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Andréa Máris Campos Guerra A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA: criação e suplência IP/UFRJ Abril de 2007

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Andréa Máris Campos Guerra

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA

BORROMEANA: criação e suplência

IP/UFRJAbril de 2007

Andréa Máris Campos Guerra

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA

BORROMEANA: criação e suplência

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade

Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria

Psicanalítica.

Área de concentração: Psicanálise

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Rio de JaneiroAbril/2007

Ficha catalográfica

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:

criação e suplência

Autora: Andréa Máris Campos Guerra

Orientadora: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

____________________________________________________Presidente, Prof. Ana Cristina Costa de Figueiredo - Orientadora

____________________________________________________Prof. Angélica Bastos Grimberg

____________________________________________________Prof. Jeferson Machado Pinto

_____________________________________________________Prof. Marcus André Vieira

_____________________________________________________Prof. Nelisa de Araujo Guimarães

Rio de JaneiroAbril/2007

iii

Para Gustavo e Noa

iv

AGRADECIMENTOS

À Ana Cristina Figueiredo pela acolhida generosa, pelo apoio constante, pelo vivo

entusiasmo, pelas entradas exatas na escrita da tese e pelo bom encontro na vida;

A Gustavo, pelo amor e pela parceria, sempre estimulantes e renovadores, e pela

lembrança constante de que posso sempre dar mais um passo;

Ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica por criar a condição dessa tese,

em especial às professoras Angélica Bastos Grimberg e Ana Beatriz Freire que

acompanharam de perto e pari passu sua construção;

Aos ex-alunos que seguiram comigo nas questões da tese ao longo dos últimos anos de

pesquisa, em especial Pollyana Vieira e Souza e Luciana Luiz Borçato;

Ao diálogo profícuo generosamente oferecido pelo prof. François Sauvagnat, que me

acolheu durante o ano de estudos aprofundados em Paris VII e Paris VIII;

A Sérgio Laia e Elisa Alvarenga pela aposta numa possibilidade de ir além;

Aos amigos do Collège Franco-Brésilien (Paris) pelo encontro, pela acolhida e pela

discussão com as idéias da tese, em especial Ligia Gorini, Ester Cristelli-Mailard e

Marie-Claude Sureau;

A M. Pierre Skriabine e colegas de cartel, em especial Michèle Berdah, pelo avanço

junto à empreitada custosa a que a topologia nos conduziu;

A M. Alain Vaisserman, que abriu com entusiasmo as portas de seu secteur para que eu

pudesse me aproximar da psicose e de seu tratamento na rede pública francesa;

Aos amigos da PUC que mudaram o rumo de minha história com suas amizades e

calorosos debates de boas idéias, em especial Jacqueline, Roberta e Vânia;

À minha família que dialoga na distância ou na curiosidade próxima com meu trabalho,

sempre me estimulando;

Aos amigos e companheiros que enriqueceram, cada qual na sua particularidade, a

trajetória dessa tese: Andréia Stenner, Cláudio Felício, Fernanda Otoni, Célio Garcia,

Vassiliki Gregoropoulou, Nicole Chardier, Marilsa Basso, Marcela Lima e Assia

Gouasmi;

À CAPES.

v

RESUMO

A ESTABILIZAÇÃO PSICÓTICA NA PERSPECTIVA BORROMEANA:

criação e suplência

Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra

Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria

Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

Investigamos a hipótese sobre a estabilização psicótica, via criação artística ou artesanal,

prescindir da escrita. Revisamos em Freud e em Lacan as estratégias de solução para as psicoses

e também precisamos as noções de escrita e de letra, a fim de articular o que se escreve numa

obra. Em Freud, percorremos sua discussão sobre a Verwerfung, bem como sobre a assertiva do

delírio como tentativa de cura. Em Lacan, identificamos ao menos três estratégias quanto à

estabilização na psicose: o ato, a metáfora delirante e a obra. A partir desta última, Lacan

empreende uma revisão da estrutura da linguagem para pensar o inconsciente face ao gozo

através, sobretudo, das noções de letra e de lalíngua. Com isso, chega à mostração do real

através da topologia borromeana, ampliando a discussão das estabilizações na psicose a partir

do conceito de suplência. Nessa perspectiva, a estabilização implica, enquanto suplência, a

maneira como o sujeito, psicótico ou não, se escreve como nó, usando a letra, enquanto litoral

entre simbólico e real, e fundando o campo pronto a acolher gozo. Letra e nó escrevem o

savoir-y-faire do sujeito. É o que mostramos com a aplicação da topologia borromeana

enquanto método de análise a dois casos de psicose. Deles extraímos que a criação, artística ou

artesanal, poderá (mas nem sempre) operar enquanto letra que escreve um sujeito, permitindo o

enlaçamento dos três registros. Mais do que a criação em si, é seu efeito de escrita que pode

funcionar como elemento na suplência psicótica. Nesse sentido, a criação seria também uma

forma de escrita.

Palavras-chave: estabilização psicótica; criação; suplência; topologia borromeana; letra.

Rio de Janeiro

Abril de 2007

vi

ABSTRACT

PSYCHOTIC STABILIZATION CONSIDERED FROM THE BORROMEAN VIEW:

creative process and supplementation

Nome do Autor: Andréa Máris Campos Guerra

Orientador: Ana Cristina Costa de Figueiredo

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,

Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutor em Teoria Psicanalítica.

The aim of this thesis is to work on the hypothesis of psychotic stabilization being achieved through

artistic or handcraft creation, prescinding from written language. We have taken the work of Freud

and Lacan related to this subject in order to identify the strategies proposed by them for psychotic

stabilization, and also to settle a delimitation of the notion of written language and letter. In Freud,

we considered the discussion about the Verwerfung and the proposal that delusion could be an

attempt to accomplish cure. In Lacan we could identify at least three strategies for psychotic

stabilization: the act, the delusional metaphor and the written. When discussing the work produced in

the 70s decade, Lacan makes a full revision on the placement of language structure in it, this being

done it order to consider the unconscious facing joy, mainly through the notions of letter and

lalangue. By "reaching" the Real through Borromean topology, Lacan widens the discussion about

stabilization in psychosis deriving from the notion of supplementation. Cutting adrift from the

defective proposition of psychosis, he proposes the task of tying the three registers by means of

supplementing them. According to such view, stabilization, being achieved by means of

supplementation, implies how the subject writes himself as a Borromean knot; in this writing, the

letter becomes the central element, once it sets the receptive field to receive joy. Letter and knot

write the savoir-y-faire of the subject. This is what we intended to show when applying Borromean

topology, as an analysis method, to two cases of psychosis. We have concluded that both artist and

handcraft creation work as a means of "writing" the subject, and may allow the three registers to be

tied. The effect caused by "writing" the subject, more than the one produced by the creative process,

is the one which can work as an element in supplementation. The creative process itself is also

written language, and may be able to lead to tying effects on the three registers, being it through the

Borromean via or not.

Keywords: psychotic stabilization; creative process; Borromean topology; letter.

Rio de Janeiro

Abril de 2007

vii

LISTA DE FIGURAS

01 – Nó olímpico ........................................................................................................... 9102 – Nó borromeano de três elementos .............................................................................. 9103 – Triske com objeto a ............................................................................................... 9104 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan ................................................................. 9805 – Nó borromeano detalhado ................................................................................................ 100 06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco ........................................... 10107 – Nó de trevo aberto ............................................................................................................ 10808 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) ............................... 11009 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) ................................. 131 10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano ....................................................... 13111 – Duas modalidades da clínica diferencial .......................................................................... 13212 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo ...................................... 14313 – Nó trivial (matemático) e nó do senso comum ................................................................. 148 14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial ................................................................... 150 15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos .......................................................... 15016 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo ....................................................... 15017 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas ............................... 15118 – Os três movimentos dos nós............................................................................................ 152 19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz ..................... 15320 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 ........ 15421 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, com erro no ponto de cruz 2 ........ 15522 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf ............................................................................... 15623 – Apresentação parcial da tabela dos nós ........................................................................... 15724 – Esquema R ........................................................................................................................ 16125 – Plano da perspectiva clássica ............................................................................................ 16226 – Plano de projeção da perspectiva ..................................................................................... 16227 – Planos projetivos inseridos na esfera ............................................................................... 16228 – Esquema I ......................................................................................................................... 16429 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I ...................................................................... 16630 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana ................................ 17431 – Cadeia borromeana e nó de trevo ..................................................................................... 17532 – Erro e suplência em James Joyce no nó de trevo ............................................................. 17633 – Suplência borromeana pelo Édipo e suplência joyceana pelo ego ................................... 17934 – Nó borromeano a quatro, com a costura do sinthoma com o real .....................................18535 – Erro do nó do Profeta Gentileza ....................................................................................... 21736 – Suplência do nó do Profeta Gentileza .............................................................................. 21837 – Erro do nó de A.? .............................................................................................................. 23938 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 25939 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG) ............................... 26040 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza............................................................... 26741 – Pintura 01 de A. ................................................................................................................ 26842 – Pintura 02 de A. ................................................................................................................ 269

viii

SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................................... 12

Capítulo 1 Estabilizações psicóticas: uma visitação preliminar ao tema ................................. 23

1.1 Introdução às psicoses e às estabilizações: Freud e Lacan ............................................. 24

1.2 A abordagem freudiana da psicose ................................................................................. 26

1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo ..................................... 26

1.2.2 A topologia da negativa na psicose: Die Verwerfung ........................................... 30

1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora ....................................................... 38

1.3 A abordagem lacaniana das soluções nas psicoses ........................................................... 39

1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências ............................................. 40

1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan ................................................... 47

Capítulo 2 Quando a estrutura da linguagem aponta seu mais-além .......................................... 64

2.1 Discussão dos conceitos preliminares à compreensão da revisão lacaniana .................... 65

2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos .................................................................. 65

2.1.2 As condições de possibilidade dos novos conceitos lacanianos ........................... 68

2.2 Lacan, a linguagem e a psicose ......................................................................................... 72

2.2.1 Linguagem e lalíngua ........................................................................................... 75

2.2.2 Letra e escrita ..................................................................................................... 79

2.2.3 Escrita e psicose ................................................................................................. 83

2.3 Gozo: da satisfação à topologia ...................................................................................... 92

2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan ...................................................... 93

2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente ........................ 97

2.4 Suplência e pai .............................................................................................................. 111

2.4.1 O pai e die Verwerfung .................................................................................... 113

2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia ....................... 119

2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose .................. 121

2.5 Enfim ............................................................................................................................. 126

Capítulo 3 De nós e lapsos também se escreve um sujeito: a topologia dos nós e seus

desdobramentos clínicos ........................................................................................................... 136

3.1 Lacan e o nó borromeano .............................................................................................. 137

3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático ................................................ 143

3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais ................................... 147

ix

3.2 Topologia e psicose ................................................................................................ 159

3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50 ............. 159

3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60 .. 167

3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70 ......................... 169

3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós ....................... 181

Capítulo 4 Aplicação da topologia borromeana à leitura das estabilizações na clínica das

psicoses ..................................................................................................................................... 187

4.1 Discussão metodológica .................................................................................................. 188

4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise ................................................ 188

4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos ................................................ 191

4.2 Uma primeira solução singular: a escrita do Profeta Gentileza ....................................... 198

4.2.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 198

4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 208

4.2.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 216

4.3 O segundo caso: A., de flagelo de Deus à “sedi di shacina”, e daí em diante ................ 218

4.3.1 História de vida e história clínica ........................................................................ 218

4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso ......................................................................... 222

4.3.3 Uma leitura borromeana do caso ......................................................................... 239

4.4 Os dois casos, nossa hipótese e sua escrita ...................................................................... 240

Conclusão ................................................................................................................................. 243

Referências Bibliográficas ........................................................................................................ 247

Anexos ...................................................................................................................................... 258

x

“Quando se escreve podemos muito bem tocar o real,

mas não o verdadeiro.” (Jacques Lacan, 1975)

xi

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

INTRODUÇÃO

12

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“Não pense que pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” (Clarice Lispector, 1977)

“A morte, o destino, tudo, estavam fora do lugar. Eu vivo para consertar.” (Geraldo Vandré/ Théo de Barros)

A loucura sempre provocou inquietação, curiosidade, temor. De alguma forma, essa

alteridade que se revela como o outro de nós mesmos, instiga em nós aquilo que

desconhecemos (FOUCAULT, 1995). E muitas vezes nos coloca a trabalho. Se o

analista não deve ceder a essa ‘sedução’ subjetiva na clínica, também não deve recuar

diante da estranheza por ela provocada.

Foi no ato de coragem que caracterizou esse enfrentamento que J. Lacan, apoiado em

premissas freudianas, inaugurou a clínica da psicose com decisão no meio psicanalítico.

Psiquiatra de formação, encontrou na psicose um guia para suas questões clínicas

provocando um reviramento no interior de sua própria teoria a propósito dela. S. Freud

já havia surpreendido o mundo ocidental, inicialmente europeu, com a teoria da

sexualidade infantil e marcou narcisicamente o homem moderno ao dizer a ele que não

era senhor em sua própria morada, dada a existência da determinação inconsciente

(FREUD, 1917/1976). Ele tomava a neurose como normalidade, rompendo com a longa

tradição que discutia o normal e o patológico em termos de média, anomalia ou desvio.

Lacan, contemporâneo do rompimento com a modernidade, alimentava-se das teorias

que marcavam essa cisão, cada vez mais explicitada. Embebedou-se do estruturalismo,

dialogou com a lingüística e com a antropologia que lhe deram origem, com a filosofia

e com as matemáticas, enfim, aplicou à leitura e à clínica psicanalíticas elementos

vizinhos para nutri-la de maior precisão e rigor. Não morreu, porém, sem enxergar as

aporias de sua própria teorização.

Fazendo a crítica de si mesmo, Lacan vai cada vez mais se aproximar de uma redução

minimal que lhe permitia transmitir o mais integralmente possível o acontecimento

freudiano da descoberta do inconsciente (LACAN, 1972-73/1982). Nesse ponto, em

torno da década de 70, encetou a discussão da psicose com a proposta do nó borromeu e

a tomou como uma referência de normalidade. A qualquer sujeito é impossível tudo

13

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

representar, tudo dizer. Esse elemento, foracluído1 para todos, exige, de cada um, uma

solução única para atar os três registros, Real, Simbólico e Imaginário conformando sua

realidade para se escrever como singularidade radical.

Nesse sentido, o que antes aparecia, seja em Freud, seja em Lacan, como defeito, como

déficit em relação ao que podia ser tomado como normalidade, qual seja, a referência a

um ordenador simbólico da subjetividade (o Nome-do-Pai), que garantia a entrada do

sujeito na linguagem e sua subordinação à Lei (LACAN, 1955-56/1992), vai aparecer,

então, como invenção. Nem mesmo o Nome-do-Pai garante a possibilidade de tudo

significar. Ao contrário, já em sua proposição ele é índice da falta do Outro e do destino

que a ela cada sujeito confere. Ele resguarda ao sujeito uma via de acesso à linguagem,

uma solução ao embaraço colocado pelo desejo caprichoso do agente materno. Mas nem

ele próprio, porém, tem a resposta para o seu enigma. O encontro com o Outro é sempre

faltoso e, para isso, não há remédio. Ao contrário, é desse encontro que nasce a

possibilidade de construção de uma resposta pelo sujeito.

Como essa resposta se articula? Quais as relações que o sujeito pode estabelecer com o

campo do Outro? O que a singulariza? Haveria alguma diferença entre a construção de

solução na psicose e na neurose? Debatendo-se com essas questões, Lacan abriu um

novo campo de investigação ao trazer a topologia dos nós para o interior da teoria

psicanalítica. Ainda que essa teoria no seu campo de origem (o matemático) estivesse

em sua pré-história naquele período, ao equivaler a amarração real do nó borromeu ao

sujeito do inconsciente, Lacan apresentou aos psicanalistas do futuro uma nova e

profícua ferramenta teórico-clínica, ou uma realidade operatória, como ele mesmo a

designa.

Na verdade, toda a discussão topológica de cortes, suturas, emendas e grampos, era

proposta por Lacan como o real da clínica. Diferentemente do uso que fez da topologia

da superfície com a Banda de Moebius, a garrafa de Klein ou com o cross-cap, com os

nós, especialmente com os nós borromeanos, Lacan afirmava mostrar o real. A

topologia borromeana não aparece como modelo, como explicação ou como analogia,

não aparece nem mesmo como suporte para se pensar a clínica. “Minha topologia não é

de uma substância que situe além do real aquilo que motiva uma prática. Não é teoria.”

(LACAN, 1972/2003, p. 479).

1 É possível, portanto, pensarmos em uma teoria restringida do sintoma, pertinente à neurose, e uma teoria generalizada, que vale tanto para a neurose quanto para a psicose.

14

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

E, não por acaso, é através de um caso de psicose que ele pensa clinicamente esse uso

no Séminaire XXIII, Le sinthome, após desenvolver suas bases, no Séminaire XXII, RSI.

O que se destaca nesse estudo e que nos interessa é a recorrência à psicose para se

pensar a clínica psicanalítica. O insondável da loucura, ou o foracluído da psicose,

ganha novo nome à medida que a idéia de Nome-do-Pai vai perdendo seu vigor ou sua

potência simbólica ordenadora para ceder lugar à pluralidade de soluções que recorrem

a diferentes artifícios. Na época em que a mulher é sintoma do homem, quando este,

para se dizer homem, faz dela objeto causa de seu desejo; na época em que a relação

sexual não existe, quando se aponta para o irredutível de um processo analítico; na

época em que lalíngua funda uma outra ordem caótica anterior à Linguagem articulada

simbolicamente pelo significante; na época em que a letra, corolário do significante,

escreve o veio pelo qual escorre o sujeito; a psicose funciona antes como paradigma que

como déficit. Se, por um lado, Lacan não abandona a idéia de estrutura clínica

(LACAN, 1966/2003), por outro ele retoma o axioma mais fundamental da clínica

psicanalítica2 e pergunta pelo que há de mais singular em cada sujeito que recebe, na

medida em que a experiência com um sujeito de um mesmo tipo clínico não se

transmite sequer à experiência com outro de mesmo tipo.

Essa mesma experiência clínica, quando acontece com a psicose, revela a radicalidade

do que não se generaliza a partir do que se tornou generalizável para todos. Ilógico?

Absolutamente. A partir da constatação de que o Nome-do-Pai é um dentre os diferentes

modos de amarração possíveis para um sujeito, para todos os sujeitos se colocará a

exigência de buscar uma solução, ainda que cada um vá tecê-la com seus recursos e

com a singularidade que sua estrutura dispõe. Em outras palavras, é universal a

foraclusão (MILLER, 1998a) e singular sua solução. E é a escrita do nó, escrita com a

letra a, do objeto causa de desejo, que amarra, no real da clínica, essa solução.

Na experiência da clínica com a psicose que realizamos nos serviços substitutivos ao

hospital psiquiátrico, verificamos diferentes estratégias de estabilização empreendidas

pelos sujeitos que ali se tratavam. Especialmente quanto à criação artística ou artesanal,

deparamo-nos com diferentes usos dela estabelecidos pelos psicóticos. Fosse articulado

ao delírio, fomentando-o, fosse como elemento que fazia barra à atividade alucinatória,

fosse como estratégia de pacificação, talvez mesmo como suplência, encontramos, na

2 Segundo este axioma, a cada novo caso, uma nova psicanálise se inaugura e devemos tomar cada caso que recebemos como se fosse o primeiro, como inaugural.

15

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

clínica da Saúde Mental, uma interrogação sobre a articulação criação-psicose no que

tange à estabilização.

O encontro entre a discussão empreendida por Lacan na década de 70 e a clínica

cotidiana da Saúde Mental exigia uma revisão da clínica com as psicoses, que não podia

mais se sustentar na aposta da metáfora delirante. A partir da elaboração de conceitos

como lalíngua e letra e da discussão do paradigmático caso de Joyce, a escrita do nó

como resposta exigia-nos avançar. Se Joyce se escreveu em sua obra, qual o estatuto da

escrita aí? Uma suplência sempre recorrerá a alguma forma de escrita? “Escrever, não

está absolutamente estabelecido que com a psicanálise chegaremos a isso. Isso supõe

uma investigação propriamente falando do que isso significa, escrever” (LACAN,

1975-76/2005, p. 146).

Foi a partir dessa constatação que iniciamos esta investigação articulando a escrita com

a criação. Em Joyce, é patente que a obra se escreve e nela é forjado um ego para o

autor. Mas essa articulação é sempre necessária? Ou foi a contingência do estilo

joyceano que o conduziu a criar esse artifício? Outros sujeitos poderiam prescindir da

escrita ao se valerem da obra, da criação, para operar efeitos de estabilização? Aí

encontramo-nos com um segundo convite lacaniano, sob a forma de uma interrogação

feita sobre a arte, para seu seminário sobre Joyce: “em que o artifício pode enfocar

expressamente o que se apresenta primeiro como sintoma. Em que a arte, o artesanato,

pode burlar, se podemos dizer, o que se impõe do sintoma? A saber, a verdade”

(LACAN, 1975-76/2005, p. 22).

Tomamos criação artística aqui no sentido mais genérico de produção artesanal3, que

implica na intervenção do sujeito sobre uma matéria bruta, cujo resultado, esteticamente

tomado como arte ou não, aparece, numa perspectiva, sob transformação da matéria

pelo sujeito e, noutra perspectiva, como transformação do sujeito pela matéria.

Definitivamente, em cada experiência alguns são mais afetados que outros, tanto

matéria quanto sujeito, podendo-se encontrar obras belíssimas e, por vezes, sujeitos que

encontram nesse processo uma via de estabilização. Os dois casos são raros, entretanto.

No cotidiano com a clínica da psicose nesses serviços complexos a regra são os

obstáculos encontrados, o embaraço, a surpresa, as dificuldades institucionais, as 3 Apoiamo-nos no argumento cartesiano, utilizado por Lacan (1974-75), de que se deve começar a prática das artes mais complexas pelas mais simples, como o trabalho de trançar das mulheres artesãs ou dos artesãos que fazem tapetes. Lacan evoca Descartes (1701/1953) exatamente ao introduzir os nós e as tranças que lhes correspondem.

16

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

dificuldades de fazer um uso do espaço comum, público, as dificuldades de trato com o

corpo, as dificuldades com a convivência familiar, enfim, as dificuldades de toda

ordem.

Diante delas, nos perguntávamos, originalmente, como a criação artística poderia ser

útil no tratamento do psicótico, nos ensaios de estabilização que testemunhávamos.

Dessa maneira, colocamos como objetivo principal, quando da proposição do projeto de

pesquisa para esta tese, o de investigar a possibilidade de a obra na psicose apresentar-

se como solução nessa estrutura clínica a partir de um trabalho sobre o campo do real

que produza uma condensação de gozo realizada a partir da criação artística sobre

uma superfície material.

A obra, a entendíamos apenas no sentido do produto de uma criação artística, no sentido

genérico acima explicitado. E solução, à época, implicava, para nossos estudos, o

conjunto das diferentes possibilidades e estratégias de estabilização. Tínhamos em

mente o paradigma joyceano que exigiu a escrita como articuladora de sua solução. E

nos perguntávamos, então, se uma solução poderia prescindir dessa escrita. Para isso,

um dos desdobramentos necessários à elaboração da pesquisa e da escrita desta tese foi

o da discussão do conceito de letra em Lacan e suas conseqüências sobre a escrita

colocada em xeque por Joyce. Por outro lado, já tínhamos assentada a noção de objeto a

que, a nosso ver, seria o elemento possivelmente extraído no real da obra como

responsável pela condensação ou localização de um gozo fora do corpo do psicótico.

Restava verificar teórica e clinicamente, portanto, essa hipótese que extraímos do

trabalho com os usuários das oficinas em Saúde Mental.

“Nessas esculturas4 coloco os monstros da minha infância. São as fotografias que

ficaram congeladas na minha mente” (relato de usuário). O., cujo corpo encontrava

amparo na mãe e na filha para se sustentar, possuía com a criação artística uma missão,

a de se oferecer como objeto para a pesquisa dos estudiosos dos problemas da mente.

Continuava objeto, portanto, da escrita científica. Sua militância política e seu ânimo

cederam diante do afastamento da filha, do adoecimento da mãe e da ausência das

oficinas de cerâmica (desativadas por um intervalo de tempo por falta de verba

municipal...). Era uma produção submetida a um esteio mais forte, o do corpo

4 Cf. no Anexo 1 fotos de algumas das trezentas obras que esse sujeito fez para mostrar aos estudiosos da mente humana seus problemas através de seu testemunho. Como se verá, cada obra tem ao menos três faces, o que faz de cem, trezentas peças.

17

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

sustentado entre duas mulheres, como suas obras testemunham. Suas esculturas

representam sempre três ou mais figuras que se transformam umas nas outras,

mescladas, em continuidade, sem ruptura. O horror aparece nos furos e buracos que

atravessam a argila e revelam uma atividade delirante que caminha silenciosa. Ensaiam

furar e extrair no real um quantum de gozo que lhe permita viver com menos

sofrimento. O que ele escreve em suas obras? Ou o que não escreve? De que forma suas

esculturas podem se articular ao trabalho de estabilização por ele ensaiado? Antes com

uma postura altiva e entusiasmada, O. hoje se apresenta taciturno, tímido, retraído.

Em nossa prática nas oficinas, verificamos a pluralidade de usos que o sujeito podia

fazer da criação, e que O., em sua peculiaridade, o atestava. Outros sujeitos que faziam

uso da criação artística não se estabilizavam, não se tornavam “artistas” ou nem mesmo

eram tocados por essa produção. Outras vezes, transformavam-se num espaço rico para

enfrentamento da psicose. Em nossa dissertação de mestrado, esta dimensão foi

ressaltada. De alguma maneira, as oficinas voltadas às atividades de criação artística

e/ou artesanal evidenciavam ser um espaço que favorecia o trabalho de estabilização

através dessa criação.“Então a oficina também faz parte desse suporte, mas também por essa literalidade de você ... lá no fim tem uma coisa que foi feita. E que vão coisas até mais elaboradas, como eu acho que isso é [aponta trabalhos de argila], pelo menos alguns, até coisas mais simples como a oficina de bijouterias, né? E então eu acho que isso, assim, pra alguns pacientes tem um efeito muito interessante. Que esse efeito interessante tem a ver com essa literalidade dessa produção também não duvido, que ele tem a literalidade, no sentido de literalidade assim, é uma coisa […]. Não é igual você fazer ... sentar pra fazer uma discussão de grupo com eles, entendeu. O efeito não é o mesmo. (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221-222).

“A gente pensou que teria uma materialidade diferente mesmo a palavra escrita, uma densidade simbólica. A gente chamou assim de uma certa densidade simbólica diferenciada (Relato de oficineiro)” (GUERRA, 2000, p. 221).

“O que se disponibiliza basicamente para ele [paciente] é… uma… vamos dizer assim, uma substancialidade diferente.[…] Faz sentido principalmente pro psicótico essa oferta dessa possibilidade de uma substância de trabalho […] Porque a palavra escrita, ela tem uma substância diferente da palavra falada e… Eu acho que nem faz muita diferença da palavra escrita e com aqueles tipos de objeto que eles constroem muitas vezes […] Mas eles se incluem num outro tipo de registro pra esse sujeito. […] Eu acredito que isso possa ser um recurso é… precioso de trabalho com a psicose, esses recursos materiais assim, né?” (Relato de oficineiro) (GUERRA, 2000, p. 221).

Literalidade, substancialidade, materialidade... Nas conclusões das pesquisas do

mestrado (GUERRA, 2000), consideramos que a materialidade do produto provocava,

18

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

em si mesma, algum tipo de efeito para o psicótico. Destacou-se em nossos achados o

trabalho do psicótico sobre uma materialidade concreta como servindo de suporte para

uma escrita outra também localizadora de gozo5, e não apenas produtora de

significações. O produto sendo Real e, ao mesmo tempo, recebendo um contorno

simbólico pela Linguagem e uma inscrição social (Imaginária) pela Cultura, se

inscreveria, de um lado, incluído no campo das trocas sócio-simbólicas, circulando

como um produto socialmente reconhecido. E, por outro lado, trabalhando o ponto de

real que o simbólico pode tocar, o produto operaria sobre a subjetividade do

participante, quando uma contingência permitisse essa operação. Nesse caso, ele

poderia funcionar como elemento na estabilização psicótica.

Ora, a idéia de materialidade e de substância em Lacan nasce de uma inspiração

cartesiana acerca do dualismo entre res cogitans e res extensa, entre substância e

matéria6, do qual Lacan faz um uso clínico. Ele associa a materialidade ao significante,

enquanto a substância aparece sempre ao lado do gozo. Se o significante é matéria que

faz existir o inconsciente estruturado como linguagem, o gozo, a substância gozosa, por

seu turno, desvela o que determina o sujeito para além da linguagem, sua forma de

satisfação e de dor, o ponto a que sua repetição o conduz, ou o impossível de dizer,

conforme se busque as referências lacanianas ao gozo no início de sua obra (anos 50),

ou no seu final (anos 70).

Assim, o encontro com a abordagem do final do ensino lacaniano favoreceu a

investigação da criação artística como possibilidade de solução na psicose, trazendo

para primeiro plano a dimensão da escrita e da letra e, com isso, permitindo um

refinamento em sua argumentação. Essas noções, bem como a mostração do real pelo

nó e sua aplicação ao estudo de um caso (James Joyce), tornaram possível detalhar

nossa hipótese e discuti-la com mais precisão. Se, ao iniciarmos nossa investigação, 5 A título de introdução podemos dizer que o gozo implica, diferentemente do prazer, nas diferentes relações com a satisfação que um sujeito desejante e falante – portanto, atravessado pela incompletude que a linguagem instala – pode esperar e experimentar no uso de um objeto desejado (CHEMAMA, 1995, p. 90).6 R. Descartes afirma a existência de duas substâncias separadas, a alma, pensamento ativo e sem extensão, e o corpo, extensão não pensante e passiva. Para ele, a mente é uma substância ou entidade, caracterizada fundamentalmente pelo fato de ter consciência, de ser uma coisa que pensa, que percebe, que sente (res cogitans). A realidade externa é material, e a matéria tem como característica básica o fato de ser extensa (res extensa). Consciência e extensão são coisas claramente distintas, podendo cada uma delas ser clara e distintamente concebida sem referência à outra. Os vários estados de consciência (pensamento, sensação, sentimento) são totalmente distintos dos vários modos de determinação da matéria. Por isso, nenhum estado de consciência pode ser essencialmente dependente de qualquer coisa física. A mente, e tudo que ela possui, pode existir sem qualquer substância material.

19

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

esperávamos encontrar uma espécie de “categorização” do uso da criação artística no

trabalho de estabilização psicótica, foi o encontro com o final da obra lacaniana que

operou como um acontecimento, refazendo o destino da investigação ao tocar seu

problema central.

A problemática da estabilização psicótica apoiada na criação artística, ainda que

marcada pelo irredutível à generalização nos casos que estudamos, pôde ganhar forma e

verificar que: mais do que a criação em si mesma, é sua escrita como letra que permite

que uma suplência aconteça. Aqui não falamos mais de estabilização genericamente,

mas de suplência, que implica num passo a mais, como veremos ao longo deste

trabalho. Também falamos que não é a criação em si mesma que forja a invenção de

uma solução, mas claramente o que dela pode se fazer letra. Articulando a idéia

lacaniana de uma “escrita com o objeto a” em Joyce à noção de letra, pudemos avançar

até o ponto em que localizamos a raiz do que abre a possibilidade de uma suplência

estabilizadora.

Esse é o ponto em torno do qual toda a argumentação desta investigação se articulou.

Seja pela via dos novos elementos conceituais que aparecem em Lacan na década de 70,

seja pela via da discussão da topologia borromeana, seja pela mostração dos estudos

clínicos, essas três vias nos conduziram, cada qual à sua maneira, ao ponto de

convergência deste trabalho. É, sim, do que o sujeito escreve que podemos falar em

suplência. Portanto, a rigor, após os anos de dedicação à pesquisa deste tema, tudo

indica que nossa hipótese não se verifica clinicamente. Supúnhamos que a escrita não

era necessária ao trabalho de estabilização, sendo-lhe contingente. Ao longo da

discussão teórica e dos estudos clínicos, pudemos ver que, quando a estabilização

acontece, e mais especificamente quando ela faz suplência, há sempre a escrita do nó

em jogo. Como se vê, restava-nos saber qual o estatuto dessa escrita para pensarmos sua

função no território das estabilizações psicóticas.

Para chegarmos a este ponto da discussão, foi preciso empreender uma revisão acerca

da noção de estabilização (explicitada como tal ou não) em Freud e em Lacan. Assim,

no primeiro capítulo, de Freud, extraímos a noção de Verwerfung, destacando suas

conseqüências quanto ao desencadeamento, à reconstrução possível do mundo e a

topologia da realidade. Dessa maneira, escavamos em Freud as condições conceituais de

possibilidade da discussão das suplências em Lacan, como forma de pensar as

20

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

estabilizações nas psicoses. Com ele, retomamos a idéia da Verwerfung como

foraclusão de um significante estrutural até a liquefação dessa perspectiva pela noção de

escrita no estudo de Joyce. Localizamos os três paradigmas lacanianos quanto às

soluções na psicose, a saber, o ato, a metáfora delirante e a obra, a fim de extrair as

conseqüências desse percurso da obra lacaniana para a discussão das estabilizações na

psicose.

No segundo capítulo, centramo-nos na discussão dos aportes teóricos trazidos com o

final do ensino lacaniano quanto à linguagem e à estrutura, a fim de traçar o percurso

que o conduziu a pensar as soluções subjetivas a partir da topologia borromeana dos

nós. Para isso, estruturamos uma argumentação que seguiu três eixos: a linguagem (letra

e lalíngua), o gozo e o lugar do pai (de signficante à suplência). Com isso, pudemos

trilhar a lógica que provocou em Lacan, no encontro com o nó borromeu, a proposição

de uma nova consistência para pensar a localização do sujeito na estrutura. Dessa

maneira, a idéia de um suplemento aparece deslocalizada da psicose, mas pertinente a

qualquer estrutura clínica a partir do encontro com o real da linguagem.

Sobre este ponto, então, Lacan passa a desenvolver toda uma teoria clínica sustentada

na lógica borromeana. Acompanhamos essa discussão, no terceiro capítulo, dissecando

no campo da Matemática os elementos essenciais dos quais Lacan se apropriou em sua

construção. De posse dessas informações essenciais, retomamos as topologias possíveis

da psicose que podemos encontrar em Lacan, de forma a pensar a suplência em sua

relação com a clínica e a estabilização psicóticas.

Enfim, demonstramos e mostramos no último capítulo, através do estudo de dois casos,

nossa hipótese reformulada de que a letra é o que faz escrita do nó, e, portanto,

suplência quando ela acontece na psicose. Após uma explicação metodológica do

percurso da investigação que guiou os casos, evidenciamos, no primeiro deles, uma

situação em que o sujeito, na psicose, escreveu-se como suplência através de sua

criação. E, no segundo caso, deparamos-nos com um sujeito em que, apesar de sua farta

produção artística e artesanal, não há uma escrita do nó, ficando, conseqüentemente, o

sujeito numa zona de infinitização da criação que não se faz letra que fixa o gozo.

Assim, convidamos nosso leitor a nos seguir na aventura clínico-conceitual deste

trabalho, no qual os caminhos conhecidos se revestem de particularidades a cada virada,

como num labirinto em que os sinais reencontrados vão se conformando em elementos

21

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

diferenciais do percurso, essenciais ao deciframento que conduz à sua saída, cifrando-a,

enfim. Acompanhemo-los.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

CAPÍTULO 1ESTABILIZAÇÕES PSICÓTICAS:

Uma Visitação Preliminar ao Tema

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

1.1 Introdução às Psicoses e às Estabilizações: Freud e Lacan

Apesar de, para Freud, a clínica com a psicose ter sido entendida como contra-indicada,

ele mesmo abre a possibilidade, caso se modifique o método psicanalítico (FREUD,

1940[1938]/1976), de que seu tratamento se torne possível7. A dificuldade encontrada

por Freud não se situava exatamente do lado do psicótico, mas do lado da transferência.

Sabemos que ele realizou extenso estudo sobre a psicose em 1911 a partir dos escritos

autobiográficos do Presidente Schreber do qual extraiu os principais aportes teóricos

sobre o assunto, tendo formulado aí o aforismo do delírio como a tentativa de cura, ou

de solução, na psicose. Ou seja, há um movimento do psicótico em direção à

estabilização. Entretanto, a especificidade da transferência nessas “neuroses narcísicas”

(como ele tomava a psicose em oposição às neuroses transferenciais: histeria e neurose

obsessiva) inviabilizaria seu tratamento analítico. “... aqui as catexias objetais são abandonadas, restabelecendo-se uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. A incapacidade de transferência desses pacientes (até onde o processo patológico se estende), sua conseqüente inacessibilidade aos esforços terapêuticos, seu repúdio característico ao mundo externo, o surgimento de sinais de uma hipercatexia do seu próprio ego, o resultado final de completa apatia – todas essas características clínicas parecem concordar plenamente com a suposição de que suas catexias objetais foram abandonadas” (FREUD, 1915a/1976, p. 224-225).

Sabemos que essa indicação freudiana não escapará a Lacan, que se dedicará a extrair a

particularidade da transferência na psicose pela via da erotomania. Ao mesmo tempo em

que avança teoricamente, não cede clinicamente da possibilidade de seu tratamento.

Freud, por seu turno, se dedicou a pensar a psicose (paranóia) enquanto uma das defesas

à castração, ao lado da histeria e da neurose obsessiva, já em seus primeiros escritos e

rascunhos, como no “Rascunho H” (1895/1976) ou “Rascunho K” (1896a/1976), em

“As neuropsicoses de defesa” (1894/1976) e “Observações adicionais sobre as

neuropsicoses de defesa” (1896c/1976). Não trabalhou nesse período as soluções

encontradas na psicose, mas antes seu mecanismo estruturante e fundador.

Somente nos estudos clínicos do Presidente Schreber é que Freud traçou a diferença

entre a enfermidade e as elaborações mediante as quais o sujeito responde aos

fenômenos dos quais padece. Após 1911, com o texto “Sobre o narcisismo: uma

7 “Assim, descobrimos que temos de renunciar à idéia de experimentar nosso plano de cura com os psicóticos – renunciar a ele talvez para sempre ou talvez apenas por enquanto, até que tenhamos encontrado um outro plano que se lhes adapte melhor.” (FREUD, 1940[1938]), p. 200)

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

introdução” (1914a/1976), avança na formulação do mecanismo de defesa na psicose,

permitindo a posteriori uma releitura do caso Schreber. Segue-se, então, o período de

produção sobre a metapsicologia, no qual encontramos referências teóricas importantes

sobre a representação da coisa e da palavra na esquizofrenia e sobre o recalque primevo,

além de considerações relevantes sobre o supereu e a melancolia. A partir de então, os

escritos nos quais mais se dedica ao tema das psicoses são os textos sobre “Neurose e

psicose” (1924[1923]/1976) e “A perda da realidade na neurose e na psicose”

(1924/1976), apontando o caminho de reconstrução da realidade nas duas estruturas

clínicas.

Foi somente com Lacan, psiquiatra de formação, que a clínica com a psicose avançou,

tendo ele vislumbrado e teorizado pelo menos três possibilidades diferentes de saída na

psicose: a passagem ao ato, a metáfora delirante e a escrita (obra). Apesar de essas

soluções aparecerem em experiências singulares, delas é possível extrair princípios

universais que podem facilitar, caso a caso, a leitura e a condução dessas soluções

encontradas na prática clínica e institucional com a psicose. Também sabemos que

muitas vezes esses caminhos traçados pelos psicóticos em suas saídas prescindem da

presença de um analista ou de um dispositivo institucional de cuidados, além de

envolverem diferentes mecanismos e trabalho psíquicos. Podem, entretanto, ser

elencados a título de sistematização teórica a partir da obra lacaniana.

Lacan dedicou-se ao tema em três momentos principais, a saber, em sua tese de

doutoramento em 1932; no Seminário, As psicoses, de 1955-1956, e no escrito daí

decorrente “De uma questão preliminar a todo tratamento possível na psicose” (1957-

58/1998); e, finalmente, no seminário sobre Joyce, le sinthome, de 1975-1976.

Na verdade, essa divisão é essencialmente didática na medida em que, tal qual Freud, o

avanço da teorização de Lacan se desdobra ao longo de seu ensino a partir de

circunvoluções em torno dos conceitos freudianos fundamentais da psicanálise, os quais

ele enriquece. Ainda que didática, entretanto, essa divisão nos interessa, pois permite

sistematizar as três soluções propostas por Lacan para as psicoses, essenciais ao nosso

estudo.

Especificamente nessa última discussão, Lacan aponta a escrita como aquilo que

permitiu a Joyce sustentar com seu ego “uma função inteiramente outra que sua função

simples” (LACAN, 1975-76/2005, p. 147). A função, através de sua escritura, de situar-

25

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

se ali onde o Imaginário não fazia laço com o Real e o Simbólico, atados estes um ao

outro. Na construção da solução joyceana, Lacan retoma a função do Pai, enquanto

Ideal (amor) e enquanto Lei, destacando que em Joyce ela não opera, sendo-lhe

necessário construir uma nova versão do Pai como sinthoma com sua escrita. É através

desta que Joyce metaforiza sua relação com o corpo e sua imagem, formulando uma

inaugural maneira de se enodar à realidade. “Por este artifício de escrita se restitui, eu

diria, o nó borromeano” (LACAN, 1975-76/2005, p. 152).

Assim, diante das possibilidades apontadas no texto freudiano e no lacaniano,

buscaremos precisar as diferentes estratégias de estabilização psicóticas estudadas por

esses autores neste capítulo. Percorreremos inicialmente as primeiras elaborações

freudianas sobre a psicose como forma de defesa estrutural a um conflito psíquico

insuportável. Vamos fazê-lo de forma a discutir posteriormente a construção delirante

de uma ficção que conduz o sujeito a um ponto de estabilização como a solução que

Freud aprende com o Presidente Schreber. Em seguida, nos deteremos no texto de

Lacan e seus comentadores acerca das soluções psicóticas apresentadas nos três tempos

de seu ensino.

Construiremos dessa forma o percurso que alimenta a discussão mais específica sobre

escrita, suplência e topologia borromeana no segundo capítulo, o que permitirá delimitar

com maior precisão teórica o que da escrita joyceana reflete no trabalho de estabilização

enquanto criação.

1.2 A Abordagem Freudiana da Psicose

1.2.1 A defesa psicótica e o trabalho de reconstrução do mundo

Sabemos que Freud não delimitou, com a clareza estrutural de Lacan, os modos de

defesa do aparelho psíquico (ou as estratégias do sujeito, na terminologia lacaniana) nos

termos que hoje os utilizamos. Neurose, psicose e perversão foram finamente sendo

isoladas como formas particulares de resposta do sujeito diante do impasse colocado

pela castração, entretanto, já desde Freud, encontramos o traçado fundamental das

fissuras que as determinam.

Já em seu “Rascunho H” (1895/1976, p. 291), discutindo a paranóia, Freud a toma

como “um modo patológico de defesa”, apresentando publicamente a proposta da

psicose como resultante de um mecanismo de defesa inconsciente no texto “As

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

neuropsicoses de defesa” (1894/1976). Nele, essa hipótese central calcada na defesa

ganha dois contornos. De um lado, diante de uma representação incompatível com o

aparelho psíquico, este responde com uma defesa que opera retirando dessa

representação seu afeto, tornando-a fraca e, com isso, destituindo-a da catexia que a

tornava ameaçadora. Essa representação descatexizada é recalcada no inconsciente,

seguindo seu afeto correspondente caminhos diversos, conforme a defesa ocorra na

histeria, na neurose obsessiva ou na fobia. De outro lado, a representação e seu afeto

podem ser rejeitados conjuntamente, não restando um traço inscrito da experiência

hipercatexizada. Este é o caso das psicoses. Assim, apesar de ainda manter atreladas

neurose e psicose como se ambas resultassem do “recalque”8, Freud já introduz uma

diferença fundamental na operação estrutural da qual resulta a psicose.

Observe: “Em ambos os casos até aqui considerados [neurose histérica e neurose obsessiva], a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose [...]” (FREUD, 1894/1976, p. 63-64 – grifos nossos).

Aqui Freud já anuncia seu trabalho sobre a diferença entre neurose e psicose da década

de 20, localizando não na perda da realidade, mas no caminho para restaurá-la a

diferença entre as duas estruturas clínicas. A rejeição atinge a própria situação real, que

nunca precisou se tornar consciente. Trata-se de uma defesa tão eficaz, que nega a

realidade mesma da percepção ligada à representação incompatível. Há uma negação da

experiência traumática vinculada à castração, uma ausência de sua inscrição. Melhor

dizendo, a questão da castração sequer é colocada. Há a ausência de seu 8 É importante considerar que, nesses trabalhos sobre as neuropsicoses de defesa (1894/1976 e 1896c/1976), Freud trata indistintamente os termos “defesa” e “recalque”, conferindo-lhes o sentido genérico de defesa estrutural. Ao longo de sua obra, entretanto, especificamente em “Inibições, sintomas e ansiedade” (1926[1925]/1976), ele propõe que o termo “defesa” seja utilizado nessa acepção genérica, designando todas as técnicas empregadas pelo Ego em conflitos que possam levar a uma estrutura específica: neurose, psicose e perversão. E quanto ao termo recalque (traduzido erroneamente em português por repressão), propõe que seu uso seja restrito ao mecanismo particular de separação entre idéia e afeto, característico da estrutura neurótica. Cumpre também ressaltar que usaremos a partir daqui, ao invés do termo “repressão”, que consta na tradução brasileira da obra, o de “recalque”. Isto porque repressão se apresenta geralmente associada aos mecanismos defensivos e conscientes do ego. Já o recalque é a terminologia utilizada para expor a operação inconsciente, responsável por desalojar representações incompatíveis com o aparelho psíquico, destituindo-as de sua catexia, fundando o aparelho psíquico dividido em Pcs-Cs e Ics e constituindo-se na defesa neurótica a qual fizemos referência. Para a operação estrutural que funda a psicose, utilizaremos sempre o termo rejeição, acompanhando a referência freudiana.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

reconhecimento, de sua representação psíquica.

Dois anos mais tarde, Freud retoma a importância central da defesa na constituição do

sujeito: “Minhas observações sobre os dois últimos anos de trabalho fortaleceram-me a

tendência a considerar a defesa como o ponto nuclear no mecanismo psíquico das

neuroses em questão” (FREUD, 1896c/1976, p. 154). Entretanto, ao tentar sistematizar

a operação de “recalque” [rejeição] peculiar à psicose9 irá encontrar uma hiância que só

avançaria, modificada, no estudo sobre Schreber. Aqui ainda afirma que a característica

da defesa na psicose é o “recalque” por projeção e que, a fim de ser aceita sem

contradição, a representação delirante exige uma atividade de pensamento do Ego que

termina por alterá-lo. Como essas idéias não são passíveis de alteração, é o Ego que a

elas precisa se adaptar, modificando-se.

No estudo sobre Schreber, de 1911, ele revê essa posição, localizando a projeção num

momento secundário ao “recalque” na psicose que ganha nesse texto sua formulação

final. Discute também, para além da etiologia da paranóia, sua possibilidade de cura,

como ele diz, ou de estabilização, como hoje podemos dizer. A originalidade de suas

propostas nesse texto provoca uma reversão inaugural e fundamental à leitura posterior

da psicose, lançando definitivamente princípios que orientam, até os dias de hoje, a

investigação psicanalítica acerca da psicose, principalmente após sua releitura10 com o

texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (FREUD, 1914a/1976, p. 102-103). Dois

grandes enunciados se estabeleceram com esse texto:

(a) em relação ao mecanismo estrutural da psicose, Freud afirma que “aquilo que foi

internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95),

permitindo a Lacan décadas depois afirmar que, na base da psicose, seu mecanismo

não se resume a “um recalque por projeção”, mas antes a uma operação muito mais

radical que ele denomina foraclusão, como veremos;

(b) e, em oposição a uma interpretação fenomenológica da psicose, Freud subverte sua

leitura apontando que “a formação delirante é uma tentativa de restabelecimento”

9 “A paranóia deve ter um método ou mecanismo especial de recalcamento que lhe é peculiar” (FREUD, 1896c/1976, p. 164).10 “A diferença entre as afecções parafrênicas e as neuroses de transferência parece-me estar na circunstância de que, nas primeiras, a libido liberada pela frustração não permanece ligada a objetos na fantasia, mas se retira para o ego. A megalomania corresponderia, por conseguinte, ao domínio psíquico dessa última quantidade de libido, e seria assim a contrapartida da introversão para as fantasias que é encontrada nas neuroses de transferência” (FREUD, 1914a/1976, p. 102). Aqui Freud formula nova hipótese sobre a megalomania de Schreber que não nasceria da homossexualidade, mas de uma complexificação introduzida pelo narcisismo no aparelho psíquico.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

(FREUD, 1912[1911]/1976, p. 94), e não a enfermidade propriamente dita, como

era interpretada até então. Donde Lacan afirmar textualmente que não é de déficit

que se trata na psicose, mas de produção de resposta. “A liberdade que Freud se deu

aí foi simplesmente aquela [...] de introduzir o sujeito como tal, o que significa não

avaliar o louco em termos de déficit...” (LACAN, 1966/2003, p. 220).

Apesar de reafirmar que a projeção está na base da defesa psicótica11, Freud faz uma

correção em relação ao que escrevera nos Rascunhos e primeiras publicações de 1894 a

1896 já comentadas. Lá, a projeção aparecia na etiologia da paranóia como provocando

uma projeção dos sentimentos de auto-acusação do paciente para fora, retornando sob a

forma de acusações exteriores. Aqui, Freud altera substancialmente a descrição do

processo aí ocorrido, o que permitiu a Lacan recolocar os termos do trabalho delirante.

“Foi incorreto dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o

exterior; a verdade é, pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi

internamente abolido retorna desde fora” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 95). Assim, se

nas primeiras formulações freudianas, a projeção era confundida com o próprio

mecanismo constitutivo da psicose, na segunda formulação, ela é, no máximo, um

momento secundário desse mecanismo.

Cabe ainda ressaltar que o mecanismo de retirada da catexia libidinal do mundo externo

coincide com o delírio do fim do mundo, como se vê em Schreber. A posterior

construção de seu mundo interno realizada através do trabalho delirante, “que

presumimos ser o produto patológico, é, na realidade, uma tentativa de

restabelecimento, um processo de reconstrução” (FREUD, 1912[1911], p. 94-95) -

nunca é completamente bem-sucedida. E esta, diferentemente do processo de

adoecimento, de retirada da catexia libidinal das pessoas e coisas, que acontece

silenciosamente, é ruidosa no momento de reinvestimento libidinal.

Daí Lacan (1957-58/1998) extrai que, mesmo para Freud, a projeção já era insuficiente

para explicar o “recalque” na psicose. Quando Freud aponta que é desde fora que

retorna aquilo que foi internamente abolido, ele mesmo percebe que não se trata de um

mecanismo projetivo. Como projetar, lançar de dentro para fora, aquilo que não existe

dentro? Se o conteúdo foi internamente abolido, nós estamos falando de uma 11 “A característica mais notável da formação de sintomas na paranóia é o processo que merece o nome de projeção. Uma percepção interna é suprimida e, ao invés, seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 89).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

representação primordial sobre o ser do sujeito psicótico que não encontra meios de

significar-se, representar-se. Essa significação não vem de parte alguma e não remete a

nada, posto não ter sido simbolizada. Será no caso do Homem dos Lobos, relatado em

“História de uma neurose infantil” (1918[1914]/1976), que Freud utilizará o termo

Verwerfung num fragmento clínico que o evidencia para nomear essa não inscrição de

uma representação fundamental, diferente da operação do recalque para a neurose. É

importante entendermos o que se opera como defesa nesse nível para que possamos

adiante discutir as diferentes maneiras que o sujeito pode inventar para tratar dos efeitos

particulares dessa operação constitutiva.

1.2.2 A topologia da negativa na psicose: die Verwerfung

No texto “A negativa” (1925/1976), Freud diz que a negação ou denegação12 constitui

um modo de tomar conhecimento do que está recalcado. Trata-se de uma suspensão do

recalque, mas nem por isso uma aceitação do recalcado, evidenciando que a função

intelectual está separada do processo afetivo. Para ele, negar ou afirmar o conteúdo de

pensamentos é tarefa da função do julgamento. Assim, um juízo negativo seria o

substituto intelectual do recalque, “o seu ‘não’ é a marca distintiva da repressão

[recalque], um certificado de origem – tal como, digamos, ‘Made in Germany’” (p.

297). A criação do símbolo da negativa possibilitaria um primeiro grau de

independência dos resultados do recalque.

Nesse texto, Freud estaria, segundo Hyppolite (1954/1998), apontando a origem da

inteligência. A partir do conceito de Aufhebung, familiar ao vocabulário hegeliano com

o qual o filósofo possuía grande intimidade, ele realiza a leitura do processo da

denegação. Ele situa neste conceito, que não é ainda uma aceitação do recalcado, o

nascimento do pensamento, afetado, primariamente, pela denegação. Além disso,

retoma a dialética do senhor e do escravo para destacar, nesse nascimento mítico, a ação

da pulsão de destruição. No entanto, a denegação realizaria sua função, não como

12 Segundo a intervenção de J. Hyppolite (1954/1998), filósofo francês hegeliano, sobre o texto freudiano no seminário de Lacan sobre “Os escritos técnicos de Freud” (1953-54/1986), a tradução francesa mais adequada ao termo alemão Verneinung seria denegação, sendo primordial para a compreensão do texto a distinção entre a negação interna ao juízo e a atitude de negação. Vidal (1988, p. 16-17), em discussão do mesmo texto, aponta que denegação, na língua portuguesa, seria um vocábulo pertinente ao campo jurídico implicando num indeferimento, numa recusa a uma demanda, no sentido de não aceitar. Assim, ele prefere adotar o termo negação, no sentido de ‘dizer não’, que não é estritamente um conceito, mas uma operação que age sempre sobre a frase, incluindo nesse registro lógico a negação de uma proposição e também a negação gramatical.

30

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

tendência à destruição, nem como negação interna a um juízo, mas como atitude

fundamental da simbolicidade explicitada. Acompanhemos a construção freudiana.

Freud avança pela gênese da função do pensamento ao distinguir suas operações

fundamentais. A função do julgamento estaria relacionada com duas espécies de

decisões. “Ele afirma ou desafirma a posse, em uma coisa, de um atributo particular, e

assevera ou discute que uma representação tenha uma existência na realidade”

(FREUD, 1925/1976, p. 297). Enquanto a primeira dessas funções opera pelo princípio

do prazer, a segunda já é guiada pela prova (ou teste) de realidade.

O juízo de atribuição, o primeiro apresentado por Freud, implica em introjetar o que é

bom e ejetar o que é mau, instituindo um dentro e um fora, a partir dos respectivos

atributos, é bom, quero comê-lo, é mau, quero cuspi-lo. A segunda função do juízo, a do

juízo de existência, não mais diz respeito a algo percebido (uma coisa) que deva ou não

ser acolhido no eu, mas se refere ao fato de que algo existente no eu como representação

possa ser reencontrado também na percepção (realidade). O não-real, apenas

representado, subjetivo, está só dentro, enquanto o outro, real, também existe no fora.

Neste ponto, foi deixada de lado a consideração pelo princípio do prazer, donde a

antecedência lógica do juízo de atribuição em relação à denegação. Freud lembra que as

representações provêm de percepções, são repetições destas. A oposição entre subjetivo

e objetivo não existe desde o início. O objetivo primeiro da prova de realidade, assim,

não seria encontrar na percepção real um objeto que corresponda ao representado, mas

reencontrar tal objeto, desde sempre perdido. É nesse intervalo, entre o objeto da

percepção, desde sempre perdido, e a representação, que o inconsciente se institui como

diferença.

A importância da função do julgar reside no fato de que ela é uma ação intelectual que

decide sobre a escolha da ação motora, pondo fim à protelação do pensamento. Ela

conduz do pensar ao agir. Além disso, oferece material para pensarmos o surgimento da

função intelectual a partir das moções pulsionais primárias, o que revela uma relação

entre significante e gozo. O julgar é uma continuação do processo original através do

qual o ego integra coisas a si ou as expele de si, de acordo com o princípio do prazer.

“Enquanto a afirmação [Behajung] – como um substituto da união – pertence a Eros; a

negativa [Verneinung] – o sucessor da expulsão [Ausstosung] – pertence ao instinto [à

pulsão] de destruição” (FREUD, 1925/1976, p. 300). Trata-se de uma única função do

31

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

juízo que se realiza em dois tempos.

“Atribuição e existência, em sentido estrito, correspondem às duas decisões do mesmo

juízo, cuja topologia seria um oito interior” (VIDAL, 1988, p. 24). Aqui se destaca uma

topologia do sujeito que já rompe com a idéia de dentro e fora, ao mesmo tempo em que

a institui. O equivalente ao sujeito interior, sujeito da psicologia, diferente do mundo

externo, seria a esfera, superfície bilátera que divide o espaço em um interior e um

exterior. Há, entretanto, na apresentação freudiana a referência a uma topologia que

inclui o inconsciente. Negar implica em ‘liberar’ do recalque alguns significantes que

podem retornar à cadeia. Não há ali dentro ou fora. Podemos dizer, com Lacan, que

Freud nos apresenta o inconsciente como estrutura moebiana13. Numa única borda o

significante precipita o laço social, seja como articulação, em cujo intervalo se situa o

sujeito, seja como materialidade significante e como barra, o que instaura uma

disjunção entre significante e significado. “A Verneinung é da ordem do discurso, e

concerne ao que somos capazes de fazer vir à tona por uma via articulada” (LACAN,

1955-56/1992, p. 101).

Na discussão do texto freudiano que empreende em seu seminário, Lacan reafirma a

dimensão fundadora da ordem simbólica na Bejahung. Para que um sujeito não queira

saber de algo no sentido do recalque, é preciso que esse algo tenha vindo à luz pela

simbolização primordial. E no mesmo movimento em que algo é introduzido no sujeito,

algo é expulso e resta fora. É aí que se constitui o real, “na medida em que ele é o

domínio do que subsiste fora da simbolização” (LACAN, 1954/1998, p. 390). A

Behajung, correlacionada a uma inclusão significante, não é outra coisa senão a

condição primordial para que, do real, algo venha a se oferecer à revelação do ser.

Comporta, portanto, uma Ausstosung, uma expulsão do eu, constitutiva do Real. Eis a

função primordial do juízo de atribuição. “A segunda decisão, a da existência real de uma coisa representada, se funda sobre essa partição entre simbólico e real. Como sucessão da Ausstosung primeira, se determina o real como fora da simbolização. A negação – die Verneinung – sucessão da Ausstosung, se estende no domínio do princípio da realidade” (VIDAL, 1988, p. 26).

São operações, ao mesmo tempo que sucessivas, necessárias umas às outras e, portanto,

13 “A fita de Moebius pode ser ilustrada por uma tira que se fechou, depois de ter-lhe sido aplicada uma semitorção. Essa curiosa superfície apresenta a propriedade de ter apenas um único lado e uma única borda. Essa fita, na qual o lado direito se prende ao lado do avesso, representa a relação do inconsciente com o discurso consciente. Isso significa que o inconsciente está do avesso, mas pode surgir no consciente em qualquer ponto do discurso” (CHEMAMA, 1995, p. 212).

32

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

indissociáveis entre si. Podemos aventurar a hipótese de que seja nesse ponto que a

letra, enquanto fronteira entre Real e Simbólico como discutiremos mais à frente, se

escreva com a queda do significante primordial que identifica o ser do sujeito.

Enfim, a negação se estabelece sobre a possibilidade da Behajung, ou seja, sobre uma

frase afirmada que pode ser riscada. A elisão significante está, pois, na matriz da

Verneinung, e determina o lugar do sujeito no corte da cadeia significante, no lugar em

que uma coisa pode deixar de existir.

Qual a importância de toda essa discussão para a questão da suplência nas psicoses?

Ora, sabemos que Lacan articula o mecanismo fundante da psicose a uma operação

significante no primeiro tempo de seu ensino. Para ele, distinguir as relações do sujeito

com a estrutura, enquanto estrutura significante, implicou em ressignificar essa noção

de defesa. Em Freud, essa noção implicava num processo mais amplo que o do

recalque, como vimos, incluindo outras operações psíquicas que determinavam a

posição do sujeito em relação ao Édipo. Para Lacan, o efeito da defesa modifica o

sujeito. “O modo original de elisão significante que aqui tentamos conceber como a

matriz da Verneinung afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em

que ele encontra seu lugar” (LACAN, 1960/1998, p. 672). É exatamente a estrutura

desse lugar que exige que o nada esteja no princípio da criação, impondo ao pensamento

psicanalítico ser criacionista, não se contentando com nenhuma referência

evolucionista.

Mas o que ocorre na psicose já que não estamos a falar de recalque quando nos

referimos a ela? De que forma essa operação constitutiva se escreveria nessa estrutura

clínica? Como Freud e Lacan estabelecem essa discussão e o que dela podemos

depreender para pensar as soluções na psicose?

Freud diferencia a negação do negativismo de alguns psicóticos. “O desejo geral de

negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser

encarado como sinal de uma desfusão de instintos [pulsões]...” (FREUD, 1925/1976, p.

300). A função do julgamento só se torna possível a partir da criação do símbolo da

negativa, que dota o pensar de uma primeira medida de liberdade das conseqüências do

recalque e, com isso, da compulsão do princípio de prazer.

Há, portanto, na psicose, previamente a qualquer simbolização – anterioridade lógica –,

uma etapa em que uma parte da simbolização não se faz. É essa a hipótese de Lacan

33

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

(1955-56/1992, p. 97) no seminário sobre as psicoses. Se na neurose se trata de uma

palavra que se articula, na medida em que o recalcado e o retorno do recalcado são a

mesma coisa, pode acontecer na psicose que alguma coisa de primordial quanto ao ser

do sujeito não entre na simbolização, mas seja rejeitado, foracluído. Na relação do

sujeito com o símbolo há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva. Algo que não

foi simbolizado vai se manifestar no Real.

Para Lacan, no interior da Behajung podem acontecer todas as espécies de acidente. Ele,

então, propõe que na psicose, ao nível da Behajung primitiva, estabelece-se uma

primeira dicotomia: “o que teria sido submetido à Behajung, à simbolização primitiva,

terá diversos destinos, o que cai sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro.

[...] Há portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação do que é, ou Verwerfung”

(LACAN, 1955-56/1992, p. 98). Em outras palavras, a Verwerfung se articula à

inoperância da Behajung, ou juízo de atribuição, precedente necessário a qualquer

aplicação possível da Verneinung, articulada por Freud ao juízo de existência e por

Lacan à confissão do próprio significante que ela anula (LACAN, 1957-58/1998, p.

564).

É também ao significante que se refere a Behajung primordial. Lacan lembra que ele é

expressamente isolado como termo de uma percepção original, sob o nome de signo,

Zeichen, na Carta 5214 que Freud escreve a Fliess. Articulada, pois, ao significante, a

Verwerfung será tida por Lacan, “como foraclusão do significante. No ponto em que,

veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um

puro e simples furo” (LACAN, 1956-57/1998, p. 564). Trata-se de uma inscrição que

não se faz, ao contrário da Behajung, que implicaria exatamente na inscrição desse

significante primordial.

Lacan irá retomar a discussão do termo Verwerfung em seu primeiro seminário público

(LACAN, 1953-54/1986). Ali ele irá definir a Verwerfung como supressão

[retranchement], cujo efeito seria uma abolição simbólica, como Freud relata no caso do

Homem dos Lobos. Dois seminários depois, ao tratar das psicoses, acabamos de ver que

14 Nessa carta (FREUD, 1896b/1976, p. 325), grande figura da metapsicologia psicanalítica, é possível localizar as negações constitutivas do sujeito evidenciadas por Freud, que culminam na passagem da percepção à representação inconsciente e desta à consciência, como atesta o gráfico abaixo: W - Wz - Ub - Vb - BewsWahrnehmungen Wahrnehmungszeichen Unbewusstsein Vorbewusstsein Bewusstsein(percepções) (registro da percepção) (traços do inconsciente) (pré-consciência) (consciência)

primeiro registro segundo registro terceiro registro

34

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Lacan atrela a Verwerfung à não inscrição do significante do Nome-do-Pai, tomando

agora sua tradução francesa pelo termo jurídico foraclusão. No universo jurídico

francês, a foraclusão implica na perda do prazo para interpor uma ação, cujo interesse

existe de fato, porém não mais de direito. No Brasil, o termo mais exato seria preclusão.

Entretanto, o que está em jogo aqui é a versão apresentada, por Lacan, para o termo.

Uma operação não se inscreveu em tempo hábil, tornando caduca sua função. Os efeitos

dessa carência significante retornam como gozo no real.

Lacan (1953-54/1986) também realiza extensa discussão sobre essa operação a partir do

caso do Homem dos Lobos. Nesse caso, Freud (1918[1914]/1976, p. 109) fala em

Verwerfung no tocante à castração, rejeição que instiga a alucinação do dedo ferido.

“Podemos presumir, portanto, que essa alucinação pertence ao período no qual [o

homem dos lobos] foi levado a reconhecer a realidade da castração e deve, talvez, ser

considerada como o acontecimento que marca verdadeiramente esse passo” (FREUD,

1918[1914]/1976, p. 108). Como Lacan (1953-54/1986, p. 55) assinala, o sujeito

recusou, rejeitou – a palavra alemã é verwirft. E continuando nos equívocos da tradução

francesa do texto freudiano, ele se pergunta por que a frase Eine Verdrängung ist etwas

anderes als eine Verwerfung não foi simplesmente traduzida, como em português, por

uma repressão [um recalque] é algo muito diferente de uma rejeição (FREUD,

1918[1914]/1976, p. 102), por exemplo. Mas não, ele se questiona, a frase na versão

francesa surge como um recalque é outra coisa que um julgamento que rejeita e

escolhe. A tradução conduz o pensamento lacaniano à conclusão de que, na origem,

para que o recalque seja possível, é preciso que exista um para-além dele próprio, um

primeiro núcleo do recalcado. E nisso ele é absolutamente freudiano. “A repressão

[recalque] não é um mecanismo defensivo que esteja presente desde o início; que ela só

pode surgir quando tiver ocorrido uma cisão marcante entre a atividade mental

consciente e a inconsciente” (FREUD, 1915c/1976, p. 170). Com Freud, Lacan localiza

esse núcleo como “a experiência original do trauma [...], o núcleo primitivo é de um

nível diferente dos avatares do recalque. É o fundo e o suporte deles” (LACAN, 1953-

54/1986, p. 56). Não estaria ele articulando Behajung aqui?

A partir dela e da leitura da denegação, podemos pensar, com Lacan, que a foraclusão

ou a Verwerfung, ao implicar numa não-representação de uma marca perceptiva

inaugural, a modificaria estruturalmente, tornando-a real. Isso ocorre na medida em que

35

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

esse dentro inaugural é expulso, ou seja, na medida em que, apesar de a percepção

receber uma primeira indicação, um primeiro registro de percepção, ela não pode se

transformar em “lembranças conceituais” (FREUD, 1896b/1976, p. 325) por falta da

inscrição que amarraria a função da exceção do Pai, o traço unário inconsciente. Daí

termos como resultado um estado de percepção que não passa ao estado de

representado. “O próprio significante sofre profundos remanejamentos” (LACAN,

1955-56/1992, p. 104).

A Verwerfung atingiria o próprio ponto em que uma marca deveria apagar-se para

tornar-se significante, constituindo o sujeito psicótico pela exclusão de um dentro

primitivo. Na ausência da passagem do desejo para o significante que uma amarra

tornaria possível, os traços mnêmicos do percebido pré-histórico (visto, ouvido, sentido)

permanecem em estado de percebido real, pura percepção sem nenhum traço que a

represente. No sistema percepção-consciência, podem apenas ser experimentados, mas

não inscritos. Entre a inscrição das percepções e o pronunciamento das palavras

conscientes, habitaria uma vazio criado pela abolição das inscrições mnésicas no

inconsciente (RABINOVITCH, 2001). Ou seja, a operação alteraria a própria maneira

como as marcas se inscrevem, tornando-as reais e fazendo coincidir o real com o

inconsciente. Daí o psicótico recorrer a palavras em vez de coisas15, pois são elas que,

ainda que esvaziadas de sentido, encontram-se a sua disposição, como, por exemplo, na

construção delirante em que se dá a tentativa de lhes conferir uma significação

inventada e originalmente ausente.

Essa significação essencial ausente diz respeito ao sujeito na medida em que é o ponto

no qual o significante Nome-do-Pai, não tendo se inscrito, mas antes estando foracluído

no lugar do Outro, não permite ao sujeito nomear-se (LACAN, 1955-56/1992). O não

ausente do inconsciente é o não outrora significado pelo Pai como interdição. O Nome-

do-Pai seria o nó que enlaçaria as duas pulsões que se encontram desagalmadas na

psicose, como disse Freud.

15 Freud decompõe a representação consciente do objeto em representação da coisa hipercatexizada através da ligação com a representação da palavra que lhe corresponde, articulando que no Inconsciente permanece apenas a representação da coisa do objeto – ponto foracluído na psicose. Daí extrai que a catexia das representações de palavra é retida na psicose já que ela não faz parte da operação de rejeição. Ela representa, na verdade, a primeira das tentativas de restabelecimento, dirigidas à recuperação do objeto perdido. “E, pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz ao objeto através de sua parte verbal, contentando-se com palavras em vez de coisas” (FREUD, 1915a/1976, p. 232).

36

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Nesse ponto faltoso, ponto de apresentação de uma questão impossível de o psicótico

formular sobre seu ser – quem sou eu? –, articula-se uma resposta que provém do real,

“de fora”. É de resposta, portanto, e não de projeção, que se trata na psicose. A irrupção

da psicose, ou o desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente

surge uma questão sobre o seu ser, ou seja, quando o Nome-do-Pai foracluído, isto é,

jamais advindo no lugar do Outro, é ali invocado em oposição simbólica ao sujeito,

numa posição terceira em uma relação que tenha por base a relação imaginária, dual e

especular (a-a’) (LACAN, 1956-57/1998). Para o Lacan da década de 50, o psicótico

estaria desprovido da possibilidade de fazer funcionar uma negação em relação ao

fenômeno que se desencadeia no real, “incapaz de fazer dar certo a Verneinung com

relação ao acontecimento” (LACAN, 1955-56/1992, p. 104). O que se produz, então, é

uma reação em cadeia ao nível do imaginário, uma cascata de remanejamentos

imaginários. Já no final da década de 60, como vimos, Lacan (1966/2003) irá apresentar

o livro de Schreber avaliando que Freud ali se deu a liberdade de introduzir o sujeito,

não avaliando o louco em termos de déficit ou de dissociação de funções.

Além disso, Lacan não reconhece como simples delírio o trabalho de estabilização, mas

antes como um processo que constitui o delírio como uma metáfora que faz às vezes da

metáfora paterna, que adiante discutiremos. Essa subversão freudiana, de localizar no

delírio a tentativa “ruidosa” de cura e não uma manifestação psicopatológica, permitiu a

Lacan formalizar, a partir da discussão sobre a operação simbólica da metáfora paterna,

uma das soluções psicóticas.

Assim, vemos que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da

rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem. Essa modulação

do retorno implica, para cada sujeito, uma maneira particular de lidar com o real,

exigindo do analista ou técnico de Saúde Mental a sustentação de uma posição de

aprendiz diante da psicose (LACAN, 1957-58/1998; QUINET, 1997; RABINOVITCH,

2001; LAURENT, 1995b; ZENONI, 2000) como orientação ao seu tratamento possível.

O que se passa nesse nível determina, portanto, as estratégias que o sujeito irá

desenvolver para lidar com sua psicose.

