram. Naquele tempo tinha o SANDU, no Estreito.

Hoje não existe mais o SANDU. SANDU é órgão do INPS. Ele ficava (hes) bem ali, próximo, ali no- Como é que eles chamam ali, assim? A SANDU ficava um- mais um pouco à- à frente. Nós passávamos muito pelo Estreito, né? Daí parece que me levaram, só me deram calmante lá, um- Não sei, fiquei chap- dopado, no caso, chapado, né? (inint) Isso marcou. (FE/FLP19:1177)

2.3.1.5 FINALIZAÇÃO

A finalização marca a adição de uma oração que sinaliza o final de um tópico/assunto ou subtópico. Nota-se em tal oração a presença de elementos anafóricos (como “isso”, “essa”, “assim”, etc). Depois da introdução da informação finalizadora, seguem-se o silêncio indicador do abandono do turno de fala ou então repetições e hesitações, sinais de desgaste do tópico, manifestando a intenção do falante em abandoná-lo. Exemplos: (24) É- é uma disputa, às vez- a- acontece muita panela, entendeu? de o cara ter um nome, de- de- dele já ser

reconhecido no- no circuito, tem o circuito brasileiro, circuito catarinense, né? tem os circuitos regionais, tem o circuito brasileiro e tem o circuito mundial, mundial é o grande circo, né? é bem, legal. (hes) E é assim. (EV/FLP08J:811)

(25) É “Mulheres sem dono”. É prostituição mesmo, assim. É mulher que- Até está lá em casa. Até vou trazer pra tu leres um dia. Deixa eu terminar que ainda não terminei o livro. Mas é baseado em prostituição, não tem? A mulher do cara viaja, ele vai encontrar com ela. Aí ela estava no- no- tipo- Como é que ela- ela veste? Aí é baseado nisso aí. (TE/FLP16:1019)

(26) Aí fez gol, mas eu nem sabia, depois que o meu pai falou: “Fez gol!” Nem o Rafael, uns amigos do meu pai que se casou até ontem, ninguém sabia. Aí depois eu: “Foi zero a zero, né pai?” “Claro que não, foi um a zero.” Aí a- a J.: “Ah, mas tu não presta atenção, só vai mesmo pra comer, não fala nada.” Ah, meu deus! Daí é assim. (CA/FLP03C:28)

(27) Eu, por exemplo, tinha uma senhora de uns setenta anos que comprava comigo, era minha cliente. Não comprava com outra pessoa a não ser comigo. Ela acostumou. (...) Pessoa de idade é assim: ela gosta duma pessoa, e se pega a firmeza naquela pessoa, ela- Então o comércio era assim. (NL/FLP04:985)

A opção por destacar as cinco subfunções da seqüenciação retroativo-propulsora pautou-se em sua aparente rotinização: são mapeadas com regularidade na fala dos informantes florianopolitanos. E, aí, daí e então podem ser considerados todos marcas dos diversos tipos de tessitura depreendidos dos contextos de uso da seqüenciação, uma vez que são freqüentes em cada uma das subfunções, inclusive na fala de vários informantes. Corrobora com a validade das distinções entre as subfunções depreendidas dos contextos de uso da seqüenciação o fato de que nuanças idênticas ou semelhantes também são apontadas em outros estudos – diversos pesquisadores as observaram, o que indica que são salientes na cadeia linear da fala. Seguem-se alguns trabalhos de que tenho notícia:

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Quadro 4: Estudos que também observaram uma ou mais das subfunções da seqüenciação

� Abreu (1992) aborda segmentos continuativos (seqüenciação textual)32 e relações temporais (seqüenciação temporal) estabelecidas por e e aí.

� Andrade (1997) cita e e então na lista dos recursos coesivos empregados para voltar ao tópico prévio, logo após o trecho digressivo (retomada).

� Fávero (1997) também menciona a possibilidade do tópico ser reintroduzido por meio de um conector (retomada).

� Koch (1987) diferencia seqüencialidade temporal de seqüencialidade textual. � Martelotta (1994) descreve os seguintes usos do aí e do então: seqüencial (seqüenciação

temporal); conclusivo (introdução de efeito), introduzindo informações livres (seqüenciação textual). Menciona ainda o uso “retomando assunto” (retomada) como específico do então. Martelotta & Rodrigues (1996) acrescentam o uso resumitivo (finalização) ao elenco de funções do então.

� Risso (1996) aponta como usos do então articulador discursivo: (i) seqüenciação aditiva de tópicos (seqüenciação textual); (ii) interligação de eventos e ações que se sucedem temporalmente (seqüenciação temporal); (iii) indicação de relações de causa-efeito (introdução de efeito); (iv) fechamento parcial ou geral das considerações (finalização); (v) retomada.

� Conforme Silva & Macedo (1992), aí funciona como conjunção seqüencial (seqüenciação temporal), mas também marca etapas ou parágrafos no discurso (seqüenciação textual).

2.3.2 MATIZES QUE SE MESCLAM Há diversos contextos de uso da seqüenciação retroativo-propulsora em que se percebe a presença de mais de um de seus matizes ao mesmo tempo, ou em que é delicado definir qual das subfunções está sendo destacada (casos de ambigüidade). Por exemplo, quando a relação de introdução de efeito é manifestada entre dois eventos, a idéia de seqüenciação temporal está presente com maior ou menor intensidade, sobrepondo-se à nuança de conseqüência:

(28) Aí eu sei que numa de- num desses círculos eu fui sozinha, e chegou num determinado ponto eu- eu vi que nunca eu ia conseguir fazer a volta. Aí ele veio pra me ajudar. Eu me lembro que eu me agarrei nos bra- assim, no pescoço do homem e larguei o guidom da bicicleta. (JQ/FLP01:1178)

(29) Ela olhou pra mim, eu gostei dela, aí ficamos namorando. (NL/FLP04:693) Pode haver ambigüidade entre a introdução de efeito e a seqüenciação textual. Por exemplo, em (30), o falante está contando que trabalhou na repartição e depois como motorista - um caso de sucessão temporal-, ou que seu trabalho na repartição era como motorista - caso em que estaria em jogo a seqüenciação textual, acrescentando mais uma informação relevante ao tópico tratado? Pelas informações anteriores (tirei a carteira), a leitura tende à segunda opção, mas a primeira não pode ser descartada. Já em (31), a falta de problemas pode ser mais uma informação acerca do bairro ou uma conseqüência da comunidade ser pacata e viver de seu trabalho.

32 O que se encontra entre parênteses no quadro 4 corresponde à denominação dada às subfunções da seqüenciação nesta tese.

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(30) Que com muito custo na época, quando eu casei, eu trabalhei até no pesado, mas depois foi indo, foi indo, desenvolvendo, com a boa vontade eu passei, tirei a carteira. Então eu saí do último emprego que eu tinha e peguei na repartição, então peguei como motorista. (PE/FLP02:216)

(31) E raramente nós temos um problema de- de roubo ou qualquer coisa no bairro. É realmente uma- uma comunidade pacata que vive do seu trabalho e- e não tem maiores problemas, assim, de agitação no bairro. (AC/FLP21:1026)

Certos contextos fornecem indícios da presença das três subfunções. Em (32), além de promover a propulsão da narrativa rumo à sua continuidade, é possível que o então de então ele ensinou a profissão de tratorista pro meu pai evidencie uma leve conseqüência em relação a o meu avô era tratorista da prefeitura há muito tempo e/ou indique uma leve seqüência cronológica em relação a se aposentou pela prefeitura. Em (33), o e de e o pai dela entendeu que ela gostava dele pode estar ressaltando seqüência temporal e/ou conseqüência em relação à informação anterior, ou somente destacando uma informação que se conecta com a primeira sem implicações de tempo ou efeito. O mesmo vale para o daí de daí eles viveram felizes para sempre em relação a o pai dela entendeu que ela gostava dele.

(32) Então teve que dar os terrenos pras pessoas que ele teve uma (“falta”). Então tu vês, o pai voltou a nada. E o meu avô era tratorista da prefeitura há muito tempo. Se aposentou pela prefeitura. Então ele ensinou a profissão de tratorista pro pai. Aí o pai começou trabalhar como tratorista e começou a levantar tudo novamente. (IR/FLP13:756)

(33) Termina que os dois casaram e o pai dela entendeu que ela gostava dele, daí eles viveram felizes pra sempre. (JL/FLP09C:6)

As subfunções da seqüenciação representam distinções semântico-pragmáticas ora bastante ressaltadas, ora bastante tênues, imbricando-se de vários modos, pois seu caráter gramatical assujeita-as a manipulações diversas.33 Além disso, para um dado falante uma informação pode ser causa suficiente para definir a seguinte como conseqüência e uma certa ordenação pode ser indicadora de sucessão temporal, mas para seu interlocutor as relações estabelecidas podem ter natureza diversa, o que pode ser um gatilho não só às situações de sobreposição e ambigüidade, mas também para que novas possibilidades de uso emerjam. Por exemplo, em (34), temos favorecida a leitura de introdução de efeito, mas o contexto também deixa transparecer uma leitura explicativa suave, como se a informação subseqüente estivesse fornecendo uma razão, uma justificativa para a informação precedente. A repetição de contextos como esse poderia levar o aí a ser empregado como explicativo, mas esta é só uma especulação. 34

(34) A maionese, eu faço uma bacia assim, aí todo mundo gosta. Inclusive, esse ano eu não queria fazer no sorteio, meu sogro: “Não, não, tu vais fazer.” Então todo mundo quer minha maionese. (AT/FLP09:408)

33 A questão das subfunções e demais traços do contexto de uso da seqüenciação cuja diferenciação implica recortes sobre indistinções, sobreposições e contínuos é retomada no capítulo III (seção 2.3). 34 Casos de novos usos pressionados por usos anteriores são abordadas no capítulo V.

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2.3.3 NÍVEIS FUNCIONAIS SUPERORDENADOS: VER DIFERENTE O domínio da seqüenciação retroativo-propulsora configura-se num escopo funcional gradiente, podendo ser visto como um dos elos de um fenômeno superordenado: conjunção geral > seqüenciação retroativo-propulsora > subfunções da seqüenciação > possíveis subtipos das subfunções.35 Cada um desses níveis funcionais passível de ser isolado como objeto de estudo. Optei por passar a tesoura em torno da seqüenciação, atentando para as preferências dos usuários da língua relativamente a esse estrato da conjunção geral. Todavia, destaco também suas nuanças mais específicas e controlo-as como possíveis influências contextuais interferindo na escolha entre as marcas da seqüenciação. Qual o peso, na distribuição territorial no âmbito da seqüenciação, de preferências porventura manifestadas por um dos conectores? Qual seria a fonte de tais preferências? Poderiam elas influir nas trajetórias de mudança? As preferências de uma dada forma relativamente às nuanças poderiam flutuar de uma nuança para a outra ao longo do tempo? Agrupar como nuanças da seqüenciação faces da conjunção costumeiramente separadas - a adição/seqüenciação textual (cf. seção 2.6.4), a seqüenciação temporal e a conseqüência/conclusão,36 juntando a elas ainda a retomada e a finalização - permite que se veja as relações no plano da seqüenciação de um modo mais fluido, não distinguindo categoricamente fronteiras que se interpenetram. Como relações de âmbito gramatical sempre sujeitas a emergências e submersões, não lhes cabe um recorte rígido. A constituição da seqüenciação retroativo-propulsora como objeto de estudo é possibilitada pela focalização da gramática de um ponto de vista emergente, o que nos liberta do compromisso com categorias e modos tradicionais de ver, levando-nos a repensar os picotes costumeiros da língua. Por conseqüência, capturamos relações instáveis entre funções e formas que de outra forma permaneceriam obscurecidas. 2.3.4 CO-OCORRENDO EM DIFERENTES MATIZES É interessante mencionar que foram mapeados usos combinados das formas seqüenciadoras em todas as subfunções, como mostram os exemplos a seguir: seqüenciação textual (35), seqüenciação temporal (36), introdução de efeito (37), retomada (38) e finalização (39).

(35) Então a gente se reunia, três, quatro, ia de tarde buscar lenha. Então eu era menina, assim com- com os seus treze, catorze anos, eu ia também. Então aí os- eles faziam molhinho mais leve, diziam assim: “Esse aqui é pra ti.” (NI/FLP08:1163)

35 Seria possível distinguir ainda mais nuanças da seqüenciação. Por exemplo, a conseqüência e a conclusão, agrupadas como introdução de efeito, poderiam ser desmembradas. No entanto, optei por mantê-las juntas, pois a fronteira entre elas é bastante difícil de ser traçada. Além disso, no corpus utilizado, a indicação de conclusão não é tão freqüente quanto a indicação de conseqüência, o que poderia provocar enviesamentos na análise estatística. 36 Talvez as fronteiras mal traçadas entre as subfunções seqüenciadoras sejam a causa do fato de diversos gramáticos normativos listarem abaixo do rótulo “adição” não só casos de adição/seqüenciação textual, mas também de seqüenciação temporal e de introdução de efeito. Alguns exemplos: Cunha (1994:535 e 554): Deram o braço e desceram a rua. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote; Said Ali (1969:105, 133): O galho partiu e o menino caiu da árvore. Eu li a carta e entreguei-a a Pedro. (sublinhado adicionado) A junção da conseqüência e da conclusão também ocorre nas gramáticas normativas. Por exemplo, Cunha (1994:535) afirma que “As conclusivas servem para ligar à anterior uma oração que exprime conclusão, conseqüência. São: logo, pois, portanto, por consegüinte, por isso, assim, etc.”

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(36) Mas, quando se encontra: “Oh! Pa! Coisa. Tu te lembras daquela época quando- que nós jogávamos futebol? Aquele dia tu deste aquela- aquela canelada no cara.” E- E aí vem aquele papo. (PE/FLP02:1200)

(37) Aí ele mandou dar banho de alho, banho de arruda, e fazer um monte de coisas lá, e aí a menina ficou boa. (NI/FLP08:553)

(38) Ela esteve um- um mês e pouco no hospital. É, porque ela deu um- ela começou com uma alergia. Ela tinha ido tirar ostra, aqui embaixo, né? E ela, de vez em quando ela gostava de ir, e ninguém sabe se foi disso, ou se foi da água, ou se foi da ostra que ela comeu. (...) Que ela já estava com oitenta e poucos anos, daí ela- Mas ela era uma pessoa forte, sabe? A Dona A. via, né, Dona A? Ela era uma mulher forte, de subir, descer, lavar roupa (...) Mas ela era uma boa pessoa, muito boa pessoa, né, Dona A? Boa demais de coração. Que tirava o que tivesse do corpo dela, deixava de comer, pra dar pra qualquer pessoa. E daí deu aquela alergia nela, ela foi- foi medicada, ficou assim uns tempos. (RO/FLP03:1108)

(39) F: Tinha esta casa aqui, ali pelo Seu V. se encontrava mais uma base de umas três casas, depois da minha casa se encontrava mais umas duas e pronto. Depois eram só pastos, sapos, muito espinheiro. Não sei se tu conheces o que é espinheiro?

E: Não. F: É uma árvore que contém muito espinho. E então se encontrava isso aí. (PA/FLP12:859)

2.3.5 PENETRANDO ATRAVÉS DAS FENDAS O domínio da seqüenciação retroativo-propulsora foi herdado do latim, haja vista que pelo menos uma das formas em ação hoje (e) deriva de uma forma latina (et) que já atuava no ramo da seqüenciação. As formas seqüenciadoras são diversas ao longo do tempo (formas novas surgem, formas antigas se vão), mas a função de seqüenciação continua a existir.37 Assim, em Florianópolis, não temos um domínio incipiente, emergindo pouco a pouco, mas sim se constituindo a partir daquele herdado do latim, pela soma de alterações advindas das experiências dos falantes com a seqüenciação desde então. O que ocorre atualmente é gramaticalização no sentido de organização e re-organização interna das relações entre formas e funções, em um percurso de abstração crescente e/ou generalização dos usos, paralelo à disputa travada pelas quatro formas principais. 38 A seqüenciação tem sido construída e re-construída ao longo do tempo (talvez com raízes fincadas já no proto-indo-europeu), abrigando formas provindas de fontes distintas. Uma delas foi o uso do et como cópula entre sintagmas no latim, do qual é oriundo seu uso conectivo, base do e português. Outras fontes das quais bebeu a seqüenciação foram os usos espácio-temporais de aí, daí e então, que, mais cedo ou mais tarde, deram origem a seus usos conectivos. Como as formas escorrem de mananciais diversos rumo à seqüenciação, é provável que penetrem aí por diferentes fendas, já que a mudança é de natureza local: os contextos que pressionam as alterações caracterizam-se pela manifestação de traços antigos ao lado de traços inovadores. Assim é que e deve ter desembarcado na seqüenciação retroativo-propulsora via seqüenciação textual, uma nuança semântico-pragmática próxima de seus usos adverbiais e 37 Se o domínio em si passa por algum tipo de mudança funcional - isto é, se aquilo que é abarcado pela seqüenciação hoje no português (cf. detalhamento nos capítulos V e VI) o era no latim -, somente um estudo comparativo refinado entre as duas línguas poderia revelar. Possivelmente seriam encontradas diferenças, pois cada conector seqüenciador por hipótese preserva traços de seus usos anteriores em outras funções, o que deve contribuir para especializações algo diferenciadas por parte do domínio em si. Por exemplo, talvez a existência de três formas de base espácio-temporal em competição com o e - aí, daí e então - torne o domínio da seqüenciação diferente daquele no latim, assim como deve diferenciá-lo do domínio no português europeu, em que há apenas uma forma de base temporal, o então (cf. Tavares, 2002d e 2002e). 38 Entretanto, a gramaticalização pode envolver a emergência do domínio funcional em si. Esse parece ser o caso do surgimento do artigo no finlandês, domínio que não existia na língua anteriormente e que tem derivado de usos demonstrativos desde por volta de 1800. O processo de emergência ainda não chegou à completude, pois os artigos não se estenderam para todos os contextos de uso típicos das línguas que possuem o domínio já consolidado, como o inglês e o francês, mas têm avançado mais e mais com o passar do tempo (cf. Laury, 1997).

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copulares latinos, tendo em comum o encargo de somar nacos de língua. Por sua vez, aí, daí e então podem ter debutado como seqüenciadores através da seqüenciação temporal, que se avizinha de suas fontes espácio-temporais. A partir de seu ponto de chegada, as quatro formas estenderam-se posteriormente às demais subfunções, em trajetórias analisadas no capítulo V. 2.4 A POLTRONA PREFERIDA A posição ocupada por e, aí, daí e então como conectores que apontam simultaneamente para frente e para trás no seqüenciamento de informações é a de extrema margem esquerda, isto é, entre o final de uma oração ou parte maior do texto e o início de outra, em quase 100% dos dados analisados.39 Dada a alta freqüência, pode-se dizer que a posição sintática típica - gramaticalizada - dos conectores seqüenciadores é a de abertura da unidade que possuem por escopo. Tal rigidez é um indício de que esses conectores passaram pelo processo de gramaticalização. Conforme Heine & Reh (1984, apud Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:15), quanto mais gramaticalizada uma unidade lingüística, mais sua variabilidade sintática decresce, isto é, a posição na frase se torna mais fixa. Lehmann (1991:494) também tece considerações semelhantes, afirmando que a gramaticalização diminui a liberdade de manipulação do elemento: ele passa a ser mais obrigatório em certas construções e a ocupar uma posição fixa. Encontrei apenas oito exceções, distribuídas em contextos diferentes: (i) três casos em que o conector vem depois de um sintagma preposicional indicador de tempo (exemplo em (40)); (ii) três casos em que parece haver um uso conjugado de conectores marcando a mesma subfunção, mas partido pelo sujeito da oração ou pelo sujeito e o verbo (41); (iii) dois casos em que está em jogo a seqüenciação temporal (42).

(40) Era- é- na- na mi- na infância, entre os catorze, quinze anos, então a gente não tinha, assim, como essas crian- essas pessoas que têm malícia na cabeça, né? Porque hoje- naquele tempo assim, não tinha tanta droga como tem agora. (CR/FLP10:772)

(41) Então ali eu era gerente e eu comandava todo o crediário. Todo- todo- passava tudo por mim, desde a abertura de ficha até os pagamentos, tudo comigo, né? E eu conheci então todas as famílias, nome a nome. O nome tinha muita importância naquela época. (AL/FLP22:925)

(42) Acordei ele, né? e disse: “J., não dá mais, está na hora. Aí foi- aí ele acordou bem rápido, ele aí se arrumou, eu arrumei a bolsa, né? chamei a mãe, aí- aí ele me levou pra maternidade. Eu cheguei na maternidade, já estava com seis dedos de dilatação. (SE/FLP20:843)

2.5 DESCARTANDO FUNÇÕES E FORMAS A seguir, são apresentadas funções e/ou formas que foram excluídas da análise quantitativa: (a) as construções seqüenciadoras; (b) outras formas ou construções que também marcam a seqüenciação; (c) os demais usos das formas e, aí, daí e então na fala de Florianópolis.

39 Silva, Tarallo & Braga (1996), em um estudo utilizando amostras do NURC, também apontam que os conectores ocorrem preferencialmente à extrema esquerda dos enunciados: e e aí em 100% dos dados que obtiveram referentes a essas formas e então em 97,16% deles.

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2.5.1 CONSTRUÇÕES SEQÜENCIADORAS: UM CASO PARA A GRAMÁTICA? Encontrei alguns usos de e e aí combinados com outros vocábulos - geralmente verbos - em expressões que servem ainda à seqüenciação ou que já passaram a desempenhar outras funções. Assim como o emprego combinado de dois ou três seqüenciadores (seção 2.2.2), talvez essas expressões representem - ao menos algumas delas - construções já gramaticalizadas. São elas: e passou-se, aí passou-se, marcando a passagem do tempo em narrativas (cf. (43)) e aí tá, daí tá, aí tá, né?, indicando a introdução de novas etapas em narrativas ou argumentações (cf. (44)). Tais construções não são consideradas na análise quantitativa, já que são usos específicos que envolvem um ou dois seqüenciadores, não todos.

(43) Olhei pra ele e disse: “Olha, J., eu vou te dizer uma coisa: se tu, algum dia, quiseres ir ver teus filhos, tu podes ir, mas pra viver mais lá dentro de casa eu não te quero mais.” Aí passou-se. Isso foi em janeiro, depois de dezembro, que eu já tinha dado aquela chance dele vir pra casa. Aí, quando na- estava naquelas épocas de carnaval, e dou de cara com ele dentro de casa. (RO/FLP03:962)

(44) E lá tinha um rio e era perigoso, né? é- mas só que a gente passava por- por cima da tábua, era lá em cima. Aí tá, né? eu peguei e fui passar, mas eu fui atravessar a minha outra prima. (CA/FLP03C:38)

2.5.2 OUTRAS CONCORRENTES QUE NÃO MOSTRAM MUITO A FACE Além das quatro camadas/variantes principais da seqüenciação retroativo-propulsora, há, na fala de Florianópolis, outras formas seqüenciadoras e também construções compostas por um agregado de vários seqüenciadores. E, aí, daí e então integram diversas dessas construções, que podem ser consideradas casos de co-ocorrência entre conjunções, possibilitadas pelo processo de gramaticalização (cf. seção 2.2.2). Dentre essas outras formas, a mais freqüente é o depois. Mapeei um total de 136 usos deste conector isolado ou como parte de construções conectivas em contextos de seqüenciação temporal. A distribuição é a seguinte: depois (75 dados), e depois (24), aí depois (17), daí depois (16), então depois (2), e aí depois (2). Exemplos:

(45) Uma hora eu estou sonhando uma coisa, depois já vem outra coisa, já se mistura, daí fica uma coisa meio doida, uma hora eu estou num lugar com uma pessoa, depois já estou em outro lugar, com uma pessoa, depois já estou em outro lugar, aí estou no mesmo lugar, não é mais a mesma pessoa. Ah, é um rolo! (DE/FLP06J:1200)40

(46) Mas às vezes pára bastante lá, daí sai de elevador para descansar, daí depois passa para a raia três e aprende a bater mais perna, daí nadar costas é assim, daí na raia quatro tu já aprendes mais coisas, né? (MR/FLP10C:76)

A freqüência do depois em papéis no âmbito da articulação discursiva não é tão grande quanto à de e, aí, daí e então, o que dificulta a aplicação de procedimentos estatísticos que o incluam. Além disso, depois conectivo só exibe seqüenciação temporal, sendo variante das demais formas apenas nesses contextos. Por essas razões, será deixado de lado. Os demais itens ou expressões seqüenciadoras, também pouco recorrentes no corpus, geralmente são encontrados em contextos de introdução de efeito. (cf. quadro 5)

40 Observe-se em (45) a alternância entre aí, daí e depois na seqüenciação das partes interligadas.

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Quadro 5: Freqüência de conectores ou construções seqüenciadoras introdutoras de efeito na fala de Florianópolis

Por conseguinte 1 Então por isso 3 Então quer dizer 5 Portanto 1 Então por isso que 1 E então quer dizer que 1 Por isso 1 Aí por isso 1 Assim 1 Por isso que 13 Aí por isso que 1 E assim 2 Por isso então 1 Quer dizer 13 E por isso 1 Quer dizer então 2 TOTAL 48

Alguns exemplos:

(47) Corremos o risco de pagar coisas mais caras, porque o turista vem com o dinheiro e compra por qualquer preço, por conseguinte o comércio vende mais caro, e sai o turista e ele continua vendendo mais caro e nós vamos pagar o ano inteiro. Então tem alguns aspectos negativos, que eu acho, com o turismo. (AC/FLP21:721)

(48) F: É até esquisito a- pra e- fica esquisito pra ela. Nem- nem cobro porque não tem como. Pra ela não- (hes) Assim, como eu também tenho- eu tenho uns tios que não- não chamo de tios, que chamo pelo nome. Por isso que eu entendo ela, não consigo chamar eles de tios, então entendo.

E: Está muito próxima. (LE/FLP05J:864) (49) Então masculino num lado, feminino do outro, quer dizer, sempre só via de longe. (IR/FLP13:689)

Também localizei dez quer dizer e quatro então quer dizer exibindo seqüenciação textual:

(50) Eu posso até falar um pouco do jardim, porque eu trabalhei ali cinco anos, né? Uma amizade boa, assim, a turma muito boa. Inclusive tenho uma amiga do coração que trabalha ali na Reitoria, a C. Quer dizer, hoje a gente continua se encontrando, a gente vai almoçar juntas, né? (AT/FLP09:698)

(51) A gente ia prum sítio, lá em Bombinhas, em Biguaçu, pra lá, São Miguel lá, né? A gente ia prum sítio. Então quer dizer lá não tinha luz, não tinha água. Água tinha, não tinha luz. (BE/FLP03J:906)

Apesar de não incluir tais formas ou construções neste estudo, saliento que também fazem parte do domínio da seqüenciação retroativo-propulsora, mantendo inter-relações entre si e com os agentes seqüenciadores mais recorrentes, em uma teia complexa de distribuição de papéis. Ou seja, as quatro unidades sob estudo não disputam espaço apenas entre si, mas com todas as marcas da seqüenciação, havendo, talvez, embates mais particularizados, no âmbito de uma ou outra das subfunções seqüenciadoras. 2.5.3 MULTIPLICIDADE FUNCIONAL Identifiquei uma multiplicidade de funções semântico-pragmáticas de natureza variada a serviço das quais são postas as formas e, aí, daí e então. Entretanto, como o fenômeno em estudo é a seqüenciação retroativo-propulsora, não me deterei em todas as funções de suas marcas, apenas abordando quando necessário aquelas que se relacionam diretamente à seqüenciação, seja por representarem a continuidade dos usos fontes dos seqüenciadores, seja por serem derivadas destes. No anexo 1, há um quadro bastante completo referente às funções de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis, baseado em Tavares (1999a), com o acréscimo de algumas construções não observadas aí.

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2.6 FUNÇÃO-SIGNIFICAÇÃO Começamos esta seção com um olhar sobre as diferenças e as semelhanças entre significados lexicais e gramaticais e sobre a natureza do significado da seqüenciação retroativo-propulsora. A seguir, tratamos dos contextos de seqüenciação não marcados por meio de um conector. Depois, temos uma subseção dedicada a aspectos importantes para a compreensão do que é abarcado pelo rótulo seqüenciação retroativo-propulsora: (a) relação entre o que é geralmente denominado adição e a seqüenciação textual; (b) a distinção entre conjunções simétricas e assimétricas. Assistimos então a uma exposição de dados da seqüenciação que possuem bastantes similaridades. 2.6.1 SIGNIFICADOS LEXICAIS E SIGNIFICADOS GRAMATICAIS Vou diferenciar significados gramaticais de significados lexicais, ressalvando, porém, que a fronteira entre ambos os níveis não revela demarcações rígidas, pois as palavras podem ser manipuladas de modo criativo e variado por parte dos usuários da língua - consciente ou inconscientemente. Necessidades comunicativas on-line de se fazer entendido e de entender, de ser mais ou menos expressivo resultam em inter-relações dinâmicas entre léxico e gramática: do léxico derivam constante e gradualmente inovações gramaticais.41 Significados lexicais fazem referência ou descrevem coisas do universo biossocial - entidades, ações, qualidades. Costumam ser consideradas marcas típicas do âmbito lexical os nomes, os verbos, os adjetivos e os advérbios. Significados gramaticais atuam na organização dos itens lexicais no discurso: relacionam nomes (preposições), ligam partes do discurso (conjunções), indicam se as entidades e participantes de um discurso já foram identificados ou não (pronomes e artigos), mostram se eles estão próximos do falante ou do ouvinte (demonstrativos), entre outros. É possível considerar à parte adjetivos e advérbios, como propõem Hopper & Traugott (op. cit.:104), que dividem as palavras em três categorias: categoria maior [nome, verbo, pronome] > categoria mediana [adjetivo, advérbio] > categoria menor [preposição, conjunção]. A categoria mediana representa um grau intermediário entre léxico e gramática, sendo suas marcas geralmente derivadas de nomes e verbos. Os significados das formas lingüísticas são negociáveis, em maior ou menor extensão. Alguns significados, notadamente os lexicais, são relativamente estáveis e fixos a cada uso, enquanto outros, geralmente de natureza mais gramatical, dependem mais do contexto circundante para serem interpretados. Por essas características, são mais negociáveis quando da interação. A gramaticalização representa uma evolução de um estado de maior autonomia e estabilidade de significados para um estado de menor autonomia e maior instabilidade: à medida que os itens lexicais sofrem gramaticalização, emergem significados de natureza abstrata e genérica, mais adaptáveis a contextos de uso diversificados. Seria o caso da seqüenciação retroativo-propulsora?

41 Lembro que há, a princípio duas possibilidades de gramaticalização: a que tem como fonte o léxico e a que tem como fonte a própria gramática. No entanto, para alguns estudiosos, os conceitos de léxico e de gramática podem ser sintetizados (cf. capítulo II). Seguindo essa opção, teríamos uma só possibilidade de gramaticalização: rumo a âmbitos mais gramaticais.

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2.6.2 O SIGNIFICADO DA SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA A seqüenciação retroativo-propulsora interliga partes do discurso, é, portanto, uma função de natureza relacional, pertinente ao âmbito gramatical. Mas qual é o seu significado? É o valor42 de indicar um ponto passado no discurso e, ao mesmo tempo, de indicar um ponto futuro, que se relaciona com o primeiro por se seguir a ele. Assim, direciona para frente, para a continuação do discurso, evidenciando que o que foi dito anteriormente é uma fonte de informações para o que será dito depois. Trata-se de uma função-significação43, isto é, um significado que reflete o contexto comunicativo, pois suas marcas formais apenas indicam haver uma relação de continuidade e consonância entre informações conectadas. Depende, portanto, de informação contextual para ser depreendida, como tipicamente ocorre no reino gramatical. 44 Surge daí a questão: os conectores seqüenciadores acrescentam algo ou são meramente traços redundantes que refletem relações já existentes? Podem induzir à busca de conexões que sem sua presença não seriam inferidas ou simplesmente ressaltam o que poderia ser percebido sem sua presença? Creio que as unidades sob investigação ressaltam uma função-significação que pode ser posta em funcionamento independentemente de uma forma específica. Contudo, não se trata de tarefa redundante: se o item não marcar presença, o ouvinte pode não perceber a intenção do falante de interligar informações, manifesta pelo movimento anafórico-catafórico embutido no conector – o qual dispara a busca por relações entre as informações conectadas. Os conectores são pistas indicando que o que segue está relacionado ao que veio antes - mas a identificação de funções mais específicas em jogo depende do contexto discursivo, que permitirá (ou não!) identificar o tipo de relação estabelecida entre as partes conectadas. Há marca de coesão, mas ela não é capaz de acionar esquemas relacionais específicos. A depreensão de uma das cinco subfunções depende, portanto, de informações contextuais. Isolados das informações anteriores e posteriores - bem como inferências, implicaturas e tudo o mais que caracteriza a dinamicidade dos usos lingüísticos -, os conectores seqüenciadores não significam. A própria seqüenciação possui fronteiras indistintas, fazendo vizinhança com outros tipos de relações conjuntivas bastante próximas quando postas em ação. Tomemos o caso da adversão. As marcas seqüenciadoras servem aos dois patrões - e e aí, com bastante freqüência. Quando adversativos, e, aí, daí e então marcam um contraste entre o já dado e o que está por vir,45 como em (52), (53), (54) e (55). A indecisão quanto a interpretar um dado como adversativo ou seqüenciador é comum: onde a tesoura deve passar?46

42 O termo valor é empregado na literatura funcionalista tanto para significado quanto para função (cf. Ramat, 1998:114). 43 A expressão função-significação foi emprestada de Nichols (1984). 44 Caso semelhante é o de funções gramaticais do tipo reformulação, requisição de apoio discursivo, chamada de atenção do ouvinte, modalização epistêmica, já comentadas na primeira seção. A delimitação de tais domínios bem como das diversas subfunções abarcadas por eles somente é feita considerando-se informações diversas provindas dos contextos comunicativos, o que é mais um indício do caráter gramatical dessas funções. 45 As outras marcas de adversão freqüentes na fala de Florianópolis são: mas, só que, já e agora (cf. Tavares, 1999b). 46 A dificuldade em se recortar os dados é motivada não apenas pela possibilidade de uso dos conectores tipicamente seqüenciadores em encargos adversativos, mas também pela possibilidade de uso dos conectores tipicamente adversativos em encargos de seqüenciação, especialmente na sinalização da seqüenciação textual. O mas, por exemplo, é encontradiço como marca dessa subfunção (cf. Tavares, 1999b). Essa questão não é abordada aqui, mas se constitui em interessante tópico para estudos que tomem como objeto a seqüenciação textual.

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(52) Tipo uma mulher que tem sua vida e acha que a vida na rua é melhor, mais fácil. (MA/FLP14:560) (53) Se já tinha morrido lá, já estava lá, era assim- nem precisava isso, né? Era só liberar, né? Aí não podiam liberar

sem o médico chegar. (RO/FLP03:1349) (54) Meu pai não é nem um pouco católico, entendeu? Quer dizer, ele era, mas não era praticante de todo dia, né?

essa história toda. Aí eu não- não- não ia, daí de um tempo pra cá eu comecei a me interessar, né? conhecer a palavra, em ir pra igreja e conhecer a Jesus, o Cristo. (EV/FLP08J:933)

(55) A casa já estava caindo, já tinha sido condenada quando nós fomos morar lá. Então nunca caiu, e veio a ser derrubada depois. (IR/FLP13:389)

2.6.3 TEM QUE ESTAR DE CORPO PRESENTE É possível estudar como camadas/variantes no âmbito da interligação discursiva apenas formas plenas - como e, aí, daí e então - descartando a possibilidade de realização da articulação seqüenciadora independentemente de marca, isto é, sem a presença do conector? Alguns estudos têm adotado uma abordagem variacionista para analisar e e aí levando em conta também sua não realização. Silva & Macedo (1992) tomam aí como variante da abertura de tópicos na fala, opondo a presença do conector nessa função à sua ausência - contextos de abertura de tópicos em que poderia ter sido empregado, mas não foi. Ou seja, as variantes são aí e a ausência de aí (Ø). Tomam o e também como variante da abertura de tópicos na fala, opondo-o à sua não realização. Tratam cada conector separadamente (em comparação com à sua não realização) e, posteriormente, efetuam uma análise comparativa entre os dois (e e aí). Semelhantemente, Abreu (1992) opõe aí o seu não aparecimento na função de articulador discursivo, seguindo igual procedimento com e, para, por fim, comparar os resultados referentes a cada um deles. No entanto, a inclusão dos contextos de seqüenciação desprovidos de marca conectiva traria sérios problemas para uma análise do tipo almejada aqui. Como diferenciar os Ø (contextos possíveis de realização que não foram preenchidos) de e dos Ø de aí, e dos Ø de então e de daí? Podemos considerar os mesmos Ø tanto para um quanto para outro conector quando os analisamos separadamente? Uma possibilidade seria considerar o conjunto completo das formas que realizam a articulação seqüenciadora, por exemplo, e, aí, daí e então, mais o Ø. Nesse caso, a não realização da marca de conexão seria variante tanto de e quanto de aí, daí e então - seria a quinta camada, o que nos conduz ao ponto central da questão. A análise de duas ou mais formas que exercem a mesma função independentemente umas das outras nos faria perder as relações que existem diretamente entre elas – a opção de seleção que os falantes têm não é entre empregar aí ou não, e ou não, e sim entre empregar ou e, ou aí, ou daí, ou então ou não empregar nenhum deles, deixando, neste último caso, a percepção das possíveis conexões totalmente por conta do interlocutor. O objeto central deste estudo é o leque das inter-relações complexas que constitui o domínio da seqüenciação e suas motivações cognitivas, comunicativas e sociais. Se as formas forem picoteadas em análises separadas, os resultados quantitativos podem não revelar com detalhe como está organizado o domínio da seqüenciação em Florianópolis e em que medida as múltiplas motivações atuam sobre essa organização. Sem a consideração do conjunto dos usos, provavelmente passaria despercebido se - e em que grau - a tomada de território por parte de uma das unidades sob pesquisa faz deslocar as demais unidades, e se todas são igualmente obrigadas a se mover, em efeito dominó.

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Todavia, um recorte se faz necessário. A inclusão dos contextos de seqüenciação não preenchidos na análise demandaria o tratamento de um número imenso de dados difíceis de serem delimitados: como especificar todos os lugares em que poderia ter havido uma marca de seqüenciação e não houve? E, aí, daí e então seqüenciadores aparecem no início de orações, de segmentos tópicos, de subtópicos, de tópicos, enfim, seu campo de ação é vasto. São utilizados até mesmo antes de outros conectores, como os subordinativos, isto é, a presença de uma marca formal de conexão não inibe o emprego da outra, aumentando o número de contextos possíveis para o uso dos seqüenciadores:

(56) Minha avó queria que todos fossem, assim, impecáveis, de rabinho-de-cavalo direitinho. Mas eu não gostava de pentear o cabelo. Então quando eu estava muito- muito despenteada, aí- aí o meu primo cantava assim: “Um dia, certa vez lá em Curva, dançando na rua, disseram que a J. era arrepiada.” (JQ/FLP01:1308)

Há ainda outro empecilho para a inclusão do não preenchimento do conector como variante, já mencionado na seção anterior: o movimento anafórico/catafórico típico da função de seqüenciação retroativo-propulsora. Embora haja seqüenciação de informações sem a presença de um conector, não parece haver, nesse caso, o “apontamento para trás” que acontece quando o conector é empregado. Além disso, a presença do conector torna evidente que a informação seguinte está sendo coordenada a uma informação prévia. 2.6.4 NÃO SE PODE DEIXAR DE MENCIONAR... Como ilustrado por vários dos exemplos apresentados até aqui, os conectores seqüenciadores são opções disponíveis para o falante seqüenciar informações, independentemente das subfunções em jogo. No entanto, no decorrer da análise, deparei-me com um tipo de contexto de uso da seqüenciação retroativo-propulsora em que o e pode despertar inferências diferentes se comparado aos demais seqüenciadores. São casos de interligação entre duas informações que, quando marcados pelo e, parecem ter nuanças de sucessão temporal ou de causa-efeito desfavorecidas, em favor da nuança de seqüenciação textual: as informações que o e possui por escopo estariam seguindo apenas ordenação discursiva, agrupadas juntas por relacionarem-se ao tópico/assunto em andamento. Já a presença dos demais conectores nos mesmos contextos tenderia a disparar inferências de seqüenciação temporal ou introdução de efeito. A freqüência desses casos corresponde a 09% do total de seqüenciadores textuais do corpus e a 12% do total de e seqüenciadores textuais. São exemplos:

(57) Mesmo assim ele ainda ficou em casa um mês e pouco, mas o H. dormia aí e ele dormia aqui. (RO/FLP03:982) (58) Eu cuidava dos filhos e lavava aqui em casa. Sempre trabalhei um pouco em casa pra ajudar o marido. Ele era

assalariado. (ID/FLP07:700) (59) E: E quando ajuda faz o quê? F: Tiro o pó da sala, é, limpo o meu quarto, né? e lavo a louça. (MR/FLP10C:8) (60) Primeira coisa, arrumava tudo, asfaltava essa rua e fazia um shopping aqui. (MR/FLP10C:34) (61) Uma vez até eu tava brincando com o meu irmão. Eu tinha uma bicicletinha e ele tinha uma moto.

(DE/FLP06J:1254) (62) E: E sempre convivem com a família, bastante? F: Sempre. Sempre. (“Ali”) mora- a minha irmã mora em Coqueiros e o meu irmão mora na- na Trindade. Meu

irmão mora mais perto, né? (LE/FLP05J:890)

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Não é possível descartar de imediato outras alternativas de interpretação, porém. (57) e (58) poderiam envolver nuanças de efeito: o fato de o individuo referido por “ele” ter de dormir num certo lugar pode ser conseqüência do fato de H. dormir no lugar referido por “aí”; ter de lavar roupa em casa pode ser conseqüência da necessidade de ter de cuidar dos filhos. (59) e (60) poderiam envolver nuanças de sucessão temporal. Em (59), a informante faz os trabalhos domésticos em uma certa ordem cronológica? Em (60), a informante começaria asfaltando a rua e depois faria um shopping? Nesses quatro casos, se os conectores fossem aí, daí e então, as nuanças de efeito e seqüência no tempo estariam provavelmente mais salientes, abrindo menos espaço para a interpretação de seqüenciação textual promovida preferencialmente - mas não necessariamente - pelo e nos exemplos dados. Se o contexto fornecesse mais indícios, nuanças outras poderiam ser ressaltadas, mesmo com a presença do e. Em contraste, em (61) e (62), parece que a possibilidade da presença de nuanças diferentes da textual torna-se mais rara. No entanto, (61) e (62) seriam considerados casos de seqüenciação textual mesmo que fossem aí, daí e então as marcas de conexão usadas. E realmente podemos encontrar tais formas em contextos semelhantes. Vejamos exemplos com aí e então:

(63) Agora eu estou meio parado por causa do frio, aí estou sem equipamento. E ficou até meio caro os equipamentos assim, meio- está meio difícil, tá? Aí às vezes é bom dar um tempo, porque daí quando- quando tu volta, tu volta mais- mais- mais inspirado. (EV/FLP08J:605)

(64) Aí oito horas eu tinha que estar na aula, né? então era uma dificuldade muito grande. Então que eu tinha um irmão mais velho. Eu era muito preguiçoso na aula, então meu irmão mais velho era o mais estudioso, sabe? Estudava mais. (ED/FLP18:91)

A presença do e em casos como (57) a (62) tende a guiar mais diretamente para a interpretação de que as informações estão interligados por estarem abrigadas sob o mesmo tópico, na seqüenciação do tipo aditiva, somadora de informações característica da seqüenciação textual. Contudo, cabe sempre um “não necessariamente”, já que, no domínio dinâmico e em fluxo da seqüenciação retroativo-propulsora, interpretações diversas nunca podem ser descartadas: (i) e é marca constante não só de sucessão textual, mas também de sucessão temporal e de introdução de efeito, três nuanças de função-significação cujas fronteiras se interpenetram – assim, como já observamos, a presença de nenhuma dessas nuanças pode ser descartada de imediato nos casos acima; (ii) aí, daí e então também são encontrados em contextos do tipo aqui em discussão. Portanto, dados de seqüenciação utilizados em tais contextos estão incluídos na análise quantitativa apresentada no capítulo VI, sejam eles marcados pelo e ou pelos demais conectores. Também cumpre refletir sobre a distinção entre conjunções simétricas e assimétricas, conforme proposto por Lakoff (1971). Quando a conjunção é simétrica, a ordem dos membros coordenados é reversível e as orações interligadas são independentes entre si, e quando a conjunção é assimétrica, a ordem é irreversível: se for alterada, o resultado é uma interpretação diferente. As subfunções da seqüenciação retroativo-propulsora não se diferenciam quanto à simetria/assimetria: são todas assimétricas. A disposição das informações é essencial à seqüenciação temporal e à introdução de efeito: ao evento que aconteceu primeiro se segue o que aconteceu depois, a causa é seguida pela conseqüência e o argumento do qual deriva a conclusão é posicionado antes desta. Quanto à retomada e à finalização, a informação retomada não pode constar antes de seu primeiro aparecimento, e o que finaliza, por definição, vem no final. A maioria dos casos de seqüenciação textual impedem a inversão:

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(65) E sexta-feira eu não trabalhei, e eu fui lá. A criança está amarrada assim numa corrente. Criança tem treze anos.

Então é uma família que o pai teve um acidente, não trabalha. Ganha o salário mínimo, é do INAMPS. E a mãe é toda complicada também. (TE/FLP16:645)

(66) E no final do terreno, eu me lembro que morava uma família, então o meu avô dizia que a família não era muito- muito assim (inint) (hes) muito digna, assim, muito assim, né? (JQ/FLP01:863)

(67) É- é uma disputa, às vez- a- acontece muita panela, entendeu? de o cara ter um nome, de- de- dele já ser reconhecido no- no circuito, tem o circuito brasileiro, circuito catarinense, né? tem os circuitos regionais, tem o circuito brasileiro e tem o circuito mundial, mundial é o grande circo, né? é bem, legal. (hes) E é assim. (EV/FLP11:811)

(68) Só que tem que tomar cuidado por causa que ela é um gato de carne, né? daí quando vai pra rua os cachorros querem comer ela, né? daí a minha mãe tem um cachorro, e ele avança nesse gato, nessa gata, quando o gato fica- vai pra casa os cachorros só ficam olhando, né? (KA/FLP08C:127)

Algumas das inter-relações entre as informações seqüenciadas textualmente que tornam imprescindível a ordenação tal qual estabelecida pelo falante são perceptíveis. Às vezes há marcas lingüísticas que as revelam - por exemplo, em (65), a presença do também; em (66), o jogo SN indefinido > SN definido (uma família ~ a família). Ou então o falante segue esquemas retóricos de organização discursiva – por exemplo, em (67), há um acréscimo de informações que evidencia uma ordenação “menor > maior”. Ou então a informação introduzida se configura como específica frente à outra mais geral – por exemplo, em (68), daí introduz uma informação sobre um cachorro específico dentre os que perseguem a gata. Existem casos de seqüenciação textual que poderiam ser considerados como simétricos, pois, a princípio, as informações interligadas são invertíveis. Vejamos minhas tentativas de inversão de contextos de seqüenciação textual:

(69) Mas tem- tem aquela parte que- que vem assim, que tem- tem Jesus, né? tem o quê? Um- Tem o Judas bom e tem o Judas mau, né? Então eles são pregados na- na- na- na cruz, né? (AN/FLP05:583)

(69i) Mas tem- tem aquela parte que- que vem assim, que tem- tem Jesus, né? tem o quê? Um- Tem o Judas mau e tem Judas bom, né? Então eles são pregados na- na- na- na cruz, né?

(70) Então comecei a trabalhar na Pinheira no dia dezessete de março de mil novecentos e sessenta e seis. E terminei lá até em setenta- Fui até setenta e um lecionando lá. Primeiro ano eu lecionei com o primeiro ano primário, e nos outros três anos eu lecionei pra terceiro ano. São pais que não entendem, né? Por exemplo, se é um dia que estão pegando peixe, a época da tainha, vão aquelas crianças tudo já pra praia. Então eles acham que a gente tem que dar freqüência pra criança, porque a criança estava trabalhando. Mas não, a escola é uma coisa e o trabalho da casa é outro, né? Então foi assim, muito difícil de hospedagem. Primeiro ano me hospedei com meus tios, o segundo ano já me hospedei com a ex-diretora, depois fiz uma permuta com a professora aqui pra Biguaçu, mas não gostei de trabalhar em Biguaçu, voltei pra mesma vaga que se encontrava na Pinheira. (PA/FLP12:1246)

(70i) Então comecei a trabalhar na Pinheira no dia dezessete de março de mil novecentos e sessenta e seis. E terminei lá até em setenta- Fui até setenta e um lecionando lá. Primeiro ano me hospedei com meus tios, o segundo ano já me hospedei com a ex-diretora, depois fiz uma permuta com a professora aqui pra Biguaçu, mas não gostei de trabalhar em Biguaçu, voltei pra mesma vaga que se encontrava na Pinheira. Então primeiro ano eu lecionei com o primeiro ano primário, e nos outros três anos eu lecionei pra terceiro ano. São pais que não entendem, né? Por exemplo, se é um dia que estão pegando peixe, a época da tainha, vão aquelas crianças tudo já pra praia. Então eles acham que a gente tem que dar freqüência pra criança, porque a criança estava trabalhando. Mas não, a escola é uma coisa e o trabalho da casa é outro, né? Então foi assim, muito difícil de hospedagem.

Contudo, a ordenação entre informações imposta pelo falante é sempre reflexo de seleções motivadas pela percepção cognitiva dos eventos/idéias e pelo arranjo de cada porção de fala de acordo com necessidades interacionais. As estratégias de organização textual possuem inter-relações específicas com informações anteriores e posteriores e com a própria estruturação do tópico/assunto tratado. Toda seqüenciação estabelecida entre duas informações está filiada a

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diferentes efeitos semântico-pragmáticos importantes, inclusive em (61) e (62), mesmo que aí as inter-conexões que exigem a seqüência tal qual estabelecida pelo falante não sejam facilmente especificáveis. Não faz sentido aventarmos quaisquer distinções baseadas em modificações no material lingüístico a que temos acesso – o que já foi dito não pode ser redito e muito menos editado pelo analista. Como em todos os casos de seqüenciação ocorre assimetria, não há porque excluir dados com base em tal critério. 2.6.5 GÊMEOS: GRANDE SEMELHANÇA Dado o exposto, podemos dizer que e, aí, daí e então são opções atualmente disponíveis na gramática da comunidade de fala de Florianópolis, sendo postos variavelmente em funcionamento quando há a necessidade de marcar a seqüenciação – constituem, pois, variantes lingüísticas/camadas de um mesmo domínio funcional. Seu uso estratificado/variável perpassa subfunções e demais traços contextuais, sendo possível a todas as formas aparecerem nos diversos contextos sociolingüísticos controlados nesta tese (cf. capítulo VI). Encontrei inclusive casos de uso muito semelhantes. Além daqueles que abrem o capítulo I (com verbos dicendi), apresento abaixo alguns exemplos que mostram o uso variável dos conectores seqüenciadores em contextos similares (isto é, com a manifestação da mesma subfunção, e/ou com a presença do mesmo sujeito, e/ou mesmo verbo, etc):

(71) Os outros soldados foram, que era uma expedição, né? com soldados e tudo, foram pra casa, e ele ficou, né? E

esse aí foi um filme que me marcou. (LU/FLP01J:790) (72) Tem outra figura junto lá também que eu não sei o nome, mas é muito engraçado, né? Então esses três filmes aí

marcaram assim. (LU/FLP01J:818)

(73) E ela trabalha e estuda, então ela está sempre muito cansada, então sexta nem pensar, porque ela trabalha no sábado até às seis horas. E ela trabalha no sábado até as seis horas e está muito cansada, né? (LU/FLP01J: 886)

(74) Quando vai entrar no quarto da minha mãe, na esquerda, tem um banheiro, daí sobe e tem a sala do

computador. (MR/FLP10C:10-11) (75) Então a gente ficou tudo no mesmo quarto, tinha uma cama de casal, daí tinha uma salinha, daí tinha um

corredorzinho que era a porta, tinha uma mesa ali, daí entrava ali tinha duas camas de solteiro e um banheiro. (MR/FLP10C:19-20)

(76) Que é tipo um palco assim, né? é um palco mesmo, onde tem a banda, tal, aí tem uma distância entre o palco e ele, onde começa as cadeiras. (EV/FLP08J:1083)

(77) Que ele tinha a casa em cima, embaixo tinha um- um- um porão, então tinha o banheiro, era do lado, e tinha um outro quarto de- de rese- de hóspedes. (PE/FLP02:1229)

3. DO DUELO: TOMEM SUAS ARMAS! O jogo constante entre fixação e inovação típico do âmbito gramatical deve se refletir sobre o domínio da seqüenciação. Por um lado, é possível que constatemos a existência de especializações de certos conectores para determinados contextos, isto é, conectores que são selecionados recorrentemente em detrimento dos demais quando do desempenho de certa subfunção ou de outro traço implicado na realização da seqüenciação (cf. capítulo VI). Tais formas estariam mais rotinizadas.47 47 Obviamente, mais de uma forma pode estar vinculada freqüentemente a certo contexto, assim como uma forma pode estar especializada para mais de um contexto.

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Por outro lado, poderemos encontrar contextos de seqüenciação exibindo plena disputa por especializações, nos quais todas as formas são opções bastante freqüentes. Poderemos facear inda indícios de que alguns dos conectores têm começado a invadir setores que eram outrora território pertence a alguma das outras marcas de seqüenciação, agora obrigadas a iniciar deslocamentos rumo a novas enraizações. Dependendo do balanço entre o número de espaços em disputa e de espaços em que predominam relações mais fixas, o domínio da seqüenciação pode tanto ser caracterizado como uma teia de inter-relações entre formas e contextos de uso tendendo à regularização e à estabilidade, como pode estar passando por movimentação mais intensa, com re-organização das tramas internas bem como das tramas no plano das escolhas socialmente motivadas – ambos os planos, interno e externo, nutrindo-se reciprocamente. Como lidar com o material lingüístico a que temos acesso para tentar desvendar a rede intrincada de rotinizações e de inovações em fluxo constante que deve estar subjacente ao domínio da seqüenciação? A identificação dos contextos sociolingüísticos preferenciais de uso de cada uma das camadas/variantes permite obter indícios de suas especializações (cf. Hopper & Traugott, 1993) e, adiciono, de possíveis trajetórias rumo a especializações ainda não atingidas - em ambos os casos, considerando-se sempre os passos de uma das formas em relação à movimentação das demais. Os procedimentos consistem em: (i) identificar traços do contexto de uso da seqüenciação distribuídos no plano lingüístico (por exemplo, nuanças de função-significação, níveis de articulação, etc) e no plano social (traços do informante: idade, sexo, escolaridade, etc) e organizá-los em forma de grupos de fatores condicionadores; (ii) analisar cada um dos 4.394 dados de seqüenciação relativamente ao conjunto de fatores elencados como possivelmente significativos para o favorecimento ou restrição da seleção das formas; (iii) tomar os traços que mais influenciam o aparecimento de cada item como sinalizadores de especializações. O resultado será um quadro atual de inter-relações presentes no domínio da seqüenciação em Florianópolis, mostrando - pela soma de todas as influências - quais contextos atraem e quais repelem com mais regularidade cada uma das conjunções. Dessa forma, chegaremos a especializações de uso mais ou menos fixas - rotinas ao lado de novidades -, clareando um pouco os meandros da gramaticalização no domínio da seqüenciação. Os mesmos procedimentos - inclusive o controle de grupos de fatores sociais - são aplicados quando da análise da seqüenciação na outra única fonte em que foi possível realizar a coleta de um número suficiente de dados para pôr o programa estatístico em ação: a tradução para o português do romance As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, datada de 1940. Os resultados obtidos para as duas fatias de tempo consideradas são comparados, averiguando-se se as tendências de rumos a serem seguidos pela seqüenciação observadas com base nos dados de 1940 concretizam-se na fala de Florianópolis. Servem de roteiro para essa busca questões como: (i) o que permanece igual?; (ii) houve inovações?; (iii) qual o caminho seguido pelas inovações?; (iv) confirma-se a hipótese de existência de uma trajetória rumo a níveis mais gramaticais a ser seguida pelos conectores seqüenciadores? Os fatores condicionadores lingüísticos e sociais representam as armas que os seqüenciadores dispõem em sua disputa por um lugar ao sol no reino da seqüenciação. Acredito haver motivações de natureza funcional - cognitivas, comunicativas e sociais - atuando na

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retaguarda, subjacentes às escolhas - conscientes ou inconscientes - dos falantes, frente ao feixe de inter-relações sociolingüísticas que influencia cada uso.48 Uma dessas motivações é o princípio da marcação. Vimos que as formas do domínio da seqüenciação manifestam diferenças quanto à sua complexidade cognitivo-comunicativa, as quais podem estar influindo em suas trajetórias de rotinização e inovação. Os fatores ligados aos contextos de uso da seqüenciação também são avaliados com base nos critérios de marcação de Givón (1995), com a hipótese de que os traços definidos como mais marcados seduzam as formas mais marcadas, e os traços definidos como menos marcados favoreçam as formas menos marcadas. Outra das motivações possivelmente envolvidas no que se faz cotidianamente com as conjunções seqüenciadoras é o princípio de gramaticalização nomeado persistência por Hopper (1991:22). Segundo esse princípio, matizes dos significados originais de um item lingüístico tendem a se aderir a ele, conservando-se ao longo do processo de gramaticalização. Isso faz com que detalhes de sua história lexical e gramatical sejam refletidos em forma de restrições à sua distribuição gramatical, mesmo quando o item assume papéis distanciados daqueles dos quais provém. Sendo assim, os conectores podem diferir quanto ao tipo de território seqüenciador que preferencialmente pleiteiam porque se desenvolveram de diferentes fontes e retiveram traços delas. É a história das frutas que não caem longe do pé. A hipótese é que e, aí, daí e então tendam a se especializar em contextos de seqüenciação que manifestem traços similares aos seus usos originais no latim. Espero que os conectores provindos de percursos com paradas em estações espácio-temporais apareçam com mais recorrência vinculados à subfunção de seqüenciação temporal, e que os conectores com paradas em estações vinculados à soma de informações sejam mais recorrentes na seqüenciação textual. Esta e demais inter-relações fonte > alvo que influenciam usos atuais e tendências inovadoras são analisadas no capítulo V. Há, porém, uma contraparte ao princípio da persistência que deve ser levada em conta. Em sua trajetória de migração, as formas tendem a rumar para níveis cada vez mais gramaticais, caracterizados por abstração e/ou por generalização crescentes. Isso faz delas possíveis em um maior número de contextos, manipuláveis que se tornam aos caprichos da conversação. Os resquícios das fontes podem ser perdidos quando a forma atinge um alto grau de abstração e/ou de generalização. Uma forma de base temporal, por exemplo, que rumou ao longo de aclives com passagens por papéis de tonalidades temporais, pode vir a desembocar em usos abstratos em que a noção de tempo não esteja presente e aí se especializar. Assim, não somente as fontes dos conectores, mas também o próprio desenrolar de seus percursos de gramaticalização influi nas armas colocadas à disposição de cada um deles. As ações opostas sobre as especializações de cada conector, advindas do princípio da persistência e da tendência cognitiva universal de inovar as funções das formas na direção da maior abstração e/ou generalização, podem ser desveladas pela comparação de números antigos com números novos provindos de fontes diversas.

48 É importante salientar que as motivações cognitivas e comunicativas podem ser ditas cognitivo-comunicativas, pois diferenciá-las é tarefa deveras árdua. As situações comunicativas não acontecem independentemente do que está na mente de cada um dos interlocutores, e o que está na mente, por sua vez, é influenciado pelo que acontece nas interações lingüísticas (cf. seções 1.2, 1.2.1 e 1.3.2 do capítulo II). Aspectos cognitivos e comunicativos da gramaticalização são faces do mesmo fenômeno, aos quais se somam ainda aspectos sociais (cf. seção 1.6 do capítulo II).

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Influências sociais também contribuem para o jogo de inter-relações que caracteriza o domínio a cada período de tempo. Conforme Labov (1972a:23), as inovações gramaticais somente representarão mudança lingüística se forem propagadas de usos individuais para usos que atinjam um maior número de falantes, tornando-se parte da gramática de uma comunidade mais ampla. O espraimento da mudança depende dos valores associados às inovações lingüísticas, que, em geral, não recebem valoração positiva.49 Se um novo uso de uma forma for estigmatizado, certamente sua rede de especializações será influenciada, já que será restringido em certos contextos - nomeadamente os mais formais - e permitido em outros - os informais, além do que talvez seja mais recorrente na fala de indivíduos de menor idade e escolaridade, ou de indivíduos de determinado sexo.50 Outro aspecto social a considerar é que certa forma pode ser adotada como marca de identidade de um determinado grupo social - por exemplo, adolescentes. A partir daí, a forma pode passar a ser muito usada, sofrendo um espraimento lingüístico e social bastante veloz, ao menos no grupo em questão. A miríade de inter-relações complexas que constitui o domínio da seqüenciação, e suas motivações cognitivas, comunicativas e sociais são aqui analisadas à luz da articulação de pressupostos teóricos e metodológicos do funcionalismo lingüístico, em especial no que diz respeito à gramaticalização, e da sociolingüística variacionista. Muitos aspectos relativos à mudança e à variação a que os estudos da gramaticalização têm se proposto a averiguar são preocupações aparentemente comuns à teoria variacionista e vice-versa (cf. capítulo II), o que motiva a associação de ambos os quadros teóricos. Contudo, a fusão de teorias distintas requer que se reflita sobre os pontos que não são comuns, talvez à primeira vista ou mesmo de fato não associáveis, e que se tome decisões acerca de como lidar com as diferenças, bem como que se averigúe se o que parece comum de fato o é (cf. capítulo III). O pesquisador deve estar consciente das implicações geradas pela sua tomada de posição teórica e de que, ao lidar com teorias diversas, interpreta os conceitos com os quais lida de modo semelhante a como procede com os itens gramaticais nas situações comunicativas (cf. seção 1) – a partir de suas experiências anteriores e do contexto circundante – para tentar alcançar a convergência entre diferentes modos de conduzir o olhar (cf. capítulo III). Dito isso, passemos aos objetivos e hipóteses.

49 Citando Labov (2001:06): “Communities differ in the extent to which they stigmatize the newer forms of language, but I have never yet met anyone who greeted them with applause.” 50 Considero as motivações sociais do tipo levadas em conta neste estudo como tendo natureza funcional, pois são pertinentes à função de identificar ou auxiliar a identificar o falante como pertencente a um dado estrato social - certa faixa etária, nível de escolaridade e/ou sexo. As formas lingüísticas que manifestam essa função comumente apresentam forte concentração de uso na fala de indivíduos de algum dos estratos sociais mencionados.

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4. OBJETIVOS E HIPÓTESES Proponho os seguintes objetivos gerais:

(I) Analisar os fenômenos de estratificação/variação e de mudança por gramaticalização no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis, averiguando, através do controle quantitativo de diversos grupos de fatores lingüísticos e sociais, a distribuição sociolingüística das camadas/variantes mais freqüentes da seqüenciação – os conectores e, aí, daí e então; e observando a direção das influências exercidas por motivações cognitivas, comunicativas e sociais sobre os padrões distribucionais desses conectores. Para tanto, faço uso de dados extraídos de entrevistas com informantes naturais de Florianópolis, fornecidas pelo Banco de Dados do Projeto VARSUL;

(II) Analisar os fenômenos de estratificação/variação e de mudança por gramaticalização no

domínio da seqüenciação em um período de tempo anterior, mais especificamente, o final da primeira metade do século XX, valendo-me de dados extraídos da fala dos personagens do romance As Vinhas da Ira51 para averiguar, através do controle quantitativo de diversos grupos de fatores lingüísticos e sociais, a distribuição dos conectores seqüenciadores mais freqüentes no romance (e, aí e então); e para observar a direção das influências exercidas por motivações cognitivas, comunicativas e sociais sobre os padrões distribucionais dos conectores em questão;

(III) Buscar indícios acerca de desenvolvimentos passados das formas e, aí, daí e então em seu

processo de gramaticalização (desde os usos mais antigos dos quais se tem notícia até os passos percorridos dentro do próprio domínio da seqüenciação), considerando dados oriundos de fontes e de épocas diversas (em português, do século XIII ao século XX, levando-se em conta também dados do latim), com o intuito de clarificar os meandros da divisão de tarefas entre os seqüenciadores na fala florianopolitana atual e na fala do final da primeira metade do século XX, espelhada em As Vinhas da Ira;

(IV) Refletir acerca do quadro teórico que guia esta pesquisa, resultante da associação de

pressupostos teórico-metodológicos do funcionalismo lingüístico voltado ao estudo da gramaticalização e da sociolingüística variacionista, procurando definir a posição teórica ora assumida.

Os objetivos específicos são:

(i) Verificar se o fenômeno de estratificação/variação no domínio da seqüenciação na Florianópolis de hoje se comporta como variação estável, ou se é possível caracterizá-lo como mudança em tempo aparente;

(ii) Verificar se o fenômeno de estratificação/variação no domínio da seqüenciação no final da primeira metade do século XX se comporta como variação estável, ou se é possível caracterizá-lo como mudança em tempo aparente;

51 A tradução de As Vinhas da Ira para o português levou em conta marcas do(s) dialeto(s) das classes populares do estado do Rio Grande do Sul da época (1940). A referência completa do romance consta no anexo 2.

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(iii) Comparando os resultados referentes aos dois períodos de tempo supracitados, verificar se houve mudança em tempo real;

(iv) Refinar e mesmo propor generalizações acerca da estratificação/variação e da mudança no domínio da seqüenciação de informações, as quais poderão vir a ser testadas em outras comunidade de fala brasileiras;

(v) Discutir, em uma “conversa na diferença”, aspectos teóricos e metodológicos compatíveis e incompatíveis vindos do funcionalismo lingüístico e da sociolingüística variacionista e propor maneiras de lidar com as incompatibilidades quando da junção entre os dois quadros teóricos;

(vi) Buscar evidências para as seguintes hipóteses sobre a estratificação/variação e a mudança no âmbito da seqüenciação:

� As camadas/variantes da seqüenciação sofrem influências dos seguintes grupos de fatores lingüísticos e sociais: (a) subfunções seqüenciadoras; (b) tipos de discurso; (c) níveis de articulação; (d) graus de conexão; (e) traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector; (f) idade; (g) escolaridade; (h) sexo.

� O panorama da distribuição de e, aí, daí e então, resultante do controle de grupos de fatores lingüísticos e sociais, mostrará quais contextos influenciam o aparecimento de cada um dos conectores. Esse panorama poderá ser analisado como: (a) um instantâneo do quadro atual da disputa entre e, aí, daí e então pela seqüenciação em Florianópolis, revelando suas especializações (ou disputa por especializações) em diferentes contextos sociolingüísticos; (b) um reflexo de etapas anteriores do desenvolvimento da seqüenciação, revelando traços do passado preservados no presente; (c) uma fonte de indícios relativos aos desenvolvimentos futuros, especialmente quanto às especializações que podem vir a ser assumidas pelas camadas/variantes da seqüenciação.

� As motivações funcionais que estão subjacentes às influências exercidas pelos grupos de fatores controlados são: o princípio da marcação; o princípio da persistência; a tendência à abstração e/ou à generalização crescentes; a avaliação favorável ou desfavorável das formas lingüísticas pelos usuários da língua; a necessidade de estabelecimento de identidade social (cf. seção 3). Essas motivações, subjacentes às escolhas - conscientes ou inconscientes - dos falantes frente ao feixe de inter-relações sociolingüísticas que influencia cada uso, pressionam inovações e regularizações, ora atuando em conjunto em uma mesma direção, ora atuando em oposição, conduzindo as mudanças em direções distintas. O papel de cada uma das motivações pode ser mapeado detalhadamente, tomando-se por base o panorama da distribuição territorial do domínio da seqüenciação.

� A análise de dados extraídos de textos orais e escritos de diferentes períodos de tempo possibilitará a identificação de indícios acerca dos estágios do percurso de mudança funcional seguido por e, aí, daí e então até se tornarem camadas/variantes da seqüenciação. A partir desses indícios, serão traçadas suas possíveis trajetórias de gramaticalização desde o latim (ou mesmo desde o proto-indo-europeu, no caso do e). Essas trajetórias permitirão um melhor entendimento acerca dos rumos das rotinizações e das inovações encontradas no domínio da seqüenciação na fala florianopolitana de hoje, bem como no domínio da seqüenciação representado pela fala dos personagens de As Vinhas da Ira. Por hipótese, as etapas de uso estratificado/variável dependem do que aconteceu no percurso de

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gramaticalização de cada forma, exercendo a natureza da fonte e os próprios estágios dos percursos papel motivador de condicionamentos lingüísticos e sociais.

� A re-organização do domínio funcional da seqüenciação florianopolitana está passando por uma etapa de modificações intensas. Em razão da super-disseminação, entre informantes da faixa etária mais jovem, de um dos conectores seqüenciadores dentre os que mais recentemente migraram para a seqüenciação (o daí), está em curso um processo de alteração nos padrões de uso dos demais seqüenciadores.

� A distribuição de e, aí, daí e então de acordo com a estratificação etária diagnosticará mudança em tempo aparente no domínio da seqüenciação florianopolitano e no representado pela fala dos personagens de As Vinhas da Ira: a recorrência das camadas/variantes mais novas (aí e daí) deverá aumentar à proporção que diminui a idade dos falantes.

� A comparação entre a distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então em Florianópolis e em As Vinhas da Ira revelará a ocorrência de mudança em tempo real e evidenciará que a fala do final da primeira metade do século XX representa uma etapa anterior de estratificação/variação e de mudança no âmbito da seqüenciação em relação à fala florianopolitana de hoje.

� As tendências de distribuição sociolingüística pertinentes à seqüenciação em Florianópolis podem servir de base para o refinamento e a proposição de generalizações acerca dos fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio sob enfoque, cuja validade para outras comunidades de fala poderão vir a ser testadas em pesquisas posteriores.

� É possível atingir, através de uma “conversa na diferença”, convergências entre pressupostos do funcionalismo e da sociolingüística variacionista, do que resulta uma abordagem que integra pressupostos de ambas as teorias e que pode, a princípio, ser denominada sociofuncionalismo (cf. Neves, 1999). Ao final dessa conversa de cunho epistemológico, poderá ser proposto o locus do quadro teórico sociofuncionalista no âmbito maior da matriz dos estudos lingüísticos.

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CAPÍTULO II – A LUZ QUADRO TEÓRICO: TEORIA FUNCIONALISTA E TEORIA SOCIOLINGÜÍSTICA VARIACIONISTA

“A língua se faz...: é um fazer-se num quadro de permanência e continuidade... Mas o fato de se manter parcialmente idêntica a si mesma e o fato de incorporar novas tradições é, precisamente, o que assegura a sua funcionalidade como língua e o seu caráter de objeto histórico. Um objeto histórico só o é, se é, ao mesmo tempo, permanência e sucessão.” (Coseriu, 1979:236) “It is hard to understand the world by rising above it. We must deal with the world on an equal footing if we hope to resolve the paradoxes of linguistic evolution.” (Labov, 2001:xvi)

Ca elle era vestido de hûa alfalla que os reis enton tragiã por costume; mas as pedras e os outros guarnimentos que eram em aquella vestidura bem valliam mil marcos d’ouro. (p. 331)52 Roma avya quynhentos e trîta e sete ãnos que fora pobrada quando estes Cepiõoes êtrarõ em Spanha com poder dos Romaãos. Entom eram senhores d’Espanha aquelles dous irmãaos de Anybal de que ja ouvistes falar. E, tanto que souberon que os Romaãos eram em Espanha, juntarõ seu poder e ouveron seu acordo que fosse Magon, que era o irmão meor, cõ elles com todo seu poder e de seu irmãao Asdrubal. E este Magon era senhor de Cartagenya que era entom hûa gram cidade. (p. 89)

�������� Então tive muita dificuldade, que eu me acordava cedo, quatro horas da manhã, porque naquela época a gente- a gente pegava leite na- né? pega- adquiria o leite em padarias. Então o leite era em garrafa, né? não era o leite de saquinho que a gente faz hoje. (ED/FLP18:64)53 A minha vida da- a minha inf- da minha infância e da minha juventude foi muito boa, muito trabalho sau- sem- sem menino, né? nenhum trabalho. Antes só estudo, muita diversão, Praia de Fora, Praia do Muller. Aquela região todinha ali. Então a gente tinha muitas amizades. Havia um outro tipo de vida, entendeu? A cada canto que se ia, tinha uma- uma família, a gente conversava, trocava idéias, trazia aqueles conhecimentos antigos. (IR/FLP13:12) E meu avô também morou muitos anos aqui. Então ele usava muito é cuidar de animais, na época, na ilha, né? (NL/FLP04:54)

52 Trechos de texto do século XIV: Crónica Geral de Espanha de 1344. (cf. anexo 2) 53 Trechos de fala florianopolitana do final do século XX, extraídos de entrevistas pertencentes ao Banco VARSUL.

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0. INTRODUÇÃO O presente estudo é desenvolvido à luz do referencial teórico que se constitui da articulação de pressupostos teórico-metodológicos de duas teorias lingüísticas: o funcionalismo, especialmente no que diz respeito à gramaticalização (cf. principalmente Hopper, 1987, 1988, 1991; Hopper & Traugott, 1993; Bybee & Hopper, 2001; Traugott & Heine, 1991; Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a/b; Givón, 1995), e a sociolingüística variacionista (cf. principalmente Weinreich, Labov & Herzog, 1968; Labov, 1972a/b, 1978, 1994, 2001). Este segundo capítulo está subdividido em duas seções principais. A primeira seção apresenta conceitos do funcionalismo lingüístico voltado à gramaticalização. Destacam-se nas subseções: (i) a proposta de gramática emergente de Hopper (1987, 1988); (ii) duas abordagens à gramaticalização; (iii) detalhes acerca do processo de gramaticalização; (iv) os cinco princípios de gramaticalização de Hopper (1991) e o princípio da marcação de Givón (1995); (v) perspectivas de análise sincrônica, diacrônica e pancrônica; (vi) aspectos sociais envolvidos na gramaticalização. A segunda seção apresenta a sociolingüística variacionista. Primeiro, são esmiuçados alguns de seus conceitos básicos, como variáveis, variantes, regras variáveis, comunidades de fala, vernáculo. Na seqüência, são detalhados os estágios da mudança lingüística e os passos do estudo da variação. Logo depois, examinam-se tópicos relacionados à mudança, em especial quanto à sua transmissão. O capítulo é concluído com a descrição de extensões feitas à sociolingüística, voltada inicialmente à fonologia. Uma dessas extensões interessa mais diretamente a esta tese, a que se insere na confluência do funcionalismo lingüístico e da sociolingüística variacionista, e que receberá discussão mais refinada no capítulo III. 1. INTRODUZINDO A GRAMÁTICA(LIZAÇÃO) A perspectiva teórica assumida para guiar o olhar sobre os desenvolvimentos no âmbito da seqüenciação na fala é funcionalista. 54 O termo funcionalismo não se refere a um campo de pesquisas unificado,55 mas é aplicado a diferentes versões - por vezes próximas, por vezes nem tanto -, geralmente identificadas pelo(s) nome(s) do(s) proponente(s): Hopper, Givón, Heine, Dik, Van Valin, Halliday, entre outros.56 Associo à proposta de gramática de Hopper - já delineada no capítulo I - pressupostos provindos de estudos de linha semelhante, isto é, levados a cabo por pesquisadores afiliados à visão de gramática como emergente, dentre os quais Givón e Heine.57

54 A seqüenciação retroativo-propulsora também é bastante recorrente na escrita. Centralizo a análise em dados de fala por acreditar que as situações de comunicação oral são a fonte maior das inovações que assolam o reino da seqüenciação. Em estudos anteriores, abordei as novidades em termos de seqüenciação que têm atingido a escrita (cf. Tavares, 2002f, 2002g e 2003a). 55 Assim como variam as correntes de pesquisa, as funções propostas como objeto de estudo funcionalista também variam, não apenas em extensão, mas também em natureza, já que algumas são mais situadas na fala em andamento que outras, algumas são mais abstratas que outras. Nichols (1984) identifica cinco sentidos de função que transparecem freqüentemente em estudos funcionalistas: função/interdependência, função/fim, função/contexto, função/relação, função/significação – a maioria dos pesquisadores empregam função em mais de um sentido ao mesmo tempo. No caso deste estudo, temos como objeto uma função/significação, a seqüenciação retroativo-propulsora (cf. capítulo I). 56 A origem comum dessa diversidade está na Escola Lingüística de Praga, o conjunto de autores que, entre 1929 e 1938, participaram do Círculo Lingüístico de Praga, incluindo-se Jakobson, Trubetzkoy, Mathesius, Martinet, entre outros. 57 Conferir as definições de gramática fornecidas por Givón (1995:09) e por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:259), ambas baseadas na proposta de gramática emergente de Hopper (1987, 1988).

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O que une as diversas teorias funcionalistas é a aceitação, em maior ou menor grau, de um (meta)princípio denominado iconicidade,58 segundo o qual as estruturas lingüísticas tendem a refletir e a serem pressionadas por funções (cf. Givón, 1990). Se algo é posto em uso, o é por conta de alguma função – as formas desempenham papéis no discurso, fato que está subjacente à organização gramatical. A iconicidade não implica, porém, a existência de correspondências biunívocas e não arbitrárias do tipo representado pela fórmula 1:1 (isto é, para cada forma há uma função ou um significado). Formas e funções estão sempre em mobilidade, havendo geralmente mais de uma forma para cada função e mais de uma função para cada forma. A iconicidade que caracteriza a língua reside no fato de que as formas são usadas sob influência de um conjunto de motivações funcionais.59 Um breve resumo da trajetória recente seguida pelos estudos funcionalistas voltados à gramaticalização se faz necessário.60 Os pioneiros do início do século XX, encabeçados por Meillet, desenvolveram a idéia de gramaticalização como um instrumento de lingüística histórica capaz de explicar mudanças comumente sofridas por morfemas gramaticais. A busca pelas origens dos morfemas levou ao insight de que sua fonte estava no léxico, do qual migravam para a gramática através de um processo de enfraquecimento e generalização do significado – a gramaticalização. A partir da década de 70, a gramaticalização aparece como um tema de interesse no contexto de questionamento da teoria de sintaxe autônoma (cf. Ramat & Hopper, 1998:01). Com uma proposta diferenciada em relação ao percurso ‘léxico > gramática’ de Meillet (1912), Givón (1979:83) põe em relevo o papel do discurso ao clamar que a sintaxe de hoje é a pragmática de ontem, aclamação que sublinha a reanálise de padrões discursivos como padrões gramaticais. O percurso ‘pragmática > sintaxe’ representa o início da onda cíclica apresentada como típica do desenrolar do processo de gramaticalização: ‘discurso61 > sintaxe > morfologia > morfofonêmica > zero’. Para Traugott & Heine (1991:05), não há inconsistência entre as perspectivas ‘léxico > gramática’ e ‘discurso > morfossintaxe’, ao consideramos que os itens lexicais são empregados no discurso. Se eles tiverem propriedades salientes para a gramaticalização e forem usados freqüentemente, podem ser sintatizados do modo como ilustra Givón. Sendo assim, ambas as fórmulas são combinadas em um trajeto ‘item lexical usado no discurso > morfossintaxe’. Hopper (1987, 1988) amplia ainda mais o escopo da gramaticalização ao igualá-la à gramática, afirmando que a gramática é sempre emergente, nunca chegando a um estágio de compleição. Nessa direção, o termo gramaticalização não se refere ao estudo da constituição sincrônica e/ou diacrônica da gramática, mas sim ao estudo da gramática em si. Ela está sempre se gramaticalizando, em um processo de eterna sistematização. As questões investigadas e as explicações oferecidas pelos estudos funcionalistas voltados à gramaticalização são vastas e diversas. Por essa razão, serão sintetizados a seguir somente alguns pressupostos teórico-metodológicos - os que dizem respeito à análise da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis de um modo mais direto, bem como os que exigem reflexão mais aprofundada em virtude da combinação com conceitos e explicações provindos do outro manancial teórico desta pesquisa, o da sociolingüística quantitativa laboviana (cf. seção 2). 58 A idéia de iconicidade pode ser encontrada já nos escritos de Aristóteles, conquanto não se reduza a seus termos: para o filósofo grego, a linguagem reflete o pensamento que, por sua vez, reflete a realidade. 59 Como já mencionado no capítulo I, no caso da seqüenciação, as influências provêm de motivações de ordem funcional, aqui compreendidas como cognitivas, comunicativas e sociais. 60 Estudos formalistas também se voltam ao fenômeno da gramaticalização, como Roberts (1993) e Roberts & Roussou (1999). 61 Givón, em sua onda cíclica, toma pragmática como sinônimo de discurso.

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A seção 1.2 apresenta a gramática emergente, já comentada no capítulo I, destacando-se duas abordagens divergentes/complementares à gramaticalização. A seguir, o processo de gramaticalização é definido como um aclive ou cadeia de alterações graduais e contínuas rumo à abstração e à generalização de funções e contextos de uso típicos do âmbito gramatical, sob a direção de mecanismos de mudança lingüística cognitivo-comunicativos, que são responsáveis pelo caráter universal dos percursos de gramaticalização e pela sua unidirecionalidade. A seção 1.4 descreve os cinco princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991): estratificação (camadas), divergência, especialização, persistência e de-categorização. Também recebe atenção o princípio da marcação (cf. Givón, 1995), chamado a serviço quando uma situação de estratificação é atingida. A seção 1.5 focaliza três perspectivas de análise possíveis para fenômenos de mudança: sincrônica, diacrônica e pancrônica. A seção 1.6 analisa o papel do contexto social para a inovação gramatical em si e também para a sua disseminação. 1.2 PASTICHE SEMPRE PROVISÓRIO

“Language is, in other words, to be viewed as a kind of pastiche, pasted together in an improvised way out of ready-made elements.” (Hopper, 1987:143) “... grammar ... like speech itself must be viewed as a real time, social phenomenon, and therefore is temporal; its structure is always deferred, always in a process but never arriving, and therefore emergent; and since I can only choose a tiny fraction of data to describe, any decision I make about limiting my field of inquiry … is very likely to be a political decision, to be against someone else’s interests, and therefore disputed.” (Hopper, 1987:141-142)

Hopper opõe-se à visão de gramática como sistema abstrato e unificado de regras e princípios, lógica e biologicamente anterior, que constituiria um pré-requisito para o uso da língua e que seria partilhado por todos os indivíduos. Diferentemente, para ele a gramática está “sempre ancorada na forma concreta específica de um enunciado” e é moldada no discurso pela experiência passada dos falantes individuais e pela sua “avaliação do contexto presente, incluindo especialmente seus interlocutores, cujas experiências e avaliações podem ser completamente diferentes” (1987:142).62 A gramática nomeia o conjunto vagamente definido de “parciais recorrentes sedimentados” - itens e construções cujo status é constantemente renegociado na fala (Hopper, 1988:18). Um modo paralelo de ver a língua é o da metáfora do enxerto de Derrida,63 segundo a qual atos de fala novos são enxertados em atos de fala antigos, que servem por sua vez como o espaço para o enxerto de novos atos de fala. Compomos e falamos simultaneamente, buscando na memória um repertório de estratégias de construção de discursos e agrupando-as de modo improvisado. O discurso (ou a língua em uso) pode ser entendido, portanto, como a organização em andamento de fórmulas lexicais e gramaticais concatenadas e encaixadas umas nas outras – um pastiche.64 E a

62 Todas as traduções são de minha responsabilidade. 63 Segundo Weber (1997:178), a proposta de Hopper (1987, 1988) encontra paralelo em disciplinas como historiografia (White, 1987), antropologia (Clifford, 1986) e crítica literária (Culler, 1982), envolvendo argumentos que se relacionam de algum modo ao trabalho de Jacques Derrida. 64 A compreensão da estrutura como fluida e mutável acabou levando ao questionamento da separação rígida entre o léxico e a gramática. Contam como argumentos o fato de que palavras morfologicamente complexas ou mesmo seqüências de palavras podem ser armazenadas, além do fato de que existem regras gramaticais cuja operação é limitada por restrições lexicais, às vezes ao ponto de uma construção ser válida apenas para uma ou duas palavras específicas. Para Ramat & Hopper (1998:7), os conceitos de léxico e gramática podem vir a ser sintetizados. Não me deterei nessa questão, que também é tratada por Hopper, 1987; Langacker, 1987; Sinclair, 1992; Stubbs, 1996; Bybee, 1998; Bybee & Hopper, 2001;

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gramática é “o agregado maleável e internalizado das formações vindas da língua em uso” – do discurso, das experiências com a interação lingüística que acumulamos durante a vida (Bybee & Hopper, 2001:7). A freqüência de uso é um importante fator no estabelecimento e na manutenção da gramática, possibilitando a emergência de novas estruturas e rotinizando-as. É no momento da comunicação que o falante, de acordo com a necessidade de construir seu discurso de modo a ser entendido, organiza os nacos da língua. Por um lado, segue a tendência de repetição das experiências passadas, contribuindo para a enraização de estruturas e funções-significações. Por outro lado, é sempre necessário um ajuste ente fórmulas lingüísticas em uma tentativa de levar à convergência entre a intenção do falante e a interpretação do ouvinte, dificultada pela divergência das experiências acumuladas por cada um. Os interlocutores têm de inferir, metaforizar, reanalisar, analogicizar, enfim, negociar e adaptar fórmulas para fins imediatos.65 A negociação on-line de formas e funções-significações resulta em uma colagem diversificada de formas lingüísticas, dando-lhes uma nova feição. Modos inovadores de organizar - recortar e colar - as porções da língua podem acarretar alterações na estrutura e na função-significação dos itens ou construções. Se tais alterações forem freqüentemente repetidas, podem se tornar habituais e, assim, gramaticalizar-se, passando a fazer parte do “agregado maleável e internalizado” de fórmulas gramaticais. Geralmente as “inovações” encontradas no âmbito gramatical já são rotinas – um item ou construção só é percebido como gramatical por ser um padrão recorrente de construir discurso. São inovações, portanto, no sentido de não terem estado presentes num estágio anterior da gramática e/ou por terem tido sua freqüência de uso aumentada em certos contextos. É impossível determinar exatamente quando um item que não era gramatical passa a sê-lo. As fórmulas gramaticais são unidades de processamento, armazenadas, acessadas e constantemente afetadas pela experiência, inclusive pela freqüência, pois a representação cognitiva pode ser alterada pela exposição a repetidas instâncias de uso de uma construção inovadora.66 Dessa perspectiva, a representação mental da gramática é dinâmica, instável, provisória, variando entre falantes e ao longo do tempo, como resposta contínua à coação do discurso. Sensível e adaptável ao uso que é, a gramática não tem existência autônoma além da estocagem local e do processamento em tempo real (cf. Bybee, 20**b). Ela existe apenas em uso: o que não é experienciado não faz parte da gramática. De qualquer forma, representando ou não uma inovação, o uso dos elementos gramaticais prontos (palavras e construções) é sempre imprevisível, dependendo da conjugação de influências

Poplack, 2001; Hallan, 2001; Bybee, 20**a, entre outros. Como já mencionado no capítulo I, se o léxico não for considerado à parte da gramática, há um único percurso de gramaticalização: rumo a estações cada vez mais gramaticais. 65 Lehmann (1991:531) alerta que, embora muitas mudanças gramaticais sejam oriundas da conversação, a fala coloquial não é a única fonte da mudança. Os meios de comunicação de massa, por exemplo, desempenham um papel importante na criação e difusão de novas construções, que seguem o rumo da gramaticalização. Ademais, inovações também surgem em registros formais, como textos jurídicos ou filosóficos, e podem nunca vir a alcançar registros mais coloquiais. Creio que as motivações para tais mudanças sejam semelhantes às que exercem pressão sobre a fala cotidiana e que os mecanismos de mudança envolvidos sejam os mesmos, talvez com adaptações específicas, dado o contexto algo diferenciado de produção de estilos mais formais, incluindo a escrita. 66 Conferir em Pierrehumbert (2001) e Bush (2001) evidências acerca da influência da experiência dos falantes com usos recorrentes sobre o armazenamento dos itens e construções gramaticais.

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de tudo aquilo que está envolvido a cada troca conversacional, em termos cognitivos, comunicativos e sociais. A gramática emerge diferente a cada vez que é usada.67 Como é a recorrência de uso de itens e construções em certos contextos que instiga e acelera a ação dos mecanismos de mudança cognitivo-comunicativos (cf. seção 1.3.2), o estudo de um fenômeno de gramaticalização não deve se dar por satisfeito com a coleta de indícios da extensão funcional – semântico-pragmática e sintática – sofrida por um certo item, é preciso também haver respaldo quantitativo. Entretanto, cumpre lembrar que não é somente a freqüência elevada que é reveladora, mas idem os casos infreqüentes. A descoberta, em uma dada sincronia, de poucos ou mesmo um único dado de uma certa espécie - se passível de comparação com freqüências maiores ou menores em épocas anteriores - pode revelar inícios ou finais de trajetórias. Talvez uma forma esteja se despedindo de certa função gramatical ou começando sua carreira em um novo domínio funcional... 1.2.1 GRAMATICALIZAÇÃO68 – DUAS ABORDAGENS EM CONFLITO? Podemos definir gramaticalização como o processo de regularização gradual pelo qual um item ou uma construção (uma seqüência de palavras ou morfemas) freqüentemente usado(a) em contextos comunicativos específicos adquire função gramatical e pode, uma vez gramaticalizado(a), angariar novas funções gramaticais (Bybee, 20**a; Furtado da Cunha, 2001; Campbell & Janda, 2000; Ramat & Hopper, 1998; Neves, 1997; Hopper & Traugott, 1993; Traugott & Heine, 1991). A gramaticalização exige que se vejam as unidades gramaticais não como objetos estáticos, mas como entidades sofrendo processos (cf. Haspelmath, 1998) em um movimento dinâmico de criação e re-criação constante da gramática, sincrônica e diacronicamente. Embora fundamentados nesse pressuposto, estudos de gramaticalização têm tomado duas direções principais, por vezes consideradas divergentes (cf. Hopper, 1996):

Quadro 6: Comparação entre duas abordagens à gramaticalização

Lexical/etimológica: A organização da língua é compreendida como resultante de processos cognitivos. Visa-se descobrir, a partir de evidências sincrônicas e/ou diacrônicas, as possíveis fontes lexicais e os percursos universais por que passam as formas gramaticais em sua trajetória de mudança de significado, bem como os mecanismos cognitivos envolvidos nesse processo. Um dos nomes de destaque dessa linha de investigação é Heine.

Discursiva/textual: A organização da língua é tida como advinda dos contextos discursivos, por meio de motivações interacionais. Busca-se identificar possíveis tendências de gramaticalização em padrões de uso lingüístico fluidos e recorrentes. Dois dos principais representantes dessa vertente são Hopper e Givón.

67 Hopper, em comunicação pessoal, comparou a gramática à massa de modelar dessas de crianças (ou à geleka!), que a cada vez que é usada não retorna ao formato prévio, diferente de um elástico ou borrachinha dessas de cozinha, que, após ser usado, volta ao formato inicial. 68 Diferentes denominações são encontradiças: gramaticalização, gramaticização, gramatização, entre outras. Geralmente remetem ao mesmo fenômeno.

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Para Hopper & Traugott (1993:116), embora se perceba pontos em comum nas trajetórias de evolução de formas em diversas línguas, temos de ter em mente que as raízes e motivações da mudança estão na fala real, e que o estudo de como as formas são distribuídas no discurso é indispensável para o entendimento da gramaticalização. Já Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:167) defendem que a gramaticalização acontece na dependência de uma interposição de fatores cognitivos e interacionais, e toda tentativa de reduzi-la a considerações baseadas em uma só dessas variáveis significa perder insights importantes acerca da totalidade do processo envolvido. Além disso, o número de questões comuns a ambas as perspectivas de pesquisa abunda. Seguindo a proposta de combinação das duas direções de pesquisa, Bybee (20**a/b) analisa fontes, alvos, trajetórias e mecanismos de mudança a partir do discurso real e do mapeamento da freqüência para buscar informações mais seguras e ancoradas acerca do conjunto complexo de processos e de relações envolvidos na emergência de formas gramaticais. Bybee atribui os aspectos universais da gramaticalização à existência de padrões cognitivos e comunicativos comuns subjacentes ao uso da língua. É essa a postura adotada aqui. Saliento aspectos discursivos envolvidos no fenômeno de emergência no domínio gramatical da seqüenciação retroativo-propulsora, depreendendo de dados textuais reais e recorrentes indícios de inter-relações rotineiras e inovações. A par disso, também destaco as fontes e as trajetórias de mudanças seguidas pelos elos de conexão e, aí, daí e então, bem como as prováveis influências dessas fontes e trajetórias sobre o quadro de distribuições de tarefas no domínio da seqüenciação na Florianópolis de hoje – relaciono os desenvolvimentos anteriores e atuais de e, aí, daí e então aos padrões discursivos rotinizados e inovadores observados em seu uso, em uma coordenação das duas alternativas de pesquisa levantadas por Hopper (1996). Fundindo as abordagens lexical/etimológica e discursiva/textual, tomo conjugadamente princípios cognitivos e comunicativos subjacentes à implementação on-line da seqüenciação, ressaltando o fato de serem eles indissociáveis. Como diferenciá-los, se o estoque mental de porções gramaticais não existe independentemente do seu uso nas situações de comunicação, imprescindindo inclusive de padrões de freqüência, e se o uso é influenciado pelas experiências anteriores armazenadas na mente? Acrescentando-se que a atuação dos mecanismos de mudança é influenciada pelos contextos interacionais (cf. seção 1.3.2), pode-se dizer que aspectos cognitivos e comunicativos da gramaticalização são faces do mesmo fenômeno, aos quais se somam ainda aspectos sociais (cf. seção 1.6). Daí a decisão de denominar os mecanismos de mudança de mecanismos cognitivo-comunicativos. 1.3 DEVAGAR SE VAI AO LONGE: ACLIVES DE GRAMATICALIZAÇÃO A gramaticalização não acontece abrupta e repentinamente como se as formas saltassem de um domínio funcional a outro, mas sim se caracteriza por um desenrolar lento e gradual, envolvendo estágios de alternância do tipo A > A/B > B (cf. Hopper, 1998:154). O processo de extensão funcional de uma unidade é um processo cíclico em que são geradas novas fórmulas gramaticais análogas mas não idênticas aos exemplares pré-existentes. A cada etapa sucessiva, as formas diferem minimamente em função. Segue daí que a mudança é de natureza incremental e quase imperceptível aos usuários da língua (cf. Craig, 1991:456; Nichols & Timberlake, 1991:142).

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Uma vez que o fenômeno de emergência da gramática sugere evoluções passo-a-passo, é mais apropriado postular pontos ao longo de aclives ou de cadeias de gramaticalização do que propor estágios discretos de mudança. Aclives ou cadeias de gramaticalização são padrões ou processos de relação entre usos precedentes e subseqüentes de um item ou construção lingüística que podem ser mapeados sincrônica ou diacronicamente. De uma perspectiva diacrônica, um aclive é um percurso natural, um tipo de “inclinação escorregadia” que guia o desenvolvimento de itens lingüísticos ao longo do tempo. Sincronicamente, um aclive pode ser pensado como um “contínuo”: uma organização de formas ao longo de uma linha imaginária. Nesse contínuo, há pontos focais que são de certo modo arbitrários, pois, nas palavras de Heine & Reh (1984, apud Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:15), “Gramaticalização é um contínuo evolucional. Toda tentativa de segmentá-lo em unidades discretas é necessariamente arbitrária em alguma extensão.”69 A seguir, são apresentados alguns dos mais conhecidos aclives de migração rumo a

âmbitos cada vez mais gramaticais: (i) o ciclo de gramaticalização de Givón (1979); (ii) a

proposta de transferência metafórica de Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a) (cf. seção

1.3.2.1); (iii) a proposta de Traugott (1982) ilustrando etapas de subjetivização crescente que

caracterizamos rumos da gramaticalização em geral (cf. seção 1.3.4):

(i) DISCURSO ���� SINTAXE ���� MORFOLOGIA ���� MORFOFONÊMICA ���� ZERO

(ii) PESSOA ���� OBJETO ���� ESPAÇO ���� TEMPO ���� QUALIDADE

(iii) IDEACIONAL ���� TEXTUAL ���� INTERPESSOAL Como a passagem de uma etapa A para uma etapa B não é direta, mas sim gradual, havendo um estágio intermediário A-B em que os usos estão sobrepostos, os aclives não devem ser entendidos como uma linha em que os pontos focais - quaisquer níveis, categorias, estruturas e funções-significações lingüísticas - representam unidades fechadas e homogêneas. Assim, sintaxe e morfologia, espaço e tempo, nível ideacional e textual não são completamente separados uns dos outros. Se nos propusermos a segmentar etapas de gramaticalização, poderemos facear diversos fenômenos que impedem o estabelecimento de categorias discretas. Schlesinger (1995:05-07) resume alguns deles: (i) gradação: certos membros são mais prototípicos, outros menos; (ii) indistinção: as fronteiras entre as categorias são indistintas, isto é, elas situam-se em um contínuo sem linhas divisórias claras; (iii) sobreposição parcial: itens podem pertencer a ambas as categorias ao mesmo tempo, resultando em ambigüidade no plano das interpretações e talvez dando origem a uma categoria híbrida. Casos de gradação, indistinção e sobreposição, comumente encontrados por quem estuda a língua em uso real (cf. capítulo I para exemplos envolvendo a seqüenciação), colocam em dúvida a possibilidade de existência de significados, funções e, por tabela, classes de palavras e níveis lingüísticos (léxico, sintaxe, semântica, e companhia limitada) discretos. Novos usos de itens e de construções emergem continuamente de usos anteriores re-arranjados no discurso, através de

69 Daí a possibilidade de não haver concordância sobre quais pontos são mais relevantes para fins de delimitação num aclive de gramaticalização e tampouco sobre se uma certa forma está situada na parte lexical ou na gramatical do contínuo (cf. Hopper & Traugott, 1993:07)

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percursos de mudança graduais, do que resulta que “uma boa parte do comportamento lingüístico acontece entre categorias, não dentro.” (Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991b:179) (grifo adicionado) 1.3.1 CANDIDATOS À ABSTRAÇÃO CRESCENTE De todas as centenas de milhares de palavras de uma determinada língua, apenas um pequeno conjunto parece estar propenso a adentrar o domínio gramatical. Seria possível fazer alguma generalização acerca das propriedades dos membros desse conjunto? Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:34; 1991b:151) apontam que os candidatos principais à gramaticalização são, quanto ao significado, aqueles que se referem a universais da experiência humana, representando aspectos concretos, básicos e gerais70 para a orientação no meio ambiente, capazes de evocar múltiplas associações. Tais propriedades os tornam ampliáveis para a referência a conceitos menos concretos e facilitam seu emprego como parte de construções discursivas diversas, sujeitas a entrarem para a gramática. Destacam-se como possíveis fontes, entre outros, os itens lexicais que designam partes do corpo; fenômenos naturais; verbos dinâmicos, de postura e de processos mentais; quantificadores; demonstrativos básicos, especialmente os indicadores de localização espacial. À generalidade no plano do significado combina-se outro fator que contribui para a eleição de um item lingüístico para uma cadeira na gramática: a sua freqüência – quem aparece mais possui mais oportunidades de sofrer habitualização. Quanto mais geral o significado de uma palavra ou expressão, maior o número de contextos em que pode aparecer, o que torna maior sua recorrência e, assim, aumentam suas possibilidades de migrar para a gramática em diferentes construções. Já iniciando sua ação sobre itens recorrentes e genéricos, a gramaticalização representa a passagem para significados ainda mais negociáveis, abstratos, genéricos e freqüentes. Parelha à abstração e à generalização no plano do significado ocorre a generalização dos padrões de uso. No processo de mudança, a perda da especificidade semântica de uma forma favorece a extensão de sua aplicação para domínios funcionais diversos. Isso acontece porque o significado abstrato é mais moldável às necessidades da comunicação e, portanto, passível de ser expandido para mais e mais contextos, o que implica uma espiral em que aumento de freqüência leva à mudança e esta resulta em freqüência ainda maior (cf. Bybee, 20**a/b). Como, pelo processo de gramaticalização, somando-se empregos antigos e novos, um item ou construção pode assumir um vasto conjunto de funções-significações, surge o problema de caracterizá-las. A relação entre as funções-significações de uma forma costuma ser considerada polissêmica, pertencendo elas ou não à mesma categoria sintática, já que provêm de uma fonte comum e relacionam-se umas às outras na qualidade de estágios seqüenciais de uma trajetória de generalização crescente, tratando-se, portanto, de diversas acepções interligadas. Todavia, em uma análise sincrônica, pontos focais que estão próximos uns dos outros no aclive de gramaticalização tendem a ser interpretados como polissêmicos e pontos focais mais distantes como homônimos, já que a relação entre suas funções é mais difusa (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:03; Abraham, 1991:375). 70 Um exemplo é que tendem a ser gramaticalizados não verbos de movimento mais específico como caminhar ou nadar, mas verbos de movimento mais geral como ir e vir (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:35).

