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1 TERROR E EXÍLIO em DIALOGUES DES CARMÉLITES, de G. BERNANOS por FERNANDA MARIA DE SOUZA E SILVA Departamento de Letras Neolatinas Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo. Co-orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello Rio de Janeiro 1998

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TERROR E EXÍLIO em

DIALOGUES DES CARMÉLITES, de G. BERNANOS

por FERNANDA MARIA DE SOUZA E SILVA

Departamento de Letras Neolatinas

Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo. Co-orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

Rio de Janeiro 1998

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Para o Nélio, Fernando e Bárbara

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SINOPSE Diferentes formas de Terror na História Contemporânea. Dialogues de Carmélites, o martírio das carmelitas de Compiègne. Carmelo: espaço de conflitos entre o princípio aristocrático e os valores burgueses. Blanche de la Force, símbolo de contradição. Sua errância. O exílio de Bernanos. Errâncias.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................5

CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR...................................22

INTERTEXTO: FIGURAS...........................................................61

Compiègne - um espaço de violência ........................................62 A Ordem do Carmelo ..................................................................70

O TEXTO.........................................................................................77

Prefigurações .................................................................................79 O Prólogo de Dialogues des Carmélites ......................................79 Mudanças....................................................................................88 A profanação .............................................................................95

Valores..........................................................................................102 O código aristocrático ............................................................102 A reversão de Valores.............................................................132

Onde está Blanche? ....................................................................166 BERNANOS, O EXÍLIO?...........................................................188

UMA OBRA ETERNA?...............................................................237

BIBLIOGRAFIA ...........................................................................242

5

INTRODUÇÃO

A Tese aqui apresentada, Terror e Exílio em Dialogues des

carmélites de Georges Bernanos, tem como objetivo analisar o Terror

que se apresenta sob diferentes formas no texto escolhido e

propor uma leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do exílio.

Sinteticamente, pois deixei para momento oportuno o

desenvolvimento das questões aqui expostas, vou, de início,

localizar o escritor no panorama intelectual de sua época.

Georges Bernanos (1888-1948) é um escritor francês de

destaque, romancista consagrado, autor de Sous le soleil de Satan e

de Journal d’un curé de campagne, entre outros. Também escreveu

uma obra polêmica, violenta denúncia contra os regimes

totalitários da época, conhecida sob o título geral de Essais et

Écrits de combat, entre os quais se destacam Les Grands Cimetières

sous la lune e Lettre aux Anglais.

Classificar Georges Bernanos constitui uma difícil tarefa.

Ele recusou todos os rótulos que lhe foram, por vezes, atribuídos.

Rejeita ser considerado um profeta: "Je n’ai jamais rien prédit, mais je

veux aujourd’hui, comme d’habitude, dire tout haut ce que chacun pense tout

bas" (EEC II: 297)1. Não aceita ser considerado um

doutrinador (EEC II:141) ou um panfletário (EEC II: 1271). E,

6

surpreendentemente, opõe-se ao título de escritor: “Je ne suis pas un

écrivain. La seule vue d’une feuille de papier blanc me harasse l’âme” (EEC

I: 353-4).

Esta contestação da escritura, no comentário de Jacques

Chabot, na edição da Pléiade, significa que Bernanos não se iludia

com a eficácia do instrumento do qual se serve. O autor de Les

Enfants humiliés aceita e assume a condição de homem que

escreve, mas recusa o falso prestígio de ser um criador: “Du moins

ne me suis-je jamais pris sérieusement pour un créateur” (EEC I: 873).

Ele se define como uma voz que denuncia e incomoda:

“Ma seule et modeste vocation en ce monde est de parler quand tout le monde

se tait” (CORR II: 328).

De todas estas tentativas de classificações de Bernanos,

talvez a mais persistente, para leitores menos atentos, seja a

imagem de um romancista católico, recusada pelo próprio autor: “Je

ne suis pas un écrivain catholique comme on dirait, par exemple, un écrivain

marxiste” (EEC II:1189). Escritor católico, sim, mas no sentido de

ser responsável:

Je suis un écrivain catholique, je veux dire un homme qui se tient responsable de ce qu’il écrit, non seulement vis-à vis des catholiques, mais du premier venu qui le lit, et auquel il doit toute la vérité dont il dispose. (EEC II:1189)

1 As obras de Bernanos serão citadas no corpo do trabalho, com a abreviatura convencionada no final da Introdução, seguida da página.

7

A maioria dos leitores lê até: "sou um escritor católico" e não

considera que ele se dirige também a qualquer homem que o leia.

E impressiona a acolhida feita à obra de Bernanos por um grande

número de ateus.

Gildas Bourdet, ao dirigir Dialogues des carmélites, em 1987,

na Comédie Française, declarou em uma entrevista:

Inúmeras pessoas não cristãs dizem-me que não conseguem escapar aos problemas que o texto provoca. Acredito que a razão se deva ao fato de Bernanos ter ido até as ultimas conseqüências das interrogações que ele fazia a si mesmo. (Bourdet, 1988: 35)

Bourdet sugere ainda que as contradições de Bernanos,

longe de afastar, aproximam-no de pessoas provenientes das mais

diferentes classes sociais e intelectuais.

Contradições e paradoxos poderiam caracterizar o autor,

testemunha de um renascimento espiritual francês, marcado por

grandes conversões: Ernest Psichari, neto de Renan (1913),

Jacques e Raïssa Maritain (1906) e Charles Péguy (1908), entre

outros.

Bernanos participou também de algumas das grandes

querelas políticas e religiosas que agitaram as primeiras décadas

do século XX, na França: L’Affaire Dreyfus, o desenvolvimento de

le Sillon, organização católica de esquerda e o apogeu de L’Action

Française, movimento de extrema direita. O Vaticano condenou,

8

sucessivamente, le Sillon em 1910, e L’Action Française, em 1926,

provocando revolta e desorientação em muitos católicos, que não

entenderam, inicialmente, as razões do Sumo Pontífice em

condenar a primazia da política em detrimento da fé.

Bernanos participou, ativamente, da renascença espiritual

que se consolidou por volta dos anos vinte e conheceu sua idade

de ouro na década de trinta. Claudel, Mauriac e Bernanos são

alguns dos grandes escritores que, aureolados de prestígio,

atingem o grande público.

Bernanos recusou a imagem de escritor católico, no sentido

de ser propagandista da fé, executor de diretrizes, mesmo que

emanadas da Igreja. Mas foi um cristão que escreveu romances.

Suas dúvidas, certezas e incertezas permitiram-lhe ser o

autor de La Grande Peur des bien-pensants (1931), elogio ao anti-

semita Drumont, e de Les Grands Cimetières sous la lune (1938),

denúncia ao regime franquista, para citar dois extremos.

E a proximidade da morte parece ter inspirado Dialogues des

carmélites, texto luminoso, sua vida passada a limpo. Escrito na

Tunísia, cenário de seu último exílio voluntário, que manifestaria

seu desencanto com a França do pós-guerra, Dialogues des carmélites

é uma meditação sobre os grandes temas que angustiam o

homem: a vida, a morte, a dor, o medo.

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Como para os grandes escritores clássicos franceses do

século XVII, a matière não é nova. Nova, sim, é a manière de tratá-

la. E é o que conta, pois aí reside o selo próprio do escritor, sua

originalidade.

Dialogues des carmélites baseia-se em um fato histórico. Em 17

de julho de 1794, durante o Terror revolucionário na França,

dezesseis religiosas do Carmelo de Compiègne foram

guilhotinadas na Praça do Trono, atual Praça da Nação, acusadas

de ser inimigas do povo e de conspirarem contra a Revolução.

Foram beatificadas por Pio X em 27 de maio de 1906.

Dois relatos do martírio foram escritos (Jauffret, 1803) e

(Guillon, 1821), porém somente em 1836 foram publicadas as

memórias de Marie de l’Incarnation com o título Histoire des

religieuses carmélites de Compiègne, conduites à l’échafaud le 17 juillet 1794.

Ouvrage posthume de la soeur Marie de l’Incarnation, carmélite du même

monastère. Embora anônima, os catálogos da Bibliothèque

Nationale de Paris e da British Library assinalam o Cardeal

Villecourt como responsável pela edição, citada sob a sigla

Villecourt.

Gertrud von le Fort consultou um exemplar dessa obra

existente na biblioteca de Munich e, inspirando-se, livremente,

neste acontecimento histórico, escreveu, em 1931, em alemão,

uma novela traduzida para o francês e publicada, em 1937, sob o

10

título: La Dernière à l’échafaud. A romancista modificou

circunstâncias, permitindo-se grande liberdade criativa com a

História: Madame de Croissy, a antiga Priora, não padeceu uma

agonia humilhante; na "realidade", sofreu o martírio juntamente

com sua comunidade.

Marie de l’Incarnation não era Mestra de noviças e sim uma

das mais jovens religiosas. Seu temperamento dificilmente

poderia ser qualificado de admirável e heróico, como Gertrud von le

Fort o considera, com base no documento Villecourt, já citado,

que lhe atribui qualidades que não correspondem à "verdade"

histórica.

A confrontação da novela La Dernière à l’échafaud com a

História, assim como as diferenças entre o texto da romancista

alemã, o roteiro cinematográfico do Padre Brückberger e os

diálogos escritos por Bernanos foram analisadas, entre outros,

por Michel Estève (Estève, 1960) e Joseph Pfeifer (Pfeifer, 1963).

Remeto ao recente estudo Destinée providentielle des Carmélites de

Compiègne dans la littérature et les arts (Gendre, 1994), para eventuais

consultas.

Gertrud von le Fort criou, talvez inspirada em suas próprias

angústias e temores, uma personagem central, Blanche de la

Force, também medrosa e angustiada, com a qual a autora se

identificaria, pelo medo generalizado diante do mundo ameaçado

11

pelo Terror e não apenas pelo nome que lhe atribuiu (le Fort/de

la Force). A autora revelou, posteriormente, a motivação inicial

de sua novela:

O ponto de partida de minha criação não foi em primeiro lugar o destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, mas a personagem da pequena Blanche. Ela nunca viveu, historicamente, mas recebeu o sopro de seu ser trêmulo, exclusivamente, de minha própria interioridade e não pode, de modo algum, ser separada desta origem que lhe é própria.[...] Esta figura levantou-se, por assim dizer, de dentro em mim como a encarnação da angústia mortal de toda uma época encaminhando-se para o seu fim. (le Fort, 1958:93 apud Gendre, 1994).

Esta obra é considerada pela maioria dos críticos como

uma denúncia do nacional-socialismo, e a própria autora apoiou

esta interpretação.

Tese mais recente considera que o alvo visado seria não o

nazismo, porém o comunismo (Pottier, 1991: 174-180). Quer se

trate de uma denúncia do nazismo ou do comunismo, o texto é,

indubitalvelmente, uma denúncia contra o totalitarismo em geral

e constitui uma reflexão sobre a angústia contemporânea e a

vitória da Graça de Deus sobre o medo.

Terminada a II Guerra Mundial, o Padre Brückberger

obteve os direitos para a adaptação cinematográfica da novela de

12

Gertrud von le Fort e escreveu um roteiro - cinqüenta e quatro

seqüências a serem filmadas -, o que se denominou “le scénario”.

A tarefa de redigir os diálogos para o filme foi oferecida

primeiramente a Albert Camus, que recusou, alegando ser ateu, e

sugeriu o nome de Bernanos. Este aceitou a tarefa, iniciada em

novembro de 1947, mas não a terminou no tempo

convencionado verbalmente, o que gerou uma série de equívocos

e mal-entendidos. Os diálogos foram concluídos em meados de

março de 1948, quando Bernanos já estava gravemente enfermo,

vindo a falecer a 5 de julho do mesmo ano.

O manuscrito, julgado inadequado para a linguagem

cinematográfica, pelo produtor Gaspard de Cugnac, permaneceu,

literalmente, esquecido no fundo de uma mala. Albert Béguin,

grande admirador da obra de Bernanos e encarregado pela família

do acervo de suas obras, atribuiu um título ao texto, fez algumas

alterações e publicou-o em 1949.

Além de dar um título ao manuscrito, Béguin dividiu-o em

cinco quadros e um prólogo, resumiu algumas cenas e atribuiu

nomes às religiosas que Bernanos deixara anônimas. Estas

alterações foram exigidas pela mise en scène teatral. A maioria dos

críticos é formal: Béguin respeitou, escrupulosamente, o

manuscrito de Bernanos e a fidelidade da edição póstuma é total.

Monique Gosselin revela, entretanto, outras alterações feitas por

13

Béguin (como a inserção da cena da quebra da imagem do

pequeno Rei da Glória) e lamenta que este não tenha seguido o

manuscrito da mão de Bernanos e sim o de sua secretária.

Existem dois manuscritos: um do próprio Bernanos e outro

copiado por sua secretária. Estes documentos se encontram na

sala dos manuscritos da Biblioteca Nacional de Paris.

O problema da autoria, objeto de muitas controvérsias, foi

parcialmente resolvido por Julien Green, em 25 de novembro de

1951, o qual opinou: a significação espiritual da obra pertence a

Bernanos, ao passo que a invenção e a criação dos principais

personagens pertencem a Gertrud von le Fort. O Padre

Brückberger e Philippe Agostini, roteiristas, também se

consideram co-autores. A lei francesa acolheu a questão que se

prolonga até hoje. Os processos referentes a Dialogues des carmélites

impedem que o roteiro, sub judice, seja consultado.

A sentença jurídica determinou que, em todas as edições e

cartazes da peça, devem constar obrigatoriamente os seguintes

dados: "segundo uma novela de Gertrud von le Fort e roteiro de R. P.

Brückberger e de Philippe Agostini".

Dentre os estudos publicados sobre Dialogues des carmélites,

destaca-se uma Tese de Doutorado sobre a gênese da obra,

posteriormente, publicada. A autora, Meredith Murray, teve

acesso ao scénario - roteiro - e reitera a originalidade de Bernanos,

14

definida por Julien Green, em 1951, que consiste no sentido

espiritual da obra. Ao fazer reviver as personagens de Gertrud

von le Fort, “Bernanos deu à mesma aventura uma significação pessoal. A

dependência da origem não exclui, obrigatoriamente, a autonomia no plano

espiritual.” (Murray, 1963: 33). Esta pesquisa ainda não foi

ultrapassada, tendo em vista que ainda não veio a lume a edição

crítica, que está sendo preparada sob a direção de Monique

Gosselin.

O cotejo formal estabelecido entre o texto de Bernanos,

Dialogues des carmélites, e La Dernière à l’échafaud (Boly, 1960)

também fornece subsídios para estudos da peça.

Entre outros estudos mais recentes, cito o artigo de Pierre

Gille: "Drame spirituel et forme dramatique dans Dialogues des

carmélites" (Gille, 1984) e as análises de Monique Gosselin:

"Dialogues des carmélites, oeuvre testamentaire" (Gosselin, 1988)

e "Dialogues des carmélites, l’ultime méditation de Bernanos"

(Gosselin, 1995).

No tocante aos estudos históricos sobre as Carmelitas

mártires, destacam-se as publicações de William Bush, professor

de literatura francesa em Ontario (Canadá) e Le sang du Carmel ou

la véritable passion des seize carmélites de Compiègne texto publicado em

1954, de autoria do Padre Bruno de Jésus-Marie, religioso

carmelita. Trata-se uma obra indispensável ao estabelecimento da

15

verdade histórica, com documentos inéditos. A reedição, em

1992, comprova o interesse dos estudos históricos, na época

atual.

A publicação dos Dialogues, em 1949, sob a forma de livro

teve grande sucesso, mas a revelação da força e do poder de

sedução de Dialogues des carmélites manifestou-se sobretudo no

teatro. O texto traduzido para o alemão foi encenado, com muito

sucesso, no Festival de Zurique (1951) e depois em Munique,

onde a representação se transformou em verdadeira liturgia, com

a participação espontânea da assistência entoando o Salve Regina.

Em 1952, a peça foi encenada no Teatro Hébertot em Paris,

numa adaptação de Albert Béguin e Marcelle Tassencourt, onde

permaneceu vários anos em cartaz, antes de ser incluída no

repertório da Comédie Française.

A repercussão na imprensa resume a pluralidade autoral de

Dialogues des carmélites, particularizando a contribuição de cada um:

O maior acontecimento da temporada teatral européia é uma peça

abordando um fato histórico francês, tratado por uma romancista alemã,

adaptado para o cinema por um Dominicano de Paris, teatralizado por

Bernanos e representado no Festival de Zürique. (Carrefour, 8 de agosto

de 1951)

Dialogues des carmélites, texto traduzido em várias línguas e

submetido a sucessivas adaptações para diferentes gêneros

16

artísticos, teve sempre um grande sucesso de crítica e de público,

mas tornou-se internacionalmente conhecido, graças à ópera de

Francis Poulenc, que estreou no Ópera de Milão, em janeiro de

1957, e no Ópera de Paris, em junho do mesmo ano. Superando

os numerosos e complicados problemas de direitos autorais, foi

encenada com imenso sucesso nos principais teatros do mundo.

Um dos méritos de Poulenc foi o de alcançar a mesma

grandeza dramática atingida por Bernanos e provocar reflexões

sobre o medo diante da morte, o mistério da graça divina e a

violência do mal, em espaços onde tais discussões seriam

inusitadas. E, através da música, as carmelitas de Compiègne, que

haviam escolhido o silêncio e a solidão de um claustro, fazem

ouvir seu canto, interrompido pelo ruído da guilhotina em 1794.

Dialogues des carmélites foi difundido, também, através de

discos. A ópera de Poulenc foi gravada algumas vezes. A primeira

gravação data de 1958 e permanece um documento indispensável

aos que amam a música.

O filme projetado pelo Padre Brückberger, em 1947, foi,

finalmente, rodado e exibido, em 1960, sob o título Le dialogue des

carmélites. A crítica, em geral, lhe foi desfavorável. A Société des

Amis de Georges Bernanos e seus herdeiros processaram os

responsáveis, acusando-os de desonestidade intelectual e

infidelidade ao texto de Bernanos. O filme privilegia, não o plano

17

espiritual, mas as relações que unem a História, o homem e a

sociedade.

Em 1984, Pierre Cardinal realizou, com sucesso, um filme

para a televisão. O diretor criou um Carmelo luminoso,

dominado pela cor branca. No elenco, uma coincidência: a jovem

atriz Anne Caudry Bernanos, falecida prematuramente, que

incarnava Blanche de la Force, era a neta do escritor.

O apelo visual e dramático, a importância da imagem em

detrimento da narrativa, ressaltam não só da gênese da obra

como também da transformação e adaptação para diferentes

gêneros artísticos: livro, peça de teatro, ópera, filme e audio.

Qualquer estudo que se faça de Dialogues des carmélites deve ter em

vista a origem do processo criativo: diálogos para um filme a ser

rodado, segundo afirma Michael Kohlhauer.

Este rápido resumo da gênese desta obra já aponta para a

importância da intertextualidade como caminho para a sua análise.

O conceito de intertextualidade, hoje amplamente

difundido, exige a priori que se explicite seu emprego e delimite

sua extensão. O ponto de vista de Marc Angenot, sobre o

assunto, é categórico: "Na minha opinião, é necessário que o

pesquisador, colocando as cartas na mesa, exponha e manifeste sua

problemática, revelando a origem de suas filiações teóricas e os objetivos que

pretende atingir" (Angenot,1984: 103).

18

O conceito de intertextualidade foi cunhado principalmente

por Julia Kristeva (Kristeva, 1969), na esteira da polifonia de

Bakhtine (Bakhtine, 1970). O que assim se enfatiza é o trabalho

de produção de sentidos do texto no diálogo, implícito ou

explicito, com outros tantos textos, anteriores ou sincrônicos.

Não mais produto, dentro do circuito comunicativo Autor-obra-

público, o texto, considerado como um tecido, textura (Barthes,

1973: 100), se elabora ao tecer os fios dos discursos múltiplos, na

mais ampla acepção do termo, que o permeiam. Barthes

acrescenta a possibilidade de diálogo também com textos

posteriores, visão correlata ao processo de escritura-leitura em que

o leitor coparticipa, com o seu próprio texto, sua cultura, da

produção de efeitos de sentidos do texto escrito.

Genette demonstra, em Palimpsestes (Genette, 1982), o jogo

pelo qual um texto se superpõe a outro, substituindo-o e

escondendo-o, mas sem apagar completamente o traço anterior.

E Philippe Sollers resumiria a problemática do intertexto ao

afirmar que todo texto está situado na junção de vários textos dos

quais ele é, ao mesmo tempo, a releitura, a condensação, o

deslocamento e a profundidade (Sollers, 1968: 75).

Em minha leitura de Dialogues des carmélites, não aponto as

semelhanças e diferenças entre o texto de Bernanos e os pré-

textos que lhe foram fornecidos: a novela de Gertrud von le Fort

19

e o roteiro do filme que seria rodado, nem enfoco as sucessivas

adaptações do texto de Bernanos para diferentes gêneros

artísticos: livro, teatro, ópera, audio, cinema, por fugir este

trabalho ao tema proposto.

Ao analisar Dialogues des carmélites, de Georges Bernanos,

destaco o contexto da ação na peça de teatro: o Terror, sob

diferentes formas, e tento responder à pergunta fundamental: onde

está Blanche de la Force? (4.3). A errância de Blanche, ao constituir o

núcleo da Tese, remete ao questionamento: onde estava o mundo em

1789-1794? e ao Carmelo de Compiègne. Em um processo

inverso, a Revolução Francesa é o eco dos debates internos entre

o princípio aristocrático e os valores burgueses discutidos no

claustro (Cap. 4). A inquietação de Blanche e sua angústia

ressoam no nomadismo de Bernanos e seu exílio interior. Esta

problemática, a peregrinação do autor de Les Grands Cimetières sous

la lune conduz à questão: onde estava o mundo em 1948? E finalmente

provoca a indagação: onde estava Bernanos? Estas questões serão

transpostas para um plano espiritual superior, em um desenlace

imprevisto do ponto de vista humano, sob a ação da graça divina.

Procuro estudar, também, a significativa importância de

dois contextos:

1. Contexto histórico (Cap. 2) que, aliás, é duplo: contexto do

fato histórico, a Revolução Francesa e o Terror, com seus

20

conflitos ideológicos, e o contexto contemporâneo de Bernanos:

a guerra civil espanhola, a ocupação alemã, o pós-guerra e a

guerra fria, um sendo lido através do outro, subentendido mas

atuante.

2. Contexto religioso da primeira metade do século XX. Trata-

se do momento em que a renovação da fé católica faz da idéia de

santidade uma solução e um problema e assim atinge o núcleo do

mistério da salvação: a questão da graça (4.3). Tal contexto ajuda a

esclarecer certas opções políticas de Bernanos referentes à

L’Action Française e sua crise pessoal (Cap. 5).

A visão trágica de Bernanos (cap. 5) inserida nas duas

panorâmicas anteriores. Mais e melhor do que apenas a biografia

do escritor, a sua visão do mundo, sem dúvida consoante com a

sua vivência da história e da religião. Visão trágica, no sentido

empregado por Lucien Goldmann, em Le Dieu caché, a

impossibilidade de viver sob o olhar de Deus, presente e

escondido, em um mundo dominado por valores incompatíveis

com a fé (Goldmann, 1959).

Finalmente, proponho uma leitura de Bernanos, sob o

ângulo do exílio, (Cap. 5) exílio que se apresenta, sobretudo,

através de uma contínua errância.

O corpus específico de minha análise é o texto Dialogues des

carmélites tal como o apresenta a edição Pléiade de 1961.