1.2.3 Psicose e realidade: para além do dentro-fora

Ora, Freud não altera teoricamente essa posição desenvolvida em 1911, apesar de em

37

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“O inconsciente” (1915a/1976) avançar na discussão já esboçada em seus primeiros

escritos pela perspectiva da representação de objeto como sendo resultado da

representação da coisa hipercatexizada pela representação da palavra, como vimos. Já

com “A perda da realidade na neurose e na psicose” (FREUD, 1924/1976) dá-se uma

interessante e original elaboração, complementar ao comentário sobre o

restabelecimento de Schreber. O problema da psicose não seria o da perda da realidade,

mas o expediente daquilo que vem a substituí-la (LACAN, 1957-58/1998, p. 549). Na

psicose, haveria uma particularidade na relação com a realidade, estabelecida a partir da

estrutura da relação com o Outro, na qual o psicótico não encontra um lugar para alojar-

se. Na verdade, para Freud (1924/1976, p. 231), tanto na neurose quanto na psicose, há

perda da realidade, devido a “uma rebelião por parte do id contra o mundo externo, de

sua indisposição – ou, caso preferirem, sua incapacidade – a adaptar-se às exigências

da realidade”. Num primeiro momento, haveria um recalque das exigências pulsionais,

na neurose, enquanto na psicose ocorreria uma rejeição do fato desagradável da

realidade. Em qualquer dos casos, porém, haveria perda na relação com a realidade

externa.

A diferença entre essas estruturas diz respeito à maneira como cada uma delas irá, num

segundo momento, recompor essa relação. Na neurose, um fragmento da realidade é

evitado por uma espécie de fuga, mas o neurótico não repudia a realidade, apenas

ignora-a, recalcando o conteúdo aflitivo. Já na psicose, a realidade é remodelada, o

psicótico a repudia e tenta substituí-la, transformando-a a partir de precipitados

psíquicos de antigas relações com ela. Assim, na psicose o substituto tenta colocar-se no

lugar da realidade, enquanto na neurose liga-se a um fragmento dela, conferindo-lhe

uma importância especial e um significado secreto, simbólico porque substitutivo,

sintomático.

Enquanto Freud situa na psicose um remodelamento da realidade, veremos Lacan

apontar um ‘remodelamento’ de toda sua teoria a partir da psicose na década de 70.

Alguns anos antes de enveredar na discussão dos nós, ele introduz o conceito de objeto

a, que já forja uma topologia singular de vizinhanças, continuidades e fronteiras que

rompem com a idéia de dentro e fora, articulando o eu e o mundo a partir da queda

desse objeto-causa do desejo ou de sua ausência. No comentário ao Esquema I no

segundo capítulo, teremos a oportunidade de vislumbrar a radicalidade da proposição

38

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

freudiana, bem como seus efeitos topológicos.

Podemos, enfim, quanto ao campo das estabilizações psicóticas, concluir que Freud

apresenta a solução psicótica pela via do trabalho delirante. Além disso, mesmo não

tendo desenvolvido um comentário acerca da criação na psicose, despertou um olhar

novo sobre questões relacionadas à arte stricto sensu. Tal é o caso da relação entre o

sentido e a obra, quando, por exemplo, se pergunta em “O Moisés de Michelângelo”

(FREUD, 1914b/1976, p. 254) “por que a intenção do artista não poderia ser

comunicada e compreendida em palavras, como qualquer outro fato da vida mental?”.

Ele já esboça que há um insondável, um impossível de dizer, uma cifra, enfim, na

produção artística que a orienta por outra via que não a estritamente simbólica. Algo

escapa à produção artística que não pode ser toda-dita em palavras. E é desse real que

Lacan irá tratar ao estudar Joyce, como veremos, oferecendo-nos subsídios para pensar

a criação e a estabilização na psicose. Será, portanto, com Lacan que veremos surgir

novas proposições acerca das soluções construídas pelos psicóticos e sua relação com a

criação artística. Vamos a elas.

1.3 A Abordagem Lacaniana das Soluções na Psicose

Partindo inicialmente das proposições freudianas, Lacan passa a articular, contando com

os três registros – real, simbólico e imaginário –, o delírio como uma resposta à invasão

do real que, desarticulado do simbólico, provoca os fenômenos de remanejamento

imaginário na psicose. As tentativas de reconstrução delirante para Lacan ganham,

assim, o estatuto de um trabalho do simbólico. Mas, antes de se deter na análise do

delírio e sua função na psicose, trata, ainda em seu trabalho de doutoramento de 1932,

do ato como possibilidade de cura nos casos de paranóia de autopunição.

Ao definir o trabalho na psicose como o trabalho sobre o retorno no real daquilo que foi

foracluído no simbólico, Soler (1990) propõe, apoiada em Lacan, o ato, a obra e a

metáfora delirante como as diferentes saídas encontradas pelo psicótico. Ela também

inclui nesse rol a identificação imaginária (não como trabalho, mas como fenômeno que

pode favorecer uma forma precária de estabilização) e a sublimação criadora, que se

aproxima da estrutura da metáfora delirante, mas diferentemente dela faz pacto, laço,

sentido para o campo social, como no caso de Rousseau com sua obra filosófica.

Interessante destacar que, ao tratar da obra, Soler aproxima a escrita de Joyce das

39

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

pinturas de Van Gogh, por exemplo, tomadas como trabalho do real sobre o real através

da produção de uma obra inaugural, inédita. Abre, pois, um precedente para se pensar a

criação artística sobre uma superfície material como uma saída na psicose, aproximando

seus efeitos daqueles produzidos pela escrita, como em Joyce. Antes, porém, de

determo-nos na discussão das soluções (ato, metáfora delirante e obra) e da relação

específica entre criação e estabilização, é interessante discutirmos como Lacan

apresenta as noções de desencadeamento e a de enigma em sua obra. Elas nos serão

úteis para articular o campo das estabilizações na psicanálise.

1.3.1 O desencadeamento psicótico e suas conseqüências

A. O desencadeamento

Ainda que Lacan fale de comportamento desencadeado em seu estudo sobre o Homem

dos Lobos, em 1951-52, quando ainda ministrava seus seminários em sua própria casa,

o termo será elevado a conceito somente em meados da década de 50 no estudo que

empreende, então, sobre a psicose, a partir do estudo freudiano do caso Schreber. Ao

discutir a relação entre o moi e o instinto sexual, Lacan relembra, em relação ao Homem

dos Lobos, que ele possui uma vida sexual realizada. E sobre ela diz tratar-se de um

ciclo de comportamento que, uma vez desencadeado, vai até o fim, estando entre

parênteses em relação ao conjunto da personalidade do sujeito. Como se vê, o

desencadeamento aqui ainda não ganha ares de conceitualização, funcionando

simplesmente como adjetivo.

Diferente tratamento é dado ao termo no Seminário 3 (LACAN, 1955-56/1992) e no

texto “De uma questão preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Nesses textos, Lacan

reúne as condições clínicas do desencadeamento, assentado na teoria estruturalista e no

registro da fala e da linguagem. Sobre a primeira condição, a estrutura psicótica em si

mesma, ele considera que “é num acidente desse registro [da linguagem] e do que nele se realiza, a saber, a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (LACAN, 1957-78/1998, p. 582).

A primeira condição para a ocorrência do desencadeamento no final dos anos cinqüenta

é a própria condição estrutural da foraclusão do Nome-do-Pai na psicose. Essa condição

Lacan a explicita ao dizer que é preciso admitir que o Nome-do-Pai reduplica no lugar

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

do Outro, o próprio significante do ternário simbólico, na medida em que ele constitui a

lei do significante.

Além disso, “seja qual for a identificação pela qual o sujeito assumiu o desejo da mãe,

ela desencadeia, por ser abalada, a dissolução do tripé imaginário” (LACAN, 1957-

58/1998, p. 572). Detalhe não menos importante na medida em que o desencadeamento

exigirá uma segunda condição que podemos aqui nomear de quebra da identificação.

Mas não se trata de uma identificação qualquer. É preciso que seja tocada exatamente

aquela através da qual o psicótico assumiu o desejo da mãe. Quando a via que determina

essa identificação na constituição subjetiva do sujeito psicótico é abalada, uma das

condições do desencadeamento se realiza.

A terceira condição implica na convocação do Nome-do-Pai foracluído em oposição

simbólica ao sujeito, como vimos. Mais uma vez é no detalhe que reside a sutileza dessa

terceira condição. A casualidade dos acontecimentos na vida do psicótico só conduz a

um desencadeamento se toca o ponto no qual falta “... nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai. É preciso ainda que esse Um-pai venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes. Basta que esse Um-pai se situe na posição terceira em alguma relação que tenha por base o par imaginário a-a’, isto é, eu-objeto ou ideal-realidade” (LACAN, 1957-58/1998, p. 584).

O encontro contingente dos fatos da vida com a determinação subjetiva da foraclusão,

somado ao conseqüente desarranjo identificatório, caracteriza a “conjuntura dramática”

que Lacan localiza no momento do desencadeamento. Podemos, assim, destacar,

respectivamente, as três condições para o desencadeamento na psicose:

(a) condição estrutural;

(b) quebra da identificação imaginária;

(c) condição específica.

B. O enigma na psicose

Há ao menos duas possibilidades de se pensar o enigma em Lacan16 (LAURENT, 1993;

SOLER, 1993; NAVEAU, 2004a): indo em direção à significação e ao sentido ou

aparecendo como gozo enigmático.

16 Ainda que Laurent (1993) sustente a tese de três possibilidades: o enigma e o sentido, o enigma e a significação e o enigma e o gozo, entendemos que sentido e significação encontram-se imersos no mesmo universo teórico-clínico de supremacia do simbólico que organizava o pensamento de Lacan no início de seu ensino. Em função disso, adotamos o critério de duas possibilidades.

41

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

No primeiro caso, as principais contribuições lacanianas encontram-se desde o texto

“Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (LACAN, 1953/1998) até O

Seminário, livro 3: as psicoses (LACAN, 1955-56/1992). Enquanto significação, o

enigma aparece sobretudo referido aos estudos freudianos do Presidente Schreber.

Como vimos, o desligamento libidinal do mundo é um processo silencioso que, em

Schreber, é lido nos seguintes termos:“O paciente retirou das pessoas de seu ambiente, e do mundo externo em geral, a catexia libidinal que até então havia dirigido para elas. Assim, tudo tornou-se indiferente e irrelevante para ele, e tem de ser explicado através de uma racionalização secundária, como ‘miraculado, apressadamente improvisado’ ” (FREUD, 1912[1911]/1976, p. 93).

Freud acrescenta que será pela via da formação delirante que o paranóico ensaiará uma

tentativa de restabelecimento, um processo de construção. Há, já em Freud, a noção de

uma solução positivada na psicose. Esta experiência de destacamento em silêncio, Freud

coloca na série de fenômenos elementares: confusão, perplexidade, perda do

pensamento, e outros. É lá que se situa, para o paranóico, a experiência de um enigma,

já que, para ele, o mundo inteiro torna-se um mundo de coisas obscuras, agenciadas de

uma forma que se perdeu, que vai precisar reconstruir para que elas designem enfim

alguma coisa (LAURENT, 1993).

Sabemos que, para Freud (1912[1911]/1976 e 1924/1976), a experiência da perda da

realidade e a da reconstrução de um substituto para ela são indissociáveis. Considera

ambas as experiências compreendidas no que ele chama a distribuição da libido, que

descreve inteiramente como sendo um fenômeno de sentido. Para Lacan, o sentido é

efeito da operação da linguagem. A Lei primordial, que ao reger a aliança e o

parentesco pela interdição do incesto superpõe o reino da cultura ao reino da natureza,

“faz-se conhecer suficientemente como idêntica a uma ordem de linguagem” (LACAN,

1953/1998, p. 279). A noção de função simbólica, introduzida no texto “Função e

campo...”, é o suporte da estrutura da linguagem. E, por sua vez, “é no nome do pai que

se deve reconhecer o suporte da função simbólica” (LACAN, 1953/1998, p. 279). Há,

portanto, nesta articulação uma referência central ao nome do pai.

Nesse mesmo texto, Lacan reconhece na loucura, “de um lado, a liberdade negativa de

uma fala que renunciou a se fazer reconhecer [...] e, de outro, a formação singular de

um delírio que [...] objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética” (LACAN,

1953/1998, p. 281). Ele avança sobre o que seria essa linguagem sem dialética ao tratar

42

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

dos fenômenos de código e dos fenômenos de linguagem no texto “De uma questão

preliminar...” (LACAN, 1957-58/1998). Ali Schreber ensina a Lacan de que é composto

o significante novo que vem ao mundo para reconstruí-lo. Ao tratar dos fenômenos de

código, a saber, as vozes que proferem sobre a língua de fundo e que Schreber atribui

aos raios, Lacan faz, então, uma correção. “...estamos na presença desses fenômenos erroneamente chamados de intuitivos, pelo fato de o efeito de significação antecipar-se, neles, ao desenvolvimento desta. Trata-se, na verdade, de um efeito do significante, na medida em que seu grau de certeza (segundo grau: significação da significação) adquire um peso proporcional ao vazio enigmático que se apresenta inicialmente no lugar da própria significação” (LACAN, 1957-58/1998, p. 544-545).

A experiência enigmática encontra-se situada no nível de uma experiência de efeitos de

significação, enquanto converte uma negatividade em positividade. Acompanhemos: na

ausência de uma significação, surge o vazio enigmático, ao qual o psicótico responde

com a certeza delirante, significação da significação. Trata-se de um efeito significante

na medida em que é regido por suas leis, por operar uma substituição à ausência da

significação.

SIGNIFICAÇÃO DA SIGNIFICAÇÃO

. VAZIO ENIGMÁTICO .

SIGNIFICAÇÃO

Primeiro elisão e vazio, depois a certeza que curto-circuita toda avaliação de convicção

do sujeito. “Ela [a certeza] não exclui o sentimento de perplexidade, longe disto, posto que a significação da significação não designa nada mais que uma significação presente mas indeterminada, o que é a definição mesma do enigma que os sujeitos psicóticos encontram e... carregam. [...] o que nós poderíamos traduzir assim: menos isso significa e mais isso significa” (SOLER, 1993, p. 55).

Ao mesmo tempo em que diz respeito a uma certeza de significação (no segundo grau),

revela uma experiência de não sentido (no primeiro grau).

O delírio se apresentará como ensaio de deciframento, como esforço de réplica que o

sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-58/1998), ele não

é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui exatamente a mesma estrutura

dos fenômenos elementares, que, em contrapartida, já revelariam a estrutura do delírio.

No que tange à segunda possibilidade, que articula o enigma ao gozo, localizamos suas

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

considerações sobretudo no Seminário XXIII: Joyce, le sinthome. Ao retomar a noção

de enigma neste seminário, Lacan (1975-76/2005, p. 67) assim o define: “um enigma é

uma enunciação tal que dela não se encontra o enunciado”. Se o enigma tende à

significação num primeiro tempo, nesse ponto ele se articula a um gozo excedente ao

sentido. Lacan o escreve como Ee. É uma arte que ele chama de entre as linhas, fazendo

alusão à corda do nó borromeu. Essa arte, artifício da escrita, incide sobre o impossível,

que Lacan trata como o Outro do Outro real, porquanto ele é um fazer que nos escapa e

que transborda o gozo que nós possamos ter dele. É o “gozo de Deus” enquanto alguma

coisa da qual não podemos gozar.

Já em Freud atestamos a experiência enigmática do gozo do Outro sobre o ser

apassivado de Schreber, pela via do suporte que ele lhe confere. E, dos estudos sobre a

psicose, Lacan decantará as modalidades de incidência desse gozo na esquizofrenia e na

paranóia. Partindo da polaridade sujeito do gozo e sujeito do significante, Lacan

(1966/2003), ao escrever a introdução à versão francesa do livro de Schreber, define a

paranóia identificando nela o gozo no lugar do Outro como tal. Já o gozo na

esquizofrenia, Lacan o abordará somente alguns anos mais tarde, em “O aturdido”

(1972/2003). Dialogando e retificando O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari (1972), trata

do gozo do esquizofrênico com o órgão em contraposição ao corpo sem órgãos com que

esses pensadores acreditaram encontrar mais liberdade em relação ao significante. “O

que para seu corpo cria um órgão [...] é justamente por isso que ele [esquizofrênico]

fica reduzido a descobrir que seu corpo não é sem outros órgãos, e que a função de

cada um deles lhe cria problemas” (LACAN, 1972/2003, p. 475).

Lacan, então, redefine a noção de enigma, referindo-se de outra forma ao sentido. Ele

passa a fazer uma parceria diferente da significante-significado nesse período,

substituindo-a pelo par signo-sentido. Isso aparece em “Introdução à edição alemã dos

Escritos” (LACAN, 1973/2003), quando ele localiza o significante como objeto da

lingüística, e não da psicanálise. Como se, seguindo-a, abstraíssemos o par significante-

significado para pensar os efeitos de significação, perdendo de vista a produção de gozo

na linguagem. É por conta da recuperação dessa dimensão do gozo, para além do

significante que, na década de 70, Lacan opera a substituição desses pares. “Lacan

então restitui como primeiro uso do signo o gozo sexual e, como primeiro uso do

significante, o efeito de significado” (MILLER, 2005, p. 333).

44

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Falar é gozar, o significante está a serviço do que faz signo para o sujeito. Agora é de

não-sentido que se trata, ou melhor, de j’ouis-sens, gozar enquanto escutar sentido. É

mais uma versão do gozo no nó borromeano, além do sexual e do gozo do sentido. Aqui

“encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo corretamente graças

a um artifício” (LACAN, 1975-76/2005, p. 73), na medida em que a clínica passa a se

fazer de cortes e religamentos. Com isso, muda o estatuto do sentido, pois ele porta uma

dimensão de gozo inapreensível. “O sentido do sentido, em minha prática, se capta

(Begriff) por escapar” (LACAN, 1973/2003, p. 550). Por conta desse escape que

funciona como gozo, Lacan pôde dizer, então, que o cúmulo do sentido seria o enigma,

o que escapa à significação.

Naveau (2004a) destaca exatamente esse não-sentido no enigma de Joyce trabalhado

por Lacan no Seminário XXIII. Stephen Dedalus assim o apresenta no texto:

The cock crew

The sky was blue

The bells in heaven

Were striking eleven

T’is time for this poor soul

To go to heaven17

Ainda que seja clara a referência a um enterro, é surpreendente a resposta do enigma:

“The fox burrying/His grandmother/under the bush” ou é a raposa enterrando sua avó

debaixo da moita. A entrada da raposa aponta o non-sense. Não é o sentido que conta

aqui, mas a enunciação. “O que surpreende, é o que é dito, mas em relação a quem diz

[...] O acento colocado, não sobre o enunciado, mas sobre a enunciação” (NAVEAU,

2004a, p. 28-29). A inversão operada por Lacan consiste em colocar o acento não mais

sobre o sentido, mas sobre a causa. Assim, o enigma a ser decifrado decorre da própria

relação de Joyce com a linguagem, estabelecida em termos dessa tensão entre enunciado

e enunciação (MANDIL, 2003, p. 183).

Podemos nos perguntar se, ao reapresentar aqui a noção de enigma, articulado ao gozo,

Lacan não responde a si mesmo no texto “Função e campo...” quando estabelecia

símbolo e linguagem como limites do campo psicanalítico. Quando na Páscoa de 60 o

17 “O galo gritou/O céu estava azul/Os sinos no céu/Badalavam onze/É tempo para essa pobre alma/Ir para o céu”.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

objeto a é apresentado formalmente no texto “Observação sobre o relatório de Daniel

Lagache” (LACAN, 1960/1998), uma reinterpretação da produção lacaniana é então

exigida numa leitura a posteriori. Seus desdobramentos são recolhidos especialmente

nos anos imediatamente posteriores, como nos seminários sobre a angústia e sobre os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise, datando o período de novas e férteis

questões, tais que: qual a relação entre significante e gozo, já que não se trata mais de

uma exclusão; como o gozo condiciona o significante (e aqui uma reversão da

causalidade entre os termos já se encontra esboçada); que tratamento conferir ao que

escapa ao simbólico enquanto estrutura da linguagem; como o sentido produz gozo se a

palavra mata a coisa? São questões que surgem paralelamente ao rompimento de Lacan

com sua escola, fundando também em seu ensino um novo período, como veremos.

A clínica passa a ser orientada pelo tratamento desse “resíduo irredutível” (LACAN,

1966/2003, p. 222) que queda da divisão que estrutura o sujeito. A ele, a noção de letra

enquanto auto-referente, enquanto escritura que funciona como referente fundamental,

idêntica a si mesma, se acrescentará mais tarde. O sintoma pode então ser concebido no

registro da escritura como a forma com a qual cada um goza do inconsciente na medida

em que o inconsciente o determina, seja na neurose, seja na psicose. Nesse contexto, o

enigma e uma possível resposta delirante (significação da significação) a ele ganham

nova consistência.

A introdução da letra, enquanto o que abole a referência ao símbolo, é o que Lacan

destaca de sua releitura ao caso de Schreber em 1966. A experiência enigmática central

de Schreber seria a de constatar que todo não-sentido se anula. É o não-sentido que

pode vir a se abolir na experiência de seu delírio. Construção que deve mais à escritura

e à letra que à fala e à linguagem e que se esforça em ser para si mesma sua própria

referência.“O trabalho delirante se conceberia assim: construir a letra com a ajuda da letra até que ela possa abolir o símbolo, e assim realmente elevá-lo a uma potência segunda. É isso que tornará sua coexistência compatível com a ausência de suporte, não de um discurso estabelecido, mas de nenhum Nome-do-Pai estabelecido” (LAURENT, 1993, p. 50).

1.3.2 As estabilizações psicóticas no ensino de Lacan

A. O ato

Lacan, ao trabalhar o ato como solução psicótica (LACAN, 1932/1987), o associa ao

mecanismo de autopunição, característico da paranóia que estuda. Apesar de ser

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

considerada a última grande obra nosológica da psiquiatria de nossos tempos

(BERCHERIE, 1989), Lacan insiste que o caso estudado, Aimée, é apenas um protótipo

que permite classificar outros quadros análogos em termos de fenômenos elementares,

evolução e prognóstico. A paciente estudada, por motivação delirante, desfecha um

golpe de faca contra uma famosa atriz parisiense que, defendendo-se, tem apenas dois

tendões seccionados. A posição de Aimée em relação à certeza do ato permanece a

mesma por vinte dias depois de presa, quando, então, cessa o delírio. Segundo Lacan

(1932/1987, p. 251), essa reação acontece somente após Aimée ser abandonada e

reprovada pelos seus e confundida com os delinqüentes com os quais esteve confinada,

enfim, quando realiza ela mesma em si seu castigo. Com o ato, atinge a si própria

paradoxalmente, sentindo alívio afetivo (choro) e a queda brusca do delírio. “Pelo mesmo golpe que a torna culpada diante da lei, Aimée atinge a si mesma, e, quando ela o compreende, sente então a satisfação do desejo realizado: o delírio, tornado inútil, se desvanece. A natureza da cura demonstra, quer nos parecer, a natureza da doença” (LACAN, 1932/1987, p. 254).

Nesse período, Lacan não havia estabelecido as diferentes vertentes do ato – passagem

ao ato, acting-out e ato analítico –, e ainda ingressava na psicanálise. Sabemos que, em

Freud, essa distinção sequer é levantada. Para este, que trata apenas do acting-out na

neurose, seu aparecimento é a marca da emergência do recalcado, manifestando-se,

quando em análise, em relação à transferência e, mais especificamente, com a colocação

em ato daquilo que o sujeito não recorda do que recalcou (FREUD, 1914c/1976, p.

196).

Lacan, independentemente de considerações diagnósticas, vai estruturando ao longo de

seu ensino coordenadas lógicas que permitem diferenciar o acting-out da passagem ao

ato. É possível escandir em três tempos o desenvolvimento ulterior proposto por Lacan

para o tema: 1. no texto “A direção da cura e os princípios de seu poder” (1958/1998),

cujo traço central é a análise do acting-out como relativo à intervenção do analista, a

partir do caso paradigmático de Kris; 2. no seminário A angústia (1962-63/2004) em

que, apoiado no caso freudiano da jovem homossexual, estabelece uma clínica

diferencial entre acting-out e passagem ao ato, articulando-os com a angústia e o objeto;

3. e, quando, relacionado ao ato analítico, a distinção entre os dois é definitivamente

estabelecida.

No seminário sobre a angústia, Lacan concebe a dimensão do agir, independentemente

47

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

da estrutura clínica, em duas grandes vias, a do significante (ou do Outro), concernente

ao acting-out, e a do objeto, referida à passagem ao ato. Esta última, a que interessa à

nossa investigação diretamente, consistiria em separar a vida de sua tradução, de sua

transposição no Outro, momento em que não se faz possível nenhuma mediação, mas

que traz um caráter resolutivo. Apesar de haver uma causa posta em jogo, ela não pode

ser interpretada pois não se inscreve no campo do Outro. Sua causa conjuga-se com o

objeto, inassimilável pelo significante, concernente ao gozo e localizado no Outro em

exterioridade. Diz respeito ao objeto a. O sujeito sai de cena no momento do ato.

Na psicose, não se dá a extração do objeto a e, por conseguinte, a castração não opera

seus efeitos de organização simbólica a partir do significante primordial – o significante

do Nome-do-Pai –, nem traz a significação do falo – significante da ausência – como

testemunha da inscrição da castração, a partir da qual se constituiria a tela da fantasia.

A cena montada na fantasia não pode ser referida ao psicótico, posto que esta diz

respeito, na neurose, justamente à tela que o sujeito constrói diante do horror do objeto

que cai como o impossível de significar no complexo de castração. Tela que enquadra a

realidade, desdobrando-se na relação simbólica com o significante; véu sobre o qual

pinta-se a ausência. “A cortina assume seu valor, seu ser e sua consistência justamente

por ser aquilo sobre o que se projeta e se imagina a ausência” (LACAN, 1956-

57/1995, p. 157).

É o Nome do Pai que limita e esvazia o gozo do Outro, separando o gozo do corpo e

fundando o sujeito capaz de desejar. O psicótico, que foraclui o Nome do Pai, terá

sempre o Outro presentificado, invadindo suas relações. “Na psicose, como efeito da

não inclusão da castração no Outro, tem-se o fato de ele falar, de estar aí do lado de

fora, presentificando-se nas alucinações” (QUINET, 1997, p. 108).

Sabemos que a castração implica no recorte de gozo que, localizado, separa o sujeito do

campo do Outro. Por conta da não extração do objeto a na psicose, o gozo, não

significantizado e contido, retorna como real em excesso. Assim, o psicótico permanece

identificado à posição de gozo do Outro, oferecendo-se ele próprio como objeto no

lugar da falta que não se inscreveu pela castração.

Podemos supor que é desse objeto que – duplicado na relação imaginária com o outro e

estando como que em excesso – o sujeito tenta se desvencilhar na passagem ao ato na

psicose. “Realizam em ato, a título quase de suplência, o efeito capital do simbólico,

48

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

isto é, seu efeito de negativização do ser vivente [...] A mutilação real emerge em

proporção à falta de eficácia da castração” (SOLER, 1990, p. 19). Quando o objeto

não é chamado a complementar a falta fálica, corolário imaginário da inscrição

simbólica do Nome-do-Pai, quando é unicamente o duplo especular do sujeito, torna-se

sinônimo de morte. Segundo Bechelany, como hipótese demonstrada em sua dissertação

de mestrado,“A passagem ao ato na psicose pode ser vista como essa tentativa de realizar a castração simbólica, à qual ele [psicótico] não teve acesso, pela via do real. Trata-se de obter a extração desse objeto, desse ponto de gozo que invade e submete e, ao mesmo tempo, a separação radical do Outro. Extrair esse objeto, que é ele mesmo, do campo do Outro, representa para o psicótico a possibilidade de libertação do Outro, conjugado com uma certeza que só poderia ser arrancada do próprio ato em si” (BECHELANY, 1999, p. 17).

Solução que longe de favorecer o laço social desfaz suas possibilidades, posto que auto

ou heteromutilador, o ato redunda em agressividade, violência e, algumas vezes, em

crime. Estratégia de estabilização, portanto, que não se deve encorajar na clínica com a

psicose. Podemos, no máximo, aprender com o ato na psicose o que, de sua essência,

pode nos auxiliar a pensar o campo das estabilizações. Há um excesso a ser subtraído na

economia psíquica do psicótico. Esse excesso que não caiu sob a forma de objeto a,

invade e exige a construção de uma barreira, sua extração real ou simbólica, ou ao

menos sua localização. Fiquemos por enquanto com essas indicações.

B. A metáfora delirante

Antes de terminar a formulação da noção de objeto a, Lacan trabalha o delírio como

solução psicótica enquanto metáfora delirante que funciona como suplência ao Nome-

do-Pai foracluído. A idéia da metáfora delirante é correlativa à operação da metáfora

paterna. A década de 50, período da formulação da metáfora paterna e da metáfora

delirante, é caracterizada no ensino de Lacan pela primazia do simbólico, do poder do

significante, sendo a estrutura da linguagem a base para sua formulação, ainda que já se

evidencie o impossível de escrever como real em jogo em qualquer estrutura clínica.

Para Lacan, quando de seu nascimento, a criança é confrontada com o desejo do Outro

(materno) que significa suas experiências primárias. Ao grito da necessidade responde o

desejo desse Outro nomeando, para o infans, sua demanda (LACAN, 1956-57/1995).

Esse trabalho de simbolização primordial, que Freud (1920/1976) estabelece a partir do

automatismo da repetição da brincadeira do fort-da, implica na presença-ausência

49

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

materna que, aparecendo como Dom, permite à criança simbolizar, a partir de seu

desejo, a falta. Esta aparece na significação fálica, representação da ausência,

introduzida pela operação da metáfora paterna. Essa operação diz respeito à introdução

de uma Lei interditora fundamental que impede ao filho ser reintegrado à completude

com a mãe e à mãe fazer do filho seu falo. Sendo ser de linguagem, dividido, também a

mãe é submetida a essa lei, que transmite inconscientemente para o filho sob a forma da

interdição paterna. Assim o Nome-do-Pai elide o desejo da mãe, permitindo à criança

nomear-se a partir do enigma que funda sobre seu ser. Trata-se, como se vê, de uma

operação metafórica ao nível significante, “que coloca esse Nome em substituição ao

lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe” (LACAN, 1957-

58/1998, p. 563). O Nome-do-Pai reduplica-se no lugar do Outro na medida em que ele

constitui também a lei do significante.

Nome-do-Pai __ . _____Desejo da Mãe __ -> Nome-do-Pai A

Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo

Vimos que, quando ao apelo do Nome-do-Pai corresponde a carência do próprio

significante recalcado no campo do Outro, ocorre a foraclusão. O significante do Nome-

do-Pai é rejeitado simbolicamente e em seu lugar responde no Outro um simples furo

que, pela carência do efeito metafórico de recobrimento da falta instalada pelo desejo

materno, provoca um furo absoluto correspondente no lugar da significação fálica.

Ora, é justamente aí que o objeto aparece de maneira diferenciada na psicose, exigindo

trabalho pulsional. O sujeito advém, na psicose, no lugar do objeto para fazer sutura ao

real, ele próprio, como forma de se sustentar na vida, de estruturar sua realidade. Na

psicose, portanto, é o psicótico, com seu próprio corpo como aparato, que se localiza no

lugar da abertura que seria obtida pela extração do objeto a. Nesse sentido, torna-se

possível afirmar que “não existe uma possibilidade de estar fora da estrutura discursiva

a não ser pela psicose” (PINTO, 1992, p. 314), ponto precípuo de sua segregação no

laço social. O que não equivale a dizer que o psicótico está fora da linguagem, mas que

se relaciona com ela de maneira particular pois ela lhe é exterior (GUERRA, 2000, p.

239). A saída, nessa elaboração lacaniana de 1957-58, constituída a partir do caso

paradigmático de Schreber, é a metáfora delirante, que se constrói numa tentativa de

suplenciar a metáfora inoperante do Nome-do-Pai. Trabalho que, segundo MALEVAL

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

(1996), baseando-se no ensino de Lacan desse período, pode ser pensado em quatro

tempos.

Lacan fala de um horror inicial de Schreber à idéia de ser mulher, o qual acaba

aceitando quando esta se torna um compromisso razoável (LACAN, 1957-58/1998, p.

570). Ao final assume o estatuto de uma decisão irreversível de uma assintótica –

porque sempre apontada para o futuro – cópula com Deus para que uma nova

humanidade fosse criada. As quatro lógicas que permitem essa elaboração seriam:

1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante quando se dá o

desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma

autonomia do significante (automatismo mental, segundo Clérambault). A

perplexidade advém justamente do fato de o sujeito não se sentir autor de seus

próprios enunciados. A conseqüência dessa experiência de autonomia do

significante no real é a deslocalização do gozo, provocando fenômenos diversos

sobre o corpo do psicótico, sejam agradáveis ou penosos, voluptuosos ou

agonizantes, ou mesmo hipocondríacos. No caso Schreber, vemos sua manifestação

em sua primeira crise em 1893 ao apresentar um esgotamento nervoso, no qual

surgem queixas hipocondríacas. Somente em 1894 surgirá uma significação

enigmática em torno da idéia, aparecida em 1893, de que seria belo ser uma mulher

no momento da cópula.

2. A significação do gozo deslocalizado implica num trabalho de mobilização do

significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os fenômenos que o

invadem. Em Schreber, essa primeira explicação aparece na acusação que formula

de um complô que estaria sendo tramado por seu médico, Dr. Flechsig. Essa

explicação não apazigua Schreber, ao contrário, deixa-o à mercê de um Outro todo-

poderoso. Daí a busca de uma nova explicação, encontrada no fato de que fora o

próprio Deus que assumira o papel de cúmplice, e mesmo de instigador, na

conspiração em que sua alma deveria ser assassinada e seu corpo usado como o de

uma rameira. Aí surge um compromisso razoável, característica marcante dessa

segunda fase. É o sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998)

como renúncia fálica, marcando a reversão da posição de indignação de Schreber,

que passa a aceitar a eviração porque servidora dos desígnios de Deus. E não, como

articula Freud (1912[1911]/1976), tratar-se-ia do complexo paterno que transfere de

51

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Flechsig para Deus a figura do pai de Schreber, com a qual ele se apaziguaria.

3. Identificação do gozo do Outro assentado num significante, “mulher de Deus”, o

gozo do Outro, a partir de então, se encontra identificado. Porém, a aceitação da

feminilização progressiva de Schreber não implicou no desaparecimento do

sentimento de que uma violência estava sendo-lhe infligida. A diferença é que

agora, no delírio, os perseguidores se encontrariam identificados.

4. Consentimento ao gozo do Outro, que implica no consentimento com a nova

realidade construída a partir da certeza de que um saber fundamental foi adquirido.

Em Schreber, esse saber aparece como advindo do Todo-Poderoso e é acompanhado

de construções fantásticas e temas megalomaníacos. Maleval (1996) localiza essa

última fase do delírio de Schreber em 1897 quando o drama do sujeito se torna o

motivo futuro de uma redenção interessante do universo e sua feminilização culmina

na eviração, seguida pela fecundação por meios divinos, com o objetivo de gerar

novos homens, de uma raça superior, feitos do espírito de Schreber. A convicção

desse tema fantástico aumenta na medida em que diminui o sentimento persecutório.

Assim, podemos dizer que são condições de possibilidade da metáfora delirante:

(a) a presença da atividade delirante;

(b) o trabalho de localização delirante do gozo do Outro, através de uma operação

de redução significante;

(c) o consentimento com a experiência de gozo aí nomeada.

Maleval (1996) também destaca que muito raramente se atinge esse nível de elaboração

delirante em termos de metáfora, acontecendo, no mais das vezes, uma tentativa

desordenada de construção delirante ou mesmo apenas uma defesa paranóide. Além

disso, como nos lembra Zenoni (2000), a conclusão de uma metáfora delirante, como

qualquer trabalho de elaboração simbólica, deixa um resto inassimilável que pode

aparecer sob a forma de um gozo suplementar. Com isso, instala-se o risco de uma

passagem ao ato ou de uma nova desestabilização. Dessa maneira, o cálculo clínico

quanto ao delírio na direção de um tratamento deve considerar esse risco. Muitas vezes,

também o delírio dificulta e faz obstáculo à construção de enlaçamentos sociais na

psicose.

Com tudo isso, podemos dizer, no tocante às estabilizações psicóticas, que a metáfora

delirante nos evidencia a possibilidade de um trabalho de simbolização, de trabalho

52

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

sobre o significante que, adquirindo valor de inscrição primária, funda uma referência

em torno da qual o sujeito se localiza no discurso do Outro. Com a metáfora falamos de

uma operação de linguagem, e não de uma extração real como no ato. O aspecto

criacionista aqui aparece na invenção de uma nova significação onde um uso comum

instalava antes o significante eleito para operar a metáfora sobre o ser do sujeito. Ainda

assim, fica para este período do ensino lacaniano a interrogação acerca do estatuto que

esse significante adquiriria de forma a poder operar como um referente. Avancemos

com essa questão.

C. A escrita enquanto obra

É somente quando se dedica a estudar a função da escrita para Joyce que Lacan trará a

perspectiva a partir da qual pode-se formular uma hipótese que traga novidade para

nossa investigação sobre a estabilização psicótica e a criação. Assim, antes de

discutirmos especialmente essa estudo lacaniano, partiremos da discussão, central em

nossa pesquisa, acerca do que seria essa materialidade sobre a qual repousa a

possibilidade de solução que aqui discutimos. Em seguida, destacaremos a posição de

autores contemporâneos acerca da mesma para, no capítulo seguinte, determo-nos na

elaboração conceitual com a qual Lacan avança teoricamente sobre os aportes clínicos

aqui abordados, alcançando a mostração que a topologia borromeana nos permite

realizar sobre o ponto da discussão das estabilizações que nos interessa.

Quando os oficineiros que trabalham diretamente com os psicóticos se referem a uma

“substância” de trabalho, a uma “materialidade” ou a uma “densidade simbólica

diferenciada”, identificam, sem justificar teoricamente, que há um elemento importante,

ainda que não identificado por eles, no ensaio de estabilização que suas oficinas

oferecem aos seus participantes. Que elemento, porém, é este? De qual densidade se

trata no trabalho do psicótico quando ele faz sua criação sobre um material concreto? O

que, dessa criação, se extrai como essencial a uma possível estabilização?

Em Freud, a partir do texto do “Inconsciente” (1915a/1976), podemos afirmar que o

objeto se esboça enquanto materialidade simbólica, representação densa, porque

investida catexicamente, quantitativamente de libido, a partir da representação da coisa

hipercatexizada pela representação da palavra. Assim, o objeto, ao mesmo tempo

interior ao aparelho psíquico, lhe é exterior, como evidencia a estrutura topológica da

53

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Banda de Moebius, causando o estabelecimento do laço do sujeito com o mundo ao

provocar sua inscrição na linguagem através dos deslizamentos na cadeia significante.

Assim, ele se inscreve como desejante pela via da palavra.

Ora, essa operação não se faz na psicose. Daí Freud falar que os psicóticos se contentam

com palavras em vez de coisas, como vimos. É pela representação da palavra que ele

tenta aceder a uma representação do objeto já que a representação da coisa não está

inscrita no inconsciente. Essa inscrição inconsciente ausente nos remete à idéia

lacaniana de um objeto-resto que não queda da linguagem. Com a ressalva de que esse

objeto não equivale à representação do objeto freudiano acima descrita, mas antes ao

objeto desde sempre perdido dessa teoria. Se não queda o objeto, se falta a falta, o gozo

se impõe como experiência incontornável e invasiva para o psicótico. Não é dessa

materialidade que nos parece tratar os oficineiros.

Como vimos na introdução desta tese, Lacan irá inicialmente atribuir a idéia de matéria

ao significante e a de substância ao gozo, a partir de uma referência cartesiana. Ora,

vimos na fala dos entrevistados que eles usam indistintamente as duas expressões, sem

levantar sequer uma distinção entre elas. E também sem associar os efeitos que

recolhem a uma ou outra via ou às duas. Por vezes, fica mesmo difícil localizar se eles

falam em materialidade referente à matéria bruta de suas oficinas ou referente a algo

além que faria operar ou favorecer a estabilização no processo criativo que os usuários

realizam ou no produto decorrente dessa criação.

Tornou-se consenso entre os psicanalistas que atuam na interface com a Saúde Mental

ler a criação artesanal como possibilidade de extração real do objeto do campo do Outro

– não realizada pela castração –, com a conseqüente localização do gozo no produto ali

extraído. Assim, o psicótico localizaria o gozo fora do corpo, no caso da esquizofrenia,

ou fora do campo do Outro, no caso da paranóia. Nos dois casos, teríamos uma extração

e um produto que se endereçariam ao outro, favorecendo, pois, o laço social.

Pensando a questão a partir da proposta de Lacan na década de 70, podemos dizer, de

outra maneira, que a noção de densidade para a psicanálise ganha sentido entre o real e

o simbólico, ou melhor dizendo, naquilo que o simbólico tem de real, ponto limite de

inscrição da pulsão. Se a década de 50 trouxe a primazia do simbólico a partir da

articulação significante da metáfora delirante enquanto solução na psicose, já deixa

entrever um excesso incontido como real, que Lacan desenvolverá na década de 60

54

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

enquanto objeto a. Esse desenvolvimento será essencial para o estabelecimento da idéia

de um gozo suplementar e da noção de letra.

Comecemos pelo objeto a. Vemos que o fato de a cadeia significante ser o que dá

consistência à existência do sujeito, não implica em que essa consistência seja concreta.

Ao contrário, ela é lógica e sustentada no campo do Outro pelo objeto a. “Situar a

consistência lógica no campo do Outro é o fundamento de todo discurso, o princípio

mesmo do laço social” (MILLER, 1996d, p. 197). Sendo lógica, essa consistência se

extrai do objeto a, que toma consistência quando se fala à medida que se o aniquila.

Portanto, é também um resto, no sentido de resto por dizer. É por isso que“o objeto a como semblante tem seu lugar entre o simbólico e o real. É uma consistência lógica que faz semblante de ser, e é o que só é encontrado quando do simbólico se vai em direção ao real. O objeto a é uma elaboração simbólica do real que, na fantasia, toma o lugar do real, mas ela é apenas um véu. Sua função específica é complementar a referência negativa do sujeito. O objeto a, como consistência lógica, está apto a encarnar o que falta ao sujeito. É o semblante de ser que a falta-a-ser subjetiva convoca. É por isso que o objeto a como consistência lógica é próprio para dar seu lugar ao gozo interdito, ao objeto perdido” (MILLER, 1996d, p. 196).

Assim, a extração do objeto a é apenas um outro nome para a castração. Na psicose, a

não incidência da castração seria a responsável pela consistência do objeto que se

manifestaria, por exemplo, nos olhares que se alucinam ou na multiplicação de vozes

que se escutam. O Outro na psicose sabe, tem existência real, e, por isso, persegue, ama,

modifica o corpo do psicótico, altera sua vontade, impõe-lhe pensamentos (GUERRA,

2000, p. 241).

Se o neurótico trabalha a partir das palavras, extraindo um gozo a mais na produção

analítica sob a consistente forma lógica do objeto a, que queda excedente ao final de

uma análise, poderíamos supor, com o aporte teórico da década de 60, que na psicose

seria preciso extrair do campo do Outro esse gozo excessivo que invade o psicótico.

Nesse sentido, a solução, enquanto trabalho de estabilização na psicose, poderia se valer

de diferentes expedientes, isolados ou conjugados, tais que ato, obra, metáfora delirante,

identificação, transferência.

No que toca a essa dimensão teórica, inúmeras questões surgiram daí a partir do final do

ensino lacaniano, problematizando para nossa pesquisa pontos fundamentais. Lacan não

está mais a falar em representação de um significante para outro significante, tendo o

sujeito como resultado, como na metáfora paterna neurótica da década de 50, na qual

vemos a primazia do simbólico. Ao mesmo tempo, a disjunção entre significante e

55

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

gozo, sujeito e objeto, começa a ganhar nova configuração. E, além disso, elementos

novos, como lalíngua, falasser e letra, surgem no contexto da “lingüística lacaniana”

revirando-a do avesso.

A maioria dos autores contemporâneos (LAURENT (1995b), MICHAUD (1999),

QUINET (1997), RABINOVITCH (2001), SOUZA (1999)), seguindo a trilha aberta

por Freud, localiza no trabalho sobre o delírio uma das soluções encontrada pelos

psicóticos para trabalhar essa delimitação do gozo do Outro. Todos destacam a

diferença, já explicitada, entre delírio e metáfora delirante e, em sua totalidade,

perguntam pelo lugar do analista na condução de um tratamento com psicóticos, sendo

ora mais otimistas ora menos, quanto ao alcance dos resultados que se pode obter nessa

clínica possível. Localizam no ensino de Lacan da década de 50 – referido ao Nome-do-

Pai e à norma fálica – os indicadores estruturais cujas ausências denunciariam a

estrutura clínica da psicose.

Em nossa investigação, entretanto, interessou-nos especialmente investigar a dimensão

teórico-clínica responsável pela análise dos efeitos que a criação artística ou artesanal

pode produzir em casos de psicose, para além somente da discussão em torno da

metáfora delirante e do lugar do analista no tratamento possível da psicose. Nesses

termos, alguns autores têm se detido nessa via de elaboração inaugurada por Lacan,

apontando precedentes para nossa investigação.

Soler (1990) situa em dois registros diferentes as “sublimações criadoras” na psicose.

Num primeiro grupo, tomando como paradigma Rousseau (SOLER, 1998), ela situa o

trabalho de psicóticos de construírem um novo simbólico, o que cumpriria uma função

semelhante àquela do delírio para Schreber. E, num segundo grupo, ela apresenta uma

posição mais radical de soluções que não recorrem ao simbólico, destacando que elas

dizem respeito a uma operação real sobre o real do gozo não articulado pelas redes da

linguagem, aproximando-as do ato como solução ou trabalho na psicose. “Assim sucede com a obra – pictórica, por exemplo – que não se serve do verbo, senão que dá a luz, ex nihilo, a um objeto novo, sem precedentes – por isso a obra está sempre fechada – na qual se deposita um gozo que deste modo se transforma até tornar-se “estético”, como se diz, enquanto o objeto produzido se impõe como real” (SOLER, 1990, p. 18).

Sobre esse segundo grupo, o paradigma para ela também é a escrita joyceana. A seu ver,

Joyce não retifica o Outro do sentido como Rousseau, mas antes o assassina. A

foraclusão do sentido é correlativa à passagem do texto, que deveria produzir sentido,

56

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

mas que aqui aparece como real. Assim, a foraclusão pode ser pensada como uma

letrificação do significante mediante a qual este se transforma em átomos de gozo real.

Aqui fica clara a não equivalência entre metáfora delirante e criação artística. Diferença

sutil que demarca um referencial de leitura sustentado pelas proposições de Lacan na

década de 70. Antonin Artaud, Van Gogh, Bispo ou mesmo Camille Claudel realizaram

de diferentes formas a tentativa de se escrever através de sua obra. Mas vemos, nesses

casos, outras conseqüências, que não o sinthoma18, se apresentarem.

Zenoni (2000), apoiado na segunda clínica de Lacan, entende que, para todo ser falante,

a linguagem introduz uma outra satisfação, um gozo para além do princípio do prazer e

que é da ordem da pulsão. Assim, introduz uma nova clínica no sentido de que são os

fenômenos da pulsão, e menos os da linguagem, ou seja, as modalidades de gozo e os

diferentes estatutos da pulsão, que determinam as saídas de cada sujeito. Estaríamos

diante de modalidades de retorno do gozo também no real do corpo e não somente, ou

principalmente, na linguagem. Quanto às soluções encontradas pelo psicótico, elas não

se resumiriam tão-somente a conseqüências negativas da falta do Nome-do-Pai, mas

seriam soluções positivas, invenções por parte do sujeito para lidar com esses retornos.

Nessa vertente, o significante tornado real encontra-se isolado, não reenvia a outro

significante, implicando um trabalho em outro plano da linguagem, qual seja, lalíngua.

Acompanhar o “autotratamento” do psicótico, seja para prolongá-lo, seja para desviá-lo,

convocaria o saber psicanalítico e o reformularia. Ele recorre à leitura lacaniana de

Joyce para justificar sua hipótese. “A idéia de Lacan é a de que a escrita de Joyce pode

dar-nos a idéia de um tratamento possível da linguagem [...] a escrita de Joyce pode

fornecer um modelo para práticas menos elaboradas que podem ser encorajadas com o

sujeito psicótico” (ZENONI, 2000, p. 54).

E ilustra essas possibilidades com casos atendidos em serviços de Saúde Mental. Tal é o

exemplo de uma jovem melancólica que se mutilava em tentativas de suicídio com

pedaços de vidro encontrados no lixo. A partir da idéia de colar esses pedaços de vidro

do lixo numa superfície e fazer disso uma espécie de espelho, criação que tomava uma

dimensão estética estabelecendo entre ela e o lixo uma certa distância, as passagens ao

ato cessaram. São essas intervenções, chamadas por Zenoni de construções – em lugar

de interpretações –, que conectam, a seu ver, o real e o simbólico.

18 Cf. a discussão sobre estabilização, suplência e sinthoma na seção 3.2.3 desta tese.

57

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Essa lógica reaparece em Alvarenga (1999), que também recorre a Joyce. Segundo ela,

trata-se de caso paradigmático de psicose não desencadeada graças ao trabalho criativo

que, nele, toma a forma de sintoma, daquilo que amarra os três registros, vindo no lugar

do objeto fixador de gozo. Mas um sintoma que prima pela falta de sentido. Ela destaca

o endereçamento do material produzido como crucial à estabilização, seja para onde for

que ele se dirija. Para ela, é somente sobre um fundo de linguagem, onde a fala está

potencialmente presente, que “mesmo que o sujeito nada tenha a dizer sobre o objeto

produzido, o fato de que ele é endereçado a alguém coloca-o em pauta numa relação

onde o que é criado pode ser lido” (ALVARENGA, 1999, p. 120). Interessante

destacar, na posição de Alvarenga, a função do endereçamento na solução pela via da

criação artística que não prescindiria da linguagem.

Birman (1989), por seu turno, concebendo os objetos como objetos da pulsão, e não

objetos aprisionados pelo discurso racional sugere que, por isso mesmo, ao entrarem no

circuito pulsional, eles possibilitariam, através da metáfora delirante ou da arte,

estabilização. Na medida em que é reconhecido pelo Outro, ele entra no circuito

pulsional com os outros objetos, permitindo a estabilização na psicose.

Finalmente, Quinet (1997), ao discutir o caso de Arthur Bispo do Rosário, propõe a arte

como saída pela via do sintoma, implicando numa tentativa de barrar a Coisa. “O

sintoma é uma modalidade criacionista de o sujeito lidar com a Coisa...” (QUINET,

1997, p. 222). Para ele, tanto Bispo quanto Schreber são levados a realizar o impossível

do imperativo de gozo que é, ao mesmo tempo, um imperativo de significantizar o real,

coisificando a linguagem e literalizando as coisas. Em Bispo, haveria um trabalho entre

real e simbólico ao modo hegeliano: ao nomear o objeto, ele aprisiona a Coisa,

significantiza o real alinhavando-o ao simbólico. Esse sintoma, entretanto, não é

suficiente para provocar o laço social já que é para Deus, e não para a civilização, que

Bispo endereça seu trabalho.

Especialmente nessa discussão, Quinet (1997, p. 220-238) pensa a arte na psicose no

sentido da criação, operando pelos registros real e simbólico. Afirma haver dois tempos

na constituição do delírio e da arte em Bispo. Um primeiro momento, no qual o delírio é

desencadeado a partir de uma alucinação; e um segundo em que ele emerge como o

criador do mundo com sua obra. Localiza também a obra de arte na psicose como

estando fora do âmbito do Nome-do-Pai, servindo de sintoma na tentativa de barrar o

58

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

gozo do Outro. Diz a respeito de Bispo que, apoiado em seu delírio, com sua obra ele

“utiliza o simbólico a partir de seu sintoma para domesticar o gozo da Coisa e tentar

cavar aí um furo onde possa vir alojar seu ser” (QUINET, 1997, p. 229), já que sua

obra implicaria no tratamento da Coisa não esvaziada de gozo pela castração. Não seria,

então, um trabalho muito diferente do de Joyce, já que Bispo buscava o sentido

enquanto Joyce operava pelo real, alinhavando a letra sem sentido na costura de um

nome próprio pela obra em si mesma? Pois se Joyce se nomeava, se dizia pela obra, ao

contrário Bispo queria que sua obra pudesse dizer algo ao Outro. E se o trabalho

artístico segue em par com o delírio, não seria a posição do sujeito como objeto de gozo

do Outro que se afirmaria, opondo-se e não facilitando o trabalho de estabilização? Se é

possível com a criação artística realizar uma escritura do gozo, fazer obra a partir de

outros suportes traria quais efeitos subjetivos? Prescindiriam eles do suporte conferido

pela escrita, via letra? Lacan nos fala, quanto à letra, em escrita e em suporte para o

pensamento, para o significante; ponto que tocado, desloca, e cria uma nova relação.

Não seria aí que se revelaria o ineditismo de algumas criações psicóticas

estabilizadoras?

Como se vê, parece-nos haver uma posição comum entre os autores mais

contemporâneos em situar os efeitos da criação artística na dobradiça real-simbólico, na

perspectiva pulsional de construção, de escrita de uma nova solução, gerando efeitos

sobre a posição de gozo do psicótico. E podemos detectar também a presença do

endereçamento do trabalho, seja à comunidade literária, seja a Deus, seja à sociedade,

trazendo conseqüências concretas diferentes conforme o campo para onde se dirija a

criação.

Qual a articulação no texto lacaniano que permitiu esses desdobramentos? Ao final de

sua obra, Lacan toma o caso de Joyce em estudo, afirmando que seu trabalho sobre o

real do gozo não implica numa “apropriação simbólica” ou numa “construção

significante” que faz borda ao impossível de dizer, como sugere a metáfora delirante.

Sua escrita estaria mais próxima do ponto limite entre real e simbólico, mais próxima da

noção de letra que da de significante. Na falta da queda do impossível de apreender na

forma de objeto a, Joyce cria, ele próprio, um campo de ausência – como na neurose o

real instalaria. “É porquanto o sinthoma faz um falso-furo com o simbólico que há uma

práxis qualquer” (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). E essa práxis implica num trabalho

59

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

de transformação subjetiva pela via da escrita.

Esta é a novidade. Lacan não fala de complemento ao que não operou, mas de

suplemento ao que, para todos, falha. Esse suplemento pode fazer suplência pelo falso

furo que, enlaçando esses dois círculos (simbólico e sinthoma, aqui entendido como

real), não é furo nem de um, nem de outro. Somente se atravessado por uma reta infinita

ou terceiro círculo – campo do Imaginário, do qual o Falo é o organizador –, ele está

verificado, ele é real. Entendendo-se que o real não é exatamente um terceiro círculo,

mas o resultado de uma maneira específica de enlaçá-los, de tal forma que partindo um,

todos se desentrelaçam.

O real é sempre um pedaço, um caroço em torno do qual o pensamento borda, mas ele,

como tal, não se liga a nada, é incorpóreo. A consistência, Lacan a localiza no corpo, a

partir da incidência do objeto a e do traçado que, sobre o gozo, ele realiza. E o que faz

laço com a consistência do corpo é o inconsciente. Nós não podemos atingir senão

pedaços do real. Se ele, porém, é atingido, um novo simbólico se forma, uma nova e

inédita forma de relacionar-se com o real se realiza, como através do sinthoma da

escrita em Joyce.

Ora, é justamente daí que se extrai a riqueza dessa transmissão lacaniana: quanto ao

sinthoma não há nada a fazer para analisá-lo, decodificá-lo. Ele cifra o gozo, e não, ao

contrário, o nomeia e desvenda. Ele condensa pelo des-sentido. Faz ponto de amarração

onde um erro do nó não sustenta a articulação borromeana dos três registros – como faz

o Nome-do-Pai enquanto o sinthoma neurótico por excelência. Lacan chega mesmo a

falar na função da arte ou do artesanato, como vimos, abrindo o precedente que nos

instigou a esta pesquisa:“Todo o problema está aqui - como uma arte pode visar de maneira divinatória a substancializar o sinthoma na sua consistência, mas também na sua ex-sistência e em seu furo? Esse quarto termo [...] essencial ao nó borromeano, como alguém pôde visar com sua arte produzi-lo como tal, a ponto de aproximá-lo de tão perto quanto possível?” (LACAN, 1975-76/2005, p. 38).

Sabemos que foi, sobretudo, com o estudo de Joyce que Lacan formalizou a idéia de

uma nova forma de amarração dos três registros a partir da obra que, neste caso, ganha a

forma de escrita literária. O que podemos extrair dessa análise para pensarmos o

sinthoma e sua função na estabilização psicótica?

É sobre a lógica fundada no nó borromeano que Lacan fala de sinthoma em Joyce que

60

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

realiza, pela escrita, o nome próprio, sem o apoio ao Nome-do-Pai. “[Do Nome-do-Pai]

se pode também prescindir. Pode-se também prescindir dele com a condição de dele se

servir” (LACAN, 1975-76/2005, p. 136). Pelo menos é o que ele nos propõe pensar em

sua discussão sobre Joyce. Lá, a hipótese da escrita como sinthoma surge e ganha

evidência. Fazer enigma, desejar um nome que seja lembrado, ser artífice que sabe fazer

sinthoma, fizeram de Joyce - a partir de um percurso particular no caminho encontrado

para lidar com a demissão paterna - paradigma de uma modalidade de solução na

psicose: a obra, pelo viés da escrita.

Seja a partir do nó de trevo, seja a partir do nó borromeu, iremos ver, Lacan irá propor,

em qualquer dos casos, que o sinthoma se faz enquanto um elemento suplementar. No

caso de Joyce, inventado por ele para se haver com a demissão paterna. Se apenas

Simbólico e Real se encontram atados (e entrelaçados), é preciso um novo movimento

do sujeito para que amarre o Imaginário que se encontra solto. O sinthoma é o efeito

desse movimento de escrita que se faz índice, cifra. Invenção suplementar sobre um

lapso do nó. E essa amarração se faz pela escrita da letra que permite uma outra

escritura do nó borromeu. “Que se esteja deitado ou de pé, o efeito de cadeia [nó] que se obtém pela escrita não se pensa facilmente [...] Considero que ter enunciado sob a forma de uma escrita o real em questão, tem o valor daquilo que se chama geralmente um traumatismo. [...] Digamos que é o forçamento de um novo tipo de idéia19” (LACAN, 1975-76/2005, p. 131).

Forçamento de um novo tipo de idéia que não floresce unicamente pelo fato daquilo que

faz sentido (imaginário), mas que, antes, suporta o sentido e a ele dá sustentação, com

um alcance simbólico. Trata-se, pois, de uma invenção, de uma nova forma de o sujeito

suportar a realidade sem o recurso ao Nome-do-Pai. Que seja preciso a escrita para dela

extrair o objeto a muda completamente o sentido da escrita, o sentido do que está em

jogo. “A letra não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita enquanto outra

com, precisamente, um pequeno a. [...] A escrita em questão vem de uma outra parte

que não do significante” (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Ela ganha autonomia em

Joyce. Ela é um fazer que dá suporte ao pensamento. É letra que codifica gozo.

O ego é o que surge como o que corrige (“corretor”) esse ponto da relação faltante do

que não se enoda borromeanamente àquilo que faz nó de Real e de Inconsciente, sendo

o artifício da escrita o que restitui o nó borromeu. É o texto de Joyce que se escreve

19 Aqui originalmente, nos textos estenografados, lia-se ‘escrita’, e não ‘novo tipo de idéia’.

61

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

borromeanamente. A consistência desse suporte diz respeito à letra, inscrita pela “outra

forma” de escrita joyceana do sinthoma. Parece-nos que é a esse fenômeno que Lacan

se refere ao falar de arte ou artesanato. A partir de um quarto elemento, Joyce inventa

um nome assentado sobre sua obra.

A partir do comentário de Jacques Aubert sobre Joyce no Seminário XXIII, Lacan

(1975-76/2005) pôde nomear aquilo em que Joyce confiou, mais que em seu Pai, para

se sustentar: seus sintomas. As epifanias20 – “essas breves frases tiradas do contexto que

poderia dar-lhes significação, esses fragmentos de discursos nos quais o sem sentido

reluz” (SOLER, 1990, p. 18) – traduziriam esse momento em que o gozo efetivamente

se adensa, passando Joyce a confiar nele. As epifanias funcionam de modo autônomo no

texto joyceano, isoladas de qualquer contexto ou, em termos lacanianos, como

significantes puros, isolados de toda significação, donde provém seu caráter

condensador e desprovido de qualquer sentido.

Pela escrita, Joyce consegue metaforizar sua relação com o corpo. Lacan destaca essa

dimensão no episódio de Finnegans Wake em que, apanhando de seus colegas, Joyce

sente seu corpo soltar-se como uma casca. E disso ele não extrai gozo. O interessante

mesmo não são as metáforas que ele emprega, mas que algo realmente cai, solta-se de

seu corpo como uma casca. “É como alguém que coloca em parênteses, que expulsa, a

má lembrança” (LACAN, 1975-76/2005, p. 150), ou seja, que faz sintoma numa

dimensão que está para além do símbolo. Podemos dizer que, com a análise do caso de

Joyce, Lacan passa “da obra como expressão de um sintoma à obra como sintoma sem

expressão, ou melhor, da obra como símbolo de um sintoma à obra como sintoma sem

símbolo” (MANDIL, 2003, p. 24).

Nessa terceira possibilidade de estabilização, parece-nos que Lacan dá um passo largo

ao incluir a letra e o que ela traz de irredutível, bem como ao evidenciar o vazio de

significação que habita a própria linguagem, exigindo do enigma que dela nasce a

20 O termo epifania, como nos explica Mandil (2003, p. 124-125), foi “retirado da tradição cristã; refere-se a uma manifestação do Verbo no campo da percepção, em geral, e do visível, em particular”. Em Joyce há uma aproximação entre as epifanias e as claritas (radiância; alma ou essência do objeto apreendido esteticamente), terceiro elemento da estética de inspiração tomista que, de certa forma, se opõe à dimensão da aparência do objeto, correlacionada à integritas (percepção da imagem estética como um todo) e à consonantia (manifestação da simetria e do ritmo na apreensão da obra). “Coletadas em cadernos, as epifanias joyceanas são pequenos fragmentos de texto, isolados de um contexto narrativo, ocorrendo invariavelmente na terceira pessoa e transmitidas em tom impessoal, estático, o que permitirá seu enxerto posterior ao longo das obras de Joyce” (Id., ibdem). Sobre as epifanias, cf. também Joyce avec Lacan (AUBERT, 1987, p. 87-95).

62

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

interposição de uma invenção como resposta. É sob essa perspectiva que o campo das

estabilizações pode se valer desses desenvolvimentos lacanianos. O que faz cifra opera

sobre o gozo. No próximo capítulo, desenvolveremos os aportes psicanalíticos que

permitem articular essas questões, mostrando pela topologia em que o real está

implicado nessa construção.

63

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

CAPÍTULO 2QUANDO A ESTRUTURA DA LINGUAGEM APONTA SEU

MAIS-ALÉM

64

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

2.1 Discussão dos Conceitos Preliminares à Compreensão da Revisão Lacaniana

2.1.1 Percursos e percalços teórico-clínicos

No Seminário RSI, Lacan (1974-75) aponta a debilidade do humano ao tentar dar conta

do real pela linguagem, com a conseqüente fundação do inconsciente. Ele se esforça, no

período final de seu ensino, em reduzir ao mínimo matemizável suas formulações. E vai

além. O uso da topologia borromeana evidenciará a intenção de tratar o real pelo real,

mostrando, na transmissão e na clínica, o uso que podemos fazer desse irredutível.

Dessa forma, denotará, de um lado, um desejo de redução que garanta uma transmissão

possível da psicanálise e, de outro, um efeito recolhido por ele na clínica. Ao menos é o

que verificamos no empenho com que sustenta seu ensino. Os vinte e sete21 seminários

que proferiu são a prova mais viva desse desejo. Esse empenho, entretanto, atende

também à exigência de se aproximar de uma transmissão o mais integral possível da

psicanálise com os matemas.

Ele apresenta o termo pela primeira vez em seu seminário “Ou Pior...”, na aula de

04/11/1971. Ao contrário do que se poderia supor, o termo matema não tem origem na

matemática, mas lhe dá origem. Parece ter sido forjado a partir do termo estruturalista

de Lévi-Strauss, mitema22, além de fazer referência à palavra grega máthema23, que

significa conhecimento. Sua relação com o campo da matemática é deduzida por Lacan

da loucura de Cantor24. Se essa loucura, em essência, não é motivada por perseguições

objetivas, diz ele, está relacionada com a própria incompreensão matemática, isto é,

com a resistência provocada por um saber considerado incompreensível

(ROUDINESCO, 1988, p. 610). Ela se relaciona com a letra, a transmissão, a herança.

Veicula, assim, a questão sobre como transmitir um saber que parece não poder ser

21 Aqui incluo o Dissolution (1980) e não incluo os dois seminários que proferiu em sua residência sobre o Homem dos Lobos (1951-52) e o Homem dos Ratos (1952-53), respectivamente. 22 Mitemas são as unidades estruturais de análise dos mitos nas quais Lévi-Strauss se apóia para empreendê-la. Cf. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1975. (Cap. XI - A estrutura dos mitos, p. 237-266)23 Máthema na raiz grega significa ciência, conhecimento, aprendizagem, donde, por conseqüência, mathematikos significar apreciador do conhecimento. “Em grego, mathetés é aprendiz, aprendente, pupilo, discípulo: o que aprende... Mathetría é a mesma coisa, só que no feminino... Mathetêia ou máthema é aquilo que se aprende... (De máthema vem matemática...)”. Consultado na Internet dia 10/03/2007: <http://www.mathetics.net/pages/mathein.htm>.24 Georg Cantor (1845-1918) foi um matemático alemão de origem russa conhecido por ter criado a moderna Teoria dos Conjuntos. Foi a partir desta teoria que chegou ao conceito de número transfinito, incluindo as classes numéricas dos cardinais e ordinais, estabelecendo a diferença entre estes dois conceitos (que colocam novos problemas quando se referem a conjuntos infinitos).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

ensinado, seja o matemático, seja o psicanalítico. Entre 1972 e 1973, Lacan singulariza

e pluraliza o termo, articula os quatro discursos com o matema e o define como a escrita

do significante, do traço, da letra, ou seja, daquilo que não se diz, mas pode ser

transmitido, ainda que dele um resto lhe escape permanentemente. Assim, o matema

incluía o conjunto das fórmulas da álgebra lacaniana que permitiam um ensino. Lacan

fala desse desejo de matematização da psicanálise ao proferir suas conferências nos

EUA, em Novembro de 1975. Refere-se a uma espécie particular de simbólico, que liga

o real pela escrita, afirmando que:“tudo o que foi produzido como ciência é não verbal. [...] As fórmulas científicas são sempre expressas por meio de pequenas letras. [...] A ciência é tudo aquilo que se liga na sua relação ao real graças ao uso de pequenas letras. [...] É certo que eu tento dar forma a alguma coisa que agiria como núcleo da psicanálise, do mesmo modo que essas letrinhas” (LACAN, 1975b, p. 30).

O isolamento desse mínimo matematizável é marcado pela introdução da concepção de

letra e sua relação ao real no ensino lacaniano, pois, para ele, “não é com palavras que

nós escrevemos o real, é com pequenas letras” (LACAN, 1975b, p. 30). A letra aqui é

tomada enquanto identidade de si para si, articulada ao trauma do nascimento do sujeito

para a linguagem.

Nessa direção, a invenção de uma resposta ao traumático conduz Lacan a uma discussão

sobre o tratamento que a Linguagem realiza sobre a língua materna (ou lalíngua25). O

traumático é revelado pelo encontro com o sexual, com o indizível que coloca o sujeito

na busca de um sentido para essa experiência que ele tenta dominar com palavras. Em

função disto, o que há de mais fundamental nas relações sexuais do ser humano com a

linguagem teria a ver com a língua materna (LACAN, 1975b, p. 20). A língua materna

ou a lalíngua seria feita desse gozar. A referência de Lacan é ao traumatismo que,

sempre significante, lalíngua e gozo produzem, o traumatismo que lalíngua produz em

um sujeito. Lacan chegou a fazer dele, em seu último ensino, o núcleo do inconsciente,

ou seja, esses significantes foram investidos e isso os traumatizou. Na medida em que

“o que cria a estrutura é a maneira em que a linguagem emerge no início num ser

humano” (LACAN, 1975b, p. 12), seria o trauma da linguagem sobre o corpo que

operaria a inscrição do sujeito e, nesse sentido, seria a letra, enquanto não reenvia a

25 Optamos por manter a tradução de lalíngua para lalangue, apoiados no texto de CAMPOS (1998). Segundo ele, o prefixo “a” em português tem um sentido privativo que o distancia do artigo francês feminino “la”, podendo dar um sentido oposto ao que lalangue apresenta.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

nada, que fixaria o que há de mais singular na posição do sujeito. Ora, essa discussão

interessa-nos diretamente, pois, como nos adverte Miller (2003a, p. 12), “é

precisamente o traumatismo do significante, do significante enigma, do significante

gozo, que obriga a uma invenção subjetiva”. Parece-nos haver, portanto, para o campo

das estabilizações psicóticas, das invenções psicóticas uma resposta que se articula no

nível da letra.

Ainda para Roudinesco (1994, p. 364), é “a leitura de Wittgenstein e a elaboração das

duas noções de matema e de lalíngua que levam Lacan, em 1971, a adotar uma nova

terminologia destinada a pensar o estatuto do discurso psicanalítico em relação a outras

formas de discursividade”. Para isso, era preciso passar do dizer ao mostrar. Ao mesmo

tempo, e numa segunda via, a introdução da topologia borromeana tenta responder à

insistência lacaniana em evidenciar o discurso analítico. Lacan está às voltas com o que

se apresenta de extremamente singular nos casos que atende. Do universal da

linguagem, ele retirou o particular do uso pessoal do significante. Extraída essa

particularidade, entretanto, resta, em cada caso, a singularidade de uma dimensão

irredutivelmente única, não formalizável genericamente e apenas extraída por cada

sujeito de sua experiência com o real.

Ao mesmo tempo, entretanto, em que uma singularidade absolutamente radical se revela

ao psicanalista diante de cada analisante que se dispõe a escutar, algo de um certo

‘mesmo’ se atualiza em cada psicanálise, conferindo-lhe sua consistência teórica e

estrutural. Freud já nos advertia da importância em tomarmos cada caso como primeiro,

deixando-nos guiar por aquilo que não se soma na experiência clínica. Lacan, ainda em

1954, destacava essa posição freudiana notando que Freud “preferiria renunciar ao equilíbrio inteiro de sua teoria do que desconhecer as mais ínfimas particularidades de um caso que a contestasse. O que equivale a dizer que, se a soma da experiência analítica permite destacar algumas formas gerais, uma análise só progride do particular para o particular” (LACAN, 1954/1998, p. 387).

Lacan desenvolve essa questão clínica na década de 70 até o ponto em que se encontra

com a topologia. Eis os termos com os quais ele coloca a questão (1973/2003, p. 554-

555). A partir do fato de que existem tipos de sintoma, existe uma clínica. Mesmo que

ela tenha sido anterior ao discurso analítico, com este ela se funda na vertente

determinada pela existência do inconsciente, enquanto um saber que se trata de decifrar

pelo trabalho significante, ao mesmo tempo em que ele próprio opera um ciframento de

67

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

gozo. Que os tipos clínicos26 decorrem da estrutura, isso é certo, como também é certo

que o que decorre da mesma estrutura não tem forçosamente o mesmo sentido. É por

isso que só existe análise do particular. O que identifica os tipos clínicos é a estrutura, e

não o sentido. Os sujeitos de um tipo, portanto, não têm utilidade para os outros do

mesmo tipo. O discurso de um obsessivo, por exemplo, pode não dar o menor sentido

ao discurso de outro obsessivo. “É disso que resulta só haver comunicação na análise

por uma via que transcende o sentido, aquela que provém da suposição de um sujeito

no saber inconsciente, ou seja, no ciframento” (LACAN, 1973/2003, p. 555). Essa cifra

que localiza o que há de particular em cada sujeito está para além de seu tipo clínico,

ganha a forma do objeto a e assenta-se sobre a materialidade da letra. É onde o núcleo

real de cada sujeito o singulariza.

Se há, qual seria a novidade para a clínica, no que Lacan concebe na década de 70 sob a

égide dos nós borromeus? Por que essa questão sobre o singular na clínica se encontra

com o desenvolvimento da topologia borromeana no ensino lacaniano? O que a

estrutura dos nós introduziria em relação à estrutura da linguagem? Quais suas

conseqüências clínicas para a psicose? A formalização do Real, do Simbólico e do

Imaginário num primeiro tempo, a invenção do objeto a noutro, e a introdução da

topologia, em especial a dos nós no período referido, são, em nosso entendimento,

elementos com os quais Lacan tentou responder às aporias que os avanços teóricos e sua

clínica lhe exigiam. Dessa forma, nessa segunda parte da tese, buscaremos elucidar

alguns termos por ele inaugurados ou retomados em torno da década de 70, buscando

entender como eles podem funcionar como abertura para pensarmos as estabilizações

psicóticas pelo viés da criação.