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1.3.2 E POR TRÁS DA MUDANÇA... MECANISMOS COGNITIVO-COMUNICATIVOS Subjacente à gramaticalização está a atuação de processos cognitivos que interagem com condições externas relativas às situações de troca lingüística. Tais processos são representados, nos estudos de gramaticalização, por mecanismos de mudança diversos, dentre os quais recebem maior destaque os quatro descritos a seguir: (a) extensão metafórica; (b) extensão metonímica; (c) reanálise e (d) analogia. 1.3.2.1 EXTENSÃO METAFÓRICA: SALTOS De acordo com Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:29), a transferência metafórica é um dos principais mecanismos que atuam ao longo do processo de gramaticalização. Trata-se do uso de um determinado termo lingüístico para um novo conceito através de um processo pelo qual dois conceitos diferentes são metaforicamente igualados e pelo qual o termo que é usado para um deles é estendido para se referir ao outro. Por meio da transferência metafórica, conceitos mais complexos são descritos ou entendidos por meio de conceitos concretos ou menos complexos. Assim, a experiência não física é compreendida em termos da experiência física, o tempo em termos de espaço, a causa em termos de tempo, as relações abstratas em termos de processos físicos ou relações espaciais. É possível descrever o processo de desenvolvimento gramatical por meio de algumas categorias básicas, distribuídas, de acordo com um grau de abstração crescente, ao longo do aclive pessoa > objeto > atividade > espaço > tempo > qualidade, que destaca a similaridade entre fontes e alvos. Cada uma dessas categorias inclui uma variedade de conceitos definidos perceptual e/ou lingüisticamente, representando domínios de conceptualização importantes para a experiência humana. A relação entre as categorias é metafórica, sendo possível a cada uma delas conceituar a categoria a sua direita.71 Um exemplo é o do desenvolvimento de be going to de sintagma direcional a futuro: (1) Henry is going to town. (2) The rain is going to come. Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:46) afirmam que a transição da ação verbal de (1) para a categoria de tempo futuro em (2) é metafórica, pois envolve uma transferência de um domínio a outro: o verbo go to, denotando um movimento espacial, portanto, uma ação física concreta, é usado como um veículo metafórico para se referir ao domínio mais abstrato do tempo dêitico, uma noção gramatical.

71 A metáfora que está em jogo aqui é a categorial: a primeira categoria constitui o tópico e a segunda o veículo dentro da equação metafórica. Por exemplo, ‘tempo é espaço’ (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991b:157).

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1.3.2.2 METONÍMIA, INFERÊNCIA, CONVENCIONALIZAÇÃO: PULINHOS No percurso de gramaticalização, também é destacado o papel da metonímia, mecanismo de mudança pelo qual ocorre uma associação conceitual entre entidades de algum modo contíguas, de forma que o item lingüístico que é usado em referência a uma delas passa a ser usado também para a outra (cf. Taylor, 1989:122). A metonímia envolve a especificação de um significado em termos de outro que está presente no contexto, mesmo que na forma de inferência, isto é, representa uma transferência através da contigüidade. Já a metáfora envolve a especificação de um conceito, geralmente mais complexo, em termos de outro não presente no contexto, isto é, uma transferência através de uma similaridade de percepções de sentido (cf. Traugott & Köning, 1991:212). Um mecanismo ligado à metonímia e que impele a mudança em direção a uma gramaticalização maior é o que Traugott & Köning (op. cit., p. 194) e Bybee, Perkins & Pagliuca (1994) chamam de inferência por pressão de informatividade ou convencionalização de implicaturas conversacionais, designando o processo em que, devido a pressões do contexto de uso, o item lingüístico passa a assumir uma nova função-significação, inferida da original. Um traço importante do processo de comunicação é a habilidade de fazer inferências: o

falante deve ser capaz de julgar que detalhes o ouvinte pode suprir por conta própria e formular

seus enunciados de acordo, e o ouvinte precisa completar em sua interpretação os detalhes não

fornecidos pelo falante, inferindo tanto quanto possível acerca do que este lhe diz. Quando o

mesmo padrão de inferências ocorre freqüentemente com uma construção gramatical particular,

essas inferências podem ser habitualizadas, tornando-se parte do conjunto de funções-

significações tipicamente exibidas pela construção. A função inovadora tende a ser de natureza

mais abstrata que àquela da qual foi pressionada a derivar. O exemplo envolvendo a construção be going to fornecido em 1.3.2.1 pode ser recuperado aqui: (3) Henry is going to town. (4) Are you going to the library? (5) No, I am going to eat. (6) I am going to do my very best to make you happy. (7) The rain is going to come. Para Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:70), o processo cognitivo que direciona itens lingüísticos à gramática possui duas perspectivas: (i) uma discreta e psicológica por natureza, que sugere uma análise em termos de metáfora, como a fornecida em 1.3.2.1; (ii) outra contínua e pragmática, altamente dependente do contexto e exibindo estrutura metonímica. Desta última perspectiva, as sentenças inseridas entre (3) e (7) sugerem que, entre a ação verbal e a marca de futuro, há um continuo - ou cadeia - de nuanças conceituais minimamente diferenciadas. Por exemplo, em (5), que é uma resposta a (4), o sentido primeiro de be going to parece ser intenção, com um sentido secundário de predição, mas ainda preservando traços do movimento espacial presente em (3) e (4). A função-significação de (6) parece similar ao de (5), mas não há mais um sentido espacial. Finalmente, em (7), deixa de haver intenção, sendo o único sentido de be going to a predição.

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1.3.2.3 FORMEM A TORCIDA: METÁFORA VERSUS METONÍMIA Alguns teóricos afirmam que a transferência metafórica e a transferência metonímica atuam em diferentes momentos do processo de gramaticalização ou vinculam-se a fenômenos distintos, discordando daqueles que defendem que ambos os mecanismos estão simultaneamente presentes quando da gramaticalização. Nessa acirrada disputa, há ainda os partidários de um ou outro dos mecanismos. Escolham seu time! Para Heine (1994:259), metáfora e metonímia são compatíveis entre si, pois a gramaticalização é uma análise da gramática em termos da manipulação pragmática e cognitiva levando à reinterpretação induzida pelo contexto de um lado e à transferência conceptual do outro. Conceitos são manipulados como um resultado de implicaturas conversacionais72 e recebem interpretação mais gramatical em contextos específicos, o que se dá sob uma escala de entidades contíguas que, por um lado, estão numa relação metonímica umas com as outras e, por outro, contêm um número menor de categorias mais salientes e descontínuas, como espaço, tempo ou qualidade. A relação entre essas categorias é metafórica, mas pode também ser descrita como o resultado de um número de extensões metonímicas. Dessa forma, metáfora e metonímia coexistem como “parte e parcela” no processo de gramaticalização, embora uma possa ser mais proeminente que a outra, dependendo da função gramatical que estiver em jogo (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991b:165-166). Segundo Hopper (1996), explicações acerca da relação entre uma forma lexical e sua contraparte gramaticalizada em termos de metáfora parecem valorizar um método etimológico que compara itens lingüísticos removidos do contexto. Entretanto, a gramaticalização não deve ser vista paradigmaticamente como a substituição repentina de um significado presente no contexto por um ausente - metáfora -, mas sim sintagmaticamente: o que acontece é a extensão de um significado já implícito nos contextos de uso da forma - metonímia.73 Já Moreno Cabrera (1998:225) toma o partido da metáfora, por considerar que o percurso do léxico para a gramática é altamente abstrato. Nas metáforas, dois ou mais objetos diferentes são vistos como idênticos, o que é possível porque descartamos os traços que os distinguem e focalizamos nos traços que partilham. Para o autor, esse processo de abstração a partir da similaridade é a operação básica que dá origem às formas gramaticais. Contudo, Bybee, Perkins & Pagliuca (1994:285) crêem que os mecanismos de mudança em questão ocorrem em diferentes estágios da gramaticalização. A metáfora só é possível nos estágios iniciais, quando o conteúdo semântico é bastante específico, e a metonímia é responsável pelas mudanças entre significados que já são mais abstratos, o que ocorre nas etapas posteriores do processo, quando uma forma gramaticalizada continua a adquirir funções gramaticais. Ou seja, “quando o significado gramatical torna-se mais abstrato e mais erosado, torna-se menos sujeito à metáfora e mais sujeito às pressões contextuais que geram mudança por inferência”. Outra opinião é a de Traugott e Köning (1991:190), para quem espécies distintas de inferência atuam, dependendo do tipo de função gramatical que está envolvida. O desenvolvimento de marcadores de tempo, aspecto, etc, envolveria primariamente a inferência

72 O conceito de implicatura conversacional é aqui empregado em conformidade com Grice (1975) e Levinson (1983). 73 A atribuição da operação da metonímia ao eixo sintagmático e da metáfora ao eixo paradigmático deve-se a Jakobson & Halle (1956) e Jakobson (1977).

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metafórica, pois conceitos mais complexos são apresentados por meio de conceitos concretos ou menos complexos. Em contraste, o tipo de inferência dominante no desenvolvimento de conectores seria a inferência por pressão de informatividade, com a convencionalização de implicaturas conversacionais. Apesar de todas essas posições divergentes, há um ponto de concordância geral: como resultado da atuação da extensão metafórica e da extensão metonímica, independentes ou conjugadas, é prevista uma trajetória de abstração crescente e/ou generalização de funções-significações.74 1.3.2.4 REANÁLISE E ANALOGIA: UMA RECONSTRÓI, A OUTRA DIFUNDE E DIVULGA Hopper & Traugott (1993:44) relacionam o mecanismo da metonímia à reanálise,75 envolvida em mudanças mais locais e sintagmáticas, e o mecanismo da metáfora à analogia, envolvida em mudanças paradigmáticas. A reanálise e a analogia podem ser vistas como processos complementares. A reanálise re-arranja as fórmulas lingüísticas, levando a uma reinterpretação das relações entre os elementos que as compõem. Envolve reorganização e mudança lineares, freqüentemente locais (relação entre constituintes, hierarquias, rótulos categoriais, etc), o que não é diretamente observável, pois não é implicada nenhuma modificação imediata ou intrínseca na construção reanalisada. Os falantes mudam sua percepção de como os constituintes de sua língua estão inter-relacionados, estabelecendo novos “cortes”. É a ambigüidade em alguns contextos que induz os usuários da língua a interpretar a cadeia input de modo diverso. A analogia refere-se à generalização de uma nova fórmula para um maior número de contextos, atraindo-a para construções já existentes, o que acarreta mudanças nos padrões de uso e a disseminação da inovação para domínios funcionais diversos. Tal mecanismo faz com que as mudanças não observáveis da reanálise se tornem mais evidentes. Tomando o exemplo do desenvolvimento de be going to de sintagma direcional a futuro esquematizado abaixo, temos, no estágio inicial, o progressivo com o verbo direcional e uma oração de finalidade. Depois, temos o auxiliar de futuro com um verbo de atividade, o que é resultado da reanálise. O terceiro estágio é o da extensão, através da analogia, da classe de verbos direcionais a todos os verbos, inclusive os estativos. A analogia colabora com o aumento da freqüência: quanto mais contextos de uso possíveis, mais o item tende a aparecer. Em outras palavras, o aumento de types provoca o aumento de tokens, o que contribui para tornar a mudança visível.

74 No capítulo V, analiso o papel dos quatro mecanismos de mudança em diversas etapas do desenvolvimento de e, aí, daí e então rumo à seqüenciação. Parece haver casos de atuação conjunta da metáfora e da metonímia, bem como casos de atuação isolada de cada uma. 75 Para informações mais detalhadas acerca da reanálise e do tipo de raciocínio subjacente a ela, a abdução, conferir Andersen (1973), Langacker (1977), Timberlake (1977) e Harris & Campbell (1995).

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Quadro 7: Etapas da gramaticalização de be going to como marca de futuro: ação da reanálise e da analogia

Eixo sintagmático Mecanismo: reanálise Estágio 1 be going [to visit Bill.] PROG V. direcional [oração de finalidade] Estágio 2 [be going to] visit Bill. FUT V. atividade (por reanálise) Estágio 3 [be going to] like Bill. FUT V. em geral (por analogia) Eixo paradigmático Mecanismo: analogia

(Hopper e Traugott, 1993:61)

1.3.2.5 ATUAÇÃO DIÁRIA DOS MECANISMOS Os mecanismos de mudança operam no uso cotidiano da língua, quando os falantes e ouvintes, devido às assimetrias de suas experiências, negociam e adaptam funções e formas para levar adiante a troca comunicativa, o que permite que a língua escorregue e mude, alterando-se padrões discursivos e sua contraparte mental. Os mecanismos guiam os caminhos pelos quais os seres humanos tipicamente metaforizam, inferem, reanalisam e analogizam o material lingüístico distribuído na cadeia linear da fala, regularizando e fixando usos ao mesmo tempo que implementando alterações, por sua vez também sujeitas à enraização. As fórmulas discursivas mais recorrentes e de significado geral podem ser abiscoitadas pelo processo de gramaticalização, sendo então transportadas para funções mais abstratas, genéricas, adequadas à manipulação variada nas situações comunicativas on-line, por meio de extensões metafóricas e/ou metonímicas. Paralelamente, as porções lingüísticas podem ter sua organização morfossintática alterada, do que resultam construções diferenciadas, as quais tendem a ser disseminadas para um número cada vez maior de contextos, em um circuito constituído por ampliação de types > ampliação de tokens > ampliação de types, circuito que caracteriza o constante fazer-se da gramática. 1.3.3 RETORNO PROIBIDO A gramaticalização é caracterizada como unidirecional relativamente ao rumo tomado pelos desenvolvimentos, podendo ser definida como um processo linear e irreversível que tende a derivar significados e funções num crescente de abstração, transportando unidades de estações mais específicas e menos gramaticais rumo a mais gerais e mais gramaticais que se situam minimamente distantes umas das outras em um aclive de mudança. A concepção básica é que há uma relação entre dois estágios A e B de modo que A ocorre antes de B, mas nunca o contrário. Ou seja, itens lexicais originam itens gramaticais ou itens menos gramaticais originam itens mais gramaticais, e

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não vice-versa; paralelamente, conceitos mais concretos derivam conceitos menos concretos, e não vice-versa (cf. Hopper & Traugott, 1993:207). Para ilustrar, tomemos o aclive de extensão metafórica de significados proposto por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a): nunca teríamos percursos como objeto > pessoa, tempo > espaço, tempo > objeto. Em termos do ciclo de Givón (1979), não deveriam ser atestados casos de passagem do tipo afixo > clítico, clítico > morfema livre. A irreversibilidade das trajetórias de gramaticalização é tida como resultante das estratégias cognitivas e de produção do discurso pelas quais os falantes e ouvintes negociam a comunicação - dentre elas, as que receberam destaque na seção anterior - metáfora, metonímia, reanálise e analogia. Embora consideradas estatisticamente insignificantes por grande parte dos estudiosos de gramaticalização, existem exceções à unidirecionalidade (cf. Bybee, 20**b); Ramat & Hopper, 1998:7; Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:04). Vejamos alguns casos mencionados por Ramat (1998): morfemas gramaticais que se tornam itens lexicais autônomos no inglês, como ade > fruit juice; elementos preposicionais que acabam como verbos no inglês, como up > to up the sale price; a mudança de –nte de marca de presente do particípio para marca de nome no espanhol; e de –mid/muid de pronome clítico para pronome livre no irlandês. Para Ramat, já que nenhum desses percursos envolve retorno para um estágio anterior, e sim a refuncionalização de itens gramaticais como novos lexemas, representam apenas mudanças locais afetadas por condições sociolingüísticas ou contextuais marcadas. Contudo, há opiniões outras. Tabor & Traugott (1998:229), por exemplo, crêem que a unidirecionalidade não deveria ser tratada como um dos traços definidores da gramaticalização e sim como hipótese a ser testada a cada caso, ao menos até que se lhe encontre uma formulação mais adequada, não sujeita a contra-exemplos. 1.3.4 TRAJETÓRIAS DE MUDANÇA UNIVERSAIS A gramática está constantemente sendo criada e perdida ao longo de percursos especificáveis e universais que dão origem à similaridades entre as línguas. A universalidade dos percursos de gramaticalização é atribuída à ação dos mecanismos de mudança, que conduzem as alterações no âmbito gramatical rumo à abstração e a generalização de funções-significações. Bybee (20**b) aponta que percursos de mudança não seriam atestados inter-lingüisticamente a menos que os usuários dessas línguas fossem propensos a fazer inferências muito similares sob condições interacionais similares. Um exemplo é a tendência de falantes e ouvintes de diferentes culturas inferirem causa de seqüências temporais, do que abundam por todo o mundo conjunções causais derivadas de empregos temporais anteriores das mesmas formas. Podem ser mencionados ainda outros exemplos, como: (i) artigos indefinidos oriundos do numeral um; (ii) artigos definidos cuja fonte são itens demonstrativos; (iii) tempos futuros que provêm do uso dado a verbos significando querer ou ir; (iv) verbos auxiliares indicando possibilidade e permissão que derivam de verbos significando saber ou ser capaz de; (v) preposições que marcam matizes temporais vindas de preposições espaciais, por sua vez vindas de nomes usados em referência a partes do corpo humano; (vi) anáforas textuais derivadas de anáforas temporais; (vii) pronomes relativos originados de demonstrativos (cf. Bybee, op. cit.; Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a/b). Esses representam alguns dos muitos desenvolvimentos comuns a diversos grupos de línguas não relacionadas.

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No que tange à emergência de conjunções, alguns percursos universais também têm sido mapeados - e são suspeitos de envolvimento na emergência e posteriores evoluções dos conectores no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora. Um deles é a trajetória de mudança rumo à subjetividade, proposto por Traugott (1982) como uma das linhas condutoras do processo de gramaticalização inter-línguas. Com base na distinção tripartida das funções da linguagem de Halliday & Hasan (1976), Traugott sugere um percurso de mudança do componente ideacional via o textual para o interpessoal/expressivo. Ocorre aí um processo de subjetificação crescente: a extensão dos significados codificados por um dado item ou construção torna os cada vez mais distantes do significado referencial, objetivo, e mais próximos de atitudes e pontos de vista subjetivos. As tendências de mudança semântico-pragmática que constituem etapas desse aclive de mudança são:

Quadro 8: Estágios do percurso ideacional > textual > interpessoal (Traugott, 1982) situação descritiva externa ���� situação interna (avaliativa/perceptiva/cognitiva) situação externa ou interna ���� situação textual situação textual ���� estado de crença subjetiva do falante

Traugott ilustra sua proposta com exemplos de migração de conjunções. Tomemos o caso de while e de since do inglês. Inicialmente, while referia-se a uma situação vista como existente no mundo (= às vezes). Subseqüentemente, passou a sinalizar uma relação coesiva temporal entre dois eventos no mundo, assumindo função conectiva (= enquanto). Por fim, while adquiriu papel concessivo (= embora), revelando a atitude de concessão do falante em relação às informações conectadas. Ao longo de etapas semelhantes, a conjunção temporal since adquiriu um significado causal, atribuído subjetivamente à relação entre eventos que se sucedem temporalmente. Outra trajetória ligada à emergência de conjunções é fruto de uma modificação feita à proposta de Traugott (1982). Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:190) afirmam que o percurso ideacional > textual > interpessoal ressalta o componente de mudança voltado para o falante (refere-se ao que o falante tem em mente, isto é, suas atitudes, julgamentos, crenças), mas que há percursos de gramaticalização baseados no componente voltado para o ouvinte (ligado ao estabelecimento e à manutenção de relações sociais). Muitas interações comunicativas envolvem enunciados que “servem como diretivos impondo sobre o ouvinte alguma obrigação” (Lyons, 1977:53). Assim é que enunciados do plano interpessoal como interrogações e comandos não raro se desenvolvem em estruturas cuja função principal é a articulação textual, evidenciando relações coesivas entre orações ou partes maiores do discurso. Um exemplo é o caso dos marcadores de interrogação que foram gramaticalizados como marcadores de subordinação oracional em muitas línguas européias (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:191). Portanto, também existe a possibilidade de conjunções surgirem via um percurso do tipo função ideacional > função interpessoal > função textual.76 Há também o percurso constituído por extensões metafóricas, espaço > tempo > texto, que já foi apontado no capítulo I como provavelmente vinculado ao desenvolvimento de aí, daí e então em seqüenciadores, e que será retomado no capítulo V.

76 Estudos de fenômenos de gramaticalização em Florianópolis encontraram evidências da ocorrência dos dois trajetos de ampliação funcional em direção a usos conjuntivos: (i) ideacional > interpessoal > textual (por exemplo, Valle, 2001; Rost, 2002) e (ii) ideacional > textual > interpessoal (por exemplo, Dal Mago, 2001; Tavares, 1999).

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1.4 PRINCÍPIOS DE GRAMATICALIZAÇÃO Hopper (1991) propôs cinco princípios capazes de: (i) auxiliar a identificar quais dentre as regularidades emergentes a cada período de tempo são candidatas a estarem na gramática da língua, e (ii) servir para diagnosticar diferentes graus de gramaticalização onde ela já é um processo reconhecido. São eles: estratificação (camadas), divergência, especialização, persistência e de-categorização.

� Estratificação:Estratificação:Estratificação:Estratificação: “Dentro de um domínio funcional, novas camadas estão continuamente emergindo. Quando isso acontece, as camadas antigas não são necessariamente descartadas, mas podem permanecer coexistindo e interagindo com as novas camadas”. (Hopper, 1991:22).

O princípio de estratificação faz sobressair a possibilidade de dois ou mais itens lingüísticos competirem pelo desempenho de determinada função em algum ponto de sua trajetória, caso de e, aí, daí e então, que constituem as camadas mais freqüentes da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis. A diversidade de itens atuando em um mesmo domínio funcional decorre do fato de que, quando uma forma ou conjunto de formas emerge, não substitui imediatamente um conjunto já existente de formas funcionalmente equivalentes, sendo possível que nunca venha a substituí-lo.77 Podemos dizer que as camadas representam variantes lingüísticas no sentido de Labov: duas ou mais formas de mesmo significado passíveis de serem empregadas no mesmo contexto (cf. seção 2.1). A estratificação implica a manifestação de um princípio cognitivo geral (não restrito ao

âmbito lingüístico), o princípio da marcação, a ser comentado em 1.4.1.

� Divergência:Divergência:Divergência:Divergência: “Quando uma forma lexical sofre gramaticalização (...), a forma lexical original pode permancer como um elemento autônomo e sofrer as mesmas mudanças que itens lexicais comuns”. (Hopper, 1991:22).

De acordo com esse princípio, o uso fonte e o uso alvo de uma forma em um aclive de gramaticalização podem seguir cada um o seu próprio caminho e continuar coexistindo como reflexos divergentes de uma forma singular por muito tempo. É o caso, por exemplo, dos usos temporais e conectivos do então mapeados na fala de Florianópolis, que já existiam no português do século XIII (cf. capítulo V). Faz-se necessário aqui um alerta. Bybee (20**b) afirma que as mudanças na gramaticalização acontecem gradualmente e são acompanhadas por muita variação na função. Um exemplo é o desenvolvimento da construção be going to como marca de futuro: (i) movimento - We are going to Windsor to see the King;. (ii) intenção - We are going to get married in June. (iii) futuro - These trees are going to lose their leaves. (Bybee, 20**b)

77 São exemplos de diferentes camadas que convivem no mesmo plano funcional as formas do pretérito do inglês: ablaut (They sang), sufixação (I admired it) e construção perifrástica (We have used it), assim como as diversas formas de sinalizar futuro: will, be going to, be + ing, be + to, be about to (cf. Hopper, 1991:23-24).

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O termo variação é aplicado por Bybee em referência aos diversos usos - lexicais e gramaticais - de uma certa forma, que podem conviver ou não em uma dada fatia sincrônica. Essa variação entre os usos de uma mesma forma é conseqüência da divergência, que permite a continuidade de existência das fontes ao lado dos alvos. É importante não confundir esse significado do termo variação - uma forma com diversas funções - com a variação ligada à estratificação, em que temos duas ou mais camadas - constituídas por itens diferentes, como e, aí, daí e então - marcando a mesma ou semelhante função.

� Especialização:Especialização:Especialização:Especialização: “Dentro de um domínio funcional complexo, uma variedade de formas com diferentes nuanças semânticas pode ser possível num estágio; quando ocorre a gramaticalização, essa variedade de escolhas formais estreita-se e o menor número de formas selecionadas assume significados gramaticais mais gerais”. (Hopper, 1991:22).

A especialização se refere à redução do número de formas passíveis de serem empregadas na expressão de uma certa noção gramatical. Podemos relacioná-la ao princípio da estratificação, segundo o qual mais de uma forma pode estar disponível em uma língua para servir a funções similares ou idênticas. Se, dentre as formas possíveis, uma (ou mais de uma) preponderar em uma dada função, esta forma pode especializar-se, vindo a adquirir um significado mais geral, o que pode acarretar a eliminação das formas que com ela competiam.78 Portanto, a especialização diminui ou extingue a competição - variação - entre itens lingüísticos. Além da especialização por generalização proposta por Hopper, aponto a possibilidade de especialização por especificação: as formas adversárias adquirem significados mais específicos e/ou passam a ser empregadas em contextos semântico-pragmáticos e/ou morfossintáticos específicos, eliminando-se assim a competição. Nesse caso, nenhuma forma seria excluída ou generalizada para cobrir todas as funções pertinentes a um domínio particular, mas cada uma seria empregada em certas funções e/ou contextos particulares pertinentes ao domínio. (cf. Tavares, 1999)

� PersistênciaPersistênciaPersistênciaPersistência: “Quando uma forma sofre gramaticalização de uma função lexical para uma gramatical, tanto quanto isso é gramaticalmente viável, alguns traços de seus significados lexicais originais tendem a aderir a ela, e detalhes de sua história lexical podem ser refletidos nas restrições de sua distribuição gramatical” (Hopper, 1991:22).

O princípio da persistência considera que itens ou construções gramaticais são frutos da evolução do material lingüístico e os sinais da sua história são manifestados em sua forma e seu significado, em qualquer ponto sincrônico. Daí espera-se que uma forma seja polissêmica, e que um ou mais de seus significados reflitam traços de significados anteriores, capazes de interferir no modo como é utilizada pelos usuários atuais da língua.

78 Hopper (1991:26) exemplifica o princípio da especialização com o caso do pas negativo em francês. Historicamente, a partícula negativa era ne e nomes como pas (“passo”) ligavam-se a verbos de movimento para enfatizar a negação, assim como nomes como mie (“migalha”) ligavam-se a verbos como “dar” e “comer”. No século XVI, somente pas e point (“ponto”) atuavam como enfatizadores de negação e, deles, somente pas se tornou uma verdadeira partícula negativa, estendendo seus usos para outros verbos, não somente os de movimento. Ou seja, foi selecionado, dentre outras formas possíveis, para especializar-se como partícula negativa e adquiriu um significado mais geral.

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� DeDeDeDe----categorizcategorizcategorizcategorização:ação:ação:ação: “Formas sofrendo gramaticalização tendem a perder ou neutralizar seus marcadores morfológicos e privilégios sintáticos característicos das categorias cheias nome e verbo, e a assumir atributos característicos de categorias secundárias como adjetivos, particípios, preposição, etc”. (Hopper, 1991:22).

Uma das conseqüências teóricas da adoção da perspectiva da gramaticalização para dar conta da gramática é relativização da noção de categoria. Dada a possibilidade de decategorização, a distribuição de formas em categorias não é determinável apriorísticamente e tampouco envolve distinções claras. O que existe são graus de categorialidade que, além de escalares, estão sujeitos a alterações constantes. 1.4.1 O PRINCÍPIO DA MARCAÇÃO A convivência de itens em um mesmo domínio funcional, como camadas mais velhas e mais novas, acaba levando à manifestação de um mecanismo cognitivo geral, representado pelo princípio da marcação, subjacente à interpretação de formas e contextos de uso como mais ou menos complexos. O princípio da marcação tem suas raízes na lingüística estrutural desenvolvida pela Escola de Praga, tendo sido inicialmente aplicado à fonologia e depois estendido à morfossintaxe. Jakobson afirma que a marcação

“tem significado não só para a lingüística mas também para a etnografia e a história da cultura, pois correlações sócio-culturais como vida ~ morte, liberdade ~ não liberdade, pecado ~ virtude, feriados ~ dias de trabalho, etc, estão sempre relacionados a relações a ~ não-a, e é importante descobrir a cada época, grupo, nação, etc, qual é o elemento marcado” (carta de Jakobson a Trubetskoy, 26/11/1930, apud Harris & Taylor, a sair).

Para analisar relações de motivação entre contextos de usos da seqüenciação retroativo-propulsora e suas marcas – e, aí, daí e então, valho-me da noção de marcação como proposta por Givón (1995),79 considerando critérios já apresentados no capítulo I. 1.5 SINCRONIA + DIACRONIA = PANCRONIA A gramaticalização pode ser contemplada tanto da perspectiva diacrônica, investigando-se os padrões fluidos das relações gramaticais, as fontes das formas e os percursos típicos da mudança que as afeta, com base em dados de diferentes épocas; quanto da perspectiva sincrônica, analisando-se padrões fluidos, fontes e percursos, com base em dados atuais. Há ainda a possibilidade de combinação de informações diacrônicas com informações sincrônicas – a perspectiva pancrônica.80 Em relação à abordagem sincrônica, é mister indagar como é possível a investigação do passado das formas a partir de seus usos de hoje. Um dos princípios centrais da gramaticalização é a persistência, isto é, o fato de que nuanças semântico-pragmáticas e mesmo estruturais de uma construção fonte são passíveis de serem retidas por bastante tempo por suas herdeiras. Assim,

79 Givón inspirou-se em Greenberg (1966) para sua proposta de marcação. 80 Já apontada por Saussure, no início do século XX, como uma das possibilidades de abordagem à língua.

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mesmo na ausência de evidência direta ou no caso de evidências esparsas acerca da fonte e das trajetórias seguidas por um item gramatical, estas podem ser divisadas através dos usos múltiplos sincrônicos, entendidos como estágios de possíveis percursos de gramaticalização (cf. Bybee, Perkins & Pagliuca, 1994:18). Para Myhill (1988:352), a análise dos dados atuais permite ver com maior clareza detalhes e fatores motivadores do processo. Essa linha de investigação sincrônica adota a concepção metodológica de que o desenvolvimento histórico e a posição atual de um item em uma cadeia de gramaticalidade geralmente irão coincidir, existindo uma tendência de isomorfismo entre o desenvolvimento histórico e relações sincrônicas entre itens polissêmicos (cf. Tabor & Traugott, 1998:263). Contudo, qualquer hipótese relativa a emparelhamentos presente-passado deve ser testada por meio de indícios provindos de fontes variadas tomados como complementares, pois, segundo Craig (1991:456), é raro mapearmos todos os elos de uma cadeia de gramaticalização em textos referentes a um período de tempo particular, mas elos “perdidos” podem aparecer em textos de outro período. Destarte, o melhor caminho parece ser a opção pela perspectiva mais ampla, não apenas sincrônica ou diacrônica, mas pancrônica, postura natural quando se entende a mudança lingüística como um processo sempre em andamento. A pancronia envolve tomar as redes de inter-relações gramaticais não como sincrônicas ou diacrônicas, mas sim ambas ao mesmo tempo, buscando vestígios em fontes diversas e somando-os para a constituição de um quadro de mudança dinâmico e mais refinado. A gramática pancrônica é reflexo da natureza gradual e incessante da gramaticalização, que impossibilita o recorte estático de períodos de tempo – as sincronias possuem fronteiras indistintas, não podendo ser caracterizadas como fatias discretas e isoladas. O olhar pancrônico se dá sobre o ontem e o hoje, conjugando-os e entendendo-os como processos contínuos de rotinização > inovação > rotinização do fazer-se gramatical. As perspectivas de estudo sincrônica e diacrônica de certa forma relacionam-se com a distinção entre as abordagens léxico/etimológica e discursiva/textual (seção 1.2.1), porém não se trata de uma questão sobreposta. Ambas as abordagens podem se dar sincrônica e/ou diacronicamente, a diferença entre elas reside mais naquilo que tende a ser focalizado primariamente por cada uma. A abordagem léxico/etimológica salienta a atuação dos mecanismos cognitivos (especialmente metáfora e metonímia) sobre as alterações de significado no percurso do léxico à gramática, ao passo que a abordagem discursiva/textual objetiva depreender indícios de mudança a partir da observação dos padrões recorrentes do uso das fórmulas lingüísticas no discurso. Creio que essas distinções no ângulo do olhar revelam diferentes faces da gramaticalização, todas importantes objetos de investigação. 1.6 O LADO SOCIAL DA GRAMATICALIZAÇÃO Posto que a gramática corresponde a uma gama de inter-relações entre formas e funções, configurada em resposta não só a fatores comunicativos e cognitivos, mas também a fatores sociais, nesta seção resumo o que tem sido proposto no tocante ao vínculo entre o processo de gramaticalização e a sociedade. Bem lembra Giannini (1998:142) que o estudo de como e porque a estrutura de uma língua se modifica ao longo do tempo não pode deixar de lado a consideração do contexto social e cultural em que a língua é falada, pois, como afirmam Bybee & Hopper (2001:20),

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as situações comunicativas e seus participantes também são fenômenos repetitivos, repetição que está na base das rotinizações que originam a gramática. Para Bisang (1998:14), uma mudança na gramática de uma só pessoa não constitui uma mudança na língua: as motivações pragmáticas que incrementam padrões de metáfora, metonímia, reanálise e analogia em indivíduos precisam se espalhar para outros indivíduos, atingindo comunidades de fala mais extensas. Nessa linha de argumentação, Hopper & Traugott (1993) e Croft (1996) dividem a mudança lingüística em duas fases: (i) a mudança como ela realmente acontece em um dado enunciado, fruto da interação entre falante e ouvinte e da ação dos mecanismos cognitivos; (ii) a propagação da mudança.81 A mudança como tal é um processo estocástico, implicando alteração nos padrões de armazenamento mental motivada pela alteração nos padrões de uso, enquanto a propagação da mudança, isto é, a mudança lingüística bem sucedida, é um processo sociolingüístico. A gramática é de natureza bastante local. Quanto mais integrados numa mesma comunidade de fala estão os falantes, mais próximos tendem a ser os usos que dão aos itens lingüísticos, pois os partilham recorrentemente quando se comunicam. Tais usos partilhados constituem o que se denomina gramática da comunidade. A mudança lingüística e sua propagação são estudadas a partir da gramática da comunidade e não com base em uma gramática individual. Não é uma única pessoa que é responsável pelas alterações, e sim diversos indivíduos em interação, negociando e adaptando estratégias gramaticais à medida que a troca comunicativa avança, bem como disseminando as inovações que daí decorrem. Discursos de diversos indivíduos são considerados em conjunto, como capazes de fornecer um reflexo da gramática da totalidade da comunidade. Tratando da questão da disseminação social da mudança, Lichtenberk (1991:39) enfatiza que uma forma inovadora não costuma surgir repentinamente na comunidade de fala, e sim é inicialmente mais usual em algumas áreas e mais comum para algumas pessoas, geralmente havendo distribuição diferenciada de acordo com as gerações de usuários da língua. Nos casos de mudança em progresso, não é surpresa a existência de diferenças nas freqüências relativas de usos mais antigos e usos mais recentes entre os falantes mais jovens e mais velhos (op. cit., p. 52). Androustopoulos (1999) analisa a gramaticalização na fala de indivíduos jovens, considerada por ele um campo promissor de pesquisa sobre gramaticalização em andamento,82 uma vez que a mudança gramatical parece ter seu pico nos anos da adolescência (cf. Kerswill, 1996:178). Padrões habituais de gíria, por exemplo, podem ser gramaticalizados, alcançando comunidades de fala maiores. Androustopoulos destaca o modelo de difusão sociolingüística defendido por Kotsinas (1997), que representa o espraimento de uma mudança ao longo da comunidade lingüística como uma série de estágios. Segundo esse modelo, de início, uma inovação se espalha do grupo de pares em que é originada e do qual constitui marca de identidade para redes adolescentes maiores, então para a língua das pessoas jovens em geral, em um desenvolvimento supra-regional. A seguir, a mudança atinge registros mais coloquiais da língua adulta e eventualmente adentra a língua padrão. Em cada estágio, o traço adquire um novo valor sócio-simbólico, sendo conectado a aspectos da identidade de estratos socioculturais mais amplos. 81 A distinção feita entre inovação e mudança por Milroy (1993) é similar a de Hopper & Traugott (1993) e de Croft (1996). No entanto, Milroy relaciona o termo mudança à fase de difusão social da mudança e não à inovação em si. Opinião semelhante é a de Labov (1972a, cf. seção 2.6). 82 Foi em Androustopoulos (1999) que encontrei pela primeira vez a expressão gramaticalização em andamento aplicada a questões de distribuição e de disseminação social das inovações gramaticais, o que possivelmente recebe inspiração da idéia de mudança em andamento como proposta por Labov (2001, 1994, 1982, etc).

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A relação da influência social sobre a constituição e disseminação da gramaticalização desemboca em questões de aquisição lingüística. A aquisição da linguagem se desenrola como conseqüência das interações comunicativas em que se envolve o ser humano desde seu nascimento, através das quais modela e re-modela sua gramática. A freqüência de uso é fundamental na etapa de aquisição da língua. Conforme Hallan (2001), o que é mais freqüente é adquirido primeiro, pois aparece mais constantemente nas diversas experiências das crianças com o uso da língua. Elas adquirem construções e rotinas, porções lingüísticas bem específicas que apenas mais tarde se tornam produtivas e mostram evidência de representação mais esquemática. Por exemplo, no inglês, a preposição over não é adquirida isoladamente, mas sim em construções, destacando-se também o fato de que algumas das primeiras construções usadas pelas crianças trazem over em função não preposicional: over there, over here, over em sintagmas verbais (fall over, pull over). O mesmo é válido para a preposição on, adquirida inicialmente como parte de construções do tipo come on, put on. 2. INTRODUZINDO A SOCIOLINGÜÍSTICA VARIACIONISTA

“The first contribution of sociolinguistic research in the second half of the 20th century was to show that this variation was not chaotic, but well formed and rule-governed, that it was indeed an aspect of linguistic structure.” (Labov 2001:38)

Na fala de Florianópolis, a seqüenciação retroativo-propulsora possui quatro camadas bastante recorrentes – e, aí, daí e então. Como já mostrado no capítulo I, tais formas são possíveis em contextos de uso semelhantes, parecendo disputar um lugar ao sol como conectores seqüenciadores. Esse fato é a motivação para que sejam tomadas como variantes da seqüenciação, domínio funcional transmutado aqui em variável lingüística a ser estudada a partir de pressupostos teórico-metodológicos da sociolingüística variacionista,83 associados ao quadro teórico funcionalista voltado ao fenômeno da gramaticalização apresentado anteriormente. Nas próximas páginas, o espaço é todo da “sócio”. Segundo seu precursor, William Labov (1972a:xiii), o objeto da sociolingüística variacionista é:

“(...) a língua que é usada na vida diária por membros da sociedade, o veículo de comunicação com que discutem com suas esposas, trocam piadas com seus amigos e ludibriam seus inimigos.”

Diferentemente da postura lingüística dominante na década de sessenta, que definia a língua como um sistema estável e homogêneo, Labov assume a perspectiva de que a língua apresenta variabilidade de uso em todos os níveis – os falantes fazem escolhas entre dois ou mais sons, palavras ou expressões. Essa diversidade pode ser estudada sincrônica e diacronicamente sob várias dimensões, especialmente sob o ponto de vista social. A língua deve ser vista não como uma estrutura estática, mas como um sistema social dinâmico, que está continuamente se movendo, mudando e interagindo (cf. Guy, 1995 e 1997:ix). A sociolingüística variacionista defende a proposta de sistema lingüístico dinâmico como contraponto a duas outras explicações inicialmente dadas a fenômenos de variação: formas 83 Encontram-se na literatura denominações diversas para a sociolingüística variacionista, dentre as quais destacam-se: teoria da variação e da mudança lingüística, teoria variacionista, sociolingüística laboviana, sociolingüística quantitativa.

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variantes eram consideradas como partes constituintes de sistemas diferenciados que co-existiam na mesma comunidade ou então como alternativas cuja seleção era livre e imprevisível. Os proponentes da noção de sistemas co-existentes84 afirmavam que os falantes mantinham fonologias distintas (e, por inferência, também gramáticas distintas) que lhes davam acesso a mais de um código, podendo mudar de um para outro conforme as necessidades comunicativas. Como pertenciam a sistemas diferentes, as variantes não deveriam co-ocorrer. Entretanto, é comum que apareçam juntas em uma mesma situação comunicativa, inclusive na mesma sentença, o que fornece indícios da existência de um sistema único em que convivem formas variantes. Os defensores da idéia de variação livre consideravam que as variantes lingüísticas não passavam de flutuações casuais. Todavia, estudos variacionistas feitos na década de sessenta coletaram evidências de variabilidade em larga escala e demonstraram que sua ocorrência na comunidade de fala era sistemática, regular e seguia padrões, não sendo, portanto, fruto de escolhas livres e aleatórias (cf. Labov, 1972; Chambers, 1995). Com base nessas descobertas, a sociolingüística propôs a dissociação entre estrutura lingüística e homogeneidade, compreendendo a língua como uma estrutura heterogênea inerentemente variável, sincrônica e diacronicamente, e a variação como passível de descrição sistemática, em função de restrições lingüísticas e não-lingüísticas (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968:99). Além de ser uma característica essencial da língua, a variação é também um pré-requisito para a mudança lingüística. O equacionamento de estrutura e heterogeneidade permite romper as fronteiras entre sincronia e diacronia delineadas por Saussure e conservadas por Chomsky, dois grandes nomes da lingüística do século XX. Quer façamos um recorte transversal, quer façamos um longitudinal, encontraremos variação, a qual talvez esteja representando uma etapa de um processo de mudança em andamento que pode eventualmente resultar em mudança categórica em uma sincronia posterior (cf. seção 2.6.1). O ontem e o hoje se imbricam mutuamente: a generalização da mudança na estrutura lingüística e na estrutura social envolve um contínuo de variações e alterações interligadas ao longo do tempo. A finalidade do estudo da variação é entender melhor o sistema lingüístico como um todo, bem como sua evolução ao longo do tempo. A preocupação central é com “as formas das regras lingüísticas e com as restrições impostas sobre elas, sua combinação dentro de sistemas, e a evolução dessas regras e sistemas ao longo do tempo” (Labov 1972a:184). Os tópicos considerados pela sociolingüística assim definida abarcam fonologia, morfologia, sintaxe e semântica. O termo gramática costuma ser usado num sentido geral, para indicar o sistema lingüístico como um todo, incluindo a fonologia, o léxico e sua organização semântica (cf. Labov, 1982:85). Iniciamos nosso passeio pela sociolingüística variacionista pela apresentação de alguns dos conceitos que lhe são mais caros: variáveis, variantes, regras variáveis, comunidades de fala, vernáculo. Na seqüência, são abordados os problemas ou etapas do estudo da mudança lingüística e são expostos os passos metodológicos comumente seguidos em pesquisas variacionistas. A próxima seção detalha conceitos e procedimentos da sociolingüística. O espaço “sócio” é finalizado com a discussão do desdobramento da metodologia variacionista para níveis além da fonologia.

84 A proposta de sistemas co-existentes é atribuída a Fries & Pike (1949) por Chambers (1995).

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2.1 SISTEMA DE VARIÁVEIS, VARIANTES E REGRAS VARIÁVEIS Para facilitar o estudo da heterogeneidade lingüística, em Weireich, Labov & Herzog (1968:167) foi introduzido o conceito de variável lingüística em referência a “um elemento variável dentro do sistema controlado por uma regra singular”. Uma variável lingüística comporta duas ou mais variantes: dois ou mais modos alternativos semanticamente equivalentes de dizer “a mesma coisa” em um mesmo contexto. Um caso particular de variação implica que para cada enunciado A há um enunciado correspondente B que fornece a mesma informação referencial. Alguns membros de uma dada comunidade de fala podem não ser capazes de produzir A ou B com igual competência devido a restrições em seu conhecimento pessoal, mas todos normalmente conseguem interpretar A e B e entender o porquê da escolha de um ou outro por parte de seu interlocutor. A variação lingüística revela tendências regulares, podendo ser sistematizada e analisada quantitativamente, com base no controle de grupos de fatores condicionadores ou variáveis independentes,85 pelo que se busca chegar a uma explicação para o fato de os falantes efetuarem uma certa escolha em detrimento de outra(s). Duas situações de variação são possíveis: (a) estabilidade, caracterizada pela subsistência e/ou co-existência das variantes; (b) mudança em progresso, em que as variantes estão envolvidas em um “duelo de morte” (cf. seção 2.6.1). Em ambos os casos, cada variante dispõe de armas para lutar por seu espaço: os grupos de fatores, que representam contextos lingüísticos e extra-lingüísticos que favorecem ou desfavorecem a seleção de uma ou outra das formas variantes que disputam determinado emprego (Tarallo, 1985:64). Uma variante particular tende a ocorrer quando certos fatores estão em jogo na situação comunicativa, mas seu aparecimento não é obrigatoriamente vinculado a eles: trata-se de uma probabilidade, não uma necessidade. Se os contextos lingüísticos e sociais envolvidos em um fenômeno de variação puderem ser organizados em algum tipo de hierarquia reveladora da distribuição assimétrica das formas, são ditos estratificados (no caso sob enfoque, subfunções e idade, por exemplo). O sistema lingüístico heterogêneo proposto pela sociolingüística variacionista é regido por regras variáveis inerentes a ele. Tais regras podem ser mais ou menos aplicadas, dependendo do ambiente lingüístico e/ou do contexto social, o que define a natureza do sistema como probabilística e pressupõe o emprego de técnicas quantitativas para a observação das regularidades que o governam (cf. Labov, 1994:25). É mediante métodos estatísticos que podemos observar as tendências da variabilidade, mapeando a extensão da atuação de cada um dos fatores condicionadores, o que permite “prever” probabilisticamente a taxa aproximada de uso de uma certa variante por um certo indivíduo, a partir de informações sobre suas características sociais e sobre o contexto lingüístico. Uma vez que cada uso de uma variável está ligado a uma gama de traços lingüísticos e extra-lingüísticos, a análise ideal é a multivariada,86 capaz de configurar os dados como uma função de múltiplas forças simultâneas que podem estar atuando em diferentes direções, indicando o “peso” (favorável ou desfavorável) de cada força (cf. Guy, 1998:30). Ao estudar o AAVE (African American Vernacular English) na década de sessenta, Labov desenvolveu a noção de regras variáveis como um meio de descrever de modo formal a inter-

85 A variável em análise em uma pesquisa sociolingüística é dependente dos fatores condicionadores (pode ser chamada de variável dependente), os quais, por sua vez, não dependem da variável dependente e costumeiramente não são dependentes entre si. Por isso são chamados de variáveis independentes. 86 Conferir no capítulo III mais informações sobre a análise multivariada típica dos estudos variacionistas.

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relação sistemática entre os condicionamentos internos e externos à língua. Tomemos o caso da simplificação do encontro consonantal no final de palavras apresentado em Labov (1972a:217). /t/ e /d/ finais eram apagados depois de um segmento consonantal se a palavra seguinte não começasse com uma vogal (por exemplo, ocorria firs’ thing, mas não las’October). Não se tratava de regra categórica, pois nenhum dos falantes do AAVE simplificava todos os casos de encontros consonantais. Casos de simplificação de encontros envolvendo morfemas flexionais (he rol para he rolled, por exemplo) também eram possíveis, porém o apagamento da marca de passado –ed era menos freqüente que o apagamento nos encontros monomorfêmicos. Labov sugeriu o emprego de parênteses angulados para representar a variabilidade da freqüência do apagamento, e o emprego de letras gregas para indicar relações de mais ou menos:

-t/-d <0> / [+cons]ββββ <0> ##αααα <-syl> Com este formato, a regra variável especifica que, em AAVE, o condicionamento gramatical (presença de marca de passado) é mais forte na restrição da aplicação da regra de apagamento do que o condicionamento fonológico, e, desse modo, faz predições acerca da probabilidade de ocorrência de formas particulares. A regra variável é, portanto, uma regra de reescritura sensível ao contexto. Labov delineia em forma de representação formal a existência do condicionamento variável, o qual relaciona uma dupla de variantes como x <y>, de modo que, quando a regra se aplica, ocorre “y” e, quando não se aplica, ocorre “x”. Somando-se às restrições lingüísticas, as restrições sociais são incorporadas pelas regras labovianas, já que o input variável também é regulado por fatores como estilo contextual, classe socioeconômica, sexo e grupo étnico (cf. Labov, 1972b:96). Destarte, “é no conceito de regra variável que o que é do domínio da língua se encontra com o que é do domínio social” (Pagotto, 2001:32). 2.2 ZO + MU + JQ + ED + AZ + LU + FR + TH = COMUNIDADE DE FALA A sociolingüística variacionista toma por objeto a língua usada pela comunidade de fala, buscando posições e tipos sociais e não indivíduos, com base no pressuposto de que a variação e a mudança lingüísticas não ocorrem em idioletos, mas sim nas gramáticas da comunidade mais ampla. Labov (2001:34) concede que a investigação de uma comunidade de fala revelará que, por conta de sua história social única, cada indivíduo mostra um perfil pessoal do uso dos recursos lingüísticos disponibilizados pela comunidade de fala. No entanto, não é um indivíduo que estabelece e muda as regras da língua e sim o conjunto de indivíduos em interação social. Conseqüentemente, são realizadas observações a partir de uma amostra representativa dos falantes, da qual se extraem inferências acerca do que está acontecendo na comunidade como um todo. O indivíduo da sociolingüística variacionista é um ser “estratificado” de acordo com propriedades supra-individuais (idade, classe social, etc) e, devidamente categorizado de acordo com tais propriedades, é somado aos demais indivíduos para que se chegue ao retrato da comunidade de fala. Sobre essa postura, Schiffrin (1994:290; 1997:52) aponta que a sociolingüística reluta em conceber língua e sociedade como dois sistemas mutuamente constitutivos. Embora fatores sociais sejam levados em conta na análise, nas explicações acerca da distribuição das formas e nas formulações de princípios gerais de variação e de mudança, a influência da sociologia - concepções, conceitos e teorias - não é fortemente incorporada. A associação entre o âmbito lingüístico e o âmbito social acontece apenas através de correlações entre as freqüências de

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ocorrência das formas e categorias sociais diversas com as quais os informantes são rotulados: classe social, idade, escolaridade, sexo, profissão, raça, etnia.87 Na mesma linha, Pagotto (2001:52) afirma que a teoria variacionista concebe o sistema lingüístico e as regras variáveis de modo tal que a comunidade lingüística passa a ser uma extensão do sistema heterogêneo: uma estrutura imanente que não permite um exterior além dela. As categorias sociais fariam parte de um jogo de valores no sentido saussureano: homem versus mulher; jovens versus adultos versus idosos – divididos em grupos de fatores. Podemos dizer que, à semelhança dos contextos lingüísticos, os contextos sociais são esculpidos com o formato de estrutura estratificada, para que furos da estrutura social se encaixem mais facilmente nos furos da estrutura lingüística. 2.3 PROCURAM-SE VERNÁCULOS Assumindo que o contexto social exerce influência sobre o uso da língua, estudos variacionistas freqüentemente controlam estilos de fala como variável independente, relacionando-os à noção de formalidade e ordenando-os ao longo de uma dimensão singular, medida de acordo com o maior ou menor grau de atenção dado à fala. Os estilos distribuem-se do vernáculo ou fala casual, “(...) o estilo em que o mínimo de atenção é dado ao monitoramento da fala”, isto é, o falante concentra mais a atenção no que fala e menos no como fala (Labov, 1972:208), a estilos mais formais, em que abundam formas ligadas à língua padrão. O estilo que geralmente fornece os dados mais sistemáticos para a análise da estrutura lingüística é o vernáculo, pois quanto mais inconsciente a fala for, mais será sistemática e representativa da competência lingüística dos falantes: haverá menos interferência entre o sistema subjacente e o comportamento. Além disso, como sublinha Labov (1971:109), as direções da evolução lingüística são encontradas primariamente na fala diária, mesmo em culturas literárias. Assim, o vernáculo pode ser igualado à língua, à sua manifestação mais real e espontânea. O corpus empregado para a análise da seqüenciação retroativo-propulsora em Florianópolis é constituído por entrevistas feitas nos moldes sociolingüísticos. A entrevista sociolingüística é mais formal que o vernáculo da vida diária, pois é dirigida pelo entrevistador, um indivíduo nem sempre conhecido pelo informante. Daí advém uma situação interacional assimétrica: embora sejam empregadas estratégias para tornar a entrevista descontraída e natural com o intuito de fazer aflorar o vernáculo, a necessidade de estimular a fluência de seu interlocutor faz com que o entrevistador fale pouco e evite interromper o informante, do que resulta uma conversa “artificial” se comparada à conversação cotidiana. Na verdade, trata-se de uma interação típica da pesquisa sociolingüística, em que importa conseguir um grande número de dados. Segundo Labov (op. cit.:115), é apenas através desse tipo de entrevista individual que podemos controlar o imenso volume de fala e as estruturas necessárias para o estudo da gramática. Sessões de conversação livre certamente revelam os melhores dados vernaculares, mas podem não fornecer dados lingüísticos suficientes de cada indivíduo. As entrevistas sociolingüísticas substituem as interações reais com a desvantagem da perda de traços vernaculares, mas permitem a obtenção de dados mais completos e numerosos, facilitando a ação do arsenal estatístico.

87 Uma discussão quanto ao conceito de comunidade de fala laboviano e sua relação com os conceitos de comunidade lingüística e comunidade social pode ser conferida em Calvet (2002).

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Uma possibilidade para se tentar capturar trechos de entrevistas em que predomine um baixo grau de formalidade é o que faço: considero para fins de análise quantitativa somente o período final da entrevista, em que o informante pode estar mais à vontade, começando a acreditar que o entrevistador - “este ser curioso que veio lá da universidade para me perguntar sobre a minha vida” - não morde. Ainda assim, como o informante detém a palavra na maior parte do tempo, não se foge do fato de que a entrevista é uma situação de pesquisa e não um bate-papo cotidiano. 2.4 PROBLEMA! PROBLEMA! PROBLEMA! PROBLEMA! PROBLEMA! Há cinco problemas em especial a serem inevitavelmente defrontados por quem se aventure a estudar a mudança lingüística: problema das restrições, da transição, do encaixamento, da avaliação e da implementação – que também podem ser entendidos como etapas de pesquisa. Foram discutidos pela primeira vez por Weinreich, Labov & Herzog (1968) e posteriormente nos vários trabalhos de Labov. Na análise do fenômeno de variação e mudança que atinge a seqüenciação retroativo-propulsora, esses problemas/etapas serão fatalmente abordados e seguidos. PROBLEMA DAS RESTRIÇÕES: Quais são os condicionamentos e as restrições lingüísticos e extra-lingüísticos gerais à mudança que determinam as alterações possíveis ou impossíveis e que especificam sua trajetória? O problema das restrições relaciona-se intimamente com a busca de uma “gramática universal”. Vejamos um exemplo de restrição no domínio fonológico: foram observados em diversas línguas casos de mudanças em cadeia em que as vogais periféricas foram elevadas, mas nenhum caso na direção reversa. (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968:184; Labov, 1982:26; Labov, 1994:115) PROBLEMA DA TRANSIÇÃO: Como uma mudança acontece? Quais são suas trajetórias e estágios? O sistema lingüístico de um indivíduo muda ao longo de sua vida? Como as mudanças são difundidas na comunidade de fala? Como elas se movem de uma comunidade à outra? Como a mudança que continua na mesma direção durante longos períodos de tempo é transmitida de uma geração à outra? O problema da transição reflete uma preocupação em traçar o percurso do desenvolvimento lingüístico – a passagem de um estado A para um estado B. Foram estipuladas três etapas principais da mudança: (i) um falante aprende uma forma alternativa; (ii) as duas formas convivem na competência do falante; (iii) uma das formas se torna obsoleta. Esse processo não envolve mutação simultânea das gramáticas de um grande número de falantes, mas sim transições contínuas em termos de freqüência e valores das formas, o que indica que as relações estruturais dentro da língua não possuem caráter imediato e categórico. A mudança pressupõe um período de variação, em que as formas disputam espaço até que a vencedora seja eleita. Por isso é que Weinreich, Labov & Herzog (1968:188) clamam que “nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura lingüística envolve mudança, mas toda mudança envolve variabilidade e heterogeneidade.” PROBLEMA DO ENCAIXAMENTO: Como as mudanças se encaixam no sistema das relações lingüísticas e extra-lingüísticas das variantes? Que outras mudanças estão associadas com uma certa alteração de um modo que não possa ser atribuído à coincidência? O problema do encaixamento aborda a relação entre a mudança e seus contextos interno e externo, os quais, conforme observado

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através de análises quantitativas, mostram ser independentes entre si,88 salientando a necessidade de se dividir o problema em duas partes distintas: (a) Encaixamento da variável na estrutura lingüística: busca-se descrever a estrutura lingüística em que as formas em mudança estão situadas; (b) Encaixamento da variável na estrutura social: identificam-se grupos sociais aos quais as formas vinculam-se. (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968:185) PROBLEMA DA AVALIAÇÃO: Como os membros de uma comunidade de fala avaliam uma mudança particular? Avaliações negativas podem influenciar o curso da mudança? Ela pode ser detida, congelada ou revertida como conseqüência do estigma social? O nível de consciência dos membros da comunidade de fala é uma característica essencial da mudança lingüística que deve ser considerada em sua análise. (cf. Weinreich, Labov & Herzog, 1968:185; Labov, 1982:29) PROBLEMA DA IMPLEMENTAÇÃO: Por que uma dada mudança lingüística ocorreu em certa época e lugar? O problema da implementação está ligado às causas da mudança: os indicadores obtidos pelos estudos sociolingüísticos apontam como forças situadas na base da mudança fatores externos à estrutura lingüística: o encaixamento da língua na matriz mais ampla das relações sociais. A implementação relaciona-se aos demais problemas: para se entender as causas da mudança, é necessário saber em que parte da estrutura social e da estrutura lingüística a mudança se originou (encaixamento), como ela se espalhou para outros grupos sociais (transmissão) e que grupos lingüísticos e sociais mostraram maior resistência a ela (restrição, avaliação). (cf. Labov, 1982:29, 77; Labov, 1994:03) 2.5 PASSOS METODOLÓGICOS DE UM ESTUDO VARIACIONISTA Um dos principais objetivos da sociolingüística variacionista é a descoberta dos padrões da distribuição de modos alternativos de dizer a mesma coisa, mapeando as restrições sociais e lingüísticas sobre a variação para que se possa estabelecer princípios universais de variação e mudança. Com o intuito de levar essa tarefa a cabo, o primeiro passo é a definição do envelope de variação, isto é, do conjunto de escolhas lingüísticas à disposição de um falante que está respondendo a um dado estado de coisas. Nessa etapa, são identificadas a variável dependente e suas formas variantes (cf. Labov, 1978:05). O próximo passo é o levantamento de hipóteses que possam explicar as tendências sistemáticas do fenômeno variável em questão e a operacionalização de tais hipóteses através da elaboração de grupos de fatores condicionadores ou variáveis independentes de natureza lingüística e social. Grupos de fatores condicionadores em linha com diferentes hipóteses podem sugerir explicações distintas para um dado fenômeno, desde fisiologia da articulação a universais sociais ou biológicos. A seguir, os dados relevantes são coletados, codificados e submetidos a tratamento estatístico, pelo qual freqüências e pesos relativos ou probabilidades são associados aos diversos fatores das variáveis independentes, a fim de que se possa medir a influência que cada um destes fatores exerce sobre a presença de uma ou outra das variantes. De posse dos resultados quantitativos, busca-se verificar se as hipóteses iniciais foram confirmadas e, no caso de hipóteses de natureza diversa, qual ou quais representam a melhor explicação. Ato contínuo, procura-se encaixar a variável no sistema lingüístico e social da comunidade de fala e procede-se a uma 88 Rodadas estatísticas não costumam evidenciar influências dos resultados para grupos de fatores lingüísticos sobre os resultados para grupos de fatores sociais ou vice-versa, embora seja comum haver relação entre os grupos de fatores sociais (cf. Labov, 1994:03).

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projeção histórica da variável na estrutura sociolingüística. (cf. Tarallo, 1985:10-11; Scherre, 1996:43-44) A partir dos resultados quantitativos referentes às circunstâncias lingüísticas e não-lingüísticas apropriadas ao uso de cada variante, pode-se formular regras gramaticais variáveis - partes integrantes do sistema lingüístico de probabilidades - e averiguar se o fenômeno da mudança lingüística está se manifestando. Vamos a ela... 2.6 MUDANÇA LINGÜÍSTICA Inovações lingüísticas individuais são constantes, mas a mudança só ocorre se uma nova forma for adotada pela comunidade de fala: seus membros devem aceitá-la como parte do sistema lingüístico arbitrário, usando-a ou ao menos compreendendo-a quando é usada por outros membros da comunidade de fala. A difusão social da mudança é a mudança em si (cf. Labov, 1972a:23; Kerswill, 1996:178). Não é a regra que muda, mas as restrições ambientais internas a ela, que são expandidas ou contraídas na medida em que a inovação é disseminada pela estrutura lingüística e/ou extra-lingüística. O ponto de partida são os ambientes que mais favorecem a mudança e daí para situações menos favoráveis, percurso gradual que se manifesta na forma de alterações nas freqüências de aplicação da regra em cada ambiente lingüístico e social. Mudança, portanto, é questão de freqüência (cf. Labov, 1994:43). Estudos variacionistas têm revelado que as regras variáveis tendem a se tornar categóricas, generalizando-se para o maior número possível de contextos lingüísticos e sociais, embora haja casos em que a variação se mantém por períodos de tempo bastante longos sem indício algum de mudança – casos de variação estável (cf. Labov, 1972a:211). Podemos perscrutar a mudança lingüística tanto em amostras do passado quanto no que ouvimos a nossa volta, pois a língua é constituída por variações e alterações que cruzam períodos de tempo. O quadro de inter-relações lingüísticas delineado hoje é reflexo dos usos anteriores dados a língua por seus usuários e é a base dos usos futuros, em um contínuo de pequenos incrementos inovadores levando a grandes mudanças. Os indícios de mudança lingüística são buscados pela sociolingüística variacionista em estudos que envolvem dados de tempo real e/ou de tempo aparente, isto é, dados de épocas passadas - o uso em tempo real; ou dados atuais, relacionando-se as variantes à idade dos informantes - o uso atual como reflexo do uso passado e fonte dos usos futuros (Labov, 1994). É a diferença e a complementariedade entre esses tipos de abordagem à mudança que recebe atenção na próxima seção, a qual também destaca, em suas subseções, o problema da transmissão da língua e o princípio do uniformitarismo. 2.6.1 MUDANÇA EM TEMPO APARENTE E MUDANÇA EM TEMPO REAL Como já foi apontado na seção 2.1, a variação lingüística pode ser um comportamento sincrônico estável, mas também um sintoma de mudança em andamento, caso em que a existência de duas ou mais formas desempenhando um mesmo papel representa um estágio do desenvolvimento da língua. Do ponto de vista da comunidade de fala, a mudança geralmente evolui de modo irreversível em progressão geracional: a forma inovadora aparece na fala dos filhos, apesar de ausente na fala dos pais, ou, mais comumente, uma forma que ocorre com baixa freqüência na fala dos pais ocorre com mais freqüência na fala dos filhos e mais ainda na fala dos netos. Gerações sucessivas apresentarão proporções maiores de uso da variante inovadora, a qual poderá se tornar

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categórica ou quase, com a eliminação ou redução radical do uso das variantes mais antigas com o passar do tempo (cf. Chambers, 1995:187). Assim sendo, se a mudança estiver de fato em jogo, possivelmente haverá uma correlação significativa entre a idade dos informantes e a variável estudada, mapeando-se diferenças nas freqüências e pesos relativos das variantes entre falantes mais jovens e mais velhos de uma mesma fatia sincrônica, o que é conhecido como mudança em tempo aparente. O esperado é que a recorrência das variantes inovadoras aumente à proporção que diminua a idade dos informantes, do que resulta uma distribuição linear crescente ou decrescente: de um lado da escala, temos a faixa etária mais jovem, com as freqüências de uso mais elevadas, e do outro a faixa etária mais velha, com as freqüências de uso mais baixas ou mesmo com freqüência zero. Mas por que as inovações são associadas às pessoas jovens? Embora não seja vetado aos adultos disseminarem inovações, estudos sociolingüísticos têm revelado que os grandes responsáveis pela difusão da mudança são pessoas de faixas etárias mais jovens. A explicação fornecida para a relação íntima entre juventude e mudança lingüística inspira-se nas transformações sofridas pelas relações sociais ao longo da história de vida do indivíduo. As faixas etárias representam diferentes estágios da relação do indivíduo com a língua, vinculados a afiliações a grupos de referência e socialização distintos, estágios que, segundo Chambers (1995:159), podem ser sintetizadas como três períodos formativos: (i) na infância, as crianças desenvolvem o vernáculo sob influência da família e dos amigos; (ii) na adolescência, as normas vernaculares sofrem aceleração sob pressão de redes densas; (ii) no início da vida adulta, a estandardização tende a se intensificar e, uma vez que os traços do socioleto estejam estabelecidos na fala, eles permanecem relativamente estáveis ao longo da vida. É no período da adolescência que as pessoas comumente sentem necessidade de, por um lado, distinguir-se dos adultos e, por outro, aproximar-se de companheiros da mesma idade ou um pouco mais velhos. No processo de busca da identidade, variantes lingüísticas já existentes na região podem ser tomadas como marcas identitárias, dando-se preferência especialmente para as formas estigmatizadas, que fogem da norma padrão. Os jovens incorporam tais formas a seu vernáculo e tendem a super utilizá-las. A possibilidade de estudo da mudança em tempo aparente depende da validade do pressuposto de que o sistema lingüístico individual é estável, isto é, o vernáculo de um indivíduo de uma certa faixa etária permanece essencialmente o mesmo a despeito da passagem dos anos, o que permite que se compare a fala de pessoas de diferentes idades para observar diferentes estágios da língua. A hipótese é que a aquisição da língua é finalizada até o final da adolescência e se mantém intacta pelo resto da vida, do que resulta que, ao analisarmos a fala de uma pessoa de sessenta anos hoje, temos um reflexo do sistema que estava sendo adquirido por volta dos anos quarenta, ao passo que a fala de uma pessoa de quarenta anos nos desvela os anos sessenta. (cf. Labov, 1994:28, 1981:181; Silva & Paiva, 1996:353) As inovações incorporadas ao vernáculo e super generalizadas na adolescência podem fixar-se como parte do sistema dos falantes e prosseguir com eles pelo resto da vida, e são passíveis de sofrer aceleração ainda maior por parte das gerações de adolescentes posteriores, o que resulta em alterações progressivas na gramática da comunidade de fala. Urge mencionar que duas interpretações podem ser dadas para casos de distribuição etária estratificada linearmente: a já discutida mudança em progresso e a gradação etária (age-grading). Neste segundo caso, não há mudança, mas sim um tipo de variação estável89 caracterizada pelo fato

89 A gradação etária é um tipo de variação estável, mas não o único. Em grande parte das situações de estabilidade, os grupos etários usam as variantes com freqüência similar, distribuição que se mantém idêntica com o passar das décadas e mesmo séculos (cf. Labov, 2001:85).

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de que os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida, mas a comunidade como um todo não é afetada por essa mudança. É o caso da gíria, por exemplo: os mais jovens usam mais, o que não significa que a quantidade de gíria vá aumentar diacronicamente entre a população. À medida que os jovens amadurecem, ao invés de manterem esse traço, abandonam-no, o que faz com que sua taxa mantenha-se constante na comunidade (Labov, 1994:353). Diferentemente, nos casos de mudança em curso, indivíduos estáveis carregam sempre consigo uma dada taxa de uso das variantes - maior a cada geração de falantes -, o que resulta em mudança lingüística com o passar do tempo. Quaisquer outras escalas crescentes ou decrescentes resultantes da distribuição de fatores lingüísticos e sociais podem auxiliar no mapeamento da mudança em progresso, pois o aumento de freqüência de uma das variantes em um ou mais ambientes pode estar sinalizando sua extensão para um maior número de setores do sistema lingüístico e/ou da comunidade de fala. Conseqüentemente, embora a pista mais visada pelos detetives em busca da mudança lingüística seja a idade, os demais grupos de fatores também são relevantes – e se a idade e seus companheiros apontarem para a mesma direção, teremos indícios fortes de que uma mudança está acontecendo diante de nossos olhos. A identificação dos padrões de mudança por meio da análise da distribuição das variantes no tempo aparente é uma etapa importante na investigação da variação lingüística – e às vezes a única possível (cf. seção 2.6.1.2). Entretanto, se combinados à abordagem em tempo real, os prognósticos de mudança em andamento tornam-se mais confiáveis, precisos e refinados. A pesquisa em tempo real exige o rastreamento do processo histórico de mudança em diferentes épocas da língua (décadas ou séculos atrás), valendo-se o pesquisador de amostras orais ou, se elas não estiverem disponíveis, amostras escritas de diferentes sincronias, comparando os usos dados a uma certa variável ao longo do tempo. Análises em tempo real também constituem um importante auxílio para distinguir entre mudança em progresso e gradação etária, pois permitem observar se a variante inovadora aumentou a freqüência na comunidade com o passar do tempo “real” ou se continua mais restrita à fala dos adolescentes, configurando um caso de gradação etária. 2.6.1.1 TRANSMISSÃO DA MUDANÇA LINGÜÍSTICA Embora possamos visualizar a mudança no recorte em tempo aparente, revelador da maior recorrência das variantes inovadoras a cada nova geração de falantes, não devemos supor que as alterações se desenrolam na forma de saltos geracionais: não é o caso de os pais usarem variantes particulares com certa freqüência e os filhos repentinamente usarem-nas com freqüência distinta: mudança é fenômeno gradual! A explicação de Labov acerca das etapas da evolução da mudança está embutida em sua explicação acerca da transmissão da língua. A língua - o vernáculo - é adquirida pelas crianças com base na fala dos pais, em uma primeira etapa de aprendizagem, mas depois é re-organizada sob influência do grupo de pares - indivíduos de mesma idade ou um pouco mais velhos. Desse modo, a aquisição lingüística é, em grande parte, uma transmissão de traços fonéticos e morfossintáticos de núcleos adolescentes e pré-adolescentes mais velhos a mais jovens, sobrepondo-se à base lingüística transmitida pelos pais. O período de vida em que os fenômenos de variação se manifestam pela primeira vez na fala dos indivíduos ainda não foi estabelecido, mas tem sido apontado que falantes bem jovens podem representar a língua de sua comunidade, fornecendo em sua fala indícios acerca do estado

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atual do vernáculo e da direção de possíveis mudanças lingüísticas. Segundo Labov (2001:418), as crianças emparelham a variação dos pais já em torno de três a cinco anos de idade, mostrando probabilidades semelhantes de uso das variáveis. Nessa época, as crianças já identificaram a existência de variáveis e a distribuição percentual de suas variantes, bem como identificaram categorias lingüísticas e sociais que condicionam a língua adulta e derivaram suas probabilidades. A transmissão da mudança pega carona no processo de transmissão da língua, ocorrendo numa trajetória constante e regular de inovações adicionadas ao vernáculo adquirido dos pais (no geral, inovações no sentido de aumento da freqüência de formas já existentes na comunidade). Cada criança reflete o nível de sua aquisição inicial, isto é, seu sistema é uma projeção regular do sistema de seus pais, acrescido de alterações advindas do contato com irmãos mais velhos e outras crianças um pouco mais velhas na comunidade local, processo que costuma ter início entre as idades de quatro e oito anos e tende a continuar até o final da adolescência. A mudança lingüística é normalmente levada adiante de modo mais veloz pelos adolescentes - que resistem a conformar-se com as práticas institucionais adultas e se valem da língua como forma de estabelecer identidade própria - e é posteriormente disseminada na comunidade mais ampla pelos indivíduos que adotaram os símbolos de não conformidade durante a adolescência e se moveram na cadeia sócio-econômica em direção a níveis mais elevados (op. cit.: 437). Não há, portanto, uma ruptura nas freqüências de uso das variantes entre as diversas gerações de falantes, mas pequenos incrementos constantes nas gramáticas individuais até a fase de estabilização do sistema: a experiência de cada grupo mais jovem faz a mudança avançar, afastando-se ligeiramente do nível alcançado pelos falantes um ano mais velhos.90 Estudos recentes levaram a modificações na proposta de distribuição etária linear crescente ou decrescente como indicando mudança lingüística em tempo aparente, pois foi constatada a existência de um grande uso (um abuso!) de formas inovadoras próximo à idade de estabilização. A proposta de que há uma diminuição constante do uso das formas inovadoras à medida que aumenta a idade dos informantes é mantida, mas agora como válida apenas para os grupos etários adultos. Antes dessa diminuição constante, ocorre um pico de uso no período final da adolescência (em torno de 16 a 20 anos), o qual não foi previsto anteriormente. (op. cit.: 460) Outras reformulações também atingiram concepções da teoria variacionista, face a evidências provindas de diversos estudos sociolingüísticos realizados nos últimos anos. Por exemplo, Labov aponta que temos de ser cuidadosos ao assumir a perspectiva de análise da mudança em tempo aparente, pois o pressuposto de fixação do sistema lingüístico ao final da adolescência não é balizado em alguns casos. Exceções têm emergido de análises empíricas, envolvendo tanto mudança morfossintática quanto fonológica. Por essa razão, Labov (op. cit.:438) e Kerswill (1996:179) alertam que a concepção de estabilidade do vernáculo após a adolescência talvez precise ser revisada ou ao menos relativizada à cada situação de variação. Adultos em torno de trinta a quarenta anos aparentemente perderam grande parte da habilidade de mudar seu sistema lingüístico, mas ainda assim não se pode afirmar que possuam um sistema rígido e imutável.91 Quando os adultos modificam seus vernáculos, acompanhando pari passu a evolução lingüística na comunidade de fala, a mudança não pode ser detectada por meio de uma metodologia de tempo 90 Labov (2001:446-465) apresenta um modelo logístico de incremento da mudança fonética ao longo de períodos de tempo hipotéticos (por exemplo, um século), ressaltando a gradualidade ponto a ponto - ano a ano! - do avanço da mudança na gramática da comunidade de fala. 91 Tomemos um exemplo. Modelos de mudança sonora definiram o período final para a estabilização fonológica do sistema lingüístico como ocorrendo aos dezessete anos de idade. Contudo, Norberg & Sundgren (1998 apud Labov, 2001:447) observaram que, no caso de algumas variáveis fonológicas investigadas por eles, adultos jovens continuavam a avançar a mudança no início dos vinte e mesmo trinta e quarenta anos.

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aparente, pois as freqüências de distribuição das inovações serão semelhantes ao longo das faixas etárias, ao invés de mais intensas entre os jovens. Não é o que ocorre na maioria dos casos de mudança já estudados, mas as exceções exigem cautela por parte do analista, que não se deve conformar a evidências unicamente derivadas da distribuição etária. 2.6.1.2 ONTEM ESPELHA HOJE Para evitar o risco de chegarmos a inferências erradas acerca de mudança em progresso, deveríamos não apenas nos pautar na estratificação etária, mas também perscrutar amostras de tempo real. Todavia, a interpretação de dados de sincronias anteriores é difícil, pois as informações sobre partes vitais do passado das línguas comumente são escassas. Não raro perdem-se no tempo aspectos do sistema de entonação, detalhes da pronúncia, diferenças dialetais, de classe social e de estilo, ao que se adiciona o fato de que, em muitos casos, dados antigos sequer estão disponíveis (cf. Labov, 1981:179). Em virtude do caráter imperfeito dos registros históricos, 92é possível buscar fundamentação nos dados do presente para analisar a mudança lingüística, pois este costuma ser o período de tempo mais revelador para a investigação de qualquer fenômeno: é sobre o material lingüístico de hoje que temos condições de fazer observações mais diretas, completas e numerosas, e, a partir delas, tecer hipóteses sobre como deve ter sido no passado e analisar os dados antigos a que temos acesso com base nessas hipóteses. A utilização do presente para explicar o passado filia-se ao princípio do uniformitarismo, defendido por Whitney (1867) e Brugmann (1897) (cf. Janda, 2000) e retomado por Labov (1972a, 1982, 1994). Segundo o princípio do uniformitarismo, os eventos e processos lingüísticos que acontecem ao nosso redor são do mesmo tipo dos que se desenvolveram em épocas passadas, o que quer dizer que estudos de mudança lingüística em progresso são capazes de elucidar traços do passado que, de outra forma, ficariam fora do alcance dos olhos. Eventos recentes, como a ampliação da alfabetização, da mídia, da comunicação globalizadora e da exposição de um maior número de pessoas à língua padrão não teria alterado os processos básicos de mudança que afetam os sistemas lingüísticos a milhares de anos, pois sua uniformidade deriva dos constantes da fisiologia e da psicologia humanas e das relações comuns às comunidades de fala e do seu encaixamento numa matriz espacial e temporal mais ampla. No entanto, Labov (2001:35) aponta que, se o passado espelhasse com exatidão o presente, seria desnecessário nos valermos do presente para entendê-lo. A ocorrência da mudança lingüística testemunha que os estágios anteriores da língua eram distintos dos estágios atuais, não somente em relação a formas e regras, mas também a como essas formas e regras eram aplicadas. Embora os padrões gerais de mudança apreendidos dos dados de hoje devam ser os mesmos (por exemplo, os processos de mudança são graduais; indivíduos mais jovens tendem a levar as inovações adiante; mulheres tendem a preferir as formas mais ligadas à língua considerada culta, etc), há especificidades ligadas a cada época que não podem ser desprezadas. A solução reside não apenas em lermos o ontem através do hoje, como prega o princípio do uniformitarismo, mas na abordagem de cada caso de variação e mudança sincrônica e/ou diacrônica empregando diferentes métodos e confiando mais e mais nos resultados à proporção que as informações provindas de

92 Conferir o capítulo IV para maior aprofundamento da questão e exposição dos problemas encontrados na busca dos conectores seqüenciadores em épocas passadas.

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diversos mananciais convergirem.93 A busca de convergência entre resultados obtidos por meio de diferentes métodos e abordagens é a típica solução laboviana, válida também para distinguir entre situações de mudança em andamento e situações de gradação etária, e para auxiliar a definir se falantes adultos foram atingidos ou não por uma mudança particular. 2.7 ESTENDENDO A TEIA DA VARIAÇÃO: “TEMOS EM TODAS” Nesta seção, recebe destaque o aumento de escopo dos estudos variacionistas que vem ocorrendo desde a década de 60. A variação começou a ser investigada no âmbito da fonologia, mas hoje também podem ser tomados como objetos variáveis fenômenos morfossintáticos e discursivos. Um dos desdobramentos dessa extensão desembocou na proposta de uma linha de pesquisa que combina pressupostos da sociolingüística variacionista a pressupostos funcionalistas, inclusive no que diz respeito ao processo de gramaticalização – o sociofuncionalismo. Finalizando a seção, é apresentada e debatida a opinião de Labov (1987, 1994) em relação a explicações funcionais que têm sido dadas aos fenômenos de variação e mudança. 2.7.1 DA FONOLOGIA À MORFOSSINTAXE AO DISCURSO Nos estudos variacionistas iniciais, desenvolvidos no campo fonológico, Labov realiza uma das principais descobertas da sociolingüística, ao comprovar que diferenças de formas (diferenças de pronúncia, como em dancing e dancin’ ou nos exemplos do português tia e t∫ia), consideradas até então como imotivadas e livres, são portadoras de significação social ou estilística, isto é, têm seu uso condicionado por fatores sociais como sexo, idade, escolaridade, e/ou pelo estilo (uma escala de estilos de mais a menos formal). As formas variantes são idênticas quanto à referência e valor de verdade, mas se diferenciam quanto à significação social e/ou estilística. Incentivado pelo êxito obtido com a aplicação dos métodos de análise quantitativa, Labov (1972a:247) propôs a extensão e aplicação da metodologia variacionista para fenômenos morfológicos e sintáticos, afirmando que o estudo da variação não deve permanecer restrito à fonologia se a pretensão é dar contribuição significativa para a descrição e explicação da língua. Uma vez comprovada a existência da variação sistemática e quantificável na fonologia, por que não averiguá-la em outros níveis lingüísticos? No entanto, as tentativas de extensão do modelo para além da fonologia encontraram fortes dificuldades na questão da manutenção do significado das formas variantes. Em níveis não fonológicos, seria possível postular que dois ou mais elementos constituem várias maneiras de dizer a mesma coisa? Não seria o caso de termos duas ou mais formas diferentes dizendo coisas diferentes? Dentre as tentativas de extensão, destaca-se o estudo pioneiro de Weiner & Labov (1977), que toma como variável construções sintáticas, admitindo como variantes a passiva sem agente e a

93 Labov (1972a) propôs diferentes tipos de abordagens metodológicas a fenômenos de variação e mudança, dentre os quais pesquisas de macro e de micro escala (isto é, em comunidades lingüísticas amplas ou mais restritas); seleção aleatória de informantes (por exemplo, em listas telefônicas ou lojas de departamento), a que se segue a elicitação rápida de formas (nos casos exemplificados, por meio telefônico ou por meio de perguntas dirigidas a atendentes das lojas); testes de subjetividade. A expectativa é que, quando são aplicadas diferentes abordagens a um mesmo caso de variação, os resultados convirjam em conclusões semelhantes.

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ativa com pronome sujeito genérico (The closet was broken into e They broke into the closet). Weiner & Labov não constatam grandes influências de fatores sociais no uso das variantes, que é motivado fundamentalmente por grupos de fatores sintáticos. Esse resultado coloca em destaque os condicionadores lingüísticos em detrimento dos sociais. A partir do trabalho de Weiner & Labov sobre as passivas, Lavandera (1978:07-08) instaura um debate, apontando que variantes não fonológicas têm cada uma um significado referencial distinto. Uma vez que a variação pressupõe duas ou mais maneiras de dizer a mesma coisa, seria inviável sua ocorrência além da fonologia. Em resposta, Labov (1978:02) afirma que unidades não fonológicas possuam cada uma um significado, se ele for entendido como se referindo a “estados de coisas”: dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas possuem o mesmo significado. Caso nos restrinjamos à essa definição, teremos facilitado o tratamento de formas além da fonologia: variantes referindo-se ao mesmo estado de coisas poderão ser tratadas dentro da teoria variacionista como formas equivalentes, mesmo que apresentem nuanças de sentido ou traços pragmáticos distintos. Os estudos variacionistas também estenderam suas garras em direção ao discurso, buscando descobrir padrões estruturais em níveis maiores que o sentencial, bem como os fatores condicionadores por trás desses padrões. Temos um exemplo em Labov (1972b), que extraiu uma das partes constituintes de uma narrativa - a avaliação - do contexto maior em que se inseria, para compará-la com outras estruturas do mesmo tipo, extraídas de outras narrativas.94 A abordagem variacionista ao discurso aplica alguns dos mesmos instrumentos e conceitos empregados no estudo da variação nos níveis fonológico e morfossintático: os textos são segmentados em fatores discretos e mutuamente exclusivos que podem ser codificados, contados e comparados. Schiffrin (1994:29) aponta que o discurso que emana de tais procedimentos é apenas uma unidade maior que a sentença, situada no topo de uma hierarquia de estruturas lingüísticas, todas sujeitas ao mesmo tipo de princípios e regras. Entendendo o discurso dessa forma, é possível descrever a língua de um modo unificado desde o fonema até suas partes mais amplas. 2.7.2 ABORDAGEM SOCIOFUNCIONALISTA À VARIAÇÃO E À MUDANÇA A aplicação da análise variacionista a níveis maiores que o sentencial teve como conseqüência o afrouxamento do critério pelo qual formas costumavam ser agrupadas, sendo estipulado como quesito para a seleção das variantes uma função discursiva - elas devem ter a mesma função -, ao invés do significado. O caso da estrutura avaliativa supracitado, por exemplo, envolve uma função, qual seja tecer uma avaliação sobre os eventos narrados. Contudo, não foi apenas no nível do discurso que a opção por tomar como objeto uma função pareceu uma excelente saída. A exigência de que as formas variantes tivessem o mesmo significado em âmbitos morfossintáticos tornou-se um problema teórico-metodológico desafiador, obrigando o pesquisador a listar, a cada estudo, uma série de justificativas acerca do que estava entendo por significado e a realizar inúmeros recortes para excluir contextos em que as formas apresentavam-se com pequenos matizes diferenciadores. Substituindo-se o requerimento de equivalência referencial por equivalência 94 A avaliação é a parte da narrativa em que são acentuados diferentes aspectos da experiência reportada de modo a revelar o ponto central da história. Geralmente representa a conclusão, no final da narrativa, mas pode aparecer em quaisquer outros momentos. Um exemplo é o trecho sublinhado a seguir: One of the most dramatic danger-of-death stories was told by a retired postman on the Lower East Side: his brother had stabbed him in the head with a knife. He concludes: And the doctor just says, “Just about this much more”, he says, “and you’d a been dead.” (Labov, 1972b:387)

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funcional, mesmo aqueles fenômenos que implicassem diferenças semânticas poderiam ser estudados sob a égide da sociolingüística variacionista. Essa mudança no foco da sociolingüística facilitou o tratamento de variantes de mesma função, mas portando nuanças de significado distintas. Os diferentes matizes semântico-pragmáticos são controlados através dos fatores postulados como condicionadores do fenômeno, procedimento que revela em forma de freqüências quaisquer diferenças porventura existentes entre as variantes. Neste caso, o importante é distinguir se, de fato, os contextos semânticos ou discursivos apresentam-se como condicionantes da variação ou se atuam como determinantes da escolha, situação em que não há variação, apenas distribuição complementar, como lembram Paredes da Silva (1992:38), Mollica (1994:74) e Oliveira (1987:24). A extensão funcional permitiu à sociolingüística a investigação de diferentes formas de expressar uma função discursiva particular e a busca dos contextos favorecedores de cada forma, logrando-se descrever seus padrões de uso. Foram incorporadas hipóteses e explanações provindas de teorias funcionalistas, vindo à tona a possibilidade de que motivações funcionais atuassem sobre os fenômenos de variação, muitas vezes competindo com motivações de ordem estrutural ou mecânica. Uma vez que as estruturas da língua são tidas como servindo a funções mais gerais - cognitivas e comunicativas - as formas variantes estariam a serviço da maneira como o falante passa a informação para seu ouvinte, o que depende do tipo de situação comunicativa e do conhecimento compartilhado, entre outros (cf. Paredes da Silva, 1993:885). O movimento de intersecção entre a sociolingüística variacionista e o funcionalismo não se restringiu a uma aproximação superficial ou a uma utilização descompromissada dos procedimentos da sociolingüística como ferramenta metodológica a serviço de estudos funcionalistas (cf. Gryner, 1998:158): pressupostos teórico-metodológicos de ambos os quadros teóricos foram integrados. A busca de motivações funcionais para explicar os fenômenos de variação levou à proposta de que princípios funcionais - como a marcação - estão subjacentes à variação. A hipótese de que as variantes sofrem restrições impostas pela necessidade de adequação discursiva granjeou a inclusão, ao lado dos grupos de fatores condicionadores de natureza estrutural e social, de grupos ligados à organização do discurso, à interação e ao processamento da fala (cf. Paiva, 1998:91). Dentre eles, destacam-se tipo/gênero do discurso, status informacional, plano discursivo (figura/fundo), continuidade referencial, graus de conexão, entre outros.95 Como foram incorporadas à perspectiva variacionista noções discursivo-pragmáticas, o objeto de estudo adquiriu novas faces: não há mais necessidade de delimitar-se para fins de estudo um fenômeno de fronteiras gramaticais claras (passiva versus ativa, concordância no sintagma nominal ou no sintagma verbal, por exemplo), pois muitas funções são abrangentes, transpassando múltiplos âmbitos. Pode-se averiguar, por exemplo, como um mesmo processo se manifesta através de construções distintas, inclusive considerando-se como variantes itens de diferentes domínios gramaticais. Seguindo essa linha de pesquisa, fenômenos como causa, reiteração, indeterminação, modalização, quantificação, condicionalidade, entre outros, começam a ser abordados sob uma perspectiva variacionista (cf. Paredes da Silva, 1992:40, 1993:884; Braga, 1992:96; Callou, Omena & Paredes da Silva, 1991:19), podendo se considerar aqui também a seqüenciação retroativo-propulsora. Escapa-se das grades da análise restrita ao nível oracional, já

95 Diversas propostas de grupos de fatores condicionadores de natureza lingüística e social são encontradas, por exemplo, em Braga (1992); Omena (1992); Paredes da Silva (1992); Macedo, Roncarati & Mollica (1996); Silva & Scherre (1996); na série de artigos de autoria de pesquisadores do PEUL/UFRJ publicados na Revista de Estudos da Linguagem v.7 da UFMG (1998).

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que não raro uma mesma função escorre por mais de um nível discursivo,96 mas não se é liberado da submissão ao rigor do tratamento quantitativo, exigência da metodologia variacionista. Essa orientação de pesquisa que aborda a variação lingüística sob o prisma da função discursiva das variantes e propõe explicações de base funcionalista para os resultados quantitativos pode ser considerada “sociofuncionalista”. Conforme Neves (1999:75), essa denominação surgiu no PEUL/RJ (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), cujos membros aderem aos estudos que acoplam diretrizes teórico-metodológicas da sociolingüística variacionista à proposta funcionalista, explicando tendências de uso como sendo reflexo da organização do processo comunicativo. Trata-se de “uma tentativa de transpor o plano descritivo da variação, buscando a razão de ser da coexistência de duas ou mais formas de dizer a mesma coisa”, segundo Paiva & Scherre (1999:210), que assim sintetizam o enquadramento discursivo/funcional do grupo PEUL, valendo-se de uma expressão empregada por Naro & Votre (1992): “uma análise lingüística no discurso”. Os estudos sociofuncionalistas acabaram envolvendo o fenômeno de gramaticalização, foco intenso dos interesses funcionalistas atuais, do que resultam implicações teóricas importantes. Busca-se, no fenômeno de criação e re-criação constante da gramática, luzes para a compreensão dos fenômenos de variação e mudança: por exemplo, uma variante pode ter um comportamento particular e sofrer certos condicionamentos lingüísticos e extra-lingüísticos porque se encontra em um estágio específico - mais ou menos gramatical - de seu processo de gramaticalização. 2.7.3 NÃO ÀS EXPLICAÇÕES FUNCIONALISTAS! Labov (1987) e (1994) não se compraz com a proposta de que princípios funcionais estejam subjacentes à variação. Em especial, o precursor da sociolingüística variacionista combate a hipótese funcionalista de que haveria uma tendência geral a que fosse evitada a perda de informação, do que decorreria que o apagamento variável de um segmento significativo seria fortemente restringido. Em outras palavras, a variação teria motivações funcionais se tendêssemos a preservar segmentos cujo desaparecimento resultasse em não marcação formal explícita de dada noção semântica. Com base em resultados empíricos, Labov afirma que tal predição não é confirmada. Por exemplo, o /s/ de final de palavras no português e no espanhol é apagado com maior freqüência justamente quando marca o plural em nomes e verbos, e não quando representa material não distintivo (lápis, dois, etc). Esse resultado seria anti-funcional porque o segmento está mais ausente nos casos em que tem uma função a desempenhar - a comunicação do significado plural -, o que leva Labov a concluir que os falantes não consideram a informação a ser transmitida quando escolhem entre explicitar ou não uma flexão gramatical. As motivações em jogo, fora possíveis influências sociais, seriam unicamente de natureza estrutural ou mecânica, destacando-se o paralelismo,97 segundo o qual os falantes que empregam logo de início uma marca gramatical tendem a continuar empregando-a, e se a apagam, tendem a repetir esse procedimento. Assim é que:

96 Tal é o caso da seqüenciação retroativo-propulsora, que atua do nível inter-oracional ao inter-tópico. 97 Discordando de Labov, Scherre (1998:50) afirma que o paralelismo é um fenômeno de natureza funcional, “não por causa de sua função dentro do discurso (...), mas, sim, porque esta variável só encontra sua explicação em forças de natureza externa à língua.” Para Scherre, por trás do paralelismo lingüístico está um princípio cognitivo geral que permite aos humanos agruparem coisas por conta de suas semelhanças formais e/ou funcionais: fatos, eventos, sensações, desejos, emoções, formas e significados lingüísticos, entre outros. Essa “aproximação por semelhança” é um fenômeno observado nas mais diversas situações: produção lingüística oral e escrita, jogo de futebol, desfile de moda e “na própria necessidade de o ser humano formar e proteger grupos.”

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“Devemos ser céticos em relação aos argumentos que afirmam explicar a mudança lingüística através dos desejos ou intenções dos falantes em comunicar uma dada mensagem. Não há razão para pensar que nossas noções acerca do que pretendemos ou das intenções que atribuímos aos outros sejam muito claras, ou que temos algum modo de saber se elas são claras.” (Labov, 1994:549) (grifos acrescentados)

Ou seja, Labov relaciona motivações funcionais a escolhas conscientes por parte dos falantes que levariam à preservação do significado. No entanto, a fala cotidiana é indubitavelmente fruto de seleções inconscientes feitas em grande velocidade, com pouco espaço para reflexões em busca do modo mais adequado de dizer. Como já vimos, as “escolhas” funcionais no âmbito da teoria de gramática emergente não se resumem a manifestações de desejos ou intenções “claras” do falante, e sim acontecem - de modo imperceptível à consciência - durante o processamento mental on-line quando da situação comunicativa, em resposta a um conjugado de motivações de ordens diversas – cognitivas, comunicativas, sociais -, não se resumindo à necessidade de manifestar de modo explícito certos significados. Até porque transmitir informações de modo totalmente claro e transparente é uma meta inatingível: o que dissemos e o modo como o dissemos dependem de nossas experiências anteriores com a língua, sempre distintas das experiências de nossos interlocutores. Somos interpretados não do modo como pretendemos e sim de acordo com as experiências de quem nos ouve. Outro problema é que Labov parece pensar em explicações funcionalistas de um modo bastante restrito, limitando-se a associá-las à questão do significado. Para Labov, a mudança que preserva o significado é de natureza funcional, e a que não o faz não o é. No entanto, nada impede que as motivações subjacentes aos casos em que o significado não é preservado sejam funcionais – cognitivas, comunicativas, sociais. Função é um termo polissêmico – pode ser usado em referência a significado, a motivações por trás do discurso, à própria finalidade de cada discurso.98Seria necessário considerar as mais diversas possibilidades, antes de colocar as explicações funcionalistas para escanteio em definitivo. E, especialmente, não é pressuposto do funcionalismo que o significado das formas tenha de ser preservado: os estudos voltados ao fenômeno de gramaticalização prevêem justamente o contrário. Em razão da necessidade de negociação e de adaptação de fórmulas lingüísticas (quando falante e ouvinte buscam convergir em uma gramática comum), as relações forma-significado são bastante instáveis. As considerações de Labov, contrárias a que explicações funcionalistas sejam levadas em conta no estudo da variação e da mudança lingüística, também são criticadas por Naro (1998). Para Naro, as línguas evoluem ao longo do tempo seguindo uma trajetória conhecida como ciclo funcional (cf. Sankoff, 1980 e Givón, 1995), cujos estágios não são igualmente influenciados por motivações funcionais (entendidas como cognitivo-comunicativas). Nos casos de variação como os analisados por Labov, em que os grupos de fatores estruturais e mecânicos são mais relevantes que os grupos funcionais, estamos lidando com fenômenos em estágio avançado de desenvolvimento diacrônico, situados nas proximidades do final do ciclo funcional. Nessa etapa, as motivações funcionais que determinaram o início e a continuidade do processo de mudança já não se mostram tão fortes, predominando restrições de ordem estrutural. Contudo, creio que mesmo em tais circunstâncias não podemos desprezar a funcionalidade subjacente a quaisquer usos da língua. Nada impede que a atuação de motivações estruturais receba explicação funcional.99 Se a gramática exige e é constituída 98 Como já mencionado, Nichols (1984) identifica cinco sentidos de função que transparecem freqüentemente em estudos funcionalistas, e aponta que grande parte dos estudiosos utiliza o termo em mais de um sentido ao mesmo tempo. 99 Um exemplo é a explicação dada ao fenômeno do paralelismo por Scherre (1998), conforme a primeira nota de rodapé da seção 2.7.3.

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pela repetição do uso de velhas fórmulas, é porque a regularidade e a automaticidade no uso dos itens e construções gramaticais advindos de nossas experiências anteriores facilitam e tornam mais veloz o processamento da fala a cada nova situação interativa.