21

Enquanto não for estabelecido, através de uma edição crítica que

está sendo preparada, um texto com maior rigor ecdótico, minha

escolha justifica-se pelo texto confiável, pelo rigor das notas,

comentários e variantes.

Abreviaturas:

Dialogues des carmélites será referida no corpus da Tese sob a

forma abreviada de Dialogues e citada, nas referências

bibliográficas, sob a sigla DC seguida da página.

Oeuvres romanesques - OR

Essais et écrits de combat I - EEC I

Essais et écrits de combat II - EEC II

Combat pour la liberté - CORR II

22

CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR

Pour moi, j’appelle Terreur tout régime où les citoyens, soustraits à la protection de la loi, n’attendent plus la vie ou la mort que du bon plaisir de la police d’État. Bernanos

Dialogues des carmélites, obra originalmente concebida para

um filme foi escrita por Bernanos, nos últimos meses de sua vida,

de novembro de 1947 a março de 1948.

As datas são importantes porque indicam um período

conturbado, doloroso e polêmico, vivido pela sociedade francesa.

Os anos de 1944 a 1949, de um modo todo especial, foram

dominados pelo que se denominou l’épuration, a depuração, a

tentativa de transformar a sociedade francesa, purificada dos

colaboracionistas e dos partidários de Vichy. Este processo

prolonga-se até os dias atuais, quando são julgados os acusados

de crimes imprescritíveis, os crimes contra a humanidade, como a

Shoah ou o Holocausto, tentativa nazista de destruir o povo judeu.

Constata-se a persistência de um grave problema não

inteiramente resolvido, que continua dividindo a sociedade

francesa, como outrora o processo Dreyfus a fragmentara,

reafirmando a constatação, tornada banal, da existência do que se

convencionou chamar Les deux France.

23

Em 1947-1948, discutia-se e praticava-se a depuração.

Bernanos, no último exílio voluntário na Tunísia (Cap. 5), escreve

seu “testamento espiritual” e Vladimir Jankélévitch, professor de

filosofia moral e um dos mentores da juventude da época,

proclama a impossibilidade de se perdoar e de se esquecer: “O

perdão é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão” (Jankélévitch,

1986:15).

Os fatos são bem conhecidos: em junho de 1940, o

Marechal Pétain, herói da Primeira Guerra Mundial, assina o

vergonhoso Armistício franco-alemão e, em outubro do mesmo

ano, anuncia, publicamente, sua decisão de colaborar com os

invasores nazistas. A França, dividida em zona livre e zona

ocupada, obedece ao que se convencionou chamar "Governo de

Vichy".

O início da Resistência contra os alemães dataria de 8 de

junho de 1940, quando o General Charles de Gaulle, de Londres,

falando através da rádio, denunciou a ilegitimidade de Vichy e

conclamou os franceses a resistirem: “a flama da resistência

francesa não deveria se apagar” (de Gaulle, 1944-1945: 13-14).

Durante os três anos que se seguiram, o comitê do General

de Gaulle, em Londres, simbolizou principalmente o fato de que

nem todos os franceses haviam capitulado. O movimento gaulista

poderia ter fracassado. Do ponto de vista militar, era

24

insignificante e, politicamente, representava apenas a si mesmo.

Ter-se tornado o Governo provisório da República Francesa foi

o resultado de acontecimentos ulteriores ocorridos na França,

entre outros, o apoio da esquerda e, principalmente, do partido

comunista.

Em 1942, a Resistência metropolitana começou a

considerar de Gaulle um chefe e não um mero símbolo e, em

1943, a união estava consolidada entre os resistentes de Londres e

os franceses vivendo no exílio e na França ocupada.

Em 25 de agosto de 1944, Paris é libertada pelas forças

aliadas e, em 7 de maio de 1945, a Alemanha rende-se

incondicionalmente.

O processo de depuração é deflagrado a partir da libertação

de Paris pelas forças aliadas e culmina na condenação à morte de

Pétain, cuja pena foi comutada em prisão perpétua, em 1945.

Julgamentos, processos, condenações, discussões

sucederam-se motivados pelo ódio, pelo ressentimento, pelo

desejo de justiça e também por motivos menos nobres. Quem

colaborou com os ocupantes nazistas? Quem resistiu arriscando a

vida?

Nesse contexto histórico e político, destaco os anos 1944 a

1949 por constituírem o auge do processo de limpeza, de

épuration, quando Dialogues foi escrito.

25

Desencadeou-se, nesse período, uma verdadeira caça aos

culpados. Importa considerar que a depuração conseguiu

desagradar à maioria dos franceses da época. Os que haviam

resistido aos alemães criticavam a sua brandura e moderação, e

alguns acusavam-na mesmo de fraqueza; os que colaboraram

lamentavam sua violência. Em todo caso, a maioria dos

estudiosos concorda que a aplicação das punições foi

profundamente injusta, preconceituosa. Verificou-se mais uma

vez a verdade proclamada por La Fontaine: “Selon que vous serez

puissant ou misérable, les jugements de cour vous rendront blanc ou noir” (La

Fontaine, Les animaux malades de la peste).

O período da depuração suscitou numerosos estudos de

historiadores idôneos e competentes,1 mas parece que somente

agora, mais de cinqüenta anos decorridos, os franceses mostram-

se capazes de examinar com isenção o tema conflituoso de um

passado doloroso - Vichy, um passado sempre presente e que

revela um luto mal resolvido, uma História inacabada.

As lembranças da Ocupação, no dizer dos autores de Vichy,

un passé qui ne passe pas (Conan & Rousso, 1994), ocupam,

atualmente, um lugar desmesurado na consciência nacional

francesa.

1 Cito, entre outros, Pascal Ory, Jean-François Sirinelli, Henry Rousso, Michel Winock, Jean-Pierre Azéma e Peter Novick cujas obras constam na bibliografia.

26

Um passado desconhecido das gerações atuais ressurgiu

brutalmente na memória dos franceses. O que conduziu a

vontade de fazer ou refazer o julgamento de Vichy e da

Colaboração e levou a uma crítica implícita da maneira como a

depuração foi realizada. Recusa-se a atitude antes preconizada, de

"virar a página", e rompe-se o silêncio mantido, durante longos

anos, sobre certos aspectos do problema que dilacerou uma

nação.

Essa mudança permitiu melhor compreensão e valorização

do notável trabalho de Peter Novick, pesquisador americano que

durante três anos, de 1960 a 1963, leu, verificou e comparou

todas as fontes acessíveis na época. Sua Tese de Doutorado,

elaborada em inglês, foi publicada em 1968. A tradução francesa

veio a lume em 1985, quando seu livro deixou de interessar

apenas aos especialistas e passou a atrair um grande número de

leitores. A grande vantagem de Novick advém da objetividade e

da seriedade com que informa os fatos. Sem envolvimentos

afetivos, o autor expõe, com honestidade e distância, o resultado

de sua pesquisa, traduzida em números.

A depuração foi obra dos vencedores, dos que fizeram a

Resistência, e a História desse período, pelo menos a curto prazo,

por eles foi escrita. Como decorrência, estabeleceram-se e

prevaleceram os postulados históricos e jurídicos da depuração: o

27

Armistício de 1940 foi um crime, Vichy um regime usurpador e a

colaboração uma política de traição (Novick, 1985: 52).

Sob esse ângulo enfocarei, em termos gerais, a Resistência

francesa e a depuração. Este processo de limpeza da sociedade

francesa aplicou-se de maneira desigual, em um contexto

conflituoso: alguns não queriam e não podiam esquecer, e outros

não admitiam reviver a lembrança dos anos negros da Ocupação

nazista que dividira a França.

Uma das conseqüências do governo de Vichy foi a

modificação ocorrida no espaço político e intelectual francês, face à

escolha inevitável que se impôs: recusar ou aceitar a política

colaboracionista. A decisão revelou-se, a posteriori, independente

de posicionamentos anteriores. Embora fosse calculável que a

direita apoiaria Pétain e que a esquerda o rejeitaria, os

acontecimentos mostraram que cada indivíduo assumiu uma

posição pessoal e imprevisível diante de um fato consumado: o

Armistício de 1940 e a colaboração.

A maioria dos intelectuais, na França, em um primeiro

momento, entoou louvores ao Marechal: Paul Claudel compôs

uma Ode au Maréchal Pétain e mais tarde elogiou, igualmente, o

General de Gaulle em Ode au Général, o que foi considerado, pelos

contemporâneos, uma palinódia. François Mauriac teria sido, por

um curto período, partidário de Pétain. E não causou nenhum

28

espanto a expressão "divina surpresa" com que Charles Maurras

saudou a consolidação do colaboracionismo, em 9 de fevereiro de

1941.

Provenientes de católicos de direita, essas atitudes políticas

poderiam ser consideradas previsíveis; porém, como justificar que

representantes da intelligentsia da esquerda parisiense, como

Emmanuel Berl e Gaston Bergery, redigissem os discursos lidos

por Pétain? (Ory & Sirinelli, 1992: 115-88).

A conclusão evidente é que, no início, reinava certa

unanimidade entre os intelectuais que permaneceram na França,

em relação a Vichy.

Mas, a partir de maio de 1941, forma-se o Comité national

des écrivains - C.N.E. - reunindo os intelectuais que se opunham ao

invasor e ao regime de Vichy. De 1942 em diante, quando as

tropas aliadas desembarcaram na África do Norte e a Alemanha

ocupou a Zona Livre, mudanças significativas acontecem. Alguns

permanecem colaboracionistas: Ferdinand Céline, Robert

Brasillach e Pierre Drieu la Rochelle, os mais conhecidos; outros

guardam prudente silêncio e afastam-se de Paris. E numerosos

são os escritores que escolhem a via da clandestinidade para

protestar, fundando uma revista e uma editora: Les Lettres françaises

e Éditions de Minuit. Um dos fundadores dessa editora, Jean

Bruller Vercors, escreveu Le Silence de la mer (1941-1943), um dos

29

mais conhecidos textos de ficção inspirado pela Resistência. A

célebre novela apresenta uma metáfora da Resistência na

personagem da jovem que, obrigada a hospedar um oficial

alemão, opõe-lhe, obstinadamente, o silêncio.

O silêncio livremente escolhido difere do silêncio imposto

aos intelectuais alemães antifascistas, refugiados na França e, que

em 1940 se viram obrigados, para escapar à prisão e à extradição,

a recorrer à fuga ou ao suicídio. O drama daqueles que

consideravam a França como sua verdadeira pátria espiritual e

que foram compelidos a um novo exílio ou à morte foi analisado

em Exil et engagement, um estudo ímpar no gênero (Betz,1991).

A resistência existiu, desde o início da guerra, entre os que

se exilaram: Georges Bernanos, no Brasil, Jacques Maritain, nos

Estados Unidos, o romancista Jules Romains, em Nova York e

depois no México, onde também se exilou André Breton, entre

outros. Apesar das diferenças ideológicas inconciliáveis, unia-os

um sentimento comum de vergonha, perda e desamparo.

Uma das formas de resistência e de presença intelectual

francesa, no exílio, foi o funcionamento de 1942 a 1945 da École

des hautes études em Nova York. Aí lecionaram Maritain e Lévi-

Strauss, entre muitos outros. Procuraram dar testemunho, mas

estavam longe, a salvo do dia a dia, da convivência quotidiana e

inevitável com o ocupante. Desaparecida logo após o final da

30

guerra, essa instituição prestigiosa era praticamente ignorada pelo

grande público. E os que dela tinham conhecimento não a

valorizavam suficientemente.

Isto porque grande ressentimento caracterizou a atitude da

maioria dos franceses em relação aos ilustres exilados que não

enfrentaram o dilema diariamente renovado: que atitude assumir

diante do mais forte? O que é mais importante, a vida ou a

honra? Uma vida sem honra teria sentido? E a realidade

comprova que os heróis, os mártires e os santos constituem uma

exceção e não a norma. Há várias espécies de coragem, como

disse Bernanos: “si la force est une vertu, il n’ y a pas assez de cette vertu

pour tout le monde” (DC:1690).

Tratava-se não mais de hipotéticas discussões cornelianas,

semelhantes àquelas encontradas nos textos clássicos, mas de

assegurar o pão de cada dia, de sobreviver.

Após a Liberação - 1944 - e, sobretudo, depois da rendição

incondicional da Alemanha - 1945 -, instala-se na França

l’épuration - a depuração - uma prática visando julgar e punir todos

os suspeitos de colaboração com o inimigo. Esses acertos de

conta do pós-guerra fizeram milhares de vítimas, culpadas ou

inocentes, em um processo que pode ser considerado um

ressurgimento do Terror reinante nos anos 1793-1794, e

31

encerrado, oficialmente, após a execução de Maximilien

Robespierre e o advento do Thermidor.

Esse processo de "purificação", a imposição do que se

considera o Bem e a Virtude pela força, sempre movido por uma

Fé, aparece, periodicamente, na História da humanidade sob

diferentes denominações: a caça às feiticeiras, a Inquisição, a

noite de São Bartolomeu. Períodos dominados pelo terror

poderiam ser enumerados e, ainda assim, a lista estaria sempre

incompleta. Proponho-me a evocar os Terrores contemporâneos

na medida em que eles podem ser comparados com o Terror de

1792-1793.

O Terror inicial da primeira República constituiu um

modelo seguido por outros processos de depuração violenta que

pontuaram o curso da História: a Comuna de Paris de 1871, a

guerra civil espanhola, o terror nazista, o terror comunista, o

terror provocado pelo medo do comunismo, os terrores asiáticos:

no Japão, na China, no Cambodja e, mais recentemente, o terror

movido pela determinação de limpar a raça, na Bósnia. No dizer

de René Sédillot, todos os Terrores se assemelham e todos são

diferentes. Mas todos os períodos de Terror evocam, de um

modo ou de outro, o Terror arquétipo: o da Revolução francesa

(Sédillot, 1990: 261).

32

Se todos os Terrores possuem características análogas às do

Terror de 1793-1794, com mais forte razão, l’épuration - a

depuração - apresenta-se dominada pelo espírito jacobino: o

desejo de extirpar o mal, impor a virtude pela força, castigar os

culpados e construir uma nova sociedade.

Augustin Cochin, autor de L’esprit du jacobinisme, observa,

com muita propriedade, que a fé inspira o sacrifício pessoal a uma

idéia a que se aderiu apaixonadamente, enquanto o fanatismo

sacrifica os outros a essa idéia. A fé e o fanatismo constituiriam as

duas faces do entusiasmo. E o espírito jacobino somente conhece

o fanatismo (Cochin, 1979:188).

O jacobinismo predominou na prática da limpeza da

sociedade, no pós-guerra francês, manifestando-se em

julgamentos sumários, delações e muitas vezes em castigos

arbitrários como o aplicado às mulheres que mantiveram ou

teriam mantido relacionamentos amorosos com os alemães - o

caso das femmes tondues - mulheres tosquiadas. As vítimas, culpadas

ou inocentes, tinham seus cabelos raspados e eram expostas à

execração pública.

A relação entre 1944 e 1793, evidenciada por historiadores,

foi demonstrada, anos mais tarde, em 1956, por Jean Anouilh em

uma peça de teatro Pauvre Bitos ou le dîner de têtes, onde o Terror e a

depuração se misturam. Anouilh reproduz a justiça sumária

33

preconizada por um Saint-Just, mostra como o mesmo modelo

serviu em 1945 e denuncia ao excessos da depuração. O autor,

amargurado pelo que considerou injustiça, como a condenação de

Brasillach, também acertou suas contas. No dizer de Sédillot, seu

dîner de têtes - jantar de cabeças -, também foi um festival de

cabeças decepadas.

Entretanto, descobrir, para castigar, os verdadeiros

culpados de colaboracionismo constituiu um problema

complexo, delicado, quase insuperável, de tal maneira o joio

estava misturado com o trigo. Tentar separá-los, antes do tempo

da colheita, como adverte a parábola evangélica, seria correr o

risco de cometer danos irreparáveis (Mt. 13, 24-30).

O passar do tempo permite maior equilíbrio na avaliação

dos "anos negros": a participação da França na vitória aliada foi

menor do que os franceses gostariam de pensar, mas também esta

colaborou menos do que alguns a acusam.

É difícil imaginar, entretanto, que os quarenta milhões de

franceses que aplaudiram Pétain em 1940 se tivessem

transformado, em 1944, em quarenta milhões de resistentes.

Ao assumir o poder, de Gaulle criou o mito da Resistência.

Segundo Henry Rousso, o general vitorioso procurou “escrever e

reescrever a história dos anos de ocupação propondo uma visão procedente de

seu imaginário pessoal” (Rousso, 1987: 26). A Resistência foi

34

assimilada e estendida a toda a nação. A salvação emanaria da

France éternelle, abstração que constitui um dos sustentáculos de

seu ideário simbólico.

Criou-se um arquétipo do herói da Resistência que, no

dizer de Jean Pierre Azéma, apresentava uma

... imagem confusa onde se entremeavam o agente secreto, o justiceiro

ou o fora da lei e que lembrava o herói dos filmes de faroeste e o cavalheiro

medieval ao fazer explodir (...) um número incalculável de usinas e de pontes

(Azéma, 1979: 169).

No pós-guerra e durante muitos anos, raciocinou-se do

seguinte modo: a Resistência é de Gaulle; ora, a Resistência é a

França; logo, de Gaulle é a França. Mas os mitos são dificilmente

suportáveis por muito tempo e o General pede demissão da

presidência do Governo provisório, em 1946, só voltando ao

poder em 1958, para renunciar definitivamente em 1969.

O problema então era que os antigos resistentes achavam

que a hora da colheita já chegara, enquanto o General de Gaulle,

considerado “o mais íntegro dos franceses”, conclamava ao perdão e

ao esquecimento, repetindo que a França tinha necessidade de

todos os seus filhos.

Viso, com estas reflexões, estabelecer o contexto no qual

Dialogues foi escrito. Por essa razão, limitar-me-ei a fazer uma

breve síntese dos resultados da depuração no pós-guerra francês,

35

com base em estudos dos historiadores anteriormente citados. A

depuração a todos desagradou e foi aplicada de modo desigual

aos diferentes setores da sociedade francesa.

Segundo Novick, o sentimento geral era de que os

escritores e jornalistas constituíram os bodes expiatórios do

colaboracionismo enquanto outros segmentos, em particular os

colaboradores econômicos, recebiam penas simbólicas ou nem

mesmo eram presos.

Também instituições tradicionais, como a Academia

Francesa, quase não sofreram retaliações. Comparável, no dizer

de Paul Bourget, à Câmara dos Lordes, ao Vaticano e ao Estado-

maior da Prússia, a Academia Francesa constituía um reduto

reacionário, colaborou com os nazistas e apoiou Vichy. A maior

parte dos acadêmicos era germanófila, com exceção de Georges

Duhamel e, sobretudo, de François Mauriac, o único acadêmico

que militou na atividade clandestina ilegal.

Após a Liberação, os resistentes mais exaltados chegaram a

cogitar da dissolução da casa de Richelieu. Fiel à sua política de

conciliação, o General de Gaulle contemporizou, acalmando os

ânimos, mas sugeriu à Academia a eleição de escritores ligados à

Resistência, para seus quadros. As promessas tranqüilizadoras

foram bem recebidas, mas as propostas inovadoras caíram no

vazio.

36

Algumas sanções, entretanto, foram aplicadas sem que a

Academia pudesse impedi-las: quatro colaboracionistas,

condenados à degradação nacional, foram excluídos

automaticamente: Abel Bonnard, Ministro da Educação Nacional

em 1942; Abel Hermant, escritor pedante e superficial; Charles

Maurras e Philippe Pétain. A reação da Academia foi passiva e

eloqüente: os lugares dos dois primeiros excluídos foram

preenchidos, mas até a morte de Maurras (1952) e de Pétain

(1951) suas cadeiras permaneceram desocupadas.

A Academia Francesa não mudou após a depuração:

continuou um reduto de antigos colaboracionistas e partidários

de Philippe Pétain. O que talvez esclareça e justifique a recusa de

Georges Bernanos em aceitar a eleição que lhe foi proposta, por

intermédio de François Mauriac, em 1946.

Ao rejeitar, formalmente, a honraria, em carta endereçada a

François Mauriac, em 27 de março do mesmo ano, Bernanos

exprime-se em tom cortês e deferente (CORR II: 627). Os

verdadeiros sentimentos, entretanto, revelam-se em sua

correspondência, quando declara não desejar conviver com os

acadêmicos que lhe inspiram aversão, sobretudo, com o "velho

impostor" Paul Claudel, eleito em 5 de abril de 1946.

Em tom mordaz, Bernanos fustiga a vaidade, denuncia o

que considera ridículo e defende sua liberdade de opinião: "Je ne

37

voudrais empêcher personne de s’ habiller d’une manière ridicule, mais il y a

des vérités qu’ on ne saurait dire, ni même écrire, en habit de carnaval, c’ est-

à-dire en jouant un personnage” (CORR II: 642).

À semelhança da Academia Francesa, a Igreja Católica, na

França, constituía um verdadeiro monumento de

conservadorismo e apoiara o governo de Vichy. Houve exceções,

entretanto, de simples católicos que honraram a Igreja, mas a

hierarquia - bispos e cardeais -, em sua maioria, era partidária de

Pétain.

A reação contra o colaboracionismo da Igreja foi pautada

por diplomacia, prudência e firmeza. O cardeal Suhard, adepto de

Pétain, foi impedido de celebrar a missa em Notre-Dame de Paris

e recebeu um tratamento glacial dos representantes gaullistas. A

morte do cardeal Baudrillart, colaborador declarado, poupou-lhe

a vergonha de comparecer ao banco dos réus. O próprio

representante do Papa, o Núncio apostólico, perdeu o cargo.

Sucedeu-lhe Monsenhor Roncalli, o futuro João XXIII, que se

viu obrigado a resolver o problema de transferir de sede os bispos

considerados indesejáveis, por terem colaborado com Vichy e

com os alemães. As pesquisas sobre o tema não são exatas. O

governo teria pedido por volta de trinta ou trinta e cinco

transferências e obteve apenas a revogação de sete bispos, em

acordo concluído em 1945. As negociações transcorreram com o

38

mínimo de publicidade, o que evidencia a cautela com que as

partes trataram um problema envolvendo a Igreja e o Estado

(Novick, 1985: 210-13).

A depuração exerceu-se, assim, de forma desigual e

aleatória. Os altos funcionários, os grandes empresários, os

militares, os magistrados e os artistas de teatro e cinema recebiam

penas simbólicas ou permaneciam em liberdade. Georges

Bernanos denuncia: “On fusille tous les jours des miliciens de vingt-cinq

ans, mais [...] les amiraux, les généraux, et les magistrats sont tabous”

(CORR II: 576).

Contrariamente, os escritores e, em particular, os jornalistas

eram julgados e condenados à morte. Robert Brasillac, jornalista

de Je suis partout, órgão colaboracionista e anti-semita, foi fuzilado

em 1945, malgrado uma campanha para obter uma comutação de

sua pena. Pierre Drieu La Rochelle, diretor da Nouvelle Revue

Francaise (NRF), germanófilo declarado, suicida-se. Louis-

Ferdinand Céline, anti-semita notório e autor de panfletos em

favor dos alemães, foge e refugia-se na Dinamarca.

Ao lado desses colaboracionistas eminentes, obscuros

jornalistas que não mereciam a pena máxima também eram

condenados à morte, constatava Albert Camus, desiludido e

enojado, depois de acompanhar durante dois meses e meio o

desenrolar dos processos na Corte de Justiça de Paris.