2.1.2 As condições de possibilidade da construção dos novos conceitos lacanianos

Para Miller (2003b), o final do ensino de Lacan estaria inacabado, apenas anunciado por

traços deixados em sua transmissão. Estes não teriam ganhado nesse caso uma última

versão. Esses restos escritos não existem para orientar as deduções que se podem extrair

desse ensino. Ele sugere tomarmos as placas indicadas como um verdadeiro “caminho

de Roma” (no sentido de caminho certo) a ser seguido, a partir da última conferência 26 Entendemos que os tipos clínicos são decorrentes das três estruturas: neurose, psicose e perversão. Na primeira, teríamos a histeria e seu dialeto, a neurose obsessiva; na psicose, a esquizofrenia, a paranóia e a melancolia; enquanto na perversão, o fetichismo e os pares sadismo-masoquismo e exibicionismo-voyerismo.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

lá pronunciada, “La troisième” (LACAN, 1975a), e trabalhado ao longo dos seminários

que se seguiram ao RSI (LACAN, 1974-75).

A orientação é essencialmente lacaniana. O próprio Lacan nos lembra que seu trabalho

foi o de extrair da intuição e da teoria freudianas registros para formalização da

psicanálise. “[...] que eu tenha começado pelo Imaginário e, em seguida, precisado um bocado mastigar essa história de Simbólico com toda essa referência linguística sobre a qual efetivamente não encontrei tudo aquilo que me teria facilitado. E depois, esse famoso Real, que acabei por lhes apresentar sob a forma mesma do nó” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).

O primeiro esforço de recuperação da clínica psicanalítica em Lacan (década de 50)

teria sido uma tradução de Freud, no sentido de produção de novas interpretações a

partir do texto original. Haveria, nesse período, pontuações do texto freudiano. No

retorno a Freud, Lacan teria traduzido rejeição por foraclusão, destacado o traço unário

e a castração, retomado a noção de eu como pivô da experiência analítica e a função da

fala como única operatória na prática analítica, suportada pelo campo da linguagem.

Porém, com essas retomadas, ele não teria feito mais que pontuações. Elas vão até

formalizações, é certo, mas não excedem o status de pontuação na tradução que

efetivam de Freud. Poderíamos mesmo dizer que se trata de um trabalho metódico de

crítica que tensiona as aporias freudianas, discutindo suas conseqüências. Dessa

maneira, a primeira clínica seria uma celebração do acontecimento-Freud e do

desenvolvimento de suas conseqüências, tomados enquanto novidade radical, corte em

relação ao que antecedeu Lacan e guia obrigatório de acesso ao inconsciente e de uma

direção que convém ao tratamento analítico (MILLER, 2003b, p. 08).

Lacan também teria apresentado a disjunção entre sujeito do inconsciente e sujeito da

consciência de si. Da autonomia da consciência, Lacan chegaria à autonomia do

simbólico, operando essa passagem ancorado no estruturalismo de Lévi-Strauss. Mas,

ainda assim, seriam pontuações, traduções de um sentido verdadeiro da obra freudiana,

desviada principalmente pelos pós-freudianos da Psicologia do Ego norte-americana.

No “Seminário sobre a carta roubada” (LACAN, 1957a/1998, p. 13-66), em especial,

Lacan cria o esquema de alfa, beta, gama e delta para ilustrar o automatismo do

simbólico, para conferir ao inconsciente enquanto memória o suporte simbólico. Ele

começa por evidenciar que o aleatório – tal qual a cara e a coroa na lei das

probabilidades – é impossível de ser previsto, organizado, calculado. Não se pode

69

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

prever qual será o resultado da próxima jogada, cara ou coroa, ainda que se possa

deduzir, após inúmeras jogadas, que a probabilidade de cada uma delas aparecer será de

50%. Nesse nível, ele trabalha com o que pode ser pensado como a matéria real, o que é

da ordem do dado da experiência, o que tem valor bruto. Num segundo momento, essa

casualidade pode ganhar um reagrupamento regido por reciprocidade, tal qual o

funcionamento imaginário, especular, pareado. Uma lógica começa a ser esboçada. E,

no terceiro nível, esses reagrupamentos por duplas ganham leis de organização,

combinatórias possíveis e outras agora impossíveis, uma verdadeira sintaxe, sendo os

agrupamentos do segundo nível reorganizados a partir dessas leis que já introduzem

uma lógica simbólica. Há, como se pode deduzir, uma prevalência do simbólico que, a

posteriori, organiza a leitura das dimensões imaginária e real. Busca-se a construção de

um sentido para o real, o estabelecimento de regras para se interpretar o aleatório

(BASTOS, 1998).

Foi com base nessa perspectiva estruturalista que Lacan empreendeu sua releitura de

Freud nesse primeiro tempo de seu ensino. Nela, o sujeito, diferentemente da

abordagem fenomenológica, só conhece os dados mediatizados pela estrutura, cuja

alteridade é dada pela noção de Outro. A percepção seria organizada previamente pela

estrutura. O perceptível faria sistemas e o simbólico dominaria o perceptível da

realidade. “A dinâmica no estruturalismo é reduzida à permutação de elementos em

lugares invariáveis, quer dizer que há uma estática dos lugares explorada por Lacan”

(MILLER, 2003b, p. 21).

O avanço do ensino lacaniano implicará numa reinterpretação desse determinismo.

Lacan questionará o real da estrutura ao discutir sua dimensão de arbitrariedade. O que

a Antropologia Social estruturalista de Lévi-Strauss colocou em relevo foi o

relativismo, a perspectiva de que o real poderia ser estruturado de maneiras diversas, e,

só então, ganhar uma estrutura irredutível. Donde se extrai que qualquer estrutura é,

antes de tudo, uma construção de leis que regem a realidade factual. Mas, para Lacan,

subjaz a esse sistema de leis um real de dados imediatos que não caberia buscar decifrar.

Aliás, que restaria como inacessível, indecifrável. Haveria uma espécie de matéria bruta

dos fatos, sem nenhuma estrutura lógica anterior a esse sistema de ordenação estrutural.

Sobre ela se construiria a elucubração do sentido, um saber. Isso teria conduzido Lacan

a uma nova fenomenologia, a ordenar um real fora do sentido, prévio àquele que a

70

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

estrutura confere e que, por isso mesmo, não pode ser definido.

Daí poder se extrair uma duplicidade de leituras acerca do inconsciente. Ora, ele pode

ser pensado como uma elucubração freudiana de saber, ora como real fora de sentido,

apreendido pelo equívoco, pelo engano. “A base material do inconsciente como dados

imediatos é o tropeço, o escorregão, o deslizamento de palavra à palavra. Aqui

estamos no nível imediato a partir do qual se elucubra” (MILLER, 2003b, p. 23).

Qualquer construção que se faça sobre esse tropeço, já seria uma tentativa de apreendê-

lo, um semblante, já seria uma debilidade do mental. Debilidade que aponta para a

dificuldade em se lidar com o corpo (o imaginário) e com o real. Nessa ótica, o

inconsciente seria uma doença mental (LACAN, 1974-75). Ao mesmo tempo, seria o

engano, o tropeço, aquilo que permitiria a produção no mental de sentidos diferentes, de

novas configurações como forma de resposta ao mal-estar produzido por essa

dificuldade. Interessante aqui ressaltar que a debilidade é do mental, do humano. O

déficit não está mais do lado da psicose, mas do lado de qualquer ser de linguagem. A

solução ao embaraço colocado pelo trauma da linguagem exige uma resposta singular

de cada um. Será nessa vertente que as estabilizações psicóticas passarão a ser

consideradas.

Esta seria uma novidade muito presente no final do ensino de Lacan que, como se vê,

põe em questão o sentido e o saber. Daí ele priorizar o saber-fazer (savoir-faire) mais

que o saber. A depreciação do saber como uma elucubração é correlata à discussão da

topologia do nó borromeano, na medida em que, sobre ele, Lacan se absteve de fazer

demonstrações e deduções lógicas. Seu esforço foi o de mostrar, a partir dos barbantes e

seu enodamento, a debilidade de toda tentativa de compreensão. O nó seria o efeito real

em si mesmo, e não um modelo para sua compreensão ou elucidação.

O inconsciente e o pensamento seriam tomados no nível dessa relação difícil entre o

corpo e o simbólico, que Lacan nomeia de mental no último ensino. O inconsciente

estaria no nível do mental, da debilidade que afeta esse mental enquanto necessidade de

saber, elucubração advinda do fato de ‘não se saber fazer com’. Ele aparece mais como

esse ‘não saber fazer com’, diante do qual as saídas subjetivas são sempre únicas,

singulares, irredutíveis a um padrão, que como ‘o saber que não se sabe’ freudiano

(FREUD, 1912a/1976). Dito de outra forma, essas saídas não seriam normativizadas

pelo Nome-do-Pai como um agenciador elementar e necessário, que alimentaria a

71

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

esperança de um saber complementar, mas, antes, seriam efeito de invenções, de

criações suplementares do sujeito diante do impossível veiculado pelo real. Já na década

de 60, Lacan começa a articular o Outro – como campo do significante – ao objeto a –

como o que é próprio ao sujeito, singular, para, enfim, partir do que esse campo do

Outro não recobre e alcançar o que escapa como singularidade no final de seu ensino.

Na topologia dos nós, não se trata mais de falta, e sim de furo. Quando se fala de falta,

há a referência a lugares, como acabamos de destacar na leitura que parte do

estruturalismo. A falta implica uma ausência que se inscreve num lugar. Pode-se faltar,

mas há sempre termos que venham ali se substituir. Daí a falta ser coerente com a idéia

de combinatória e de permutação, de linearidade, de cadeia de significantes, de

metáfora. O furo, ao contrário, comporta o desaparecimento da ordem dos lugares, da

ordem da combinatória. Como no nó borromeano, o furo é posição própria ao resto, ao

que resta da forma como a amarração do nó pode se escrever. Todo esse percurso

evidencia um estatuto cada vez mais complexo da discussão das estruturas clínicas, da

psicose e das estabilizações.

2.2 Lacan, a Linguagem e a Psicose

Os reviramentos e as subversões operados por Lacan em relação à estrutura da

linguagem não implicam em avanços ou evoluções, mas antes em complexificações que

retornam umas sobre as outras ao longo da obra, sofisticando a teoria lacaniana. Ao

partir da realidade articulada pelos três registros, ele recorreu, na década de 50, à

lingüística estrutural, como vimos, para estabelecer uma estratégia de domesticação do

gozo, do vivo, pela linguagem, pelo significante. É a época dos aforismos do

‘inconsciente estruturado como linguagem’ (LACAN, 1957b/1998) e do ‘a palavra (ou

o símbolo) mata a coisa’ (LACAN, 1956-57/1995). Período em que Lacan luta contra os

desvios operados na psicanálise pela psicologia do ego e, por conseqüência, período em

que estabelece uma primazia do simbólico sobre o imaginário.

Daí a importância da metáfora, que tenta abrir, no campo lingüístico, o espaço a um

nível de experiência subjetiva para além do Imaginário. Ela seria a negação de uma

construção imaginária naturalizada pelo signo lingüístico. Simbolizar por metáforas

significa simbolizar por significantes puros (e não por signos) que são a negação do

empírico. Eles seriam a formalização da inadequação da linguagem às coisas sensíveis,

72

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

destacando o arbritário e a convenção em sua adoção (SAFATLE, 2006, p. 105-106).

Lacan trabalha os desvios imaginários que, na psicologia do ego, aparecem como um

desejo de adequação do sujeito à realidade, enquanto a psicanálise visaria ao desejo

articulado à Lei simbólica, como sua condição. Assim, “desde que a intenção

imaginária que o analista descobre ali [no manejo clínico] não seja por ele

desvinculada da relação simbólica em que ela se exprime” (LACAN, 1953/1998, p.

252), estamos pisando no território de uma clínica orientada pelos princípios freudianos

então recuperados. Nessa perspectiva, a interpretação visaria ao sentido, produzido pelo

deslizamento da cadeia significante. A clínica se orientaria pela produção significante

no que ela alcança o que, do inconsciente, pode ser tratado, decifrado. “A interpretação,

para decifrar a diacronia das repetições inconscientes, deve introduzir na sincronia

dos significantes que nela se compõem algo que, de repente, possibilite a tradução”

(LACAN, 1958/1998, p. 599) do que aparece como falta do Outro. Poderíamos

representá-la assim:

Linguagem -> Significante Gozo

Com a introdução do conceito de objeto a em 1960 (LACAN, 1960/2003)

(desenvolvido nos seminários subseqüentes) veremos uma articulação mais fina sobre

esse ‘resto metonímico’ se delinear. A partir de então linguagem e gozo possuem uma

relação intrínseca, sem preponderância de uma dimensão sobre a outra. O que se

destaca, nesse período, é antes uma relação de sobredeterminação e limite entre os

termos. “Esse a se apresenta justamente, no campo da mensagem da função narcísica

do desejo, como objeto indeglutível, se assim podemos dizer, que resta atravessado na

garganta do significante. É nesse ponto de falta que o sujeito tem que se reconhecer”

(LACAN, 1964/1998, p. 255).

Lacan nesse período responde à crítica que sofre quanto ao estruturalismo lingüístico e

ao racionalismo pregnantes em sua obra. Ele busca retomar os conceitos fundamentais

da psicanálise, destacando a pulsão e o vivo no sujeito desejante e recolocando em

novos termos a dimensão significante. O Outro é então tomado como “o lugar em que

se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do

sujeito” e também “o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (LACAN,

73

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

1964/1998, p. 193-194). A falta do sujeito também aparece desdobrada numa dimensão

significante enquanto falta-a-ser, afânise, na medida que os significantes do sujeito se

encontram no campo do Outro, e falta real, referente ao fato de que o gozo é sempre

parcial, ele é o que o vivo perde. Se tudo ainda surge do significnate nesse período,

Lacan, porém, já aponta para a estrutura de corte que faz borda ao significante

instalando uma dimensão para além dele.

Nesse ponto, o sujeito, sob as operações de alienação-separação27, se instalará no campo

do Outro enquanto falta-a-ser, condição de sua posição como sujeito desejante. Lacan

destaca o irredutível na análise. E o tratamento clínico passa a visar justamente

reconhecer esse irredutível e atravessar seu recobrimento fantasístico. Ainda que

significante e gozo se localizem em dois pólos antinômicos, entre eles uma relação (ou

‘todas as relações possíveis’) se estabelece: ∃<>∀.

Linguagem <- - - -> Gozo -> objeto a

Parece-nos que Lacan recorre à topologia borromeana ao se deparar com o que, do

inconsciente, não se decifra, pois, para além do deciframento operado pelo significante,

há o gozo e o que dele faz cifra. Para justificar o que encontra na clínica, Lacan passa a

trabalhar com a idéia de que o significante é signo28 do sujeito (LACAN, 1972-73/1982,

p. 195). Diferentemente do significante que somente ao reenviar a outro significante

produz uma significação, o signo representa, de maneira fechada, algo. Lacan o define,

com Peirce, como o que pode substituir um outro signo. No Seminário 20, ao introduzir

a noção de lalíngua na definição do ser falante, propõe uma articulação nova entre

significante e signo. Na perspectiva saussuriana, o signo lingüístico compõe-se de

significante mais significado. Lacan propõe a prevalência do significante sobre o

significado, localizando o sujeito no intervalo entre dois significantes. Na década de 70,

por seu turno, sugere que “o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir

27 A alienação ao significante do Outro com o qual o sujeito se identifica, implica em seu desaparecimento como sujeito do inconsciente no campo do sentido e como sujeito desejante no campo do ser. Enquanto na alienação, surgida do recobrimento dessas duas faltas, o sujeito encontra no intervalo significante uma via para retornar da alienação enquanto sujeito desejante (LACAN, 1964/1998, p. 191-217).28 O signo, como conceito ampliado em Peirce, implica numa relação triádica. Ele é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Toda relação sígnica implica na relação entre o signo em si mesmo, o objeto e o interpretante (relação que o signo mantém com o objeto). A partir dessa relação introduz-se na mente interpretadora um outro signo que traduz o significado do primeiro, sendo seu interpretante. Dessa maneira, o significado de um signo é sempre um outro signo.

74

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

signo. [...] O significante é signo de um sujeito” (LACAN, 1972-73/1982, p. 195).

Ora, o aforismo lacaniano de que ‘um significante representa o sujeito para outro

significante’ implica a introdução do valor diferencial do significante. Por outro lado, o

significante como signo do sujeito implica uma relação de identidade, trazendo uma

série de dificuldades para integração dessa idéia na teorização lacaniana. A solução nos

parece advir com o conceito retomado e ressignificado de letra, como veremos em

seguida. Por outro lado, o signo só tem alcance por ter que ser decifrado (LACAN,

1973/2003, p. 550). Entretanto, a dimensão da fala, ou a dit-mension, não revela a

estrutura ao chegar ao término da seqüência a que conduz a decifração. A inscrição do

sexual resta como o que faz cifra e aponta o único real que não pode se escrever, a

relação sexual. “Falamos do valor que tem o estalão do sentido. Chegar a ele não o

impede de fazer furo. Uma mensagem decifrada pode continuar a ser um enigma. [...]

O analista se define a partir dessa experiência” (LACAN, 1973/2003, p. 550).

Deciframento e ciframento são operações que mantêm, portanto, seu relevo na clínica –

uma ativa, outra sofrida. É no nível da lalíngua que o traumatismo deixa seu traço de

inscrição do real no mundo do ser falante (interessante verificar a inversão que Lacan

apresenta aqui: é o real que ao entrar faz trauma). A linguagem seria o esforço débil

para tentar dar conta desse encontro. “Tudo os conduz, no entanto, à solidez do apoio

que eles [falantes] encontram no signo – não fosse pelo sintoma com que têm que lidar,

e que faz do signo um grande nó...” (LACAN, 1973/2003, p. 552).

Aqui teríamos representada essa nova versão:

. Letra .

. Lalíngua . -> Real

.Linguagem

A linguagem aqui aparece como efeito da incidência traumática da letra em lalíngua e

suas repercussões sobre a forma de organização do gozo. Implica uma concepção de

escrita, antes ausente da obra de Lacan e fundamental para nossa discussão.

Acompanhemos Lacan.

2.2.1 Linguagem e lalíngua

Lacan apresenta a invenção do termo lalíngua na aula do dia 04/11/1971 do seminário

“O saber do psicanalista” (LACAN, 1971-72b). Nesse ano, ele realiza seu ensino em

75

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

duas séries. Uma primeira acontece na Faculdade de Direito, no auditório da Praça do

Panthéon, intitulada “Ou pior...”, e uma segunda, intitulada “O saber do psicanalista”,

no Hospital Sainte-Anne. Na primeira, o locus efetivo do seminário, Lacan destaca cada

vez mais o real, o pior, o impossível; enquanto em Sainte-Anne, ele se atém ao saber do

psicanalista. De qualquer forma, como veremos, será no bojo desse trabalho de

transmissão que ele chegará ao matema e aos nós.

Lalíngua é inventada como uma brincadeira com o nome de Lalande, filósofo que

escreveu um vocabulário de filosofia muito utilizado na França. Ao tratar da diferença

entre saber e verdade, cuja fronteira sensível seria o discurso analítico, Lacan propõe o

termo lalíngua. Ele não tem nada a ver com o dicionário, sendo antes a lógica que lhe

interessa para pensá-lo. Lalíngua é extraída do jogo da matriz de Jakobson29. E diz

respeito especialmente ao fonema, ao som e ao fora-de-sentido que ele veicula

(enquanto a letra estaria referida ao grafema). “Lalíngua não tem nada a ver com o

dicionário, qualquer que seja ele [o de filosofia ou o de psicanálise]. O dicionário tem

haver com a dicção, quer dizer, com a poesia e com a retórica, por exemplo” (LACAN,

1971-72b, aula de 04/11/1971).

A linguagem é apenas o que o discurso científico elabora para dar conta de lalíngua, que

serve para coisas diferentes da comunicação. Ela é a fala antes de seu ordenamento

gramatical e lexicográfico. Introduz um uso da palavra, não como elemento da

comunicação, mas como veículo de gozo. “O que Lacan chama de lalíngua é a palavra

enquanto disjunta da estrutura de linguagem, que aparece como derivada em relação a

este exercício primeiro e separado da comunicação” (MILLER, 2000, p. 101). O

inconsciente é feito de lalíngua. Nesse sentido, lalíngua coloca em questão o conceito

mesmo de linguagem, que se torna derivado e não mais originário. O inconsciente não

deixa de ser estruturado como uma linguagem, mas sua matéria bruta é lalíngua, que já

está lá como saber que vai bem além do que o ser que fala é capaz de enunciar. “Se eu

disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo

porque a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber

concernentemente à função da lalíngua” (LACAN, 1972-73/1982, p. 189).

Nesse sentido, a disjunção ou não-relação, que aí aparece, veicula o questionamento do

próprio conceito de estrutura, como elemento transcendental, enquanto o que

29 “Há um lingüista que tem insistido muito no fato de que o fonema, isso não faz jamais sentido. O chato é que a palavra muito menos; não faz sentido, apesar do dicionário” (LACAN, 1974/1986, p. 31).

76

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

condicionaria a experiência. A estrutura não está mais protegida, isolada, ela é uma

resposta à desordem originária que a condiciona, sendo ela mesma um efeito, um

arranjo realizado sobre essa desordem.

Num primeiro tempo do ensino, Lacan estabeleceu o campo da linguagem apresentado

pela função da fala, como maneira de articular o sujeito do inconsciente. Nos seus

últimos escritos, ele privilegia o termo falasser, ao de sujeito, já que todo sujeito do

inconsciente implica um ser que fala, sendo extraídos dessa fala os efeitos clínicos que

alcançamos. À medida, porém, que a fala se torna veículo de gozo, ela não se inscreve

mais sob a égide da comunicação, da busca de reconhecimento do Outro. Ela implica,

antes, num gozo disjunto do Outro, num modo de satisfação específico do corpo falante,

na medida em que o corpo é o lugar, por excelência, do gozo.

Na terceira conferência que Lacan profere em Roma, gozo e linguagem ganham nova

articulação a partir de lalíngua. “Não é porque o inconsciente é estruturado como uma

linguagem, que lalíngua não tenha com o que jogar contra seu gozar, já que ela é feita

desse mesmo gozar” (LACAN, 1974/1986, p. 28). Lalíngua é feita do gozar que o

inconsciente veicula como o que da linguagem o excede. O que isso significa? Se a

linguagem, ou mais precisamente o símbolo, veicula a morte da coisa, lalíngua, por seu

turno, testemunha a vida que a linguagem rejeita.

Lacan insere no lugar do fonema o objeto voz, uma das quatro roupagens do objeto a.

Recoloca a voz quanto à operação significante da metonímia, deslocando-a do aparelho

de fazer sentido, e tornando-a livre, “livre de ser outra coisa que substância” (LACAN,

1974/1986, p. 16).

Mas ele ainda pretende definir outra delineação. Lalíngua mata o signo, ou seja, aniquila

a possibilidade de um sentido fechado e libera o real, o non-sense, o indizível que

habitaria o intervalo entre a coisa em si, seu traço e sua representação. “A falar

lalíngua, há um inconsciente, e ele está perdido [...]; é isso que chamo um saber

impossível de se reajuntar para o sujeito” (LACAN, 1974/1986, p. 17). O que habita

esse espaço, esse “depósito” é o gozo que poderia ser atado pela operação da linguagem.

Por isso, a radicalidade e a importância clínica central de lalíngua.

Tomemos como exemplo a operação primária da significação fálica. A introdução do

fora-corpo do gozo fálico na imagem do corpo marca uma operação absolutamente não

natural que será “codificada” por cada sujeito de uma maneira extremamente única, na

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

medida em que sua escrita decorre da via traumática com que ele experimentará na

língua mãe, lalíngua, a entrada do significante fálico. Lacan diz que isso fica retido, pois

não vem de dentro da tela (imaginária do corpo), mas de fora. “Ele, o corpo, se introduz

na economia do gozo [...] pela imagem do corpo” (LACAN, 1974/1986, p. 29). Ou seja,

se a relação do homem com seu corpo é imaginária, como já apontado em “O estádio do

espelho” (1949/1998) pelo próprio Lacan, sua razão é real: a prematuração corporal,

associada à insuficiência do simbólico. Há uma trama excedente à linguagem.

Qual a questão clínica daí depreendida? Se não há um ponto comum na linguagem para

todos, é preciso buscar, a cada caso, a lalíngua do sujeito. Se a palavra, apesar do

dicionário, ganhará uma conotação particular e um uso não transferível no discurso de

cada um, mais ainda indeterminado é o fonema articulado pelo significante. Isso não faz

jamais sentido. “Então se se faz dizer com qualquer palavra qualquer sentido, onde se

vai parar na frase? Onde achar a unidade elemento?” (LACAN, 1974/1986, p. 31).

Perguntar pela unidade elemento – essencial ao trabalho de interpretação – faz Lacan

retomar a dimensão do sintoma como o que vem do real, revirando o sentido do avesso.

Ele considera, então, que a interpretação deve visar o essencial que há no jogo de

palavras, e não ser aquela que provê o sintoma de sentido. Assenta seu tratamento, pois,

a partir do furo do saber. Eis o ponto em que ele se depara com a letra como suporte do

significante, “este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da

linguagem” (LACAN, 1957b/1998, p. 498) e que, sendo real, veicula o não-sentido. E a

letra não existe sem lalíngua (LACAN, 1974/1986, p. 33).

O que nos conduz à questão de como lalíngua pode se precipitar na letra. É exatamente

pelo trabalho de interpretação que, enquanto trabalho de deciframento, é à cifra que

retorna. “O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que

antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir cativá-lo até o ponto onde a

linguagem possa equivocar-se é ali por onde o terreno está ganho em meus pequenos

desenhos” (LACAN, 1974/1986, p. 33).

Essa afirmação lacaniana é muito sutil e fundamental para pensarmos o que ele trata

aqui em relação à clínica. Por uma via, ao trabalhar com o deciframento, poder-se-ia

supor que a interpretação psicanalítica chegaria ao sentido último pelo esgotamento das

possibilidades de significação. Mas isso é um engodo. Ali onde suporíamos o

esgotamento estaria aberta a fonte inesgotável que multiplica a produção de sentido,

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

pelo gozo do blá-blá-blá, instalado entre imaginário e simbólico. É numa outra via que

ele nos propõe trabalhar. Na medida em que decifra, se o sujeito desvela o que forja o

sentido para ele, algo se cifra no sentido de atingir lalíngua. Esse intervalo entre coisa,

traço e representação revela no falasser o modo com que acolhe o gozo. E essa operação

faz cifra, redução. Convidamos o analisante a falar livremente o que lhe ocorre

exatamente para colocar à prova essa liberdade de ficção de dizer qualquer coisa (o que

se confirma impossível), ao mesmo tempo em que se revela um atravessamento: o ponto

sintomático que o estrutura e comanda seu gozo.

Por que, enfim, Lacan nos diz que está em seus pequenos desenhos o terreno que se

ganha com esse equívoco da linguagem? O que aí se escreve?

2.2.2 Letra e escrita

Em Lituraterre (1971/1986), Lacan nos dá as indicações do que seria essa escrita. Logo

de saída brinca com a etimologia do título que inventa para seu texto a ser publicado

numa edição especial sobre Literatura e Psicanálise da revista Littérature. Desdobra os

termos de sua invenção ao dizer que ele está antes em associação com o termo latino

original Litura (em latim: risco, alteração, mancha e terra) que com Littera (referido à

letra e à palavra Literatura). O que, nos parece, indica o estatuto que irá conferir à letra

nesse texto. Para tratar do que faz escrita, Lacan busca avançar sobre o estatuto da letra.

Na década de 50, Lacan trazia em “A instância da letra” (1957b/1998, p. 498) que

“designamos por letra esse suporte material que o discurso concreto toma emprestado

da linguagem”, ressaltando sua materialidade em relação à linguagem, ao significante.

Na verdade, Lacan utiliza o termo lettre30 pela primeira vez em “O Seminário sobre ‘A

carta roubada” (1957a/1998), associando-o à expressão “a letter, a litter”, uma

carta/uma letra, um lixo. Desde já, a idéia de uma materialidade se apresenta ao lado da

idéia do que faz circular o discurso. Trata-se, no conto de Edgard Allan Poe comentado

por Lacan, de uma carta a ser recuperada pois colocava em risco a rainha. Ela,

entretanto, é ‘disfarçada’ numa carta velha, dejeto, que os policiais investigadores

pegam sem se darem conta de ser exatamente a que procuravam. Com isso, Lacan

evidencia uma dimensão outra, para além da mensageira, que reside na carta. O destino

30 Lettre ganha na língua francesa um jogo homofônico permitindo ser interpretada seja como carta, seja como letra. E Lacan ainda lhe acrescenta a homofonia com litter, estendendo seu sentido a lixo, dejeto, resíduo.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

da carta extrapola sua função de levar uma mensagem. Isso aparece no conto, pois é

exatamente depois de cumprir seu destino que ela circula como objeto de mão em mão,

como materialidade passível de ser largada, pegada, rasgada, alterada. Mandil (2003, p.

28) nos relembra que é por não corresponder à descrição de que dispunham, por não se

encaixar na cadeia prévia de sentido que a carta passa despercebida em sua dimensão de

lixo, litter.

Daí se extrai sua dupla dimensão, qual seja, a de transmissão de uma mensagem, a

letter, e também de um destino concernente à sua materialidade, a litter.“E é por isso

que não podemos dizer da carta/letra roubada que, à semelhança de outros objetos, ela

deva estar ou não estar em algum lugar, mas sim que, diferentemente deles, ela estará e

não estará onde estiver, onde quer que vá” (LACAN, 1957a/1998, p. 27). Enquanto

símbolo de uma ausência, o significante também seria marcado por essa duplicidade,

determinando as funções da letra.

A materialidade acima apontada por Lacan em “A instância da letra” (1957b/1998) é

discutida sob a mesma determinação significante, mas recorrendo a outra argumentação.

Aqui o aspecto privilegiado será o da lettre como elemento tipográfico. Ao discutir que

a estrutura significante está em ele ser articulado, reduzir-se a elementos diferenciais

mínimos e comporem-se segundo leis de uma ordem fechada, recai o interesse de Lacan

sobre uma certa equivalência entre letra e estrutura fonemática. Enquanto “sistema

sincrônico dos pareamentos diferenciais necessários ao discernimento dos vocábulos

em uma dada língua” (LACAN, 1957b/1998, p. 504), os fonemas se aproximariam dos

caracteres móveis das caixas baixas utilizadas na tipografia. É o que permite distinguir,

no texto lacaniano, a ação do significante e a ação do significado (MANDIL, 2003, p.

30; MILLER, 1996c, p. 97). A combinação desses caracteres móveis é diferente das

possíveis significações a que, combinados, eles dão origem. Assim também é a

combinatória significante que produz como efeito o significado. Donde Miller (1996, p.

97) propor a lettre como “o significante despojado de qualquer valor de significação e

localizado na materialidade que nos é presentificada pelo caractere de imprensa”.

Lacan retoma o termo na década de 70, revelando uma nova dimensão da linguagem

que tenta, então, destacar a partir da experiência clínica. A letra seria litoral entre saber

e gozo, posto que separa dois domínios que não têm absolutamente nada em comum,

nem mesmo uma relação recíproca. Não se trata de fazer fronteira entre os dois, nos

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

adverte ainda Lacan (1971/1986), pois a fronteira, ao separar dois territórios,

simbolizaria que eles são da mesma natureza. A letra escreve a radicalidade da diferença

de consistências entre saber, elucubração em torno da verdade, e gozo, desfrute do que

essa verdade tem de inacessível.

“A borda do furo no saber, que a psicanálise designa justamente como de abordagem

da letra, não seria o que ela desenha?” (LACAN, 1971/1986, p. 23). A letra seria uma

espécie de franja que avança entre as duas consistências de naturezas diversas,

desenhando ou escrevendo essa borda tão pouco precisa no ser falante. Lacan é

cuidadoso ao avançar e diz que tudo isso não impede o que ele disse do inconsciente

enquanto efeito de linguagem. A letra suporia sua estrutura como necessária e

suficiente. A questão é, antes, como o inconsciente comandaria esta função de letra.

Pensar, pois, a relação entre letra e inconsciente nos conduz inevitavelmente a discutir a

posição da letra em face do significante. E, quanto a esse aspecto, Lacan é enfático logo

de saída. A letra não se confunde com o significante. “A escritura, a letra, estão no

real, o significante, no simbólico” (LACAN, 1971/1986, p. 28). Além disso, não

podemos atribuir uma primariedade da letra em relação ao significante. Ela simbolizaria

efeitos de significantes, mas isso não exigiria que ela estivesse presente nesses mesmos

efeitos, nos quais o significante não serve senão de instrumento. Seria mais importante o

exame “disto que a partir da linguagem chama do litoral ao literal” (LACAN,

1971/1986, p. 23), disso que a letra, em síntese, escreve. E o que é esse literal senão a

letra enquanto redução mínima do sujeito, enquanto sua escrita?

Ora, escrita não é impressão. E letra não é significante ou Wahrnehmungszeichen, Wz,

traço inconsciente freudiano31, aqui considerado o que de mais próximo ao significante

poderíamos encontrar em Freud. Voando sobre a Sibéria, Lacan observa sulcamentos

(de significantes), e não o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens.

Exigido um desvio de rota de seu avião, ele observa o que faz sulco na paisagem. “O

31 Como vimos, Wz (Wahrnehmungszeichen) são os traços mnêmicos que se associam por simultaneidade e indicam uma primeira forma de registro. Unbewusstsein (Ub) é o segundo registro que sucede ao primeiro, referente às percepções que se associam por simultaneidade. Os traços de Ub “talvez correspondam a lembranças conceituais” (FREUD, 1896b/1976, p. 325) ainda inconscientes. Correspondem ao que Freud posteriormente irá estabelecer como Vorstellungsrepräsentanz (representante da representação). Segundo LIMA (1994), a questão do traço em Freud se apresenta a partir de três possibilidades diferentes de tradução. Zeichen corresponde à idéia de insígnia, indicação, e está ligada à percepção, a Vorstellung. Zug corresponde ao traço unário, primário, e sua conseqüência é a Bejahung primordial. E, por fim, ligado à memória e à permanência teríamos a Spur, que aparece como Ub.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

escoar é o único traço que aparece a operar” (LACAN, 1971/1986, p. 26). Toda a

elaboração de mapeamentos se faz como código sobre esses sulcos. A letra seria, então,

um remate daquilo que, no seminário sobre “A identificação” (1961-62), Lacan

distinguiu do traço primeiro e do que o apaga. “Eu o disse a propósito do traço unário: é pelo apagamento do traço que se designa o sujeito. Ele é marcado, pois, em dois tempos; eis o que distingue aquilo que é rasura, litura, lituraterra. Rasura de nenhum traço que seja anterior, eis o que faz terra do litoral. Litura pura é o literal. Produzir essa rasura é reproduzir esta metade de que subsiste o sujeito. [...] Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há rasura que vira literal” (LACAN, 1971/1986, p. 26-27).

Além da dimensão do sulco, Lacan também destaca a dimensão da rasura - rasura,

porém, de nenhum traço que lhe seja anterior. A idéia de rasura nos reporta ao ato de

reescrever, apagar para melhor escrever. Quando, entretanto, Lacan introduz a idéia de

uma rasura sobre o que não está lá, estira ao limite a noção de linguagem. É da

linguagem que o significante apanha “seja o que for” na rede de significantes e disso faz

escrita no exato momento em que esse elemento é promovido à função de referente

essencial. Donde podemos entender por que a letra não é primária, mas antes

conseqüência do advento significante, ao contrário do que se poderia supor. A letra se

destaca no exato momento em que cai como literalidade que vivifica o falasser.

“É isso que modifica o estatuto dos sujeitos. É por aí que ele se apóia num céu

constelado, e não apenas no traço unário, para sua identificação fundamental” (LACAN,

1971/1986, p. 31). O sulco aí produzido é receptáculo sempre pronto a acolher gozo. É

rota lavrada, por onde, a partir de então, o gozo escorre e pode se alojar. Enquanto fora

da cadeia significante, enquanto não reenvia à série significante e não produz

significação, a letra se faz referente do sistema significante de uma maneira singular

para cada ser vivente, escrevendo as vias de suas possibilidades de gozo. Na metáfora

naturalista de Lacan, a chuva da linguagem faz escrita de gozo, o que permite ler os

riachos está ligado a algo que vai além do efeito de chuva. O real, como dejeto, é aquilo

que é expulso do campo do simbólico, criando uma marca, um rastro, um sulco.

Eis o tripé que articula a noção de letra: litoral, sulco e rasura (MANDIL, 2003, p. 49).

Não repetível, não generalizável, a letra é um conceito que permite a Lacan sofisticar a

noção de real, sua importância para a clínica e o que ela tem de inaugural para cada

sujeito e para cada analista que a essa experiência se lançam. Fortalece a noção de que

há uma língua particular para cada sujeito que fala, lalíngua afetada por uma

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

significação pessoal a níveis inimagináveis (MILLER, 2003c). E orienta o método

psicanalítico a buscar na singularidade dos sujeitos atendidos esses sulcos por eles

lavrados.

E no que toca a psicose? Sobremaneira, ao que diz respeito às estabilizações psicóticas,

de que forma essas suversões lacanianas interferem e determinam nossa discussão?

Como criação, letra e lalíngua podem se articular e nos auxiliar a pensar os casos que

atendemos?

2.2.3 Escrita e psicose

A escrita é correntemente considerada uma possibilidade de estabilização, um modo de

suplência aos casos de psicose, ainda que seja uma solução raramente encontrada na

clínica. O estudo de Lacan sobre Joyce estimulou essa associação. O que, entretanto, a

clínica com a psicose na verdade testemunha é uma variedade muito grande de relações

entre a escrita e as soluções psicóticas.

Essa noção atravessa vicissitudes conseqüentes ao próprio avanço da teoria lacaniana

em seu conjunto. Segundo Sauvagnat (1999), Lacan trabalha a questão da escrita em

toda sua obra, havendo ao menos três momentos em que uma nova proposição é por ele

apresentada. A primeira é elaborada na década de 30, com seus estudos sobre a

“esquizografia” como escrita inspirada. A segunda proposta aparece na década de 60,

com a escrita a partir do traço unário, que teria que dar conta da inscrição do Nome-do-

Pai. E, por fim, na década de 70, assistiríamos à escrita que faz nó entre Real, Simbólico

e Imaginário, bem como ao que resiste a se escrever, à escrita de um impossível

remetido à relação sexual. Sigamos essa trajetória.

A. Anos 30: A psicopatologia e o elogio da escrita

Lacan, na década de 30, hesita entre uma concepção estereotipada da escrita na psicose

e outra na qual a escrita é exaltada em sua potência criativa e reveladora dos conflitos

típicos de sua época. No texto “Écrits inspirés: schizographie”, de 193132, publicado

originalmente nos Annales medico-psychologiques, tomo II, e posteriormente

incorporado à edição francesa de sua tese de doutoramento, Lacan (1932) comenta as

32 O texto foi originalmente escrito e apresentado em conjunto com J. Levi-Valensi e P. Migault, e se encontra acessível pela Internet em diferentes endereços eletrônicos, como no site do Groupe de Travail Lutecium <www.lutecium.org/Jacques_Lacan/transcription/schizographie.htm>. Ele não foi incluído na edição brasileira da tese de doutoramento de Lacan.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

práticas poéticas e epistolares de uma professora primária psicótica. Ele se inspira nos

trabalhos de lingüística pós-saussuriana de Pfersdorff e Henri Delacroix33 sobre o

mesmo caso. A razão do exame desse caso é a reticência da doença da qual se supõe que

os transtornos elementares se exprimiriam mais facilmente pela escrita. O termo

esquizografia é forjado do termo esquizofasia, que designa a existência de uma

dissociação. Nesse caso, a maioria dos escritos da paciente era absurdamente incoerente,

“contrastando com o caráter absolutamente normal de sua linguagem falada e a

integridade de suas funções intelectuais” (HULAK, 2006, p. 18).

A pesquisa de Lacan já se apresenta muito seletiva. Ele não se pergunta simplesmente

se a paciente é louca, mas sobre quais fundamentos repousa seu delírio polimorfo,

acrescentando que talvez os escritos ajudarão a resolver a questão.

Na discussão dos elementos psicopatológicos, Lacan destaca que a doente afirma ser-lhe

imposto o que ela exprime, não de uma maneira irresistível nem mesmo rigorosa, mas

sob um modo já formulado. É no sentido forte do termo uma inspiração, tanto mais

presente quanto mais ela esteja só (LACAN, 1932/1975). Duas convicções

contraditórias são acrescentadas. De um lado, ela é acompanhada de um estado de

astenia no qual seus escritos experimentam “verdades de ordem superior”

imediatamente compreensíveis pelo destinatário de suas cartas. E, de outro lado, uma

convicção negativa, a de que ela experimenta, quanto a ela própria, nada compreender

disto. Tudo isso acompanhado do sentimento de fazer evoluir a língua.

O conjunto, avalia Lacan, é idêntico à estrutura de todo delírio. Ela associa a uma

astenia passional, colorindo os estados de influência e de interpretação, uma formulação

minimal, reticente, do delírio, e um fundo paranóico. O fenômeno elementar aqui

valendo como resumo da personalidade e a escrita, como sua manifestação

empobrecida. O fenômeno elementar da ‘inspiração’ parece se tratar de uma forma

vazia, cuja expressão limite é a estereotipia, aos moldes das palavras intercambiáveis

das estrofes de uma canção. Longe de motivar a melodia, é a estereotipia que as

sustenta, e legitima no caso seu não-sentido (LACAN, 1932/1975). Esta vacuidade

formalista aparece em primeiro plano, enquanto a astenia passional lhe confere um

assentimento, diz Lacan, donde o fenômeno da ‘inspiração’ apresentar uma dimensão 33 PFERSDORFF. La schizophasie, les catégories du langage. Travaux de la clinique psych. de Strasbourg, 1927. Guilhem Teulié. La schizophasie. Ann. Médic. psych., février-mars 1931; PFERSDORFF. Contribution à l'étude des catégories du langage. L'interprétation "philologique", 1929; e DELACROIX. Le langage et la pensée, Alcan.

84

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

passional e outra intelectual simultaneamente.

Ainda que algumas fórmulas sejam felizes, o mais freqüente são as escórias da

consciência, as palavras silábicas, as sonoridades obsedantes, as “banalidades”, as

assonâncias, os “automatismos” diversos, enfim, o que Lacan sintetiza em uma palavra:

estereotipia. A idéia de déficit se destaca nessa leitura. “É quando um pensamento é

curto e pobre que o fenômeno automático o suplencia. Ele é sentido como exterior

porque suplenciando um déficit do pensamento. Ele é julgado como válido porque

evocado por uma emoção astênica” (LACAN, 1932/1975, p. 375).

O interessante é que, num curtíssimo espaço de tempo, Lacan (1932/1987) parece

passar dessa posição deficitária para seu contrário, positivando a escrita psicótica, que

nada parecerá limitar. Assim, os escritos de Aimée – estudados em seu doutoramento –

não mostrariam nenhuma estereotipia. Eles também foram utilizados como meio de

realização do diagnóstico, mas colocavam em evidência a riqueza afetiva da paciente.

“A escrita de certos psicóticos como criação autêntica parece, então, excluir o uso

bruto da repetição (estereotipia): é uma ‘nova sintaxe’ ” (SAUVAGNAT, 1999, p. 40).

Sua posição parece ficar ainda mais clara no ano seguinte, ao escrever “O problema do

estilo e a concepção psiquiátrica das formas paranóicas da experiência” (1933/1987)34.

Ali Lacan localiza os temas ideacionais e os atos significativos do delírio dos

paranóicos, bem como suas produções plásticas e poéticas sob três rubricas.

Primeiramente, destaca “a significação eminentemente humana desses símbolos”

(LACAN, 1933/1987, p. 379), utilizados pelos psicóticos, que seriam análogos às

criações míticas, assim como os sentimentos que os animam seriam análogos à

inspiração dos artistas. Sob um segundo aspecto estaria a repetição que, longe de

reenviar a uma forma vazia e deficitária, colocaria em jogo uma “identificação iterativa

do objeto”, caracterizando o delírio de uma fecundidade próxima à dos processos de

criação poética. Por fim, num terceiro ponto, ‘o mais notável’, destaca o valor de

realidade social desses delírios, situados, “com muita freqüência, num ponto nevrálgico

das tensões sociais da atualidade histórica” (LACAN, 1933/1987, p. 379). O conjunto

apresenta uma contribuição à civilização humana e ao problema do estilo, que este

resumiria de alguma maneira.

Um retorno ao contrário se apresenta aqui articulado na passagem da repetição do

34 O texto foi publicado originalmente no número 01 da revista surrealista Le Minotaure, em junho de 1933.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

mesmo – estigmatizada como estereotipia no primeiro caso – para a amplitude criativa

do processo psicótico, presente no caso Aimée. Fato é que nesse período o centro do

processo de criação está situado, para Lacan, na escrita dos paranóicos. Não percamos

esta assertiva de vista.

B. Anos 60: A escrita do Nome-do-Pai

Na década de 60, uma nova reversão se opera. É, ao contrário, o Nome-do-Pai que

resume sozinho o processo de escrita. A partir de seus trabalhos sobre a instância da

letra, Lacan tenta apreender o movimento do recalcamento originário. Ele coloca em

discussão a hipótese de W.M. Flinders Petrie, retomada por J. Février, a propósito da

escrita fenícia, pois considera que ela justifica sua, então, concepção de traço unário,

cuja falha deixaria o sujeito presa do significante no real. Como podemos ver na aula de

10/01/1962, do Seminário A Identificação (LACAN, 1961-62), a função da escrita aqui

converge sobre a função da nominação e se deixa identificar à aplicação do Nome-do-

Pai. Perguntando-se sobre o que é um nome, Lacan mostra que essa noção é mais

apropriada para designar o primordial do que é um sujeito que o termo identificação.

Também mostra que os nomes são heterônomos, na medida em que resultam de uma

nominação pelo Outro.

Ao discutir a contribuição de dois célebres pesquisadores britânicos ao tema, o filósofo

B. Russell e o egiptólogo Gardiner, Lacan critica a ambos. O primeiro, por ficar muito

focalizado no aspecto denotativo, e o secundo, por considerar os nomes puramente

fonéticos, ainda que localizasse no nome algo de não traduzível. Lacan assenta-se sobre

a teoria de Petrie e Février que demonstraram não poder o alfabeto fenício originário

simplesmente derivar de uma simplificação dos hieróglifos ou de um mecanismo

referencial, mas antes dever ter sido composto com a utilização de símbolos sem

nenhuma significação, utilizados inicialmente para classificar os objetos. As

significações seriam, então, apagadas para formar um conjunto de elementos

diferenciais.

Lacan considera, nessa lição, que o movimento originário da escrita consiste em impor

sobre a linguagem vocalizada uma bateria de traços de origem externa. Esta seria a

especificidade da escrita: a criação de um conjunto de elementos diferenciais impostos

sem nenhuma significação na linguagem humana, permitindo este ato, no retorno,

86

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

exprimir a estrutura fonética da linguagem. O fenômeno da escrita consistiria, nesse

caso, no apagamento do sentido e na aplicação de uma bateria de significantes – o que

Lacan chama de traço unário. Seria como uma espécie de realização de uma castração

‘positiva’, permitindo ao sujeito adquirir uma certa identificação pelo abandono de uma

relação direta com o objeto originário.

Nós teríamos, então, um curioso movimento no qual um tema que estava no início

ligado à subjetividade psicótica, e notadamente em alguns de seus modos de repetição,

se torna uma característica da ‘castração simbólica’ do neurótico, enquanto realização

pela escrita da metáfora do Nome-do-Pai. “O avanço teórico que ele provoca é o seguinte: o ‘Nome-do-Pai’ não é mais um significante ideal que estabiliza o universo para o sujeito, mas um ato, uma enunciação originária, uma “Urverdrängung” pela qual uma renúncia ao objeto alienante permite ao sujeito existir como separado, tanto que tudo o que o sujeito pode manifestar posteriormente não fará senão reenviar a esta “Urverdrängung” (SAUVAGNAT, 1999, p. 41).

O coração do sujeito, sua nominação primária, repousará assim sobre uma escrita que

não é para ser decifrada, em uma oposição notável ao inconsciente freudiano colocado

como sendo para ser decifrado. No texto “Posição do Inconsciente” (1964 [1960]/1998),

Lacan coloca a metáfora do Nome-do-Pai no princípio da separação, reenviando este

significante (Nome-do-Pai) ao que o promove, a saber, o objeto causa do desejo, o

objeto a. Ainda que fora do campo da psicose, a escrita comparece como cifra que faz

inscrição. E, mesmo que reenviando ao Nome-do-Pai, acena para o objeto a e aponta

para a operação subjetiva de separação do Outro. Forja, pois, para nós, elementos

cruciais à discussão da criação na psicose, no sentido daquilo que nela pode operar

enquanto escrita na estabilização.

C. Anos 70: A escrita como nó

A terceira consideração da escrita em Lacan responde, de alguma maneira, ao que se

apresenta como falha onde surgem os fenômenos elementares. É um tipo de solução

inversa à que, até então, se apresenta. As diferentes versões de enodamento possíveis

conduzem a considerar que nem um, o Nome-do-Pai, nem outro, o objeto causa do

desejo, são indispensáveis para colocar em jogo um nó que tenha consistência suficiente

para amarrar um sujeito, pois nem um nem outro dizem nada de tão sólido.

A partir de 1973, Lacan não se contenta mais em examinar a questão da escrita a partir

87

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

das “pequenas letras da ciência”. O próprio ideal de transmissão integral pelos matemas,

cuja escrita exige a língua para sua tradução, esbarra na ex-sistência, no que não se pode

dizer todo. O que é tomado como inconsistência do Outro – Σ(%) – conduz Lacan a

estabelecer as relações entre Imaginário (corpo), Real (pulsão) e Simbólico

(linguagem), orientadas pela discussão do que as amarra. É na aula de 15/05/73 do

Seminário 20, Mais, ainda (1972-73/1982), que ele explicará o uso do nó como escrita.

Ele tenta responder a uma questão colocada por Aristóteles, a de que o homem pensa

com sua alma, interrogando a relação entre a articulação da linguagem e o que faz

substância do pensamento, quer dizer, o gozo. A solução borromeana se assenta sobre

essa resposta: “eu te peço que recuses o que te ofereço, porque não é isso”. “Não é isso

quer dizer que, no desejo de todo pedido, na há senão a requerência do objeto a, do

objeto que viria satisfazer o gozo” (LACAN, 1972-73/1982, p. 171). É o que mostra a

dobra na roda de barbante ao evidenciar a reciprocidade entre sujeito e objeto a.

Cada um dos quatro verbos em jogo na frase (já discutida desde o Seminário XIX Ou

pire) relaciona-se dois a dois, comportando em seu centro o “não é isso”, equivalente ao

objeto a. A frase comporta, assim, uma relação de amarração que já evidencia a

estrutura borromeana, com a causa de desejo em seu ponto central. A escrita do nó

formaliza e bloqueia o mais-de-gozar, e não o objeto pulsional que na gramática binária

do sistema significante estava em jogo. Na passagem de dois para três, do sistema

binário para o nó borromeu, a perspectiva se desloca. A voz pulsional se encontra

encoberta. O nó se torna uma espécie de máscara que filtra a voz e oferece também um

olhar necessário para fazer barra à consistência do Outro (DE LOGIVIÈRE, 1987).

O objeto a comparece como aquilo que supõe de vazio um pedido e que só pela

metonímia pode evidenciar o desejo, que nenhum ser suporta. Para o ser falante, a causa

do desejo é, quanto à estrutura, estritamente equivalente à divisão do sujeito. Lacan

hipotetiza que o sujeito representaria para si objetos inanimados em função da ausência

da relação sexual. Seria de maneira a-sexuada que o objeto e o Outro se apresentariam

para o sujeito. Seria enquanto substitutos do Outro que os objetos seriam reclamados e

se fariam causa do desejo. “Um desejo sem outra substância que não a que se garante

pelos próprios nós” (LACAN, 1972-73/1982, p. 171).

O ponto central é o fato de a copulação ser excluída de seu espaço de representação.

Essa exclusão assumida vem realmente cobrir uma ausência central concernente ao

88

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Outro do gozo. O que está em jogo na escrita dos nós, para Lacan, é a tentativa de forjar

um substituto a este Outro faltoso, a partir dos nós que representam todos um. “Será

que isto esclarece para vocês sobre o interesse que há em se partir da rodinha de

barbante? A dita rodinha é certamente a mais eminente representação do Um, no

sentido em que ela encerra apenas um furo” (LACAN, 1972-73/1982, p. 172-73).

O furo coloca a questão do espaço e ensaia um novo estatuto para a escrita. Se o que

corta a linha é o ponto, e o ponto tem zero dimensão, a linha será definida como tendo

uma. Por seu turno, a linha corta a superfície, que se define de duas dimensões. E, como

a superfície corta o espaço, este terá três dimensões. Donde poderíamos extrair uma

primeira diferença da escrita, já que realizada no espaço tridimensional.

O espaço “lacaniano”, entretanto, rompe com o espaço euclidiano. Lacan busca as

relações de vizinhança, as continuidades, numa leitura do espaço que acolha a topologia

singular do sujeito do inconsciente. Ao cortar o espaço a linha faz um furo, separa um

interior de um exterior. Mas, em se tratando do sujeito do inconsciente, esse corte se

efetiva numa Banda de Moebius que instala uma relação de continuidade entre interior e

exterior. Daí podermos dizer que a linha será tomada como um toro, e será de toros que

se comporá, então, o nó, por mais simples que ele seja.

Assim, a escrita, definida como aquilo que deixa de traço a linguagem, tem a ver com o

nó borromeano. Lacan retoma sua definição da escrita como traço onde se lê um efeito

de linguagem, apresentada em “Lituraterra”. Aqui, porém, a linha desse traço mergulha

no espaço dimensionado pelo inconsciente. O que isso implica, senão que há algo que a

letra sozinha não alcança?

Avançando sobre as aporias internas a seu próprio discurso, Lacan se distancia cada vez

mais de um modelo explicativo característico das ciências para um modelo mostrativo,

típico da matemática35. Como ele mesmo afirma em “O aturdito” (LACAN, 1972/2003,

p. 479), “Minha topologia não é de uma substância que situe além do real aquilo que

motiva uma prática. Não é teoria. Mas ela deve dar conta de que haja cortes do

discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente”.

Lacan chega à redução topológica pela clínica e é nela que pretende aplicar sua escrita.

Seja pela via do mal-estar entre os sexos, explorado no Seminário 20, seja pela via da

psicose. Ao oferecer um exemplo que mostre para que serve a fileira de nós dobrados,

35 Cf. discussão sobre mostração na seção 3.1. desta tese.

89

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

recorre ao caso Schreber, com suas frases interrompidas. “Estas frases interrompidas,

que chamei mensagens de código, deixam em suspenso não sei que substância.

Percebe-se aí a exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que um de

seus elos, por faltar, libera todos os outros, ou seja, lhes retira o Um” (LACAN, 1972-

73/1982, p. 173). O corte de uma das rodelas, que deixaria as outras duas livres,

evidenciaria o desencadeamento psicótico com seus fenômenos elementares. Não

subsiste o furo central do nó. A articulação dos gozos sustentada pelo nó se desfaz e

deixa o gozo inarticulado para o sujeito. A substância do gozo, aqui efeito da amarração

borromeana, perde-se.

Também no seminário seguinte Les non-dupes errent (1973-74), Lacan faz alusão ao nó

na neurose, a partir do caso do pequeno Hans. Na sessão de 11/12/1973, ele retoma o

caso, considerando-o como um precursor de suas elaborações sobre os nós na medida

em que os circuitos, os trajetos geográficos, que a fobia de Hans exige, implicam

diferentes tentativas de enodamento que ora privilegiam o imaginário, ora o simbólico,

ora o real36, ainda que se tratando de um enlace dos três em cada caso. Ele opõe o nó

olímpico, que não se desfaz se uma das rodelas é cortada, ao nó borromeano, cujo

princípio é o de se desfazer justamente nesse caso. Ele considerava, nessa lição, que os

neuróticos funcionavam no nó olímpico.

Fig. 01 - Nó olímpico

36 Trata-se de três trajetos: 1. os pequenos circuitos que realiza, seja de metrô, seja de carroça, com sua mãe, na dependência de seu desejo, onde aparece a problemática fálica como fora do corpo, cujo resultado é seu sintoma fóbico com os cavalos; 2. o grande circuito, que realiza com seu pai, para o zoológico ou para a casa de sua avó, e que relança o desejo de Hans, estando centrado no simbólico; 3. o circuito especial, que constitui uma escapada que religa de maneira nova o zoológico e a casa da avó. Neste o pai é convocado como pai real, transgressor da lei, aparecendo a figura do bombeiro e o convite de Hans para que seu pai despose sua própria mãe (a avó de Hans). Nesse circuito, Anna, sua irmã, comparece como portadora do gozo feminino ou do gozo do Outro, cujo retorno atípico coloca em questão a restauração da figura paterna pelo viés da identificação. Trata-se da père-version que Hans constrói ao final de seu ‘tratamento’ e que, como bom neurótico, localiza o pai como exceção, na medida em que sustenta uma mulher como causa de seu desejo, enquanto Anna estará “sempre lá”, além da mãe em si mesma, encarnando o gozo suplementar feminino (SAUVAGNAT, 1999).

90

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 02 - Nó borromeano de três elementos

A escrita aqui é o que deve servir para fixar o objeto causa do desejo. Trata-se de cerzir

o objeto a. Na medida em que o sujeito se define em relação ao objeto, a questão que se

coloca é como ele vai fixar esse objeto que, no nó, se localiza no entrecruzamento dos

três registros.

Figura 03 – Triske com objeto a

Essa operação não somente permitirá o apagamento do objeto voz, interiorizado a partir

de então, como também vai fazer existir um sujeito a partir do bloqueio, da amarração

do objeto. Isso se faz a partir das três linhas (real, simbólico e imaginário) que

bloqueiam o objeto no nó. O sujeito é fundamentalmente algo que existe com o objeto

(mas não é o objeto total, nem permanente, é o objeto com que o sujeito vai se separar

do Outro). Esse objeto sustenta a não medida comum entre os sexos. O sujeito vai

existir a partir desse objeto que se separa do Outro. Aqui se trata de fabricar um objeto e

lhe conferir uma consistência. É o que Lacan aponta como erro em Joyce (LACAN,

1975-76/2005), e que discutiremos mais adiante. Ali, ao se entrecruzar Simbólico com

Real, o Imaginário resta solto e é o ego, ou a obra, de Joyce que virá fazer suplência ao

que se amarra mal no caso.

É a esse convite de Lacan para operarmos com essa escrita que, da substância do gozo,

91

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

faz amarração, faz nó, que respondemos com esta tese. Como pensar a escrita do nó nas

psicoses? Como fazer dela um uso clínico, retornando ao que lhe deu causa? Quando

Lacan apresenta o fenômeno das frases interrompidas em Schreber remetido à escrita do

nó, e não mais aos fenômenos de código e de mensagem, ele localiza ali o

desencadeamento provocado por uma desamarração, ou seja, pelo fato de que alguma

coisa, na escrita do sujeito, não será mais capaz de suplenciar a inexistência do gozo do

Outro. Quais as conseqüências que podemos extrair dessa escrita? Para avançarmos,

será necessária uma breve interpolação sobre a teoria dos gozos em Lacan a fim de que

possamos assinalar, nessa escrita, sua contribuição ao trabalho de estabilização

psicótico.

2.3 Gozo: da Satisfação à Topologia

Com Valas (2001, p. 07), lembramos que Lacan (1969-70/1992), no Seminário 17, O

Avesso da Psicanálise, desejava que o campo do gozo fosse chamado de campo

lacaniano. Lacan utilizou o termo, nos primeiros anos de seu ensino, tal qual Freud o

fazia com Lust, enquanto sinônimo de alegria, prazer, êxtase e volúpia. O caráter

excessivo do prazer, conotado ao júbilo mórbido ou ao horror, era tomado por Freud

pelo termo Genuss. Este não conceituou o gozo, ainda que tenha delimitado seu campo

pelo mais-além do princípio do prazer, regulador do aparelho psíquico.

Para Lacan, prazer e gozo se opõem. O gozo é um conceito que, com ele, ganhou

diferentes vicissitudes, assim como em Freud a teoria da pulsão e a libido. Alguns

autores formalizaram essa discussão no ensino lacaniano (MILLER, 2005; VALAS,

2001), que ganhou recentemente uma sistematização mais objetiva com J.-A. Miller

(2000). Para o autor, cujo esforço de tradução do texto lacaniano o conduz a uma

análise constante de sua obra, teríamos seis paradigmas do gozo em Lacan. Esses

paradigmas, longe de se sucederem cronologicamente, como numa espécie de evolução

teórico-conceitual, podem conviver, não sem conflitos, nos mesmos períodos de

transmissão.

Aqui nos interessa menos essa discussão do conceito ao longo da obra que acentuar as

relações entre topologia borromeana e gozo. Para esse fim, partiremos de uma

apresentação sucinta desses paradigmas, para nos concentrarmos na seguinte questão

clínica: como se apresenta, a partir da teoria borromeana, o tratamento do gozo? Lacan

92

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

teria introduzido alguma via de trabalho a partir daí? Como pensar essa via na clínica

com a psicose, a partir do trabalho de estabilização?

2.3.1 Os seis paradigmas do gozo em Lacan37

Para discutir os paradigmas, elegemos três aspectos:

1. a relação do gozo com os três registros;

2. a relação do gozo com a satisfação (e, portanto, com a libido e a pulsão);

3. e as aporias de cada paradigma, ou seja, seus pontos de impasse.

O primeiro paradigma, o da imaginarização do gozo, acentua a disjunção entre

significante e gozo, localiza a satisfação na liberação do sentido e apresenta tanto a

libido quanto o gozo num estatuto imaginário, não procedendo da linguagem ou da

palavra. O eixo imaginário é apresentado por Lacan como fazendo barreira ao eixo

simbólico, como obstáculo à elaboração simbólica de tal forma que “é quando a cadeia

simbólica se rompe que, a partir do imaginário, os objetos, os produtos, os efeitos de

gozo proliferam” (MILLER, 2000, p. 89). O equívoco desse paradigma é lógico, na

medida em que o Imaginário é colocado ao mesmo tempo como fora e como dentro do

alcance simbólico.

No segundo paradigma, o da significantização do gozo, o simbólico sobrepõe-se ao

imaginário. Vemos a consistência e a articulação simbólica do que é imaginário

aparecer, quanto ao gozo, na identificação das pulsões estruturadas em termos de

linguagem. Elas aqui são capazes de metonímia, de substituição e de combinação. O

matema da pulsão permite localizar o desejo pela via da demanda do ou ao Outro (∃<>

D), o que fortalece sua dimensão simbólica. Além disso, encontraríamos no fantasma (∃

<>∀) o ponto em que libido e simbólico se articulariam, sendo ele o ponto de estofo

entre os registros imaginário e simbólico. O falo concentraria as articulações

importantes desse paradigma, demarcando que a própria libido é inscrita no significante.

Lacan não responde qual seria a satisfação da pulsão, dado que ela é reduzida a uma

cadeia significante, o que faz com que ela seja sempre dita em termos simbólicos. O

gozo está repartido entre o desejo e o fantasma. “O significante anula o gozo e o restitui

sob a forma de desejo significado” (MILLER, 2000, p. 90). Seu impasse: o gozo seria

37 Nesse tópico, acompanhamos a lógica de Miller (2000) no artigo de mesmo título, recorrendo ao texto lacaniano na medida da necessidade, dado que não buscamos uma exploração do conceito, mas antes uma localização deste para alcançarmos sua proposição ao final do ensino lacaniano.

93

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

todo simbólico, quando, na verdade, o próprio objeto a veicula o que está fora da

possibilidade de representação.

No terceiro paradigma, teríamos uma ruptura em relação aos dois antecessores, que se

misturam na obra de Lacan. Seu ponto de virada teria sido o Seminário 7, A Ética da

Psicanálise (LACAN, 1959-60/1991), no qual encontramos o gozo como impossível. A

partir da discussão da Coisa freudiana – que não se trata de um termo simbólico, nem

tão pouco de uma instância imaginária –, Lacan localizaria a satisfação pulsional, a

Befriedigung, na ordem do real. Na verdade essas duas instâncias, simbólicas e

imaginárias, seriam construídas contra o gozo real. Como a Coisa está situada como

equivalente à anulação que constitui a castração, o gozo se encontra reduzido a um lugar

vazio, podendo, assim, ser equivalido ao sujeito barrado. Ele estaria fora do sistema,

sendo alcançado apenas pela transgressão. A disjunção entre significante e gozo

reaparece aqui, com a diferença de que o gozo é real. A oposição prazer-gozo é central,

e advém do fato de que a libido, enquanto Coisa, está fora da ordem significante-

significado; de um lado, o bem e o engodo, de outro, o mal e o real. O impasse está

colocado na medida em que o inconsciente não inclui esse gozo como fora da

simbolização. Disso ele não pode falar. “No nível do inconsciente o sujeito mente. E

essa mentira é sua maneira de dizer a verdade acerca disso” (LACAN, 1959-60/1991,

p. 94). O sintoma, nessa lógica, se estabelece sobre a barreira que separa significante e

gozo, desvelando a desarmonia entre gozo e sujeito. A saída desse impasse é a

formulação do objeto a, na medida em que a Coisa, como gozo maciço, não permite

nenhum laço com o Outro.

No quarto paradigma, o do gozo normal ou do gozo fragmentado, o projeto intentado no

segundo paradigma é retomado, mas se conclui de maneira diferente a partir da

introdução do objeto a. Miller localiza no Seminário 11, Os Quatro Conceitos

Fundamentas da Psicanálise (LACAN, 1964/1998), essa retomada do projeto

‘simbólico’ para o gozo. O gozo não é mais maciço, abissal, acessado pela transgressão

como no Seminário 7. Encontramos objetos pequeno a que se situam, ao contrário, em

pequenas cavidades e cujo acesso, ‘normalizado’, se faz pelo mecanismo da separação

(em relação à alienação)38. Da clivagem do significante e do gozo, vemos nascer uma 38 Como vimos, alienação e separação são, para Lacan, duas operações fundamentais na constituição do sujeito a partir do campo do Outro. A alienação diz respeito à “primeira operação essencial em que se funda o sujeito [...] Ela consiste nesse vel que [...] condena o sujeito a só aparecer nessa divisão, [...] de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise” (LACAN,

94

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

aliança entre eles. O gozo, então, não é mais um suplemento, mas parte de um sistema

de funcionamento significante, sendo-lhe conexo. A separação comporta um

funcionamento ‘normal’ da pulsão, que responde ao vazio resultante da identificação e

do recalque. A estrutura do sujeito aparece sobreposta à do gozo. A libido aqui não é

mais desejo significado, nem das Ding, mas órgão, objeto perdido e matriz de todos os

objetos perdidos. Eis aqui também a aporia desse paradigma: o objeto perdido é uma

perda independente do significante, uma perda natural, dissociada do sujeito

significante porque associada ao corpo vivo, sexuado. O gozo, portanto, é distribuído

sob a figura do objeto a, ainda que articulado como parte do sistema significante. É esse

o ponto no qual o segundo paradigma é retomado. A significantização do gozo é

reintroduzida pelo objeto a, que substitui a noção de significante de gozo. Sobretudo no

Congresso de Bonneval39, cujo texto foi posteriormente retomado, Lacan se esforça por

manter o gozo no registro significante-significado, sobretudo com a distinção do falo

em menos phi (-φ = significação) e grande phi (Ф = significante)40, sem deixar de

apontar que o gozo falta no Outro. Essa formalização também serve a uma outra forma

de escrever o que resta como gozo impossível, fora da simbolização, quando a libido é

retranscrita em termos de desejo (morto). Esse resto aparece, então, sob a forma

significante grande phi.

No paradigma do gozo discursivo, o quinto, saber e gozo, ou significante e gozo,

passam a ter uma relação primária, originária. O Seminário 17, O Avesso da

Psicanálise, aparece fundando uma ruptura com o que o antecede, deslocando o

fantasma em prol da repetição do gozo e estabelecendo, contra a autonomia do

simbólico, uma relação de causa e efeito entre significante e gozo, este causa e resto

daquele. O ser prévio ao funcionamento do sistema significante é um ser de gozo, donde

Lacan localizar no gozo o ponto de inserção do aparelho significante: “nada é mais

candente do que aquilo que, do discurso, faz referência ao gozo. O discurso toca nisso

sem cessar, posto que é dali que ele se origina” (LACAN, 1969-70/1992, p. 66). O

1964/1998, p. 199). Enquanto a alienação aparece como operação de reunião entre os campos do sujeito e do Outro, a separação se funda na interseção dos campos, que surge do recobrimento de duas faltas. A primeira diz respeito ao fato de que o sujeito não pode ser inteiramente representado no Outro, e a segunda, constituído o sujeito, refere-se ao que resta implicado tanto no sujeito quanto no Outro, sendo neste ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito (LACAN, 1964/1998, p. 207).39 Trata-se do texto ”Posição do Inconsciente” (LACAN, 1960[1964]/1998), apresentado em Bonneval em 1960 e retomado por Lacan em 1964.40 Sobre essa distinção, ver também Seminário 8, A transferência, Cap. XVII, p. 233-245 (LACAN, 1960-61/1992).

95

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

significante é aparelho de gozo, seja como mortificação, perda de gozo

significantizada41 (e não mais natural), seja como suplemento da perda de gozo, objeto a

como mais de gozar. Aqui não há transgressão, mas repetição significante, que implica

repetição de gozo, condicionada pela defasagem entre a perda e seu suplemento. O

impasse se coloca em relação ao final da análise. Pensar a relação entre sujeito e gozo –

orientação para o fim da análise – em termos de repetição, é diferente de pensá-la em

termos de fantasia. Atravessar a tela da fantasia implica uma variação da transgressão,

na direção da destituição do sujeito e da assunção do ser de gozo, esperando-se um

efeito de verdade. Sob a insígnia da repetição, um dos nomes do sintoma e do gozo,

temos uma constante que se prolonga, vemos o desenvolvimento de uma relação

temporal do sintoma com o gozo. A questão se coloca para o fim da análse nos

seguintes termos: “Trata-se de um basta na repetição ou de um novo uso dela?”

(MILLER, 2000, p. 100).

O gozo como mais de gozar, diferente do gozo como das Ding ou como objeto a,

amplifica a lista dos objetos a. Com efeito, uma divisão cada vez mais presente entre

corpo e gozo produz um corte entre libido e natureza. A relação de causa e efeito entre

gozo e significante, presente no paradigma anterior, é substituída pela idéia de relação,

de circularidade entre os termos nesse paradigma. O que já coloca os três registros em

relação.

Finalmente o sexto paradigma, localizado no Seminário 20, Mais, Ainda, leva a termo o

projeto iniciado no quinto e aponta uma revolução interna ao próprio pensamento

lacaniano. Trata-se de um paradigma orientado pela disjunção e, em sua radicalidade,

pela não-relação. Toma o gozo como fato e lalíngua como originária em relação à

linguagem. Sob a forma do gozo do blá-blá-blá, Lacan propõe uma aliança entre gozo,

palavra e lalíngua, oriunda da disjunção entre termos cruciais de sua teoria: significante

e significado, gozo e Outro, homem e mulher (a relação sexual não existe). O Outro, o

Nome-do-Pai e o falo, antes termos primordiais, tornam-se aqui conectores. Eles

passam a ter uma função de grampo de elementos disjuntos. A não-relação limita a idéia

de estrutura, assentada sobre a lógica da relação entre termos e lugares. Ao apontar essa

não-relação originária, até mesmo a estrutura aparece como suplemento, tentativa débil

de articular o inarticulável. Quanto ao gozo, ele aparece como gozo do corpo vivo,

41 O que Lacan chamou, recorrendo à termodinâmica, de entropia.

96

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

disjunto do Outro, por isso, gozo Uno. Ele aparece como gozo solitário do próprio

corpo, como gozo fálico e como gozo da palavra - feita para gozar e não exatamente

para comunicar.