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CAPÍTULO III – O LUGAR SOCIOFUNCIONALISMO: REFLETINDO SOBRE UM CASAMENTO TEÓRICO

“Language is, in other words, to be viewed as a kind of pastiche, pasted together in an improvised way out of ready-made elements.” (Hopper, 1987:143)

“(...) grammar is not fixed and absolute with a little variation sprinkled on the top, but is variable and probabilistic to its very core.” (Bybee & Hopper, 2001:19)

“We will be concerned with the forms of linguistic rules, their combination into systems, the coexistence of several systems, and the evolution of these rules and systems with time.” (Labov, 1972a:184)

“It (..) seems natural to ask whether we understand the forces that are responsible for the extraordinary transformations that affect all but a bare skeleton of abstract relations.” (Labov, 2001:03)

E ele: “Vou ficar.” “Não, tu não

vais ficar.” E ele: “Eu não vou.” Eu digo: “Não, tu não vais ficar.” (RO/FLP03:735)*100

O rio Baures (...) é navegável em botes de mediana grandeza pela distância de cem léguas, pouco mais ou menos: cheguei somente até êste termo porque os matos, por entre os quais desde então corre o rio formando várias bocas ou canais estreitos, me obstaram a continuação da viagem (...).101

Roma avya quynhentos e trîta e sete ãnos que fora pobrada quando estes Cepiõoes êtrarõ em Spanha com poder dos Romaãos. Entom eram senhores d’Espanha aquelles dous irmãaos de Anybal de que ja ouvistes falar. (p. 89) 102

(...) a pessoa já está vendo que terminou, então vai na pessoa que é encarregada, então diz a ela: “Está faltando uma caixa de tomate”, ou “está faltando vinagre” ou “está faltando tal coisa”. (ID/FLP07:469)*

“Ó, Dona T., a senhora- a senhora não deixa a chave aí, porque, às vezes pode- assim como eu vi, outros podem ver.” (TE/FLP16:822)*

Quando eu tinha doze anos, ela apareceu de novo. Aí eu já estava adulta. (est) Aí eu já estava bem grande, né? (RO/FLP03:157)*

Ela falou: “Ah, vai ser menino e o nome vai ser Mateus.” Aí eu disse assim: “Então, se for menina, tu bota o nome de Bárbara, porque eu gosto.” (DE/FLP06J:552)*

É igual a um vôlei mesmo, a gente saca, daí tem que levantar. Se sacar fo- assim dentro de um lugar aí, sai daí, (hes) sacar dentro da área, sai. (RA/FLP12C:13)*

Nem pai nem mãe não tem autoridade sobre os filhos. Daí vai se formando essa geraçãozinha cada vez mais- mais perversa, né? (AL/FLP22:118)

“Ah, vai fazer deveres.” “Não tem deveres.” Daí ela diz: “Ah, que escola é essa que nunca tem deveres, professor nunca passa deveres?” (DE/FLP06J:188)*

GRAMATICALIZAÇÃO ���� GRAMATICALIZAÇÃO ���� GRAMATICALIZAÇÃO VARIAÇÃO

100 Todos os trechos identificados com um asterisco foram extraídos de entrevistas pertencentes ao Banco VARSUL. 101 Coletânea de textos de Francisco José Lacerda e Almeida. (cf. anexo 2) 102 Crónica Geral de Espanha de 1344. (cf. anexo 2)

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0. INTRODUÇÃO Este capítulo é organizado em três seções principais. A primeira apresenta a postura epistemológica subjacente à constituição do quadro teórico que sustenta esta tese: a de que é possível haver a associação de pressupostos vindos de fontes distintas se ela for entendida como resultado de uma conversa travada em meio às diferenças. A segunda seção é dedicada à conversa na diferença entre o funcionalismo voltado ao estudo da gramaticalização e a sociolingüística variacionista, passando por vários tópicos, alguns mais conciliáveis, outros menos. A terceira seção é reservada para uma discussão acerca de alguns aspectos cujo diálogo parece difícil de ser levado a cabo a bom termo, trazendo propostas para dar conta de tais divergências. A par disso, é analisado o bate-papo desenvolvido até então, finalizando-se com a definição da perspectiva teórica assumida para guiar o estudo dos fenômenos de variação e de mudança no domínio funcional da seqüenciação retroativo-propulsora. 1. TECENDO UMA CONVERSA NA DIFERENÇA

A análise dos fenômenos de variação e de mudança no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis realizada nesta tese é norteada por um duplo enfoque, buscando integrar pressupostos e conceitos de duas teorias que vinham sendo desenvolvidas em separado no âmbito da lingüística até cerca do final da década de 80: (i) o funcionalismo lingüístico voltado ao estudo da gramaticalização, com especial atenção às propostas de Hopper, Heine e Givón, e (ii) a sociolingüística variacionista laboviana. As visões de variação e de mudança oferecidas por cada uma dessas perspectivas não são excludentes (ao menos ao primeiro olhar), como se verá em uma discussão mais detalhada a seguir, o que em muito facilita tentativas de integração. Para denominar o quadro resultante da combinação entre o funcionalismo e a sociolingüística, que toma a variação lingüística do ponto de vista da função discursiva e a explica com base em princípios funcionais, utilizo o nome sociofuncionalismo, nascido no PEUL/RJ (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua) (cf. Neves, 1999:75). Não basta associar preceitos de diferentes fontes teóricas por parecerem idênticos, semelhantes ou complementares, sem que se verifique se o que parece comum de fato o é e sem que se decida como lidar com as diferenças quando estas surgirem. Além disso, é importante que se estabeleça uma discussão mais refinada acerca do que fundamenta a junção e de quão profundamente esta se dá. Uma teoria é um pacote completo e talvez nem todos os seus pressupostos sejam encaixáveis em outra teoria, o que traz implicações para o casamento teórico que devem ser visitadas. É o todo do funcionalismo103 e do variacionismo que é abarcado pelo sociofuncionalismo ou apenas certos aspectos de cada um? Neste último caso, quais aspectos são priorizados e quais são deixados de lado? O peso de cada teoria é o mesmo ou uma delas predomina na tomada de decisões quando aspectos divergentes são encontrados? É possível angariar apenas o que interessa de cada teoria? O que motiva essas escolhas, no caso de se fazerem necessárias? São questões desse tipo - acerca do que permite e do que representa empecilho à existência da abordagem à língua chamada sociofuncionalismo e de quão intensa se dá a integração entre teorias em seu seio – que ganham relevo nas próximas seções.

103 Lembrando que existem várias vertentes funcionalistas, saliento que este estudo adota uma versão envolvendo a articulação de postulados advindos dos estudos de Hopper, Heine e Givón, conforme explicitado no capítulo II. No caso do casamento teórico com a sociolingüística variacionista, tais postulados poderiam ser total ou parcialmente levados em conta.

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A análise das compatibilidades e incompatibilidades entre propostas teóricas e metodológicas funcionalistas e variacionistas desemboca na discussão da própria natureza do sociofuncionalismo: onde podemos situá-lo? Trata-se de um casamento que ocorre dentro de uma das teorias ‘mães’? Nesse caso, temos duas possibilidades: (i) a teoria variacionista é estendida de modo a englobar aspectos funcionalistas, incluindo-se a gramaticalização, ou (ii) os estudos funcionalistas é que são alargados para englobar a teoria variacionista. Trata-se então de uma linha de estudo da sociolingüística variacionista ou de uma linha de estudo funcionalista? Uma revisão da lingüística laboviana ou uma revisão do funcionalismo? Ou temos em jogo uma terceira teoria, resultante de um novo olhar surgido da combinação de aspectos de um e de outro dos quadros fontes? Nesse caso, temos uma nova teoria sociolingüística, uma nova teoria funcionalista ou uma teoria situada no entremeio? Enfim, o locus do sociofuncionalismo dentro da lingüística exige maiores reflexões. Associações entre quadros teóricos são sempre matéria controversa. Kunh (1970 apud Borges, 1991:75-76) afirma que teorias são mundos distintos e incomensuráveis entre si, pois, ainda que a maioria dos termos sejam idênticos, seus significados ou suas condições de aplicabilidade são diferentes em cada teoria. Embora concorde com o fato de que os conceitos adquirem nuanças de significado distintas em cada teoria, Pires de Oliveira (1999:300-318) acredita na possibilidade de casamentos teóricos. Para a autora, “não é necessário que as diferenças sejam interpretadas como alternativas excludentes, como impossíveis de serem tópicos de uma conversa comum”, pois é “possível construir coerências onde há diferenças, porque os pesquisadores acertam os relógios de metalinguagens, compreendem os termos de uma teoria na linguagem da outra”. Dessa conversa na diferença resulta uma linguagem em comum, e é importante buscar entender como os termos das teorias – por exemplo, “variação”, “estratificação” – são compreendidos na conversa entre elas, tarefa que será levada a cabo em relação à associação dos quadros teóricos funcionalista e variacionista que guia esta pesquisa (cf. seção 2). A proposta de Pires de Oliveira para a interpretação da construção do conhecimento vale-se da explicação sobre o funcionamento da comunicação fornecida por Davidson (1986), que aborda a questão do malapropismo, isto é, o emprego de uma palavra no lugar de outra, esta semelhante à primeira quanto à pronúncia (como epitáfio e epíteto, por exemplo). Apesar da troca de palavras, o intérprete104 entende aquilo que o falante pretende dizer. Esse fato representa um empecilho para as teorias calcadas na necessidade de significados convencionais como requisito básico para se ter língua: se há um código lingüístico prévio, como entendemos malapropismos, caracterizados como usos não convencionais de palavras? Regras e convenções não constituem tudo o que é necessário para que a comunicação ocorra, uma vez que falham em fornecer a interpretação de palavras particulares quando enunciadas por um falante particular. Não permitem, por exemplo, a interpretação de malapropismos que, todavia, são interpretados. Face ao problema, Davidson (1996:433) propõe a noção de ‘primeiro significado’, definido como o significado ao qual o intérprete chega se interpreta as palavras do falante como este pretende, alcançando o que elas literalmente significam na ocasião da fala. Assim, significado é o emparelhamento do entendimento do intérprete com a intenção e a expectativa do falante, não pertencendo nem ao falante nem ao intérprete, pois é partilhado por ambos. Alertando que a convergência entre o que pretende o falante e o que entende o ouvinte nunca é total, já que há diferentes graus de emparelhamento possível, Davidson afirma que o importante é que se atinja convergência 104 Intérprete é o termo utilizado por Davidson em referência ao ouvinte/leitor, isto é, em referência àquele que interpreta o que é dito ou escrito.

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relativamente ao que significam as palavras no momento da interação. Intenções outras, como provocar o riso do intérprete, fazer com que ele perceba que se está mentindo, etc, podem ou não ser atingidas. Essa noção de significado permite dar conta da interpretação dos malapropismos: embora a palavra tenha sido trocada, se o intérprete alcançar o significado pretendido pelo falante, chega ao primeiro significado. Não são necessárias regras lingüísticas para sustentá-lo: ele é contextual, transitório e volátil, pertencendo ao plano do uso. Portanto, o esquema de comunicação de Davidson não supõe a necessidade de um código compartilhado antes do ato de comunicação, mas graus de convergência de interpretações (de intencionalidades). Para entender o falante, o intérprete não precisa conhecer significados convencionais prévios, mas sim se valer de informações contextuais e de informações que obteve em experiências anteriores de comunicação. Fatores como quem é o interlocutor (sexo, idade, grau de escolaridade, etc), qual é a natureza do relacionamento entre os participantes da troca lingüística (grau de intimidade, etc), conhecimento do mundo em geral, entre outros, são pistas para que o intérprete atinja o significado (e demais intenções, dependendo do grau de convergência possível) pretendido pelo falante. Em resumo, para Davidson, não é possível especificar independentemente de um contexto o que as palavras querem dizer, pois elas somente adquirem significado na situação de comunicação, pelo ajuste da interpretação do ouvinte com a intenção do falante, ambas fundamentadas nas experiências passadas e no contexto situacional do momento da interação. Chegando-se ao primeiro significado, alcança-se a primeira intenção do falante ao comunicar. Nesse caso, o significado foi entendido - foi partilhado -, independentemente de os significados individuais (frutos das experiências anteriores com situações de interação lingüística) serem distintos ou não e de possíveis falhas na interpretação de alguma das intenções do falante (se o intérprete rir quando deveria chorar, por exemplo). Os significados compartilhados são voláteis, podendo variar a cada ocasião, a cada tentativa de convergência. Ao aplicar a proposta de Davidson à questão da associação entre teorias, não é necessário que nos alinhemos nem à idéia de incomensurabilidade nem à de transparência entre os conceitos de dois modelos teóricos diferentes. É da conversa entre as teorias que emergem os ‘significados primeiros’, a interpretação convergente da qual resulta o conhecimento compartilhado que fundamenta o casamento. Como exercício epistemológico, é possível descrever a diferença entre conceitos “na conversa que se estabeleceu entre eles, verificando as mudanças de sentido que dali emergiram e o conhecimento ali gerado” (Pires de Oliveira, 1999:317). Para Pires de Oliveira (op. cit.:317), duas teorias não dizem o mesmo e nem é preciso que o façam: a metáfora mais adequada para o fazer científico não é a do projeto único nem a dos caminhos isolados, mas a de uma conversa na diferença – “quanto mais conversamos, mais os conceitos circulam, mais revisões são necessárias, mais conhecimento comum é gerado” e não é preciso que estejamos “atrás do mesmo objetivo final para produzirmos conhecimento compartilhado”. Não é difícil perceber que a proposta de Davidson para a interpretação de significados, passível de extensão para explicar como ocorre a interpretação de conceitos científicos quando da adjunção entre uma teoria e outra, possui similaridades com a proposta de gramática emergente de Hopper (1987, 1988). De acordo com essa proposta, as fórmulas gramaticais são adaptadas e negociadas a cada novo ato de fala, a partir das experiências anteriores de cada um dos interlocutores com situações comunicativas e da avaliação que eles fazem acerca do contexto presente. As experiências e as avaliações de cada indivíduo podem ser distintas em diversos graus, o que leva os interlocutores a se esforçar para ajustar as fórmulas gramaticais de modo a haver

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convergência entre a intenção do falante e a interpretação do ouvinte. Nessa perspectiva, temos uma gramática caracterizada como dinâmica e provisória, vinculada ao momento da interação. Os pontos em comum entre as propostas de Hopper e Davidson são vários: (i) a busca de convergência entre as experiências individuais anteriores de falantes e ouvintes/intérpretes para que se atinja o significado e para que a gramática emerja; (ii) o fato de tal convergência acontecer durante a situação de comunicação; (iii) o caráter dinâmico, instável e volátil do significado e da gramática, resultante de sua constante vinculação ao momento da fala – significado e gramática são aquilo a que se chega no instante mesmo da troca interacional. Essas semelhanças permitem considerar que a proposta de Hopper é, assim como a de Davidson, aplicável à questão da articulação entre teorias e à análise de como o conhecimento comum é gerado. Ambas implicam assumir a hipótese que conduz as discussões deste capítulo de natureza epistemológica: o casamento teórico entre o funcionalismo lingüístico voltado ao estudo da gramaticalização e a sociolingüística variacionista laboviana ocorre como uma conversa na diferença, pelo ajuste dinâmico, contextual e transitório entre conceitos e pressupostos teórico-metodológicos advindos de cada modelo ‘mãe’.105 O desenvolvimento do processo de associação de diretrizes teórico-metodológicas adquire feições algo diferentes a cada etapa, a cada reflexão feita, a cada estudo concluído sob a égide sociofuncionalista. Tal quadro teórico (uma vertente, uma linha de pesquisa, uma nova teoria?) resulta de um acúmulo de conhecimentos e de experiências provindas da adaptação e da negociação constantes durante a conversa que vem sendo travada no jogo de constituição, defesa e ‘utilização prática’ (isto é, a realização das pesquisas em si) do sociofuncionalismo. Nesse jogo, os pesquisadores traduzem conceitos de uma teoria para a outra, interpretando-os de modo semelhante a como procedem com os significados (segundo Davidson) ou fórmulas gramaticais (segundo Hopper) nas situações comunicativas - valendo-se de sua experiência passada e daquilo que cada novo contexto de conversa na diferença implica. Assim, conseguem interpretar os termos com os quais estão lidando, procurando chegar à convergência entre diferentes modos de ver. Por conseqüência, o casamento teórico não incorpora os conceitos de cada teoria ‘mãe’ exatamente como foram propostos originalmente, mas sim se fundamenta na interpretação dada a eles pelos pesquisadores casamenteiros que levam avante a junção. Não se trata da soma ou da combinação de pressupostos teórico-metodológicos de um modelo e de outro, e sim do estabelecimento de pressupostos que resultam da conversa entre os modelos. A cada conversa ocorrem novas convergências e os conceitos são alterados, definindo-se como seres voláteis, transitórios, filiados ao momento e, dessa guisa, sujeitos a re-interpretações e a revisões constantes. Em decorrência, na trajetória de avanço das discussões, o sociofuncionalismo constitui-se e reconstitui-se. Dito isso, podemos questionar:

� Os conceitos emergem diferentes da conversa entre o funcionalismo e a teoria variacionista em relação a como são entendidos em cada teoria individualmente?

� O modo como são interpretados especificamente nesta tese representa o quê em termos de negociações e de ajustes entre os quadros teóricos? Há matizes diferenciadores em relação a propostas sociofuncionalistas anteriores?

� Os conceitos do funcionalismo e da sociolingüística são todos conversáveis ou diferenças no núcleo duro das teorias ‘mãe’ impedem que se realizem certas

105 Semelhanças e diferenças entre a aplicação da proposta de Davidson e a de Hopper para estudos epistemológicos merecem uma análise mais aprofundada, pois ora somente são apontados alguns pontos em comum. Talvez seja o caso de se patrocinar outra conversa na diferença...

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adaptações, fazendo a conversa se calar quanto a alguns conceitos, que se recusam a bater um papo e daí saírem modificados? Ou seja, haveria diferenças inconversáveis, ao lado daquelas passíveis de serem tratadas em uma conversa na diferença? Em caso afirmativo, que destino pode ser dado aos conceitos divergentes no âmbito do sociofuncionalismo? É a questão das incompatibilidades mencionada no início deste capítulo. Veremos...

É possível que a dificuldade em negociar e ajustar pressupostos, se houver, esteja relacionada a um aspecto importante da conversa na diferença da qual derivam os casamentos teóricos, levantado por Pires de Oliveira (1999:317):

“Evidentemente a conversa é mais animada se os participantes tiverem clareza do seu lugar, da sua diferença com relação ao outro; e é daqui que se conclui (...): é muito importante o ponto de vista epistemológico e quanto mais clareza tivermos sobre ele mais produtiva pode ser a conversa, precisamente porque entendemos melhor nossos limites teóricos.”

No caso da proposição de casamentos teóricos, urge deixar esclarecida a posição assumida pelo pesquisador, posição que, no caso desta pesquisa, é discutida na seção final deste capítulo. A definição de onde se fala é vital, pois é dessa posição que é travada a conversa entre as teorias em associação e é daí que são interpretados e, conseqüentemente, modificados conceitos de ambas. Dependendo do lugar em que o pesquisador opta por situar a conversa, as convergências podem ser mais ou menos facilitadas, emergindo matizes teóricos diferenciados. Algumas questões importantes quanto à junção entre modelos científicos terão de ser deixadas de lado, por serem bastante amplas e, dessa forma, fugirem ao escopo do trabalho. Não será aprofundada uma discussão acerca do encaixamento de cada teoria ‘mãe’ e do próprio sociofuncionalismo no plano mais amplo dos paradigmas formal e funcional.106 Também não será realizada uma análise acerca da associação das propostas funcionalistas de Hopper, Heine e Givón para o estudo da gramática e da gramaticalização, que constituem em conjunto o quadro teórico funcionalista chamado a participar da conversa com a sociolingüística variacionista. Essa associação de postulados também merece reflexões, pois igualmente é fruto de uma conversa na diferença, em que os conceitos são manipulados e modificados através da negociação ‘on-line’, com a adaptação de experiências passadas com cada uma das propostas.107 Fica a sugestão. O ponto central da discussão epistemológica que aqui se propõe é bastante específico: são abordados apenas alguns conceitos e aspectos metodológicos - os que parecem estar mais diretamente envolvidos quando da associação de postulados para a constituição do quadro teórico sociofuncionalista -, em uma tentativa de observar como foi tramada a conversa que resultou na composição da base teórica desta tese. Questões mais amplas, como a conversa entre os paradigmas formal e funcional - subjacente à conversa entre a sociolingüística variacionista e o funcionalismo lingüístico voltado ao estudo da gramaticalização - são indiretamente refletidas na conversa entre os modelos. Na segunda seção a seguir, tem lugar a conversa na diferença, mostrando como os conceitos centrais de cada teoria – língua, estrutura, mudança, variação, princípios e motivações por trás da variação e da mudança, questões sociais envolvidas, dentre outros –, são interpretados e adaptados

106 Também não será dada atenção à relação entre tais quadros teóricos e duas visões de mundo constantes no pensamento ocidental – os paradigmas filosóficos e culturais cartesiano e hegeliano (cf. Figueroa, 1994). 107 Na seção 1.2.1 do capítulo II (intitulada “Gramaticalização – duas abordagens em conflito?”), por exemplo, é perceptível a realização de uma conversa na diferença que tenta alcançar a convergência entre as abordagens à gramaticalização de Hopper e de Heine.

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no decorrer da conversa. Também é analisada a negociação entre os aspectos metodológicos provindos de cada manancial teórico – o recorte dos dados, a questão quantitativa, o tipo de corpus a ser empregado, o controle de grupos de fatores lingüísticos e sociais, dentre outros. Tais pontos já foram apresentados no capítulo II, quando da descrição isolada de cada teoria, mas serão retomados a seguir para que observemos como se chegam às convergências das quais se parte para a análise da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis. Na terceira seção, recebem destaque aspectos aparentemente não conciliáveis de cada uma das teorias ‘mães’, propondo-se modos para lidar com eles. Por fim, é definida a posição que guia o estudo da seqüenciação – o espaço teórico em que foi assentada a leitura que faço de conceitos do funcionalismo e da sociolingüística em uma tentativa de convergência entre eles, com o intuito de contribuir com a reflexão acerca da constituição do sociofuncionalismo. Trata-se de um lugar possível para que a conversa seja tecida, não necessariamente idêntico ao lugar de onde falam outros pesquisadores sociofuncionalistas. 2. BATENDO UM PAPO TEÓRICO-METODOLÓGICO

Um modelo científico traz embutida uma infinidade de termos, conceitos e procedimentos metodológicos próprios, o que torna extensa a tarefa de comparar ponto a ponto todos os aspectos da conversa na diferença entre os estudos funcionalistas acerca da gramaticalização e a sociolingüística variacionista. Ademais, tal esforço parece desnecessário, pois uma pequena amostra da conversa nos permite observar as linhas ao longo da qual ela pode se desenrolar. Assim, foram selecionados alguns pressupostos teóricos e metodológicos que costumam receber grande destaque em cada uma das teorias ‘mãe’, cuja conversa é delineada nas próximas seções.

2.1 CONCEITOS PARTILHADOS? Certos postulados dos estudos de gramaticalização e da sociolingüística aparentam grande compatibilidade – inclusive sendo nomeados ou explicados pelos mesmos ou semelhantes termos. É essa proximidade que motiva o início da conversa, tornando-a possível em primeiro lugar. Vejamos alguns desses postulados:

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Quadro 9: Convergência entre postulados funcionalistas e variacionistas

(a) Prioridade atribuída à língua em uso, cuja natureza heterogênea abriga a variação e a mudança. (cf. Givón, 1995; Weinreich, Labov & Herzog, 1968, entre outros).108 (b) Como a língua não é dissociada de seu uso, os fenômenos lingüísticos que constituem o alvo das investigações são analisados em situações de comunicação real em que falantes reais interagem. (cf. Bybee & Hopper, 2001; Labov, 1972a/b). (c) A língua não é estática. Ao contrário, está continuamente se movendo, mudando e interagindo. (cf. Hopper, 1987; Guy, 1995) (d) O fenômeno da mudança lingüística recebe um lugar de destaque, e é entendido como um processo contínuo e gradual. (cf. Hopper & Traugott, 1993; Weinreich, Labov & Herzog, 1968) (e) A mudança é disseminada gradualmente ao longo do âmbito lingüístico e do âmbito social, como alterações contínuas em termos de freqüência. (cf. Hopper & Traugott, 1993; Labov, 2001) (f) Dados sincrônicos e diacrônicos são tomados complementariamente com o intuito de obtenção de prognósticos de mudança mais refinados e confiáveis. As diferentes fatias sincrônicas são entendidas como imbricadas, pois a mudança lingüística está sempre progredindo ao longo do tempo. (cf. Heine, 1991a; Labov, 1994). (g) Crença no princípio do uniformitarismo, segundo o qual as forças lingüísticas e sociais que agem hoje sobre a variação e a mudança são em princípio as mesmas que atuaram em épocas passadas. A melhor fonte para a análise lingüística são os dados atuais, uma vez que permitem a observação direta e mais completa de um maior número de ocorrências sobre as quais se pode tecer hipóteses acerca de fatias de tempo passadas. (Hopper & Traugott, 1993; Labov, 1972). Vale salientar que a idéia de uniformitarismo nos estudos de gramaticalização foi declaradamente emprestada de Labov, que é citado por Hopper & Traugott (1993:38) e Traugott & König (1991:193). (h) Análise de aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos. (cf. Bybee & Hopper, 2001; Labov, 1982) (i) A freqüência das ocorrências é destacada. Na perspectiva de Hopper, a freqüência importa para o estabelecimento e a manutenção da gramática, tendo papel em diferentes etapas do processo de gramaticalização: as formas fontes tendem a ser freqüentes; os itens gramaticalizados têm sua recorrência aumentada; a difusão lingüística e social da mudança pode ser captada através do aumento da freqüência de uso nos diferentes contextos, etc. Na perspectiva de Labov,109 o aumento de freqüência é compreendido como índice de difusão sociolingüística. Além disso, as variantes devem ter certa recorrência para que possam ser comparadas por meio do instrumental estatístico. (j) Há relação entre os fenômenos lingüísticos e a sociedade que usa a língua. A mudança espalha-se de forma gradual ao longo do espectro social, considerando-se fatores como região, geração, classe social, por exemplo. É comum haver diferença entre falantes mais velhos e mais jovens, no caso de mudança em progresso. (Lichtenberk, 1991; Androustopoulos, 1999; Weinreich, Labov & Herzog, 1968; Labov, 1972a/b)

108 Os pressupostos teóricos e metodológicos abordados neste capítulo são mencionados e/ou discutidos pelos teóricos funcionalistas e variacionistas em diversos trabalhos. Quando necessário, cito alguns deles, mas, por uma questão de espaço, apenas um ou dois de cada um dos quadros teóricos (geralmente, os estudos pioneiros e/ou os que mais se destacam). 109 Labov não costuma abordar a gramaticalização, mas reservou o volume 3 (Cognitive Factors) de sua coletânea Principles of Linguistic Change para tratar de princípios de mudança sintática, dentre as quais a gramaticalização (cf. Labov, 1994:01). Até o momento, foram publicados apenas o volume 1 (Internal Factors) e o 2 (Social Factors).

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Essa “partilha” de preceitos respalda a possibilidade de um duplo enfoque teórico, como o desenvolvido aqui. Cumpre alertar que muitos dos itens elencados acima podem ser semelhantes apenas superficialmente, uma vez que, quando se realiza a análise do bate-papo com fins casamenteiros entre outros aspectos vinculados a eles (como a visão de estrutura lingüística ou os princípios subjacentes aos fenômenos lingüísticos), diferenças podem emergir e aquilo que parecia ser o mesmo pode acabar parecendo distinto – talvez tratando-se de aspectos conciliáveis depois de muita conversa, talvez não. Todavia, os contatos iniciais se mostram frutíferos: a princípio, há diversos pontos em comum. Prossigamos... Embora ambos os modelos se dediquem ao estudo da mudança lingüística, há discordância no grau de abrangência do termo mudança. A variação sonora, ponto de partida dos estudos sociolingüísticos, é resultado de processos como analogia, empréstimo, fusão, contaminação, dentre outros. Para Labov (1972a:01), tais processos não devem ser o locus da pesquisa, pois a mudança é a disseminação da inovação ao longo da comunidade de fala e não a inovação e suas causas em si: “as freqüências variadas de uso em diversas faixas etárias, áreas e grupos sociais é o processo de mudança lingüística na forma mais simples que merece o nome.” (Labov, 1972a:23) Diferentemente, nos estudos de gramaticalização, mudança refere-se tanto ao surgimento das inovações quanto à sua propagação social. A mudança lingüística bem sucedida ocorre em duas etapas indissociáveis: (i) a emergência da inovação quando da negociação e adaptação de velhas fórmulas pelos interlocutores em situação de interação (processo que envolve, dentre outros, a atuação dos mecanismos de metáfora, metonímia, reanálise e analogia e alterações nos padrões de armazenamento mental da gramática), (ii) a difusão da mudança ao longo da sociedade. (Hopper & Traugott, 1993) Nesta tese, o termo mudança é aplicado como nos estudos de gramaticalização, abarcando todas as etapas do processo: desde o surgimento de uma função nova para uma forma, passando pela disseminação, em diferentes níveis sociolingüísticos, desse uso inovador, agora já mais rotinizado, e pelas alterações porventura acarretadas por tal processo de disseminação na distribuição sociolingüística das formas mais antigas que também exibem a mesma função, até a substituição (se ocorrer) de uma (ou mais) das formas antigas pela forma mais recente - ao invés de uma substituição radical, podemos ter também especialização da forma nova para certos contextos pertinentes ao domínio funcional, restando à(s) forma(s) antiga(s) outros contextos (cf. seção 2.2). O enfoque ora assumido é duplo: na análise do quadro das distribuições sociolingüísticas referente ao domínio da seqüenciação retroativo-propulsora, são buscados indícios da difusão nos âmbitos lingüístico e social e, ao mesmo tempo, indícios de que novidades possam estar emergindo ou vir a emergir futuramente (cf. seção 2.2). Assim, recebem destaque os mecanismos de mudança envolvidos nos desenvolvimentos por que passam e, aí, daí e então em sua trajetória de gramaticalização. Por serem mais pertinentes à etapa de surgimento do uso inovador do que a seu espraimento, mecanismos desse tipo não são considerados pela sociolingüística laboviana. Apesar das diferenças quanto ao escopo da mudança, saliento que ambos os quadros teóricos concordam com o fato de que a maioria das inovações é passageira. Apenas algumas são repetidamente re-utilizadas e, caso aceitas pela comunidade de fala, podem ser cada vez mais difundidas e tornar-se mais e mais regularizadas. (Thompson, 1993; Labov, 1972a)

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Ainda cabem alguns comentários em relação à questão social levantada no ponto (j) do quadro 9. Os estudos funcionalistas que lidam mais diretamente com traços sociais aparentemente encontram inspiração na sociolingüística variacionista, empregando seus conceitos e mesmo seus termos. Por exemplo, Androustopoulos (1999) cita estudos variacionistas para fundamentar seu estudo da gramaticalização na fala dos jovens – faixa etária em que pode haver um pico de mudança, conforme Labov (2001) e Kerswill (1996). É digno de nota que Androustopoulos adapta a expressão tradicional de Labov - “mudança em andamento” - para “gramaticalização em andamento”, tecendo, no seio dos estudos de gramaticalização, uma conversa com a sociolingüística. Dentre as duas teorias aqui em conversação, foi a sociolingüística variacionista a que primeiro se voltou para a face social da variação e da mudança, um dos pilares de sua constituição na década de sessenta, fundamentada na proposição de que era possível estudar a heterogeneidade lingüística levando em conta a relação entre a língua e a sociedade. Em contraste, os primeiros estudos de gramaticalização destacando considerações de ordem social de que tenho notícia datam da década de 90. Ressalte-se também que é a sociolingüística que até hoje investiga com mais profundidade a relação entre língua e sociedade, considerando-as diretamente vinculadas à mudança lingüística e chegando a incorporar restrições sociais às regras variáveis. Os estudos funcionalistas também relacionam a sociedade à mudança lingüística, mas geralmente inspirando-se nas hipóteses, achados e explicações da teoria variacionista, embora adaptando os termos (e lendo-os algo diferente, portanto) ao estudo da gramaticalização: pico de gramaticalização; gramaticalização em andamento, etc. Dessa guisa, no que tange ao papel da sociedade, a conversa na diferença entre as teorias ‘mães’ pode atingir facilmente a convergência: as considerações sociais feitas por uma delas já se baseavam nas considerações da outra antes que se propusesse um acoplamento de postulados mais completo, no quadro do sociofuncionalismo. Contudo, essa convergência depende de que se alcance outro emparelhamento fundamental, qual seja entre as preocupações centrais de cada teoria: por um lado, o estudo da variação e da mudança – foco da teoria variacionista – e, por outro, o estudo do fenômeno de gramaticalização – foco dos estudos funcionalistas. Vamos bater esse papo? 2.2 VARIAÇÃO E GRAMATICALIZAÇÃO: VIÉSES DISTINTOS? Os objetos do funcionalismo voltado à gramaticalização e da sociolingüística variacionista podem ser resumidos, grosso modo, da seguinte forma:

GRAMATICALIZAÇÃO ⇒⇒⇒⇒ UMA FORMA QUE DESEMPENHA DIFERENTES FUNÇÕES VARIAÇÃO E MUDANÇA ⇒⇒⇒⇒ UM SIGNIFICADO E AS DIFERENTES FORMAS QUE O MARCAM

Há vários pontos a serem conversados aqui. Iniciemos pela oposição entre tomar como objeto diferentes formas versus uma só forma. Poucos estudos de gramaticalização têm focalizado ao

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mesmo tempo duas ou mais formas,110 optando, ao invés, por lançar o olhar sobre os estágios de mudança por que passa um só item ou construção. Esse é o caso, por exemplo, dos estudos sobre a marca de futuro be going to, sobre as conjunções while e since, sobre os marcadores de interrogação em línguas européias (todos comentados no capítulo II).111 Por outro lado, os estudos variacionistas têm por alvo a variabilidade lingüística, o que obrigatoriamente os faz agrupar dois ou mais itens lingüísticos para analisá-los como variantes - o requisito mínimo para o pontapé inicial da investigação é a existência de duas ou mais formas em variação.

O princípio de estratificação, proposto por Hopper (1991) como uma das maneiras de se diagnosticar a ocorrência da gramaticalização, permite a convergência entre tais objetos de estudo, pois prevê que, dentro de um domínio funcional, emergem continuamente novas camadas para marcar funções que em geral já são marcadas por outras formas, mais antigas no ramo. Se, por conta da gramaticalização, um elemento se torna uma das camadas de um certo domínio, a análise somente será completa se também forem levadas em conta as demais formas que competem com o elemento mais recente, pois são as inter-relações entre todas as camadas que definem os rumos do domínio como um todo e de cada elemento em particular.112 Emparelha-se assim o objeto dos estudiosos da gramaticalização com o objeto dos estudiosos da variação, dando origem ao objeto dos sociofuncionalistas: diferentes formas – camadas ou variantes ou camadas/variantes – que convivem em um mesmo ambiente, gerando o que pode ser definido como uma situação de estratificação/variação. 113

A partir dessa convergência, temos de questionar se o que as camadas/variantes possuem

em comum - aquilo que permite que sejam consideradas, em termos funcionalistas, camadas de um mesmo domínio ou, em termos da sociolingüística, variantes de uma mesma variável - é o mesmo significado (conforme a teoria ‘mãe’ variacionista) ou a mesma função (conforme a teoria ‘mãe’ funcionalista).

110 Um exemplo de estudo de gramaticalização que aventa a possibilidade de competição entre formas distintas que partilham espaço é o de Lichtenberk (1991). Ao analisar a gramaticalização dos complementizadores verbais suli, uri e fasi, do to’aba’ita, uma língua da família austronésia falada na ilha de Malaita, situada ao sudeste das Ilhas Salomão, Lichtenberk apresenta uma interessante hipótese acerca dos percursos de mudança por que passa cada complementizador, prevendo inter-relações entre eles. Atualmente, o complementizador suli serve para sinalizar extensão temporal (valor de até) e também razão, função em que é pouco recorrente, sendo muito mais freqüente nela o complementizador uri. No entanto, complementizadores cognatos de suli são encontrados em diversas línguas da família austronésia como codificadores de razão, uma função marcada por suli claramente há muito tempo. A pouca freqüência de suli como sinalizador de razão em to’aba’ita pode ser explicada pelo fato de tal forma estar sendo substituída por uri, em um processo que envolve também o complementizador fasi. Na ausência de evidência direta do que ocorre nesse processo de mudança, o autor apresenta uma especulação que, segundo ele, é bastante plausível. Originalmente, a finalidade positiva era marcada por uri, que teve seu território invadido por fasi, complementizador inicialmente de finalidade negativa que passou a ser usado para finalidade positiva. Gradualmente, uri cedeu sua função de marcação de finalidade a fasi, ao mesmo tempo em que assumiu a função de complementizador de razão. Assim, acabou entrando em competição com o marcador de razão original suli, que tem virtualmente cedido sua função a uri. Ou seja, a cada etapa de gramaticalização, Lichtenberk prevê que as formas competem por funções e que mudanças ocorrem. No entanto, conforme mencionado, trata-se de uma especulação do autor. No estudo da seqüenciação retroativo-propulsora, podemos observar, por meio de alterações nas freqüências, que as formas mais recentes têm de fato invadido o território das mais antigas, chegando-se inclusive a ameaça de extinção! A competição entre os seqüenciadores é quantificada, obtendo-se uma análise bastante refinada acerca de alterações na distribuição de tarefas no domínio da seqüenciação. 111 Conferir também diversos artigos nas coletâneas de Traugott & Heine e Ramat & Hopper (1998), além de vários casos de gramaticalização mencionados por Bybee (20**b), Androutsopoulos (1999), Traugott & Hopper (1993) e Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a/b). 112 Hopper (1991), ao apresentar o princípio da estratificação, comenta alguns casos em que formas convivem como camadas: (i) as marcas de negação no francês; (ii) as marcas de tempo presente e de tempo futuro no inglês, etc. 113 Hopper admite que estratificação e variação lingüística referem-se ao mesmo fenômeno: convivência de formas de mesma função (em uma palestra na UFSC, a 07/06/2002).

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A sociolingüística privilegia como critério para o estabelecimento de um conjunto de variantes a exigência de manutenção do significado: as formas devem se referir ao mesmo estado de coisas (Labov, 1978). Assim, à parte de pesquisas que se inserem na confluência com o funcionalismo, é rara a realização de investigações estritamente variacionistas que tomem funções como variáveis dependentes (um exemplo é o das seções avaliativas nas narrativas, comentado na seção 2.7.1 do capítulo II). Contrastando, o princípio de estratificação pressupõe que o que caracteriza as camadas habitantes de um mesmo domínio é a igualdade no plano funcional. Para que o casamento entre as teorias funcionalista e variacionista avance, a melhor solução parece ser o afrouxamento do critério pelo qual as variantes costumam ser agrupadas, permitindo o tratamento variável de formas que compartilhem funções discursivas. Destarte, itens em relação de estratificação/variação podem manifestar ou não o mesmo significado, conquanto exibam a mesma função.114 Todavia, mesmo que se assuma a identidade funcional115 ao invés da identidade semântica como requisito básico para a análise, não se consegue negar a existência de um viés distinto nas duas visões arroladas acima. Labov (1994) postula que a variação é o primeiro estágio da mudança lingüística: surgindo a alternância entre determinadas formas, pode ocorrer mudança no sentido de uma delas suplantar a outra ou especializar-se em contextos distintos, eliminando-se assim a variação. Portanto, a mudança decorre da variação. A perspectiva é a de estudar diferentes formas competindo por certo significado, averiguando-se se tais formas estão passando por um processo de mudança em andamento ou se estão em relação de variação estável relativamente ao significado que compartilham. A precedência da variação sobre a mudança é invertida pelos trabalhos sobre a gramaticalização, cujo pressuposto é que a variação decorre da mudança. Costuma-se averiguar o percurso evolutivo de um dado item, o qual, no decorrer de sua trajetória, adquire múltiplas funções. Se uma ou mais dessas funções já estiverem sendo desempenhadas por outros itens, ocorre uma situação de variação. Em decorrência, a variação aparece como pano de fundo, sendo uma das conseqüências possíveis da multifuncionalidade resultante do desenvolvimento das formas gramaticais: quanto mais papéis um item adquire, mais chances há de que se sobreponha a outros itens usados nos mesmos ou similares papéis.

Entretanto, esses diferentes pontos de vista podem não representar um empecilho para o casamento sociofuncionalista, pois é possível correlacioná-los, ao se entender que “dado o caráter cíclico da gramaticalização, parece não haver contradição em afirmar que a variação é ao mesmo tempo o ponto de partida e o ponto de chegada da mudança lingüística” (Castilho, 1997:55) ou, inversamente, que a mudança é o ponto de partida e o ponto de chegada da variação.

114 Um exemplo de construções que exibem a mesma função, mas possuem significados distintos, é o das avaliações em narrativas analisadas por Labov (1972b). Já os seqüenciadores e, aí, daí e então possuem o mesmo significado e a mesma função. Na verdade, neste caso, função e significado são indistintos, podendo se dizer que os seqüenciadores manifestam a mesma função-significação: a propriedade de indicar um ponto passado, localizado para trás no discurso e, ao mesmo tempo, indicar um ponto futuro, que se relaciona com o primeiro por se seguir a ele, evidenciando que o que foi dito anteriormente é uma fonte de informações para o que será dito depois. 115 Relembremos que as funções passíveis de serem tomadas como objeto de estudos funcionalistas variam quanto à natureza. No caso desta tese, temos como objeto uma função/significação (cf. capítulo I e seção 1 do capítulo II). Outros tipos de função também podem ser abordados com base em uma perspectiva sociofuncionalista, caso pareçam implicar a manifestação do fenômeno de estratificação/variação, envolvendo mais de uma forma de mesma identidade funcional.

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Tal perspectiva imbrica fortemente os pontos de vista dos estudos da gramaticalização e da teoria variacionista, permitindo que a relação entre mudança por gramaticalização e o fenômeno da variação lingüística possa ser assim resumida: no decorrer de seu desenvolvimento, um certo item passa a desempenhar múltiplas funções (uma forma com mais de uma função – perspectiva da gramaticalização). Nessa trajetória, seu uso pode se expandir para um domínio funcional já codificado por outro item, passando a disputar com ele o direito à marcação da função (mais de uma forma com uma função – perspectiva da sociolingüística). Surge, então, um ponto de variação, passível de ser solucionado por especialização das formas ou pelo desaparecimento de uma ou mais das variantes, soluções essas relacionadas ao próprio percurso de gramaticalização individual das formas, o que nos permite pensar, para cada forma ‘gramaticalizanda’, em um percurso de mudança com estágios do tipo:

‘...GRAMATICALIZAÇÃO ⇒⇒⇒⇒ VARIAÇÃO ⇒⇒⇒⇒ GRAMATICALIZAÇÃO ⇒⇒⇒⇒ VARIAÇÃO...’

Temos aí um ciclo contínuo: a variação pode ser solucionada devido à especialização ou desaparecimento sofrida por uma ou mais das formas alternantes, essa mudança por gramaticalização pode levar à nova variação, que pode ser solucionada devido a uma nova mudança... De acordo com esse enfoque, portanto, os fenômenos de variação e de mudança decorrem um do outro. Ao estudar a variação, estamos analisando uma etapa da mudança em que convergem os percursos de gramaticalização seguidos por cada uma das formas envolvidas. Como contraparte, ao estudar gramaticalização, estamos averiguando diferentes etapas de variação ao longo do tempo.116 As pontas iniciais e as pontas finais do processo são deixadas em aberto, uma vez que é uma incógnita se o que surgiu primeiro foi a variação ou foi a mudança. No caso da mudança por gramaticalização, temos um processo contínuo de alterações que pode envolver variação em várias etapas e que pode ele próprio ter sido desencadeado pela relação de variação entre formas. Conforme Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:23), o fator ou fatores motivadores da gramaticalização não foram ainda bem esclarecidos. Um tradicional preceito variacionista poderia ser considerado um obstáculo à articulação entre gramaticalização e variação proposta aqui, qual seja “Nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura lingüística envolve mudança, mas toda mudança envolve variabilidade e heterogeneidade” (Weinreich, Labov & Herzog, 1968: 188). Segundo esse preceito, nem sempre onde há fumaça, há fogo: a sociolingüística verificou a existência de períodos de variação estável, em que as variantes co-existem sem grandes mudanças em sua distribuição por grandes períodos de tempo (décadas ou mesmo séculos). Nesse caso, poder-se-ia dizer que a variação não leva à mudança. Todavia, também é possível que um percurso de mudança por gramaticalização abarque períodos sem alterações mais salientes, o que pode corresponder aos períodos de variação estável de Labov. Nos casos de variação e gramaticalização estável, se alguma inovação tiver lugar, haverá um retorno ao ciclo ‘...gramaticalização ⇒ variação ⇒ gramaticalização ⇒ variação...’. A associação entre os pressupostos das teorias aqui postas para conversar possibilita a abordagem do domínio da seqüenciação retroativo-propulsora de uma perspectiva particular,

116 O caso dos complementizadores no to’aba’ita discutido por Lichtenberk (1991) ilustra a ocorrência de várias etapas de variação no percurso de gramaticalização de itens lingüísticos (cf. primeira nota de rodapé da seção 2.2).

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envolvendo dois passos principais: (i) a busca de indícios acerca dos estágios do percurso de mudança seguido por e, aí, daí e então até se tornarem camadas da seqüenciação retroativo-propulsora - procedimento típico dos estudos de gramaticalização; (ii) a análise de seu uso variável no desempenho da seqüenciação - procedimento típico dos estudos variacionistas. Essas etapas de investigação são fortemente inter-relacionadas pela hipótese de que o uso variável dos seqüenciadores é influenciado pelo que aconteceu no percurso de gramaticalização de cada item até a chegada ao domínio em questão, exercendo a natureza da fonte e os próprios estágios de cada percurso papel motivador de condicionamentos lingüísticos e sociais. Ou seja, o quadro das distribuições no reino da seqüenciação na Florianópolis de hoje pode ser compreendido como revelando o estágio - mais ou menos gramatical - em que se encontra cada conector em seu processo de gramaticalização, pois é reflexo da história de cada uma das formas individualmente e da história tecida em conjunto por elas, a partir do momento em que sua convivência se iniciou. E, aí, daí e então passaram a conviver juntos apenas como seqüenciadores, mas aí e daí e aí e então possuem ou possuíam em comum outras funções, o que também deve ser levado em conta quando da análise da seqüenciação: estágios de convivência anteriores - isto é, etapas de estratificação/variação em fatias de tempo passadas - influiriam nas distribuições atuais? Por exemplo, como aí e então partilhavam papéis referentes à indicação temporal, prefeririam os falantes utilizá-los para marcar a subfunção de seqüenciação temporal, em detrimento de e e daí, que não foram utilizados em tais papéis (cf. capítulo V)? Sempre é importante considerar-se os passos de uma das formas em relação à movimentação das demais, pois, como sublinham Hopper & Traugott (1993:114), a gramaticalização de um determinado item nunca ocorre isoladamente. O percurso de mudança de uma forma depende das trajetórias seguidas por outras formas, assim como do contexto lingüístico e social de uso de cada uma, o que instiga o estudo das distribuições variáveis ao longo do tempo. A estratificação/variação atual depende da solução dada a estratificações/variações anteriores, seja em etapas passadas do desenvolvimento da seqüenciação (por exemplo, quando um número menor de formas co-habitavam), seja em outros domínios em que as formas partilharam espaço.117 Um estudo pautado em tais procedimentos e hipóteses destaca o papel do controle de grupos de fatores lingüísticos e sociais que influem no uso das camadas/variantes. É através da análise do conjunto de inter-relações entre os diferentes condicionamentos – obtido por meio de tratamento estatístico sobre os dados, codificados de acordo com os diversos fatores – que se deriva o quadro das distribuições de tarefas em um domínio funcional. Embora a verificação das múltiplas influências que agem sobre o uso das variantes seja o procedimento padrão da sociolingüística variacionista, a afirmação de sua importância também é apanágio dos estudos de gramaticalização. Hopper (1991:22) e Hopper & Traugott (1993:114) afirmam que as diferentes especializações das formas que convivem como camadas em um domínio são manifestadas através de preferências mais ou menos distintas de uso, condicionadas por contextos sociolingüísticos. Contudo, a sociolingüística tem se detido com mais rigor na investigação dos contextos prediletos de cada variante, buscando detalhar a ação combinada dos diversos fatores sobre cada situação de uso - houve inclusive o desenvolvimento de um programa estatístico sofisticado para lidar com casos de variação lingüística, o VARBRUL. Essa questão é aprofundada na seção 2.4.

117 No entanto, como será detalhado no capítulo IV, por uma questão de pouca freqüência de dados diacrônicos e mesmo sincrônicos referentes a funções diferentes da seqüenciação, foi impossível realizar uma análise quantitativa das distribuições variáveis das formas no desempenho dessas outras funções. O procedimento, então, foi a comparação qualitativa de tais usos, tomados como indícios do processo de gramaticalização das formas.

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Ao mesmo tempo em que reflete o passado, o quadro das divisões territoriais permite um olhar para o futuro. A análise do uso estratificado/variável dos seqüenciadores fornece pistas acerca das tendências de uso de cada um deles. Se obtivermos indícios de que uma mudança está em andamento – através da distribuição etária dos informantes, por exemplo –, poderemos tomar por base essas tendências em uma tentativa de antever rumos possíveis para a situação de estratificação/variação sob enfoque, e, por tabela, antever rumos do percurso de gramaticalização das formas - uma gramaticalização em andamento, no caso. O que cada teoria ‘mãe’ tem a dizer quanto aos rumos possíveis para uma situação de estratificação/variação? Ambas prevêem que situações de estratificação e situações de variação costumam ser solucionadas com o passar do tempo. Segundo Labov (1972a:211), estudos variacionistas têm revelado que as regras variáveis tendem a se tornar categóricas, generalizando-se para o maior número possível de contextos lingüísticos e sociais. Semelhantemente, Heine (1994:277) afirma que uma situação em que uma função gramatical é expressa por duas ou mais formas lingüísticas tende a mudar para uma em que a função é expressa por apenas uma forma. Como ocorre a eliminação da estratificação/variação? Hopper (1991) prevê a especialização como capaz de suavizar ou mesmo extinguir uma situação de estratificação funcional. Uma das camadas sofreria abstração e generalização, passando a sobrepor-se às demais. Desse modo, poderia assumir a totalidade ou grande parte dos papéis abarcados pelo domínio, o que levaria à diminuição do uso ou mesmo eliminação das concorrentes. Além da especialização por generalização, há também a possibilidade de especialização por especificação, em que cada camada adquiriria significados específicos e/ou preponderaria em contextos sociolingüísticos distintos, o que também acarretaria o fim da competição. Soluções para a variação estipuladas no âmbito da sociolingüística são bastante similares – mais uma convergência facilitada! Oliveira (1987), em referência à variação fonológica, menciona as seguintes possibilidades: (i) casos em que uma variante prepondera sobre a outra, causando sua eliminação; (ii) casos em que as variantes se contextualizam como alofones; (iii) casos em que as variantes assumem significados diferentes; (iv) casos em que as variantes são controladas pragmaticamente. A primeira possibilidade é semelhante à especialização por generalização, ao passo que as três últimas poderiam ser consideradas especializações por especificação.

Da conversa entabulada até aqui, deriva-se que, embora os pontos focais do funcionalismo voltado à gramaticalização (história de uma forma) e da sociolingüística variacionista (coexistência de formas em dado momento de sua evolução) sejam diversos, é possível chegar a uma convergência entre pressupostos teórico-metodológicos de cada teoria em uma abordagem que integra aspectos de ambas e que pode, a princípio, ser denominada sociofuncionalismo. Tal abordagem toma como objeto diferentes camadas/variantes que partilham e/ou disputam determinada função, realizando o controle de grupos de fatores lingüísticos e sociais passíveis de influenciar a opção dos falantes por uma delas. O resultado desse controle é o quadro da distribuição das camadas/variantes quanto aos diversos traços envolvidos em seu contexto de uso, que pode ser lido como reflexo de estágios passados do desenvolvimento do domínio em si e de cada uma das formas, bem como pode ser lido como espelho de seus desenvolvimentos futuros.

Alguns conceitos de cada modelo parecem ser inter-traduzíveis e mais facilmente

emparelháveis, como camadas/variantes e estratificação/variação. Em outros casos, o ponto de vista de uma das teorias ‘mães’ se sobressai. Por exemplo, o objeto a ser estudado sob o prisma sociofuncionalista comporta não uma, mas duas ou mais formas e seus contextos de uso

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lingüísticos e sociais, prevalecendo a perspectiva da teoria variacionista. Por outro lado, o foco da análise recai sobre a função discursiva das formas, prevalecendo o olhar funcionalista.

Passemos a seguir a outras tentativas de convergência nessa conversa na diferença.

2.3 RECORTAR É PRECISO O estudo do fenômeno de estratificação/variação que caracteriza as relações entre os conectores que fazem parte do domínio da seqüenciação retroativo-propulsora na fala de Florianópolis requer uma série de recortes. O primeiro é o da própria seqüenciação, que é isolada de, por um lado, (a) funções vizinhas na sincronia presente, por vezes indistintas – como a adversão (cf. seção 2.6.2 do capítulo I); (b) funções vizinhas diacronicamente, isto é, as funções fontes, das quais derivam por gramaticalização os usos seqüenciadores ao longo do tempo (cf. seção 2.2.1 e 2.3.5 do capítulo I). Este último recorte - ilustrado no quadro 10 pela coluna central pontilhada - representa o isolamento do percurso atual de gramaticalização das quatro formas seqüenciadoras, em que elas partilham e disputam espaço no domínio da seqüenciação florianopolitano. O capítulo VI dá atenção especial a esse estágio, verificando com maior detalhe as distribuições territoriais e suas motivações cognitivas, comunicativas e sociais. O capítulo V é reservado para as etapas/aclives representadas pelas linhas do quadro 10, abordando desenvolvimentos individuais de cada forma,118 ou desenvolvimentos conjuntos, quando constatada sua convivência em fatias de tempo passadas.

Quadro 10: Recorte do estágio atual de estratificação/variação no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora em Florianópolis

e

...gramaticalização ���� ���� ���� ���� ���� VARIAÇÃO

gramaticalização...

aí ...gramaticalização

⇓⇓⇓⇓ ⇑⇑⇑⇑ ���� ���� ���� ���� ���� VARIAÇÃO

gramaticalização...

daí ...gramaticalização

⇓⇓⇓⇓ ⇑⇑⇑⇑ ���� ���� ���� ���� ���� VARIAÇÃO

gramaticalização...

então ...gramaticalização

⇓⇓⇓⇓ ⇑⇑⇑⇑ ���� ���� ���� ���� ���� VARIAÇÃO

gramaticalização...

118 Note-se que por desenvolvimentos individuais de cada forma quero dizer períodos de mudança em que uma forma seqüenciadora não recebeu influência por parte do movimento das demais, uma vez que não conviviam de modo próximo. Nesses períodos, todavia, devem ter recebido influência do movimento de outras formas que com elas conviviam, seja por possuírem funções sobrepostas, seja por manifestarem relações de contraste. Por exemplo, a mudança do aí rumo à seqüenciação pode ter recebido influência de usos dado a ele em contraste com usos dado às demais formas demonstrativas locativas (aqui, ali, lá), pois, dentre elas, apenas o aí se tornou seqüenciador – questão aprofundada no capítulo V. Na verdade, as alterações sofridas por uma forma nunca são “individuais” ou “isoladas”, mas sempre relacionadas ao que ocorre com outras formas, companheiras ou vizinhas. Essa questão também é discutida na seção 2.2.

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Além desses recortes, outro se fez necessário: o dos grupos de fatores, que representa a distinção entre traços do contexto que aparecem imbricados a cada uso. Por exemplo, no âmbito lingüístico, as subfunções e os níveis de articulação, e, no âmbito social, sexo e idade. Além dessa distinção, ocorre o isolamento de diferentes fatores dentro de cada grupo: cinco subfunções, três níveis de articulação, dois sexos, quatro faixas etárias. Enfim, o estudo da seqüenciação implica picoteamentos diversos, passando-se a tesoura sobre fronteiras por vezes sobrepostas, indistintas e contínuas (cf. capítulo I). Qual é a importância e como é compreendida por cada teoria ‘mãe’ a necessidade de distinções e delimitações? Os estudos acerca da gramaticalização têm demonstrado que o comportamento dos itens lingüísticos não é discreto, pois muitas vezes codificam duas ou mais funções ou significados simultaneamente. Uma das causas desse comportamento é o fato de a gramaticalização ser um processo contínuo, pelo qual os itens não passam imediatamente de uma função A para uma função B, havendo um estágio intermediário A-B, em que há sobreposição de funções e/ou significados e, em decorrência, a interpretação dos mesmos é ambígua. Sendo assim, o processo de gramaticalização coloca em dúvida a possibilidade do estabelecimento de recortes, pois “(...) uma boa parte do comportamento lingüístico acontece entre categorias lingüísticas, não dentro” (Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991b:179). Já a sociolingüística exige a realização de delimitações criteriosas. A variável dependente é compreendida como discreta e fechada: as variantes devem ter o mesmo significado no mesmo contexto. Quando do estabelecimento do envelope de variação (organização do conjunto composto por variável, variantes e grupos de fatores condicionadores), é imprescindível mostrar com detalhes aquilo que será incluído e aquilo que será excluído, justificando-se cada decisão. Tal exigência impõe, no caso sob enfoque, a realização de recortes sobre um contínuo de funções, extraindo a seqüenciação desse contínuo, a despeito de sua relação com as demais funções – vizinhas sincrônicas e/ou diacrônicas. Trata-se, portanto, de um procedimento analítico que implica o descarte de dados que manifestam sobreposição de funções, ambigüidades, indistinções, indefinições – por exemplo, casos situados entre usos seqüenciadores e usos temporais de aí, daí e então devem ser eliminados. Como é possível atingirmos convergência quanto a esse aspecto? Obviamente, os estudiosos da gramaticalização também recortam seus objetos de estudo com fins de análise. Para entender o meio ambiente, temos de segmentá-lo de modo a capturar similaridades e diferenças, com o intuito de fazer sentido do que seria, de outro modo, uma fluição regular de estímulos vindos de fontes de informação que estão muitas vezes simultaneamente disponíveis. É assim que temos de proceder para entender os fenômenos lingüísticos: recortando o todo indistinto e sobreposto para que consigamos analisar a relação entre as unidades obtidas, procurando fazer sentido delas (Schiffrin, 1994:361). Conforme Laury (1997:15), “padrões interessantes apenas emergem pela codificação e intertabulação de um número substancial de dados.” A codificação e a intertabulação dos dados trazem embutida a necessidade de realização de múltiplos recortes. O funcionalismo prega, contudo, que os critérios para que se estipule onde a tesoura deve passar sejam motivados pelo uso dado à língua pelos seus usuários. No caso da seqüenciação, o traçado sobre o qual ocorre a segmentação é delineado com base no caráter rotineiro evidenciado pelas funções e traços ligados às situações de interação, o que é medido com base: a) na freqüência: a atestagem de um bom número de ocorrências facilita o recorte – aquilo que aparece repetidamente em certos contextos identificáveis na fala de vários informantes torna-se mais visível,

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podendo ser delimitado como ‘categoria’ saliente; b) no fato de que funções e traços contextuais idênticos ou semelhantes foram encontrados em outros estudos. Por exemplo, diversos pesquisadores delimitaram subfunções similares às previstas aqui (cf. seção 2.3.1 do capítulo I). Cabe então a seguinte indagação: se ambas as teorias-fonte recortam, qual a diferença entre elas, afinal? Acredito que o que está subjacente ao ato de recortar é distinto. Os variacionistas estabelecem fronteiras e excluem ‘de uma vez para sempre’ o que não se encaixa, analisando somente o que se situa nos limites internos do traçado estipulado. Essa exclusão é a opção correta do ponto de vista da teoria variacionista por ser necessária para proceder-se à busca das regras variáveis que estão em jogo nos casos de variação. Diferentemente, no estudo da gramaticalização, os dados ambíguos, embora não façam parte das análises quantitativas - que exigem maior precisão no recorte -, não são excluídos da investigação, pois, como lembra Croft (1990:25), casos fronteiriços desempenham um papel importante na metodologia funcionalista, evidenciando as relações de fluidez e de continuidade existentes entre categorias e, desse modo, facilitando a reconstrução dos passos seguidos pelas formas em suas trajetórias de mudança. Assim é que os dados ambíguos não inclusos na quantificação sofrida pela seqüenciação não são deixados de lado e sim recebem lugar de destaque, sendo tomados como elos que auxiliam a recuperar a trajetória de irradiação funcional das unidades sob enfoque e, além disso, servindo de indícios para a compreensão do quadro atual de condicionamentos lingüísticos e sociais sobre o uso da seqüenciação. Além disso, e talvez especialmente, os funcionalistas, mesmo isolando nacos da língua, não dormem com a consciência pesada por causa de inevitáveis sobreposições. Por exemplo, alguns dados de adversão devem ter sido incluídos no rol dos 4.394 dados da seqüenciação, pois há contextos de uso muito próximos; alguns dados de seqüenciação temporal devem ter se mesclado aos de introdução de efeito, já que a indistinção e a ambigüidade de interpretação atingem não apenas os interlocutores das trocas conversacionais analisadas, mas também o pesquisador. Certamente houve esforço para deixar de lado os casos duvidosos, mas há sempre uma certa probabilidade de que, na seleção dos dados, alguns e, aí, daí e então usados em outras funções (adversativos, temporais, etc) tenham mergulhado entre os dados de conectores que foram para a análise quantitativa, e de que, na codificação dos grupos de fatores, alguns conectores tenham saltado na piscina do vizinho - seqüenciadores temporais misturados aos introdutores de efeito, por exemplo. Trabalha-se, portanto, com uma margem de erro previsível nas segmentações, por conta da natureza contínua e fluida da língua. Não é por causa desses casos escorregadios que a análise deixará de apontar tendências quanto às especializações dos conectores seqüenciadores e quanto aos rumos de mudança possíveis, pois um dos critérios básicos para os recortes é a freqüência. Se certo tipo de ‘entre’ (entre duas das subfunções, entre dois dos níveis, etc) fosse bastante recorrente, teria sido distinguido como categoria à parte e controlado junto com os demais na análise estatística (que exige um determinado número de dados referentes a cada recorte feito). 2.4 ANÁLISE MULTIVARIADA PARA CASOS DE ESTRATIFICAÇÃO/ VARIAÇÃO? Tanto o funcionalismo quanto a sociolingüística primam pelo tratamento empírico dos dados, recorrendo ambos à quantificação estatística (Givón, 1995; Bybee & Hopper, 2001; Labov, 1994 e 2001). Os estudos de gramaticalização geralmente se valem de freqüências de uso para balizar

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achados referentes a percursos de mudança, com a hipótese de que quanto mais gramatical uma forma, mais freqüente ela é. Os estudos variacionistas consideram freqüências como indícios para atestar fenômenos de variação e de mudança em andamento, mas destacam, para essa mesma tarefa, também o peso relativo. Trata-se de uma medida multidimensional ou multivariada, obtida pela interação entre todos os fatores de cada variável independente (ou grupo de fatores condicionadores) em relação à variável dependente, indicando a influência de cada um dos fatores sobre cada uma das variantes. De acordo com Guy (1998:30), como todo aparecimento de uma variante é condicionado por uma gama de traços sociolingüísticos, a análise ideal é a multivariada. Nesse tipo de análise, os dados são configurados como uma função de múltiplas forças simultâneas, as quais podem inclusive atuar em diferentes direções. É indicado o peso (favorável ou desfavorável) de cada uma dessas forças. Freqüências e pesos relativos são fornecidos pelo programa estatístico VARBRUL (Cedergren & Sankoff, 1974; Pintzuk, 1988), criado especialmente para fins de pesquisa sociolingüística. Ao trabalhar com pesos relativos, o programa examina a contribuição de diversas influências simultâneas sobre os dados. No âmbito do funcionalismo voltado à gramaticalização, normalmente são focalizados os estágios de mudança por que passa uma forma particular. Tal restrição dificulta o uso de pesos relativos, que pressupõe a análise de ao menos duas formas unidas por algum critério – mesmo significado, mesma função – e considera a causação múltipla como determinante do quadro de distribuições dessas formas.119 No entanto, apesar de ser um instrumental típico da sociolingüística variacionista, a utilização de pesos relativos pode ser recomendável para uma abordagem sociofuncionalista, em que forças múltiplas também estão em jogo. Por exemplo, no caso da seqüenciação, os diversos traços ligados a seu contexto de uso (subfunções, níveis, categorias sociais, etc) estão concomitantemente presentes a cada vez que um falante seqüencia informações, e a interação das influências (favoráveis ou desfavoráveis) de cada um desses traços resulta na escolha entre uma ou outra das formas seqüenciadoras. Também é possível ampliar-se a relevância do peso relativo, empregando-o não apenas para a obtenção do quadro das distribuições territoriais, mas ainda para: (a) antever rumos futuros do processo de gramaticalização dos seqüenciadores. Enfim, o peso relativo parece ser uma medida importante para auxiliar no estudo da gramaticalização, se entendida como um processo de mudança de um item ou construção que não ocorre isoladamente, mas em relação aos demais itens ou construções que dividem funções com o item em questão, e na dependência de condicionamentos sociolingüísticos diversos.

2.5 ENTREVISTA SOCIOLINGÜÍSTICA: UM CORPUS POSSÍVEL? A sociolingüística considera como melhor fonte para a coleta de dados sistemáticos e inconscientes a fala espontânea diária, denominada vernáculo. No entanto, pesquisas variacionistas normalmente se valem de corpora constituídos por entrevistas em que o informante é instigado a falar sobre diversos tópicos. Consoante já mencionado no capítulo II, trata-se de um tipo de situação comunicativa mais formal e consciente do que a fala espontânea, pois corresponde a uma

119 No entanto, é possível a utilização dos pesos relativos para estabelecer correlações e caracterizar com mais precisão as múltiplas funções e/ou os contextos de ocorrência de apenas uma forma. Em tais casos, não estão em jogo os fenômenos de estratificação como definido por Hopper (1991), de variação como definido por Labov (1972a/b, entre outros) e de estratificação/variação como entendido na abordagem sociofuncionalista ora proposta.

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situação assimétrica, conduzida por um entrevistador e em que o informante mantém a palavra a maior parte do tempo. Esse tipo de corpus é empregado com o intuito de obtenção de um grande número de dados, difícil de ser extraído da fala cotidiana e necessário para a aplicação do instrumental estatístico. A comunicação oral espontânea também é considerada o meio mais revelador da língua para os funcionalistas (Givón, 1995). Pesquisas nessa linha teórica utilizam corpora diversos, mas dão preferência a trechos de conversação cotidiana, embora haja os que se valem de material escrito (jornais, revistas, textos jurídicos, etc) e mesmo os que criam os dados, com base na conversação cotidiana. Contudo, a postura mais defendida é o emprego de dados provindos de fontes diversas, o que oferece mais fundamentação e segurança para as explicações fornecidas.120 No estudo da seqüenciação retroativo-propulsora, a maior parte dos dados foi coletada em entrevistas sociolingüísticas. Por que tal opção? A utilização desse tipo de entrevistas é um método valioso para se angariar uma grande amostra de dados em pouco tempo (cada entrevista tem, em geral, não mais que uma hora de gravação) e, após a ação do instrumental estatístico, obter-se um quadro amplo da distribuição das formas em Florianópolis. E, apesar do fato de as entrevistas em questão não constituírem um gênero de fato existente em uma comunidade de fala (Paradis, 1995:115-116), Schiffrin (1996:53) aponta que as identidades que emergem durante tais interações não são menos situadas - e os contextos não são menos dinâmicos e emergentes - que aqueles que surgem durante outras atividades humanas. Dessa guisa, as entrevistas sociolingüísticas se aproximem das produções lingüísticas encontradas nas situações de comunicação naturais - embora não se igualem -, e apresentam as vantagens acima mencionadas, podendo ser tomadas como corpora em estudos sociofuncionalistas.

2.6 IDADE E TRANSMISSÃO DA MUDANÇA Como já consta no capítulo II, a sociolingüística derivou, de seus achados iniciais, que o final da adolescência é o período de vida em que se encerra a transmissão da língua dos falantes mais velhos (pais e pares) aos falantes mais jovens e, acoplada, a transmissão da mudança lingüística. Até o final da adolescência, os falantes adquiririam uma certa freqüência de uso de uma dada variável e a conservariam por toda a vida. O que levaria à mudança lingüística comunitária seriam incrementos regulares nas freqüências adotadas por indivíduos cada vez mais jovens. Estudos mais recentes, porém, encontraram casos de adultos que modificaram seus vernáculos, o que exige que se tome cuidado com o estabelecimento de fronteiras etárias rígidas para a fixação do sistema lingüístico – para fenômenos particulares, a mudança pode atingir a comunidade como um todo, impossibilitando o mapeamento da mudança através da estratificação etária. Ponto de vista semelhante é o dos estudiosos da gramaticalização. Hopper & Traugott (1993:209) afirmam que as “(...) inovações das crianças mais velhas e adultos, embora talvez raras, quando podem ser elicitadas, também servem como predição de mudança.” Os autores admitem, portanto, que, embora grande parte das inovações se concentre na fala das crianças menores, os demais falantes estão sujeitos a terem sua fala alterada pelo acréscimo de novidades. A solução, em termos de procedimentos metodológicos, é laboviana: não confiar tão somente em resultados relativos à distribuição etária dos informantes como fonte para a constatação da existência ou não 120 Conferir em Bybee & Hopper (2001) e Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a) diferentes tipos de corpora passíveis de serem utilizados em estudos funcionalistas.

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de um fenômeno de mudança/gramaticalização em andamento, mas também buscar informações em fontes diversas – por exemplo, analisando-se as demais distribuições sociolingüísticas obtidas e valendo-se de dados de tempo real. É importante não confundir a mudança lingüística – mais intensa na fala de pessoas jovens - com a emergência ou ressistematização constante da gramática - que ocorre com todos os falantes, independentemente da idade.121 A gramática de cada indivíduo emerge diferente a cada uso, uma vez que as situações comunicativas não se repetem. As porções da língua são segmentadas e organizadas de modo distinto e imprevisível, pois são negociadas e adaptadas para que haja o emparelhamento entre a intenção do falante e a interpretação do ouvinte – sempre diferentes por conta das experiências particulares de cada um. A cada nova interação, os interlocutores têm sua gramática modificada, pois adquirem mais experiência. Já a mudança se refere às circunstâncias em que alguns desses modos diversificados de recorte e colagem da língua passam a ser freqüentemente re-utilizados por mais e mais indivíduos, gramaticalizando-se. Assim, a mudança surge da emergência diária da língua, mas pouco da totalidade que emerge cotidianamente nas situações comunicativas representa uma mudança. Ela parece ser mais comum e intensa na fala de indivíduos jovens – mais por conta de questões sociais do que por razões maturacionais. 3. ONDE CONVERSAR FICA MAIS DIFÍCIL Conceitos são entendidos de modos particulares por cada teoria, mas, quando elas são postas para dialogar, podem chegar a um entendimento comum, alcançando os ‘primeiros significados’, nos termos de Davidson (1986). Essa conversa na diferença requer que seus participantes sejam quadros teóricos que apresentem aspectos em comum, semelhantes, complementares ou, se diversos, ao menos abertos à discussão. Enfim, pressupostos de lá e da cá devem ser capazes de sentarem e conversarem, buscando as convergências que fundamentam a troca de alianças. O bate-papo entre os pressupostos teórico-metodológicos na seção 2 acima parece fluir bem, confirmando a possibilidade de sua integração em uma vertente de pesquisa associando traços do funcionalismo voltado à gramaticalização e da sociolingüística variacionista. No entanto, alguns tópicos essenciais dessa conversa dificultam o alcance de uma interpretação convergente sem que se abra mão de conceitos nucleares de uma ou de outra das teorias ‘mães’. Daí surge a questão: privilegiando-se o modo de ver de um dos quadros teóricos, o casamento pode acontecer? Se sim, parece haver duas opções possíveis: predomínio de aspectos funcionalistas ou predomínio de aspectos variacionistas. Tais posições situam-se em lugares teóricos distintos? Como já mencionado, uma teoria é um pacote completo e, se todos os seus pressupostos não forem encaixáveis em outra teoria, certamente decorrem importantes implicações para a associação resultante. Na busca de tais implicações, na seção seguinte, são abordados pressupostos funcionalistas e variacionistas não muito abertos ao bate-papo. Na seqüência, é analisada a postura de alguns pesquisadores alinhados na vertente sociofuncionalista em relação a aspectos divergentes que encontraram e em relação ao lugar na lingüística em que situam seus estudos. Após, é

121 Ambos os processos – ressistematização constante da gramática e mudança lingüística – podem ser denominados gramaticalização. Há autores, como Givón, que reservam o termo gramaticalização apenas para alterações de padrões de uso incorporados pela gramática, enquanto outros, como Hopper, o utilizam para a emergência cotidiana da gramática (cf. capítulo II). Nesta tese, o termo é utilizado em ambos os sentidos.

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apresentado um quadro que sintetiza toda a conversa – destacando os aspectos convergentes ou não abordados até o momento. Para finalizar, as possibilidades de casamento e seu lugar teórico são discutidas, assumindo-se uma delas como fundamentação teórica desta tese. 3.1 PRIORIDADES: QUEIJOS CUJOS FUROS NÃO SE ENCAIXAM Hopper (1987) define a estrutura da gramática como um processo em andamento, sempre emergindo rumo a sua constituição, mas nunca chegando a constituir-se de fato, pois sofre constantes alterações por conta das características do manancial de onde deriva e onde existe: seu uso por falantes. A gramática em uso depende das circunstâncias envolvidas a cada ato de comunicação, especialmente das experiências diversas de cada interlocutor com a língua e conseqüentes tentativas de ajuste entre essa diversidade no momento mesmo da interação. Semelhantemente, para Givón (1995), a gramática é emergente por natureza e a função a que serve é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. Se uma fórmula lingüística é utilizada, o é em razão de alguma função, o que está subjacente à organização gramatical. Diferentemente, Weinreich, Labov & Herzog (1968) atribuem papel central às noções de sistema e de estrutura, considerando a língua um sistema regido por regras (in)variáveis122 entendidas como elementos estruturais, parte da competência lingüística dos falantes. Para os autores, aspectos funcionais ficam em segundo plano. Labov (1972:184) defende que o objetivo da teoria sociolingüística é, mais do que medir o peso dos fatores sociais, obter um retrato da estrutura gramatical da língua. Ou seja, a preocupação primária é com “as formas das regras lingüísticas e com as restrições impostas sobre elas, sua combinação dentro de sistemas, e a evolução dessas regras e sistemas ao longo do tempo.” Nessa linha, Labov (1994) nega que a função exerça motivação significativa sobre a constituição da estrutura ou mesmo que desempenhe papel relevante no rol de causas da variação e da mudança lingüística. O valor que ambos os quadros teóricos atribuem à função e à estrutura é, portanto, diferente. Há um embate entre o funcionalismo voltado à gramaticalização, assentado no pressuposto de primazia da função, e a sociolingüística variacionista, fundamentada na concepção de estrutura como básica. Esse embate se reflete na recorrência do emprego de alguns termos em pesquisas realizadas sob a égide de cada um dos modelos em conversação. Uma comparação – por exemplo, entre, de um lado, Hopper (1987), Hopper & Traugott (1991), Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991), Ramat & Hopper (1998), Bybee & Hopper (2001), e, de outro lado, Weinreich, Labov & Herzog (1968), Labov (1972a, 1978, 1994 e 2001), Guy (1995) – facilmente revela que sistema, estrutura e regra são palavras corriqueiras entre os sociolingüistas, e comparativamente pouco freqüentes entre os estudiosos da gramática emergente e da gramaticalização. Essa constatação é um bom indício de que as preocupações centrais de cada conjunto de pesquisadores são distintas. A teoria variacionista expressa seus achados na forma de regras abstratas. As regras variáveis representam um modo de descrever formalmente a inter-relação sistemática entre os condicionamentos internos e externos à língua. Já o funcionalismo vinculado à acepção de gramática emergente focaliza relações de diferentes graus entre funções e formas e a alteração por que passam tais relações ao longo do tempo, não se ocupando em estipular regras abstratas subjacentes ao uso. O importante é observar, nos padrões de uso lingüístico que passam por 122 Nos casos em que não há variação, as regras são ditas invariáveis ou categóricas, o que significa haver 100% de aplicação.

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modificações, o surgimento de fórmulas inovadoras e sua trajetória rumo a níveis cada vez mais gramaticais. Cabe ao estudioso buscar estratégias recorrentes de organização do discurso, mapeando, dessa forma, as regularidades – isto é, a gramática. O alvo é não a descrição da estrutura variável da língua e das regras que a governam em uma dada fatia de tempo, mas sim a análise das tendências de uso manifestadas pelos falantes – tendências que se traduzem em forma de freqüências reveladoras de maior ou menor rotinização. Dado que o foco primário de cada teoria ‘mãe’ recai sobre diferentes aspectos, as motivações tidas como subjacentes aos fenômenos de estratificação ou variação e de mudança lingüística são igualmente diferentes. Uma das concepções nucleares do funcionalismo é a de que a (re-)constituição constante da gramática é funcionalmente motivada, sendo extensão e reflexo de procedimentos cognitivos, comunicativos e sociais. As estruturas tendem a refletir e a ser alteradas por causa da pressão exercida por motivações funcionais. Assim, a emergência dos domínios gramaticais e de suas camadas é fruto do uso dado à língua e de tudo o que está envolvido nas situações comunicativas. A opção do falante por uma camada dentre as disponíveis em um domínio funcional depende do contexto sociolingüístico em que se desenrola a interação e das motivações funcionais subjacentes a ele. Em contraste, Labov (1994) nega que a função exerça papel significativo na constituição da estrutura ou mesmo no elenco das forças motivadoras da variação e da mudança lingüística.123 Para ele, as motivações em jogo, além das sociais, são as estruturais e as mecânicas. Princípios e grupos de fatores de natureza funcional não são levados em conta. Já estudos funcionalistas não oferecem resistência à inclusão de motivações estruturais na análise. A relação entre estas e as demais motivações possíveis é geralmente pensada como uma competição pelo condicionamento das formas. Em alguns casos, as estruturais são mais fortes, em outros, as funcionais, havendo também a possibilidade de empate (cf. Du Bois, 1984; Furtado da Cunha, 2001; Neves, 2002; entre outros). 3.2 COM A PALAVRA OUTROS ESTUDOS CASAMENTEIROS Apesar das diferenças entre o funcionalismo e o variacionismo quanto ao que deve constituir o foco primário da investigação lingüística (função versus estrutura) e ao que ela deve levar em conta ou deixar de lado (motivações funcionais versus motivações estruturais, recorrência de uso versus regras (in)variáveis, etc), têm sido realizadas pesquisas inseridas em uma zona de confluência entre preceitos de ambos os quadros teóricos. Os trechos listados no quadro 11 foram extraídos de: (i) estudos que podem ser considerados sociofuncionalistas, por associarem, em suas análises, conceitos do funcionalismo e do variacionismo; (ii) artigos que versam questões teórico-metodológicas implicadas por tal articulação de conceitos.

Não é difícil notar que esses trechos revelam conflitos quanto a se certos aspectos de uma e outra das fontes podem ser integrados e, especialmente, deixam transparecer crises de identidade, levando a indagar onde deve ser situado o tipo de abordagem defendida por seus autores: (i) na sociolingüística laboviana? (ii) no funcionalismo? (iii) em uma extensão da sociolingüística ou do funcionalismo? (iv) no entremeio?

123 Todavia, Weiner & Labov (1977), em seu estudo sobre as passivas, testaram o papel de um grupo de fatores funcional, o status informacional, que foi estatisticamente selecionado como o segundo grupo de fatores lingüístico mais relevante, perdendo apenas para o paralelismo. O paralelismo, por sua vez, é um grupo de fatores suspeito. Embora Labov (1994) considere que tenha natureza estrutural, tal grupo pode ser, na verdade, funcional (cf. seção 2.7.3 do capítulo II).

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Quadro 11: Trechos extraídos de estudos feitos na interface funcionalismo-sociolingüística

“Podemos considerar que o interesse maior por fenômenos sintáticos representa uma segunda fase da abordagem laboviana. Esse interesse acabou por levar os pesquisadores a incorporem informações de outros campos – especialmente o discursivo-pragmático – à análise variacionista, daí resultando também certa mudança na feição do objeto de estudo: passa-se a tomar por base um processo (como a indeterminação, por exemplo) e verificar suas diferentes formas de expressão. (...) São estas ainda abordagens labovianas? Parece que sim. O princípio da variação continua em jogo, assim como a quantificação dos dados, o controle dos fatores sociais, para a procura de correlações.” (Paredes da Silva, 1993: 884)124

“(...) 1) os fenômenos estudados são das mais diferentes ordens; 2) os condicionamentos sociais nem sempre se revelam atuantes, dificultando a projeção das tendências de mudança a partir das análises feitas. Ainda assim, a abordagem é laboviana? Parece que sim. Examinamos a língua em uso (...). Continuamos a buscar a sistematicidade da variação, a quantificá-la de acordo com variáveis sociais e estruturais, a procurar vislumbrar os percursos da evolução da língua. Isso é o que nos une, e não é pouco. O que nos separa? O que nos separa é a base da formulação de nossas hipóteses, a linha interpretativa que adotamos. (...) a extensão do conceito de variável a um conjunto de construções ou estruturas mais complexas sem dúvida contribui para criar dificuldades e questionamentos. Mas não será este o nosso desafio?” (Paredes da Silva, 1993:885)

“Relações proposicionais outras - causa, reiteração, seqüência, etc - também começam a ser investigadas sob uma perspectiva variacionista.” (Braga, 1992:96)

“Em linhas gerais, as pesquisas relatadas no presente livro foram todas desenvolvidas sob a perspectiva da Teoria da Variação Lingüística (...). Dela foram incorporados os principais postulados e dela divergem em alguns aspectos.” (Scherre 1996:39) “Dentre os postulados aceitos por tais pesquisas, estão: (a) a idéia de que a variação é inerente ao sistema lingüístico e de que a noção de heterogeneidade não é incompatível com a noção de sistema; (b) a dissociação entre estrutura e homogeneidade; (c) a postura de que os fenômenos lingüísticos variáveis são regulares, podendo ser descritos e explicados por restrições de natureza lingüística e não lingüística; (d) o fato de as mudanças terem essencialmente motivações sociais. Todavia, tais pesquisas discordam da proposta de Labov (1972b) de inserir as reflexões da sociolingüística no arcabouço teórico da gramática gerativa, através do alargamento da noção de regra. É assumida a existência de forças internas e externas motivando os fenômenos lingüísticos” (op. cit.:39-43). “O modelo variacionista passa a admitir, portanto, dois tipos de correlações: a) duas ou mais variantes fonológicas: nenhum significado; b) duas ou mais variantes não fonológicas: dois ou mais significados distintos com uma mesma função/significado abrangente comum.” (Gryner, 1998:143).

Alguns grupos de pesquisa organizados trabalham na teoria funcionalista. A multiplicidade de orientações que caracteriza a visão funcionalista da linguagem se reflete no cenário brasileiro, onde múltiplos são os interesses dos que se auto-intitulam funcionalistas. A própria indicação das correntes teóricas eleitas torna-se problemática, já que uma grande parte dos investigadores conciliam propostas de diferentes linhas. O maior e mais antigo desses grupos é o PEUL (Programa de Estudos sobre o Uso da Língua), que tem orientação variacionista dominante, movendo-se, pois, no que alguns membros do grupo definem como sociofuncionalismo. O projeto aborda a variação lingüística sob o prisma da função discursiva das variantes.” (Neves, 1999:75)

Em referência à tese de doutorado de Paredes da Silva (1988), Neves (1999:78) afirma que a “(...) análise utiliza os princípios e métodos da sociolingüística laboviana associados a interpretações funcionalistas dos resultados quantitativos, no sentido de ver as tendências de uso como reflexo da organização do processo comunicativo.”

“A incorporação de aspectos discursivos e de processamento na análise variacionista, que alinha o grupo125 a paradigmas funcionalistas de estudo da linguagem, constitui uma tentativa de transpor o plano

124 Acrescentei grifos nas citações do quadro 11. O sublinhado destaca informações importantes que serão retomadas posteriormente e o itálico destaca o lugar teórico assumido pelos diferentes pesquisadores. 125 O grupo acima referido é o PEUL (Programa de Estudo sobre o Uso da Língua).

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descritivo da variação, buscando a razão de ser da coexistência de duas ou mais formas de dizer a mesma coisa.” (Paiva e Scherre, 1999:210)

“Vale lembrar, como ressaltado previamente, que a inclusão dos aspectos discursivos enquanto condicionadores suscita problemas cruciais a esta metodologia. Os trabalhos a que nos referiremos a seguir devem ser encarados, pois, como passos à procura de um caminho ainda não explorado. Desafiados pelo funcionamento discursivo, seus autores se questionam sobre os limites da regra variável. Poderão os aspectos discursivos ser incorporados, tratados por uma metodologia que pressupõe uma análise quantitativa rigorosa?” (Braga, 1992:79)

Em um artigo intitulado “Questões teórico-descritivas em sociolingüística e em sociolingüística aplicada e uma proposta de agenda de trabalho”, Mollica & Roncarati (2001:47) afirmam que “(...) já exibimos expressivo acervo de pesquisas dessa natureza sobre a fala e a escrita, com o fito de (a) analisar a variação, aquisição e mudança lingüística, abrangendo fenômenos morfossintáticos, fonológicos e discursivos; (b) descrever processos de mudança que evidenciam e favorecem a gramaticalização de itens e construções lingüísticas; (c) investigar atitudes e crenças lingüísticas implicadas na variação lingüística e (d) identificar estratégias argumentativas envolvidas no texto escrito e suas marcas lingüísticas.” As autoras também lembram que, “Quanto a categorias e interpretações, muitos estudos fundamentam-se em princípios funcionalistas que preconizam, por exemplo, processos de gramaticalização para explicar mutações lingüísticas e estratégias compensatórias relacionadas à manutenção do equilíbrio dos sistemas.” “Constata-se, no conjunto dos estudos, uma pluralidade teórico-metodológica nitidamente presente (...). Sendo assim, a área de pesquisa em Sociolingüística amplia-se e enriquece-se epistemologicamente. Se, por um lado, essa expansão é desejável, por outro, impõe restrições para a ciência, pois os avanços no campo ficam a depender de um conjunto de achados em diferentes direções que acabam por criar mais questões que respostas.”

“Detalhamos a seguir como evidências provindas das fontes lexicais e da retenção de usos anteriores nos permitem traçar o progresso de sua descendência ao longo do aclive de gramaticalização de verbo lexical para morfema gramatical. Fazemos isso operacionalizando elementos historicamente implicados na mudança como fatores em uma análise de regra variável.” (Poplack & Tagliamonte, 2000:332)

Entre as características da abordagem lingüística discutida nos textos de onde foram extraídas as citações acima, salientam-se:

Quadro 12: Síntese de características da interface funcionalismo-sociolingüística, segundo os autores supracitados

���� exame da língua em uso; ���� a heterogeneidade lingüística é compatível com a noção de sistema e a variação é inerente ao

sistema; ���� análise dos percursos da evolução da língua e suas motivações – essencialmente sociais; ���� busca da regularidade da variação pela quantificação dos dados de acordo com variáveis sociais,

estruturais e discursivas, com base na crença da existência de forças internas e externas motivando os fenômenos lingüísticos;

���� tomar por base um processo e verificar suas diferentes formas de expressão, estendendo o conceito de variável a um conjunto de construções ou estruturas mais complexas com uma mesma função/significado abrangente comum;

���� incorporação de aspectos de outros campos: discursivo-pragmático e processamento, em especial; ���� utilização dos princípios e métodos da sociolingüística laboviana associados a interpretações

funcionalistas dos resultados quantitativos para ver as tendências de uso como reflexo da organização do processo comunicativo;

���� descrever processos de mudança que evidenciam e favorecem a gramaticalização de itens e construções lingüísticas.

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Tal abordagem - ou abordagens? - pode ser considerada sociofuncionalista, uma vez que articula pressupostos do funcionalismo (estudo da função, análise de aspectos discursivos e processamentais, tendências de uso entendidas como reflexo da organização do processo comunicativo, dentre outros) e da sociolingüística (variação, quantificação dos dados de acordo com variáveis sociais e estruturais, motivação social da mudança, dentre outros). No entanto, os diferentes pesquisadores citados no quadro 11 não situam no mesmo lugar a perspectiva teórica que assumem. Alguns deles a colocam sob os auspícios da sociolingüística variacionista, embora apontem haver modificações ou divergências em relação à proposta original. Como foram incorporados aspectos vindos de outros campos, especialmente referentes às perspectivas funcionalistas de ver a língua, parece que a associação de postulados defendida resulta em uma espécie de sociolingüística variacionista estendida. Em contraste, outros pesquisadores parecem assumir um lugar no entremeio, asseverando uma abordagem teórica dupla: “teoria funcionalista” com “orientação variacionista dominante”, “princípios e métodos da sociolingüística laboviana associados a interpretações funcionalistas dos resultados”, “incorporação de aspectos discursivos e de processamento na análise variacionista, que alinha o grupo a paradigmas funcionalistas de estudo da linguagem”. Por vezes, o entremeio parece mais voltado à sociolingüística: “orientação variacionista dominante” (tratar-se-ia de uma extensão da sociolingüística?), por vezes ao funcionalismo: “que alinha o grupo a paradigmas funcionalistas de estudo da linguagem” (tratar-se-ia de uma extensão do funcionalismo?). Temos ainda a postura de Braga (1992), talvez operando um movimento para longe do variacionismo, ao questionar se aspectos discursivos podem ser tratados por uma metodologia que pressupõe uma análise quantitativa rigorosa. Já Mollica & Roncaratti (2001) admitem a incorporação, por parte da sociolingüística, de uma grande porção de conceitos funcionalistas, em uma intensa ampliação do modelo, que passa a tomar para si inclusive o conceito de gramaticalização. As autoras apontam a existência de uma pluralidade teórico-metodológica no seio da sociolingüística, incluindo a possibilidade de fundamentação em princípios funcionalistas – não na zona de confluência, mas na própria sociolingüística, já que o título do artigo sob enfoque é “Questões teórico-descritivas em sociolingüística e em sociolingüística aplicada e uma proposta de agenda de trabalho”. O trecho extraído de Poplack e Tagliamonte (2000) ilustra a utilização da noção de gramaticalização em um estudo variacionista (inclusive publicado em uma das principais revistas da área, Language Variation and Change). Nesse estudo, são tomadas como variantes da variável dependente ‘marcação de tempo futuro’ no inglês as formas going to e will. Elementos ligados ao seu desenvolvimento histórico (por exemplo, tipo de agente que se vincula ao verbo, se há ou não expressão de intenção, etc) são controlados na forma de grupos de fatores, o que permite relacionar a distribuição variável de be going to e will a etapas de seu percurso de gramaticalização. É interessante ressaltar que, no desenvolvimento da análise de Poplack e Tagliamonte, termos e expressões como gramaticalização, fontes lexicais, retenção de usos anteriores convivem bem ao lado de termos e expressões como variantes, variável e regra variável. Enfim, vêm sendo apontadas múltiplas possibilidades de encaixamento do sociofuncionalismo na matriz de estudos lingüísticos... A busca de convergências entre o funcionalismo voltado à gramaticalização e a sociolingüística variacionista nesta tese enfrenta dilemas similares aos dos pesquisadores supracitados. Onde situar o quadro sociofuncionalista

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resultante dos emparelhamentos? Trata-se de uma vertente de uma ou outra das teorias, ou uma teoria à parte, talvez situada no entremeio? O fato de haver diversos espaços possíveis para abrigar o sociofuncionalismo deixa emergir ainda a possibilidade da existência de perspectivas diferenciadas que realmente se situam em lugares distintos. Podemos aventar a possibilidade da emergência de mais de uma abordagem a partir das tentativas de ajuste entre os pressupostos das duas teorias ‘mães’ sob enfoque? Em caso afirmativo, onde poderiam ser situadas as diferentes abordagens? E a abordagem assumida aqui? Todas essas questões mostram a necessidade de se aceitar o “desafio”, refletindo-se acerca dos “problemas cruciais” da conversa na diferença travada entre o funcionalismo e a sociolingüística. 3.3 RESUMINDO A CONVERSA O quadro a seguir retoma aspectos conversados nas seções 2 e 3.1, resumindo os principais tópicos do bate-papo em busca da convergência entre preceitos teórico-metodológicos do funcionalismo voltado à gramaticalização e da sociolingüística variacionista. Recebem atenção semelhanças, dessemelhanças e complementariedades entre as teorias ‘ mães’ e a convergência resultante - o ‘filhote’ sociofuncionalismo -, já estando o “pepino” torcido para a postura sociofuncionalista assumida nesta tese. Outras posturas sociofuncionalistas possíveis também recebem destaque logo mais, na seção 3.4, que discute justamente a hipótese de existência de mais de um tipo de casamento entre os quadros teóricos ora em diálogo, além de detalhar a abordagem a ser seguida para a análise dos fenômenos de variação e de mudança no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora em Florianópolis.

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Quadro 13: Resumo da conversa entre o funcionalismo voltado à gramaticalização e a sociolingüística variacionista → convergindo no sociofuncionalismo FUNCIONALISMO VOLTADO À GRAMATICALIZAÇÃO SOCIOLINGÜÍSTICA VARIACIONISTA CONVERGINDO NO SOCIOFUNCIONALISMO Língua em uso, cuja natureza heterogênea abriga a variação e a mudança.

Idem. Idem.

Situações de comunicação real em que falantes reais interagem. Idem. Idem.

Destaque à mudança lingüística, entendida como processo contínuo e gradual.

Idem. Idem.

A mudança é disseminada ao longo do âmbito lingüístico e do âmbito social, com alterações contínuas em termos de freqüência.

Idem. Idem.

Complementariedade entre dados sincrônicos e diacrônicos. Idem. Idem.

Uniformitarismo, com inspiração na sociolingüística variacionista. Uniformitarismo. Uniformitarismo.

Análise de aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos – todos entendidos como discursivos, pois só ganham existência quando usados.

Análise de aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos.

Análise de aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos – todos entendidos como discursivos, pois só ganham existência quando usados.

A freqüência das ocorrências é importante para o estabelecimento e para a manutenção da gramática; para a análise dos estágios do processo de gramaticalização; para o estudo da difusão lingüística e social da mudança.

A freqüência das ocorrências é importante para o estudo da difusão lingüística e social da mudança. Há a necessidade de certa recorrência para que as formas possam ser comparadas por meio do instrumental estatístico.

A freqüência das ocorrências é importante para o estabelecimento e para a manutenção da gramática; para a análise dos estágios do processo de gramaticalização; para o estudo da difusão lingüística e social da mudança. Há a necessidade de certa recorrência para que as formas possam ser comparadas por meio do instrumental estatístico.

Relação entre os fenômenos lingüísticos e a sociedade que usa a língua: (a) a mudança espalha-se de forma gradual ao longo do espectro social; (b) costuma haver diferença entre falantes mais velhos e mais jovens, no caso de mudança em progresso; (c) forças sociais atuam no surgimento de inovações e em sua disseminação sociolingüística. Inspiração na sociolingüística variacionista para os itens (a) e (b), empregando seus conceitos e mesmo termos. Ampliação dos preceitos da sociolingüística no item (c).

Idem quanto aos itens (a) e (b). Pioneira no estudo dos aspectos sociais dos fenômenos de variação e mudança, é até hoje - dentre as teorias aqui batendo um papo - a que investiga com mais profundidade a relação entre língua e sociedade, chegando a incorporar restrições sociais às regras variáveis.

Idem quanto aos itens (a), (b) e (c).

Com inspiração na sociolingüística, analisa gramaticalização em andamento, considerando a distribuição etária dos informantes - Androustsopoulos (1999), especificamente.

Analisa mudança em andamento, considerando a distribuição etária dos informantes.

Analisa mudança = gramaticalização em andamento, considerando a distribuição etária dos informantes.

O termo mudança abrange: (a) surgimento das inovações; (b) difusão social das inovações.

O termo mudança refere-se à difusão social das inovações. Análise do grau de difusão por meio das distribuições sociais dos itens lingüísticos.

O termo mudança abrange: (a) surgimento das inovações; (b) difusão social das inovações. Análise do grau de difusão por meio das distribuições sociais dos itens lingüísticos, das quais também são derivados indícios de que novidades possam estar emergindo ou vir a emergir futuramente.

Mecanismos de mudança: reanálise, analogia, metáfora, metonímia, dentre outros.

Não destaca mecanismos de mudança. Mecanismos de mudança: reanálise, analogia, metáfora, metonímia, dentre outros.

A maioria das inovações é passageira. Apenas algumas são Idem. Idem.

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repetidamente re-utilizadas e, caso aceitas pela comunidade de fala, podem ser cada vez mais difundidas.

Recebe mais destaque a história de uma forma, com a investigação dos estágios de gramaticalização por que passa um só item ou construção. Contudo, o princípio de estratificação (Hopper, 1991) prevê, como conseqüência da gramaticalização, a convivência de itens como camadas mais novas e mais antigas em um mesmo domínio funcional.

Recebe mais destaque a coexistência de formas variantes em dado momento de sua evolução, investigando-se com detalhe esse fenômeno de variação lingüística.

Recebem destaque a história e a coexistência de diferentes formas, investigadas como camadas/variantes que convivem em um mesmo domínio funcional, gerando o que pode ser definido como uma situação de estratificação/variação. Também são investigados estágios de gramaticalização, com a hipótese de que a situação de estratificação/variação é influenciada pelo que aconteceu no percurso de gramaticalização de cada item até a chegada ao domínio em questão.

Camadas de um domínio possuem a mesma função. Variantes de uma variável possuem o mesmo significado. Camadas/variantes podem possuir ou não o mesmo significado, conquanto exibam a mesma função.

A variação decorre da mudança. A mudança decorre da variação. A variação e a mudança decorrem uma da outra. Ao se estudar variação, analisa-se uma etapa de mudança em que convergem os percursos de gramaticalização seguidos por cada uma das formas envolvidas. Ao se estudar gramaticalização, averigua-se diferentes etapas de variação ao longo do tempo.

Existem períodos em que não se constatam alterações mais salientes.

Existem períodos de variação estável, sem indícios de mudança em curso.

Existem períodos de estratificação/variação estável, sem indícios de mudança em curso.

As especializações das camadas de um domínio são manifestadas através de preferências de uso, condicionadas por contextos sociolingüísticos.

Análise do condicionamento de grupos de fatores lingüísticos e sociais sobre o uso das variantes, o que revela o quadro de distribuição de cada uma delas quanto aos contextos sociolingüísticos. Detém-se com mais rigor na investigação dos contextos prediletos de cada variante, buscando detalhar a ação combinada dos diversos fatores sobre cada situação de uso.

Análise do condicionamento de grupos de fatores lingüísticos e sociais sobre o uso das camadas/variantes, o que revela o quadro de distribuição de cada uma delas quanto aos contextos sociolingüísticos, quadro que pode ser tomado como reflexo de estágios passados do desenvolvimento do domínio e das formas, bem como pode ser lido como espelho de seus desenvolvimentos futuros. Busca detalhar a ação combinada dos diversos fatores sobre cada situação de uso.

Situações de estratificação tendem a ser solucionadas com o passar do tempo. Uma situação em que uma função gramatical é expressa por duas ou mais formas lingüísticas tende a mudar para uma em que a função é expressa por apenas uma forma.

Situações de variação tendem a ser solucionadas com o passar do tempo, do que deriva que as regras variáveis tendem a se tornar categóricas.

Situações de estratificação/variação tendem a ser solucionadas com o passar do tempo.

Soluções possíveis para situações de estratificação: (a) especialização por generalização; (b) especialização por especificação.

Soluções possíveis para situações de variação: (a) uma variante prepondera sobre as demais; (b) as variantes assumem papéis diferentes.

Soluções possíveis para situações de estratificação/variação: (a) especialização por generalização: uma camada/variante prepondera sobre as demais; (b) especialização por especificação: as camadas/variantes assumem papéis diferentes.

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Dados ambíguos, embora não façam parte das análises quantitativas, não são excluídos, pois casos fronteiriços evidenciam as relações de fluidez e de continuidade existentes entre categorias e, desse modo, facilitam a reconstrução dos passos seguidos pelas formas em suas trajetórias de mudança.