39

Camus e Mauriac, durante o outono e o inverno de 1944-

1945, debateram calorosamente o tema da depuração. Camus,

editorialista do jornal Combat, rejeitava, ao mesmo tempo, o ódio

e o perdão. O ódio, porque era um sentimento que desconhecia e

que lhe provocava repulsa, e o perdão, porque o considerava um

insulto aos companheiros, aos camaradas mortos durante o

período de clandestinidade e aos princípios por que tinham

lutado.

Mauriac, no Figaro, fez-se o apóstolo da reconciliação e do

perdão, e era denominado "Saint François des Assises". Esta

referência constitui um jogo de palavras intraduzível em

português: "Assise", cidade onde morou São Francisco, o santo do

perdão e do desprendimento; "Cour d'Assises" designa os tribunais

criminais na França. Com a autoridade de quem se comprometeu

na luta clandestina pela Resistência, mas com a humildade de

quem em um primeiro momento elogiara Pétain, Mauriac

concluía seu texto semanal com uma frase do Evangelho: ”Quem

de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” ( Jo. 8, 7

).

Camus cedeu a Mauriac, concluindo, entretanto, que, se a

caridade de seu opositor era admirável, sua concepção de

cidadania era deplorável. Anos mais tarde, em 1950, o autor de

L’homme révolté confessava que Mauriac tinha razão.

40

O autor de L’étranger faz uma importante distinção entre os

colaboradores, que aceitaram as honrarias e as responsabilidades

durante a ocupação, e o povo em geral, preocupado em

sobreviver durante um período de escassez, de racionamento de

víveres, filas intermináveis e câmbio negro (Rousso, 1992).

Pretendi, nesse breve histórico da questão, recortar um

momento de perturbação, violência, coragem, intranqüilidade e,

sobretudo, de insatisfação e não traçar, exaustivamente, o

processo de depuração que se revelou, a longo prazo, uma utopia.

Abstive-me de analisar o processo de limpeza nos

movimentos sindicais, assim como a radicalização relativa às

mulheres, principalmente, às prostitutas; apesar de sua relevância,

por serem excessivamente complexos e fugirem, de certo modo,

ao tema proposto.

Concentrei, portanto, meu estudo em dois blocos que

receberam tratamento diverso do governo provisório: a Academia

Francesa e a Igreja Católica, poderosas instituições, objetos de

uma depuração mitigada, e os intelectuais, alvo fácil de

investigações e violentas represálias.

No meio intelectual, há que se destacar os escritores e,

principalmente, os jornalistas considerados os mais responsáveis,

por terem influenciado, diretamente, a opinião pública.

41

A severidade com que foram julgados os jornalistas

provocou um sentimento geral de que eles estariam

representando o papel de bode expiatório, em uma sociedade que

se sentia culpada e principalmente não distinguia, de modo claro,

os culpados dos inocentes.

Procurou-se, entretanto, discernir o diferente grau de

culpabilidade dentre os acusados. Alguns foram julgados pelo

tribunal criminal e condenados à morte. Outros sofreram

diferentes restrições, abaixo esclarecidas.

No que tange aos escritores, houve uma depuração oficial e

outras oficiosas - as famosas "listas negras" que condenavam ao

ostracismo aqueles que teriam colaborado e com os quais os

membros do Comité National des Écrivains (CNE) não desejavam

manter nenhum contato profissional.

O resultado prático dessas listas era nada publicar do

escritor renegado, não mencioná-lo e, principalmente, boicotar os

jornais que, porventura, ousassem publicar seus textos. O

silêncio, o pior dos castigos, instalou-se em volta dos que o

próprio CNE reconhecia desigualmente culpados.

O valor das listas de exclusão, com o passar do tempo,

tornou-se meramente simbólico e perdeu sua importância quando

os grandes escritores não comunistas - Georges Duhamel, Jean

Paulhan, François Mauriac e Jean Schlumberger - afastaram-se do

42

CNE, a partir de 1946, motivados pela utilização indiscriminada

da lista negra e, sobretudo, por discordar de sua orientação

marxista.

A depuração não conseguiu atingir o objetivo proposto:

uma transformação total da sociedade francesa. Contudo,

modificações houve: mudanças sociais e políticas que

contribuíram para uma renovação parcial, mas profunda, na

literatura francesa. Renovação motivada pela morte de alguns

escritores - Romain Rolland, Jean Giraudoux ou pela perda de

credibilidade, decorrente de ligações comprometedoras com

Vichy - Charles Maurras, Louis-Ferdinand Céline, Henry de

Montherlant.

Albert Camus, Jean Bruller Vercors, Jean-Paul Sartre, outra

geração de escritores, marcada pela Resistência, ocupará,

doravante, a cena literária, sem conseguir, entretanto, “forçar as

muralhas da Academia francesa, monumento da vida intelectual francesa”

(Novick,1985: 210).

Dialogues foi um texto escrito, no pós-guerra, em um

momento de conflitos históricos. O texto, entretanto, está

vinculado, não à organização da resistência armada, mas à luta,

também clandestina, que alguns escritores sustentaram, com as

armas de que dispunham, para resistir, através das idéias, ao

inimigo.

43

Esta luta desenvolveu-se, sobretudo, no teatro trágico,

lugar das grandes decisões, onde as contradições inerentes ao

homem são expostas, em que se dá a catarse, a liberação, a

purgação da angústia humana (Leenhardt, 1995).

O teatro trágico ocupa um lugar de destaque na vida

intelectual francesa durante a Ocupação e no pós-guerra,

enquanto o gênero romanesco apresenta certa estagnação.

A relativa pobreza da produção romanesca, durante o

decênio 1940-1950, também pode ser explicada por fatores

externos como a presença da censura, o fechamento das

fronteiras e a escassez de papel. A tiragem era limitada a 5000

exemplares o que diminuía a difusão das obras (de Beer, 1963:

266). Tais motivos contribuíram para o florescimento do teatro

que oferecia um campo renovado e mais acessível à literatura.

Se, após a guerra, Aragon e Giono continuam sua obra,

François Mauriac dedica-se ao jornalismo; Martin du Gard não

publica os romances que escreve e Malraux já renunciara à obra

romanesca, após a publicação de L’Espoir, em 1937. Bernanos

sacrifica sua obra romanesca para dedicar-se aos Écrits de Combat,

sua obra polêmica, considerada prioritária naquele momento.

Graças à descentralização da cultura, um público maior e

mais variado tem acesso às grandes peças, antes restritas a Paris.

Data de 1947 a criação do festival de Avignon, uma data essencial

44

na dramaturgia francesa do século XX, em que se destacam a

atuação de Jean Vilar e a preocupação do testemunho, a presença

atuante de Camus e de Jacques Copeau.

Parece-me, entretanto, que os motivos da escolha do teatro

como meio de expressão das tensões de um momento

conturbado residem no próprio teatro.

No período da Ocupação, as reuniões foram,

primeiramente, proibidas e, posteriormente, desaconselhadas, por

prudência. As representações teatrais permitiam o agrupamento

de pessoas, com o álibi do espetáculo público. E o teatro

constituía, muitas vezes, um lugar de resistência onde aconteciam

verdadeiras celebrações, congraçando público, atores, diretores e

todos os que contribuíam para a "festa do instante" (Bondy, 1996).

O momento único e mágico da representação teatral jamais pode

ser repetido, mesmo com o texto inalterado, os mesmos artistas,

o mesmo espaço físico e, se possível, o mesmo público. Trata-se

de um instante fugaz e único.

Razões de outra ordem também contribuíram para o auge

do teatro nesta época: o espaço físico era um abrigo, se não

inviolável, pelo menos seguro. Além disso, era aquecido, no rigor

do inverno, quando a calefação era privilégio de uma minoria.

Mas parece que o grau calorífíco não era o único elemento

em jogo e o teatro não monopolizava o interesse do público. As

45

bibliotecas e os cinemas estavam sempre repletos, as salas de

espetáculo lotadas; o que cada um procurava era evadir-se e

esquecer, durante algumas horas, a dureza daqueles tempos.

Assim, o teatro foi, durante a Ocupação, e continuou a ser

no pós-guerra, um meio de comunicação, por excelência, entre os

que se questionavam a si próprios e às suas certezas e

transformavam-nas em indagações.

No decênio 1940-1950, as peças de Albert Camus e de

Jean-Paul Sartre constituem novidade no panorama teatral da

época. Tradicionais quanto à forma, revelam-se provocadoras

quanto à visão do mundo que propõem.

Sem pretender repetir os inúmeros paralelos estabelecidos

entre Camus e Sartre, assinalo o papel de maître à penser - mentor

intelectual - desempenhado pelos dois escritores e a visão do

mundo que exprimem, através do teatro, no pós-guerra.

A percepção aguda do absurdo do mundo e a revolta, para

Camus; a responsabilidade do indivíduo colocado em situações-

limite, para Sartre; negação do trágico, para o autor de L’État de

siège (1948); a condenação à liberdade, para o autor de Les Mouches

(1943), seriam estes os conceitos predominantes, o essencial das

preocupações que os perseguem, partilhadas com o público,

através do teatro, utilizado como uma tribuna.

46

Camus, resistente de primeira data, lutara, como redator-

chefe, à frente do jornal Combat durante os primeiros anos do

pós-guerra. À semelhança de Mauriac, suas obras, publicadas

durante os "anos negros", respectivamente, o romance L’Étranger

(1942), o ensaio Le Mythe de Sisyphe (1942) e a peça de teatro Le

Malentendu (1944) não parecem revelar nenhuma relação direta

com a conjuntura do momento político da época. Todavia,

necessário se faz lembrar que uma peça menos conhecida do

grande público, Caligula, na qual o autor evoca o clima de terror, a

loucura e o crime, foi escrita em 1938, publicada em 1944 e

representada em 1945.

Sartre combateu como escritor e não como resistente ativo

na luta clandestina. A representação de Les Mouches (1943), Huis

clos (1944) e Les Mains sales (1948) marcou época. A influência

exercida pelo autor de La Nausée é por demais conhecida. As

gerações que se sucederam, do pós-guerra até sua morte em 1980,

revelam, de um modo ou de outro, marcas de sua influência,

exercida nos mais diferentes setores: filosofia, política e literatura.

Enquanto Camus e Sartre atingiam o grande público de

esquerda, Henry de Montherlant impunha-se a um público mais

conservador. Seu percurso intelectual caracteriza-se pela

ambigüidade ideológica. Em 1945, Montherlant é uns dos poucos

47

escritores de renome, punidos com a mais grave sanção do CNE:

interdição de publicar durante dois anos.

A reputação de colaboracionista justificava-se por seus

escritos, durante a ocupação, publicados em órgãos tais como:

Cahiers franco-allemands (1940), La Gerbe (1941-1942), Comoedia

(1941). Esta revista, de jogo colaboracionista sutil, conseguiu

fazer com que grandes nomes da intelectualidade francesa

participassem de suas publicações: Giono, Sartre, Valéry, Copeau,

Dullin, Barrault. E também, ainda em 1941, quando o vazio se

fazia em torno de Drieu La Rochelle, Montherlant escreve artigos

para a NRF. Além dos artigos em jornais e revistas

colaboracionistas ou simpatizantes, Montherlant publica, em

1941, Le Solstice de juin, obra menor, mas recebida pelos leitores

como uma apologia da Alemanha, uma celebração ambígüa do

nazismo. Le Solstice de juin merece importância porque modificou,

por completo, o relacionamento do autor com o público e

justificou, aos olhos da maioria, sua presença na lista negra dos

condenados ao ostracismo intelectual, pela depuração.

O caso Montherlant não pode ser reduzido a simples

colaboração pró-Alemanha. Em 1942, o autor de Solstice de juin

escreveu La Reine morte representada com grande sucesso pela

Comédie Française. A partir daí, cessa de escrever romances, a

48

exemplo de outros grandes nomes da literatura francesa, e dedica-

se ao teatro, afirmando-se como dramaturgo.

La Reine morte, com base em fato histórico português do

século XIV, e no drama espanhol do século XVII, Régner après la

mort, de autoria de Luis Velez de Guevara, narra o assassinato de

Inês de Castro, a esposa secreta do herdeiro do trono, por

Alfonso V. Ao tornar-se rei, Pedro coroa o cadáver de Inês,

fazendo-a rainha.

Esse acontecimento inspirou inúmeros poetas e

dramaturgos, entre eles, Camões que imortalizou, em Os Lusíadas,

o trágico episódio.

Montherlant enfatiza, sobretudo, a personalidade

ambivalente do rei, atraído por Inês de Castro, mas decidido a

sacrificá-la, por razões políticas. O jogo do poder, mesclado de

sadismo, revela-se nessa peça que foi recebida, por determinado

público, como metáfora da Resistência francesa.

Jean Pierre Azéma observa, entretanto, que apenas uma

única réplica: “En prison se trouve la fleur du royaume” (Montherlant,

La reine morte, 1958), aplaudida pelo público, não permite que se

possa considerar o autor de Solstice de juin um jacobino, um

resistente (Azéma, 1979:153).

49

Se se tratasse de um caso isolado na obra de Montherlant,

La Reine morte poderia ser considerada uma obra em que há

alusões patrióticas, ou que o público quis julgar como tais.

Em 1953, o dramaturgo publica Port-Royal, o drama da

injustiça, no qual expõe as perseguições infligidas por Luis XIV às

religiosas da abadia de Port-Royal-des-Champs; perseguições que

culminaram com sua dispersão em diferentes conventos e a

destruição do próprio edifício onde florescera o jansenismo.

O rigor, a procura do absoluto e, principalmente, a recusa

dos valores mundanos tornaram o jansenismo um elemento

contestador da razão de Estado e do argumento da autoridade

sobre os quais se fundava o absolutismo. Por esses motivos, entre

outros, Port-Royal, no dizer de Louis Cognet, insere-se no vasto

movimento sociológico que provocaria o desmoronamento do

Antigo Regime. E não foi sem fundamento que certos meios

jansenistas julgaram a execução de Luís XVI, em 21 de janeiro de

1793, uma vingança póstuma do monastério destruído (Cognet,

1961: 142-45).

A gênese da obra merece ser considerada. Em 1929,

Montherlant, ao ler Port-Royal de Sainte Beuve decide escrever

uma peça de teatro inspirada em um episódio desse movimento

religioso e político que deixou marcas indeléveis na História da

França. Durante dois anos, de 1940 a 1942, trabalhou em uma

50

primeira peça que, por prudência, permaneceu inédita. Em 1948,

ao relê-la, julga-a insatisfatória e arquiva-a.

Uma nova leitura, em 1953, confirma o julgamento

anterior, e Montherlant resolve escrever uma segunda peça,

inteiramente diferente da primeira, inspirada em outro episódio

da história da controvertida abadia.

Este breve histórico evidencia a importância do tema para

o autor que declarou ser o jansenismo sua verdadeira família

espiritual: “Cette famille était et ne cessera jamais d’être la mienne”

(Montherlant, 1958: 664).

Considerado por muitos de seus contemporâneos um

colaborador ideológico, Montherlant escreveu, entretanto, La

Reine Morte e onze anos mais tarde, Port-Royal, que pode ser

recebida como a tragédia da consciência livre diante da

prepotência da autoridade absoluta.

Os críticos julgam-no um escritor de múltiplas máscaras ou

de inúmeras facetas. E o próprio Montherlant parece confirmar

sua ambigüidade e complexidade ao atribuir a Soeur Angélique de

Saint Jean, importante personagem de Port-Royal, uma declaração

que poderia endossar: “Ne cherchez pas à percer ces choses. Il y a de tout

en certaines âmes. Et parfois dans le même moment” (Montherlant, 1958:

1047) (Grifos meus).

51

Julguei importante enfatizar este aspecto da obra de

Montherlant porque Port-Royal foi representada, na cena

parisiense, aproximadamente, durante o mesmo período em que

Dialogues des Carmélites de Bernanos constituía o maior sucesso da

temporada teatral européia.

E não era por acaso que as duas peças tratavam de um fato

histórico francês, cujas personagens eram mulheres indefesas,

religiosas, vivendo em comunidade, vítimas de um poder

absoluto e arbitrário.

Port-Royal também faz parte do repertório da Comédie

Française e sempre é representada com sucesso. Dialogues foi

traduzida para várias línguas e as sucessivas montagens alcançam

grande êxito. No Brasil, foi representada diversas vezes. Destaco

a temporada, no teatro do Copacabana Palace, em 1955, pela

companhia de Henriette Morineau. Maria Clara Machado

representava Blanche de la Force e Madame Morineau vivenciou

Madame Lidoine, a segunda Priora. Se mais representações não

há, a causa reside, entre outras, nos inúmeros problemas de

direitos autorais que uma montagem acarretaria. Bernanos deixou

muitos herdeiros e há processos ainda em curso.

Dialogues, julgada por muitos críticos a melhor peça teatral

do pós-guerra, foi elaborada em plena guerra frio, conflito

eminentemente intelectual, compreendido entre 1947-1956.

52

A noção de guerra fria assume, na França, conotações de

uma verdadeira luta com toda a carga semântica de agressividade

nas relações interpessoais que o termo acarreta e de recusa em

admitir não somente a concessão, a negociação, mas também a

neutralidade e a cômoda posição de meio termo.

Após a efêmera fraternidade vivida na época da Resistência,

os intelectuais dividiam-se em campos opostos. Não ser

comunista equivalia a ser anticomunista e o anticomunista, no

julgamento exaltado da época, correspondia a um fascista.

A guerra fria remete a um passado imediato: ao processo de

depuração posto em prática após a Liberação de Paris pelos

Aliados e aos anos negros da ocupação nazista.

Esses momentos caraterizaram-se por uma espécie de

terror: a imposição, pela força, do que se considerava um direito

ou uma verdade. E, em se tratando da depuração e da guerra fria,

o terror assume o que poderia ser considerado uma manifestação

do jacobinismo sempre presente nas guerras franco-francesas

depois da Revolução de 1789.

O terror assumiu diferentes formas nos diversos

momentos: o ocupante alemão tentou eliminar os judeus, sufocar

a Resistência e provocou sentimentos de horror, medo e

vergonha naqueles que "não cantaram" para o inimigo. O acerto

de contas do pós-guerra fez milhares de vítimas, em uma

53

tentativa de limpeza que se assemelhava ao Terror de 1793. E a

esquerda, predominante na guerra fria, não admitia a menor

possibilidade de um intelectual não pertencer ao partido

comunista, desencadeando exclusões que equivaliam à morte em

vida.

O último texto de Georges Bernanos trata de um fato

histórico, ocorrido no século XVIII durante o Terror da

Revolução Francesa. Como já referido, o autor fora solicitado a

escrever os diálogos para um filme baseado em uma novela de

Gertrud von le Fort. Estas circunstâncias não invalidam o fato de

que o autor se apaixonou pela tarefa e dela fez não só uma última

meditação sobre a vida e a morte, como seus críticos assinalaram,

mas também uma reflexão sobre o momento histórico em que

vivia.

A contemporaneidade, a ocupação alemã, a depuração e a

guerra fria formam o contexto implícito de Dialogues, que se

inscreve na data de publicação do texto.

No dizer de Derrida, uma data é sempre uma metonímia e

designa a parte de um acontecimento ou de uma seqüência de

acontecimentos para lembrar o seu todo (Derrida, 1986: 41). E

também a referência à publicação da obra em 1949, sabendo-se

que fora escrita em 1947-1948, equivale, ao todo, em

determinado contexto.

54

O contexto, implícito, mas atuante, articula-se com o

período do Terror no qual a ação da peça se desenrola. Os dois

momentos refletem-se como em um processo especular - o

Terror de 1792 -1793 é revisitado à luz da contemporaneidade e

esta desvela as constantes que a ligam à Revolução Francesa,

considerada por muitos historiadores como a inspiradora de

todas as revoluções modernas (Sédillot, 1990: 272).

Assim, a inscrição da História, em Dialogues, realiza-se

através do desenrolar da Revolução Francesa.

A História, manifestada sob o aspecto da Revolução

Francesa, é considerada la toile de fond - o pano de fundo - quando

se privilegia o drama espiritual, como julga Monique Gosselin. E

também pode ser considerada a structure portante de l’action - a

estrutura que sustenta a ação - no dizer de Pierrette Renard. A

noção de estrutura, evocando um termo de engenharia,

acrescenta uma importância essencial ao papel desempenhado

pela História em Dialogues.

Parece-me, entretanto, que, além de pano de fundo e

estrutura sustentadora, a Revolução é, sobretudo, uma

personagem discreta, porém implacável, que modifica a sociedade

e que teria uma função análoga ao Destino da tragédia clássica.

Importa, assim, ressaltar que o Terror de 1793, reescrito

por Bernanos, em 1948, acha-se contaminado, em Dialogues des

55

Carmélites, por outros terrores contemporâneos. O terror da

ocupação nazista, da depuração e da guerra fria já foram

mencionados, mas o terror da guerra civil espanhola, vivido em

Maiorca, também está presente de modo implícito mas atuante.

O autor de Les Grands Cimetières sous la lune associava os

dois terrores e rebate, de antemão, em 1938, uma possível

acusação de impropriedade de termos: “Si le mot de Terreur vous

semble trop gros, cherchez-en un autre, que m’ importe!” (EEC I: 430).

Embora o terror reinante em Maiorca diferisse,

aparentemente, do Terror de 1793, Bernanos discernia o

elemento comum que os identificava: o desrespeito à dignidade

do homem e a imposição pela força, da ordem e do que se

considerava o bem e a virtude. O terror vivido em Maiorca

articula-se, portanto, também, com o de 1793.

Bernanos, em 1939, no Brasil, ao evocar a guerra civil

espanhola, enfatiza a distinção entre os dois momentos da

Revolução Francesa: “Ce n’ est pas avec Hoche ou Kléber, c’ est avec

Fouquier-Tinville et Marat que vous avez trinqué” (CORR II: 257). O

general Louis Hoche e o general Jean-Baptiste Kléber

representam, para Bernanos, um certo equilíbrio e moderação no

âmbito do processo revolucionário, o que os ligaria aos ideais de

1789, em oposição a Marat e Fouquier-Tinville, nomes

emblemáticos do Terror desmedido.

56

O autor aludira em Les Grands Cimetières sous la lune a outros

terrores que pontuaram a História da França como a noite de São

Bartolomeu e a Comuna de Paris, em 1871, denunciando o

princípio que os impulsionava: a determinação de exterminar

todos aqueles que fossem julgados indesejáveis, em um processo

de limpeza (EEC I: 433). E indesejável é aquele que é diferente,

aquele que se isola de uma verdade global.

Cumpre ressaltar, porém, a modificação do ponto de vista

de Bernanos sobre a Revolução Francesa ao longo dos anos. Seu

interesse pelo Movimento de 1789 manifesta-se após a ruptura

com Maurras em 1932, época em que Bernanos descobre “a

mensagem universalista da Revolução, revista por Michelet e corrigida por

Péguy” (Kohlhauer, 1994: 105) e, sobretudo, os valores de uma

revolução até então depreciada.

Os textos são elucidativos: em 1931, ele escreve: “...cette

Révolution fameuse, celle de 1789, n’ a eu qu’ un résultat certain: la

consolidation des biens acquis grâce à quelques poignées d’ assignats,

frauduleusement” (EEC I: 102). Como observa Monique Gosselin, a

guerra civil espanhola provoca em Bernanos a descoberta de que

o Terror não era o apanágio dos teóricos de esquerda, êmulos de

Robespierre e que poderia emanar de homens e cristãos com

quem havia partilhado os mesmos valores.