Na medida em que implica um gozo disjunto do Outro, ele problematiza, pelo avesso, o

gozo do Outro, se é que ele exista... Enquanto o gozo do Um é real, o gozo do Outro

aparece como construção problemática, pois se trata do gozo sexual, do gozo de um

Outro corpo diferentemente sexuado. Em referência ao significante, o Outro é o Outro

do código, lugar do significante. Em relação ao gozo, o Outro é o Outro sexo. Se a

estrutura desnaturalizava o mundo, ela mesma era naturalizada, estava fora de questão.

Quando o Outro aparece como derivado, essa derivação recoloca o próprio

estruturalismo, pois inclui a fabricação da estrutura como problema. Eis a aporia deste

paradigma. “Seu limite aparece, aqui, no gozo sexual do Outro como ser sexuado,

porque existe, aí, uma relação voltada para a contingência, o encontro, uma relação

subtraída da necessidade” (MILLER, 2000, p. 104). Está, pois, aberto o lugar para a

invenção, para algo de novo que, se por um lado não nega a estrutura, por outro

examina as conseqüências de seus furos.

2.3.2 Um sétimo paradigma? O gozo topológico ou ex-sistente

Sabemos que Lacan irá dar continuidade a essa discussão sobre os gozos em seus

últimos seminários, avançando sobre a topologia borromeana. Posta a reviravolta

operada no Seminário 20, ele cada vez mais recorrerá aos nós para evidenciar a

determinação do real na clínica psicanalítica. O que teria feito com que Miller não

considerasse a inserção dos gozos na topologia borromeana como mais um paradigma?

Estaria esse paradigma submerso no sexto? No da não-relação? Não haveria mais

nenhum rompimento colocado para a teoria do gozos a partir do Seminário 20?

Nos diferentes verbetes de psicanálise (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 299-301;

CHEMAMA, 1995, p. 90-94; KAUFMANN, 1996, p. 221-224), encontramos sempre o

gozo discutido a partir da noção freudiana de pulsão, extraída de Freud. O trabalho de

Lacan daí decorrente é sempre apresentado em dois tempos, ancorados sobretudo no

Seminário 7 e no Seminário 20. Um primeiro tempo se organizaria pela via que articula

o gozo à idéia de transgressão e de prazer sexual no corpo, sendo ele um componente

estrutural do sujeito. E num segundo tempo, a ausência de um significante sexual,

97

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

expressa na fórmula ‘não há relação sexual’, conduziria Lacan, a partir das fórmulas da

sexuação, a estabelecer um gozo disjunto do Outro e a propor o gozo fálico no campo

masculino e o gozo dividido em gozo suplementar (Outro gozo) e gozo fálico no campo

feminino. Valas (2001), por seu turno, escreve um livro sobre as dimensões do gozo,

reunindo de maneira esquemática o estado da teoria de Lacan até o Seminário 20 de

maneira bastante clara, explicitando cada um de seus elementos.

Figura 04 – Esquema dos gozos em Jacques Lacan (VALAS, 2001, p. 36)

Ele define, a partir de Lacan, o gozo do Outro como gozo originário, o que está na

Coisa, apresentado como gozo do pai freudiano da horda primeva. Esse gozo só teria

sentido pela ação retroativa do significante (S1) que barra seu acesso ao sujeito. O gozo

fálico, por seu turno, seria o “gozo que resulta da sua codificação pelo significante e

assume a sua significação fálica no Édipo” (VALAS, 2001, p. 36). O objeto a

implicaria no resto de gozo que escapa ao processo de significantização, sendo por ele

produzido como um excedente, mais de gozo. Por fim, o gozo feminino seria

enigmático por excelência, na medida em que não seria tomado na linguagem.

De qualquer maneira, esses textos apontam para a topologia, mas não desenvolvem a

teoria dos gozos a partir desse referencial. Até mesmo Valas (2001) explica

sucintamente a figura 05 na qual Lacan dispõe os três gozos, cujo ponto de bloqueio é o

objeto a, dizendo que com ele Lacan avança na elaboração dos gozos, dando um passo

novo ao falar da deriva do gozo. Aí, para Valas, Lacan nos conduz do mito da pulsão ao

real do gozo. Kaufmann também “deduz que esse saber que não se sabe, que está no

98

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

real, pode, no entanto, resultar desse traço escrito e através disso ter acesso a uma

possibilidade de objetivação. Esse é o móbil que engaja Lacan na escrita topológica da

nodalidade” (KAUFMANN, 1996, p. 224). Encontramos novamente associada a escrita

do traço à topologia.

Bom, de que forma Lacan dá um tratamento aos gozos pela topologia? Veremos que,

dois seminários depois do Seminário Mais, Ainda, Lacan (1974-75) estabelecerá os

gozos a partir de suas relações tópicas entre os registros Real, Simbólico e Imaginário.

Localiza os gozos na ex-sistência de um registro em relação ao outro, no que equivaleria

a uma espécie de intersecção por fora, exatamente no ponto em que a tensão entre cada

dois registros provoca um mal-estar ao avançar um sobre o outro. E desenvolverá em

seguida, no seminário sobre Joyce (1975-76/2005), o impasse apresentado no Seminário

20: há gozo do Outro?

Ora, qual o destino clínico dessa questão? O que a topologia trouxe para a teorização do

gozo? Como toda essa discussão pode contribuir com a questão da estabilização na

psicose pela via da criação?

No Seminário XXI, Les non-dupes errent (1973-74), na aula de 12/03/74, Lacan retoma

a definição do corpo como substância gozante, mas a articula ao Real que, no fim das

contas, diz ele, não é senão isso, a história dos nós. Ele começa tratando os nós como

nós metafóricos, diferente do que postulará no seminário seguinte ao dizer que o nó é

real, e não um modelo ou uma representação. Tanto que os únicos que gozam desse real

são os matemáticos, ainda que o gozo faça irrupção no real para todos. A redução real

ao nó aparece como escrita e é o próprio nó borromeano que materializa esta referência

à escrita, como se vê na aula de 21/05/74: “O nó borromeano não é, na ocasião, senão

modo de escrita” (LACAN, 1973-74).

O nó como escrita incide sobre o gozo articulando uma maneira de conectar suas

diferentes manifestações no falasser. Como já falamos, elementos cruciais para se

pensar as estruturas clínicas na década de 50, como o Nome-do-Pai e o falo, servirão, na

década de 70, para articular soluções singulares que fogem a uma possível regra geral

de domesticação do gozo. Para podermos destacar essa mudança de perspectiva, será

necessário percorrer a noção de ex-sistência, discutir o estatuto topológico do gozo do

Outro, e tomar com precisão a noção de escrita a fim de alcançarmos a novidade clínica

quanto ao gozo introduzida por Lacan com a topologia borromeana.

99

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Logo na primeira aula do Seminário RSI (1974-75, aula de 10/12/74), Lacan nos

apresenta o desenho do nó borromeu com os gozos (gozo fálico, gozo do sentido e gozo

do Outro), os registros (Real, Simbólico e Imaginário) e as manifestações clínicas que

embaraçam os sujeitos (inibição, angústia e sintoma). Como se pode observar na figura

abaixo, os gozos se situam nas “interseções externas” entre cada dois registros.

Figura 05 – Nó borromeano detalhado

Temos que pensar neste desenho sobre uma superfície tridimensional, pois aqui ele se

apresenta aplainado. É no ponto em que um registro “fura” o outro, criando uma espécie

de argola, que o gozo se inscreve. É interessante esse exercício visual, pois ele desloca a

idéia de interseção para a de ex-sistência de um espaço entre dois registros. Ex-sistência

seria o efeito que um registro, furando o outro, provocaria ao criar um espaço ao mesmo

tempo fora e interno ao primeiro. Os gozos estariam assim localizados:(a) J.A (Jouissance de l’Autre) – Gozo do Outro – entre R e I;

(b) Sentido (Sens) – Gozo do sentido – entre I e S;

(c) Jφ (Jouissance phalique) – Gozo fálico – entre S e R.

Lacan propõe, na aula de 17/12/74, que “a ex-sistência, como tal, define-se, suporta-se

disso que em cada um dos termos R.S.I. faz furo” (LACAN, 1974-75). Ela seria o ponto

exterior ao mais central. O termo, Lacan o extrai da língua latina vulgar, língua-núcleo

de onde saíram por diferenciação as línguas românicas, problematizando-o a partir da

filosofia aristotélica e sua proposta de universalidade. Nesse sentido, a idéia de que o

que se diz de tudo pode igualmente se aplicar a qualquer um é criticada. Para Lacan, o

“ex” gira em torno da consistência, faz intervalo, permitindo maneiras singulares de se

atar o nó borromeano que não são generalizáveis. Com isso, a idéia de universalidade

100

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

encampa apenas a distribuição teórica dos gozos, que se fará efetivamente na

singularidade de cada amarração subjetiva.

Figura 06 – Representações da consistência, da ex-sistência e do buraco

Na figura 06 acima, vemos a consistência, o buraco ou furo e a ex-sistência na lógica

topológica que nos permite compreender não se tratar de uma interseção de conjuntos

com elementos em comum apenas. Essa lógica fica ainda mais clara quando Lacan

associa o Imaginário à consistência, ao que dá estofo, corpo, à experiência humana; o

Simbólico, ao furo, ao que faz furo pela linguagem; e o Real, à ex-sistência, ao que resta

fora da apreensão simbólica ainda que mantendo com ela uma relação de quase-

exclusão, como retratado na mesma figura, acima apresentada em três dimensões. “É que se a ex-sistência se define por relação a uma certa consistência, se a ex-sistência não é, no final das contas, senão esse fora que não é um não-dentro, se essa ex-sistência é, de certa maneira, esse em volta do que se evapora uma substância [...] nem por isso a noção de uma falha, a noção de um furo, mesmo em algo tão extenuado quanto a existência, deixa de manter seu sentido. Pois se eu lhes disse haver do Simbólico um recalcado, há também no Real algo que faz furo, há também no Imaginário, Freud se deu bem conta, e foi por isso que burilou tudo que há de pulsões no corpo como estando centradas em torno da passagem de um orifício a outro” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/75).

A ex-sistência, esse fora que não é um não-dentro, articula os três registros da

subjetividade humana pela via dos gozos. Lacan retoma, portanto, a pulsão freudiana e

suas zonas erógenas, e ensaia uma topologia do gozo que inclui o corpo, mas que não

perde de vista que também este se inscreve nos três registros, submetido à dialética da

pulsão de vida (Eros) e de morte (Tanatos). A vida seria o furo do real, a morte, o furo

do simbólico e o corpo, o furo do imaginário. Dialética aqui complexificada por não

propor nenhuma síntese... Assim, as passagens de um orifício ao outro implicam os

101

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

órgãos do corpo, mas também a linguagem como órgão e aquilo que não se alcança,

nem por um (corpo), nem pelo outro (significante). Ponto obscuro a que Lacan retornará

no seminário seguinte sobre Joyce.

Nesse sentido, uma primeira questão é colocada. Será que poderíamos falar de relação

entre os registros no caso da ex-sistência? Seria sobre o mesmo paradigma da não-

relação, inaugurada no Seminário 20, que estaríamos a caminhar? Qual a qualidade da

relação orientada pela ex-sistência?

Lacan nos propõe que o que é da ex-sistência é metaforizado pelo gozo fálico. E como

ele apresenta, então, o gozo fálico? Em sua proposição, o gozo fálico encontra um topos

no nó, entre Simbólico e Real, naquilo em que ele está em relação com o que no Real

ex-siste, ou seja, o falo. O gozo fálico implica, portanto, no furo operado pelo Simbólico

no campo do Real, donde ele metaforizar a ex-sistência.

Quanto ao gozo do sentido, gozo do blá-blá-blá, ele implica nesse mais além da função

significante. Mais do que para comunicar, a palavra faz gozar. Quando do Imaginário e

do Simbólico o cruzamento se produz, nesses dois pontos, há o sentido, diz Lacan na

aula de 14/01/75. Ele distingue a falação da função de nomeação, que também é

produzida pelo uso da palavra. Quando a palração se ata a algo do Real, teríamos a

nomeação42. Nomear aqui não corresponde ao nominalismo que a filosofia platônica

poderia sugerir com o eidos, terceiro termo que Platão convoca para a nomeação das

coisas. Com a proposição lacaniana a idéia faz parte da consistência do real.

Por fim, e sempre enigmático, o gozo do Outro aqui se situa no ponto mais intrigante

que poderíamos conceber, entre Real e Imaginário. Ora, como pensar um gozo do corpo

do Outro, Outro sexo, se a relação sexual não existe? Esse gozo, não atravessado pelo

Simbólico, estaria completamente fora da linguagem? Mas o Outro é o simbólico por

excelência! Além disso, se o Outro é uma invenção, um anteparo estrutural que o sujeito

inventa para lidar com o indizível de seu mundo, gozar dele não implicaria também num

gozo solitário? Essa é a aporia do sexto paradigma, seu ponto de impasse, como vimos.

Os gozos são disjuntos do Outro, mas há o gozo do Outro (sexo). Entretanto, o Outro é

o que criamos para garantir a própria estrutura que o põe em marcha. O Outro, a rigor,

não existe, assim como não existe Outro do Outro, garantia última que somente a

metalinguagem resguardaria. Assim, poderíamos dizer que o gozo do Outro não existe,

42 Cf. discussão sobre a nomeação na seção 2.4.1 desta tese.

102

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

senão enquanto gozo disjunto do próprio Outro... Confuso? Acompanhemos a lógica

lacaniana.

No Seminário RSI, Lacan, ao precisar a morte como furo do simbólico, enuncia o que

ela implica, a saber, que enquanto algo é Urverdrängt do simbólico, ou seja, enquanto

algo é primariamente recalcado, haverá sempre uma dimensão a que jamais daremos

sentido. Lacan brinca com essa dimensão dizendo que Édipo teria laiosado, caso tivesse

tido o tempo necessário para saber, ou seja, o tempo de fazer uma análise! Nesse

ínterim, no qual vagou pelas estradas fugindo do destino de matar seu pai43, se estivesse

em análise, poderia ter dado a ele uma outra versão e evitado o destino que cumpriu ao

tentar dele se afastar. O indizível ou o impossível consiste nessa verdade subjetiva

inacessível pela operação do recalque primordial que, na neurose, impulsiona o sujeito à

repetição em torno desse vazio. A análise, longe de tentar chegar a essa suposta

“verdade última”, visaria antes que o sujeito pudesse dar a ela uma nova versão,

desatando uma forma de amarração dos gozos, e reatando-a de outra maneira. É por isso

que Lacan brinca que Édipo, em análise, poderia laiosar, ou seja, encontrar um outro

destino para si com uma nova versão do pai.

Em termos topológicos, o sujeito pode fabricar, com cortes, suturas e remendos, novas

articulações entre os três registros, reescrevendo sua forma de gozo. Se o nó

borromeano não é senão modo de escrita, o que ele escreve é a articulação dos três

registros que instala modalidades de gozo para o falasser. A ex-sistência, essa posição

de fazer furo de dentro, instalando um fora, que não é não-dentro, fala das pregas que

orientam a repetição. Há letra que faz escrita e vivifica o corpo. Mas todo o trabalho

analítico se faz pela via da palavra, pela articulação que contempla o simbólico, no que

ele tem de real. O que escapa à simbolização, e como suplemento de gozo retorna no

campo do Outro, situa-se entre real e imaginário. Como escrever esse gozo? A escrita

do gozo do Outro quanto ao que nela ex-siste é o ponto de embaraço.

O Outro que Freud nos apresenta com o Édipo só existiria se dito. Toda essa Outra Cena

à qual Édipo se encontra remetido é fabricada no interior mesmo da trama que o

envolve em seu destino trágico. Ela não existe fora dele. “Mas é absolutamente

43 Como se sabe, Édipo foge de Corinto, reino em que vivia como filho natural de Pôlibo e de Mérope, ao saber, no oráculo de Delfos, da profecia de que mataria seu pai e casaria com sua mãe. O que ele não sabia, entretanto, era que fora adotado pelo casal real infértil, e que seus verdadeiros pais eram Laio (que mata na estrada) e Jocasta (com quem, de fato, se casa e tem filhos). Cf. o mito de Édipo na obra original de Sófocles (2001).

103

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

impossível dizer inteiramente esse Todo-Outro. Há uma Urverdrängt, um inconsciente

irredutível [...] o que não só se define como impossível, como introduz a categoria do

impossível”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 17/12/74. É pela linguagem que se

escreve essa relação de ex-sistência? Vimos que, com a noção de lalíngua, Lacan

apontou para uma dimensão real da linguagem que abre uma nova via de escrita. Será

que podemos pensar na articulação do gozo do Outro por essa perspectiva?

A radicalidade da inexistência do Outro do Outro é levada às últimas conseqüências por

Lacan. Desde o texto “Subversão do sujeito...” (1960/1998), Lacan já assinalava o

significante de uma falta no Outro pelo matema S(%), quando o Outro, enquanto

tesouro dos significantes, é chamado a responder em termos de pulsão. Vejam: “a falta

de que se trata é, com efeito, aquilo que já formulamos: que não há Outro do Outro”.

Ele é pensado em termos significantes como “aquele para o qual todos os outros

significantes representam o sujeito” (LACAN, 1960/1998, p. 833).

Tanto que, cerca de quinze anos depois, ele nos relembra que, se o Simbólico se

distingue do Imaginário (consistência) e do Real (ex-sistência) por ser furo, o

verdadeiro furo estaria na ex-sistência topologicamente posicionada em relação ao gozo

do Outro. “No lugar do Outro do Outro não há nenhuma ordem de existência”

(LACAN, 1975-76/2005, p. 134).

Parece-nos ser pelo que excede a linguagem que encontramos a chave para explicar o

gozo do Outro enquanto Outro corpo, ‘o Outro do outro sexo’. Assim como o que dá

consistência ao corpo (imaginário) é o gozo fálico que lhe ex-siste, é precisamente o

fato de não haver Outro do Outro que confere consistência ao simbólico. A inexistência

do Outro do Outro, evidenciada ao longo do ensino do Lacan, coloca um impasse para o

campo do simbólico que Lacan responde com a introdução de lalíngua. Na figura 05,

acima apresentada, Lacan não escreve o Outro do Outro na ex-sistência do simbólico,

ele sabe que este não está lá para garantir esse registro. Este campo aparece vazio,

revejam a reprodução da figura. Será que poderíamos, então, conceber que ali estaria o

Outro do Outro? Ali onde, na figura 05, o espaço tracejado entre R e I está vazio?

Ao elencar os textos aos quais Lacan havia dado um estatuto topológico, Soury (1988b,

texte 100) localiza duas incompletudes que são mostradas nos quadros e desenhos do

psicanalista. Uma se refere exatamente a esse campo. Qual é o terceiro termo ex-sistente

ao nó, aquele que completaria o ternário dos quais os outros dois elementos são

104

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“inconsciente” e “falo”? Perguntado de outra maneira: o falo é ex-sistente ao gozo

fálico; o inconsciente é ex-sistente ao gozo do sentido, o que desempenha o mesmo

papel em relação ao gozo do Outro? Seria o conjunto vazio que correponde ao Outro do

Outro?

Lacan irá avançar sobre esta questão somente um ano depois, no Seminário XXIII, sobre

Joyce, num ponto extremamente complexo e importante para nossa pesquisa. Podemos

talvez dizer que a radicalidade do aforismo “o Outro não existe” conduz Lacan a um

impasse clínico fundamental resolvido apenas pela proposição do sinthome, pelo nó de

quatro. Qual seria esse impasse?

Há algo que a palavra não alcança. Ora, a palavra é, desde a origem da psicanálise, o

grande instrumento de trabalho do psicanalista, o veículo de acesso ao inconsciente.

Problematizar o alcance da palavra redunda, inevitavelmente, na problematização do

final da análise, dos alcances a que uma psicanálise pode conduzir. Freud já havia

esbarrado nesse mesmo impasse, como testemunha em 1937, também no final de sua

obra. Ele se pergunta, em “Análise Terminável e Interminável”, se seria possível uma

análise avançar a tal ponto que: “se o analista exerceu uma influência de tão grande

conseqüência sobre o paciente, não se pode esperar que nenhuma mudança ulterior se

realize neste, caso sua análise seja continuada” (FREUD, 1937/1976, p. 251). Como se

fosse possível chegar a um nível de ‘normalidade psíquica absoluta’, de estabilidade,

como se se alcançasse êxito em solucionar todos os recalques do paciente e em

preencher todas as lacunas em sua lembrança.

Ora, sabemos que Freud irá concluir exatamente pelo contrário dessa assertiva44 ao

apontar que há uma dimensão irredutível na análise, o encontro com a castração. Como

ele mesmo revela, em nenhum ponto de nosso trabalho analítico se sofre mais da

sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão e da

suspeita de que estivemos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos trabalhando

com o sujeito o encontro com a castração. Seja “tentando persuadir a mulher a

abandonar seu desejo de um pênis45, com fundamento de que é irrealizável, ou quando 44 A resposta direta do texto freudiano ao que seria o final de análise é a de que “a missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do eu; com isso, ela se desincumbiu de sua tarefa” (FREUD, 1937/1976, p. 284). Ela aponta aqui para um certo ideal que desconsidera a dimensão do impossível, que retornará no próprio texto sob a perspectiva da castração colocada ao final de seu argumento.45 “O gozo peniano advém à vista do Imaginário, quer dizer do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. Por outro lado, o gozo fálico se situa na conjunção do Simbólico com o

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com outros

homens nem sempre significa castração” (FREUD, 1976/1937, p. 286). Ora, aquilo que

ficou conhecido entre os psicanalistas como o encontro com o rochedo da castração diz

respeito exatamente ao que não se escreve da relação sexual, mais do que ao gozo

fálico. É da dimensão real de uma análise e de seu destino que Freud parece estar

falando. Parece-nos ser exatamente esse o impasse que conduz Lacan a uma resposta

topológica ao irredutível, ao real que, no Seminário 23, aparece como gozo do Outro.

Seja na neurose, seja na psicose, o tratamento desse irredutível é central. Podemos

pensar que na neurose, o enxugamento produzido pelo simbólico em relação ao

imaginário e ao real, deixará um resto de real intocado. Esse resto é o que podemos

equivaler ao que Lacan chamará de sinthoma, grafando de maneira diferente essa

dimensão do sintoma que resta como osso, esqueleto do falasser. Ao sinthoma, seja pelo

trabalho com o delírio, seja pela articulação com o fantasma, o sujeito deverá dar um

destino, responsabilizar-se por seu uso. Lacan conferiu a essa dimensão do falasser um

estatuto topológico estratégico, como veremos. É ele que amarra borromeanamente os

três registros que se encontram soltos entre si, sendo ele o quarto elemento do nó

borromeano de quatro. É um elemento estratégico pois não corresponde a uma ordem

prévia, como o Nome-do-Pai respondia ao simbólico. Ele se inventa do que, na

singularidade de cada sujeito, o constitui como radicalmente único. Poderíamos aqui

pensar na letra como suporte dessa escrita do sinthoma? Se o pensamos, uma dimensão

se esclarece para nossa pesquisa, qual seja, a do estatuto do que, na criação psicótica,

pode escrever uma estabilização. Nem toda solução que envolva a criação na psicose

conduzirá a uma estabilização, nem toda estabilização terá efeito de suplência, e nem

toda suplência operará como sinthoma, salvo pelo uso da letra que o psicótico fizer

escrever (ou não) um enodamento. Podemos apostar nesse desdobramento da hipótese

da tese? Veremos...

Freud via a permanência de um resto sintomático indecifrável pela psicanálise

constituir-se em obstáculo à cura – o rochedo da castração. Lacan, por seu lado,

considera o sinthoma – o sintoma em sua posição residual ao final da análise – como a

marca do sujeito, seu traço próprio, sua singularidade, algo de inegociável, o que não

Real.[...] Tem o poder de reunir a palavra e o que nela é um certo gozo, aquele dito do falo, que é experimentado como parasitário” (LACAN, 1975-76/2005, p. 56). Ainda sobre pênis, falo e gozo fálico, ver discussão no cap. XVII, do Seminário 8, A transferência (LACAN, 1960-61/1992), que atenta para a diferença entre o φ (falo imaginário) e o Ф (significante fálico).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

cessa de escrever-se. Algo em relação a que o sujeito se responsabiliza. A

irredutibilidade do sinthoma diria respeito a um ponto inabalável, impermeável à

interpretação, pois se situaria numa exterioridade em relação ao discurso por envolver

elementos retirados do corpo; permaneceria isolado da cadeia significante, ao mesmo

tempo em que estabelece com esta uma relação de exterioridade. É difícil não sustentar

a aproximação entre letra e sinthoma...

Na terceira lição do Séminaire Joyce, le sinthome, que ganhou o título “Do nó como

suporte do sujeito”, Lacan se pergunta pelo que sustenta o sujeito, propondo a

necessidade de um quarto elemento que ate o nó borromeano. É também em Freud que

Lacan se depara com a incidência desse quarto elemento. Freud o inventou como

‘realidade psíquica’ para explicar a relação do sujeito com a realidade. Lacan localiza

ali o uso do Complexo de Édipo pelo neurótico como ponto de ancoragem, de fixação

de uma forma de gozo. “Parece com efeito que o mínimo que nós podemos esperar da

cadeia borromeana é esta relação de um [sinthoma] aos outros 3 [RSI]” (LACAN,

1975-76/2005, p. 51). O nó de três elementos se mostra duro, de difícil manipulação,

posto que traz apenas uma possibilidade de enodamento. O nó de quatro, ao contrário,

ao deixar indefinida uma correspondência ao que seria o sinthoma para cada sujeito,

deixa aberta para cada um, no limite de sua história, a possibilidade de sua invenção de

um lado, e de um arranjo entre os três registros de outro.

Para mostrar a necessidade do quarto elemento como o que faz a costura no sujeito dos

registros, Lacan apresenta uma cadeia aberta do nó de três, justamente no ponto em que

o gozo do Outro incidiria. Os três suportes que Lacan chama de subjetivos tomarão

apoio no quarto, o sinthoma. Entendemos que ali ele intenta evidenciar que o tratamento

dado ao gozo do Outro implica na escrita do sujeito. O gozo do Outro está para todos

colocado como uma questão a ser trabalhada.

Figura 07 - Nó de trevo aberto

107

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

O gozo do Outro, ou melhor, do Outro do Outro, se não existe, não poder ser figurado.

Mesmo o gozo do Outro, ao ser representado entre real e imaginário, aponta para o que

se situaria fora da conjuntura simbólica, poderíamos assim entender. Assim, a

irrepresentatividade do gozo do Outro do Outro ganha uma localização problemática. E

é o próprio Lacan quem nos apresenta esse impasse, felizmente sem nos deixar sem

solução.

“Se nós pensamos que não há Outro do Outro, ao menos gozo deste Outro do Outro, é bem preciso que façamos em qualquer parte a sutura entre este simbólico que se estende ali só e este imaginário que está aqui. É uma emenda entre imaginário e saber inconsciente. Tudo isso para obter um sentido, o que é o objeto da resposta do analista ao exposto, pelo analisante, ao longo de seu sintoma. Quando nós fazemos esta emenda, nós ali fazemos, na mesma tacada, uma outra, precisamente entre o que é simbólico e o real. Quer dizer que, por algum lado, nós ensinamos ao analisante a emendar, a fazer emenda entre seu sinthoma e o real parasita do gozo. O que é característico de nossa operação torna esse gozo possível. É a mesma coisa que isto que eu escrevera j’ouïs sens46. É a mesma coisa que ouvir um sentido” (LACAN, 1975-76/2005, p. 73).

A indicação é clara: apostar no trabalho entre real e simbólico, pois será por essa via

que, por efeito de retorno, imaginário e inconsciente poderão encontrar uma forma de se

enlaçarem, ficando os três registros, então, enodados pelo quarto elemento

sinthomático, criando a condição de um Outro gozo possível. A análise seria a via pela

qual, através de suturas e emendas, o sujeito encontraria esse j’ouïs sens (sentido-gozo),

que aqui implica “saber qual é o nó e de bem o atar graças a um artifício” (LACAN,

1975-76/2005, p. 73).

Se observarmos bem o nó borromeu, dois registros estão sempre superpostos um em

relação ao outro, ou seja, soltos. Somente a passagem de um terceiro por cima e por

baixo sucessivamente desses dois, fazendo neles furo, produz o efeito borromeano que

conhecemos como: desatando-se qualquer um deles, os outros também cairão livres. O

nó borromeu, para Lacan, é a melhor topologia para tratar do furo. Esta, de saída, indica

como aquilo que não está atado dois a dois pode fazer nó. Este só se suporta no seu furo

fundamental, constituído pelo simbólico e equivalente em Lacan à interdição do incesto

enquanto elemento estrutural. “É no furo do simbólico que constitui o interdito. É preciso o simbólico para que apareça, individualizado no nó, essa coisa que eu não chamo tanto de complexo de Édipo, não é tão complexo assim, chamo isso de o Nome do Pai. O que só quer dizer o pai enquanto Nome, não quer dizer nada de início, não só o pai como nome mas o pai como nomeador” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975).

Para Lacan, o sentido vai tão longe no equívoco quanto se possa desejar para o discurso

46 Lacan aqui brinca com a homofonia entre “eu ouço sentido” e “gozo”, possível em francês.

108

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

analítico. E esse equívoco alcança a função de sentido-gozo operada pelo Pai enquanto

nomeador, permitindo ao sujeito fazer dele uma versão que oriente seu gozar. Nesse

sentido, o Pai opera aqui como esse elemento suplementar que nomeia uma forma de

gozo para cada sujeito, no ponto em que este faz do Pai sua versão. Quando Lacan diz o

Nome do Pai, “isso quer dizer que pode haver aí, como no nó borromeano, um número

indefinido. É esse o ponto vivo. É que esses números indefinidos, estando atados, tudo

repousa sobre um, enquanto furo, ele comunica sua consistência a todos os outros”

(LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Se o ponto de partida para um nó é a não-

relação sexual como furo, já temos três, e não somente dois, elementos; e sendo três, seu

efeito real de amarração já é um quarto. Em outras palavras, se dois a dois os registros

se encontram livres no nó – basta observar a figura abaixo –, o fato de o terceiro fazer

nó desses dois já é um efeito real, mais-um, sobre os elementos originários. O efeito real

de amarração que se obtém é, em si mesmo, um quarto elemento. E ele é o Pai, ou a

versão de Pai, na perspectiva acima exposta.

Passar do nó de três para o de quatro foi apenas uma conseqüência necessária na

teorização lacaniana. Ele isolou esse efeito real, traçou-o na figura de maneira

borromeana como quarto elemento, e dispôs os três registros soltos e sobrepostos uns

em relação aos outros, evidenciando a função de amarração que o Pai pode ter enquanto

sinthoma. Observe a passagem realizada comparando as duas figuras abaixo.

Figura 02 – Nó borromeano de três elementos

Aqui os aros estão entrecruzados dois a dois, ficando soltos dois a dois. Esse efeito real

de amarração, Lacan isola como quarto elemento abaixo, deixando todos os aros livres

uns em relação aos outros.

109

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 08 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Simbólico (Σ) (LACAN, 1975-76/2005, p. 20)

No nó de três, dois dos registros não ultrapassam o furo e não formam cadeia. Da

mesma forma, com dois entrecruzados, o furo está entre os dois, não sendo também

ultrapassado por eles. E Lacan avança, não é só o simbólico que tem o privilégio desses

Nomes-do-Pai, não está obrigatoriamente conjunta a nomeação no furo do Simbólico.

Afinal, no nó de quatro, o que faz o furo aparecer é o sinthoma...

Sinthoma, Nome do Pai, Pai enquanto nomeação, suplemento, quarto elemento, estamos

diante de toda uma teorização de Lacan que exige nos aproximarmos mais da topologia.

E, para entrar nesse universo complexo, o Pai, ou os Nomes-do-Pai, nos parece uma

porta essencial de ser atravessada. Qual o deslocamento operado no ensino e assinalado

por Lacan entre o pai como nome e o pai como nomeador? Se são vários os Nomes-do-

Pai, como fica a questão das soluções subjetivas que a ele recorrem, como na metáfora

paterna dos anos 50? Se aqui o pai é elemento mais-um, suplementar à amarração do nó,

ela poderia prescindir dele? De que forma pai e suplência, ou pai e estabilização,

aparecem no ensino lacaniano? Questões, enfim, que exigem seu atravessamento antes

de adentrarmos o real da topologia e sua incidência nas estabilizações psicóticas.

2.4 Suplência e Pai

Aqui entramos numa discussão fundamental desta pesquisa: o conceito de suplência.

Sabemos que Freud não o utiliza enquanto conceito que remete às soluções subjetivas,

como Lacan o faz. Ele estuda os modos de defesa ao impasse colocado pela castração na

neurose, a partir da operação do recalque e seu retorno, do qual o sujeito se defende com

a conversão, na histeria, ou com o deslocamento, na neurose obsessiva; na perversão, a

defesa implica em desmentir a castração materna, substituindo a ausência fálica pelo

objeto fetiche; e, na psicose, como vimos, a defesa é tão radical que exclui a própria

110

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

representação simbólica, como se a experiência jamais tivesse existido, o que torna o

significante real. Estas seriam as soluções freudianas. E as estabilizações, após

desencadeada uma psicose? Parece-nos que elas viriam suplenciar o que rateia nas

soluções subjetivas.

Na discussão do caso Schreber, Lacan aponta, com Freud, uma reparação metafórica

através do delírio na psicose, que faria às vezes da metáfora paterna que não se realizou,

favorecendo a construção de uma solução assintótica sob a insígnia do “ser a mulher de

Deus”, como vimos. Esta seria uma primeira versão de uma operação de reparação,

ainda que Lacan não a tenha tratado, em momento algum, como suplência. Ele fala de

uma operação que faria às vezes do processo metafórico operado pelo pai. A rigor, não

se trata de um complemento, nem de um suplemento, mas de um processo metafórico

substitutivo que sutura o que era, à época, tomado como déficit na psicose, a saber, a

foraclusão do Nome-do-Pai.

Lacan introduzirá a noção de suplência no campo da leitura das soluções subjetivas ao

se colocar como questão para o Seminário RSI, na aula de 11/02/1975, se, quanto ao

atamento do Imaginário, do Simbólico e do Real, seria preciso uma ação suplementar,

de um toro a mais, “aquele cuja consistência seria de referir-se à função dita do Pai”

(LACAN, 1974-75). Donde a suplência não poder ser pensada senão articulada a esse

outro operador, o pai. Acabamos de ver que ele se pergunta se a conjunção dos três

registros só se manteria pelos Nomes do Pai. E também se a dissociação dos três

registros seria tal que só o Nome-do-Pai faria o nó borromeano e manteria tudo atado

pelo simbólico. A função do Pai e a suplência são, portanto, associadas de maneira

íntima na topologia borromeana, na medida em que dizem da invenção de um quarto

termo que dá estabilidade e operacionaliza a relação com a realidade, o sinthoma. “É

difícil não guardar um laço minimal entre sinthoma e Nome-do-Pai mas à condição de

destacar o Nome-do-Pai da função paterna para resguardar a ela somente a única

função de nomeação” (DEFFIEUX, 2005, p. 35).

Para Lacan, a invenção freudiana responsável pelo que sustenta a relação do sujeito com

a realidade é o complexo de Édipo ou aquilo que dele fala da realidade psíquica. Ora, o

complexo de Édipo em Freud, muitas vezes debatido por sua desatualização e

inadequação cultural, fala de uma estrutura que articula a subjetividade a partir do

inconsciente, fala de um dos nomes que se pode dar à defesa e à criação subjetivas na

111

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

neurose, enfim, fala da solução que alguns sujeitos criam a partir do encontro com o

traumático da linguagem. Estando remetido ao complexo de castração, diz de uma

defesa ao que do significante, do simbólico, não recobre o real, e também ao que de

gozo resta como excedente dessa experiência. Como resultado, conforma a fantasia que

enquadra a realidade, articulando o sujeito ao indizível que cai como objeto a e

instalando uma forma de gozo, de funcionamento subjetivo, na ficção que ali se escreve.

Trata-se, pois, de uma resposta que estrutura para o sujeito sua realidade. A realidade

psíquica seria esse quarto termo, suplementar aos três registros, que sustentaria a

amarração borromeana da realidade para Freud. “O que ele chama de realidade

psíquica tem perfeitamente um nome, é o que se chama complexo de Édipo. Sem o

complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém à corda do Simbólico, do

Imaginário e do Real se sustenta” (LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975).

Se o Édipo é um dos nomes da solução subjetiva, específico da neurose, seu

atravessamento não é universal, mas antes singular à vivência de cada um. É o que

revela Lacan ao discutir a fobia do pequeno Hans, em seu quarto seminário público. Ali

ele fala em suplência pela primeira vez. Ela aparece associada ao pai, ainda que

remetida a uma espécie de compensação à carência paterna, do pai incapaz de

operacionalizar a castração. Indica uma operação que vem no lugar de algo que não se

realiza da forma como deveria. Há um certo ideal em torno da operacionalidade (ou

falha) do pai.

A suplência no sentido de algo a mais, de quarto termo a atar os registros, de invenção,

Lacan só falará cerca de vinte anos depois no caso Joyce. Ali Lacan testemunha a

invenção de um nome próprio que revela a demissão paterna. O suplemento que Joyce

efetiva à demissão paterna forja um ego e faz sinthoma. Antes de entendermos essa

diferença, é preciso retomar a noção de Verwerfung freudiana que, a partir de 1975,

também com o caso de Joyce, ganha um desdobramento.

2.4.1 O Pai e die Verwerfung

Por que retomar a Verwerfung aqui? Ora, a noção de suplência não se faz de maneira

unívoca no ensino lacaniano e implica uma forma de resposta, no que toca à psicose, à

Verwerfung. Nesse sentido, poderia implicar em promover um elemento no lugar de

outro, como na operação metafórica ou, por outro lado, num acréscimo, num

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

suplemento. Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir,

fazer as vezes de, preencher a falta de. E aqui, sabemos, estamos referidos ao Nome-do-

Pai, que pode ou não operar, exigindo, nesse último caso, uma operação de reparação.

Suplência, porém, quando remetida a suplemento, implica no que se adiciona, no que,

somado, amplia o conjunto.

A Verwerfung, no primeiro tempo do ensino lacaniano, equivale à foraclusão do

significante do Nome-do-Pai, como vimos. No ponto em que é chamado o Nome-do-

Pai, “pode pois responder no Outro um puro e simples furo, o qual, pela carência do

efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica”

(LACAN, 1957-58/1998, p. 564). Seria, pois, no acidente de registro em que se

constitui a foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro e no fracasso da metáfora

paterna que residiria a condição essencial da psicose nesse tempo do ensino de Lacan. É

em relação ao Nome-do-Pai como elemento inevitável de uma referência simbólica e

normativizadora que a psicose é pensada enquanto falta, enquanto falha no simbólico.

Quando o Nome-do-Pai é chamado em posição terceira em alguma relação que tenha

por base o par imaginário a-a´, ou seja, quando o sujeito é chamado a responder em

oposição simbólica ao Nome-do-Pai e este não comparece, dá-se o desencadeamento

psicótico.

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, “pelo furo que abre no significado, dá início

à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do

imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se

estabilizam na metáfora delirante” (LACAN, 1957-58/1998, p. 584). Em 1955-56, a

foraclusão demarca um território subjetivo, uma estrutura clínica – psicose –, uma

forma de composição do sujeito que carece do Nome-do-Pai como agente de

organização simbólica e de articulação dos três registros. Aqui o Nome-do-Pai tem

efeito significante e metafórico; e a foraclusão é a operação que delimita o campo das

psicoses. Lacan não fala em suplência.

Enquanto significante, o Nome-do-Pai não significa nada, salvo se remetido à cadeia

significante que, pelo valor diferencial do significante, produzirá uma significação. Ele

é o que sustenta o enquadre subjetivo, o que surge no ponto em que o traço unário,

primário de identificação, se apaga no inconsciente. Tem, portanto, um valor fundante e

estrutural, radicado na função de linguagem que veicula.

113

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Miller avança nessa questão. Se, em relação à castração freudiana, para qualquer sujeito

falta um significante último que nomeie o sexual (S(%)), se para todos há sempre um

significante que não se inscreve na cadeia a partir do encontro com o traumático, a

foraclusão poderia ser pensada como pertinente a todas as estruturas, e não apenas como

referida a uma falta em relação ao Nome-do-Pai nas psicoses (MILLER, 1998). Tratar-

se-ia, antes, de um furo (trans)estrutural que de uma falta contingencial à psicose. A

resposta ou a solução a esse furo traçaria o que, de singular, cada sujeito constrói para

sobreviver ao encontro traumático com o real que faz inscrição no corpo.

Essa passagem aponta para uma instabilidade da noção de estrutura para a psicanálise,

tocando inevitavelmente em seu cerne, qual seja, na concepção de Pai. Exatamente, e

não por acaso, ao discutir a psicose, no que nela Lacan pressupõe a ausência do Nome-

do-Pai, que ele nos revelará a dimensão desse significante operatório. É enquanto pai

morto que Lacan trata do pai em “Subversão do sujeito...” (1960/1998, p. 827),

ratificando essa posição em “De uma questão preliminar...”. “Com efeito, como não haveria Freud de reconhecê-la, quando a necessidade de sua reflexão o levara a ligar o aparecimento do significante do Pai, como autor da Lei, à morte, ou até mesmo ao assassinato do Pai? – assim mostrando que, se esse assassinato é o momento fecundo da dívida através da qual o sujeito se liga à vida e à Lei, o Pai simbólico, como aquele que significa essa Lei, é realmente o Pai morto” (LACAN, 1957-58/1998, p. 563).

A foraclusão apontaria não para a ausência do pai real, mas antes para a carência do

próprio significante no lugar onde o pai, enquanto tal, deveria operar. O pai é, ao

mesmo tempo, a lei do significante e um dos significantes que, no ternário simbólico,

representa o Outro. É esse que não comparece na psicose. É da importância que a mãe

dá à autoridade do pai, “do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na promoção da lei”

(Idem, p. 585), do pai em seu lugar ideal, que ele se escreve. É a falência do Nome-do-

Pai que, declarada, culmina no processo pelo qual o significante desatrela-se no real. O

pai real, Um-pai, que é chamado no momento do desencadeamento, não se encontra

reduplicado no lugar do Outro enquanto significante, dando início ao trabalho de

remanejamento significante. Donde podemos conceber o Nome-do-Pai, nesse período

do ensinamento lacaniano como “o significante que, no Outro como lugar do

significante, é o significante do Outro como lugar da lei” (Idem, p. 590).

Há, como se pode observar, uma função estrutural depreendida da incidência do Nome-

do-Pai na linguagem ou no campo do Outro. Ele funda a condição de existência da

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

linguagem para um sujeito ao se instalar no lugar da lei no campo do Outro. O Nome-

do-Pai, apresentado no singular, tem aqui uma função estrutural de garantir a própria

estrutura.

Na clássica apresentação do pai, no Seminário 4, As Relações de Objeto, Lacan (1956-

57/1995, p. 362-380), ao se interrogar sobre o que é o pai, coloca a questão como

eternamente não resolvida para os analistas47. Ainda assim, nos convida a buscar nos

textos religiosos suas pistas, apresentando ele próprio uma proposição que articula o pai

nos três registros em relação ao complexo de Édipo. O pai simbólico é o Nome-do-Pai,

o elemento mediador essencial do mundo simbólico e de sua estruturação. Em última

instância, é o pai morto, como acabamos de ver. É através dele que a criança deixa a

onipotência materna e se introduz na articulação da linguagem humana.

O pai real, por seu turno, não se confunde com o da fecundidade. É preciso que ele

assuma verdadeiramente sua função de pai castrador, a função de pai sob sua forma

concreta, empírica, quase degenerada, como a do pai mítico da horda primeva freudiana,

para que o complexo de castração se instale e a função sexual viril tome seu destino.

E, finalmente, quanto ao pai imaginário, “é na medida em que o pai, tal como existe, preenche sua função imaginária naquilo que esta tem de empiricamente intolerável, e mesmo de revoltante quando ele faz sentir sua incidência como castradora, e unicamente sob esse ângulo – que o complexo de castração é vivido” (LACAN, 1956-57/1995, p. 374).

Há, pois, uma disjunção entre o pai real, que opera a castração, e o pai simbólico, o

Nome-do-Pai, que simbolicamente opera a entrada do sujeito na linguagem. Assim,

podemos dizer que é à medida que o pai real é investido como pai simbólico, pela

mediação do pai imaginário, que sua função opera seus efeitos de subjetivação na

metáfora paterna.

Com o avanço da teorização lacaniana e, sobretudo, com a construção da noção de que

algo escapa a esse enquadre significante, na figura do objeto a, Lacan vai pluralizar os

Nomes-do-Pai48. O seminário no qual trataria dos Nomes-do-Pai (LACAN, 1963/2005)

foi interrompido em função da perda de sua função de didata e de sua ex-comunhão da

47 Sobre o pai na Psicanálise, cf. Jöel Dor, O pai e sua função em Psicanálise, 1991; Revista da Letra Freudiana, Do Pai: o limite em Psicanálise, nº. 21, 1997; Erik Porge, Os nomes do pai em Jacques Lacan, 1998; e recentemente, em 2006, reuniu-se em congresso internacional a Associação Mundial de Psicanálise para discussão sobre “Le nom du père: s’en passer, s’en servir”, que deu origem a várias compilações de textos sobre o tema, dentre as quais a Scilicet dos Nomes do Pai, 2006, e um CD-Rom. 48 Cf. MILLER, Jacques-Alain, Comentario del seminario inexistente, Buenos Aires, Manantial, 1992.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Sociedade Francesa de Psicanálise. Essa pluralização acompanha a discussão sobre as

foraclusões que também ganham novas incidências49. Além da foraclusão clássica, do

significante, Lacan, em resposta a uma pergunta no seminário sobre Joyce, fala de

foraclusão do sentido pelo Real, apontando que também ela pode ser plurívoca. Além

disso, como veremos logo abaixo, fala de uma diferença crucial entre a Verwerfung de

fato em Joyce e a Verwerfung do Nome-do-Pai em Schreber que determina o estilo de

resposta que o sujeito construirá como suplência a elas e, por conseqüência, o estilo da

estabilização construída pelo sujeito.

Lacan nunca mais retomará o tema da pluralização dos Nomes-do-Pai, recusando-se

mesmo a publicar a única lição desse seminário. Pela ironia, brinca com a idéia no título

de seu Séminaire XXI, Les non-dupes errent (1973-74), cuja homofonia aproxima o

título literal ‘os não tolos erram’ de ‘os nomes-do-pai’. Esse é o seminário que sucede o

corte operado pelo Seminário 20 com as fórmulas da sexuação e antecede o Seminário

RSI, no qual se dedica à topologia borromeana, afirmando que os verdadeiros nomes do

pai são o real, o simbólico e o imaginário, até transformá-lo em utensílio no Séminaire

XXIII, Joyce le sinthome.

A passagem que nos interessa localizar incide no Nome-do-Pai como significante da Lei

para as versões do pai como o que nomeia, na década de 70. Ela acompanha em Lacan o

aparecimento de lalíngua que, anterior à linguagem, é feita de gozo, estando disjunta da

articulação débil que a linguagem opera sobre o falasser. E, também a retomada da

noção de letra como litoral entre simbólico e real, marcando na carne o traumático

encontro com o real que a linguagem ensaia, sem sucesso, simbolizar. Essa passagem

corresponde a um deslocamento do simbólico para o que, de real, determina o sujeito, e

também uma passagem da estrutura enquanto ordem causal do sujeito para a estrutura

enquanto conjuntural ao que, do tratamento do real do gozo, resta como aparato,

ornamento, sempre precário, de linguagem.

Posta essa transição podemos nos perguntar: qual é a versão lacaniana do pai na década

de 70? O que aí se modifica, acrescenta ou cai, na medida em que a teoria avança?

Lacan introduz a questão do pai no bojo da discussão do sintoma como função de x:

f(x). Ele parte da premissa de que a ex-sistência do inconsciente é o suporte do sintoma. 49 Cf. esquema de Harari (2002, p. 270) acerca das seis foraclusões que teriam sido propostas por Lacan ao longo de seu ensino: 1. da Linguagem; 2. do ser do sujeito do inconsciente pela ciência; 3. não inscrição da relação sexual; 4. % Mulher (não existe A); 5. do sentido pelo Real; 6. do sim (no “mas não isso” sinthômico).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Isso é visível na sua apresentação do nó borromeu na figura 05, na medida em que o

inconsciente se encontra no ponto oposto e externo ao que do simbólico avança sobre o

Real, compondo neste pólo oposto o avanço que localiza o sintoma, como vimos.

E o que seria esse x? “É o que, do inconsciente, pode se traduzir por uma letra na

medida em que, apenas na letra, a identidade de si a si está isolada de qualquer

qualidade”, nos diz Lacan (1974-75) na aula de 21/01/75. O que não cessa de se

escrever do sintoma vem daí. Em outras palavras, a repetição implicada no sintoma é

essa escrita de gozo.

E onde entra o pai nessa história? Um pai entra no circuito pela função de exceção que

opera. É preciso que qualquer um possa ser exceção para que a função da exceção se

torne modelo. Em outras palavras, é preciso que qualquer pai possa funcionar como

exceção para que a exceção de um pai seja a regra. Um pai só opera por sua père-

version50. É preciso que o pai esteja père-vertidamente orientado que, portanto, tenha

feito de uma mulher objeto pequeno a que causa seu desejo, ainda que ela se ocupe de

outros objetos pequeno a, seus filhos, junto a quem o pai, então, intervém.“No bom caso, para manter na repressão [...] a versão que lhe é própria de sua pai-versão. Única garantia de sua função de pai; que é a função de sintoma [...]. Para isso, basta aí que ele seja um modelo da função. Aí está o que deve ser um pai, na medida em que só pode ser exceção. Ele só pode ser modelo da função realizando o tipo” (LACAN, 1974-75, aula de 21/01/75).

Donde podemos concluir que, para operar como o quarto elemento que sustenta toda a

amarração borromeana, é preciso que o pai opere pai(père)-vertidamente orientado.

Enquanto no primeiro tempo do ensino lacaniano, o pai real era o operador da castração

abrindo a possibilidade da experiência edípica escrita simbolicamente com o Nome-do-

Pai na metáfora paterna, aqui o pai é a exceção que funda, para cada sujeito, uma forma

de gozo. “Como o mais-gozar provém da pai-versão, a versão ap(ai)-eritiva do gozar”

(LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O pai será tomado, então, pelo estatuto de

sintoma e se apresentará como o quarto elemento que sustenta a amarração dos três

registros. Nessa dimensão, o pai são as versões do pai que os sujeitos estabelecem para

escrever sua forma de gozo.

Como no Seminário RSI o sintoma se situa como função da letra – a qual se define pela

identidade de si a si –, será a psicose que dará o modelo do núcleo real de todo sintoma. 50 Pére-version faz homofonia com perversion, na língua francesa, criando uma aproximação fonética entre ‘versão do pai’ e ‘perversão’ do pai, o que aponta para o uso singular que o sujeito pode fazer desse elemento conector.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

A inovação ali será fazer do sintoma uma função da letra, fixando o gozo, sem o Outro. “É mais a construção de uma teoria generalizada do sintoma. [...] Ela é válida para a neurose e para a psicose, mas inclui a teoria da metáfora neurótica a título de teoria restrita, mediante a associação daquilo que vale para um axioma suplementar, a saber, a função do Nome-do-Pai. Esta, pensada antes como defeito na psicose, é de agora em diante situada como um acréscimo, um suplemento na neurose” (SOLER, 1993, p. 52).

Trata-se do fato de que uma amarração sistemática pode prender-se sem o apoio do

Nome-do-Pai, valorizando a equivalência entre o sinthoma e o Nome-do-Pai: Σ = NP.

Esta fórmula é um princípio cardeal da clínica borromeana. Um sinthoma pode assumir

a função de Nome-do-Pai. Assim é que se obtém este esquema bem simples, segundo o

qual o ponto de capitonné, tem duas formas principais, o Nome-do-Pai e o sinthoma,

ficando entendido que o Nome-do-Pai, o próprio, não vale mais do que um sinthoma e é

um caso distinto do sinthoma (MILLER, 1999)51.

Essa discussão nos parece central para discutir a clínica lacaniana, pois o Nome-do-Pai

é o ponto de partida de Lacan para discutir a diferença estrutural entre

neurose/perversão e psicose na primeira clínica. Na segunda, com a idéia de capiton, de

pontos de amarração, o significante do Nome-do-Pai deixa de ter esse lugar central na

construção do diagnóstico. Miller (1999), entretanto, vai falar que isso não justifica a

idéia de continuísmo entre as estruturas, mas somente dentro da psicose. Daí a

importância em se avançar na pesquisa sobre o lugar que o pai passa a ter na topologia

borromeana e suas conseqüências sobre o diagnóstico e a clínica.

Posta essa nova versão do pai, vejamos suas conseqüências clínicas nos dois casos em

que Lacan articula o pai à suplência ao longo de seu ensino. A carência do pai é termo 51 Em seu Seminário de 2001, em Paris VIII, Miller retoma essa discussão realizada durante a conversação de Arcachon (1999) acerca do último ensino de Lacan. Fazer do Nome-do-Pai mais um sintoma é operar uma subversão em relação à formalização das estruturas clínicas, que vem sendo chamada de clínica continuísta em oposição à clínica referida ao Nome-do-Pai. Nessa clínica continuísta, as estruturas são pensadas em relação ao furo - que, se não nomeado, permanece invisível. E é dessa maneira que podemos falar em real como ex-sistindo ao sentido. O manejo clínico, então, opera-se caso a caso concretamente, como concretamente se manuseiam as argolas de barbante do nó borromeu, extraindo dessa experiência soluções singulares a partir do savoir-y-faire do sujeito. A primeira clínica seria regida por um ponto central, simbólico, organizador da cadeia significante e da lógica do pensamento, inclusive do inconsciente. Esse ponto de capitonné, o Nome-do-Pai, seria utilizado como balizador na formalização lacaniana das estruturas clínicas, numa topologia linear, de setas e traços, funcionando como ponto de basta, como ponto final, como ponto de corte. Ele faria a amarração dos três registros, regido por um fortalecimento do simbólico. Portanto, o Nome-do-Pai, no primeiro ensino de Lacan, é o significante por excelência que produz um efeito de sentido real. É o nome do significante que dá um sentido ao gozado. Sem o Nome-do-Pai não há lei, não há o corpo e o fora do corpo, operados pelo falo e pela condensação de gozo que ele produz. Donde se percebe claramente a dominância do simbólico. O enigma trazido pelo último ensino de Lacan trata da suspensão do Nome-do-Pai e suas conseqüências para se pensar o real. O sentido aparece desenlaçado do real. E dessa abordagem se extrairia a possibilidade de uma nova clínica.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

comum tanto à discussão clínica do caso do pequeno Hans quanto à do caso de Joyce,

ainda que eles tenham posições, estruturas diferentes, denotando, de saída, uma

transversalidade entre os dois tempos do ensino lacaniano. Mas será que Lacan concebe

essa carência da mesma maneira?

Veremos também que o sintoma, em ambos os casos, aparece como o que repara um

erro. Sabemos, porém, que a concepção de sinthoma, introduzida no Séminaire XXIII,

altera radicalmente a noção de sintoma presente, até então, no texto lacaniano. Quais

seriam, assim, as aproximações e os distanciamentos que esses dois casos nos permitem

extrair quanto à noção de suplência?

2.4.2 A carência do pai de Hans e a ‘suplência’ metafórica na fobia

Todo o ‘tratamento’52 de Hans acontece em torno da figura paterna e sua insuficiência

em operar a castração. Hans solicita o pai exatamente nesse ponto e ele não comparece.

Lacan pinça a carência paterna em Hans e no-la apresenta.“Digamos que, naquele momento [fantasia com desaparafusamento], o pequeno Hans explique a seu pai: - Enfie isso nela, de uma vez, ali onde é preciso. É isso mesmo que está em questão na relação do pequeno Hans com seu pai. Temos, o tempo todo, a noção dessa carência e do esforço feito pelo pequeno Hans para restituir, não digo uma situação normal [...] – mas uma situação estruturada” (LACAN, 1956-57/1995, p. 371).

Qual a carência do pai aqui? O pai de Hans, enquanto pai imaginário, enquanto

revestido de horror, afasta a possibilidade da castração ao invés de fazê-la operar. Ele

quer parecer bom para o filho. Esse é o ponto que irá exigir da parte do menino uma

solução. Interessante notar que o pai simbólico, o Nome-do-Pai, opera na figura do

professor Freud que, como o bom Deus, tudo sabe. “Isso lhe é muito útil, mas sem

suprir, de modo algum, a carência do pai imaginário, do pai realmente castrador. Todo

o problema reside aí. Trata-se de que o pequeno Hans encontre uma suplência para

este pai que se obstina em não querer castrá-lo” (LACAN, 1956-57/1995, p. 375).

O que se coloca como questão é como o pequeno Hans poderá suportar seu pênis real,

na medida em que este não é ameaçado. Este é o fundamento de sua angústia fóbica. O

desejo de que o pai seja ferido evoca uma circuncisão mítica, colocando em xeque a

confrontação do pai como homem com sua mãe, e também veicula a indagação sobre o

52 O pequeno Hans era filho de um adepto da teoria freudiana que levava suas anotações para o professor Freud. Este, então, explicava o que se passava com Hans e seu pai fazia intervenções com o menino a partir dessas explicações. Mas tudo se passava no nível da educação doméstica, mais do que num contexto clínico.

119

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

próprio pai ter passado por essa iniciação com uma ferida (evocação da castração do

pai).

O que Hans busca é o encontro com esse pai castrador. Se, do lado da mãe, a fantasia de

ser engolido e devorado (que aparece na figura da mordida e da devoração do cavalo)

acena para castração materna, sabemos que daí o sujeito não sai, senão com a

substituição pela castração paterna. Esta é suscetível de desenvolvimento dialético,

enquanto a primeira não. “Uma rivalidade com o pai é possível, um assassinato do pai

é possível, uma eviração do pai é possível. Por este lado, o complexo de castração é

fecundo no Édipo, no lugar em que não o é pelo lado da mãe” (LACAN, 1956-57/1995,

p. 377).

Uma vez que é impossível emascular a mãe, uma impossibilidade se coloca no

horizonte da solução ao impasse colocado por sua castração. É a castração paterna que

vem em seu auxílio. Como ela não se apresenta para Hans, exigirá dele um trabalho a

mais que a suplencie. Como Hans resolve o impasse? Como suplencia a pura ameaça de

devoração total pela mãe?

O começo da articulação se dá com a fantasia da banheira e da furadeira. Será assim que

a mãe será demolida e o pai convocado a desempenhar o papel de furador, substituído

pelas figuras do Schlosser, que começou a desaparafusar a banheira, e depois pelo

instalador que viria para trocar o traseiro de Hans. Diferentemente da suposição

freudiana de que, com isso, Hans ganharia outro pênis no traseiro, Lacan aponta que era

preciso que algo fosse desmontado e se modificasse em Hans no nível da estrutura e,

portanto, da estrutura da linguagem em seus efeitos sobre o corpo. Esse seria o esquema

fundamental do complexo de castração. A mordida materna, elemento instrumental e

substituto da intervenção castradora, deriva quanto a sua direção aparecendo deslocada

nessas fantasias. Isso é suficiente para uma primeira redução da fobia. Há uma

modificação em Hans.

Neste ponto, Anna, sua irmã caçula, entra em jogo como um elemento cuja queda é

possível e desejada, articulando o segundo aspecto da fobia de Hans, a queda do cavalo.

Como podemos lembrar, a fobia se instala sobre a figura do cavalo em relação ao temor

de sua mordida e de sua queda. Anna é, portanto, associada ao termo inassimilável da

situação, ao que pode cair. E aqui Lacan aponta a construção de uma solução imaginária

diante da dimensão real intolerável introduzida por ela. De um lado, Hans a faz montar

120

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

o cavalo de sua angústia fóbica, ponto a partir do qual poderá ele próprio depois,

dominando a situação, também montá-lo.

Por outro lado, Anna é reintroduzida de maneira fantasística, como objeto que sempre

esteve lá. E, mesmo que Lacan não o diga textualmente – posto que sua teoria ainda não

havia avançado até esse ponto –, o circuito da escapada de Hans do zoológico à casa da

avó coloca Anna como resposta no nível do gozo feminino53, na medida em que no nível

paterno e fálico Hans não encontrou uma saída (SAUVAGNAT, 1999). Ela aponta para

esse gozo suplementar, sendo incluída na construção da pai-versão de Hans enquanto

acena para a dimensão do gozo do Outro. É assim que, enquanto exceção, o pai opera.

A cada caso, a ele será dada uma versão que inclui um dimensionamento do gozo

conforme os recursos e instrumentos que o sujeito encontra à sua disposição.

2.4.3 A demissão paterna de Joyce e a suplência borromeana na psicose

Lacan também fala de pai carente em relação a Joyce, mas lhe acrescenta o adjetivo

indigno, não por acaso. “É a seu pai que ele endereça esta oração54, seu pai que justamente se distingue por ser – bofe! – o que nós podemos chamar de um pai indigno, um pai carente, aquele que, em todo o Ulisses, ele se colocará a procurar sob todos os tipos nos quais ele não o encontra em nenhum nível” (LACAN, 1975-76/2005, p. 69).

Há, evidentemente, acrescenta Lacan, um pai em alguma parte, Bloom, que procura por

um filho. Mas a ele Joyce opõe um é muito pouco para mim. Com o pai que teve, ele se

diz escaldado, nada de pai. Como se vê, além da demissão paterna, o sujeito tem sua

parte na foraclusão, ainda que isso não nos conduza direta e ingenuamente à idéia de

que o sujeito escolhe a estrutura. Na realidade, como também lembra Lacan, salvo ter

enviado o filho aos Jesuítas, o pai de Joyce se demissiona de sua função.

Pierre Naveau (2004b, p. 208-209) localiza o ponto em que Joyce nos fala desse

episódio na narrativa de Um retrato do artista quando jovem (JOYCE, 1914/1992). Ele

tem seis anos quando entra no colégio. E, aos onze, seus pais são obrigados a se mudar

de Dublin, pois seu pai está arruinado financeiramente. Ele descreve cenas de Stephen,

seu personagem autobiográfico, acompanhando o monólogo entrecortado de suspiros

que o pai enceta sobre sua infância e sua vida na cidade natal. Mas Stephen não

53 Rever discussão na nota de rodapé 36 desta pesquisa.54 Lacan se refere à frase do fim do livro “Um retrato do artista quando jovem”, de Joyce (1914/1992), “Old father, old artificer, stand me now and ever in good stead”.

121

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

experimentava pelo pai nenhuma compaixão. Ele sabia que seus bens haviam sido

vendidos em leilão e que o pai estava implicado nessa ruína.“Stephen seguia seu caminho ao lado de seu pai. Escutando histórias já ouvidas... Ele ouvia a voz de seu pai: ‘Eu te falo como amigo, Stephen. Fazer gênero de pais rígidos, não é comigo. Eu não creio que um filho deva temer seu pai. Não, eu te trato como teu avô me tratava quando eu era menino. Nós éramos dois irmãos, mais que pai e filho. Eu não me esquecerei jamais a primeira vez em que ele me surpreendeu fumando. Ele não disse uma palavra...’” (JOYCE, 1914/1992, p. 141 – grifo nosso).

O pai de Stephen não faz caso da autoridade da palavra do pai. Ele, de fato, se

demissiona de sua função. Nesta referência, testemunhamos aquilo que Lacan chamará

de uma Verwerfung de fato, diferente da Verwerfung de direito que se realiza no caso de

Schreber. Enquanto a Verwerfung de direito estaria correlacionada à escrita do

significante do Nome-do-Pai no campo do Outro, a Verwerfung de fato diria respeito a

uma fala, a um ato do pai no qual este se ausenta de sua função. O pai falta

efetivamente, no sentido de que diz textualmente em um dado momento: eu me

demissiono, como atesta a passagem acima.

Ora, não há pai real se um filho não teme seu pai. Entretanto, veja a fala de Bloom, o

pai, na narrativa: ‘Eu não creio que um filho deva temer seu pai’. Porém, no que se diz

também se aciona o que opera como significante, o que está em questão no Nome-do-

Pai, como ele se transmite ou não. E Bloom nessa passagem também é claro, o pai não

diz uma palavra sobre a interdição. Finalmente, pai e filho devem se relacionar como

irmãos...

Em Joyce, há uma quebra entre o pai e o Nome-do-Pai. O Nome-do-Pai, no caso de

Joyce, mostra a Verwerfung de fato no dito do pai. Será sobre esse ponto que Joyce

desejará fazer-se um nome, é sobre esse ponto que a suplência será construída. O estilo

da estabilização, como já dissemos, atesta sempre o estilo da foraclusão, sendo-lhe

decorrente.“O nome que lhe é próprio, é aquele que Joyce valoriza a expensas/à custa do pai. É a este nome que ele quis que fosse rendida a homenagem que ele mesmo recusou a quem quer que fosse. É nisto que podemos dizer que o nome próprio faz tudo o que pode para se fazer mais que S1” (LACAN, 1975-76/2005, p. 89).

Ele privilegia o nome em detrimento do pai. E nesse ponto há sinthoma. “Joyce tem um

sintoma que parte disso que seu pai era carente, radicalmente carente – ele só fala disso.

[...] que é de se desejar fazer um nome que Joyce fez a compensação da carência

paterna” (LACAN, 1975-76/2005, p. 94).

122

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Se em Hans essa operação de suplência aparece de maneira pejorativa, em Joyce, ela

acena para uma invenção inédita: repercussões da mudança de estatuto do pai na teoria

lacaniana. É assim que, em Hans, Lacan vai nos dizer que “se a solução é apenas

suplência, é porque ele [Hans] é, de certa forma, impotente para fazer amadurecer [...]

o desenvolvimento dialético da situação” (LACAN, 1956-57/1995, p. 378 – grifo

nosso). Joyce, ao contrário, funda uma nova língua, subverte a literatura e se inventa um

nome. Um, não, dois! “Que haja dois nomes que sejam próprios ao sujeito, está claro

que isto foi uma invenção” (LACAN, 1975-76/2005, p. 89). Joyce se inventa um nome,

dois nomes, seja James, seja Joyce; seja Joyce, seja Dedalus. Seu desejo de ser escritor

responde, segundo Lacan, à demissão do pai. Não é somente do mesmo significante que

Joyce e o pai são feitos, mas da mesma matéria, testemunha Lacan na leitura de Ulisses,

no qual Stephen, à procura do pai, Bloom, culmina em um Blephen (e Stoom). Para

Lacan, Ulisses é o testemunho daquilo através do qual Joyce fica enraizado em seu pai,

ainda que o renegando. É isso seu sintoma, é essa sua pai-versão.

Lacan toma essa escrita do real como sua própria invenção. Ele trata essa invenção

como sua resposta sintomática à descoberta freudiana do inconsciente. Ao inconsciente

freudiano Lacan propõe o sinthoma como invenção subjetiva, como o que se escreve

como real, sob a forma do nó borromeano. Enunciar o real sob a forma dessa escrita

borromeana tem valor de traumatismo. Criamos uma língua a cada instante que lhe

damos um sentido, é a essa invenção que o sinthoma nos reporta. “C’est le forçage

d’une nouvelle écriture” (LACAN, 1975-76/2005, p. 131). E se o real não é a realidade,

ele é o órgão que enoda simbólico e imaginário. O real traz o elemento que pode mantê-

los juntos, a saber, o sinthoma.

Miller (2003a, p. 6) propõe ao termo invenção uma oposição em relação ao termo

criação, na medida em que nesta se enfatiza a criação ex nihilo, a partir do nada. A

invenção, por seu turno, é a criação a partir de materiais existentes. E as duas se opõem

à descoberta, na medida em que o que se descobre já está lá, não precisa ser inventado.

Há, pois, em Joyce invenção de um nome, cuja matéria são os elementos dos quais

dispõe: um pai indigno de sê-lo, a referência jesuítica, o conhecimento profundo da

língua inglesa e sua história.

Inventar um nome conduz-nos a uma sutileza na análise da proposição lacaniana. Ter

um sintoma é diferente de ser um sinthoma. Quando Lacan fala de Joyce como

123

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

sinthoma, quando fala que Joyce é sinthoma, sua referência se modifica. Enquanto trata

do desejo de Joyce de ser um artista que ocuparia todo o mundo, o maior número de

pessoas possível em todo caso, fala da compensação do fato de ter um pai que jamais foi

para ele um pai (LACAN, 1975-76/2005, p. 88). Lacan se debruça exaustivamente

sobre essa discussão ao longo de seu seminário sobre Joyce.

Entretanto, numa apresentação que faz no V Simpósio Internacional James Joyce, em

Paris, antes de iniciar o seminário, que se tornou um texto intitulado Joyce o Sintoma

(LACAN, 1975/2005), ele diz em que Joyce é um sintoma. “Se eu digo Joyce o

Sintoma, é que o sintoma, o símbolo, ele o aboliu, se eu posso continuar nessa veia.

Não é somente Joyce o Sintoma, é Joyce enquanto que, se eu posso dizer, desabonado55

do inconsciente” (LACAN, 1975/2005, p. 164). A arte de Joyce é, para Lacan, algo de

tão particular, que o termo sinthoma, com “th”, é o que melhor lhe convém. Trata-se de

situar o que ela tem a ver com o real do inconsciente. Joyce não sabia que ele fazia o

sinthoma. Isso era inconsciente. E, por isso, ele era um artífice, um homem de savoir-

faire, um artista (LACAN, 1975-76/2005, p. 118). O sinthoma fala de algo que

responde à realidade mesma do inconsciente (Id. Ibdem, p. 139). É enquanto

desabonado do inconsciente, enquanto não subscrito ao inconsciente, que Lacan fala

sobre Joyce ser, e não ter, um sinthoma.

Trata-se aqui de um sintoma desabonado, não tributário do aparato semântico que é o

inconsciente, e esta é a maneira mais singular que tem o falasser de fazer com o real. Se

o abonnement compromete o sujeito a um pagamento adiantado pela recepção de um

bem (pelo qual aposta que vai obter – de modo regular, periódico e recorrente – uma

recuperação do gozo), o desabono ou a não-subscrição, por outro lado, marca uma

ruptura com tal aposta. Trata-se do sintoma em seu puro valor de uso, um uso que vai

mais além de seu valor significante e de verdade, quer dizer, um uso desprendido do

55 Segundo Laia (2001), psicanalista responsável pela versão brasileira do Seminário XXIII, o termo em francês desabonné, que consta no texto original de Lacan, não corresponde, de fato, ao termo em português desabonado, apesar de ele adotá-lo na versão oficial em via de edição no país. Ele estaria antes referido à condição daquele que deixou de ser assinante, por exemplo, de uma revista – e, no caso de Joyce, do inconsciente, enquanto, em português, o termo desabonado se aproximaria de desacreditado, depreciado. Ainda que estejamos num campo semântico diferente do francês, para ele, “esse outro campo não deturpa o que Lacan visa com o termo desabonné e ainda nos permite aceder a um sentido diretamente associado à loucura. Porque tanto Joyce em sua obra quanto os loucos em seus delírios mantêm, de um modo muito evidente, uma posição de descrença, de descrédito, e mesmo de depreciação, com relação à estabilidade de um sistema organizador do mundo da palavra e da realidade das coisas” (LAIA, 2001, p. 162). Assim, ele justifica a adoção do termo desabonado para a língua portuguesa, que também adotaremos feita essa ressalva quanto à sua tradução.

124

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

fantasma, desprendido do gozo extraído da ficção que o sujeito construiu para fazer

existir um Outro do gozo fabricado à sua medida.

Joyce trabalha diretamente no real da letra. Extrai seu gozo de uma experiência que não

é abonada pelo (ou subscrita ao) inconsciente. Em outras palavras, deixa de gozar de seu

inconsciente, desamarrando-se, por meio da pulsão de morte, de uma montagem

significante que, através do S1, poderia tê-lo mantido subsumido a uma representação

que o representava. Deixa, assim, reinar a pura produção de um gozo no ciframento,

sendo impossível restituir-lhe o sujeito como efeito de articulação. “Em outras

palavras, o sujeito é dividido pela linguagem, como em toda parte, mas um de seus

registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala” (LACAN,

1971/1986, p. 24).