Exige a realização de delimitações criteriosas, o que implica o descarte de dados que manifestam sobreposição de funções, ambigüidades e indistinções. Analisa somente o que se situa nos limites internos do traçado estipulado, excluindo dados ambíguos.

Dados ambíguos são excluídos das análises quantitativas, mas são levados em conta na investigação dos passos seguidos pelas formas em suas trajetórias de mudança, além de servirem de indícios para a compreensão do quadro de distribuição lingüística e social das camadas/variantes. Dados ambíguos entre um fator e outro de cada grupo de fatores não são excluídos da análise, e sim alocados em um ou outro dos fatores, de acordo com determinados critérios; prevê-se, porém, certa margem de erro.

Tratamento empírico dos dados, com quantificação estatística. Vale-se de freqüências. Não possui instrumental estatístico específico.

Tratamento empírico dos dados, com quantificação estatística. Vale-se de freqüências e pesos relativos. Possui instrumental estatístico próprio - o programa VARBRUL -, que realiza análise multivariada, dando conta das várias forças que atuam de modo simultâneo sobre a variação.

Tratamento empírico dos dados, com quantificação estatística. Vale-se de freqüências e pesos relativos. Emprega o programa VARBRUL, que realiza análise multivariada, dando conta das várias forças que atuam de modo simultâneo sobre a estratificação/variação. Amplia o uso do peso relativo: além de auxiliar na obtenção do quadro de distribuições sociolingüísticas, ele serve para antever rumos futuros do processo de gramaticalização.

Dados coletados em diferentes corpora (conversação, jornais, revistas, etc). A postura mais defendida é o emprego de dados provindos de fontes diversas.

Dados coletados preferencialmente em entrevistas sociolingüísticas, para a obtenção de um grande número de ocorrências, difíceis de serem extraídas da fala cotidiana, mas necessárias para a aplicação do instrumental estatístico.

Dados coletados em corpora diversos (conversação, jornais, revistas, etc). Entrevistas sociolingüísticas podem ser uma boa fonte de dados, por permitirem a coleta de uma grande amostra de dados, o que facilita a ação do instrumental estatístico.

Embora grande parte das inovações se concentra na fala das crianças menores, os demais falantes estão sujeitos a ter sua fala alterada pelo acréscimo de novidades.

Costumava definir o final da adolescência como o período de vida em que se encerra a transmissão da língua e da mudança lingüística. Estudos mais recentes encontraram casos de adultos que modificaram seus vernáculos, o que exige que se tome cuidado com o estabelecimento de fronteiras etárias rígidas para a fixação do sistema lingüístico.

Não estabelecimento de fronteiras etárias rígidas para a ocorrência da mudança, mas previsão de que grande parte das inovações se concentra nos falantes mais jovens, provavelmente por razões sociais.

A função a que serve a gramática é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. A gramática é um processo em andamento, sempre emergindo rumo a sua constituição, mas nunca chegando a constituir-se de fato, pois sofre constantes alterações por conta das características do manancial de onde deriva e onde existe: seu uso por falantes.

A prioridade é a estrutura. A língua - e, por tabela, a gramática - é tida como um sistema regido por regras (in)variáveis.

A função a que serve a gramática é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. A gramática é um processo em andamento, sempre emergindo rumo a sua constituição, mas nunca chegando a constituir-se de fato, pois sofre constantes alterações por conta das características do manancial de onde deriva e onde existe: seu uso por falantes.

Não destaca regras formais. Focaliza relações de diferentes graus entre funções e formas. Cabe ao estudioso buscar estratégias recorrentes de organização do discurso, mapeando, dessa forma, as regularidades.

Destaque para regras formais abstratas, que descrevem formalmente a inter-relação sistemática entre os condicionamentos internos e externos à língua.

Focaliza relações de diferentes graus entre funções e formas. Cabe ao estudioso buscar estratégias recorrentes de organização do discurso, mapeando, dessa forma, as regularidades. Análise das inter-relações entre os condicionamentos internos e externos à língua – uma gama de motivações que age a cada situação comunicativa, contribuindo com as

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constantes emergências e enraizações sofridas pela gramática.

As estruturas tendem a refletir e a ser alteradas por causa da pressão exercida por motivações funcionais (entendidas como cognitivas, comunicativas e sociais).

As motivações consideradas relevantes são as estruturais e as sociais. A função não exerce motivação significativa sobre a constituição da estrutura ou sobre a variação e a mudança.

As estruturas tendem a refletir e a ser alteradas por causa da pressão exercida por motivações funcionais (entendidas como cognitivas, comunicativas e sociais) e também motivações estruturais, geralmente tidas como em competição com as funcionais.

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3.4 FINALIZANDO O BATE-PAPO: CONVERGÊNCIAS POSSÍVEIS Na conversa na diferença entre o funcionalismo e a sociolingüística variacionista sintetizada acima, podemos perceber que há tópicos cuja convergência parece fácil de ser alcançada, notadamente aqueles marcados por um idem na segunda e/ou na terceira coluna: as definições mais gerais de língua; o uso de dados reais; a abordagem à mudança lingüística, entendida como contínua e gradual; a complementariedade entre sincronia e diacronia; a importância da quantificação dos dados; o estudo da difusão sociolingüística da mudança; o princípio do uniformitarismo; entre outros. Quanto a alguns aspectos, a busca de emparelhamento exige uma ‘inter-tradução’ de termos, pois são distintas algumas palavras empregadas pelas teorias ‘mães’ em referência a fenômenos semelhantes. Considerem-se, por exemplo, estratificação e variação, camadas e variantes, domínio funcional e variável dependente, entre outras. No decorrer do bate-papo, são assumidos certos pressupostos teórico-metodológicos mais específicos a uma ou outra das teorias em conversação. Hipóteses e explicações para a influência de grupos de fatores sociais provêm da sociolingüística, que tem tratado a relação entre língua e sociedade com maior atenção e refinamento que os estudos funcionalistas voltados à gramaticalização. Já os desenvolvimentos por que passam os itens lingüísticos, incluindo detalhes quanto a estágios específicos rumo à maior abstração e generalização e quanto a mecanismos de mudança, são abordados com mais profundidade pelos estudos da gramaticalização, e é nesta fonte que são procurados subsídios para a investigação das trajetórias de mudança que desembocam na seqüenciação e de seus rumos posteriores. Podemos mencionar ainda o uso do VARBRUL - e dos pesos relativos - para a análise das distribuições sociolingüísticas das camadas/variantes, um procedimento vindo da sociolingüística; e o destaque dado, quando da análise dos percursos de gramaticalização das formas, aos dados ambíguos e ‘entres’ em geral, um procedimento comum ao funcionalismo voltado à gramaticalização. Alguns preceitos teórico-metodológicos derivados de um e de outro dos modelos fontes acabam se mesclando fortemente ao convergirem no sociofuncionalismo. É o que ocorre com o olhar sociofuncionalista dirigido às distribuições sociolingüísticas (em termos de freqüências e pesos relativos): elas são interpretadas como indícios de possíveis caminhos de especializações a serem seguidos pelas camadas/variantes da seqüenciação em um processo de eliminação da situação de estratificação/variação e, por tabela, como indícios de passos percorridos pelas camadas/variantes em sua trajetória de mudança por gramaticalização – da mudança de cada uma delas em particular e, indissociavelmente, do domínio como um todo. Em determinados pontos, a conversa se torna mais difícil, mas ainda assim se consegue atingir a convergência. Por exemplo, considera-se que as camadas/variantes podem exibir ou não o mesmo significado, contanto que marquem a mesma função; e que é recomendável o emprego de entrevistas sociolingüísticas na análise, por ser necessário um grande número de dados. No primeiro caso, temos uma opção alinhada ao funcionalismo e, no segundo, uma opção tipicamente variacionista, mas podemos justificar o acoplamento de ambas no quadro resultante: (i) mesmo sendo a função prioritária para a estipulação das camadas/variantes, aspectos relativos ao significado são sempre levados em conta e, se não forem determinantes na seleção das formas, ao menos serão controlados como grupos de fatores; (ii) as entrevistas sociolingüísticas são um dos tipos de interação válidos para a análise da fala, já que buscam o vernáculo, e os resultados obtidos através de dados extraídos dessas entrevistas podem ser complementados por resultados (quantitativos e/ou qualitativos) vindos de mananciais diversos.

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Todavia, nem todos os pressupostos teórico-metodológicos das teorias ‘mães’ do sociofuncionalismo se encaixam como peças de um quebra-cabeças. O funcionalismo lança seu foco em direção à função, ao investigar relações de diversos graus entre funções e formas no processo de re-sistematização constante da língua e ao considerar motivações funcionais (e também estruturais) como subjacentes à organização da gramática e, conseqüentemente, aos fenômenos de variação e de mudança. A sociolingüística variacionista toma como objeto central a estrutura lingüística, buscando estipular regras estruturais variáveis que incorporam os condicionamentos lingüísticos e sociais que influem na seleção das formas variantes e considerando motivações estruturais e sociais como subjacentes à organização da gramática, à variação e à mudança. O bate-papo entre o funcionalismo e a sociolingüística flui bem até certo ponto, indo de convergências mais simples a convergências mais difíceis, mas ainda assim alcançadas. No entanto, aspectos bastante distintos - referentes a uma oposição função versus forma em termos de prioridades de pesquisa - foram postos para dialogar e revelaram desentendimentos - casos de não convergências (seriam incomensurabilidades?) que representam empecilhos para a integração dos quadros teóricos. É sobre essa questão que versa a seção seguinte. 3.4.1 EMERGÊNCIA DE MÚLTIPLAS ABORDAGENS Começar uma conversa entre modelos teóricos requer pontos em comum, semelhantes, complementares ou, se diversos, ao menos abertos à discussão, sendo então possível, a partir de certos deslocamentos e adaptações, alcançar-se o esperado emparelhamento. Conceitos, significados, gramáticas, intenções e interpretações pertinentes a um e outro dos modelos em negociação com fins de casamento não são entendidos aqui como incomensuráveis, ao modo de Kunh (1970) e Borges (1991), mas são inegavelmente distintos em graus variados. Por essa razão, qualquer conversa que se pretenda estabelecer entre eles é uma conversa na diferença, pautada na possibilidade de se atingir convergências entre preceitos, ao ajustarem-se os ‘relógios das diferentes metalinguagens’ e os termos de uma teoria passarem a ser compreendidos na linguagem da outra (cf. Pires de Oliveira, 1999). Tal procedimento não implica que, no decorrer do bate-papo, uma das teorias seja traduzida para os termos da outra e sim que há uma tradução mútua (uma inter-tradução), derivada de múltiplas convergências entre traços de um e outro dos modelos (o que se tenta mostrar na coluna 3 do quadro 13). O resultado dessas convergências é um lugar outro de pesquisa, distinto daqueles delineados pelas teorias ‘mães’, já que não pertence a nenhuma delas em particular e também não é um mero fruto de sua soma. Trata-se, na verdade, de um re-arranjo de conceitos, significados, gramáticas, intenções e interpretações que, uma vez emparelhadas a cada conversação, aparecem diferentes, mesclados, novos, relativos não ao conjunto de relações teóricas e metodológicas de cada modelo individual ou de sua soma, e sim a um conjunto de relações inovadoras, surgidas no momento da convergência entre idéias de cá e de lá. Esse re-arranjo é possível com grande parte dos pressupostos analisados neste capítulo e resumidos no quadro 13. Contudo, restam alguns tópicos bastante ‘inconveráveis’ entre o funcionalismo voltado à gramaticalização e a sociolingüística variacionista, quais sejam os que se referem à visão de gramática e daquilo que deve ser o foco principal quando de seu estudo, além dos princípios propostos como motivadores da organização gramatical e dos fenômenos de variação e de

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mudança. A tentativa de convergência entre tais tópicos em nossa conversa apontou a existência de diferenças a princípio não conciliáveis: (i) ou a primazia da análise recai sobre a função ou sobre a estrutura; (ii) ou as motivações por trás da gramática podem ser funcionais ou não podem; (iii) ou a gramática é o conjunto de regularidades que emergem das pressões de uso cotidianas ou a gramática é o conjunto de regras (in)variáveis formais que governam o uso gramatical a cada período de tempo. Em cada um desses casos de diálogo árduo, não parece ser possível levar o casamento sociofuncionalista adiante sem que seja selecionada uma das opções - ou se prioriza uma das possibilidades ou a outra -, tendo por conseqüência a negação de aspectos centrais de um dos quadros. Insistindo em uma conversa que se construísse a despeito desses grandes contrastes, talvez pudéssemos propor que ambos, função e estrutura, recebessem igual destaque, e que fossem levadas em conta motivações tanto funcionais quanto estruturais. Dessa guisa, o que é defendido como prioritário em cada modelo fonte deixaria de ter tal status e passaria a dividir o reinado com sua ‘contraparte’ – teríamos de cancelar as prioridades apontadas pelo funcionalismo e pela sociolingüística, tentando, a partir desse passo, integrar os demais aspectos teórico-metodológicos dos modelos, relativizando inclinações ora funcionais, ora formais de cada um para que convergissem em um ponto neutro (se é que é possível alcançar-se a neutralidade!). Teríamos, portanto, um sociofuncionalismo “entre”, situado na média entre uma opção e outra das fornecidas no início da conversa. No entanto, acredito que temos de facear, a despeito de qualquer negociação, ao menos um aspecto incompatível. A tradução de regras variáveis formais abstratas - caras à sociolingüística variacionista126 - para a linguagem funcionalista pautada no conceito de gramática emergente motivada pelas pressões de uso está barrada. O processo de constituição de uma gramática como tal é constante - alterando-se relações a cada situação de interação - e baseada nas experiências anteriores e presentes de cada um, incluindo tudo o que está envolvido na troca lingüística (aspectos cognitivos, comunicativos e sociais). Um estudo fundamentado no conceito de gramática emergente volta-se para a investigação de processos de inovação e de rotinização sofridos pelas fórmulas gramaticais, centrando na análise das relações de diferentes graus entre funções e formas e na alteração por que passam tais relações ao longo do tempo, o que é levado a cabo por meio da busca das estratégias regulares e recorrentes de organização discursiva. Em um modelo com tais bases teórico-metodológicas, é desnecessária ou mesmo não cabe a estipulação de regras: (a) formais do tipo “-t/-d <0> / [+cons]β <0> ____ ##α <-syl>” (Labov, 1972a:217); (b) que ponham de lado restrições cognitivas e comunicativas; (iii) sujeitas a terem de ser alteradas a cada instante, de acordo com as flutuações do âmbito gramatical, sempre em interação com seu exterior. Muito mais do que isso, não é admitida a existência de uma gramática enquanto estrutura regida por regras (in)variáveis, pois o que temos é um processo de estruturação constante, que jamais chega a seu fim – a estrutura nunca vem a ser. Nessa perspectiva, o estabelecimento de regras não é o objetivo central da investigação, e sim a busca de tendências de uso manifestadas pelos falantes, representadas em forma de freqüências reveladoras da organização gramatical. Portanto, quanto a esse tópico da conversa, parece não haver papo que resolva. Acredito termos aí um ponto incomensurável, enfim: ou o sociofuncionalismo toma como

126 Para salientar a importância da noção de regra variável no âmbito da teoria variacionista, lembro que Labov (1994:01) menciona a expressão regras variáveis duas vezes em menos de quatro linhas, na apresentação do conteúdo do terceiro volume de sua coletânea Principles of Linguistic Change (ainda não publicado): “Cognitive factors: the effect of change on comprehension across and within dialects; the acquisition and transmission of variable rules; principles of syntactic change and grammaticalization; the forms of variable rules and their place in the grammar.” (grifos adicionados)

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central o conceito de estrutura regida por regras formais (in)variáveis como propõe Labov (1972a/b, entre outros), ou toma como central tendências de estruturação gramaticais e suas motivações funcionais como propõe Hopper (1987, 1988, entre outros), deixando de lado a proposição de regras. Como parte do núcleo duro dos quadros teóricos ora em diálogo parece incompatível, anula-se a possibilidade de existência de uma linha ou área de pesquisa resultante de convergências entre preceitos fornecidos por um e outro, ou é possível conjugar de alguma forma os aspectos divergentes em questão? A proposta desta tese, especificamente para este momento da conversa entabulada entre o funcionalismo e a sociolingüística, é a de que a ocorrência do(s) casamento(s) sociofuncionalista(s) não seja abortada pela dificuldade ou impossibilidade de convergência entre aspectos centrais dos modelos fonte. Considero, porém, que o padre e/ou o juiz de paz só podem ser chamados se houver a opção por absorver ou uma base mais funcionalista - buscando-se primariamente tendências de estruturação cotidianas - ou uma base mais variacionista - priorizando-se o estudo de estruturas cujo uso é regido por regras. Independentemente de qual dessas bases teóricas for adotada como central, terão de ser assumidas apenas as convergências resultantes da conversa na diferença entre funcionalismo e variacionismo que forem coerentes com a opção feita. Saliente-se, no entanto, que quaisquer escolhas e convergências - referentes ao núcleo duro ou a aspectos mais periféricos do sociofuncionalismo - podem vir a ser modificadas durante o bate-papo, pois os rumos a serem seguidos nas conversas em geral não costumam ser definidos previamente. No entanto, de algum lugar temos de partir, tomando posição quanto aos aspectos incompatíveis. A princípio, nenhuma das opções - um sociofuncionalismo fundado na noção de gramática emergente e suas conseqüências ou na noção de regras variáveis e suas implicações - pode ser recomendada como a melhor ou a mais correta sob qualquer ponto de vista. O pêndulo se dobra em uma ou outra direção por conta da maneira como cada pesquisador conduz a conversa na diferença. E, se temos a opção entre uma perspectiva sociofuncionalista mais funcionalista e uma mais variacionista, podemos aventar a existência não de apenas duas vertentes de pesquisa - um ‘sociofuncionalismo funcionalista’ ou um ‘sociofuncionalismo variacionista’ -, mas sim de uma multiplicidade delas. A hipótese de emergência de mais de um tipo de abordagem a partir das tentativas de ajuste entre os pressupostos do funcionalismo e da sociolingüística já foi levantada na seção 3.2, em que são analisados trechos extraídos de estudos cujos autores, ao definir seu campo de pesquisa, deixam transparecer a existência, na mistura teórico-metodológica que fazem, de colheradas de diferentes medidas de cada manancial teórico. Cada pesquisador se filia, ou mais, ou menos, a um dos modelos sob enfoque, situando sua abordagem ou mais próximo da teoria funcionalista ou da variacionista ou do entremeio, do que resultam múltiplas possibilidades de encaixamento do sociofuncionalismo na matriz de estudos lingüísticos. Assim, não é o todo do funcionalismo e/ou do variacionismo que será englobado pelo(s) sociofuncionalismo(s), mas apenas pressupostos passíveis de emparelhamento ao serem tópico de uma conversa em comum já de início assentada sob certos fundamentos nucleares. Da conversa na diferença entre o funcionalismo e a sociolingüística podem derivar, então, graus variados de convergência, como se houvesse uma escala entre uma e outra das perspectivas teóricas, com vários pontos possíveis para o estabelecimento de abordagens casadas. O pressuposto básico para a constituição do sociofuncionalismo - ou de um sociofuncionalismo - é o

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de que algum traço funcional seja levado em conta, caso contrário não teríamos como justificar o -funcionalismo do rótulo. Desde a seleção de uma função como variável dependente, à inclusão de motivações funcionais, princípios, hipóteses e até explicações de base funcional, temos diferentes graus de absorção do aparato funcionalista. O mesmo é válido para a parte sócio- do rótulo: algo terá de vir da sociolingüística, sejam aspectos metodológicos, achados quanto aos condicionamentos sociolingüísticos, princípios e explicações... A conversa que desemboca no sociofuncionalismo pode ser conduzida por pesquisadores que se considerem sociolingüistas ou por pesquisadores que se considerem funcionalistas, cada um evidenciando medidas distintas de apropriação de propostas do modelo que assalta. Como se chegou a essa antropofagia bi-lateral? Por um lado, o sociofuncionalismo de linha variacionista tem sua origem nos movimentos expancionistas patrocinados pelos sociolingüistas, a começar por Labov que, nos anos setenta, apontava a necessidade de ampliar a abrangência dos estudos variacionistas para além da fonologia. Trafegando da fonologia à morfossintaxe ao discurso, a sociolingüística foi incorporando mais e mais aspectos funcionalistas, começando pela função como variável127 e chegando mesmo a apoderar-se do fenômeno de gramaticalização como capaz de explicar diferenças entre formas variantes (cf. seção 3.2). Por outro lado, estudos funcionalistas também já vinham travando um bate-papo com a sociolingüística, em que se destacou, por exemplo, a defesa do uniformitarismo e a referência a condicionamentos sociolingüísticos (cf. Hopper e Traugott, 1993), bem como a questão do ápice de mudança na fala adolescente e a idéia de gramaticalização em andamento (cf. Androustsopoulos, 1999), entre outros. Ou seja, conceitos de um dos quadros teóricos não são estranhos no ninho do outro e são, não raro, citados e mesmo assimilados. A questão é decidir se, a cada conversa, o quadro dominante acaba sendo um ou o outro. Onde seriam situadas as múltiplas possibilidades de casamentos sociofuncionalistas? Nos diferentes pontos da ‘escala teórica’ que vai de um funcionalismo estendido para abarcar diferentes graus de variacionismo a uma sociolingüística variacionista estendida para abarcar diferentes graus de funcionalismo. A definição clara de qual desses pontos da escala cada pesquisador está falando - isto é, do lugar em que sua conversa na diferença emergiu - , é de suma importância, pois é daí que são interpretados e aplicados preceitos teórico-metodológicos vindos de ambos os modelos. Dependendo do lugar em que é tramada a conversa, as convergências podem ser mais ou menos facilitadas, as negociações e ajustes podem ir mais ou menos em certas direções, surgindo matizes teóricos diferenciados, com limites diversos de absorção do que vem de cada modelo fonte. Os pressupostos de lá e de cá são capazes de sentar e conversar, buscando as convergências que fundamentam a troca de alianças, mas, nos trilhos da conciliação, há várias paradas possíveis, e estacionar em uma delas depende do núcleo duro teórico que se almeja a assumir prioritariamente. Das considerações epistemológicas feitas até aqui, transparece que, nas conversas com fito de ajuste de metalinguagens distintas, não é reservado ao pesquisador um papel neutro, de mero mediador entre preceitos a serem emparelhados. Cada estudioso possui sua própria experiência passada com os quadros teóricos que põe em diálogo – talvez mais forte em um ou outro dos quadros, o que faria com que o pêndulo apontasse mais para lá ou para cá. Estando Davidson (1986) e sua proposta de interpretação do significado e Hopper (1987) e sua proposta de

127 O próprio Labov acaba por estender o domínio de abrangência da sociolingüística até aceitar uma função como variável, no estudo que versa sobre as partes avaliativas em narrativas (Labov, 1972b), embora não leve em conta motivações, hipóteses ou explicações funcionais. A exceção, já mencionada, é o controle de um grupo de fatores de natureza funcional, o status informacional, no estudo feito em conjunto com Weiner (Weiner & Labov, 1977).

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emergência da gramática corretos, não é possível que entendamos o funcionalismo e a sociolingüística - e, em decorrência, o sociofuncionalismo - de uma perspectiva única ou mesmo da perspectiva proposta por seus precursores (Hopper e Labov, por exemplo), já que a interpretação de pressupostos teórico-metodológicos por cada indivíduo é pessoal, relativa não só à sua experiência anterior com as teorias, mas também ao contexto sócio-político e acadêmico em que se lança a pesquisar. Os sociofuncionalismos surgem não somente diferentes das teorias ‘mães’, mas também diferentes entre si, pois, a cada conversa entabulada por cada analista, ocorrem novas convergências e os conceitos são revisados e modificados, caracterizando-se como voláteis, dinâmicos, transitórios e contextuais. Graças a isso, toda tentativa de associação entre o funcionalismo e a teoria variacionista é realizada levando-se em conta as tentativas precedentes, mas trazendo sempre inovações em graus variados, na forma de uma das múltiplas tonalidades no espectro das convergências possíveis. As explicações dadas por Davidson (1986) e Hopper (1987) para a constituição e interpretação do significado e da gramática respectivamente parecem de fato válidas para o processo da constituição do conhecimento em si... O(s) sociofuncionalismo(s) está(ão) sujeito(s) a re-interpretações constantes, constituindo-se e reconstituindo-se na trajetória de avanço das discussões, como resultado(s) de um acúmulo de conhecimentos e de experiências provindas da adaptação e da negociação constantes durante a conversa na diferença que vem sendo travada no jogo de sua constituição no âmbito da investigação lingüística. Na verdade, a emergência de mais de um sociofuncionalismo tem sua origem no fato de estarem acontecendo não uma, mas várias conversas entre o funcionalismo e a sociolingüística, envolvendo pesquisadores diversos, mais alinhados com um ou com outro dos quadros.128 Trata-se de bate-papos que estão em progresso, isto é, o estágio em que se encontra(m) atualmente o(s) casamento(s) sociofuncionalista(s) não é o de teoria(s) ou linha(s) de pesquisa já construída(s), fechada(s), com preceitos teórico-metodológicos totalmente definidos, mas sim o do próprio processo de constituição. A cada passo das conversas ‘sociofuncionalistas’, novas possibilidades teóricas e metodológicas são apontadas e, não raro, acabam se mesclando com propostas de conversas anteriores (inclusive de um mesmo pesquisador), o que torna difícil até mesmo especificar onde se situa cada estudo e cada estudioso. O pêndulo se volta para lá e para cá... Futuramente, não parece ser inviável que mais de um modelo ou linha derivem dessa situação de multiconversação com fins casamenteiros ou mesmo que apenas uma das nuanças sociofuncionalistas predomine sobre as demais, e se torne o sociofuncionalismo (Tais soluções lembram especialização por especificação e especialização por generalização, respectivamente. Mais uma vez, a proposta de análise dos dados perpassa a proposta epistemológica!) Todavia, o que temos atualmente é um imbricamento de convergências e não convergências, conceitos, termos, proposições, interpretações, explicações, metodologias, inter-traduções, enfim, temos propostas de casamento diversas, na ‘escala teórica’ que vai do funcionalismo voltado à gramaticalização à sociolingüística variacionista.

128 Também está em andamento uma proposta de acoplamento de postulados da sociolingüística variacionista e da gramática gerativa, a sociolingüística paramétrica. Podemos aventar a hipótese de que nesse caso também estejam em jogo mais de uma sociolingüística paramétrica. De fato, alguns pesquisadores têm situado suas análises e suas discussões quanto a aspectos teórico-metodológicos ou na sociolingüística ou na teoria gerativa ou ainda têm tentado elaborar um espaço de entremeio (cf. Tarallo, 1987; Tarallo & Kato, 1989; Kato, 1999; Ramos, 1999; Duarte, 1999 e 2000).

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3.4.2 ASSUMINDO UMA POSIÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA: ONDE A CONVERSA NOS LEVA O quadro a seguir apresenta alguns dos pressupostos centrais da abordagem sociofuncionalista proposta aqui, retomados do quadro 13. Dentre as múltiplas possibilidades discutidas na seção anterior, é fácil perceber que a perspectiva teórico-metodológica assumida para guiar o olhar sobre os fenômenos de estratificação/variação e de mudança no âmbito da seqüenciação retroativo-propulsora envolve um movimento em direção ao funcionalismo, entendendo-se a gramática como emergente. Foi em coerência com essa postura que aconteceram as convergências no decorrer da conversa na diferença entre o funcionalismo voltado à gramaticalização e a sociolingüística variacionista, travada neste capítulo.

Quadro 14: Pressupostos centrais da abordagem sociofuncionalista ora proposta

♣ A função a que serve a gramática é prioritária e determinante de seu uso pelos falantes. A gramática é um processo em andamento, sempre emergindo rumo a sua constituição, mas nunca chegando a constituir-se de fato, pois sofre constantes alterações por conta das características do manancial de onde deriva e onde existe: seu uso por falantes.

♣ Focaliza relações de diferentes graus entre funções e formas. Cabe ao estudioso buscar estratégias recorrentes de organização do discurso, mapeando, dessa forma, as regularidades. São feitas análises das inter-relações entre os condicionamentos internos e externos à língua, considerando-se uma gama de motivações que age a cada situação comunicativa, contribuindo com as constantes emergências e enraizações sofridas pela gramática.

♣ As estruturas tendem a refletir e a ser alteradas por causa da pressão exercida por motivações funcionais.

♣ Recebem destaque a história e a coexistência de diferentes formas, investigadas como camadas/variantes que convivem em um mesmo domínio funcional, gerando o que pode ser definido como uma situação de estratificação/variação. Também são investigados estágios de gramaticalização, com a hipótese de que a situação de estratificação/variação é influenciada pelo que aconteceu no percurso de gramaticalização de cada item até a chegada ao domínio em questão.

No quadro sociofuncionalista que se delineou aqui, a função é a prioridade: o objeto central deste estudo é um conjunto de estratégias discursivas bastante recorrentes na fala de Florianópolis (portanto, uma função de âmbito gramatical) a que se denominou seqüenciação retroativo-propulsora. Tal função é marcada por um certo número de formas e expressões delimitáveis que parecem estar competindo por espaço e talvez passando por alterações nos padrões de uso, o que pode significar mudança em curso. A função também é tida como subjacente à organização e à mudança no domínio em causa: são princípios e motivações de ordem funcional - função cognitiva, função comunicativa, função social - que, por hipótese, estão pressionando inovações e regularizações. Em conseqüência, é controlada a influência de grupos de fatores lingüísticos e sociais que possibilitam a obtenção de indícios acerca da direção da ação desses princípios e motivações. Desta posição, por mais que conversemos, há aspectos teórico-metodológicos variacionistas que não podemos traduzir para a linguagem sociofuncionalista sem ferir a primazia da função. E o que fazer com esses aspectos, se não abandoná-los? Na perspectiva de pesquisa assumida, eles não

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nos pertencem e não podem nos pertencer. Contudo, embora proposições relativas, por exemplo, ao papel primário da forma, às regras (in)variáveis formais e às motivações unicamente estruturais e sociais não tenham espaço no quadro teórico delineado aqui, outros preceitos da sociolingüística, ao conversar com preceitos funcionalistas, convergem em preceitos do sociofuncionalismo específico ora apresentado. Tópicos comuns ou similares reforçam-se mutuamente (vejam-se, por exemplo, aqueles marcados por idem no quadro 13) e tópicos mais ou menos divergentes, mas que acabam por emparelhar-se após um bom diálogo, resultam em um sabor misto de ambas as teorias ‘mães’. Dessa forma, termos como estratificação e variação convergem em uma linguagem teórica comum, passando a referir o mesmo fenômeno. Conceitos vindos do funcionalismo, da sociolingüística e do próprio sociofuncionalismo como foi conversado em outros estudos e por outros pesquisadores sofreram alterações e revisões, alcançando-se convergências distintas. Tal processo de conversa na diferença significa um acúmulo de conhecimentos, gerado pela re-interpretação e incorporação de experiências diversas, o que é importante para o fazer científico, pois, re-citando Pires de Oliveira (1999:317): “quanto mais conversamos, mais os conceitos circulam, mais revisões são necessárias, mais conhecimento comum é gerado.” A postura de orientação funcionalista dominante pela qual optei pode ser situada em um ponto mais funcional da ‘escala teórica’ que vai do funcionalismo à teoria variacionista, pois a conversa se desenvolve em coerência com as opções feitas de início: a gramática é emergente, motivada seja por forças cognitivas, comunicativas ou sociais. No entanto, embora o núcleo duro se incline mais fortemente em direção aos preceitos funcionalistas, ressalto que não se trata de uma abordagem funcionalista e sim sociofuncionalista – uma das muitas em fase de diálogo, implementação e defesa atualmente, resultantes da convergência entre preceitos das duas teorias ‘mães’. Vejamos, nos próximos capítulos, o olhar sociofuncionalista posto em ação...

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CAPÍTULO IV – OS INDÍCIOS METODOLOGIA: EM BUSCA DA ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E DA MUDANÇA

0. INTRODUÇÃO O capítulo IV detalha os procedimentos metodológicos adotados para a abordagem ao domínio da seqüenciação. A necessidade de angariar pistas diversas para compor o quadro de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação levou à subdivisão da análise em duas etapas: Falando no presente e no passado, Falando em Florianópolis e em As Vinhas da Ira. Tais etapas são centradas em diferentes corpora, do que derivam resultados e conclusões que convergem em um panorama de mudança bastante detalhado. A seguir, são descritas essas etapas, que correspondem cada uma a um dos capítulos seguintes – V e VI. 1. FALANDO NO PRESENTE E NO PASSADO: 1ª ETAPA DE ANÁLISE No capítulo V, em uma postura pancrônica, utilizo especialmente dados da fala florianopolitana atual, angariados junto ao Banco de Dados do Projeto VARSUL (cf. seção 2.1), aos quais adiciono dados extraídos de textos diversos escritos do século XIII ao século XX (cf. seção 1.1). Nessa etapa, presente e passado são tomados em conjunto para a constituição de um quadro que reflete as relações dinâmicas e fluidas entre funções e formas. O objetivo é o mapeamento de elos – antigos e recentes – para a re-constituição dos aclives de mudança por que passam e, aí, daí e então desde seus usos iniciais (aqueles que não foram perdidos na noite dos tempos) até os usos como seqüenciadores, destacando-se desenvolvimentos individuais de cada forma, ou desenvolvimentos conjuntos, quando os indícios apontam sua convivência nas diversas fatias de tempo consideradas. Se o que essa proposta de análise intenta é a obtenção de pistas acerca da evolução histórica das formas seqüenciadoras e, por tabela, da seqüenciação em si, por que é ressaltada a fala florianopolitana atual, ao invés da língua de períodos de tempo anteriores? A coleta de dados referentes a épocas passadas é tarefa árdua, pois, embora o e seja sempre um item bastante recorrente, a freqüência de aparecimento de aí, daí e então, seja como conectores, seja como itens locativos ou temporais, é bastante baixa nos diversos textos consultados, o que dificulta a re-constituição dos caminhos percorridos por tais formas.

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Daí a importância e o destaque dado aos usos de hoje, em que temos uma maior recorrência de e, aí, daí e então. Dados atuais são capazes de preencher lacunas, por conta do fenômeno de persistência: traços semântico-pragmáticos e estruturais de uma forma fonte podem ser conservados pela forma alvo durante bastante tempo (por séculos, inclusive). De acordo com Bybee, Perkins & Pagliuca (1994:18), a retenção de especificidades de usos anteriores permite a recuperação da história do material gramatical, revelando não somente informações acerca de suas construções fontes, mas também acerca dos estágios ao longo de seu percurso de desenvolvimento. Mais a mais, a análise dos discursos que nos circundam possibilita o acesso a uma gama de especificidades referentes ao momento da interação, desde entonação até características sociais dos indivíduos falantes ou escrevedores. Entretanto, a despeito das dificuldades envolvidas, a análise dos papéis desempenhados por e, aí, daí e então em sincronias anteriores é realizada, pois, combinando-se os indícios fragmentários referentes a tais sincronias a achados mais completos referentes aos usos presentes, é possível compor o percurso seguido pelas modificações no decorrer do tempo. Essa abordagem incorporando dados de diferentes épocas, desde os primeiros textos escritos em língua portuguesa até textos orais e escritos de hoje, proporciona o recolhimento de uma coleção de vestígios acerca dos aclives de gramaticalização rumo à seqüenciação percorridos por e, aí, daí e então. Se os indícios provindos de mananciais diversos apontarem para as mesmas ou semelhantes etapas de mudança e de estratificação/variação, teremos evidências mais substanciais acerca das trajetórias de mudança pelas quais vêm passando esses elementos ao longo do tempo. É possível ainda que haja complementariedade entre pistas identificadas em corpora atuais e em corpora antigos também quanto à recuperação de elos do contínuo de transformações (uma função, um dado ambíguo, etc), que podem não estar presentes nos textos de um dos períodos de tempo, mas aparecerem em textos de outro período. 1.1 TEXTOS DO SÉCULO XIII AO SÉCULO XX Como o foco central desta pesquisa é a seqüenciação na fala, seria ideal que todos os dados fossem coletados em corpora orais, o que facilitaria o procedimento de tomar indícios provenientes de diferentes épocas como complementares no traçado das trajetórias de mudança, bem como facilitaria comparações diversas. Contudo, se há a necessidade de retroceder para períodos de tempo distantes, o acesso ao registro falado torna-se obviamente inacessível, restando a opção de se recorrer à escrita. É o caso da seqüenciação. Uma vez que os percursos de migração rumo a funções gramaticais seguidos por e, aí, daí e então tiveram seu início há muito tempo, ainda no latim, busquei organizar uma coletânea de textos escritos em língua portuguesa do século XIII ao século XX que se aproximassem mais da fala, em uma tentativa de minimizar desencontros causadas pela diferença de modalidade. Na seleção, privilegiei textos cujos autores, por razões diversas, estavam menos ocupados em seguir normas gramaticais e ortográficas, destacando-se:129

129 Diversos dos textos do século XIII ao XX foram indicados e/ou gentilmente cedidos pelos professores Odete Pereira da Silva Menon (UFPR), Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBA), Vera Lúcia Paredes da Silva (UFRJ), Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC) e Gilvan Müller de Oliveira (UFSC) (cf. maiores especificações no anexo 2).

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���� Obras de diversos tipos (jurídicas, religiosas, epistolares, narrativas, relatos, descrição de procedimentos,

etc) referentes ao primeiro período documentado do português, o período arcaico (entre os séculos XIII e XV), e mesmo algumas datadas do início do período moderno (entre os séculos XVI e XVII), cuja escrita geralmente aproxima-se mais da fala, pois nessa época inicial ainda não haviam sido especificadas regras gramaticais e de concordância rígidas (Barreto, 1999a; Mattos e Silva, 1991).

���� Obras cujos autores pretendiam imitar a fala, como é corriqueiro em peças teatrais e, menos comumente, em romances. Para períodos de tempo posteriores ao do português arcaico e moderno (cf. item (i) acima), preferi selecionar peças teatrais e romances que dessem fala aos personagens, com o intuito de obter dados mais próximos à fala e, portanto, menos influenciados pela normativização em pleno vapor do século XVIII em diante.

���� Obras ligadas a movimentos literários voltados à defesa da língua ‘brasileira’, caso, por exemplo, de autores modernistas do início do século XX, que acrescentavam marcas da oralidade à sua escrita.

Relativamente a textos latinos, não organizei corpora específicos e preocupados com a questão da imitação da fala. No entanto, como ponto de partida da análise dos aclives de gramaticalização, apresento, no capítulo V, dados extraídos de obras diversas: gramáticas latinas e artigos e livros versando sobre sintaxe do latim.130 Constatei que, em todos os recortes de tempo efetuados, dados de e seqüenciador são sempre abundantes e dados de então seqüenciador são encontradiços desde o século XIII, embora em nenhum dos períodos analisados tivesse freqüência suficiente para que o programa estatístico VARBRUL pudesse entrar em ação (com uma exceção comentada a seguir). Já as ocorrências de aí seqüenciador são bastante escassas e somente começam a aparecer em textos escritos no século XX. Quanto ao daí, nenhum dado foi encontrado nas obras consultadas. Outros pesquisadores já se defrontaram com o mesmo problema. Por exemplo, Braga (2002:07) apontava como “(...) dificuldade básica inerente aos estudos voltados para a trajetória de aí (...): a inexistência de material diacrônico que fundamentasse a análise.” Em busca dos elos reveladores da ação da gramaticalização sobre as alterações sofridas por e, aí, daí e então ao longo do tempo, foram revistados um total de quarenta textos - de vários autores e gêneros -, cuja relação completa pode ser conferida no anexo 2. A raridade de ocorrências de aí e daí como articuladores seqüenciadores na escrita em épocas passadas e mesmo atuais (alguns dos textos desse corpora datam da segunda metade do século XX) motivou a consulta à tão grande número de obras. Mesmo assim, não encontrei usos de daí como seqüenciador e os de aí aparecem em apenas quatro romances: Capitães da Areia (12 dados) e Jubiabá (15 dados), da autoria de Jorge Amado; O Risco do Bordado (6 dados), de Autran Dourado; As Vinhas da Ira (37 dados), de John Steinbeck.131 Somente este último forneceu dados suficientes de e, aí e então para a realização de uma análise estatística multivariada (cf. seção 2.4) e também foi o único em que ocorrências desses três conectores apareceram na fala dos personagens. Dado o objetivo do capítulo V, que é não o de quantificar ocorrências e sim o de mapear indícios de modificações de natureza semântico-pragmática e sintática operadas ao longo dos percursos de mudança percorridos por e, aí, daí e então com o passar do tempo ou mesmo em 130 O material de que me valho para ilustrar usos da forma latina et, da qual derivou o português e, foi gentilmente indicado pelo Prof° José Ernesto de Vargas (UFSC). Quanto a aí, daí e então, as fontes latinas consultadas foram os dicionários etimológicos já listados no capítulo I. 131 As referências completas dos romances constam no anexo 2.

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andamento na época atual, não utilizo, na análise, dados de grande parte das obras listadas no anexo 2. Por uma questão de espaço, destaco apenas alguns exemplares que ilustram funções específicas marcadas pelas formas em questão, funções estas que se repetem em mais de um texto. Dentre os quarenta textos selecionados, privilegio dados extraídos de: (i) Foro Real, por ser um dos mais antigos escritos em língua portuguesa, o que permite mostrar funções desempenhadas por e, aí, daí e então nos primórdios da língua; (ii) As Vinhas da Ira, em que os itens em questão são bastante recorrentes em diferentes papéis, o que nos fornece um quadro mais completo de funções marcadas por eles no início do século XX, as quais representam elos reveladores de fontes e estágios de mudança, dificilmente acessíveis em outras épocas. 2. FALANDO EM FLORIANÓPOLIS E EM AS VINHAS DA IRA: 2ª ETAPA DE ANÁLISE Em síntese, no capítulo VI, analiso o fenômeno de estratificação/variação no domínio da seqüenciação na fala da Florianópolis de hoje, examinando dados extraídos de entrevistas sociolingüísticas fornecidas pelo Banco de Dados do Projeto VARSUL/UFSC (cf. seção 2.1). Avalio, com base em freqüências e pesos relativos fornecidos pelo VARBRUL, o condicionamento variável de diversos grupos de fatores lingüísticos e extra-lingüísticos sobre o uso de cada um dos conectores em combate por um lugar ao sol no domínio funcional sob estudo, obtendo um retrato minucioso das distribuições de tarefas entre eles. Os aclives de gramaticalização delineados na primeira etapa deste estudo tornam-se, na segunda etapa, fonte de informação para o entendimento dos rumos da re-organização do domínio da seqüenciação na Florianópolis atual. Além disso, tem lugar a análise de um estágio no desenvolvimento da seqüenciação também caracterizado pelos fenômenos de estratificação/variação e mudança: o final da primeira metade do século XX. Para tanto, valho-me de dados extraídos da fala dos personagens do romance As Vinhas da Ira, cuja tradução para o português levou em conta marcas do(s) dialeto(s) das classes populares do estado do Rio Grande do Sul, em uma tentativa de preservar o tom de oralidade do original americano.132 A análise multivariada é possível neste caso, uma vez que o romance fornece o que pode ser considerado uma raridade: dados suficientes para que o arsenal estatístico entre em ação, fornecendo freqüências e pesos relativos! Constam a seguir informações mais detalhadas acerca das entrevistas sociolingüísticas que integram a amostra de fala vasculhada, iniciando pela apresentação do Banco VARSUL, passando à descrição do corpus e a uma nota sobre dados excluídos da análise quantitativa. Na seqüência, são descritos os procedimentos tomados para a investigação da seqüenciação em As Vinhas da Ira.

2.1 O BANCO DE DADOS DO PROJETO VARSUL Os dados referentes à fala atual de Florianópolis provêm do Banco de Dados do Projeto Interinstitucional VARSUL (Variação Lingüística Urbana na Região Sul do Brasil), realizado em

132 The Grapes of Wrath, escrito por John Steinbeck em 1939. Tive notícias da existência, na tradução brasileira de The Grapes of Wrath, de marcas do dialeto riograndense do início do século XX, através do artigo “Pronome da segunda pessoa no Sul do Brasil: tu/você/o senhor em Vinhas da Ira”, da autoria da profª Odete Pereira da Silva Menon (UFPR).

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conjunto por quatro universidades do sul do país (UFSC, UFPR, UFRGS e PUC-RS).133 O Banco VARSUL foi organizado através da documentação do português falado em áreas urbanas dos estados da Região Sul. O armazenamento de amostras da fala de habitantes de áreas urbanas dessa região tem os seguintes objetivos principais: i) oferecer à comunidade acadêmica um corpus de oralidade representativo da Região Sul; ii) promover a descrição dos vários aspectos do português falado no Sul do Brasil; iii) fornecer um corpus ideal para a investigação de fenômenos de variação e mudança lingüística. O Banco VARSUL foi constituído segundo postulados da sociolingüística variacionista laboviana (cf. Vandresen, 2002), através da gravação e da transcrição de 24 entrevistas de cerca de uma hora de duração com falantes nativos de quatro regiões urbanas sócio-culturalmente representativas de cada um dos três estados sulistas: (a) Paraná: Curitiba, Londrina, Ivoti e Pato Branco; (b) Santa Catarina: Florianópolis, Blumenau, Chapecó e Lages; (c) Rio Grande do Sul: Porto Alegre, Flores da Cunha, Panambi e São Borja. 96 foram transcritas e armazenadas em cada estado, resultando em um total de 288 entrevistas na primeira fase de constituição do Banco VARSUL, iniciada em 1989 e concluída em 1996. Atualmente, têm sido coletadas entrevistas de tipo não contemplado na primeira etapa. 1.2.2 O CORPUS FLORIANOPOLITANO Durante o primeiro estágio da coleta, li a transcrição e ouvi a gravação de trinta e seis entrevistas que já estavam disponíveis para consulta no Banco de Dados. Trata-se de entrevistas feitas com informantes florianopolitanos nativos, jovens e adultos, distribuídos homogeneamente em relação às variáveis sociais sexo, idade e escolaridade, do que resulta a estratificação mostrada no quadro 15: (i) três níveis de escolarização: primário, com quatro ou cinco anos de escolarização (ou o equivalente à 4a ou 5a séries do ensino fundamental); ginásio, com oito anos (8a série do ensino fundamental); colegial, com onze anos (3o ano do ensino médio); (ii) três faixas etárias: de 15 a 21 anos; de 25 a 45 anos; mais de 50 anos. Essas entrevistas foram coletadas no final do século XX (entre 1990-1996).

Quadro 15: Distribuição dos informantes de acordo com as células sociais FEMININO MASCULINO 15 a 21

anos 25 a 45 anos

+ de 50 anos

15 a 21 anos

25 a 45 anos

+ de 50 anos

Primário 2 2 2 2 2 2 Ginásio 2 2 2 2 2 2 Colegial 2 2 2 2 2 2

No segundo estágio da coleta, utilizei uma amostra suplementar de doze entrevistas com informantes florianopolitanos com idades entre 09 e 12 anos, perfazendo um total de quarenta e

133 Abaixo, estão listados os endereços eletrônicos de cada uma das sedes do Projeto VARSUL: ο Universidade Federal do Paraná: http//www.humanas.ufpr.br/delin/LINGUIST/varsul.htm ο Universidade Federal de Santa Catarina: http//www.cce.ufsc.br/~varsul/objetivo.htm ο Universidade Federal do Rio Grande do Sul: http//www.ufrgs.br/iletras/varsul.htm ο Pontifícia Universidade Católica/RS: http//www.pucrs.br/letras/posição/varsul.htm

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oito entrevistas.134 Como os conectores seqüenciadores e, aí, daí e então são bastante recorrentes na fala, considerei apenas os trinta minutos finais das entrevistas, que têm cada uma cerca de sessenta minutos de duração. Para o mapeamento das outras funções desempenhadas pelos elementos em estudo, necessárias para a análise das trajetórias de gramaticalização no capítulo V, considerei a totalidade das entrevistas. 2.3 DADOS QUE ENTRAM, DADOS QUE SAEM Fazem parte da análise quantitativa referente à fala de Florianópolis todos os contextos de seqüenciação retroativo-propulsora marcados por e, aí, daí e então na segunda metade das quarenta e oito entrevistas elencadas acima, num total de 4.300 dados com a seguinte distribuição:

Quadro 16: Distribuição de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis

Conectores seqüenciadores Freqüência %

e 1.790 42%

aí 926 22%

daí 890 21%

então 694 16%

Total 4.300 100%

As noventa e quatro expressões seqüenciadoras constituídas por usos co-ocorrentes de e, aí, daí e então (cf. capítulo I), em razão de sua baixa freqüência, não são submetidas a tratamento estatístico junto com os usos individuais das formas. Também são deixados de lado os depois seqüenciadores, bem como usos conjugados da forma, além das outras formas e construções seqüenciadoras listadas na seção 2.5.2 do capítulo I, num total de cento e noventa e oito dados. Como tais conectores não são muito recorrentes, sua análise estatística em conjunto com os demais seria dificultada. No capítulo V, em que são averiguados os aclives de gramaticalização que se dirigem ao domínio da seqüenciação atual, os holofotes iluminam também funções não seqüenciadoras de e, aí, daí e então, mas que se relacionam diretamente a ela, por corresponderem a usos fontes ou por serem derivados dos usos seqüenciadores. Já funções outras que aparentemente não possuem relação com o desenvolvimento da seqüenciação não são abordadas, mas estão listadas no anexo 1. Propostas relativas às trajetórias de mudança que deram origem a tais funções podem ser conferidas em Tavares (1999a e 2002a).

134 As entrevistas com informantes de 09 a 12 anos foram realizadas no primeiro semestre do ano 2000 por doutorandas em Sociolingüística da Pós-Graduação em Lingüística da UFSC (Adriana de Oliveira Gibbon, Maria Alice Tavares, Mariléia dos Santos Reis e Márluce Coan) e posteriormente doadas ao Projeto VARSUL.

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2.4 AS VINHAS DA IRA

Seguindo os passos da análise da seqüenciação em Florianópolis, em um primeiro momento, avalio o condicionamento variável de diversos grupos de fatores, obtendo o quadro das distribuições sociolingüísticas dos conectores seqüenciadores. Em um segundo momento, os resultados obtidos são comparados aos resultados relativos à fala florianopolitana atual, do que derivam achados importantes quanto a continuidades e descontinuidades nas trajetórias de gramaticalização de e, aí, daí e então. Por que abordo os usos atuais da seqüenciação antes dos usos referentes à década de 40? A intenção é seguir um percurso de análise em duas direções, que parte do presente para o passado e retorna do passado para o presente. Tal procedimento é preconizado pela metodologia variacionista com base no princípio do uniformitarismo (Labov, 1972a; Silva, 1999), e é defendido também pelos funcionalistas que se voltam ao estudo da gramaticalização (Traugott & Hopper, 1993). De acordo com o uniformitarismo, os processos de variação e de mudança que acontecem hoje em dia são semelhantes aos que se manifestavam em épocas passadas, sujeitos ao mesmo tipo de condicionamentos e obedecendo aos mesmos princípios. Como, ao averiguar dados extraídos dos discursos que nos circundam, temos acesso a um conjunto muito mais extenso de informações referentes a aspectos contextuais, inclusive traços sociolingüísticos dos participantes das trocas comunicativas, podemos considerar o olhar presente mais enriquecedor. Achados quanto a condicionamentos e princípios de mudança relativos a essa etapa de tempo são capazes de iluminar achados de épocas passadas, auxiliando em sua interpretação. Por outro lado, descobertas feitas com base em fatias de tempo anteriores podem corroborar as conclusões a que chegamos ao observar o que nos circunda. Estudos variacionistas que empregam corpora de períodos de tempo passados não costumam fazer o controle de grupos de fatores sociais, pois geralmente sabe-se muito pouco ou mesmo nada sobre características sócio-econômicas dos autores dos textos ou dos personagens que aí ganham fala. Todavia, foi possível considerar a influência de duas variáveis sociais na análise dos dados extraídos de As Vinhas da Ira: idade e sexo. Não houve o controle do grupo de fatores escolaridade, pois não há informações em relação a se e quanto tempo cada personagem freqüentou a escola. Uma vez que As Vinhas da Ira é um romance bastante extenso, com um total de 489 páginas na edição consultada (a primeira tradução para o português, datada de 1940), recolhi dados para a análise quantitativa apenas nas 197 iniciais (da página 07 à 204). O quadro a seguir traz a distribuição dos conectores seqüenciadores encontrados:

Quadro 17: Distribuição de e, aí e então na fala dos personagens de As Vinhas da Ira

Conectores seqüenciadores Freqüência %

e 624 82%

então 99 13%

aí 37 05%

Total 760 100%

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CAPÍTULO V – AS TRAJETÓRIAS FALANDO NO PRESENTE E NO PASSADO: GRAMATICALIZAÇÃO EM UMA PERSPECTIVA PANCRÔNICA

“Since grammar is always emergent but never present (Hopper, 1987:142), there is not much use in forcing into the straitjacket of dichotomies such as that between diachrony and synchrony. (…) since a linguistic element such as a word is capable of acquiring and retaining new senses without losing the old ones, its study requires a panchronic perspective.” (Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a:259)

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Daí no outro dia, no aniversário, já ligaram toda a minha família: “Ah, eu vou aí dar um abraço na- na tua irmã, tá R.? (RR/FLP04C:44)

Quando eu tinha doze anos, ela apareceu de novo. Aí eu já estava adulta. (est) Aí eu já estava bem grande, né? (RO/FLP03:157)

Eu disse: “Claro que não, é pra lá, garota! Vamos esperar o tio.” Aí ela disse: “Mas o tio ainda não está vindo, ele disse que chegava primeiro que nós e não chegou.” (CA/FLP03C:37)

A minha vódrasta, aquela tansa, antes ela ia fazer o arroz, ela pegava e mexia, aí ficava aquela papa. (JA/FLP11J:1169)

É, ali tinha o Rox, Cine Rox, e tinha o Cine Ritz também. Mas só o Cine Ritz também. (inint) hoje, né? existia naquela época também. Aí o Cine Ritz só ti- tinha cinema pra criança, mas era só durante a tarde, e à noite não podia ir, né? (ED/FLP18:1109)

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0. INTRODUÇÃO É de uma perspectiva pancrônica que se volta ao mesmo tempo sobre o ontem e o hoje que organizo as trajetórias de gramaticalização de e, aí, daí e então. Valho-me de informações do presente e do passado, tomadas complementariamente com o intuito de re-constituição de etapas de mudança mais detalhadas e confiáveis. Trata-se de uma abordagem que reúne as perspectivas lexical/etimológica e discursiva/textual (cf. seção 1.2.1 do capítulo II), buscando indícios acerca de fontes, alvos e percursos, com base em dados extraídos de discursos reais datados de diferentes períodos da língua; e lançando um olhar para o papel dos mecanismos de mudança cognitivo-comunicativos nas diferentes etapas de mudança de cada uma das unidades sob enfoque. Na busca de vestígios acerca de inovações e de rotinizações no processo de arranjo e re-arranjo da seqüenciação ao longo do tempo, considero uma gama de informações que são tomadas em conjunto para a proposição das trajetórias de mudança de e, aí, daí e então:

���� Traços semântico-pragmáticos comuns a duas ou mais das funções marcadas atualmente ou no passado por e, aí, daí e então (por exemplo, a presença de traços espácio-temporais, de traços de seqüenciação

cronológica ou discursiva, de traços de conseqüência/conclusão, etc). ���� As relações de abstração/complexificação e de generalização entre tais funções, com base em

trajetórias de mudança universais como as propostas por Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991a/b). 135 ���� As relações sintáticas, principalmente aquelas relativas às relações manifestadas entre as formas

investigadas e demais itens lingüísticos circundantes - indícios de alterações nesse plano são indícios da ação da reanálise.

���� Os dados ambíguos e ‘entres’ de diversos tipos, passíveis de representarem estágios intermediários de

mudança. Como a gramaticalização não acontece abrupta e repentinamente, mas sim gradualmente, envolvendo estágios de alternância do tipo A > A/B > B (cf. Hopper, 1998:154), a cada etapa as formas

diferem minimamente em função. Conseqüentemente, as alterações são de natureza incremental, deixando

usos ambíguos como indícios que auxiliam a recuperar a trajetória de irradiação funcional das formas.

Na seção 1, é traçado o percurso de mudança seguido pelo e, iniciando-se com um passeio pelo latim, em que a forma ‘mãe’, et, já atuava no ramo da seqüenciação, aparecendo inclusive com matizes de função-significação idênticos ou similares aos do e de hoje. Após, recebem destaque os usos dados à forma nas fases iniciais da língua portuguesa e, finalmente, seus usos presentes, na fala florianopolitana. Os desenvolvimentos de aí, daí e então, descritos nas seções 2, 3 e 4 respectivamente, também têm início com um rápido olhar sobre suas fontes latinas, passando-se depois para o português - o de ontem e o de hoje -, língua em que as três formas conquistam o direito a representar nuanças seqüenciadoras diversas. A seção 5 é reservada para o mapeamento de: (i) situações de estratificação/variação no domínio da seqüenciação em diferentes períodos do português; (ii) novas funções atribuídas a e, aí, daí e então após seu ingresso na seqüenciação. Por fim, na seção 6, com inspiração nas trajetórias de gramaticalização de e, aí, daí e então, são delineadas

135 Complexidade e abstração estão sendo tomadas como sinônimos.

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hipóteses acerca de seus padrões de distribuição preferenciais como marcas da seqüenciação, a serem testadas nos capítulos seguintes. 1. E 1.1 UM ANTIGO COMBATENTE A forma e - das mais freqüentes em língua portuguesa atual, como qualquer busca em corpora diversos pode mostrar - possui raízes em épocas muito distantes. Para traçar etapas mais antigas de seu desenvolvimento, recorro ao estudo de Barreto (1999b), versando sobre os processos de gramaticalização de várias conjunções que tiveram lugar no latim e no português arcaico. Segundo Barreto, já foi com usos conectivos que o e surgiu em língua portuguesa. Geralmente denominada conjunção aditiva, provém da conjunção latina et. A fonte da conjunção et é conhecida: trata-se do advérbio et, proveniente do advérbio ~eti, ‘além de’, do proto-indo-europeu. No latim arcaico, et, como advérbio, substitui etiam ‘também’.136 Posteriormente, é utilizado para indicar uma cópula, isto é, uma junção entre construções lingüísticas, tornando-se uma conjunção (cf. Ernout & Meillet, 1951 apud Barreto, 1999b). Nesse novo papel, passa a conectar de palavras a segmentos amplos do discurso, e tem sua função-significação ampliada, transformando-se em uma conjunção copulativa/seqüenciadora137 apta a ser utilizada para codificar uma multiplicidade de matizes (por exemplo, já manifesta seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito, como se observa a seguir). Et trava, em uma etapa de seu processo de gramaticalização ainda no latim, uma batalha com outras três conjunções copulativas: ac, atque e a enclítica –que. Atque e ac são variantes da mesma conjunção, sendo que o uso de uma ou outra depende do contexto: ac é empregada preferencialmente antes de palavras iniciadas por consoante e atque antes de palavras iniciadas por vogal ou h, embora também possam ser usadas em outros contextos. Segundo Coseriu (apud Barreto, 1999b), o uso de et indica adição; o uso de ac/atque indica adição e unidade, dando realce ao segundo termo em relação ao primeiro; e o uso de –que indica adição, unidade e equivalência, apresentando o segundo membro como um apêndice do anterior ou como continuação ou extensão dele. A opção entre ac ou –que depende da perspectiva resultante da união dos dois termos:

136 Os autores consultados (Barreto, 1999b; Cunha, 1991; Silveira Bueno, 1965; Nascentes, s/d) consideram adverbiais os usos originais de et com valor de também e de além de. Não discutirei tal opção, mantendo ora o rótulo. 137 A seqüenciação retroativo-propulsora exibe uma relação de cópula, isto é, indica haver uma relação coesiva de continuidade e consonância entre informações interligadas, evidenciando que aquilo que aparecerá subseqüentemente no discurso tem a ver com o que veio antes. Por essa razão, considero que conjunções copulativas e conjunções seqüenciadoras são diferentes denominações para o mesmo tipo de itens gramaticais.

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� Se quisesse obter um efeito de forte união, o falante usaria –que: patter materque = pai e mãe; non omnis arbusta iuuant humilisque myricae = os arbustos e os baixos tamarizes não agradam a todos.138

� Se não pretendesse estabelecer tal equivalência, o falante empregaria o ac ou atque: ista cognitio iuris magna atque difficilis = este estudo do direito largo e difícil; poema tenerum et moratum atque molle = poema fraco, arrastado e mole.139

Essas nuanças, entretanto, não são sensíveis e, muitas vezes, o et substitui as outras conjunções. Podemos considerar as relações entre et, ac/atque e –que como típicas de uma situação de estratificação/variação, pois, embora cada conector apresente tendências de uso particulares (isto é, cada um possui a sua especializaçãozinha), tais tendências não se revelam categóricas, mas sim preferenciais. Assim, o uso estratificado/variável é possível, e, em especial, et, mais generalizado, pode ocupar tranqüilamente o espaço dos demais. Como desdobramentos da disputa pelo domínio da seqüenciação, et, especializado para diversos contextos de articulação seqüenciadora, passa a preponderar sobre as concorrentes, acarretando sua eliminação. Já na época imperial romana, et reina sozinho no domínio. Chega ao português sob a forma e, conservando os mesmos ou similares papéis exibidos no latim. Com o desaparecimento das conjunções ac/atque e –que, as nuanças de função-significação ligadas a seu uso deixam de receber expressão formal específica, e são acopladas ao conjunto de funções desempenhadas pelo et. É digno de nota que a conjunção que vence a disputa é a menos marcada: et é uma das menos longas e muito provavelmente a mais freqüente, já que é utilizada em um grande número de contextos, podendo substituir as outras competidoras (que, por sua vez, não podem substituir et tão livremente, pois costumam ser relacionadas a contextos de uso específicos). Segundo o princípio da marcação, tamanho diminuto e grande recorrência são dois fortes indícios de graus baixos de complexidade. É esperado que as formas menos marcadas adquiram mais encargos gramaticais, por serem percebidas pelos usuários da língua como pouco complexas quanto ao processamento, o que facilita seu emprego como parte de construções diversas. Parece ser este o caso de et. A passagem de et de advérbio à conjunção representa um processo de migração de uma categoria para outra, sob a ação do mecanismo de reanálise, responsável por recortar de modo distinto o contínuo da fala. Possivelmente et tem seu espaço sintático alterado: as relações que mantém com outros itens lingüísticos quando manifesta o valor de ‘também’ não devem ser as mesmas de quando passa a indicar cópula. Todavia, não é possível re-constituir os passos de tal mudança, pois não foram encontrados dados referentes aos empregos adverbiais de et, para serem comparados com seus usos seqüenciadores.

138 Em (1) e (2), o primeiro exemplo com –que e com atque foi extraído de Barreto (1999b:212) e o segundo de Garcia (1997:195-196). 139 Observe-se nesse último exemplo o uso estratificado/variável de et (tenerum et moratum) e de atque (moratum atque molle).

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1.2 AMPLIANDO O TERRITÓRIO Após ser reanalisado como conector, et pode ter sofrido a ação da analogia, disseminando-se para um maior número de contextos. A esse respeito, é possível que tenha passado por um percurso particular encontrado por Heine, Claudi & Hümmemeyer (1991a) em algumas línguas, ao longo do qual itens são generalizados para construções de escopo cada vez mais amplo. Como ilustração, descrevo a seguir um dos casos de mudança que segue tal aclive. Trata-se da gramaticalização do marcador de caso -gu, do newari moderno,140 como conector oracional. Inicialmente, o uso de -gu é confinado à marcação de caso141 em sintagmas nominais; posteriormente é estendido a sintagmas verbais em algumas formas não finitas ou nominais; mais tarde, atinge sintagmas verbais finitos; por fim, -gu é reanalisado como conector oracional. A generalização sofrida por -gu no âmbito da marcação casual evidencia a ação da analogia, conduzindo a forma para níveis de atuação distintos. Já a passagem de –gu ao plano da articulação textual aponta para a ação da reanálise, re-categorizando-o como conector.142 Talvez et tenha trafegado ao longo de níveis de articulação cada vez mais amplos, de acordo com os seguintes passos: ao tornar-se conjunção, interliga inicialmente sintagmas nominais, passando subseqüentemente a interligar sintagmas verbais; depois, é estendido para a articulação entre orações, e, num crescente aumento de escopo, principia a marcar a seqüenciação entre segmentos e mesmo tópicos discursivos. Essa trajetória de mudança é ilustrada abaixo. Em (1) e (2), et conecta sintagmas nominais, em (3) e (4), orações; e, em (5) e (6), segmentos discursivos mais extensos:

140 O newari moderno é uma língua tibeto-burmam falada no Nepal. 141 Não se confunda marcação casual, isto é, a expressão do papel de um sintagma em relação a outras partes da oração (se ele é nominativo, acusativo, etc), com o princípio da marcação, ligado à diferenciação entre graus de complexidade manifestados por itens lingüísticos. 142 Heine, Claudi & Hümmemeyer (1991a) apontam que transferências do tipo concreto > abstrato são perceptíveis não apenas em fenômenos envolvendo mudanças semântico-pragmáticas, mas também quando estão em jogo mudanças categoriais (migração de verbo para preposição, por exemplo) e mesmo em casos de aumento de escopo estrutural. Esta última possibilidade é exemplificada, dentre outros, com o caso do marcador -gu do newari moderno acima descrito. Para os autores, os sintagmas nominais são menos abstratos (ou menos complexos) que os sintagmas verbais e estes são menos abstratos que as orações, ou seja, a fonte é menos abstrata que o alvo.

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(1) Uiues ita, ut nunc uiuis, multis meis et firmis praesidiis obsessus (...) (Cic. Cat. I, 2, 6 p. 38) Viverás assim, como vives agora, cercado pelos meus muitos e fortes guardas (...)143 (2) (...) sin tu, quod te iamdudum hortor, exieris, exhaurietur ex urbe tuorum comitum magna et perniciosa sentina rei publicae. (Cic. Cat. I, 5, 12 p. 127) Mas se tu saíres, o que já há muito tempo te aconselho, o refugo de teus comparsas, grande e perigoso para a República, será expulso da cidade.

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(3) (...) confirmasti te ipsum iam esses exiturum; dixisti paulum tibi esse etiam nunc morae, quod ego uiuerem. Reperti sunt duo equites Romani qui te ista cura liberarent et se illa ipsa nocte paulo ante lucem me in meo lecto interfecturos esse pollicerentur. (Cic. Cat. I, 4, 9 p. 126) (...) confirmaste que tu mesmo já irias embora, disseste que agora deverias ainda esperar um pouco porque eu vivia. Dois cavaleiros romanos foram encontrados que te libertariam desta preocupação e prometeriam que me matariam no meu pequeno leito, naquela mesma noite, pouco antes do amanhecer. (4) (...) molli paulatim flauescet campus arista, /144 incultisque rubens pendebit sentibus uua, / et durae quercus sudabunt roscila mella. (Bucólica IV – Pollio) (...) o campo aos poucos ficará dourado com a flexível espiga, / a uva avermelhada penderá dos incultos espinheiros, / e os duros carvalhos destilarão orvalhados méis.

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(5) Hos ego uideo consul et de republica sententiam rogo, et quos ferro trucidari oportebat, eos nondum uoce uolnero. (Cic. Cat. I, 4, 9 p. 63) Eu, cônsul, os vejo e rogo uma resolução da parte da República, e ainda não ataco com a voz aos que era oportuno que fossem trucidados com a espada. (6) Fortunate senex, ergo tua rura manebubt! / Et tibi magna satis, quamuis lapis omnia nudus/ Limosoque palus obducat pascua iunco; (...) (L. Publius Vergilius Maro: Bucólica I) p. 177 Ó afortunado velho, pois teus campos permanecerão! / E serão suficientemente grandes para ti, embora a pedra nua e o pântano / Com limoso junco, cubra(m) todos os campos (...)

A seguir, podemos observar que diferentes nuanças da seqüenciação são assinaladas pelo et no latim. Em (7) e (8), temos casos de seqüenciação textual, salientando o encadeamento de porções discursivas relacionadas a um mesmo tópico; em (9), temos seqüenciação temporal: a informação introduzida pelo et sucede-se temporalmente em relação à informação já dada; e, em (10), temos introdução de efeito: os demônios acreditam que existe um só deus e por essa razão estremecem.

143 Com exceção de (8) e (10), os trechos latinos e suas traduções podem ser encontrados em Garcia (1997). A autora extraiu os referidos trechos de:

� Cícero. 1991. Les Catilinaires de Cicéron. Classiques/Roma, direction de Guy Michaud. Paris: Hachette. � Gonçalves, Maximiano A. 1964. Traduções das Catilinárias de Cícero. 7ª ed. Rio de Janeiro: São José. � Vergílio. 1982. Bucólicas. Tradução e notas de Péricles E. da S. Ramos. São Paulo: Melhoramentos/UnB. � Vergili, P. Maronis. 1985. Virgili: Bucoliques – Georgiques – Eneide. 10ª ed. Paris: Garnier Fr.

144 O símbolo ‘/’ indica mudança de linha no texto original.

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(7) Quid uero? Nuper cum morte superioris uxoris nouis nuptiis domum uacuefecisses, nonne etiam alio incredibili

scelere hoc scelus cumulauisti? Quod ego praetermitto et facile sileri, ne ih hac ciuitate tanti facinoris immanitas aut exstitisse aut non uindicata esse uideatur? (Cic. Cat. I, 6, 14) O que na verdade? Recentemente, quando esvaziaste tua casa com a morte da última esposa para novas núpcias, por acaso não aumentaste ainda este crime com outro crime mais terrível? Eu não menciono aquilo e suporto que seja silenciado facilmente, para que a imensidão de tão grande atentado não pareça ter existido nesta cidade ou que não foi vingado.

(8) Usque in hanc horam et esurinus, et sitimus, et nudi summus, et colaphias cædimur, et stabiles sumus; et

laboramus operantis manibus nostris. (A. P., 1 Cor. 4. 11) Até esta hora padecemos até fome e sêde, e desnudez, e somos esbofeteados, e não temos morada segura, e trabalhamos obrando por nossas próprias mãos.

(9) Teque adeo decus hoc aeui, te consule, inibit, / Pollio, et incipient magni procedere mensis, / te duce. Si qua

manent sceleris uestigia nostri,/ inrita perpetua soluent formidine terras. (L. Publius Vergilius Maro: Bucólica IV) Esta glória da era surgirá, sendo tu o cônsul, / e, sendo tu o comandante, Pólio, começarão a correr os meses. / Se alguns vestígios de nosso crime permanecem, / anulados livrarão as terras de um medo perpétuo.

(10) Tu credis quoniam unus est Deus: Bene facis: et daemones credunt, et contremiscunt. (A. P., Tiag. II. 19)145 Tu crês que ha um só Deus: Fazes bem: mas tambem os demônios o crem e estremecem.

1.3 EXIBINDO DIFERENTES MATIZES No português arcaico, e marca nuanças similares aos do et latino: seqüenciação textual (cf. (11)), seqüenciação temporal (cf. (12)) e introdução de efeito (cf. (13)):

(11) Germaydade ou aiûtamêto de dous moesteyros ou de duas eygreias podê fazer. E esto pode seer en tres maneyras: a primeyra he quando hûu moesteyro metê so poderio doutro ca entõ aquela que he sometuda da outra deue viuer so a rregla daquela so que a metê a vsar dos costumes e dos priuilegios sseus daquela so que é sometud[a]. (Alphonse X - Primeyra Partida, p. 412)

(12) E depoys resucitouse en carne e amostrouse aos seus dicipulos e comeu con elles e leyxous confirmados em sa fe sancta catholica e subyo aos ceos en corpo en dignidade e ende uerra na cruz eneste mundo dar juyzo aos boos e aos maos. (Foro Real, p. 127)

(13) E Asdrubal que entom tiinha o senhorio da Spanha, quãdo soube que Magon, seu irmãao, fora vençudo e preso, foi muy quebrantado em seu coraçom e trabalhou quanto pode de ajuntar gram poder (...). (Crônica Geral de Espanha de 1344, p. 93)

Em (11), temos um trecho de Alphonse X - Primeyra Partida, do século XIV. Há aí um caso de e seqüenciando textualmente, de acordo com a cronologia discursiva, informações relevantes para o mesmo tópico. Em (12), em um trecho do Foro Real, obra do século XIII, aparecem alguns e seqüenciando eventos consoante sua ordem de ocorrência no tempo. Em (13), e é utilizado como marca de introdução de efeito: Asdrúbal soube que seu irmão fora preso e, por isso, buscou aliar forças. O e continua sendo opção para essas nuanças da seqüenciação do português arcaico em diante. E quanto às subfunções de retomada e de finalização, apontadas no capítulo I como matizes freqüentes da seqüenciação na fala florianopolitana de hoje? Localizei um e assinalando finalização

145 Os dados (8) e (10) são citados por Pereira (1923:565), extraídos pelo autor da Traducção da Bíblia Sagrada, da autoria de Padre Antonio Pereira de Figueiredo.

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de tópico em As Vinhas da Ira, obra da década de 40 (cf. (14) a seguir), mas não encontrei uma só ocorrência do conector em função retomadora em corpora diferentes do constituído pelas entrevistas com informantes de Florianópolis.

(14) Eu conheci aquele rapaz, o Floyd. Conheci também a mãe dêle. Eram boa gente. (...) Não sei bem como aconteceu tudo, mas foi mais ou menos assim: O rapaz fez uma ruindade qualquer, e então êles deram nele e botaram êle na cadeia, e aí, quando soltaram, êle fez uma coisa pior ainda e aí deram nele outra vez. Não demorou, ‘táva que ninguém podia com êle. Atiraram nele que nem num cachorro e êle também atirou. Então, não paravam mais de perseguir êle. O rapaz já tava mau de todo. (...) Afinal, êle foi pegado e mataram êle. Os diários disseram que êle não prestava, que era um criminoso, um desesperado, mas eu sei que não era ruim. E foi assim... – Ela parou de falar e molhou com a língua os lábios secos e todo o seu rosto era um ponto de interrogação – Eu tenho que saber, Tommy – disse. – Êles deram em você também? Tu ficou mau também? (As Vinhas da Ira, p. 78-79)

E é utilizado na fala de Florianópolis apenas como conector (além de possuir outros empregos vinculados a este, especificados na seção 2.6.1 e 2.6.3 do capítulo I). Suas ocorrências no plano da seqüenciação retroativo-propulsora distribuem-se entre os cinco subtipos: seqüenciação textual (em (15)), seqüenciação temporal (em (16)), introdução de efeito (em (17)), retomada (em (18)) e finalização (em (19)).

(15) Você tinha que deixar, mais ou menos em dia, pra começar o outro dia com a coisa, praticamente, a zero. Começar outro dia. Se você começasse a deixar acumular, sozinho, era brabo. E tinha responsabilidade de motorista, de empregado, tudo nas minhas costas. Numa ocasião, o nosso motorista bateu com a caminhonete. Ele morava perto do dono da firma, lá em Biguaçu. (NL/FLP04:868)

(16) Eu muitas vezes me abaixei ali defronte ao banquinho do freguês e ajudei ele a- a calçar o sapato. (AL/FLP22:694)

(17) Aconteceu muitas amigas minhas, mesmo, que não chegaram a casar, engravidaram e eles deixaram elas. (NI/FLP08:762)

(18) Contar o filme? Contar uma coisa só, né? Uma moça que ela era freira, era noviça, né? Eu adoro filmes assim. Realmente é dois- Eu gosto de filmes assim. Lá uma vez ou outra eu gosto de assis- de filmes de guerra, assim como Rambo, essas coisas assim. Mas não é filme que me atrai, né? E ela é noviça. E ela- ela- onde ela estava, que ela foi estudar, ela queria sair, ela queria conhecer a vida fora. (JU/FLP11:1325)146

(19) Aí foi pra imobiliária, vendendo terreno, vendendo casa, né? procurando terreno pronto pra vender, pra vender pra outro. E assim é a vida dele. (AR/FLP06:237)

Como o e passa a sinalizar essas cinco nuanças semântico-pragmáticas da seqüenciação? As mudanças por gramaticalização tendem a ser locais, do que resulta que as frutas não caem longe do pé. Tem sido considerado que o ponto de partida do uso do et como conjunção copulativa é seu uso em uma função de caráter adverbial significando também, por sua vez proveniente de um advérbio do proto-indo-europeu significando além de. Ou seja, et parece vincular-se, ao longo do tempo, a papéis ligados à soma entre informações. Levando-se em conta as propriedades dos empregos anteriores dados à forma, et deve ter adentrado no ramo da seqüenciação via seqüenciação textual, que possui em comum com seus usos adverbiais o papel de adicionar uma parte da língua à outra. Isso pode ser tomado como um indício de que, ao ser reanalisado como conector, et conservou traços de suas fontes. A partir da seqüenciação textual, et passa a exibir seqüenciação temporal e introdução de efeito, e e, em português, angaria ainda as subfunções de retomada e finalização.

146 O símbolo , acrescentado nos exemplos por mim, marca o início da digressão feita pelo falante, e marca o seu final.

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Diferentemente da passagem de et de advérbio para conector, sua migração para as várias subfunções seqüenciadoras não acarreta mudança de categoria, pois não ocorre transferência de um tipo gramatical para outro, e sim uma extensão funcional no âmbito da própria seqüenciação, dispensando a ação da reanálise. Uma vez que et teve seu leque de funções ampliadas, generalizando-se para diferentes nuanças seqüenciadoras, provavelmente a analogia entrou em atividade. Entretanto, o mecanismo de maior destaque na trajetória ao longo da qual et torna-se um meio de expressão das diferentes tessituras seqüenciadoras parece ser a metonímia, ou, mais especificamente, seu subtipo inferência por pressão de informatividade. Certas nuanças seqüenciadoras possivelmente estão presentes como inferências em alguns contextos de uso do et no plano da seqüenciação textual. Graças a pressões exercidas por esse tipo de contexto, tais padrões inferenciais rotinizam-se, incorporando-se ao conjunto de subfunções costumeiramente desempenhadas pelo item. Quanto à nuança de seqüenciação temporal, em certos casos os falantes optam por organizar textualmente as informações interligadas por et de maneira tal que elas parecem seguir uma ordenação cronológica. A partir daí, et é relacionado à seqüenciação temporal, passando a ser marca habitual dessa relação coesiva. A forma começa a exibir seu novo papel de acordo com as etapas de mudança seqüenciação textual � seqüenciação textual/seqüenciação temporal � seqüenciação temporal. Segue, portanto, o aclive A > A/B > B típico da gramaticalização, em que é previsto, sob a forma A/B, estágios de ambigüidades, sobreposições e indistinções em geral. Não localizei, nos textos latinos consultados, dados suficientes para uma análise refinada dos percursos seguidos pelo et. Contudo, como não apenas usos fonte bem delimitados são preservados com o passar do tempo, mas também aqueles que se definem como indistintos, sobrepostos, ambíguos - os “entres” em geral -, é possível re-constituir, com base em dados do português, estágios de mudança A/B pelos quais et possivelmente passou. Assim, (20) e (21), trazendo usos do e no século XIII e na Florianópolis atual, exemplificam como devem ter sido os contextos que pressionaram et a tornar-se seqüenciador temporal no latim.

(20) Unde conuen a todo rey que há de teer os poobos en justiça e en dereyto que faça l[e]es per que os poboos sabyã como an de uiver, e as desaueenças e os preytos que nasçerê antr’elles seyã departidos de guisa que aquelles que mal fazê recebã peã e os boos uiuam seguramente en paz. E porende nos dõ Affonso pella graça de Deus rey de Castella e de Tuledo e de Leõ e de Gualiza e de Seuilha e de Córdoba e de Murça e de Beeça e de Jahê e de Badalhouce e da Andaluzya, êtendendo que muytas e muytas uilhas e castellos de nossos reynos non ouuerõ foro ata o nosso tempo (...), nos ouuemos consello cû nossa corte e cõ os sabedores de dereyto e demuslhys este foro que é scripto eneste liuro per que se jygê cõmunalmente barões e molheres e mandamos que este foro seya aguardado per todo sempre. E nenguu seya ousado d’ir contra el em nulla maneyra os peã do corpo e de quanto ouuver. (Foro Real, p. 126)

(21) Eu cuidava dos filhos e lavava aqui em casa. Sempre trabalhei um pouco em casa pra ajudar o marido. Ele era assalariado. (ID/FLP07:700)

Em (20), podem ser percebidos traços de seqüenciação temporal junto aos de seqüenciação textual. Talvez esteja sendo ressaltado o fato de que e mandamos que este foro seya aguardado per todo sempre represente uma informação relevante para o tópico que se vem desenvolvendo, sem salientarem-se relações de sucessão cronológica com a informação anterior e demuslhys este foro que é scripto eneste liuro per que se jygê cõmunalmente barões e molheres. Entretanto, podem ser percebidos também traços de seqüenciação temporal, se for considerado que se tenha pretendido dar relevância para a sucessão temporal passível de existir entre os eventos e demuslhys este foro que é scripto eneste liuro per que se jygê cõmunalmente barões e molheres e e mandamos que este foro seya aguardado per todo

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sempre, isto é, o foro foi dado ao povo e, só depois disso, ordenou-se que ele fosse preservado para sempre. Em (21), a informante provavelmente está descrevendo as atividades que realizava em casa em um certo período de sua vida, tarefas levadas a cabo independentemente de ordenação cronológica. Contudo, a presença de uma inferência temporal não pode ser eliminada de imediato: a informante também poderia estar afirmando que primeiro cuidava dos filhos e posteriormente lavava roupa. Et pode ter passado a exibir introdução de efeito seguindo um percurso do tipo seqüenciação temporal � seqüenciação temporal/introdução de efeito � introdução de efeito. Nas ocasiões em que o item conecta dois eventos segundo sua ordenação temporal, provavelmente não raro está presente a inferência de que tais eventos estejam relacionados não apenas temporalmente, mas também como causa e conseqüência. Contextos dessa natureza são capazes de pressionar a enraização de et como introdutor de efeito. Por exemplo, em (22), a utilização do e num texto do século XIV salienta a seqüenciação temporal entre as informações logo lhe sayo a alma e e os seus seruentes leuarõ-no a hûu fisico, isto é, depois que o amo morreu, os servos o levaram a um médico. Podem ser notados traços de introdução de efeito sobrepostos aos de cronologia temporal: o amo morreu e por isso os servos o levaram ao médico. (23) e (24) revelam ainda mais claramente a sobreposição entre tempo e conseqüência. Em (23), também um excerto de texto do século XIV, temos as duas subfunções presentes em uma mesma situação: depois de ter sido derrotado, Asdrúbal fugiu, e sua fuga foi conseqüência de sua derrota. Semelhantemente, em (24), dado extraído do corpus de fala florianopolitana, o indivíduo referido assopra e diz algumas palavras e depois disso a pessoa que é vítima do assopro se sente aliviada, também cabendo a leitura de que, em conseqüência de o indivíduo assoprar e dizer algumas palavras, a vítima do assopro se sente aliviada. Nesses casos, observa-se o fenômeno de sobreposição funcional, isto é, duas subfunções da seqüenciação manifestam-se ao mesmo tempo, o que certamente facilitou a migração de et da seqüenciação temporal para a introdução de efeito. Quando interliga dois eventos que se sucedem cronologicamente, o primeiro deles representando a causa e o segundo a conseqüência, e introdutor de efeito evidencia fortemente tal sobreposição (cf. (23) e (24)). Ela desaparece, porém, quando o conector interliga informações que não evidenciam relação de sucessão temporal, mas apenas de introdução de efeito: a causa precede a conseqüência e a razão precede a conclusão que dela se tira (cf. (25) e (26)). Tais usos representam uma etapa posterior da história do et/e como marca da introdução de efeito, em que passa a introduzir conseqüência ou conclusão livremente da presença de nuanças temporais.

(22) E, tanto que esto disse, logo lhe sayo a alma, e os seus seruentes leuarõ-no a hûu fisico que lhes disesse que entendia daquel feito, e o fisico lhe preguntou por suas condiçõões, e elles lhe diserõ que era muy alegre eno amor de Jhesu Christo, e dise-lhe o fisico: Certamête cõ o grande prazer foy partido per meo o seu coraçõ. (O Orto do Esposo, p. 08)

(23) Como os Cepiõoes lidarom com Asdrubal, ho outro irmãao de Anybal, e entom o vencerom os Cepiõoes e elle fogyo da lide. (Crônica Geral de Espanha de 1344, p. 89)

(24) Quando ele deu um tipo um passe, né? que põe a mão na cabeça e dá um sopro, diz algumas palavras. E você se esvazia assim, como se tivesse tirado tudo o que tinha- tens de mal dentro de ti. (EV/FLP11J:1107)

(25) O sujeito trabalha, e naquela correria toda não sobra tempo. (hes) E a pessoa se acostuma aquilo, a não ler, e pode passar qualquer notícia ali que não dá nem bola. (MA/FLP14:408)

(26) Alguns, menos avisados, não têm nem fossa, nem sumidouro, jogam os dejetos direto na vala e depois vêm reclamar do poder público: “A vala- a vala está fedendo e precisa ser limpa.” Não há essa conscientização da comunidade, essa é que é a verdade. (AL/FLP21:934)

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Além dos casos de seqüenciação temporal que revelam a presença de inferências ligadas às noções de conseqüência ou conclusão, certos contextos de seqüenciação textual também pressionam interpretações relativas a efeito. Em (27), por exemplo, não chega aos pés de Florianópolis pode ser uma informação a mais acerca da cidade referida, mas também pode representar a conclusão alcançada pelo informante a partir das informações anteriores (é uma cidade que é proibido fazer algumas coisas, tem que ter as regras, é uma cidade com pouca movimentação). Em (28), é um colégio pequeno e não tem muito tumulto são duas informações que, seqüenciadas textualmente, contribuem para a descrição do colégio; ou então o fato de não haver muito tumulto é conseqüência de o colégio ser pequeno. Finalmente, em (29), é possível que e pode usar roupa até o limite que tu acha que tu deve de usar seja mais uma das atitudes permitidas a um crente, ao lado de pode ir à praia, mas também cabe uma interpretação de razão-conclusão: do fato de nada ter sido publicado em contrário, o informante deduz que as pessoas podem usar roupa até o limite que desejarem. Parece haver, dessa guisa, duas fontes possíveis para os usos do et/e em contextos de introdução de efeito: seus usos como seqüenciador textual e seus usos como seqüenciador temporal.

(27) É uma cidade que é proibido fazer algumas coisas, tem que ter as regras, é uma cidade com pouca movimentação e não chega aos pés de Florianópolis, Santa Catarina, né? (KA/FLP08C:142)

(28) Eu gostaria de estudar ali em Santa Catarina, é um colégio pequeno e não tem muito tumulto, né? (KA/FLP08C:99)

(29) Pode, pode, quer dizer, pode ir à praia porque praia não tem nada a ver, eu acho que com nenhuma religião, isso é uma coisa que não está escrito não- não foi publicado nada e pode usar roupa até o limite que tu acha que tu deve de usar, claro que se tu pode colocar uma roupa tu está te sentindo bem, de repente uma pessoa não está. (BE/FLP03J:869)

A retomada e a finalização devem ter sido introduzidas no rol de subfunções marcadas pelo e através da utilização do item em contextos de seqüenciação textual, já que partilham com esta a propriedade de indicação da cronologia discursiva, despida de noções outras, como tempo ou efeito. Na verdade, a retomada e a finalização são empregos da seqüenciação textual que foram rotinizados como construções, também caracterizadas pela presença de outras indicações formais, além do conector. A retomada traz de volta a informação interrompida, de forma literal ou com a alteração de algumas palavras.147 A finalização é levada a cabo por uma oração que aparece no final do tópico ou do subtópico, sempre portando itens anafóricos como assim, isso, esse, essa. Essas construções representam estratégias discursivas que, por terem sido seguidamente repetidas, cristalizaram-se e disseminaram-se para a fala de diversos indivíduos. Na fala florianopolitana de hoje, mostram-se salientes e freqüentes o suficiente para serem consideradas subfunções da seqüenciação à parte da seqüenciação textual.148 Em seu desenvolvimento rumo às diversas subfunções seqüenciadoras, et/e não caminha ao longo de percursos de abstração crescente, sofrendo apenas generalização crescente. A subfunção através da qual et/e desemboca no domínio, a seqüenciação textual, é a que possui os traços semântico-pragmáticos mais genéricos, pois atua na interligação de partes do discurso. Ela é responsável tão somente por destacar a seqüência discursiva entre informações precedentes e subseqüentes. Dessa subfunção seqüenciadora, et/e migra para subfunções diversas, igualmente genéricas (retomada e finalização, usos específicos e rotinizados do e como seqüenciador textual),

147 A informação assim recuperada está sublinhada em todos os exemplos de retomada fornecidos nesta tese. 148 O capítulo VI traz indícios que corroboram com a opção por distinguir a retomada e a finalização da seqüenciação textual. A análise quantitativa revela diferenças bastante significativas quanto à distribuição dos conectores seqüenciadores em tais subfunções.

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ou então concretas (seqüenciação temporal) ou abstratas (introdução de efeito).149 Como resultado dessas migrações, as possibilidades de uso de et/e na seqüenciação tornam-se ainda mais genéricas, pois a forma tem seu elenco de subfunções aumentado. Anteriormente, et já havia sofrido generalização desse tipo, ao ter suas possibilidades de uso ampliadas por assumir as nuanças de função-significação mais específicas outrora codificadas por ac/atque e -que. Provavelmente, temos uma gama de motivações - traços generalizados que já estavam presentes nos usos fontes “adverbiais” no latim e no proto-indo-europeu e que foram preservados ao longo do tempo; forma diminuta; grande freqüência - que tornam et/e negociável e adaptável para usos diversos e facilitam seu tráfego ao longo de múltiplos contextos de seqüenciação. Uma vez que, no caminho seguido pelo et/e rumo à ampliação de seus papéis no âmbito da seqüenciação, não há extensão de conceitos mais concretos a mais abstratos, a metáfora não deve ter entrado em ação. De qualquer forma, é possível que esse mecanismo tenha atuado na mudança de et adverbial para conectivo, uma etapa de alterações de grandes proporções, implicando inclusive a re-categorização da forma. No entanto, há poucos indícios a respeito do desenrolar dessa etapa de mudança, o que impossibilita o aprofundamento de sua análise. 2. AÍ Aí provém do arcaico i (ou hi), que se aglutinou a a, um prefixo de valor intensificador ou enfático. Por sua vez, i é proveniente do ibi latino, termo já multifuncional, podendo significar nesse lugar, nesse momento. Usos de aí com papéis semelhantes aos de ibi existem ainda hoje na fala de Florianópolis, ao lado dos usos como seqüenciadores. Cunha (1991) mapeou as seguintes variações formais de aí, em seus usos desde o século XIII no português: hy, y, ahi.150 Como está ligado, desde suas origens, a empregos locativos e temporais, é provável que o aí tenha desembarcado na seqüenciação retroativo-propulsora seguindo um percurso universal tipicamente envolvido na emergência de conectores: espaço > tempo > texto.151 Representando um desmembramento do aclive de gramaticalização mais geral proposto por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a) pessoa � objeto � atividade � espaço � tempo � qualidade,152 o aclive espaço � tempo � texto sintetiza o percurso segundo o qual elementos indicadores de espaço externo passam a ser utilizados como indicadores temporais e, por fim, como conectores, sendo possível um percurso da indicação de espaço externo diretamente para a articulação entre partes do discurso. É previsto aí

149 Conferir nas seções 2.1.3, 2.1.4 e 6 uma comparação mais detalhada entre as propriedades das cinco subfunções da seqüenciação em termos de maior e menor abstração e/ou generalização. 150 Os dicionários etimológicos dos quais obtive as informações acerca das origens de aí, daí e então são Cunha, 1991; Silveira Bueno, 1965; Nascentes, s/d. 151 Lembro que Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a) utilizam o termo texto especificamente em referência à articulação discursiva ou textual, enquanto, nesta tese, o termo refere-se mais amplamente a discurso, podendo ser aplicado a quaisquer funções manifestadas através da língua, incluindo não só a articulação discursiva, mas também as indicações locativas e as temporais. Para evitar confusão, na descrição dos trajetos de mudança seguidos por aí, daí e então, o termo texto, quando não estiver em citações, será substituído por expressões como articulação textual ou discursiva, inter-ligação textual ou discursiva, conexão textual ou discursiva. 152 A qualidade é a mais genérica das categorias, podendo se referir, entre outros, a situações estáticas em oposição a dinâmicas, a conceitos não físicos em oposição a físicos. É possível incluírem-se como qualidade funções-significações como a seqüenciação retroativo-propulsora, mas, como função ligada à articulação textual, ela se encaixa ainda melhor na etapa texto do aclive espaço � tempo � texto.

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um movimento rumo a níveis cada vez mais gramaticais, atribuído a mecanismos cognitivo-comunicativos universais pelos quais os usuários da língua tendem a guiar em uma mesma direção - rumo à abstração e/ou à generalização - os novos usos que dão às velhas formas. A transferência de uma forma de um domínio a outro não é automática, sendo previstos estágios em que o status da tarefa desempenhada pela forma é indefinido, por conta da sobreposição entre a função antiga e a função inovadora, ocasionando situações de ambigüidade do tipo A/B: espaço/tempo; tempo/articulação textual; espaço/articulação textual.153 A seguir, apresento com mais detalhes o trajeto com três pontos de parada principais - espaço � tempo � articulação discursiva - que deve ter sido seguido pelo aí. São destacadas: (1) a migração do âmbito dêitico locativo ao âmbito anafórico locativo; (2) a transferência de funções anafóricas locativas para funções anafóricas temporais; (3) a passagem do plano anafórico ao plano da seqüenciação retroativo-propulsora; (4) uma síntese final abarcando os principais desenvolvimentos; (5) formas locativas que não adentraram a seqüenciação. 2.1. ESPAÇO � (TEMPO) � ARTICULAÇÃO DISCURSIVA 2.1.1 DÊIXIS LOCATIVA � ANÁFORA LOCATIVA Conforme Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:34; 1991b:151), são sérios candidatos à gramaticalização os itens lingüísticos que se referem a universais da experiência humana, representando aspectos concretos, básicos e gerais para a orientação no meio ambiente. Tais características os tornam aplicáveis para a referência a conceitos menos concretos e facilitam seu emprego como parte de arranjos e re-arranjos diversos no discurso, os quais são sempre sujeitos a sofrerem gramaticalização. Dentre os possíveis candidatos, destacam-se os demonstrativos básicos,154 especialmente os indicadores de espaço. Esse é o caso do aí, que, já no latim, desempenhava papéis voltados à localização espacial. De todos os usos do aí que encontrei em textos escritos em língua portuguesa, do século XIII ao século XX, e nas entrevistas florianopolitanas, o que apresenta os traços mais concretos, mais próximos das experiências humanas com o mundo circundante, é o dêitico locativo, resquício possível da fonte latina na qual tiveram origem - mais ou menos remotamente - os demais usos da unidade sob enfoque. Para Grenoble & Riley (1996), os dêiticos são palavras ou expressões usadas para apontar, no contexto extra-lingüístico, um indivíduo, objeto ou lugar, e introduzi-lo no discurso, relacionando o enunciado a suas coordenadas pessoais, espaciais e temporais. Trata-se de itens cujo uso e interpretação baseia-se crucialmente no conhecimento do contexto particular em que são produzidos. Laury (1997:29) afirma que os dêiticos têm conexão real com o que significam, pois, como se fossem dedos, apontam para algo presente no contexto interacional no momento mesmo da interação. Por essa razão, seu uso é freqüentemente acompanhado por um gesto indicativo.

153 O percurso rumo à seqüenciação é um dos percursos de mudança seguidos pelo aí, partindo do uso como dêitico locativo. Há também o que parte da mesma fonte e chega na especificação de sintagmas nominais indefinidos (cf. Tavares, 1999a, 2002a, 2002c). Alguns exemplos: Eu peguei um bicozinho aí pra uma pintura de uma casa (IR/FLP13:979) e Tou num comitê. A gente ‘tá preparando um brinquedinho pra uns caras aí” (As Vinhas da Ira, p. 361). Como tal função não possui relação com o desenvolvimento da seqüenciação, não é abordada aqui. 154 São agrupados sob o rótulo demonstrativo itens ou construções que possuem em comum a propriedade de apontar para algo (pessoa, objeto, espaço, tempo, etc), seja dêitica ou anaforicamente (confira mais adiante, na seção 2.1.1, a diferença existente entre esses tipos de apontamento).

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O aí, como dêitico, é locativo, relacionando uma informação a um local exterior à fala, isto é, apontando para um lugar do mundo real, e, dessa forma, vinculando o que é dito ao mundo externo. Mais especificamente, localiza pontos no espaço circundante como próximos ao ouvinte ou aponta para o espaço em que o ouvinte se encontra. Observem-se os exemplos de (30) a (33):

(30) Ele chegou e disse assim: “Ó, Dona T., a senhora- a senhora não deixa a chave aí, porque, às vezes pode- assim como eu vi, outros podem ver.” (TE/FLP16:822)

(31) Mesmo assim ele ainda ficou em casa um mês e pouco, mas o Henrique dormia aí, e ele dormia aqui. (RO/FLP03:982)

(32) Fique de cócoras aí, até fazermos a curva. (As Vinhas da Ira, p. 13) (33) --- Grandes novidades! – gritou Mãe – Temos uma festinha. O Al e a Aggie Wainwright vão casar.

Rosa de Sharon estacou. Olhou lentamente para Al, que se mostrava embaraçado, confundido. A senhora Wainwright chamou do outro lado do vagão:

--- ‘Tou só botando um vestido limpo na Aggie. Vamos já aí. (As Vinhas da Ira, p. 459) Além de servir para indicar um lugar próximo ao ouvinte ou o lugar em que o ouvinte está, o aí dêitico locativo recebe outras tarefas no discurso, talvez seguindo a trajetória de generalização funcional típica das formas em gramaticalização. Nesse processo, o aí perde seu traço original de indicação de proximidade em relação ao ouvinte, podendo fazer então referência ao espaço em que falante e ouvinte estão (funcionando de modo similar a itens e construções como aqui e neste lugar). Passa, a seguir, a apontar para espaços cada vez mais amplos, como o bairro, a cidade, o mundo. Os exemplos abaixo ilustram essa gradual generalização dos empregos dêiticos locativos do aí. Em (34) e (35), o informante utiliza o aí para se referir ao lugar em que ele e o entrevistador estão: a residência do informante. Em (36), ambos os aí são usados em referência ao bairro em que reside o informante (no qual está tendo lugar a entrevista). Em (37), os aí apontam para Florianópolis, a cidade em que o informante e o entrevistador estão. Em (38) e (39), aí refere-se ao mundo em geral, ao lugar e tempo em que vivemos atualmente, o qual, em (38), tem passado por transformações e, em (39), tem recebido gerações de indivíduos cada vez piores.