57

A atitude tomada em relação ao Movimento de 1789

evolui e leva Bernanos a considerá-lo, em 1947, “..non pas l’

écroulement, mais l’ épanouissement de l’ancienne France, éperdue jusqu’au

délire de confiance en elle-même et de foi dans l’ homme” (EEC II:1273).

Bernanos não considera a Revolução Francesa como um

todo e opõe 1789 a 1793 dentro da tradição monarquista. Este

antagonismo permanece em Dialogues, seu último texto, no qual

estão presentes todos os terrores vivenciados ou que faziam parte

de sua cultura, como o horror à Revolução de 1793 (CORR II:

257), horror explicável por sua formação católica conservadora,

tradicional e, principalmente, por suas idéias monarquistas nunca

renegadas.

A conclusão a que o autor chegara, em 1938, poderia ser

repetida, após o decurso de um decênio: “Toutes les Terreurs se

ressemblent, toutes se valent, vous ne me ferez pas distinguer entre elles, j’ai

vu trop de choses maintenant, je connais trop bien les hommes, je suis trop

vieux” (EEC I: 433).

A repetição do advérbio trop - em excesso - indica o

cansaço e o desencanto do autor, já bastante doente, e exprime

sua angústia e solidão moral.

Assinalada a articulação dos diferentes terrores, uma

pergunta impõe-se: tratar-se-ia de uma repetição ou de um

paralelismo que deve ser questionado?

58

Repetição e paralelismo não são sinônimos. Repetir

significa que um fato ou ação torna a acontecer e paralelismo

indica uma progressão semelhante de coisas comparáveis ou que

acontecem da mesma maneira.

No contexto histórico referido, trata-se de uma repetição e

de um paralelismo: o Terror de 1793 reaparece na guerra civil

espanhola, durante a ocupação nazista, na depuração e na guerra

fria, de modo análogo, mas diverso. Os diferentes terrores

articulam-se e podem ser lidos como espelho e refração. Trata-se,

então, da concepção cíclica do tempo, da volta periódica de

certos acontecimentos e de personalidades, do retorno eterno?

A novela de Gertrud von le Fort parece autorizar essa

leitura, porquanto a autora admite a teoria dos ciclos cósmicos,

do Caos: “O caos, que brame eternamente no mais profundo dos elementos,

rompeu a crosta aparentemente firme dos hábitos” (le Fort, 1937: 15).

As concepções históricas da romancista alemã e do autor

de La France contre les robots, entretanto, diferem. Para Bernanos, a

História existe em si e não consiste em repetições inevitáveis,

embora existentes. A fé, uma nova categoria introduzida no

contexto, permite, no dizer de Eliade, uma liberdade criadora por

excelência:

Ela constitui uma nova fórmula de colaboração do homem com a criação... Somente esta espécie de liberdade, (...) fundamentada, garantida e apoiada por

59

Deus é capaz de defender o homem moderno contra o terror da história... [...] Qualquer outro conceito de liberdade moderna, independentemente da satisfação que possa proporcionar a quem a possua, é impotente para justificar a história. E a não justificação eqüivale ao terror da história. (Eliade, 1969: 180)

Para Bernanos, cristão, a História existe como tal e não

como mera repetição. O passado permite-lhe melhor

compreender seu próprio tempo.

Sua visão histórica orienta-se, não para o passado, mas para o futuro, na construção de uma utopia. O termo Utopia empregado não no sentido vulgarizado de projeto irrealizável, quimera, ou fantasia, mas na acepção de construir, de refazer um mundo para os homens livres" (Kohlhauer, 1988: 113-39).

Em conferência pronunciada, em 1946, em Genebra,

intitulada: "L’esprit européen et le monde des machines", Bernanos

repete como um refrão: “Le monde ne sera sauvé que par les hommes

libres. Il faut faire un monde pour les hommes libres” (EEC II: 1370).

Nesse contexto histórico, no final da primeira metade de

um século balisado, não pelos períodos de paz, mas por duas

guerras mundiais, Bernanos reflete sobre os regimes totalitários,

sobre a prepotência da força e medita sobre o destino das

dezesseis carmelitas de Compiègne, vítimas de um regime de

exceção.

60

Como ser livre em um mundo dominado pela máquina? A

vida seria mais importante do que a honra? O sentimento de

honra é mais importante do que a vida? O que ameaça o homem?

Como reagir diante da força? E, principalmente, como conciliar o

impasse diante do poder arbitrário e a promessa de libertação, de

participar “da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rom. 8,21) ?.

A sinceridade das indagações explicaria, talvez, por que

esta peça comove mesmo aqueles que não partilham sua fé e nela

encontram o eco de suas preocupações.

Dialogues não é apenas um belo texto recitado por religiosas

contemplativas. É também uma peça sobre o medo, a vergonha

de sentir-se indigna, o drama da exclusão, a procura de um lugar

no mundo e um debate interno sobre as mudanças

revolucionárias que transpõem as paredes de um Carmelo.

Todas estas questões serão discutidas, na forma de

diálogos, à luz da fé que norteava Bernanos.

61

INTERTEXTO: FIGURAS

Les grandes abstractions sont mes amies. Bernanos

Após ter estudado o contexto histórico em que foi escrita a

peça Dialogues e antes de analisar o texto propriamente dito,

considero importante enfocar algumas figuras que funcionam

como intertexto da ação: a cidade de Compiègne, a ordem do

Carmelo, o convento do Carmelo na França em revolução.

Poder-se-ia caracterizá-las como intertextos, por vê-las não como

meros cenários ou pano de fundo. Classifico também a

Revolução Francesa como intertexto porque a considero, na

peça, não um momento histórico congelado no tempo, mas um

conjunto de discursos, com os quais dialoga o texto de Bernanos.

Primeiramente, enfocarei, nessa perspectiva, a cena do

mundo, o espaço temporal, para em seguida propor uma leitura

de Dialogues.

62

Compiègne - um espaço de violência

“Très fidèle au roi et au règne” - divisa da cidade de Compiègne, antes da Revolução Francesa.

O núcleo principal da ação de Dialogues se desenrola, como

referi, durante a Revolução Francesa, de 1789 a 1794, do início

do processo revolucionário ao ápice do Terror, no âmbito do

Carmelo de Compiègne.

A Revolução Francesa inaugurou uma nova era e, ao abolir

o Antigo Regime, pretendia suprimir os privilégios garantidos à

nobreza e eliminar as injustiças sociais. Liberdade, Igualdade e

Fraternidade, complexo e utópico ideário revolucionário que, no

dizer de Celina Maria Moreira de Mello, funciona compactado

apenas como slogan, e, se analisado, exibe contradições entre a

idéia de Liberdade vinculada ao liberalismo, a de Igualdade,

inspirada no republicanismo e o ideal de Fraternidade,

influenciado pelo socialismo (Mello, 1994).

Apesar das contradições, a Revolução Francesa mudou a

História do mundo. A ruptura com o passado, a instauração no

poder político de uma ideologia burguesa e sobretudo a

possibilidade de uma certa mobilidade social marcam este

período de mudanças, de transição e de crise.

63

Neste contexto, instaura-se o Terror, uma tentativa de

impor a todos a virtude através da força e da violência. A

violência constitui uma resposta ao medo, sentimento inaceitável

para muitos e que só pode ser vencido e controlado pela

aceitação de sua existência. E o medo, no dizer de René Girard,

em La violence et le sacré (1972), uma vez desencadeado e

exprimindo-se pela violência, requer "bodes expiatórios" para ser

apaziguado.

Durante o período do Terror da Revolução Francesa, o

ódio dirigia-se contra os representantes da nobreza e do clero,

classes dominantes no Antigo Regime, porque o povo temia que

essas classes recuperassem o poder.

Quando se fala do Terror, há que se distinguir o Terror

reinante em Paris, comandado por Robespierre e seus partidários,

e o Terror existente no resto da França, desigual e dependente

daqueles que o representavam. Assim, em algumas regiões,

salvavam-se as aparências, empregava-se uma terminologia

revolucionária, mas, na realidade, os extremismos eram evitados.

Vivia-se no compromis - um meio-termo.

A cidade de Compiègne de 1789 a 1794 é a cena principal

dos acontecimentos do texto em estudo. A escolha da data em

relação à Revolução Francesa nunca é anódina e reflete uma

escolha de caráter ideológico. Há os que datam o processo

64

revolucionário a partir de 1789, consideram-no um bloco indiviso

e não fazem distinção entre 1789, início do processo

revolucionário, o Terror de 1792, marcado pelo massacre dos

padres refratários, os que se recusaram a jurar fidelidade à Nação,

e o Grande Terror de 1793-1794. Há também os que aceitam os

ideais de 1789 e condenam a violência do Grande Terror.

Essa distinção permite a concordância com os ideais de

Liberdade, Igualdade e Fraternidade e o repúdio à Revolução de

1793.

Bernanos, discípulo de Péguy, admira os ideais da

Revolução de 1789,.porém confessa ter sido educado no horror

da Revolução de 1793: "J'ai été élevé dans l'horreur de la Révolution de

1793, et de ce régime des suspects dont Robespierre nous a laissé l'effrayante

formule: Il n'y a pas d'innocents parmi les aristocrates" (CORR: 257).

Ao escrever os diálogos, para o roteiro extraído da novela

de Gertrud von le Fort, Bernanos, ao contrário da romancista

alemã, menciona, rigorosamente, as datas e os espaços no início

da ação, propondo, como observa Pierrette Renard, um nível

suplementar de significação. E, no final, não mais indica as datas

com precisão, compacta os acontecimentos, visando um maior

impacto dramático, enfatizando o Terror dominante.

O início da ação é datado de 1789 e o fato histórico refere-

se à execução de dezesseis carmelitas, em Compiègne em 1794.

65

Cidade muito antiga que vem da ocupação romana, Compiègne,

está situada às margens do rio Oise, a cem kilometros de Paris,

fazendo parte do Departamento de Oise.

Sua fundação é atribuída, sem provas, a Júlio César. O mais

antigo documento onde consta o nome de Compiègne (do latim

compendium) é datado do século VI (diplôme de Childebert I, 557).

Além de ser uma das residências preferidas dos reis da França,

esta cidade foi sempre um teatro de guerras, de lutas e de

decisões históricas.

Marcada por importantes acontecimentos políticos e

violentas paixões que tiveram como cena sua floresta, seus

castelos e suas igrejas, a cidade de Compiègne foi sempre um

espaço de violência.

Em 1430, Joana d’Arc foi aprisionada por seus inimigos às

portas da cidade. Uma história controvertida e até hoje mal

explicada. Foi no castelo de Compiègne que Luis XV recebeu a

arquiduquesa Maria-Antonieta, noiva do futuro Luis XVI. Em

1810, Napoleão Bonaparte restaurou o castelo para recepcionar

Maria-Luiza d’Áustria.

O Armistício de 11 de novembro de 1918, quando a França

venceu a Alemanha, foi assinado na floresta de Compiègne, assim

como o vergonhoso Armistício de 1940 em que o governo de

Vichy se rendeu ao inimigo.

66

Alvo de bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial,

Compiègne foi sede de um campo de prisioneiros políticos.

A sociedade de Compiègne, antes da Revolução Francesa,

podia ser caracterizada pela moderação, pelo compromis, pelo

meio-termo. E o meio-termo permite soluções variadas e

aleatórias.

Essa cidade, nostálgica das estadas lucrativas do rei e de sua

corte, amargava, nos idos de 1790, uma recente derrota: a perda

do centro administrativo que coube à cidade de Beauvais. Havia

um certo acordo político, em aceitar o conjunto das reformas

impostas pela Revolução, sobretudo as referentes à Igreja.

Nesta sociedade notava-se o peso da influência de um

grande número de padres conformistas, os que haviam jurado

fidelidade à Constituição Civil do Clero, em janeiro de 1791. O

que se procurava, sobretudo, era salvaguardar o equilíbrio interno

da sociedade e, para isso, todos os acordos políticos necessários

eram realizados.

Importa considerar que a Revolução foi uma época

favorável à ascensão de categorias sociais durante muito tempo

discriminadas. Entre estas destacava-se o baixo clero, constituído

de párocos e vigários, plebeus, mal remunerados e descontentes

com o alto clero. Os nobres, que formavam o alto clero, eram

beneficiários do dízimo e ocupavam importantes e rendosos

67

cargos: eram bispos, cônegos, vigários episcopais. Essa dicotomia

do clero contribuiu para a queda do Antigo Regime e para a

consolidação das conquistas revolucionárias.

Ora, durante os anos 1793-1794, com o advento do Grande

Terror, já não havia possibilidade de acomodação, de meio-

termo. Motivado, segundo alguns historiadores, sobretudo pela

revolta da Vendéia, pela presença dos inimigos nas fronteiras e

pelas dificuldades econômicas, o Terror se fez exigente. E as

autoridades e a sociedade de Compiègne foram acusadas de

"tiédeur républicaine", no jornal de Marat, pelo geógrafo Bussac. A

reação não se fez esperar: o autor da denúncia foi punido e

encarcerado e a associação jacobina Amis de la Constitution aderiu

de maneira oportunista à Montanha, o partido de Marat, Danton e

Robespierre.

A sociedade de Compiègne procurou demonstrar, em

seguida, um grande espírito revolucionário. O clube jacobino

chegou a propor que Compiègne fosse rebatizada de Marat-sur-

Oise. Além disto, as autoridades constituídas de Compiègne

apressaram-se em promulgar um edital descristianizador sobre a

regulamentação dos cemitérios, em 29 de outubro de 1793,

calcado no edital de 10 de outubro do mesmo ano. O zelo em

cumprir as determinações revolucionárias revelaria talvez um

receio de não se ser considerado suficientemente patriota.

68

A condenação e a execução das dezesseis carmelitas de

Compiègne, em 1794, estaria ligada ao desejo de fazer esquecer

que Compiègne ostentara outrora a divisa: "très fidèle au roi et au

règne"? Teria sido um meio de exorcisar um passado

comprometedor e provar a fidelidade à Revolução?

Havia, evidentemente, um ódio contra os conventos. Entre

outros motivos, devido à estreita união entre a aristocracia e a

Igreja católica, que constituía ao mesmo tempo uma instituição

religiosa e política. E os conventos eram considerados, em geral,

redutos da nobreza. Por isso foram perseguidos e sofreram as

medidas revolucionárias: proibição de emissão dos votos

religiosos - 28 de outubro de 1789, anulação dos votos religiosos

- 13 de fevereiro de 1790, supressão da vida monástica: confisco

dos bens e expulsão das religiosas de seus conventos - 18 de

agosto de 1792.

Por que as carmelitas foram guilhotinadas? As religiosas

teriam representado o papel de uma espécie de "bode

expiatório"? De acordo com a teoria de R. Girard, a escolha recai

sempre sobre uma vítima um pouco marginal em relação ao

grupo social: mulheres, estrangeiros, loucos, crianças. A vítima

devia ser indefesa e não provocar vingança.

As carmelitas de Compiègne representaram, em um

determinado momento da Revolução, a vítima ideal. Mulheres

69

que haviam renunciado ao mundo, exilando-se em um convento

e na maioria pertencendo à nobreza, representavam um bom alvo

à ira do povo que nelas via a síntese da opressão: religião e

nobreza. Fácil foi a Fouquier-Tinville, acusador público do

tribunal revolucionário e que também morreu guilhotinado,

acusá-las de atividades contra-revolucionárias e enviá-las ao

cadafalso.

70

A Ordem do Carmelo

Non, ma fille, nous ne sommes pas une entreprise de mortification ou des conservatoires de vertus, nous sommes des maisons de prière.

Bernanos

A palavra Carmelo serve para designar, ao mesmo tempo, a

Ordem do Carmelo (Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria,

designação oficial) e os conventos desta mesma Ordem.

Sua origem, pouco conhecida, remonta à 3ª cruzada (1189-

1192). Com Jerusalém libertada, os cruzados descobriram os

eremitas que viviam nas encostas áridas do Monte Carmelo

(Palestina), levando uma vida solitária, de oração silenciosa e

pessoal. No século XIII, por volta de 1220, Santo Alberto,

patriarca de Jerusalém, promulgou a Regra da Ordem que ainda

hoje é observada. Em torno de 1235, os carmelitas foram

expulsos pelos Sarracenos e espalharam-se pela Europa. Em

1254, São Luis, rei da França, trouxe de sua Cruzada seis

carmelitas que se estabeleceram em Paris.

Os carmelitas sofreram uma reforma no século XV,

quando foi criado o ramo feminino da Ordem, e outra no século

71

XVI, mais profunda, orientando o Carmelo para uma vida mais

austera e mais contemplativa. Santa Teresa d’Avila e São João da

Cruz foram os grandes reformadores da Ordem. No século

XVII, em 1604, foi fundado em Paris o primeiro Carmelo

Reformado.

O Carmelo desenvolveu-se extraordinariamente na França.

Diferentes classes sociais aí se encontravam, mas sempre

constituiu o reduto de uma aristocracia social e religiosa, que ali

procurava um lugar propício à busca dos valores eternos.

Esta ligação alienava a simpatia da alta burguesia, da noblesse

de robe, para com o Carmelo. O termo noblesse de robe (nobreza de

toga), empregado genericamente em sociologia, independe do

fato de ter havido ou não enobrecimento de um ou outro

indivíduo e aplica-se principalmente aos magistrados.

Cada grupo social possuía sua visão do mundo e essas se

revelavam antagônicas. A expressão "visão do mundo" é empregada

segundo a definição de Goldmann: "o conjunto de aspirações, de

sentimentos e de idéias que reune os membros de um grupo (freqüentemente de

uma classe social) e os opõe a outros grupos" (Goldmann, 1959: 26).

Assim, conta-se que no início do século XVII, Mère Marie-

Angélique Arnauld, a "abadessa-criança", filha de Antoine

Arnauld, advogado do Parlamento de Paris, no início de sua

conversão, ao cogitar procurar um convento mais austero, antes

72

de descobrir que sua verdadeira vocação era reformar Port-Royal,

afastou a possibilidade de escolher o Carmelo. Entre outras

razões, julgara ser este bem-visto demais na Corte e contar com

um número excessivo de religiosas da mais alta nobreza. (Cognet,

1950: 81).

Ainda no século XVII, em 1674, Louise-Françoise de la

Baume le Blanc, duquesa de La Vallière, abandonada por Luis

XIV, refugiou-se no Carmelo parisiense da Encarnação, rue Saint

Jacques, sob o nome de Louise de la Miséricorde. Escreveu

Réflexions sur la miséricorde de Dieu e, segundo as crônicas, viveu

uma vida exemplar.

No século XVIII, de maneira menos romanesca, Madame

Louise de France, filha de Luis XV e de Maria Leczinska, fez-se

carmelita no Carmelo de Saint-Denis. Inúmeros casos seguem o

seguinte esquema: ao ficar viúva, Madame X entrou no Carmelo,

onde levou uma vida edificante.

Há muito o que se dizer sobre a importância sócio-

econômica, política e sentimental dos conventos na França e

alhures. De modo geral, em um certo imaginário, os aspectos

sócio-econômicos foram minimizados e o sentimental

exacerbado, encontrando no roman noir sua forma privilegiada de

expressão. É importante observar que este gênero literário,

caracterizado pela hipérbole, que explora o sentimentalismo dos

73

leitores, abusando de um vocabulário onde predominam palavras

como mártir, sacrifício, renúncia, pecado, regeneração, condenação, luz e

trevas, conheceu seu apogeu entre 1780 e 1790, na França e na

Inglaterra, e era lido por um grande número de leitores.

O tema da religiosa a contragosto, assim como o da mulher

desiludida com o amor que se refugia num convento, revela-se

recorrente na literatura. Bastaria citar Mélanie ou la religieuse de la

Harpe (1770), drama inspirado no suicídio de uma jovem religiosa

ou La victime cloîtrée de Boutet de Monvel (1792, atenção à data) e

o célebre La Religieuse de Diderot (1796) com o qual Bernanos

evidentemente dialoga, sem esquecer On ne badine pas avec l’amour

de Alfred de Musset (1834), sempre representado com sucesso e

Port-Royal de Montherlant (1954).

A figura da religiosa atrairia talvez por dois motivos: trata-

se da virgem, santa, meiga, compassiva, da esposa de Cristo.

Desejá-la, seria provocar os céus; seduzí-la, um sacrilégio. A outra

explicação seria a fantasia masculina de encontrar a mulher-irmã.

Baudelaire, ao cantar a mulher amada, chamava-a freqüentemente

"ma soeur" (Baudelaire, 1917: 195). Tratar-se-ia da necessidade que

o homem tem de bondade, de ternura e de cumplicidade. A

irmã, soror, não é o simples feminino de irmão, frater; aqui existe

um componente a mais, de compaixão e de simpatia (no sentido

etimológico de sym + pathia: sofrer junto). Roland Barthes

74

qualifica esta forma de amor, cuja versão institucional seria o

casamento, como uma utopia “L'amour sororal... une utopie, un

lointain très ancien ou très futur" (Barthes, 1963: 17), utopia

recorrente nos que consideram a ternura uma qualidade

exclusivamente feminina.

De modo geral, a religiosa que exerce fascínio é a

contemplativa, a enclausurada. A monja velada significa o

interdito e por essa razão atrai as fantasias masculinas que lhe

atribuem beleza, juventude e fragilidade, personificando a vítima

indefesa. Bernanos ironiza esse cliché, vulgarizado por Diderot,

ao mostrar uma religiosa muito idosa, em vez da jovem

seqüestrada que os revolucionários esperavam encontrar, durante

a busca ordenada pelo Comité Revolucionário (DC: 1637).

Entretanto, as religiosas que exercem uma atividade

apostólica e que podem ser olhadas seriam consideradas seres

assexuados e designadas indistintamente como irmãs de caridade.

Prevalece a qualificação caridosa, eliminando outras possíveis

adjetivações. E não é por acaso que os franceses englobam todas

as religiosas apostólicas com a designação: Les bonnes soeurs, que

corresponde a Les bonnes femmes, expressões ligeiramente

pejorativas.

Os conventos representaram um papel muito importante

na França, durante o Antigo Regime, podendo ser um refúgio

75

para as viúvas, as mulheres muito pobres ou muito feias, uma

espécie de colégio interno onde as jovens aristocratas adquiriam

alguns conhecimentos e esperavam o casamento, ou mesmo um

lugar onde se procurava viver um ideal de perfeição, através da

renúncia e da oração.

No caso especfíco do Carmelo de Compiègne, há laços

que sempre o ligaram à família real. Ana d’Áustria, Luis XIV, o

Duque de Orléans, Madame de Maintenon, Maria Leczinska,

Luis XV e mesmo Maria- Antonieta e Luis XVI, cultivaram

grande amizade e admiração pelas filhas de Santa Teresa. Maria

Leczinska talvez tenha sido a que mais próxima esteve do

Carmelo. Profundamente católica, buscava, sempre que podia,

refúgio no Carmelo.

As crônicas carmelitanas relatam até que ponto as

religiosas eram observantes da Regra. A rainha Maria Leczinska

resolveu, um dia, dormir no Carmelo, por motivos pessoais.

Quando a Priora, que não tinha sido consultada, tomou

conhecimento do fato, forçou, delicadamente, a rainha a voltar

para o palácio, pois a Regra não permitia que mulheres casadas

dormissem no convento.

Estas relações entre o Carmelo e a nobreza, com o Antigo

Regime, mais do que evidentes e em nenhum momento

76

renegadas, constituíram um dos motivos da condenação da

comunidade de Compiègne em 1794.