O neurótico faz amor com seu inconsciente, ou seja, é atraído por aquilo que pode lhe

revelar algo acerca de seu próprio inconsciente. Nada no texto final de Joyce é capaz

disso, e é isso que torna essa escrita tão ilegível para os neuróticos. A escrita é, para ele,

o seu sinthoma, isto é, sua forma privilegiada de gozo, de um gozo para além de

qualquer demanda ao Outro, um gozo da letra que se exercita não por meio de uma

recusa à não-existência da relação sexual, mas, ao contrário, por meio de seu

reconhecimento. Sua tarefa é a de bordejar este ponto de impossível, fazendo com isto

subsistir a falta, o furo real. Há algo que se joga a cada palavra no texto joyceano, ele

faz o texto falar56.

Donde podermos extrair o quadro abaixo:Joyce tem um sintoma Carência do paiJoyce é um sinthoma Desabonado do inconsciente

2.5 Enfim...

Toda essa reviravolta no ensino lacaniano irá abrir uma série de possibilidades para se

pensar as suplências. O desdobramento mais direto é o deslocamento da discussão das

suplências de uma perspectiva na qual o objeto ou recurso que suplencia é o elemento

definidor do estilo de suplência, para outra na qual é o processo em jogo na foraclusão

que acarretará, por conseqüência, uma forma de amarração dos três registros, seja ela

borromeana ou não. Neste segundo caso, a suplência se infere do trabalho psíquico a ela

vinculado.56 Cf. IORIO, A. L. (2007) Quando Eusebius e Florestan se desencontraram para sempre. Uma reflexão sobre música e psicopatologia, disponível em <http://www.psicopatologiafundamental.org/>.

125

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Nesse sentido, a discussão emprendida por Rollier (2005) ilustraria a primeira dessas

duas abordagens das suplências. Ele retoma a discussão de Lacan na década de 50 e a

contrapõe à construção proposta na década de 70. Assim, no primeiro tempo de seu

ensino, Lacan isola a necessidade do sujeito psicótico de compensar, suplenciar a

foraclusão do Nome-do-Pai por suplências que são construções significantes, contando

com o Imaginário ou com o Simbólico, seja por identificações, seja pelo esforço de

significantização. Rollier observa também que Lacan estende desde já o conceito de

suplência à neurose, na discussão do caso Hans, referindo-o a uma simples carência da

função paterna.

Em seu segundo ensino, marcado pelo abandono da primazia da função simbólica, o

conceito de suplência ganha outro valor. A partir do Seminário 20, Mais, Ainda...

(1972-73/1982), qualquer que seja a estrutura, Lacan evidencia que entre os sexos dos

sujeitos falantes a relação não se faz. Para além da ordem do simbólico, é o que faz

sentido na lalíngua que vai suplenciar o fato de que não há com o parceiro sexual

nenhuma relação. Daí a proposição de um elemento suplementar, o sinthoma,

permitindo ao nó se atar. Lacan, então, não falaria mais de suplência, mas de sinthoma,

como o que permite ao simbólico, ao imaginário e ao real se atarem uns aos outros, ou

dito de outra forma, “na medida em que há sinthoma, não há equivalência sexual, quer

dizer, há relação” (LACAN, 1975-76/2005, p. 101).

Com isso, Lacan postularia menos uma falta inerente ao simbólico em si mesmo que

uma falta estrutural. Essa seria uma outra maneira de dizer que não há relação sexual.

Essa falta corresponde ao que Miller (1998a) vai chamar de foraclusão generalizada, ao

afirmar que há para o sujeito, não somente na psicose mas em todos os casos, um

indizível. Daí a foraclusão do Nome-do-Pai passar a ser conhecida como a ruptura de

um nó, não mais a rejeição de um significante primordial.

A cadeia significante da primeira clínica seria substituída pela proposta dos três

registros enlaçados borromeanamente. Se o Outro é falível, não existindo nem como

garantia, é preciso um quarto elemento para que Real, Simbólico e Imaginário se

mantenham atados. Rollier (2005) também acredita que, de certa forma, no Seminário 3,

Lacan nos teria preparado para essa idéia com a metáfora do tamborete de quatro pernas

(LACAN, 1955-56/1992, p. 228).

Apesar dessa argumentação, ele nos apresenta quatro modalidades de suplência,

126

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

localizando no recurso do qual o sujeito se vale o índice para qualificar cada uma delas.

Assim, seriam modalidades clínicas de suplência para ele:

1. A suplência por um delírio – Ele retoma em Freud (1915a) a idéia de que o

investimento da representação da palavra representa a primeira das tentativas de

restituição ou de cura. Nesse sentido, se o delírio realiza uma metáfora delirante, que

pode ser discreta, pode fazer nó. Como exemplo ele traz uma contrução delirante

que se apóia sobre um ponto de identificação com o salvador, o que permite

restaurar o laço social.

2. A suplência por um uso do significante que permite um modo de estabilização

com “capitonagem” sobre um significante singular – Como exemplo, ele relata o

caso de um paciente que se reapropria do significante “associal”, introduzindo uma

ligeira defasagem através da invenção de um neologismo que o localiza como

fabricante de um fracasso pela palavra. Ele não seria “associal”, ele teria

“falabracado”. Trata-se de uma significação personalíssima dada ao significante

pelo uso da ironia.

3. A estabilização por um modo de gozo – Ela aconteceria, seja por uma prática

perversa, seja pela inscrição corporal de um fenômeno psicossomático, no lugar

daquilo que faria um sintoma, ou pela toxicomania ou pelo alcoolismo. Interessante

que aqui Rollier fala em estabilização e não em suplência. Ele estaria a demarcar um

processo diferenciado pelo uso dos dois termos?

4. A suplência pela escrita – O gozo do Outro que persegue o psicótico, o real que o

invade, equivale a haver qualquer coisa já escrita por ele, contra ele, mas não para

ele. A função da escrita em um psicótico seria justamente a de dominar o gozo pela

letra. O sintoma psicótico como Nome-do-Pai seria o que restitui o gozo

contabilizável, quer dizer, controlado, e seu exemplo seria o caso Joyce.

Ora, aqui estamos diante de uma leitura das suplências que se orienta pela perspectiva

de que há um elemento material do qual o sujeito pode se valer para cumprir uma

função de estabilização. Rollier (2005) dispõe todos os recursos, os quais apresenta no

mesmo nível, conferindo-lhes ao mesmo tempo um tratamento pela primeira e pela

segunda clínica. Com isso, a idéia de tratamento do gozo ou de construção do sinthoma

se apresenta par a par com a idéia de significantização ou de identificação imaginária,

127

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

tornando difícil localizar qual seria o elemento suplementar em cada situação e qual

seria sua função em relação à amarração dos três registros.

Numa outra perspectiva, esta radicalidade do final do ensino lacaniano é evidenciada

por Skriabine (2006), que postulará uma clínica diferencial a partir da topologia dos

nós, diferente da clínica diferencial, apresentada no Seminário 3, As Psicoses. Partindo

da perspectiva de que a experiência humana se estrutura em referência às três categorias

isoladas por Lacan como Real, Simbólico e Imaginário, o sujeito teria que encontrar

uma maneira de manter esses três registros atados, conferindo-lhes uma medida comum.

O sujeito faria assim consistir uma “realidade” que não teria nenhuma existência

intrínseca, pois ela não seria senão um véu tecido do Imaginário e do Simbólico que

serve para recobrir a dimensão insuportável do Real.

Essa proteção, que permite a um discurso se desenvolver e fazer laço, implica em

contrapartida numa limitação de gozo, procedente da função do pai, operadora da

castração sobre o Outro materno. O Nome-do-Pai realiza assim, enquanto Bejahung, a

realidade da castração, o acesso do ser falante ao universo dos discursos e à proteção do

Real que permite a instauração do laço social. Assim, a função do Nome-do-Pai é de

manter juntos, para cada sujeito, um por um, Real, Simbólico e Imaginário, fazendo

consistir uma realidade sem existência, mas capaz de desenvolver o laço social no

campo dos discursos.

O Outro, por seu turno, é sempre falho. Não há uma referência última e absoluta que o

sustente, pois o significante é diferencial, só se realiza a partir de outro significante.

Assim, o significante que garantiria o Outro falta ao Outro. Não há Nome-do-Pai senão

sob a condição de que cada sujeito o coloque em jogo, o faça operar por ser sujeito

faltoso.

Donde Skriabine (2006, p. 58) concluir que:

1. Há estruturalmente foraclusão do Nome-do-Pai no sentido de uma medida

comum “inata”, “normalidade” mítica, que ataria Real, Simbólico e Imaginário

reunidos graças a um nó borromeano bem sucedido. Nada os ligaria a priori. Todos

seriam débeis, dirá Lacan, para além da referência asseguradora do mito freudiano,

do pai inventado para dissimular a dissociação dos três registros.

2. A estrutura da experiência humana é para ser pensada fora de uma referência ao

Outro, ela é para ser pensada a partir das três únicas categorias da experiência, o

128

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Real, o Simbólico e o Imaginário. Lacan avança em seu ensino para mostrar que

essa estrutura se funda sobre uma falta original que é topológica. Ela seria a

estrutura mesma dos nós para além de uma metáfora. O real dessa estrutura é o real

topológico dos nós.

O Nome-do-Pai, para Lacan na década de 70, é o efeito real advindo da amarração

borromeana do nó de três. Como já explicitamos, no nó de três há sempre dois registros

disjuntos e sobrepostos, soltos um em relação ao outro. O terceiro ao enlaçá-los provoca

o efeito de amarração de tal sorte que, soltando-se um, todos os três se desatam. Esse

efeito a mais é real, equivale ao Nome-do-Pai ou ao sinthoma. Nesse sentido, o nó de

três, solução perfeita, figura a falta, figura o que não há. E isso seria o Nome-do-Pai, se

ele existisse. “Há foraclusão do nó borromeano como Nome-do-Pai. É por isso que ele nos interessa. É preciso três elementos, R, S e I, dois a dois disjuntos, topologicamente equivalentes, para fazer o nó borromeano. Portanto, eles são quatro, porque há o nó borromeano ele próprio. Cada um dos três, R, S ou I, enoda os dois outros e faz consistir o nó: cada um, como quarto implícito, porta a eficiência do nó borromeano. A ruptura de qualquer um desata o conjunto” (SKRIABINE, 2006, p. 59).

Há várias maneiras do nó falhar, assim como há várias maneiras de suplenciar essa falha

para manter o conjunto atado. Há, portanto, vários nomes do pai. Para Skriabine (2006),

Lacan demonstra com a topologia a necessária pluralização do Nome-do-Pai, pois se o

Nome-do-Pai falha sempre, os nomes do pai para suplenciá-lo são numerosos. Aqui a

disjunção entre o significante do Nome-do-Pai e os nomes do pai como versões,

suplências, fica evidente.

No Seminário RSI, Lacan dispõe três suplências ao nó borromeano de quatro que seriam

os verdadeiros nomes do pai. Ele apresenta o sintoma como uma das modalidades desse

quarto elemento, neste caso acrescentado ao simbólico. O simbólico é então substituído

por um binário, desdobrado em (simbólico + sintoma), que Lacan designará no

seminário sobre Joyce como (inconsciente + sinthoma).

Revendo a figura 09, podemos nela localizar a cadeia significante no Simbólico,

enquanto inconsciente interpretável ou o que do sintoma se analisa, e o sinthoma

figurado como Σ, enquanto o inconsciente inanalisável, gozo opaco. Valendo-se desse

recurso, Skriabine (2006, p. 59) faz uma aproximação entre a função que a metáfora

delirante realizaria para o psicótico e o Nome-do-Pai para o neurótico – redutível ao

final do trabalho analítico a esse resto inanalisável, puro nome, lugar no qual se refugia

129

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

o gozo que escapa ao significante. A metáfora na psicose condensaria o gozo para o

qual o Simbólico não faria mais barreira. Nesse sentido, a metáfora delirante seria um

Nome-do-Pai que, diferente da metáfora paterna, não é socialmente partilhada. Aqui o

quarto elemento aparece como simbólico em sua função primeira de nomeação.

À nomeação simbólica como sintoma se acrescenta a nomeação do imaginário como

inibição e a suplência do real como angústia. Eis finalmente os três nomes do pai

dispostos por Lacan no Seminário RSI. Lembrando que, na primeira lição deste

seminário, Lacan figura a suplência ao Real por sua nomeação, o Édipo.

Figura 09 – Nó borromeano de quatro elementos com reforço no Real (Édipo) (SKRIABINE, 2006, p. 60)

No seminário sobre Joyce, Lacan (1975-76/2005) apresenta uma forma de erro e de

reparação do nó de quatro totalmente diferente, que nos permite realizar uma

aproximação do nó à clínica na experiência analítica. Ele nos mostra como o sinthoma

vem reparar um erro, um lapso do nó entre Real, Simbólico e Imaginário, no ponto

mesmo em que ele se produz. Lacan parte do relato de Joyce acerca de um episódio no

qual ele é surrado pelos colegas e tem o sentimento de que seu corpo se solta como uma

casca, sem ter experimentado nenhum sentimento de raiva ou revolta em relação ao

acontecido. Nesse deixar-se cair, Lacan nos convida a reconhecer um deslizamento do

Imaginário que não se ata devido a um erro no nó. Nesse ponto em que o erro se produz,

Lacan aponta o ego como sinthoma, como “raboutage correcteur”.

130

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 10 – Erro e suplência em James Joyce no nó borromeano (LACAN, 1975-76/2005) 57

Lacan identifica nas epifanias o efeito de uma escrita que sustenta o ego, o sinthoma

joyceano, o resto, o resíduo dessa operação de reparação (tal qual o sinthoma resta ao

final de uma análise na neurose). Assim o ego, a escrita, a obra de Joyce são o nome do

pai do qual ele se sustenta para existir e se fazer um nome. “O ego designa aqui o que se constitui do artifício, da arte de Joyce, que produziu uma escrita enigmática que desfaz a língua. Constituída a partir da pura materialidade do significante enquanto ela porta e veicula um gozo inefável, o ego joyceano, sintoma puro, fora de sentido, puro gozo, se revela como puro sinthoma” (SKRIABINE, 2006, p. 60-61).

Com base nessa argumentação, Skriabine nos propõe, a partir dessa revisão do Nome-

do-Pai no ensino de Lacan, uma nova clínica diferencial.

57 Cf. erro e reparação de James Joyce no CD-ROM.

131

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 11 – Duas modalidades da clínica diferencial (SKRIABINE, 2006, p. 61)

Como se vê na comparação dos dois desenhos, a Verwerfung, no primeiro caso, é o

divisor de águas para se pensar as estruturas clínicas e seu diagnóstico diferencial entre

neurose, psicose e perversão. Partindo dessa perspectiva, a idéia de suplência se assenta

sobre a presença ou ausência do significante do Nome-do-Pai, que agenciaria a entrada

do sujeito na linguagem, dividido como desejante. Nessa ótica, podemos pensar que o

psicótico se valerá de diferentes recursos para realizar uma mesma operação de

reparação, qual seja, a reparação da ausência do Nome-do-Pai.

Na segunda perspectiva, é a forma de amarração do nó que instala o campo diferencial

das suplências e, conseqüentemente, do diagnóstico e da estabilização. A falta estrutural

para todos do significante-índice no campo do Outro traz como efeito a pluralização dos

nomes do pai como estilos de suplência, de reparação, de solução. Nessa abordagem, o

recurso material utilizado pelo sujeito na construção de uma solução a essa falta

estrutural é secundário em relação à operação que a realiza. Interessa menos distinguir

ser a arte ou o delírio o recurso do qual o sujeito se vale nesse trabalho, que

precisarmos, na direção do tratamento, a via e o estilo de operação que inclui esses

recursos na construção de sua suplência.

Dessa maneira, nossa hipótese inicial ganha uma sobreposição, talvez mesmo um

deslocamento. Partimos da hipótese de que a obra na psicose poderia apresentar-se

como solução a partir de um trabalho sobre o campo do real que produzisse uma

condensação de gozo, realizada a partir da criação artística sobre uma superfície

132

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

material. Nosso foco era a materialidade dessa superfície da criação artística ou

artesanal que poderia oferecer-se como apoio para a construção de uma solução.

Perguntávamos, nessa hipótese, se o sujeito poderia prescindir da escrita para forjar um

sinthoma, dado que o caso paradigma era, então, a escrita joyceana.

A discussão empreendida até então neste capítulo nos conduz a um refinamento

necessário dessa discussão, a partir de dois aspectos ao menos. Primeiramente, com a

introdução das noções de letra e de lalíngua na década de 70, a escrita ganha, para a

psicanálise, uma nova materialidade, um novo suporte. Se antes o sujeito se escrevia

sobre um traço apagado, a partir da incidência do significante do Nome-do-Pai, com a

entrada da letra enquanto suporte do significante e litoral entre simbólico e real, a

escrita se faz sobre a ausência de um traço anterior, ela é inaugural em si mesma. A

letra, ao mesmo tempo em que escreve, faz resvalar um gozo a mais, disjunto do campo

do Outro, suplementar, que carece de tratamento.

Dessa forma, a superfície material de nossa hipótese não pode mais ser tomada somente

como a argila ou uma tela, mas antes como letra, que pode ou não se escrever. A base

dessa escrita é, ao mesmo tempo, material e substancial. E, suponhamos por hora, que

essa escrita, se não se faz, não há amarração entre os registros. Na discussão dos casos,

poderemos avançar sobre a caligrafia e as conseqüências da letra quanto à suplência,

que se faz necessariamente a partir de uma escrita...

E, como segundo aspecto, deveremos operar um deslocamento de perspectiva, de

abordagem de nosso questionamento. A questão sobre a obra, sobre a criação

permanece. Entretanto, ela passa a exigir uma outra maneira de ser enfocada. Não é o

recurso “criação artística ou artesanal” que, presente ou ausente, realizará uma

suplência. Trata-se mais do uso, da operação, que o sujeito realiza através, sobre ou a

partir da criação do que dela em si mesma. A questão é, antes, a de localizar no estilo de

resposta que o sujeito constrói a forma de amarração que ele realiza e nesta, então,

pensar como a criação comparece. O que interessa à clínica é mais a habilidade no uso

operatório dessa “arte” de saber-fazer do que a arte como recurso em si mesma. “É lá que se revela a arte, a habilidade de Joyce, e especialmente em Ulisses: capturar o deslizamento incessante do pensamento à deriva, mobilizado no endereçamento ao outro, retornando ao seu autismo; cerrar o não-sentido desse pensamento, revelar a moterialidade58, como dirá Lacan, na qual se fixa o não-sentido destes pensamentos que se emboscam e se captam nos significantes” (SKRIABINE, 2006, p. 61).

58 Lacan brinca com a idéia de que a palavra (mot) articula uma materialidade nela mesma, pela via da letra. Daí falar em “moterialité” como sendo o que realiza a pega do inconsciente.

133

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Os significantes passam a jogar sozinhos, fora do significado; sintaxe e léxica se

desfazem com Joyce. No Seminário XXIII, Lacan (1974-75/2005) desenvolve um pouco

mais esta questão. Ao examinar a obra de Joyce e o uso que fazia da linguagem na

literatura, observa que sua obra, apesar de fazer uso da linguagem, representava um

sintoma impermeável à decifração. Joyce escrevia decompondo lalíngua e chegando até

aos fonemas, fazendo jogos lingüísticos em que articulava a escrita com a função de

fonação, levando o leitor ao ato de emitir a voz como suporte da palavra. Nesse sentido,

Joyce eleva lalíngua à potência da linguagem, de S2 a S1, apresentando-a carente de

todo sentido, opaca, puro gozo. De Paolli59 coloca que, se a Lingüística busca um saber

acerca do significante a partir de lalíngua, “Joyce, a partir desta, extrai um significante

que não é lingüístico – é translingüístico, na medida em que é uma mescla de línguas –

e desdobra a linguagem até sua própria destruição”. Essa potência de linguagem é o

que supre sua carência de potência fálica. Lacan articula ironicamente que o ph de

phonation, Joyce o utiliza com valor do ph de phallus, em alusão ao gozo fálico que o

significante envolveria.

É pela via dessa operação real sobre lalíngua que começaremos, então, a tratar dos nós,

buscando, ao final do próximo capítulo, extrair a aplicação clínica desses nós para a

psicanálise e, especialmente, para pensar as estabilizações psicóticas. Comecemos,

porém, por situá-los no campo psicanalítico, retornando às suas características

matemáticas originais, para finalmente tomá-los como “objetos lacanianos” no uso

adotado por Lacan em relação a eles.

59 Cf. Cynthia de Paolli, “Tu és teu sinthome”, na revista virtual da SPID, disponível em <http://www.spid.com.br>.

134

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

CAPÍTULO 3DE NÓS E LAPSOS TAMBÉM SE ESCREVE UM SUJEITO:

A Topologia dos Nós e seus Desdobramentos Clínicos

135

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

3.1 Lacan e o Nó BorromeanoLacan fala pela primeira vez do nó borromeano na aula de 09/02/1972, no seminário Ou

pire..., a partir da frase “eu te peço que me recuses o que te ofereço, porque não é isso”,

retomada depois para explicar o nó como escrita no Seminário 20. Ele já se refere aos

seminários do matemático M. Guilbaud. Em RSI (LACAN, 1974-75), diz que tomou

conhecimento dos brasões da família borromeu nas anotações de uma pessoa que

freqüentava o seminário do matemático e com quem ele se encontrava vez ou outra.

Tratava-se da jovem matemática Valérie Marchand.“Os brasões dessa dinastia milanesa eram constituídos de três círculos em forma de trevo, simbolizando uma tríplice aliança. Se um dos anéis for retirado, os outros dois ficam livres, e cada anel refere-se à potência de um dos três ramos da família. Carlos Borromeu, um de seus mais ilustres representantes, foi um herói da Contra-Reforma. Sobrinho de Pio IV, ele reformou, no século XVI, os costumes do clero no sentido de uma maior disciplina. Durante a epidemia de peste de 1576, destacou-se por sua caridade e, ao morrer, o protestantismo fora em parte afastado do Norte da Itália. Quanto às famosas ilhas Borromeanas, situadas no lago Maggiore, foram conquistadas um século depois por um conde Borromeu que lhes deu seu nome e fez delas uma das paisagens mais barrocas da Itália” (ROUDINESCO, 1994, p. 364).

O nó representa, portanto, a indissolubilidade da relação entre os três ramos da família,

de tal sorte que, um deles se afastando desse laço, ele próprio se decompõe.

O encontro de Lacan com o nó borromeu se deu paralelo ao seu encontro com jovens

matemáticos de extrema esquerda. Foi com Pierre Soury, em particular, que Lacan

travou seu mais longo diálogo matemático nesses últimos anos. Físico de formação e

matemático, ele foi designado à direção de estudos de Bernard Jaulin e iniciou a

condução, no ano de 1973-1974 na Escola de Estudos Superiores em Ciências Sociais

(EHESS) em Paris, de um seminário que tinha por objetivo “construir um modelo

matemático que permitisse estudar as preocupações lógicas e topológicas de Lacan”

(ROUDINESCO, 1994, p. 367). O grupo de cerca de vinte pessoas reunidas em Paris

VII-Jussieu dialogava com Lacan e levava seus avanços até o seminário de Lacan no

Panthéon. Foram várias as entradas de Soury neste e em outros seminários, em geral

respondendo a alguma questão formulada por Lacan. Além disso, farta correspondência

(cerca de 200 cartas) e três volumes de uma edição francesa da obra de Soury60 (feita

por Thomé e Léger, seus companheiros mais próximos de residência, método e idéias)

60 Cf. Pierre Soury, Chaines et Noeuds, edité par Michel Thomé et Christian Léger, Paris, 1988 (Premier, Deuxième et Troisième Parties).

136

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

testemunham esse encontro61.

Ocupado cada vez mais em decifrar a presença ex-sistente do Real, Lacan encontra num

recurso matemático, mais uma vez, uma veia fértil de trabalho. Seu esforço de

transmissão da experiência analítica, enquanto operação real de redução do gozo (ou de

estreitamento, se falamos do nó), tem na topologia dos nós uma descoberta essencial e

diferente do uso que fazia do matema. “... quando soube desses negócios, do nó borromeano [...] Uma coisa é certa, foi que eu tive a certeza de ser aquilo algo precioso, precioso para mim, para o que tinha a explicar, imediatamente relacionei esse nó borromeano com o que, desde então, se mostrava a mim como rodelas de barbante, algo provido de uma consistência particular, que faltava ainda ser sustentada, mas que era para mim reconhecível no que eu enunciara desde o início de meu ensino” (LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975 – grifo nosso).

Enquanto os matemas escrevem o irredutível de um saber que pode ser transmissível,

ainda que não-todo, o nó mostra, no silêncio de seu desenho, o real que está lá62. Ele

associa as três rodelas do nó aos três registros com os quais trabalha desde suas

primeiras produções, Real, Simbólico e Imaginário. E, como já dissemos, a relação

entre eles aqui ganha uma topologia singular63. Eles são tomados como equivalentes,

sendo o nó, enquanto resultado de uma amarração, o real em si mesmo. Daí a idéia de

que, mesmo num nó de três elementos, eles já seriam quatro, o que mostra a presença

ex-sistente do real.

Os matemáticos que se associaram ao empreendimento lacaniano muitas vezes

auxiliaram o mestre a construir sua teoria. Eles foram interlocutores importantes não só

por se colocarem intensamente a trabalho a partir das proposições lacanianas, mas

também pelo fato de que, sendo matemáticos, introduziram um olhar e um diálogo

diferenciados com Lacan. Em diferentes ocasiões, eles desenharam e conseguiram

construir os “objetos lacanianos”64 ou ensaiaram confirmar (ou refutar)

matematicamente as afirmações lacanianas. Soury chega mesmo a dedicar os últimos

61 Recentemente – Junho de 2006 – Michel Vappereau levou a leilão em Paris parte dos papéis com as anotações que Lacan lhe dera referente à topologia dos nós e à matemática.62 Mais ao final de seu ensino, Lacan (1981) irá dizer, num seminário realizado em Caracas, que o nó não diz tudo (“mon noeud ne dit pas tout ”), pois que não existe “pas tout” seguramente no real que ele aborda em sua prática.63 Charraud (1992) identifica em Lacan ao menos três topologias: (1) topologia geral (as vizinhanças); (2) topologia dita algébrica (as superfícies); (3) topologia do significante (a partir da significação do falo e aludida, mas não desenvolvida, em relação à metáfora e à metonímia). Com a topologia dos nós, no item (1), Lacan estaria deslocando a questão de como surgiu o sentido, apontada em “A instância da letra” (1957b/1998), para a de como, de um nó de sentido, surgiu o objeto a.64 Soury (1998b, texte 102, page 1) nomeava algumas figuras matemáticas, como o toro ou o nó borromeano, de objetos lacanianos.

137

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

anos de seus seminários no Centre national de la recherche scientifique (CNRS) ao

estudo da “topologia lacaniana”.

Um dos interessantes diálogos que evidencia a natureza dessa relação acontece em

1975. Durante seu seminário Joyce, Le Sinthome (1975-76/2005), Lacan retoma a idéia,

já bastante desenvolvida no RSI (1974-75), de que o nó borromeano não é um modelo.

Se o fosse seria da ordem do Imaginário, na medida em que todo modelo situa-se a

partir da substância suposta por este registro (LACAN, 1974-75, aula de 17/12/1974).

Diante desse fato, Lacan espera fazer, do aparente modelo que é o nó borromeano, uma

exceção. E o que significa isso?

Ele é claro: o que faz nó borromeano não é o Imaginário, nem a representação; ao

contrário, é o que escapa a uma representação. “O nó não é o modelo, é o suporte. Ele

não é a realidade, é o Real. O que quer dizer que, se há distinção entre o Real e a

realidade, é o nó, não como modelo” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/1975). Para

Lacan, o nó borromeano é uma escrita que suporta o Real, ele é o suporte. “O nó é

subjacente à linha. Não há consistência que não se suporte do nó. É nisto que, do nó, a

própria idéia do Real se impõe. O Real é caracterizado por se atar, mas é preciso fazer

esse nó” (LACAN, 1974-75, aula de 15/04/75).

A fim de demonstrar sua assertiva, Lacan, no seminário do ano seguinte, propõe a

hipótese de que não seria possível produzir um nó borromeano de quatro nós de trevo.

Provar sua não-existência – e não sua ex-sistência – permitiria que um Real fosse

assegurado. Trataria-se do Real constituído por isso: que não há nó borromeano que se

constitua de quatro nós a três. Demonstrá-lo seria tocar um Real, uma dimensão não-

representável no campo dos nós (LACAN, 1975-76/2005, p. 43). Antes de conhecermos

a resposta dada a Lacan por seus parceiros matemáticos, avancemos um pouco sobre o

que é a demonstração e a mostração para a Matemática.

Em uma demonstração (SOURY, 1988b), o que se discute são as configurações parciais

e as configurações impossíveis, especialmente as configurações parciais impossíveis. (É

o que Lacan pretende aqui. Ele quer demonstrar uma parcialidade impossível para a

teoria dos nós, ou seja, um nó que não pode ser realizado.) Desenhar, ao contrário do

demonstrar, seria mostrar as configurações completas e possíveis. Demonstrar é

principalmente demonstrar as impossibilidades, enquanto mostrar é principalmente

mostrar as possibilidades.

138

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Os desenhos são suspeitos de falsear as demonstrações. E, num outro sentido, as

demonstrações induzem a desenhos ruins e a desenhos sem interesse. Uma vez que um

desenho ganha uma configuração completa, tornam-se problemáticas certas existências

e certas construções. Donde a demonstração operar pelas configurações parciais.

A preocupação com a generalidade conduz a mostrar somente contra-exemplos. Ela

produz desenhos especialmente desagradáveis: são desenhos que querem indicar uma

generalidade de desenhos possíveis. Ora, um desenho, uma apresentação de objeto, não

mostra senão uma coisa. E, para desenhar um caso particular, é preciso estar-se

sustentado pela existência de casos exemplares. Há efeitos ruins das demonstrações e

das generalidades sobre os desenhos.

Estas são modalidades de dificuldades diferentes daquelas próprias ao desenho, à

apresentação, à designação, como as dificuldades ligadas à apresentação plana, em duas

dimensões, de objetos do espaço tridimensional. Um exemplo dessa dificuldade é o

problema clássico de perspectiva em geometria. Os problemas de apresentação ou de

designação são fontes de desenhos errados e obscuros, o que é atestado por Lacan ao

longo de seus seminários topológicos ao errar inúmeras vezes o desenho de seus nós no

quadro negro.

Daí uma apresentação de objeto, sua representação, ser muito menos ambiciosa que uma

definição geral de um gênero de objeto. De saída porque uma apresentação é particular

enquanto uma definição é geral. Em seguida porque designar um objeto de três

dimensões por algo em duas dimensões é menos ambicioso que designar e definir um

objeto espacial pela linguagem somente.

Donde decorre uma outra dificuldade da apresentação, qual seja, a de produzir uma

simplificação pelo desenho particular que gera desconhecimento sobre as dificuldades

da definição geral do objeto. As dificuldades e problemas de designação (ou

apresentação) têm uma fecundidade muito diferente e são quase mesmo constitutivas

em topologia. Soury (1988b, texte 102, page 3) chega a dizer que a relação entre

demonstração e mostração pode induzir a proposições falsas e/ou a figurações incorretas

de objetos topológicos.

Apesar de os matemáticos trabalharem principalmente com a abstração da demonstração

e da definição, ou seja, do lado da demonstração, um enunciado exato tem

freqüentemente duas metades: uma demonstrativa e outra mostrativa. Demonstrar as

139

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

impossibilidades somente fica claro por referência a mostrar as possibilidades. Isto quer

dizer que uma demonstração não caminha sem uma mostração e que uma definição não

caminha sem uma designação. Podemos mesmo construir uma tabela na qual dispomos

a diferença, o objetivo e o alcance da demonstração e da mostração, nessa relação de

complementaridade que podem (e mesmo devem) adquirir.

DEMONSTRAÇÃO MOSTRAÇÃODefinição Apresentação (ou designação)Gênero de objeto ObjetoGeneralidade ParticularidadeImpossibilidade PossibilidadeContra-exemplo Caso exemplarConfiguração parcial Configuração completa

Lacan mostra o nó para falar do discurso analítico enquanto operação sobre o real do

gozo. “Se fui levado à mostração desse nó, enquanto o que buscava era uma

demonstração de um fazer, o fazer do discurso analítico, isso é bastante, diria eu,

mostrativo ou demonstrativo” (LACAN, 1974-75, aula de 11/03/75).

E seu exercício avança na discussão do Seminário XXIII sobre haver uma

impossibilidade em se fazer um nó borromeu de quatro nós de trevo. Com isso, ele

mostraria uma impossibilidade, afirmando sua assertiva original de que o nó é o Real.

Ele busca uma demonstração do Real pela apresentação de um contra-exemplo: a

impossibilidade da existência de um nó borromeano de quatro nós de trevo.

A dedicação dos matemáticos com quem dialoga aparece aqui no desenho trazido por

Thomé que apresenta exatamente o desenho desse nó... Apesar de Lacan dizer ter

passado os dois meses de férias quebrando a cabeça para desenhá-lo, como ele mesmo

nos diz, isso não foi suficiente para provar que essa apresentação não existisse. De fato,

na aula seguinte a que Lacan se coloca essa questão, Thomé e Soury trazem o desenho,

que se encontra no Seminário XXIII (LACAN, 2005/1975-76, p. 47). São três nós de

trevo livres uns em relação aos outros, amarrados borromeanamente por um quarto.

Como o próprio Lacan argumenta em seguida, isso simplesmente teria permitido

sustentar o que ele pretendia introduzir, a saber, a equivalência dos três registros, posta

desde o Seminário RSI. Ali, ele define as três consistências por sua equivalência e

também por seu estatuto no nó. “Eles são constituídos por alguma coisa que se reproduz nos três. [...] é o resultado de uma certa concentração, que seja no Imaginário que eu coloque o suporte do que é da

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

consistência, que, do mesmo modo, seja do furo que eu faça o essencial do que é do Simbólico, e que eu suporte especialmente do Real o que eu chamo de ex-sistência” (LACAN, 1974-75, aula de 18/03/1975).

É do fato de que dois sejam livres um do outro que se suporta a ex-sistência do terceiro,

especificamente a do Real em relação à liberdade do Simbólico e do Imaginário. A

partir do momento em que o Real é enodado borromeanamente aos dois, eles lhe

resistem. Isso quer dizer que o Real só tem ex-sistência na medida em que encontra no

Simbólico e no Imaginário sua parada, seu limite. Daí Lacan afirmar e reafirmar

continuamente que o Real não é apenas uma rodela do nó borromeu, mas o efeito da

maneira como ele se amarra. O que nos importa aqui é essa operação real que, como

veremos, desloca e fixa o gozo. Trabalho permitido por uma renomeação do sujeito a

partir da versão do pai que estabelece.

Nesse diálogo, portanto, com a matemática e com os matemáticos, Lacan não faz nada

mais que, como sempre, orientar a clínica e reconduzi-la a sua radicalidade. Podemos

dizer que ele estabelece com a Matemática uma relação muito próxima da que

estabelece com a Filosofia65. Apesar de serem saberes disjuntos, Lacan coloca a

Matemática a serviço de seu trabalho teórico. Ele não a utiliza apenas como ilustração

lateral, mas dela extrai aportes que lhe permitem forjar seus conceitos clínicos.

Alguns anos após o suicídio de Soury em 1981 – três meses antes da morte de Lacan –,

Thomé edita seu curso numa trilogia de cerca de seiscentas páginas66 nas quais se

encontram desenvolvimentos teóricos, lógicos, geométricos e aritméticos da topologia

matemática, desenhos topológicos, rascunhos de idéias de sua aplicação à psicanálise,

diálogos com Lacan, e dados da história pessoal de Soury. Deles podemos extrair a

experiência viva da parceria dessa dupla de matemáticos com Lacan perscrutando os

arredores e as veias principais dos três livros. Em comunicação pessoal com Thomé, ele

diz que, com a edição do livro, tratava-se de fazer viver a genialidade de seu parceiro e

dar a ele o lugar destacado que merecia na posteridade.

3.1.1 A disposição clínica de um objeto matemático

A importância desse diálogo para a psicanálise reside, em nosso entender, na mostração

do Real, realizada através da presença da Matemática na elaboração lacaniana da clínica 65 Apoiamo-nos na proposta de BAAS (1992) acerca da relação Psicanálise-Filosofia para pensar a relação Matemática-Filosofia.66 SOURY, Pierre. Chaines e Noeuds. Paris, 1998. (Première, Deuxième et Troisième Parties).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

psicanalítica. Algumas proposições de Lacan, como veremos, são inaceitáveis no campo

matemático. Ele subverte os conceitos matemáticos, como já o fizera com os da

Lingüística e com os da Filosofia. Tal é a situação da representação plana de um nó

borromeu de três rodelas, desenhado com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-

76/2005, p. 112). Lacan tenta assim evitar todo Imaginário do círculo que aprisiona,

fecha.

Figura 12 – Nó borromeano de três elementos com duas retas e um círculo (LACAN, 1975-76/2005, p. 32)

Essa forma de apresentação é simplesmente inconcebível para um matemático. Isso pela

simples razão de que as retas infinitas podem se cruzar de qualquer maneira no espaço,

e não somente daquela que resultará num nó borromeano. Donde a exigência, para

designação do nó, de que ele seja representado por três círculos.

Lacan remonta a equivalência do círculo com a reta infinita à perspectiva de

Desargues67, que teria percebido que toda reta infinita fecha, faz anel num ponto

infinito. Assim, para Lacan (1974-75, aula de 08/04/1975), está dada a equivalência da

reta ao círculo pelo fato de que os dois fazem nó. Sendo equivalentes na eficiência do

nó, entre eles não haverá diferença, salvo pela passagem de um a outro... E nesse

percurso, Lacan observa que o círculo está centrado no furo, enquanto a reta parte no

67 A geometria projetiva surge com as dificuldades dos artistas do Renascimento para dar aos quadros que pintavam a forma real dos objetos inspirados, de modo que as pessoas ao olharem o identificassem sem dificuldades. Isso levou os artistas a estudarem profundamente as leis que determinavam a construção dessas projeções. Com esses estudos eles chegaram à teoria fundamental da perspectiva geométrica, que se expandiu por um pequeno grupo de matemáticos franceses motivado por Gerard Desargues. Desargues publicou um tratado original sobre sanções cônicas, aproveitando idéias de projeção. Esse trabalho, porém, foi ignorado e esquecido pelos matemáticos da época e todas as suas publicações desapareceram. O que os levou a essa falta de interesse sobre o trabalho foi a geometria analítica (introduzida dois anos antes por René Descartes) e a termologia excêntrica adotada por Desargues. Mas o geômetra Michel Chasles conseguiu ressuscitar o trabalho de Desargues ao escrever sobre a história da geometria, pois encontrou uma cópia manuscrita de seu estudo feita por um de seus seguidores. Assim, o trabalho de Desargues foi reconhecido como um dos clássicos no desenvolvimento da geometria projetiva, sendo hoje referencial no campo. Disponível em Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Geometria_projetiva>.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

errar até encontrar a consistência, ou seja, ex-siste, tem o furo em volta dela toda. O erro

central do nó, dado pela marca do recalcamento primário irredutível ao Simbólico,

instala um campo de falta e exige um suplemento a esta falta que cria. Esse erro,

portanto, é a chance de fixar o nó (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). Dessa

maneira, o nó borromeano constituído pela esfera e pela cruz torna-se, assim, necessário

para a proposição lacaniana de suplência, ao mesmo tempo em que se torna um

equívoco ou um desvio para a Matemática.

A subversão que acompanha a “topologia lacaniana” se apresenta num esforço

constante de Lacan em afirmar a incapacidade do plano de três dimensões em dar conta

do sujeito do inconsciente. “Lacan definiu um projeto que poderíamos denominar

‘inversão da topologia algébrica’, quer dizer, de fundar o espaço a partir dos nós e não

os nós a partir do espaço” (SOURY, 1988b, texte 104, page 2). A introdução do toro ou

da garrafa de Klein no plano projetivo já sugeria esse projeto. No Seminário RSI, Lacan

recorre às noções de vizinhança e de ponto de acumulação68 para evidenciar quanto a

topologia “encara o espaço de outra forma [...] Vê-se muito bem qual é a vertente, na

descontinuidade como tal, enquanto manifestamente há aí uma resistência a que a

continuidade seja a vertente natural da imaginação” (LACAN, 1974-75, aula de

08/04/1975).

Como passar do centro para o em torno continuamente implica em tentar responder

topologicamente ao fato de a linguagem se apresentar no texto inconsciente pelo

significante e manifestamente no ato da fala pela palavra, tal qual a Banda de Moebius o

explicita. Ou, tomada sob outra perspectiva, letra e significante dispõem-se com

estatutos topológicos diferentes mas, ao mesmo tempo, intrinsecamente articulados. É

nesse sentido que Lacan critica a geometria euclidiana como insuficiente com suas três

dimensões (ponto = dimensão zero, reta = dimensão dois, espaço ou volume = dimensão

três) para dar conta da experiência do inconsciente. É preciso um plano projetivo que

permita operações psicanalíticas, impossíveis para a geometria clássica.

E quanto à topologia dos nós? Na mesma direção, Lacan associa o uso do nó

borromeano a uma tentativa de evidenciar o discurso analítico que, por incluir o objeto 68 Esses são conceitos que surgem na Matemática dos números e dos planos complexos, acrescentando aos números reais e ao plano cartesiano a possibilidade de continuidade antes inexistente. Podemos dizer que foi através do uso e da compreensão dos números complexos que certos “defeitos” existentes no conjunto dos números reais foram “consertados”, ampliando o campo do raciocínio matemático ao inserir nele as continuidades. É sobre a analogia com o descontínuo e o contínuo que se apóia a perspectiva de uma continuidade intrapsicose ou o esquema da clínica diferencial apoiada na topologia dos nós.

143

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

a, aponta para uma dimensão de escape da linguagem. “...se fui uma vez tomado pelo nó

borromeano, foi por esse tipo de acontecimento, ou de advento69, como quiserem, que

se chama discurso analítico...” (LACAN, 1974-75, aula de 08/04/1975). O que ele

buscava ao encontrar nos nós esse acontecimento? É ele mesmo quem nos responde.

De um lado, e principalmente, tratava-se de pensar um deslocamento da Lingüística em

relação ao nó, ou da prevalência do Simbólico em relação à prevalência do Real. “É

preciso que o Real sobreponha, se posso assim dizer, o Simbólico para que o nó

borromeano seja simbolizado [...] é muito precisamente do que se trata na análise”

(LACAN, 1974-75, aula de 14/01/1975). Isso nada tem a ver com um sobrepor-se no

sentido imaginário de uma dominação, e sim que Real e Simbólico se atam de outra

forma. Essa outra forma é o que faz o essencial do complexo de Édipo e é no que opera

uma análise.

Ora, no mesmo seminário, RSI (1974-75), Lacan reforça a idéia de que “a linguagem é

só ornamento”, enquanto “o importante é a referência à escrita”, como vimos. Ainda

que ele não perca de vista que é pela linguagem que somos afetados, também não perde

de vista a diferença entre língua e fala, e entre fala e nó. A fala, apoiada na língua,

produz cadeia pela associação significante. Entre os três registros do nó, entretanto, não

há reciprocidade da passagem de uma das consistências no furo que o(a) outro(a) lhe

oferece. As consistências não se atam uma à outra, quer dizer, não formam cadeia. E é

nisso que se especificam as relações entre Real, Simbólico e Imaginário. Supunha-se

que eram as palavras que carregavam o efeito de sentido. Lacan coloca a questão de

saber se o efeito de sentido no seu Real se agüenta bem com o uso das palavras. E

avança dizendo que devemos nos fiar no fato de que o dizer faz nó, diferente da palavra

que desliza, pois há o inconsciente por detrás do blá-blá-blá do sujeito. Há uma cifra de

gozo que o nó engancha.

Deciframento no campo do Simbólico, ciframento no campo do Real é outro aforismo

conseqüente dessa discussão que evidencia o que Lacan buscava encontrar ao se deparar

com o nó. Há, no que se diz, o que é afetado pela palavra, o que se goza com ela. “A

interpretação implica totalmente numa báscula na envergadura desse efeito de sentido”

(LACAN, 1974-75, aula de 11/02/1975). Ela carrega, afeta, de uma maneira que vai

bem mais longe que a palavra. Há um ponto de gozo que a linguagem realiza e que lhe

69 Aqui Lacan joga com as palavras “évènement” (acontecimento) e “avènement” (advento, aparecimento) para tratar do encontro com a figura do nó borromeu.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

escapa. Quando Lacan nos convida a entrar na fineza dos campos de ex-sistência, pois é

aí que uma análise opera, e localiza na ex-sistência a incidência do gozo em relação aos

dois registros que se lhe opõem, convida-nos por conseqüência ao estudo da topologia.

Apresenta-nos, nessa faceta, o que mais se encontra ao se deparar com os nós. Para ele,

o nó borromeu é a melhor topologia para tratar do furo, pois a ex-sistência permite

exatamente conceber o limite, a não-relação.

E, enfim, na mesma via aberta pela relação à lingüística e pela relação ao tratamento do

gozo, Lacan (1974-75, aula de 15/04/1975) nos fala do encontro, através da descoberta

do nó, com uma realidade operatória. A realidade psíquica, a estrutura do mundo,

consiste em se conseguir palavras, enquanto a realidade operatória trata disso que

foge70, do Real. O inconsciente apenas permite que se veja haver um saber não no Real,

mas suportado pelo Simbólico, concebível pelo limite, pelo furo. O Simbólico gira em

falso e consiste apenas no furo que faz. Foi preciso que se fosse ao Real, suposto, para

se ter um pressentimento do inconsciente no sentido do que dá corpo ao instinto.

Trata-se, como se vê, de uma questão clínica por princípio a do encontro de Lacan com

o nó borromeano. O deslocamento de perspectiva operada por Lacan nesse período de

seu ensino encontra na teoria matemática dos nós uma sustentação real, hors de la

langage, mas por ela amparada, que interessa à clínica de maneira geral, e à clínica da

psicose, em particular.

“A formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? Porque só ela é

matema, quer dizer, capaz de transmitir integralmente” (LACAN, 1972-73/1982, p.

161). Mas se a formalização matemática é a escrita dessas pequenas letras em relação

umas às outras, ela só subsiste à condição de que seja lida, falada, e, com isso, algo já

está de saída perdido. Daí o matema apresentar-se, antes de tudo, como ideal

metalingüístico. E donde, por conseqüência, Lacan ir além e fazer consistir um saber na

medida em que ele se suporta na ex-sistência mostrada nos nós.

Podemos, enfim, dizer que a recorrência de Lacan aos nós se deveu ao seu desejo de

fazer valer uma clínica sustentada pelo Real no sentido de fazer operar o inconsciente

como savoir y faire do sujeito. Tratava-se, à época, de mostrar as condições de

possibilidade do discurso analítico, enquanto redução semântica, mas também redução

70 “E é inclusive no que o mundo é mais fútil (futile), quero dizer, que foge (fuit)” (LACAN, 1974-1975, aula de 15/04/1975). Lacan ironiza de novo com a homofonia para tratar do que, “fútil”, foge ao simbólico e se apresenta, ao contrário, como determinação real.

145

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

do gozo a sua parte que resta como vivificadora, elemento pulsante que permite ao

desejo construir seus nomes e seus percursos. Caminhemos, então, pelos nós da

topologia...

3.1.2 Topologia dos nós: noções matemáticas fundamentais

Os principais estudos de Lacan acerca dos nós datam da década de 70. Nesse período,

os matemáticos que se dedicavam ao tema ainda não tinham realizado o avanço que data

da década de 80. A teoria dos nós nasce no final do século passado, sendo

contemporânea da invenção da psicanálise. Mas mesmo os egípcios já utilizavam os nós

para marcação de medidas dos campos após as cheias do Nilo. Trata-se da cadeia do

agrimensor que se encontra na origem da matemática egípcia (GRANON-LAFONT,

1996). Foi somente no final do século XX, entretanto, com o desenvolvimento da

informática e com o uso do computador para resolver as fórmulas teóricas do nó, que

um avanço mais consistente se deu. É com Vaughan Jones, inventor do “polinômio de

Jones” em 1984, que invariantes sofisticados para abordar os nós começam a ser

desenvolvidos (SOSSINSKY, 1995). A essa época, Lacan já havia morrido...

Dessa forma, acompanhando a discussão lacaniana, buscaremos, apoiados na topologia

dos nós, destrinchar sua teoria de base, no que ela concerne e serve ao saber e à clínica

da psicanálise. Como vimos, na medida em que Lacan avança em suas discussões

acerca de um certo impossível de apreender, mais ele se vale desse recurso para falar do

que se escreve como Real. Pensamos que o uso da topologia, nesse sentido, a

necessidade de pegar e fazer os nós com fios ou cordas concretamente, é imprescindível

e autentica uma forma de pensar a clínica como operação que parte do Real. Para além

de teorizar ou conceituar as questões do inconsciente e do sujeito ou, em outras

palavras, para além de produzir sentido, de operar com a elucubração do saber advindo

da debilidade do inconsciente, Lacan nos convida a operar com o Real em jogo em

qualquer forma de saber.

Já desde as fórmulas da sexuação, mas principalmente com Joyce, Lacan parece

desacreditar do poder do significante, da eficácia simbólica da palavra. A aridez

hermenêutica dos nós é consubstancial a este período do ensino lacaniano, demarcando

uma orientação para o analista que acirra os efeitos e o manejo do real do gozo. Discutir

as diferentes formas de amarração borromeanas, e mesmo não borromeanas, os erros ou

146

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

lapsos dos nós, suas costuras ou suplências, deixa assim de ser um mero exercício

acadêmico para se conformar numa árdua tarefa clínica. É pelo menos dessa maneira

que, entendemos, a teoria dos nós precisa ser enfrentada.

Afinal de contas, o que é um nó? Enquanto no uso comum, os nós podem ser amarrados

numa corda e suas pontas podem se encontrar livres, a teoria matemática dos nós

denomina um objeto deste tipo antes como uma trança que como um nó. Para um

matemático, um objeto é um nó somente se suas extremidades livres são unidas de

alguma maneira de modo a que a estrutura resultante consista em um único fio enlaçado

(looped strand)71.

Assim, “os nós são curvas unidimensionais situadas no espaço tridimensional

ordinário, que começam e terminam num mesmo ponto” (NEUWIRTH, 1979, p. 52

apud MAZZUCA et al, 2000, p. 30). Há uma relação de menos dois na composição de

um nó, ou seja, menos duas dimensões do espaço unidimensional em relação ao

tridimensional. O nó também pode ser abordado a partir somente da dimensão

tridimensional, como faz Lacan ao elaborar o toro com uma corda. Na psicanálise

lacaniana, trabalhamos sempre com o exemplo material do objeto matemático abstrato,

na medida em que utilizamos a mostração através dos fios ou das cordas em suas três

dimensões. O nó é, portanto, uma curva fechada, uma curva com os extremos unidos.

Inclusive o nó trivial, que é o nó mais simples, aos olhos do leigo não o seria, como o é

aos olhos do matemático.

Figura 13 - Nó trivial (matemático) à esquerda e nó do senso comum à direita

A propriedade de enodamento não é intrínseca ao nó, como curva de uma só dimensão,

como se pode ver. Mas responde ao fato de que está e como está submergido no espaço

tridimensional. Por exemplo, se uma formiga segue pela circunferência, ela não percebe

o nó (NEUWIRTH 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 32).

A fim de precisar com maior rigor a conceituação dos nós, agruparemos suas principais

71 Disponível em <http://mathworld.wolfram.com/Knot.html>.

147

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

características que, se não compreendidas, geram conclusões equivocadas e

deformações conceituais. Podemos dizer, de saída, que os problemas cruciais dos nós

são três:

(a) saber quando dois nós são equivalentes e quando não o são;

(b) determinar se um nó está realmente enodado;

(c) realizar uma classificação de todos os nós possíveis.

A discussão teórica que se segue nasce na tentativa de responder a essas três questões

centrais.

A. Equivalência entre os nós

Pela matemática, “dois nós são equivalentes quando o modelo correspondente a um

deles pode deformar-se – estirando-o, contraindo-o ou retorcendo-o – até alcançar a

forma do outro, sem romper o tubo nem fazê-lo passar através de si mesmo”

(NEUWIRTH, 1979, p. 52 apud MAZZUCA et al, 2000, p. 33). O tubo a que se refere a

citação pode ser compreendido como o toro pelo qual passa a curva unidimensional que

é o nó. Ele pode ser representado visualmente ou pensado, para fins de compreensão,

como um fio ou uma corda. Portanto, se você não corta as cordas ou fios (ou rompe o

tubo) ao deformar um nó e ele chega ao formato do outro, daí são equivalentes. Por

conseguinte, somente se se mexer nos fios dos nós, sem alterar seu enlaçamento, é que

eles serão equivalentes.

Assim, ainda que dois nós se apresentem visualmente de uma maneira diferente, eles

podem apresentar as mesmas propriedades e serem equivalentes. Nesse caso, dizemos

que são apresentações distintas do mesmo nó, já que uma apresentação pode deformar-

se na outra, sem romper a corda. Veja o exemplo abaixo:

=

Figura 14 – Apresentações distintas do mesmo nó trivial (<http://knotplot.com/knot-theory/>)

E, ao contrário, dois nós podem se apresentar desenhados da mesma forma e não serem

equivalentes. Observe:

148

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 15 – Apresentações semelhantes de dois nós distintos (verdadeiro e falso nó de trevo)

No primeiro desenho da figura 15, temos um nó de trevo que pode ser definido como

uma linha que corta por cima, por baixo e por cima de novo a si mesma, fechando-se ao

final no ponto inicial de partida. É, pois, um nó, sendo classificado como o segundo nó

mais simples dentre os existentes e conhecidos. No segundo desenho da figura 15, há

um falso nó de trevo pois ele passa, em todos seus três cruzamentos, por cima. Com

isso, basta torcê-lo uma vez para que se o transforme no nó trivial.

Figura 16 – Desfazimento da torção de um falso nó de trevo

Dessa maneira, podemos dizer que o primeiro e o segundo nó da figura 15 não são

equivalentes72, apesar de possuírem uma apresentação semelhante. Enquanto os nós da

figura 17 abaixo são, esses sim, equivalentes, apesar de terem apresentações distintas.

Neles há três pontos de cruz (a corda passa por cima, por baixo e depois por cima de

novo). Ambos são nós de trevo, com três pontos de cruz.

Figura 17 – Equivalência entre dois nós de trevo com apresentações distintas

72 Cf. movimento no CD-ROM.

149

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

As diferenças de apresentação nos auxiliam a pensar, no campo da psicanálise, a

questão diagnóstica. Ainda que, enquanto forma ou conteúdo, um fenômeno ou um

sintoma apresente-se de maneira semelhante em dois sujeitos de estruturas clínicas

diferentes, ele só se tornará índice para diagnóstico se reduzido a sua forma mínima,

qual seja, a partir de sua escrita no nó. Por exemplo, mesmo que dois fenômenos

aparentemente alucinatórios se assemelhem quanto à forma de sua apresentação, eles só

poderão ser tomados como fenômenos elementares de uma psicose, conforme sua

incidência na amarração da linguagem e do gozo configurada pelo nó. Assim, sua

apresentação pode ser semelhante numa psicose e numa histeria e, no entanto, tratar-se

de sintomas de ordens diferentes, não equivalentes.

B. Movimentos dos nós

A fim de se passar de uma apresentação a outra de um nó, existem apenas três

movimentos básicos, denominados “movimentos de Reidemeister”, que constituem suas

manobras de mudança (MAZZUCA et al, 2000, p.34). Qualquer deformação que se faça

em um nó, necessariamente passará por um desses três movimentos, uma ou mais vezes,

ou pela combinação entre eles. Eles são nomeados pelo movimento que sugerem. Estão

enumerados e demonstrados abaixo.

1º - Torção-Desfazimento da torção 2º. Superposição-Retirada 3º. Deslizamento

Figura 18 – Os três movimentos dos nós (MAZZUCA et al, 2000, p. 34)73

Com os movimentos de Reidemeister, evidencia-se a isotopia dos nós. Não podemos

afirmar que os nós sejam exatamente iguais entre si (A=B), mas, a partir desses

movimentos, podemos estabelecer sua homotopia, sua semelhança topológica74.

73 Cf. movimentos no CD-ROM.74 Há um quarto movimento típico dos nós próprios. Além desses três movimentos clássicos que acontecem em três dimensões, há um quarto movimento que atinge os nós próprios de apenas uma rodela. Trata-se do movimento que provoca uma inversão no nó tal qual a inversão produzida a partir da imagem especular do nó. Trata-se de um movimento que passa à quarta dimensão. É como se se atravessasse o espelho e se visse o nó através dele. Pode-se atravessá-lo dessa forma e ele ainda é o mesmo nó. Mesmo

150

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Para a clínica psicanalítica, indicam movimentos de redução no discurso, necessários ao

enxugamento do Imaginário pelo Simbólico. Afastam o uso dos semblantes, recaindo

sobre o real da castração em jogo na amarração a que o sujeito acedeu.

C. Número de cruzamentos

Existem várias e sofisticadas invariantes na teoria dos nós. Como dissemos, elas se

sofisticaram, sobretudo, após a invenção em 1984, do “polinômio de Jones”. Aqui nos

deteremos em apresentar três, necessárias à compreensão básica da teoria dos nós no

que toca a sua apreensão pela psicanálise. A primeira delas diz respeito ao número de

pontos de cruz que um nó apresenta. Uma das maneiras de se caracterizar os nós é

examinar o número de pontos de cruz ou cruzamento que eles possuem. O ponto de

cruzamento “é o ponto da cadeia – ou do nó – no qual se produz o encontro de duas

cordas, em que uma passa por cima e a outra por baixo” (MAZZUCA et al, 2000,

p.39).

O número de cruzamentos, porém, é uma das invariantes mais simples da teoria dos nós.

Assim duas (ou mais) representações distintas de um nó podem corresponder ao mesmo

nó e, ainda assim, terem número de cruzamentos diferentes. O número de cruzamentos

não é, portanto, o que diferencia os nós, não é uma invariante muito poderosa para

distinguir nós. Para traçar uma equivalência entre os nós, a partir dos pontos de cruz, é

preciso reduzi-los ao número mínimo.

Tomemos como exemplo o nó mais simples, o nó trivial. Ele pode se apresentar com

três pontos de cruz, com um ponto de cruz ou com zero ponto (ver Figura 16). O nó

trivial é assim considerado por não possuir nenhum ponto de cruz, quando reduzida ao

mínimo a possibilidade de sua existência. O número de pontos de cruz permite

afirmarmos que não há nó com menos de três pontos de cruz, a exceção do nó trivial.

Esse princípio também se aplica às cadeias, que estudaremos logo a seguir. Assim, por

exemplo, a cadeia borromeana na forma tradicional de apresentação tem seis pontos de

cruz e na forma estirada tem oito:

que não pareça sê-lo, ele o é.

151

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 19 – Apresentação da cadeia borromeana com seis e com oito pontos de cruz

Interessante destacar aqui para a clinica psicanalítica, a necessidade de muitos ou

poucos cruzamentos para garantir uma amarração. Mesmo em um sujeito neurótico,

para o qual o NP aparecerá no Édipo como o quarto elemento na suplência, pode haver

a necessidade de reforços de cruzamentos diferenciados e particularizados para fixação

do gozo.

D. Número de desanodamentos (unknoting number)

Podemos entender o número de desanodamentos como “o menor número de trocas nos

pontos de cruz do nó que é necessário efetuar para que o nó se desfaça [desanude],

quer dizer, para que se torne nó trivial” (MAZZUCA et al, 2000, p. 45). Podemos

imaginar e realizar essa experiência com o nó de trevo. Com uma só troca, ele se torna

trivial.

Também com o nó 5, subíndice dois, desenhado abaixo, basta uma troca no cruzamento

inferior do nó para que ele se torne trivial. Seu unknoting number é 1. Acompanhe o

movimento abaixo.

152

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 20 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2, no ponto de cruz 4 (MAZZUCA et al, 2000, p. 46)

O desanodamento ocorre no cruzamento médio central do nó, identificado como quatro.

É interessante notar que se o desanodamento ocorresse em qualquer dos outros pontos

de cruz desse nó, seria necessário mais de uma troca para desfazer o nó. Assim, faz toda

a diferença localizar o ponto do cruzamento a ser desfeito para que o número mínimo de

trocas seja realizado até se chegar ao nó trivial. Dessa maneira, o nó poderá ser

classificado e diferenciado dos demais, apesar de sua forma poder ser semelhante à de

outro nó.

Introduzimos, portanto, artificialmente um erro no nó original. Interessante observar

que, conforme a incidência do ponto de erro no nó, o efeito provocado é diferente.

Pode-se obter um outro nó.

Figura 21 – Exemplo de desanodamento do nó 5, subíndice 2 com erro no ponto de cruz 2 (MAZZUCA et al, 2000, p. 46)

A importância dessa invariante para a psicanálise se associa exatamente com as

153

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

discussões lacanianas acerca do lapso ou erro do nó e, conseqüentemente, de sua

reparação ou suplência. Como se pode deduzir, o ponto no qual o erro incide aponta

para o modo de reparação que lhe corresponderá. O modo de reparação não é, pois,

aleatório.

E. Grupo nodal

A noção de grupo nodal tem origem na tentativa de reduzir as questões topológicas a

questões de álgebra abstrata, associando aos espaços topológicos invariantes algébricos.

Neuwirth (1979, p. 54 apud MAZZUCA et al., 2000, p. 47) a define da seguinte forma:

“Falando em termos gerais, o grupo nodal descreve as distintas formas nas quais é

possível cruzar o espaço tridimensional sem tropeçar-se com um nó imerso nele”.

Trata-se de uma forma de pensar o nó a partir de seu complemento, ou seja, a partir de

todo o espaço que resta além do nó, o espaço no qual ele está imerso. Sua fórmula é:

C = R3 – k. C é o complemento do nó, o grupo nodal.

R3 é o espaço restante menos o nó (k).

k é o nó.

Assim, o grupo nodal consiste em associar ao espaço em que está imerso o nó, a seu

complemento, um grupo algébrico. Ele é composto de todos os trajetos possíveis que

podem ser feitos em tono do nó no espaço associado a ele. As fórmulas algébricas

decorrem desses trajetos. Daí podermos afirmar que dois nós serão equivalentes se seus

grupos nodais também o forem.

O grupo nodal se constitui em noção importante para a psicanálise na medida em que se

associa à idéia de furo do nó, central na teorização da clínica lacaniana. Podemos tomar

o k como objeto resto, objeto a, que cai do real inscrevendo o sujeito desejante. O

sujeito, como C, implicará, então, numa perda num espaço real.

F. Nós e cadeias borromeanos

Define-se uma cadeia como sendo a que possui mais de um nó, mais de um

componente. Trata-se sempre de dois ou mais nós enlaçados ou encadeados. Na

verdade, a cadeia diz respeito a mais de um elemento, não necessariamente encadeados.

As mesmas propriedades vistas até agora e aplicadas aos nós também o serão em

154

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

relação às cadeias. Por exemplo, em termos de equivalência ocorre o mesmo, seja com

os nós, seja com as cadeias, isto é, duas cadeias são equivalentes quando podemos

deformar uma na outra sem cortá-las.

Por exemplo, a cadeia mais simples, a trivial, está assim disposta com os aros lado a

lado. Se os aros se interpenetram, teremos a seguinte, mais complexa. A segunda cadeia

é denominada de Cadeia de Hopf, sendo caracterizada pela interpenetração de seus

elementos.

Figura 22 – Cadeia simples e Cadeia de Hopf

Lacan se vale desse artifício das cadeias, no Seminário RSI, nas aulas de 15/04/75 e

13/05/75, para tratar do aforismo “a relação sexual não existe”. Se a relação sexual não

existe, não há interpenetração possível entre os dois aros, homem e mulher, sendo

necessário um terceiro elemento que permita alguma relação entre eles. Daí o nó

borromeano. O nó borromeano, portanto, é uma cadeia, uma cadenó – como Lacan às

vezes a aborda a partir deste seminário – em que não há interpenetração entre seus

elementos, assim como não há relação sexual. Por isso, como vimos, é preciso três, por

isso não há equivalência entre homem e mulher. Há encadeamento sem interpenetração:

se enodam de não se enodarem.

G. Classificação dos nós

Vimos até agora as invariantes que permitem diferenciar e classificar os nós: os pontos

de cruz e sua redução minimal, o número de desanodamento e o grupo nodal. Além

deste, as outras invariantes também recebem um tratamento algébrico. Assim, o número

de cruzamentos mínimos (crossing number) de um determinado nó (knot) em sua

apresentação mais simples se escreve sob a fórmula: c(k).

Quanto ao número de desanodamento (unknotting number), vimos que este se refere à

troca de cruzamentos (ou cruzes), que pode ser entendida como fazer passar a corda que

155

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

estava acima para baixo e vice-versa, em determinado ponto de cruz. Sua fórmula se

apresenta como: u(k).

Enfim, a fórmula C = R3 – k permite o cálculo algébrico do grupo nodal. Elemento

fundamental, como acabamos de ver, para diferenciação dos nós.

Estas invariantes permitem definir os tipos de nó existentes que são dispostos em uma

tabela com a apresentação, na forma mais simples, de todos os nós existentes.

Figura 23 – Apresentação parcial da tabela dos nós (<http://knotplot.com/knot-theory/>)

Para cada um destes nós foi criada uma representação matemática. Para esse fim, um nó

é nomeado da seguinte forma:

- um número de base, que representa a quantidade de cruzamentos mínima que

possui;

- um subíndice numérico, que indica a quantidade de nós existentes com esse

número de cruzamentos. O subíndice se representa num tamanho menor e vem

localizado abaixo à direita.

Tomemos como exemplo o nó trivial, o nó de trevo e a cadeia borromeana clássica da

qual Lacan se vale. O nó trivial se escreve: 0 seguido do número 1 abaixo à sua direita.

Indica que é zero o número de cruzamentos (c(k) = 0) e o número um indica que há

somente um nó trivial: 01.

O nó de trevo se escreve: 31. Significa que há três pontos de cruz e somente um nó de

trevo, ou seja, com três cruzamentos. Qualquer que seja a maneira como um nó de três

cruzamentos seja apresentado, deformando-o ele sempre será um de trevo. Somente a

partir de cinco cruzamentos é que os nós se tornam diferentes. Não que tenham

apresentações diferentes – isso qualquer nó pode ter, mesmo o trivial –, são nós

diferentes.

156

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Na medida em que se aumenta o número de cruzes, o número de nós multiplica-se,

havendo, por exemplo, quarenta e nove tipos de nó com nove cruzamentos. E os nós

com treze cruzes são em número de 9988. Morwen Thistlethwaite foi o inglês

responsável pela elaboração de um programa de computador que, em 1981, estabeleceu

2176 nós de doze cruzamentos e, em 1982, o número dos de treze pontos de cruz. A

partir de catorze pontos de cruz, os matemáticos supõem que o número de nós crescerá

tanto que será incalculável – se é que ainda não se chegou a essa cifra suposta através da

evolução da informática...

As cadeias, por seu turno, se escrevem com três números, e não apenas dois: o da base,

um pequeno acima à direita (superíndice) e outro pequeno abaixo deste, mais à direita

também (subíndice). O número de base representa o número de pontos de cruz. O

superíndice indica o número de componentes da cadeia (o número de aros). E o

subíndice indica a qual versão essa cadeia corresponde – não o número de suas

apresentações possíveis.

Por exemplo, a cadeia borromeana tal qual Lacan utiliza escreve-se: 6, seguido do

número 3 no superíndice (acima) e do número 2 no subíndice (abaixo). Isso indica que é

uma cadeia com seis pontos de cruz, três componentes ou três aros, sendo o segundo

tipo de cadeia de seis cruzamentos – no caso, existem três versões. Com esse nó, vimos

que Lacan consegue mostrar o real de sua proposta teórica acerca dos registros, abrindo

a possibilidade de pensarmos que são inúmeras as formas de arranjo subjetivo para cada

um.

3.2 Topologia e Psicose

Na década de 50, Lacan não falava ainda de nós para operar a clínica possível das

psicoses, mas já ensaiava uma certa topologia da estabilização ao propor o Esquema I.

Nesse período, era à hipérbole que ele se referia para pensar como a não operação da

metáfora paterna poderia ser suturada pela metáfora delirante. Já se tratava de uma certa

amarração, poderíamos nos arriscar a dizer, mas não ainda de um nó.

Apesar disso, juntamente com Benveniste e com Lévi-Strauss, começou a reunir-se

ainda em 1951 com o matemático Georges-Th. Guilbaud para trabalhar sobre as

estruturas e estabelecer pontes entre as ciências humanas e as matemáticas. Sua relação

com Guilbaud foi diferente de sua relação com Soury. Lacan manteve com Guilbaud

157

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

uma amizade de trinta anos, apesar de nunca ter ido a um seminário dele. Mesmo sem o

amigo, Lacan se lançava diariamente a exercícios matemáticos, recorrendo a ele para

discutir os obstáculos com os quais se deparava. “Durante vinte anos, porém, a

topologia permanece como um elemento ilustrativo do ensino lacaniano, sem

desembocar numa reformulação fecunda da teoria” (ROUDINESCO, 1988, p. 608).

Na verdade, foi preciso que o conceito de pai atravessasse diferentes formulações para

que a idéia de suplência e de pluralização dos nomes do pai pudesse ser retomada na

década de 70, tornando-se operatória a partir de então na clínica, inclusive das psicoses,

com a teoria dos nós borromeus. O pai como metáfora, depois como função, faz ponto

de capiton, enquanto o Nome-do-Pai como suplência faz nó.

Assim, a fim de pensar a topologia borromeana aplicada à discussão da estabilização na

psicose e sua operacionabilidade clínica, começaremos por apresentar um ensaio sobre a

topologia da psicose no período da metáfora paterna, quando Lacan ainda falava de

hipérbole ao apresentar o Esquema I. Em seguida, entenderemos um pouco mais sobre

os nós, sua topologia e a suplência psicótica sob essa abordagem.

3.2.1 Uma possível topologia lacaniana das psicoses na década de 50

A primeira grande ruptura que Lacan empreende quanto à psicose diz respeito a sua

própria formação. Jovem psiquiatra, ele busca, em diferentes modelos epistemológicos e

estéticos de sua época, um diálogo acerca de seu saber e de sua prática com as psicoses.

Se sua tese de doutoramento, com o caso Aimée, denotava uma transição entre um

modelo psiquiátrico de personalidade e sua crítica, ainda não se sustentava pela

psicanálise. Ele não desconhecia o texto de Freud, mas a retomada dos princípios

psicanalíticos freudianos será empreendida anos depois, quando do início de seu ensino.

Seus dois primeiros seminários, não publicados, aconteceram em sua casa e foram

dedicados a dois dos cinco casos freudianos, a saber, o Homem dos Lobos e o Homem

dos Ratos. Mas foi sobretudo na década de 50, quando ele já oferecia seus seminários de

formação junto à Sociètè Française de Psychanalyse, não mais ligada à IPA

(Associação Internacional de Psicanálise), que sua interpretação estruturalista da

psicanálise se firmou. “O Lacan barroco da maturidade lê com paixão o Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de Saussure, os textos filosóficos de Martin Heidegger e as Estruturas Elementares de Parentesco, de Claude Lévi-Strauss. Começa a interrogar os textos freudianos a partir de um sistema da língua, concebida como uma estrutura e composta de signos, estes definidos

158

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

segundo seu valor, através da relação simbólica de um significado com um significante. [...] O Relatório de Roma e a conferência que o antecede [O simbólico, o imaginário e o real] constituem um primeiro passo para a elaboração de uma teoria do tratamento, sua direção, sua temporalidade e suas pontuações” (ROUDINESCO, 1988, p. 274).

A influência estruturalista também aparece no estudo das psicoses que Lacan

empreende em 1956: “para que estejamos na psicose, é preciso haver distúrbios de

linguagem, e é essa, em todo o caso, a convenção que lhes proponho adotar

provisoriamente” (LACAN, 1955-56/1992, p. 110). No escrito que decorre desse

seminário sobre as psicoses ele é ainda mais incisivo: “Ao se reconhecer o drama da

loucura, põe-se a razão em pauta, sua res agitur, porque é na relação do homem com o

significante que se situa esse drama” (LACAN, 1957-58/1998, p. 581). Para ele, é

fundamental a entrada de um terceiro elemento, o simbólico enquanto Nome do Pai,

como elemento que organiza a estrutura da linguagem, como existência que sustenta a

ordem que impede a colisão responsável pelo desencadeamento psicótico.