(34) Só trabalho em casa. O pai traz aí umas plantas e eu passo a limpo. (VI/FLP10J:89) (35) Eu faço assim, ó: quando é sábado, eu jogo vídeo-game. Se o meu primo estiver aí, eu jogo bola, se não eu jogo-

eu chuto pra parede e agarro. (RA/FLP12C:40) (36) O único problema do bairro é a droga... Mas é um fato- um fator que encontra-se dificuldade é exatamente levar

quem precisa ouvir esse tipo de palestra, o pessoal não vai. ... Então tivemos oportunidade de trazer médico psiquiatra fazendo palestra sobre toxicomania moderna, trouxemos aí ginecologista explicando às mulheres o problema da prevenção contra o câncer. Palestras importantíssimas, mas que realmente as pessoas que precisam ouvir esse tipo de palestra, de orientação, no- não vem. Outra vez trouxemos aí o pessoal da- do Conselho Estadual de Entorpecentes, com vários técnicos. Inclusive trouxemos aqui a professora I., lá da Universidade, e outro pessoal da área social pra participar também. (AC/FLP21:983)

(37) E: Sua esposa é daqui também? F: É, ela é daqui também. Ela nasceu aí, criou aí. (NL/FLP04:748)

(38) F: É, mas se você souber a cau- a causa disso, o- o mundo hoje estava- E: Seria outra coisa, né? F: Seria outra coisa. Não poderíamos, de jeito nenhum, a transformação que a gente está vendo aí. Então não

há mais respeito por mais nada. (IR/FLP13:1250) (39) Essa geraçãozinha que está vindo aí, cada vez piores, cada vez piores. (AL/FLP22:10)

Embora, ao longo dessa evolução rumo à aquisição de um conjunto mais extenso de funções, aí refira-se a espaços cada vez mais amplos, o traço de designação espacial dêitica é preservado. Inicialmente, aí aponta para um espaço externo situado próximo ao ouvinte ou aponta

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para onde o ouvinte está (cf. de (30) a (33)); posteriormente, a forma aponta para o local em que falante e ouvinte estão, em um crescendo de possibilidades: casa < bairro < cidade (de (34) a (37)); finalmente, aí aponta para o mundo atual (em (38) e (39)). Nessa última etapa, as noções de tempo e espaço parecem se imbricar, num processo pelo qual aí poderia chegar a receber usos como dêitico temporal, seguindo o aclive espaço � espaço/tempo � tempo no âmbito da dêixis. Não encontrei, todavia, dados de aí apontando exclusivamente para tempo externo à fala, apenas casos como (38) e (39), em que a indicação parece dupla, designando ao mesmo tempo espaço (o mundo) e tempo (a época de hoje). Tal proposta merece maiores averiguações futuras. As diferentes nuanças exibidas pelo aí no plano da indicação dêitica locativa são fruto da negociação e da adaptação das gramáticas dos interlocutores no momento da interação, do que emergem múltiplas possibilidades de usos. Algumas delas são capturadas por um bom número de falantes e, dessa maneira, tornam-se rotina, o que permite que o aí avance mais e mais em seu processo de gramaticalização.155 Quanto mais amplo o leque de funções passíveis de serem abarcadas por um mesmo item, maior o número de contextos em que ele pode aparecer, fazendo crescer suas possibilidades de adquirir novas funções gramaticais, em uma espiral em que o aumento de types leva ao aumento de tokens, o que, por sua vez, leva a um maior número de types. Assim é que, após sofrer generalizações diversas no âmbito da referência dêitica, aí se expande em direção a um outro domínio, o da referência anafórica locativa, em um movimento que recebe destaque a seguir. A anáfora pode ser definida como um apontamento para trás, lançando o foco das atenções sobre um ponto anterior específico do discurso do falante ou de seu interlocutor - seja lugar, seja tempo, seja outra informação qualquer -, como se fosse um gesto verbal apontando para algo dito previamente. Quando o subtipo de anáfora que ora nos interessa, a locativa, é utilizada, acontece um movimento de recuperação de uma referência locativa antecedente específica. O aí anafórico locativo aponta para um espaço que já foi mencionado, estabelecendo, assim, uma relação que pode ser dita de co-referência entre si e a menção prévia ao lugar em questão. A relação de co-referência criada pelo uso do aí anafórico locativo manifesta-se do seguinte modo: o aí aponta para uma palavra ou construção do discurso prévio, constituindo com ela um vínculo. Por sua vez, a palavra ou construção em causa faz referência a um lugar, do que resulta que o aí toma para si o mesmo referente. Vejam-se os exemplos abaixo, de fala florianopolitana e de trechos extraídos de textos do século XIII e XIV (o lugar para o qual cada aí aponta está sublinhado):

(40) Não tinha um hotel, não tinha nada pra dormir, que o único hotel da cidade estava fechado. Aí procuramos, procuramos, batemos nesse hospital, que é um hospital e maternidade, aí que ele estava. Fui olhar, ele estava todo queimado. (RO/FLP03:885)

(41) Atravessaria a Avenida Hercílio Luz ligando com a Rua Álvaro Müller da Silveira, que é defronte ali o DNER, Assembléia Legislativa. E o- o prefeito anterior, o Édison Andrino, chegou a- a iniciar uma- uma ponte de concreto armado aí, chegou a fazer a- o pé os pés da- da- da ponte (AC/FLP21:862)

(42) Sempre faz aquelas coisas que não pode. A gente se pendu- não era pendurar, também, né? Nós gostávamos de abrir o armário porque ele era muito grande e era muito alto. Então a gente se pendurava aí e ficava assim. (JQ/FLP01:770)

(43) E se a casa ouuer mester de se refazer e de se adubar e o senhur a nõ quiser adubar, frõt[e]o aaquel que a ten e possaa leyxar. E dé o aluger do tempo que y morou e nõ mays. (Foro Real, p. 247)

(44) E o terceyro exêplo he de quãndo rressucitou Nostro Senhor Ihesu Cristo Lazaro acabados quatro dias que era soterrado e cheyraua ia mal. E esto fez por que Santa Marta e Sãta Maria sas hirmaas fforõ longe daquel logar onde o soterrarõ a rrogarlhy por elle dizendolhy que sse elle hy fora nom morrera seu jrmaao. Entõ Nostro

155 O status do aí em suas diferentes funções - se lexical ou gramatical - é discutido na seção 6.

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Senhor Ihesu Cristo pola ssa piadade e pola sa gram mjsericordia rressucitoulho. (Alphonse X - Primeyra Partida, p. 125)

(45) Em este tempo avyã os Franceses guerra com os Romãos e fazianlhes muy gram torva quando avyam de êvyar aa Spanha. E avya hy muy boa cavallarya, taaes que se atreveron a lidar com Anybal, que era o mais arreceado homem do mundo, quãdo ya contra Roma, por lhes nõ passar pella terra, como que forom entom os Franceses vençudos, ca Anybal levava entõ muy gram poder. (Crónica Geral de Espanha de 1344, p. 87-88)

Como ilustra o dado (43), aí já tinha assumido o cargo de anafórico locativo em português no século XIII, preservando-o até hoje (cf. (40), (41) e (42)). Em algumas situações, não é fácil distinguir os usos dêiticos dos anafóricos da forma. De (46) a (48), temos trechos de fala atuais que ilustram contextos do tipo A/B, caracterizados por indefinição quanto a se o falante está apontando para um lugar do mundo exterior ou para um lugar antes mencionado. Usos ambíguos desse tipo podem ter pressionado a passagem do aí da dêixis locativa para a anáfora locativa:

(46) E: E, assim, tu moras ali bem perto da rua, né? assim- (hes) F: Hã, hã, na rua geral. E: É, já aconteceu algum acidente por ali assim? F: Já. A minha vizinha uma vez foi atropelada. Ela foi atravessar a rua (...) E: Mas, assim, (hes) nunca aconteceu acidente com alguém da tua família ali? F: Não. E: Mas é uma rua bem perigosa, né? F: É, é uma rua geral, né? passa bastante carro aí. Às vezes, passa carro em alta velocidade ali e tudo.

(DE/FLP06J:1043) (47) F: É do Nordeste, né? o macaquinho.

E: Você comprou- F: Nós compramos aqui no trevo. Foi vendido aí. (CR/FLP10:824)

(48) Pisou no acelerador e o caminhão arrancou, para logo travar o carro numa curva, a ponto de sair cheiro de borracha queimada dos pneumáticos. --- É como eu disse – prosseguiu - Um camarada que guia um caminhão às vezes faz coisas malucas. Tem que fazer. Senão, acaba maluco, só sentado aí, correndo pelas estradas. (As Vinhas da Ira, p. 15)

Levinson (1983:67) distingue a dêixis da anáfora da seguinte forma: um item anafórico “toma como referente a mesma entidade (ou classe de objetos) que algum termo anterior no discurso já tomou”, ao passo que um dêitico codifica “traços do contexto do enunciado”. Contudo, como aponta Laury (1997:86), essas definições são problemáticas porque, no discurso real, não é sempre fácil determinar se algum termo realmente “tomou” um referente prévio. A habilidade de interpretarmos a que um item se refere baseia-se não apenas no discurso precedente, mas também em traços do contexto do enunciado, incluindo o que os interlocutores conhecem e acreditam ser mutuamente conhecido, e o que eles estão fazendo no momento em que o ato referencial acontece. Portanto, o critério da existência de um antecedente pode falhar em distinguir a anáfora da dêixis: mesmo em casos em que uma menção foi feita previamente, traços do contexto do enunciado podem ser mais relevantes para o uso do demonstrativo que a existência da referida menção. Esse é o caso dos exemplos de (46) a (48), em que o local referido através do aí está duplamente presente: nas proximidades do espaço em que se encontram os interlocutores e como menção anterior no discurso (sublinhada em cada exemplo). Informante e entrevistador, em (46), estão na casa do primeiro, situada nas proximidades da rua geral antes mencionada; em (47), estão próximos ao trevo; e, em (48), estão próximos ao caminhão. Em todos esses casos, o lugar para o qual o aí aponta já havia sido mencionado, mas também está situado nas proximidades. Como decidir se o item está apontando dêitica ou anaforicamente? Os contextos caracterizados por indeterminação quanto à natureza do apontamento feito pelo aí – se dêitico ou anafórico – representam excelentes pontos de partida para que o item

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estenda seus tentáculos de um domínio a outro. Dessa guisa, do uso do aí como dêitico locativo, apontando para um lugar do mundo externo - mais ou menos amplo -, origina-se o uso do aí como anafórico locativo, apontando para um lugar já mencionado no discurso. A transferência do aí da dêixis para a anáfora segue a trajetória dêixis � anáfora, um tipo de extensão funcional corriqueira em muitas línguas (Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991; Fillmore, 1982). Essa trajetória de mudança implica uma passagem do mundo da experiência sensório-motora, dos objetos visíveis e tangíveis, para o mundo do texto, isto é, do apontamento para o contexto situacional exterior a papéis ligados à organização e relações interiores ao dizer. Ocorre, empregando os termos de Frajzyngier (1991), uma transferência de um domínio de re a um domínio de dicto. Como é típico no processo de transição de um domínio a outro, há um estágio intermediário de ambigüidade, em que o aí pode apontar para o mundo real e para o mundo do discurso ao mesmo tempo, o que acontece, por exemplo, nos casos listados de (46) a (48). A metáfora está envolvida nos desdobramentos funcionais do aí locativo. O apontamento para um lugar presente no contexto em que a conversa ocorre pode ser considerado de natureza concreta em razão do vínculo estabelecido entre o discurso e o mundo exterior a ele. Tal apontamento foi tomado como similar àquele que se dirige para um espaço anteriormente mencionado, mais abstrato por envolver relações internas ao discurso. Essas similaridades permitem que o aí salte do domínio dêitico ao anafórico, realizando aí, à semelhança de seus encargos no plano da dêixis, mapeamentos espaciais, mas, agora, sobre dimensões textuais. Essa passagem dêixis � anáfora representa também a transferência metafórica inter-domínios de re � de dicto, passando a organização espacial do mundo concreto a ser utilizada para organizar o universo mais complexo do texto. Essas alterações também implicam reanálise: como dêitico, aí vincula-se ao mundo externo e, como anafórico, vincula-se a um ponto do discurso já mencionado, dando origem a uma relação de co-referência, isto é, as relações entre as formas lingüísticas envolvidas são recortadas e interpretadas de modo distinto, como ilustra o exemplo a seguir:

(49) O teatro representa o terreiro da Fazenda do Riacho Fundo. À esquerda, vê-se a varanda da casa com janelas e portas, que dão para a cena; à direita, árvores; ao fundo, morros com plantações de café. (...)

Coro: Oh! Que dia de pagode / Na fazenda de sinhô! Sinhozinho chega hoje / Com a carta de doutô! (...) Perpétua (descendo da varanda com Rosinha): --- Que fogueira é esta, major? Parece-me que vem a casa abaixo! Limoeiro (com alegria): --- É o meu Henrique, é o meu doutor! (...) Chico Bento (indo ao fundo):

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--- Aí vem ele. (Diversas pessoas correm à varanda da casa e aí se postam) (Como se Fazia um Deputado, p. 14)

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No processo de extensão funcional sofrido pelo aí ainda no plano da dêixis, a metonímia parece ser o mecanismo de maior destaque. Contextos em que o aí aponta para onde está o ouvinte, mas que também possibilitam interpretação incluindo o falante, podem ter aberto espaço para o surgimento de usos indicando o espaço em que ambos, falante e ouvinte, estão. Por seu turno, tais usos incorporam inferências relativas a espaços cada vez mais amplos, até o aí chegar a apontar para o mundo em geral. 2.1.2 ANÁFORA LOCATIVA � ANÁFORA TEMPORAL Na seção anterior, vimos que, de usos do aí como dêitico locativo, apontando para um lugar do mundo externo, derivam usos do aí como anafórico locativo, apontando para um lugar já mencionado no texto, segundo o percurso dêixis � anáfora. Em uma nova etapa da migração rumo a funções mais abstratas, de certos contextos em que o aí aparece como anafórico locativo emerge a possibilidade de sua utilização como anafórico temporal, de acordo com o percurso espaço � tempo, em uma evolução dentro do próprio âmbito anafórico. Itens anafóricos temporais fazem remissão anafórica para um período de tempo referido previamente, mantendo uma relação de co-referência com o termo ou expressão que primeiro referiu o período de tempo em questão (sublinhado nos exemplos a seguir). Daí resulta que o evento vinculado pelo aí (em itálico nos exemplos a seguir) ao período de tempo previamente mencionado aconteceu exatamente em tal intervalo de tempo, não antes ou depois. Assim, em (50), a informante já estava crescida na época em que a mãe (referida por ela) apareceu novamente; em (51), o sol já tinha se posto no momento em que os homens deixaram as terras. Note-se que o uso de aí como anafórico temporal está ligado ao aparecimento da partícula já, no que talvez represente uma construção gramatical fixa.

(50) Quando eu tinha doze anos, ela apareceu de novo. Aí eu já estava adulta. (est) Aí eu já estava bem grande, né? (RO/FLP03:157)

(51) Quando os policiais já tinham ido embora, os homens deixaram as suas terras. O sol aí já declinara por completo. (As Vinhas da Ira, p. 284)

Como comumente ocorre quando a gramaticalização está envolvida, a mudança é de natureza local: os usos que pressionam as alterações caracterizam-se pela manifestação de traços locativos ao lado de traços temporais, gerando situações de ambigüidade A/B. Temos exemplos em (52) e (53). Em (52), o aí aponta para a Califórnia (na Califórnia, o indivíduo verá o que é uma terra bonita) ou para até chegar na Califórnia (no momento em que chegar na Califórnia, o indivíduo verá o que é uma terra bonita)? Em (53), o aí aponta para o campo (ao estar neste lugar o indivíduo teve vontade de ir ver sua antiga casa) ou ao período de tempo em que estava no campo, quando lhe surgiu a vontade de ir ver a casa? A fronteira entre a interpretação anafórica locativa e a anafórica temporal nesse caso pode ser bastante tênue. Contextos desse tipo facilmente conduzem o aí de uma função à outra.

(52) Espera só até chegar na Califórnia – disse Pai. – Aí tu vai ver o que é uma terra bonita. (As Vinhas da Ira, p. 215) (53) Foi vindo até ao campo; aí deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e afinal entrou na residência do General

Albernaz. Devia-lhe aquela visita e aproveitou o ensejo. (Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 128)

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Uma vez que, no caso da transferência do aí da anáfora locativa para a temporal, o tempo - uma relação mais abstrata - é compreendido em termos de espaço - uma noção mais concreta, ligada à experiência física com o mundo -, podemos considerar que a metáfora esteja em ação. Contudo, a hipótese de pequenas transferências metonímicas não pode ser descartada, por pressão de contextos como (52) e (53), em que inferências temporais mescladas ao apontamento anafórico locativo podem dar origem ao processo de rotinização da forma em usos temporais. Possivelmente, ambos os mecanismos atuem juntos, como previsto por Heine (1994). Embora tenha havido passagem de um domínio locativo para um temporal, a reanálise não deve ter se manifestado, pois não foi necessário traçar um recorte diferenciado do material lingüístico: seja locativo, seja temporal, aí anafórico realiza o mesmo movimento, apontando para um ponto específico do discurso anterior, como ilustrado pela figura a seguir:

� � � 2.1.3 ANÁFORA � SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA O uso dêitico espacial é o ponto de partida da gramaticalização em que o aí, de negociação em negociação nas situações comunicativas, vai perdendo seu valor de indicador espacial e passa a assumir papéis relativos à articulação de partes do discurso. Retomando parte da história, o aí dêitico locativo, que aponta para um lugar do mundo externo à fala, incorporando-o a esta, dá origem ao aí anafórico locativo, que aponta para um lugar já mencionado no texto. Por seu turno, o aí anafórico locativo é o manancial de onde escorre o aí anafórico temporal, que aponta para um período de tempo antes referido. Dos usos recebidos no âmbito anafórico temporal, aí encontra terreno para mais uma migração e dirige-se à seqüenciação retroativo-propulsora. Abre a porta deste domínio funcional ao começar a ser utilizado como marca da seqüenciação temporal, primeira das subfunções seqüenciadoras a surgir em seu caminho de gramaticalização. Como seqüenciador temporal, aí coloca em evidência a ordenação temporal cronológica dos eventos narrados, indicando que o evento seguinte ocorre depois que o anterior se conclui. A passagem do aí de anafórico temporal para conector seqüenciador temporal representa o percurso tempo � conexão textual, segundo o qual formas indicadoras de tempo tornam-se indicadoras da interligação entre partes do texto. À parte das entrevistas do corpus de Florianópolis, mapeei dados relativos às subfunções seqüenciadoras do aí apenas em alguns poucos romances escritos no final da primeira metade do século XX e na tradução para o português do romance americano As Vinhas da Ira, de 1940. É dessas fontes que vieram os exemplos apresentados nesta seção. Vejam-se alguns casos de seqüenciação temporal:

(54) E debaixo daquele aço sai um tubo desses de encanamento de água, aqueles tubos grandes, vão todos- Aí eles se metem dentro, aí estoura tudo, aí vem a máquina, vai tirando aquelas pedras menores, né? ficam mais ou menos assim, põe dentro do britador, aí eles vão pra outra barreira de pedra que tem. (MC/FLP09J: 1200)

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(55) Eu disse: “Claro que não, é pra lá, garota! Vamos esperar o tio.” Aí ela disse: “Mas o tio ainda não está vindo, ele disse que chegava primeiro que nós e não chegou.” (CA/FLP03C:37)

(56) --- Como foi isso? --- Nada – disse Casy. – O homem meteu-se a besta e tive que dar nele. Aí êle deu um tiro e feriu uma mulher, que estava lá embaixo. Aí eu dei nele outra vez. (As Vinhas da Ira, p. 283)

(57) Minha mãe disse, se descobriu um tanto, mostrou as garras: eu não careço que ninguém cuide de mim, sou aleijada não, sei tratar dos meus negócios. (...) Teu pai está é caduco, Tomé, vai morrer à míngua! Aí vovô Tomé retrucou, mãe, a senhora não tem mesmo jeito, está sempre aumentando um ponto, assim a coisa não vai. Ele queria dizer que se ela o desejava do seu lado devia mudar de jogo, daquele jeito, na brabeza, ela já tinha se bandeado pro lado do pai. (O Risco do Bordado, p. 139)

No processo de transferência da função anafórica temporal para a conectiva, aí deixa de apontar anaforicamente para um período de tempo específico referido por meio de um outro termo ou construção (�) situado em um naco anterior do discurso. Ao invés, passa a apontar anaforicamente de modo mais amplo para uma porção do discurso prévio (�) - uma oração ou segmento maior -, indicando que esta representa um evento ao qual se segue, em uma relação de sucessão temporal, o evento que introduz. Ao mesmo tempo, aí adquire a propriedade de direcionar o discurso rumo a sua continuidade, ao apontar cataforicamente, também de modo amplo (�), para o evento que introduz, em um movimento que acaba gerando a expectativa de que o que se segue ao conector tem a ver com o que o precede, de acordo com uma linha de desenvolvimentos temporais sucessivos entre eventos. Em ambos os papéis - anafórico temporal e seqüenciador temporal - aí marca a relação temporal entre dois eventos, revelando uma conexão temporal interna ao discurso. No entanto, o faz de modos distintos. No plano anafórico, aí remete anaforicamente para um período de tempo referido previamente, exibindo uma relação de co-referência com o termo ou expressão que primeiro referiu o período de tempo em questão (o qual está sublinhado nos exemplos (50) e (51)). O evento vinculado pelo aí a esse período de tempo ocorreu exatamente em tal intervalo de tempo, não antes ou depois. Ou seja, como anafórico, aí indica concomitância temporal, o que é ressaltado pela presença da partícula indicadora temporal já (cf. (50) e (51)). Diferentemente, como conector seqüenciador temporal, aí aponta para trás e para frente, guiando a atenção do interlocutor para ambos os focos, e não está ancorado em pontos específicos do discurso anterior ou posterior. Em decorrência, não manifesta relações de co-referência. Aí seqüenciador apenas conecta informações antecedentes e precedentes, indicando que as primeiras servem de base para a interpretação das segundas, e não possui um “antecedente” - um período de tempo já dito - à maneira do aí anafórico temporal. Além disso, o traço de indicação temporal é deslocado de um espaço de tempo sobreposto a outro antes referido - caso do uso anafórico da forma -, para um espaço de tempo posterior àquele no qual transcorreu o evento apontado anaforicamente pelo aí: o evento introduzido pelo aí teve lugar apenas depois que o primeiro evento se encerrou. A partícula já não se vincula ao aí quando este exerce o cargo de seqüenciador temporal. Essas modificações devem ter sido incentivadas pela utilização do aí anafórico temporal em contextos que possibilitam a presença de inferências ligadas à seqüencialidade no plano temporal, isto é, contextos em que ambas as leituras são possíveis. Em tais casos, é difícil decidir se temos uma alusão anafórica a um período de tempo referido previamente ou se já temos um apontamento anafórico/catafórico mais amplo do tipo��, conectando dois eventos e exibindo a relação de sucessão cronológica entre eles. Como definir com precisão se o primeiro evento de fato se encerrou antes de o segundo se iniciar, não havendo, assim, a relação de co-referência entre o aí e algum elemento prévio? Vejam-se:

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(58) A mãe de uma faxineira lá da escola. Ela estava indo ao encontro da filha na escola, né? aí o carro veio e

atropelou ela também, por isso que fizeram uma faixa de- de pedestre na frente da escola, né? (KA/FLP08C:135)

(59) E: Tu faz alguma coisa lá na igreja também, comunhão, ou já fizesse? F: Não, não, não fiz. Eu vou- estou esperando ficar com onze anos, aí eu vou começar a fazer. (RR/FLP04C:22)

Em (58), aí parece ser um seqüenciador temporal, interligando dois episódios de uma narrativa de acordo com sua ordem de sucessão no tempo (ela estava indo ao encontro da filha na escola e aí o carro veio e atropelou ela também), mas, como o segundo evento ocorreu em um ponto do desenvolvimento do primeiro evento (isto é, trata-se de uma relação não exatamente de simultaneidade, mas ainda assim de co-temporalidade parcial), o aí pode ser também um anafórico temporal, pois há uma certa sobreposição temporal. Em (59), o informante vai começar a fazer comunhão no período de tempo em que estiver com onze anos ou vai começar depois que fizer onze anos? Também é possível considerar que o aí tenha escorregado para usos no plano da seqüenciação temporal diretamente via usos anafóricos locativos. Em (60), temos uma situação do tipo que poderia pressionar tal migração funcional: aí pode ser interpretado como anafórico locativo - todos desceram diante da última tenda, local onde o carro parou -, ou como seqüenciador temporal - depois que o carro parou, todos desceram. Destarte, o item pode ter se tornado marca da seqüenciação temporal por pressão tanto de seus usos anafóricos temporais quanto de seus usos anafóricos locativos; neste último caso, seguindo um percurso espaço � articulação textual. Não é de se estranhar que uma mesma forma se torne marca de uma determinada função através de diferentes usos dados a ela no discurso. As adaptações entre as gramáticas dos interlocutores, cotidianamente necessárias para levar as situações de comunicação adiante, podem ocasionar alterações diversas nos padrões de uso do aí como anafórico locativo e como anafórico temporal, pressionando a forma a mudar, por caminhos diversos, em uma mesma direção.

(60) Mas a cortesia é necessária, indispensável. O veículo anda aos solavancos até a última tenda e pára. Aí todos descem, fatigados, a esticar o busto. (As Vinhas da Ira, p. 209)

A partir de seu ponto de chegada no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora, aí estende-se às demais subfunções. O percurso que o leva a tornar-se indicador da introdução de efeito é seqüenciação temporal � seqüenciação temporal/introdução de efeito � introdução de efeito (conseqüência ou conclusão). Os contextos fontes devem ter sido aqueles em que seqüencialidade temporal e introdução de efeito se confundem ou ocorrem sobrepostas, como em (61), (62), (63) e (64). Nesses casos, aí interliga dois eventos que se sucedem temporalmente. Contudo, o primeiro deles representa também causa e o segundo conseqüência. Em um avanço dessa trajetória de mudança, o traço anafórico temporal deixa de estar presente, e o conector passa a interligar informações que não evidenciam relação de sucessão temporal, mas sim de sucessão discursiva, no sentido de que a causa precede a conseqüência (cf. (65), (66), (67) e (68)). (61) Eles botaram ela, assim, num monte de aparelhos, sabe? Aí ela deu uma melhorazinha.

(RO/FLP03:1222) (62) A minha vódrasta, aquela tansa, antes ela ia fazer o arroz, ela pegava e mexia, aí ficava aquela papa.

(JA/FLP11J:1169)

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(63) Eu ameacei ele, tudo. Inclusive, eu tenho um grande amigo meu que é da Polícia Federal. Eu, inclusive, dei a ficha dele toda, aí ele tomou um chá de sumiço. (TE/FLP16:902)

(64) Porque uma vez ele- ele soltou as galinhas, foi tudo pra debaixo de um porão, aí foi o ovo tudo pro pau. (AZ/FLP04J:904)

(65) E: A que horas você vai pra cama? F: Não tem muito o que fazer à noite, aí geralmente é oito horas estou deitado já. (CR/FLP10:1091)

(66) Já está o caminho aberto, eu tenho alguma- eu já estou sabendo alguma coisa, né? Aí já aproveito. (VI/FLP10J:1386)

(67) Não tem preço aqui, né? e a família é bem grande, aí dá. Porque to- a minha vó tem treze filhos. Não, agora tem onze porque dois morreram. (CA/FLP03C:57)

(68) E: A cidade fica muito cheia, né? F: Fica, fica cheia de turista argentino, aí as praias lotam. Não dá nem pra gente andar direito. (DE/FLP06J:1157)

Há várias ocorrências do tipo (61), (62), (63) e (64) no corpus de Florianópolis e, na análise quantitativa, por considerar que já apresentam traços de indicação de conseqüência ou conclusão, agrupei-as junto às ocorrências de aí como introdutor de efeito despidas de traços temporais (do tipo ilustrado em (65), (66), (67) e (68)). Em comparação à seqüenciação temporal, a introdução de efeito representa um grau de abstração maior, por não estar tão próxima do mundo concreto, espácio-temporal: ou exibe sucessão temporal mesclada à idéia de efeito ou exibe apenas efeito. Efeito é uma noção ligada ao mundo do dizer, pois é o falante e não o mundo exterior que apresenta um evento como conseqüência do outro, ou uma informação como argumento e a outra como a conclusão extraída desse argumento. Além disso, a introdução de efeito o estabelecimento de relações como conseqüência e conclusão exige um processamento mental mais elaborado tanto do ponto de vista da produção quanto da percepção, pois está em jogo um viés argumentativo. As demais subfunções, vinculadas apenas à sucessão temporal e à sucessão discursiva, não manifestam viés argumentativo. Aí, em seu processo de extensão funcional no âmbito da seqüenciação retroativo-propulsora, acrescenta à sua coleção de subfunções uma ainda mais gramatical, a seqüenciação textual. Essa subfunção é de natureza altamente genérica, já que atua na interligação de partes do discurso sem evidenciar noções mais concretas como espaço, tempo ou mesmo mais complexas, como conseqüência e/ou conclusão. É responsável por destacar a relação de sucessão discursiva existente entre informações anteriores e posteriores, deixando transparecer que a informação que introduz tem a ver com as demais, por fazerem parte de um mesmo assunto. Observem-se:

(69) É, ali tinha o Rox, Cine Rox, e tinha o Cine Ritz também. Mas só o Cine Ritz também. (inint) hoje, né? existia naquela época também. Aí o Cine Ritz só ti- tinha cinema pra criança, mas era só durante a tarde, e à noite não podia ir, né? É porque naquela época a censura não era dezoito anos, era vinte e um anos. (ED/FLP18:1109)

(70) Ela tinha de cento e sete a cento e quatorze, a tia Pequena. Ela tinha acabado de morrer. Aí ela morreu no sábado, às nove horas, e a mãe morreu às cinco horas de- cinco e vinte da manhã de domingo. Logo depois. (RO/FLP03: 1276)

(71) Tenho um outro irmão, o sargento, ele também já é muito parecido com a mãe assim, porque ele é muito, sabes? muito elétrico assim, aí ele chega aqui, conta aqueles negócios da polícia, que matou três e que não sei o que e que prendeu não sei o quem. Às vezes nem aconteceu, mas ele é bem assim, sabes? (BE/FLP03J:1052)

Em conseqüência de sua ampliação funcional no domínio da seqüenciação, aí torna-se apto a aparecer cada vez mais, e, a partir de sua repetição constante em contextos de sucessão temporal ou de indicação de conseqüência/conclusão - ou mesmo em ambos -, acaba escalado para cobrir também a seqüenciação textual. Os aclives que sintetizam tais desenvolvimentos do aí são os

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seguintes: seqüenciação temporal � seqüenciação temporal/seqüenciação textual � seqüenciação textual e/ou introdução de efeito � introdução de efeito/seqüenciação textual � seqüenciação textual. Abaixo, temos alguns exemplos de situações A-B que podem servir de ponte para os usos seqüenciadores textuais do aí:

(72) Eu- eu digo na cara assim, eu vejo. “Ah, não, eu não fico mais perto aqui.” Começam a tomar cerveja nas festas, sabe? Aí eu mando parar: “Não, não, não, não.” A minha mãe (inint)- Por exemplo, uma amiga minha foi pra minha casa, né? ia dormir lá, aí elas tomam cerveja, minha mãe não suporta, eu dou altas broncas: “Não, não vai tomar isso aí porque eu não quero, porque depois fica o cheiro na boca, aquela coisa assim nojenta.” (JA/FLP11J:1068)

(73) --- Eu não preciso de cachaça – interpôs-se o motorista com rapidez. – Eu ‘tou é treinando o cérebro o tempo todo. – Ficou segurando o volante só com a direita e falou animado: --- Supunha que eu passo por uma estrada. Aí, passa também um sujeito qualquer. Eu fico olhando pra êle e depois que passa por mim procuro lembrar tudo sobre ele; como era a roupa que êle usava, os sapatos, o chapéu e como êle andava e até a altura dêle, o pêso, alguma marca, cicatriz, etc. Já consigo fazer isso muito bem. Formo um retrato do homem, direitinho, na minha cabeça. (As Vinhas da Ira, p. 16)

(74) E eu, como era menina, achava que devia ter uma bicicleta bonitinha de acordo com a menina. Aí ganhei, que ficou pra mim e pra minha irmã, né? Mas não fiquei muito contente porque eu queria pra mim, né? (JQ/FLP01:1154)

Em (72), não fica claro se a amiga bebeu cerveja depois de ir para a casa da informante, configurando uma relação de seqüenciação temporal, ou se bebeu antes de ir e levou bronca da informante porque a mãe desta não gostaria de receber em casa alguém com cheiro de cerveja. Nesse último caso, a relação entre as informações seria de seqüenciação textual, uma vez que não estariam interligadas de acordo com sua ordem de sucessão no tempo e sim por se relacionarem ao evento que está sendo narrado. Em (73), temos seqüenciação temporal - o sujeito qualquer passa na estrada depois do falante -, ou a informação de que passa mais alguém, independentemente da ordenação temporal, destaca-se como relevante para compor a situação que deve ser suposta pelo interlocutor (Supunha que eu passo (...)), deixando emergir assim a seqüenciação textual? Em (74), a bicicleta foi ganha em conseqüência de ser desejada ou a informação de que a informante ganhou a bicicleta é um desdobramento do tópico em desenvolvimento, sem implicar relação causa-efeito? Como seqüenciador textual, aí também passa a exibir a retomada de informações anteriores, em um percurso seqüenciação textual � retomada, e a conclusão de tópicos ou de sub-tópicos em um percurso seqüenciação textual � finalização. Exemplos:

(75) Aí é seis e quinze, (hes) (...) quinze pras sete, é sempre assim agora porque dá preguiça de acordar, que é frio, aí vou pro colégio. Aí lá- aí- lá é legal. Depois volto. Ah, eu vou entrar em férias já quarta-feira agora, né? Aí eu volto, cuido do bar, depois o meu pai- e- eu vejo “Malhação”, “Chiquititas”, faço às vezes os meus deveres. (CA/FLP03C:53) 156

(76) É “Mulheres sem dono”. É prostituição mesmo, assim. É mulher que- Até está lá em casa. Até vou trazer pra tu leres um dia. Deixa eu terminar que ainda não terminei o livro. Mas é baseado em prostituição, não tem? A mulher do cara viaja, ele vai encontrar com ela. Aí ela estava no- no- tipo- Como é que ela- ela veste? Aí é baseado nisso aí. (TE/FLP16:1019)

A retomada e a finalização representam usos específicos do aí seqüenciador textual como estratégia discursiva para destacar, respectivamente, a volta à linha narrativa ou argumentativa interrompida por uma digressão e a finalização do tópico. Utilizado freqüentemente em tais subfunções, aí torna-se um de seus sinalizadores típicos.

156 O símbolo marca o início da digressão feita pelo falante, e marca o seu final.

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2.1.4 ENFIM Das múltiplas tarefas dêiticas e anafóricas das quais o aí é utilizado como marca - as diversas estratégias discursivas de apontamento para o mundo e para o já dito supra-elencadas - emerge seu uso como seqüenciador. Aí é regularizado e generalizado, passando a ser constante e estavelmente associado à seqüenciação retroativo-propulsora, percorrendo uma trajetória que teve as seguintes escalas: dêixis locativa (apontamento para o mundo) � anáfora locativa (apontamento para um lugar mencionado anteriormente, criando-se uma relação de co-referência) � anáfora temporal (apontamento para um período de tempo mencionado anteriormente, criando-se uma relação de co-referência) � seqüenciação retroativo-propulsora (apontamento para a informação prévia e para a informação subseqüente, criando-se um laço coesivo que dispara, no interlocutor, a busca por inter-relações), havendo ainda a possibilidade de migração diretamente da anáfora locativa para a seqüenciação. A figura a seguir esquematiza as principais alterações sofridas pelo aí no decorrer dessa evolução:

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���� A metáfora é suspeita de envolvimento nos desdobramentos do aí em direção a funções cada vez mais gramaticais, através da ampliação dos usos dados à forma, que, da codificação de funções mais concretas e/ou menos complexas, migra para a codificação de funções mais complexas e/ou genéricas, metaforicamente igualadas por manifestarem certas similaridades. O apontamento para um lugar do contexto em que a conversa ocorre pode ser considerado de natureza bastante concreta em razão do elo estabelecido entre o discurso e o mundo exterior a ele. Na passagem do aí dessa tarefa dêitica para a de apontamento anafórico locativo, a organização espacial do mundo concreto é transferida para a organização do universo mais abstrato do texto, saltando a forma do domínio de re para o domínio de dicto. A aquisição de funções anafóricas temporais representa uma etapa ainda mais gramatical no caminho de mudança inter-domínios seguido pelo aí, em que o tempo - uma relação mais abstrata - é compreendido em termos de espaço - uma noção mais concreta, relativa à experiência física com o mundo. A transmutação do aí em conector seqüenciador temporal empurra a forma para uma função de âmbito ainda mais gramatical: a relação espacial e/ou temporal ligando o aí a um antecedente dá lugar à relação de seqüencialidade temporal existente entre dois eventos. Não é possível desprezar-se, porém, a hipótese de que pequenas transferências metonímicas estejam subjacentes às modificações mais amplas de natureza metafórica. Pressões on-line para a absorção de inferências que se manifestam em contextos particulares de uso do aí (situações do tipo A/B) podem ser o ponto de partida para a extensão funcional da unidade sob análise em seus

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diferentes estágios de mudança. Como afirmam Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991b:165-166), metáfora e metonímia coexistem como “parte e parcela” no processo de gramaticalização. Algumas das modificações sofridas pelo aí implicam migração entre domínios gramaticais e, por tabela, a ação do mecanismo de reanálise, recortando de modos distintos as relações entre o aí e outros elementos lingüísticos a cada etapa de mudança: a) a passagem para o reino da anáfora significa o estabelecimento de um vínculo de co-referência com um item prévio (palavra ou construção), relação não existente quando do apontamento dêitico locativo, em que o aí aponta para um lugar do mundo externo; b) o deslocamento para o reino da articulação discursiva libera o aí da relação de co-referência com um item específico do universo discursivo anterior, e a forma passa a apontar para frente e para trás de modo mais amplo, assumindo o encargo de conector seqüenciador. Aí é generalizado como marca das diferentes subfunções seqüenciadoras a partir da seqüenciação temporal, através da incorporação de traços de função-significação presentes na forma de inferências em contextos particulares. Esse processo de generalização segue percursos de abstração crescentes típicos da gramaticalização. A seqüenciação temporal aparece em trechos do discurso em que são encadeados acontecimentos - portanto, num plano mais concreto. Dos usos de aí em tal plano de articulação textual deriva seu uso na introdução de efeito, subfunção seqüenciadora pela qual o falante apresenta, num plano de maior complexidade, argumentos que levam a conclusões e/ou causas que levam a conseqüências, envolvendo ou não traços de sucessão temporal - no último caso, implicando um nível ainda mais abstrato. Por pressão de contextos de seqüenciação temporal ou de introdução de efeito ou provavelmente de ambos, aí passa a se exibir em contextos de seqüenciação textual, uma estratégia lingüística puramente coesiva, de caráter altamente genérico, esvaziada de quaisquer traços de função-significação além da indicação de que uma informação relaciona-se com a outra ou de que ambas relacionam-se ao mesmo tópico. Os usos finalizadores e retomadores do aí têm sua origem na enraização de seu aparecimento como seqüenciador textual em fórmulas empregadas para encerrar o tópico ou subtópico em andamento e para recuperar informação anteriormente mencionada e a partir disso dar continuidade ao discurso.157 A extensão do aí para as diversas subfunções seqüenciadoras não envolve transferência categorial de um tipo gramatical para outro, e sim uma extensão funcional no âmbito da própria seqüenciação, dispensando a ação da reanálise. O mecanismo de maior destaque nesse processo parece ser a metonímia, ou, mais especificamente, seu subtipo inferência por pressão de informatividade. Nuanças seqüenciadoras presentes como inferências em alguns contextos de uso do aí seqüenciador acabaram incorporando-se ao conjunto de subfunções típicas da forma. É difícil definir quando o aí começa a ser utilizado como conector, pois não há vestígios de seu uso nessa função em épocas anteriores ao século XX no material examinado. Acredito que o aí tenha adquirido papéis no âmbito da articulação discursiva em português brasileiro, talvez durante o século XVIII ou mesmo XIX. Dentre os diversos textos selecionados para integrar o corpus desta 157 Martelotta (1994:109;147), a partir de dados sincrônicos e diacrônicos, também propõe percursos de gramaticalização para duas das formas ora sob investigação, aí e então. Segundo o autor, o aí, em seu processo de gramaticalização, segue uma trajetória que tem seu ponto de partida no uso dêitico espacial, do qual advêm seus usos anafóricos espaciais e temporais. Este último, por sua vez, constitui-se na fonte do uso seqüencial (de base temporal). O uso seqüencial dá origem ao uso como conclusivo e ao uso como introdutor de informações livres. Quanto ao então, seu uso como anafórico temporal é a fonte do valor seqüencial, que pode manifestar-se como introdutor de informações livres, como retomador de assunto ou como conclusivo.

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pesquisa (cf. anexo 5), encontrei as primeiras ocorrências do aí como seqüenciador em alguns romances escritos no final da primeira metade do século XX: Capitães da Areia (12 dados) e Jubiabá (15 dados), da autoria de Jorge Amado; O Risco do Bordado (6 dados), de Autran Dourado; e As Vinhas da Ira (37 dados), de John Steinbeck. Além do aparecimento bastante recente do aí como seqüenciador em romances brasileiros, outro reforço para a crença de que a forma tenha emergido nessa função somente no lado de cá foram os resultados que obtive em alguns estudos comparativos buscando semelhanças e diferenças no uso da seqüenciação na fala informal no português brasileiro e no português europeu (cf. Tavares, 2002d e 2002e).158 Além-mar, as marcas mais freqüentes da seqüenciação são os conectores e, então e portanto. Aqui temos, é claro, e, aí, daí e então partilhando as tarefas. Lá, nenhum só caso de aí (ou daí) como seqüenciador para contar história.159 2.2 UMA PALAVRINHA QUANTO À CANDIDATURA DO AÍ À SEQÜENCIAÇÃO Em língua portuguesa, há vários demonstrativos locativos indicando pontos no espaço em relação à localização dos participantes do ato de comunicação, que podem ser distribuídos de acordo com o traço de proximidade que preferencialmente (mas não exclusivamente) exibem: aqui – aí – ali – lá. De acordo com Martelotta & Rêgo (1996 e 1998), tradicionalmente, tais formas são distinguidas da seguinte maneira: (a) aqui = localiza pontos no espaço próximos ao falante; (b) aí = localiza pontos no espaço próximos ao ouvinte; (c) ali = localiza pontos no espaço distantes do falante e do ouvinte; (d) lá = localiza pontos no espaço mais distantes do falante e do ouvinte, em comparação com ali.160 À parte dessas distinções, como apontam Martelotta & Rêgo (1996 e 1998), aqui, aí, ali e lá são utilizados em diversos papéis de natureza dêitica, anafórica e catafórica, o que acredito ser um indício de que passam por processos de generalização, pelos quais são adaptados a múltiplos usos. Contudo, somente o aí migrou para a função de seqüenciação retroativo-propulsora. Teria ele alguma propriedade que o torna mais apto a marcar a seqüenciação que os demais demonstrativos locativos? Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991:185) apontam que, em línguas em que ocorre uma escolha entre indicadores de diferentes graus de proximidade, geralmente aquele que é recrutado para assumir uma função mais gramatical é o indicador ou um dos indicadores de distância do centro dêitico (isto é, do eu que fala). Em oposição a aqui, aí é de fato um indicador de distância. No entanto, ali e lá também o são (inclusive sinalizando distâncias ainda maiores que a sinalizada pelo aí), o que facilita sua candidatura à entrada em domínios gramaticais variados. Encontrei inclusive alguns dados do ali em contextos suspeitos, do tipo A-B, através dos quais poderia ter angariado funções seqüenciadoras (ou poderá vir a angariar, futuramente!): 158 Nesses estudos, a fonte dos dados brasileiros foram 36 entrevistas com informantes de Florianópolis fornecidas pelo Projeto VARSUL/UFSC, e os dados do português europeu vieram de 36 entrevistas com informantes de Portugal, integrantes de um subcorpus do Corpus de Freqüência, pertence ao Projeto do Português Fundamental (cf. Nascimento, Marques & Cruz, 1987). Também realizei estudos comparativos entre o uso da seqüenciação retroativo-propulsora em textos jornalísticos extraídos de jornais e revistas brasileiros e portugueses, em que encontrei dados do aí seqüenciando informações somente nos textos brasileiros (cf. Tavares, 2002f e 2002g). 159 Alguns resultados quantitativos oriundos de tais estudos são mencionados no capítulo VI, em comparação com os números obtidos para esta pesquisa. É interessante como a divisão do trabalho no reino da seqüenciação aquém e além mar é distinta, do que decorrem importantes implicações para os desenvolvimentos dos seqüenciadores no português brasileiro. 160 Alguns exemplos de aqui, aí, ali e lá no desempenho de tais funções: Aqui tudo vai bem; Como vão as coisas por aí?; É melhor seguir por ali; Hoje não irei lá (cf. Martelotta & Rêgo, 1996:239).

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(77) E êles falavam com brandura de seus lares antigos: havia uma adega debaixo da roda do moínho. A gente

sempre botava o leite lá dentro, que era pra fazer nata, e também as melancias pra gelar. Quando fazia um calor de rachar, lá na adega era um fresco bom como quê. Alí a gente abria uma melancia e quase não podia comer ela de tão fria que ‘tava. (As Vinhas da Ira, p. 210)

(78) Quase sempre, o espírito solitário de Tio John mantinha-o afastado dos homens e dos apetites. Êle comia pouco, nada bebia, e aferrava-se ao celibato. Mas, sob essa crosta de aparências, cresciam à vontade os seus desejos, ameaçando rompê-la. Alí então êle comeria algo de indigesto, até cair doente, ou então beberia jake e whisky até tornar-se um pobre paralítico de pernas trêmulas e olhos fundos e vermelhos; ou então correria a Sallisaw e satisfaria a carne numa meretriz qualquer. (As Vinhas da Ira, p. 98-99)

(79) Eu comecei como carregador de- de- esses chapas de caminhão de bebida. Dali eu fui fazendo amizade com os motoristas, eles foram ensinando a dirigir e coisa (PE/FLP02:1245)

Em (77), ali é um anafórico locativo, apontando para um lugar mencionado anteriormente, a adega, mas é possível perceber a presença de inferências de introdução de efeito: como na adega era fresco, a melancia aberta se conservava fria, inferência que, se fosse constantemente vinculada ao aparecimento do ali, poderia passar a integrar o seu elenco de funções típicas, à semelhança do que ocorre com o aí. No exemplo em questão, se tivéssemos no lugar do ali o aí, provavelmente teríamos dúvidas - ou mais dúvidas - quanto ao papel que ele estaria desempenhando, pois é comumente relacionado tanto à indicação anafórica quanto à seqüenciação de informações, e o contexto apresentado em (77) permitiria ambas as interpretações. Já a presença do ali reduz as chances de uma leitura seqüenciadora, uma vez que esta não é uma tarefa que se costuma relacionar a tal demonstrativo. O dado (78) é estranho. Parece um caso de seqüenciação temporal exibida por um uso co-ocorrente de ali e então, isto é, seu emprego combinado em um contexto em que preenchem ou reforçam reciprocamente a subfunção de seqüenciação temporal: depois que a crosta rompesse, Tio John comeria algo de indigesto, beberia jake e whisky e etc. Curiosamente, na edição americana de As Vinhas da Ira,161 temos, no lugar, apenas o then162 - que exerce, em inglês, função seqüenciadora semelhante à do então em português,163 um indício de que o autor provavelmente pretendia estabelecer um traço de seqüenciação entre as informações assim interligadas. A razão pela qual o ali foi acrescentado à tradução brasileira é obscura. Teria sido ele entendido como capaz de desempenhar o mesmo papel que o e - isto é, assinalar a seqüenciação temporal em conjunto com o então em construções como (80), também de As Vinhas da Ira?

(80) Tom estava muito próximo dêle. Encostou o punho no queixo de Tio John. Traçou no ar duas pequenas voltas experimentais, calculando a distância, e então seu braço deslocou-se do ombro. O golpe foi dado com uma perfeição esmerada. O queixo de Tio John sofreu um recuo. (As Vinhas da Ira, p. 295)

Em (79), temos um dali trazendo indicações temporais – apontando para o momento em que ou para depois que o informante começou a trabalhar no cargo de chapa de caminhão. Nesse caso, dali parece estar atuando em um papel entre anáfora temporal e seqüenciação temporal, o que também representa uma boa porta de entrada para o domínio da seqüenciação. Contudo, a recorrência do ali ou do dali em contextos do tipo ilustrado em (77), (78) e (79) é baixa: esses três foram os únicos que encontrei, considerando todos os corpora averiguados. 161 Steinbeck, John. 1972.The Grapes of Wrath. New York: The Viking Press. 162 Nearly all the time the barrier of loneliness cut Uncle John off from people and from appetites. He ate little, drank nothing, and was celibate. But underneath, his appetites swelled into pressures until they broke through. Then he would eat of some craved food until he was sick; or he would drink jake or whisky until he was a shaken paralytic with red with eyes; or he would raven with lust for some whore in Sallisaw. (The Grapes of Wrath, p. 105) 163 Conferir Schiffrin (1987) para um maior detalhamento das funções do then no inglês.

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Talvez, dentre os demonstrativos distais, apenas o aí tenha sido cooptado pelo domínio da seqüenciação por ter sido generalizado para um maior número de funções comparativamente aos demais, o que certamente teria causado uma grande elevação em sua freqüência de aparecimento em situações diversas, instigando sua transferência para um número ainda maior de funções – seguindo a tendência de evolução espiral apontada por (Bybee, 20**a/b): mais funções > maior recorrência; maior recorrência > mais funções. Contudo, esta é apenas uma hipótese que necessita de maiores averiguações, o que não terá espaço aqui.164 3. DAÍ 3.1 NOS REINOS DA DÊIXIS E DA ANÁFORA Daí é uma construção composta pela contração da preposição de com o dêitico locativo aí. Segundo Cunha (1991), a forma apareceu (também em suas variações dy, di, dj) somente a partir do século XIV. Como suas funções mais remotas envolvem papéis voltados à indicação locativa, daí deve ter se habilitado como marca da seqüenciação retroativo-propulsora através de um percurso similar ao percorrido pelo aí, sintetizado pelo aclive proposto por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a): espaço � tempo � texto. É encargo árduo definir quando o daí conquistou uma vaga no território da seqüenciação, pois não há vestígios de seu uso nessa função em épocas anteriores ao século XX. Acredito que tenha se tornado um articulador discursivo apenas em português brasileiro, provavelmente em um período de tempo posterior ao da chegada do aí na seqüenciação, uma vez que daí não apareceu exibindo a seqüenciação mesmo em romances da primeira metade do século XX. Apesar da grande extensão dos corpora considerados - quarenta obras escritas do século XIII ao século XX, além de quarenta e oito entrevistas com informantes florianopolitanos -, encontrei poucos dados do daí em funções distintas da seqüenciação. Não há, nas entrevistas florianopolitanas, dados da forma como dêitico locativo e, como anafórico locativo, há apenas um (cf. (84)). Apresento, então, para tais funções, exemplos extraídos de As Vinhas da Ira. Começo, em (81), pelo dêitico locativo, uso em que o daí apresenta os traços de função-significação mais concretos, mais voltados para o mundo circundante, por apontar para um local exterior ao discurso, relacionando a ele o enunciado. Em contraste com o aí, que, como dêitico locativo, indica posição próxima ao ouvinte ou o lugar onde ouvinte ou falante e ouvinte estão, o daí indica movimento para longe do espaço em que o ouvinte está ou de um lugar próximo ao ouvinte. Leva a cabo, portanto, uma indicação de natureza direcional, de caráter ablativo (algo ou alguém vem do exterior de um lugar) ou elativo (algo ou alguém vem do interior de um lugar), o que pode ser atribuído ao papel da preposição de na construção daí - algo ou alguém vem de algum lugar (Castilho, 1997:48; Costa, 1999:229).

164 Uma dificuldade em se estudar mais aprofundadamente as funções exibidas pelas quatro formas demonstrativas sob enfoque é sua baixa freqüência, tanto em textos escritos do século XIII ao século XX, quanto nas entrevistas florianopolitanas.

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(81) --- Tu vai ver – disse. – Fica aí até chegar o carro e tu vai ver. Talvez seja o Willy Feeley e o Willy agora é ajudante do “sheriff”. É autoridade. Que é que tu ‘tá fazendo aquí? Aquí é proibido – vai dizer o Willy. Bem, tu sabe, o Willy foi sempre um sujeito metido a besta. Tu diz: que é que tu tem com isso? Aí o Willy fica danado e diz: Tu saí daí, ou senão eu te levo comigo. (As Vinhas da Ira, p. 60)

(82) --- Êles foram, mesmo, ou então a mãe morreu. – Falou, e apontou para a porta do cercado. - Se minha mãe estivesse aquí, essa porta estaria fechada e com cadeado. Minha mãe sempre fechava essa porta com cadeado, desde que o porco fugiu daí e correu até a casa dos Jacobs. (As Vinhas da Ira, p. 43)

(83) É igual a um vôlei mesmo, a gente saca, daí tem que levantar. Se sacar fo- assim dentro de um lugar aí, sai daí, (hes) sacar dentro da área, sai. (RR/FLP04C:13)

Em (81), o daí aponta para o lugar em que o ouvinte está e do qual este recebeu ordens de se deslocar. Em (82), temos uma situação A/B em que o local indicado está nas proximidades e também foi referido previamente (no trecho sublinhado), e daí pode ser entendido como dêitico, apontando para o mundo exterior, ou como anafórico, apontando para o discurso anterior. A partir deste tipo de contexto em que ambas as leituras são possíveis, daí pode ter rumado para usos unicamente anafóricos, como o exemplificado em (83), em que a forma patrocina a recuperação de uma referência locativa antecedente específica. Como anafórico, daí mantém seu papel ligado à indicação espacial ablativa ou elativa, mas as relações estabelecidas são re-analisadas: sai a indicação voltada para o âmbito externo, e entra a indicação voltada para o âmbito interno, surgindo uma relação de co-referência entre o daí e a forma ou construção que primeiro referiu o espaço em causa. Isso acontece nos seguintes termos: daí aponta para um elemento do discurso prévio, constituindo com ele um vínculo de co-referência, pois esse elemento faz referência a um lugar e o daí adota para si o mesmo referente. É o aclive dêixis � anáfora entrando em ação, implicando a migração do apontamento ao contexto circundante para a organização interna do discurso. Tal passagem ocorre sob os auspícios da metáfora, por conta das similaridades entre um e outro dos domínios envolvidos, ambos definidos pelo traço de apontamento - este é transferido do mundo externo (domínio de re) para o mundo do texto (domínio de dicto):

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Não mapeei nenhum daí atuando no ramo da anáfora temporal. A hipótese, então, é que a forma tenha migrado diretamente de seus usos como anafórico locativo para papéis na organização textual, pegando um atalho na trajetória espaço � (tempo) � texto, em um movimento previsto por Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:182), também possível para o aí (cf. na seção 2). Contudo, o único caso de daí anafórico locativo disponível nos corpora é o dado (84), o que significa que elos do tipo A/B, passíveis de ilustrar de modo mais refinado como teriam ocorrido as alterações implicadas pela trajetória anáfora locativa � conexão discursiva, não foram encontrados.

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É provável, entretanto, que o daí tenha dado as boas vindas às suas novas funções no domínio da seqüenciação não através da anáfora locativa, mas sim via um uso híbrido entre anáfora discursiva e seqüenciação retroativo-propulsora, em que a forma, ao apontar não para um lugar mas para uma informação prévia, exibe a nuança de introdução de efeito (conseqüência ou conclusão). Trata-se de um uso exclusivo dado ao daí e a nenhuma outra forma, encontrado em textos do início do século, e que é freqüente ainda hoje, aparecendo inclusive na fala de Florianópolis:

(84) I: Agora, A., o fechamento sempre existiu. Porque eu digo pelo casamento (inint) tanto a N. F: A irmã do meu avô. I: A irmã do teu avô. Tanto a N. como a mamãe, que era a irmã, elas foram mais marcadas. F: Ah, isso foi, é. Discriminação. I: Aceitação- aceitação da família. Mamãe sempre dizia: “Vocês casem (inint).”

F: É daí- daí também esse entroncamento que houve, né? na família. Daí veio isso. Eles não procuravam pessoas assim estranhas, porque as que tinham procurado tinham levado na cabeça. Então eles procuravam se entrelaçar, né? dentro do próprio tronco. (AL/FLP22:769)

(85) Há uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus movimentos, atos e gestos. Era o seu amor à família, um amor entranhado, alguma cousa de patriarcal, de antigo que já se vai esvaindo com a marcha da civilização. / Em virtude dos insucessos na exploração agrícola de duas das suas propriedades, a sua situação particular era precária, e não queria morrer sem deixar à família as suas propriedades agrícolas desoneradas do peso das divídas. / Honesto e probo como era, a única esperança que lhe restava, repousava nas economias sobre os seus ordenados. Daí lhe veio essa dubiedade, esse jogo com pau de dous bicos, jogo indispensável para conservar os rendosos lugares que teve e o fez atarraxar-se tenazmente à presidência da República. (Triste Fim de Policarpo Quaresma, p. 115)

(86) As proposições são membros do periodo, assim como os termos logicos são membros da proposição; estes se combinam para formar a proposição, e aquellas para formarem o periodo. Na combinação destas intervem a conjuncção, e na daquelles a preposição. Dahi certa analogia de funcção das duas classes de particulas. (Pereira, 1923, p. 563)

Nesse uso híbrido entre anáfora e introdução de efeito, temos uma construção composta pelo daí e pelo verbo vir, o qual pode estar elíptico. Em (84), daí e daí veio apontam para diversas informações dadas anteriormente, relativas à discriminação sofrida pelos membros da família que se casavam com pessoas de fora. Tais informações são convertidas na causa das informações introduzidas pelas construções híbridas: daí também esse entroncamento que houve, né? na família. Daí veio isso. Ou seja, como havia fortes restrições ao casamento com estranhos, ocorreu um ‘entrocamento’ na família, pois a maioria passou a optar por casar com parentes. Em (85), a causa apontada pelo daí veio – o amor à família e insucessos nos negócios – tem como conseqüência atitudes dúbias visando à preservação. Em (86), a existência de analogia entre a conjunção e a preposição decorre do fato de apresentarem similaridades funcionais: são membros do período e da proposição respectivamente e combinam-se para formá-los. O dado (86) é um extra, não pertencente a nenhum dos corpora inicialmente previstos, tendo sido extraído da Grammatica Historica de Eduardo Pereira, em sua quarta edição, datada de 1923. O fato de aparecer em uma gramática parece indicar que se trata de um uso não estigmatizado, diferente dos usos do daí no plano da seqüenciação, como se verá no capítulo VI. A construção anafórica discursiva introdutora de efeito tem sua origem nos usos locativos do daí em que ele aponta para um espaço previamente referido. Como sua fonte, a construção daí (vem) aponta também para algo previamente referido, mas não um lugar e sim uma ou mais informações e, ao mesmo tempo, direciona o discurso rumo à sua continuidade, ao permitir a inferência de que a informação introduzida por si decorre das informações prévias para as quais aponta.

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No processo de migração funcional, ocorre uma transferência metafórica do domínio da indicação anafórica espacial para o domínio da indicação anafórica discursiva, responsável pelo apontamento para informações quaisquer previamente dadas, não especificamente locativas ou temporais. Daí deixa de apontar para locais de onde vem algo ou alguém e passa a apontar para causas de onde vêm conseqüências. Como tipicamente ocorre quando a metáfora está em jogo, um conceito mais complexo torna-se mais facilmente compreendido apelando-se para formas costumeiramente vinculadas a conceitos mais concretos: o uso do daí permite apresentar causas como lugares de onde vêm conseqüências, fornecendo às primeiras um traço de concretude. Daí continua manifestando indicação direcional ablativa/elativa - ou seja, o de está ainda na ativa: a conseqüência vem de algum ‘lugar’ (a sua causa), do que deriva que o aí, por não possuir um indicador direcional do tipo de, não pode exibir tal função. A reanálise certamente pôs as manguinhas de fora: a construção daí + vir foi recortada do contínuo do discurso como fórmula gramatical à parte, saliente e recorrente. A figura a seguir ilustra a trajetória anáfora locativa � anáfora discursiva/introdução de efeito:

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3.2 TOMANDO ASSENTO NA SEQÜENCIAÇÃO Ao ser utilizado como sinalizador do movimento anafórico capaz de deixar vir à tona nuanças de conseqüência ou conclusão, daí consegue abrir as portas da seqüenciação, penetrando nesta através da introdução de efeito, uma subfunção complexa. Em certas situações A-B, o interlocutor é posto em dúvida acerca da presença do traço de apontamento direcional, o que impulsiona a transmutação funcional do daí. Em (88), por exemplo, daí pode estar apontando para a informação a mulher não tem, nem pai nem mãe, não tem autoridade sobre os filhos como o lugar de onde advém a conseqüência Daí vai se formando essa geraçãozinha cada vez mais- mais (hes) perversa, né? Neste caso, o traço direcional ablativo/elativo é percebido (��). Todavia, a forma pode ser entendida como exibindo unicamente seqüenciação introdutora de efeito (��), caso em que e, aí e então também seriam possíveis.

(87) A- a mulher não tem, nem pai nem mãe, não tem autoridade sobre os filhos. Daí vai se formando essa geraçãozinha cada vez mais- mais (hes) perversa, né? perversa, perversidade. (AL/FLP22:118)

Na migração do uso híbrido para o uso como introdutor de efeito, daí se despe do traço de apontamento anafórico, assumindo o movimento anafórico/catafórico mais geral (��) que caracteriza a seqüenciação retroativo-propulsora (cf. figura a seguir). Sob ação da reanálise, daí é re-interpretado de modo que o de deixa de ter papel significativo como indicador direcional, sendo absorvido como parte indissociável de uma só palavra – não mais uma construção. Ao se ver livre do apontamento ablativo/eletivo, daí torna-se uma camada/variante da seqüenciação, podendo partilhar os mais diversos contextos com e, aí e então.

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� � Tendo chegado na seqüenciação no papel de introdutor de efeito, daí estende-se às demais subfunções seqüenciadoras, em um percurso como introdução de efeito � seqüenciação textual e seqüenciação temporal � retomada e finalização. É difícil especificar se daí migrou da introdução de efeito à seqüenciação textual e à seqüenciação temporal, ou da introdução de efeito à seqüenciação textual e desta à seqüenciação temporal, ou qualquer outra combinação possível, uma vez que não há indícios para a estipulação de percursos mais detalhados. A retomada e a finalização, como já mencionado nas seções 1 e 2, são usos especializados da seqüenciação textual e nela têm sua origem. É mais provável, entretanto, que daí tenha conquistado seu lugar ao sol como marca das diversas nuanças seqüenciadoras por um processo de analogia com o aí. Conforme Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a:164), é comum que formas percebidas como similares a membros já existentes em um domínio funcional sejam convocados para integrá-lo. Como daí guarda diversas semelhanças com o elemento do qual derivou, tanto em forma quanto em função (ambos relacionam-se à indicação locativa), provavelmente seu processo de mudança foi facilitado e quiçá acelerado pelo fato de aí já ser seqüenciador, sendo daí generalizado para a codificação dos mesmos matizes seqüenciadores, todos a partir de seu ingresso na introdução de efeito. Vejamos a seguir alguns exemplos do daí exibindo introdução de efeito (em (88) e (89)); seqüenciação textual (em (90) e (91)); seqüenciação temporal (em (92) e (93)), retomada (em (94)) e finalização (em (95)):

(88) Quando ela está fazendo alguma coisa e a gente está brincando ela se irrita com o barulho, daí ela dá tapa em nós, daí ela apanha também do pai, não vai deixar a gente apanhar de graça. (AO/FLP11C:06)

(89) Dada a facilidade de se encontrar outra, ou ela encontrar outro, é tão grande que num piscar de olhos as (hes) coisas se invertem. Daí a família fica em segundo plano. (MA/FLP14:454)

(90) Só que tem que tomar cuidado por causa que ela é um gato de carne, né? daí quando vai pra rua os cachorros querem comer ela, né? daí a minha mãe tem um cachorro, e ele avança nesse gato, nessa gata, quando o gato fica- vai pra casa os cachorros só ficam olhando, né? (KA/FLP08C:127)

(91) Ah, eu acho que aqui tem muita gente olha: que joga coisa no chão, né? que inclusive até ontem passou no jornal- no jornal do almoço (hes) que muita gente, né? eles- o- a preferência das pessoas é jogar no chão, né? Daí mostrou assim a lixeira, do lado assim, a lixeira e do lado um monte de lata, papel, tudo jogado no chão, e a lixeira ali do lado. (DE/FLP06J:714)

(92) A sereia Ariel foi lá em cima pra ver o que que era aquelas coisas lá... luminosas, que eram os fogos de artifícios, Daí ela- daí ela viu o homem que estava no- no barco, né? daí ela se apaixonou por ele, daí ela foi na casa da bruxa do mar e pediu pra transformar ela em humana, com as pernas, daí ela foi pra terra, mas ela ficou assim sem voz. (JL/FLP09C:05)

(93) Faz a massa, espera esfriar. Daí faz uma bolinha, depois recheia com catupiri, fecha, deixa crescer. (LE/FLP05J:1013)

(94) E: Aquele anjinho do Gugu que tem ali, como é que tu ganhasse? Tu sabe contar? F: Sei, foi do meu pai, do dia das crianças. Ele- eu estava- eu estava aqui, né? Daí ele me deu o anjinho do Gugu, me deu mais uma caixa de bombom e mais Bis, me deu tanta coisa. Me deu uma agenda, uma agenda.

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Ganhei da mãe bastante coisa, da minha tia. Daí ele me deu, daí eu já- eu já estava brincando com ele. (hes) Que eu já- que eu queria- que eu queria também ganhar um anjinho, né? do Gugu. É, foi a minha mãe que deu pra- que- que disse para ele que- que eu queria o anjinho do Gugu (...) (FR/FLP02C:52)

(95) Porque é assim: eu estou na TV, daí a minha irmã vai lá e começa a mudar de canal, encher o saco, daí eu- daí eu começo a gritar e daí ela começa a me bater, daí a gente briga. Daí vai lá e a minha mãe chama: “Pára de brigar, M.” “Mas mãe, não estou fazendo nada, é a minha irmã, não sei o que”. Daí é isso que a gente briga. (MR/FLP10C:03-04)

4. ENTÃO 4.1 COMEÇANDO COM O TEMPO Então é proveniente do advérbio latino intunc (in + tunc), que significava nesse/naquele momento/ocasião. Cunha (1991) encontrou as seguintes variações formais do então desde o século XIII: entõ, enton, entonce. Na Florianópolis atual, a forma exibe freqüentemente a função de seqüenciação retroativo-propulsora, da qual deve ter se tornado um meio de expressão ao sofrer um processo de gramaticalização seguindo o aclive de mudança universal espaço � tempo � texto (Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a). Os dicionários etimológicos consultados vinculam os empregos da forma correspondente a então no latim somente à indicação temporal anafórica. No entanto, creio que intunc possa ter tido empregos seqüenciadores, pois dentre os usos do então logo nos primórdios da língua portuguesa se encontra a seqüenciação, como ilustram (97) e (98):

(96) Se alguus omees ouuerê cartas que queyrã renouar porque son uellas ou por outra cousa guysada que semelhe,

tragaas ant’o alcayde. E se o alcayde as achar dereytas e feytas per mao do escriuã publico e vir qua lhy faz mester per algûa daquellas razões subreditas, entõ façaas renouar a esse ou a outro scriuã publico se uir que lhy [faz] mester. Estas que assy forê renouadas ualhã tanben como as primeyras. (Foro Real, p. 180)

(97) E diz o outor que se o cedro que Deus nõ chantou for talhado seerá de gram proveyto per que entêdemos o pecador que nõ fazia nê hûû bõõ fruyto no mûdo. Quando Deus brita e talha per algûa coyta, soffre depois muy bê o carrego da peendêça na Eigreja de Deus. E esto se faz quando Deus brita o cedro, o sobervhoso, pelo seu poderio. Este Deus brita este cedro, o pecador, vingando-sse Del. Entonce o queyma no fogo perduravil do inferno. In Domino confido quomodo dicitis anime mee transmigra î mote sicut passer. (Livro das Aves, p. 41)

Em (96), temos um trecho extraído de um dos primeiros textos escritos em português, a tradução do manuscrito espanhol Afonso X - Foro Real, que data de cerca de 1267. O então destacado está em função seqüenciadora, exibindo a nuança de introdução de efeito. Em (97), em um trecho extraído do Livro das Aves, do século XIV, o então também é seqüenciador, desta vez exibindo a nuança de seqüenciação temporal. Nessa mesma obra, há outras ocorrências do item em questão em encargos de seqüenciação. Destarte, mesmo que então não conectasse orações ou partes maiores do discurso no latim, certamente já o fazia nos primeiros textos em língua portuguesa. A tarefa mais antiga desempenhada pelo então em português de que se tem notícia é a anáfora temporal (cf. (99), (100) e (101)). Teria o item dado partida em seu percurso de mudança na segunda estação da trajetória espaço � tempo � texto? Talvez tenha havido usos locativos anteriores, no latim ou mesmo no proto-indo-europeu, mas, se houve, nenhuma evidência sobreviveu ao tempo. Contudo, encontrei, em um texto do século XIII, um então em função locativa, que pode representar um elo perdido desse passado distante. Observe-se:

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(98) O rio Baures, que conflue no Guaporé pela margem austral e na distância de quatro léguas e três quartos para cima do forte do Principe da Beira, é navegável em botes de mediana grandeza pela distância de cem léguas, pouco mais ou menos: cheguei somente até êste termo porque os matos, por entre os quais desde então corre o rio formando várias bocas ou canais estreitos, me obstaram a continuação da viagem (...). (Coletânea de Textos de Francisco José Lacerda e Almeida, p. 111)

Em (98), então remete a um lugar, qual seja o ponto em que, depois das primeiras cem léguas do rio, os matos impedem a passagem dos barcos. Seria esse dado do século XVIII um resquício de um uso locativo do então, talvez um que tenha servido de base para seus usos temporais no latim ou mesmo antes? De um só dado não é possível inferir muito, já que pode representar nada mais que um emprego idiossincrático do autor do texto. Tracemos a trajetória de mudança a partir da anáfora temporal, portanto. O então, como anafórico temporal, aponta para um espaço de tempo mencionado anteriomente, estabelecendo, com o termo ou construção que primeiro referiu tal período de tempo, uma relação de co-referência à semelhança do que ocorre com aí anafórico temporal. Em (99), (100) e (101), as construções temporais prévias estão sublinhadas:

(99) A terceyra foy quando lidou com Cipion que era consul de Roma acerca do ryo Teriso e foy vençudo e chagado e morrera hy senõ por que o tirou Cepiõ, o Mancebo, seu filho, que era entom de vinte e hûû ãnos. (Crónica Geral de Espanha de 1344, p. 85)

(100) Roma avya quynhentos e trîta e sete ãnos que fora pobrada quando estes Cepiõoes êtrarõ em Spanha com poder dos Romaãos. Entom eram senhores d’Espanha aquelles dous irmãaos de Anybal de que ja ouvistes falar. E, tanto que souberon que os Romaãos eram em Espanha, juntarõ seu poder e ouveron seu acordo que fosse Magon, que era o irmão meor, cõ elles com todo seu poder e de seu irmãao Asdrubal. E este Magon era senhor de Cartagenya que era entom hûa gram cidade. (Crónica Geral de Espanha de 1344, p. 88)

(101) Quando era menino, também andava correndo por todos êsses lugares. Mas então era diferente. As casas ‘tavam de pé, e tinha gente por todos os cantos, trabalhando e se divertindo. (As Vinhas da Ira, p. 53)

4.2 CONTINUANDO COM O TEMPO Um processo de transferência semelhante ao do aí pode ser proposto para o então: a anáfora temporal, a primeira das funções do então que encontrei nos corpora selecionados para este estudo, é a fonte da qual derivam seus usos como seqüenciador temporal. Ao tornar-se marca possível para a seqüenciação temporal, então adquire um bilhete de entrada no domínio da seqüenciação, através de um percurso anáfora temporal � seqüenciação temporal. Após o desenrolar dessa migração funcional, desenvolvem-se outras, desta vez no âmbito da seqüenciação: (i) seqüenciação temporal � introdução de efeito; (ii) seqüenciação temporal e/ou introdução de efeito � seqüenciação textual; (iii) seqüenciação textual � finalização e retomada. Vejamos com maior detalhe a seguir. Dos usos como anafórico temporal, surgem usos do então como seqüenciador temporal, em que indica o momento em que se inicia o evento por ele introduzido, isto é, o momento em que se conclui o evento anterior. Talvez essa mudança seja devida à ação da metáfora, pois ocorre a passagem do domínio anafórico para o da articulação discursiva, ou à ação da metonímia, através da habitualização de inferências ligadas à sucessão temporal. Ou, como defende Heine (1994), talvez a mudança aconteça pela ação combinada de ambos os mecanismos: a incorporação de inferências de tempo seqüencial em contextos de tempo sobreposto acabam levando o então a um

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salto inter-domínios. Um exemplo desse tipo de contexto está em (102), em que é difícil precisar se os indivíduos mencionados postarõ suas aazes d’ambalas partes no exato momento em que as hostes se viram, configurando-se um caso de anáfora temporal, ou logo depois, tendo lugar a seqüenciação temporal:

(102) E nûca quedou de andar ataa que chegou acerca donde era Asdrubal. E, tanto que ambos souberon que era hûû acerca do outro, foronsse chegando ataa que se viron as hostes. Enton postarõ suas aazes d’ambalas partes. (Crónica Geral de Espanha de 1344, p. 94)

Abaixo, temos alguns exemplos do então em contextos de seqüenciação temporal:

(103) E quando a oraçõ for acabada deue elle meesmo a aseentar a primeyra pedra e poer sobr’ela hûa cruz e sobre aquela pedra deue a seer feyto o altar. Entõ deue a dizer dante todos como bispo ha de demãndar aos que fazê que assijnê algûa herdade que fique senpre pera ela e que seia atal de que aia rrenda per que possã viuer dous clerigos ao meos que a seruihã. (Alphonse X - Primeyra Partida, p. 387)

(104) Sim, pois é, e um dia eles nos deram feijão azêdo. Um camarada começou a berrar, e não acontecia nada. Berrava até rebentar a garganta. Veio um guarda, olhou pra dentro e foi-se outra vez. Então, um outro sujeito começou a berrar. E acabámos todos nós berrando e, te digo, parecia que o xadrez ‘tava cheio e pronto pra explodir. (As Vinhas da Ira, p. 411)

(105) Botava o espetinho, assim, dentro do fogão à lenha, que na época não existia fogão a gás. Botava, assim, deixava assar aquela manta de carne seca. Então ela passava a mão, dividia aquele alguidar em- Lógico, ela não botava até em cima, botava até certa altura. (PE/FLP02:1081)

A passagem do então da seqüenciação temporal para a introdução de efeito é tramada em situações em que se encontra, sobreposta à seqüencialidade de base temporal, a seqüencialidade de causa e efeito – a conseqüência é posterior à causa (cf. (106) e (107)). A associação freqüente do então a essas situações leva à sua emancipação gradual da indicação de sucessão temporal para a indicação unicamente de efeito (cf. (108) e (109)). Então sofre pressão, por conta do mecanismo de rotinização de inferências (metonímia), a assumir a nova nuança seqüenciadora.

(106) Você formou, então você vai ganhar tanto por mês pra atender tantas pessoas. (TE/FLP16:471) (107) Pois essa criança gritou em sonho e mexeu-se muito e o pessoal pensou que tinha vermes. Então deram um

purgante a ela, e a coitada morreu. Mas o que a criança tinha, mesmo, era aquilo que se chama de febre maligna. (As Vinhas da Ira, p. 253)

(108) Ele quer tirar tudo de uma vez só pra depois não se preocupar, né? (inint), porque tem essa- essa oscilação muito grande, né? que uma hora o Brasil está numa boa, uma hora entre aspas, né? uma hora está na boa, uma hora está lá embaixo e assim vai. Tem uma oscilação muito grande, é um país muito instável, né? Então o brasileiro (hes) ele educou dessa forma, né? (inint) de agora até deu uma acalmada, mas mesmo assim o povo ainda tem muita cicatriz da- daquela época e acredito eu que essas cicatrizes só vão ser saradas na- daqui a um bom tempo, né? também. (LU/FLP01J:1227)

(109) É como se tivesse sempre alguém vigiando a pessoa. Não tens liberdade. Então é melhor viver sem o vício, né? (DA/FLP17:1360)

A seqüenciação textual também passa a integrar o rol de subfunções passíveis de serem desempenhadas pelo então. Trata-se de um matiz da seqüenciação bastante genérico, cuja característica principal é a atuação na interconexão entre porções do discurso:

(110) E eu e a S., a gente se perdeu lá, porque a gente andava sempre juntas, né? Então tem duas descidas e a gente não sabe qual a descida que é pra gente sair, e eles não dão informação, tu sabes? Os paraguaios, eles não dão pra gente- informação pra gente. (AT/FLP09:815)

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(111) Eu via um pouco no colégio, que tem uma televisão lá pra- pras crianças também. Então na hora atividade eu trabalhava e eu dava uma olhadinha na novela. (DA/FLP17:1147)

(112) E na casa do meu avô, (hes) a gente sempre lembra de umas coisas assim, tinha- tinha muita árvore, então tinha um pé de caju. Ah, tinha pé de caju, tangerina, (hes) abacate, tudo, né? E o meu avô- o meu tiro mora hoje lá, né? Então um desses pés sempre tinha cachopa de marimbondo. Tu imaginas o que era, né? (JQ/FLP01:1223)

O aparecimento do então em contextos A-B, em que traços de seqüenciação temporal ou de indicação de conseqüência/conclusão ou mesmo de ambos mesclam-se a traços de sucessão discursiva, facilita a transferência da forma para a seqüenciação textual. Alguns exemplos:

(113) Que com muito custo na época, quando eu casei, eu trabalhei até no pesado, mas depois foi indo, foi indo, desenvolvendo, com a boa vontade eu passei, tirei a carteira. Então eu sai do último emprego que eu tinha e peguei na repartição, então peguei como motorista. (PE/FLP02:216)

(114) --- Nunca nenhum de nós dirigiu um carro. Bem, nós resolvemos ir embora e vender tudo o que possuíamos. Will comprou um carro e o vendedor deu a êle um menino para mostrar como se dirige um auto. Então, na tarde em que nós partimos, algum tempo antes da nossa saída, Will e Tia Minnie ficaram praticando um pouco de chauffeur. Will chegou numa curva e gritou “Anda, moreno!”, como se fôsse para um cavalo, e foi contra uma cêrca despencou num fundo barranco. (As Vinhas da Ira, p. 154)

(115) Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre êles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante pela terra, por água e terra e um céu azul sôbre êlas, pela relva verde exuberante, pelas raízes tumecentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nem mais se lembravam dêle. Não mais ambicionavam um acre produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em tôrno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas por capital mais juros, e as terras eram compradas e vendidas, antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então as colheitas fracassavam, e sêcas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida geral, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia (...) (As Vinhas da Ira, p. 245)

Em (113), não fica claro se temos um caso de seqüenciação temporal, isto é, o informante conseguiu um emprego como motorista depois de trabalhar na repartição, ou se temos um caso de seqüenciação textual, em que então peguei como motorista representa uma informação a mais acerca do assunto tratado. Nesse caso, o emprego conseguido pelo informante na repartição foi de motorista. Em (114), ocorre a seqüenciação temporal - Will e Tia Minnie ficaram praticando um pouco de chauffeur depois de o vendedor dar a ele um instrutor -, mas a possibilidade de que tais informações estejam unidas não por um vínculo de sucessão temporal e sim discursiva não deve ser descartada - a prática de chauffeur seria, então, a continuidade do tópico em desenvolvimento. Em (115), as colheitas fracassavam em conseqüência da venda das terras antes de terem sido plantadas, ou o fracasso das colheitas é mais uma das informações que permitem o desdobramento do tópico, compondo o quadro das desgraças que afligiam os personagens? De seus usos no plano da seqüenciação textual, então torna-se apto a codificar ainda as seguintes nuanças seqüenciadoras: (i) recuperação da seqüência discursiva interrompida por digressões de proporções variadas, através do percurso seqüenciação textual � retomada; (ii) conclusão de tópicos ou de sub-tópicos, através de um percurso seqüenciação textual � finalização. Exemplos:

(116) Quebrei duas vezes o mesmo- o braço esquerdo, né? jogando bola, e uma vez com (hes) eu tinha o quê? Uns oito anos por aí, né? Eu peguei um- brincando de cavalinho de guerra, eu peguei um moleque maior do que eu, que hoje esse cara trabalha com o meu irmão, por coincidência ele trabalha com o meu irmão, ele era nosso

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vizinho e trabalhava com o meu irmão, meu irmão mais velho. Então eu peguei ele (hes) no colo pra brincar de cavalinho e saí, aí eu caí e ele caiu por cima do meu braço e quebrou o meu braço, né? (LU/FLP01J:694)

(117) F: É, lutei muito, mesmo, com os pais das crianças, com parte de hospedagem, sabes? Viajando todos os finais de semana seis quilômetros pra chegar até a estrada geral pra pegar o ônibus. Eu fazia questão de todo final de semana vir em casa visitar os meus pais. Então foi assim uma época bem difícil.

E: E tu desistisse, depois? (PA/FLP12:1264)

Para concluir esta seção, abordo a questão da relação entre as fontes de e, aí, daí e então e o escopo das unidades que introduzem. Na seção 1, foi traçado o seguinte percurso de mudança percorrido pelo e/et em termos de extensão crescente da unidade a ser tomada por escopo: palavra � sintagma � oração � trechos de proporções maiores (segmentos tópicos, sub-tópicos, tópicos, etc). Já aí, daí e então, como seqüenciadores, não têm sido utilizados em contextos de inter-conexão entre palavras e sintagmas, mas somente entre orações e segmentos maiores do discurso. Em qual desses níveis de articulação cada forma teria surgido? Como derivam de fontes anafóricas que apontam para um trecho - palavra ou construção - imediatamente anterior (cf. (118), (118), (120) e (121)), devem ter se tornado conectores em níveis de articulação não muito extensos, talvez oracionais ou um pouco maiores, adaptando-se daí para os demais níveis.

(118) Espera só até chegar na Califórnia – disse Pai. – Aí tu vai ver o que é uma terra bonita. (As Vinhas da Ira, p. 215)

(119) Quando eu tinha doze anos, ela apareceu de novo. Aí eu já estava adulta. (est) Aí eu já estava bem grande, né? (RO/FLP03:157)

(120) A- a mulher não tem, nem pai nem mãe, não tem autoridade sobre os filhos. Daí vai se formando essa geraçãozinha cada vez mais- mais (hes) perversa, né? perversa, perversidade. (AL/FLP22:118)

(121) Roma avya quynhentos e trîta e sete ãnos que fora pobrada quando estes Cepiõoes êtrarõ em Spanha com poder dos Romaãos. Entom eram senhores d’Espanha aquelles dous irmãaos de Anybal de que ja ouvistes falar. (Crónica Geral de Espanha de 1344, p. 88)

5. E DEPOIS DA CHEGADA NA SEQÜENCIAÇÃO... Como vimos na seção 1, et, o conector mais antigo a habitar o domínio da seqüenciação, é fruto de desenvolvimentos sucessivos ao longo de um aclive de gramaticalização que inicia sua movimentação no proto-indo-europeu e continua avançando em português, língua em que o conector assume a forma e. Com o passar do tempo, surgem outros conectores para disputar o território da seqüenciação, destacando-se aí, daí e então, cujos percursos de mudança foram apresentados nas seções 2, 3 e 4. Não encontrei dados suficientes para que pudesse proceder a uma análise multivariada do fenômeno de estratificação/variação envolvendo o e e outras conjunções seqüenciadoras em etapas mais remotas do português. Quanto às outras conjunções, o problema é sua baixa recorrência. Em todos os recortes temporais feitos antes do século XX, encontram-se poucos dados daquela variedade de itens seqüenciadores apontados no capítulo I – aí, daí, então, portanto, assim, etc. E quanto ao e, o problema não é sua falta, e sim seu excesso. O uso do e era abundante, especialmente no período arcaico, o que dificulta o recolhimento dos dados e a comparação com os demais seqüenciadores que trabalhavam muito menos. Para se ter uma idéia da grande diferença de aparecimento, a freqüência de uso geral do e no Foro Real (isto é, em todas as funções exibidas pela forma nessa obra do século XIII) é de 2.599 dados, ao passo que a do então (no caso, entõ) é de 7 dados (cf. Pereira, 1987).

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Barreto (1999b) aponta que é comum, em obras dos séculos XIII e XIV, o emprego repetitivo da conjunção e, interligando palavras, sintagmas, orações e segmentos mais amplos. No entanto, conforme a autora, a utilização da forma decresce a partir do século XV, embora ainda seja encontradiça, no século XVI, a utilização repetitiva desse conector. Em textos do século XVII, ocorre numa escala ainda menor. A explicação que Barreto oferece é a de que o uso intenso do e nos textos arcaicos é um reflexo da oralidade, pois, na época, a normatização ainda não se impunha ferozmente à escrita, deixando-a mais livre para receber influências da fala. Outra explicação para esse uso abundante é que o e, por seu caráter copulativo (adjungindo elementos variados), pode ter servido como sinal de pontuação (em especial, ocupando o cargo da vírgula), tarefa que foi abandonando com o passar do tempo. De qualquer forma, podemos observar o uso estratificado/variável do e e do então em contextos muito similares já no século XIV (cf. (122) e (123)). E e então partilham e disputam espaços desde os primeiros textos escritos em língua portuguesa!

(122) E dise-lhe hûû filosapho, que auia nome Dignis: Se tu diseres a este cego, êno nome do teu deus, que receba uista e ell vir, logo eu creerey. Mais nõ huses de palauras magicas, qua per uêntura sabes tu taaes palauras que am este poderio. E disse Sam Paulo: Pera tu tolheres toda duuida, eu te escreuerey as palavras, e tu as dy ao cego per tua boca, e ê esta guisa: Enno nome de Jhesu Christo nado da Uirgem, crucifixo, morto, e que resurgio e sobio aos ceos, uee! (O orto do esposo, p. 07)

(123) E Tarife disse que faria todo o que lhe elle consselhasse, ca elle nõ avya feita nê hûa cousa sen seu conselho. Enton o conde dom Ilham lhes disse: “Amigos, vos avedes mester de tragerdes vosso feito con recado (...)”. (Crônica Geral de Espanha de 1344, p. 334)

De acordo com indícios diversos (cf. seções 2 e 3), aí e daí tornam-se seqüenciadores apenas em português, talvez durante o século XVIII ou mesmo XIX, iniciando a convivência e a disputa territorial com e e então. No entanto, obtive dados suficientes para uma análise multivariada da estratificação/variação no domínio da seqüenciação apenas em dois períodos de tempo: o atual e o correspondente ao final da segunda metade do século XX. Referente a este período, os dados são de e, aí e então, extraídos de As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, em tradução para o português de Ernesto Vinhaes e Herbert Caro, datada de 1940. Alguns exemplos:

(124) E eu perguntei: “Por que não escreve pra êle?” E êle me disse: “Acho que eu vou, sim, talvez eu escreva. Mas se não escrever, eu queria que você avisasse o Tommy, se você ainda ficasse por aqui.” Então eu disse: “Tá bem, eu acho que eu vou ficar ainda.” (As Vinhas da Ira, p. 47)

(125) Willy só andava pra cima e pra baixo e ‘tava com uma vergonha que lhe digo. Aí, a Elsie disse: “Eu sei porque tu veio pra cá.” (As Vinhas da Ira, p. 72)

Hoje, em Florianópolis, a luta continua! Na articulação de orações ou partes maiores do discurso, e, aí, daí e então dividem e disputam espaço:

(126) Aí ele viu que não tinha mais jeito, ficamos naquele (hes) E ele: “Vou ficar.” “Não, tu não vais ficar.” E ele: “Eu não vou.” Eu digo: “Não, tu não vais ficar. Eu não te quero mais aqui dentro de casa, e se não saíres tu, saio eu. Eu passo a mão nas crianças e saio, saio por aí.” (RO/FLP03:735)

(127) Então quando vem uma quantidade de- de verdura pro setor, pra ser preparada a salada, que não dá, a pessoa já está vendo que terminou, então vai na pessoa que é encarregada, então diz a ela: “Está faltando uma caixa de tomate”, ou “está faltando vinagre” ou “está faltando tal coisa”, aí ela passa a ordem, vai lá pro almoxarifado, faz o pedido, a pessoa tem saca pra continuar o serviço. (ID/FLP07:469)

(128) Ela falou: “Ah, vai ser menino e o nome vai ser Mateus.” Aí eu disse assim: “Então, se for menina, tu bota o nome de Bárbara, porque eu gosto.” Daí nasceu menina, daí ela botou. (DE/FLP06J:552)

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(129) Daí ela diz: “Ah, vai fazer deveres.” “Não tem deveres.” Daí ela diz: Ah, que escola é essa que nunca tem deveres, professor nunca passa deveres? Aí é um saco! (DE/FLP06J:188)

Com exceção do uso do aí e do então no plano da anáfora temporal, não foram mapeadas situações de estratificação/variação entre e, aí, daí e então nas funções dêiticas e anafóricas envolvidas em suas trajetórias de gramaticalização rumo à seqüenciação.165 Talvez aconteçam situações desse tipo em domínios funcionais não levados em conta aqui, o que merece maiores averiguações. (cf. no anexo 1 algumas das várias funções desempenhadas por e, aí, daí e então) A odisséia de e, aí, daí e então não acaba na seqüenciação. Para um certo falante uma informação é causa suficiente para definir a seguinte como conseqüência e uma certa ordenação indica sucessão temporal, mas para seu interlocutor as relações estabelecidas podem ter natureza diversa, o que representa um gatilho não só às situações de sobreposição e ambigüidade, mas também para que novas possibilidades de uso emerjam. Assim é que, a partir de seus usos seqüenciadores, e, aí, daí e então passam a exibir outras funções. Os desenvolvimentos pós-seqüenciação desses itens são apenas brevemente mencionados aqui, por fugirem do tópico central, mas deixo como sugestão a proposta de realização de estudos acerca do tema. E, aí, daí e então são encontrados, por exemplo, como marcas da adversão, exibindo um contraste, uma antítese entre as informações conectadas, e, possivelmente, disputando espaço com outras formas adversativas, como mas, só que, já e agora. Vejam-se:

(130) Tipo uma mulher que tem sua vida e acha que a vida na rua é melhor, mais fácil. (MA/FLP14:560) (131) Se já tinha morrido lá, já estava lá, era assim- nem precisava isso, né? Era só liberar, né? Aí não podiam liberar

sem o médico chegar. (RP/FLP03:1349) (132) Meu pai não é nem um pouco católico, entendeu? Quer dizer, ele era, mas não era praticante de todo dia, né?

essa história toda. Aí eu não- não- não ia, daí de um tempo pra cá eu comecei a me interessar, né? conhecer a palavra, em ir pra igreja e conhecer a Jesus, o Cristo. (EV/FLP08J:933)

(133) A casa já estava caindo, já tinha sido condenada quando nós fomos morar lá. Então nunca caiu, e veio a ser derrubada depois. (IR/FLP13:389)

Provavelmente e, aí, daí e então são transferidos para a adversão por pressão de contextos A-B em que inferências adversativas estão presentes junto a uma ou mais das nuanças da seqüenciação, o que acaba ocasionando a ampliação funcional das formas, as quais passam a ser relacionadas a contextos em que aparecem os traços de contraste e antítese entre informações:

� ||||

Outro caso de tarefa adquirida pós-seqüenciação é o emprego de e, aí, daí e então como preenchedores de pausa. Nessa função, os itens atuam no âmbito do processamento da fala e da

165 Aí e daí são utilizados nos planos da dêixis locativa e da anáfora locativa, mas não como camadas/variantes: aí indica lugar onde e daí indica lugar de onde, não representando nenhum deles uma opção possível para os contextos de uso do outro.

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manutenção de turnos, como sinais de hesitação por parte do falante para evitar o silêncio enquanto um novo trecho de fala é estruturado. Sua pronúncia costuma ser alongada. É comum que um interlocutor tome o turno para si, interrompendo a fala do parceiro no momento em que este emprega o preenchedor de pausa, como em (137). Seguem-se os exemplos:

(134) Só o que ia dar luz é- é a vela benta, a vela benta que podia dar luz, senão ia ser escuridão plena mesmo, total. E- E foi isso que eu escutei, né? (EV/FLP08J:871)

(135) Aí eu levei a cachaça, cheguei de noite, esquentei o chá e botei. Aí- Mas a minha irmã e a minha prima dormiam comigo, aí elas perguntaram porque que eu estava tomando aquilo. (SE/FLP20:1054)

(136) (...) aí nós fomos lá, lá no reitor, Daí- Aí ele passou já o cheque (inint), aí fui no banco. (AN/FLP05:420) (137) F: Era praia, mas era mar, era um mar fundo, sabe? Era profundo aquilo ali. Então-

E: Que a gente vê agora, a Beira-mar, assim, parece assim- (ED/FLP18:186) O uso de itens conectivos exibindo hesitação é bastante comum. Marcuschi (1999:173), em um estudo sobre o fenômeno, aponta que, no corpus que analisou, o número de hesitações constituídas por conjunções representa 30% do total de ocorrências, sendo as conjunções mais freqüentes nesse papel e e que, seguindo-se mas, ou, como, daí, já, então, se. De acordo com o autor, as palavras funcionais, tais como conjunções e preposições, “(...) são as formas lingüísticas mais freqüentes como material lingüístico para constituir as hesitações”, as quais representam os sintomas de um processamento em curso. Também é possível apontar como função que pode vir a ser adquirida pelo aí, a partir de seus usos como seqüenciador, a explicação, geralmente desempenhada pelo porque. Por exemplo, em (138), temos favorecida a leitura de introdução de efeito, mas o contexto também deixa transparecer uma leitura explicativa suave, como se a informação subseqüente estivesse fornecendo uma razão, uma justificativa para a informação precedente. O mesmo acontece em (139). A repetição em contextos desse tipo poderia levar o aí a ser mais e mais relacionado à explicação, habitualizando-se como uma de suas formas de expressão.

(138) A maionese, eu faço uma bacia assim, aí todo mundo gosta. Inclusive, esse ano eu não queria fazer no sorteio, meu sogro: “Não, não, tu vais fazer.” Então todo mundo quer minha maionese. (AT/FLP09:408)

(139) Porque se a gente não estudar, a gente não vai ser nada na vida, né? [vai ser]- a gente vai sofrer, cair pelas ruas, não tem nada pra fazer. Eu acho importante estudar, daí a gente pode trabalhar, daí pode fazer um monte de coisa, dançar. (RA/FLP12C:19)

Esses estágios de mudança de e, aí, daí e então posteriores à sua entrada na seqüenciação envolvem situações de duas espécies: (i) usos mais rotinizados, como no plano da adversão e no plano do preenchimento de pausa, em que as formas (especialmente e e aí) recorrem na fala de vários informantes - um indício de rotinização efetivada ou em curso; (ii) usos portando nuanças inovadoras apenas suspeitas de representarem fórmulas gramaticais em seu momento de gestação, como acontece com o aí explicativo, que é pouco freqüente e aparece na fala de apenas duas ou três pessoas. 6. FONTES, PERCURSOS E VAGAS SOB MEDIDA O quadro a seguir sintetiza as principais etapas da gramaticalização de e, aí, daí e então rumo ao domínio da seqüenciação retroativo-propulsora. Cada uma dessas etapas representa uma

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inovação que foi aceita e conservada ao menos por um certo tempo pelos usuários da língua, ocorrendo e recorrendo na fala de um e de outro – inovações rotinizadas, portanto.

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Quadro 18: Percursos de gramaticalização de e, aí, daí e então

E ~eti, ‘além de’ � et, ‘também’ � seqüenciação textual � seqüenciação temporal � introdução de efeito � retomada � finalização AÍ � retomada seqüenciação textual � finalização � � dêixis locativa � anáfora locativa � anáfora temporal � seqüenciação temporal � introdução de efeito � ������ � DAÍ � retomada dêixis locativa � anáfora locativa � anáfora discursiva/introdução de efeito � introdução de efeito � seqüenciação textual � finalização � seqüenciação temporal ENTÃO � retomada seqüenciação textual � finalização � � anáfora temporal � seqüenciação temporal � introdução de efeito

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As relações representadas pelo símbolo ‘�’ no quadro 24 são caracterizadas por abstração/complexificação e/ou por generalização crescentes no plano das funções-significações fontes e alvos, o que significa que e, aí, daí e então migram de funções mais concretas a mais abstratas/complexas e/ou adquirem papéis de natureza mais genérica. Diversas das alterações seguem tendências universais de mudança, como espaço � tempo � articulação textual; dêixis � anáfora; conexão entre palavras � sintagmas � orações � segmentos mais amplos; aclives estes encontradiços em várias línguas (cf. Heine, Claudi & Hünnemeyer, 1991a). Trata-se de extensões funcionais graduais e contínuas, implicando a existência de situações A-B ambíguas entre o uso fonte e o uso alvo, capazes de pressionar a passagem das formas de uma a outra função. Tais trajetos de ampliação funcional parecem ser unidirecionais, lineares e irreversíveis no sentido em que as formas vão adquirindo funções cada vez mais abstratas e/ou genéricas, ou seja, cada vez mais gramaticais, não tendo lugar nenhum caso de migração para funções de caráter mais concreto e/ou mais lexical. Aí, daí e então apresentam desenvolvimentos semelhantes no que diz respeito à migração inter-domínios, movimentando-se ao longo de categorias cada vez mais gramaticais ao passarem da dêixis à anáfora e desta à articulação discursiva. O ponto de partida de tais desenvolvimentos não é o léxico e sim, desde o início, a própria gramática. Assim como os articuladores, os dêiticos e os anafóricos são seres da gramática, aparecendo na fala de vários indivíduos e integrando diversas construções (cf. seções 2, 3 e 4 acima e o anexo 2 para o caso de aí, daí e então) e, em especial, dependem fortemente do contexto circundante para ser interpretados (contexto externo, no caso dos dêiticos, e informações anteriores, no caso dos anafóricos), assumindo novas feições a cada evento interacional. Como itens gramaticais, são bastante negociáveis e adaptáveis às necessidades dos falantes.166 Estão, porém, em um plano menos gramatical que os articuladores: Hopper & Traugott (1993:185) e Ramat (1998:121) afirmam que o desenvolvimento de dêiticos e de anafóricos em conjunções é um caso de aumento de gramaticalização de itens já gramaticais que passam a servir para expressar a relação entre orações.167 Cristofaro (1998:82) também assume posição similar, apontando que demonstrativos provavelmente podem ser considerados menos gramaticais por se referirem a entidades individuais - pessoa, objeto, espaço ou tempo - num nível dêitico ou anafórico, ao passo que conjunções significam relações mais abstratas, não apontando para uma entidade específica, e sim estabelecendo elos coesivos. No caso das formas sob enfoque, como seus usos dêiticos relacionam-se diretamente ao espaço exterior concreto - o domínio de re, ancorando nele o enunciado, estão a um passo aquém de seus anafóricos. Anáforas possuem um grau maior de abstração por ancorarem o enunciado em uma informação passada, a qual possui como referente um espaço ou um período de tempo. Elas atuam, portanto, na organização interna do texto - no domínio de dicto -, vinculando uma informação à outra, ao passo que os dêiticos vinculam uma informação ao contexto exterior da situação comunicativa, utilizando algo concreto do mundo como âncora para a informação. Em contraste, os articuladores discursivos desempenham tarefas em níveis ainda mais gramaticais, pois estabelecem laços coesivos entre informações, deixando transparecer traços de

166 Um exemplo dessa adaptabilidade são os inúmeros tons de apontamento dêitico locativo passíveis de serem exibidos pelo aí (cf. seção 2.1.1). 167 A questão do status dos seqüenciadores – se lexicais ou gramaticais – não se coloca caso haja a opção por sintetizar o léxico e a gramática, como defendem Ramat & Hopper (1998), Bybee & Hopper (2001), Poplack (2001), Hallan (2001), entre outros. Nesse caso, teríamos provavelmente uma só possibilidade de gramaticalização: rumo a âmbitos cada vez mais gramaticais.