Feitas estas considerações referentes ao intertexto:

Revolução Francesa, cidade de Compiègne, Ordem do Carmelo e

o Convento do Carmelo, analisarei o texto propriamente dito, ao

propor uma leitura de Dialogues de Georges Bernanos.

77

O TEXTO

J'ignore pour Qui j'écris, mais je sais pourquoi j'écris. J'écris pour me justifier. - Aux yeux de qui? - Je vous l'ai déjà dit, je brave le ridicule de vous le redire. Aux yeux de l'enfant que je fus.

Bernanos

Dialogues des Carmélites, espécie de testamento espiritual de

Bernanos, representa o termo de uma evolução política, literária e

espiritual. No dizer de Monique Gosselin, esta obra sintetiza toda

a experiência humana e espiritual de Bernanos, elucidada e

transfigurada pela escritura.

A epígrafe de Dialogues é uma citação de La joie:

En un sens, voyez-vous, la Peur est tout de même la fille de Dieu, rachetée la nuit du Vendredi-Saint. Elle n'est pas belle à voir - non - tantôt raillée, tantôt maudite, renoncée par tous... Et cependant, ne vous y trompez pas: elle est au chevet de chaque agonie, elle intercède pour l'homme (OR: 675).

O medo superado e resgatado, a reversão de valores, temas

centrais em La joie (1929) e em Dialogues (1947-48), textos

separados por quase vinte anos, revelam a unidade da obra

bernanosiana.

Importa reiterar que qualquer estudo que se faça da peça

deve considerar o fato de Bernanos tê-la escrito sob a forma de

diálogos para um filme a ser realizado. O escritor cronometrava

78

as cenas e privilegiava as imagens. Como observa Michael

Kohlhauer, o apelo visual, o olhar do escritor, caracteriza a obra

bernanosiana em geral. Bernanos escreve como alguns filmam: o

mais perto possível do olhar.

Olhar é uma ação voluntária e significa dirigir o olhar para

ver melhor. Ver significa uma percepção pela visão, que pode ser

involuntária.

Pierrette Renard ao analisar Les grands cimetières sous la lune

assinala o emprego recorrente do verbo voir. E Bernanos

confessa: “Oui, certes, il m’a été donné de voir des choses curieuses,

étranges" (EEC I: 419), antes de relatar um acontecimento

revoltante, do qual se inteirara quase a contragosto. E comenta os

massacres presenciados atestando sua veracidade, com o

argumento: eu vi. "J’ ai vu, j’ ai vu de mes yeux, j’ ai vu moi qui vous

parle, j’ ai vu un petit peuple chrétien [...] s’ endurcir tout à coup, j’ ai vu s’

endurcir ces visages" (EEC I: 468). Quando deseja enfatizar a

atenção, o propósito, Bernanos emprega o verbo olhar: “Il est dur

de regarder s’avilir sous ses yeux ce qu’on est né pour aimer” (EEC I: 438).

Toda a obra de Bernanos pode ser lida sob o signo do

olhar, de Sous le soleil de Satan a Dialogues des carmélites.

79

Prefigurações

O Prólogo de Dialogues des Carmélites

Ao escrever os diálogos para um filme baseado na novela

La dernière à l’échafaud, Bernanos reescreve tanto a História quanto

a ficção.

Os dois planos, histórico e ficcional, interligam-se. É difícil

separar, em uma primeira leitura, a história da ficção. Os Duques

de la Force, por exemplo, realmente existiram e pertenciam à

mais antiga nobreza da França. Gertrud von le Fort identifica-os

com o nome patronímico, com o significante la Force, mas

transforma os duques em marqueses. Bernanos mantém

inalterada a modificação feita pela romancista alemã.

Curiosamente, porém, os Duques de la Force eram os

senhores de Caumont, onde o pai de Mère Saint-Augustin seria

negociante de gado - "marchand de boeufs" - uma criação de

Bernanos que será analisada.

Em toda a peça, nota-se a coexistência de elementos

históricos e ficcionais que Maria Teresa de Freitas, em Literatura e

história (1986), chama de "narrativa híbrida", meio de expressão da

visão trágica de Bernanos.

80

En 1774. Place Louis XV à Paris, le soir des fêtes données pour le mariage du Dauphin, futur Louis XVI, avec l’archiduchesse Marie-Antoinette. Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d’ordre. Dans l’un des carrosses, on aperçoit un jeune couple, le Marquis de la Force et sa femme, qui est enceinte. Le Marquis descend de voiture et s’ éloigne vers les tribunes. Bernanos- Dialogues – Prólogo

Paris, 1774. Especificar uma data, personagens e lugares

referindo-se a um acontecimento equivale a inserir-se na História.

E esta data não é anódina. Refere-se às festas oferecidas por

ocasião do casamento de Maria-Antonieta e do futuro Luís XVI.

Trata-se de um fato histórico verificável.

Ao introduzir uma data, Bernanos procuraria dar um

estatuto histórico ao seu texto? Ou seria uma maneira de alertar

o leitor / espectador para a prefiguração da Revolução que esta

cena constitui?

O primeiro quadro apresentado é de alegria e de festas. Nas

comemorações do casamento do Delfim, futuro Luís XVI,

enfatiza-se a função - príncipe herdeiro - enquanto sua

identidade, colocada como um aposto, indica uma previsão a ser

realizada. O contraste evidencia-se com a apresentação da futura

rainha - a arquiduquesa Maria--Antonieta, designada por seu

nome próprio. O leitor, conhecedor dos fatos históricos, pode

81

deduzir um indício de um dos grandes processos da História: a

importância do papel representado por Maria Antonieta e seu

destino trágico, contraposto ao do futuro Luís XVI, cuja função -

ser rei - foi mais importante do que sua personalidade. Embora

suas contradições, teimosia, hesitações e fraquezas tenham

apressado o fim da monarquia na França, Luís XVI é visto, por

inúmeros historiadores, como o rei, vítima dos nobres e,

principalmente, daquela que é julgada ora "La pauvre Marie-

Antoinette" ora o castigo infligido por Deus à França.

Mas na festa de seu casamento com o herdeiro do trono

francês, Maria Antonieta, filha da imperatriz Maria-Teresa da

Áustria, era festejada com entusiasmo.

No prólogo, o primeiro quadro é de alegria e festa,

movimentação harmoniosa e policiada. "Les carrosses des aristocrates

passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d'ordre".

As carruagens, fechadas, metonímia de casas, protegem os

aristocratas e permitem que eles possam atravessar "au milieu", no

meio, a multidão sem entrar em contato com o povo. Os nobres

passam, não se detêm. Este movimento e a carruagem agridem a

massa popular que alegre e inconsciente libera a alegria permitida

e policiada pelo serviço de segurança.

O Marquês de la Force e sua mulher, que está grávida,

permanecem, como os outros nobres, dentro de sua carruagem.

82

Eles possuem os valores positivos: nobreza, juventude, beleza e

fecundidade, esperados do casal real cujo casamento é festejado.

Uma ação provocará mudanças nos acontecimentos: "Le Marquis

descend de voiture et s' éloigne vers les tribunes". É noite, o que indica o

final de um ciclo.

O segundo quadro reverte o anterior:

Le feu d’artifice commence, mais soudain des caisses de fusées s’enflamment et les explosions se succèdent. Quoi qu’il n’y ait aucun danger grave, la panique s’empare de la foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés. La jeune Marquise, effrayée, pousse le verrou de la portière. Le cocher fouette les chevaux qui s’emballent et se lancent dans une course folle. Brusque colère de la foule, on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats. (DC: 1567)

"Le feu d'artifice commence". Manifestação luminosa, o fogo

apresenta-se qualificado como sendo de "artifício", indica o

artifício da festa, sua precariedade e alude ao brilho e desperdício

das festas da nobreza, assim como à superficialidade, à

supremacia do parecer, características de uma classe social em

decadência.

Segundo Durand e Bachelard, o fogo, símbolo rico, de

significações complexas e opostas, apresenta duas direções ou

duas constelações psíquicas, dependendo da maneira como é obtido:

por percussão ou por atrito. No primeiro caso, ele está ligado ao

83

relâmpago e à flecha, possui valor de purificação e de iluminação

e opõe-se ao fogo sexual, obtido por fricção.

O fogo, conforme observou Elias Canetti, em Masse et

puissance, é o mais poderoso símbolo da massa, da multidão.

Múltiplo e destruidor, o fogo é insaciável, podendo surgir rápida e

inesperadamente de qualquer lugar. O fogo atua como se fora um

ser vivo e como tal deve ser tratado (Canetti, 1966: 78-83).

O prólogo da peça teatral em estudo ilustra a ação do fogo

sobre a multidão e sua identificação constitui a prova irrefutável

da estreita ligação que existe entre a massa e o fogo.

Em um primeiro momento, o fogo participou dos festejos

e atuou de modo lúdico. Mas o percurso previsto interrompe-se.

"Soudain des caisses de fusées s'enflamment et les explosions se succèdent" -

Repentinamente (soudain), o fogo aprisionado nas caixas (caisses)

liberta-se e incendeia-se. Há explosões sucessivas. O fogo

imprevisível propaga-se.

"Quoique n' y ait aucun danger grave, la panique s' empare de la

foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés". O

pânico, injustificado, apodera-se da multidão. No espaço

destinado às comemorações de júbilo, um quadro de terror

instala-se: "bousculade", empurrão, o contato físico negativo, "cris de

peur", gritos de medo, "des gens tombent à terre et sont piétinés". A

multidão é pisoteada, pisada pelos cavalos das carruagens.

84

Nestes dois quadros, prefigura-se a tragédia que se

desenrolará. Os elementos essenciais aí se encontram. Situação

inicial: alegria, festa e fogos de artifício mas também latência de

possibilidade de excessos indicada pela ação limitadora de um

poder coercitivo. Reversão da situação: à explosão dos foguetes de

artifício corresponde o pânico generalizado: agressões, ameaças,

pisoteamentos.

Ao ser agredida, a multidão reage: "Brusque colère de la foule,

on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats" (grifo meu).

A carruagem dos nobres significa uma proteção e seria o

equivalente a uma casa. Quebrar um vidro significa abolir uma

separação, violar um espaço interdito e tornar vulneráveis os seus

ocupantes.

O vidro protege e permite que as elites possam olhar e

serem olhadas, à distância, sem qualquer contato. Mas o vidro

pode também isolar e enfraquecer. Há um desequilíbrio entre ver,

sentido ativo, e ser visto, sofrer uma ação. Aquele que é visto

torna-se objeto e não sujeito da ação.

Esse tema revela-se recorrente na literatura francesa.

Examinarei dois exemplos paradigmáticos:

Flaubert, em 1857, mostra Emma Bovary dançando no

salão de baile do marquês d’ Andervilliers, no castelo de

85

Vaubyessard e sendo vista pelos camponeses que se comprimiam

diante da janela envidraçada.

Une domestique monta sur une chaise et cassa deux vitres; au bruit des éclats de verre, madame Bovary tourna la tête et aperçut dans le jardin, contre les carreaux, des faces de paysans qui regardaient. Alors le souvenir des Bertaux lui arriva. [...] elle se revit elle-même, comme autrefois... (Flaubert, 1972:61) (grifos meus)

A presença dos significantes vidros, barulho de vidros quebrados,

e a ação de olhar e ser olhada justificam a aproximação do texto

citado com o prólogo de Dialogues. Um exemplo análogo ao texto

de Flaubert é encontrado em Proust. Em 1918, de maneira mais

incisiva, o autor de À la recherche du temps perdu denuncia a

oposição pobreza/ riqueza ao enfocar os humildes admirando os

ricos que jantavam em um grande "aquário", separados pela

barreira do vidro:

Une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger. (Proust, 1954: 681)

Proust formula a indagação : um dia, os pobres, que

observam, avidamente, não quebrarão o aquário para comer os

peixes - os ricos - que estão protegidos pelo vidro? Remete a uma

revolução social hipotética ou talvez à Revolução Russa. Poderia

86

referir-se também à Revolução Francesa, de certa maneira

malograda, visto que a igualdade não foi alcançada, o vidro

persiste como barreira.

As paredes de vidro podem isolar não apenas os indivíduos,

mas os grupos e classes sociais. O vidro seria o sinal sensível dos

preconceitos, da intolerância e da insensibilidade dos homens.

O vidro provoca a indignação e parece mais destrutível; a

madeira da porta fechada de uma casa excita a imaginação. A

carruagem atrai, duplamente, a fantasia e a cólera da multidão,

por conter vidro e madeira, por parecer uma unidade fechada que

se crê inviolável.

Em Dialogues, após o confronto entre o povo e os soldados,

a ordem é restabelecida. Ressoara, porém, proferida por uma voz

de homem, uma ameaça que repercute também como uma

maldição: "Tout va changer bientôt, c'est vous autres qui serez massacrés, et

nous roulerons dans vos carrosses!" (grifo meu). Importa destacar

que a superioridade social é representada por um objeto - a

carruagem, símbolo do poder de uma classe favorecida, na

expressão "rouler carrosse".

O texto indica que a violência premeditada contra a

Marquise de la Force não foi executada. E o prólogo termina. A

seguir, uma indicação cênica informa o nascimento de uma

menina e a morte de sua mãe, a Marquesa de la Force. A

87

referência à Revolução que eclodirá bientôt é feita através do

silêncio.

Se uma vidraça, uma porta fechada, uma carruagem,

alimentam ódios e fantasias, um convento de freiras

enclausuradas constitui alvo ainda mais fácil para o rancor, pois

pertence ao domínio do interdito, do proibido.

O Carmelo, uma espécie de "bastilha" na imaginação

popular, atrairá o desejo de desvelar mistérios inexistentes, de

demolir muros que separam, mais na imaginação do que na

realidade

O prólogo prepara e prefigura a grande reversão social que

se anuncia. A cena do mundo é o momento em que o Antigo

Regime desmorona e instala-se uma nova era, conseqüência da

Revolução Francesa.

O Carmelo será invadido pelos revolucionários. Porém,

antes de ser ocupado, materialmente, sofrerá mudanças,

intensificadas pela presença de Blanche de la Force, nascida após

a sublevação popular tratada no prólogo. Estas mudanças se

fazem sentir, através de conflitos de valores, que se refletem na

eleição de uma superiora burguesa, para um cargo

tradicionalmente exercido pela nobreza.

88

Mudanças

En d’autres temps, personne n’eut songé à Madame Lidoine, mais il y a maintenant de nos soeurs pour dire que Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la municipalité, parce que son père était marchand de boeufs à Caumont.

Bernanos

Bernanos consagra a primeira cena do terceiro quadro às

conjecturas em torno da eleição da nova Priora, da qual duas

religiosas, Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis estão

excluídas, por serem apenas noviças.

Poderia, à primeira vista, parecer anacrônico falar em

eleições diretas no século XVIII. Nas Congregações apostólicas,

comumente chamadas ativas, as eleições são indiretas. Os

conventos não são autônomos: a superiora local é nomeada pela

superiora geral, eleita pelas delegadas, representantes das

diferentes comunidades religiosas. Quando a Congregação se

distribui pelo mundo inteiro, a superiora geral nomeia superioras

provinciais que escolhem as superioras locais.

Entretanto, desde a origem monástica, estruturada por

São Bento, por volta de 530, as Ordens religiosas elegem

diretamente seus superiores, supervisionados pelo bispo da

diocese, em escrutínio secreto. A eleição não pode ser

considerada universal, porque as religiosas que ainda não

89

proferiram os votos perpétuos e as noviças dela são excluídas,

como o texto o confirma.

No ano de 1789, morrera a Priora, a aristocrática Madame

de Croissy. Noutros tempos, a nova superiora seria Marie de

l’Incarnation, uma nobre de sangue e de espírito. Entretanto, as

religiosas passam a cogitar no nome de uma burguesa, uma

plebéia, considerando as mudanças sociais, as rupturas definitivas

e sobretudo as ameaças que se fazem pressentir.

O contraste entre o outrora e o agora evidencia-se.

Contrariamente ao previsível, o curso de História mudou, os

valores políticos e sociais inverteram-se e Mère Saint-Augustin

representa uma possibilidade de entendimento com a

municipalidade, tendo em vista sua origem plebéia.

Todo um passado de preconceitos e de ligações

aristocráticas está contido nesta constatação. Antes da Revolução

de 1789, nem mesmo se cogitaria a hipótese de eleger como

Priora, em um Carmelo francês, uma plebéia, filha de um

negociante, de um "marchand de boeufs à Caumont".

A expressão marchand de boeufs - vendedor de gado, revela-

se extremamente rica em sentidos. O boi simboliza a burguesia

que trabalha e contrasta com a nobreza ociosa.

O comerciante está sempre trabalhando: pesa, discute,

compra e vende com lucro. Ele não produz. Está sempre em

90

movimento e constitui um elo entre as diferentes classes sociais.

O fato de ser negociante de gado representa uma dupla inserção

espacial: por ser negociante está ligado à cidade e à estrada, às

mudanças rápidas, à ação. Vender gado representa também uma

ligação com a terra, com os valores estáveis, com o tempo, com o

ser.

Na Europa, a origem do comerciante, negociante (le

marchand), segundo os estudos de Régine Pernoud, em Histoire de

bourgeoisie en France (1962), está situada entre o século X e XI e

coincide com o renascimento do comércio. A aparição do

negociante é o índice da retomada de atividade em todos os

domínios e acompanha-se, se é que não o precede, de um

recomeço da circulação. Em todos os caminhos, principalmente

os freqüentados pelos peregrinos, encontrar-se-á o vendedor.

Aqueles que se recusam a lavrar a terra podem, de agora em

diante, procurar alhures a subsistência, mudar de condição social

e encontrar em suas andanças a fortuna que não teriam podido

constituir nos domínios paternos. Freqüentemente, o fluxo dos

peregrinos os atrai. Espertos, os vendedores compreenderam que

a multidão de fiéis reunidos para as cerimônias religiosas

representava também uma clientela certa.

E estes negociantes também vão construir, porque

necessitam de entrepostos para a mercadoria e precisam, durante

91

o inverno rigoroso, morar em algum lugar. A origem de muitas

cidades francesas, como Lille, está ligada à atividade comercial. E

em um mundo dominado, até então, por nobres ou camponeses,

a cidade será o feudo deste homem novo que se chamará: o

burguês. A cidade nasceu da estrada (Pernoud, R. 1962:120).

Em Dialogues, a expressão "marchand de boeufs" é pura criação

de Bernanos e, localizá-lo em Caumont, seria, talvez, uma

referência implícita a Pas-de Calais e aos burgueses imortalizados

em uma escultura por Rodin.

Gertrud von le Fort, em La Dernière à l’ échafaud, não faz

alusão à classe social de Madame Lidoine, suas origens, sua

família. E o documento histórico também não justifica a criação

de Bernanos, extremamente importante.

O padre Bruno de Jésus-Marie afirma, em Le sang du Carmel,

que Madame Lidoine era filha de um modesto funcionário do

Observatório, que lhe proporcionou uma boa educação, mas não

podia dar-lhe o dote exigido pelo convento, o que foi feito por

Maria Antonieta, a pedido de Madame Louise de France, filha de

Luis XV.

O problema do dote merece algumas explicações. O dote

era um costume aceito e em nenhum momento questionado pela

sociedade da época. Tratava-se de uma soma em dinheiro ou em

bens que a mulher levava para seu novo lar. Dificilmente ela

92

conseguiria casar-se sem dote. Seria tão fora dos costumes que

Molière apresenta esta possibilidade como um fato cômico.

Quem não se lembra do célebre "sans dot" de Harpagon,

considerado um argumento irresistível? Havia raras exceções,

quando alguém se apaixonava por uma beldade pobre... Mas a

Doxa atesta a inconveniência de tal proceder: “Quand on ne prend en

dot que la seule beauté, le remords est bien près de la solennité”.

A História e a Literatura registram o problema enfrentado

pelos pais ou tutores para concederem um dote conveniente a

suas filhas ou tuteladas. Quanto maior o dote, mais vantajoso

seria o casamento. Muitas vezes os pais praticamente se

arruinavam para casar bem suas filhas. E havia o caso de jovens

que eram obrigadas a entrar no convento, onde o dote exigido era

consideravelmente menor, mas existente. Hoje, esse costume foi

abolido, subsistindo apenas uma contribuição voluntária

ocasional.

O costume obrigatório de levar um dote para o casamento

perdurou depois da Revolução Francesa, no século XIX, como

ilustra Balzac em Le père Goriot (1834) e mesmo no século XX, se

bem que de maneira mais sofisticada e menos explícita, embora

Sartre refira-se explicitamente ao dote trazido por Odette em

L’Âge de raison.

93

Estas considerações explicam a importância do donativo

feito por Maria Antonieta à futura Mère Marie de Saint Augustin.

Ter um dote facilitou sua entrada no Carmelo. Caso contrário, ela

teria sido talvez admitida como simples irmã coadjutora

(encarregada dos serviços domésticos), o que a impossibilitaria de

ser eleita Priora, mesmo em situações não previstas e

perturbadoras, como a França em revolução.

“Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu”.

“Faire la part du feu” significa renunciar ao que não se pode salvar

para preservar o que pode ser salvo. No conflito com o poder

temporal, há que se fazer maleável, saber fazer concessões no que

é acidental.

O fogo, observa Elias Canetti, representa a massa humana,

a multidão e, por constituir o seu mais poderoso símbolo, teria

direito, de fato, à sua parte. Para salvar o essencial, mister se faz

abrir mão do que não pode ser salvo. Mère Saint-Augustin está

disposta a fazer concessões, a dar a Cesar o que é de Cesar, com

uma única condição: que seja concedido, às religiosas, viver a

vocação carmelitana com dignidade, liberdade e honra. E

exprime-se sem ambigüidade: “Comptez donc bien que rien ne me

coûtera pour obtenir qu’on nous laisse vivre ici, selon notre vocation, dût le

reste du monde s’ embraser” (DC: 1627).

94

Na rede textual, o signifiante feu faz ressoar o prólogo com

suas seqüências: o fogo de artifício da festa da realeza que se

inflama e explode.

É preciso notar também que ao cogitar, para o cargo de

Priora, no nome de Mère Saint-Augustin, caracterizada,

diretamente, como aquela que faz "la part du feu", as religiosas

também estão optando por uma atitude conciliadora. O texto é

explícito: "Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la

municipalité". O Carmelo representava uma espécie de Bastilha

sitiada e não foi preservado pela Revolução em curso. Destruí-lo,

seria concretizar as mudanças: “Oui, cette maison est une bastille, et

nous détruirons ce repaire” (DC: 1642), dizem os revolucionários.

As transformações da linguagem precederam as mudanças

sociais e políticas ou as provocaram. A violência da linguagem

revolucionária revela-se no emprego do significante repaire, antro,

covil de animais ferozes e repugnantes e traduz a representação

que o povo fazia dos conventos: antros de despotismo, de

superstição e de mentira (DC: 1642). Ao anúncio da destruição

sucedem-se as seguintes etapas: ocupação do espaço físico através

dos sons revolucionários, de atos de vandalismo e finalmente a

dessacralização de um lugar considerado inviolável.

95

A profanação

On entend chanter la Carmagnole sous les murs du couvent; et les commissaires, suivis de la foule qui continue à chanter, font irruption dans l’enceinte. Ils enfoncent la porte de clôture. Précédés d’une Soeur sonnant la clochette, ils envahissent la sacristie.

Bernanos

A Revolução invade, primeiramente, o Carmelo, através de

uma sonoridade profana: ruídos, desfiles, vozes e barulhos

amedrontadores e pelas estrofes provocantes das canções

revolucionárias, La Carmagnole e Ça ira, escutadas a contragosto.