Nesse período de meados dos anos cinqüenta, Lacan se esforça por estruturar no grafo

do desejo as conexões internas do significante na medida em que estruturam o sujeito. E

também se esforça em formalizar, no texto “De uma questão preliminar...” (LACAN,

1957-58/1998), os aportes de sua leitura sobre a psicose e seu tratamento possível pela

psicanálise. É nesse texto que ele introduz, apoiado nos Esquemas L e R (característicos

da neurose), o “déficit” da psicose em relação à neurose diante da inoperância do Nome

do Pai. O Esquema I, da psicose, e mais especificamente da psicose schreberiana, é a

topologia na qual, então, a psicose é apresentada. “Pois há aí uma topologia totalmente distinta daquela que poderia levar a imaginar a exigência de um paralelismo imediato entre a forma dos fenômenos e suas vias de condução no neuro-eixo. Mas essa topologia, que está na linha inaugurada por Freud [...] é justamente o que melhor pode preparar as perguntas com que se há de interrogar a superfície do córtex. Pois é somente após a análise lingüística do fenômeno da linguagem que se pode legitimamente estabelecer a relação que ele constitui no sujeito” (LACAN, 1957-58/1998, p. 547).

É então que apresenta, nesse texto nascido do seminário sobre as psicoses, o Esquema I,

caracterizando a topologia da estabilização psicótica de Schreber pela hipérbole. Antes,

porém, de discutirmos esse esquema, é necessário trabalharmos o Esquema R, do qual

ele é uma decorrência e uma ‘deformação’.

159

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 24 – Esquema R (LACAN, 1957-58/1998, p. 559)

Cabe observar que, mesmo não se tratando da topologia dos nós, o Esquema R já indica

a topologia do plano projetivo (ou cross-cap). Em nota de rodapé acrescentada em

1966, Lacan indica que, na representação aplainada do sujeito no esquema, uma Banda

de Moebius é isolada pelos termos miMI (faixa azul clara no desenho). Tal qual o real, a

Banda de Moebius se reduz ao corte, não havendo nada de mensurável a ser retido em

sua estrutura. Essa dobra, representada por uma faixa no interior do esquema, fala da

introdução do objeto a. Enquanto o campo da realidade barra o objeto a, a tela da

fantasia, ao obturar esse campo, se torna condição de possibilidade de sua existência.

Mas o que é um plano projetivo? “O plano projetivo é constituído pelo conjunto das

retas do espaço passando pela origem 0, estando o conjunto dos pontos de cada reta,

exceto 0, submetido a uma relação de equivalência” (DARMON, 1994, p. 111). Ele é o

ponto de fuga da perspectiva clássica.

Figura 25 – Plano da perspectiva clássica

Todo ponto situado sobre uma dessas retas é projetado sobre um mesmo ponto na

intersecção da reta e do quadro, se imaginamos um quadro antes do ponto 0. O plano

projetivo é exatamente a generalização de todas as retas paralelas ao quadro que não

podem interceptá-lo.

160

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 26 – Plano de projeção da perspectiva (DARMON, 1994, p. 111)

Essa linha imaginária é o que permite à própria superfície atravessar a si mesma sem

uma verdadeira intersecção. O que fica mais fácil de se conceber se representamos o

plano projetivo numa esfera, lembrando que o plano projetivo não possui avesso ou

direito, nem orientação, e que as bordas da esfera devem ser pensadas como pontos

infinitos.

Figura 27 – Planos projetivos inseridos na esfera (DARMON, 1994, p. 112)

Somente o corte revela a estrutura da superfície inteira, mostrando que o plano projetivo

é composto por uma Banda de Moebius e um disco. A Banda de Moebius delimita o

lugar-tenente da fantasia que articula dois elementos heterogêneos, a saber, sujeito

barrado (feito de linguagem) e objeto a (extrínseco à linguagem): $<>∀. “O $, S

barrado da banda, a ser esperada aqui onde ela efetivamente surge, isto é, recobrindo

o campo R da realidade, e o a, que corresponde aos campos I e S” (LACAN, 1957-

58/1998, p. 560, nota de rodapé). O sujeito barrado do desejo suporta o campo da

realidade na medida em que a extração do objeto a lhe fornece seu enquadre. Donde se

conclui que “o esquema R é um plano projetivo” (LACAN, 1957-58/1998, p. 559-560,

nota de rodapé) e articula os três registros numa primeira abordagem.

161

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

No que nos interessa depreender do Esquema R, eis aí o ponto central. É preciso a

extração de um objeto, enquanto efeito da castração, para que um sujeito se constitua e

sustente o campo da realidade, amparado simbolicamente em uma ponta pelo Outro (A),

em cuja oposição se situa o Nome-do-Pai (P), e, na outra ponta, no campo do

imaginário pelo significante fálico (φ), corolário do P que confere uma imagem

unificadora ao sujeito. O sujeito, “por outro lado, entra no jogo como morto, mas é

como vivo que irá jogá-lo” (LACAN, 1957-58/1998, p. 558). Ele o fará servindo-se de

um set de figuras imaginárias, numericamente reduzidas já que superpostas ao ternário

simbólico (MIP). O i e o m representam, assim, os dois termos imaginários da relação

narcísica, ou seja, o eu e a imagem especular.

A relação pela qual a imagem especular se liga como unificadora ao chamado conjunto

de elementos imaginários do corpo despedaçado fornece o par homólogo à relação Mãe-

Criança. É, portanto, a relação mãe-criança que dá ao corpo sua forma de imagem

unificadora – imagem fálica ou terceiro termo do ternário imaginário, no qual o sujeito

se identifica, em oposição, com seu ser de vivente. A prematuração do sujeito no estádio

do espelho abre uma hiância no imaginário sem a qual não se poderia produzir a

simbiose com o simbólico onde ele se constitui como sujeito para a morte.

No vértice simbólico, temos o I como Ideal de eu, o M como o significante do objeto

primordial e o P como a posição do Nome-do-Pai no Outro (A). “Podemos apreender

como o aprisionamento homológico da significação do sujeito S sob o significante do

falo pode repercutir na sustentação do campo da realidade, delimitado pelo

quadrilátero MimI” (LACAN, 1957-58/1998, p. 559). O significante fálico, como

recobrimento da falta instalada na faixa de Moebius, funciona como referente na

articulação da realidade. Interessante observar a necessidade de uma torção para que I e

i, e para que M e m, possam encontrar sua correspondência no quadrilátero que formam,

o que permite articular o P (Nome-do-Pai) ao seu corolário na metáfora paterna, o

significante fálico (φ).

Na faixa interna que compõe a Banda de Moebius, e que aqui corresponde ao campo do

real, Lacan situa de i a M, ou seja, em a, as figuras do outro imaginário nas relações de

agressão erótica em que elas se realizam; e de m a I, ou seja em a’, situa “onde o eu se

identifica, desde sua Urbild especular até a identificação paterna do ideal do eu”

(LACAN, 1957-58/1998, p. 559). Seja pela via do outro imaginário, seja pela via do

162

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Outro simbólico, em a e em a’ podemos localizar o campo das identificações, já em sua

relação ao real. Lacan irá, no Seminário RSI (1974-75, aula de 18/03/1975), articular as

três formas de identificação freudianas (FREUD, 1921/1976, p. 133-139) aos três

registros, nesse período já inseridos na topologia do nó borromeano.

O Esquema R já não se assenta sobre uma topologia orientada pela geometria

euclidiana. E, também no Esquema I, veremos as hipérboles indicarem uma torção

complexa operada pela ausência dos significantes fundamentais do Nome-do-Pai e do

falo, compondo uma outra geometria. Na psicose, o campo da realidade se encontra

remanejado. É o que Lacan tenta demonstrar no Esquema I.

Figura 28 – Esquema I (LACAN, 1957-58/1998, p. 578)

A ausência do significante do Nome-do-Pai instala um sorvedouro tanto do lado do

Simbólico como do lado do Imaginário, pela conseqüente ausência da significação

fálica. Esses dois furos, correspondentes à P0 (ausência do NP) e à Ф0 (ausência do

significante fálico), curvam as linhas mi e MI, desfazendo a Banda de Moebius e, com

isso, instalando um achatamento na figura, correspondente à ausência da queda do

objeto a. Além disso, as ausências do NP e do falo “reenviam para o infinito os quatro

parâmetros fundamentais do sujeito m, i, M e I, sendo que este último Criado I, acorre

ao lugar de P como que lançado pelo vazio” (DARMON, 1994, p. 120). Nas pontas da

faixa moebiana interna ao quadrilátero do Esquema R, teríamos as articulações

identificatórias no campo do imaginário e do simbólico, e o que delas restam real. Aqui

163

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

elas estão hiperbolicamente abertas ao infinito, sem um ponto de basta.

Nesse sentido, a torção que testemunha a queda do objeto a e conforma a Banda de

Moebius não existe aqui. Temos um desdobramento ao infinito dos campos do

Simbólico e do Imaginário, dado que a Banda de Moebius (que no Esquema R

correspondia a um corte definido que criava apenas uma borda) foi transformada nas

linhas hiperbólicas cujos limites são assintóticos. O plano projetivo se transforma dessa

maneira num plano hiperbólico.

Como conseqüência, o campo do Real se torna precariamente estabelecido e muito

variável. O campo R representa as condições em que a realidade é restabelecida para o

sujeito, o “que a torna habitável para ele, mas que também a distorce, ou seja, [os]

excêntricos remanejamentos do imaginário, I, e do simbólico, S, a reduzem ao campo

do descompasso entre ambos” (LACAN, 1957-58/1998, p. 580). Interessante que, nessa

leitura da solução psicótica do caso Schreber, o que parece estar ‘desamarrado’, se

pensamos borromeanamente, é o Real, descompassado em relação ao Imaginário e ao

Simbólico, que apareceriam com uma amarração incomum, com um ‘erro’ no sentido

que Lacan lhe atribui. Difere, portanto, do ‘erro’ de Joyce – entrecruzamento entre

simbólico e real –, no qual os fenômenos corporais testemunham um descolamento do

Imaginário, que resta livre no nó, exigindo um trabalho de suplência. Podemos, pois,

supor e desde já hipotetizar que o estilo de solução que o sujeito encontra está

intrinsecamente ligado ao que, do nó, se amarrou ou não, ou seja, à maneira como R, S

e I se ataram.

Continuando na leitura do Esquema I, vemos que I e M continuam ambos do mesmo

lado no esquema, assim como m e i. A torção no Real75 que articularia os registros

Simbólico e Imaginário não existe. Se, onde estaria o ponto 0 do plano projetivo,

localizarmos o a, basta desdobrá-lo entre a e a’ e separá-los deslizando na assíntota que

orienta como reta R para o infinito o esquema, para que tenhamos o desenho do

Esquema I. Uma das conseqüências desse desdobramento imaginário, a-a’, é que ele

assegura uma certa densidade ao Real, funcionando como seu arrimo.

75 Faixa azul claro da Figura 24.

164

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 29 – Deslizamento do ponto a-a’ do Esquema I (DARMON, 1994, p. 112)

Uma outra conseqüência presente no esquema, na medida em que se trata de um plano

hiperbólico, e não mais projetivo, é sua orientabilidade. Sendo orientável e, portanto,

reflexivo, o plano permite a apreensão do objeto a no espelho. Schreber nos atesta essa

presença do objeto em suas miragens no espelho, nas quais seu corpo se feminiza nos

seios femininos que crescem em seu peito, na medida da aproximação de Deus. É um

exemplo da aparição do objeto a que pode comparecer em diferentes manifestações

alucinatórias e fenômenos elementares na psicose. O objeto a não aparece como

complemento à referência negativa do sujeito, vindo a encarnar o que lhe falta. Ele é

assimilado ao sujeito, não falta. A passagem da topologia moebiana, projetiva, para uma

topologia plana, hiperbólica, recria a perspectiva de duas faces, cada qual em seu lado,

com o Real excluído, tal qual uma moeda. É o que testemunha a impossibilidade de se

fazer metáfora na psicose, bem como a não inscrição dos significantes que retornam no

Real. Na psicose, é o sujeito que se oferece como objeto que complementa o Outro.

Nessa topologia hiperbólica da solução schreberiana, temos uma indicação sobre a

estabilização na psicose. O eixo que articula ou sustenta minimamente os

remanejamentos imaginários que vêm em socorro à desarticulação no plano do

smbólico, é a assíntota R que se dirige ao infinito. Entre o deixar-se cair pelo Criador

(M) e o futuro da criatura (m), se escreve o projeto de ser a mulher de Deus para criação

de uma nova e superior raça de homens no texto schreberiano sobre o eixo R. Eis a

versão topológica da metáfora delirante como solução na psicose.

3.2.2 Entre o plano hiperbólico e a topologia borromeana: o objeto a nos anos 60

165

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

No texto “Observação sobre o Relatório de Daniel Lagache”, Lacan (1960/1998) esboça

a ruptura que estava sendo gestada no período e que aparecerá com a topologia do

objeto a76. Ele inicia uma série de retificações dentre as quais a que promove a

diferenciação entre estrutura e forma. “E a questão é justamente abrir o pensamento

para uma topologia, exigida pela simples estrutura” (LACAN, 1960/1998, p. 655),

entendida aqui enquanto estrutura de linguagem e seus efeitos combinatórios, mas já

marcada pela presença do objeto a.

Apoiada no esquema óptico, essa topologia inclui uma dimensão inalcançável,

irrepresentável, fora do plano projetivo, que Lacan chama de a, objeto a ou objeto real.

No esquema óptico, oriundo do campo da Física, Lacan localiza a projeção invertida do

objeto irrepresentável fora dos planos. Se o espelho trata da imagem virtual de um

objeto real, o olho, por seu turno, trata da imagem real de uma imagem virtual,

desdobrando a função óptica reflexiva e excluindo o objeto real do campo de apreensão.

A imagem nasce como recobrimento desse objeto inapreensível, que, por isso também,

é causa do desejo77.

O objeto a, aí apresentado, aparecerá referido à psicose na série de textos que Lacan

escreve nesse período. No Seminário 11, em especial, Lacan (1964/1998) irá articular a

constituição do sujeito a partir da falta instalada no campo do Outro através das

operações de alienação (reunião) e separação (interseção). Essa operação permite situar

a queda do objeto a com a experiência da castração e a instalação da tela da fantasia

($<>a), como proteção ao Real que aí se revela, distinguindo dois termos heterônomos

($ e objeto a) que, nela, se relacionam, como já discutimos.

Nesse período, Lacan irá discutir a psicose de maneira pontual, sobretudo referida à

criança. Irá, então, articular a psicose infantil à fantasia da mãe, e não mais à

descontinuidade do significante. “A criança débil toma o lugar [...] desse S, em relação

a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo

obscuro, que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico” (LACAN,

1964/1998, p. 225). Ou seja, quando a criança realiza a presença do objeto a na fantasia

materna fica numa psicose. Em outro escrito do período, duas cartas escritas a Jenny 76 Observem que toda a discussão acerca da Banda de Moebius e do objeto a no Esquema R e no Esquema I decorre de uma nota de rodapé acrescentada em 1966 ao texto.77 Além de utilizar o esquema óptico para tratar da topologia do objeto a, Lacan a discute, sobretudo, a partir de figuras da topologia das superfícies. Porém, visto que aqui pretendemos apenas circunscrever o surgimento do objeto a para tratar da psicose nos textos desse período, não entraremos na discussão dessa topologia.

166

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Aubry78, Lacan registrou a possibilidade de a criança inscrever-se, não só como fantasia

da mãe, mas também como sintoma da família, ampliando o arsenal de leitura das

psicoses infantis.

No que toca especificamente à topologia, Lacan irá se servir, sobretudo, da topologia

das superfícies (Banda de Moebius, toro, cross-cap, garrafa de Klein). Nesse período, a

topologia ainda aparece como um ensaio de redução teórica e, enquanto tal, como um

modelo. Lacan apresenta o horizonte epistemológico de sua obra: a constituição da

psicanálise como ciência, ciência do inconsciente, a começar pela noção de que o

inconsciente é estruturado como uma linguagem. Esse projeto, apresentado literalmente

no Seminário 11, é seguido pela dedução de “uma topologia cuja finalidade é dar conta

da constituição do sujeito” (LACAN, 1964/1998, p. 193). Ele se apóia nos matemas, no

uso das ‘letrinhas’ que condensam idéias. O artifício aparece aqui, mas ganhará

articulação como suplência somente no caso Joyce. “Não há topologia que não

demande suportar-se de algum artifício” (LACAN, 1964/1998, p. 198). A topologia

ainda é tomada como uma representação que intenta alcançar o mínimo formalizável de

um saber, não é ainda mostração do real.

Como também atestamos, em 1966, Lacan irá articular pela primeira vez a oposição

entre sujeito do significante e sujeito do gozo, instalando uma disjunção entre os dois

termos essencial à clínica (LAURENT, 1995b, p. 117). De um lado, o sujeito do

significante funciona como base para uma clínica orientada pela produção do sentido,

pela busca de uma verdade, desde sempre perdida na experiência traumática. De outro,

o sujeito do gozo veicula um modo de satisfação e um circuito de repetição que estão

além da captura de sentido pelo significante. A introdução do objeto a no período marca

uma posição de destituição no trabalho clínico. “A interpretação não visa tanto o

sentido quanto reduzir os significantes a seu não-senso, para que possamos

reencontrar os determinantes de toda a conduta do sujeito” (LACAN, 1964/1998, p.

201). Com isso, exige uma clínica em ato que aposta, não apenas na redução operada

pelo trabalho significante, mas também no aprendizado de uma certa maneira de lidar

com esse gozo que resta inanalisável. É com esse resto opaco que o sujeito deverá

savoir y faire, como propõe Lacan na década de 70. Vimos que lá essa relação se

complexifica, pois ele irá falar que o significante veicula gozo, articulando de outra

78 Cf. “Nota sobre a criança” (1969/2003, p. 369-370).

167

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

maneira a clínica e a psicose. Caminhemos para essa proposição.

3.2.3 Sobre os nós, o real e a psicose no Lacan da década de 70

A. A materialidade e a topologia

O recurso ao nó é claramente adotado em Lacan como uma maneira de pensar a clínica

psicanalítica, bem como de decifrar aquilo de que se trata no real. Ele sugere diferentes

versões de nós para articular a idéia de inconsciente, de gozo, de sintoma, de psicose. Se

os perseguirmos – esses nós e as proposições lacanianas que eles sustentam e mostram –

, veremos que Lacan ensaia no final de seu ensino uma estética da clínica psicanalítica a

partir do real como vetor de orientação.

O que isso quer dizer? Para concebermos a dimensão do real da clínica em jogo nesse

período, vale a pena seguirmos o rastro, uma pista que Lacan nos oferece na lição de 11

de Janeiro de 1977. Nessa aula do Seminário XXIV, L’insu que sait de l’une bévue

s’aile à mourre, ele brinca com o sentido e a homofonia – já desde o título do seminário

–, nos mostrando, talvez, que o sentido desliza pela cadeia significante, mas também

cifra gozo com a palavra, já que nem o fonema é lógico ou tem razões estruturais. Resta

sempre algo intocável, cifrado. Reduzido o gozo, sua parte viva continua pulsante, mas

o trajeto de satisfação se altera. Algo desse indizível, desse intocável ganha uma

alteração real.

Lacan vai, então, retomar a idéia de que o saber para a psicanálise é sempre o saber

inconsciente. Mas, aqui, o inconsciente já comparece como saber com o qual o sujeito,

em sua debilidade mental, não consegue operar. Para Lacan, é muito difícil extrair o

sentido que o inconsciente possuía em Freud. Ainda que “Freud não tivesse, então,

senão uma pequena idéia do que era o inconsciente” (LACAN, 1976-77, lição de

11/01/1977), Lacan pensa poder dizer que se tratava, nesse saber, daquilo que

poderíamos denominar efeitos significantes. A partir desses efeitos, esse saber seria

imposto ao homem, que não sabe muito bem o que fazer disso (“de cette affaire de

savoir”). Ele não fica à vontade com ele. Ele não sabe fazer com (“faire avec”) o saber.

É essa sua debilidade mental. Ele não sabe “y faire”. Esse “faire avec” é o mesmo que

esse “y faire”, guardada a nuance fundamental do “y” na língua francesa79. 79 “Savoir faire” é diferente de « savoir y faire ». A introdução do “y” “quer dizer se desembaraçar, mas este ‘y faire’ indica que não pegamos verdadeiramente a coisa, em suma em conceito” (LACAN, 1976-77, lição 11/01/1977). Há algo que escapa. E é para tentar dar conta disso que escapa que o discurso vem em socorro. Tudo o que se diz a partir do inconsciente participa, portanto, do equívoco.

168

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Para ilustrar essa dificuldade do pensamento, Lacan recorre a um estilo de linguagem

escrita característico da Idade Média. Nele há pouca gramática e muita lógica. É um

estilo que recorre a uma passagem da imagem à escrita, e também, sempre, ao equívoco

e ao convite a que o leitor participe da construção do texto. Ele pode ser lido e não

produzir sentido, ao mesmo tempo em que do texto se destaca um novo e outro sentido,

se lido pelas entrelinhas ou pelo que não faz linha, cadeia. Trata-se, enfim, do texto

“Les Bigarrures de Seigneur des Accords”, de Étienne Tabourot80.

A questão que Lacan evoca, a partir desse texto, é a de como conseguir apreender esse

tipo de delicadeza que, em última instância, é um uso do inconsciente. E mais, como

precisar a maneira pela qual, nessa delicadeza, se especifica o inconsciente que é

sempre individual. Se a estrutura da linguagem é a mesma para todos, o uso de lalíngua

é sempre único para cada sujeito. A articulação que o inconsciente estabelece como

forma de gozo é sempre singular à maneira como o sujeito se articula na língua mãe.

O exemplo de fetichismo apresentado no artigo freudino de mesmo título é ilustrativo

da dimensão clínica desse uso. Ao discutir as circunstâncias acidentais que contribuem

para a escolha de um objeto fetiche, Freud trata da arbitrariedade do significante de um

lado, mas revela, de outro, a dimensão de gozo presente em lalíngua e capturada como

letra em seus efeitos sobre a linguagem e sobre o corpo. Trata-se de um jovem para

quem a pré-condição fetichista residia num certo tipo de ‘brilho no nariz’. A surpresa de

sua explicação reside no fato de que o paciente recorrera a sua língua mãe, o inglês, para

constituir o sintoma e a forma de gozo que lhe era correlata, enquanto correntemente

utilizava a língua alemã do país onde passara a viver depois de sua primeira infância.

80 Apresentamos em francês um verso do livro de Étienne Tauborot, referenciado por Lacan, destacando com cores as colunas que podem ser lidas verticalmente também, além da leitura horizontal tradicional, de sorte que a falta de sentido e o sentido que escapa podem ser revelados e apreendidos.« Autrefois j’ai fait ces suivants en faveur d’une de mes idoles parlantes :Ta beauté, ta vertu, ton esprit, ton maintienÉblouit, et défait, assoupit et renflamme Par ses rais, par penser, par crainte, pour un rienMes deux yeux, mon amour, mes desseins, et mon âme. » (Étienne Tabourot, Les Bigarrures du Seigneur des Accords, Paris, Jean Richer, 1583, chapitre XIII, «Des vers rapportés », ff.130 à 134. [Gallica, N0070346_PDF_282_290])Outros versos no livro original podem ser visualizados através do site da Bibliothèque Nationale de France (BNF) no seguinte endereço eletrônico: < http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k70346j>.Podemos identificar «um tipo de cruzamento simétrico e gramatical», «frases de construção gramatical aparentemente desarticuladas e recompostas», uma «invenção astuciosa» que «remontaria talvez ao fim da Antiguidade grega», um «procedimento» que «da Idade Média latina [...] ganham as poesias francesa, espanhola, inglesa e alemã dos séculos XVI e XVII», segundo Ernst Robert Curtius em La Littérature européenne et le Moyen Âge latin, também disponível via acesso eletrônico no seguinte endereço: <http://perso.orange.fr/preambule/formes/formerapp/formrapp.html>.

169

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“O ‘brilho do nariz’ [em alemão, ‘Glanz auf der Nase’] era na realidade um vislumbre

(glance) do nariz” (FREUD, 1927/1976, p. 179), que somente o jovem experimentava

como forma de satisfação sexual.

A linguagem não possui três dimensões, ela é sempre aplainada em duas. Daí Lacan ter

começado com a história dos nós de três rodelas, no qual o simbólico, passando por

cima, depois por baixo das rodelas dos outros registros, e assim sucessivamente, teria

por efeito, cortando-se um dos registros, liberar os outros dois. Há, pois, a necessidade

de três, no mínimo (ainda que eles sejam quatro, como vimos, pois há o nó em si

mesmo como resultado).

Essa reflexão inspirou Lacan a querer identificar o real a esse terceiro elemento

articulado à matéria de uma maneira muito singular, através do “l’âme-à-tiers” (o

espírito à terceira). Interessante aqui ressaltar ao menos dois aspectos. Primeiramente,

ao tratar da matéria do real, Lacan a nomeia alma, espírito, mente – que em francês

encontram em “âme” a mesma significação. Já de saída, portanto, a matéria do real é

inconsistente nela mesma.

Mas há um segundo aspecto que articula o real e a linguagem – e esse é o ponto central

que, entendemos, levou Lacan a teorizar os nós para explicar o real na clínica

psicanalítica. Não há na linguagem uma relação binária, do tipo “X (relação) Y”.

Segundo Peirce, como já dito, é preciso uma lógica ternária, signo, objeto e

interpretante no estabelecimento e na utilização do signo. A exigência desse terceiro

autoriza Lacan a falar em “tiers”, em terceiro termo, mesmo em se tratando de uma

referência à linguagem. Trata-se de um terceiro termo determinante, diferenciado em

relação aos outros dois, signo e objeto, posto que ex-sistente a eles. Se não há três

dimensões na linguagem, isso não quer dizer que dois elementos lhe sejam suficientes.

É preciso uma engrenagem, um terceiro elemento lógico, para que ela funcione como

tal. Esse terceiro elemento está lá, sem contar, mas sendo contado, considerado, e mais,

sendo essencial na estrutura do funcionamento da linguagem. Por isso, o real teria o

mesmo estatuto no nó. Foi o que Lacan nos mostrou ao longo do Seminário RSI.

O significante, é disso que se trata no inconsciente, em suma, que falamos, ainda que,

como falasser, falemos completamente sós. Em outras palavras, o isso, dialoga, e foi

isso que Lacan designou pelo nome de Grande Outro. Trata-se do fato de que há

qualquer coisa de outra, o que ele denominou de “l’âme-à-tiers”, que não é somente o

170

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

real, mas qualquer coisa com a qual, expressamente, não temos relação. Trata-se do ∃

(%), o que quer dizer que isso não responde. É bem por isso que o eu (moi) pode se pôr

a falar e mesmo a delirar. Daí, entre loucura e debilidade mental não termos escolha. É,

pois, para tratar dessa materialidade intangível que os nós se colocam e nos colocam a

trabalho na psicanálise.“Nós não cremos no objeto, mas nós constatamos o desejo, e desta constatação do desejo nós induzimos a causa como objetivada. O desejo de conhecer encontra obstáculos. É por encarnar este obstáculo que eu inventei o nó. E quanto ao nó é preciso ter desembaraço [se rompre]. Eu quero dizer que é o nó sozinho que é o suporte concebível de uma relação entre o que quer que seja e o que quer que seja. Se, de um lado, ele é abstrato, o nó deve, entretanto, ser pensado e concebido como concreto” (LACAN, 1975-76/2005, p. 36-37).

A letra dá suporte ao que, dessa intangibilidade, pode se escrever entre real e simbólico

para um sujeito. Ela vivifica o gozo na escrita que singulariza a não-relação do sujeito.

Da língua mãe extrai o que orientará o texto do sujeito na repetição do contorno ao que

não cessa de não se escrever, ou seja, do impossível. Daí o sintoma, como resultado

necessário, insiste em se escrever sobre essa marca, atualizando-a81.

Como se vê, a superfície material que, no início de nossa pesquisa, dizia respeito a uma

materialidade do mundo empírico se modifica. Quando nos perguntávamos se era

possível a invenção de uma solução pela criação artística ou artesanal, prescindindo da

escrita, a materialidade à qual nos reportávamos era a argila ou a tela de um quadro, por

exemplo. Essa materialidade que, em Lacan, se opunha à substância, dizia respeito na

década de 50 ao significante, em oposição ao gozo. Na década de 70, entretanto, é a

letra que funciona como suporte ao significante, deslocando a materialidade da imagem

acústica para o campo litoral entre real e simbólico. E, finalmente, o que há de concreto,

o elemento articulador, deixa de ser o significante para aparecer sob a forma do nó,

como efeito real de enlaçamento. É ele agora o suporte concebível de uma relação entre

o que quer que seja e o que quer que seja. Letra e nó tornam-se elementos centrais em

nossa investigação dada a via de verificação da estabilização psicótica que permitem

conceber.

Assim, a fim de perseguir a arqueologia dessa proposta lacaniana, nos deteremos agora

no uso clínico que Lacan faz da teoria dos nós quanto à estabilização psicótica. Já

percorremos o modo como Lacan se apropriou desse território lógico e científico da

matemática para fazer operar uma transmissão em relação ao discurso analítico. Assim, 81 Lacan aqui recorre à lógica aristotélica (possível, impossível, contingente e necessário) para trabalhar o sintoma e a contingência de sua solução diante do impossível de se escrever.

171

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

orientados por uma progressão não-linear, mas lógica, característica do ensino

lacaniano, esperamos agora alcançar as conseqüências clínicas extraídas desse aporte

teórico no que ele pode contribuir para a discussão das estabilizações.

B. Reparação e suplência na clínica borromeana das psicoses

Toda essa introdução se faz essencial para entendermos como Lacan se vale da teoria

dos nós para discutir as diferentes soluções a que qualquer sujeito pode chegar a fim de

se escrever enquanto falante. Sabemos que sua preocupação não era a de ser fiel aos

princípios e conceitos das ciências e teorias das quais se utilizava para compreender as

questões do sujeito para a psicanálise. De posse do conhecimento que lhe era útil,

imergia-o na teoria psicanalítica para dele fazer uma versão com a qual fazia a

psicanálise avançar.

Não foi diferente com a teoria dos nós. Lacan, como vimos, encontra na cadeia

borromeana o instrumento para discutir as relações possíveis entre R, S e I. A partir daí

o nó de trevo, nó de três e o de quatro serão objeto de seu interesse, sobremaneira nos

seminários RSI e Joyce, le sinthome82. Uma das noções que utiliza com freqüência

nesses dois seminários é a de lapso ou erro do nó. Em relação a esse lapso, Lacan fala

na possibilidade de uma reparação. É justamente essa reparação que vai ganhar, a partir

de seus estudos sobre Joyce, o estatuto de sinthoma, invenção do sujeito que suplencia o

erro apontado. As diferentes versões de erros e suplências mostrados por Lacan nos

auxiliam a pensar o diagnóstico e a clínica com a psicose. Vejamos como ele os

apresenta.

O primeiro erro que Lacan desenha e comenta é o erro do nó borromeu inserido na

esfera armilar. No desenho original da esfera, os três círculos estariam livres uns em

relação aos outros, enquanto, no desenho com o erro, dois aros estão entrecruzados e

apenas um resta livre. Essa será também a estrutura do erro encontrado em Joyce.

82 Também no Seminário “Le moment de conclure” (1977-78), ele manipula os nós, ensaiando diferentes versões para a clínica.

172

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 30 – Esfera armilar, esfera armilar com erro, esfera armilar borromeana (LACAN, 1975-76/2005, 35-36)

Lacan utiliza esse recurso da mostração como método que evidencia a descrença no

objeto e na possibilidade dele ser apreendido por algum órgão. O órgão seria percebido

como uma ferramenta separada e, nesse sentido, seria conhecido como um objeto em si

mesmo. A análise operaria pela restituição do sujeito, dividido pela operação da

linguagem enquanto aparelho de gozo83. Enquanto ciência do real a psicanálise fez de

seu objeto sujeito, sujeito que é, de si mesmo, dividido. Donde Lacan buscar outra

materialidade com a topologia para pensar o falasser.

Ele aponta que o princípio do nó borromeano é o par de dois toros, dobrados um sobre o

outro e atravessados, no furo que se funda entre eles, por uma reta infinita. Essa reta

infinita faz desse furo um verdadeiro furo; mas ela está solta. E, se essa reta se solta,

uma reparação deverá ser feita para articulá-la aos outros dois toros novamente. Esse é o

artifício imposto pelos nós. Trata-se de um artifício de representação, de perspectiva,

pois é preciso que se faça uma suplência à continuidade aí imposta, no momento em que

a reta infinita é suposta sair do furo.

Acompanhando seu raciocínio, veremos Lacan chegar à formulação do nó de trevo

como sendo a geometria que subsiste da relação sexual, tal qual proposto no Seminário

RSI. É preciso entre dois, macho e fêmea, um terceiro para que ela seja possível. O

terceiro termo ao mesmo tempo em que torna o furo real, cria a condição para atar os

três registros. A única consistência aí, por conseguinte, é a da própria corda no que ela

faz círculo, aplainado, consistindo numa cadeia borromeana de uma só corda, e não de

três elementos, como na figura original. Essa cadenó, ou falsa cadeia borromeana,

engendra o nó de trevo.

83 Aqui Lacan dialoga com e critica Chomsky em sua abordagem cognitivista da linguagem. Nas conferências americanas, ele (LACAN, 1975b) já evocara o lingüista e sua teoria ao afirmar que Chomsky assimilava ao real o que era da ordem do sintoma, confundindo os dois elementos, como em sua afirmação de que a linguagem é um órgão. A questão que ele tenta responder, Laurent localiza na tentativa de fazer consistir o real no campo das pesquisas sobre inteligência artificial (2005, p. 58-61). Chomsky introduz um modelo transformacional das capacidades cognitivas da mente conhecido como tratamento de uma informação, e não como um cálculo lógico-matemático tal qual seus antecessores tentaram empreender. Para além do órgão corporal em si mesmo, ele situa um campo de múltiplas funções, novos órgãos alojados no corpo que operam como módulos de tratamento da linguagem do pensamento. Ele tenta fundar uma gramática universal, regida por regras de transformação aplicadas às gramáticas estruturais das línguas naturais. Caminha, portanto, na contramão da radical singularidade do uso de lalíngua que Lacan propõe. Enquanto, de um lado, Chomsky nos conduz a um pulular de órgãos, de outro, Lacan vai articular o corpo sem órgãos, o corpo como conjunto vazio, o corpo saco, com a consistência das cordas da linguagem que o atravessam em torno de um furo (LAURENT, 2005, p. 60).

173

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 31 – Cadeia borromeana e nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 87)

A materialidade do nó se situa na corda que o realiza exatamente por ser ela que

sustenta o que se ata e a maneira como se ata. O nó de trevo, então, Lacan o generaliza:

“por que não entender que cada uma dessas argolas continua na outra de uma maneira

estritamente não distinguível? Ao mesmo tempo, não é um privilégio do estar louco”

(LACAN, 1975-76/2005, p. 87). Essa amarração, intrínseca ao falasser, trava no seu

miolo o objeto a, o que faz obstáculo à expansão do imaginário concêntrico e evidencia

a inexistência da relação sexual ao exigir um terceiro elemento ao par disjunto de dois.

Nesta discussão, ele aponta a suplência como invenção que se soma para reparar ou

remediar o lapso do nó. E ele exercita o uso da topologia como ferramenta clínica na

leitura do caso de Joyce. Ao se perguntar a partir de quando se é louco e, mais

exatamente nesse seminário, se Joyce era louco, ele avança na noção de erro do nó e de

sua operacionalidade (LACAN, 1975-76/2005, p. 81). “Se aqui vocês mudam alguma coisa na passagem por debaixo dessa asa, resulta ali imediatamente que o nó é abolido por inteiro. O que eu levanto como questão nessa tagarelice, a saber, se, sim ou não, Joyce era louco, pode aqui ser localizada” (LACAN, 1975-76/2005, p. 87).

Lacan hipotetiza uma falha na amarração do nó de trevo em Joyce, que precisa suprir

esse desanodamento colocando uma argola onde o erro se apresenta. Graças a ela o nó

de trevo não se desmanchará. Como já tivemos oportunidade de ver, há no falso nó de

trevo um falso ponto de cruz. Originalmente o ponto de cruz 1 passa por cima, o 2 por

baixo e o 3 por cima. Ao criarmos artificialmente o erro no ponto de cruz 1, criamos

uma condição de falso trevo, na medida em que o nó se converteu em trivial, mantendo

apenas a apresentação gráfica semelhante à do de trevo. Há, pois, um lapso no ponto de

cruz 1. Aí Lacan introduz a argola que corrige o erro.

174

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 32 – Erro e suplência em Joyce no nó de trevo (LACAN, 1975-76/2005, p. 88)

Mas, para além da discussão pouco consensuada sobre ser Joyce um psicótico ou não,

interessa-nos tomá-lo como paradigma do efeito sinthoma no trabalho de suplência. E se

a foraclusão não é só do Nome-do-Pai na psicose, também sua reparação não será

privilégio dessa estrutura clínica. Ao contrário, vemos Joyce na década de 70 ser

tomado como paradigma de como se pode construir uma solução ao impasse colocado

pela falta do significante no Outro. Na primeira clínica, o Nome-do-Pai imprimia à

constituição do sujeito neurótico ou perverso um organizador comum e, à falta dele,

encontraríamos a estrutura ‘defeituosa’ da psicose, como vimos. A proposta de tomar

Joyce como paradigma da suplência de maneira não igual para não todos, mas comum a

qualquer um, é clara em Lacan, na década de 70. “O que eu proponho aqui é considerar o caso de Joyce como respondendo a uma maneira de suplenciar um desanodamento do nó. [...] A isso podemos remediar colocando ali uma argola, graças à qual o nó de trevo afirmado não se fará em flocos” (LACAN, 1975-76/2005, p. 88).

Lacan já havia introduzido a noção de sinthoma em Joyce em sua conferência intitulada

“Joyce, o sintoma” (1975/2005). Mas aqui ele avança nessa discussão e propõe que seu

desejo de ser um artista que ocuparia o maior número possível de pessoas, seria

exatamente o compensatório do fato de que seu pai jamais fora para ele um pai. Não

operou a transmissão, enquanto pai real, do significante do Nome-do-Pai, como vimos.

A Verwerfung de fato da demissão paterna teria sido compensada pelo desejo de ser um

artista que ocuparia o maior número de pessoas possível. Aqui o significante do Nome-

do-Pai revela a disjunção entre a função de nomeação e a função paterna. A demissão

paterna provocou um trabalho de nomeação operado pelo próprio escritor. Assim,

podemos dizer que o lapso do nó em Joyce é justamente a demissão paterna de sua

função de nomeação. Enquanto, por seu turno, o sinthoma joyceano – a saber, a

invenção de um nome próprio e o desejo de ser artista – repara esse erro do nó,

compensando uma Verwerfung de fato.

175

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Na última aula do Seminário XXIII, Lacan vai tratar da escrita do ego de Joyce como

reparação de um erro da cadeia borromeana a três, que recebe um elemento a mais no

ponto em que o erro se insere. O quarto elemento introduzido, o sinthoma ou o ego de

Joyce, repara o erro, atando os três registros. Ego, bem entendido, não como uma versão

imaginária e narcísica do eu, pois, como nos disse Lacan (1975-76/2005, p. 147), “o

ego cumpriu nele [Joyce] uma função da qual eu não posso dar conta senão através de

meu modo de escrita. [...]. A escrita é essencial a seu ego”.

Como vimos, Lacan localiza o erro num entrelaçamento entre o Simbólico (sintoma) e o

Real (inconsciente), que deveriam estar apenas superpostos, enquanto o Imaginário, reta

infinita, estaria solto. Se há entrelaçamento, a condição borromeana dessa amarração se

perde.

Lacan evidencia este estatuto do Imaginário com a declaração de Joyce sobre seu corpo

soltar-se de si como uma casca, quando ele leva uma surra de seus amigos, como já

discutido. Ele se pergunta por que não quer mal a esses amigos, por que não

experimenta nenhum sentimento por eles. Ele metaforiza sua relação com o corpo ao

tomá-lo como a casca que se solta. Desta vez, ele não gozou, mas teve uma reação de

repugnância. Essa idéia do deixar-se cair em relação ao próprio corpo é o que chama a

atenção de Lacan. É uma idéia de si como corpo que tem peso de ego para Joyce. Além

disso, a escrita joyceana, através das epifanias, testemunha a conseqüência que resulta

desse erro que ata o Inconsciente ao Real.

Sua reparação se fez exatamente no ponto em que o Simbólico entrecruza o Real. Para

isso, é preciso fazer a fabricação do nó. E fazê-lo se reduz a escrevê-lo. O nó é um apoio

ao pensamento: apensamento, como escreve Lacan para incluir o objeto a, além do

significante nessa operação84. É curioso que seja preciso escrever o nó para ver como ele

funciona. A escrita é o fazer que dá suporte ao pensamento. Mas o nó borromeano muda

o sentido da escrita, confere-lhe autonomia, mostra que o que se modula na voz não tem

nada a ver com a escrita. Mostra que há algo a que se pode enganchar significantes. A

escrita muda o sentido do que está em jogo. Como? Na medida em que os nós sustentam

o objeto, o ossobjeto. “É bem o que caracteriza a letra com que eu acompanho esse ossobjeto, a saber, a letra

84 Lacan continua no seu jogo com as homofonias. Aqui la pensée, o pensamento em protuguês, é escrito appensée, pensamento com ‘a’, objeto a, como ele explica logo em seguida (LACAN, 1975-76/2005, p. 144). Optamos por traduzir por apensamento para resguardar a referência à presença do objeto a como suporte.

176

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

pequeno a. Se eu reduzo este ossobjeto a esse pequeno a, é precisamente para marcar que a letra, neste caso, não faz senão testemunhar a intrusão de uma escrita como outra, com um pequeno a. A escrita em questão vem de outra parte que não do significante” (LACAN, 1975-76/2005, p. 145).

É aqui que a letra e o nó se aproximam. O nó é a escrita com o objeto a, é preciso

escrevê-lo para saber como ele funciona, nos ensina Lacan. Escrita com objeto-letra que

vem de outra parte que não do significante. Ela provém da escrita do traço unário, ao

qual Lacan, com a reta infinita do nó borromeano, confere um outro suporte. Em um

círculo, há um furo no meio, “a reta infinita tem por virtude ter o furo em torno dela

toda. É o suporte, o mais simples, do furo” (LACAN, 1975-76/2005, p. 145). Sulco,

rasura, a escrita é feita da sulcagem do que marca o corpo enquanto gozo, sem nenhuma

anterioridade. Letra. É o vazio escavado pela escrita que, como receptáculo, está sempre

pronto a acolher gozo (LACAN, 1971/1986, p. 31). É essa escrita que o conceito de

letra em Lacan inaugura. É a essa escrita que Lacan, com o nó borromeu, provê um

suporte.

O ego preencheu em Joyce a função de suplência pela escrita, aqui elemento essencial.

Como se vê, Lacan aproxima o nó à letra, no que tange à função de suporte que a escrita

realiza. Onde Lacan fala que é preciso escrever o nó, lemos que é através da função da

letra, entre Real e Simbólico, que uma resposta ao gozo do Outro pode ser cerzida,

enlaçando o Imaginário. Essa é a escrita do ego de Joyce, essa é, portanto, a escrita de

sua suplência, que, neste caso, opera como sinthoma, pois escreve uma resposta

possível à falta do significante referente no campo do Outro, enodando os três registros.

Sua escrita tem pelo menos quatro aspectos que a tornam reparadoras: (a) falta sentido

porquanto opera pelo Real; (b) inclui o objeto a, não sendo somente significante; (c) faz

função de letra e, portanto, de litoral entre real e simbólico; (d) e, enfim, é endereçada,

busca fazer laço social, sendo dirigida a um vasto público. É essa escrita que Lacan

equivale à escrita do nó borromeano. A ilegibilidade do texto de Joyce atesta a natureza

diferenciada de seu ego, corretor da relação faltante que não enoda borromeanamente

real e sintoma.

177

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Figura 33 – Suplência borromeana pelo Édipo (coluna esquerda) e suplência joyceana pelo ego (coluna direita) (SKRIABINE, 2006, p. 60)

Lacan mostra matematicamente, como vimos, que o erro em outro ponto de cruz não

geraria o mesmo defeito, nem requereria a mesma reparação. Além disso, uma

reparação borromeana é diferente de uma reparação não borromeana. E também

verificamos que nem sempre se alcança o sinthoma num trabalho de estabilização na

psicose. Tudo isso é fundamental para discutirmos a questão da clínica da psicose, seu

manejo com o gozo, com a nomeação e com o savoir-y-faire, no estilo das soluções

singulares que orientam a direção do tratamento.

Ora, Lacan insiste sobre a importância desse quarto termo em Joyce, pois a maneira

como ele se escreve, o efeito real de amarração que provoca, suplanta (ou melhor

suplencia) um desarranjo na articulação dos três registros. Se, por algum motivo,

estrutural ou contingencial, essa amarração vacila, o quarto elemento pode suplenciar

esse ponto, inventando um outro caminho para o sujeito. É daí que nossos recursos

clínicos com a psicose podem ser favorecidos por este estudo.

Podemos, enfim, a título de sistematização dos termos que utilizamos até então para

tratar das estabilizações na psicose, buscar estabelecer um critério diferencial que, a

partir deste ponto, indique com maior precisão sua utilização. No texto freudiano, nem

estabilização, nem solução são termos utilizados para tratar das psicoses. Será com

178

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Lacan que, enquanto termo geral que define um conjunto de operações diferenciadas e

singulares, o termo solução ou estabilização indica o gênero do processo psíquico que

agregaria sob seu teto diferentes modalizações. A estabilização pode, por exemplo, ser

precária, como pelo viés da identificação imaginária que forja um eu para o psicótico.

Ou pode incluir um trabalho de construção simbólica, como proposto pela leitura

freudo-lacaniana da metáfora delirante do Presidente Schreber. Pode também ser o

efeito recolhido de uma passagem ao ato, por exemplo.

Entretanto, nem toda estabilização cria uma forma de amarração dos três registros,

podendo ela se desfazer diante de um embate qualquer. Para podermos dizer que há

suplência ao que falha em um enodamento dos três registros, supomos a invenção de

uma nova forma de articulação entre eles, estejam eles em continuidade, como propõe

Lacan para o nó de trevo que caracterizaria a paranóia comum, ou não, como propõe na

cadeia de três para Joyce. O que poderia ser inventado aí seria uma estratégia a partir da

qual uma nova forma de gozo e de articulação entre Real, Simbólico e Imaginário se

produziria.

Então, poderíamos nos perguntar, toda suplência é uma invenção sinthomática? Miller

(2003a), ao trabalhar as invenções psicóticas, destaca na paranóia, na melancolia e na

esquizofrenia diferentes operações concernentes a essas invenções, das quais nem todas

forjam um sinthoma. O que caracterizaria, a nosso ver, a invenção sinthomática seria a

suplência em um ponto específico, seria a invenção de uma ferramenta singular que

operasse como nó borromeano, evitando o desencadeamento psicótico. Seria uma

escrita do nó com a letra-objeto a no nível de lalíngua que faria a sustentação dessa

nova articulação. E, nessa direção, ataria borromeanamente como quarto elemento os

três registros. Poderíamos representar assim a lógica de nossa terminologia, localizando,

de fora para dentro, as soluções, as suplências e, finalmente, o sinthoma.

1. Soluções (ou estabilizações);

179

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

2. Suplência (ou amarrações);3. Sinthoma

Nós nos valemos da hipótese de que, a partir do trabalho de escrita, a saber, a partir de

sua arte ou de seu artifício, Joyce pôde inventar uma maneira de constituir um nó que

fixou a letra de gozo. Foi neste ponto que seu “ego” pôde se escrever.

Trabalhando agora com os termos mais precisos, podemos dizer que a hipótese inicial

de nossa investigação era a de que a suplência poderia se dar através da criação artística,

prescindindo da escrita. Ora, o que os casos com os quais nos deparamos em nossa

investigação – e que apresentaremos no próximo capítulo – nos ensinaram é que a

criação sozinha não é índice suficiente para analisar a questão da estabilização. Há algo,

além e aquém da obra, algo nela e através dela que pode forjar uma estabilização: trata-

se da letra com a qual o sujeito se escreve como nó. Essa é verdadeiramente a arte de

Joyce, escrever-se em sua obra. Se entendemos que a estabilização é o gênero, do qual a

suplência é uma das espécies (com uma subespécie particular que é o sinthoma),

começamos a destrinchar com mais acuidade a questão da estabilização e a operação

que a efetiva.

3.2.4 Algumas conseqüências clínicas da topologia dos nós

Será, sobretudo, em sua terceira conferência em Roma, “A terceira”, que Lacan

(1975/1986) irá tratar do que hoje está sendo conhecido como clínica borromeana. Ali

ele faz um uso da topologia de nó para explicitar o que está em jogo num tratamento

analítico.

Figura 05 – Nó borromeano detalhado

Ao retomar a localização dos gozos no nó borromeano, ele lembra que o gozo fálico

180

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

está em contraposição ao corpo (imaginário), possuindo um caráter fora-corpo. E, da

mesma maneira, o gozo do sentido está fora do real, enquanto o gozo do Outro, estaria

fora do simbólico85. É assim que, “do alimentar o sintoma, o real, o sentido, não se faz

outra coisa que lhe dar continuidade de substância” (LACAN, 1975/1986, p. 39). É no

equívoco, e no que ele comporta de abolição do sentido, que o que concerne ao gozo,

sobremaneira ao gozo fálico, pode se estreitar, restando mais destacado o objeto a.

Portanto, se o sentido avança, ele dá substância ao sintoma, porém se se joga com o

equívoco, as rodelas serão esticadas e haverá um estreitamento em todos os campos do

gozo, restando o objeto a mais definido. Assim também, podemos acrescentar, se

reduzirão o campo de avanço de um registro sobre o outro, trazendo como outra

conseqüência uma redução nos campos da inibição e da angústia.

A manipulação do nó evidencia, assim, as operações de redução a que Miller (1998b) se

refere em O osso de uma análise. Elas seriam três:

(a) a repetição (do significante);

(b) a convergência (dessa repetição a uma frase que escreve o sujeito, redução

gramatical do blá-blá-blá);

(c) e a evitação (do que escapa à frase e se escreve como gozo).

Com o nó borromeu, a articulação significante-gozo é mais direta: tocando-se em um, o

outro se desloca. Essa clínica traz o morto da palavra ao vivo do corpo que goza para o

mesmo plano.

Ainda em “A terceira”, Lacan define o sintoma como “irrupção dessa anomalia que

consiste o gozo fálico, quanto mais se exiba, se desabroche essa falta fundamental que

qualifico de não-relação sexual” (LACAN, 1975/1986, p. 40). Na medida em que a

interpretação incide sobre o significante, algo pode recuar do campo do sintoma. Mas o

significante, a linguagem, o simbólico são sustentados por lalíngua. O inconsciente se

elabora como saber inscrito de lalíngua. A operação analítica se dá, portanto, entre os

dois campos, real e simbólico. Ainda que reste algo desse saber inconsciente

(Urverdrängt) jamais reduzido, jamais interpretado.“O essencial que há no jogo de palavras, é aí que deve visar nossa interpretação para não ser aquela que provê o sintoma de sentido[...] O deciframento se resume ao que faz a cifra, ao que faz o sintoma, é algo que antes de tudo não deixa de se escrever do real, e que ir cativá-lo até o ponto onde a linguagem possa equivocar-se é ali pelo qual o terreno está ganho em meus pequenos desenhos, sem que o sintoma se reduza ao gozo fálico” (LACAN,

85 Basta observar o campo de interseção entre os registros, tomados dois a dois, em contraposição ao terceiro que resta.

181

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

1975/1986, p. 32-33).

A sutileza da abordagem clínica aqui se localiza no fato de que a via para se fisgar o

Real é a letra. É a partir do momento em que se agarra o que há de mais vivo ou de mais

morto na linguagem – a letra – que se tem acesso ao Real. É o que permite aceder ao

gozo do Outro, pois este, estando fora da linguagem, separado da representação, não

existe senão enquanto acessado pela letra. O gozo do Outro, como vimos, implica na

impossibilidade de dois corpos fazerem um, e o falo é o que mascara a todo tempo essa

impossibilidade. Donde Lacan tratar de um estreitamento do gozo fálico e de um acesso

ao Real por mordiscadelas. Ele localiza na rodela do real a vida. Ela é esse inabordável,

esse insondável que a ciência busca incessantemente decodificar e explicar. Não é

porque o inconsciente é estruturado como uma linguagem, que ele, na mesma medida,

não dependa estreitamente de lalíngua, essa língua morta que continua em uso.

Outro ponto sutil que se fortalece nessa abordagem clínica é o fato de que esse resto

inanalisável, o que do inconsciente não se interpreta jamais, o sujeito tomará a seu

encargo para seu uso, responsavelmente.

Encontramos em Joyce uma arte de “saber fazer com” o inconsciente que nos fornece

uma via para articular a clínica borromeana. Com sua escrita, ele cria uma série de

solilóquios, o pensamento que flutua, que vai à deriva, que associa, que não cessa. O

sujeito pensa todo o tempo, é um monólogo interior. Ele pensa para ele, de um modo

solipsista, levado pelas sensações, pelas imagens, pelos sons. Ele divaga a seu bel-

prazer e, de tempos em tempos, isso eclode sobre o real [ça bute sur du réel]. Essa

mesma melodia se aproxima do que o analista escuta de seus pacientes, a melodia da

música do inconsciente. De um modo absolutamente particular, cada um fala da mesma

questão: a marca que porta do Real, do modo com o qual isso guarnece seu gozo, do

inconsciente que isso faz para ele. Misturando monólogo e endereçamento ao Outro,

palavra que escapa e construção laboriosa, pensamento solto e encontro com a vida

(SKRIABINE, 2006). Não é senão a partir do momento em que algo se desencapa que

se pode encontrar um princípio de identidade de si para si. E essa redução de sentido é

algo que se produz no nível da lógica, não do Outro, diz Lacan (1975/1986, p. 41).

A radicalidade desse último ensino lacaniano traz de fato uma novidade com a idéia do

fora do sentido. Mas trata-se de um fora-do-sentido que produz efeitos em relação ao

Simbólico, ao Imaginário e ao Real. O quarto nó que permite a amarração entre os três

182

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

registros evidencia uma saída singular, uma solução inventada por cada sujeito para se

haver com o impossível de enunciar. Parece-nos que, se a via dessa operação se dá na

relação entre Simbólico e Real – pelo menos em Joyce –, seus efeitos se dão em relação

a todos os três registros. Na verdade, em relação a sua maneira de atar-se uns aos outros,

trazendo como conseqüência experiências e inscrições subjetivas distintas.

No primeiro tempo do ensino, quando o nó borromeu é apresentado com três aros, os

três registros são equivalentes. É somente com a introdução do quarto elemento ao nó,

na década de 70, que os registros perdem essa equivalência. E, se há alguma diferença

em relação ao simbólico, ela diz respeito ao fato de que ele será trançado com o quarto

elemento sinthomático quatro vezes, e não somente duas como os outros dois registros

(LACAN, 1975-76), conforme apresentado na Figura 9.

O que Lacan subverte é a idéia de uma solução para todos, normativizada pelo Nome-

do-Pai e seu corolário, o Falo. Nesse sentido, podemos compreender a pregnância do

Real. Cada sujeito, a partir do real em jogo com seu gozo, irá operar uma forma de

suplência ao impossível de nomear.

Essa solução, em Joyce, implicou numa amarração entre simbólico e sinthoma – aqui

tomado como o real – de forma a que o imaginário não se despregasse do nó. Para

Lacan, as epifanias, na escrita joyceana, “estão sempre caracterizadas pela mesma

coisa, que é bem precisamente a conseqüência resultante do erro no nó, a saber, que o

inconsciente está atado ao real” (LACAN, 1975-76/2005, p. 154). Erro, como vimos,

pois os três registros deveriam apenas se sobrepor para serem entrelaçados

borromeanamente pelo quarto elemento, enquanto, em Joyce, dois registros se

entrecruzam. A escrita de Joyce introduz, portanto, a solução singular de

borromeanamente atar os registros, evitando a dispersão do Imaginário ao suplenciar o

erro. Força, dessa maneira, o objeto a que se escreve no nó.

Assim, do que já discutimos ao longo deste capítulo, podemos, quanto à clínica

borromeana, articular os seguintes aspectos:

(1) Não há Outro do Outro, pelo menos não há gozo desse Outro do Outro;

(2) É preciso, portanto, que se faça uma sutura, uma costura, a partir do ponto em

que essa ausência se escreveria no nó, ou seja, do campo de ex-sistência em

relação ao Simbólico e ao Imaginário, de acordo com a Figura 7;

(3) É preciso que, em algum ponto, haja um enlaçamento entre o nó do Imaginário e

183

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

o do saber inconsciente (Simbólico);

(4) Tudo isso para obter um sentido-gozo, que é o objeto da resposta do analista ao

exposto pelo analisante ao longo de seu sintoma;

(5) Quando fazemos esse movimento, esse enlaçamento, ao mesmo tempo fazemos

outro, entre o que é sinthoma (Σ) (rodela vermelha) e o real (rodela vermelha);

Figura 34 – Nó borromeano a quatro, evidenciando a costura do sinthoma com o real (LACAN, 1975-76/2005, p. 54)

(6) Nesse conjunto, podemos destacar duas duplas; os registros se atariam dois a

dois disjuntos, amarrados pela outra dupla que lhe é exterior, a partir do

enlaçamento central entre I e S;

(7) “É enquanto que o sintoma se religa ao inconsciente e que o imaginário se liga

ao real que nós temos negócio com alguma coisa da qual surgiu o sinthoma”

(LACAN, 1975-76/2005, p. 55).

(8) O analista trabalha com o analisante como enlaçar seu sintoma e o real parasita

de gozo;

(9) Tornar esse gozo possível é a mesma coisa que ouvir um sentido/gozar do

sentido (j’öuis-sens);

(10)É, portanto, de cortes, suturas e enlaçamentos que se trata numa análise;

(11)E devemos considerar os registros separadamente; Real, Simbólico e Imaginário

não se confundem;

(12)Encontrar um sentido implica em saber qual é o nó e em cosê-lo corretamente

graças a um artifício.

Parece-nos, portanto, ser possível dizer que86:

1º) desfazer a referência unívoca ao Nome-do-Pai como elemento discriminatório

entre as estruturas foi um passo dado por Lacan em seu último ensino, pluralizando

86 Verificar no Anexo VI o quadro referente à discussão da clínica borromeana.

184

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

os Nomes-do-Pai e sofisticando a noção de sintoma com a introdução do sinthoma;

2º) é possível pressupor que não é somente pelo viés do simbólico ou de uma norma

edípica universal que se podem produzir soluções ao furo constituído pela ausência

do significante do gozo do Outro;

3º) é importante pôr em questão a relevância das construções singulares que podem

ser construídas pelos sujeitos, ainda que elas se dêem a partir das diferenças

estruturais entre neurose, psicose e perversão, que não apareceram destituídas de

valor ao longo do ensino lacaniano;

4º) e, enfim, é fundamental avançar no campo de investigação desse efeito do real,

como campo do fora-de-sentido, junto aos enodamentos que podem advir do nó

borromeano nas soluções subjetivas e na direção do tratamento junto à clínica

psicanalítica.

Apliquemos, então, essa lógica à discussão clínica da estabilização psicótica a partir de

casos em que, ora a suplência se escreve ora, apesar da escrita factual da caneta no

papel, a letra não faz escrita do gozo.

185

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

CAPÍTULO 4APLICAÇÃO DA TOPOLOGIA BORROMEANA À LEITURA DAS

ESTABILIZAÇÕES NA CLÍNICA DAS PSICOSES

186

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

4.1 Discussão Metodológica

4.1.1 O método de pesquisa orientado pela psicanálise

Se a metodologia indica o caminho a seguir para se alcançar um objetivo, sabemos que,

no campo da psicanálise em sua inter-relação com a ciência, esse caminho não é

desprovido de dificuldades. Apesar do desejo freudiano de inserir a psicanálise no

campo científico, ela sempre teve uma relação de exterioridade com a ciência por

suportar e considerar os efeitos do real em sua elaboração e em sua clínica, a partir da

dimensão do inconsciente. Lacan trata dessa dificuldade ao falar que fazemos de nosso

objeto, sujeito, e sujeito dividido em si mesmo...

Discutindo o polêmico texto de Freud (1933/1976), “A questão de uma

Weltanschauung”, Figueiredo (2001, p. 07-10) traz apontamentos que nos orientam a

pensar a pesquisa em psicanálise e, portanto, estas dificuldades. Se a psicanálise é

incapaz de criar uma Weltanschauung87 própria por um lado, por outro, “sua

contribuição à ciência consiste justamente em ter estendido a pesquisa à área mental”

(FREUD, 1933/1976, p. 194). No debate em relação à ciência, à religião, à arte e à

filosofia, a psicanálise aparece como uma parte da ciência e, portanto, aderida à

Weltanschauung científica, precisamente por essa contribuição específica quanto ao

mental.“Entenda-se o mental seja como for: da alma (como no original alemão), do psíquico, na raiz da palavra ‘psicanálise’ ou do próprio inconsciente como objeto construído. O que interessa é que o método só pode advir da pesquisa e não de outros recursos mais próprios aos demais saberes em questão [religião, arte, filosofia]” (FIGUEIREDO, 2001, p. 8-9).

Se o comentário do texto extrapola aqui nossos objetivos, ao menos dele podemos

extrair o que é essencial à metodologia de pesquisa em psicanálise para nossos fins. Ao

modo da ciência, mas devido à incompletude de seus achados e por não pretender

estendê-la muito além o valor de suas construções lógicas, é possível ler no desejo de

Freud o compromisso da psicanálise com a realidade que investiga e com os conceitos

que formula então.

Específica, ainda que incompleta, a psicanálise parte em sua formulação do que a

orienta na clínica: a castração enquanto impossibilidade real de simbolização. É

exatamente nessa interseção da clínica com a ciência que a pesquisa deve caminhar. E 87 Freud (1933/1976, p. 193) define a Weltanschauung como “uma construção intelectual que soluciona todos os problemas de nossa existência de modo uniforme com base em uma hipótese superior que, por sua vez, não deixa questão sem resposta, e onde tudo o que nos interessa encontra seu lugar fixo”.

187

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

nela se insere a problemática questão de tomar o sujeito do inconsciente como objeto de

investigação.

Como nos lembra a discussão de Lacan em “A ciência e a verdade” (1965/1998), a

psicanálise aparece como uma derivação da ciência, tendo sua condição de possibilidade

radicada no corte que inaugurou, com Descartes e Galileu, a ciência moderna no século

XVI. Com esse corte, porém, a ciência situa e, ao mesmo tempo, exclui o sujeito. É

neste ponto também – acerca do sujeito – que a psicanálise, ainda que derivada da

ciência, avança para além e diversamente dela, ao incluir o sujeito em seu campo. “A

psicanálise constitui um saber inteiramente derivado porém não integrante do campo

científico, porquanto resulta de uma operação de ‘subversão’ desse campo pelo viés do

sujeito” (ELIA, 2000, p. 21). Se o sujeito com o qual a psicanálise opera não é senão o

sujeito da ciência, como afirma Lacan (1965/1998), fato é que esse sujeito é tomado em

sua dimensão radical de sujeito do inconsciente, sujeito desejante e, porquanto, sujeito

que inclui uma articulação que considera o real em jogo na experiência da castração.

É desse saber não-todo constituído pelo inconsciente que a psicanálise parte, na clínica e

na pesquisa. Donde a exigência freudiana (FREUD, 1912b/1976, p. 152) de que, na

psicanálise, “em sua execução, tratamento e investigação coincidam”. Assim, toda e

qualquer pesquisa em psicanálise é, em sua essência, uma pesquisa clínica ou, como diz

Elia (2000, p. 23), “na psicanálise, há, isto sim, um ‘campo de pesquisa’, que é o

inconsciente, e que inclui o sujeito”. A um novo objeto, desenvolve-se um novo

método. É assim que a ciência caminha...

Nesse sentido, a modalidade de pesquisa clínica – redundância do termo – não implica

somente em constituir um saber sobre a psicanálise em seus fundamentos teóricos, mas

essencialmente a partir de sua clínica (FIGUEIREDO et al., 2001, p. 12). É no

exercício da clínica psicanlítica que os pressupostos teóricos que a fundamentam podem

ser postos à prova, articulando a teoria com a prática e fazendo ambas avançarem.

A psicanálise, porém, opera com a realidade sempre a partir de sua definição de

realidade psíquica. Na medida em que parte da constituição da realidade como efeito da

apreensão que o sujeito, determinado pelo inconsciente, faz dela, rompe com a

dualidade externo-interno e objetivo-subjetivo. Como conseqüência, nos adverte que o

acesso ao fenômeno estudado, ao fato empiricamente encontrado, se faz a partir dessa

mediação simbólica, introduzindo a interpretação do sujeito no fato. Nesse sentido, não

188

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

se demonstra, afirma ou refuta o fato do inconsciente em si mesmo, mas antes a

construção erigida em torno dele, como já defendia Freud (1937b/1976). É sobre o

necessário, o que se escreve, e não sobre o contingente, o que se encontra, que se

processaria seu critério de validação.

Isto não implica numa desnecessidade transcendental dos fatos, senão cairíamos num

contra-senso lógico: é necessário partir da clínica, mas os fatos clínicos encontrados não

são os elementos que nos interessam, são secundários... A perspectiva imposta pela

proposta freudiana é a de considerar: (a) a apreensão subjetiva do fenômeno como

elemento necessário à investigação (o que limita a generalização das descobertas

realizadas); (b) a indissociabilidade entre o método de tratamento e de investigação,

pois tanto na clínica quanto na investigação o saber emerge como efeito da colocação

em ato do método; (c) a aplicação transcendental de idéias na leitura do fato empírico, e

a extração das consequências do empírico sobre essa apropriação na discussão racional

do fato.

Como, então, proceder? Freud é claro em seu texto sobre “Os instintos88 e suas

vicissitudes” (1915b, p. 137) quanto à articulação metodológica que procede da

epistemologia psicanalítica. Para ele, nenhuma ciência começa com conceitos básicos

claros e bem definidos, mas antes com a descrição dos fenômenos, procedendo-se

depois a seu agrupamento, classificação e correlação. Entretanto, mesmo durante essa

fase empírica, não é possível evitar a aplicação de idéias abstratas, advindas da teoria,

ao material encontrado.

Essas idéias se tornarão os conceitos básicos da ciência. E, apesar de apresentarem no

início certa indefinição – necessária –, não apresentam dúvidas quanto a seu conteúdo e

a sua escolha, determinada pela relação necessária que estabelecem com o material

empírico. “Só depois de uma investigação mais completa do campo de observação,

somos capazes de formular seus conceitos científicos básicos com exatidão

progressivamente maior, modificando-os de forma a se tornarem úteis e coerentes

numa vasta área” (FREUD, 1915b, p. 137). Aí sim, se tornariam definições mais

exatas, porém ainda passíveis de alterações em seu conteúdo, à medida que as pesquisas

avançam e novas descobertas se fazem.

Ora, Freud aponta como método na construção do saber psicanalítico uma posição que

88 Leia-se, devido a equívoco da tradução para o português, “As pulsões e suas vicissitudes”.

189

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

se radica entre o empirismo e o racionalismo, deslocando a importância central ora do

fenômeno, ora das idéias, para uma relação na qual, sobre a massa de fenômenos

encontrados, sobreponham-se idéias que os organizam, consolidando um campo de

saber teórico a eles pertinente. Sabemos, porém, que a universalidade dos conceitos e

seus efeitos de verdade, orientadores do método de clínica e pesquisa em psicanálise, só

podem ser recolhidos por cada um na singularidade de sua experiência.

Assim, respeitando a singularidade presente em cada caso e também a necessidade de

validação da hipótese desta pesquisa, optamos por realizar procedimentos que

obedecessem à lógica metodológica até aqui apresentada.

4.1.2 A psicanálise e os procedimentos metodológicos

Contemplando essa lógica do método nascida do estudo sobre o inconsciente em

psicanálise, a proposta deste trabalho se insere na perspectiva da psicanálise em

extensão (ou seja, aplicação da psicanálise a outros campos que não propriamente o

exercício clínico estrito e sua formação). Partindo da experiência de trabalho com

psicóticos nas oficinas em Saúde Mental, constatamos, em alguns casos, um

favorecimento do trabalho de estabilização através da criação artística ou artesanal.

Tomando a arte de Joyce, ou sua escrita, como paradigma, buscamos identificar casos

em que o trabalho realizado em oficinas artísticas, prescindindo da escrita, favorecia a

estabilização. Dessa forma, pudemos colocar à prova nossa hipótese, aplicando sobre o

material empírico a idéia, e extraindo dos fatos o avanço teórico possível de ser ali

produzido.

Sabemos que alguns casos de psicose podem apresentar um ensaio de estabilização

atravessado pela criação artística, como ocorreu com Arthur Bispo do Rosário ou Van

Gogh. O que operou e o que não operou nesses dois casos? Será que a obra, a criação da

obra, funcionou como ponto de basta? Como nó que a letra poderia ter escrito enquanto

esse Um inaugural idêntico a si mesmo e fundador de uma nova forma de enlaçamento

dos registros? Qual o uso singular que sujeitos psicóticos podem fazer desse recurso? A

diferença diagnóstica determina ou interfere nesse uso? Mais do que perguntar pela

função da obra nesses casos, como fizemos num primeiro momento, perguntamos como

o sujeito na psicose pode, através da criação ou da obra, fazer funcionar (ou não) esse

artifício como letra, como escrita que pode enlaçar os registros.

190

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

A fim de levar a cabo nossa investigação nos termos acima propostos, partimos dos

resultados da pesquisa realizada em nossa dissertação de mestrado, na qual constatamos

que as oficinas de criação podiam gerar efeitos de estabilização (mas não somente). Não

foi possível, à época, estabelecer o(s) elemento(s) envolvido(s) nesses efeitos

recolhidos, o que nos conduziu ao doutorado. Fomos, então, a campo buscando

identificar casos em que a obra tivesse produzido um efeito de estabilização para um

psicótico, a fim de discutir teoricamente em que consistia esse efeito e a função da

criação ou da obra nesses casos.

Ainda que Lacan tenha encontrado em Joyce o paradigma da estabilização pela obra

(escrita), como vimos, no mais das vezes, nos deparamos com sujeitos psicóticos que

criam obras, sem necessariamente produzir esse efeito de suplência (sinthoma) e sem,

nem ao menos, fundar uma via de estabilização a partir da criação. O que ocorre nessas

diferentes situações em que a criação atravessa o trabalho de estabilização foi o que

buscamos investigar.

O desenho de nossa pesquisa voltou-se, então, para a identificação de casos de

psicóticos que, não sendo artistas, realizavam criações artísticas ou artesanais que

apresentavam ou pareciam apresentar alguma contribuição em relação à estratégia de

estabilização que empreendiam. Ao visar a inter-relação criação-estabilização,

buscamos recolher os efeitos provocados nesse intervalo. Assim, realizamos nossa

pesquisa a partir dos seguintes procedimentos.

A. Circunscrição do campo da pesquisa

Nossa pesquisa se realizou junto à rede de assistência aberta e substitutiva de Betim que

conta com quatro CERSAM (Centro de Referência em Saúde Mental) para atendimento

complexo de urgências em regime de 12 ou 24 horas; aproximadamente cinco equipes

de Saúde Mental nos Postos de Saúde para acompanhamento ambulatorial prioritário de

casos de psicose já estabilizados; um Centro de Convivência com vistas à inserção do

psicótico através de oficinas de arte e de produção; e um serviço residencial terapêutico

como parte do Programa de Desospitalização Psiquiátrica, que complementarmente

oferece bolsas-desospitalização para auxílio ao retorno sóciofamiliar de pacientes

internados de longa duração. A população do município é estimada em cerca de 407.000

habitantes, possuindo, portanto, uma rede substitutiva bem equipada.

191

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Optamos por tomar a rede do município de Betim como universo para esta pesquisa por

quatro principais motivos: 1) a facilidade física de acesso aos serviços; 2) a facilidade

política de acesso aos sujeitos da pesquisa dada a predisposição da coordenação

municipal de Saúde Mental em realizar aí pesquisas que favoreçam o avanço da clínica

da psicose e do campo da Saúde Mental; 3) a complexidade da rede que favorece a

especificidade do recorte de nossa pesquisa; 4) a presença da psicanálise como um dos

saberes que orientam a prática clínica nos serviços públicos de Saúde Mental.