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função-significação relacionais diversos, como seqüenciação temporal, introdução de efeito, seqüenciação textual, etc, por meio de um movimento de apontamento anafórico e catafórico amplo, isto é, um movimento não ancorado em uma informação passada ou futura específica, diferente do que ocorre no caso dos anafóricos. A anáfora e a catáfora, no caso dos articuladores, servem como suaves indicações de que informações anteriores relacionam-se a informações posteriores, disparando no interlocutor a necessidade de esclarecimento da natureza de tais relações. Subjacentes à movimentação de e, aí, daí e então no domínio da seqüenciação, estão motivações cognitivo-comunicativas e sociais (elencadas na seção 3 do capítulo I). A análise dos percursos de gramaticalização sintetizados no quadro 24 permite a elaboração de hipóteses acerca da ação de duas dessas motivações - a tendência à manutenção de traços de usos passados e a tendência à abstração e/ou à generalização crescentes - sobre a distribuição lingüística de e, aí, daí e então. Aí e então parecem percorrer um caminho em direção à abstração e a generalização crescentes em termos das funções-significações angariadas ao longo do tempo. Migrando de fontes com funções ligadas a conceitos mais concretos, mais próximos das experiências humanas com o mundo circundante - quais sejam indicação dêitica espacial e indicação anafórica temporal respectivamente -, as unidades sob enfoque adquirem funções mais abstratas: (a) aí, passando por papéis anafóricos espácio-temporais, debuta na seqüenciação desempenhando a seqüenciação temporal e é estendido para cobrir as demais nuanças; (b) então também debuta na seqüenciação via seqüenciação temporal, sendo posteriormente generalizado como marca das demais subfunções. Os estágios de mudança percorridos por aí e então no âmbito da seqüenciação também podem ser considerados como envolvendo algumas etapas de abstração crescente. Ambos partem da seqüenciação temporal, nuança seqüenciadora que deixa emergir traços temporais, atuando, assim, num plano mais concreto em relação aos das demais nuanças. A introdução de efeito, segunda das subfunções assumidas por aí e então, é bastante complexa, pois é responsável pela introdução de conseqüências e conclusões, podendo envolver ou não traços de sucessão temporal – no último caso, implicando um nível ainda mais abstrato. A subfunção incorporada a seguir, a seqüenciação textual, é a mais genérica, por ser uma estratégia puramente coesiva, indicando que uma das informações interligadas relaciona-se com a outra ou que ambas relacionam-se ao mesmo tópico. A retomada e a finalização surgem como enraizações de usos de aí e de então no plano da seqüenciação textual, sendo igualmente genéricas em termos de tonalidades de função-significação.168 E/et sofre generalização crescente no domínio da seqüenciação, tornando-se um meio de expressão possível para diversas subfunções seqüenciadoras. A forma penetra no domínio através da seqüenciação textual, a qual começa a desempenhar a partir de funções anteriores de natureza semelhante, adicionando porções da língua com o valor de também, conforme já enfatizado. A partir da seqüenciação textual, a mais genérica das nuanças seqüenciadoras, e/et trafega para os diversos contextos de seqüenciação, alguns deles concretos e outros complexos (caso da seqüenciação temporal e da introdução de efeito, respectivamente). Essa tendência de generalização para servir a um grande número de contextos já era manifestado no latim, língua em que et, por seu caráter de

168 A retomada e a finalização, embora diferentes funcionalmente da seqüenciação textual por realizarem tarefas específicas: recuperação de informações e encerramento do tópico, exibem em comum com ela a nuança de sucessão discursiva, em contraste com a seqüenciação temporal, que exibe também sucessão temporal, e a introdução de efeito, que exibe também conseqüência/conclusão (e que pode exibir sucessão temporal ao mesmo tempo). No capítulo VI, as subfunções são tomadas como um dos grupos de fatores condicionadores e suas diferenças e semelhanças são melhor esmiuçadas.

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conjunção genérica, apta a desempenhar múltiplos papéis, pôde ocupar o espaço de conjunções que assinalavam nuanças de função-significação mais específicas (ac/atque e –que). Assim, a proposta de que itens e construções gramaticalizandos percorrem caminhos constituídos por estações mais e mais abstratas de certa forma é contrariada pelo e/et: desde o latim (ou mesmo no proto-indo-europeu), ele sempre é vinculado a papéis envolvendo matizes de interligação discursiva genéricos, e, por essa razão, pode ser estendido para inúmeras funções, mais ou menos abstratas. No entanto, e/et cumpre outro dos destinos previstos para as formas gramaticalizandas: generalização cada vez maior, que é o que o torna sujeito a essas múltiplas adaptações nas situações de interação, prestando-se com facilidade para a execução de uma miríade de tarefas. Daí, oriundo de fontes locativas assinalando nuanças de natureza concreta, adentrou na seqüenciação através de seu uso híbrido anafórico discursivo/introdutor de efeito, o qual porta traços mais abstratos que os usos anafóricos espácio-temporais que serviram de porta de entrada no domínio para o aí e para o então.169 Tendo emergido na seqüenciação no papel de introdutor de efeito, daí estende-se às demais subfunções seqüenciadoras. Nesse percurso, angaria uma função, a seqüenciação temporal, que é mais concreta que sua fonte, o que talvez não represente uma exceção à proposta de abstração e/ou generalização crescente, ao se considerar que o daí passa a exibir as diversas subfunções por analogia com o aí, o qual, por hipótese, torna-se indicador de seqüenciação em um período de tempo anterior. O processo de mudança do daí pode ter sido facilitado e quiçá acelerado pelo fato do aí já ser seqüenciador, sendo daí expandido para os mesmos matizes seqüenciadores, independentemente de serem eles mais ou menos complexos que a introdução de efeito. Enfim, e, aí, daí e então chegam à seqüenciação como migrantes de fontes diversas. Os padrões distribucionais de itens gramaticalizandos costuma sofrer influências de propriedades dos usos de origem (cf. Sweetser, 1988:390). Mesmo que um dado item esteja em um ponto mais avançado de sua trajetória de mudança, pode ainda ser relacionado, pelos usuários da língua, a traços antigos, o que influi no espaço que preferencialmente ocupa em relação aos demais itens que com ele partilham funções. Se assim for, a análise quantitativa apresentada no capítulo VI revelará tendências distintas de especializações por parte de e, aí, daí e então, as quais podem ser atribuídas à persistência de traços dos usos fontes. No capítulo VI, são tecidas, para diversos grupos de fatores, hipóteses fundamentadas na pressuposição de existência de preferências de uso em contextos que manifestam características semelhantes aos das fontes de cada conector: e e a soma entre informações, aí e então e o vínculo com noções espácio-temporais, daí e as nuanças espaciais e/ou ligadas à manifestação da idéia de efeito. Tomemos um exemplo: em referência a um dos grupos de fatores testados, as subfunções seqüenciadoras, e deve ser mais recorrente como marca da seqüenciação textual, aí e então da seqüenciação temporal e daí da introdução de efeito. No entanto, com o passar do tempo, os itens podem rumar para níveis mais e mais gramaticais, perdendo os laços com suas fontes, o que faz com que especificidades de uso de cada item, porventura motivadas por seus usos anteriores, sejam neutralizadas. Uma forma de base temporal, por exemplo, que rumou ao longo de aclives com passagens por papéis de tonalidades

169 O uso híbrido do daí representa um caso intermediário entre anáfora e conexão textual, pois: (i) há ancoragem em uma informação passada específica, que adquire um traço de concretude ao ser apresentada como um lugar de onde vem uma conseqüência: (ii) ao mesmo tempo, é estabelecida uma relação coesiva mais abstrata e complexa (a introdução de efeito) entre as informações assim interligadas.

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temporais, pode vir a desembocar em usos em que a noção de tempo não esteja presente e aí se especializar. A análise das distribuições de e, aí, daí e então permite que se observe se e até que ponto seu aparecimento é motivado pela presença de traços ligados às fontes ou se os conectores estão em um nível bastante avançado do processo de mudança, especializando-se para subfunções distintas das previstas pela hipótese delineada no parágrafo acima. As hipóteses ora levantadas, a partir da análise dos percursos de gramaticalização de e, aí, daí e então, são testadas no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO VI – HOJE E ONTEM

FALANDO EM FLORIANÓPOLIS E EM AS VINHAS DA IRA: ESTRATIFICAÇÃO/VARIAÇÃO E MUDANÇA – O COMBATE

A volta da Lagoa era perigosa. Agora está linda, linda, linda, linda, linda, porque hoje a vegetação já cobriu muito o- as dunas da Lagoa, né? e já têm construções também, né? E naquela época, né? não tinha ca- porque acabaram com a praia da Lagoa com aquela estrada que fizeram. Ah, acabaram, porque as casas assim não tinham- não tinha perigo. Hoje já temos perigo, porque é uma estrada estreitinha, para carros, né? E naquela época as crianças, por exemplo, ficavam da- saíam de casa e iam pra praia sem perigo nenhum. A gente nem precisava cuidar porque (hes) o carro passava muito devagarzinho, né? E poucos carros passavam. A praia era tão linda, tão linda. (ZO, florianopolitana, 56 anos de idade) Eu fui morar pelo lado do Continente. Então às vezes faltava dinheiro na gente, então a gente trafegava- Não tinha dinheiro pra pagar táxi, não tinha ônibus, então a gente passava a Ponte Hercílio Luz a pé. Então dia de vento sul assim dava até medo, né? porque o- era uma coisa assim em cima da ponte, né? Parecia que a ponte estava balançando. Então a ponte naquela- naquela época ela não era calçada, a ponte Hercílio Luz. Era tudo assim: (hes) troncos assim de madeira, né? Então os carros passavam por ali, faziam um barulho danado em cima daqueles troncos de madeira. (ED, florianopolitano, 42 anos de idade) Aí um- um dia eu cheguei do serviço, aí a R., a que faz ligação de parente minha: “Ó, Preta!” Chegou toda apavorada. “Chegou um telegrama pra ti, urgente.” Aí eu abri o telegrama, eu digo: “Meu Deus, o que foi que aconteceu?” O telegrama veio de Criciúma. Aí eu fui abrir o telegrama, aí eles estavam pedindo que eu (hes) me comunicasse com eles o mais rápido possível. Eu disse: “Ô- ô R., aconteceu alguma coisa com o J.” Aí eu telefonei. (RO, florianopolitana, 33 anos de idade) Esse encontro foi numa discoteca, a gente estava dançando, aí eu tinha ficado com um- com um garoto. Daí fiquei com um garoto, quando eu olho pra esse garoto, ele já está com outra. Me deixou de lado e ficou com outra, aí foi onde eu conheci ele, aí ele foi se aproximando, se aproximando, daí a gente foi conversando até que a gente ficou. Foi o segundo que eu fiquei naquela noite. Aí tá, ficamos a noite toda junto, até já começou às oito e meia, ficamos até às sete horas da manhã junto. Aí fomos pra casa, dormimos. Era meio dia, a gente foi pra praia. Aí lá ele foi atrás de mim, a gente conversou. Aí continuamos a ficar, e uma vez a gente se encontrou no Shopping Beira-mar, ele pediu pra namorar comigo e depois de um mês que a gente já está ficando. (AZ, florianopolitana, 15 anos de idade) Fui com a- a minha- fui com a minha tia, com o meu tio e com a minha prima, né? e eu, né? A gente já fomos várias vezes no carrinho de choque, daí eu queria ir sozinho. Daí o meu tio deixou eu ir, daí foi a minha prima e a minha tia, né? Daí eu só batia no meu tio- na- na minha tia, né? Daí a minha- a minha prima só ficava gritando, né? que ela já é gritona mesmo, imagina lá no Beto Carrero. Daí aquelas coisinhas lá de cima do carrinho de choque trancou lá, daí eles ganharam uma rodada grátis. (RR, florianopolitano, 10 anos de idade)

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The great companies did not know that the line between hunger and anger is a thin line. And money that might have gone to wages went for gas, for guns, for agents and spies, for blacklists, for drilling. On the highways the people moved like ants and searched for work, for food. And the anger began to ferment. (The Grapes of Wrath, p. 313) As grandes companhias não sabiam que era uma linha muito fina a linha divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro que podia ter sido empregado em melhores salários era gasto em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, e em listas negras e em exercícios bélicos. Nas estradas os homens locomoviam-se qual formigas, à procura de trabalho e de comida. E a ira começou a fermentar. (As Vinhas da Ira, p. 303)

�������� “You go right on along. Me --- I’m stayin’. I give her a goin’-over all night mos’ly. This here’s my country. I b’long here. An’ I don’t give a goddamn if they’s oranges an’ grapes crowdin’ a fella outa bed even. I ain’t a-goin. (As Vinhas da Ira, p. 121) --- Acho que vocês devem viajar, sim. Mas eu... eu fico. ‘Tive pensando a noite tôda nisso. Aquí é a minha terra. E não me importa que lá na Califórnia as uvas até caiam na cama das pessoas. Não vou, e pronto. (As Vinhas da Ira, p. 115)

�������� “No,” said Muley. “Not that I know. Las’ I heard was four days ago when I seen your brother Noah out shootin’ jackrabbits, an’ he says they’re aimin’ to go in about two weeks. John got his notice he got to get off.” (The Grapes of Wrath, p. 49) --- Não - afirmou Muley. – ‘Tou certo de que não foram. Faz quatro dias, encontrei o teu irmão Noah, ‘tava caçando coelho, então êle me disse que só iam daquí a duas semanas. Tio John também foi mandado embora. (As Vinhas da Ira, p. 48)

�������� “Well, we got to tear the pan off an’ get the rod out, an’ we got to get a new part an’ hone her an’ shim her an’ fit her. Good day’s job.” (The Grapes of Wrath, p. 182) --- Bem, vamo tirar fora a cuba de óleo, depois também o pino da biela. Aí temo que arrumar uma peça substituta e limar ela e encaixar ela. É trabalho pra um dia, pelo menos. (As Vinhas da Ira, p. 176)

�������� Her eyes went wonderingly to his bitten lip, and she saw the little line of blood against his teeth and the trickle of blood down his lip. Then she knew, and her control came back, and her hand dropped. (The Grapes of Wrath, p. 80) Os olhos da velha seguiram inconscientes o gesto do filho e ela viu o pequeno filete de sangue que lhe tingiu os dentes e o qual descia pelo canto dos lábios. Então ela soube, e voltou-lhe o controle e sua mão baixou. (As Vinhas da Ira, p. 77)

�������� He said, “Pa, you jus’ got set back on your heels. Al, you drive the folks on an’ get ‘em camped, an’ then you bring the truck back here. Me an’ the preacher’ll get the pan off. Then, if we can make it, we’ll run in Santa Rosa an’ try an’ get a con-rod. Maybe we can, seein’ it’s Sat’dy night.” (The Grapes of Wrath, p. 186) --- Pai, é melhor o senhor sentar outra vez nos calcanhares. Al, tu leva o pessoal no caminhão até um bom lugar, depois tu volta pra cá e eu e o pregador, durante êsse tempo, vamos desmontar o maçal. Aí, se fôr possível, a gente vai até Santa Rosa pra ver se pode arranjar um mancal novo. Talvez a gente tenha sorte, porque vamo chegar domingo de noite. (As Vinhas da Ira, p. 180)

�������� After a while the faces of the watching men lost their bemused perplexity and became hard an angry and resistant. Then the women knew that they were safe and that there was no break. Then they asked, What’ll we do? And the men replied, I don’t know. But it was all right. (The Grapes of Wrath, p. 04) Logo, as faces dos homens perdiam aquele ar de apatia e de perplexidade e tornavam-se duras e coléricas e decididas. E então as mulheres sabiam que êles estavam salvos, e que não perderiam o ânimo. E aí elas perguntavam: “Que vamos fazer?” e os homens respondiam: “Não sei”, e estava tudo bem. (As Vinhas da Ira, p. 09).

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0. INTRODUÇÃO O leitor bem comportado, que seguiu linearmente ao longo dos capítulos I, II, III, IV e V, finalmente poderá dar uma boa espiada nos números, expostos a seguir em diversas tabelas. Revelarão eles grandes e interessantes... INOVAÇÕES, como foi sugerido no capítulo I? E quanto às regularidades, serão elas mapeadas? Na seção 1, são re-apresentadas as motivações funcionais por hipótese subjacentes aos fenômenos de estratificação/variação e de mudança envolvendo o domínio da seqüenciação em Florianópolis. Considerando-se a direção possível da atuação de tais motivações sobre os desenvolvimentos no domínio, são traçadas hipóteses para as preferências distribucionais de e, aí, daí e então. Na seção 2, são descritos os procedimentos estatísticos seguidos para a obtenção dos números. Na seção 3, é realizada a primeira etapa da análise, averiguando-se a distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis. Na seção 4, é levada a cabo a segunda etapa de análise, averiguando-se a distribuição sociolingüística de e, aí e então na fala dos personagens de As Vinhas da Ira. 1. AS MOTIVAÇÕES FUNCIONAIS 1.1 SIMPLES CHAMA SIMPLES, COMPLEXO CHAMA COMPLEXO Itens ou construções que convivem em um mesmo domínio funcional acabam sendo percebidos pelos usuários da língua como mais ou menos complexos uns em relação aos outros, o que tem por conseqüência distinções em termos de tendências de uso. Para tentar apreender as distinções de marcação correntes em Florianópolis, utilizo os critérios propostos por Givón (1995:28), expostos no capítulo I. No caso da seqüenciação, temos um caso de estratificação/variação com quatro formas em jogo, o que impede a utilização da dicotomia marcado/não marcado. É necessário tratar o fenômeno como escalar, distribuindo e, aí, daí e então em uma escala de menos a mais marcado: e > aí > daí > então. As razões para tal distribuição já foram esmiuçadas na seção 2.2.2 do capítulo I e são rapidamente resumidas no quadro a seguir:

Quadro 19: Síntese da aplicação dos critérios de marcação na distinção entre e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

-complexidade estrutural +freqüência -complexidade cognitiva

+/-complexidade estrutural -/+freqüência +/-complexidade cognitiva

-/+complexidade estrutural +/-freqüência -/+complexidade cognitiva

+complexidade estrutural -freqüência +complexidade cognitiva

Menos marcado Intermediário, para menos Intermediário, para mais Mais marcado

Se um seqüenciador é mais ou menos marcado, será utilizado preferencialmente em certas circunstâncias, em detrimento de outros seqüenciadores. Assim, os critérios de marcação de Givón (1995) também são aplicados na distinção entre traços mais e menos complexos manifestados pelos diversos contextos lingüísticos de uso da seqüenciação, os quais são recortados em forma de grupos de fatores. É esperado que os fatores definidos como mais marcados atraiam com mais freqüência os conectores mais marcados, e os fatores definidos como menos marcados favoreçam os conectores menos marcados.

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Os diferentes matizes de complexidade cognitivo-comunicativa manifestados por e, aí, daí e então podem estar influindo nas especializações de cada um deles e, conseqüentemente, no desenlace de seu processo de gramaticalização. O favorecimento recorrente de um dado seqüenciador em determinado contexto pode fazer com que, com o passar do tempo, tal seqüenciador torne-se especializado para o contexto em questão, superando seus concorrentes. Isso representa uma nova etapa na gramaticalização do item, além de poder significar a solução da situação de estratificação/variação. Saliento que lidar com a noção de marcação exige um imenso cuidado com o intuito de evitar-se a circularidade. É necessário o estabelecimento de critérios claros, levando-se em conta o maior número possível de propriedades do item avaliado, o que pode envolver uma análise detalhada de traços fonéticos, morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos, dependendo da unidade envolvida. Nesse sentido, foram percorridas três etapas no decorrer da análise:

(i) Avaliei e diferenciei cada camada/variante da seqüenciação quanto aos três critérios de marcação propostos por Givón (1995);

(ii) Distingui os fatores de cada grupo de fatores entre si, empregando os mesmos critérios; (iii) Analisei a relação entre os conectores e seus diferentes fatores condicionadores,

esperando que contextos definidos como mais marcados na etapa (ii) favorecessem conectores definidos como mais marcadas na etapa (i).

Não haver tal favorecimento não deve implicar alterações nas distribuições escalares das camadas/variantes e dos fatores lingüísticos feitas anteriormente à análise, pois modificar a proposta inicial com base nos resultados obtidos posteriormente seria incorrer em circularidade. Se as hipóteses relativamente à marcação não forem confirmadas, o que será evidenciado é que a marcação não é tão determinante para o fenômeno de estratificação/variação entre os seqüenciadores quanto previsto. Cumpre sempre lembrar que a marcação é uma noção relativa, dependente do contexto por excelência: a mesma estrutura pode ser marcada em um contexto e não marcada em outro. Segundo Givón (1995:27), a comunicação oral cotidiana é o contexto de comunicação não marcado (por ser avassaladoramente mais freqüente dentre a totalidade da atividade lingüística humana) e as formas não marcadas aí são as formas não marcadas na comunicação humana em geral, pois são mais freqüentes e menos salientes cognitivamente, sendo menos complexas quanto ao processamento. Já as formas marcadas na comunicação oral cotidiana são as formas marcadas em geral. Contudo, tais formas podem ser consideradas como não marcadas quando utilizadas nos contextos discursivos que as favorecem, isto é, nos quais elas são mais prováveis de ocorrer. É preciso ter esse ponto em mente quando da interpretação dos resultados. Por exemplo, se for dito que um contexto tido como marcado favorece o seqüenciador mais marcado, o então, deve-se entender que, nesse contexto, tal seqüenciador é uma forma menos marcada. Paralelamente, os seqüenciadores menos marcados na comunicação humana em geral provavelmente seriam considerados como formas mais marcadas no contexto em questão.170

170 Para evitar-se confusão entre os termos marca, marcar e marcação, conferir a seção 2.2.2 do capítulo I.

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1.2 O IMÃ DA PERSISTÊNCIA versus OS PASSOS ALÉM Como já observado, a persistência, um dos cinco princípios de gramaticalização propostos por Hopper (1991), também é passível de exercer influência sobre a direção seguida pelas trajetórias de mudança percorridas por e, aí, daí e então ao longo do tempo, e, assim, sobre a situação de estratificação/variação em que tais formas se encontram na fala florianopolitana de hoje. De acordo com o princípio da persistência, traços dos significados originais de um item tendem a se aderir a ele, mantendo-se ao longo do processo de gramaticalização. Os traços assim conservados são capazes de interferir no modo como o item em questão é utilizado pelos usuários atuais da língua, mesmo quando ele assume papéis mais distanciados daqueles dos quais provém. Minha hipótese é que detalhes da história anterior exerçam influência sobre os usos dados atualmente a e, aí, daí e então, o que se reflete em forma de tendências de distribuição lingüística. Assim, além de obedecerem às restrições advindas de seus diferentes graus de marcação (cf. seção anterior), os seqüenciadores podem diferir quanto ao tipo de território que ocupam com maior recorrência também em razão de terem se desenvolvido de mananciais distintos e de terem retido traços de seus significados fontes. Possivelmente sofreram (ou estão sofrendo) especialização em contextos de seqüenciação que manifestam propriedades similares a seus usos originais. Os percursos de gramaticalização apresentados no capítulo V tornam-se aqui importantes para a compreensão da distribuição de tarefas no domínio da seqüenciação em Florianópolis. Apoiando-me nesses percursos, elaborei, para vários dos grupos de fatores controlados, hipóteses inspiradas na pressuposição de existência de preferências de uso motivadas pela retenção de resquícios do passado – em especial, resquícios da subfunção pela qual cada unidade foi batizada como seqüenciadora: � O e adentrou o domínio através da seqüenciação textual, à qual chegou provindo de fontes

adverbiais com funções ligadas à adição entre sintagmas. Destarte, como seqüenciador, o e deve estar vinculado mais fortemente à soma entre informações – uma nuança bastante genérica, pois exibe apenas a relação de sucessão discursiva entre partes do discurso.

� O aí e o então são oriundos de fontes anafóricas espácio-temporais e migraram para a seqüenciação via seqüenciação temporal. Eles devem aparecer com maior freqüência em contextos portando traços espácio-temporais – nuanças de natureza mais concreta, mais próximas das experiências humanas com o mundo circundante.

� O daí veio de fontes anafóricas locativas, passando por um uso híbrido entre anáfora discursiva e introdução de efeito. Deve, portanto, preferir contextos ligados à introdução de efeito – uma nuança abstrata/complexa, já que, nela, a sucessão temporal, de caráter mais concreto, é suavizada ou mesmo não está presente, e há um viés argumentativo, o que exige um processamento mental mais elaborado tanto do ponto de vista da produção quanto da percepção.

O princípio da persistência serviu de base para a proposição de hipóteses referentes ao comportamento dos grupos condicionadores cujos fatores manifestam nuanças de função-significação comparáveis às manifestadas pelos usos fontes dos conectores. São os seguintes grupos: subfunções seqüenciadoras, tipos de discurso e traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo seqüenciador.

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Lembremos, porém, que o princípio da persistência possui uma contraparte: a tendência de abstração e/ou generalização crescentes que guia mudanças rumo a níveis cada vez mais gramaticais. Tal tendência pode ter levado (ou estar levando) e, aí, daí e então a perder pouco a pouco os laços com suas fontes. Caso e, aí, daí e então estejam em um nível bastante avançado de seu processo de gramaticalização, prescindirão da presença de contextos com traços similares aos das fontes para aparecer. 1.3 MARCAÇÃO versus PERSISTÊNCIA, MARCAÇÃO & PERSISTÊNCIA As influências dos princípios da marcação e da persistência sobre a distribuição de e, aí, daí e então podem atuar de modo combinando, pois alguns dos resquícios dos usos mais antigos dos itens sob enfoque representam também quesitos tipicamente analisados pelos falantes quando do estabelecimento de relações de marcação. De acordo com a hipótese delineada na seção acima em respeito à motivação exercida pelo princípio de persistência, contextos de traços abstratos/complexos devem atrair o daí; contextos de traços concretos o aí e o então; contextos genéricos o e. Já segundo o previsto pela escala de marcação, contextos menos complexos facilitarão o aparecimento do e e contextos mais complexos o aparecimento do então, cabendo aos contextos intermediários o papel de favorecedores do aí e do daí. Em síntese, temos:

Quadro 20: Marcação Marcação Conectores

-marcado e +/-marcado aí, daí +marcado então

Quadro 21: Persistência Persistência Conectores

Genérico e Concreto aí, então Abstrato/complexo daí

Nuanças de função-significação concretas, espácio-temporais (possivelmente favorecedoras do uso do aí e do então, consoante o princípio da persistência) e nuanças genéricas (possivelmente condicionadoras do uso do e, consoante o princípio da persistência), são, em geral, pouco marcadas. Nuanças de natureza concreta não apresentam muitas dificuldades em termos de processamento cognitivo, pois estão ligadas às experiências mais básicas dos seres humanos com a realidade exterior, isto é, com o mundo palpável, sensório-motor. Portanto, podem ser tomadas como manifestando um grau baixo de marcação. Os contextos preferenciais para o uso do e, ao longo de sua história, que remonta ao latim e mesmo ao proto-indo-europeu (cf. capítulo V), deixam emergir traços fortemente genéricos, puramente coesivos, que indicam apenas que a informação introduzida relaciona-se com as anteriores, sem gerar no interlocutor a necessidade de buscar funções-significações mais específicas. Ou seja, quando traços dessa natureza estão em jogo, também não é preciso um grande esforço cognitivo, tanto na produção quanto na percepção: tais traços podem ser ditos esvaziados, servindo

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basicamente como elo de ligação entre informações. Além disso, costumam ter grande recorrência (cf. mais especificamente a freqüência da seqüenciação textual, na seção 3.1.1, e a freqüência dos traços verbais de ATIVIDADE 5, na seção 3.5.1). Já nuanças complexas, do tipo possivelmente vinculadas à utilização do daí, são bastante marcadas, requerendo maior esforço cognitivo, já que acarretam a necessidade de busca de relações assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade (como causa, conseqüência, finalidade), não tão diretamente ligadas ao mundo exterior quanto as nuanças espácio-temporais, e não tão freqüentes quanto as nuanças genéricas. Combinando-se as influências de ambos os princípios, é possível traçar algumas hipóteses específicas para as preferências distribucionais de cada seqüenciador: � E e aí podem estar especializados (ou vir a especializar-se) para contextos menos marcados.

Entretanto, talvez o e seja preferido nos contextos menos marcados e mais genéricos, e o aí nos menos marcados (ou de marcação intermediária para menos) e mais concretos;

� Daí deve aparecer predominantemente em contextos abstratos/complexos e, por tabela, com marcação intermediária para mais ou mesmo com marcação forte;

� Então poderá predominar nos âmbitos mais concretos menos marcados (como o aí) e/ou nos mais marcados.

Os números referentes às distribuições de e, aí, daí e então poderão auxiliar a esclarecer se a marcação e a persistência estão subjacentes aos rumos tomados pelas re-organizações sofridas pela seqüenciação retroativo-propulsora em Florianópolis como forças em competição ou como forças complementares ou como ambas, isto é, atuando coadunadas para alguns dos conectores e como opostas para outros. 1.4 FORÇAS SOCIAIS SÃO SUSPEITAS DE ENVOLVIMENTO A hipótese para a comunidade de fala florianopolitana atual é a de que esteja ocorrendo mudança em progresso ampla. Afora as motivações cognitivo-comunicativas abordadas nas seções acima, motivações de ordem social também contribuem para os rumos seguidos por tal processo de mudança. Penso em duas motivações em especial, já mencionadas no capítulo I: A valoração atribuída aos conectores: Se alguns deles são considerados de menor status, isto

é, como não pertinentes à língua padrão/culta, sua utilização deve ser influenciada por tal avaliação negativa. Por exemplo, aparecerão com mais freqüência na fala de indivíduos de menor idade e escolaridade, que costumam dar maior preferência às formas não padrão, se comparados aos indivíduos de mais idade e escolaridade (cf. Labov, 1972a/b, 1981, 1990; Chambers, 1995).

☺ Marca de identidade: Falantes mais jovens tendem a angariar formas estigmatizadas e/ou inovadoras como marcas típicas do grupo de pares. Destarte, aí e daí, mais recentes no ramo da seqüenciação, devem ser os conectores mais recorrentes na fala dos pré-adolescentes (indivíduos de 09 a 12 anos) e dos adolescentes (indivíduos de 15 a 21 anos) florianopolitanos.

Além de revelar a extensão da disseminação social de cada uma das camadas/variantes da seqüenciação, o controle de grupos de fatores sociais permite que se chegue a um diagnóstico de

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mudança em andamento. Tal diagnóstico é obtido especialmente por meio da distribuição dos articuladores de acordo com a estratificação etária dos informantes, alcançando-se, desse modo, sua distribuição em tempo aparente. Caso uma mudança esteja em curso, deverá ser notada uma correlação significativa entre a idade dos informantes e suas preferências de uso: a recorrência das camadas/variantes mais novas deverá aumentar à proporção que diminui a idade dos informantes. 2. PROCEDIMENTOS ESTATÍSTICOS: OBTENDO OS NÚMEROS! A análise do conjunto das influências exercidas por vários grupos de fatores lingüísticos e sociais possibilita que seja traçado um panorama acerca da distribuição de e, aí, daí e então na fala florianopolitana, necessário para a testagem das várias hipóteses levantadas. Considero cinco grupos de fatores condicionadores lingüísticos e três extra-lingüísticos:

Quadro 22: Grupos de fatores lingüísticos e sociais (1) Subfunções seqüenciadoras

1. Seqüenciação textual 2. Seqüenciação temporal 3. Introdução de efeito 4. Retomada 5. Finalização

(2) Tipos de discurso

1. Narrativa 2. Procedimentos 3. Descrição de vida 4. Descrição 5. Argumentação

(3) Níveis de articulação discursiva

1. Inter-tópico 2. Intra-tópico - Subtópico 3. Intra-tópico - Segmento tópico 4. Inter-oracional

(4) Graus de conexão

1. Controla diversas propriedades do contexto lingüístico (cf. detalhamento na seção 3.1.4).

(5) Traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector

1. Momentâneo 2. Atividade específica 3. Dicendi 4. Atividade difusa 5. Instância 6. Estímulo mental 7. Evento transitório intencional 8. Evento transitório não intencional 9. Processo 10. Experimentação mental 11. Atenuação 12. Relacional 13. Sensação corporal 14. Existência 15. Estado

(6) Idade

1. 09 a 12 anos 2. 15 a 21 anos 3. 25 a 45 anos 4. mais de 50 anos

(2) Escolaridade

(3) Sexo

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1. Primário (4 a 5 anos) 2. Ginásio (8 anos) 3. Colegial (11 anos)

1. Feminino 1. Masculino171

Após codificar as ocorrências de e, aí, daí e então seqüenciadores quanto aos fatores lingüísticos e sociais elencados nos quadros acima, utilizei o programa estatístico VARBRUL (Cedergren & Sankoff, 1974; Pintzuk, 1988), que fornece a freqüência e o peso relativo dos fatores de cada grupo de fatores condicionadores em relação à variável dependente, indicando a influência de cada um desses fatores sobre o uso de cada uma das camadas/variantes. Realiza também a seleção estatística dos grupos de fatores de acordo com sua ordem de relevância para o fenômeno em questão. (cf. capítulo III) Realizei rodadas eneárias (todas as camadas/variantes ao mesmo tempo) e binárias (uma camada/variante versus as demais). Não levei a cabo apenas rodadas eneárias porque as rodadas binárias fornecem a ordem de relevância de cada grupo de fatores e descartam grupos não relevantes, o que não é feito pelas rodadas eneárias.172 Na seção 3, apresento somente os resultados das rodadas binárias, uma vez que os resultados das eneárias confirmaram as tendências de uso reveladas pelos primeiros.

Em algumas rodadas, foram amalgamados fatores dos grupos maiores, graus de conexão e traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector.173 Tais fatores puderam ser adjungidos porque mostraram comportamento aproximado.174 Ao final de diversas interações, selecionei as rodadas mais significativas, através de testes de significância e/ou do nível de significância atribuído pelo VARBRUL a cada rodada.175 Para e, daí e então, a rodada sem amalgamações foi apontada como a mais relevante, ao passo que, para o aí, a rodada com

171 Outros grupos de fatores foram testados, mas não tiveram efeito sobre o uso dos seqüenciadores e, portanto, são deixados de lado aqui. Foram os seguintes: posição; grau de especificidade das informações introduzidas; escopo do conector; traço semântico-pragmático, tempo e aspecto do verbo da oração que precede o conector; tempo e aspecto da oração que se segue ao conector. Também analisei o papel de cada um dos informantes na escolha das formas, a fim de verificar se há falantes desviando da tendência geral do grupo, inovando mais ou conservando mais resquícios de usos passados do que a média – uma caça aos líderes da mudança, enfim. Além disso, busquei averiguar se o fenômeno de estratificação/variação no domínio da seqüenciação em Florianópolis representa um caso de variação na comunidade que não se reflete na fala de cada um de seus membros ou se todos os indivíduos testados utilizam os conectores de modo estratificado/variável. Essa última possibilidade foi confirmada. Não apresento aqui tal análise, por ser bastante extensa, mas ela pode ser conferida em Tavares (2002h). 172 Para haver maior certificação de que os resultados obtidos nos blocos de rodadas binárias não eram enviesados pela junção de três seqüenciadores em oposição a um, realizei ainda uma série de rodadas binárias opondo dois dos conectores entre si - e x aí, e x daí, e x então, aí x daí, aí x então, daí x então -, sendo os resultados utilizados apenas com o intuito de refinamento e confirmação da análise. 173 Amalgamação é a combinação de dois ou mais fatores em um só. 174 Os fatores candidatos à amalgamação devem ser quantitativamente semelhantes, isto é, suas freqüências ou seus pesos relativos devem ser próximos. Além disso, a junção deve ser coerente com as hipóteses previamente feitas, as quais, no caso desta tese, prevêem certas direções para a atuação de motivações funcionais particulares subjacentes às influências exercidas pelos grupos de fatores controlados. Em relação aos grupos graus de conexão e traços semântico-pragmáticos verbais, os critérios para as amalgamações estão vinculados, respectivamente, ao processamento de nacos discursivos que apresentam graus semelhantes de (des)continuidades e à similaridade, em termos de percepção cognitiva, de certos traços semântico-pragmáticos manifestados pelos verbos (cf. seções 3.1.4 e 3.1.5). Apenas mediante justificativas teóricas e matemáticas coerentes, cães, gatos e ratos podem acabar num mesmo saco... 175 Foi feito o teste padrão para significância (Guy, 1998:41-44), seguindo-se os passos descritos na versão para Windows do VARBRUL 2S, da autoria de Luiz Amaral (UFPE). O teste de significância mostra se é mais significativo, do ponto de vista estatístico, a manutenção da distinção entre dois ou mais fatores ou a sua amalgamação. Nas seções seguintes, será informado, nas tabelas, o nível de significância de cada rodada cujos resultados forem apresentados.

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amalgamações (em que o grupo de fatores graus é subdividido em três fatores e o grupo traços em cinco) é que foi mais relevante. A seguir, os números... 3. ANÁLISE DOS DADOS – COMUNIDADE DE FLORIANÓPOLIS O quadro a seguir apresenta, em ordem de relevância, os grupos de fatores lingüísticos e sociais selecionados para cada um dos conectores seqüenciadores:

Quadro 23: Grupos de fatores selecionados para e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

1°- Níveis de articulação 1°- Escolaridade 1°- Idade 1°- Idade 2°- Subfunções da seq. 2°- Tipos de discurso 2°- Níveis de articulação 2°- Subfunções da seq. 3°- Idade 3°- Subfunções da seq. 3°- Subfunções da seq. 3°- Níveis de articulação 4°- Tipos de discurso 4°- Níveis de articulação 4°- Tipos de discurso 4°- Tipos de discurso 5°- Graus de conexão 5°- Graus de conexão 5°- Escolaridade 5°- Escolaridade 6°- Traços verbais 6°- Idade 6°- Graus de conexão 7°- Escolaridade 7°- Traços verbais 7°- Sexo 8°- Sexo 8°- Traços verbais

Alguns grupos de fatores não foram considerados relevantes para todos os conectores: (i) aspecto não foi selecionado para o e; (ii) aspecto e sexo para o aí; (iii) graus de conexão, traços verbais e sexo para o daí. Entretanto, decidi mostrar também os resultados referentes a esses grupos não selecionados, para facilitar as comparações entre as distribuições sociolingüística dos quatro seqüenciadores. As tabelas que apresentam tais resultados trazem a identificação das rodadas das quais eles provêm. Urge ressalvar, porém, que os números extraídos de interações consideradas não significativas pelo VARBRUL são menos confiáveis que os referentes às interações consideradas significativas, pois o nível de significância das primeiras é sempre superior ao limite máximo de confiabilidade, 050. 7 Nas próximas seções, a discussão da influência de cada grupo de fatores condicionadores será organizada nas seguintes etapas: caracterização do grupo de fatores e formulação das hipóteses, a que se segue a apresentação e a discussão dos resultados. Os grupos de fatores controlados são expostos na seguinte ordem:

Seção 3.1 – Os grupos de fatores lingüísticos: (i) subfunções da seqüenciação retroativo-propulsora; (ii) tipos de discurso; (iii) níveis de articulação discursiva; (iv) graus de conexão; (v) traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector. Seção 3.2 – Os grupos de fatores sociais: (i) idade; (ii) escolaridade; (iii) sexo.

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3.1 GRUPOS DE FATORES LINGÜÍSTICOS 3.1.1 SUBFUNÇÕES DA SEQÜENCIAÇÃO RETROATIVO-PROPULSORA 3.1.1.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES

Como as subfunções da seqüenciação já foram descritas e exemplificadas nos capítulos I e V, parto imediatamente para as hipóteses acerca do comportamento deste grupo de fatores, distinguindo os subtipos da seqüenciação de acordo com seu grau de marcação:

Quadro 24: Distribuição das nuanças da seqüenciação quanto à marcação

seqüenciação textual seqüenciação temporal introdução de efeito retomada finalização - marcado + marcado

Considero como critério principal para a diferenciação das subfunções seqüenciadoras quanto à marcação os traços semântico-pragmáticos característicos de cada nuança.176 Tais traços são reveladores de maior ou menor complexidade cognitiva em termos do processamento das informações. A seqüenciação textual é a menos marcada: apenas indica a cronologia do discurso, assinalando a ordem seqüencial pela qual as informações são apresentadas e desenvolvidas. Trata-se, portanto, de uma estratégia puramente coesiva, que não dispara, no interlocutor, a necessidade de busca por matizes de função-significação outros além da indicação de que uma das informações interligadas relaciona-se com a outra ou de que ambas relacionam-se ao mesmo tópico. Representa, portanto, um processamento mental mais rápido e econômico. A seqüenciação temporal possui um traço de função-significação a mais, se comparada com o seqüenciação textual: indica a cronologia dos eventos narrados, colocando em evidência não apenas a ordenação discursiva, mas também a ordenação temporal cronológica. Atua, assim, num plano mais concreto em relação aos das demais nuanças. Já foi mencionado, na seção 1.2, que matizes de natureza concreta não exigem um processamento cognitivo árduo, uma vez que estão relacionados a experiências mais básicas dos seres humanos com a realidade circundante, com o mundo que se oferece aos sentidos. Por essa razão, a seqüenciação temporal pode ser tomada como pouco complexa, embora, por conta do traço temporal, exija um pouco mais de esforço cognitivo que a seqüenciação textual.177

176 Os critérios de Givón (1995) para a diferenciação de graus de marcação relacionam-se à freqüência, à estrutura e à complexidade cognitiva, da qual as duas primeiras são reflexos concretizados no texto e, portanto, capazes de ser mensurados. Considero que traços semântico-pragmáticos também são reflexos de maior ou menor complexidade cognitiva, podendo servir como indícios textuais para o mapeamento de diferentes graus de marcação. 177 É importante não se vincular a seqüenciação temporal à etapa “tempo” do aclive de gramaticalização de Heine, Claudi & Hünnemeyer (1991a/b) (cf. capítulo V), bem como a seqüenciação textual à etapa “textual”, mais abstrata/complexa que a etapa “tempo”. A seqüenciação textual não é mais abstrata que a seqüenciação temporal (se assim fosse, poderíamos entender a primeira como mais complexa que a segunda), é sim mais genérica, mais esvaziada (e, por tabela, menos complexa). Todas as subfunções da seqüenciação podem ser relacionadas à etapa “texto” do referido aclive (como já mencionado, relações conjuntivas são abstratas, não apontando para uma entidade específica, e sim estabelecendo elos coesivos), e caracterizadas como genéricas ou concretas ou complexas/abstratas quanto a seus traços de função-significação.

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A introdução de efeito indica seqüenciação cronológica temporal e/ou discursiva. Evidencia fortes traços de seqüenciação temporal quando interliga eventos que se sucedem temporalmente, sendo o primeiro a causa e o segundo sua conseqüência. Quando interliga argumentos, manifesta seqüenciação textual: a causa precede a conseqüência. Entretanto, a despeito da semelhança com a seqüenciação textual (cronologia discursiva) e com a seqüenciação temporal (cronologia temporal), a introdução de efeito apresenta um grau de complexidade maior, pois introduz informações que representam conclusão ou conseqüência em relação ao que foi dito anteriormente. O estabelecimento de tais relações exige do falante uma elaboração mental complexa, deixando vir à tona um viés argumentativo, vinculado mais ao mundo do dizer que ao mundo concreto. No caso da conclusão, há uma tentativa de convencer o interlocutor de que, dos argumentos anteriormente dados, é possível alcançar uma certa conclusão, aquela fornecida pelo falante. No caso da conseqüência, é o falante e não o mundo exterior que apresenta um evento como conseqüência do outro, mesmo que nuanças de sucessão temporal estejam em jogo. Já no caso da seqüenciação temporal, embora, obviamente, o falante seja o responsável final pela organização sucessiva dada aos eventos, ela é fortemente baseada na ordem de ocorrência dos eventos no mundo real. Enfim, conseqüência e conclusão são nuanças abstratas e complexas, integrantes do conjunto de relações atribuídas pelos homens em seu processo de apreensão da realidade (dentre as quais encontram-se causa, finalidade, pertinência, analogia, etc). A retomada e a finalização são enraizações de usos específicos dados à seqüenciação textual em estratégias discursivas para destacar, respectivamente, a volta à linha narrativa ou argumentativa interrompida por uma digressão e a finalização do tópico. São, desse modo, igualmente genéricas em termos de matizes de função-significação, exibindo, a exemplo da seqüenciação textual, apenas sucessão discursiva. No entanto, sua tarefa no ramo da seqüenciação é bastante complexa. A característica definidora da retomada é o movimento de recuperação de informações anteriores, fornecendo pistas para o interlocutor acerca da volta da seqüência discursiva que vinha sendo desenvolvida e que fora interrompida por uma digressão. Esse movimento é delicado, exigindo, para tornar-se claro, que o falante retome informações já dadas, de forma literal ou com a alteração de algumas palavras. O ouvinte tem de estar bastante atento para perceber que os rumos do discurso foram deslocados da digressão para sua linha condutora central. A finalização destaca a informação que introduz como representando o final do tópico ou do subtópico em andamento até então. Trata-se de um movimento bastante complexo, requerendo muita atenção por parte do interlocutor. No caso da entrevista, por exemplo, a percepção de uma estrutura de finalização de tópico na fala do informante é um sinal para o entrevistador de que deverá tomar alguma atitude (como fazer uma nova pergunta) para que a entrevista prossiga, caso contrário, o silêncio será instalado. O ato de finalizar também requer maior esforço cognitivo por parte do falante, que precisa organizar a estratégia de finalização com cuidado para que ela seja facilmente perceptível. Para tanto, recorre a mecanismos diversos: utiliza um conector para tornar mais evidente o fato de o tópico estar sendo encerrado, bem como se vale de outras marcas, geralmente itens de caráter anafórico como assim, isso, esse, essa. Devido à complexidade das indicações dadas pela retomada e pela finalização, considero que sejam as subfunções seqüenciadoras mais marcadas.178

178 Itens que desempenham papéis de natureza mais concreta, como o aí e o então (que passaram por funções de base temporal), tendem a gramaticalizar em três direções principais: (i) rumo a papéis genéricos menos marcados (a seqüenciação textual é um exemplo desse tipo de papel); (ii) rumo a papéis mais abstratos/complexos e mais marcados (a introdução de efeito, por exemplo); (iii) rumo a papéis genéricos e mais marcados (como a retomada e a finalização). Itens vinculados a funções

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A freqüência de cada subtipo da seqüenciação retroativo-propulsora no corpus também é

uma indicação do grau de marcação: os mais freqüentes são aqueles considerados os menos marcados: seqüenciação textual (1.911 dados) e seqüenciação temporal (1.211 dados), e os menos freqüentes são os mais marcados: introdução de efeito (741 dados), retomada (352 dados) e finalização (85 dados). Ou seja, a seqüenciação textual representa 44,5% dos casos de seqüenciação, sendo a segunda mais recorrente a seqüenciação temporal, com 28% dos casos.179 A hipótese para a influência das subfunções seqüenciadoras sobre a escolha de um dentre o leque de conectores seqüenciadores disponíveis consiste em relacionar subfunções tidas como menos marcadas a conectores menos marcados, e subfunções consideradas mais marcadas a conectores mais marcados. Como a seqüenciação textual é menos complexa cognitivamente, deve favorecer o e, o conector menos marcado. O então, mais marcado, deve ser condicionado em especial pela finalização, a subfunção mais marcada. É possível que aí e daí, intermediários entre e e então quanto à marcação, sejam preferidos como marcas de subfunções intermediárias quanto à marcação. O princípio da persistência também pode estar subjacente à atração exercida pelas nuanças da seqüenciação sobre e, aí, daí e então. No capítulo V, com base na análise das trajetórias de gramaticalização percorridas por essas formas desde o latim (ou mesmo o proto-indo-europeu, no caso das formas antepassadas do e), foi proposta a seguinte hipótese, a ser aqui testada: e deve ser mais recorrente como marca da seqüenciação textual, aí e então da seqüenciação temporal e daí da introdução de efeito. Essa hipótese é fundamentada na pressuposição de existência de preferências de uso em contextos que manifestam características semelhantes aos das fontes de cada conector: e e a soma entre informações, aí e então e o vínculo com noções espácio-temporais, daí e as nuanças ligadas à manifestação da idéia de efeito. Hipóteses acerca da ação conjunta dos princípios da marcação e da persistência também já foram delineadas (cf. seção 1.3) e são ora retomadas:

° E e aí podem estar especializados (ou vir a especializar-se) para contextos menos marcados. Entretanto, talvez e seja preferido nos contextos menos marcados e mais genéricos e o aí nos menos marcados (ou de marcação intermediária para menos) e mais concretos. Aplicando tal previsão ao grupo de fatores em averiguação, espera-se que o e seja mais recorrente como marca da seqüenciação textual e o aí como marca da seqüenciação temporal.

° Daí deve aparecer predominantemente em contextos abstratos/complexos e, por tabela, com marcação intermediária para mais ou mesmo com marcação forte, propriedades encontradas na introdução de efeito.

genéricas como o e podem se tornar cada vez mais genéricos, colecionando um número maior de funções. Itens de base mais complexa como o daí seguem, por hipótese, o rumo de papéis ainda mais abstratos/complexos e/ou mais genéricos (como o esperado para a gramaticalização, conforme Heine e outros (1991a/b) e Hopper (1991)), mas não menos concretos. Contudo, por influência dos usos dados ao aí, o daí pode ter se tornado marca de todas as nuanças da seqüenciação, inclusive a seqüenciação temporal. Uma vez que todos os seqüenciadores, passando por essas etapas de mudança particulares, adquiriram o direito ao desempenho das cinco subfunções, passaram a disputar todas elas, independentemente de qual conquistaram em primeiro ou último lugar. 179 Uma hipótese possível de ser testada em estudos envolvendo aquisição lingüística é pautada na proposta de Hallan (2001), segundo a qual aquilo que é mais freqüente é adquirido primeiro, pois aparece mais constantemente nas diversas experiências das crianças com o uso da língua. Como a seqüenciação textual é a mais freqüente das subfunções, deve ser a primeira a ser adquirida.

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° Então poderá predominar nos âmbitos mais concretos e menos marcados (como o aí) e/ou nos mais marcados. Ou seja, no caso do grupo subfunções, então pode ser aguardado como um dos meios preferenciais para a sinalização da seqüenciação temporal e/ou da trinca mais marcada, introdução de efeito, retomada e finalização.

3.1.1.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 1: Influência das subfunções seqüenciadoras sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

SUBFUNÇÕES Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Seq. Textual 1.086/1.911 57 0,71 280/1.911 15 0,45 263/1.911 14 0,40 282/1.911 15 0,37 Seq. Temp. 465/1.211 38 0,40 403/1.211 33 0,70 301/1.211 25 0,50 42/1.211 03 0,29 Int. de Efeito 131/741 18 0,17 147/741 20 0,54 256/741 35 0,73 207/741 28 0,80 Retomada 91/352 26 0,45 90/352 26 0,49 56/352 16 0,50 115/352 33 0,76 Finalização 17/85 20 0,33 06/85 07 0,18 14/85 16 0,61 48/85 56 0,86

TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .005 Log-likelihood: -1284.763

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

2º selecionado 3º selecionado 3º selecionado 2º selecionado180 Como interpretamos os números listados na tabela 1? A previsão de que o e seria atraído pela subfunção seqüenciadora menos marcada, a seqüenciação textual, foi confirmada: o peso relativo associado à utilização do e como marca da subfunção em questão é de 0,71 e a freqüência é de 57%, o que indica um largo favorecimento desse conector. Também é confirmada a hipótese de que o e marcaria presença preferencialmente em contextos que manifestassem características semelhantes aos de suas fontes latinas e proto-indo-européias, cuja propriedade essencial é a soma entre informações. A seqüenciação textual, dentre os matizes da seqüenciação, é a que tem como propriedade definidora a soma entre nacos do discurso. Portanto, no que se refere ao e, tanto a marcação quanto a persistência marcam gol. A seqüenciação temporal condiciona favoravelmente o uso do aí (freqüência de 33% e peso relativo de 0,70). Ambos, subfunção e conector, são pouco marcados (ou dotados de complexidade intermediária para menos), se comparados aos conectores e subfunções que se encontram a sua direita nas escalas de marcação (quadros 19 e 24). Mais um gol de placa para a marcação! Representa um espaço entre neutro a levemente favorecedor para o aí a introdução de efeito (freqüência de 20% e peso relativo de 0,54), subfunção que, na escala de marcação, segue-se logo após a seqüenciação temporal (quadro 24).

180 O input é a probabilidade de aparecimento de uma das camadas/variantes quando o efeito de todos os fatores de todos os grupos é neutro e, assim, costuma ser um valor aproximado ao da percentagem geral de cada item. O nível de significância define o risco que se corre ao rejeitar a hipótese nula, isto é, a hipótese de que nenhum dos fatores considerados influi sistematicamente no processo de seleção das camadas/variantes pelos usuários da língua. Níveis de significância próximos a .000 indicam uma certeza estatística de que os valores atribuídos pelo modelo a cada fator estão corretos. O log-likelihood aponta o grau de probabilidade de os dados terem sido gerados pelo modelo e também é importante para o teste de significância: em uma das etapas do teste, são comparados os log-likelihoods da rodada sem amalgamação e da rodada com ela. Os pesos relativos, que refletem as várias dimensões de interferência simultânea sobre o uso de uma forma, variam de 0 a 1. Quanto mais próximo de 0 for o peso, menos influi o fator que o recebeu; quanto mais próximo de 1, maior é a influência. Um peso de valor 0,50 tende a ser indiferente. Todavia, uma vez que, no caso em estudo, há mais de duas camadas/variantes em jogo, a avaliação dos pesos se relativiza, devendo-se lançar o olhar para o conjunto de pesos obtidos por todos os conectores. Algumas das informações fornecidas nesta nota são baseadas em Guy (1998), Scherre (1996) e Brescancini (2002).

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É possível que o componente temporal dessas duas nuanças da seqüenciação mais simpáticas ao aí esteja subjacente aos favorecimentos: ambas apresentam traços de temporalidade mais fortes se comparadas às demais nuanças, com destaque para a seqüenciação cronológica de eventos (caso de todos os dados de seqüenciação temporal e parte dos dados de introdução de efeito, aqueles que apresentam traços de sucessão cronológica mesclados aos de conseqüência/conclusão). A indicação da passagem de tempo, uma das tarefas pertinentes ao domínio da seqüenciação, deve estar tão vinculada à opção pelo aí181por conta de seus usos fontes no âmbito da anáfora temporal. Assim, a tendência à preservação de resquícios do passado também parece se manifestar no caso dessa conjunção. Com apoio em tais resultados, podemos dizer que a possibilidade de ação conjunta por parte do princípio da marcação e do princípio da persistência parece ter sido efetivada. Embora e e aí sejam ambos mais recorrentes em subfunções menos complexas, e é o conector número um da seqüenciação textual, definida como menos marcada e mais genérica, e aí é o conector número um da seqüenciação temporal, menos marcada (ou de marcação intermediária para menos) e mais concreta. Daí, elemento dotado de complexidade intermediária para mais, tende a ser vinculado, pelos falantes florianopolitanos, sobretudo a matizes retroativo-propulsores mais marcados - introdução de efeito e finalização. O princípio da persistência também parece entrar em ação: as freqüências e os pesos relativos mais altos para o daí são justamente os atribuídos à introdução de efeito. Foi através dessa subfunção que, por hipótese, o conector debutou no domínio sob enfoque (subfunção da qual se tornou marca a partir de seu uso híbrido como anafórico discursivo e introdutor de efeito). Há uma forte correlação entre as nuanças mais marcadas – finalização, retomada e introdução de efeito – e o aparecimento do então, correlação revelada através de percentagens e pesos relativos de valor bastante elevado. Uma surpresa é a intensa restrição à utilização desse articulador discursivo como modo de assinalar a seqüenciação temporal, subfunção que, por hipótese, serviu-lhe de porta de entrada no domínio da seqüenciação, e que apresenta um traço semântico-pragmático em comum com seus usos fontes no plano anafórico: a indicação temporal. Ou seja, parece que, nessa partida disputada, o princípio da marcação vence o princípio da persistência. Talvez a tendência à abstração e/ou à generalização crescentes, que guia o desenvolvimento de itens gramaticalizandos, esteja por trás dessa vitória. Veremos... Como já foi mencionando, a marcação é uma noção relativa, dependendo do contexto de uso. As hipóteses e interpretações dos resultados apresentadas acima são baseadas em tendências gerais de marcação na língua, emparelhando conectores mais e menos complexos com traços contextuais mais e menos complexos na comunicação oral cotidiana. Todavia, é importante que levemos em conta também as relações de marcação em cada contexto específico. As formas marcadas na comunicação oral cotidiana são as formas marcadas em geral, mas não são marcadas da perspectiva do(s) contexto(s) discursivo(s) que as favorece(m), isto é, do(s) qual(is) elas são marcas típicas, de grande recorrência. É, por exemplo, o caso do então, que é o seqüenciador mais marcado na comunicação humana em geral (por ser o mais freqüente e o mais longo, considerando-se a totalidade das situações de uso), mas que, nos contextos de introdução de efeito, retomada e finalização, é uma forma não marcada, bastante provável de ocorrer. Em contraste, o e, o 181 Outros estudiosos, como Abreu (1992) e Silva & Macedo (1996), também apontam a existência de uma forte correlação entre o aí e a seqüenciação temporal de eventos.

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seqüenciador menos marcado em geral, pode ser tomado como uma forma marcada nos contextos em questão, por ser mais raro aí. Relações de marcação entre e, aí, daí e então relativizadas ao contexto podem ser observadas no quadro a seguir (baseado nos resultados fornecidos na tabela 1), em que, a cada coluna, o primeiro conector é o menos marcado na expressão da subfunção seqüenciadora em questão, e o último é o mais marcado:

Quadro 25: Distribuição de e, aí, daí e então quanto às subfunções seqüenciadoras Seq. Textual Seq. Temp. Int. de Efeito Retomada Finalização

e aí então então então aí daí daí daí daí daí e aí aí e então então e e aí

3.1.2 TIPOS DE DISCURSO 3.1.2.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES As entrevistas sociolingüísticas, fonte dos dados analisados neste capítulo, permitem o controle de diferentes tipos de discurso ou seqüências discursivas,182 que surgem e se imbricam uns nos outros no desenrolar da interação, frutos de arranjos e re-arranjos diversos da linha condutora seguida pelo informante na organização de seu texto. Possuem, portanto, natureza fluida e aberta, aparecendo, em alguns casos, sobrepostos uns aos outros. Baseando-me Silva & Macedo (1996), identifiquei e isolei cinco tipos de discurso, os mais salientes e freqüentes nas várias entrevistas consideradas. Os quesitos levados em conta para o estabelecimento dos recortes estão enumeradas a seguir, na forma de propriedades definidoras de cada tipo de discurso. Como no caso das subfunções seqüenciadoras, certa margem de erro nas classificações é tida como natural, decorrente da natureza indistinta do objeto submetido às tesouradas.

� Narrativa: Relato em que o informante conta um ou mais fatos que se passaram em certo tempo e lugar, envolvendo determinados personagens, com grande presença de verbos no pretérito perfeito.

(1) Então às vezes- quebramos uma telha da vizinha, a vizinha foi fazer queixa pro pai. Mas a mãe não fez nada,

não. Ele- ela veio fazer queixa pra mãe, mas a mãe não contou nada. Mas ela sabia que a mãe não fazia nada, ela foi fazer queixa pro pai. Aí o pai deu uma surra em nós tão grande, que só vendo. (ED/FLP18:1242)

� Procedimentos: Descrição das etapas necessárias à realização de alguma tarefa ou processo, caracterizando-se pela exposição dos eventos em ordem cronológica e pela ênfase na ação.

(2) E tem o molho também pra salada que é: meia xícara de maionese, sabes? Tu pegas a maionesezinha, o suco de

meio limão, sal, pimenta e um pouquinho de açúcar, tá? Isso é o que vai. Aí tu ferves o macarrão, né? Normalzinho. Temperas tudo direitinho com sal, não tem nada de especial. (JQ/FLP01:607)

182 A denominação do grupo de fatores sob enfoque poderia ter sido seqüências discursivas. Todavia, optei por tipos de discurso para evitar confusão com a nomenclatura ligada ao objeto de estudo desta tese: seqüenciação retroativo-propulsora, seqüenciação textual, seqüenciação temporal, conectores seqüenciadores, subfunções seqüenciadoras, etc.

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� Descrição de vida: Relato de fatos que ocorriam habitualmente no passado, com predomínio de verbos no pretérito imperfeito.

(3) Naquela época não havia empregada. Era só assim como eu estou falando. A gente achava uma pessoa pra ficar

com a gente, uns tempos, pra ajudar. A gente pagava, aí a pessoa ficava ali, né? Não é dizer que era uma empregada. Era uma pessoa pra serviço. A gente mandava fazer aquilo (inint) pra fazer. Dois, três ou quatro meses e ia embora. (NI/FLP08:1053)

� Descrição: Trecho em que um fato, um objeto ou uma pessoa são expostos detalhadamente em suas peculiaridades e contornos.

(4) E: E como é que é a tua casa, dá pra- pra descrever pra mim como é a casa?

F: Embaixo ela tem uma garagem, daí sobe, ela tem uma sala, a cozinha, daí desce tem o quartinho da minha cachorra e lá atrás tem uma área, daí entra de novo, daí lá embaixo tem uma sala de visita e tem a porta da sala, sobe, tem o quarto, o meu quarto é na ponta, o do meu irmão é no meio e o da minha mãe é na ponta. (MR/FLP10C:10-11)

� Argumentação: O informante tece considerações a respeito de determinado tema, evidenciando sua opinião acerca do mesmo.

(5) Agora têm muitas que estão nessa vida porque gostam disso aí, gostam de zoeira, essas coisas, e muitas estão ali

obrigadas, tá? Então, eu respeito todo ser humano, agora, pra mim, eu acho isso assim, pra mim, a minha índole, eu acho errado. Que eu acho tem tanto serviço que a pessoa, né? podia ter mais- São- todo ser humano é capaz a qualquer coisa que quer na vida. (TE/FLP16:1186)

As hipóteses acerca da influência exercida pelos tipos de discurso sobre a divisão de tarefas entre e, aí, daí e então no reino da seqüenciação também levam em conta a ação do princípio da marcação e do princípio da persistência. Comecemos pelo primeiro. Qual dos tipos de discurso é o mais marcado e qual é o menos marcado? Para tentar responder a essa questão, comparo, a seguir, a narrativa, o discurso de procedimentos, a descrição de vida, a descrição e a argumentação. Saliento, porém, que tal comparação não se aprofunda em detalhes, fundamentado-se apenas em propriedades gerais de cada tipo de discurso: (i) tempo e aspecto verbais mais recorrentes; (ii) natureza do tipo de informação predominante. A narrativa caracteriza-se pela seqüenciação cronológica de eventos passados, temporalmente delimitados, correlacionando-se ao pretérito perfeito, seqüencial e ancorado no evento, e ao aspecto perfectivo, compacto e completo. Trata-se do tempo e do aspecto menos marcados: tendem a ser mais freqüentes no discurso humano e a exigirem menos esforços cognitivos em termos de processamento e percepção (Givón, 1993a:179). Podemos opor à narrativa a argumentação, caracterizada pela exposição de opiniões do falante acerca de determinado fato ou idéia, correlacionando-se com o tempo presente, não seqüencial e ancorado na fala, e o aspecto imperfectivo, durativo e incompleto. São estes um dos tempos e o aspecto verbal mais marcados (op. cit., p. 179). Como a argumentação envolve a exposição de pontos de vista, o que é relativamente complexo em nível de processamento e percepção, bem como envolve o uso de tempo e de aspecto marcados, considero-a como o tipo de discurso mais marcado. Diferentemente, na narrativa, predominam verbo e aspecto não marcados e a seqüenciação de eventos delimitados, completos, e, por isso, mais facilmente processáveis. A narrativa é, portanto, o tipo de discurso menos marcado. Na descrição de vida, ocorre a seqüenciação temporal ou textual de eventos durativos no pretérito imperfeito, tempo verbal também marcado, por apresentar os traços de duratividade e

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incompletude. No discurso de procedimentos ocorre a seqüenciação das etapas de um processo, geralmente no presente. Esses dois tipos de discurso, embora se aproximem da narrativa pelo traço de seqüenciação temporal, estão ligados a tempos verbais mais marcados e apresentam eventos não delimitados, durativos, conseqüentemente, mais complexos quanto ao processamento. Dessa guisa, aparentam ser mais marcados que a narrativa. A descrição também parece mais complexa que a narrativa, por envolver a exposição das características de um elemento qualquer, feita comumente no pretérito imperfeito ou no presente, tempos verbais marcados. Proponho, no quadro a seguir, um contínuo de marcação envolvendo os tipos de discurso. Esse contínuo: (i) parte da seqüenciação de eventos passados, delimitados temporalmente e não durativos, o que é típico da narrativa; (ii) passa pela seqüenciação de eventos não delimitados e durativos, como no discurso de procedimentos e na descrição de vida; (iii) chega à ordenação de informações relativas às propriedades de um elemento ou à ordenação de argumentos e opiniões, típicas da descrição e da argumentação, respectivamente. Defino a argumentação, por envolver a manifestação de opiniões, como mais complexa que a descrição, em que ocorre a exposição de características de um ser ou objeto.

Quadro 26: Distribuição dos tipos de discurso quanto à marcação

narrativa procedimentos descrição de vida descrição argumentação - marcado + marcado

No quadro acima, opus a narrativa, menos marcada, à argumentação, mais marcada, considerando os discursos de procedimentos, descrição de vida e descrição como intermediários quanto à marcação. Contudo, não realizei uma análise aprofundada das características de cada tipo de discurso, pois levo em conta, para distingui-los, somente o tempo, o aspecto e o tipo de informação predominante (se eventos, idéias ou outro tipo de informação). Conseqüentemente, tenho poucos indícios para afirmar que a ordem crescente de marcação dos tipos de discurso situados no nível intermediário seja necessariamente ‘procedimentos → descrição de vida → descrição’. Embora não possa apontar com maior exatidão quais dentre esses discursos são mais ou menos marcados, considero que se tratam de discursos mais marcados que a narrativa e menos marcados que a argumentação. As freqüências dos tipos de discurso no corpus corroboram com a hierarquia proposta entre narrativa (2.207 dados), descrição de vida (1.069) e argumentação (610), mas não são válidas para procedimentos (290) e descrição (124), os menos freqüentes. Os critérios privilegiados para as distinções de marcação foram, portanto, o tipo de informação predominante e o vínculo com tempos e aspectos verbais mais e menos marcados, tratando-se a freqüência como secundária. Passemos agora a refletir acerca de possíveis efeitos do princípio da persistência sobre o grupo de fatores ora sob enfoque. A narrativa possui, dentre os tipos de discurso, os traços mais relacionados às experiências humanas básicas com o mundo concreto, já que é caracterizada pelo encadeamento de acontecimentos que se sucedem no tempo. Destarte, pode favorecer o aparecimento do aí e do então, que migraram para a seqüenciação a partir de seus usos como anafóricos temporais, e adentraram o domínio como marcas da nuança seqüenciadora de natureza mais concreta, a seqüenciação temporal. Essa subfunção, diga-se de passagem, possui relação íntima com as narrativas. Aí e então podem ser igualmente favorecidos nos relatos de

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procedimentos e nas descrições de vida, em que também se destaca a seqüenciação temporal de etapas de alguma tarefa ou processo e o relato de fatos habituais no passado, respectivamente. Entretanto, cumpre lembrar que, na descrição de vida, também é freqüente a sucessão textual entre informações, o que pode incentivar o uso do e. Na argumentação, em meio às considerações tecidas pelos falantes, recebem destaque argumentos que levam a conclusões e/ou causas que levam a conseqüências, o que pode favorecer o daí, que escorreu para a seqüenciação via o uso híbrido entre anáfora discursiva e introdução de efeito. A descrição, despida de caráter argumentativo ou de cronologia factual, é caracterizada pela exposição das peculiaridades de certo elemento, com o predomínio da seqüenciação discursiva de informações, um prato cheio para o e, que, ao longo da história, tem obtido sucesso como interligador de partes do discurso, sem disparar a busca por nuanças mais específicas. Pela mesma razão, o e pode estar ligado à argumentação, que também envolve, além da introdução de efeito, a seqüenciação textual de informações. Sintetizemos as hipóteses. Pelo lado da marcação, a narrativa, que defini como menos complexa, deve privilegiar os seqüenciadores menos marcados, e e aí, ao passo que a argumentação, mais complexa, deve favorecer as formas mais marcadas, daí e então. Pelo lado da persistência, a narrativa deve assediar aí e então e a argumentação deve exercer fascínio sobre e e daí. Façam suas apostas... 3.1.2.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 2: Influência dos tipos de discurso sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

TIPOS DISC. Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Narrativa 728/2.207 33 0,45 612/2.207 28 0,62 692/2.207 31 0,52 175/2.207 08 0,41 Procedimentos 106/290 37 0,40 67/290 23 0,55 86/290 30 0,62 31/290 11 0,49 Desc. de vida 553/1.069 52 0,56 179/1.069 17 0,45 61/1.069 06 0,50 276/1.069 26 0,59 Descrição 77/124 62 0,64 15/124 12 0,40 2/124 10 0,34 20/124 16 0,52 Argumentação 326/610 53 0,59 53/610 09 0,29 39/610 06 0,42 192/610 31 0,60 TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16

Input: .43 Sig: .002 Log-likelihood: -2179.259

Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .005 Log-likelihood: -1284.763

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

4º selecionado 2º selecionado 4º selecionado 4º selecionado

E é bastante propenso a ocorrer em descrições (com freqüência de 62% e peso relativo de 0,64), argumentações (53% e 0,59) e descrições de vida (52% e 0,59). Como os discursos mais marcados apresentam os pesos relativos mais favoráveis para o uso desse conector menos marcado, temos aqui uma partida na qual a persistência se saiu vitoriosa. Provavelmente, a descrição e a argumentação atraem o e por apresentarem um traço costumeiramente exibido pela forma e relacionado aos primórdios de sua evolução histórica: a junção entre informações, deixando emergir a seqüenciação textual. E a descrição de vida é caracterizada pela seqüenciação temporal ou pela seqüenciação textual de eventos durativos. Talvez, nesse caso, o e seja chamado em especial para sinalizar os trechos de seqüenciação textual. Aí é condicionado positivamente pela narrativa (28% e 0,62) e, com um pouco menos intensidade, pelo discurso de procedimentos (23% e 0,55). Tais favorecimentos já tinham sido previstos, levando-se em conta tanto o papel da marcação quanto o da persistência. A narrativa e o

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discurso de procedimentos são os discursos menos complexos e os que têm maior vínculo com a sucessão temporal, uma nuança prototipicamente exibida pelo aí (cf. seção anterior) e que conserva resquícios da história do desenvolvimento dessa forma no âmbito gramatical, com passagens por funções-significações de natureza espácio-temporais. Aqui, temos um empate entre as forças motivadoras! Há nitidamente uma resistência à utilização do aí em argumentações, o que o configura como elemento de articulação pouco inclinado a aparecer em contextos mais complexos, em que predomina a exposição de pontos de vista. É muito interessante observar que os resultados obtidos por Silva & Macedo (1996:29) acerca da influência dos tipos de discurso sobre a utilização do aí na fala do Rio de Janeiro (RJ)183 assemelham-se aos resultados obtidos nesta tese, quanto à ordenação dos fatores, daquele que recebeu o peso relativo mais alto àquele que recebeu o peso mais baixo: narrativa � 0,80; receita (aqui, discurso de procedimentos) � 0,80; descrição de vida � 0,60; descrição � 0,50; argumentação � 0,30. As autoras consideraram ainda outros dois tipos de discurso: diálogo e citação, que alcançaram pesos relativos de 0,30 e 0,10, respectivamente.184 Para elas, “tudo leva a crer que aí conecte preferencialmente fatos que são caracterizados por ações (receitas e narrativas) do que idéias (argumentação).” Daí destaca-se no discurso de procedimentos (30% e 0,62) e, mais levemente, em termos de pesos relativos, na narrativa (31% e 0,52). Aqui, nem marcação, nem persistência parecem contribuir com as explicações! Uma possibilidade é a de que o daí esteja exercendo, nos tipos de discurso menos marcados, as subfunções complexas relacionadas a ele na seção anterior (introdução de efeito e finalização). Então recebe um suave favorecimento por parte da descrição (16% e 0,52), e um favorecimento mais forte por parte da argumentação (31% e 0,60) e da descrição de vida (26% e 0,59). Em contraste, é ligeiramente inibido pela seqüenciação temporal, o que vai de encontro à hipótese pautada no princípio de persistência. Por conseguinte, essa partida é vencida pela marcação: (i) os contextos mais complexos exercem fascínio sobre o articulador mais complexo; (ii) os contextos que apresentam propriedades similares às fontes temporais do conector em causa tendem a rechaçá-lo. Podemos levantar mais uma vez a hipótese de que o então sofreu abstração e/ou generalização crescentes, afastando-se de seus usos temporais iniciais, de base mais concreta, e voltando-se para encargos mais genéricos (como o esperado para o e) ou mais abstratos/complexos (como o esperado para o daí). Dessa ampliação funcional teriam resultado seu fraco condicionamento nos tipos de discurso ligados à seqüenciação temporal, e seu forte condicionamento naqueles ligados à seqüenciação textual e à introdução de efeito. Veremos... Vejamos, no quadro a seguir, as relações de marcação entre os conectores relativizadas a cada tipo de discurso (em cada coluna, o primeiro conector é o menos marcado na expressão do tipo de discurso em causa, e o último é o mais marcado):

183 Silva & Macedo utilizaram dados provenientes da “Amostra Censo”. 184 Não controlei diálogo e citação por ter encontrado neles pouca recorrência de conectores seqüenciadores.

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Quadro 27: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos tipos de discurso

Narrativa Procedimentos Desc. de vida Descrição Argumentação aí daí então e então daí aí e então e e então daí aí daí

então e aí daí aí

3.1.3 NÍVEIS DE ARTICULAÇÃO DISCURSIVA 3.1.3.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES No discurso, o fluxo de informações é organizado em tópicos. Cada tópico representa, grosso modo, um assunto sobre o qual se fala. Segundo Jubran & Urbano (1993:361), os tópicos se manifestam “(...) mediante enunciados formulados pelos interlocutores a respeito de um conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem”. Suas características principais são a centração e a organicidade. A primeira envolve os seguintes traços:

“a) concernência: relação de interdependência semântica entre os enunciados (...) pela qual se dá sua integração no referido conjunto de referentes explícitos ou inferíveis; b) relevância: proeminência desse conjunto, decorrente da posição focal assumida pelos seus elementos; c) pontualização: localização desse conjunto, tido como focal, em determinado momento da mensagem.”

A organicidade refere-se às relações de interdependência encontradas tanto no plano hierárquico, conforme as dependências de super-ordenação e sub-ordenação entre partes do discurso; quanto no plano seqüencial, de acordo com as articulações em termos de adjacências ou interposições na linha discursiva (Jubran & Urbano, 1993:362-63). As relações de interdependência que se verificam entre os nacos do discurso possibilitam o estabelecimento de níveis de hierarquização, cada um deles recoberto por um superior e constituído por um inferior. Ou seja, unidades hierárquicas do mesmo nível somam-se para constituir uma unidade de nível mais alto; várias dessas unidades, conjuntamente, formam outra unidade de nível superior e assim por diante. Koch (1992:72) propõe a denominação de segmentos tópicos para as unidades de nível mais baixo; cujo conjunto formará um subtópico; diversos subtópicos constituirão um quadro tópico; e, se houver um tópico superior que englobe vários tópicos, teremos um supertópico.185 Para verificar quais são os níveis de articulação discursiva preferenciais de e, aí, daí e então, fragmentei as entrevistas integrantes do corpus florianopolitano, com inspiração nos níveis hierárquicos elencados acima. Contudo, como cada nível de hierarquização é recoberto por um posterior e é constituído por outro inferior, recortes diferentes daqueles pelos quais optei poderiam ter sido feitos. Por exemplo, aquilo que considerei como tópico (quadro tópico, na denominação de Koch) poderia ser considerado subtópico, o que transformaria meus supertópicos em tópicos, podendo se identificar, assim, um nível hierárquico mais alto como supertópico. A divisão de um

185 A respeito da subdivisão do discurso em diferentes níveis de articulação, conferir também Görski (1994).

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texto em níveis de articulação depende do grau de refinamento pretendido em relação às unidades recortadas: há possibilidades de distinções maiores ou menores. Considero quatro níveis de articulação como pertinentes ao domínio da seqüenciação retroativo-propulsora. Embora todas as unidades da seqüenciação sejam utilizadas nos diferentes níveis de articulação e subfunções supramencionados, apresento apenas um exemplo de cada por uma questão de espaço:

� Tópico: O conector estabelece uma interligação entre um tópico e outro, isto é, entre um assunto e outro. É o nível mais alto de articulação aqui levado em conta, caracterizado por maior ruptura entre as informações: o falante muda o foco de um “conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes entre si” (Jubran & Urbano, 1993:361) para um novo conjunto do mesmo tipo, este introduzido pelo conector.

(6) Quando eu ia no banheiro, ele batia na porta: “Estás entalada, estás entalada?” Ah, mas isso era sinônimo de-

de- abrir a porta e voar em cima. É porque é sempre assim. E à noite- à noite, antes de dormir, tinha a hora do chá. Isso tudo na casa da minha avó, né? que- durante as férias, e quando não eram férias, cada um na sua casa e deu pra bola, né? Mas tinha a hora do chá, à noite, oito e meia da noite tinha que tomar um chá com torrada. (JQ/FLP01:1340)

� Subtópico: O conector interliga dois subtópicos, partes integrantes de um tópico maior.

(7) Quer dizer, é um investimento caro e tem que haver a participação de todos, principalmente daqueles que podem pagar. E se o cidadão pode comprar um apartamento (hes) que vale, sei lá, vinte milhões de cruzeiros ou mais, trinta, sei lá, quarenta milhões de cruzeiros, porque que ele não pode ajudar a pagar a rede de esgoto (inint), que é para o bem dele, da família e da cidade em que ele reside, hã? Então eu acho que o esgoto sanitário é um dos problemas sérios. E outras- outros problemas que- aparentemente simples, que a cidade está convivendo e deixando (hes) de desenvolver melhor. Como por exemplo a abertura da- da- do prolongamento da Avenida Hercílio Luz, pra ligar a Avenida Hercílio Luz ao aterro da Baía Sul, Avenida Gustavo Richard... (AC/FLP21:823)

� Segmento tópico: O conector interliga dois segmentos tópicos, integrantes de um subtópico ou tópico maior.

(8) Trabalhava na lanchonete, né? Um ano eu trabalhei. Daí eu fui pra rua, peguei quatro meses de seguro-

desemprego. (JR/FLP02J:1638)

� Segmento oracional: O conector interliga segmentos tópicos cuja inter-relação revela fortes elos de integração entre as informações.

(9) Nós somos de menor, daí nossa mãe vai com nós pra assinar, né? (JR/FLP02J:1784)186

186 A seqüenciação atua ainda no nível inter-turnos, em que é estabelecida a partir das palavras do interlocutor, colaborando na organização das trocas entre os participantes da conversação e na manutenção ou tomada de turnos. O âmbito inter-turno entrecruza-se com os demais níveis de articulação, pois pode haver conexões entre segmentos oracionais (se as informações estiverem bem amarradas), segmentos tópicos, subtópicos e tópicos entre um turno de fala e outro. Mapeei apenas cinco casos de seqüenciação inter-turno na fala dos informantes, sendo que os demais casos acontecem na fala dos entrevistadores. A pouca ocorrência de seqüenciação inter-turno na fala dos informantes pode ser atribuída à natureza do corpus selecionado para a análise, no qual se encontram poucos diálogos, pois o informante detém o turno na maior parte do tempo. Como não considero a fala do entrevistador, computei apenas dados dos informantes, todos referentes à articulação de segmentos tópicos. Vejamos um exemplo:

E: Ele conhecia muito bem aquela curva, né? F: E não era uma curva tão perigosa assim.

E: É, realmente. É. (VI/FLP10J:1235)

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A opção por desmembrar um nível de articulação oracional deve-se ao fato de certos segmentos tópicos interligados constituírem uma porção lingüística mais amarrada na torrente discursiva (cf. (9)), diferentemente de segmentos tópicos mais amplos (cf. (8)). Os contextos em que há pausa ou elementos intervenientes coincidindo com o ponto em que a relação de seqüenciação se manifesta foram considerados como exibindo interligação entre segmentos tópicos, pois o fluxo discursivo foi quebrado. Apenas os casos em que este não é rompido estão agrupados como “segmento oracional”.187 Tomemos alguns exemplos. Em (10), o primeiro e está num contexto de continuidade ininterrupta da seqüência discursiva, evidenciando o caráter inter-oracional das porções conectadas, ao passo que a informação introduzida pelo segundo e surge após uma pausa e uma indicação de estímulo por parte do entrevistador, o que a faz desvalar para o plano dos segmentos tópicos mais amplos. Em (11), a trama entre os enunciados não exibe nenhum tipo de rompimento, o que representa a manifestação da articulação entre segmentos oracionais. Nos demais exemplares, temos a relação entre segmentos tópicos: (12) e (13) possuem material interveniente entre as informações interligadas (tá? e né?, respectivamente) e, em (14), há uma pausa de cerca de sete segundos entre as informações.

(10) O menino terminou o segundo grau e tentou duas vezes o vestibular. (est) E a menina está na sexta série primária. (PE/FLP02:47)

(11) Eles sentiram que eu não ia deixar mais a filha deles também, aí começaram a dar mais liberdade. (NL/FLP04:729)

(12) Quando começou a estourar a cultura, eu- eu (hes) imediatamente eu tirei, tá? e passei pro outro frasco especial pra fazer o antibiograma. (MU/FLP23:1238)

(13) Tiro o pó da sala, é, limpo o meu quarto, né? e lavo a louça. (MR/FLP10C:8) (14) É, tem dois pequenininhos. Um é da minha tia (pausa) e um é da minha irmã, né? Têm o mesmo ano, três anos.

(JR/FLP02J:1090) Se a análise tivesse sido feita apenas sobre material transcrito, sem a audição das entrevistas, possivelmente as freqüências relativas a cada plano de articulação seriam distintas das que obtive, pois os casos de seqüenciação envolvendo rompimento da cadeia informativa que não fossem sinalizados pelos transcritores seriam perdidos.188 Da mesma forma, casos de forte amarramento entoacional poderiam não ser percebidos, devido à tendência de se colocar uma vírgula antes dos usos de aí, daí e então seqüenciadores e não do e (cf. (9), (10) e (11)), mesmo quando os primeiros interligam informações dispostas num bloco único. O que justifica a distinção entre quatro estratos de articulação passíveis de evidenciar a relação de seqüenciação retroativo-propulsora? Os níveis tópico, subtópico, segmento tópico e segmento oracional são unidades de uso, planos de tessitura entre as partes do discurso identificáveis e recorrentes na organização linear da cadeia de fala dos vários informantes florianopolitanos.

187 Tal distinção entre segmentos tópicos menos e mais amarrados (denominados acima de segmentos tópicos e segmentos oracionais, respectivamente) mostrou-se bastante significativa para a distribuição dos seqüenciadores (cf. resultados na seção 3.1.3.2). 188 As entrevistas do Projeto VARSUL trazem alguma marcação referente a pausas, mas nem sempre sinais como ponto ou vírgula correspondem a descontinuidades realmente ocorridas no fluxo da fala.

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Todavia, quaisquer níveis de articulação que se proponha diferenciar apresentarão relações fluidas e contínuas, impossibilitando distinções rígidas. Por exemplo, pode haver dúvida na delimitação de um segmento como oracional ou tópico e de partes mais amplas como subtópicos ou tópicos. Em (15), temos um então introdutor de efeito interligando dois segmentos oracionais entre os quais não temos certeza de que o informante deixou uma pausa curta. Em (16), a informação introduzida pelo e representa um novo tópico ou tece a continuidade do assunto anterior, talvez apontando para o início de um subtópico?

(15) Seu Dalro antigamente era o dono do Hospital de Caridade, então ele que mandava naquilo tudo ali. (ED/FLP18:813)

(16) Não sei nem porque que eu contei isso. Não sei, porque fosse falar da família, acabei lembrando disso. É, mas a minha família é muito engraçada, mas é uma família legal. É um pessoal legal. Seus problemas, sempre assim, mas é uma família bem legal. E da comida- da comida, bom, eu já falei, né? Que não sou muito chegada nesse negócio de- de- de comida, assim, né? Aliás (inint) a minha mãe cozinha muito bem. A minha tia é um raio na cozinha, um raio. Quando ela casou, ela não sabia nem fritar um ovo. (JQ/FLP01:922)

O fato de a seqüenciação aparecer com o mesmo papel - seu movimento anafórico-catafórico típico - em quaisquer dos níveis de articulação delimitados mostra não existir uma diversificação funcional entre esses planos de interligação discursiva suficiente para que se postule uma separação nítida entre a articulação de tópicos, subtópicos, segmentos tópicos e segmentos oracionais. Lembremos ainda que a visão de gramática adotada aqui permite que se considere conjuntamente todos os níveis em que a articulação discursiva é tramada, desde o mais integrado até a mudança de tópico.189 Todos esses estratos têm seu uso motivado pelos mesmos princípios cognitivos e comunicativos e apresentam propriedades rotinizadas, advindas da gramaticalização de usos recorrentes no discurso, e são igualmente sujeitos às inovações advindas do uso. Distribuir-se-iam os conectores de modo semelhante pelos níveis de articulação ou haveria tendências de uso de certos conectores em certos níveis de articulação? Neste último caso, o que estaria motivando as distribuições diferenciadas? Podemos relacionar os níveis de articulação à questão da coerência discursiva. Segundo Givón (1995:343), enquanto propriedade observável no texto, a coerência pode ser definida como continuidade ou recorrência de algum(ns) elemento(s) sobre um determinado espaço textual. Dentre tais elementos, seis são apontados pelo autor como os melhores indícios para a avaliação da coerência, por serem de natureza mais concreta e, por isso, mais facilmente mensuráveis. São eles: referência, temporalidade, aspectualidade, modalidade/modo, localização e ação/script. Esses sub-componentes da coerência podem se estender seja localmente, entre segmentos adjacentes, seja globalmente, ao longo de estruturas textuais maiores (Givón, 1993:287). Os níveis de articulação discursiva – entre tópicos, subtópicos, segmentos tópicos e segmentos oracionais - podem ser considerados diferentes níveis de coerência, da mais local, com maior continuidade referencial, temporal, etc, cujo grau máximo ocorre na articulação inter-oracional, à coerência mais global, com maior descontinuidade entre seus sub-componentes, cujo grau máximo ocorre na articulação inter-tópica. 189 A unidade discursiva de menor escopo interligada pelos quatro seqüenciadores é o segmento oracional. E ainda interliga sintagmas diversos, tarefa que não é partilhada com os demais. Nesse âmbito, parece haver pouca variação, sendo o e responsável pela maioria esmagadora dos casos. Apenas uma outra forma também se atreve a marcar a adição entre termos, o mais. Embora não tenha encontrado nenhum dado do mais adicionando sintagmas no corpus investigado, ouvi alguns em uma conversa com uma moradora do interior de Florianópolis, em junho de 2002. Transcrevo aqui um deles: Veio aqui aquele dia tua mãe mais tua irmã.

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A definição de coerência enquanto propriedade observável no texto é de natureza heurístico-metodológica. De acordo com Givón (1995:343), a coerência também pode ser definida, do ponto de vista cognitivo, como um processo que se dá na mente de quem produz e compreende textos. Trata-se, portanto, de um fenômeno de face dupla: pode ser abordado do ponto de vista de seus reflexos mensuráveis no texto, como a (des)continuidade referencial, temporal, aspectual, etc, e do ponto de vista dos processos mentais envolvidos em sua produção. A coerência no texto, isto é, suas marcas e pistas expressas materialmente, é reflexo de sua contraparte cognitiva, dos processos mentais responsáveis pela organização coerente do texto. O tipo de articulação que revela coerência máxima é representado pelas tautologias, como em João veio para casa, João veio para casa. A segunda oração é maximamente ligada, e o texto maximamente coerente, mas também maximamente redundante. O tipo de articulação que revela incoerência máxima envolve a ausência de elementos recorrentes, como em “João tinha comemorado o Natal, a vaca foi transferida para a outra fazenda”. Em posições intermediárias a esses dois extremos, situam-se os textos mais coerentes e interpretáveis: movendo-se por orações adjacentes, encontram-se elementos recorrentes e não recorrentes. Quanto mais conexões interligadas um trecho discursivo apresenta, mais acessível mentalmente ele é, e, assim, mais coerente ele é. Nessa perspectiva, a articulação entre segmentos oracionais pode ser considerada como reflexo de processamento mental menos complexo. Isso se motiva pelo fato de tal articulação ser ligada à coerência local, que presumivelmente envolve maior facilidade de processamento, uma vez que é caracterizada por maior continuidade dos sub-componentes da coerência: referencialidade, temporalidade, aspectualidade, etc. A continuidade desses elementos resulta em um maior amarramento entre as informações conectadas, o que permite um processamento mais automático das mesmas, tanto do ponto de vista da elaboração quanto da compreensão. Diferentemente, os níveis mais globais de coerência são reflexos de processamentos mais complexos, cujo grau máximo é verificado na articulação entre tópicos, em que ocorre mudança de um assunto para outro, recebendo evidência a grande descontinuidade entre as informações dadas num dado tópico e no que o segue. Quanto maior a ruptura entre as informações na fala, maior a complexidade cognitiva necessária para processá-las e interpretá-las, o que leva à necessidade de maior marcação lingüística. Dessa guisa, então, o conector considerado o mais marcado, deve ser bastante propenso a exibir a articulação entre tópicos, caracterizada por grande descontinuidade entre informações anteriores e posteriores. Já e, o conector menos marcado, deve predominar na articulação entre segmentos oracionais, nível que demanda processamento menos complexo. O quadro a seguir mostra a hierarquização dos níveis de articulação quanto à marcação:

Quadro 28: Distribuição dos níveis de articulação quanto à marcação

segmento oracional segmento tópico subtópico tópico - marcado + marcado

A freqüência de cada nível de articulação no corpus também é uma indicação do grau de marcação: embora o menos marcado não seja o primeiro em ordem de freqüência, é o segundo

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(com 1.070 dados), sendo suplantado apenas pelos segmentos tópicos (3.068). Os menos freqüentes, subtópico (113 dados) e tópico (49 dados), são os mais marcados. Provavelmente, a freqüência dos segmentos tópicos é a mais elevada pelo fato de a categoria abarcar segmentos de várias extensões, desde os mais próximos ao nível inter-oracional, aos mais próximos à interligação de subtópicos. As demais categorias recobrem subdivisões menos amplas.190 Como o grupo de fatores níveis de articulação não envolve nuanças de função-significação, o princípio da persistência não deve estar subjacente às influências exercidas sobre a escolha entre os seqüenciadores. Por conseguinte, não proponho hipóteses com base em tal princípio. 3.1.3.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 3: Influência dos níveis de articulação sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

NÍVEIS Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Seg. oracional 774/1.070 72 0,82 130/1.070 12 0,35 102/1.070 10 0,22 64/1.070 06 0,29 Seg. tópico 954/3.068 31 0,40 773/3.068 25 0,56 769/3.068 25 0,60 572/3.068 19 0,57 Subtópico 45/113 40 0,34 17/113 15 0,49 17/113 15 0,63 34/113 30 0,66 Tópico 17/49 35 0,25 06/49 12 0,50 02/49 04 0,70 24/49 49 0,73 TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16

Input: .43 Sig: .002 Log-likelihood: -2179.259

Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .005 Log-likelihood: -1284.763

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

1º selecionado 4º selecionado 2º selecionado 3º selecionado

Confirmando a hipótese inicial, o nível de articulação dos segmentos oracionais funciona como um imã para o e (com freqüência de 72% e peso relativo de 0,82). Em oposição, os níveis de articulação mais globais repelem o conector em questão. O nível dos segmentos tópicos é o que mais exerce atração sobre o aí. Ou seja, um nível de conexão intermediário para menos quanto à marcação relaciona-se a um conector também intermediário para menos. Salientam-se como condicionadores do daí os três níveis de articulação mais amplos, com pesos relativos bastante altos (de 0,60 a 0,70). Os mesmos níveis inclinam-se positivamente em direção ao então, também com pesos relativos altos (de 0,57 a 0,73). Note-se que o maior favorecedor do então é o nível inter-tópico, o que vai ao encontro da hipótese de ser esta conjunção, a mais marcada, propensa a ocorrer no nível de articulação mais global, caracterizado por grande ruptura entre informações anteriores e posteriores. Daí, que havia sido caracterizado como intermediário para mais quanto à marcação (aproximando-se do então quanto ao grau de complexidade), é favorecido pelos mesmos níveis. Os resultados refletem, portanto, a distribuição inicial (cf. o quadro 19), ressaltando o papel do princípio da marcação sobre as preferências de uso dos articuladores.

Vejamos, no quadro a seguir, as relações de marcação entre os conectores relativizadas a cada nível de articulação (em cada coluna, o primeiro conector é o menos marcado na expressão do nível de articulação em questão, e o último é o mais marcado):

190 A opção por agrupar segmentos de extensões variadas se deve ao fato de que é difícil estipular critérios para recortes na faixa de usos situada entre o nível dos segmentos oracionais e o dos subtópicos.

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Quadro 29: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos níveis de articulação Seg. oracional Seg. Tópico Subtópico Tópico

e daí então então aí então daí daí

então aí aí aí daí e e e

3.1.4 GRAUS DE CONEXÃO 3.1.4.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES Conforme já apontei na apresentação do grupo de fatores níveis de articulação discursiva, é possível medir a coerência no texto observando-se a continuidade ou recorrência de certos elementos, entre os quais destacam-se a referencialidade, o tempo, o aspecto, a modalidade/modo, a localização e a ação/script. O grupo de fatores graus de conexão representa um controle mais local desses elementos do que o grupo níveis de articulação, pois implica, basicamente, relações de (des)continuidades entre orações contíguas ou próximas, avaliando com maior detalhe as continuidades e descontinuidades entre a informação introduzida pelo conector e informações anteriores quanto ao referente do sujeito, tempo, aspecto, modalidade, localização e ação. Analiso essas relações de (des)continuidades através de um critério escalar, a conexão do discurso, estabelecido por Paredes da Silva (1991), ao estudar a expressão variável do sujeito em 1ª e 3ª pessoas na língua escrita informal.191 A conexão do discurso como estipulada pela autora compreende seis graus, atribuídos ao sujeito de cada oração analisada, conforme sua posição nessa escala, “(...) levando em conta aspectos do contexto discursivo compreendido entre a ocorrência de um referente como sujeito e sua menção anterior (...)”. Dentre esses aspectos, destacam-se: tempo, aspecto, modo; possíveis elementos interferentes, como orações impessoais; mudança de plano ou mesmo de tópico discursivo. Observem-se a distinção entre os seis graus, com exemplos do estudo de Paredes da Silva:

� Grau 1: Representa o nível mais alto de conexão: o referente do sujeito é o mesmo da oração anterior, com manutenção do mesmo tópico/assunto, do mesmo tempo, aspecto e modo verbal, etc.

(17) “Bom, (0)estudei alemão e (0)COMECEI a copiar o nosso trabalho.” (p. 27)192

� Grau 2: Evidencia uma pequena queda na conexão: o referente do sujeito ainda é o mesmo, assim como o tópico, mas há mudança de tempo, aspecto e/ou modo verbais, o que se relaciona à mudança de plano discursivo, com passagem de figura à fundo.

191 O corpus utilizado por Paredes da Silva (1991) foi constituído por cartas pessoais de jovens e adultos cariocas de ambos os sexos. 192 O sujeito e o verbo (ou apenas o verbo, no caso de sujeito elíptico) sob enfoque estão destacados em caixa alta. A(s) menção(ões) anterior(es) (em forma de nomes, pronomes, verbos com sujeito elíptico, etc) ao referente do sujeito em causa aparecem em itálico. Os materiais intervenientes estão sublinhados. Tais destaques foram acrescentados aos exemplos por mim.

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(18) “Como meu primeiro “trabalho” não (0)gostei não. Quase (0)PERCO a matrícula na faculdade, quase perco o namorado, quase perco os amigos.” (p.28)

� Grau 3: Nos dois graus anteriores, havia a exigência de mesmo referente do sujeito, elo que aqui se perde, enfraquecendo-se um pouco mais a conexão. Entre o sujeito e sua menção prévia, ocorrem orações impessoais de curta extensão, que não chegam a representar uma interrupção na seqüência do discurso, cujo tópico permanece o mesmo. O sujeito conecta-se com uma menção mais distante.

(19) “Hoje vou dormir cedo, pois (0)fiquei estudando ontem até às 3:30 AM. Ainda são 11 hs. (0)VOU FICANDO por

aqui com meu coração cheio de “amor platônico” e “carinho armandônico”. (p. 29)

� Grau 4: O referente do sujeito teve sua última menção em outra função sintática, passando de um papel secundário (geralmente na forma de pronome oblíquo ou possessivo) para o central na oração em causa.

(20) “Desculpe-me pela minha reclamação infundada. EU ESTAVA BRINCANDO.” (p. 30)

� Grau 5: A conexão é ainda mais afetada por ter entrado em cena outro participante (qualquer ser animado) na função de sujeito, entre o sujeito em questão e sua última menção no texto, representando um interferente em potencial. A volta do sujeito é compreendida como uma retomada.

(21) “Embora nem sempre consiga, sempre (0)tento alegrar pessoas amigas minhas e principalmente uma amiga tão

especial. Em dezembro a menina da Embratel (que sai de férias agora) voltará a seu cargo e então (0)TENTAREI FAZER novas chamadas para você.” (p. 31)

� Grau 6: O nível de conexão que evidencia a maior descontinuidade entre as informações, com mudança do tópico discursivo, do assunto de que se trata.

(22) “Ah! O café que eu trouxe já acabou, mas o B. gosta muito, se vocês puderem, mandem mais ½ quilo.

Sabem, ontem o B. me deu um pôster que ele fez no computador do hospital onde ele trabalha.” (p. 32) 193 A adaptação dos graus de conexão, inicialmente aplicados ao estudo da expressão variável do sujeito, para a avaliação das (des)continuidades entre as informações interligadas através de um conector seqüenciador exigiu algumas modificações:

� Como o elemento mais comum de conexão em qualquer discurso é a referencialidade do sujeito (Givón, 1995:358), ele continua sendo peça chave na medida de graus de conexão proposta aqui.194 No entanto, o alvo da análise passa a ser a seqüenciação, entendendo-se que a manutenção ou não de elementos do discurso anterior e a introdução ou não de novos elementos são capazes de, ao afetar a conexão do discurso, influir na escolha de um ou outro dos conectores sob pesquisa.