O ritmo alegre, em contrate com as palavras ameaçadoras,

contribuía para tornar mais brutal a oposição entre a paisagem

sonora revolucionária e a existente no Carmelo.

A noção de paisagem sonora, empregada por Murray Schafer

em O ouvido pensante (1970), subverte o universo sonoro,

englobando em um novo olhar os ruídos, as canções, os silêncios

aparentes, os gritos, os sons da natureza. Escolhi esta abordagem

por julgá-la mais adequada ao presente estudo. A paisagem

sonora violadora agita, provoca medo e mesmo pânico e

contrasta com a do convento. Há que se fazer distinção entre o

silêncio-ausência, que só existe teoricamente, e o silêncio-paz, a

“música callada, la soledad sonora” de que fala São João da Cruz,

96

densa e plena, introspectiva e que se executa em um outro

registro.

No Carmelo a paisagem sonora compõe-se não só de

silêncio- paz, mas também de orações em voz alta, diálogos e

conversas informais em alegres recreios. Mas, tudo transcorre de

modo previsto, obedecendo a uma rotina, regulada pelo som dos

sinos. O grande sino chama para a oração, marca o início do

grande silêncio e ordena o despertar. Um sininho - “clochette” -

pode indicar o início e o fim de atividades rotineiras como

levantar-se, sentar-se, ajoelhar-se, entre outras. Pode também

servir de aviso discreto de que algo de inusitado está

acontecendo. Os sinos desempenham papel importante em todas

as religiões e têm como função primordial convocar para o

momento presente, para o agora.

Os cantos revolucionários que incitam à violência

contrapõem-se a esta paisagem sonora. Em várias indicações

cênicas de Dialogues, as duas canções La Carmagnole e Ça ira são

citadas, sempre provocando angústia e medo.

La Carmagnole foi um dos cantos mais difundidos da

Revolução. A origem da melodia é controvertida, porém todos

concordam que a letra foi composta logo após a prisão de Luís

XVI e de sua família no Templo. A canção evoca com precisão

os acontecimentos de 1792. Dançado e cantado nas mais variadas

97

ocasiões, tornou-se um dos acompanhamentos habituais das

execuções pela guilhotina.

Trata-se de uma canção de treze estrofes e um refrão. Há

algumas variações e paródias. Cito, apenas, duas estrofes e o

refrão, julgando-os suficientes para o estudo que desenvolvo.

Madame Veto avait promis (bis) De faire égorger tout Paris. (bis) Mais le coup a manqué Grâce à nos canonniers Dansons la Carmagnole, Vive le son,vive le son, Refrain Dansons la Carmagnole, Vive le son du canon! Monsieur Veto avait promis D’être fidèle à son pays. Mais il y a manqué Ne faisons plus d’quartier. Sabe-se que Luis XVI, apelidado de "Monsieur Veto",

usando o direito de vetar de que ainda dispunha, proibiu o

decreto contra os padres refratários e opôs-se à permanência do

acampamento dos federados em Paris. Apesar da manifestação

do povo que invadiu as Tulherias, Luis XVI manteve a interdição.

Maria-Antonieta, considerada a inspiradora das proibições, era

cognominada de "Madame Veto". O canto arrebatador e violento

98

denuncia a traição do rei e faz o elogio da força, exaltando o som

dos canhões.

A canção Ça ira também foi uma das mais populares do

período revolucionário. Composta por volta de 1786 intitulava-se

Le Carillon National. Maria-Antonieta tocava esta música, sem

imaginar que seus últimos momentos seriam ritmados por esta

canção tornada ameaçadora. A letra original foi substituída, em

1790, por uma estrofe que refletia o otimismo revolucionário

(“...le bon temps reviendra... tout trouble s’ apaisera”) para finalmente

transformar-se no célebre refrão:

Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates à la lanterne Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates on les pendra. Si on n’les pend pas On les rompra. Si on n’les rompt pas On les brûl’ra. Ah! Ça ira, ça ira, ça ira...

Nesta canção: os significantes pendre - enforcar, rompre -

despedaçar e brûler - queimar, exprimem o ódio aos aristocratas,

aos quais se desejava a tortura, a degradação e a ignomínia. No

Antigo Regime, enforcavam-se os plebeus, porém os nobres

eram fuzilados. A guilhotina democratizaria as execuções, não

99

mais fazendo diferença entre nobres e plebeus. Mas o que o povo

cantava, na sua revanche, era o desejo de infligir uma morte

infamante aos antigos senhores.

A multidão invisível, mas não menos ameaçadora, se faz

presente através dos sons que invadem a clausura e violam o

espaço sagrado, antes que a profanação se concretize. A pilhagem

da sacristia é ritmada pelas violentas estrofes de La Carmagnole.

A este canto as religiosas opõem o som de um sininho. As

canções perturbadoras, os barulhos da multidão, sempre

inesperados, provocam, em um primeiro momento, grande

agitação nas religiosas: “Le premier mouvement des religieuses est de

courir ça et là dans le petit jardin” (DC:1678). Trata-se de uma reação

natural de medo, diante de uma ameaça que não se vê, mas se

escuta. Mas, logo em seguida há uma mudança de registro. As

religiosas se acalmam e rezam diante da estátua da Virgem. O

medo foi superado pela ação da graça.

A Revolução penetrou no Carmelo, não somente através

das canções e dos barulhos e ruídos. Os problemas sociais aí se

fazem sentir. A própria negação: “Il n’ y a point chez nous de

bourgeoises ou d’ aristocrates” (DC: 1621) revela um vocabulário

contaminado pela nova ideologia.

A nobreza começou a ser chamada de aristocracia por volta

de 1789, em uma acepção pejorativa, reveladora de um conflito

100

social inevitável. Embora o significante aristocrata, proveniente

do grego aristos, signifique o melhor, era empregado, nos

panfletos difundidos depois da queda da Bastilha, para designar

os insensatos nobres que pretendem possuir bens, privilégios,

altos postos, honrarias e dignidades sem o mínimo de trabalho

(Martin, 1990: 64).

Se a religiosa repreendida afirma ter querido dizer

simplesmente que todas eram irmãs, o que foi dito, já não pode

ser anulado. E a Priora constata com sabedoria e uma certa

ironia: “Voilà dix minutes que nous vous laissons un peu la bride sur le col

et vous en êtes déjà, Dieu me pardonne, à tenir séance entre vous, comme ces

Messieurs du Parlement” (DC: 1626).

O emprego da expressão "laisser la bride sur le col" deve ser

entendida no contexto da obediência cega exigida pela Ordem do

Carmelo. Ela significa permitir a alguém toda liberdade possível,

entregá-lo a si mesmo, como quando não se usa o freio para um

animal de montaria. Há uma alusão implícita a "cavalo domado".

O homem necessitaria de freios para controlar seus instintos e a

obediência religiosa exerceria tal função. A observação feita pela

Priora revela pessimismo em relação à natureza humana: livres,

durante dez minutos, as religiosas discutem e agem como se

estivessem no Parlamento. A referência ao Parlamento, lugar

onde todos os representantes do povo podem exprimir,

101

livremente, sua opinião, possui conotação negativa e precisa ser

entendida no contexto histórico da época. Em 17 de junho de

1789, instalou-se a Assembléia Nacional e a França passou a ser

regida por um regime parlamentar. Na opinião das religiosas,

católicas e monarquistas, a instituição parlamentar soa como

sinônimo de desordem, desrespeito à hierarquia, demagogia.

O Carmelo, onde vivem as religiosas, exiladas do mundo

por vontade própria, não constitui uma ilha isolada, inatingível.

“Dirait-on pas que l’ esprit du siècle pénètre partout, jusqu’à travers les

murailles du Carmel” (DC: 1621) constata a Priora ao ouvir as

discussões das religiosas. E por "siècle" compreende-se, na

linguagem religiosa, a vida do mundo, cujos valores são mutáveis,

em oposição à vida espiritual, de valores imutáveis e atemporais.

Nesse espaço, diferentes discursos existentes na época circulam,

entrelaçam-se e confrontam-se de modo violento e dissimulado,

na linguagem e através da linguagem.

Estes discursos representam diferentes valores que se

opõem: o discurso da nobreza e o discurso que chamaria de

burguês. Os valores aristocráticos concentram-se nas

intransigências de um código de honra e os valores burgueses

caracterizam-se pelo equilíbrio, pela maleabilidade, mas

principalmente, por constituírem uma outra maneira de julgar,

uma outra visão do mundo.

102

Valores

O código aristocrático

[...] mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde.

Bernanos

Bernanos, ao escrever Dialogues, lembra conceitos de honra

e de coragem emblemáticos do século XVII, na França. Este

ideal, individualista, nobre, com laivos de paganismo e resquícios

do compromisso feudal, é uma herança intacta recebida do século

XVI.

Honra é uma exigência pessoal, mas se manifesta na

opinião do outro, na reputação desfrutada. Em si, não só

constitui uma virtude, como também um conjunto de qualidades,

variáveis no tempo e no espaço social. O rei podia distribuir

honrarias - des honneurs - mas não podia conceder nem retirar a

honra - l’honneur.

O conceito de honra está ligado, originalmente, à nobreza e

ao exercício do poder. Somente os nobres mereceriam confiança

em seus compromissos; era-lhes outorgado o porte de armas e a

honra era um de seus insolentes privilégios.

103

Em que consiste a honra do fidalgo, este sentimento de

dignidade própria que leva o indivíduo a procurar merecer e

manter a consideração geral de seus pares?

Os nobres obedeciam a um código de regras fixas, a certos

costumes imutáveis e julgavam que o fato de ser nobre

assegurava possuir todas as qualidades inerentes a sua classe

social: coragem, altivez, generosidade, fidelidade, etc.

Acreditavam tudo saber sem nada ter aprendido, e a força do

sangue da raça - Genos - garantia-lhes sucesso e perfeição em

todos os empreendimentos. Como observa Maria do Carmo

Pandolfo, “A linhagem reúne, verticalmente, no tempo, os membros de uma

mesma família, ligada pelo sangue e unificada como um só ser na noção de

Genos” (Pandolfo,1977: 88).

E a noção de família amplia-se, pelos laços de parentesco,

fazendo com que a nobreza se considere um grande clã. Fato

reconhecido pela velha Priora: “Sur une personne telle que Blanche de

la Force, et qui est un peu notre parente” (DC: 1599), aludindo aos

laços de sangue que entrelaçam os nobres.

Nesta acepção, a honra parece ser uma qualidade

especificamente masculina dependente de outros valores tais

como força, lealdade e coragem.

O grande teatro clássico francês constitui um hino ao herói

que possuiria todos os atributos específicos da fidalguia: grandeza

104

de alma, energia, audácia, força de vontade, intrepidez. Todas

estas qualidades estariam encarnadas em Rodrigue, personagem

principal de Le Cid de Pierre Corneille (1637), o herói completo

que consegue realizar em vida a conciliação do desejo e da honra

(Pandolfo: 1977: 101-102), quando Rodrigue, orgulhosamente,

exclama:

Je suis jeune,il est vrai; mais aux âmes bien nées La valeur n’attend pas le nombre des années (Le Cid: v. 405-6)

não exprimia senão a consciência de pertencer a uma classe

superior. Os nobres julgavam possuir um sangue mais puro e

formar uma espécie de casta. Exigiam seus privilégios com altivez

e intransigência e proclamavam superioridade e virtude.

A origem etimológica prevalece ao tratar-se da virtude do

herói, aquele que é forte e que se esforça por superar os próprios

limites.

O termo virtude, proveniente do latim virtus, significa força

viril, oriunda de vir, homem. No antigo francês, designava

bravura, força física, poder. A Chanson de Roland (1080) qualifica o

herói de vertueux, no sentido de valente, corajoso.

A nobreza, arrogante e intransigente quanto aos seus

direitos, deveria, entretanto, ser dotada de uma qualidade

essencial - a coragem - da qual decorreriam a honra e todos os

105

privilégios e prerrogativas que lhe eram outorgados. Ter sua

coragem proclamada constituía a mais alta qualificação a ser

obtida.

A honra, segundo o código da nobreza, é mais importante

do que a vida. Uma vida desonrada não teria nenhum sentido.

Esse conceito de honra sintetiza-se na interrogação de Rodrigue:

"Qui m’ose ôter l’honneur craint de m’ôter la vie?" (v.438).

No que se refere às mulheres, o sentido da palavra honra

difere do conceito de honra atribuído aos homens. A honra

feminina estava ligada à fidelidade e importava não somente à

mulher, mas também aos homens de sua família - pai, irmão,

marido - que dela seriam os guardiães.

A honra acha-se ligada ao sentimento de orgulho,

manifestado sob a forma de altivez e, freqüentemente, de

arrogância. Importa ressaltar que a altivez não era considerada

pelos nobres um defeito, e sim uma qualidade imprescindível.

E o que seria o orgulho? Esta tendência humana é quase

sempre apresentada de maneira negativa, embora não sejam claras

as razões dos critérios depreciativos que lhe são atribuídos. O

orgulho constitui um dos sete pecados capitais e merece uma

reflexão e uma breve revisão.

Os sete pecados capitais: orgulho, ira, gula, preguiça,

luxúria, inveja e avareza constituem tendências fundamentais do

106

homem e passaram a ser considerados pecados capitais somente a

partir do século XIII. Essas tendências fundamentais, quando são

exageradas, tornam-se pecados para a Igreja. Elas originam-se

numa desordem patológica individual, ou resultam de condições

de ordem sociológica e caracterizam-se pela desmedida, afirmou

Norma Tasca, em conferência sobre o orgulho, proferida no

Congresso de Semiótica, realizado em 1995 em Urbino (Itália).

O orgulho seria uma estima exagerada de si mesmo, logo, é

uma desmedida, e estaria ligado a uma hybris insultante. Ele

transgride o limite concedido a uma auto-estima legítima e a

sociedade moraliza este excesso, condenando-o.

A tradição judaico-cristã está baseada na humildade e na

submissão a Deus. E a transgressão, fruto do orgulho,

normalmente associada à desobediência de Eva e à revolta de

Lúcifer contra Deus, pode ser também encarada, sob o aspecto

de ignorar o outro e não respeitar os seus direitos. O orgulhoso

não conhece limites, porque não sabe quem é o outro e quem é

ele próprio. Volta-se para si mesmo, numa atitude ilegítima e

narcisista, que acarreta conflitos na ordem social existente.

O orgulho apresenta-se de variadas maneiras: vaidade,

altivez, vanglória, presunção e outros parassinônimos. De certo

modo, estas diferentes manifestações do orgulho são menos sutis

107

e mais superficiais do que a falsa humildade, espécie de orgulho

que muitas vezes se esconde atrás de uma aparente modéstia.

Em Dialogues, os valores aristocráticos, como o ideal de

uma casta ameaçada, podem ser sintetizados em um código de

honra e exprimem-se através de diferentes personagens: Blanche

de la Force, o Marquês de la Force, o Chevalier de la Force, a

antiga Priora, Madame de Croissy, Constance de Saint-Denis,

mas, sobretudo, por Mère Marie de l’Incarnation, a sub-Priora do

Carmelo.

Cada personagem profere seu discurso pessoal, entretanto,

todos apresentam um ponto em comum: constituem a expressão

de uma ideologia aristocrática, de uma casta social que se crê

superior, que acredita em suas prerrogativas e não se esquiva dos

deveres e das responsabilidades decorrentes de uma situação

privilegiada.

Emprego o termo discurso não só na acepção de texto ou de

manifestação verbal, mas também no sentido de “conjunto coerente

de conhecimentos partilhados, construído, a maior parte do tempo, de maneira

inconsciente pelos indivíduos de um grupo social.” (Charaudeau, 1982: 40

).

Esses fragmentos de discursos sociais, exprimindo valores,

presentes no texto de Bernanos, pressupõem uma

108

interdiscursividade e se apóiam nos saberes compartilhados

socialmente pelas personagens.

Há os que se identificam com o discurso de sua casta e,

verbalmente, o assumem. O que importa ressaltar é que as

personagens têm seus traços discursivos identificadores

acentuados pelo meio a que pertencem.

O código de honra da nobreza, em que predominam o

orgulho da raça e a altivez, as diversas manifestações dos valores

aristocráticos revelam-se nos discursos das personagens deste

grupo social, e, principalmente, em Marie de l’Incarnation,

protótipo desse imaginário.

Enfocarei, primeiramente, um grupo familiar: Blanche, o

velho Marquês, o Chevalier de la Force e, em seguida, o Carmelo,

espaço influenciado pela nobreza.

Blanche, filha do Marquês de la Force, consciente de sua

linhagem, decidiu tudo sacrificar para recuperar a honra de que se

acredita privada. Um dos argumentos, a seu ver muito

importante, é obrigar-se a conviver com religiosas que lhe seriam

inferiores pelo nascimento e pela educação. Avalia, inclusive, a

eventual hipótese de dever obediência a uma superiora de nível

social muito diferente do seu. Dispõe-se a “vivre parmi des compagnes

et sous l’autorité de supérieurs d’une naissance et d’une éducation souvent bien

inférieures” (DC: 1578). Acredita agir de boa fé ao pretender

109

negociar com Deus, mas seu pai denuncia o orgulho

inconsciente dessa atitude:

Ma fille, il y a dans votre résolution plus d’orgueil que vous ne pensez. Je ne passe certes pour dévot, mais j’ai toujours cru que les gens de notre état devaient en agir honnêtement avec Dieu.On ne quitte pas le monde par dépit... (DC: 1578).

Observe-se que, ao condenar o orgulho de um

despojamento aparente, o Marquês denuncia, implicitamente, o

mérito da troca burguesa e incorre em um orgulho de classe,

restringindo à nobreza o privilégio de uma relação honesta com

Deus. Como se apenas os nobres merecessem confiança, o que

seria um outro nome da honra.

A consciência dessa superioridade traduz-se, aqui, não pela

arrogância, mas pela condescendência, atitude aparentemente

positiva, que, no entanto, nega a existência do outro. Assim, o

velho Marquês por não vislumbrar um pretendente melhor,

aceitaria como genro, um nobre que outrora não seria

considerado um grande partido, visto que sua nobreza era

recente, pois datava apenas de três séculos (DC: 1572). E

também, por alguns instantes, sua memória o faz reviver a noite

trágica da explosão dos fogos de artifício, mas logo se controla e

tenta convencer-se de que a Revolução não começou e que “Le

peuple de Paris est bon diable et tout finit par des chansons” (DC: 1574).

110

O Chevalier de la Force, irmão de Blanche, é o protótipo

do nobre soldado a serviço do rei, em uma relação que

remontaria ao feudalismo. Lúcido e protetor em relação a

Blanche, não teme a morte e procura somente cumprir o dever.

Sem pretensões intelectuais, ele admite que, às vezes, é rude e que

fala como um soldado (DC:1630).

Os valores e o código de honra da nobreza também são

válidos no Carmelo, espaço de uma "transposição espiritual e eclesial

do mundo aristocrático" (Balthazar, 1956: 446) e microcosmo da

sociedade francesa da época.

O Carmelo pretende conciliar a busca da perfeição

evangélica e os valores sociais e morais de um passado que

desmorona.

A nobre Madame de Croissy reconhece que, mesmo em

um claustro, a mentalidade reinante não poderia deixar de ser

influenciada por “certaines habitudes de penser selon le siècle, que la vie

religieuse a bien pu discipliner, mais non pas tout à fait réduire” (DC:

1599).

Experiente e sábia, ela admite que as religiosas trazem para

o convento toda a sua cultura, compreendendo, entre outros, a

mentalidade e os preconceitos da classe social a que pertencem. A

vida religiosa pode atenuar tais exageros, mas não destruí-los

completamente.

111

Às vésperas da morte, a velha Priora alude ao próprio

conhecimento do coração humano: “Oh! Je sais ce que je dis”

(DC: 1599). Por essa razão, ela já advertira Blanche, de que não

lhe seria exigido esquecer sua grande nobreza e que também era

necessário vencer e não forçar a natureza. E forçar a natureza

seria querer o impossível, pretender que as religiosas, ao entrar

para o convento, fizessem tabula rasa dos valores inerentes a seu

meio social.

No Carmelo, onde todas as classes sociais estavam

representadas, com o predomínio da nobreza., refletiam-se, como

em uma espécie de prisma, as ideologias circulantes na França em

revolução.

A velha e aristocrática Madame de Croissy assume o

discurso de sua casta, com o qual se identifica. Da mesma forma,

a jovem Constance de Saint-Denis, revela uma perfeita adequação

ao código de honra e aos valores morais da nobreza. A alegria, a

irreverência de suas réplicas e afirmações não escondem a

realidade: Constance ignora as transformações que ocorrem a sua

volta e tudo enxerga sob o ângulo desses valores.

Desse modo, ao evocar os camponeses de sua região,

refere-se a eles como “nos bons villageois de Tilly” e afirma: "Ces

pauvres gens m’aimaient tous à la folie, parce que j’étais gaie..." (DC:1592)

o que faz ressoar La nouvelle Heloïse de Rousseau. O orgulho às

112

vezes ingênuo de Constance, leva-a a indagar sobre o paradeiro

dos franceses, dos bons franceses que deveriam proteger e

defender os padres perseguidos (DC: 102-103). Os preconceitos

sociais, o orgulho atávico e a conhecida ignorância da nobreza

revelam-se na interrogação: “Hé! Qu’avons-nous besoin des Grecs et des

Romains? Est-ce que nos Français ont des leçons à recevoir de personne?”

(DC:1624).

A personagem nobre, luminosa e quase perfeita de

Constance de Saint-Denis, historicamente filha de um agricultor,

revela inconseqüência e presunção, ao afirmar que São Pedro

renegara o Cristo porque não era nem francês nem nobre

(DC:1625).

A indicação cênica (régie) assinala que todas as religiosas

riem após ouvir essa declaração. Constance tenta, com habilidade,

remediar o que dissera, invocando um mal-entendido. Mas suas

palavras reiteraram os valores da nobreza que, em breve, revelar-

se- iam anacrônicos.

Demarcar, entretanto, as classes sociais, atribuindo-lhes um

discurso correspondente é não levar em conta a complexidade do

real. Cada um fala também a linguagem de sua família espiritual e

não apenas a de sua casta social. Como observou Proust, "... on

s’ exprime toujours comme les gens de sa classe mentale et non de sa caste d’

origine” ( Proust,19, 900).

113

A concepção moral é determinada não só pelo Genos, mas

também pelas afinidades intelectuais e morais que levam o

homem a escolher seus antepassados intelectuais, espirituais e

morais. E esta escolha nunca é aleatória.

Esta observação torna-se imprescindível em se tratando de

Mère Marie de l’ Incarnation que, com sua força de caráter, serve

de contraponto à fraqueza de Blanche de la Force e, em seu

desejo exaltado de martírio, opõe-se ao equilíbrio da nova Priora,

Madame Lidoine, em religião, Mère Marie de Saint-Augustin.

É importante aclarar que não é meu objetivo tentar,

sistematicamente, assinalar a "verdade histórica" e a ficção, só o

fazendo quando imprescindível, como a análise da personagem

Marie de l’Incarnation, que impõe uma pergunta preliminar: em

que medida se trata de uma personagem histórica ou fictícia?

Françoise-Geneviève Philippe, Madame Philippe, em

religião, Soeur Joséphine-Marie de l’Incarnation (1761-1836), filha

natural de Louis-François de Bourbon, Príncipe de Conti, relatou,

transcorridos mais de quarenta anos, o martírio das dezesseis

religiosas do Carmelo de Compiègne, ao qual pertencera.