B. Recorte para o estudo dos casos

Nossa pesquisa incidiu apenas sobre o Centro de Convivência dado que é nessa

modalidade de serviço que ocorrem as práticas das oficinas, em especial daquelas que

têm como objeto e finalidade a criação de obras artísticas e/ou objetos artesanais.

Nessas oficinas, que acontecem paralelamente às de produção – onde a

profissionalização e a reabilitação são o mote central do trabalho –, o tratamento do

objeto como resto de uma operação subjetiva se faz mais presente. Especificamente

nesta pesquisa, nos limitamos ao Centro de Convivência do município que, segundo

consulta prévia feita à Prefeitura, possuía oficinas de arte e criação em seu cotidiano de

trabalho.

C. Desenvolvimento da pesquisa

Trabalhamos com categorias de sujeito e instrumentos diferenciadas para reunir o

material clínico e proceder à sua análise.

1ª. Num primeiro momento, fizemos um trabalho de levantamento de casos potenciais

para estudo, tentando identificar, através de relatos colhidos junto aos oficineiros do

Centro de Convivência e profissionais da rede, casos de psicóticos em que a criação

poderia estar associada a algum trabalho de estabilização. Em nossa dissertação de

mestrado, identificamos que esse efeito é contingente, acontece somente para alguns

poucos pacientes, não sendo possível a priori promovê-lo. Assim, buscamos os casos

em que, na perspectiva do oficineiro, já seria possível depreender algum efeito de

estabilização que pudesse estar associado à criação. A orientação desse levantamento

inicial foi a de localizar os casos e identificar o porquê de sua indicação, ou seja, o que o

oficineiro tomava como efeito produzido pela criação.

192

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

2ª. Num segundo momento, abordamos os responsáveis pela condução clínica dos casos

reunidos na primeira fase. Nesse ponto, colhemos relatos que contribuíram para uma

análise preliminar da relação entre o sujeito psicótico, a criação e a estabilização. Dessa

análise, selecionamos alguns casos para observação e acompanhamento.

3ª. Em seguida, observamos as oficinas e os sujeitos, havendo um responsável por cada

sujeito para acompanhá-lo e entrevistá-lo livremente, buscando vislumbrar sua relação

com o trabalho de estabilização e com a obra.

4ª. Nessa fase, localizamos alguns sujeitos que: 1) apresentavam hipótese diagnóstica de

psicose; 2) possuíam como característica a criação artística como via de solução a ser

investigada; 3) apresentavam ou já haviam apresentado situações delirantes, a fim de

articularmos o par delírio-criação no campo da estabilização. Procuramos apreender, a

partir das entrevistas clínicas com esses sujeitos, a função singular que a criação

apresentava para cada um deles na sua relação com a estabilização. Para isso, partimos

das categorias prévias dispostas no quadro abaixo.História de vida e clínica Relação com a obraDiagnóstico InícioDesencadeamento Relação estabelecidaCrises Mudanças na relaçãoProdução delirante Efeitos subjetivos recolhidosEstratégias subjetivas (solução)Tratamento

5ª. Entrevistamos também os responsáveis clínicos pela condução dos casos seguindo o

mesmo quadro, pois eles poderiam oferecer informações mais específicas e também

mais abrangentes sobre a inserção do trabalho de produção artística ou artesanal,

enriquecendo a posterior construção dos casos. Ao sustentarem o campo clínico e

transferencial no tratamento possível desses sujeitos, apresentavam uma visão mais

ampla e complexa deles, podendo situar com mais precisão a relação que

investigávamos. Assim, através de seus relatos pudemos recolher os fragmentos do

caso, seguir o estilo que era sugerido pela estrutura do sujeito psicótico, as estratégias

por ele construídas no decorrer do tratamento, as passagens subjetivas que contavam e a

conformação que as soluções por ele buscadas tomavam, em especial no que diziam

respeito à sua criação.

6ª. Esperávamos encontrar dois casos para comparação: um no qual o trabalho de

criação sustentasse a estabilização e outro que contradissesse essa possibilidade. Dessa

193

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

maneira, poderíamos sofisticar a discussão de nossa questão através da análise do que

era ou não operatório na estabilização de cada caso.

7ª. Paralela à investigação clínica corria a pesquisa teórica em torno do tema das

estabilizações nas psicoses a partir do referencial psicanalítico.

D. Contingências determinantes: tiquê e automaton na pesquisa em psicanálise

No desenvolvimento da pesquisa teórica, tivemos acesso a inúmeros casos de psicose

que estabeleceram alguma relação com a criação, em geral artística, na elaboração de

sua estabilização, tais como Arthur Bispo do Rosário, Van Gogh, Camille Claudel,

pacientes da Casa das Palmeiras (Rio de Janeiro). Chamou especial a atenção o caso do

Profeta Gentileza. Apesar de tratar-se de um caso relatado pelo viés de uma leitura

filosófica e estética, o material com o qual nos deparamos oferecia-se com uma riqueza

ímpar para nossos estudos. Tratava-se de livros e CD-ROMs sobre uma figura lendária

que viveu nas ruas do Rio de Janeiro, e nelas pregou a “gentileza”, pintando nos muros

do Viaduto do Caju mensagens que traduziam sua missão de ensinar o perdão e mostrar

o caminho da verdade e da moral aos homens. Dada sua notoriedade, a obra de

Gentileza tornou-se patrimônio cultural do Rio de Janeiro.

Gentileza era paradigmático para nossa investigação, pois trazia uma psicose

desencadeada, a criação, uma escrita com caligrafia absolutamente singular e um

trabalho de estabilização que explicitava a escrita da letra de uma forma única. Através

de um trabalho sistematizado de transmitir sua mensagem, fosse através da pregação, da

pintura de seus murais ou de sua própria indumentária, Gentileza criou uma saída que

nos colocou a trabalho enquanto aprendizes da clínica (ZENONI, 2000). Rompeu com a

repetição sistemática com que a pesquisa se desenvolvia, obedecendo à lógica

metodológica que a orientava, e se interpôs em seu percurso como contingência

necessária (!) a ser considerada.

Por outro lado, um outro encontro, ou uma nova contingência, nos retirou de nosso

caminho na vertente da pesquisa de campo. Sabendo de nossa investigação, um

psiquiatra da rede municipal nos procurou em um dia de entrevistas, interrompendo-nos

para dizer de um caso que não podíamos deixar de incluir neste trabalho. Tratava-se de

A., flagelo de Deus, jovem homem, esquizofrênico, que pintava e escrevia

incessantemente na tentativa de escrever-se um nó. Com a psicose desencadeada ainda

194

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

em sua adolescência, ele sofria com alucinações constantes e ensaios delirantes que

despejava no papel e nas telas de pintura.

O encontro com esses casos demarcou a irrupção do real da singularidade do uso da

letra – tiquê – que a repetição – automaton – dos casos levantados tentava encobrir. A

exigência de rigor científico aqui se deparou com a exigência clínica de tomar cada caso

como se fosse o primeiro e também com a impossibilidade de se transmitir o que é de

um tipo clínico para outro caso singular, dado que o que pode funcionar para um sujeito

não opera da mesma forma para outro. O traumático enquanto maneira singular que

deixa como rastro a entrada da linguagem e do real no corpo do sujeito, exigiu aqui um

contraponto ao exercício acadêmico de encontrar os casos, seriados, que evidenciariam

o que quer que se pretendesse demonstrar. Essa série significante, “científica”, que

poderia foracluir o sujeito, é interrompida e passa a obedecer ao princípio mais

freudiano para qualquer forma de investigação no território da psicanálise: que ela seja

clínica também, incluindo o sujeito do inconsciente e o real, como acrescenta Lacan.

Fora da série, fora do sentido, esses dois sujeitos, feito letra, exigiram uma outra escrita

metodológica para esta pesquisa: a escrita que inclui o real, que se suporta da letra no

banho de gozo com que lalíngua inunda o saber, débil para dar conta desse real. Esses

dois encontros modificaram definitivamente o desenvolvimento da pesquisa e a escrita

deste trabalho, pois exigiram, como previu Lacan, a inclusão do real e do sujeito em seu

texto.

Além disso, a perspectiva da comparação do que é singular apresentava uma

contradição lógica em si mesma. Como comparar o singular? Bom, tínhamos um ponto

do universal que atravessava os dois casos. E foi a partir dele que nos orientamos. A

falta é estrutural, para todos, e para ela o sujeito há que construir uma resposta, marcada

pela escrita da letra, campo de sulcagem do gozo, que se espraia de lalíngua, morta pelo

simbólico que ela sustenta, mas viva no uso do gozo que promove para o sujeito. Esta

era a escrita que faria a baliza na análise comparativa dos casos. Há situações em que

essa escrita parecia se fazer pela via da criação ou da obra, e outras em que, por mais

que o sujeito inventasse, criasse, ela não acontecia. Assim, com a escolha desses dois

casos exemplares, passamos a ter uma idéia tanto do que opera, como do que não opera

nessa convergência sobre a estabilização e a criação na psicose.

195

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

E. A construção e a análise dos casos

Trabalhamos com o estudo de caso seguindo a proposta aplicada por Freud à construção

dos casos que escreveu, buscando recolher no material encontrado elementos que

permitissem tecer considerações sobre nosso objeto de estudo. Freud, com seus casos

clássicos, nos ensinou que construir o caso é construir a teoria. E, com Lacan,

aprendemos que a topologia dos nós é uma realidade operatória. Assim, entendemos a

topologia como recurso e como mostração. Ela operará em nosso caso como um

localizador do sujeito, um instrumento de localização do sujeito. É um modelo de

construção diferente da construção do caso clínico proposto por Viganò (1999). Ela

também nos orienta na construção do caso, mas a partir do real em jogo para o sujeito.

Revela seu modo de escrita do gozo ou mesmo a falha ou o erro dessa escrita, indicando

o que pode repará-la. Assim, como método, ela serve como estratégia de construção do

caso a partir da articulação entre os três registros. A topologia é teoria e também

método.

A pergunta sobre o que opera numa estabilização a partir do uso da criação artística ou

artesanal, como já discutimos, ganhou primeiro plano. Se Joyce, paradigma de uma

psicose que fez sinthoma, atestava a estabilização pela via da escrita, perguntávamos, ao

início de nossa investigação, se uma suplência dessa ordem poderia prescindir da escrita

e apoiar-se sobre outra materialidade. Como se vê, eram dois vértices da mesma

questão, a materialidade e a escrita no trabalho de estabilização psicótica. Dois vértices

que convergiram para o mesmo ponto, qual seja, a letra que escreve o nó.

Nesse sentido, a materialidade comparece como suporte, seja suporte da letra para o

significante, seja suporte do nó para o pensamento. E, em ambos os casos, trata-se de

uma escrita. Lacan é peremptório sobre esse aspecto. Foi a partir da genealogia da

discussão dessa materialidade que chegamos à idéia de suporte, e desta retornamos à

idéia de escrita, sob uma perspectiva diferente da original. Aqui a escrita é a escrita do

nó, escrita com a letra a, ou seja, escrita que inclui o real no trabalho de suplência, seja

ela de que ordem for. Os rasgos ou sulcos, que o avanço da investigação produziu sobre

a questão original deste trabalho, escreveram o novo roteiro sobre o real que o orienta.

Nossa pergunta, portanto, inclui necessariamente a escrita, mas não obrigatoriamente a

escrita literária. Parece-nos que a suplência, como modalidade de estabilização que

inclui um quarto elemento novo inventado para atar os três registros, exige a escrita pela

196

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

letra, de forma tal que ela mesma se suporte do real do nó. Enlaçamento que um nó

pode produzir entre os três registros, cernindo o gozo sob a forma do objeto a, extraído

dessa operação. Esse é um dos usos clínicos e, portanto, metodológico ou investigativo

que podemos fazer da topologia do nó enquanto realidade operatória.

Assim, ela foi tomada aqui como vetor de mostração dos casos, paralelamente à

discussão teórico-clínica destes, sem a pretensão de estabelecer um saber unívoco e

acabado, mas antes aprendendo com a psicose na construção de soluções pelo viés da

criação. Buscamos encontrar, em cada caso, a relação entre os três registros e a

modalização de sua escrita, pois, mais do que a determinação de quais os recursos

materiais que poderiam favorecer o trabalho de estabilização para um sujeito psicótico,

verificamos que é o uso que ele faz desses recursos, o artifício que ele inventa no uso

que estabelece com esses recursos que pode fazer operar a estabilização enquanto

suplência.

Em função da dimensão do singular na comparação dos casos, trabalharemos com uma

estrutura de apresentação que não se prenderá a um mesmo molde de exposição para os

dois casos, mas antes tratará de destacar essa escrita particularizada em cada um.

Portanto, percorreremos a história de vida e história clínica de nossos sujeitos num

primeiro momento, para, em seguida, empreendermos a análise teórico-clínica do caso.

Finalmente, vamos nos deter na mostração topológica para extrair as conseqüências

dessas análises na discussão de nossa hipótese de investigação.

4.2 Uma Primeira Solução Singular: A Escrita do Profeta Gentileza

4.2.1 História de vida e história clínica 89

Aqui apresentamos a trajetória de vida de Gentileza, construída a partir dos pontos de

movimentos subjetivos realizados por ele na construção de um novo nome e de uma

nova forma de se escrever, como trabalho na estabilização psicótica. Os dados e datas

abaixo ficarão mais claramente demarcados ao ganharem o contorno teórico-clínico que

organiza o caso em seguida. Mantivemos, no Anexo II, uma cronologia biográfica

resumida que demarca com mais concisão esses pontos de estofo no estudo do caso.

Abaixo, seguem os dados construídos de maneira historicizada, destacados sobretudo o

trabalho delirante e o de escrita da obra.

89 Em sua essência, os dados brutos aqui reunidos foram extraídos dos livros de GUELMAN (1997 e 2000) e das entrevistas realizadas com ele e com Maria Alice Datrino, filha de Gentileza, em 2003.

197

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“José Datrino era empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que se viu sacudido por um acontecimento de grande força trágica: a queima de um grande circo na cidade de Niterói. Após seis dias, ele recebe um chamado divino para que deixe tudo que possuía e venha viver uma missão na Terra, assumindo uma nova identidade” (GUELMAN, 2000, p. 20).

Nascido em 11 de abril de 1917, em Cafelândia, interior de São Paulo, José Datrino era

o segundo filho dos onze de Paulo Datrino e Maria Pim. Viveu até os 20 anos naquela

região. Trabalhava puxando carroça para vender lenha nas cidades vizinhas e também

foi lavrador.

Quando adolescente começou a ter um comportamento diferente, seus pais o levaram a

um centro espírita, buscando fazer um trabalho com ele para que melhorasse. Desde os

doze anos de idade, José já anunciava uma missão: achava que teria de “ter uma

família, filhos, construir bens, mas que um dia teria de deixar tudo”. O comportamento

estranho do filho levou seus pais à suspeita de que fosse acometido de loucura.

Em 1937, já com 20 anos, deixa a cidade de Mirandópolis, sem avisar a família, rumo a

São Paulo. Seu destino final era o Rio de Janeiro. Ao se dar conta da partida do filho,

seus pais o seguiram até São Paulo, mas não conseguiram interceptá-lo. Para a família,

o filho tinha sido levado por um guia espiritual.

José Datrino ficou quatro anos sem dar notícia a seus familiares de Mirandópolis.

Quando souberam de José, ele já estava estabelecido no Rio e pedia à mãe que lhe

enviasse seus documentos. Lá, casou-se e teve cinco filhos, “três femininos e dois

masculinos”. O sustento de José Datrino e sua família provinha de fretes que ele passou

a fazer na cidade. Aos poucos fez crescer o negócio e, finalmente, estabeleceu-se com

uma transportadora de cargas na rua Sacadura Cabral, no centro da cidade. Cumpria-se

seu prenúncio de infância: José Datrino constituíra família e bens; era um empresário

possuidor de “três caminhões, três terrenos e uma casa”. Faltava apenas deixar tudo

isso para cumprir sua missão na Terra...

Com a vida estabelecida no Rio de Janeiro, deu-se a grande mudança na vida de José.

Conta sua filha mais velha, Maria Alice Datrino, que numa noite viu seu pai

atormentado por uma visita de alguém que queria torna-se sócio de sua empresa. Logo

depois “ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos, passando lama no

corpo”. A estranheza do comportamento, entretanto, ainda não alterara seu cotidiano de

maneira mais contundente.

198

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

É sob o impacto de um acontecimento trágico que surge então o Profeta, no início dos

anos 60. Sua missão se anuncia dias após a queima de um circo, o Grand Circus Norte-

Americano, no dia 17 de dezembro de 1961, que vitimou cerca de 400 pessoas em

Niterói. José Datrino inicia a fundação de um novo nome e de uma nova forma de

inscrição na vida pública num “cinzeiro humano”, num espaço de desolação. Seis dias

depois do incêndio, ele é tomado por uma revelação que, aqui, apesar da extensão, cabe

apresentar na íntegra com suas próprias palavras: “No dia do incêndio, dia dezessete de dezembro do ano de 1961, eu tava aqui em Deodoro, aqui em Guadalupe, na rua Barata, aqui na fundação, tava com minha família, aí eu senti uma reação. Naquele dia dezessete de dezembro de 1961, depois de seis dias, eu tava trabalhando com meu caminhão, de minha propriedade em Nova Iguaçu, entregando mercadoria, de meio dia a uma hora. Foi quando eu recebi o aviso astral de Deus de que no dia seguinte - três confirmações - eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do mundo para cumprir o espiritual na Terra, que eu deveria vir com São José, representar Jesus de Nazaré na Terra, perdoar toda a humanidade, ensinar a perdoar uns aos outros, e mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento de Jesus na Terra. E foi o que eu fiz. No dia vinte e quatro de dezembro de sessenta e um, eu deixei tudo. Aí fui pregoar em Niterói. Levei meu caminhão de minha propriedade, comprei duas pipas de vinho de cem litros em Nova Iguaçu para alegorar minha chegada em Niterói, na beira da praia, ali na Rua Rio Branco, tem um terreno baldio. Aí comprei copinho de papel, duas pipas de vinho de cem litros, comprei gelo, aí fui distribuir vinho lá pegado à estação das barcas em Niterói” (GUELMAN, 2000, p. 27).

Assim, no dia vinte e quatro, a partir de sua “revelação”, deixa tudo e vai pregar em

Niterói, distribuindo vinho para ensinar as palavras “por gentileza” e “agradecido”, em

oposição a “por favor” e “obrigado”, ganhando uma nova identidade: Jozzé Agradecido

que, posteriormente, se tornará Profeta Gentileza.

O neologismo, criado nas palavras gentileza e agradecido, ganha sentido na produção

do próprio autor. Segundo o Profeta, “obrigado vem de obrigação, é de carrasco. Deus

não quer que sejamos obrigados a nada. Deus quer a nossa liberdade, agradecido vem

de graça” (apud GUELMAN,1997, p. 193). Em suas falas e nos escritos que se

tornaram pilastras, Gentileza escreve: “Palavra que condena Por favor, obrigado é ser

escravo do capitalismo” (Pilastra 54). Na pilastra 51, “Palavra que liber(r)ta por

gentileza e por Jessuss Agradecido e o Espirito Santo que conduz” (sem grifo no

original).

Como se vê, o anúncio de seu nome aparece em oposição ao favor ou à troca calcada no

interesse, assim como o agradecido se opõe a obrigado, na medida em que ninguém

deve ser obrigado a nada, pois é a Graça de Deus que tudo provê gratuitamente. Ainda

nas palavras de Gentileza, observa-se a importância central dessas duas palavras, em

199

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

torno das quais se organiza sua produção escrita e artística. “Essas duas palavras, por

gentileza e agradecido, não tem dinheiro nenhum que pague. É a minha vida!”

(GUELMAN, 1997, p. 70).

Sua construção se organiza como luta contra o “capeta-capital” que vem destruindo o

mundo, colocando-se a gentileza como princípio ético, como desafio para a atualidade.

“Gentileza gera gentileza” é sua máxima, e daí decorrem as outras virtudes como amor,

beleza, perfeição, bondade e natureza.

Sabemos, entretanto, que o campo social é pouco elástico a manifestações exóticas,

como a que empreendeu Gentileza, pasteurizando toda a diferença em nome da boa

norma social, regulada pela Medicina, pela Moral e pela Polícia. Não foi diferente com

Gentileza. Após ter distribuído quase todo o vinho que havia levado, ele foi notado por

policiais que o abordaram, conduzindo-o para um Batalhão da Polícia Militar. No

transcurso, Gentileza perguntou ao policial se o Batalhão ficava ao lado do circo que se

incendiara, o que foi confirmado. Após as averiguações, Gentileza instalou seu

caminhão no terreno do circo, e ali passou a residir. Transformou o lugar num grande

jardim circular, abriu poço, onde “corria água limpinha”, fez horta e cercou o terreno

denominando-o “Paraíso Gentileza”, onde permaneceu por quatro anos. “Eu passei a morar no local do circo. Plantei flores, fiz jardim e cerquei o terreno. Na entrada coloquei dois portões, um de entrada, outro de saída, onde estava escrito: “Bem-vindo ao Paraíso do Gentileza. Entre, não fume, não diga palavras obscenas. Tornou-se um campo santo” (GUELMAN, 1997, p. 160).

Ali assumiu sua missão ao se fazer de consolador de todos aqueles que perderam seus

entes queridos. Conta Gentileza que “no dia 24, após ter deixado tudo, a minha própria

família, por não entender, me internou três vezes como ‘débil mental, como maluco’”.

Numa das três internações a que foi submetido, o "médico psiquiatra" disse a sua filha

que ele estava tomando choque à toa, pois não era maluco. No Hospital Psiquiátrico de

Jurujuba em Niterói, os enfermos ficavam todos à sua volta, ouvindo sua pregação.

Outra história que ele conta é a do médico que teria perguntado ao Profeta: "Gentileza,

você veio aqui para nós te curar ou para você nos curar?". Os prontuários de José

Datrino, que tentamos localizar, não foram encontrados no arquivo morto do hospital, o

que impediu maiores informações clínicas sobre suas internações.

Depois destas passagens, Gentileza ganhou novamente a rua. Sua figura singular passou

a atrair atenção. Aos que o apontavam na rua como maluco, ele dizia: "maluco para te

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

amar, louco pra te salvar [...] seja maluco mas seja como eu, maluco beleza, da

natureza, das coisas divinas”.

Numa missa campal que ocorreu no local um ano após o incêndio do circo, Gentileza

conta que um jornalista o fotografou e uma senhora contou ao repórter que ele tinha

perdido toda sua família no circo, por isso tinha ficado maluco, passando a residir no

local do circo queimado. Mas Gentileza ia à televisão, às rádios, aos jornais, sempre

desmentindo essa história. “Eu morava aqui em Deodoro, Guadalupe, bairro do Rio, né? Hoje em dia, desde 1952 até hoje minha família mora em Guadalupe. Então os jornais publicou dizendo que eu tinha perdido minha família, tudo calúnia. Colocaram em revista... . Então eu digo assim para vocês: Meus filhos, vocês nunca podem chegar numa banca de jornal e ler um artigo e afirmar que aquilo se sucedeu. O papel aceita tudo, a verdade e a mentira, e o jornalista quer saber de propaganda para vender o jornal. Por isso o que aconteceu foi calúnia” (GUELMAN,1997, p. 50-51).

Guelman nos relata numa entrevista a importância e a aceitação por parte das pessoas do

fato de o Profeta se estabelecer no local do circo: “Socialmente eu acho que isso foi bem aceito, por que aí tá uma grande questão: ele figurou como aquele que perdeu a família no circo, sem ter perdido a família no circo. E cumpria aí um papel fundamental, e que... Para todas as pessoas que perderam a família no circo, pai, mãe, irmão, oito pessoas, às vezes foram dez pessoas no circo, uma sobreviveu. Entendeu? Então, ele não tinha ninguém no circo, ele não estava no circo, nada, mas ele cumpre o papel daquele, daqueles que perderam toda família no circo. Então tá explicado por que aquele senhor, aquele homem que estava lá no terreno do circo, que ele foi no circo com toda família. E, por não aceitar a perda, ele passou a morar no local do circo, e a virar um profeta. E ficou louco, ficou maluco. Essa é a lenda, o mito que surgiu, inaugural, do personagem dele” (Relato de Guelman em entrevista).

Como ele pregava a Gentileza e se denominava o Profeta Gentileza, dizia que “se

alguém perguntar quem é o Gentileza, vocês ensinam: é o nosso Pai, Criador Celestial.

Por que Deus é Gentileza? Porque é Beleza, Perfeição, Bondade, Riqueza, a Natureza,

nosso Pai Criador” (GUELMAN,1997, p. 45).

Ele criou várias modinhas, e numa delas destaca a relação do circo com o mundo: “Diz

que o mundo ia se acabar, pois o mundo se acabou, a derrota de um circo queimado é

um mundo representado, porque o mundo é redondo e o circo é arredondado”

(GUELMAN, 2000, p. 15). Guelman, em sua leitura filosófico-estética, também faz

uma relação do mundo com o incêndio do circo na medida em que um circo consumido

pelas chamas, derrotado em sua inocência, representa um mundo e seus valores sob

ameaça de um fim.

Em meados dos anos 60, Gentileza sai do local do circo e começa a deslocar-se entre

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Rio e Niterói, ficando conhecido como o “pregador da lancha”. Adquire

reconhecimento popular, cria provérbios e máximas para alcançar as pessoas, ensina a

gentileza e proclama novos costumes morais. Aqui, um de seus provérbios: “Cuidado,

cabecinha da humanidade! Cuidado lingüinha! Lá no cemitério tinha uma caveira...

Alguém foi no cemitério e perguntou: Caveira, quem te matou caveira? A caveira

respondeu: a língua ferina. É verdade!” (GUELMAN, 1997, p. 64).

Com um estandarte em punho, encimado por um punhado de flores que migraram do

“Paraíso Gentileza”, ele se apresenta como representante de Deus e anunciador de um

novo tempo. Seu estandarte funcionava como carteira de identidade mítica, repleto de

alegorias. Com as incrições do “PC” no estandarte, é convocado na década de 60 a

explicar às autoridades que não se tratava de Partido Comunista, e sim de Pai Criador.

No estandarte fica clara sua simbologia singular alimentada e inspirada pelo aspecto

religioso. Inclusive muitas de suas produções, máximas e modinhas trazem trechos

bíblicos ou passagens análogas às bíblicas em seu conteúdo, como vemos na

estruturação do estandarte abaixo relacionada.

(a) F/P/E/N Filho, Pai, Espírito Santo e Nossa Senhora. Esse é o diagrama de

uma síntese religiosa do mundo (universo), de modo que a parte superior representa

o céu, com as estrelas, e as iniciais F/P/E, o cume do mundo espiritual. Elas ficavam

dispostas em seu estandarte.

(b) O primeiro elemento é DEUS-PÃE-GENTILEZA-CR(R)IADORRR-DO-

UNIVVVERRSSO, primeira pessoa da Santíssima Trindade (1).

(c) O segundo elemento é o FILHO-JESSUSS-PORR-GENTILEZA-SÃNTO-

IRMÃO. Segunda pessoa da Santíssima Trindade, o (2) é a palavra que libe(rr)ta

(por gentileza), contrariamente à palavra que condena (por favor). O (2) se completa

no (3), assim como “agradecimento” completa o pedido de “gentileza”.

(d) Gentileza se identifica em sua obra como terceira pessoa da Santíssima

Trindade, “3 é o ESPÍRITO SANTO-JOZZE AGRADECIDO”, ele mesmo diz “eu

vim como São JOZZE para representar Jesus de Nazaré na Terra”

(e) A base do estandarte é o quarto termo (N), como expressão da materialidade no

mundo. Aqui entra o elemento feminino. Maria é a mãe de Deus, e a primeira filha

de Gentileza. Segundo o Profeta, “à mulher cabe AMORRR E HONRRA”. “Se a trindade afirma a criação do universo em F/P/E, no desígnio de Deus Pai Gentileza, a quaternidade afirma que o mundo não é só criação, mas também concreção e materialidade.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

O 3 se amplia no 4, o bom uso da matéria é o afastamento do mal que constantemente cerca o homem” (GUELMAN, 2000, p. 61).

Qualquer semelhança com a constância da estrutura quaternária e material de Lacan não

será mera coincidência...

Em fins dos anos 60, Gentileza inicia uma série de viagens que o tornarão conhecido no

interior do país. Retorna a Mirandopólis reapresentando-se como Profeta Gentileza. Em

1970, parte para o interior do Mato Grosso (atual Mato Grosso do Sul), rumo a Campo

Grande e Aquidauana, para pregar a gentileza. Na cidade, ele sofre a primeira grande

adversidade como profeta: foi detido por policiais que o levaram à delegacia. Ficou

detido por uma noite, teve seu cabelo cortado e seu estandarte quebrado. O delito

cometido era o de estar pregando sem a Bíblia na mão. Diante disso o profeta cunhou

uma frase: “Quem é mais importante, o livro ou a sabedoria?”, que mais tarde seria

reproduzida numa canção de Marisa Monte90. Retorna para o Rio e passa a utilizar a

cartola do Tio Sam, incorporando um novo visual, agora de profeta tropicalista,

“Chacrinha da Calçada”.

Após o incidente em Aquidauana, passa a recolher depoimentos e declarações de figuras

públicas e autoridades dos lugares pelos quais passava, como “carta de referência” ou

“atestado de idoneidade”, que apresentava às rádios e aos jornais locais ao chegar em

cada cidade que visitava para pregar. Guelman nos relatou, em entrevista, que Gentileza

fazia todo um trabalho de divulgação de sua chegada e de sua missão. “Ele chegava

numa cidade, a primeira coisa que ia era... ia ser num... na redação do jornal e na

rádio, para ser anunciado que ele tinha chegado. Então, quando ele andava pela

cidade, as pessoas já sabiam pelo rádio ou pela TV que o Profeta Gentileza estava lá”

(Relato de Guelman em entrevista).

Em meados de 70, cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade. Vai a

Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes, que assim

“como Jesus, sofreu por seu povo”. Lá, os estudantes sugeriram o uso de uma bata.

Sugestão que é aceita pelo Profeta e anexada a outras alegorias, tais como bandeiras e

cata-ventos. Este último, dizia Gentileza, era para “refrescar a mente da humanidade”.

Também em entrevista, Guelman relata que “a partir de um determinado momento, ele

passou a ser uma figura folclórica no Rio, né? Já nos anos 70, ele já tinha construído a 90 Cf. no Anexo III a música completa. “Por isso eu pergunto/ A vocês no mundo/ Se é mais inteligente/ O livro ou a sabedoria” (MONTE, 2000).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

imagem dele como Profeta, né? Ele era moralizador, entendeu? Era a época da

minissaia, então ele corria atrás das mulheres com saia curta”.

Conhecido como o pregador da barca, ele fazia ensinamentos religiosos e também

morais. Dizia, por exemplo, “se a saia sobe, a moral desce”. E ainda, na pilastra 39,

“gentileza contra o pecado capital – não podem andarr maltrapilhos de calsas curtas

com o peito da camisa aberta descamisados para com jessuss e defuntos anbulantes

contaminando 95 por cento e pobres duentes cegos no pecado capital satana por

jessuss gentileza”.

Na década de 80, assume definitivamente a bata, a bandeira e os cata-ventos, conferindo

significação especial a cada detalhe de sua indumentária. Ele se escreve nas pilastras, na

bata, no seu estandarte, na sua caligrafia. O Profeta explica o que significa usar

problemas e pobreza no bolso, uma vez que no escrito está explícito “NÃO-USEM-

PROBLEMAS-NÃO-USEM-POBREZA-USE-AMORRR-USE-GENTILEZA”. Por que

será que é exatamente sobre o bolso de sua bata que ele coloca este escrito? Bom, ele

diz que o uso material do bolso, o uso financista da riqueza, é o problema e, ao mesmo

tempo, a pobreza. Somente se não fizermos esse uso da riqueza, seremos conduzidos ao

uso do AMORRR (não material) e da gentileza. Assim, a maior expressão da riqueza é a

gratuidade que se relaciona às coisas materiais e implica diretamente a natureza, que é a

maior fonte de riqueza, pois nos dá tudo de graça sem cobrar nada. “A-NATUREZA-

NÃO-VENDE-TERRAS-A-NATUREZA-NÃO-COBRA-PARA-NOS-DAR-

ALIMENTAÇÃO”.

Realiza grandes viagens pelo Brasil, num trajeto circular, pregando as palavras de

gentileza, sempre se movimentando de um município a outro. Além das viagens, há

uma grande intervenção de Gentileza na paisagem do município do Rio de Janeiro.

Entre a Rodoviária Novo Rio e o Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km,

Gentileza realiza seus 55 escritos murais sobre as pilastras do Viaduto do Gasômetro. A

obra de Gentileza demarca um espaço e uma permanência para sua mensagem. A partir

de então, o Profeta não pinta mais sobre placas ou cartolinas, mas diretamente sobre a

superfície de concreto. A escrita inventada com sua singular caligrafia e seus símbolos,

já presente em suas placas e em seu estandarte, se registra agora no texto da própria

cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos. Guelman nos relata

que Gentileza não escolheu por acaso o Viaduto do Caju.

204

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“É uma cartilha, né, um livro, um local que ele escolheu para escrever um livro urbano, foi aí. Por que ele escolheu aquele lugar, quer dizer, racionalmente, né? Eu acho que foi... conjugou vários fatores. Um deles é que ali é a entrada do Rio de Janeiro, é o Km Zero da Avenida do Brasil; como se fosse um portal (...) Andar no local, perceber o local como um território, né? Como que um lugar desolado, sujo, né? É... Onde as pessoas não criam vínculo com o local, porque não é um lugar acolhedor. Como aquele lugar passa a ser um local de referência para ele, entendeu? Então ele morou, quer dizer, viveu, né, ali, anos e anos da vida dele. Vamos dizer que ele foi pintando naquele local. Ao ponto dele ficar na pilastra 1 como quem estivesse na varanda de casa dando tchau para as pessoas. É porque aquele local para ele se consagrou como território, da mesma forma como o local do circo. Da mesma forma como o local do circo é um local desolado, que as pessoas recusavam, um local de perda, queimado... parará... Ali também ninguém vai querer ir. [...]. Mas um local agressivo do ponto de vista urbano, entendeu? Inóspito. Alguém querendo humanizar ou querendo transformar aquele lugar, entendeu?” (Relato de Guelman em entrevista).

Sua grafia era singular91, desenha cada letra, cada palavra. Signos como a gaivota, usada

como acento, simbolizam uma pomba divina. E se esse passarinho repousar numa

palavra, no que ele pousa, ele dá um acento divino, como em “senhõr” e “Pãe”, que é

pai, mãe, espírito. “Ele faz uma poética da questão da trindade, que é absolutamente

maravilhosa”, diz ainda Guelman em entrevista. A estrela aparece pontuando o início do

texto, como signo da iluminação do Profeta. Expressa também a força astral e cósmica

em sua mística, revelando, além disso, as pessoas da trindade e da quaternidade que

estabelece. O acréscimo de letras nas palavras é uma das grandes marcas da escrita de

Gentileza. E expressa a figura da Trindade Cristã, manifestadas em seu verbo, como na

palavra “AMORRR”, que traz o R do Pai, o R do Flho e o R do Espírito Santo.

Guelman nos apresenta pontualmente uma análise dessa escrita, extraindo dela sua

marca original. “Ao tornar-se portador do anúncio da gentileza, o Profeta começa a

falar e a escrever por meio de uma linguagem revelada. [...] Sua escrita aparece como

um verbo sagrado, formalmente distinto da escrita corrente profana” (GUELMAN,

2000, p. 72). Gentileza elabora uma grafia totalmente singular, tal qual o tipógrafo que

desenha a palavra letra a letra. Figura antiga evocada por Lacan, como vimos, para

tratar da materialidade da letra enquanto suporte do significante. O Profeta fazia

manuscritos de cartas e esboços de trabalho que ganhavam uma versão final já apoiada

na sua grafia peculiar.

Ainda para Guelman (2000, p. 72), uma apreensão da caligrafia (do grego kalos- belo +

graphos – desenho, escrita) de Gentileza evidencia que ele conseguiu dar ao seu texto a

forma de uma escritura hierática. Efeito obtido tanto pelo aspecto formal das letras e

signos, como também pela estruturação que esses elementos definem. 91 Cf. a caligrafia e o simbolismo da escrita de Gentileza no Anexo IV.

205

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

As palavras se acomodam numa seqüência de pautas, como as notas musicais numa

partitura, sendo o movimento interno do texto assegurado por setas ou pássaros/aviões,

que religam as palavras, movimentando o texto internamente. Seja remetendo a leitura

para a linha seguinte, seja ligando uma palavra à outra, criam uma estética

absolutamente original em sua caligrafia. Interessante notar a brasilidade como aspecto

cultural absorvido por sua estética. Ele alterna, nas pautas de marcação de seu texto, as

cores verde e amarelo sobre um fundo branco, escrevendo suas palavras e signos em

azul, e pousando a bandeira nacional ao final da primeira linha de cada escrito do

Viaduto.“Na composição de sua escrita e na expressão de sua simbólica, o profeta cria arranjos de letras dentro de letras. Esse acréscimo ou ‘reforço’, como dizia, explicita ainda mais o acento divino que ele confere ao texto. Algumas palavras criam uma arquitetura caligráfica, cifrada somente para aqueles que desconhecem o teor de sua mensagem” (GUELMAN, 2000, p. 74).

Já se adivinha, em termos psicanalíticos, o que está em jogo: letras dentro de letras (ou

significantes suportados por letras); reforço ou acréscimo (do que pode fazer suplência);

arquitetura caligráfica que faz cifra (de gozo) ao decifrar o acento divino do texto...

Guelman não poderia ser mais lacaniano!

É, ao mesmo tempo, uma escrita que faz laço com a crise do mundo contemporâneo,

com a crítica à ética capitalista, evidenciando a tensão entre um mundo em crise e a

possibilidade de sua superação pela acolhida da gentileza. Possui, portanto, endereço

certo.

No início dos anos 90, finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, passa a se

assentar numa cadeira, geralmente ao lado da Pilastra 1, acenando para todos como se

estivesse na varanda de sua casa. Na ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, conclama as

nações e os presidentes ao uso da gentileza. E de 1993 em diante, com a saúde

fragilizada após uma queda que lhe ocasionou uma fratura na perna, é acometido

também por problemas circulatórios, sentindo cada vez mais dificuldade em andar.

Retorna a Mirandópolis, sua cidade natal, em 1996 e morre em 29 de março com 79

anos, tendo dedicado os últimos 35 anos de sua vida à sua missão.

No dia 20 de Janeiro de 1999, é oficializado o projeto “Rio com Gentileza”,

recuperando a primeira das pilastras do Viaduto do Caju que, após serem pichadas,

haviam sido pintadas de cinza pela Prefeitura. Em outubro do mesmo ano, é realizado

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

no Rio de Janeiro a “Semana do Gentileza”. E em 06 de maio de 2000, depois de nove

meses de trabalhos exaustivos de restaurações, entregam-se, em cerimônia oficial, com

a presença de autoridades, artistas e público em geral, todas as pilastras restauradas de

Gentileza. E ainda nesse ano, a Universidade Federal Fluminense encaminha, ao

Departamento Geral do Patrimônio e ao Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do

Município do Rio de Janeiro, um pedido de tombamento de toda a obra gráfica de

Gentileza no Viaduto do Caju. Em junho do mesmo ano, é oficializada a Praça Profeta

Gentileza em frente à Rodoviária Novo Rio. Em novembro, após estudos e análises dos

órgãos competentes, a obra é tombada. Também em 2000, o Instituto dos Arquitetos do

Brasil concedeu o Prêmio Urbanidade 2000 ao Projeto Rio com Gentileza.

Muitas pessoas se interessaram pelo Profeta. Cineastas, poetas, músicos e videomakers

trabalharam com a história e a obra de Gentileza, como Duda Amaral que, atualmente,

finaliza uma trilogia sobre o Profeta. Além disso, Gonzaguinha o homenageia no CD

“Cavaleiro Solitário”; o carnavalesco Joãozinho Trinta apresentou, no carnaval de 2001,

o enredo “Gentileza X O Profeta do Fogo”; e Marisa Monte canta “Gentileza” no CD

“Memórias, Crônicas e Declarações de Amor”. O Profeta foi entrevistado na TV Globo

por Jô Soares. E hoje há um número grande de admiradores seus via internet, em blogs

e em várias comunidades no Orkut, sendo todo esse ‘sucesso’ decorrente de seu

reconhecimento como profeta contemporâneo, e não como uma figura da loucura. Ele

fez enlaçamento à sua maneira, no seu estilo. Tentemos conhecer esse estilo mais de

perto.

4.2.2 Um estudo psicanalítico do caso

Como articulada na discussão teórica do primeiro capítulo, a irrupção da psicose, ou o

desencadeamento do psicótico, ocorre justo quando acidentalmente surge uma questão

sobre o seu ser, ou seja, o Um pai surge no real no momento em que algum personagem

da figura paterna se impõe em posição terceira em relação ao par imaginário a-a’. A

referência lacaniana para essa leitura é a da primazia do simbólico. E seus elementos

seriam: (a) causa específica, coincidindo com a ausência do Nome-do-Pai; (b) causa

acidental, concernente ao encontro com Um pai, elemento terceiro que provoca

desestabilização; (c) dissolução do elemento estabilizador ou quebra da identificação

imaginária.

207

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Vimos também que o retorno do foracluído marca a ausência da escrita e da

rememoração, materializando a exterioridade do Outro e da linguagem, sendo sua

modulação, para cada sujeito, uma maneira singular que encontra para lidar com o real.

O trabalho sobre esses pontos de retorno, de desligamento do sujeito se dá por

diferentes vias. No caso de Gentileza, sua história nos evidencia um trabalho delirante

que se escreve como letra de gozo através do reforço pelo acento divino que sua

caligrafia porta. Estivéssemos orientados pelo primeiro tempo do ensino lacaniano,

poderíamos mesmo arriscar a dizer que esse trabalho delirante culmina com a

estabilização via metáfora através dos significantes primordiais "gentileza" e

"agradecido", numa espécie de oposição binária a "favor" e "obrigado". Essa oposição

destaca o caráter diferencial e o vazio de significação que o significante possui. Com a

diferença de que aqui a oposição faz uma significação delirante que não desliza na

produção de sentido, mas antes cerne o gozo na repetição da afirmação de um mesmo e

original sentido, fundado ao tempo do incêndio do circo. Entretanto, há uma invenção

em torno da “gentileza” que talvez nos indique uma letra inaugural se escrevendo.

Vimos que Lacan (1955-56/1992) identifica a metáfora delirante a um processo

complexo que constitui o delírio como uma metáfora, que faz às vezes da metáfora

paterna no trabalho ruidoso de cura. E também que Maleval (1996) destacou com

fineza, do texto freudiano e lacaniano, o desenvolvimento lógico dessa construção

delirante em quatro fases. Assim, aos moldes dos anos cinqüenta, mas sem perder de

vista o aporte dos anos setenta, investigaremos a solução psicótica encontrada pelo

Profeta Gentileza fazendo o exercício de destrinchar o que se escreve na construção da

metáfora delirante para além da articulação significante.

1. Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante. Refere-se ao

desencadeamento significante a partir de uma ruptura na cadeia provocando uma

autonomia do significante. Seu efeito é a perplexidade, advinda do fato do sujeito não se

sentir autor de seus próprios enunciados, e experiências corporais, em diferentes

manifestações. Acreditamos que no episódio da lama, quando Gentileza é convocado

simbolicamente para a criação de uma sociedade civil em sua empresa de fretes, o

desencadeamento se instala. Interessa aqui menos os elementos em jogo na estrutura do

desencadeamento que o ponto no qual os registros sofrem uma disjunção, uma

desamarração, evidenciando uma fragilidade do nó que os atava. A criação de uma

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

sociedade nos diz de uma ficção simbólica, um nome jurídico, fazendo com que aqueles

que a pretendam criar se façam representar não apenas como um corpo mas também

como um nome. Vimos que a função da nomeação é disjunta da função do significante

do Nome-do-Pai e pluralizada em Lacan. Se não é possível precisar com certeza o ponto

em que o pai não comparece na história de Gentileza, é possível, por outro lado,

recolher os efeitos de sua não-inscrição. Ao desnudar-se e libertar seus animais, parece-

nos que Gentileza busca no real desse ato um reforço simbólico que não se escreveu, já

evidenciando o ponto em que a amarração de seu nó exigirá reparação. O que temos

como conseqüência é justamente a perplexidade do sujeito. É nesse sentido que, com

Gentileza, desatada a possibilidade de uma resposta a essa convocação, ele realiza em

ato o esforço débil de dar conta dessa experiência real, como nos relata sua filha, Maria

Alice, em entrevista: “Ele saiu de dentro da casa, abriu as portas dos passarinhos,

passando lama no corpo”.

Na história de José Datrino, habitualmente vem identificada a eclosão de sua loucura ao

episódio do incêndio no circo em Niterói, momento já ruidoso que responderia pelo

esboço de uma tentativa de escrita de si mesmo, realizando o início de sua "missão na

terra". Entretanto, como vimos com Freud, o processo de ruptura que dá origem à

experiência psicótica é silencioso. Assim, a análise do caso permite aqui reconfigurar a

cena do desencadeamento a partir desse episódio da lama. Desde a adolescência, José

sabia de sua missão, que aos 12 anos prenuncia, e é levado pela família para ser

benzido. Entretanto, parece-nos que é diante da convocação para se tornar sócio de uma

pessoa jurídica, de uma firma, que se dá o desencadeamento, provocando uma situação

irreversível, um ponto subjetivo de não retorno.

2. Na segunda fase, referente à significação do gozo deslocalizado, dá-se um trabalho

de mobilização do significante pelo psicótico na busca de uma explicação para os

fenômenos que o invadem. Em Gentileza, o que encontramos como uma primeira

tentativa de significação do gozo deslocalizado é a ruptura com “os afazeres materiais

do mundo para cumprir o espiritual na terra”. É essa a resposta que Gentileza encontra

quando da invasão alucinatória do aviso astral de Deus “de que no dia seguinte – três

confirmações – eu tinha que deixar todos meus afazeres materiais do mundo para

cumprir o espiritual na Terra [...] e foi o que eu fiz” (GUELMAN, 2000, p. 24).

Aí surge um compromisso razoável, característica marcante dessa segunda fase. É o

209

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

sacrifício da morte do sujeito, tomado por Lacan (1957-58/1998) como renúncia fálica,

que possibilitaria uma negativização do gozo na psicose, “graças à qual uma nova

articulação significante se tornará possível. A partir daí, o sujeito psicótico não mais

terá uma atitude passiva em relação às mensagens que lhe chegam do real, podendo,

então, tornar-se organizador daquilo que o invade” (CASTRO, 2001, p. 8).

É nesse sentido que Gentileza atua como um mensageiro dos ensinamentos de Deus e

passa a “pregoar em Niterói”, agora já não mais inquieto e perplexo diante do

desencadeamento de sua psicose. Verificamos um trabalho de mobilização para explicar

os fenômenos que o invadem, possuindo agora o sujeito um papel ativo de divinizar a

humanidade, levando a cabo o aviso astral que Deus lhe enviara. “Ensinar a perdoar

uns aos outros, e mostrar o caminho da verdade que é nosso Pai, fazer o ensinamento

de Jesus na Terra”.

O episódio do circo, contemporâneo da ruptura com “os afazeres materiais do mundo”,

parece surgir como um catalisador que possibilita a elaboração de uma resposta

simbólica no nível de uma metáfora delirante. Esse acontecimento possibilita a

Gentileza circ(o)inscrever os até então angustiantes fenômenos que lhe chegavam do

real sob a forma alucinatória. É dessa forma que nasce o Profeta, no início dos anos 60,

sob o impacto do acontecimento trágico da queima do circo. Uma escrita começa a se

forjar então.

Em torno desse episódio giraria a versão de que o Profeta Gentileza teria perdido toda

sua família no circo, tal como sucedeu com muitos na tragédia. Entretanto Gentileza ou

até então Jozze Datrino e seus parentes não se encontravam no local do circo, como

vimos. Ao contrário, ensaiando fazer da ex-sistência desse chamado alucinatório

enlaçamento, Gentileza se dirige ao local do incêndio e ali permanece durante quatro

anos, reescrevendo um mundo acabado e desolado pela tristeza para poder habitar nele

mais uma vez no texto do jardim “Paraíso Gentileza”. Podemos vislumbrar aqui o

início de um enodamento com a produção de sentido, articulando o gozo entre

Imaginário e Simbólico, como condição de tratamento do Outro gozo.

3. Na terceira fase, a da identificação do gozo do Outro, Maleval com Lacan diz que

este gozo se encontra identificado, quer dizer, assentado no significante, que dará ao

sujeito uma certa base para que ele se faça organizador do que lhe chega. Ainda que

subsista algo de um imperativo que lhe impõe o que ele deve fazer. Mas se costurarmos

210

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

o texto lacaniano da década de 50 com o da década de 70, veremos que o tratamento do

gozo do Outro é um dos pontos centrais de articulação da suplência como invenção de

um quarto termo que estabiliza os registros no nó. A inexistência do Outro do Outro

exige uma sutura entre imaginário e sintoma (simbólico) que implicaria como

conseqüência o enlaçamento do real e a invenção do sinthoma. Essa sutura resulta numa

escrita do nó pela letra. Donde devemos avançar em relação ao que sugere Maleval e

propor que a “base” que surge da identificação do gozo do Outro se dá antes sobre a

letra que sobre o significante. É com essa escrita, que força a expulsão do objeto a, que

um delírio pode favorecer o nó.

A diferença de Schreber para Gentileza é que este, além de acatar os avisos divinos que

lhe chegam do real, nomeia o invasor, que no caso só pode ser Deus, e que nada de mal

poderá lhe infligir. Ele faz uma nomeação pelo real, identificando-se à letra divina.

Assim, assentado nos significantes Jozze Agradecido e depois Profeta Gentileza, fará

valer sua pregação, não mais como um representante de Jesus de Nazaré, mas forjando-

se, dessa forma, um nome próprio.

Essa nomeação não é aleatória. Ela se utiliza do que não se escreveu primariamente

como traço-letra na história de José e incide exatamente sobre o ponto em que o nó não

faz amarração. No resgate de sua história da vida, percebemos a importância dada por

sua família à religiosidade, marca fundamental que permeia a vida desse sujeito desde

sua constituição. Não só ele é levado na infância a práticas religiosas e benzeções, como

também sua saída do interior para a capital é interpretada por sua família como a

anunciação de uma escolha divina por sua pessoa. Além disso, há em seu nome uma

"escolha forçada" pela significação religiosa, advinda do campo do Outro. José Datrino,

assim como nos indica Guelman (2000, p. 23), “certamente já sugere, em seu nome, a

possibilidade de sua missão [representar Jesus de Nazaré na Terra]. Datrino significa,

em italiano, de três, enviado pelo Trino (Trindade)”. Assim, quando do

desencadeamento que fez vacilar a identificação imaginária com o homem de bem,

possuidor de “três caminhões, três terrenos e uma casa”, Gentileza recorre à lama para

fazer-se, no real, um novo homem, invocando "o direito de reesculpir-se do barro; um

novo homem fazendo-se de um novo húmus” (GUELMAN, 2000, p. 23).

Assim, Gentileza provoca a escrita do real através dessa nomeação. Sua construção

delirante se estabiliza na metáfora sustentada pela relação binária forjada por esses dois

211

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

termos: gentileza e agradecido. Sabemos que o significante só existe em relação a outro

significante, produzindo sentido pelo deslizamento na cadeia. A definição lacaniana

clássica de que o significante é o que representa o sujeito para outro significante implica

a inclusão do sujeito como sujeito do inconsciente e, ao mesmo tempo, evidencia a

estrutura de binariedade intrínseca à própria definição estrutural de significante. Para

Lacan (1957b/1998, p. 501), é uma ilusão acreditar que o significante "atende à função

de representar o significado". Ao contrário, tanto a coisa está ausente como um outro

significante está sempre referido pelo primeiro. O que demarca o significante é sua

função diferencial.

Parece-nos, portanto, que Gentileza elege um significante que, tal qual o significante-

mestre recalcado na neurose, o identifica a um traço. Assim, diferentemente do

neurótico que se localiza entre dois significantes – posto a tradução não ser possível de

se completar – Gentileza se revela e constrói no trabalho de isolamento do significante

que, extraído do enxame desordenado de S1 da psicose, faz Um, escreve a letra. É essa

escrita que civiliza o gozo, tornando-o suportável.

Porém, com Lacan ainda, vamos mais longe. Aprendemos que a letra é o suporte

material que o discurso toma emprestado da linguagem (LACAN, 1957b/1998, p. 498) e

que ela se manifestará no inconsciente pela homofonia (LACAN, 1957-58/1998, p.

576), pelo sulco que faz vibrar em lalíngua uma forma de gozo (LACAN, 1971/1986).

Assim, com Gentileza, parece-nos haver um trabalho do sujeito no sentido de se fazer

escrever por uma letra que, isolando esse par significante, pode cumprir uma função de

diferenciação, ali onde reinava na psicose uma solução de continuidade indiferenciada.

Nesses pares binários, gentileza-favor e agradecido-obrigado, situa-se a tentativa do

sujeito de fazer uma inscrição no intervalo que não houve, a escrita de um furo que pode

se tornar verdadeiro no nó suplenciado.

4. Passemos à quarta fase, a do consentimento ao gozo do Outro, em que Gentileza não

se vê mais obrigado a aceitar aquilo que lhe chega do Outro como gozador e consente

gentilmente com esse imperativo. Maleval (1996) nos diz que ao chegar nessa última

fase do delírio, o psicótico não sofrerá mais das inquietações que o atormentavam até o

período precedente. O sujeito não se sentirá mais perseguido, encontrando-se de pleno

acordo com a nova realidade por ele construída. Em Gentileza, o consentimento ao gozo

do Outro nos parece operar através das pregações religiosas que realiza ao longo do país

212

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

e, sobretudo, através da escrita de sua obra.

Como vimos, sua escrita comporta uma caligrafia peculiar, que inaugura um novo uso

da letra – por ele forjada num abecedário único que civiliza lalíngua – e um novo valor

ao texto-nó que ela escreve, carregado ou reforçado pela dimensão real do divino. Ele

faz redemoinho com os significantes, ordenados pela lógica singular que ele funda com

seus signos, pautas, estruturas gramaticais singularizadas e máximas. A obra, nesse

circuito, opera pela ausência de sentido, possibilitando a fixação do gozo. Gentileza dá

um destino estético ao excesso de gozo, transformando em obra singular o indizível do

real.

A. Destino social e clínico da escrita gentil do Profeta

O fato de Gentileza ser tomado como o anunciador de um novo tempo e de uma nova

estética para a dimensão citadina e contemporânea da atualidade, conferiu-lhe um lugar

de destaque na cultura, como atestamos. Guelman (1997; 2000), professor do

Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense, em sua dissertação de

mestrado na Filosofia, defendeu a tese de que Gentileza seria um mito moderno, pois,

anunciador de uma crise social – a da chamada pós-modernidade. Além disso, ele

operaria, enquanto mito, como anunciador, fundador, de um discurso que aponta, pelo

princípio ético da "gentileza", uma saída aos impasses da economia capitalista e da

fragmentação moral e social pós-moderna, calcada no individualismo, no hedonismo e

no consumismo. Parece-nos que sua apropriação pela cultura (músicas, carnaval,

entrevistas, blogs) constituiu um campo de endereçamento que ampliou as fronteiras de

suportabilidade à diferença que a psicose coloca, reconfigurando as relações com

Gentileza. Ele é tomado como mito, sábio, principalmente em sua família, como

atestado pela entrevista realizada com sua filha. Nela, à suposição da loucura seguiu-se

uma admiração pela obra de Gentileza que permitiu a reordenação dos enlaçamentos

sociofamiliares.

Esta é realmente a novidade teórica a que este estudo de caso nos conduziu: a obra,

operando pelo real como continente ao excesso de gozo que resta da operação da

metáfora delirante, confere-lhe sustentação enquanto letra e favorece a estabilização e o

endereçamento social. Não é o fato de usar ou não a escrita que explica a estabilização

de Gentileza, mas o artifício que ele cria através dela, suportado por ela. Gentileza pode

213

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

mesmo funcionar como paradigma para os casos com os quais nos deparamos no

cotidiano da clínica e dos serviços substitutivos da Saúde Mental.

Assim, José Datrino formula uma solução pela escrita de um nome, “Profeta Gentileza”,

que faz as vezes do Nome-do-Pai, reduzido aqui a sua função de nomeação, a um ponto

de capitonné que fisga e amarra o real. Com Zenoni (2001) podemos dizer que uma

metáfora delirante acontece quando o delírio atinge a função de fazer suplência à

metáfora paterna. Suplência não somente como restabelecimento da relação entre o

significante e o significado, mas antes como invenção de um quarto termo que ata os

três registros, gerando efeitos não apenas no campo do simbólico, mas também nos

campos do real e do imaginário.

Assim, do excesso que restaria intraduzível sob a forma de gozo, Gentileza pregou e

transformou a paisagem urbana com uma obra de grandes proporções para a divulgação

de sua mensagem, os escritos do Viaduto. Ele deu vazão a esse excesso primeiramente

com a peregrinação, depois com a fixação da letra de gozo na caligrafia inventada nos

escritos depositados no Viaduto. Aí observamos um deslocamento do sujeito como

objeto de gozo do Outro para o lugar de autor através da obra. Aprendizado essencial a

ser transposto para o campo do tratamento possível das psicoses.

Seu trabalho se aproxima do de Bispo do Rosário, com a ressalva de que Gentileza

consegue constituir um ponto de capitonagem, sendo a obra o resultado da escrita do

enlaçamento que o localiza. E, se tomamos Joyce como paradigma de uma psicose não

desencadeada graças ao artifício do sinthoma, podemos pensar que Gentileza diz

respeito a uma psicose desencadeada, cujo trabalho delirante se escreveu como

suplência no texto de sua obra, fixando um ponto de amarração que sustenta os três

registros de seu nó. Ele recolhe os restos da operação simbólica da metáfora delirante

em torno do significante “gentileza”, conferindo um contorno real ao gozo pela escrita

da obra que remaneja os efeitos imaginários. Em lugar do risco da passagem ao ato no

momento da conclusão de uma metáfora delirante, do qual nos adverte Zenoni (2001), o

Profeta Gentileza encontra no destino estético do real da obra e, ao mesmo tempo, no

endereçamento imaginário, a amarração que o estabilizou na invenção de um quarto

termo em torno do real. Podemos falar em sinthoma, portanto? Em um quarto termo que

vem enodar-se aos três registros, conferindo-lhes, após o desencadeamento, nova

amarração?

214

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

4.2.3 Uma leitura borromeana do caso

‘Algo a compensar’ ou ‘solução a inventar’ seriam, resumidamente, os caminhos para

se pensar o tratamento na psicose, conforme o que Lacan nos ensina, respectivamente

nas décadas de 50 e de 70. No primeiro período de seu ensino, marcado, como vimos,

por uma preocupação estruturalista com o simbólico, é em torno do Nome-do-Pai como

significante que organiza a solução neurótica que o conceito de psicose se desenvolverá.

O sintoma neurótico, enquanto formação do inconsciente, é tomado como metáfora,

estruturada a partir desse significante primordial (NP). A foraclusão do NP implicaria

na estrutura psicótica, enquanto os fenômenos psicóticos seriam articulados ao

significante real, fora da cadeia, e produzidos pela carência do efeito metafórico. Daí a

solução psicótica nesse período, apoiada no modelo neurótico, ser pensada enquanto

compensação pela via da metáfora delirante que faz as vezes da metáfora paterna, na

qual o Nome-do-Pai é um operador simbólico essencial a sua trama.

Ao final de sua transmissão, Lacan se ocupará das diferentes e singulares maneiras de

amarração dos três registros em face da falha estrutural da linguagem [S(%)], que se

impõe para todos. Trata-se aqui de uma solução positiva em qualquer estrutura clínica e

não mais de um déficit da psicose em relação à neurose. A diferença entre as duas

estruturas clínicas consistiria no fato de que o neurótico responderia pela via da função

do Nome-do-Pai, enquanto o psicótico pelo ‘não’ ao Pai.

A conseqüência desse corte epistemológico é que, enquanto para a neurose pode-se

fazer uma teoria restringida ao Édipo para se pensar a solução subjetiva, para a psicose é

preciso verificar caso a caso como o sujeito produz sua solução modulando a relação

entre os três registros. Multiplicam-se, portanto, as possibilidades de estabilização que

funcionarão como direção no tratamento, devendo cada caso ser examinado em sua

singularidade. Assim, como vimos na discussão da proposta de Skriabine (2006),

apoiada na abertura e no convite feito por Miller (2003c), as soluções psicóticas em

Lacan ganham novo estatuto com a formulação topológica do nó borromeu.

É o que podemos verificar no caso do Profeta Gentileza. Pouco a pouco, ele

transformou seu nome próprio forjando uma nomeação a partir do trabalho de escrever a

letra como suporte de dois pares binários significantes: 1) favor-gentileza e 2) obrigado-

agradecido. Acreditamos que aqui uma primeira produção de sentido, concomitante a

215

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

um esboço de amarração do gozo, aconteceu. Da experiência com as palavras, José

Datrino passa a assinar seu nome com a grafia neológica Jozze Agradecido. Consegue

construir um ponto de estofo, de limite à significação delirante de cunho religioso,

conferindo-lhe uma inscrição em torno da qual toda sua existência passará a se

consolidar.

Podemos equivaler essa escrita ao que suplencia o traço unário minimal inscrito em

lalíngua, fazendo função de letra. Onde seu trabalho delirante se escreve como obra,

uma nova forma de gozo se organiza e um novo sujeito aparece da dobra na linguagem

por ele próprio inventada sob a forma de sua caligrafia. E será exatamente da

significação assentada sobre esses pares binários que ele destacará e fundará um nome-

próprio, escrevendo-se “Profeta Gentileza” em seu texto.

O que podemos dizer do que faz nomeação nesse caso? O Profeta pode se fazer um

novo nome exatamente ao identificar um elemento significante isolado, non-sense, que

ganha valor de S1. Sujeito de uma missão e inventor de uma nova ética, o Profeta é

forjado por letras tipográficas e símbolos que ganham uma especificidade em sua escrita

inédita e em sua prosa exata. Talvez possamos dizer que o Profeta nesta invenção

conseguiu circunscrever um gozo, do qual antes era parasitário.

Nesse corte, faz nascer uma nova possibilidade de articulação dos três registros. Se

supomos que, em seu caso, o Imaginário enlaçava o Simbólico e o Real, dependurados

precariamente sem nenhum entrelaçamento entre eles, no momento do

desencadeamento teria havido um corte que os teria liberado uns dos outros.

Figura 35 – Erro do nó do Profeta Gentileza

A identificação imaginária (missão de se casar, trabalhar e constituir família) que o

sustentava se rompe a partir do convite para compor uma sociedade civil no campo dos

negócios. Um novo enlaçamento se inicia quando ele recebe o aviso astral da nova

missão que, dessa vez, vem amparada pela construção significante que lhe segue

216

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

(imaginário e simbólico entrelaçados como erro de seu nó). Além disso, do que resta

real, sem significação, o Profeta faz escrita e invenção (real que é enlaçado com o outro

par – I e S – pelo quarto elemento corretor, correspondente a sua obra, e que se enlaça

fortalecendo o real), amarrando um gozo pelo nome-missão que a gentileza convoca.

Figura 36 – Suplência do nó do Profeta Gentileza

Como se vê, temos o Imaginário e o Simbólico entrelaçados, e o Real solto entre os

dois. A suplência se escreve como quarto nó corrigindo o ponto em que o erro figurou.

Não se trata, portanto, de um trabalho que teria se reduzido a uma metáfora delirante,

nem, por outro lado, uma obra que teria produzido uma amarração que impediria um

desencadeamento. Já desencadeada, a psicose encontrando-se declarada, um corte já

tendo desembaraçado todos os registros, o sujeito, então, corta e os remenda num

trabalho de costura de um novo modo de ser.

4.3 O Segundo Caso: A., de Flagelo de Deus à “Sedi di Shacina”, e Daí em Diante...

“O menor ato de criação espontânea é um mundo mais complexo e revelador que qualquer metafísica.” (A.)

4.3.1 História de vida e história clínica 92

Conhecemos A. quando ele estava com 41 anos, em 2005, quando realizamos a primeira

entrevista com ele. Nascido em dezembro de 1964, é o caçula da família de quatro

irmãos (dois homens e duas mulheres). Estudou até o segundo ano do segundo grau,

quando se deu o desencadeamento de sua psicose. Sempre morou com a mãe, e tem uma

92 Os dados aqui apresentados foram colhidos em entrevistas com A., sua mãe, o médico psiquiatra e a analista que acompanha o caso entre 2005 e 2006.

217

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

irmã casada morando em terreno contíguo ao de sua casa atualmente. Ele praticamente

não a visita. Existe o projeto de que uma irmã solteira venha morar com ele quando se

aposentar daqui a alguns anos. Sobre a vida familiar pregressa, o pai se separou da mãe

quando ele tinha dez anos, voltou para casa e se separou de novo quando A. estava com

16/17 anos. Em 1992, perdeu o pai, contando à época 28 anos. Todos os irmãos são

vivos. A mãe relata que A. se mostra cada vez menos sociável, encontrando-se numa

situação de pobre contato afetivo. Praticamente não sai de casa mais sozinho, nem no

bairro rural no qual mora, e depende essencialmente dela para tudo. Abaixo seguem

seus dados de vida cronologicamente organizados.

A. cresce num ambiente familiar católico e artístico nos bairros de Encantado e Rio

Comprido na cidade do Rio de Janeiro. Com dez anos, em 1974, vivencia a primeira

separação de seus pais.

Aos 16 anos, inicia um curso de teatro, no qual se destaca, segundo ele, sendo o

preferido do professor dada sua habilidade para as artes cênicas. Na época, ele escreve

dez romances num estilo surrealista, como o “Shanura Metamórfica”, “Balaostro”,

“Monomontanha” ou o “Shartaque”. Anda de moto e namora, “é genial”, segundo ele

próprio. Nesse período ocorre a segunda separação de seus pais.

Em torno de 1983, aos 19 anos, encenava peças de teatro, escrevia e fazia uso abusivo

de droga (maconha). Com dificuldades para precisar os acontecimentos do período, fala

da morte de dois amigos em diferentes acidentes, um de moto e outro ao se defender de

um assalto. É nesse período também que localiza a irrupção de fenômenos elementares

sob a forma de alucinações e fenômenos corporais. Ele se fecha, ficando taciturno e

estranho aos olhos da família que busca auxílio psiquiátrico. São, então, orientados a

levá-lo para uma vida no campo, como forma de exercitar-se na praxiterapia,

modalidade corrente de terapêutica psiquiátrica na época. Ele é enviado para Japuré

(RJ), na fazenda de parentes, e depois para Carangola (RJ). Mas a estratégia não gera os

efeitos esperados pela psiquiatria. Ele não se apazigua.

Pouco depois da irrupção desses fenômenos, é acometido por uma alucinação verbal

que se torna ponto-chave para sua estratégia de estabilização. Trata-se da escuta da

frase: “[não] sedi di shacina”. Ela orientará todo seu percurso de trabalho subjetivo

posterior. Após o desencadeamento da psicose, A. escreve mais de 30 pequenos livros

falando sobre a “[não] sedi di shacina”. Muda-se, com a mãe, para Santa Tereza no

218

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Rio. Foi ali, segundo ele, que algo em torno de sua cura “se iniciou”.

Desde o desencadeamento sempre esteve submetido a tratamento psiquiátrico particular

e medicamentoso. Jamais foi submetido a uma internação psiquiátrica, apesar da

indicação clínica de internação. Sua mãe sempre se recusou a fazê-lo, preferindo cuidar

de A. em casa, sob seus próprios cuidados. Recebeu o diagnóstico de esquizofrenia.

Em 1984, com 20 anos, muda-se para Betim (MG), cidade na qual reside até hoje. Perde

o pai em 1992, mas continua se comunicando com ele através de uma modalidade

delirante de comunicação transcendental que inventa para conversar com as pessoas que

não estão à sua volta, estejam elas vivas ou mortas.

A partir de 1999, com cerca de 35 anos, começa a utilizar a pintura e a identificá-la

como um instrumento para representar os personagens de seus livros, na tentativa de

“ajudar” os outros e a si mesmo, e também como forma de “canalizar” suas energias.

Ele conversa com os personagens que pinta em suas telas, pois eles saem do quadro,

como nos explica. Sua pintura é compulsiva e desliza incessantemente na produção de

novos quadros. Ele já pintou uma centena deles. Sua função, na modalidade de

comunicação transcendental, é a de fazer o “fenômeno” acontecer. Assim, ela também

opera unindo as pessoas. O fenômeno é a possibilidade de diálogo “telepático” com

qualquer pessoa que tome contato com sua obra.

Ele em momento algum pára definitivamente de escrever, pintar, delirar, alucinar ou

recorrer ao texto de Artaud93 e de outros autores de referência que utiliza como citação

em suas conversas. Sua fala é entrecortada a todo o tempo por essas citações, sendo

mesmo difícil precisar o que é dele e o que é do outro.

Seu tratamento, iniciado na década de 80, foi estritamente medicamentoso nos moldes

da psiquiatria clássica. Apesar de indicada a internação, sua mãe a recusou, criando,

com isso, a condição de trabalho subjetivo para A..

O tratamento de fato, o que gerou resultados, ocorreu fora do alcance da psiquiatria.

Deu-se através da pintura e da escrita, verdadeiros objetos de contenção de gozo criados

como estratégia por ele, a partir das insígnias legadas por sua história.

A presença de sua mãe como mediadora e destinatária operou (e opera) como elemento 93 Antonin Artaud (1896-1948), francês, foi poeta, ator, roteirista e diretor de teatro francês. Inventou o Teatro da Crueldade, no qual não haveria nenhuma distância entre ator e platéia; todos fariam parte do processo ao mesmo tempo. O seu trabalho ainda inclui ensaios e roteiros de cinema, pintura e literatura, diversas peças de teatro, inclusive uma ópera, notas e manifestos polêmicos sobre teatro. Esteve internado em hospitais psiquiátricos por diversos períodos ao longo de sua vida, tecendo duros manifestos também contra o regime hospitalar.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

central e cria um impasse ao se pensar que, idosa, pode em breve não estar mais

presente na vida de A.. Por outro lado, gera impasses quanto à dificuldade de conquista

de autonomia por parte do filho. Ela tem uma verdadeira adoração por A.. Foi essa

entrada, por vezes, intrusiva, que permitiu um mínimo de estrutura para que ele pudesse,

de um lado, dispor de recursos para inventar suas soluções mas, de outro, se acomodar

nessa relação de apoio.

Em 2003, um acontecimento contingencial marca uma reviravolta no caso. Em uma de

suas crises, é levado pela família para um CERSAM94. Lá é recebido por uma

funcionária administrativa, B., com quem cria um vínculo banhado de real. Os olhos

azuis dela operam como objeto que sustenta um enlaçamento do real, a partir do qual

arrefecem suas crises. Decide, então, parar de fumar e de usar drogas. O tratamento

psiquiátrico passa a ser referenciado neste serviço.

O encontro com a sensibilidade clínica de seu psiquiatra, Dr. V. Tavares, orientada pela

psicanálise, favoreceu o respeito ao estilo de solução que A. já começara a construir. Ele

não freqüenta o serviço, sua mãe é quem vai às consultas e cuida de seu cotidiano.

Após o encontro com B. e com seu médico psiquiatra, A. presenteia os dois e o serviço

com seus quadros, deixando de comparecer às consultas já que estava presentificado

objetivamente no serviço através de suas telas: “ir lá não é importante, meu quadro já

está lá”.

Mas, avisado, Dr. Tavares continua o tratamento recebendo a mãe de A. e indicando

uma psicanalista para realizar visita familiar, visando constituir um espaço analítico

para ele. O trabalho com ela inicia-se em março de 2006.

Dessa forma, ele intervém sobre a qualidade da relação de A. com o tratamento,

alterando sua medicação e sustentando um vínculo possível de trabalho, sem interferir

na produção subjetiva autoconstruída por ele, que garantia sua mínima estabilização.