Cumpre lembrar que os conectores seqüenciadores marcam a introdução não somente de orações, mas também de partes maiores do discurso. Para realizar o controle dos graus de maior e

193 No exemplo, a mudança de tópico é indicada pelo símbolo . 194 Segundo Laury (1997:169), a pressão em direção à continuidade referencial, em que o sujeito de uma oração é provável de ter o mesmo referente do sujeito da oração anterior, é tão forte que, em várias línguas, há morfemas especiais para marcar a mudança de referência, os quais entram em ação quando o sujeito não é o mesmo da oração precedente.

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menor interrupção da continuidade entre as porções discursivas de maior extensão, considero a primeira oração da porção introduzida pelo conector, oração essa portando um verbo finito. Tal critério parece ter sido, como se verificará pelos resultados, suficiente para o mapeamento de diferentes níveis de manutenção e quebras entre as informações, os quais influem na opção por seqüenciadores distintos.195

� O grau 3, referente à presença de orações impessoais, foi desmembrado em dois: (i) existência

de uma oração impessoal ou outros materiais intervenientes de pouca extensão entre a oração interligada pelo conector e uma oração prévia, na qual acontece a última menção ao sujeito da oração introduzida pelo conector; (ii) existência de mais de uma oração impessoal entre tais orações;

� Foi acrescentado o seguinte grau de conexão: o conector introduz uma oração impessoal ou uma oração

com sujeito inanimado. A introdução de uma oração impessoal ou com sujeito inanimado pode representar uma pequena quebra em relação à seqüência discursiva anterior, se esta não for igualmente impessoal ou tiver um sujeito inanimado, pois será configurada uma mudança de plano discursivo (cf. (26)). Quando o conector interliga duas orações impessoais ou duas orações cujo sujeito é inanimado, as (des)continuidades são avaliadas apenas em relação à manutenção ou não de tempo, aspecto e modo; à presença de material interveniente; à mudança de tópico. Neste caso, desconsidera-se o fato de ter sido introduzida uma oração impessoal ou com sujeito inanimado, já que isso não representa nenhuma quebra, pois a oração anterior apresenta as mesmas características (cf. duas ocorrências em (24), de grau 1).196

� Foi adicionado ainda outro grau de conexão: o referente do sujeito da oração introduzida pelo conector é um

participante novo, provavelmente inferível. Nove graus resultaram dessas modificações:

� Grau 1: Representa o nível mais alto de conexão: o referente do sujeito da oração introduzida pelo conector é o mesmo da oração anterior, com manutenção do mesmo tópico/assunto, do mesmo tempo e aspecto verbais, etc (cf. (35)). Também é tida como pertinente ao grau 1 a relação de continuidade entre duas orações impessoais ou com sujeito inanimado que não manifesta nenhuma das quebras de conexão estipuladas pelos demais graus (cf. (36)).

(23) O meu avô quando sabia dos possuídos, ora, né? Tirava- acabava com a história na hora, né? Tirava a cinta e

DESPOSSUÍA na hora: “Faz o favor de despossuir.” (JQ/FLP01:846)197 (24) Daí a minha cama e a dela é um ele, a dela fica aqui, daí aqui tem um balcãozinho pros porta-retratos e aqui FICA a

minha cama198 e a janela FICA em cima da minha cama. (MR/FLP10C:12-13)

195 O mesmo critério é utilizado para a análise do grupo de fatores traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector. 196 No estudo de Paredes da Silva, foi desnecessário postular um grau de conexão referente à introdução de orações impessoais, pois o objeto de estudo são os sujeitos em 1ª e 3ª pessoas, os quais, obviamente, não aparecem em orações impessoais. Já os seqüenciadores introduzem nacos discursivos que apresentam ou não sujeito, cabendo observar continuidades e descontinuidades também neste plano. 197 Nos exemplos de (23) a (34), o dado relevante é a oração com sublinhado duplo, introduzida pelo conector que está em negrito. O sujeito e o verbo (ou apenas o verbo, no caso de sujeito elíptico) da oração em análise estão destacados em caixa alta. A(s) menção(ões) anterior(es) (em forma de nomes, pronomes, verbos com sujeito elíptico, etc) ao referente do sujeito dessa oração aparece(m) em itálico. Os materiais intervenientes estão em itálico e entre colchetes. Tais destaques foram acrescentados aos exemplos por mim.

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� Grau 2: Evidencia uma leve queda na conexão: o referente do sujeito da oração introduzida pelo conector ainda é o mesmo, assim como o tópico, mas há mudança de tempo, aspecto e/ou modo verbais.

(25) Nas horas vagas eu pegava as crianças aqui do bairro, três, quatro, cinco crianças e trazia pra minha casa. Então

sempre TIVE aquela noção, aquela vontade de ser professor. (PA/FLP12:1201)

� Grau 3: O conector introduz uma oração impessoal ou uma oração de sujeito inanimado.

(26) E eu e a Shirley, a gente se perdeu lá, porque a gente andava sempre junta, né? Então TÊM duas descidas e a gente não sabia qual a descida que é pra gente sair, e eles não dão informação, tu sabes? (AT/FLP09:815)

� Grau 4: Entre o sujeito da oração introduzida pelo conector e sua menção prévia, ocorre uma oração impessoal, uma oração com sujeito inanimado ou outro material interveniente de curta extensão. O sujeito conecta-se com uma menção mais distante.

(27) E eu e a Shirley, a gente se perdeu lá, porque a gente andava sempre junta, né? [Então têm duas descidas ] e A GENTE

não SABIA qual a descida que é pra gente sair, e eles não dão informação, tu sabes? (AT/FLP09:815)

� Grau 5: Entre o sujeito da oração introduzida pelo conector e sua menção prévia, ocorrem duas ou mais orações impessoais ou com sujeito inanimado. O sujeito conecta-se com uma menção ainda mais distante.

(28) Lá eu assim consigo ler os livros bem quieta [porque tem barulho dos passarinhas e tem bastante árvore lá em casa] e EU

GOSTO de escutar o barulho dos passarinhos, lá no quarto dela (...)(KA/FLP08C:17)

� Grau 6: O referente do sujeito da oração introduzida pelo conector teve sua última menção em outra função sintática, passando de um papel secundário (geralmente na forma de pronome oblíquo ou possessivo) para o central na oração em causa.

(29) Só que tem que tomar cuidado por causa que ela é um gato de carne, né? daí quando vai pra rua os cachorros

querem comer ela, né? daí a minha mãe tem cachorro, e ELE AVANÇA nesse gato, nessa gata, quando o gato fica- vai pra casa os cachorros só ficam olhando, né? (KA/FLP08C:127)

� Grau 7: Entra em cena, entre o sujeito da oração introduzida pelo conector e sua última menção no texto, outro participante na função de sujeito: qualquer ser animado já mencionado no discurso anterior, representando um interferente em potencial. A volta do sujeito é compreendida como retomada.

(30) Um mês dava, um mês não dava, aí eu ia lá no serviço dele e- e brigava com ele. Ele trabalhava aqui na Macarronada

Italiana. Aí EU FUI lá um dia, briguei com ele de manhã. (RO/FLP 03, L 844)199

� Grau 8: O referente do sujeito da oração introduzida pelo conector é um participante novo (qualquer ser animado ainda não mencionado), provavelmente inferível.

(31) Então ele pegava, me arrastava aqui desde o Morro da Mariquinha até o Grupo. Então eu chegava mais ou menos

lá oito e meia, nove horas da manhã. Aí ELA às vezes MANDAVA voltar, eu era expulso, mandava pra casa, porque eu nunca chegava no horário certo. (ED/FLP18:1105)

198 A oração e aqui fica a minha cama é a subseqüente de daí aqui tem um balcãozinho pros porta-retratos e a antecedente de e a janela fica em cima da minha cama. 199 O sujeito interferente aparece sublinhado e em itálico.

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� Grau 9: O nível de conexão que evidencia a maior descontinuidade entre as informações, com mudança do tópico discursivo.

(32) Há quem ache muito melhor esses bailes de hoje. Não sei. Por isso que eu digo: cada um tem a sua época. Uns-

(hes) futuramente (hes) as crianças de hoje vão achar que a época delas é que era boa. (hes) Então aqui, por exemplo, a Othon Gama D’Eça, isso aqui não existia, (hes) a Avenida Othon Gama D’Eça não- não existia. Isso aqui era uma chácara. (ZO/FLP24:1037)200

Ao aplicar os graus de conexão elencados acima sobre os dados de seqüenciação, constatei a possibilidade de existência de sobreposição, em uma mesma ocorrência, de dois ou mais graus. Observem-se alguns exemplos:

∗∗∗∗ O sujeito da oração introduzida pelo conector tem sua última menção em outra função sintática (grau 6), com mudança de tempo, aspecto e/ou modo (grau 2):

(33) Fiquei meio apavorada, aí eu fui nessa minha amiga que é a Ana, perguntei de sexo pra ela. Aí ELA ESTAVA

apavorada, não tem? Aí ela ficou- me aconselhou que eu tirasse. (SE/FLP20:1001)

∗∗∗∗ O sujeito da oração introduzida pelo conector tem sua última menção em outra função sintática (grau 6), com mudança de tempo, aspecto e/ou modo (grau 2) e presença de material interveniente curto (grau 4):

(34) Quando a outra já- ela- a outra, né?- o outro bichinho já- ela- ela já teve filhote. [Então tinha cada-] Daí ELE É bem

pequenininho, mas a minha mãe daí deu um pra ela, mas aí a Angelita disse que- a mãe- a mãe dela, né? disse que não queria mais pegar os bichinhos. (FR/FLP02C:10)

Por essa razão, decidi analisar todas as ocorrências da seqüenciação em relação a todos os graus de conexão, ao invés de atribuir apenas um deles a cada ocorrência. Para tanto, inicialmente correlacionei os graus a diferentes valores numéricos, consoante a menor ou maior quebra implicada por cada grau. A seguir, averigüei, para cada dado, qual ou quais graus eram manifestados. No final, somei o total de valores recebidos por cada dado, chegando à sua pontuação final. O quadro a seguir mostra o valor atribuído à manifestação de cada um dos graus de conexão listados acima:

200 No exemplo, a mudança de tópico é indicada pelo símbolo .

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Quadro 30: Atribuição de valores aos graus de conexão

GRAUS VALORES Grau 1 0,0 Grau 2 0,5 Grau 3 1,0 Grau 4 1,5 Grau 5 2,0 Grau 6 2,0 Grau 7 2,5 Grau 8 2,5 Grau 9 3,5

A proposta é que, quanto maior a sobreposição de graus, maior é a descontinuidade entre as informações conectadas pelo seqüenciador, o que se reflete na pontuação final atingida por cada dado. Tomemos alguns exemplos, ordenados segundo um crescendo de descontinuidades e, em decorrência, recebendo pontuação final cada vez mais elevada:

∗∗∗∗ O sujeito da oração introduzida pelo conector tem sua última menção em outra função sintática = 2,0 (cf. exemplo (29))

∗∗∗∗ O sujeito da oração introduzida pelo conector tem sua última menção em outra função sintática + há mudança de tempo, aspecto e/ou modo - 2,0 + 0,5 = 2,5 (cf. exemplo (33))

∗∗∗∗ O sujeito da oração introduzida pelo conector tem sua última menção em outra função sintática + há mudança de tempo, aspecto e/ou modo + há presença de material interveniente curto - 2,0 + 0,5 + 1,5 = 4 (cf. exemplo (34))

Nesse sistema de pontuação, os graus deixaram de estar diretamente vinculados a um tipo de (des)continuidade específica, abandonando-se a proposta inicial, em que tínhamos, por exemplo, as seguintes correspondências: grau 0 = sem descontinuidades; grau 1 = mudança de tempo, aspecto e/ou modo, etc. No controle realizado, os graus passaram a relacionar-se aos valores das pontuações finais obtidas, que variaram em uma escala de 0 (que, obviamente, continua representando a continuidade máxima) a 6,5 (descontinidade máxima, podendo envolver sobreposições do tipo: (i) mudança de assunto (3,5) + mudança de tempo, aspecto e/ou modo (0,5) + interferência de outro participante, já mencionado no discurso anterior (2,5) = 6,5; (ii) mudança de assunto (3,5) + mudança de tempo, aspecto e/ou modo (0,5) + presença de um novo participante na oração introduzida pelo conector (2,5) = 6,5; etc). Foram poucos os dados que receberam pontuação de 5 a 6,5. Como esses dados: (i) apresentaram distribuições similares em termos das conjunções mais e menos freqüentes, e (ii) são casos de grandes descontinuidades entre as porções discursivas conectadas, foram amalgamados como grau 5, passando a representar, todos juntos, o nível de maior quebra entre as informações interligadas por e, aí, daí e então. O resultado foi um total de onze graus, aos quais optei por nomear de acordo com os diferentes valores de pontuação final obtidos:

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Quadro 31: Graus definitivos e seus valores

GRAUS VALORES Grau 0 0,0 Grau 0,5 0,5 Grau 1 1,0 Grau 1,5 1,5 Grau 2 2,0 Grau 2,5 2,5 Grau 3 3,0 Grau 3,5 3,5 Grau 4 4,0 Grau 4,5 4,5 Grau 5 5,0 a 6,5

Assim como ocorre com os níveis de articulação discursiva (controlados como grupo de fatores condicionadores na seção 3.1.3), os graus de conexão relacionam-se ao processamento mental. Quanto menor a conexão, isto é, quanto maior a descontinuidade do referente do sujeito, tempo, aspecto, modo, etc, mais complexo o processamento e maior a necessidade de marcação lingüística. Dessa forma, contextos com graus de conexão baixos, cujo ápice é o grau 5, devem favorecer o então, o conector mais marcado. Distintamente, quanto maior a manutenção de elementos entre a oração introduzida pelo conector e o trecho precedente, mais fácil é o processamento. Por isso, contextos com graus altos, cujo ápice é o grau 0, devem favorecer o e, o conector menos marcado. Aí e daí devem ser condicionados favoravelmente por graus intermediários. As freqüências, no corpus, dos dados relativos aos diferentes graus de conexão também servem de indícios para a distribuição dos graus quanto à marcação, sintetizada no quadro 32. Os dados mais freqüentes são os que manifestam grau de conexão 0 (1.189 dados), os dados de graus de 0,5 a 3,0 têm freqüência intermediária (de 145 a 829 dados, dependendo do grau considerado) e os dados de graus de 3,5 a 5 são os menos recorrentes (de 22 a 79 dados).

Quadro 32: Distribuição dos graus de conexão quanto à marcação

0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 - marcado + marcado

Não se pode deixar de observar que os grupos de fatores níveis de articulação discursiva e graus de conexão avaliam fenômenos diferenciados, embora próximos, quais sejam, respectivamente; (i) os níveis de amarramento entre as informações, do mais local (entre segmentos oracionais) ao mais global (entre tópicos), e (ii) a manutenção ou não do referente do sujeito, tempo, aspecto e outros sub-componentes da coerência. Contudo, um dos níveis de articulação, o inter-tópico, sobrepõe-se a um dos graus de conexão da minha proposta inicial (a que atribuía a cada ocorrência apenas um grau), o grau 9 (cf. exemplo (32)), pois ambos referem-se à mudança do tópico discursivo. Em conseqüência, os dados relativos a esses fatores seriam os mesmos, não fosse a proposta posterior, em que se baseou a análise. Esta proposta é a que considera o sistema de contagem dos valores

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atribuídos aos diversos graus. Por conta de tal sistema, os dados pertinentes ao nível inter-tópico geralmente recebem pontuação maior do que a prevista para a manifestação da mudança de tópico isolada (isto é, 3,5, conforme o quadro 31). Isso se deve ao fato de que, quando ocorre a troca de um assunto pelo outro, diversas alterações também estão envolvidas (e são controladas pelos demais graus de articulação), como a mudança do referente do sujeito, de tempo, de aspecto, de modo, etc. Como os casos de correlação inter-tópica receberam, quanto aos graus de conexão que manifestam, valores diferenciados consoante as sobreposições de graus encontradas em cada um, os dados dos grupos de fatores em causa não são mais os mesmos: há dados de seqüenciação inter-tópica com graus maiores e menores (a partir do mínimo de 3,5 até o máximo de 6,5). A exemplo do grupo de fatores níveis de articulação discursiva, graus de conexão não envolve traços de função-significação. Assim, o princípio da persistência não deve estar subjacente às influências exercidas sobre a escolha entre os seqüenciadores e não serão propostas hipóteses com base em tal princípio. Vejamos se o princípio da marcação mostra suas garras mais uma vez... 3.1.4.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 4: Influência dos graus de conexão sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

GRAUS Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR 0 762/1.189 64 0,66 166/1.189 14 0,38 180/1.189 15 0,49 81/1.189 07 0,35 0,5 139/332 42 0,52 80/332 24 0,55 66/332 20 0,52 47/332 14 0,52 1 169/447 38 0,46 97/447 22 = 90/447 20 0,53 91/447 20 0,50 1,5 169/527 32 0,44 142/527 27 = 122/527 23 0,51 94/527 18 0,53 2 270/829 33 0,45 197/829 24 = 242/829 29 0,55 120/829 14 0,52 2,5 181/624 29 0,42 177/624 28 = 140/624 22 0,47 126/624 20 0,60 3 52/145 36 0,40 30/145 21 = 24/145 17 0,45 39/145 27 0,68 3,5 19/67 28 0,40 13/67 19 = 14/67 21 0,55 21/67 31 0,66 4 17/79 22 0,24 19/79 24 = 07/79 09 0,39 36/79 46 0,72 4,5 05/39 13 0,17 03/39 08 0,28 04/39 10 0,38 27/39 69 0,92 5 07/22 32 0,38 02/22 09 = 01/22 05 0,22 12/22 55 0,77

TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .134 Log-likelihood: -1283.882

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

5º selecionado 5º selecionado201 não selecionado 6º selecionado O grau de conexão que representa o maior amarramento entre as informações inter-ligadas, 0, está fortemente correlacionado ao aparecimento do e, que também é favorecido pelo grau que representa o segundo menor nível de descontinuidades, 0,5. Esse comportamento opõe-se ao dos demais graus, que se mostram com pesos relativos abaixo de 0,50. Aí é propenso a assinalar os graus de conexão intermediários, de 0,5 a 4, amalgamados como grau 0,5 (com peso relativo de 0,55), e é bastante desfavorecido pelo grau mais alto (0, com peso relativo de 0,38) e pelos graus mais baixos (4,5 e 5, amalgamados, com peso de 0,28). Daí predomina na esfera do grau 0 ao grau 3,5, destacando-se em especial como marca dos contextos de seqüenciação que manifestam os

201 Conforme já mencionado, a rodada mais relevante para o aí foi a que contou com amalgamações nos grupos de fatores graus de conexão e traços verbais, grupos que contam, portanto, com um menor número de fatores para o conector em questão.

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graus 2 e 3,5. Os graus mais baixos, de 2,5 a 5, dão primazia ao uso do então, que apresenta as maiores freqüências (de 20% a 69%, dependendo do grau) e recebe pesos relativos bastante altos em referência a esses graus (de 0,60 a 0,92). Foi, desse modo, confirmada a hipótese de que os resultados revelariam uma oposição entre e e então, relacionando o primeiro, menos marcado, aos graus de conexão mais altos, relativos à maior interligação entre as informações, e o segundo, mais marcado, aos graus de conexão mais baixos. Por sua vez, aí e daí, intermediários quanto à marcação, seriam associados a graus intermediários, o que também foi confirmado. O princípio da marcação está de garras afiadas no que diz respeito à divisão de tarefas no domínio da seqüenciação...

Vejamos, no quadro a seguir, as relações de marcação entre os conectores relativizadas a cada grau de conexão (em cada coluna, o primeiro conector é o menos marcado na expressão do grau de conexão em causa, e o último é o mais marcado):

Quadro 33: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos graus de conexão202 0 0,5 1 1,5 2 2,5 3 3,5 4 4,5 5 e aí daí então daí então então então então então então daí e/daí/então então daí então daí daí daí daí daí e aí e e e e e e e aí daí

então e 3.1.5 TRAÇOS SEMÂNTICO-PRAGMÁTICOS DO VERBO DA ORAÇÃO INTRODUZIDA PELO CONECTOR 3.1.5.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES Schlesinger (1995:181) organiza hierarquicamente os verbos de acordo com os traços semântico-pragmáticos que manifestam - em especial, o grau de atividade que indicam -, baseando-se na proposta de classificação feita por Quirk, Greenbaum, Leech & Startvik (1972), que distinguem sete tipos, também considerando o grau de atividade manifestado por cada um: atividade, momentâneo, evento transitório, processo, cognição e percepção inerte, relacional, sensação corporal. Schlesinger modifica tal classificação, subdividindo três das categorias, além de acrescentar mais uma:

verbos de atividade dão origem a verbos de atividade específica e a verbos de atividade difusa, que, ao contrário dos primeiros, não evocam uma imagem relativamente específica;

verbos de evento transitório também recebem uma subdivisão que, a exemplo dos verbos

supracitados, revela graduação e contínuo quanto ao traço atividade: (i) verbos de eventos transitórios intencionais, os quais ressaltam a relação entre um sujeito e um lugar, indicando se o sujeito permaneceu em certo lugar; (ii) verbos de eventos transitórios não intencionais, os quais se referem a ações não intencionais;

202 No quadro 33, o aí aparece vinculado somente aos graus 0; 0,5 e 4,5 porque os demais graus foram amalgamados (os graus de 0,5 a 4 são representados pelo grau 0,5 e os graus 4,5 e 5 pelo grau 4,5).

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verbos de cognição e percepção inerte desmembram-se em: (i) verbos de estímulo mental: o sujeito da

oração é o estímulo da experiência mental de outrem (João agrada as crianças, João assusta as crianças, João aborrece as crianças); (ii) verbos de experimentação mental: o sujeito da oração é que é o experienciador (João pensa, João odeia, João deseja).

a categoria instância, que abarca os verbos que indicam posição corporal estática, também é

incluída na escala de tipos verbais tramada de acordo com um crescendo dos traços de atividades.

A ordenação resultante destaca uma propriedade que distingue os tipos de verbos entre si – a atividade: as classes mais altas da lista são as referentes aos verbos cujo sujeito pode ser dito engajado em uma atividade, e as classes mais baixas são as de verbos que indicam pouca atividade. Assim, quanto mais alta a posição do verbo na escala, maior a atividade envolvida e, como contraparte, quanto mais baixo está situado o verbo, menor o grau de atividade que pode ser atribuído ao sujeito. Schlesinger aplicou sua hierarquia verbal em testes psicolingüísticos, obtendo fortes evidências acerca do caráter contínuo e difuso do traço de atividade manifestado pelos diferentes tipos de verbo: os julgamentos feitos pelos indivíduos testados não foram dicotômicos e sim baseados em proporções de aceitabilidade graduais. É essa hierarquia verbal que é aqui controlada como grupo de fatores, verificando-se a influência do traço semântico-pragmático do verbo da oração introduzida pelo conector sobre a opção por e, aí, daí e então. Estabeleci mais duas subdivisões nas classes propostas por Schlesinger e acrescentei ainda dois tipos de verbos, estes apresentando nulo o traço atividade:

distingo, dos verbos de atividade específica, os verbos dicendi, que precedem a citação ou discurso direto e são bastante recorrentes;

distingo, dos verbos de experimentação mental, com os quais poderiam ser confundidos, os

verbos de atenuação, como achar e pensar, que revelam um distanciamento por parte do falante em relação àquilo que diz ou uma suavização de sua opinião a respeito de certo tema (eu acho que isso é verdade, ao invés de isso é verdade, por exemplo). Tais verbos parecem envolver um grau ainda menor de atividade que os de experimentação mental, relacionando-se mais ao modo de dizer do que propriamente ao que é dito;

adicionei, no final da hierarquia, os verbos de existência e os verbos de estado, desprovidos

de traços de atividade.

O resultado final foi a seguinte escala com quinze traços verbais elencados de acordo com o critério de atividade decrescente:

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Quadro 34: Escala dos traços semântico-pragmáticos verbais203

1. Momentâneo � refere-se à atividade repentina, de curta duração:

saltar, chutar, bater, derrubar, golpear, quebrar (intencional) 2. Atividade específica � evoca uma imagem específica

escrever, jogar, beber, desenhar, nadar, andar, sorrir 3. Dicendi � precede a citação ou discurso direto

dizer, falar, responder, ordenar, perguntar 4. Atividade difusa � não evoca uma imagem específica

aposentar-se, trabalhar, aprender, mendigar, estudar 5. Instância � posição corporal estática

deitar(-se), recostar(-se), sentar(-se) , pousar (-se), reclinar(-se) 6. Estímulo mental � o sujeito da oração é o estímulo da experiência mental de outrem

impressionar, agradar, surpreender, assustar, espantar, aborrecer 7. Evento transitório intencional � indica se o sujeito permanece em certo lugar

permanecer, residir, situar, estar (em um lugar) 8. Evento transitório não intencional � refere-se a ações não intencionais

morrer, cair, desmaiar, adormecer, acordar, quebrar (não intencional) 9. Processo � mudança não intencional sofrida por um corpo (mais ou menos animado)

deteriorar, crescer, amadurecer, transformar, ferver, congelar 10. Experimentação mental � o sujeito da oração é o experienciador

adorar, odiar, desejar, pensar, lembrar, entender 11. Atenuação � distanciamento ou suavização da opinião

achar, pensar 12. Relacional � representa relações assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade: identidade, analogia, comparação, posse, causa, finalidade, conseqüência, etc204

depender de, merecer, precisar; servir como, assemelhar-se, causar, igualar, ter (posse), determinar, faltar (algo), errar, resultar de/em, relacionar-se com, custar205

13. Sensação corporal � sensação física

203 Embora pautada na distinção entre os traços verbais listados no quadro 34, a análise levou em conta informações contextuais capazes de contribuir com o traço de atividade manifestado pelo verbo (por exemplo, dependendo da situação, verbos utilizados geralmente em referência à atividade difusa podem aparecer como ligados à atividade específica. 204 A respeito de verbos relacionais, conferir também Lage (1997). 205 Apresento um número maior de exemplos de verbos relacionais dada a imensa gama de nuanças recobertas pela categoria.

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machucar-se, doer, ferir, sentir, sofrer

14. Existência �

ter, haver, existir 15. Estado �

ser, estar, parecer, ter (olhos azuis) Assim como Schlesinger (op. cit.:181), não levo em conta verbos modais (poder, dever, etc) e verbos auxiliares (ser, estar). Nesses casos, apenas o verbo principal foi controlado quanto ao traço semântico. Dessa maneira, temos, por exemplo, posso dizer = dicendi, estava cantando = atividade específica. Uma vez que não obtive dados de e, aí, daí e então introduzindo orações com verbos de estímulo mental e verbos de sensação corporal, considerei na análise apenas os treze tipos restantes. A exemplo do procedimento tomado quando da análise dos graus de conexão (seção 3.1.4), o controle dos traços verbais aqui levado a cabo considera o verbo principal da primeira oração da porção discursiva (seja oração, segmento tópico, subtópico ou tópico) introduzida pelo conector em análise a cada caso.206 Qual a relação entre o traço do verbo da oração introduzida pelo conector com o conector em si? Os traços verbais são um bom indicativo dos traços semântico-pragmáticos envolvidos pela oração como um todo. Por exemplo, a presença de verbos com traços de alta atividade, como momentâneo, atividade específica ou dicendi, implica que a informação apresentada em forma de oração está organizada com base em tais traços: provavelmente possui um sujeito engajado intencionalmente em alguma atividade, a qual possivelmente exige movimentação corporal; se houver um objeto, ele tenderá a sofrer a ação realizada pelo sujeito, etc. Os verbos do canto oposto da escala, de existência e de estado, despidos de traços de atividade, implicam que a informação é apresentada em uma oração com sujeito não intencional (na verdade, nenhuma ação, intencional ou não, é realizada: apenas é constatado que o sujeito é ou existe), ou mesmo em uma oração impessoal, não havendo indicação de movimentação corporal. Cada um dos seqüenciadores, por hipótese, tem seu aparecimento favorecido em algum(s) desses contextos. O que estaria subjacente às preferências manifestadas por e, aí, daí e então em termos de contextos de maior e menor atividade (aqui mensurados tomando-se por base o verbo)? O princípio da persistência, pelo qual as formas gramaticalizandas conservariam, em suas novas funções, traços semântico-pragmáticos pertinentes a funções desempenhadas antes do processo de extensão funcional ou desempenhadas em etapas anteriores do referido processo. Supondo que e, aí, daí e então tenham de fato preservado vínculos com suas origens, é possível levantar a hipótese de que contextos que apresentam traços similares ou compatíveis com os usos originais de um dos conectores tenderiam a atraí-lo com mais intensidade que aos demais. A presença de um conector relacionado historicamente a certo tipo de traço auxiliaria a compor e a reforçar o quadro semântico-pragmático da oração como um todo: seqüenciadores mais “ativos” apareceriam com mais freqüência como marcas da introdução de orações com verbos “ativos” e seqüenciadores “preguiçosos” recorreriam mais como sinalizadores da introdução de orações com verbos de menor atividade.

206 Também foi testado um grupo controlando o traço semântico-pragmático do verbo da oração que precede o conector, mas esse grupo não foi selecionado como relevante para nenhum dos seqüenciadores e, conseqüentemente, não será comentado.

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Mas quais são os conectores mais ligados à codificação da atividade? Já foi proposto que: (i) e marcaria preferencialmente a presença de traços genéricos - a simples soma de informações é uma nuança vinculada à forma em questão ao longo de sua história; (ii) aí e então assinalariam prioritariamente traços concretos, ligados às noções espácio-temporais que lhes serviram de fonte para o processo de migração que desembocou na seqüenciação; (iii) daí exibiria especialmente traços abstratos/complexos, por conta da subfunção através da qual adentrou na seqüenciação: o uso híbrido entre anáfora discursiva e introdução de efeito. Os tipos de verbos organizados hierarquicamente no quadro 34 podem ser relacionados às nuanças genérica, concreta e abstrata/complexa e, destarte, aos conectores que mais comumente são utilizados como marcas dessas nuanças:

Os tipos de verbo que ocupam a posição mais alta na escala de atividade são momentâneo, atividade específica e dicendi, os quais podem ser tomados em conjunto como um grupo denominado ATIVIDADE 1. Esses verbos referem-se a ações físicas intencionais executadas com o corpo (ou, mais especificamente, com a boca, no caso dos verbos dicendi), envolvendo um ser físico que age no mundo, movendo-se (salta, desenha, fala).

Os verbos de atividade difusa e de instância são tidos como de ATIVIDADE 2. A taxa de atividade que transparece quando tais verbos são utilizados é menor que a que transparece quando são utilizados os verbos de ATIVIDADE 1. Os verbos de atividade difusa envolvem ainda, a exemplo dos verbos de atividade específica, ações físicas intencionais executadas com o corpo, mas de um modo menos circunscrito (comparem-se, por exemplo, o verbo de atividade difusa ‘trabalhar’ com o verbo de atividade difusa ‘digitar’), evidenciando um grau menor de movimento físico no mundo. Os verbos de instância são os de posição corporal estática, que indicam ação no sentido de mudança ou preservação intencional da posição física ocupada no mundo.

Os verbos transitório intencional, transitório não-intencional e processo, de ATIVIDADE 3, organizam-se em uma escala que vai da perda de movimento e fixidez em um lugar do mundo, mas manutenção da intencionalidade (o traço transitório intencional), à perda não apenas da mobilidade mas também da intencionalidade, levando a cabo ações não intencionais ou mesmo passando a sofrer a ação de processos físicos (os traços evento transitório não-intencional e processo, respectivamente).

Os verbos de experimentação mental, atenuação e relacional, de ATIVIDADE 4, referem-se a

operações cognitivas complexas. Verbos de experimentação mental são os que codificam as atividades mentais experimentadas, intencionalmente ou não, pelos seres humanos (refletir, amar). Verbos de atenuação estão ligados à relação do falante com seu discurso, suavizando a própria opinião acerca de fatos. Verbos relacionais representam relações complexas assinaladas pelos homens em seu processo de percepção da realidade, tais quais comparação, posse, finalidade, conseqüência. Esses tipos de traços verbais podem ser mais ou menos intencionais, mas não codificam nenhum tipo de ação física concreta no mundo: seu escopo de ação é a organização das relações mentais, do discurso humano e das relações através das quais o homem torna o mundo apreensível à mente.

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Finalmente, os verbos de existência e de estado, de ATIVIDADE 5 (ou 0), não evidenciam traços de atividade. De acordo com Schlesinger (op. cit.: 115) e Bybee (20**b:06), esses verbos são os mais generalizados, pouco significando além de interligação entre nacos do discurso (mais especificamente, entre sintagmas constituintes da oração da qual o verbo faz parte). Transmitem informação principalmente em conjunção com seus complementos, e quase nada quando isolados.

Não é difícil perceber a manifestação das nuanças genérica, concreta e abstrata/complexa pelos diferentes tipos de traços verbais: � Quanto maior o traço de atividade do verbo, mais ele sinalizará nuanças concretas, referindo-se

a ações físicas sobre o mundo exterior, isto é, o mundo das experiências básicas e intencionais. Assim, espero uma maior freqüência do aí e do então, provindos de fontes de natureza concreta espácio-temporais, em contextos de verbos de ATIVIDADE 1.

� À medida em que vai descendo os degraus da escala de atividade, mais o verbo expressa nuanças abstratas/complexas, perdendo pouco a pouco os elos com o mundo concreto e com a ação física intencional sobre esse mundo, chegando até à expressão de operações cognitivas que não codificam ação física, mas sim mental. Em tais contextos, o daí, oriundo de usos mais abstratos/complexos, deve se encaixar com maior desenvoltura que os demais seqüenciadores.

� Os verbos de existência e estado, que ocupam a ponta final da escala de atividade, são bastante generalizados, pouco carregando de significado em si e servindo basicamente como elo de ligação para seus complementos. Relacionam-se, portanto, a nuanças genéricas e, por tabela, à utilização do e.

Também é possível distribuir os traços semântico-pragmáticos verbais quanto à marcação.

Os verbos de maior atividade (ATIVIDADE 1) são pouco marcados, já que não representam muitas dificuldades em termos de processamento cognitivo: estão ligadas às experiências básicas dos seres humanos com a realidade exterior. Os verbos que implicam um maior grau de atividade cognitiva, às expensas da atividade física (ATIVIDADE 4), são os mais complexos, por estarem mais distantes da sinalização de relações voltadas ao mundo externo, manifestando, ao invés, traços de atividade mental, mais difíceis de ser processados. Já os verbos de existência e de estado (ATIVIDADE 5) são os menos marcados, pois são altamente genéricos, indicando apenas haver uma relação entre os componentes da oração por eles interligados. Abaixo, seguem-se algumas hipóteses acerca da ação conjunta dos princípios da marcação e da persistência sobre a distribuição das conjunções seqüenciadoras em relação aos traços verbais: � Contextos caracterizados por verbos de traços menos marcados ou de marcação intermediária

para menos são cama pronta para o e e para o aí. Contudo, e deve ser a opção preferencial para assinalar contextos de verbos de traços menos marcados e mais genéricos – mais precisamente, verbos de existência e de estado (ATIVIDADE 5). Diferentemente, o aí deve assinalar especialmente contextos de verbos menos marcados (ou de marcação intermediária para menos) e mais concretos: verbos momentâneo, atividade específica e dicendi (ATIVIDADE 1).

� Daí deve aparecer prioritariamente introduzindo orações com verbos abstratos/complexos e com marcação intermediária para mais, isto é, os verbos intermediários na escala de atividade (cf. quadro 34).

� Então deve predominar nos âmbitos mais concretos menos marcados, caracterizados por verbos momentâneo, atividade específica e dicendi (ATIVIDADE 1), e/ou nos mais marcados, caracterizados por verbos de experimentação mental, atenuação e relacional (ATIVIDADE 4).

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3.1.5.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 5: Influência dos traços semântico-pragmáticos verbais sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

TRAÇOS Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Momentâneo 66/160 41 0,43 53/160 33 0,58 25/160 16 0,50 16/160 10 0,49 Atividade esp. 505/1.278 40 0,46 302/1.278 24 = 340/1.278 27 0,53 131/1.278 10 0,44 Dicendi 77/288 27 0,40 113/288 39 = 66/288 23 0,55 32/288 11 0,49 Atividade dif. 116/295 39 0,50 63/295 21 0,47 71/295 24 0,53 45/295 15 0,57 Instância 38/110 35 0,48 20/110 18 = 32/110 29 0,60 20/110 18 0,62 E. tr. intenc. 52/137 38 0,52 40/137 29 0,51 33/137 24 0,51 12/137 09 0,41 E. tr. não int. 89/194 46 0,60 45/194 23 = 47/194 24 0,51 13/194 07 0,31 Processo 70/147 48 0,56 32/147 22 = 23/147 16 0,52 22/147 15 0,45 Exper. Mental 207/491 42 0,52 89/491 18 0,48 90/491 18 0,44 105/491 21 0,56 Atenuação 23/57 40 0,44 03/57 05 = 04/57 07 0,40 27/57 47 0,75 Relacional 139/411 34 0,44 81/411 20 = 77/411 19 0,46 114/411 28 0,63 Existência 131/231 57 0,60 23/231 10 0,40 35/231 15 0,50 42/231 18 0,51 Estado 277/501 55 0,60 62/501 12 = 47/501 09 0,44 115/501 23 0,46

TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .098 Log-likelihood: -1281.205

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

6º selecionado 7° selecionado não selecionado 8º selecionado As hipóteses postuladas para o e encontram sustentação nos resultados fornecidos pela tabela 5. Os melhores contextos para o uso desse conector são aqueles em que estão presentes verbos de existência e de estado, os mais genéricos e menos marcados; ou os de ATIVIDADE 3, ligados à ação física não intencional e manifestando um grau relativamente baixo de atividade, em comparação com os verbos de ATIVIDADE 1 e 2. As nuanças atividade difusa, evento transitório intencional e experimentação mental parecem dizer, com seu índice neutro, que não são um empecilho para que o e dê o ar de sua graça. As maiores restrições ficam por conta dos verbos de maior atividade (ATIVIDADE 1) e dos verbos mais complexos (ATIVIDADE 4). Tanto a persistência quanto a marcação podem estar subjacentes às correlações entre e e os traços verbais da oração que possui por escopo. Os resultados esperados se confirmam também para o aí. É em contextos de verbos com nuanças indicadoras de grande atividade - momentâneo, atividade específica e dicendi (ATIVIDADE 1)- que se concentra o conector sob enfoque. Os tipos de traços verbais que mais o inibem são os ligados à generalização: existência e estado (ATIVIDADE 5). Os demais traços tendem a lhe favorecer ou a lhe serem neutros. Assim como para o e, tanto a persistência quanto a marcação podem estar subjacentes às influências exercidas pelos traços verbais sobre o aparecimento do aí. Daí inclina-se em direção aos traços de atividade específica, dicendi (ATIVIDADE 1), atividade difusa e instância (ATIVIDADE 2). Aproxima-se, desse modo, do aí quanto ao favorecimento nos dois primeiros traços e do então quanto ao favorecimento nos dois últimos. Talvez essa distribuição relacione-se a seu caráter de marcação intermediária para mais, ocupando um espaço entre o aí e o então na escala de marcação (cf. quadro 19). Como o daí predomina em contextos de traços variando entre graus altos e médios de atividade e entre graus baixos e médios de marcação, as hipóteses feitas em referência a esse conector não foram confirmadas.

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Os traços verbais mais marcados - atenuação, relacional e experimentação mental - não disfarçam sua predileção pelo então, manifestada em forma de freqüências (de 21 a 47%) e de pesos relativos de respeito (de 0,56 a 0,75). O item também é fortemente condicionado pelos traços de ATIVIDADE 2 (atividade difusa e instância), com grau de atividade menor que os traços de ATIVIDADE 1. Os traços verbais ligados aos contextos em que o então deveria ser mais freqüente, de acordo com a hipótese baseada no princípio da persistência, são momentâneo, atividade específica e dicendi. Entretanto, esses traços apresentam atuação neutra relativamente ao seqüenciador em causa. Tais resultados parecem apontar que, novamente, a marcação explica melhor o comportamento do então que a persistência. Seria mais um indício de que essa forma seguiu um percurso de abstração e/ou generalização crescente, deixando pelo caminho os resquícios de seus usos fontes? Vejamos, no quadro a seguir, as relações de marcação entre os conectores relativizadas a cada traço verbal (em cada coluna, o primeiro conector é o menos marcado na expressão do traço verbal em questão, e o último é o mais marcado):

Quadro 35: Distribuição de e, aí, daí e então quanto aos traços semântico-pragmáticos verbais207 Mom. At. E. Dic. At. D. Inst. E. In. n In. Proc. Ment. Aten. Rel. Exis. Est.

aí daí daí então então e e e então então então e e daí e então daí daí aí/daí daí daí e e daí então então então então e e e então então então aí daí e daí daí e aí daí aí

3.2 GRUPOS DE FATORES SOCIAIS Uma parte importante da investigação das origens sociais da mudança lingüística foi a identificação dos grupos de falantes que são “responsáveis” pela disseminação das inovações. Os traços sociais que têm sido mais relevantes para a identificação de tais grupos distribuem-se entre aqueles adstritos ao falante (como sexo e idade) e aqueles por ele adquiridos (como classe sócio-econômica e escolaridade). Segundo Chambers (1995:07), nas sociedades industriais, classe sócio-econômica, sexo e idade são os determinantes primários dos papéis sociais.

Nesta pesquisa, a escolha dos grupos de fatores extra-lingüísticos a serem controlados

deveu-se, em parte, à própria organização do banco de dados utilizado: o Banco VARSUL, constituído por entrevistas feitas com informantes distribuídos homogeneamente em células sociais de acordo com os traços sexo, idade e escolaridade.

A discussão da influência dos traços sociais dos falantes nas escolhas que fazem entre e, aí, daí e então seguirá a mesma organização das seções anteriores: inicio com a caracterização do grupo de fatores e a formulação das hipóteses, prosseguindo com a apresentação e a discussão dos resultados. Os grupos de fatores sociais controlados são expostos na seguinte ordem: idade, escolaridade e sexo, observando-se nessa ordenação o critério de iniciar pelos grupos selecionados para o maior número de camadas/variantes, bem como o critério de seguir a ordem de relevância decrescente, conforme a seleção do pacote estatístico VARBRUL. 207 No quadro 34, o aí aparece vinculado somente aos traços amalgamados momentâneo (que engloba momentâneo, atividade específica e dicendi), atividade difusa (atividade difusa e instância), evento transitório intencional (evento transitório intencional, evento transitório não intencional e processo), experimentação mental (experimentação mental, atenuação e relacional) e existência (existência e estado).

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O grupo de fatores sexo não foi considerado relevante para o aí e para o daí. Contudo, decidi mostrar também os resultados referentes a esse grupo não selecionado, para facilitar as comparações entre as distribuições dos quatro seqüenciadores. A tabela 17, em que tais resultados estão expostos, traz a identificação das rodadas das quais eles provêm. 3.2.1 IDADE - ABUSO ADOLESCENTE? 3.2.1.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES A idade exerce influência sobre o modo como lidamos com a língua. Entender os efeitos da idade sobre a língua requer entender as mudanças nas relações sociais ao longo de nossas histórias de vida. Passamos por afiliações a sucessivos grupos de referência e socialização, em estágios que, segundo Chambers (1995:159), podem ser sintetizados do seguinte modo: (i) na infância, o vernáculo é desenvolvido sob influência da família e dos amigos; (ii) na adolescência, as normas vernaculares sofrem aceleração sob pressão de redes densas; (ii) no início da vida adulta, a estandardização tende a se intensificar e, uma vez que os traços do socioleto estão estabelecidos na fala, eles permanecem relativamente estáveis para o resto da vida. É no período da adolescência (ou já na pré-adolescência) que os indivíduos comumente sentem necessidade de, por um lado, distinguir-se dos adultos e, por outro, aproximar-se de companheiros da mesma idade ou um pouco mais velhos. Nesse processo de busca da identidade, formas já existentes na região podem ser tomadas como marcas identitárias, havendo predileção por aquelas que fogem à língua padrão/culta. Busquei propor, no conjunto de 48 informantes que, nesta pesquisa, representam a comunidade de fala de Florianópolis, recortes no contínuo etário que fossem consoantes às etapas de vida supracitadas. Contemplo, pois, quatro faixas etárias: de 09 a 12 anos (crianças ou pré-adolescentes, em pleno processo de alinhamento a um grupo de amigos); de 15 a 21 anos (envolvimento em grupos adolescentes, finalização da escolarização secundária e orientação ao grupo de trabalho mais amplo e/ou universidade); de 25 a 45 anos (emprego regular e/ou responsabilidades familiaridades); acima de 50 anos (diminuição da força de trabalho e aposentadoria).208 Dois dos seqüenciadores – aí e daí – costumam ser considerados de menor status, isto é, trata-se de conectores que não fazem parte do “seleto” e “refinado” conjunto de formas pertencentes à língua padrão/culta. Sua utilização é, provavelmente, influenciada por tal avaliação negativa: aí e daí devem ser mais recorrentes na fala dos indivíduos mais jovens, de 09 a 12 anos (pré-adolescentes) e de 15 a 21 anos (adolescentes), ao passo que os indivíduos de mais idade devem dar preferência para e e para então, os quais não são considerados conectores de menor status.209 A confirmação de tal hipótese revelaria a atuação de duas motivações em oposição na comunidade de fala florianopolitana: (i) a necessidade de firmação da identidade, levando a uma maior freqüência de formas de menor status, como aí e daí, na fala das pessoas com menos de 21

208 Embora a faixa etária ‘de 25 a 45 anos’ seja bastante ampla, a maioria dos informantes que a integram se encontra entre 34 e 45 anos (nove informantes do total de doze), o que minimiza eventuais envieasamentos que uma faixa etária abarcando indivíduos de idades tão diferentes pudesse causar. 209 Sobre testes de avaliação referentes ao status dos conectores seqüenciadores na comunidade de fala florianopolitana, conferir seção 3.2.2.

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anos; (ii) o caráter estigmatizado desses conectores resultaria em sua menor recorrência na fala das pessoas com mais de 25 anos, talvez em razão de um maior envolvimento com o mercado de trabalho, em que pode haver uma certa pressão em direção ao respeito de normas da língua padrão/culta. Subjacente à relação entre períodos de vida e o uso de formas de status inferior, está outra razão pela qual podemos esperar uma maior recorrência de aí e de daí na fala dos menores de 21 anos: são esses indivíduos que tendem a angariar formas inovadoras como marcas típicas do grupo de pares. Os itens lingüísticos que sofrem “discriminação” são, em geral, mais novos em relação a outras opções tidas como mais “corretas” - e por isso mesmo considerados como de menor valor.210 Destarte, as formas tomadas como marcas identitárias pelos pré-adolescentes e/ou adolescentes apresentam, comumente, duas propriedades correlacionadas: são relativamente recentes e, em decorrência, possuem baixo status no mercado lingüístico - caso do aí e do daí. O fato de serem os indivíduos mais jovens os que mais fazem uso, por questões identitárias, das formas inovadoras e/ou estigmatizadas, conduz-nos à questão da mudança lingüística. Já vimos, no capítulo II, que uma situação de estratificação/variação lingüística pode ser um comportamento sincrônico estável ou um sintoma de mudança em andamento. Se estiver em causa uma situação estável do tipo gradação etária (age-grading),211 a entrada na fase adulta é acompanhada por uma queda drástica no uso das formas identitárias socialmente desvalorizadas (é o que comumente ocorre com a gíria). Ou seja, os indivíduos mudam seu comportamento lingüístico durante a vida, mas a comunidade como um todo não é afetada. Em contraste, a mudança geralmente avança em progressão geracional: uma camada/variante que ocorre com baixa freqüência na fala dos idosos ocorre com mais freqüência na fala dos adultos e mais ainda na fala dos jovens. Os indivíduos permanecem estáveis, carregando sempre consigo uma dada taxa de uso das camadas/variantes - maior a cada geração de falantes -, o que resulta em mudança lingüística comunitária com o passar do tempo. A explicação fornecida para o elo entre juventude e mudança lingüística inspira-se nas transformações sofridas pelas relações sociais ao longo da história de vida do indivíduo, já elencadas acima. Na pré-adolescência e na adolescência, os falantes estão, respectivamente, iniciando e dando continuidade à sua transição para o individualismo, passando por uma etapa movimentada, turbulenta e longa, a qual, nas sociedades industrializadas, pode ultrapassar a faixa dos 20 anos. Os pré-adolescentes e os adolescentes, ao mesmo tempo em que buscam uma identidade que marque sua separação em relação aos mais velhos, necessitam de ligação com seus pares, como compensação pela perda da segurança do grupo domiciliar. Daí advêm duas forças - distinção em relação aos mais velhos e solidariedade com os pares - que se combinam, fazendo com que, sociolingüisticamente, indivíduos pertencentes às faixas etárias em questão sejam o ponto focal para a mudança: ao tomar itens lingüísticos particulares como marcas de identidade, tendem a super utilizá-los, acelerando a disseminação das camadas/variantes inovadoras e/ou estigmatizadas entre seus pares e entre indivíduos ainda mais jovens, contribuindo para a evolução da mudança. Diferentemente do que acontece no fenômeno de gradação etária, as inovações incorporadas ao vernáculo e super generalizadas pelos falantes mais jovens podem rotinizar-se como parte de sua

210 Re-citando Labov (2001:06): “Communities differ in the extent to which they stigmatize the newer forms of language, but I have never yet met anyone who greeted them with applause.” 211 A gradação etária é um tipo de situação de estratificação/variação estável, mas não o único. Há, por exemplo, casos em que os grupos etários usam as variantes com freqüência similar, distribuição que se mantém idêntica com o passar das décadas e mesmo séculos (cf. Labov, 2001:85).

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gramática e prosseguir com eles pelo resto da vida, e são passíveis de sofrer aceleração ainda maior por parte das gerações posteriores, o que resulta em alterações progressivas na gramática da comunidade de fala. É possível que, com o tempo, as formas tomadas como marcas de identidade atinjam a comunidade de fala como um todo, suplantando eventuais camadas/variantes mais antigas com as quais competiam, em um processo que pode chegar até a extinção destas últimas (configurando uma situação de especialização por generalização). Já foi mencionado que as inter-relações dinâmicas e fluidas entre e, aí, daí e então seqüenciadores e seus contextos de uso são compreendidas não como referentes a um processo de mudança lingüística especial, mas como típicas da gramaticalização – o eterno e cotidiano fazer-se da gramática. A gramática, incluindo o domínio da seqüenciação, emerge diferente a cada uso, mas apenas uma pequena parcela das inovações é rotinizada.212 Essas inovações tendem a recorrer na fala dos indivíduos e a ser difundidas para grupos sociais cada vez mais amplos, resultando, assim, em mudança lingüística de grandes proporções (cf. seção 2.6 do capítulo 3). É possível que a seqüenciação em Florianópolis esteja passando atualmente por um desses períodos de mudança de grandes proporções, em que as relações internas são re-organizadas de modo radical – o que tipicamente ocorre quando da entrada e (super)disseminação de uma nova forma em um domínio gramatical. Nesse caso, as relações do tipo ‘quem faz o quê’ podem ser re-arranjadas de modo bastante diferente na(s) faixa(s) etária(s) que está(ão) alastrando o uso da inovação. Se uma mudança de proporções amplas estiver em jogo no domínio da seqüenciação, possivelmente haverá uma correlação significativa entre a idade dos informantes e o uso de e, aí, daí e então, observando-se diferenças nas freqüências e pesos relativos dessas camadas/variantes entre falantes mais jovens e mais velhos da fatia sincrônica em estudo. Ou seja, será mapeada uma mudança em tempo aparente. Nessa linha, a hipótese é que o aparecimento das camadas/variantes mais recentes, aí e daí, deve aumentar à proporção que diminui a idade dos informantes, o que pode ser tomado como indício de que tais conectores têm abocanhado mais e mais nacos do território da seqüenciação à medida que têm seu uso acelerado pelas gerações mais jovens. Se aí e daí têm tido avanços, em termos de freqüência, na fala dos indivíduos com menos de 21 anos, possivelmente e e então apresentam, como contraparte, freqüência reduzida na fala de tais indivíduos: a opção maior seria pelas formas mais novas e de menor status, possivelmente adotadas como marcas de identidade. Essa opção pode levar à mudança lingüística, no sentido de aí e de daí virem a ocupar pouco a pouco o espaço de e e de então.

212 Conforme já mencionado no capítulo III, os dois fenômenos – emergência cotidiana e mudança lingüística bem sucedida – têm sido denominados gramaticalização.

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3.2.1.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 6: Influência da idade sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

IDADE Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR 09 a 12 anos 300/1.146 26 0,39 144/1.146 13 0,24 686/1.146 60 0,91 16/1.146 01 0,12 15 a 21 anos 479/1.064 45 0,51 310/1.064 29 0,64 161/1.064 15 0,64 114/1.064 11 0,36 25 a 45 anos 488/1.113 44 0,52 290/1.113 26 0,60 29/1.113 03 0,21 306/1.113 27 0,74 + de 50 anos 523/977 54 0,59 182/977 19 0,40 14/977 01 0,13 258/977 26 0,77

TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .005 Log-likelihood: -1284.763

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

3º selecionado 6º selecionado 1º selecionado 1º selecionado

Falantes com mais de 50 anos são os que mais tendem à utilização do e. Esse conector também é bastante freqüente na fala dos indivíduos de 25 a 45 anos e dos adolescentes, e tem uso mais restrito apenas entre os pré-adolescentes. Conforme esperado, o aí predomina na fala dos adolescentes, mas também é opção recorrente por parte dos indivíduos de 25 a 45 anos. Os membros das faixas situadas nos extremos da estratificação etária tendem a inibir o aparecimento do aí. Quanto ao daí, verifica-se uma acentuada polarização entre os pesos relativos de 0,91/0,64 e 0,21/0,13, atribuídos a pessoas com menos de 21 anos e a pessoas com mais de 25 anos, respectivamente. Ou seja, falantes mais jovens tendem largamente ao uso do conector, enquanto falantes mais velhos inclinam-se fortemente a seu desfavorecimento. Os grupos que mais fazem uso do então são aqueles referentes a indivíduos maiores de 25 anos. Em oposição, indivíduos com menos de 21 anos o repelem intensamente. Portanto, as hipóteses propostas para o grupo de fatores idade foram confirmadas: as conjunções seqüenciadoras mais novas e de menor status, aí e daí, estão associadas aos falantes mais jovens, ao passo que as mais antigas e não estigmatizadas, e e então, estão associadas aos falantes mais velhos. As exceções são a inesperada alta freqüência do aí entre os indivíduos de 25 a 45 anos e a sua baixa freqüência entre os pré-adolescentes. Uma vez que foi constatada uma correlação significativa entre a idade dos informantes e o uso de e, aí, daí e então, a possibilidade de que uma mudança esteja em curso é grande: daí, consoante os resultados apresentados nas tabelas 13 e 14, está ocupando um espaço maior no domínio da seqüenciação a cada geração considerada. Analisemos com maior detalhe... O gráfico a seguir permite uma boa comparação entre os pesos relativos atribuídos a e, aí, daí e então nas rodadas binárias (cf. tabela 6):

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Gráfico 1: Idade e uso de e, aí, daí e então - Florianópolis

IDADE E USO DE E, AÍ, DAÍ E ENTÃO

39

51 5259

24

6460

40

91

64

21

1312

36

74 77

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

09-12 anos 15-21 anos 25-45 anos mais de 50

idade

E AÍ DAÍ ENTÃO

Como já vimos no capítulo II, Labov (2001) modificou sua proposta de que a existência de uma distribuição linear crescente ou decrescente envolvendo todas as faixas etárias seria indício de mudança lingüística em tempo aparente. Como vários estudos têm constatado a existência do uso intenso de formas inovadoras por indivíduos em torno de dezesseis a vinte anos de idade, Labov acredita que deva haver um pico de uso no período final da adolescência, ao qual se segue a diminuição constante do uso das formas inovadoras à medida que aumenta a idade dos informantes (ou seja, a distribuição linear crescente ou decrescente parece ocorrer somente a partir das faixas adultas), e ao qual precede um uso ainda elevado, mas menor, das formas em questão, por parte dos indivíduos com menos de dezesseis anos. Como contraparte, podemos esperar um pico de desuso, entre os adolescentes, das formas competidoras de maior tempo de serviço. No caso da seqüenciação em Florianópolis, as formas mais antigas e de maior status, e e então, parecem estar perdendo porções do território a cada geração, o que é evidenciado pela distribuição etária decrescente: quanto mais jovem os falantes, menor a utilização do e e do então. Contudo, a retração do uso do e acontece de modo mais suave que a do então: e possui freqüência de 54% e peso relativo de 0,59 na faixa dos informantes com mais de 50 anos, que diminuem para cerca de 45% e 0,52 nas faixas intermediárias e, em uma redução mais brusca, para 26% e 0,39 na faixa mais baixa. Dessa guisa, verifica-se, para o e, a existência de um declive de desuso na fala dos pré-adolescentes. Já o então sofre duas quedas bruscas em termos de freqüência e de peso relativo, passando dos cerca de 27% e 0,75 atribuídos aos informantes com mais de 25 anos aos 11% e 0,36 atribuídos aos informantes de 15 a 21 anos e, finalmente, aos 01% e 0,12 atribuídos aos informantes de 09 a 12 anos. Ou seja, os desenvolvimentos do então em termos geracionais apresentam um pico de recalque de uso que se inicia entre os adolescentes e se acentua entre os pré-adolescentes, como se

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estes tivessem sido contagiados pela aversão ao conector demonstrada por seus irmãos e/ou amigos mais velhos e a tivessem intensificado ainda mais.213 E quanto a aí e a daí, as formas inovadoras e consideradas de status inferior? A distribuição do aí pelas faixas etárias, embora aponte para uma diminuição de freqüência acompanhando o aumento da idade dos informantes, não revela a existência de um pico de uso entre os informantes mais jovens. Aí é mais recorrente entre os adolescentes (29% e peso relativo de 0,64) e os indivíduos de 25 a 45 anos (26% e peso de 0,60) e aparece pouco na fala dos indivíduos com mais de 50 anos (19% e 0,40 ). Configura-se, portanto, uma distribuição linear decrescente que poderia ser interpretada, a despeito da ausência do pico de uso, como indício de mudança gradual em curso, no sentido de que as gerações vindouras optariam cada vez mais pelo aí como marca da seqüenciação. Contudo, os resultados para o grupo de 09 a 12 anos frustram essa interpretação: a utilização do conector sofre uma grande contração, passando da freqüência de 29% e do peso de 0,64 referentes à faixa anterior, para 13% e 0,24. No já mencionado estudo realizado por Silva & Macedo (1996:29), com base em dados de informantes cariocas, os resultados obtidos para o grupo de fatores idade evidenciam que, quanto mais jovem o falante, maior é o uso do aí. Os pesos relativos atribuídos a cada uma das faixas etárias consideradas foram: de 7 a 14 anos = 0,70; de 15 a 25 anos = 0,60; de 26 a 50 anos = 0,40; mais de 50 anos = 0,30. Foi obtida, portanto, uma distribuição linear decrescente: o aparecimento do aí diminui à medida que aumenta a idade dos informantes. Ou seja, no Rio de Janeiro, o aí parece não ter tido interrompida sua trajetória de aumento em progressão geracional, ocupando o conector mais e mais terreno no domínio da seqüenciação a cada novo grupo etário. Em Florianópolis, entre os indivíduos de 15 a 21 anos, a freqüência do aí, de 29%, já é a segunda maior (nessa faixa etária, ele perde apenas para o e, com 45%), e o peso relativo, 0,64, é semelhante ao atribuído à faixa etária correspondente no estudo de Silva & Macedo (indivíduos de 15 a 25 anos), 0,60. Se o processo de incremento de uso a cada nova geração tivesse tido continuidade, o aí poderia ter sido conservado, na fala dos pré-adolescentes, como uma das formas detentoras da maior parte do território da seqüenciação. Nesse caso, talvez apresentasse um peso relativo similar ao do aí carioca no grupo de 7 a 14 anos (0,70). Contudo, no grupo correspondente em Florianópolis (de 09 a 12 anos), um dos combatentes - o mais recente no ramo da seqüenciação - aparece atirando para todos os lados e tomando espaço dos demais seqüenciadores. O uso do daí para sinalizar a seqüenciação entre informações é raro entre os florianopolitanos com mais de 50 anos, com freqüência e peso relativo diminutos: 01% e 0,13. Ocorre uma pequena elevação entre os adultos: 03% e 0,21. Na faixa representando a geração seguinte, de 15 a 21 anos, há um pico de uso, em comparação com as duas faixas anteriores: 15% e 0,64. Surpreendentemente, surge um pico de uso ainda maior entre os pré-adolescentes: 60% e 0,91. Parece que os adolescentes de Florianópolis adotaram o daí como marca identitária e o transmitiram a falantes cada vez mais jovens, até haver uma explosão de uso entre os pré-adolescentes. É interessante observar que a freqüência do daí na faixa mais jovem é superior até

213 No capítulo II, já havia sido mencionado que a aquisição lingüística é, em grande parte, uma transmissão de traços fonéticos e morfossintáticos de núcleos adolescentes e pré-adolescentes mais velhos a mais jovens, sobrepondo-se à base lingüística transmitida pelos pais. A transmissão da mudança pega carona no processo de transmissão da língua, ocorrendo numa trajetória constante e regular de inovações que são adicionadas ao vernáculo adquirido dos pais. Cada criança reflete o nível de sua aquisição inicial (do que lhe foi transmitido pelos pais), acrescido de alterações advindas do contato com irmãos e outras crianças mais velhas na comunidade local. Há, portanto, pequenos incrementos constantes nas gramáticas individuais: a experiência de cada grupo mais jovem faz a mudança avançar, afastando-se ligeiramente do nível alcançado pelos falantes um pouco mais velhos. (Labov, 2001)

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mesmo a do e na faixa dos informantes com mais de 50 anos (54%), a segunda maior freqüência de um dos seqüenciadores em relação aos grupos etários (cf. tabela 6). Cumpre ressaltar que Labov (2001) prevê que os picos de mudança acontecem na fala de indivíduos no final da adolescência (até cerca de 20 anos de idade). No caso da seqüenciação em Florianópolis, tal não se verifica: os picos de uso e de desuso de e, aí, daí e então encontram-se na faixa etária de 09 a 12 anos, e não na faixa de 15 a 21 anos.214 As razões que motivam os indivíduos, na pré-adolescência, a super generalizarem formas inovadoras e de baixo status devem ser as mesmas que motivam os adolescentes. Atualmente, as pessoas de 09 a 12 anos já estão em uma fase de busca e afirmação da identidade, procurando distinguir-se dos pais e aproximar-se do grupo de pares. Nesse processo, podem adotar formas lingüísticas como marcas identitárias, reforçando um modo de falar “jovem”, em oposição a um modo de falar “adulto” (ou “velho”), do qual querem marcar distanciamento.215 Podemos interpretar os resultados elencados na tabela 6 como significando que o aí roubou um pouco do espaço do e entre os adultos (a freqüência daquele aumentou, a deste diminuiu) e outro tanto do e e do então entre os adolescentes. No entanto, a mudança em direção ao predomínio do aí na seqüenciação florianopolitana foi interrompida em razão da super disseminação do daí. Entre os adolescentes, o daí parece estar ocupando o espaço outrora pertencente ao então (a freqüência daquele eleva-se intensamente, e a deste reduz-se em proporção semelhante). Entre os pré-adolescentes, a situação se agrava e tem lugar um golpe de misericórdia: com apenas 16 dados, o então não passa de um “resquício de épocas passadas”, em comparação com sua forte recorrência na fala dos indivíduos com mais de 25 anos. É também na fala dos pré-adolescentes que o terreno do aí é invadido, sofrendo o conector uma intensa retração de uso (de um peso relativo de 0,64 a um de 0,24), e que até o e é atingido, tendo sua freqüência reduzida quase que à metade em relação à faixa etária anterior, e obtendo seu único peso relativo desfavorecedor no grupo de fatores idade. O e reinava no domínio da seqüenciação, como a conjunção mais freqüente em todas as faixas etárias, até enfrentar o daí na fala florianopolitana pré-adolescente e ser derrotado. Todavia, o maior atingido pelo super avanço do daí parece ter sido o então, cuja evolução reflete, como imagem de espelho, a do daí: o pico de uso - altíssimo - do então acontece entre os falantes adultos e com mais de 50 anos e o do daí - ainda mais alto - entre os falantes adolescentes e pré-adolescentes. À medida que a utilização do daí aumenta, a do então diminui. Observem-se as linhas traçadas para ambos no gráfico 1: uma imagem de espelho! Enfim, podem ser tomados como indícios de que uma mudança vigorosa está em andamento: (i) o aparecimento intenso da forma mais inovadora entre os adolescentes e, especialmente, entre os pré-adolescentes - um pico de uso -; (ii) o quase desaparecimento de uma 214 É possível que, se tivesse sido levada em conta uma faixa etária de indivíduos ainda mais jovens (de 03 a 05 anos, por exemplo), a existência dos picos de uso na fala pré-adolescente aparecesse ressaltada em um gráfico como o apresentado acima. Por hipótese, haveria um decréscimo do uso do daí entre crianças em processo de aquisição da língua ou entre aquelas que, por sua pouca idade, possuem elos de ligação mais fortes com os pais do que aquelas que já são pré-adolescentes. Se resultados desse tipo fossem encontrados, teríamos, em gráficos, picos mais bem delineados do que os traçados no gráfico 1 (teríamos algo como “∆”: no pico, os pré-adolescentes; na parte mais baixa à direita, os adolescentes; e, na parte mais baixa à esquerda, as crianças menores). 215 Além de ser uma marca típica da fala dos membros mais jovens da comunidade florianopolitana (sua alta freqüência torna-o facilmente perceptível e, assim, facilmente relacionável à fala daqueles que dele abusam, os pré-adolescentes e os adolescentes), o daí pode ser uma marca regional. Nesse caso, tratar-se-ia de um item lingüístico indicando que seu usuário é, provavelmente, uma pessoa jovem ou mesmo uma criança residente em Florianópolis (cf. seção 3.2.2).

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das formas mais antigas nas mesmas faixas etárias - um pico de desuso -; (iii) o fato de que os dois grupos adultos apresentam uma distribuição linear decrescente para o daí e crescente para o então (a freqüência do primeiro diminui com o aumento da idade dos informantes, e a do segundo aumenta), consoante previsto por Labov para casos de mudança. Já o aí, descontando-se o grupo mais jovem, parece passar por uma mudança menos vigorosa, pois, embora seja constatada uma queda mais acentuada entre as faixas de 25 a 45 anos e mais de 50 anos, o uso do conector diminui gradualmente entre os adolescentes e adultos. A mudança para o e também parece ser mais suave, havendo um decréscimo de uso gradual com a diminuição da idade dos informantes e apenas um salto mais brusco, entre a faixa etária de 15 a 21 anos e a de 09 a 12 anos. É possível que os hoje pré-adolescentes florianopolitanos tenham diminuída a taxa de recorrência do daí em sua fala à medida que amadurecerem. Conforme Labov (2001), é esperado que ocorra, nos processo de mudança, após o pico de uso da forma inovadora, uma retração de seu aparecimento: ela é incorporada, ainda com índices de grande freqüência, à gramática dos falantes do grupo em que teve seu uso fortemente acelerado, mas passa a recorrer menos, em comparação com a fase de pico de uso. Assim, a mudança adquire matizes não tão radicais e sim uma maior gradualidade: passa a haver uma distribuição linear crescente ou decrescente entre faixas etárias adultas, agora ocupadas pelos mesmos indivíduos que levaram a forma inovadora a seu ápice. Esta poderá vir a derrotar as demais concorrentes com o passar do tempo, mas com uma menor velocidade do que a que seria prevista, considerando-se somente seu(s) estágio(s) de pico de uso. Contudo, poderíamos considerar que os resultados expostos na tabela 6 revelam não mudança em progresso, mas sim um caso de gradação etária (age-grading), em que o daí, tomado como marca identitária pelos adolescentes e pré-adolescentes florianopolitanos, não seria utilizado por eles como marca da seqüenciação nas fases posteriores da vida. Nesse caso, daí seria abandonado ou teria sua freqüência fortemente reprimida, como tipicamente acontece com a gíria. Na verdade, somente um novo estudo, levado a cabo daqui a alguns anos, pode revelar qual das duas possibilidades - mudança em curso ou gradação etária - de fato se concretizará. Entretanto, acredito que o daí esteja sofrendo, atualmente, uma mudança - uma disseminação sociolingüística de proporções amplas na comunidade florianopolitana - da qual resultará como um dos articuladores que dividem a parte do leão da seqüenciação na comunidade como um todo e não somente entre os mais jovens, podendo mesmo se tornar o conector predominante, em termos de freqüência, no domínio da seqüenciação em Florianópolis. O daí deve estar seguindo os passos do aí, que, como ele, migrou de usos anafóricos para o domínio da seqüenciação (cf. capítulo V) e nele está estabelecido como conector de grande recorrência (ao menos até ser atacado pelo daí, entre os pré-adolescentes), observada inclusive na fala dos florianopolitanos de mais de 50 anos. Nessa faixa, o aí representa 19% do total dos seqüenciadores utilizados, o que é um indício de que está na luta com freqüências de respeito desde as décadas de 40 e 50, acompanhando os falantes que, hoje com mais de 50 anos, na época eram crianças em fase de aquisição ou já pré-adolescentes.216 Se o aí não foi abandonado, é provável que o daí não o seja. Mas apenas o tempo dirá...

216 Como já mencionado na seção 3.2.1.1 deste capítulo (e na seção 2.6 do capítulo V), a gramática emerge sempre diferente, seja na fala dos adultos, seja na fala das crianças e dos adolescentes, mas estes tendem a incorporar e preservar as novidades com maior freqüência que aqueles. Ou seja, as inovações que emergem cotidianamente têm maior probabilidade de reaparecer na fala dos seres humanos mais jovens. Foram encontradas exceções, isto é, casos em que os adultos apresentam um bom grau de alterações em suas gramáticas (cf. seção 2.6.1.1 do capítulo II). No entanto, na maioria dos casos, os indivíduos adquirem boa parte da língua através de suas experiências em situações de comunicação transcorridas da infância

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3.2.2 ESCOLARIDADE - BARRADOS NA ESCOLA 3.2.2.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES Os trinta e seis informantes do corpus de Florianópolis com mais de quinze anos foram distribuídos em três níveis de escolarização: de quatro a cinco anos (ou o equivalente à 4a e 5a séries do ensino fundamental ou primário); oito anos (8a série do ensino fundamental ou ginásio); onze anos (3o ano do ensino médio ou colegial). Os informantes de 09 a 12 anos, com primário em andamento ou iniciando o ginásio, foram desconsiderados da análise, dadas as dificuldades em especificar se deveriam ser agrupados aos informantes das demais faixas etárias com nível de escolarização primário, ou se deveriam ser tomados à parte, como pertencentes a um quarto nível de escolarização ou ainda se o grau de estudo de seus pais é que deveria ser considerado. Segundo Labov (2001:115), se o efeito do nível educacional sobre a língua é um padrão cultural geral, um conjunto de atitudes acerca da língua e de sua aprendizagem, a criança deveria ser considerada como tendo o mesmo nível de escolaridade que seus pais; contudo, se a educação que mais exerce influência sobre a língua é a obtida na escola, ano a ano, então deveria ser atribuído à criança o seu nível de escolaridade real, isto é, os anos de escolarização realmente completados. Labov realizou estudos valendo-se de ambos os índices de escolarização, o da criança e o dos pais, e concluiu que o efeito da educação é cumulativo: o uso das variáveis lingüísticas pelas crianças é mais determinado pelo quanto de escolarização receberam, e menos pela bagagem educacional e cultural geral da família. Essa conclusão autoriza a assimilação dos informantes de 09 a 12 ao nível primário, pois grande parte deles possui quatro anos de escolarização completados. No entanto, optei por não tomar em conjunto os pré-adolescentes e os informantes de 15 a mais de 50 anos e escolaridade primária, pois o status social de cada um desses grupos é obviamente bastante distinto: os pré-adolescentes possuem a escolaridade esperada para indivíduos dessa faixa etária, mas os adolescentes e adultos que cursaram apenas o primário são bastante desvalorizados socialmente, em especial no mercado de trabalho. A par disso, o fator primário resultante corresponderia a vinte e quatro informantes, em contraste com os fatores ginásio e colegial, que contam com apenas doze informantes cada um. O peso maior de um fator poderia ocasionar enviesamentos nas rodadas estatísticas. Considerei, então, quatro níveis de escolaridade: primário I, correspondente aos informantes com mais de 15 anos, que freqüentaram a escola por apenas quatro ou cinco anos; primário II, correspondentes aos indivíduos de 09 a 12 anos, que estão freqüentando a escola; ginásio e colegial. No entanto, os testes de significância feitos indicaram que as rodadas que levaram em conta três níveis de escolaridade ao invés de quatro (deixando de lado os informantes pré-adolescentes) foram mais significativas. Além disso, a existência de um fator controlando à parte a escolaridade dos informantes de 09 a 12 anos causou enviesamento nos resultados de algumas rodadas, já que esse fator apresenta identidade de dados em relação a outro fator, pertencente ao grupo idade, qual seja, de 09 a 12 anos (os membros de um são exatamente os membros do outro). até o final da adolescência, conservando traços lingüísticos experienciados nesse período por toda a vida. Assim, por exemplo, a fala de um indivíduo de 60 anos hoje seria reveladora de traços experienciados por ele nas décadas de 40 e 50.

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O que as rodadas com o primário II revelaram foi a preferência pelo daí por parte dos pré-adolescentes, a qual provavelmente é devida mais à idade dos informantes (isto é, à pressão exercida pelo grupo de pares pré-adolescentes para o uso do daí como marca identitária) do que à escolaridade.217 Dessa guisa, o grupo de fatores escolaridade passou a ser controlado apenas em relação aos 3.154 dados extraídos da fala dos trinta e seis informantes florianopolitanos com mais de 15 anos, distribuídos homogeneamente quanto aos três fatores, primário, ginásio e colegial. Há situações de estratificação/variação em que as camadas/variantes são claramente avaliadas como pertinentes ou não à variedade padrão/culta da língua. Em tais situações, a opção pela utilização de uma dentre duas ou mais das camadas/variantes costuma correlacionar-se à escolarização dos usuários da língua, no sentido de que, quanto mais anos passados na escola, maior o uso das formas que possuem conceito social positivo. A escolarização continuada contribui, portanto, para a padronização da fala e da escrita consoante os preceitos da língua padrão/culta. Esse pode ser o caso da seqüenciação florianopolitana, que é preferencialmente exibida por quatro conectores, dois dos quais – aí e daí – são geralmente tidos como de menor status, em relação ao “seleto” e “refinado” conjunto de formas pertencentes à língua padrão/culta, entre as quais e e então parecem transitar sem problemas. Assim, quanto à influência da escolaridade sobre o uso dos seqüenciadores, espero que aí e daí apareçam mais na fala de pessoas de nível de escolaridade primário, que tiveram um menor tempo de contato com a escolarização formal e, por tabela, menos experiência com a variedade padrão/culta da língua. Empregos não dêiticos ou não anafóricos dessas formas costumam ser considerados, pelos professores de língua portuguesa em geral, não apenas como típicos da fala (e apenas em situações mais informais ou coloquiais), mas mesmo vícios de linguagem,218 e, à medida que a escolarização avança, sua recorrência deve diminuir. Assim, e e então seriam mais freqüentes na fala de pessoas de nível de escolaridade colegial, como alternativas de maior prestígio para a seqüenciação de informações. Não foram realizados, para esta pesquisa, testes de avaliação do status de e, aí, daí e então no mercado lingüístico florianopolitano, por duas razões: (i) a dificuldade de elaboração de um teste em que a questão das múltiplas nuanças da seqüenciação não interferisse nos resultados: dependendo do tipo de teste proposto, os indivíduos convidados a dar sua opinião tendem a avaliar os conectores como mais ou menos indicados para exibir uma certa subfunção, ao invés de opinar acerca da adequação de cada conector a contextos de fala e de escrita mais e menos formais e acerca da própria possibilidade de utilização de cada um deles como marca da seqüenciação (cf. a seguir); (ii) a dificuldade em re-contatar os quarenta e oito informantes cujas entrevistas integram o corpus em análise: embora seja possível angariar indícios acerca do status dos seqüenciadores em Florianópolis recorrendo a quaisquer membros da comunidade de fala, o ideal seria obter avaliações diretamente dos indivíduos que forneceram os dados para o estudo.

217 Na verdade, como todos os informantes do grupo em discussão possuem a mesma idade (de 09 a 12 anos) e a mesma escolaridade (primário II), é difícil precisar se as influências maiores são por conta da etapa de vida pré-adolescente ou por conta da pouca escolaridade. Um indício de que a idade é mais importante pode ser encontrado no padrão de seleção dos grupos de fatores em causa pelo VARBRUL. Nas rodadas com o primário II em que foram postos para interagir os grupos de fatores idade e escolaridade, idade sempre foi selecionada como mais significativa que escolaridade. Esta, em diversas rodadas, sequer foi selecionada entre os grupos de fatores relevantes. 218 Na mesma direção, em um estudo comparando os usos dados a e e a aí na fala e na escrita, Abreu (1992:11) afirma que “Constatamos ser muito freqüente o uso da partícula aí, característica predominante na língua oral. No entanto, há um caráter estigmatizante quanto à utilização dessa partícula. Ou seja, apesar do uso deste elemento tanto por adultos quanto por crianças ser um fato até certo ponto natural, a sociedade culta, a escola o rejeita.” (grifo acrescentado)

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Com o intuito de averiguar se aí e daí teriam seus usos como seqüenciadores estigmatizados, elaborei, experimentalmente, três modelos de testes, levando em conta diversas situações de fala e de escrita formais e informais, em relação às quais os avaliadores deveriam ordenar, em ordem de preferência, dentre as opções - e, aí, daí e então - os seqüenciadores que utilizariam (e, se fosse o caso, apontar quais não utilizariam). Ao final, era solicitada a opinião do avaliador acerca da relação entre os quatro conectores e a língua padrão/culta, através de duas perguntas: (i) Em sua opinião, um ou mais dentre os conectores E, AÍ, DAÍ e ENTÃO não pertence(m) à língua portuguesa padrão/culta? Em caso afirmativo, qual ou quais? e (ii) Em que tipo de situações de fala ou de escrita os conectores não pertencentes à língua padrão/culta deveriam ser evitados? Por quê? O fato de um item ser preferido em situações de fala e de escrita mais formais, às expensas de outros capazes de manifestar semelhante função-significação, é um forte indício da valoração positiva dada ao item pela comunidade e de sua vinculação com variedades lingüísticas de prestígio. Os testes assim organizados foram inicialmente aplicados a um grupo de controle, composto por dois pré-adolescentes cursando a quarta série (último ano do primário), dois adolescentes cursando a oitava série (último ano do ginásio), quatro adolescentes vestibulandos (colegial completo) e três adultos, um com oito anos de escolarização (ginásio completo) e dois com onze (colegial completo), todos naturais de Florianópolis.219 Depois da análise das respostas, decidi pela não aplicação dos testes em escala mais ampla, pois grande parte dos indivíduos testados avaliou a adequação de e, aí, daí e então como marca de cada uma das subfunções seqüenciadoras e não sua adequação para situações de fala e de escrita mais e menos formais.220 Apenas a parte final dos testes, correspondente a uma avaliação mais direta do uso das formas como seqüenciadores, foi esclarecedora, mostrando que o ibope do aí e do daí está realmente baixo, especialmente em relação à escrita.221 Alguns trechos das respostas fornecidas pelos membros do grupo de controle ilustram esse fato:

� “Minha professora não gosta que a gente fala muito aí, daí, né, essas coisas.” (R, 10 anos, quarta série)

� “Para apresentar um trabalho na sala de aula, é melhor dizer então ao invés de aí e daí.” (J, 14 anos, oitava série)

� “Uma vez, quando eu estava na sexta série, falei 63 aí para contar a história do livro “Rainha das Neves” e o professor contou todos e depois me repreendeu.” (A, 17 anos, colegial completo)

� “O e é a coisa normal, básica, ninguém percebe. Na redação do vestibular eu usaria - e olhe lá - o então. E o e também, claro.” (A, 17 anos, colegial completo)

� “Esses aí e daí são normais na fala, todos usam.” (S, 50 anos, colegial completo) � “Aí e daí não pertencem à língua correta, o seu uso não é recomendado pelos

professores de português.” (P, 42 anos, colegial completo)

Outra boa evidência de que a escola exerce pressão para que seja evitado o emprego dos conectores seqüenciadores aí e daí, sobretudo na escrita, é a sua presença insignificante nas 219 Um agradecimento especial aos amigos de Capoeiras (bairro de Florianópolis) que serviram de cobaias para os testes experimentais. 220 Tentei minimizar esse problema fazendo uso, em um dos testes, de situações que envolvessem apenas uma das subfunções, a seqüenciação temporal, mas ainda assim tive a impressão de que as respostas acabavam enviesadas: o conector era avaliado quanto à possibilidade de ser seqüenciador temporal e não quanto à possibilidade de ser seqüenciador em si. 221 Um novo teste propondo avaliações mais diretas da possibilidade de uso do aí e do daí como seqüenciadores está sendo elaborado.

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redações do vestibular. Em um estudo feito por Görski & Tavares (2001), comparando discursos argumentativos orais (em entrevistas do Projeto VARSUL) e escritos (em redações de vestibular da UFSC), aí e daí representaram, somados, 28% dos conectores seqüenciadores encontrados na argumentação oral, ao passo que, na argumentação escrita, foi encontrado apenas um aí.222 Na seção 3.2.1, foi levantada a possibilidade de o daí, além de ser uma marca típica da fala dos pré-adolescentes e dos adolescentes da comunidade de fala florianopolitana, ser uma marca regional, típica do município de Florianópolis (ou talvez do estado de Santa Catarina). Somente um estudo de grandes proporções pode ser esclarecedor a esse respeito: faz-se necessário comparar o panorama das distribuições sociolingüísticas de e, aí, daí e então no domínio da seqüenciação em diversas comunidades de fala do Brasil para que sejam obtidas evidências consistentes de que a super generalização do daí na fala dos pré-adolescentes é um fenômeno regional. No entanto, alguns depoimentos informais colhidos de pessoas (ou melhor, lingüistas, bastante atentos ao como falam em seu redor) pertencentes a comunidades de fala de outras cidades (Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador) apontam fortemente nessa direção, afirmando que o grande uso (o abuso mesmo!) do daí em Florianópolis chama a atenção e que não têm observado tão grande recorrência do conector em suas comunidades e muito menos na fala das crianças.223 Um indício indireto do caráter regional da super disseminação do daí no domínio da seqüenciação são os resultados obtidos por Silva & Macedo (1996:29) em seu estudo sobre o aí, com base em dados de informantes cariocas. Como já mencionado, os pesos relativos atribuídos a cada uma das faixas etárias consideradas foram: de 7 a 14 anos = 0,70; de 15 a 25 anos = 0,60; de 26 a 50 anos = 0,40; mais de 50 anos = 0,30. Ou seja, o aparecimento do aí diminui à medida que aumenta a idade dos informantes. Uma vez que, no Rio de Janeiro, o aí não teve interrompida sua trajetória em direção a um maior uso a cada geração de falantes, é possível que o uso do daí não esteja tão disseminado quanto em Florianópolis, em que este conector parece disputar espaço com aquele, em especial na fala dos pré-adolescentes – e vencer a disputa. Apreciemos, a seguir, a distribuição de e, aí, daí e então em relação ao nível de escolaridade dos informantes com mais de 15 anos.

222 Foram analisados os trechos argumentativos de 12 entrevistas de informantes florianopolitanos de 15 a 21 anos pertencentes ao Banco VARSUL e de 100 redações do vestibular 2001 da UFSC, gentilmente fornecidas pela COPERVE/UFSC. Foram obtidos um total de 292 dados, correspondentes a 139 conectores na fala e 153 conectores na escrita. 223 Por considerar muito interessante a indignação que claramente transparece no depoimento informal dado por uma colega, mestre em sociolingüística e vinda a pouco tempo do Rio de Janeiro, transcrevo-o aqui: “As crianças de Florianópolis usam muito daí. Lá no Rio de Janeiro é mais o aí. O meu filho pegou, só tá usando daí. Eu digo para ele usar então no lugar. É por causa da escrita, que a fala influi e ele vai acabar usando só daí. Eu digo para ele: Então! Então!” (M, 2001/2) Seria o daí uma terrível praga florianopolitana, pronta a atacar criancinhas indefesas vindas de outras cidades? Um bom tema para pesquisas futuras.

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3.2.2.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 7: Influência da escolaridade sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

ESCOL. Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Primário 506/1.203 42 0,46 444/1.203 37 0,63 89/1.203 07 0,56 164/1.203 14 0,37 Ginásio 501/991 51 0,50 172/991 17 0,42 71/991 07 0,58 247/911 25 0,55 Colegial 483/960 50 0,54 166/960 17 0,41 44/960 05 0,38 267/960 28 0,59

TOTAL 1.490/3.154 47 782/3.154 25 204/3.154 06 678/3.154 21 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .015 Log-likelihood: -1852.120

Input: .20 Sig: .005 Log-likelihood: -1284.763

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

7º selecionado 1º selecionado 5º selecionado 5º selecionado

Os florianopolitanos de nível colegial e de nível ginasial são os que mais utilizam o e, confirmando a expectativa de uma maior recorrência desse conector entre os grupos de falantes que tiveram mais tempo de contato com a aprendizagem formal. A escola parece influenciar também o uso do aí: como esperado, seu aparecimento sofre redução com o avanço da escolarização. Há uma forte inclinação (freqüência de 37% e peso relativo de 0,63) para que o aí ocorra na fala de indivíduos de nível de escolaridade primário, paralelamente à redução de seu emprego por parte dos mais escolarizados.224 Como o aí, o daí predomina entre indivíduos de nível primário (7% e 0,56), mas recebe um pouco mais de destaque na fala dos indivíduos de nível ginasial (7% e 0,58). A exemplo do e, colega de serviço com o qual possui em comum o bom conceito no mercado lingüístico, o então é mais recorrente junto a informantes de níveis de escolaridade colegial e ginasial, como uma alternativa não estigmatizada de seqüenciar informações, e é bastante inibido na fala de informantes do nível de escolaridade mais baixo, o primário. Enfim, a comparação entre a influência do nível de escolaridade sobre cada um dos conectores em estudo revela uma oposição entre o aí e o daí, os articuladores de menor status, que predominam na fala de indivíduos do primário, e o e e então, articuladores não estigmatizadas, que predominam na fala de indivíduos de níveis de escolaridade mais altos, ginásio e colegial. 3.2.3 SEXO - AS GAROTAS SÃO AS MAIORES RESPONSÁVEIS? 3.2.3.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES Segundo Labov (1990:205) e Chambers (1995:111), em situações sociolingüísticas estáveis, os homens usam uma freqüência maior de formas não padrão do que as mulheres, que tendem a preferir formas socialmente valorizadas. Uma inversão dessa tendência pode ser tomada como indicação de que uma nova forma está se implementando na língua: em grande parte das mudanças lingüísticas, são as mulheres que utilizam mais as formas inovadoras, inclusive as estigmatizadas.

224 Silva & Macedo (1989:72), em um estudo sobre o aí com dados de informantes do Rio de Janeiro, chegaram a conclusões semelhantes: “(...) quanto menor for o nível de escolaridade, maior é o uso do conectivo aí”. Os pesos relativos referentes à influência da escolaridade sobre a utilização desse conector obtidos pelas autoras foram: 0,55 para o primário; 0,50 para o ginásio; 0,45 para o colegial.

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(cf. Labov, 1990, 2001; Silva & Paiva, 1996) Por que as mulheres são, em geral, as líderes da mudança? Uma possível explicação está no fato de que a maioria das crianças aprendem os rudimentos de sua língua nativa com mulheres (mães, babás, professoras de creches), o que faz com que as mudanças que têm liderança feminina sejam aceleradas, às expensas das lideradas pelos homens (Labov, 1990, 2001). Comparando resultados obtidos por estudos sociolingüísticos em diversas partes do mundo, Labov (2001:445) obteve indícios que apontam como líderes da transmissão da mudança lingüística um grupo específico de mulheres, as adolescentes: uma garota de doze anos observa as formas inovadoras usadas pelas garotas de dezesseis anos e avança seu próprio uso, ao imitá-las. Uma das hipóteses centrais desta pesquisa é que o domínio da seqüenciação retroativo-propulsora da comunidade de fala de Florianópolis está passando por um período de re-organização de grandes proporções, graças à super utilização do daí pelos florianopolitanos mais jovens. Os resultados obtidos para o grupo de fatores idade trazem diversas evidências de que está realmente em progresso uma mudança vigorosa (cf. seção 3.2.1). A propósito das influências do grupo de fatores sexo, uma possível previsão seria a de um maior uso do e e do então por parte das mulheres, pois trata-se de conectores não estigmatizados, opondo-se a um maior uso por parte dos homens do aí e do daí, conectores considerados de menor status social. No entanto, como parece estar em jogo o fenômeno de mudança em direção ao incremento do uso do daí como marca da seqüenciação, é possível que as mulheres estejam liderando o processo, fazendo um maior uso desse conector em relação aos homens, que optariam pelas formas mais antigas, o e e o então, e mesmo pelo aí. 3.2.3.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tabela 8: Influência do sexo sobre o uso de e, aí, daí e então E AÍ DAÍ ENTÃO

SEXO Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Ap./Tot. % PR Feminino 973/2.203 44 0,52 491/2.203 22 0,51 408/2.203 19 0,49 331/2.203 15 0,46 Masculino 817/2.097 39 0,48 435/2.097 21 0,49 482/2.097 23 0,51 363/2.097 17 0,54

TOTAL 1.790/4.300 42 926/4.300 22 890/4.300 21 694/4.300 16 Input: .43 Sig: .002

Log-likelihood: -2179.259 Input: .19 Sig: .086 Log-likelihood: -1851.521

Input: .20 Sig: .215 Log-likelihood: -1283.950

Input: .15 Sig: .000 Log-likelihood: -1285.255

8º selecionado não selecionado não selecionado 7º selecionado Não é confirmada a hipótese de que as mulheres optariam pelos seqüenciadores mais valorizados socialmente: o e destaca-se entre as mulheres (44% e 0,52), mas o aí, de menor status social, também (22% e 0,51). A hipótese complementar, isto é, de que os homens dariam privilégio a conectores não padrão, também é apenas parcialmente confirmada: o daí é favorecido na fala dos homens, mas o então, que conta com boa avaliação no mercado lingüístico, também o é. Também não foi confirmada a hipótese de que as mulheres estariam conduzindo a mudança em direção ao predomínio do daí no domínio da seqüenciação em Florianópolis: esse conector é ligeiramente mais recorrente na fala dos homens (23% e 0,51) que na fala das mulheres (19% e 0,49). Semelhantemente ao ocorrido aqui, no estudo de Silva & Macedo (1996:28) sobre o uso do aí em terras cariocas, o grupo de fatores sexo não foi considerado relevante, tendo sido obtidos os

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seguintes pesos relativos: feminino = 0,50; masculino = 0,50, bastante próximos aos pesos atribuídos ao aí em Florianópolis: feminino = 0,51 e masculino = 0,49. O grupo de fatores sexo foi descartado para o aí e para o daí pelo VARBRUL, que o selecionou somente para o e e para o então, mas como pouco relevante (em oitavo lugar para ambos). As freqüências e pesos relativos apontam a existência de poucas diferenças entre mulheres e homens (todos os pesos ficaram em cerca de 0,50). Por tais motivos, dentre os grupos de fatores levados em conta neste estudo, sexo aparenta ser o que menos influi sobre o uso de e, aí, daí e então. Talvez isso se deva ao modo como o grupo de fatores em questão foi controlado: sexo foi tomado isolada e globalmente, distinguindo-se apenas homens e mulheres em geral. É possível que o grupo mostre-se mais significativo (e inclusive passe a ser selecionado pelo VARBRUL em melhores posições) ao interagir diretamente com os outros grupos sociais aqui controlados - idade e escolaridade -, através de cruzamentos.225 Tem sido notado que o comportamento de homens e mulheres pode ser bastante diferente entre si quando se considera a interação de sexo com outros grupos de natureza social. (Labov, 1990:221) Um cruzamento entre sexo e idade pode revelar, por exemplo, se, à semelhança do que têm constado diversos estudos variacionistas (cf. Labov, 2001), são as adolescentes e as pré-adolescentes quem mais avançam a mudança. Um cruzamento entre sexo e escolaridade também pode ser esclarecedor, permitindo que se observe se o comportamento das mulheres e dos homens de mesma escolaridade é similar. Vejam-se os resultados do cruzamento entre sexo e idade na tabela 9 e os resultados do cruzamento entre sexo e escolaridade na tabela 10. Em todas as rodadas em que constaram os dois grupos cruzados, estes foram selecionados em boa posição e os grupos sexo, idade e escolaridade foram descartados. Daí podemos concluir que grupos sociais mais específicos, frutos das várias combinações possíveis entre os traços sociais controlados (dois sexos, quatro idades e três escolaridades) são mais relevantes para o uso de e, aí, daí e então do que cada grupo social considerado isolada e globalmente. Agora, vamos à análise dos resultados... Serão as garotas as culpadas?

225 Em um cruzamento, os fatores de dois grupos são cruzados, isto é, combinados de todos os modos possíveis (no caso de sexo/escolaridade, temos, neste estudo, feminino e primário, feminino e ginásio, etc) e à cada combinação é atribuído um peso relativo.

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Tabela 9: Cruzamento entre sexo e idade

SEXO Feminino Masculino

E AÍ DAÍ ENTÃO E AÍ DAÍ ENTÃO IDADE Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR 09-12 173/33 0,51 95/18 0,44 236/46 0,75 13/03 0,24 127/20 0,33 49/08 0,19 450/72 0,91 03/00 0,06 15-21 232/44 0,48 87/17 0,48 142/27 0,88 63/12 0,50 247/46 0,55 223/41 0,73 19/04 0,31 51/09 0,48 25-45 307/45 0,55 228/33 0,65 22/03 0,28 131/19 0,68 181/43 0,47 62/15 0,46 07/02 0,21 175/41 0,86 + de 50 261/55 0,57 81/17 0,53 08/02 0,23 124/26 0,76 262/52 0,56 101/20 0,56 06/01 0,16 134/27 0,75 TOTAL 973/100 491/100 408/100 331/100 817/100 435/100 482/100 363/100

Tabela 10: Cruzamento entre sexo e escolaridade

SEXO Feminino Masculino

E AÍ DAÍ ENTÃO E AÍ DAÍ ENTÃO ESCOL. Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR Primário 275/45 0,41 203/33 0,48 73/12 0,86 60/10 0,22 231/39 0,51 241/41 0,79 16/03 0,13 104/18 0,58 Ginásio 319/53 0,48 91/15 0,25 67/11 0,83 125/21 0,44 182/47 0,53 81/21 0,66 04/01 0,12 122/31 0,69 Colegial 206/44 0,38 102/22 0,35 32/07 0,74 133/28 0,58 277/57 0,72 64/13 0,48 12/02 0,19 134/28 0,63 TOTAL 800/100 396/100 172/100 318/100 690/100 386/100 32/100 360/100

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Conforme a tabela 9, homens e mulheres de mais de 50 anos comportam-se da mesma forma ao favorecer o aparecimento do e e do aí em sua fala. O e e o aí também são favorecidos por mulheres de 25 a 45 anos (com freqüências de 45% e 33% e pesos relativos de 0,55 e 0,65, respectivamente) e por adolescentes do sexo masculino (0,55 o e e 0,73 o aí). Estes se opõem, portanto, às adolescentes, em cuja fala recebe maior espaço o daí (27% e 0,88), que também é francamente favorecido na fala dos pré-adolescentes tanto do sexo feminino (46% e 0,75), quanto do sexo masculino (72% e 0,91). Homens e mulheres de mais de 25 anos são os que mais se inclinam ao uso do então, recebendo pesos relativos altos (de 0,68 a 0,86) Então relaciona-se, dessa guisa, aos florianopolitanos mais maduros, tanto homens quanto mulheres, aos quais também estão relacionados o e e o aí (os quais, dentre os grupos de indivíduos adultos, somente não são condicionados favoravelmente na fala dos homens de 25 a 45 anos, recebendo aí peso relativo neutro - 0,47 e 0,46, respectivamente). Destes três conectores, o único que mostra vínculo com a fala adolescente - mais especificamente, com adolescentes do sexo masculino - é o aí (freqüência de 41% e peso relativo de 0,73). Na fala dos demais grupos - adolescentes de sexo feminino e pré-adolescentes de ambos os sexos - predomina o daí. O cruzamento entre sexo e idade revela os grupos líderes da mudança rumo ao incremento do uso do daí na seqüenciação florianopolitana: as adolescentes e as meninas e os meninos pré-adolescentes. A previsão de que as mulheres seriam líderes do processo de transmissão das inovações no reino da seqüenciação é confirmada, relativizando-se sexo à idade: os dois grupos de mulheres jovens pressionam a inovação, ao passo que os outros dois grupos, correspondentes às mulheres com mais de 25 anos, tendem à utilização das formas mais antigas no domínio, e e então. Estes grupos também tendem à utilização do aí, possivelmente mais antigo no ramo que o daí (cf. capítulo V) e que já mostrava uma boa freqüência na primeira metade do século XX (cf. seção 3.2.1 e capítulo VI). É possível tecer a hipótese de que o daí tornou-se inicialmente marca identitária das adolescentes de 15 a 21 anos (freqüência de 27% e peso relativo de 0,88), em oposição aos adolescentes, em cuja fala o daí é desfavorecido (04% e 0,31). A tendência de incremento do uso do seqüenciador em causa foi transmitida a garotas cada vez mais jovens, até estourar como marca da fala dos pré-adolescentes de ambos os sexos. É digno de nota o fato de que não só as garotas, mas também os garotos de 09 a 12 anos tomaram o daí como marca identitária, afastando-se dos adolescentes de sexo masculino, e aproximando-se mais das adolescentes e garotas da 09 a 12 anos. Talvez os garotos desta faixa etária tenham acelerado mais o uso do daí, em comparação com as garotas da mesma idade: a freqüência do conector na fala deles é de 0,72% e o peso relativo é de 0,91, maiores que na fala delas, de 46% e 0,75. Agora, passemos à análise dos números expostos na tabela 10. O e encontra um bom nicho na fala dos homens de nível de escolaridade colegial (freqüência de 57% e peso relativo de 0,72). O aí é favorecido na fala dos homens de nível primário e ginasial (41%/0,79 e 21%/0,66, respectivamente). O daí encontra espaço na fala das mulheres, independentemente da escolaridade (com pesos relativos de 0,74 a 0,86). Em oposição, o então encontra espaço na fala dos homens, independentemente da escolaridade (com pesos de 0,58 a 0,63). Portanto, o comportamento das mulheres e dos homens com o mesmo tempo de contato com o ensino formal não é idêntico. Na fala das mulheres que tiveram quatro ou oito anos de

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escolarização (primário ou ginásio completos), é o daí que recebe destaque, ao passo que, na fala dos homens de mesma escolarização, são o aí e o então que recebem destaque. Mulheres e homens com colegial completo assemelham-se quanto à preferência pelo então: utilizam-no com a mesma freqüência (28%) e obtêm, para ele, bons pesos relativos (0,58 e 0,63). No entanto, diferenciam-se quanto ao peso relativo mais alto: para as mulheres, é o aí que o recebe (0,74), e, para os homens, é o e (0,72). Podemos dizer que mulheres com os três níveis de escolaridade considerados lideram a mudança em direção ao daí, ressalvando-se que, quanto menor a escolaridade da falante, maior o avanço obtido pelo conector, e que, na fala das mulheres de maior escolaridade, o e também é condicionado positivamente. Já os diversos grupos de homens representam trincheiras contra o avanço do daí:

(i) Homens de todas as escolaridades optam com grande freqüência pelo e e pelo então. A este são atribuídos pesos relativos altos (de 0,58 a 0,63) e àquele um peso alto em relação a homens com colegial (0,72), e pesos menores, mas não desfavorecedores, em relação a homens com primário e ginásio (0,51 e 0,53, respectivamente).