A redação do manuscrito ocorreu em um outro contexto

político: a Revolução de 1830 colocara no trono Louis-Philippe

d’Orléans, filho de Philippe-Égalité, guilhotinado pelo Terror e

de quem Madame Philippe era prima irmã.

114

O fato não poderia deixar de impressionar o futuro Cardeal

Villecourt, que prefaciou e publicou o manuscrito, deixando-se

levar pela imaginação e pelos devidos respeito e deferência por

uma sobrevivente do martírio, idosa e bem nascida. O prefácio

forneceu subsídios para a construção de uma personagem

literária, ao conceder-lhe qualidades admiráveis, não

comprovadas historicamente.

Há um certo comedimento ao falar de Madame Philippe-

Soeur Marie de l’Incarnation. William Bush fala de sua "destinée

mystérieuse e si intrigante personnalité" (Bush, 1991: 10). E o Padre

Bruno de Jésus-Marie refere, além da documentação histórica,

estudos grafológicos, que não revelam nenhuma tendência para a

grandeza trágica que lhe é atribuída por Gertrud von le Fort e

reiterada por Bernanos e Poulenc.

Gertrud von le Fort modifica a personagem e faz-lhe o

panegírico em seu texto. Marie de l’Incarnation é sempre

apresentada com grandes elogios - "grande dama de sangue real,

grande carmelita, mulher admirável", impressionante, notável,

milagrosa, grande e digna religiosa, heróica e muitos outros

encômios (le Fort, 1938).

Francis Poulenc, em sua ópera, fá-la partilhar uma grandeur

terrifiante com Madame de Croissy e a nova Priora, no constante

115

oscilar entre luzes e escuridão, cumes e abismos (Coutance,

1994).

Terrível, parece ser a melhor caracterização da personagem,

fazendo ressoar o Cântico dos Cânticos: “Quem é esta, que avança como

a aurora quando se levanta [...] terrível como um exercito formado em

batalha?" (Cântico: 6,9 ).

Assim, uma personagem histórica tornou-se inteiramente

fictícia, caracterizada pela grandeza trágica.

Importa enfatizar que Marie de l’Incarnation, como

referido, era filha natural do Príncipe de Conti. Gertrud von le

Fort menciona o fato, omitido por Bernanos, embora este faça

referências às relações de família e de amizades que a ligavam à

nobreza.

Os filhos naturais não eram estigmatizados na corte

francesa. Louis XIV reconheceu e dignificou os seus bastardos.

Cito, entre outros exemplos, a legitimação dos dois filhos de

Louise, Duquesa de la Vallière, assim como a de todos os filhos

de Madame de Montespan, outra favorita.

Mas o fato de ser filha ilegítima modificaria, a meu ver, seu

posicionamento em relação ao código de honra da nobreza. Seu

lugar na sociedade não é algo que lhe é devido - seu quinhão e

seus direitos - mas o resultado de uma certa condescendência e

tolerância social.

116

As pesquisas não fazem referência ao nome da mãe de

Marie de l’Incarnation, sendo somente mencionado o nome do

pai, o Princípe de Conti, que lhe legara uma pensão. Isso

justificou a ida da religiosa à Paris para tratar da referida pensão.

Portanto, quando suas compenheiras foram encarceradas e

condenadas à guilhotina, ela não estava presente.

Em Dialogues, Bernanos apresenta Marie de l’Incarnation

com uma sobriedade clássica. Ela seria a mais digna de ser eleita

Priora. Tal constatação, feita por Blanche (DC: 1613) e por Mère

Lidoine (DC: 1665), não explicita as razões de sua superioridade.

Apenas uma vez lhe é atribuído o adjetivo admirável,

contrariamente a Gertrud von le Fort que o banaliza pela

repetição.

A personagem se caracteriza pelas ações e pela maneira de

ser: sua voz “basse et martelée où l’on sent toute la passion contenue”

(DC: 1663); a violência, às vezes, transparece: “Son visage trahit

violemment un premier mouvement, sans doute impossible à reprimer, de

mépris et de colère pour la lâcheté de Blanche” (DC: 1638). A paixão e a

violência manifestam-se em uma conduta firme e inflexível, sendo

reconhecidas inclusive por adversários, em um confronto que não

exclui certa admiração (DC: 1642).

117

Seu discurso revela-se com ímpeto contido. Emoções

controladas, mas não menos violentas que poderiam fazer ressoar

um “jardim fechado, fonte selada” (Cântico: 4,12).

A violência se esconde no despojamento, na obediência

voluntária, na linguagem polida e codificada, misteriosa e

diferente das religiosas. A paixão é linguagem e a linguagem

torna-se ação.

A personagem Marie de l’Incarnation apropria-se do

discurso masculino sobre a honra e lhe confere características

mundanas em desacordo com o espírito da honra cristã. É

preciso considerar que se trata de um discurso masculino, uma

vez que não era exigido das mulheres heroísmo e coragem. Das

mulheres, esperava-se dignidade e fidelidade. Conforme observa

Paul Bénichou, “as princesas disputavam a posse dos reis ou dos grandes

homens” (Bénichou, 1948: 27).

E Marie de l’Incarnation acredita ser a esposa de “Sa

Majesté”, designação corrente no Carmelo para designar Deus.

Nesse ponto, embora sob a ótica mundana, identifica-se com

Santa Teresa que escolheu um amor que durasse eternamente.

Bernanos considera a honra uma espécie de manifestação

carnal do amor de Deus e o tema da honra cristã são recorrente

em sua obra. Em Jeanne relapse et sainte (1929), La grande peur des

bien pensants (1931), Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Scandale

118

de la vérité (1939) e Lettre aux Anglais (1942) perpassa e define-se

um conceito de honra cristã, que o autor considera mais

importante para o gênero humano do que a tradição helênica

(EEC I: 572). O autor declara: “car il y a un honneur chrétien. [...] Il

est humain et divin tout ensemble. [...] Il est la fusion mystérieuse de

l’honneur humain et de la charité du Christ “(EEC I: 572)”.

O conceito de honra para Santa Teresa d’Avila, a

reformadora do Carmelo, opõe-se à honra mundana e acrescenta

outra dimensão à honra cristã, ultrapassando-a. Madame de

Croissy, a velha Priora, em agonia, precisa as diferenças:

Dans l’humiliation où je me trouve, il m’est plus facile de comprendre qu’il en est de la règle de l’honneur mondain à l’égard des pauvres filles du Carmel comme de l’ancienne loi pour le Seigneur Jésus- Christ et ses apôtres. Nous ne sommes pas ici pour l’abolir, mais au contraire pour l’accomplir en la dépassant. (DC: 1600)

Importa observar que dépasser - ultrapassar - não significa

abolir. Uma etapa pode ser superada, ultrapassada, mas não

necessariamente abolida. Portanto, Santa Teresa de Jesus, não

invalida o conceito cristão, mas o cumpre e vai mais além,

transpondo seus limites.

A reformadora do Carmelo, em seus escritos, afirma,

primeiramente, que a verdadeira honra não consiste no que o

mundo chama de honra (Ávila, 1995: 139), sendo os dois

119

conceitos incompatíveis (Ávila, 1995: 493). O primeiro, uma

completa reversão de valores, consistiria em perder a vida e a

honra segundo o mundo para compartilhar a humilhação do

Cristo (Ávila, 1995: 141).

O grande obstáculo na conquista da verdadeira honra seria

o amor próprio, concretizado no que se chamava uma questão de

honra - le point d’honneur. Com perspicácia, a Doutora da Igreja

observa que “acreditamos ter renunciado à honra entrando no convento, ou

iniciando a vida espiritual em busca da perfeição, porém, se se toca em nossa

honra pessoal , esquecemos que já a confiamos a Deus” (Ávila, 1995: 70).

A maior honra consistiria em ser pobre. “A pobreza", para

Teresa de Jesus, é "... um bem que encerra todos os bens do mundo. A

verdadeira pobreza é, em si, uma honra imensa que por ninguém pode ser

contestada" (Ávila,1995: 367-368) que se traduz em desapego total

não só dos valores mundanos: nascimento, sangue nobre

(Ávila,1995:495), como também da consideração do outro, “a

alma... não se preocupa em ser estimada ou não. [...] ela se aflige mais de ser

honrada do que de ser desonrada” (Ávila, 1995: 494-495).

O desejo de ser desprezada, tema recorrente nos escritos de

Teresa de Jesus, pode ser sintetizado em uma de suas poesias, no

qual encoraja suas filhas espirituais a caminharem para o céu,

"humildes e desprezadas" (Ávila, 1995:1089).

120

Humildade e desprezo da honra do mundo não

caracterizam a personagem Marie de l’Incarnation. Vale ressaltar,

entretanto, que a cena se desenrola em um contexto histórico-

social que explica, sem justificar, seus desvios do ideal

carmelitano.

O texto de Bernanos, como observa Monique Gosselin,

além de escrito em estilo literário característico do século XVII,

também faz reviver a moral dessa época, através do código de

honra da nobreza.

Se a Igreja valorizava, pelo menos teoricamente, a

humildade, a moral do século não considerava o orgulho um

defeito e sim uma qualidade. Como referido, os grandes não eram

modestos e nem desejavam a obscuridade. O herói corneliano

nunca é humilde. Seu orgulho se afirma com altivez, insolência e

desmedida, valores remanescentes de uma sociedade feudal.

O conceito de honra para Marie de l’Incarnation identifica-

se com estas exigências de uma honra aristocrática e mundana.

“La véritable humilité est d’abord une décence, un équilibre” (DC: 1633).

Equilíbrio, decência e dignidade são os valores fundamentais

desse sistema. Em todas as circunstâncias, há que se manter

calma, tranqüilidade e altivez.

Marie de l’Incarnation dirige-se, com autoridade e firmeza,

à Blanche, transtornada pela visita do irmão: “Remettez-vous, Soeur

121

Blanche” para acalmá-la (DC:1632). Depois, exorta, em um misto

de advertência e ordem: “Tenez-vous fière” (DC:1633). Blanche

deve corrigir não apenas o porte que se encurvara, mas agir com

altivez, moldar-se às exigências e obrigações impostas por seu

nascimento ilustre. Tenez-vous droite, ordem recebida por todas as

meninas bem nascidas, seria a expressão prevista na situação e

não tenez-vous fière. Marie de l’Incarnation joga com o significante

fière, produzindo essa multiplicidade de sentidos.

O discurso de Marie de l’Incarnation apresenta várias

peculiaridades. Trata-se de um posicionamento sobre o código de

honra ligado a um grupo social que raramente ultrapassa os

limites da família. Esses valores persistem e são tolerados no

convento. Com perspicácia, Madame de Croissy observara:

Et pour tout résumer d’un mot qui ne se trouve plus jamais sur nos lèvres, bien que nos coeurs ne l’aient pas renié, en quelque conjoncture que ce soit, pensez que votre honneur est à la garde de Dieu. (DC: 1601)

Entretanto, mesmo em relação aos valores da nobreza, há

uma desmedida, Hybris gerada pelo orgulho, que faz com que a

personagem Marie de l’ Incarnation exorbite constantemente seu

lugar. Ao ser-lhe concedida a palavra no Capítulo, em uma

deferência excepcional que lhe faz a Priora, ela argumenta:

Mes Soeurs, Sa Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière. Mais celui de l’obéissance n’est pas moins grand et doit être accompli dans le

122

même esprit, c’est-à-dire dans un profond abandon de nous-mêmes et de notre jugement propre. Conformons-nous donc, non seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence. (DC: 1615)

Para refutar o discurso de sua superiora, ela o repete: “Sa

Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière”. É

importante notar que a personagem não se inclui entre as

destinatárias do discurso, pois diz vous dire e não nous dire. E passa

a argumentar, mostrando seu desacordo.

A proposição é ambígüa. É preciso obedecer à Priora.

Entretanto, é preciso também obedecer ao convite ao martírio.

Nesse dilema, resta conformar-se à vontade expressa da Priora,

representante de Deus: “Conformons-nous donc, non seulement de

bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence”. O raciocínio deve

ser entendido no contexto do Carmelo, onde a obediência é

considerada virtude primordial. Pois, para a reformadora, Deus

pode ser encontrado mesmo no meio das panelas e a obediência é

preferível ao sacrifício. “O caminho da obediência é o que mais

rapidamente conduz à perfeição” (Ávila, 1995: 633).

Há uma contestação camuflada nessa aparente submissão.

Conformar-se significa submeter-se a contragosto. É preciso

amoldar-se à maneira de ser da Priora. "Conformons-nous... aux

volontés de Sa Révérence". A expressão prevista seria conformar-se

com a vontade de Deus de quem a Priora é a representante. O

123

emprego do plural "aux volontés de Sa Révérence" possui um sentido

ambígüo e insinua que a ordem da Priora origina-se de um ponto

de vista pessoal, o de suas vontades, que não coincidiria

necessariamente com a de Deus. Embora convoque a uma

obediência "non seulement de bouche, mais de coeur", na realidade,

Marie de l’ Incarnation contesta, parcialmente, a ordem da Priora

e de um certo modo a invalida.

Lembro que coeur faz ressoar também o tema da coragem,

no campo semântico do martírio, “conformons-nous... de coeur”

assume um sentido primeiro de conformemo-nos de coração,

mas faz ressoar seu oposto, nesta situação, o qual seria tomemos

a forma da coragem, ou seja, do martírio.

Se Rodrigue, personagem principal de Le Cid, seria o

protótipo literário dos valores da nobreza francesa, o modelo

discursivo de Marie de l’ Incarnation, segundo Bernanos, pode

ser aproximado daquele de Polyeucte (1643) de Pierre Corneille, em

sua atração desmedida pelo heroísmo.

Polyeucte, recém-convertido, destrói as imagens dos ídolos

pagãos, desafia a autoridade romana e permanece inabalável

diante das súplicas de Pauline, sua mulher, que tenta salvá-lo da

morte.

Este procedimento era desaprovado pela Igreja que sempre

aconselhou a prudência e a não provocação.

124

Os valores de um grupo social, a nobreza, evidenciam-se

no confronto entre Marie de l’Incarnation e os revolucionários

que investigam possíveis abusos contra a liberdade humana no

espaço conventual.

A perquirição do Comissário e de seu auxiliar tem como

resultado destacar o sentido de honra para Marie de l’Incarnation.

A honra falaria mais forte do que o medo, o temor. Assim, a sub-

Priora declara ao Comissário que procura encontrar religiosas

enclausuradas a contragosto, para libertá-las: “Monsieur, sachez que

chez la plus pauvre fille du Carmel, l’honneur parle plus haut que la

crainte”.(DC: 1640).

Exprimindo-se por uma máxima, gênero literário

valorizado pelos escritores mundanos do século XVII, Marie de

l’Incarnation emprega o registro de sua classe social, ao opor a

honra ao temor.

Ao contrariar as ordens da Priora, Marie de l’Incarnation

mostra-se altiva, arrogante e insolente diante do Comissário,

pondo em risco a segurança de toda a comunidade. Age de modo

individualista e não como humilde carmelita que deveria ser (DC:

1681).

É necessário, em primeiro lugar, tentar responder à

seguinte indagação: como se caracteriza sua visão do mundo? Em

Dialogues, o discurso manifesta-se cheio de certezas, não

125

admitindo a dúvida nem a possibilidade de diálogo. Caracterizada

pela desmedida e pela rigidez, a visão do mundo de Marie de

l’Incarnation apresenta-se tradicional e rigorista. Sua maneira de

agir poderia mesmo ser qualificada de jacobina, se tal adjetivo não

fosse reservado, naquele momento histórico, aos mentores do

Terror revolucionário de 1792 e 1794.

Ainda segundo a ótica de Marie de l’ Incarnation, os lugares

no mundo estão previamente marcados pelo nascimento, pelo

sangue, pela linhagem, e não existiria possibilidade de mudanças

nem transformações. Suas exigências e intransigências tornam

impossível aceitar as transformações do mundo. Diante das

mudanças operadas, ela declara preferir a morte a aceitá-las:

Vivre n’ est rien, c’est cela que vous voulez dire. Car il n’ est plus que la mort qui compte lorsque la vie est dévaluée jusqu’ au ridicule, elle n’a pas plus de prix que vos assignats. (DC: 1681).

Cair no ridículo, ser ridículo equivalia a uma degradação em

um sistema de valores em que essa era a mais eficiente das armas.

“Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer

les voeux?" (DC: 1647). O ridículo, o grotesco, deveria ser evitado

a todo custo.

E seria risível demonstrar emoção de forma excessiva. Dor,

alegria, ódio, amor e medo, sentimentos inerentes ao coração

humano, poderiam ser revelados, mas de maneira contida, sem

126

exageros. Decência resumiria a atitude a ser mantida a todo custo.

Oferecer-se em espetáculo, sob o efeito de uma forte emoção,

constituiria uma prova de mau gosto, seria ridículo.

Assim, Marie de l’Incarnation, mesmo durante a

profanação da capela do convento, acompanhada do canto da

Carmagnole, permanece digna e aristocraticamente calma:

“Allons! Allons! Mes filles, soyez calmes. Pour l’ instant il n’est d’ autre

prière possible que celle-là”.(DC: 1654).

Atitude análoga assumem os nobres presos, à espera da

guilhotina. A indicação cênica (régie) indica que eles são “très

énervés mais qui le laissent paraître le moins possible et se reprennent dès

qu’il le faut” (DC: 1693). Para isso, até jogam baralho. Um dos

nobres, ao ser chamado para a execução, despede-se da mulher

amada, prevê uma gorjeta para o carcereiro e acrescenta: “et vous

présenterez mes civilités au Marquis de la Force. Je le vois là-bas qui

sommeille et je n’oserais pas le réveiller pour si peu” (DC: 1693).

A expressão si peu é a litotes irônica e lírica com a qual o

condenado se refere à morte iminente e à separação da mulher de

quem gostaria de beijar as mãos, se este gesto galante não soasse

ridículo em espaço inadequado. “Adieu, Héloïse. Je vous baiserais bien

les mains si la chose n’était ici ridicule” (DC: 1695) (grifo meu).

A secreta satisfação de considerar-se superior e o desprezo

pela vida revelam-se na réplica do aristocrata, acusado por um

127

dos seus, de não amar a vida: “Nous avons joui d’ elle, et elle jouit de

vous. Nous l’avons possédée, et c’est elle qui vous possède” (DC: 1696).

Marie de l’Incarnation compartilha esse sistema de valores e

acrescenta-lhe a atração pelo martírio, considerada como a

expressão de um amor que deseja a morte. É importante salientar

que seu amor se manifesta de modo contido e frio. Essa maneira

de ser e agir coaduna-se com a personagem histórica que lhe

serviu de inspiração. Ao tentar justificar a não retomada da vida

conventual, Madame Philippe arguia ter tido uma vocação “d’

appel” - de chamado e não “d’ attrait” - atração (Bush, 1988:14).

Nenhuma semelhança com os êxtases amorosos de Teresa de

Jesus que exclamava: “Ansiosa de verte /deseo morir” (Ávila,

1995:1082).

Ao propor e, de certo modo, impor o voto de martírio a

uma comunidade pouco entusiasmada com a possibilidade

concreta de morrer declara:

Je me félicite de vous voir accueillir cette proposition aussi froidement que le Seigneur m’ inspire de la faire. (...) Nous devons donner notre vie avec décence. La donner même à regret, ou du moins avec une arrière-pensée de tristesse, ne saurait nullement offenser la décence. Ce serait, au contraire, y manquer gravement et grossièrement que de nous monter la tête entre nous avec de grands mots et de grands gestes. (DC: 1684-5) (grifos meus)

128

Os valores perseguidos são a decência e a dignidade.

Devem ser evitados: o exagero, a exibição dos sentimentos. O

ideal de uma moral nobre e clássica seria viver a litotes na literatura

e na vida de todos os dias. Litotes que, em grego, significa

simplicidade, é a figura discursiva que melhor caracteriza a atitude

reservada e violenta de Marie de l’Incarnation. “Elle est toujours

extraordinairement simple et naturelle” (DC: 1684), diz o texto.

Sua atitude diante da vida imita a do herói e a do santo que

se despojam dos bens sem os usufruir ou para melhor usufruí-los.

O herói e o santo se assemelham, numa função

mistificante, praticando em si próprios a grande e magnífica

destruição que constitui o ideal de uma família espiritual.

Diferem, entretanto, no que toca às provas que lhes são impostas

por Deus. O herói não duvida de seu destino e até vai ao

encontro das perdas e do sofrimento, enquanto o santo se

submete ao despojamento que lhe é imposto e o aceita.

Marie de l’ Incarnation atua no domínio do heroísmo,

desejando o martírio em um movimento individual, ainda que o

preço a pagar seja a destruição, uma espécie de potlatch. Potlatch

seria um dom ou uma destruição com características sagradas,

que exigiria do favorecido o desafio de uma retribuição

equivalente. Enfocarei não a estrutura potencialmente violenta do

dom (Mauss, 1960: 173), mas a destruição improdutiva, conceito

129

desenvolvido em Saint Genet comédien et martyr (Sartre, 1952) e em

La part maudite (Bataille, 1967).

Segundo esses estudos, algumas elites praticam o potlatch,

sob o aspecto do dispêndio improdutivo. Elas não produzem,

não consomem e desejariam tudo destruir em um rito sacrificial.

Considerado como a suprema glória, o potlatch exige

requisitos: para destruir riquezas é necessário antes de tudo

possuí-las. Enfocado desse modo, o dispêndio inútil é o contrário

do instinto de conservação. Trata-se de um não à vida e de uma

atração pela morte.

Aparenta-se ao potlatch o que Sartre chama de sophistique du

non: uma identificação total entre uma elite e um processo de

destruição, que ninguém aproveita do ponto de vista social. O

supremo requinte consistiria em aniquilar um bem, sem dele

aproveitar-se. Mas o aristocrata possui, em alto grau, o bem

sacrificado, pois, segundo essa ótica, o prazer supremo consistiria

em recusar o prazer.

Os aristocratas inutilizaram o ouro, aplicando-o nas paredes

das igrejas (Sartre, 1952:190). O ouro inútil seria uma metáfora do

trabalho humano, dos prazeres da vida sacrificados e destruídos,

não por amor aos pobres, mas por amor a Deus.

Como justificativa, fala-se de honra e principalmente de

suprema renúncia: viver é morrer; morrer é viver; a recusa é

130

aceitação. E Sartre cita o espanhol São João da Cruz, poeta maior,

que cantou o despojamento total

Para venir a gustarlo todo no quieras tener gusto en nada. Para venir a saberlo todo no quieras saber algo en nada. Para venir a poseerlo todo no quieras poseer algo en nada. ... Para venir a lo que gustas has de ir por donde no gustas. (São João da Cruz, Monte Carmelo) Tal é a visão de Sartre, coerente com sua visão do mundo.

O que não invalida suas observações pertinentes, quando afirma

que esta sophistique du non agrada, não apenas aos místicos, mas

também aos aristocratas em geral, e, sobretudo aos

conservadores. A Sophistique du non não constitui uma ação;

muitas vezes, é apenas uma retórica, e não é isto que mudará o

curso do mundo.

Os nobres, durante a Revolução Francesa, não queriam

mudar a História, um conceito dinâmico e burguês; preferiram

perder a vida a renunciar aos privilégios. A morte física pouco

lhes importava diante da destruição de um mundo, de um regime

com o qual se identificavam e que fazia parte de suas existências.