A. deixa de lado o uso diário da maconha, cria um vínculo com o serviço sustentado à

distância através da mãe como mediadora, mantém o trabalho com a pintura e com a

escrita e, por hora, apresenta menos alucinações.

A analista toma como direção a produção de uma escansão entre A. e seu Outro,

94 O CERSAM é um dispositivo da rede de Saúde Pública e, neste caso, equivale ao CAPS 24 horas, proposto em portaria pelo Ministério da Saúde. Visa atender às urgências subjetivas e psiquiátricas, rompendo com o circuito de internação. Para isso, conta com equipe multiprofissional e diversidade de modalidades de intervenção, tais como consultas, visitas domiciliares, oficinas terapêuticas, passeios e trabalho com a família.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

operando, a partir da produção delirante, pequenas entradas que visam instalar uma

barra nessa relação, recuperando o que há de singular e próprio nas criações de A.. É um

cálculo acertado que tem gerado como efeito uma nova repartição do gozo e algumas

pontuações no trabalho que deslizava sem cessar. Ela o atende quinzenalmente em sua

residência, com projeto de transferir esse atendimento para o consultório. Veremos

como os diferentes elementos clínicos introduzidos com sutileza nesse contexto têm

permitido novos endereços para localização do gozo, pacificando A..

4.3.2 Um estudo psicanalítico do caso

A. Primeiros recursos antes do desencadeamento

Até a adolescência, não encontramos nenhuma indicação de psicose em A. no relato dos

entrevistados. A relação dele com a arte nasce aos 16 anos, quando inicia um curso de

teatro. Nesse período, dos 16 aos 18, 19 anos, escreve dez livros com estórias no estilo

do realismo fantástico. Ele também fazia uso de drogas, como a maconha, que eram

utilizadas com os amigos, com quem depois formaria o grupo dos “sete cavaleiros do

apocalipse” que, delirantemente, ele lidera até hoje. Talvez a identificação com os

amigos tenha sido o elemento mais importante a sustentá-lo no eixo imaginário a-a’ até

o desencadeamento. A identificação com os irmãos artistas parece ser outro elemento de

estabilização, mas decididamente é secundário nesse processo.

A escrita e o teatro aparentam ter sido também recursos imprescindíveis nesse período,

configurando-se em via de escoamento pulsional e, por isso mesmo, de contenção de

um ato que comportasse maior risco. Podemos mesmo hipotetizar que, no período dos

16 aos 19 anos, esses recursos funcionaram paralelamente à identificação imaginária,

como via de contenção do desencadeamento. O uso da droga, já presente nesse período,

sempre se associou ao sofrimento, ao que intervinha sobre o corpo e dificultava a

relação com este.

B. Desencadeamento e sua relação lógica com uma possível suplência

A primeira “crise” de A. acontece, segundo seu relato e o da mãe, em torno dos 19 anos.

A psicanalista que o atende lembra que, ainda aos 16 anos, ele vê um clarão na sala de

aula que talvez fosse um prenúncio do momento do desencadeamento. Para A., tratava-

se da “fagulha essencial”, que aparece associada ao encontro com o Outro sexo, na

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

medida em que esse feixe luminoso surge próximo à jovem de quem gostava. Ele, de

fato, não tem um encontro decisivo com nenhuma mulher, o que pode ter favorecido a

estabilização precária que organizou nessa fase, apesar da ocorrência aparente de alguns

fenômenos elementares. “Eu fiz o primeiro científico três vezes. Só na terceira vez que eu passei. E quando eu fazia o segundo científico, antes de eu repetir, eu chegava na prova e começava a escrever poesia. Aí uma vez eu tava fazendo uma prova lá, aí eu escrevi assim: ‘Isso não adianta e papapapa, isso não adianta e papapapa’. E aí o professor vem ditando: ‘Ô, A., isso não adianta’. E aí como se eu tivesse adivinhado o pensamento que ele ia pensar, um pequeno fenomenozinho ali” (Relato de A. em entrevista).

O acontecimento que caracteriza o desencadeamento em si ele o nomeia como

“intoxicação” e, às vezes, “enfeitiçamento”. É dessa maneira que se refere à notícia da

morte de um dos seis amigos. “Eu já tinha recebido os primeiros micróbios de Deus pela macumba, quando recebi a notícia do acidente deles [de moto, com Cezinha que morreu e Germano que estava na garupa]. Foi um enfeitiçamento global [enfeitiçamento aqui tem a mesma significação que intoxicação na primeira entrevista], como no caso de Baudelaire, Edgar Allan Poe, Nietzsche e de Van Gogh” (Relato de A. em entrevista).

O enfeitiçamento relaciona-se às mortes de pessoas importantes e ganha uma conotação

fatalista. Nessa estratégia megalômana, os amigos se igualam a heróis que morrem para

salvar o mundo. “O camarada, quando ele é um guerreiro, né, ‘Asa Cruz’... São como anjos. São superiores ao ‘Asa Cruz’. São os mais elevados. São os mais importantes que existe [sic] em matéria de cavalheiro, né? Aí, pra defender o importante eles morrem. Sempre que um importante tá em perigo, eles dão a vida. Eles pedem ao céu que seja devolvida aquela importância e não pode deixar de defender. Tem que salvar o importante. Então eles morreram e salvaram o importante. [...] Morreram, mas salvaram o importante” (Relato de A. em entrevista).

O irredutível da experiência da morte não encontrou um artifício que fizesse frente ao

que não se pode nomear, convocando uma resposta onde não havia uma amarração feita

entre os registros que pudesse sustentá-la. O que quer que a houvesse sustentado até

então cai. O vácuo de significação parece fazer surgir de lalíngua o inusitado que a

ultrapassa.

A. morava ao lado de um centro de candomblé. Sua mãe conta que ele ficava indignado

com a morte de animais em sacrifício e gritava em revolta: “seus covardes, ‘tão

matando animaizinhos!”. Após o desencadeamento, ficou taciturno e embotado. Diz a

mãe que dava a impressão de que ele tinha saído dali, do corpo dele. Vejam o relato do

episódio que o próprio A. demarca como corte:

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

“[Eu estava com] dezoito, dezenove, dezenove anos. E nesses centros [de candomblé] é o seguinte: a gente fumava maconha e ficava ali. Eu ia de moto pra casa assistir Dom Artaud [sic] ou ia pra piscina nadar. Isso aí. É... fumava um e saía de moto curtindo, né? Uma coisa assim. Aí, nesse centro, eu falava, eu falei uma vez assim: ‘cabrito, olha teu corpo’. Aí ficou aquela coisa, eu falei a voz do Artaud no Teatro de Sangue, né? Aí depois eu botei um cobertor azul assim no chão, deitei do lado da minha moto assim, né? Aí eu falei assim: ‘mostra teto’. Aí uma voz lá de dentro, uma voz da macumba, falou assim: ‘Ah! É o bicheiro!’ Uma coisa assim, né? Um apelido que botaram ali, naqueles micróbios ali. Isso que você chama de micróbios é Deus, foi isso que aconteceu, ali entendeu?” (Relato de A. em entrevista).

Tal qual discutido por Lacan em relação a uma apresentação de paciente95, a alucinação

retorna oferecendo um atributo que designa o sujeito, onde a hiância da indeterminação

significante se encontrava, onde um sentido não era possível ser produzido. “É o

bicheiro” é a palavra rejeitada no Outro, que é produzida no lugar do sujeito. “É assim que o discurso vem a realizar sua intenção de rejeição na alucinação. No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito sem dele se desligar pelo travessão da réplica” (LACAN, 1957-58/1998, p. 541).

Depois deste episódio, foi a intoxicação de A. “Isso que chama de micróbio, bicheira, que falou: ‘ah, bicheira!’. Aquele nome, aquela palavra que resume ou une todos aqueles processos espirituais de todas as coisas, é o micróbio. E isso que você chama de micróbios é Deus [inaudível]. E dali, então, foi que depois de tudo é que veio a intoxicação, a intoxicação...” (Relato de A. em entrevista).

Intoxicação, bicheira, micróbios, Deus, o deslize significante não faz cadeia, cade-nó,

mas enxame. São muitas vezes significantes do Outro que, não sendo subjetivados e

apropriados, colam-se como etiquetas de identificação sobre A. no lugar daquilo que

não tem nome. Revelam o que não se ata entre os três registros, a saber, o contorno que

o Simbólico realizaria no recobrimento do Real. Ali resvala para os fenômenos

imaginários do corpo o que a linguagem não sustenta no campo simbólico. Podemos

imaginar a rodela do Real, na qual Lacan localiza a vida, avançando sobre o campo do

simbólico, solto, sem um grampo. Esse prolongamento é a ex-sistência, em relação ao

95 Trata-se de uma paciente que tem uma alucinação verbal “porca”, à qual responde com “venho do salsicheiro”. Trata-se de um delírio a dois entre mãe e filha, no qual esta produz a significação das injúrias que ambas estariam sofrendo de seus vizinhos. Laurent (1995, p. 121-126) aponta a importância decisiva da noção de shifter em Jakobson na releitura de Lacan deste caso. Para Jakobson, o shifter é o único elemento do código que remete obrigatoriamente à mensagem. Colocando em jogo esse novo operador, Lacan inclui o Outro no circuito a-a’, reintroduzindo-o como o próprio lugar do código, onde há um elemento que permite incluir o objeto visado na mensagem. Dessa maneira, primeiro a paciente teria alucinado a palavra “porca” e, então, respondido “venho do salsicheiro”. Como no caso de A., ele provavelmente escutou primeiro a alucinação verbal e somente depois teria elaborado a frase “mostra teto”. Ao que surge como enigma, o sujeito tenta conferir uma significação, marcada pela certeza psicótica.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

imaginário, que Lacan chama de falo (Ф)96.

Se tomamos como fato de estrutura que a linguagem se articula sobre lalíngua, que há

um caos originário diante do qual o sujeito se posiciona na estrutura, parece-nos que a

psicose evidencia a determinação e o transbordamento dessa dimensão caótica sobre a

linguagem através dos fenômenos elementares. Se na neurose a inscrição do sujeito faz

escrita de letra da incidência do significante sobre o gozo, organizando um campo

semântico que passa a constituir o conjunto das identificações referenciais do sujeito, na

psicose nos deparamos com outra solução.

É certo que a linguagem não dá conta desse excesso – chamado, de uma maneira

preliminar, em Freud de pulsão e em Lacan de gozo –, veiculado por lalíngua. Mas, na

neurose, a linguagem enquanto estrutura funciona como elucubração de um saber

possível sobre essa verdade inacessível, causal. E na psicose? Na psicose, nos vemos

face a face com o horror desse caos. Os fenômenos elementares evidenciam, de outra

forma, o mesmo fracasso da linguagem como arranjo débil sobre lalíngua. O que

transborda nesses fenômenos fala do que não se pode domesticar pela linguagem no

humano, aponta o real como o impossível, ao mesmo tempo que indica que qualquer

ensaio de significação fracassará no mesmo ponto em que a linguagem se estruturará

com débil. É aí que o final do ensino de Lacan inaugura algo de novo. É da insistência

daquilo que Freud dizia aparecer como irredutível no final de uma análise que Lacan,

então, nos convidará a fazer dele um uso, a savoir-y-faire em relação a qualquer

estrutura clínica.

Nesse sentido, apostar na solução assintótica da metáfora delirante na psicose nos

aproxima da crença de que a linguagem pode produzir um sentido derradeiro sobre a

Coisa, uma aposta no que fracassa também na solução neurótica. Quando Lacan

introduz toda a gama de novos conceitos em seu ensino na década de 70, parece estar

nos advertindo desse risco clínico e nos convidando a repensar a direção de um

tratamento. Reverter o circuito pulsional e aprender a fazer do sintoma um uso implica

em pensar as diferentes formas de amarração que o sujeito pode inventar na articulação

dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário. Nesse sentido, a invenção de uma

suplência é para todos e a debilidade do ‘normal’ se torna evidente.“Oh! O meu problema foi iniciado num centro de candomblé. Um espírito de ‘prostigação’

96 Cf. Fig. 05, lembrando que, neste caso, o nó não se ata borromeanamente, havendo uma disjunção, como veremos, entre os registros.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

[sic] mesmo. Um mau espírito... ‘prostigação’ [sic] e aí, me atingiu... mas me atingiu justamente pra... Há males que vêm pro bem, uma coisa assim, né? Aí eu... dessa macumba, foi feito um trabalho pra mim, aí depois eu... [...] fiquei perdido um tempão, perdido. Mas depois é que eu vi que... como foi importante acontecer isso porque, senão, como é que ia ser? Eu ia sair... ia ter a vida comum? Eu ia lá pro meio da Rede Globo, ser ator de novela? Que troço chato, né?” (Relato de A. em entrevista).

C. O começo de tudo: o início do trabalho de estabilização

Como vimos, as alucinações começaram na adolescência e a mãe de A. foi orientada a

levá-lo para o interior a fim de se exercitar um pouco através da praxiterapia no campo.

“Eu tava no Japuré, isolado daquele mundo, porque eu tava com medo dos automóveis

e a roda que passava nas cabeças das crianças, aquela estorinha” (Relato de A. em

entrevista). Retorna no real sob a forma de alucinação a experiência não simbolizada.

Aquilo que do acidente de moto resta o atormenta sob a forma de visões trágicas. É

quando, então, ele tem uma experiência enigmática. Numa fazenda de seu tio em

Carangola (RJ), ele ouviu a frase que passou a organizar toda a sua cura. “E aí foi que surgiu essa frase. Eu tava chegando no portão com o tio Eusino, assim, aí: ‘não sedi di shacina’, uma coisa assim. [Entrevistador: Não sede?] É não seja de sha... uma coisa assim. A mesma coisa não sede é não matarás, a estória dos bons, dos humildes, né? Mas habitualmente ela usa mais “sedi di shacina” pra [inaudível], pro Artaud. [...] E essa frase, então, é que iniciou a minha cura toda. Exatamente, todo um poder que havia ali, né? A preocupação de Jesus com Deus, de Artaud com Gênese, tudo isso” (Relato de A. em entrevista).

Se ela tem inicialmente o estatuto de um fenômeno elementar, imediatamente ela

assume para A. a função de propulsora, de conectora, ainda que não de enlaçadora,

como veremos. A expressão “sedi di shacina” lança o sujeito ao trabalho delirante, mas

também aos ensaios de solução que engendra através da escrita e da pintura. “Sedi di

shacina estabelece o necessário para o comprimento [sic] da vida. E pede, no plano

onde tudo é bondade, que o equilíbrio seja restabelecido”, escreve A. em 2006. O

tratamento do real nasce da contingência dessa frase que ganha valor de enigma, de algo

que parece fazer cifra. O trabalho inicial sobre a expressão acontece tão logo ela se

apresenta para A..“É, mas surgiu foi como um não. Falou: ‘não seja di shacina’. Aí, que eu lutava justamente pela sede, contra a ‘sedi di shacina’, né? E hoje a ‘sedi di shacina’ minha é a favor dos que ganham pão honestamente, dos pobres, dos oprimidos, de todos eles. Não é ‘sedi di shacina’ soberbo. [...] Aí eu falei “não sedi di shacina” porque, na mesma hora que surgiu a ‘sedi di shacina’, eu falei não. Pintou aquele não ali. Foi uma coisa assim, sabe? Eu não aceitei ‘sedi di shacina’, aquela coisa assim. Foi ‘não sedi di shacina’ como aquele verbo assim: não matar, não roubar, né? Amar a Deus sobre... aqueles mandamentos, né? Então ela surgiu primeiramente como um mandamento de Deus, do que não matar, né?” (Relato de A. em entrevista).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Ao imperativo “matarás”, “farás uma chacina”, que veicula uma forma de gozo do

Outro sobre o sujeito-objeto, ele interpõe um não. Se Freud nos adverte que o símbolo

da negativa é condição da estruturação da linguagem, sendo precedido por uma

afirmação primordial (Bejahung) e por uma expulsão (Ausstossung) que instala um fora,

A. nos testemunha, com o “não” que precisou interpor à palavra de ordem a ele imposta,

uma inscrição que não se efetuou. Se A. fala e, portanto, participa de alguma maneira do

dispositivo da linguagem, fato é que ele faz um uso singular das palavras. Ele também é

falado no ponto em que uma letra não escreveu com o significante a condição do

inconsciente, do recalque. Em outros termos, a rejeição, ou foraclusão, assenta-se sobre

uma negação primordial que não se efetuou, deixando o sujeito entregue ao real e ao

uso que pode dele extrair97. Aí o ponto a ser reparado no nó. Não estamos, portanto,

diante de um desabonado do inconsciente mas, antes, diante de um sujeito que está no

avesso do inconsciente, recebendo de fora (ou do real) seus significantes.

A riqueza desse caso consiste exatamente no trabalho que esse sujeito faz com as

palavras e com as imagens que tem à sua disposição, tanto no escrito quanto na pintura.

Na busca de constituir um corpo, seu esforço incessante o conduziu a criar obras

belíssimas98, nomeadas a partir de seus livros escritos. Além disso, no encontro com a

analista algumas escansões são forjadas no seu texto infinito, bordando pontos para

contenção de um gozo que entorna pelo corpo. Ele inicia uma série, relacionando os

livros que escreveu a partir do número 57. Número que inicia a série na qual o zero não

se escreveu sobre o nada que o precedia99. Mas nos parece que algo aí ainda não se

escreve mesmo assim. Será que podemos dizer que todo seu trabalho é uma tentativa no

sentido desse ciframento, desse enodamento? Decifrar cifrando, como diz Lacan?

Com o trabalho delirante, aliado à pintura, ele evita, podemos hipotetizar, uma

passagem ao ato, que cede lugar à escrita dedicada a cernir esse significante que retorna

97 “O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente ser encarado como sinal de uma desfusão [desamalgamar] de pulsões efetuada através de uma retirada [subtração] dos componentes libidinais” (FREUD, 1925/1976, p. 300).98 Cf. fotos no Anexo V.99 Agora seus pequenos cadernos são escritos, entregues à analista, que os xeroca e os devolve para que ele os assine. A idéia é a de que ele dê um nome ao que escreve, introduzindo um ponto de parada onde antes havia puro deslize. Ele ia escrevendo e dando seus livros sem cessar. Agora ela tenta introduzir um ponto de basta. O efeito, interessante, é o início da escrita de cartas, com destinatário. Ele não escreve mais sob a submissão das idéias de um Outro, dirigindo seu produto para um Outro anônimo. A numeração dos cadernos segue a mesma lógica. Hoje cada caderno recebe um nome e um número. Ele marca a incerteza, mas não fica perdido nela.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

no real sem significação. A grafia da expressão “sedi di shacina” é por ele estabelecida

já de uma maneira singular, incluindo retalhos da escrita indiana de autores que cita

para bordar possíveis pontos de estofo. A expressão parece-nos, assim, organizar uma

direção subjetiva em face do caos que se instalou em sua vida com o desencadeamento.

O trabalho consecutivo a ela testemunha o esforço delirante em se fazer um corpo capaz

de acolher o gozo que o transborda, amparado pela escrita, pela pintura e pelo teatro.

Ele trabalha incessantemente sobre essa frase, tendo escrito mais de sessenta livros,

pintado algo em torno de 100 quadros e articulado toda essa produção ao teatro da

crueldade, de Antonin Artaud. Se, aparentemente, parece haver uma deslizante busca de

sentido para a expressão, é possível depreender de seu esforço a tentativa de cifrar e

estacionar essa correnteza de gozo, ainda que ele se mantenha submerso à lógica de seus

Outros – figuras de seu folclore pessoal de quem extrai as máximas sobre as quais

sustenta seus passos.

Ao lado de Artaud, Sevananda100 e Krishnamurti101 são autores cujas idéias dão corpo ao

discurso de A., muitas vezes pura citação deles. É de um misto de referências e citações

que A. se serve para escrever seu texto. Entretanto, essas intervenções do Outro não têm

o mesmo valor das epifanias no texto de Joyce. “Eis o que ele queria fazer, acrescenta, era registrar essas cenas, essas pequenas comédias realistas que dizem tanto. Temos, então, uma espécie de desdobramento da experiência (digamos para simplificar um lado realista e um lado de alguma forma poético) e uma espécie de liquidação, de censura” (AUBERT, 1976/2005, p. 181).

Joyce interpõe seu texto literal na literatura que escreve. Por seu turno, A. é escrito pelo

texto do Outro, cujas citações colam-se em seu discurso antes como semblante que

como fragmento de real. A. parece permanecer colado no Outro, feito um apêndice, não

conseguindo nele escrever seu lugar. Em outros termos, Simbólico e Imaginário

100 Sri Sevananda, o Conde francês Leo de Mascheville, é autor do livro O mestre Philippe de Lyon, pai dos pobres. Morou na Argentina, no Uruguai e no Brasil, tornando-se instrutor espiritual desde 1924. Ainda em Montevidéu, fundou a "Associação Mística Ocidental", sob a direção do Mestre Philippe, escola que se tornou um centro de União de Correntes Espirituais: Essênios, Suddha Dharma Mandalam, Rito Egípcio de Osíres, Ramakrishna Ashrama, Kriya Yoga, Yoga Ashrama, Comunidade Sufi, Satyauraha Ashrama, Ordem Martinista, Maitreya Mahasangah, Ordem Cabalística Rosae Crucis, Departamento do Verbo, Zen Boddhi Dharma, e Igreja Expectante, com contatos com os representantes de quase todas essas correntes. Muda-se posteriormente para o Brasil, onde funda uma nova Ordem e morre. Mais informações sobre sua vida no site: <http://igreja_expectante.tripod.com/sevananda.htm>101Jiddu Krishnamurti, nascido em 1895, na Índia, talhado para se tornar o ' Instrutor do Mundo ', segundo os teosofistas, tornou-se chefe da Ordem Internacional da Estrela do Oriente em 1911, que abandonou em 1925 para se tornar um mestre autônomo. Escreveu mais de 60 livros, deu palestras por todo o mundo, pregando o autoconhecimento, mas recusou a posição de guia espiritual. Mais informações sobre ele no site: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jiddu_Krishnamurti>.

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

ensaiam coser do Real algumas nesgas, mas essa costura não se faz com facilidade.

Aqui temos a impressão de que a ex-sistência do inconsciente em relação à rodela do

Real, avanço do Simbólico sobre o Imaginário, não se escreve.

Assim, como vimos:

(a) O delírio se apresentará, no caso, como ensaio de deciframento, como esforço de

réplica que o sujeito dará à produção destas significações novas. Para Lacan (1957-

58/1998), o delírio não é a explicação de uma experiência primitiva. Ele possui

exatamente a mesma estrutura dos fenômenos elementares que, por seu turno, já

teriam a estrutura do delírio.

(b) Além disso, “encontrar um sentido implica em saber qual é o nó, e de cosê-lo

corretamente graças a um artifício” (Lacan, 1975-76/2005, p. 73), na medida em

que a clínica passa a se fazer de cortes e religamentos.

Se o sinthoma pode ser concebido no registro da escrita como a forma com a qual cada

um goza do inconsciente na medida em que o inconsciente o determina, podemos dizer

que Joyce conseguiu construir a letra com a ajuda da letra até que ela pôde abolir o

símbolo, deslocado de qualquer significação. Aí, nesse ponto, pôde prescindir do S1, do

Nome-do-Pai estabelecido, e inventar uma suplência a seu modo e com seus recursos.

Construção que deve mais à escrita e à letra que à fala, construção que se esforça em ser

para si mesma sua própria referência.

Gentileza realiza, por seu turno, uma outra forma de suplência. Ele se forja na caligrafia

que inventa, provocando sulcos e rasuras no texto de gozo que se faz mensagem

endereçada ao Outro. O Real é enlaçado pelo quarto elemento ao par Imaginário-

Simbólico. Assim, há um reforço no Real, que corresponde à sua obra, corrigindo o erro

do par Imaginário-Simbólico, que se encontra entrelaçado, e não superposto, amarrando

um gozo pela missão que a gentileza convoca ao Profeta.

E com A., o que se passa? Se sua escrita remete a um possível entrelaçamento entre

Simbólico e Imaginário, gerando efeitos sobre o Real, desemaranhado da letra que não o

captura fazendo escrita, por outro lado, a pregnância de fenômenos corporais,

imaginários, parece indicar, ao contrário, um erro, um entrelaçamento entre simbólico e

real. Essa multiplicidade de perspectivas nos conduz à sensação de que Real, Simbólico

e Imaginário se apresentam para A. em continuidade, como se fossem traçados da

mesma substância num nó de trevo (Fig. 15), sem escansões ou cortes. A ausência de

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

descontinuidade neste caso ainda nos sugere uma topologia mais radical, talvez mesmo

um nó trivial ou falso nó de trevo (Fig. 15), no qual os três registros formariam um

círculo sem cortes ou interrupções nos quais um registro avançaria até tocar o outro na

composição do nó. Busquemos mais elementos...

D. Sobre a “sedi di shacina”

A. não esconde o uso que faz da escrita.“Escrevo! Eu gosto muito de escrever. Escrevo bastante. Foi eu que criei essa frase, essa frase aí resultante de tudo. Minha luta, minha arte, no teatro. É ‘sedi di shacina’ que é a frase que devolveu o poder, muito poder, muitas coisas assim, sabe como é? É a solução de continuidade que antes não havia, não havia, né? Agora existe a solução” (Relato de A. em entrevista).

A idéia da ‘sedi di shacina’ parece tentar criar um marco, um ponto zero, conceitual,

início de laço. Com essa expressão, A. ensaia diferentes enlaçamentos. Há uma

atividade delirante que o ocupa bastante e que vem acompanhada muitas vezes de

alucinações. Essa atividade corre paralela a sua criação escrita e pictórica. Nem uma,

nem outra, porém, ganham exatamente uma direção. É um autotratamento disperso,

desorientado. Estamos falando de um sujeito que trabalha incessantemente e que possui

recursos ricos, entretanto, não parece fazer deles artifício de escrita. Conseguiu

contornar o encontro com o real do desencadeamento, talvez mesmo uma passagem ao

ato grave, e se mantém num liame tênue entre os três registros. A expressão “sedi di

shacina” parece contornar momentos de crise e no seu autotratamento tem sido um

recurso importante. “Vem o A., que é eu, que dirige os assuntos da civilização no mundo, sabe como é? Como o rei do mundo, né? O que que eu faço? Já que é me dado uma importância dessa, eu faço jejum, eu faço oração e conquisto alguns poderes ali. No jejum, sabe? Quando não tem mais nada, eu tô no jejum, penso a ‘sedi di shacina’. Ela vem livremente porque o organismo, né? Não, não... tá limpo, né, não não... Como estava em jejum, aí a frase pode adquirir forças novas, como se fosse um santo, sabe como é?” (Relato de A. em entrevista).

Ele recorre à expressão para fazer uma ligação artificial, quando o recurso delirante,

simbólico, falha em escrever o Real. Esta expressão encontra um ponto de amarração no

teatro. Vejamos. No momento do desencadeamento, A. cursava teatro e ensaiava uma

peça de Artaud. A força dessa experiência reverberou no nível de lalíngua, permitindo

uma captura que, por homofonia, fez do Artaud [artô] ator, sustentando uma posição

ancorada num nível elementar do gozo (e, portanto, capaz de outros desdobramentos e

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

soluções). “Mas, como fui ator, Artaud fica importante para mim. O teatro é como se fosse a gênese, a criação, ali que consegui preencher as línguas vazias, o ‘sedi di shacina’. Quando cê grava com força no seu cérebro, essa lei vivifica uma emoção arquivada, fica viva” (Relato de A. em entrevista).

Lalíngua vivifica o corpo de gozo, confere à linguagem sua matéria-prima. Mas da

tentativa de escrever a letra, A. parece resvalar para o semblante, para o que faz

miragem fálica com o ‘ator’. “Nada é mais distinto do vazio escavado pela escritura do

que o semblante” (LACAN, 1971/2003, p. 24-25). Parece ser de outro lugar do discurso

que o significante captura a letra no seu caso. É aí, talvez, que a solução de A. desliza

vazia de significação para significação como semblante, sustentado pelas máximas que

retira de seu Outro-Artaud.

O falo, como corolário do Nome-do-Pai na década de 50 e como ex-sistência na década

de 70, apresenta-se em seus escritos como “pau de plástico”, inconsistente. “SEDI DI

SHACINA CUJO O APOIO SÓ PODE SER UM PAU DE PLÁSTICO, ASINALA O

MARAVILHOSO MÉDICO QUE SALVA VIDAS.. DIS. PHA, PHITA, ES. ET,

KISROM. EL. COMO POETA.” Não há o pai ou um pai da exceção que amarre os três

registros. Há uma versão de pai a ser inventada. Será preciso fundar, em torno do “sedi

di shacina”, uma nova ordem? A saída pelo semblante parece não se sustentar de sua

consistência. A “sedi di shacina” se ampara na inconsistência de um “pau de plástico”.

O significante fálico não opera sua função de fundar num fora-corpo, pelo significante,

uma via de gozo. Ele não cria a condição do gozo fálico. O pênis real, dessa maneira,

não adquire sua função simbólica, restando como pedaço de corpo.

Aí podemos verificar significante e gozo disjuntos num corpo que sofre os efeitos dessa

maneira singular de apresentação em lalíngua. Parece não haver uma letra que fixe uma

forma de gozo, ou seja, que suporte o significante, que entrelace o gozo ao corpo. A

letra enquanto traço sobre o qual repousa o significante, nesse caso, não se escreve

como suplência. O esforço do sujeito vaga nos destroços simbólicos originários que

aqui aparecem como pedaços de real que, não sendo contornados, fisgados, amarrados,

retornam enquanto alucinação do verbo sobre o corpo.

A articulação da frase com o teatro possui outra vertente. Em uma das entrevistas, ao

citar Artaud, A. faz o que seria um ato falho e localiza o “sedi di shacina” no lugar da

“criação espontânea” do teatro da crueldade, fazendo equivaler a criação de uma nova

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

estética teatral em Artaud com a criação do gozo-sentido extraído dessa expressão. “O

menor átomo de ‘sedi di shacina’ (risos) – criação espontânea que eu queria falar

(risos) – é um mundo mais complexo e revelador do que qualquer metafísica. Destruir

com aplicação e maldade onde se impede o livre exercício do pensamento” (Relato de

A. em entrevista).

A. explica que a expressão “sedi di shacina” deve ser usada livremente, fora de toda

capacidade conhecida do pensamento. Segundo ele, a “sedi di shacina” é o instrumento

que Artaud nunca conseguiu fabricar. Artaud assim diz: “há trinta anos que escrevo e

ainda não encontrei o instrumento que nunca deixei de forjar”. A. o encontrou, é o

“sedi di shacina”. Ele, A., cumpre para Artaud a mesma função que Philippe Lyon, o

primeiro santo da Igreja Católica, segundo ele, cumpriu para Cristo: ser seu instrumento

na missão de propagar os princípios e a fé católica. A. o faria em relação ao teatro da

crueldade, materializando o instrumento impossível do gozo de Deus-Artaud. É, no

final das contas, ele mesmo quem se oferece como objeto desse gozo impossível.

Importante destacar aí a prevalência do semblante sobre o significante para tentar dar

corpo à letra que não se escreve como nó. A. se oferece como instrumento de Artaud e

seu teatro, alienando-se em seu texto, no qual é completamente absorvido. Talvez, por

isso, sua escrita não faça letra como artifício, não funcione como suporte ao

significante. É o significante real e impositivo advindo do campo do Outro que parece

falar nele. “E a minha mensagem é o seguinte: eu conheço o camarada [Artaud]. Envia pra ele atenção, que ele realmente proporciona algo corpóreo a quem assiste o teatro do [inaudível]. Isso me faz me sentir muito bem porque um rei precisa de outro. Praticamente, se não fosse o teatro da crueldade, como é que existia a ‘sedi di shacina’? Não ia existir, né? E o cara que criou o teatro da crueldade tá lá, criando teatro da crueldade” (Relato de A. em entrevista).

Essa alienação que o delírio veicula aparece também na invenção do “departamento

executivo da vontade do pai”, um nível superior no qual se encontram os grandes

homens, como Artaud, Van Gogh, Glauber Rocha, Philippe de Lyon e seu próprio pai,

já falecido. A. se comunica com todos. Ele associa a “vontade executiva” à “sedi di

shacina”, enquanto vontade do pai. É o máximo da criação espontânea, do milagre

instantâneo do pai. Foi o “departamento executivo que criou a “sedi di shacina”. É a

criação máxima do milagre do pai. Ela veio depois de crucificado Jesus, mas foi por

isso que ele foi crucificado”.

231

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Há uma versão do pai que a “sedi di shacina” ensaia escrever como reguladora de gozo

num nó. Ela, porém, não parece encontrar um ponto de amarração estável. Ao mesmo

tempo em que o “departamento executivo” teria forjado a expressão “sedi di shacina”,

A. se diz autor dessa “criação espontânea”, como rei que é... Ele oscila entre posições,

sem a certeza paranóica de um eu imaginário, narcisicamente investido. Por

conseqüência, o gozo resvala para o corpo, superfície que não o contém pois não

encontra seus pontos de limite para se fazer continente e buraco (zonas erógenas). “A ‘sedi di shacina’, por exemplo, a frase que revolucionou a vida, revolucionou, né? O verbo executivo da vontade do pai, né? O departamento executivo. [...] O executivo... É o Departamento da vontade do pai. Pai, Deus, né? Aí essa ‘sedi de shacina’. [...] Por exemplo, o Philippe Lyon era um objeto de reto do Departamento do... e o... Ele uma vez furou a mandioca sem me tocar, quer dizer... E tinha o verbo. E o máximo que eu pude fazer sobre o departamento executivo foi criar essa frase que é ‘sedi de shacina’. Quer dizer mata vaca, mata porco, mata franguinho pra comer. Quer dizer, isso tudo é a ‘sedi di shacina’ em ação. Então, isso é que é, a coisa pode se renovar através dessa frase, sabe como é que é?” (Relato de A. em entrevista).

Pai e falo aparecem aqui disjuntos e negativizados em relação às suas funções quanto à

castração e à nomeação também. Ao pai mítico, capaz de fustigar e abusar do próprio

filho, A. interpõe o “sedi di shacina”; foi o máximo que ele pôde fazer em relação ao

pai. Seria essa sua père-version?

E. Gozo e corpo

Seu corpo, na ausência da significação fálica, da extração que lhe conferiria uma

unidade narcísica e simbólica, encontra-se à mercê do gozo do Outro. “Ele dizia que tava com uma dor no peito, uma dor no peito. Até levei ele, na ocasião, ao cardiologista e tinha nada. Aí diz o psiquiatra que é psicológico. Eu não sei. Mas ele sente uma dor, ele sente mesmo. Aí ele fala que Jesus tá fincando a cruz dentro do peito dele, quer dizer que é uma dor forte, né? Que seja psicológico, mas é uma dor. Jesus tá fincando a cruz nele, ali no peito dele, que ele não gosta do pai, que ele quer acabar com o pai, que é ele. Mas tem muito tempo que ele não faz isso” (Relato da mãe de A. em entrevista).

O sobrenome paterno de A. é Cruz, A. Cruz. Sem uma significação orientada pelo

apagamento do traço unário ou pela escrita da letra, enquanto condição para a

identificação que funda o nome próprio, este aparece como pedaço real de nome,

retornando como gozo do corpo atormentado. O que não faz nó, articulando real,

simbólico e imaginário, distribuindo uma maneira de gozar, retorna como pedaço de

carne molestada, como cruz que se afunda na carne do corpo. Ali onde sua articulação

não se estabelece, nasce todo o sofrimento do corpo, potencializado pelo uso da droga.

232

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

O teatro, por seu turno, auxilia na sustentação desse corpo não escrito. “O teatro é onde

a gente se entrega com alegria, cultivando no corpo sua emoção. [...] Primeiro, a

pessoa tem idéia que é a droga, o coração, espantosa explosão de peste, mas o teatro é

que organiza. O cérebro é o pulmão é que são atingidos pela droga, né? O coração fica

intenso, barulhento, e a pessoa nem se percebe, o corpo já ficou cheio de bulbões”. Os

bulbões na terra equivalem a vulcões no corpo humano. Segundo ele, sua experiência

após o desencadeamento foi a de um inferno sem volta, um mergulho na dor, à medida

que foi se aprofundando, foi aumentando. Depois passou. Depois da intoxicação, do

encantamento, não tinha mais vida orgânica, só psíquica.

Ele relata uma crise muito intensa com seu ápice em 2003, período da ida ao CERSAM,

na qual houve uma dor muito forte. Depois dela e depois do encontro com B., a

funcionária, tudo ficou melhor. Ele realiza o que Artaud escreve no sentido de que é

preciso viver a dor mais intensa para que se possa encontrar uma saída. Artaud realizou

esse sofrimento junto aos índios Tutuguri, tomando peiote entre eles. “Um teatro verdadeiro ele transtorna o repouso dos sentidos, libera o inconsciente reprimido, sabe? Leva uma espécie de revolta virtual, proporciona a quem vem assistir e à comunidade que permite, proporciona alguma coisa, assim, uma atitude heróica e difícil. Sabe como é que é? E é preciso acabar com muita facilidade, né? A gente tem que fazer as coisas difíceis, coisa fácil demais não...” (Relato de A. em entrevista).

O teatro dá corpo ao que aparece no real, sem representação, sem inscrição. A. parece

substantivar o gozo também no ato da interpretação teatral, assim como Artaud o fazia

no ato de criação.

Mas foi o encontro com os olhos azuis da funcionária B. do serviço público no qual

começou a se tratar em 2003, que operou nesse sofrimento do corpo um corte. A

localização do objeto olhar nos olhos da funcionária favoreceu uma condensação do

gozo fora do corpo, arrefecendo as dores que o tomavam. Ele deixa de fumar e usar

drogas e pacifica a relação com o corpo. Uma localização do objeto fora do corpo

parece ser o que opera nesta situação como apaziguamento. Parece-nos que, nesse

encontro, A. conseguiu operar o que as tentativas com o teatro, a escrita e a pintura

ajudaram a construir.

F. A pintura

A pintura surge como estratégia em torno de 1990. “Uma tela nunca fatigou ninguém,

233

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

são as forças de um louco em repouso, não transtornado”, relata A. citando Artaud. Ele

começa a pintar por estímulo da família e para presentear pessoas com suas telas. Com

isso, ficaria conhecido e faria o “fenômeno” acontecer. Através de suas telas, ele

estabeleceria uma forma de comunicação telepática com as pessoas, podendo conversar

com elas mesmo em sua ausência. Instalado o quadro na casa dos outros, produziria

felicidade para eles. Não é uma missão, como a de Gentileza, mas é um objetivo que ele

estabelece a partir do “sedi di shacina”. “A nossa amizade, nós não nos conhecíamos,

né, cara? Agora, olha o fenômeno. [...] Olha o fenômeno, o quadro que uniu a gente.

[...] A arte é que faz isso, a arte apresenta novas coisas, novas amizades, né?” (Relato

de A. em entrevista). O “fenômeno” parece incidir no ponto em que a relação com o

Outro se mostra consistente por demais. A. parece precisar de um recurso de mediação

que talvez faça para ele a função que a linguagem faz para o neurótico.

Para ele, a pintura funciona também como uma espécie de canalizadora de energia, uma

via de investimento e transformação pulsional. “Eu pintei os quadros até que as coisas

foram melhorando, né? Porque aí a própria ‘sedi di shacina’, como não é esse nome de

sangue, passou pro pincel e virou uma imagem, sabe como é?”. Como vimos, o que

ganharia talvez uma solução pela passagem ao ato, é claramente orientado em um outro

sentido aqui. A pintura volatiza o impulso ao ato, articulando a pulsão de morte a um

contexto de criação ou à pulsão de vida. Parece-nos que o ato de pintar realiza, por si

mesmo, esse amálgama pulsional, conferindo a A. uma estratégia de amarração do gozo

disperso. “A vontade de, por exemplo, canalizar as energias úteis, de ajudar uma outra

pessoa, de ajudar a mim mesmo em vez de ficar inerte lá. Quando você tá inerte, sua

mente funciona de um jeito, agora quando você tá trabalhando, ela funciona bem

melhor” (Relato de A. em entrevista).

A pintura nos parece produzir seu efeito em dois níveis pelo menos. De um lado, o

produto da criação pictórica, o quadro como objeto, se apresenta na dimensão de uma

tentativa de inscrição imaginária na relação com os outrinhos, na qual, feito objeto do

Outro, ele se apresenta no quadro como objeto ao outro. Ele também, nesse ato, faz um

endereçamento, dirige sua criação na busca de alguma forma de reconhecimento no laço

social. O ato de criação, por outro lado, estabelece uma saída num nível em que articula

os registros. Ela parece tentar se escrever entre os registros real e simbólico numa prega

através do imaginário. Todas as suas telas, é bom lembrar, representam figuras e

234

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

enredos dos dez livros escritos na adolescência. Não nos parece que ele faça essa

articulação somente no nível da linguagem, do simbólico, mas principalmente no nível

de lalíngua. Há uma operação cujo resultado não parece ser alcançado pelo significante,

senão a posteriori.

G. A escrita e a letra que (não) se escreve

A escrita também caminha acompanhando o percurso de seus Outros.“Por exemplo, eu sou um Van Gogh. Mas um Van Gogh da escrita não é tão importante quanto o da pintura. A minha escrita é uma escrita que transvalora a natureza, as montanhas, as pedras, as fúrias, as almas das pessoas. Tudo, então, de repente, foi uma mãozinha ali do Van Gogh, ali na minha escrita. Aí eu me considero um Van Gogh da escrita. Pode ser a escrita mais importante que exista a minha. Nunca foi publicada, quer dizer, o mesmo processo de Van Gogh, sabe como é que é?”. (Relato de A. em entrevista).

Com a escrita, A. diz pretender fazer a pessoa despertar, sua escrita “traz mais proveito

a quem lê do que a quem escreveu. Então, quer dizer, alcançou o objetivo, né?”. Ele

começou a escrever contos fantásticos antes do desencadeamento, dez ao total, como já

dissemos. E depois passa a tratar da “sedi di shacina” e suas conexões. Atribui a seus

escritos poderes sobrenaturais. “Aquele meu livro chamado ‘Shanura Metamórfica’,

que é o primeiro deles, tem dado às pessoas uma... um poder místico mesmo”. A escrita

participa e testemunha o delírio, tal qual sua pintura.

Essa intrínseca articulação entre escrita e pintura é manifesta neste exemplo. A. deu um

quadro para seu psiquiatra e para a funcionária administrativa do CERSAM, escrevendo

para eles uma carta: “E gerou fenômeno. Eu olhei pra essa palavra escrita e é como se

eu visse a celulose, a árvore, a formação de um novo papel pra todo mundo, né? Que

gosta do amor, das coisas boas, delicadas, sutil” (Relato de A. em entrevista). Sua obra

cria um novo espaço vital, na verdade não-relacional, no qual ele se inscreve. Parece

fundar um laço que não opera com o outro, mas consigo mesmo auto-eroticamente

através da obra.

Ao mesmo tempo que os objetos criados com sua arte parecem operar como

condensadores de gozo, eles obturam a via de acesso ao Outro. Não funcionam como

artifício, ele parece não constituir com eles um “savoir-y-faire”. A. se satisfaz numa

espécie de laço autista que inclui o parceiro, à medida que o exclui. Uma intervenção

precisa de sua analista provoca um deslocamento desse uso da criação. Ela se recusa a

‘conversar’ com ele através de seus quadros, convidando-o a falar com ela sempre

235

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

pessoalmente. Aceita o quadro, mas se recusa a conversar telepaticamente com A. E, ao

surpreendê-lo, funda uma nova possibilidade de enlaçamento pela palavra. É sobre essa

escrita que estamos a tratar...

Artaud é seu complemento na escrita factual, a que acontece sobre o papel. Efetiva uma

relação completa, esférica, que não deixa lugar para o furo ou para a torção do trabalho

inconsciente. “Não tinha como apoiar o gênio escrevendo, eu não escrevia como ele

[Artaud], com essa crueldade. Escrevendo me sinto como ele, e ele se sente como eu”.

Artaud é um apoio para suas idéias. “Poxa, não encontro uma palavra para dizer o que

penso, aí na palavra dele você... mágica! Você encontra mais revelação do que

pensou!”. Não é à toa que a “sedi di shacina” realiza a criação espontânea de Artaud e

socorre A.. “Então, quer dizer, sempre que houver algum problema, você falou ‘sedi di

shacina’ e a ‘sedi di shacina’, então, venceu aquilo e te mostrou alguma coisa melhor e

te curou, e te melhorou, é uma coisa assim sabe?” (Relato de A. em entrevista). Como

se vê, Artaud funciona como complemento especular, sendo incluído nas criações de A..

A “sedi di shacina” parece poder se tornar um articulador suplementar de uma possível

resposta ao real que retorna desamarrado para A.. A expressão, que ele chama de frase –

ainda que sintagmática –, confere-lhe um lugar. “Como eu dirijo os assuntos, eu sou o rei do mundo e, como rei do mundo, eu já criei de início essa frase, quer dizer, é uma frase de rei mesmo. Mas, pô, é um fenômeno, sedi di shacina, como é que pode? Como é que pode? Uma porção de rei, o que aconteceu pra existir isso? Quer dizer, é como um reinado mesmo”. (Relato de A. em entrevista).

Seu nome, escolhido pelo pai, será por ele adotado somente a posteriori. A. realiza todo

um trabalho de nomeação em torno de seu nome próprio. O início desse trabalho parece

se dar com o momento do desencadeamento. Aí ele inaugura um esboço de nomeação,

de père-version: A., o rei persa, segundo seu pai que lhe cunhou o nome, aparece como

“rei do mundo, anjo e protetor”. A. introduz na versão paterna elementos antes ausentes.

Com isso, ele começa a forjar uma versão da versão do pai sobre seu nome. “Só que em vez de rei persa, eu sou flagelo de Deus. Eu sou um amigo de Jesus. Essa é a diferença. [...] Aquele processo de droga e motoqueiro tem tudo a ver com flagelo, né? E agora como larguei aquele mundo, né? É como se fosse a volta do filho pródigo. Como várias pessoas têm essa situação de usar drogas e parar e reingressar na vida, né?” (Relato de A. em entrevista).

A idéia do flagelo, associada às mortes violentas do rei persa, ganha uma versão

pacifista e pacificadora. Ele desfaz a significação corrente do conhecido rei persa, que

236

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

lhe dá o nome, e recria em seu próprio nome o reinado do mundo. E, associando o

flagelo de Deus ao seu antigo estilo de vida, às drogas e às motos, ele rompe com o

nome forjado pelo pai, tentando recriar no delírio, na escrita e na pintura, um novo

enodamento que o enlaçaria sob a égide da “sedi di shacina”. Será, porém, que essa

escrita se efetiva?

A. parece deslizar entre os pontos que lhe servem de estofo (“sedi di shacina”, Zé

Bicheira, Artaud, Van Gogh, Philippe de Lyon, cavaleiros do apocalipse, entre outros)

sem fazer deles rasura, sulco. É, porém, diferente do uso do delírio que o Profeta

Gentileza fez. Naquele caso, os significantes delirantes enviaram-no a uma missão que

ele traçou com uma ortografia nova. Foi nesse ponto de rompimento com o Outro que

ele ganhou autonomia e enodou os três registros, constituindo um novo nome

correspondente ao ‘nascimento’ de um novo sujeito.

A diferença diagnóstica aqui tem seu peso e evidencia entre a paranóia (do Profeta) e a

esquizofrenia (de A.), uma distância que vem marcada por uma estrutura e um uso da

linguagem constituídos de maneira diferenciada. Poderíamos, comparando os dois

casos, pensar que os recursos de A. são mais frágeis quanto à estabilização, ainda que

tão complexos quanto os do Profeta. É nesse ponto que a singularidade do caso se

destaca, evidenciando, como Lacan nos lembra, que o sentido do sintoma é único.

Mesmo se se tratasse de dois casos de paranóia ou de dois casos de esquizofrenia, os

recursos do sujeito e sua utilização destacariam sempre o singular e o intransmissível de

cada caso.

A complexidade com que A. dispõe de suas estratégias é evidentemente um esforço no

sentido da estabilização. Todo esse esforço, entretanto, tem caminhado sem um ponto

de amarração que possa estancar o gozo que jorra por seu corpo, ainda que ele tente

forjar ali um esteio. O Profeta, cuja estabilização se assenta em duas palavras e em sua

caligrafia que faz escrita de nó, parece conseguir, dada a unicidade da paranóia,

construir um ponto de partida e um desfecho para o enlaçamento de seu nó.

Para além de um prognóstico mais favorável à estabilização na paranóia, preferimos

apostar naquilo que, seja numa neurose, seja numa psicose, se oferece como estratégia

para solução. Há um possível de tratar e um impossível de contornar em qualquer que

seja a estrutura, o tipo clínico ou o sujeito. Com isso, o caminho para a estabilização na

psicose é sempre pertinente ao uso que o sujeito pode fazer dos recursos subjetivos que

237

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

disponibiliza. É nesse sentido que a lógica dos nós nos auxilia. Há uma certa

flexibilidade no manuseio dos nós que evidencia uma multiplicidade de formas de

estabilização. Se a estrutura não deixa de contar e de apontar para os elementos de

impossibilidade do discurso, a característica dos nós nos lembra o que desse impossível

que resta pode servir para o savoir-y-faire do sujeito no enlaçamento dos três registros.

É aí que no caso de A. nos parece ser importante a expressão “sedi di shacina”. É dessa

invenção que ele pode extrair um guia, um fio que faça laço.

4.3.3 Uma leitura borromeana do caso

Podemos hipotetizar que os ensaios de se fazer obra em A. apontam para uma

transmissão real para o Outro de uma inscrição atual e evanescente de si mesmo. Por

isso, ele refaz o trabalho de escrita a todo tempo. Parece-nos que ele, no Real, atualiza a

inscrição de uma nomeação que não se amarra borromeanamente. Como essa inscrição

não faz sulco, nem rasura, o gozo não estanca, não se fixa numa letra, num ponto de

amarração para além da matéria significante. Daí retornar sobre o corpo. Se não há furo,

se o imaginário não faz reta infinita, enodando os outros registros, resta sobre o corpo a

incidência do gozo. Daí também o deslize significante incessante que não faz cade-nó.

Em seus intervalos, as palavras alucinadas e os neologismos se instalam, ensaiando a

escrita de um sujeito. Entretanto, é pelo semblante oferecido pela citação do Outro que

ele fala. O enxame significante faz barulho, mas não faz furo, sulco, escrita. Por isso sua

criação não cessa de se escrever. Ele não faz ponto contingente de gozo. Ele não se

escreve nó. Seria esse o erro do nó em A.?

Figura 37 – Erro do nó de A.?

Difícil afirmar com certeza. As indicações que A. nos oferece são marcadas por ensaios

topológicos que seguem vias diferentes a cada tentativa, como vimos na discussão

teórico-clínica do caso. O a posteriori aqui crava seu valor. Sobre a suplência em

238

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Gentileza, já realizada, há o que dizer. Sobre o trabalho que ainda avança, como o de A.,

há o que pensar...

Entretanto, quando Lacan, no Seminário RSI (1974-75, aula de 17-12-1974), localiza a

vida no furo do Real e o corpo no furo do Imaginário, fortalece nossa hipótese para o

caso, na medida em que é no corpo que os efeitos de retorno do Real se manifestam

para A.. Do lado da morte se encontraria a função do simbólico, capaz de fazer frente e

limite, ponto de parada, ao enlaçamento entre Real e Imaginário. Mas ele resta livre,

deslocando-se a cada tentativa de A. de grampeá-lo. Quando Lacan, no Seminário 3

(1955-56/1992), nos fala da cascata de remanejamentos imaginários, decorrente do

desastre no simbólico, generaliza uma situação que, a cada caso, será vivida de uma

maneira singular.

Em A., ela se apresenta como desenlaçamento dessa dimensão que faria a mortificação,

pela linguagem, do Real indomado e desdobrado nos efeitos imaginários. Faria letra no

encontro com o Real. Sua criação parece situar-se entre Imaginário e Real. Ele ainda se

acha objetalizado no gozo do Outro. Seria um Outro gozo? Como ele poderia amarrá-lo

e torná-lo possível? Borromeanamente poderíamos pensar na hipótese topológica de um

gozo Outro, impossível, que não é costurado pelo simbólico de forma a fazer nó entre os

três registros. Mas a solução borromeana não é regra para todos, muito pelo contrário. A

topologia dos nós nos ensina, exatamente, a abrir mão do ideal fálico e paterno,

normativo, universalizante, para pensar, a cada caso, a posição do sujeito e seu estilo de

resposta.

Fato é que, em A., a costura que não acontece entre os três registros deixa o Real sem

uma amarração, uma costura, uma franja que avance sobre ele a partir do campo do

Simbólico, criando a condição para a sustentação significante pela materialidade da

letra. Daí ele precisar recorrer ao semblante, ao que o Imaginário lhe fornece de estofo.

Como ele não escreve uma letra, não faz litoral. Nesse ponto de escape, o Real parece

retornar incessantemente nos fenômenos alucinatórios que lhe invadem o corpo.

4.4 Os Dois Casos, Nossa Hipótese e Sua Escrita

Se A. faz um mix em seu texto com as citações de seu Outro, encarnado nas figuras que

admira, ele o faz para tentar tecer minimamente uma referência de si mesmo através

delas. Assim como Bispo se tecia nas obras que bordava e criava; assim como Joyce se

239

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

escrevia em sua obra, nominando-se; A. parece tentar, porém sem sucesso, se escrever.

Por que ele não tem sucesso nessa empreitada? Parece-nos que ele não faz de si letra,

permanecendo apoiado na consistência que o Outro lhe fornece. Assim como se deixa

conduzir por sua mãe no cotidiano, assim também segue apoiado no Outro para

trabalhar sua estabilização.

Não deixa de ser uma maneira de reinventar a linguagem, colando citações, fazendo

uma bricolagem. Mas é como se ele se escrevesse com o texto do Outro de uma forma

alienada a este. Não avança na invenção de uma suplência – que a “sedi di shacina”

talvez poderia forjar –, não faz escrita de gozo. A loucura se apresenta nele como

ausência de obra (FOUCAULT, 1964/1994), no sentido de fazer-se preenchido, não

pelo vazio inaugural da criação ex nihilo, mas pelo texto do Outro que ocupa seu lugar

de agente, de sujeito. Sua escrita, entretanto, garante um escoadouro de gozo, ainda que

não amasse com a letra bordas para fazer desse escoadouro um espaço continente de

gozo.

Gentileza, por seu turno, despe-se e forja-se na caligrafia e na simbologia que inventa,

um novo homem. Nasce sujeito da experiência de ser despojado de seu próprio nome.

Tece com letra singular o bordado de seu texto. Rasura seu texto até chegar a um ponto

inaugural. Nele, faz sulco, escreve letra no litoral urbano que o invade com sua

imoralidade. Cria continência de gozo e se escreve nó, articulando os três registros

através da letra forjada para seu uso. E endereça-se ao Outro, já dele descolado.

Dessa maneira, vemos a nova versão de nossa hipótese avançar sobre o que, da letra

fazendo escrita de nó, favorece a suplência como modalidade de estabilização na

psicose. Neste caso, vemos o sujeito ensaiar outras estratégias de estabilização, que não

somente a suplência, vacilando entre uma modalidade e outra, mas sem necessariamente

se escrever numa obra. Joyce se escreveu; Bispo escreveu bordando uma obra para se

referenciar ao Outro; Profeta Gentileza inventou uma escrita, cuja caligrafia fazia letra

para advertir o Outro. E A.? A. ensaia escrever-se um nome que o afaste dos desígnios

do pai, ensaia fazer uma versão do pai para dela extrair-se sujeito, ainda que permaneça

encarnado no texto do Outro do qual não extrai letra-gozo...

Pensar a letra, portanto, implica de fato em se pensar numa forma de escrita do nó. Ela

pode se realizar através do papel, do texto, dos sons como na literatura joyceana; através

das linhas e agulhas que bordavam, na arte, letras (“eu preciso dessas palavras.

240

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

escrita”), como fazia Bispo; ou mesmo através da invenção de uma caligrafia original

pintada nos muros da cidade e que funda intervalos, inventando signos e letras para

ocupá-los, permitindo que o sujeito emerja, como com o Profeta Gentileza.

Ao contrário do que concebíamos no início deste trabalho, não é essa superfície

material, papel, caneta, tinta ou agulha que funciona como elemento que favorece a

estabilização, mas antes o que delas pode se fazer artifício, o que delas o sujeito pode

usar a seu favor, como savoir-y-faire com o gozo. “O sujeito é causado por um objeto

que só é notável por uma escritura, e é assim que um passo é dado na teoria. O

irredutível disto, que não é efeito da linguagem, [...] é a paixão do corpo” (LACAN,

1974-75, aula de 21-01-1975).

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

CONCLUSÃO

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Apontado nos casos clínicos o que da criação se faz escrita de nó, podemos concluir que

a estabilização psicótica, quando faz suplência, se articula no nível do artifício que o

sujeito inventa para fazer dessa criação letra de gozo.

Descartes nos ensina a nos exercitarmos nas coisas mais simples – como no trabalho

dos artesãos que fazem tapetes, no das mulheres que bordam ou fazem renda e nas

combinações de números pela aritmética –, porém com método, até chegar à sua

verdade íntima. Assim, podemos deduzir de princípios evidentes várias proposições que

parecem difíceis e complicadas.

Essa é a indicação a que Lacan se refere ao abrir seu seminário topológio, o Seminário

RSI, no qual nos introduz efetivamente na topologia dos nós, especialmente na

topologia borromeana. Para ele, não foi por acaso que Descartes aproximou a

aritmética, os tapetes, as tranças e os nós, ainda que ele não tenha se ocupado desses

últimos. Ele toma como orientação essa relação cartesiana para dela extrair suas

conseqüências clínicas.

As tranças do nó borromeu implicam na escrita característica dos três registros para o

falasser. A especificidade do falasser reside no fato de que os registros entre si estão

soltos dois a dois, sendo atados de uma maneira borromeana pelo terceiro. A não-

relação entre cada dois registros mostra a impossibilidade da relação sexual, exigindo a

presença de um terceiro elemento para atá-los. Esse é o efeito real do nó: os registros se

encontram sobrepostos dois a dois, sendo enodados por um terceiro de tal forma que,

rompendo-se um deles, os outros dois registros quedam desatados. É assim que o nó faz

existir o furo.

Foi essa característica que levou Lacan a isolar em um quarto elemento, por ele

denominado sinthoma, o efeito real do nó. Com isso, evidencia a impossibilidade

original do ser falante de dar conta do real – foraclusão generalizada –, havendo sempre

a necessidade de um quarto elemento para suplenciar a relação originalmente faltante do

sujeito com o Outro. Não existe Outro do Outro que garanta a escrita do sujeito como

ser de linguagem. A linguagem aparece, então, como ornamento, como elucubração do

sujeito sobre o campo de gozo que a língua materna (lalíngua) contém.

A entrada da linguagem no real do corpo é sempre traumática e será escrita pela letra,

enquanto litoral entre real e simbólico. É sobre esse suporte que se apóia o significante

243

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

para tentar debilmente dar conta do real. O significante sempre falha nesse intento e, por

conseqüência lógica, o Nome-do-Pai, como significante que garantiria uma função

estabilizadora central para o falasser, também rateia. Lacan, então, pluraliza os nomes

do pai, enquanto função de nomeação, discutindo as diferentes possibilidades de

suplência a essa falha do nó que eles poderiam reparar. A suplência ganha, então, a

coloração de uma invenção subjetiva para dar conta dessa falha que é estrutural para

todos, deslocando do campo das psicoses a idéia de um déficit originário a ser suprido

para a exigência do falasser em construir uma resposta à falha do Outro.

A pluralização dos nomes do pai aponta para a escrita possível de um suplemento a essa

falha – escrita do nó como pontua com exatidão o texto lacaniano. Assim, as três formas

de nomes do pai, as que nomeiam, são o imaginário, o simbólico e o real. Nesses nomes

é que está o nó. O simbólico pode, então, ser substituído pelo binário

(simbólico+sintoma) que o desdobra, numa amarração ou numa nomeação, operada por

um reforço desse registro. Lacan tratará esses dois termos por (inconsciente+sinthoma).

Esse binário se enoda borromeanamente aos outros dois registros, real e imaginário,

conformando a característica essencial do ser falante.

Vemos, portanto, que o quarto elemento aqui corresponde ao que suplencia a falência

do Outro. À nomeação do simbólico como sintoma, acrescenta-se a nomeação do real

como angústia e a do imaginário como inibição. Não foi à toa que Lacan introduziu o

desenho desse quarto termo, a partir da localização do Édipo como o que amarra a

realidade psíquica freudiana, como nomeação do real pela angústia da castração.

Nomeação, escrita ou amarração completamente diferente dessas é a que Lacan extrai

do texto de Joyce. Nele Lacan identifica um erro do nó no qual, ao invés de superpostos,

os registros do real e do simbólico apresentariam um “erro” ao se entrelaçarem, restando

somente o imaginário solto. Neste caso a escrita joyceana forja um ego-sinthoma que

repara o erro como suplência, através de um artifício suplementar, sua obra, que

prescinde do pai, foracluído de fato. O Outro do Outro real é a idéia que Lacan faz do

artifício enquanto um fazer que escapa, que transborda o gozo que se pode ter dele.

Joyce se escreve em sua obra com a letra a. Modifica o estatuto da escrita e faz dela

ego, não em sua dimensão narcísica, mas como escrita que porta, força o objeto a. É

como desabonado, não tributário do inconsciente, que ele extrai um gozo disjunto do

Outro com sua obra.

244

A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

Com essa leitura topológica de Joyce, Lacan inaugura uma possibilidade até então

inédita, a de se pensar as soluções encontradas pelo falasser diferentes das soluções

borromeanas. Avançaríamos para além do corte operado pela presença (neurose ou

perversão) ou foraclusão (psicose) da Bejahung fundamental para um território das

soluções que vão da ausência de suplência com o desanodamento do nó, passam por

enodamentos não borromeanos ou borromeanos, até chegar à continuidade entre os três

registros. Passa-se a contar, no campo das psicoses, com uma gama de soluções

graduadas.

Nesse ponto, nossa hipótese original pôde ser, então, rearticulada. A questão acerca da

incidência da criação artística ou artesanal no trabalho de estabilização psicótica recai

sobre a possibilidade dela provocar um enodamento, uma escrita de nó que enlace os

três registros. Está em questão menos a criação concreta em si mesma do que o artifício

que o sujeito pode inventar a partir dela. Nesse sentido, na clínica das psicoses,

aprendemos que o estilo sugerido pelo sujeito em tratamento é o elemento indicativo

para se pensar as vias de sua estratégia de estabilização. Oferecer aleatoriamente

variados recursos é diferente de seguir as pistas do erro do nó e pensar, então, o ponto a

partir do qual pode se escrever uma solução.

Os dois casos estudados evidenciaram essa diferença na medida em que, apesar de os

dois apresentarem farta criação e escrita, somente a presença destas não garantiu uma

via de construção de uma forma de estabilização. Foi preciso que Gentileza fizesse de

sua obra um artifício para lidar com o Outro e com o gozo através da escrita da letra em

sua caligrafia, para que acedesse a uma suplência. Quanto à A., apesar de sua farta

criação pictórica e escrita, permanece à mercê do Outro, imerso num gozo invasivo que

recai sobre seu corpo, circunscrito apenas contingencialmente pelo encontro com o

objeto olhar. São o artifício criado e seu uso, savoir-y-faire, que podem conduzir a uma

solução no campo das psicoses.

Sabemos, porém, que a psicanálise, ao passar por um certo número de enunciados, não

leva necessariamente todos à via de escrever. Se, porém, tomamos a escrita como escrita

do nó, ela sempre vai contar, pois ao nível da caligrafia do sujeito, é esta letra que faz o

em-jogo da aposta, amarrando e cifrando o gozo. É o que a psicose aqui pode ensinar à

psicanálise.

245

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

ANEXOS

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência

ANEXO I - FOTOS DE ESCULTURAS DO USUÁRIO DE UM CENTRO DE CONVIVÊNCIA

Figura 38 – Foto 1 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)

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Figura 39 – Foto 2 de escultura do usuário de um Centro de Convivência (MG)

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ANEXO II – RESUMO DA CRONOLOGIA DE VIDA DE GENTILEZA

11 de Abril de 1917 – Nascimento de José Datrino (Cafelândia – SP). Era o segundo de 11 filhos.

----- Trabalhava puxando carroça pra vender lenha nas cidades próximas e também na terra e amansando burros. (Mais tarde diz que se tronou: “Amansador dos burros homens da cidade, que não tinha [sic] esclarecimento”). Viveu até 20 anos em Cafelândia.

1929 – Com 12 anos, prenunciava uma missão – “ter uma família, ter filhos, construir bens, mas que um dia teria que deixar tudo”. Seus pais acharam que poderia estar louco e o levou a curadores espíritas.

1937 – Deixa Mirandopólis sem avisar a família, rumo a São Paulo, depois ao Rio de Janeiro. Para a família, teria sido levado por um guia espiritual. Ficou quatro anos sem dar notícia, até que pediu à mãe para lhe mandar seus documentos.

1941 – Casa e tem cinco filhos: três “femininos” e dois “masculinos”. Começou a fazer fretes até estabelecer-se com uma empresa de três caminhões para transportar cargas. Tinha também três terrenos e uma casa.

----- Segundo sua filha, após a visita de alguém que queria se tornar seu sócio, sucedeu o episódio da lama.

1961 – 17/12 – Incêndio no circo. 23/12 – Recebe aviso astral de Deus: “deixar todos os bens e vir como São José, representar Jesus de Nazaré. 24/12 – Deixa tudo e vai pregar em Niterói, distribuir vinho para ensinar as palavras “por gentileza” e “agradecido” (já então falando como Jozzé Agradecido ou Gentileza). Foi levado pela polícia e se instalou no lugar do circo incendiado, transformando-o em jardim circular e denominando-o “Paraíso do Gentileza”, onde permaneceu por quatro anos.

Meados dos anos 60 – Sai do local do circo e começa a deslocar-se entre Rio e Niterói, pregando. Adquire reconhecimento popular, cria provérbios e máximas. Coloca “PC” (Pai Criador) no estandarte. Teve que explicar às autoridades que não se tratava de Partido Comunista.

Fim dos anos 60 – Inicia viagens que o tornarão conhecido no interior do país. Retorna a Mirandopólis como um Profeta.

----- Realiza grandes viagens pelo Brasil num trajeto circular pelo país. 1970 – Em Aquidauna, atual Mato Grosso do Sul, sofre sua primeira grande

adversidade: é preso por uma noite, tem o cabelo cortado e seu estandarte quebrado. Retorna para o Rio e passa a utilizar a cartola do Tio Sam (“profeta tropicalista –

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Chacrinha da Calçada”). Após o incidente em Aquidauna, passa a recolher depoimentos e declarações de figuras públicas e autoridades dos lugares pelos quais passava, como “carta de referência”.

Meados de 70 – Com o cabelo refeito, terno e gravata, inicia o culto à brasilidade. Vai a Minas Gerais, Ouro Preto, por ter forte admiração e respeito por Tiradentes, que, como Jesus, sofreu por seu povo. Lá em Ouro Preto, os estudantes sugerem o uso da bata.

Década de 80 – Assume a bata, a bandeira e os cataventos. Entre Rodoviária Novo Rio e Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5km, Gentileza realiza seus 56 escritos murais sobre pilastras do Viaduto do Gasômetro.

Início dos anos 90 – Finaliza sua obra no Viaduto e, com ela concluída, se postava geralmente ao lado da pilastra 1, sentado numa cadeira, acenando para todos como se estivesse na varanda de sua casa.

1992 – ECO 92 – Rio de Janeiro – Conclama as nações e os presidentes ao uso da Gentileza.

1993 em diante – Tem a saúde fragilizada após uma queda, que lhe ocasiona fratura na perna. Acometido também por problemas circulatórios, sente cada vez mais dificuldade em andar.

Início de 1996 – Retorna a Mirandopólis, São Paulo. 29 de Março de 96 – Morte do Profeta Gentileza. 20 de Janeiro de 1999 – É oficializado o “Projeto Rio com Gentileza”, que recupera

a Pilastra de n° 1. Outubro de 1999 – Semana do Gentileza. 06 de Maio de 2000 – Depois de 9 meses de trabalhos exaustivos de restaurações,

são entregues, em cerimônia oficial com a presença de autoridades, artistas e público em geral, as obras de Gentileza.

Cineastas, poetas, músicos e videomakers trabalham com a história e a obra de Gentileza. Gonzaguinha o homenageia no CD “Cavaleiro Solitário”.

2000 – UFF encaminha, do Departamento Geral do Patrimônio para o Conselho Municipal de Patrimônio Cultural do Município do Rio de Janeiro, pedido de tombamento de toda a obra gráfica de Gentileza no Viaduto do Caju.

Junho de 2000 – Praça Profeta Gentileza é oficializada em frente à Rodoviária Novo Rio.

Novembro de 2000 - Após estudos e análises dos órgãos competentes, a obra é tombada.

É conferido o “Prêmio Urbanidade 2000” ao “Projeto Rio com Gentileza”.

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ANEXO III – MÚSICA DE MARISA MONTE SOBRE GENTILEZA

GENTILEZA

(Marisa Monte, 2000)

Apagaram tudo

Pintaram tudo de cinza

A palavra no muro

Ficou coberta de tinta

Nós que passamos

Apressados

Pelas ruas da cidade

Merecemos ler as letras

E as palavras de Gentileza

Por isso eu pergunto

A vocês no mundo

Se é mais inteligente

O livro ou a sabedoria

O mundo é uma escola

A vida é um circo

Amor, palavra que liberta

Já dizia o Profeta.

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ANEXO IV - FOTOS DO PROFETA GENTILEZA

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Figura 40 – Fotos e imagens referentes ao Profeta Gentileza

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ANEXO V – PINTURAS DE A.

Figura 41 – Pintura 01 de A.

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Figura 42 – Pintura 02 de A.

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ANEXO VI – CLÍNICA BORROMEANA

A título de sistematização, propomos o quadro abaixo que reúne as principais dimensões da clínica borromeana, discutidas ao longo deste trabalho. Ela se sobrepõe à clínica estruturalista, sendo mais um desdobramento do que uma oposição àquela.

PRIMEIRA SEGUNDAClínica estruturalista. Clínica borromeana.Sua essência é a distinção, a oposição, a diferença.

Sua essência é que pode haver ou não enodamento e, quando há, ele pode ser ou não borromeano.

Sua modalidade é a da oposição. Há diferenciações, mas não oposições no sentido estrutural de um sim ou um não.

A oposição, apesar de tripartite (neurose, psicose, perversão), se funda numa bipartição: Bejahung (neurose e perversão) e foraclusão (psicose).

Generalização do conceito de foraclusão.

NP equivalente ao significante que opera a metáfora paterna.

NP equivalente ao sinthoma, disjunta a função paterna da função de nomeação.

Em relação ao pai, trata-se da aceitação (neurose) ou rejeição (psicose) do sigte do NP.

A generalização do conceito de foraclusão implica no NP pluralizado. Ele é substituído pela idéia de ponto de capitonné (ponto de basta, ponto de amarração) que é particularizado.

Clínica descontinuísta, categorial e que implica numa classificação.

Clínica elástica, gradual e que não implica numa classificação (para as psicoses).

Suplência como o que substitui a função do sigte do NP ausente na metáfora paterna. Trata-se de uma substituição significante primordial.

Suplência como suplemento, invenção, referida ao quarto termo do nó, onde e a partir do modo como a foraclusão se escreve.

Aqui a suplência se realiza em relação ao NP, à metáfora paterna (ineficaz), como na fobia ou na psicose.

Aqui suplência sempre ocorre na medida em que falta o significante do sexual, da mulher para todos (Σ(%))

1) Pluralização dos NP;2) Generalização do conceito de foraclusão;3) Equivalência entre as funções do NP e do sinthoma.

Nesta clínica, trata-se de verificar os modos distintos em que se enodam os diferentes registros.

Há casos em que esse ponto de capiton está dado pela presença do NP e, portanto, pela operação

da metáfora paterna (neurose); e há casos em que o capitoneado se dá através de outro

elemento; e casos em que não se dá. Há, pois, casos de enodamento tradicional (NP na Metáfora

Paterna) num extremo, e outros em que não há enodamento, no outro extremo. Entre eles, reside

uma gama de possibilidades intermediárias. Daí preferir-se falar em clínica gradualista e não

descontinuísta, como evidenciou o esquema de Skriabine (2006).

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