(ii) Homens do primário e do ginásio também tendem ao emprego do aí (pesos relativos de 0,79 e 0,66, respectivamente).

(iii) Homens do colegial também tendem ao emprego do e (peso de 0,72). No cruzamento entre sexo e escolaridade, o grupo de informantes de 09 a 12 anos foi deixado de lado, uma vez que seus membros possuem o mesmo nível de escolaridade, não fazendo sentido um cruzamento. Claro que os florianopolitanos que mais têm contribuído para a super generalização do daí como marca da seqüenciação pertencem à essa faixa etária e à escolaridade correspondente (e são de ambos os sexos, como revela o cruzamento entre sexo e idade). Contudo, a partir da análise dos resultados do cruzamento sexo/escolaridade, podemos acrescentar ao grupo dos disseminadores do daí, constituído em especial pelos pré-adolescentes com primário I, também as mulheres de todos os níveis de escolaridade - em especial as de 15 a 21 anos, as quais também são apontadas, pelos resultados obtidos para o cruzamento entre sexo e idade, como um dos grupo que mais favorece o daí (cf. tabela 9). 3.3 O PANORAMA Esta seção sintetiza as descobertas feitas acerca dos meandros das inter-relações entre funções e contextos de uso pertinentes ao domínio da seqüenciação retroativo-propulsora na comunidade de fala de Florianópolis, desveladas pouco a pouco ao longo das seções anteriores. Através da análise das influências exercidas sobre o uso de e, aí, daí e então pelos diversos traços contextuais de natureza lingüística e social considerados, chegou-se ao panorama da distribuição sociolingüística de cada um desses conectores, revelando-se, assim, pelo conjunto de todas as influências, quais contextos atraem com mais regularidade cada um dos conectores - os lugares ao sol (ou à lua) preferenciais para o seu aparecimento. Tal panorama (traçado no quadro 36) traz os indícios necessários para o mapeamento das tendências de especialização atuais de e, aí, daí e então - o prometido instantâneo da disputa entre eles pelo território da seqüenciação em Florianópolis. De posse desse quadro de especializações, podemos tecer previsões acerca dos rumos futuros do processo de gramaticalização de cada um

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dos conectores e do domínio como um todo (lembrando do efeito dominó: se um seqüenciador se move, os demais se movimentam em resposta). Vejamos:

Quadro 36: Panorama da distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então - Florianópolis

Grupos de Fatores E AÍ DAÍ ENTÃO

Subfunções seqüenciadoras

seq. textual

(2)

seq. temporal introd. de efeito

(3)

introd. de efeito finalização

(3)

finalização introd. de efeito

retomada (2)

Tipos de discurso descrição argumentação desc. de vida

(4)

narrativa procedimentos

(2)

procedimentos narrativa

(4)

argumentação desc. de vida

descrição (4)

Níveis de articulação discursiva

seg. oracional (1)

seg. tópico (4)

tópico subtópico seg. tópico

(2)

tópico subtópico seg. tópico

(3)

Graus de conexão graus 0 e 0,5

(5)

graus de 0,5 a 4 (amalgamados)

(5)

graus de 0,5 a 2 e grau 3,5

(não)

graus de 2,5 a 5 (6)

Traços semântico-pragmáticos verbais

existência estado

e. tr. não int. processo

(6)

momentâneo (7)

instância dicendi

atividade esp. atividade dif.

(não)

atenuação relacional instância

atividade dif. processo

(8)

Idade mais de 50 anos 25 a 45 anos 15 a 21 anos

(3)

15 a 21 anos 25 a 45 anos

(6)

09 a 12 anos 15 a 21 anos

(1)

mais de 50 anos 25 a 45 anos

(1)

Escolaridade colegial (7)

primário

(1)

ginásio primário

(5)

colegial ginásio

(5)

Sexo feminino (8)

feminino (não)

masculino (não)

masculino (7)

O quadro acima mostra os contextos preferenciais para o uso de e, aí, daí e então e enumera a ordem de relevância dos grupos de fatores para cada uma das camadas/variantes, de acordo com a seleção feita pelo VARBRUL.226 A utilização repetida de uma certa forma em um dado contexto pode fazer com que, com o passar do tempo, tal forma torne-se especializada para o contexto em questão, superando suas concorrentes. As preferências de uso de e, aí, daí e então são indícios de suas tendências de especialização em diferentes espaços sociolingüísticos pertinentes ao funcionamento da

226 Os grupos de fatores marcados com um (não) são aqueles que não foram selecionados como significativos, mas cujos resultados são apresentados a título de comparação.

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seqüenciação no discurso e, por tabela, dos rumos que podem estar sendo tomados pelos conectores - e, indissociavelmente, pelo domínio como um todo - em seu processo de gramaticalização. Como já mencionado, situações de estratificação/variação podem ser solucionadas devido à especialização sofrida por uma ou mais das camadas/variantes. Há, a princípio, duas possibilidades:

(i) Especialização por generalização: uma das camadas/variantes sofre generalização de significado, tornando-se apta a assumir significados gramaticais mais gerais, abarcando especificações de significado e/ou preferências contextuais que porventura sejam manifestadas pelas formas concorrentes. Estas se tornam, então, desnecessárias e podem vir a perder espaço até desaparecer;

(ii) Especialização por especificação: cada uma das camadas/variantes adquire

significados mais específicos e/ou passa a ser utilizada em contextos sociolingüísticos específicos, eliminando-se assim a competição Nesse caso, nenhuma forma desapareceria ou seria utilizada como marca de todos os contextos relacionados ao domínio, mas cada forma seria empregada em contextos particulares. Talvez mais de uma dessas soluções possa ser dada a uma mesma situação de estratificação/variação quando mais de duas camadas/variantes estão em jogo, caso da seqüenciação. (cf. Tavares, 1999a)

Ao considerarmos a hipótese (i) de solução da estratificação/variação, que se refere ao predomínio de uma das camadas/variantes sobre as demais, temos a possibilidade de que a camada/variante predominante acabe por substituir as outras completamente. Embora não possamos afirmar acerca das unidades sob pesquisa se uma delas irá substituir as outras no desempenho da seqüenciação, os resultados para o grupo de fatores idade podem ser interpretados como apontando nessa direção: aí e daí, as formas mais inovadoras, parecem ocupar cada vez mais o espaço do e e do então, as formas mais antigas, já que, quanto mais jovem o falante, maior o uso do aí e do daí para marcar a seqüenciação. Entre os falantes mais novos, os pré-adolescentes, até o aí tem seu uso retraído, passando a sofrer, como o e e o então, as conseqüências do grande avanço do daí. Todavia, o maior atingido pela super generalização do daí é o então. É na trajetória de diminuição do uso do então, refletida como imagem de espelho pela trajetória de aumento do uso do daí, que está o principal indício da possibilidade de ocorrência de especialização por generalização. É provável que o daí tenha abocanhado, com o passar do tempo, mais e mais nacos do território do então, fazendo com que este, hoje em dia, corra risco de desaparecimento na fala de Florianópolis. A hipótese (ii) para a solução da estratificação/variação diz respeito não à vitória de uma das camadas/variantes com a eliminação das concorrentes, mas sim à especialização de cada camada/variante para contextos distintos. Temos indícios da especialização do e para a seqüenciação textual, do aí para a seqüenciação temporal e do então para a retomada. Aí, daí e então disputam a introdução de efeito, e o daí e o então a finalização. A especialização de cada conector para uma subfunção diferente acabaria com a situação de estratificação/variação. No entanto, os resultados apenas ressaltam tendências de emprego dos itens averiguados, não sendo constatado o uso categórico de nenhum deles em uma das referidas subfunções. Portanto, embora o pêndulo, dependendo da subfunção considerada, aponte ora para um ora para outro dos conectores, estes estão disputando um lugar ao sol (e à lua) no desempenho de todas as subfunções da seqüenciação.

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As preferências de uso de e, aí, daí e então em relação aos tipos de discurso, aos níveis de articulação discursiva, aos graus de conexão e aos traços verbais também são indícios de especialização. O e e o aí parecem estar se especializando para contextos distintos, opondo-se quanto a tipos de discurso, níveis de articulação, graus de conexão e traços verbais, além de predominarem em subfunções seqüenciadoras distintas. Já o então se aproxima do e quanto aos tipos de discurso, e ao daí quanto à subfunção e aos níveis de articulação. Por sua vez, o aí e o daí assemelham-se quanto aos tipos de discurso e ao predomínio em graus de conexão intermediários. Além disso, partilham com o então a boa freqüência na inter-ligação de segmentos tópicos. E, aí, daí e então correlacionam-se a verbos de diferentes traços verbais. A influência dos grupos de fatores sociais sobre a utilização dos seqüenciadores também revela tendências de especialização: aí é favorecido na fala dos adolescentes, como o e e o daí, e na fala dos indivíduos de 25 a 50 anos, como o e e o então. Na fala dos indivíduos de mais de 50 anos, os favorecidos são o e e o então, e, na faixa pré-adolescente, o grande destaque é o daí. O e e o aí apresentam similaridades quanto à influência do sexo dos informantes: ambos são mais recorrentes na fala das mulheres, diferindo do daí e do então, mais recorrentes na fala dos homens. Diferentemente, quanto ao nível de escolaridade, o aí aproxima-se mais do daí, e o e aproxima-se mais do então. As tendências de especialização se manifestam, portanto, através de todos os contextos sociolingüísticos que mais atraem cada um dos seqüenciadores. O resultado é uma rede de inter-relações bastante complexa entre formas e traços contextuais. Por exemplo, o daí e o então predominam nas mesmas subfunções e nos mesmos níveis de articulação. Em contraparte, são favorecidos por tipos de discurso diferentes, além do que aparecem com mais regularidade na fala de indivíduos de idade e de níveis de escolaridade diferentes. Contrariamente, aí e daí tendem a ocorrer nos mesmos tipos de discurso e graus de conexão, porém são favorecidos por subfunções distintas. É essa combinação de influências sociolingüísticas múltiplas (todas simultaneamente presentes a cada situação de interação) que condiciona o uso das formas e, em conseqüência, sua especialização (ou disputas por especialização) para cada contexto. Na retaguarda das disputas por especialização, observamos a forte pressão exercida pelas motivações cognitivo-comunicativas e sociais. Como o papel dessas motivações já foi exaustivamente detalhado quando da análise das influências exercidas pelos grupos de fatores controlados, será aqui rapidamente resumido. Temos duas motivações sociais em competição na comunidade de fala de Florianópolis. De um lado, a adoção dos conectores não-padrão aí e daí como marcas identitárias pelos adolescentes e pré-adolescentes resulta em um acréscimo de seu uso entre indivíduos dessas faixas etárias, bem como entre indivíduos de menor escolaridade. Do outro lado, o caráter estigmatizado desses conectores leva a uma menor taxa de aparecimento entre os informantes com mais de 25 anos e entre os informantes mais escolarizados. Na fala desses indivíduos, o e e o então conquistam mais espaço, como conectores seqüenciadores socialmente valorizados. O princípio da marcação parece ser a motivação cognitivo-comunicativa mais influente para a distribuição lingüística de e, aí, daí e então. E, o conector menos marcado, tende a ser mais recorrente em contextos menos marcados, e então, o conector mais marcado, tende a ser mais recorrente em contextos mais marcados. Aí e daí, de marcação intermediária para menos e para mais, costumam ser atraídos por contextos de marcação similar. Foi descoberta, portanto, a

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existência de uma intensa ação da marcação sobre as tendências de especialização de e, aí, daí e então, que pode ser assim esquematizada: ‘forma mais complexa ⇒ contexto mais complexo’, ‘forma menos complexa ⇒ contexto menos complexo’. O princípio da persistência também está subjacente às influências referentes às subfunções seqüenciadoras, aos tipos de discurso e aos traços semântico-pragmáticos verbais, juntando forças com o princípio da marcação. No que diz respeito a tais grupos de fatores, e e aí são ambos mais freqüentes em contextos menos marcados. Contudo, graças à persistência, e, oriundo de usos ligados a funções-significações de natureza genérica, é propenso a marcar contextos definidos como menos marcados e mais genéricos;227 e aí, proveniente de fontes mais concretas, vinculadas à indicação espácio-temporal, inclina-se a sinalizar contextos menos marcados (ou de marcação intermediária para menos) e mais concretos. Para o daí, o princípio da persistência também parece agir em conjunção com o princípio da marcação. O conector, que possui nível de complexidade intermediário para mais e adentrou a seqüenciação como migrante de um manancial caracterizado por traços abstratos/complexos (o uso híbrido entre anáfora discursiva e introdução de efeito), tende a ser utilizado em contextos mais marcados (ou de marcação intermediária para mais) e traços abstratos/complexos. Ou seja, detalhes dos desenvolvimentos históricos anteriores são percebidos ainda hoje nos usos dados a e, aí e daí, refletindo-se em sua distribuição lingüística. No entanto, obtive evidências de que resquícios do passado não têm pressionado as preferências de uso do então. De acordo com o princípio da persistência, o então deveria predominar em âmbitos mais concretos e menos marcados, pois deriva de fontes anafóricas temporais portando esses traços. Diferentemente, em consonância com o princípio da marcação, o então deveria aparecer mais em âmbitos de maior complexidade, já que é o seqüenciador mais marcado. Os resultados indicam que o princípio que se sai vitorioso nesse embate é o da marcação: (i) então é mais freqüentemente relacionado a subfunções, tipos de discurso e traços verbais mais complexos; (ii) há uma intensa restrição à sua utilização para exibir a seqüenciação temporal, subfunção que, por hipótese, serviu-lhe de porta de entrada no domínio da seqüenciação, e que apresenta um traço semântico-pragmático em comum com seus usos fontes no plano anafórico: a indicação temporal. Como já foi apontado quando da análise dos grupos de fatores subfunções seqüenciadoras, tipos de discurso e traços semântico-pragmáticos verbais, é possível que a tendência à abstração e/ou à generalização crescentes, que guia o desenvolvimento de itens gramaticalizandos, esteja por trás dessa vitória do princípio da marcação. Caso o então tenha passado por processos de abstração e/ou generalização, provavelmente sofreu um distanciamento, ao longo do tempo, dos papéis relativos à sinalização de traços similares aos de suas fontes de natureza mais concreta, passando a ser vinculado com maior freqüência a contextos de seqüenciação mais complexos. Em um estudo acerca das subfunções da seqüenciação desempenhadas pelo então nos séculos XIV, XVI e XVIII (Tavares, 2000), obtive fortes indícios da ocorrência dos processos de mudança em questão. Constatei um maior uso do então como seqüenciador temporal no século XIV em relação ao uso como introdutor de efeito, o que se inverte nos séculos posteriores.228

227 Devemos lembrar, porém, que, em alguns casos, a marcação e a persistência não andam juntas. Por exemplo, e é atraído por tipos de discurso mais marcados, o que, em conformidade com o princípio da marcação, não é o esperado. Todavia, os tipos de discurso aos quais e preferencialmente se vincula manifestam traços genéricos, o que é previsto pelo princípio da persistência. Desse modo, parece que a persistência é mais forte que a marcação no condicionamento do uso do e quanto aos tipos de discurso. 228 Nesse estudo, obtive os seguintes resultados: ∗ século XIV: então seqüenciador temporal: 55%; então introdutor de efeito: 45% (total de dados: 32);

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Embora os dados encontrados tenham sido poucos, deixam emergir a possibilidade de especialização em curso: então, no corpus atual, é fortemente condicionado pela introdução de efeito (freqüência de 28% e pesos relativo de 0,80), e pouco recorrente como seqüenciador temporal (03% e 0,29). Com o passar do tempo, o então foi provavelmente mais e mais relacionado a contextos complexos, não apenas quanto às subfunções seqüenciadoras, mas também quanto aos tipos de discurso e aos traços verbais. O princípio da marcação exerce ação regularizadora, ao contribuir para a enraízação das formas lingüísticas: o que é de certa natureza (mais ou menos complexa) tende a ser repetido em contextos de propriedades similares. Todavia, processos de abstração e/ou generalização crescentes, ao patrocinarem a extensão funcional das formas, podem causar alterações em seu grau de marcação. Por exemplo, no século XIV, o então pode ter sido considerado, pelos falantes, menos marcado do que hoje em dia, e era, conseqüentemente, bastante utilizado para exibir a seqüenciação temporal, uma nuança seqüenciadora pouco complexa. O grau de complexidade atribuído aos itens lingüísticos sofre alterações paralelamente às alterações de especialização de uso dos mesmos ao longo do tempo. Ou seja, se os itens mudarem, especializando-se para encargos mais ou menos marcados, seu grau de marcação acaba sendo modificado na mesma proporção. É o que deve ter acontecido com o então, tornando-se mais marcado aos olhos dos falantes à medida que avançava em seu processo de gramaticalização. Esse seu avanço teve como resultado uma maior sujeição ao princípio da marcação (o conector é fortemente atraído pelos traços contextuais mais complexos, em todos os grupos de fatores testados) e uma menor sujeição ao princípio da persistência, que pouco a pouco deixou de influir sobre o tipo de território pleiteado pelo então. Infelizmente, não foi possível levar a cabo estudos acerca das subfunções da seqüenciação vinculadas ao aparecimento de e, aí e daí em épocas diferentes do século XX. Não localizei dados do aí e do daí como seqüenciadores em textos escritos antes desse período e localizei dados demais do e, o que também é um fator dificultador, exigindo ou um grande tempo para a realização da análise ou recortes diferenciados dos textos (tomando-se excertos bem menores), o que prejudicaria uma comparação com os resultados encontrados para o então no estudo supracitado. Há, porém, outra possibilidade de obtenção de um vislumbre de como deveria ter sido a seqüenciação pré aí e daí e, assim, de calcular o “estrago” causado por sua entrada no domínio. O aí já é freqüente entre os florianopolitanos com mais de 50 anos (19% das ocorrências). Assim, torna-se difícil identificar quais os espaços antes típicos do e que, porventura, foram tomados pelo aí. Em termos gerais, nota-se que o aumento da freqüência de aparecimento do aí entre os informantes de 25 a 45 anos (de 19% na faixa etária mais velha para 26%) é acompanhada por uma retração da freqüência do e (de 53% na faixa etária mais velha para 44%). Mas como mapear indícios de alterações de padrões de uso em etapas mais antigas da seqüenciação, se não foram encontrados dados do aí como seqüenciador em períodos de tempo anteriores ao século XX? Como proceder para chegar a um vislumbre de como deveria ter sido a seqüenciação pré aí e daí? A proposta é buscar respaldo em estudos versando a distribuição sociolingüística dos

∗ século XVI: então seqüenciador temporal: 40%; então introdutor de efeito: 60% (total de dados: 22); ∗ século XVIII: então seqüenciador temporal: 33%; então introdutor de efeito: 67% (total de dados: 19).

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conectores seqüenciadores em outra comunidade de fala de língua portuguesa atual, na qual não são utilizados como marcas da seqüenciação nem o aí, nem o daí: a comunidade portuguesa.229 Em estudos anteriores (Tavares, 2002d e 2002e), comparando discursos orais do português brasileiro (PB), mais precisamente do português falado em Florianópolis, e do português europeu (PE), mapeei diferenças e semelhanças entre os domínios da seqüenciação retroativo-propulsora em ambas as comunidades de fala. Os objetivos foram os seguintes: (a) averiguar que conectores são utilizados para seqüenciar informações no PB e no PE; (b) analisar os condicionamentos lingüísticos e sociais sobre o uso desses conectores.230 Descobri que, em Portugal, as camadas/variantes mais freqüentes da seqüenciação são os conectores e, então e portanto, ao passo que, em Florianópolis, são e, aí, daí e então. No corpus do PE, não encontrei nenhum dado do aí e do daí, conectores que, no corpus do PB, representam juntos 34% das ocorrências. Portanto marca 16% da seqüenciação no PE, mas aparece uma só vez em Florianópolis, freqüência baixa demais para que pudesse constar nas rodadas estatísticas. Diversos grupos de fatores foram testados, mas serão destacados a seguir apenas os resultados referentes às subfunções seqüenciadoras. No PE, o e é bastante favorecido pela seqüenciação temporal e pela seqüenciação textual (obtendo freqüências e pesos relativos de 98%/0,72 e 88%/0,64, respectivamente), enquanto então e portanto têm seu aparecimento fortemente condicionado pela introdução de efeito (com freqüências e pesos de 06%/0,73 e 51%/0,94, respectivamente). Diferentemente, no PB, o e é favorecido pela seqüenciação textual (55%/0,69), mas não pela seqüenciação temporal (45%/0,42). A seqüenciação temporal e a introdução de efeito exercem condicionamento favorável sobre o aí (43%/0,69 e 25%/0,59, respectivamente). A finalização e a introdução de efeito privilegiam o emprego do daí (11/0,70 e 10/0,66, respectivamente) e do então (74%/0,85 e 42%/0,78, respectivamente), o qual também é influenciado positivamente pela retomada (38%/0,70).231 Dentre tais números, os que mais nos interessam são os que mostram que, no PB, o aí está bastante especializado para a seqüenciação temporal (com peso de 0,69) e que, no PE, o e é que está altamente especializado para essa subfunção (0,72). Com inspiração em tais resultados, é possível supor que, à semelhança do que acontece no PE atual, o e também tenha sido o conector predominante como marca da seqüenciação temporal em estágios anteriores do PB. Todavia, após ser gramaticalizado como seqüenciador (possivelmente no século XIX ou no início do século XX - cf. capítulo V), o aí passou a disputar com o e o direito à sinalização da seqüenciação temporal, subfunção que manifesta relações temporais, e, assim, representa um bom nicho para uma forma proveniente de usos anafóricos temporais. O que aconteceu depois? O aí derrotou o e e tomou posse da seqüenciação temporal, a qual conserva

229 Além de não encontrar nenhum dado de aí e de daí no corpus investigado, tive, em comunicação pessoal, a confirmação de sua não utilização em Portugal por parte de alguns pesquisadores nativos do país, os quais têm se dedicado ao estudo da fala portuguesa, inclusive analisando as funções discursivas do então. 230 Em tais estudos, a fonte dos dados brasileiros foram 36 entrevistas com informantes de Florianópolis, fornecidas pelo Projeto VARSUL/UFSC, e os dados do português europeu vieram de 36 entrevistas com informantes de Portugal, integrantes de um subcorpus do Corpus de Freqüência, pertence ao Projeto do Português Fundamental (cf. Nascimento, Marques e Cruz, 1987). Em ambos os corpora, os informantes foram distribuídos homogeneamente em relação às variáveis sociais sexo, idade (15 a 21 anos, 25 a 45 anos, mais de 50 anos) e escolaridade (quatro anos, oito anos e onze anos de escolaridade). Ao todo, foram controlados cinco grupos de fatores lingüísticos – subfunções seqüenciadoras, tipos de discurso, níveis de articulação, graus de conexão e traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector – e três grupos de fatores extralingüísticos - sexo, idade e escolaridade. Foram realizadas rodadas binárias distintas considerando cada camada/variante versus as demais, além de rodadas eneárias. Foram feitas rodadas em separado para cada uma das comunidades de fala e posteriormente foi feita a comparação entre os resultados. 231 Foram encontrados poucos dados de retomada e de finalização no corpus do PE. Assim, elas não foram consideradas nas rodadas estatísticas.

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como um de seus contextos de uso preferenciais até hoje. Embora perdendo espaço na seqüenciação temporal, uma das subfunções menos marcadas, o e manteve-se com destaque na seqüenciação textual, a menos marcada de todas, e a mais compatível com seus usos fontes, vinculados à inter-ligação entre informações. Posteriormente, surgiu no domínio o daí, cuja super disseminação na comunidade de fala florianopolitana acarretou a continuidade da guerra pelo território da seqüenciação continua, com novos focos de disputa sendo formados... As tendências de uso dos seqüenciadores observadas na fala de Florianópolis foram tomadas como indícios das inovações e dos rumos a serem seguidos futuramente pelo domínio da seqüenciação. A confirmação ou refutação dessas previsões depende dos arranjos e re-arranjos que ainda terão lugar no domínio, sendo impossível afirmar com exatidão qual será o caminho percorrido. As tendências de uso dos seqüenciadores observadas na fala de um período de tempo anterior - mais precisamente, em torno de 1940 - também podem ser tomadas como indícios de desenvolvimentos futuros. A confirmação de tais previsões é possível, pois os usos dados presentemente à seqüenciação representam o futuro dos usos de ontem e, ao compará-los, podemos verificar se as previsões feitas com base na distribuição sociolingüística dos seqüenciadores no passado são confirmadas ou não pela distribuição sociolingüística atual. Na próxima seção, que põe o foco sobre tais questões, é apresentada a análise da seqüenciação em As Vinhas da Ira, romance traduzido para o português em 1940. 4. ANÁLISE DOS DADOS – AS VINHAS DA IRA O romance The Grapes of Wrath, escrito em 1939 por John Steinbeck, é um clássico da literatura norte-americana. Narra as desventuras de uma família de retirantes de Oklahoma, os Joad, que perdem para os latifundiários as terras nas quais viveram por gerações. Com um mesmo objetivo em mente, uma multidão de agricultores desempregados - incluindo os Joad - vende seus parcos bens, compra caminhões e carros caindo aos pedaços, e põe-se na estrada, percorrendo milhares de quilômetros em direção ao sonho dourado representado pelo estado das frutas abundantes, Califórnia, para o qual apontavam tentadoramente os inúmeros panfletos que, em todo país, ofertavam empregos na colheita de pêssegos, laranjas e uvas. Depois de muitas provações, a família Joad finalmente chega na Califórnia, só para constatar que o trabalho disponível - pouco e para poucos - não era muito diferente da escravidão pura e simples. Começa então sua odisséia em busca de melhores condições de vida, enfrentando grandes desafios e tragédias, e sempre driblando a polícia, a caça dos desordeiros inconformados com a miséria. Trata-se, enfim, de um romance-denúncia dos dramas e flagelos de um país debilitado pela grande depressão dos anos 30. John Steinbeck, agraciado com o prêmio Nobel de literatura em 1964, recebeu, por The Grapes of Wrath, o Prêmio Pulitzer.

The Grapes of Wrath foi traduzido para o português brasileiro em 1940 por Ernesto Vinhaes e Herbert Caro, com o título de As Vinhas da Ira. Foi em um dos textos ainda sobreviventes dessa primeira edição do romance232 que tive a feliz surpresa de encontrar o aí não apenas desempenhando papéis dêiticos e anafóricos, mas também exibindo a seqüenciação retroativo-propulsora. Embora alguns aí seqüenciadores saltitem pelos romances de Jorge Amado escritos na década de 30, seu número é insuficiente para que o VARBRUL entre em ação, fornecendo percentagens e pesos relativos. Diferentemente, em As Vinhas da Ira, coletei uma boa quantidade

232 Em 2001, o romance As Vinhas da Ira recebeu nova edição pela Editora Record.

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de dados não somente do aí, mas também de outros dois seqüenciadores - o e e o então -, o que possibilitou levar a cabo rodadas eneárias e binárias do pacote estatístico. Dos números fornecidos pelo VARBRUL, tracei o quadro da distribuição sociolingüística de e, aí e então na fala dos personagens do romance, por hipótese reveladora dos meandros da divisão de tarefas no domínio da seqüenciação não apenas em As Vinhas da Ira, mas na comunidade de fala gaúcha da época, o final da primeira metade do século XX. Em The Grapes of Wrath, os personagens falam de acordo com a “linguagem chã dos homens de sua condição” (Steinbeck, 1940:10), integrantes das classes sócio-economicamente desfavorecidas. Para manter o tom de oralidade e o destaque à presença de traços de língua não-padrão na fala dos personagens, a tradução para o português se valeu das marcas do dialeto das classes populares do estado do Rio Grande do Sul, dos arranjos e re-arranjos gramaticais lá em voga por volta de 1940. Alguns dos exemplos mais ricos ficam por conta da concordância. Por exemplo, relativamente à concordância da primeira pessoa do plural com o verbo, são apresentadas duas possibilidades para cada uma das camadas/variantes - nós e a gente:

“Nós a cultivamos, fizemos ela produzir. Nascemos aquí e queremos morrer aquí.” (As Vinhas da Ira, p. 35) “Aquele arado, aquela grade, lembram-se? Na guerra, nós plantou mostardeiras. Tu lembra daquele camarada que diss’assim: fique rico, compre aquelas ferramenta.” (As Vinhas da Ira, p. 88) “Bem, - disse Pai – a gente vendeu as coisas todas lá de casa e todo mundo andou apanhando arroz na safra, até Avô. (As Vinhas da Ira, p. 86) “A gente juntamo uns duzentos dólares. O caminhão custou setenta e cinco (...).” (As Vinhas da Ira, p. 86)

Pegando carona na oportunidade concedida à língua não padrão de dar o ar de sua graça em As Vinhas da Ira, o aí também aproveita para aparecer, ao lado do e e do então, seqüenciando informações em busca do eldorado da Califórnia. Sobre a “audácia” dos tradutores Ernesto Vinhaes e Herbert Caro em inserir em sua tradução a linguagem popular do Rio Grande do Sul, Menon (2000:149) aponta que:

“(...) isso não deve ter sido só “capricho” (em todos os sentidos dessa palavra) da parte dos tradutores da editora gaúcha Livraria do Globo. Provavelmente, para terem reproduzido tão fielmente esse dialeto, eram eles mesmos utentes dessa variedade, pois em nenhum momento parece haver artificialismo nas falas das personagens. Tal fato fica mais evidente em passagens onde aparecem construções mais lusitanas que brasileiras, mas, quando o dialeto gaúcho é utilizado, ele é coerente.”

Portanto, um bom grau de confiança pode ser depositado nas marcas do dialeto gaúcho introduzidas na tradução de As Vinhas da Ira por Vinhaes e Caro, as quais parecem de fato refletir o uso real dos falantes da época. Destarte, interpreto os resultados referentes à distribuição de e, aí e então em âmbitos lingüísticos e sociais pertinentes à seqüenciação em As Vinhas da Ira como indícios reveladores do estágio de variação/estratificação e de mudança em que se encontrava esse domínio funcional em 1940. Embora os traços dialetais presentes em As Vinhas da Ira sejam de fala riograndense, acredito ser possível tomá-los como representando um estágio anterior de gramaticalização da seqüenciação em relação à fala florianopolitana de hoje, em virtude da proximidade geográfica dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Além disso, em um estudo anterior (Tavares, 1999b), com o objetivo de destacar semelhanças e diferenças relativamente às restrições sociolingüísticas sobre o emprego de itens seqüenciadores em duas comunidades de fala brasileiras - Florianópolis (utilizando dados de Tavares, 1999a) e Rio de Janeiro (utilizando dados de Silva &

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Macedo, 1989) -, constatei que grupos de fatores sociais (sexo, idade e escolaridade) e lingüísticos (tipo de discurso e traços semântico-pragmáticos verbais) condicionadores do uso de e e de aí em terras cariocas atuavam de modo semelhante sobre o uso dos mesmos conectores em terras florianopolitanas (com freqüências e pesos relativos bastante próximos). Tal similaridade parece evidenciar a existência de tendências gerais quanto à estratificação sociolingüística dos seqüenciadores no português brasileiro de hoje, independentemente da região considerada, hipótese que pode ser estendida para as comunidades de fala gaúcha e catarinense do final da primeira metade do século XX. Dessa guisa, parto da suposição de que o quadro de condicionamentos de e, aí e então em 1940, no Rio Grande do Sul, assemelhava-se ao quadro de condicionamentos desses conectores na mesma época, em Santa Catarina. Em um primeiro momento, a distribuição de e, aí e então de acordo com a estratificação etária é analisada como passível de diagnosticar ou uma situação de estratificação/variação estável ou uma mudança em tempo aparente no domínio da seqüenciação representado na fala dos personagens de As Vinhas da Ira. Caso uma mudança esteja em curso, a recorrência da camada/variante seqüenciadora mais nova dentre as utilizadas na tradução do romance - o aí - deverá aumentar à proporção que diminui a idade dos falantes. Em um segundo momento, os resultados obtidos são comparados aos resultados relativos à fala florianopolitana atual, atentando-se especialmente para as rotinas e as inovações na trajetória de gramaticalização de e, aí e então como conectores seqüenciadores mapeadas entre o final da primeira metade e o final da segunda metade do século XX.233 Uma vez que ocorre a comparação entre as tramas do domínio da seqüenciação em duas fatias sincrônicas distintas, entre as quais há um interstício de cerca de sessenta anos, configura-se uma análise de estratificação/variação e de mudança em tempo real, capaz de tornar os prognósticos de mudança em curso obtidos via análise em tempo aparente (tanto os relativos à comunidade de fala de Florianópolis, quanto os relativos à comunidade de fala de As Vinhas da Ira) mais confiáveis, precisos e refinados. Como As Vinhas da Ira é um romance bastante extenso, com um total de 489 páginas e vinte e quatro capítulos na edição consultada (a primeira tradução para o português, datada de 1940), recolhi dados apenas nas 197 páginas iniciais (da página 07 à 204). Analisei dados extraídos da fala dos personagens nos capítulos em que a história da família Joad é contada (capítulos I, III, V, VII, IX, XII, XIV e XV), deixando de lados os capítulos intercalados (II, IV, VI, VIII, X, XI e XIII), em que o narrador tece considerações pertinentes à narrativa, destacando aspectos históricos, geográficos, sócio-econômicos, entre outros. Considerei a fala de 39 personagens: os membros da família Joad e os que com eles interagiram ao longo de sua jornada. Do total de 760 dados obtidos, 549 se concentram na fala de apenas 8 personagens: (i) Tom Joad (o personagem principal), com 162 dados; (ii) reverendo Casy, com 96; (iii) Mãe, com 91; (iv) Pai, com 56, (v) Muley (amigo da família Joad), com 49; (vi) Al (irmão de Tom), com 42; (vii) Floyd (morador de um acampamento do governo), com 32; (viii) Rosasharm (irmã de Tom), com 21. Dezessete personagens utilizaram apenas o e; onze o e e o então; oito o e, o aí e o então; três o e e o aí. Diferentemente do domínio da seqüenciação em Florianópolis, codificado preferencialmente por quatro camadas/variantes - e, aí, daí e então -, a seqüenciação em As Vinhas da 233 Conferir no capítulo IV as razões pelas quais abordei os usos atuais da seqüenciação antes dos usos referentes à década de 40.

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Ira é desempenhada especialmente por três camadas/variantes234 - e, aí e então -, que foram distribuídas em uma escala de menos a mais marcada, em conformidade com os critérios estipulados por Givón (1995) (cf. capítulo I): e > aí > então. Em As Vinhas da Ira, o e é o seqüenciador menos marcado: é o mais recorrente, sendo responsável por 624 dados (82%) do total de 760 casos encontrados. Além disso, o processamento do e é fácil: trata-se de uma forma diminuta, além de ser átona, em oposição a aí e então, que são tônicas. Aí apresenta marcação intermediária, com freqüência de 37 (05%) e extensão média, se comparado a seus concorrentes. Embora então seja o conector de maior envergadura, não é o menos freqüente, contando com 99 dados (13%). Contudo, decidi considerá-lo o mais marcado, pois tenho por hipótese que a baixa freqüência do aí no romance deve-se ao fato de ser esse conector bastante recente no domínio da seqüenciação em 1940, estando em uma etapa inicial em direção a seu incremento de uso em períodos de tempo posteriores. Foram testados os mesmos grupos de fatores lingüísticos e sociais considerados na análise da seqüenciação em Florianópolis. O quadro a seguir apresenta, em ordem de relevância, os grupos selecionados para e, aí e então:

Quadro 37: Grupos de fatores selecionados para e, aí e então E AÍ ENTÃO

1°- Subfunções da seq. 1°- Níveis de articulação 1°- Subfunções da seq. 2°- Níveis de articulação 2°- Subfunções da seq. 2°- Níveis de articulação 3°- Graus de conexão 3°- Sexo 3°- Graus de conexão 4°- Idade 4°- Idade 4°- Idade

Alguns grupos de fatores não foram considerados relevantes para todos os conectores: (i) sexo não foi selecionado para o e e para o então e (ii) graus de conexão não foi selecionado para o aí; (iii). Entretanto, decidi mostrar também os resultados referentes a esses grupos, para facilitar comparações. Os grupos de fatores tipos de discurso, traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector e aspecto do verbo da oração introduzida pelo conector foram descartados como irrelevantes para todos as camadas/variantes e não terão seus resultados comentados. Como os grupos de fatores ora levados em conta já foram descritos e as hipóteses já foram detalhadamente apresentadas na seção 3, optei por organizar a análise da seqüenciação em As Vinhas da Ira de maneira mais sucinta, agrupando todos os grupos de fatores na seção de caracterização e hipóteses, bem como na seção de resultados e discussão. Para finalizar, a terceira seção traz a comparação entre os panoramas da distribuição territorial no reino da seqüenciação em As Vinhas da Ira e na Florianópolis atual.

234 Também aparecem alguns depois seqüenciadores, com freqüência menor que a do aí.

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4.1 CARACTERIZAÇÃO E HIPÓTESES Como já mencionado no capítulo V, em As Vinhas da Ira, encontrei apenas três nuanças da seqüenciação retroativo-propulsora: seqüenciação textual, seqüenciação temporal e introdução de efeito,235 exemplificadas a seguir: (35) E tratou de explicar: - A estrada ‘tá cheia de gente e todo o mundo quer água e suja a privada e rouba o que

pode e não compra coisa nenhuma. (As Vinhas da Ira, p. 130) (36) Bem, agora o senhor pode ajudar. Preste atenção: eu vou bater, que é pra afrouxar um pouco êsse troço. Aí o

senhor tira êsses parafusos em cima e eu tiro os parafusos de baixo. Cuidado com o mancal. (As Vinhas da Ira, p. 181)

(37) Tu voltou, Tommy. Então, tu pode ir com a gente. Tu pode vir! (As Vinhas da Ira, p. 74) Mapeei dois níveis de articulação pertinentes ao domínio da seqüenciação - articulação entre segmentos tópicos e entre segmentos oracionais, exemplificados a seguir:

(38) Al, tu leva o pessoal no caminhão até um bom lugar, depois tu volta pra cá e eu e o pregador, durante êsse tempo,

vamos desmontar o mancal. Aí, se fôr possível, a gente vai até Santa Rosa pra ver se pode arranjar um mancal novo. Talvez a gente tenha sorte, porque vamo chegar domingo de noite. (As Vinhas da Ira, p. 180)

(39) Sente aí ao volante e vai rodando ele devagarinho até eu dizer pára. (As Vinhas da Ira, p. 194)

Encontrei oito graus, ilustrados a seguir (o único grau não encontrado foi o 9, que representa mudança de tópico/assunto):

(40) Eu já percorri o país todo e OUVÍ muita gente falar como você fala. (As Vinhas da Ira, p. 132) (41) Faz quatro dias, encontrei o teu irmão Noah, ‘tava caçando coelho, então ÊLE me DISSE que só iam daquí a duas

semanas. (As Vinhas da Ira, p. 48) (42) Metí o dedo no diferencial e não TINHA serragem nele. (As Vinhas da Ira, p. 103) (43) Eu ‘tava deitado no chão, debaixo das estrêlas, [e podia chover até] e EU não TINHA pra onde ir. (As Vinhas da Ira,

p. 29) (44) Depois entrei no quarto em que nasceu o meu Joe. [Não tinha mais cama na casa, mas o quarto era o mesmo.] E EU VI de

novo como se passou a coisa: Joe nasceu ali. (As Vinhas da Ira, p. 54) (45) Não demorou, ‘tava que ninguém podia com êle. Atiraram nele que nem num cachorro e ELE também ATIROU.

(As Vinhas da Ira, p. 78) (46) Temos uma caminhada bem dura ainda. Avó está doente. Ela tá deitada lá no caminhão; pode ser que não dure

muito tempo mais, também. Aí TEMOS que enterrar ela, que nem Avô. (As Vinhas da Ira, p. 179) (47) A terra em que a gente nasce e vive é a terra da gente mesmo, ninguém tem o direito de mandar-nos embora. E

NOSSA GENTE VIVE PERSEGUIDA, pelas estradas, doente. Esses filhos duma cadela acabaram com tudo, com todos... (As Vinhas da Ira, p. 54)

Lembro que, quanto maior a sobreposição de graus, maior é a descontinuidade entre as informações conectadas pelo seqüenciador, o que se reflete na pontuação final atingida por cada dado. O resultado foi um total de sete graus (o último recobre os dois menores graus encontrados em As Vinhas da Ira, 3 e 3,5, que contaram com poucos dados), denominados de acordo com os diferentes valores de pontuação final obtidos.

235 Também foi mapeada uma ocorrência de finalização, exibida pelo e (cf. exemplo na seção 1 do capítulo V).

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As hipóteses para as influências dos grupos de fatores subfunções, níveis de articulação e graus de conexão sobre a distribuição dos seqüenciadores em As Vinhas da Ira são as mesmas propostas para a influência desses grupos na distribuição dos seqüenciadores em Florianópolis, hipóteses essas baseadas na motivação exercida – de forma coadunada ou não – pelos princípios da marcação e da persistência (cf. seções 1.1; 1.2; 1.3; 3.1.1; 3.1.3; 3.1.4).

Os grupos de fatores sociais controlados foram idade e sexo. O controle da escolaridade não foi realizado, pois não há, no romance, informações em relação a se e quanto tempo cada personagem freqüentou a escola. A exemplo da confiança depositada nas marcas de oralidade presentes na tradução brasileira de As Vinhas da Ira como representando o dialeto gaúcho real de 1940, estou supondo que a sensibilidade lingüística dos tradutores do romance também tenha se manifestado na distribuição de e, aí e então de acordo com os tipos sociais – em termos de gênero e idade – que mais utilizavam cada um dos seqüenciadores na época. Estabeleci recortes etários semelhantes aos propostos para o corpus de Florianópolis. Identifiquei três personagens com idades entre 09 e 12 anos (Ruthie e Winfield, irmãos mais novos do personagem principal, Tom Joad, e uma menina moradora de um acampamento do governo por onde passou a família); três com idades entre 15 e 21 anos (a irmã de Tom, Rosasharm, e seu marido Connie, além de Wilkie, um agricultor migrante); quinze entre 25 e 45 anos; dezoito com mais de 50 anos. Em alguns casos, a idade dos personagens é claramente revelada: Tom: “Mas logo parou, indeciso, e sentou-se sôbre o estribo do lado que não era visível do restaurante. Não podia ter mais que trinta anos.” (As Vinhas da Ira, p. 10) Ruthie e Winfield: “De pé na carrosseria, segurando-se firmemente às bordas do caminhão, vinham os outros, a pequena Ruthie, de doze anos; Winfield, de dez, selvagem, de cara suja; todos de olhar fatigado, mas excitados (...)”. (As Vinhas da Ira, p. 97)

Em outros casos, a idade dos personagens teve de ser inferida a partir de informações dadas no texto, como nos exemplos: Muley: “O homem estacou ao ouvir o grito e a seguir foi chegando, passos apressados. Era um homem magro e não muito alto. (...) As faces de Muley eram lisas, sem a menor ruga, mas seus olhos eram os olhos truculentos de um menino mau, briguento e petulante (...) (As Vinhas da Ira, p. 47) Mãe: “Tom quedou, olhando-a. A velha era corpulenta, mas não gorda; enrijecida devido aos muitos filhos e ao muito trabalho que teve na vida. (...) Os cabelos ralos, côr de aço, estavam amarrados sôbre o pescoço, formando um nó largo e bojudo.” (As Vinhas da Ira, p. 76)

A hipótese para a relação entre a idade dos indivíduos retratados em As Vinhas da Ira e o aparecimento de e, aí e então é similar à hipótese para o seu aparecimento entre os diversos grupos etários florianopolitanos: a recorrência da camada/variante mais recente dentre as encontradas em As Vinhas da Ira - o aí - deve aumentar à proporção que diminui a idade dos personagens, já que as gerações mais jovens inclinam-se a utilizar formas inovadoras e de menor status - se hoje em dia o ibope do aí não anda bom, há sessenta anos atrás o conector provavelmente era ainda mais estigmatizado e mais fortemente vinculado à fala de adolescentes e pré-adolescentes. Uma maior opção pelo aí por parte das gerações mais jovens pode levar à mudança lingüística, no sentido de o conector vir a ocupar pouco a pouco o espaço do e e do então.

A hipótese relativa ao condicionamento exercido pelo gênero dos personagens de As Vinhas da Ira sobre sua opção entre e, aí e então prevê que, se a situação de estratificação/variação no

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domínio da seqüenciação em 1940 estava estável, os homens dariam preferência ao aí, de menor status social, e as mulheres ao e e ao então, os seqüenciadores não estigmatizados. Todavia, se uma mudança estava em andamento – possivelmente em direção ao aumento do uso do aí como marca da seqüenciação -, é possível que as mulheres estivessem liderando o processo. 4.2 RESULTADOS E DISCUSSÃO Vejamos a tabela 11:

Tabela 11: Influência dos grupos de fatores lingüísticos e sociais sobre o uso de e, aí e então E AÍ ENTÃO

GRUPOS FATORES Ap./% PR Ap./% PR Ap./% PR

Subfunções Seq. textual Seq. temp. Int. efeito

302/96 223/83 72/48

0,88 0,25 0,09

02/01 24/09 12/08

0,14 0,85 0,70

11/03 21/08 67/44

0,18 0,62 0,91

Níveis Seg. orac.

Seg. tópico 266/99 331/71

0,93 0,18

01/00 37/08

0,08 0,80

02/01 97/21

0,09 0,80

Graus

0 0,5 1

1,5 2

2,5 3

321/94 56/81 35/88 110/76 56/57 13/48 06/46

0,68 0,56 0,44 0,39 0,29 0,05 0,05

09/03 04/06 02/05 12/08 07/07 03/11 01/08

0,44 0,46 0,65 0,61 0,46 0,71 0,51

12/04 09/13 03/07 23/16 35/36 11/41 06/46

0,34 0,50 0,45 0,55 0,75 0,92 0,90

Idade

09 a 12 15 a 21 25 a 45 + de 50

08/53 78/81 339/84 172/79

0,31 0,54 0,54 0,43

02/13 08/08 23/06 05/02

0,61 0,62 0,55 0,35

05/33 10/10 42/10 42/19

0,63 0,39 0,43 0,67

Sexo Feminino Masculino

142/87 455/80

0,52 0,48

04/02 34/06

0,31 0,56

17/10 82/14

0,43 0,52

TOTAL 597/82 38/05 99/13

Em As Vinhas da Ira, contextos de seqüenciação textual são fortemente associados ao aparecimento do e, com freqüência de 96% (quase caracterizando um caso de uso categórico) e peso relativo de 0,88. O aí é seguidamente convocado para exibir especialmente a seqüenciação temporal (09% e 0,85), e também a introdução de efeito (08% e 0,70). Por sua vez, o então concentra grande parte de seu esforço codificando a introdução de efeito (44% e 0,91), e não faz feio como modo de expressão da seqüenciação temporal (08% e 0,62). Tais resultados confirmam as previsões iniciais.

Confirmando a hipótese inicial, o nível de articulação entre segmentos oracionais é um ambiente altamente propício para o uso do e, com freqüência de 99% (novamente, quase caracterizando um caso de uso categórico) e peso relativo de 0,93. Em oposição, o nível de articulação mais global não condiciona tão positivamente a presença do conector em questão (a freqüência é alta, 71%, mas o peso relativo é de 0,18). Revela-se como nível de articulação fortemente incentivador da opção pelo aí e pelo então em As Vinhas da Ira a inter-ligação entre segmentos tópicos, com pesos relativos altos (de 0,80 para ambos).

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Conforme o previsto, o grau de conexão que representa o maior amarramento entre as informações inter-ligadas, o 0, está fortemente correlacionado ao aparecimento do e, que também é favorecido pelo grau que representa o segundo menor nível de descontinuidades, o 0,5. Aí é propenso a assinalar os graus de conexão intermediários, 1 e 1,5, e também o 2,5. Os graus mais baixos, de 2 a 3, dão primazia ao uso do então, que apresenta freqüências elevadas (de 36% a 46%) e recebe pesos relativos bastante altos em referência a esses graus (de 0,75 a 0,92). Em relação à idade, o e é o conector maciçamente mais freqüente, ocupando 82% do território da seqüenciação em geral, e de 79 a 84% do território da seqüenciação entre os grupos de falantes com mais de 15 anos. Contudo, os pesos relativos de 0,54 apontam um condicionamento maior por parte dos grupos etários intermediários. Em contraste, entre os pré-adolescentes, a utilização do e é mais restrita, sendo traçado um pico de desuso (freqüência de 53% e peso relativo de 0,31). Esse seria um indício de que haveria, futuramente, uma presença gradativamente menor do e a cada geração de falantes vindoura? Percebe-se uma relação direta entre a diminuição da idade e o aumento de uso do aí entre os indivíduos das três faixas etárias mais velhas, tanto em termos de freqüências quanto de pesos relativos. A faixa etária mais jovem, embora apresente freqüência mais alta em relação à faixa anterior, recebeu um peso relativo um ponto mais baixo, provavelmente em razão da maior recorrência do então entre os pré-adolescentes. O então destaca-se entre as gerações mais velha (freqüência de 19% e peso relativo de 0,67) e mais jovem (33% e 0,63). Seu favorecimento na fala pré-adolescente poderia ser tomado como uma pista da ocorrência do fenômeno de mudança em progresso, prevendo-se um emprego maior do então entre os falantes mais jovens com o passar do tempo. No entanto, o então também predomina na fala dos indivíduos com mais de 50 anos e é desfavorecido entre os indivíduos de 15 a 45 anos, o que torna difícil tecer previsões quanto ao destino da forma. Diferentemente, a opção maior pelo aí manifestada a cada nova geração é uma evidência mais forte de mudança lingüística em andamento, podendo vir o conector a ocupar pouco a pouco os nacos do território antes destinados ao e e ao então. No entanto, o fato de que idade foi selecionado em quarto e último lugar para os três seqüenciadores pode ser interpretado como indicando que, embora uma mudança pudesse estar em curso em 1940, provavelmente não estavam em jogo alterações tão intensas quanto as observadas na fala florianopolitana atual, em que idade foi selecionada em primeiro lugar para daí e para então, em terceiro para e e em sexto para aí. Talvez, em razão dessa movimentação mais suave por parte dos conectores em sua disputa territorial travada no final da década de 30, não tenha sido constatado um pico de uso do aí entre os adolescentes, o que seria esperado em casos de mudança vigorosa (cf. Labov, 2001). Não se pode deixar de mencionar, porém, a existência de um grande acréscimo de uso do aí entre os dois grupos etários mais velhos (de 02% e 0,35 para 06% e 0,55), o que pode significar que a geração que apresentava um pico de uso do aí, em seu período de adolescência, era a que contava com 25 a 45 anos em 1940. Destarte, um período de mudança mais vigorosa para o aí poderia ter ocorrido por volta de 1920. O gráfico a seguir permite a comparação entre os pesos relativos atribuídos a e, aí e então nas rodadas binárias (cf. tabela 11):

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Gráfico 2: Idade e uso de e, aí e então – As Vinhas da Ira

IDADE E USO DE E, AÍ E ENTÃO

31

54 54

43

61 62

55

35

63

3943

67

0

10

20

30

40

50

60

70

80

09-12 anos 15-21 anos 25-45 anos mais de 50

idade

E AÍ ENTÃO

Finalmente, quanto ao sexo, a tabela 11 mostra que as mulheres tendem um pouco mais ao uso do e (freqüência de 87% e pesos relativo de 0,52) em relação aos homens (80% e 0,47). O aí e o então são mais recorrentes na fala dos homens. Talvez estejamos lidando com um caso de estratificação/variação estável, já que o aí, um conector estigmatizado, predomina na fala dos homens e o e, um conector que conta com boa avaliação social, predomina na fala das mulheres.236 Contudo, o então, avaliado positivamente, também é mais recorrente entre os homens. De qualquer forma, a hipótese de mudança liderada pelos homens não pode ser descartada – na fala florianopolitana atual, são os garotos de 09 a 12 anos que mais têm abusado do daí, embora esse conector tenha tido seu primeiro pico de uso, na fala adolescente, claramente liderado pelas mulheres. Outro ponto a ser considerado é que, consoante os resultados para o grupo de fatores idade, não estava em causa uma mudança de grandes proporções em 1940. O panorama da distribuição de e, aí e então em As Vinhas da Ira mostra os contextos que mais influenciam o aparecimento de cada um desses articuladores discursivos no romance, e traz a ordem de relevância dos grupos de fatores, de acordo com a seleção feita pelo VARBRUL:237

236 Como é muito difícil descobrir qual o valor atribuído pelos falantes de 1940 aos usos conectivos de e, aí e então, estou supondo que o status de cada um deles no mercado lingüístico da época era semelhante ao atual. 237 Os grupos de fatores marcados com um (não) são aqueles que não foram selecionados como significativos, mas cujos resultados são apresentados a título de comparação.

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Quadro 38: Panorama da distribuição sociolingüística de e, aí e então – As Vinhas da Ira

Grupos de Fatores E AÍ ENTÃO

Subfunções seqüenciadoras

seq. textual (1)

seq. temporal introd. de efeito

(2)

introd. de efeito seq. temporal

(1)

Níveis de articulação discursiva

inter-oracional (2)

seg. tópico (1)

seg. tópico (2)

Graus de conexão graus 0 e 0,5 (3)

graus 1; 1,5; 2,5 (não)

graus 2; 2,5; 3 (3)

Idade 25 a 45 anos 15 a 21 anos

(4)

09 a 12 anos 15 a 21 anos

(4)

mais de 50 anos 09 a 12 anos

(4)

Sexo feminino (não)

masculino (3)

masculino (não)

Este panorama é tomado como revelando o leque de especializações (ou disputa por especializações) de e, aí e então em diferentes contextos sociolingüísticos pertinentes à seqüenciação retroativo-propulsora no final da primeira metade do século XX. Lembro que há, a princípio, duas possibilidades de solução para situações de estratificação/variação, a especialização por generalização e a especialização por especificação. As especializações quase categóricas do e para certos espaços, bem como a sua grande freqüência (bastante superior a de aí e a de então) em todos os contextos sociolingüísticos testados, apontam para a especialização por generalização: no domínio da seqüenciação de 1940 representado em As Vinhas da Ira, o e reina quase absoluto (com a freqüência geral de 82%), cedendo pouco espaço para as demais camadas/variantes (que contam juntas com 18%). Se o e tivesse, futuramente, seu uso ampliado, poderia se tornar o único dono do território, substituindo de vez seus concorrentes. Todavia, os resultados para o grupo de fatores idade indicam outro rumo passível de ser seguido pelo domínio sob estudo: se o aí, a conjunção mais inovadora, realmente tiver seu aparecimento incrementado geracionalmente, acabará ocupando um naco maior da seqüenciação, não deixando o caminho da vitória livre para o e tão facilmente. E o então, freqüente entre os pré-adolescentes, também não parece disposto a retirar-se da guerra tão cedo. De qualquer forma, poderíamos prever, com base nos mesmos resultados, a ocorrência da especialização por especificação: o e dominaria os ambientes que exigem menor complexidade cognitiva em termos de processamento - a seqüenciação textual, o nível de articulação entre segmentos oracionais e os contextos caracterizados por altos graus de conexão -, restando ao aí e ao então a disputa por especializações nos ambientes de marcação intermediária ou forte, para os quais ambos os conectores costumavam ser selecionados por volta de 1940. Possivelmente, de acordo com a ação dos princípios da marcação e da persistência, o aí viria a predominar em contextos com traços de marcação intermediária e mais concretos, e o então em contextos de marcação forte e mais abstratos/complexos ou mais concretos. A seguir, verificaremos se essas previsões, baseadas na distribuição sociolingüística de e, aí e então há cerca de sessenta anos atrás, são confirmadas pelos desenvolvimentos futuros da seqüenciação, na fala da Florianópolis atual.

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4.3 O PASSADO, O PRESENTE E O FUTURO: RUMOS A trama de relações entre formas seqüenciadoras e contextos de uso que se manifestam na fala dos personagens de As Vinhas da Ira é tomada como espelhando arranjos e re-arranjos típicos da comunidade de fala real do Rio Grande do Sul em 1940. Essa trama pode ser entendida como representando uma etapa anterior de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação atual, mais especificamente, dos arranjos e re-arranjos da seqüenciação em Florianópolis. A comparação entre a distribuição sociolingüística de e, aí e então em cada uma das fatias sincrônicas em questão, além de permitir o mapeamento das relações que se conservaram enraizadas ao longo do tempo, poderá revelar a ocorrência de mudança em tempo real – podemos ter a confirmação, no final do século XX, de mudanças já previsíveis a partir do panorama de distribuição sociolingüística verificado no final da primeira metade do século XX, e mesmo a descoberta de mudanças não previstas, que foram tecidas no interstício. Comecemos pelos grupos de fatores condicionadores mais relevantes para o aparecimento de e, aí e então no domínio da seqüenciação em 1940 e atualmente, deixando de lado o daí, que não deu o ar de sua graça em As Vinhas da Ira. Para relembrar a ordem de seleção dos grupos de fatores, confiram-se os quadros 23 e 37.

Em As Vinhas da Ira, o VARBRUL selecionou como relevante para a utilização de cada conector quatro grupos de fatores. Presentemente, a seqüenciação parece ter se tornado dependente de um maior número de traços contextuais, pois foi apontada uma média de oito grupos condicionadores significativos para a opção por cada um dos conectores. As maiores influências sobre a seqüenciação em 1940 provêm das subfunções da seqüenciação, dos níveis de articulação e da idade, que também exercem grande influência sobre a seqüenciação em Florianópolis, o que pode ser considerado um caso de rotinização: grande parte das pressões sobre os padrões distribucionais de e, aí e então em ambos os períodos de tempo provém de fontes similares. Agora, vejamos com maior detalhe a seleção de hoje comparada com a de 1940:

���� E: No final do século XX, níveis de articulação passa a exercer um papel de maior destaque que subfunções seqüenciadoras; idade cai de terceiro para quarto e último grupo selecionado; graus de conexão galga uma posição, passando de quinto para terceiro.

���� Aí: subfunções se torna mais importante que níveis de articulação; sexo, selecionado em terceiro lugar em 1940, foi descartado para o aí em Florianópolis; idade, quarto e último no ranqueamento dos grupos de fatores condicionadores em As Vinhas da Ira, ocupa a sexta posição em Florianópolis. A escolaridade, primeira selecionada para o aí florianopolitano, não pôde ser controlada na amostra da sincronia mais antiga.

���� Então: Em ambos os períodos de tempo considerados, subfunções mostra-se mais significativa que níveis de articulação; graus de conexão passa de terceiro selecionado em 1940 para sexto hoje em dia; idade torna-se mais importante, subindo do quarto para o primeiro lugar. Essa maior importância atribuída à idade é um indício de que o então tem passado por um estágio de mudança mais intenso atualmente.

Tipos de discurso e traços semântico-pragmáticos verbais, que exercem influência sobre a seqüenciação atual, possivelmente não eram significativos para a opção entre os seqüenciadores por volta de 1940, não tendo sido selecionados para nenhum deles. Destarte, o quadro de

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condicionamentos que temos hoje é diferente do quadro que havia no final da primeira metade do século XX e deverá se alterar no futuro, ao sabor das re-organizações do domínio. Agora, comparemos o panorama da distribuição sociolingüística de e, aí e então em As Vinhas da Ira e em Florianópolis (cf. quadros 36 e 38). A maior diferença entre a seqüenciação é o aparecimento e a super disseminação do daí, conector que, se já existia em 1940, deveria ser pouco utilizado e, por isso, não foi escalado para exibir a seqüenciação na fala dos personagens do romance. Em decorrência do abuso do daí por parte dos pré-adolescentes florianopolitanos (a forma é empregada por eles em 60% das ocorrências), tiveram lugar diversas alterações na partilha do território da seqüenciação: o daí tomou posse de mais da metade dos espaços disponíveis. Como resultado, a opção pelo então se tornou tão infreqüente que, conservando-se as tendências de uso atuais, o conector mais marcado corre o risco de perder seu lugar ao sol em Florianópolis. Estas são grandes mudanças tecidas no interstício 1940-2000, e que não poderiam ter sido previstas com base na análise dos fenômenos de estratificação/variação e de mudança por tempo aparente em As Vinhas da Ira, uma vez que aí não há sequer um dado do daí seqüenciando informações.

Em contraste, a comparação entre a distribuição sociolingüística de e, aí e então em As Vinhas da Ira e em Florianópolis permite a confirmação e/ou a refutação das previsões relativas aos desenvolvimentos futuros desses três conectores, feitas a partir dos resultados obtidos para a amostra de 1940. A diferença entre os períodos de tempo em causa que mais salta aos olhos é a da recorrência. A freqüência geral do e diminuiu de 82% em As Vinhas da Ira para 41% em Florianópolis, a do aí sofreu uma elevação de 05 para 22% e a do então de 13 para 16% - e o daí surgiu sinalizando a seqüenciação em 21% dos casos. Ou seja, há, ao invés de uma, quatro conjunções de grande freqüência disputando a parte do leão no domínio da seqüenciação corrente. No período de cerca de sessenta anos existente entre as sincronias aqui em comparação, aconteceram, portanto, alterações de grande proporção nos padrões quantitativos de utilização dos seqüenciadores, e, por tabela, posto que a gramática é efeito de freqüência, devem ter acontecido alterações substanciais na representação cognitiva da seqüenciação nas gramáticas dos falantes, pois estas são modificadas quando expostas a repetidas instâncias de uso inovadoras (cf. Bybee, 200**b). O aumento do uso do aí e do então e a diminuição do uso do e foram possibilidades levantadas quando da análise da distribuição das camadas/variantes da seqüenciação em 1940 ao longo de grupos etários constituídos por personagens do romance e serão retomadas para aprofundamentos logo a seguir. Nos já mencionados estudos comparando corpora de fala recentes do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE) (Tavares, 2002d e 2002e), encontrei uma alta taxa de aparecimento do e no PE, em que o conector é responsável por 82% das ocorrências da seqüenciação, ao passo que, no PB, conta com 43% das ocorrências. Parece, então, que, em relação à super utilização do e, a seqüenciação portuguesa atual está mais próxima da seqüenciação brasileira em 1940. À semelhança do PE, em As Vinhas da Ira, os adversários do e cavam pequenos nichos em um território em que o conector mais antigo no ramo reina quase absoluto. A ampliação da utilização do aí e do então e, posteriormente, do daí como marcas da seqüenciação, acarretou a retração no uso do e, o que distanciou os domínios da seqüenciação do final da primeira metade e do final da segunda metade do século XX, bem como os domínios brasileiro e português na atualidade. Em Florianópolis, cada torrão do território é disputado: as freqüências revelam preferências de uso que estão longe das opções quase categóricas pelo e manifestadas em As Vinhas da Ira (vide tabelas 1, 3, 4 e 11).

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Com base na distribuição de e, aí e então nos vários âmbitos lingüísticos pertinentes à seqüenciação no romance (cf. quadro 39), foi prevista a ocorrência da especialização por especificação: futuramente, o e predominaria nos espaços que demandassem menor complexidade cognitiva em termos de processamento - a seqüenciação textual, o nível de articulação entre segmentos oracionais e os contextos caracterizados por altos graus de conexão -, e o aí e o então buscariam especializações em espaços de marcação intermediária ou forte, para os quais ambos os conectores eram costumeiramente selecionados por volta de 1940. Como efeito da atuação dos princípios da marcação e da persistência, o e poderia salientar-se em contextos de fraca marcação e mais genéricos, o aí em contextos de marcação intermediária e mais concretos, e o então em contextos de marcação forte e mais concretos ou mais abstratos/complexos. Será que a distribuição da trinca de seqüenciadores em terras florianopolitanas confirma tais previsões? Embora os padrões de freqüência tenham sofrido grandes alterações, as tendências de especialização de e, aí e então quanto aos níveis de articulação e aos graus de conexão se mantiveram enraizadas entre 1940 e 2000, o que vai ao encontro das previsões feitas. O e continua liderando os espaços menos marcados: predomina no nível dos segmentos oracionais e em contextos de graus de conexão mais altos; ao passo que o aí e o então predominam em níveis mais amplos de articulação, além do que o aí se destaca junto a graus de conexão intermediários e o então junto aos graus de menor amarramento entre as informações. E quanto às subfunções da seqüenciação? Em As Vinhas da Ira, contextos de seqüenciação textual são fortemente associados ao aparecimento do e, com freqüência de 96% (quase caracterizando um caso de uso categórico), enquanto o aí e o então são selecionados preferencialmente em contextos de seqüenciação temporal e de introdução de efeito. Na Florianópolis atual, as subfunções que mais atraem o e e o aí são as mesmas já fortemente vinculadas a eles em 1940, o que significa que os conectores em questão conservaram um padrão de uso rotinizado. Por conseguinte, nos dias de hoje, ratificando as previsões inspiradas nas preferências de uso dos personagens de As Vinhas da Ira, o e luta por especialização em contextos pouco complexos (a seqüenciação textual, o nível dos segmentos oracionais, os graus 0 e 0,5) e mais genéricos (a seqüenciação textual). Já o aí, também de acordo com o esperado, prefere disputar contextos de marcação intermediária (em termos de graus, níveis de articulação e subfunções - em Florianópolis, a seqüenciação temporal e a introdução de efeito têm marcação intermediária para menos e para mais, respectivamente) - e mais concretos (a seqüenciação temporal). Em relação aos traços semântico-pragmáticos envolvidos nos contextos de uso da seqüenciação, a distribuição do então na amostra de 1940 indicava dois rumos possíveis, uma vez que o conector desdobrava-se como modo de expressão de duas subfunções de natureza distinta, a seqüenciação temporal e a introdução de efeito: (i) preservação de laços com as funções fontes, portadoras de nuanças concretas, espácio-temporais, o que implicaria um maior uso do então como seqüenciador temporal; (ii) passagem por um processo de abstração crescente, com a perda de elos de ligação com os usos fontes, dirigindo-se o então para papéis mais abstratos/complexos, como a introdução de efeito. Uma vez que, em Florianópolis, o então é condicionado positivamente quando a conseqüência ou a conclusão está em jogo, mas tem seu aparecimento desfavorecido quando entra em cena a sucessão temporal, podemos considerar que o conector sofreu um distanciamento, entre 1940 e 2000, de papéis relativos à sinalização de traços similares aos de suas fontes, predominando, atualmente, em contextos de seqüenciação mais complexos. O então avançou, portanto, alguns passos em sua trajetória de gramaticalização. Diferentemente, há sessenta anos

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atrás, o e e o aí, como hoje, eram selecionados para contextos genéricos e concretos, respectivamente, não tendo passado por grandes modificações nesse sentido. Agora, lancemos o olhar comparativo sobre a influência dos grupos de fatores sociais sexo e idade sobre o uso de e, aí e então no final da primeira metade e no final da segunda metade do século XX. Quanto ao sexo, e recebe a preferência das mulheres e então a dos homens em ambos os períodos de tempo. Contudo, o aí deixa de ser opção recorrente entre os homens e torna-se mais comum na fala das mulheres, o que pode denotar um período de mudança de maior magnitude pelo qual o conector estaria atravessando na atualidade, já que, conforme Labov (1990, 2001) e Silva & Paiva (1996), em grande parte das mudanças lingüísticas, são as mulheres que utilizam mais as formas inovadoras, inclusive as estigmatizadas. Em As Vinhas da Ira, o e é mais propenso a ocorrer na fala dos indivíduos de 15 a 21 e de 25 a 45 anos; o aí na fala dos indivíduos de 09 a 12, de 15 a 21 e de 25 a 45; o então na fala dos indivíduos de 09 a 12 e com mais de 50 anos. Em Florianópolis, o e destaca-se na fala de indivíduos de 15 a 21, de 25 a 45 e com mais de 50 anos; o aí entre indivíduos de 15 a 21 e de 25 a 45; o então entre indivíduos de 25 a 45 e com mais de 50 anos. Como já foi mencionado, adquirimos grande parte da língua através de nossas experiências em situações de comunicação transcorridas da infância até o final da adolescência, tendendo a conservar por toda a vida os padrões lingüísticos conforme experienciados nesse período. Os informantes do corpus de Florianópolis que têm idades superiores a 50 anos eram crianças e/ou pré-adolescentes por volta de 1940,238 o ano em que As Vinhas da Ira foi traduzido para o português. Em conseqüência, a distribuição de e, aí e então na fala do grupo etário mais idoso de Florianópolis deveria guardar semelhanças com sua distribuição na fala dos personagens de 09 a 12 anos do romance, que são aqui tomados como representando os pré-adolescentes da época. Vejamos:

Quadro 39: E, aí e então na fala de personagens de 09 a 12 anos e na fala de florianopolitanos com mais de 50 anos

Corpus E AÍ ENTÃO As Vinhas da Ira 53% 13% 33% Florianópolis 54% 19% 26%

É grande a semelhança na distribuição de e, aí e então na fala dos pré-adolescentes de 1940 e na fala dos florianopolitanos com mais de 50 anos. Ou seja, temos bons indícios de que os padrões distribucionais da seqüenciação de ontem foram preservados pelos falantes que os experienciaram, re-arranjaram (tais padrões não são os mesmos encontrados na fala dos personagens de 15 a 21 anos, por exemplo) e assimilaram. A organização das freqüências de uso de e, aí e então de acordo com os grupos etários considerados em As Vinhas da Ira e em Florianópolis permite a obtenção de um panorama da evolução da partilha do território da seqüenciação através de linhas imaginárias iniciadas em torno de 1900 (época em que os personagens do romance com mais de 50 anos teriam sido pré-adolescentes) e que percorrem um trajeto de mudanças que aconteceram em um período de cerca de cem anos, desembocando nos dias atuais, com a distribuição de e, aí e então na fala dos pré-adolescentes florianopolitanos. A título de comparação, foi incluída uma linha para o daí, com base nos únicos números disponíveis para ele – os atuais.

238 As entrevistas com os informantes florianopolitanos adultos foram gravadas em 1990. Um informante de 60 anos na época tinha 10 anos em 1940.

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���� E: 79% � 85% � 81% � 53% ���� 54% � 44% � 45% � 26%

���� Aí: 02% � 06% � 08% � 13% ���� 19% � 26% � 29% � 13%

���� Então: 19% � 10% � 10% � 33% ���� 26% � 27% � 11% � 01%

���� Daí: 01% � 03% � 15% � 60% As freqüências de uso de cada seqüenciador estão assim ordenadas: personagens com mais de 50 anos � personagens de 25 a 45 anos � personagens de 15 a 21 anos � personagens de 09 a 12 anos ���� florianopolitanos com mais de 50 anos (que teriam de 09 a 12 anos em 1940, ou um pouco menos, ou mais) � florianopolitanos de 25 a 45 anos (os quais representam a geração seguinte à que contava com idades entre 09 e 12 anos em 1940) � florianopolitanos de 15 a 21 anos � florianopolitanos de 09 a 12 anos (que super utilizam o daí, e reduzem a taxa de aparecimento dos demais conectores). Trata-se, portanto, da organização dos números referentes à distribuição de e, aí e então de acordo com a estratificação etária em As Vinhas da Ira e em Florianópolis, resultando, para cada conector, em duas linhas sintetizadoras de mudanças em tempo aparente que encaixam uma na outra por conta da hipótese de a fala dos florianopolitanos com mais de 50 anos refletir a fala dos indivíduos de 09 a 12 anos no romance. Esse panorama da evolução da distribuição do território da seqüenciação ao longo do tempo mostra que a tendência manifestada pelo e, na primeira metade do século XX, de retração de uso nas gerações mais novas, segue seu curso na fala de Florianópolis, em que o conector chega à freqüência de 26% na fala dos pré-adolescentes. O aí deu continuidade a sua trajetória de extensão de uso em progressão geracional, que já transparece em As Vinhas da Ira, e que só foi interrompida na fala florianopolitana pelos pré-adolescentes, ao quais tomaram o daí como marca identitária e o tem super utilizado, às expensas dos demais seqüenciadores. O então aparenta estabilidade na fala dos florianopolitanos com mais de 25 anos, com freqüências em torno de 27%, próximas da freqüência dos pré-adolescentes em As Vinhas da Ira, de 33%. Contudo, o conector é atacado pelo aí e pelo daí na fala adolescente, tendo diminuída a sua taxa de aparecimento para 11%, e posteriormente é atacado pelo daí na fala pré-adolescente, tendo ainda mais diminuída a sua taxa de aparecimento, deste vez para apenas 01%. O daí, com freqüências baixas entre os florianopolitanos com mais de 25 anos (em torno de 02%), passa por um pico de elevação de uso entre os adolescentes, atingindo o patamar de 15%, e, já na geração subseqüente, torna-se o seqüenciador mais freqüente, detendo 60% das ocorrências. Enfim, os falantes, ao interagir, rotinizam padrões de uso - gramaticalizam-nos mais e mais - e, ao mesmo tempo, conforme se fizer necessário para levar as situações comunicativas avante, alteram padrões de uso, dando origem a inovações, as quais, por sua vez, também podem ser rotinizadas. A distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então em Florianópolis e de e, aí e então em As Vinhas da Ira fornece inúmeras evidências que permitem traçar os rumos dos desenvolvimentos

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do domínio ao longo do século XX, tanto em termos de rotinas quanto de novidades. Nesse período de tempo, intensas batalhas foram travadas entre os seqüenciadores, que contam com armas próprias, representadas pelos diversos grupos de fatores controlados, subjacentes aos quais está a ação de motivações funcionais variadas. O território, inicialmente dominado pelo e (vide os resultados obtidos para As Vinhas da Ira), passou a ser partilhado entre e, aí, daí e então: enquanto a freqüência de uso do primeiro decaiu, a dos demais aumentou, tanto em tempo aparente quanto em tempo real. Atualmente, consoante os indícios coletados neste capítulo, a seqüenciação está passando por uma fase de grandes mudanças, em decorrência do super espraimento do daí entre os florianopolitanos mais jovens. A distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis aponta múltiplas possibilidades de rumos a serem seguidos pelo domínio futuramente: (i) o daí pode se fixar como o seqüenciador mais recorrente; (ii) o então pode desaparecer da fala florianopolitana; (iii) o aí pode desaparecer da fala florianopolitana (já que sua taxa de aparecimento foi bruscamente encolhida na fala dos pré-adolescentes); (iv) e, aí, daí e então podem ser conservados como marcas da seqüenciação, especializados para nichos específicos (especialização por especificação). A gramaticalização é um processo de mudança constante, tecido diariamente, dos arranjos e re-arranjos gramaticais que emergem de interação em interação. Assim, enquanto esperamos os desfechos das próximas batalhas entre os conectores seqüenciadores em sua guerra por um lugar ao sol (ou à lua) em Florianópolis, observemos o futuro sendo tramado:

F: Ele é chato. Ele fica- Ele- já passa uma- uma hora e ele fica lá conversando- (hes) conversando assim: “Onde que tu mora?” a onde- Daí não começa o jogo. (hes) Até onze horas que ele co- que ele faz o jogo, daí não dá, né? Não dá pra fazer as pessoas- as pessoas que são sorteadas, né? não vai dar, né? que- que são doze pessoas, né? É bastante, não dá tempo. E: E aí o que acontece? F: Daí ele fica conversando, daí- daí demora, né? pra fazer os- o jogo. É assim: é as perguntas- o Sílvio Santos faz as perguntas, né? que valem um mil, dois mil, três mil, até um milhão- um milhão de reais, até. Daí a hora que chega a do meio milhão, (hes) vem- que vem a resposta de um milhão- um milhão de reais, daí o Sílvio Santos coloca uma maletinha, a hora que fechar tem que dizer a resposta. Tem ou responder ou tem que parar, parar com meio milhão. E se errar, perde tudo, não ganha nem um real, nem um centavo. (FR/FLP02C:32-33)239

A luta continua!

239 No exemplo, a entrevistadora sou eu, pertencente a um grupo etário que se inclina ao uso do aí, interagindo com uma informante de 09 anos, fã do daí. A luta continua!

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

DEIXANDO BEM MARCADO: FINALIZAÇÃO E PROPOSTAS DE RETOMADA

E aí daí então cumpre finalizar... A seguir, são rapidamente resumidos cada um dos capítulos desta tese. Na seqüência, embutidas em uma proposta para estudos futuros, constam as primeiras tentativas de estabelecimento de generalizações acerca dos fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação retroativo-propulsora. Retomemos... O capítulo I foi destinado à descrição do objeto de estudo, a seqüenciação retroativo-propulsora, à discussão de questões referentes ao significado e à função no âmbito gramatical e à proposição dos objetivos e hipóteses. No capítulo II, houve a exposição de pressupostos teórico-metodológicos do funcionalismo lingüístico voltado ao estudo da gramaticalização e da sociolingüística variacionista. No capítulo III, teve lugar uma “conversa na diferença” entre o funcionalismo e a sociolingüística, que serviu de base para a delimitação da perspectiva teórica assumida para guiar o estudo da seqüenciação - o sociofuncionalismo - e para a definição do lugar ocupado por tal perspectiva na pesquisa lingüística. No capítulo IV, foram detalhados os procedimentos metodológicos seguidos para a abordagem à seqüenciação. No capítulo V, foram traçadas as trajetórias de gramaticalização seguidas, ao longo do tempo, pelos seqüenciadores e, aí, daí e então, trajetórias que inspiraram a proposição de hipóteses acerca dos padrões de distribuição preferenciais de cada um desses conectores, testadas nos capítulos seguintes. No capítulo VI, foram analisados os fenômenos de estratificação/variação e de mudança por que têm passado atualmente o domínio da seqüenciação na comunidade de fala de Florianópolis, destacando-se o papel de motivações funcionais sobre a distribuição sociolingüística das camadas/variantes da seqüenciação. Também foram abordados os fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação em um período de tempo anterior, o final da primeira metade do século XX, e os resultados obtidos foram comparados aos resultados relativos à fala florianopolitana de hoje. Prossigamos... Esse conjunto de seis capítulos constituiu um mosaico de descobertas instigantes, das quais cito apenas algumas: (i) a proposição, com o maior detalhamento possível, dos passos das trajetórias de gramaticalização seguidas por e, aí, daí e então; (ii) a análise dos padrões da distribuição sociolingüística de e, aí, daí e então em dois períodos de tempo – final da primeira metade e final da segunda metade do século XX; (iii) o mapeamento das rotinas e das novidades referentes às especializações dos conectores para diferentes espaços pertinentes à seqüenciação; (iv) a coleta de evidências de mudanças em tempo aparente e em tempo real que atingiram a

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seqüenciação no século XX; (v) a análise do papel de motivações funcionais variadas sobre os rumos dos desenvolvimentos da seqüenciação. Algumas dessas descobertas servem de ponto de partida para a proposição de generalizações acerca dos fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação, expostas a seguir. Uma vez que elas são derivadas de resultados obtidos por um único estudo - este -, é mister que sua validade seja testada. Destarte, apresento, como finalização da tese, uma proposta para pesquisas futuras, envolvendo a retomada da seqüenciação como objeto de estudo em outras comunidades de fala brasileiras (ou quaisquer comunidades de língua portuguesa) e a comparação entre os resultados a serem assim alcançados. Conforme Guy (1999, 2000), é importante empreender comparações entre resultados obtidos para fenômenos variáveis dentro de uma mesma língua ou mesmo inter-lingüisticamente, com fins de estabelecimento de generalizações na medida do possível universais. Ao investigarmos se as restrições lingüísticas e extra-lingüísticas à variação e à mudança no domínio da seqüenciação são as mesmas em todas as regiões do Brasil e, se não, em que diferem, podemos aventar explicações capazes de refinar e fortalecer generalizações a respeito do fenômeno. Seriam seguidos, então, os passos descritos por Labov (1994:04-05):

“Começamos com questões gerais acerca das trajetórias, mecanismos e causas da mudança, questões que são na maioria dos casos derivadas de análises anteriores. Para respondê-las, selecionamos comunidades de fala que evidenciam mudança em progresso de um tipo que prometa ser esclarecedor e tecemos observações a partir de uma amostra representativa de falantes da comunidade. Dessas observações, fazemos inferências acerca do que está acontecendo na comunidade como um todo. Nos melhores casos, selecionamos outras comunidades adequadas para testar a generalidade das inferências que fizemos e associamos todos os dados que obtemos para confirmar, corrigir ou rejeitar essas inferências. O resultado dessa expansão de nosso conhecimento é um pequeno número de generalizações de escopo amplo, ou princípios, que temos boas razões para acreditar que são verdadeiros. (...) À medida que nossos princípios se fortalecem, é possível fazer deduções sobre o que podemos esperar encontrar em outras comunidades sofrendo mudanças. (...)” (grifos acrescentados)

Em que são fundamentados os princípios sociolingüísticos universais? Estão disponíveis em diversos países uma gama de estudos que apontam para as mesmas direções de variação e de mudança, dos quais foram extraídas generalizações de dimensão social e lingüística do tipo: (i) as mulheres tendem a ser as líderes da mudança; (ii) costuma haver um pico de uso das formas inovadoras na fala dos adolescentes, especialmente daqueles com idades entre 17 e 20 anos (cf. Labov, 2001); (iii) em mudanças em cadeia, as vogais periféricas são elevadas; (iv) regras que governam mudanças fonéticas em cadeia devem relacionar-se com as que governam as fusões, pois um fenômeno é o oposto do outro (cf. Labov, 1994). Semelhantemente, muitas outras observações de caráter geral têm sido feitas, derivadas de comparações entre estudos variacionistas, o que permite aprofundar e fazer evoluir aspectos teórico-metodológicos da sociolingüística com a elaboração de princípios universais. Todavia, cumpre lembrar que, consoante a perspectiva de estudo apresentada e discutida no capítulo III, a proposta de pesquisa feita aqui não é apenas sociolingüística comparativa, e sim, por ter a pretensão de unir pressupostos teórico-metodológicos do funcionalismo lingüístico e da sociolingüística variacionista, é sociofuncionalista comparativa. Quais são as generalizações que acredito serem válidas para os fenômenos de estratificação/variação e de mudança no domínio da seqüenciação, independentemente da comunidade de fala específica posta sob enfoque? Trata-se de generalizações que sintetizam algumas tendências gerais referentes aos padrões de distribuição sociolingüística dos

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seqüenciadores, subjacentes às quais está a ação de princípios funcionais universais, bem como princípios sociolingüísticos universais (a exemplo dos citados no parágrafo acima). São elas: 1. As tendências gerais quanto à distribuição dos seqüenciadores em grupos sociais obedecem a duas motivações: (i) A valoração social atribuída aos conectores: Se, em uma dada comunidade de fala, um ou mais conectores são considerados de menor status, isto é, como não pertinentes à língua padrão/culta, sua utilização deve ser influenciada por tal avaliação negativa, aparecendo com mais freqüência na fala de indivíduos mais jovens, de menor escolaridade e de sexo masculino (e, por hipótese, de classes sócio-econômicas desfavorecidas – um grupo de fatores que também pode vir a ser testado). (ii) Marca de identidade: Os falantes mais jovens são os que mais utilizam os conectores de menor status e/ou inovadores, tomando-os como marcas típicas do grupo de pares.240 2. As tendências gerais quanto à distribuição dos seqüenciadores nos grupos lingüísticos obedecem às seguintes motivações: (i) O princípio da marcação: É esperado que os fatores definidos como mais marcados atraiam com mais freqüência os conectores mais marcados, e os fatores definidos como menos marcados favoreçam os conectores menos marcados. (ii) O princípio de persistência: Traços dos usos passados do conector tendem a se aderir a ele, mantendo-se ao longo do processo de gramaticalização, e interferem em sua distribuição lingüística: contextos de traços semântico-pragmáticos similares às fontes do conector tendem a atraí-lo com maior freqüência. (iii) O princípio da marcação e o princípio da persistência podem atuar como forças em competição ou como forças complementares ou como ambas, isto é, atuando coadunadas para alguns dos conectores e como opostas para outros. Além disso, outra generalização possível é que, à semelhança do que ocorre em Florianópolis, as camadas/variantes da seqüenciação em outras regiões do Brasil sofrem influências de grupos de fatores lingüísticos de natureza semântico-pragmática como: subfunções seqüenciadoras; tipos de discurso; níveis de articulação discursiva; graus de conexão e traços semântico-pragmáticos do verbo da oração introduzida pelo conector.241

240 Em cada comunidade de fala estudada, devem ser realizados testes de avaliação capazes de revelar o status dos seqüenciadores no mercado lingüístico local. Tais testes podem mostrar também se os falantes mais jovens consideram um ou mais seqüenciadores como típicos de seu grupo de pares, ou ao menos como ligados aos indivíduos jovens em geral. 2 Em Florianópolis, foram testados também os seguintes grupos de fatores: posição; grau de especificidade das informações introduzidas; escopo do conector; traço semântico, tempo e aspecto do verbo da oração que precede o conector; tempo e aspecto do verbo da oração que se segue ao conector, grupos esses que não foram apontados como significativos pelo VARBRUL – o que não impede que sejam relevantes para a seqüenciação em outras comunidades de fala, merecendo ser levados em conta. Outros grupos também podem ser propostos. Como apenas um estudo foi levado a cabo, as generalizações feitas até o momento estão bastante abertas à incorporação de novos achados.

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Não é apenas sobre o que é comum às comunidades de fala que recai o interesse de um estudo sociofuncionalista comparativo: a comparação pode auxiliar na descoberta de especificidades e de idiossincrasias em comunidades particulares, revelando o jogo local versus universal típico da língua. Tomemos apenas alguns exemplos de possíveis diferenças: (i) as camadas/variantes podem ser distintas;242 (ii) as freqüências de ocorrências de cada camada/variante podem variar de acordo com a comunidade considerada; (iii) a seleção estatística poderá revelar diferenças quanto aos grupos de fatores relevantes e à ordem de importância de cada um deles; (iv) o grau de avanço da gramaticalização de cada um dos seqüenciadores – passível de ser mensurada através de seus panoramas de distribuição – pode não ser o mesmo encontrado em Florianópolis. Outra importância de estudos comparativos versando a seqüenciação, além de observar se as generalizações ora propostas são válidas para comunidades de fala espalhadas pelo país, é a de trazer indícios para responder a seguinte questão: temos, em todo o Brasil, um domínio singular responsável por seqüenciar as informações, no qual os conectores se distribuem de modo idêntico ou semelhante em termos de freqüência e pesos relativos? Ou podemos falar em “domínios” no plural, em razão de as especificidades de cada comunidade de fala suplantar as semelhanças? Vimos, nesta tese, o olhar sociofuncionalista posto em ação... E, como finalização, temos a proposta de que ele seja retomado para confirmar, para refutar, enfim, para refinar, com base em resultados provindos de outras comunidades de fala, as tendências de uso gerais da seqüenciação retroativo-propulsora observadas em Florianópolis. Ao mesmo tempo em que os estudos (envolvendo a seqüenciação ou qualquer outro aspecto da língua como objeto) têm continuidade, a “conversa na diferença” em busca de convergências entre pressupostos do funcionalismo e da sociolingüística variacionista prossegue, pois há muito ainda a ser refletido e conversado a respeito da associação entre as duas teorias ‘mães’ do sociofuncionalismo. E aí daí então cumpre sempre recomeçar, arranjar e re-arranjar diariamente...

242 Em caso de serem mapeadas outras formas codificadoras da seqüenciação, seu passado deve ser investigado (a exemplo de como procedi em relação a e, aí, daí e então) para que a possibilidade de existência de influências do princípio da persistência sobre a distribuição de tais formas possa ser verificada.

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português oral d’aquém e d’além mar: mudança em progresso? Florianópolis: UFSC. Impresso. _____ 2002e. Variação na seqüenciação de informações no PB e no PE: especializações em subfunções

seqüenciadoras... Rumos diversos? Comunicação individual apresentada no L Seminário do GEL (Grupo de Estudos Lingüísticos de São Paulo), em maio de 2002, na USP, em São Paulo. Artigo submetido à avaliação para publicação. (a sair em 2003)

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“comunidade de escrita”? Comunicação individual apresentada no V Encontro do CELSUL (Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul), em novembro de 2002, na UFPR, em Curitiba. Artigo submetido à avaliação para publicação.

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Page 282: Tese Alice Tavares 2003

ANEXOSANEXOSANEXOSANEXOS

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ANEXO 1ANEXO 1ANEXO 1ANEXO 1

Quadro referente às funções de e, aí, daí e então na fala de Florianópolis, conforme Tavares (1999a),

com o acréscimo de algumas construções anteriormente não observadas: E AÍ DAÍ ENTÃO

� seqüenciador RP243 � parte de construções seqüenciadoras RP (e aí, e então, etc) � adversativo � parte de construções diversas244 (aqui e ali, coisa e tal, e coisa, e pa-ra-ra, e pronto, isso e aquilo, pra lá e pra cá, virou e mexeu, etc) � parte da construção aspectualizadora pegar e � cópula entre sintagmas (Pedro e João, maçã e banana, de dia e de noite, tomar café e digitar, etc) � construções indicadoras de horário, ano, soma de dinheiro245 � preenchedor de pausa

� dêitico locativo (específico ou genérico) � anafórico locativo � parte de construções dêiticas ou anafóricas locativas diversas (aí fora, nessa bolsa aí, etc) � anafórico temporal � parte de construções anafóricas temporais (até aí, que aí, aí que) � parte de construções anafóricas discursivas diversas (isso aí, nisso aí, é isso aí, aí é que está, etc) � seqüenciador RP � parte de construções seqüenciadoras RP (e aí, aí então, etc) � adversativo � parte de construções adversativas (mas aí, só que aí) � especificador de SN246 � modificador de verbos � indicador de incerteza � fático solicitando atenção � parte de construções fáticas diversas (espera aí, olha aí) � parte de construções diversas (estamos aí, não estar nem aí, etc) � preenchedor de pausa

� dêitico locativo � anafórico locativo � parte de construções anafóricas locativas diversas (fora daí, nessa bolsa daí, etc) � parte de construções anafóricas temporais (que daí, daí que, daí em diante) � seqüenciador RP � parte de construções seqüenciadoras RP (e daí, daí então, etc) � adversativo � parte de construções adversativas (mas daí, só que daí) � preenchedor de pausa

� seqüenciador RP � parte de construções seqüenciadoras RP (e então, então daí, etc) � adversativo � parte da construção adversativa mas então � parte da construção alternativa ou então � inferidor247 � intensificador de sintagmas ou orações � interjectivo � preenchedor de pausa

Observação: Aí também toma parte na construção por aí, bastante freqüente em Florianópolis em diversos papéis ligados aos seguintes âmbitos: (i) dêixis temporal, (ii) anáfora locativa, (iii) anáfora discursiva; (iv) indicação de incerteza. (cf. Tavares, 1999a).

243 Seqüenciador RP = seqüenciador retroativo-propulsor. 244 Estão agrupadas sob o rótulo “construções diversas” fórmulas que desempenham papéis de diferentes naturezas e que, por serem recorrentes nas entrevistas, configuram-se como expressões cristalizadas, provavelmente de caráter gramatical (conferir seção 1). 245 Por exemplo, duas e quinze da tarde; no ano de mil novecentos e vinte e quatro; duzentos e cinqüenta reais. 246 Conferir Tavares (2001a), Tavares (2002a) e Tavares (2002c) para informações mais detalhadas sobre o uso e a gramaticalização de aí como especificador de sintagmas nominais indefinidos. 247 Conferir Tavares (2001b) e Tavares (2002b) para informações mais detalhadas sobre a função inferidora do então e seu percurso de gramaticalização.

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ANEXO 2ANEXO 2ANEXO 2ANEXO 2

LISTA DE TEXTOS ESCRITOS DO SÉCULO XIII AO XX 1. Foro Real de Afonso X. 1987. Edição e estudo lingüístico de José de Azevedo Ferreira. Lisboa:

Instituto Nacional de Investigação Científica. (tradução do foro espanhol feita nos fins do século XIII ou início do século XIV)*248

2. Livro das Aves. 1965. Edição crítica de Jacira Andrade Mota, Rosa Virgínia Mattos e Silva, Vera

Lúcia Sampaio & N. Rossi. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro/MEC. (obra do século XIV)*

3. Crónica Geral de Espanha de 1344. 1990. Edição crítica de Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa:

Imprensa Nacional/Casa da Moeda. (obra do século XIV)* 4. Alphonse X - Primeyra Partida. 1980. Edição e estudo de José de Azevedo Ferreira. Braga, Instituto

Nacional de Investigação Científica. p. 120-123, 144, 409-414.**249 (obra do século XIV) 5. O Orto do Esposo. 1956. Edição crítica de Maler, Bertil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro.

(obra do fim do século XIV ou início do século XV)** 6. Lopes, Fernão. 1966. Crônica de D. Pedro. Edição crítica de Giuliano Macchi. (obra da segunda

metade do século XV)* 7. Zurara, Gomes Eanes. 1997. Crónica do Conde D. Pedro de Meneses. Edição crítica de Maria Teresa

Brocado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (obra da segunda metade do século XV)* 8. Livro das Obras de Garcia de Resende. 1994. Edição crítica de Evelina Verdelho. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian. (obra da primeira metade do século XVI)* 9. Os Sete Únicos Documentos de 1500, Conservados em Lisboa, Referentes à Viagem de Pedro Álvares Cabral.

1940. Lisboa, Agência Geral das Colônias. p. 23-46. (obra do século XVI)** 10. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. 1954. Edição crítica de Serafim da Silva Leite. São Paulo,

Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo. Vol. I (1538-1553), pp. 170-247; Vol. II (1553-1558), mesma edição, pp. 212-229; Vol. III (1558-1563), mesma edição, pp. 434-451. (obra do século XVI)**

11. Memórias da Academia das Ciências de Lisboa, Classe de Ciências. Tomo XVIII. Um manuscrito náutico

seiscentista reencontrado. 1976. Edição crítica de Avelino Teixeira da Mota. Lisboa, Academia Científica Lusitana. pp. 291-371. (obra do século XVI)**

12. Pinto, Fernão Mendes. 1983. Peregrinação. Transcrição de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa, Casa da

Moeda. p. 13-27. (obra do século XVI)**

248 As obras marcadas por um asterisco foram gentilmente cedidas pela Profª Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBA). 249 As obras marcadas por dois asteriscos foram gentilmente cedidas pelo NEP (Núcleo de Estudos Portugueses), sob a coordenação do Prof.° Gilvan Müller de Oliveira (UFSC). Trata-se de textos que integram “O corpus diacrônico do português”, com organização de Fernando Tarallo (1994).

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13. Lisboa, Antônio de. 1965. O Auto dos Dois Ladrões. Edição crítica de Edwaldo Cafezeiro. 1965. Rio

de Janeiro: Instituto Nacional do Livro. (peça teatral do século XVII) 14. Caporalini, Domingos. 1749. A Vingança da Cigana. Lisboa, na Officina de Simão Thadeo Ferreira.

(peça teatral do século XVIII) 15. Marquês do Lavradio. 1972. Cartas da Bahia, 1768-1769. Rio de Janeiro: Ministério da Justiça,

Arquivo Nacional. pp. 9-101. (obra do século XVIII)** 16. Santuario Mariano e História das Imagens Milagrosas de Nossa Senhora, etc. Tomo Primeiro. 1707. Lisboa, na

Officina de Antonio Pedrozo Galròo. p. 20-31, 230-239. (obra do século XVIII)**

17. Coletânea de Textos de Francisco José Lacerda e Almeida. 1944. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. (obra do século XVIII)**

18. França Júnior, Joaquim da. Maldita Parentela. Ediouro. (peça teatral; 1ª ed.: 1871)***250 19. França Júnior, Joaquim da. Como se Fazia um Deputado. Ediouro. (peça teatral; 1ª ed.: 1881)*** 20. França Júnior, Joaquim da. Caiu o Ministério! Ediouro. (peça teatral; 1ª ed.: 1881)*** 21. França Júnior, Joaquim da. As Doutoras. Ediouro. (peça teatral escrita em 1889; 1ª ed. 1932)*** 22. Azevedo, Arthur. A Casa de Orates. 1995. In: Teatro de Artur Azevedo VI. Estabelecimento de texto

por Antônio Martins. Rio de Janeiro: FUNARTE. (peça teatral escrita em 1882)*** 23. Azevedo, Arthur. 1995. O Dote. In: Teatro de Artur Azevedo VI. Estabelecimento de texto por

Antônio Martins. Rio de Janeiro: FUNARTE. (peça teatral escrita em 1907)***

24. Lima Barreto, Afonso Henriques. 1990. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Ática. (romance; 1ª ed.: 1909)

25. Lima Barreto, Afonso Henriques. 1990. Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática. (romance;

1ª ed.: 1915) 26. Andrade, Mário de. 1976. Macunaíma: o Herói sem Nenhum Caráter. 12ª ed. São Paulo: Martins.

(romance; 1ª ed: década de 20) 27. Andrade, Oswald. 1990. Memórias Sentimentais de João Miramar. 2ª ed. São Paulo: Globo. (romance; 1ª

ed.: 1924) 28. Andrade, Oswald. 1992. Serafim Ponte Grande. 3ª ed. São Paulo: Globo. (romance; 1ª ed.: 1933) 29. Andrade, Oswald. 1991. O Rei da Vela. São Paulo: Globo. (peça teatral; 1ª ed.: 1937) 30. O Homem do Povo. Coleção completa e fax-similar dos jornais escritos por Oswald de Andrade e Patrícia Galvão

(Pagu). 1995. 2ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Arquivo do Estado.251

250 As peças teatrais marcadas por três asteriscos foram gentilmente fornecidas pela Profª. Vera Lúcia Paredes da Silva (UFRJ). 251 A coletânea de O Homem do Povo foi gentilmente fornecida pela Profª Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC).

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31. Tojeiro, Gastão. 1938. O “Tenente” era o Porteiro. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.***

32. Amado, Jorge. 1961. Jubiabá. 10ª ed. São Paulo: Martins.252 (romance; 1ª ed: década de 30) 33. Amado, Jorge. 1969. Capitães da Areia. 19ª ed. São Paulo: Martins. (romance; 1ª ed: década de 30) 34. Steinbeck, John. 1940. As Vinhas da Ira. [Tradução brasileira por Ernesto Vinhaes e Herbert Caro].

Porto Alegre: Livraria do Globo. (romance) 35. Cunha, Humberto. 1951. A Vida Tem Três Andares. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Autores

Teatrais.*** 36. Autran Dourado, Valdomiro Freitas. 1974. O Risco do Bordado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Expressão e

Cultura. (romance; 1ª ed.: 1970) 37. Autran Dourado, Valdomiro Freitas. 1992. Um Cavalheiro de Antigamente. São Paulo: Siciliano.

(romance)

38. Paiva, Marcelo Rubens. 1983. Feliz Ano Velho. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense. (romance) 39. Paiva, Marcelo Rubens. 1986. Blecaute. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense. (romance) 40. Lins, Paulo. 1997. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras. (romance)

252 Os romances de Jorge Amado e de Valdomiro Freitas Autran Dourado foram indicados como possíveis fontes de dados pela Profª. Odete Pereira da Silva Menon (UFPR).