131

A personagem Marie de l’Incarnation, em sua visão do

mundo individualista e exaltada, despreza a vida que não mais

corresponde aos padrões rígidos e intransigentes da classe

privilegiada. Deseja o martírio, que lhe será, posteriormente,

negado, e deve, no momento, submeter-se à autoridade de uma

superiora que representa o ponto de vista comunitário, burguês,

astucioso, pragmático, flexível e que, surpreendentemente, a

conduzirá ao martírio.

132

A reversão de Valores

Par ma coiffe! Le Carmel n’est un pas un ordre de chevalerie, que je sache” !

Bernanos

Como qualificar o discurso que se opõe aos princípios

aristocráticos? Classificá-lo apenas como um discurso burguês

seria por demais simplista. No século XVIII, às vésperas da

Revolução, a sociedade francesa compreendia dois grandes

grupos, havia os nobres e os plebeus - les roturiers - que se

subdividiam em burgueses, artesãos e camponeses. A burguesia é

diversa e múltipla. Talvez o único ponto em comum entre a

grande, a média e a pequena burguesia seja o fato de não ser

nobre. E a nobreza também possuía subdivisões: nobreza de

sangue, de toga, pequena, grande nobreza, entre outras.

Contra todas estas discriminações será proclamado em

1789: “todos os homens nascem iguais”. O nobre adquiriu

nobreza, em alguma longínqua ocasião, em que foi recompensado

pelo bel prazer do rei ou por lealdade e coragem. Sua

superioridade advém de possuir um nome com grande extensão

no tempo e conhecer o que faziam seus antepassados na época

das Cruzadas. Orgulhava-se o fidalgo de ter nascido distinto, filho

d’ algo, de alguém célebre, conhecido por suas posses ou suas

133

façanhas. Ser nobre, ao contrário do que se queria fazer crer, não

é possuir uma essência inata, mas uma questão de tempo e de

memória, apenas.

Assim pensava Arouet de Voltaire, em 1726, ao acreditar

pertencer à nobreza por suas qualidades intelectuais e permitir-se

responder ao Cavalheiro de Rohan que zombara de sua nobreza

recente e de seu nome: “J’ aime mieux être le premier du mien que le

dernier du vôtre” (Peyrefitte, 1985). Voltaire foi espancado, preso na

Bastilha e pressionado a deixar a França, refugiando-se na

Inglaterra.

Cito este episódio emblemático, por ter Voltaire se iludido

a respeito de seus amigos da alta estirpe e remeto à leitura das

Mémoires do Duque de Saint-Simon que desperdiçava parte do seu

talento contestando a nobreza de seus pares.

Reiteradas a insolência, a arrogância da aristocracia e a

multiplicidade e diversidade da burguesia, indago: que nome

atribuir ao discurso que contesta o princípio aristocrático?

Qualificá-lo de pragmático não seria abrangente e limitaria o seu

emprego. Classificá-lo como novo não corresponde à realidade,

pois os valores que se afirmam e se fazem ouvir sempre existiram,

embora ocultados por uma moral heróica oficial. Princípio

democrático também não engloba o conjunto de valores que se

opõem à moral aristocrática. Resta-me empregar a expressão

134

discurso burguês, embora considere o sentido pejorativo que

atualmente lhe é atribuído. Enfatizo que o termo é utilizado no

sentido de valor plebeu, daquele que não é nobre, de quem

acredita em mudanças, em que não há mérito em nascer nobre e

principalmente crê que todos os homens nascem iguais.

O discurso burguês representado em Dialogues,

principalmente, por Mère Lidoine, a nova Priora, oriunda da

pequena burguesia, denuncia as incoerências e exageros do

código de honra da nobreza. E vai revelar a rigidez e as

contradições de um discurso distorcido pela exaltação, pela

desmedida e que se manifesta entre as religiosas no desejo do

martírio: “Il n’est pas question pour nous de martyre, je ne veux pas

que vos têtes s’echauffent là-dessus. Nous risquons d’être jetées à la rue,

rien de plus. [...]. Voilà de quoi refroidir vos imaginations” (DC: 1627)

(grifos meus).

A Priora usa toda a autoridade que o cargo lhe confere para

ordenar: “Je ne veux pas”. A força brutal da expressão deve ser

avaliada em um meio em que predominam as perífrases corteses e

as fórmulas antiquadas de polidez. O emprego da forma verbal na

lª pessoa do singular explica-se pela gravidade da situação e é

reforçado por: “Nous risquons d’ être jetées à la rue, rien de plus”. "Rien

de plus", nada mais, coloca um ponto final na ordem expressa da

Superiora, não admitindo réplicas ou contestações.

135

A oposição s’échauffer x refroidir revela o que deve ser

evitado; s’échauffer, perder o controle, deformar a realidade por

causa dos sentimentos exaltados e refroidir contém a idéia de

equilíbrio, predominância da razão. A linguagem popular

emprega freqüentemente “não esquenta”, “é uma pessoa

esquentada” e também o “fica fria”, no sentido de “veja os

problemas de um modo racional”, “mantenha a calma”.

Em um registro voluntariamente coloquial, a Priora, serena

e modesta, procura preservar as religiosas contra o fanatismo do

ideal que seria desejar o martírio, quando o problema que se

coloca é o de serem expulsas do convento, que a ameaça

existente é ficar sem teto, ser jogada na rua, nada mais.

Ela dialoga com um discurso não explícito, mas em

circulação - o dos valores aristocráticos. Responsável pela

comunidade diante de Deus e diante das autoridades civis tentará

todos os meios lícitos para preservá-la. Seu comportamento visa

o poder civil e as religiosas. Quanto à lei, conformar-se-á com os

decretos, sem discutí-los (DC: 1647) e quanto às religiosas,

procurará mantê-las equilibradas e dentro da realidade, opondo à

exaltação do desejo de martírio, o equilíbrio e a humildade. A

humildade consiste em conhecer o seu lugar e representa o

oposto do orgulho. Enquanto Blanche procura seu lugar no

mundo e Marie de l’Incarnation extrapola o seu, Mère Saint-

136

Augustin sabe exatamente qual é o seu lugar. Sua força e

equilíbrio decorrem deste conhecimento. A propósito do desejo

de martírio, ela declara:

Ce n’est pas à nous de décider si nous aurons ou non, plus tard, nos pauvres noms dans le bréviaire. Je prétends bien n’être jamais de ces convives, dont parle l’ Evangile, qui prennent la première place et risquent d’ être envoyées à la dernière par le Maître du festin. (DC: 1663)

Ter o nome inscrito no breviário, ser um santo canonizado,

reconhecido publicamente pela Igreja, é uma alusão recorrente

em Bernanos. Convém ser humilde e procurar não os primeiros

lugares nos banquetes, como os grandes deste mundo, mas sim os

últimos lugares, pois “quem se exalta será humilhado e quem se humilha

será exaltado” (Lc: 18,14). Aqui se estabelece um diálogo em

surdina com outro texto do Evangelho “os últimos serão os

primeiros” (Mt: 19,30), que prenuncia uma reversão total no

desenrolar previsto da ação.

O tema da graça, da escolha misteriosa de Deus, que chama

alguns e recusa outros, está presente nessa postura contrária à

visão exaltada de Maria de l’Incarnation que representa, no

momento, a quase maioria da comunidade.

Referindo-se ao desejo do martírio, a Priora afirma falar

como todo o mundo, usando o sentido mais comum das palavras:

137

Je donne au mot son sens ordinaire, je parle le langage de tout le monde. [...] Par ma cornette! Lorsque nous aurons nommé bonheur ce que le commun des hommes appelle malheur, en serons-nous bien avancées? (D.C: 1664) (grifos meus)

Em um discurso coloquial, intercalado por uma expressão

popular - "par ma cornette", a Priora assume uma posição em favor

da Doxa, saber comum. A acumulação de "sens ordinaire, tout le

monde, le commun des hommes" faz ressoar a Declaração dos direitos

do homem e do cidadão que proclama a igualdade fundamental

do homem. Segundo estes valores, quem decide é a maioria,

composta de pessoas comuns. Importa a quantidade de vozes e

não a posição social de quem pleiteia.

Esta é a grande mudança em relação ao princípio

aristocrático, em que o poder emanaria de Deus, que se faz

representar pelo rei, que por sua vez delega poderes aos nobres.

No seu discurso, Mère Lidoine alude aos valores

comumente aceitos, exprime a opinião geral, a Doxa, em oposição

aos valores de uma elite.

Continuando sua exposição, a Priora denuncia a fatuidade

de desejar o martírio: “Désirer la mort en bonne santé, c’ est se remplir l’

âme de vent, comme un fou qui croit se nourrir à la fumée du rôti” (DC:

1664). Ela refuta a sophistique du non, e evidencia o vazio e um

138

certo ridículo contido no jogo de palavras e na reversão dos

valores: o viver é morrer, morrer é viver... E desqualifica, de

modo definitivo, qualquer ação que precipitasse o martírio e, até

mesmo, o simples desejo de martírio.

O efeito provocado por esse discurso é previsível: todas as

religiosas abaixaram a cabeça, em sinal de submissão aparente.

Após observar a reação da Comunidade, sobretudo das freiras

mais jovens e, portanto, mais seduzidas pela idéia do martírio, a

Priora muda de tom e de tática:

J’avais besoin de vous remettre un peu d’aplomb, mes filles. Vous ne teniez plus au sol, vous deveniez si légères qu’un coup de vent dans vos jupes aurait suffi pour vous élever au ciel et vous perdre dans les nuages, comme le ballon de Monsieur Pilâtre. (DC: 1664)

O discurso da Priora é extremamente hábil. Após falar com

toda a autoridade que lhe confere seu cargo, ela faz apelo ao

sentimento, à emoção. Ela possui um Logos, mas, por tática,

dissimula-o, ao empregar um registro coloquial, expressões

familiares, visando convencer e conseguir a adesão não apenas

formal, mas de coração, daquelas que considera suas filhas.

Denuncia a ilusão de desejar e provocar o martírio, em termos

concretos e familiares, e alude a um acontecimento da época. Um

vento mais forte nas saias - "dans vos jupes" - seria suficiente para

que elas voassem e se perdessem nas nuvens "comme le ballon de

139

Monsieur Pilâtre". Hoje, o nome de Pilâtre de Rozier é

desconhecido, mas, por volta de 1783, este pseudo-cientista fazia

experiências com a eletricidade e balões diante de um público

elegante, constituído sobretudo de mulheres, encantadas com as

lições de física experimental do jovem professor (Darnton,1984:

188). A alusão de Bernanos não é inocente e reforça a idéia de

que desejar o martírio é alimentar uma quimera, uma ilusão,

como os extraordinários jogos de luz utilizados por Pilâtre de

Rozier em 1783, em Paris.

Prudente na direção de sua comunidade religiosa, a Priora

se mostra igualmente hábil e correta em relação ao poder civil.

Tendo já declarado que tentaria todos os meios lícitos para

preservar seu convento, tanto do ponto de vista espiritual quanto

material, ela se mostrará conciliante, porém digna. Procura viver

o espírito da regra carmelitana que, antes de enfrentar a violência,

tudo faz para desarmá-la.

Ao se submeter ao decreto que proíbe a emissão de novos

votos religiosos, a Priora age com uma correção exemplar. Dá a

César o que é de César. Diante da reação apaixonada de Marie de

l’Incarnation, que esperaria uma atitude de desobediência ao

poder civil, ela replica não poder arriscar a segurança de toda a

comunidade e infringir uma ordem, em benefício de uma única

pessoa, mesmo em se tratando de Blanche de la Force. Prevalece

140

o critério democrático da maioria: “Je ne puis risquer de sacrifier à

Mademoiselle de la Force la sécurité de toutes mes filles” (DC: 1648).

Inconformada, Marie de l’Incarnation apela para um

sentimento de honra mundano e alude às últimas vontades de

Madame de Croissy. A Priora relembra em que consiste a

verdadeira honra, para uma carmelita, e alude à possibilidade de

um desígnio particular para Marie de l’Incarnation. A

argumentação que se segue pertence a uma outra ordem: “Mère

Marie, je ne veux rien dire de trop, mais vous parlez de l’honneur comme si

nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde”

(DC:1648). A Priora sabe muito mais do que faz transparecer e

deixa sem resposta a pergunta que é uma afirmação: “Que

pourrions-nous désirer de mieux que de mourir?" (DC: 1649).

O silêncio também é uma resposta. A verdade intuída não

pode ser demonstrada pela lógica e Mère Saint-Augustin se cala,

indicando que o mais importante não foi dito. Silêncio que

dialoga com a atitude de Cristo, diante de Pilatos: “E Jesus se

calava” (Mt: 27,14).

O discurso de Mère Lidoine percorre vários registros de

linguagem: alterna uma linguagem coloquial com expressões

populares e, quando necessário, exprime-se com elevação e

grandeza. Além disto, tem a habilidade de esconder a própria

habilidade em argumentar, em convencer.

141

Para convencer, a Priora emprega diversos recursos que

serão assinalados ao longo desta análise e que consistem em:

argumento da autoridade pura e simples, considerações de ordem

espiritual, apelo à emoção, razões de ordem prática e de

sobrevivência e a tática de conceder a última réplica ao

interlocutor.

O confronto entre os dois sistemas de valores, aristocrático

e plebeu, representados no texto por Marie de l’Incarnation e

Mère Saint- Augustin, pode ser exemplificado no diálogo que se

segue :

Mère Marie: Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux? La Prieure: Croyable ou non, ce décret doit vous paraître assez clair. Mère Marie: Votre Révérence est-elle décidée à s’y conformer? La Prieure: Oui (DC:1647)

Ao finalizar a discussão densa e contida, Mère Lidoine

explicita suas razões de prudência e de obediência civil: uma

cerimônia no Carmelo dificilmente passaria despercebida em uma

cidade cheia de espiões. E a menor indiscrição lhes faria perder a

cabeça. A inserção no momento histórico e na cidade de

Compiègne marca a mudança de registro finalizada com o

intencionalmente prosaico: “La moindre indiscrétion nous ferait couper

le cou” (DC: 1649).

142

O Carmelo não mais é visto como uma cidadela inviolável

e, de certo modo, invisível. Os muros da clausura, tornados

transparentes, exporiam as religiosas ao olhar ameaçador do

outro.

A Priora enfrenta um conflito que se desenrola em dois

planos: o circunstancial, com as medidas hostis da Revolução

contra os religiosos e o espiritual, agravado pelas visões do

mundo antagônicas, no interior do Carmelo.

A proibição de emitir novos votos atingiu particularmente

duas noviças, as personagens Blanche de la Force e Constance de

Saint-Denis.

Diante do dilema: obedecer a Deus e arriscar a segurança

da Comunidade, ou curvar-se diante de uma ordem arbitrária, a

Superiora assume o conflito, mas tenta, primeiramente, resolvê-lo

de modo prático.

Se a Assembléia Nacional interditara a profissão de votos

religiosos e se Blanche se revelara incapaz de superar o medo, o

mais prudente seria considerar seu período de noviciado

insatisfatório e despedi -la.

A Priora age dentro das normas, pois o noviciado é um

tempo de preparação imposto pela Igreja aos candidatos à vida

religiosa, com uma duração mínima de doze meses e no máximo

de três anos. Durante esse período, o canditado pode desistir ou

143

ser julgado inapto à vida religiosa ou àquela determinada Ordem

ou Congregação.

Diante da reação humilde e desesperada de Blanche, a

Priora decide refletir mais sobre o assunto. Despedir Blanche era

uma solução oficial e parcial: restava solucionar o problema dos

votos de Constance de Saint-Denis.

Importa observar que, antes de tentar resolver o problema

da proibição de emitir votos religiosos, a Priora já o tinha

dirimido através da linguagem ao empregar uma grande

habilidade ou a inteligência astuta, a Mètis grega.

Segundo Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne (1974), a

civilização grega, caracterizada pela Mètis, cala freqüentemente a

seu respeito. Não há tratados nem sistemas filosóficos sobre os

princípios da inteligência astuta, como há tratados sobre a lógica.

A astúcia, a mètis, presente no universo mental dos gregos, precisa

ser descoberta no jogo das práticas sociais e intelectuais, em que

sua presença se revela de modo às vezes obsessivo. Os dois

helenistas estudam a etimologia de mètis. Como substantivo

comum, mètis significaria uma forma de inteligência, uma certa

prudência. Como nome próprio, Mètis teria sido a primeira

mulher de Zeus, filha do Oceano e mãe de Atena. Sua atividade

cessa ao ser engolida por Zeus que, receoso de ser suplantado por

um possível filho, conserva a Astúcia dentro de si e torna-se a

144

própria astúcia. Há deuses colocados sob o signo da astúcia:

Atena, Hermes, Afrodite, Hefesto, e os que não a possuem como

Apolo e Dionísio.

Mètis, a astúcia, seria, portanto, mais uma categoria mental

do que uma noção. Ela é uma forma de inteligência e de

pensamento; um modo de conhecer; implica um conjunto

complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de

comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade,

a previsão, a maleabilidade de espírito, o fingimento, o

desembaraço, a atenção vigilante, o senso da oportunidade,

habilidades diversas e uma experiência longamente adquirida

(Detienne & Vernant, 1974:10).

O agir da Priora revela habilidade e astúcia, sua mètis, ao

recitar o Hino de Santa Teresa d’Avila antes de ler o decreto da

Assembléia Nacional. Observarei, primeiramente, a indicação

cênica - régie - que antecede o Hino.

Chapitre. Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées. Avant de lire le décret, la Prieure récite avec ses filles l’hymne de Sainte Thérèse d’Avila:

Je suis vôtre et je suis en ce monde pour vous. Comment voulez-vous disposer de moi? Donnez-moi richesse ou dénuement, Donnez-moi consolation ou tristesse, Donnez-moi l’allégresse ou l’affliction

145

Douce vie et soleil sans voile Puisque je me suis abandonnée tout entière Comment voulez-vous disposer de moi?

La Prieure: Je dois vous donner lecture du décret de l’Assemblée qui suspend jusqu’ à nouvel ordre les voeux de religion. No tocante a "Chapitre" - Capítulo ou sala do Capítulo -

deve ser esclarecido que se trata de um espaço, no interior do

Carmelo, onde se reúnem as religiosas para deliberar e tomar

decisões. A Priora comunica as diretivas do dia. Tudo o que é

importante decide-se, oficialmente, nesse espaço consagrado à

autoridade.

Outra indicação teatral já havia descrito a sala do Capítulo

“Comme toute les salles communes, celle-ci est petite et voûtée. Au mur un

très beau crucifix. Sous le crucifix le fauteuil de la Prieure.Le long des murs,

un banc où s’assoient les religieuses” (DC:1614).

Nessa sala comum, destaca-se "un très beau crucifix. Sous le

crucifix le fauteuil de la Prieure". A oposição "fauteuil - banc" -poltrona

- banco - representa a hierarquia religiosa. As religiosas sentam-se

em um banco. Há que se notar o apelo cinematográfico da

indicação que, no quadro espaço-temporal, destaca três planos:

no alto, o crucifixo; abaixo, a poltrona da Priora; e a uma certa

distância, o banco das religiosas, anônimas.

146

Nesse espaço organizado sob o signo da autoridade

espiritual, "Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées". As

religiosas são aquelas que pronunciaram votos numa religião.

Várias hipóteses tentam explicar a etimologia da palavra religião.

Originária do latim religio (veneração, atenção escrupulosa),

religião pode ter sua origem no verbo religare e este sentido é

muito conhecido. Pode também significar juntar e sua origem

etimológica seria o verbo legere: reunir, no sentido próprio, e ler,

no sentido figurado.

As religiosas, religadas a um poder sobrenatural, reúnem-se

em comunidades, para melhor atingir seu objetivo. Elas sabem,

principalmente, ler, descobrir o sentido não evidente dos seres e

das coisas (Kristeva,1969:181).

Em Dialogues, trata-se de uma reunião solene. Solennellement,

de acordo com sua etimologia, solennelle, radical en do latim annus,

exprime um acontecimento, um fato que ocorria apenas uma vez

por ano. O emprego do advérbio solennellement destaca o caráter

oficial e excepcional da reunião capitular.

Antes de ler o Decreto - domínio civil -, a Priora recita o

Hino -domínio espiritual -. No conflito entre a horizontalidade -

a marcha da História - e a verticalidade - a aspiração para o alto -,

destaca-se a mètis, a astúcia da Priora. Ela se adapta ao imprevisto

147

das circunstâncias e diante dos acontecimentos sabe pilotar seu

navio com arte e segurança.

A inteligência astuta exerce-se em diversos planos, mas

sempre de modo prático: a habilidade do artesão, do sofista, a

prudência do político ou a arte do piloto dirigindo seu navio. Não

existem regras imutáveis. Cada dificuldade exige a procura de

uma solução, de uma saída.

À rigidez aristocrática opõe-se a maleabilidade burguesa. A

astúcia é um valor não-nobre. O fidalgo julgaria aviltante ser astuto.

Somente quem está em situação inferior precisa empregar ardis,

ser esperto. Quem exerce o poder, aquele que é ou se julga

superior emprega a condescendência, a autoridade ou a

arrogância.

Diante do impasse, ameaçada pelo Terror, Mère Lidoine na

condição de autoridade, recorre, então, à astúcia, através da

linguagem.

O verbo réciter, do latim recitare, tem como raiz o verbo

latino cio: empurrar, agitar, provocar, excitar. Recitar significa ler

em voz alta um documento em uma sessão pública. Recitar não é

simplesmente repetir palavras. Significa pedir socorro, provocar

emoções, despertar sentimentos. Todas essas idéias são evocadas

no texto. As religiosas conhecem o Hino, tantas vezes repetido.

Sua recitação solene, na sala do Capítulo, é um pedido de socorro

148

e uma ação que se concretizam no dizer. O Hino constitui uma

promessa de união espiritual e um compromisso que se realizam

no momento em que é pronunciado.

A idéia de que existem atos que podem ser realizados pela

palavra não constitui uma novidade. A criação do mundo,

relatada no livro do Gênesis, decorre da palavra de Deus: “E disse

Deus: Haja luz. E houve luz” (Gênesis, 1,3). E esta fórmula repete-se

na narrativa da criação, centralizada no verbo dizer e seguida do

verbo ver: "E viu Deus que isso era bom” (Gênesis, 1,18). A idéia da

palavra criadora é tratada por Aristóteles principalmente na

Poética.

A palavra cria, constitui uma ação e pode tornar-se uma

realidade autônoma. Na tragédia clássica francesa o dizer equivale

a um fazer.

Quando a personagem Phèdre de Racine revela sua paixão

incestuosa por Hippolyte, torna-se culpada pelo fato de ter

falado, dado corpo a um sentimento. O silêncio constituía sua

liberdade; seu falar coincide com o fazer.

Esta noção está presente no pensamento grego antigo,

embora não seja tão evidente em nossa época, na qual a ação

concreta é mais valorizada. Existiria uma gradação de importância

crescente em pensar, falar e agir. Assim, no Confiteor, o cristão se

acusa de ter pecado "por pensamento, palavras e obras".

149

Recitado na 1ª pessoa do singular do Indicativo Presente, o

Hino de Santa Teresa realiza o que enuncia. Renovou os votos das

religiosas e permitiu que Blanche de la Force e Constance de

Saint-Denis professassem, apesar da proibição da Assembléia

Nacional.

Expressão de um amor intenso, síntese do espírito

carmelitano, o cântico congrega todas as religiosas. É também o

ponto de convergência, em que os discursos antagônicos

encontram um denominador comum: o abandono total à vontade

de Deus. O discurso da alma enamorada de Deus e os termos nos

quais se exprime a paixão humana muitas vezes coincidem.

O místico, ao comunicar sua experiência de união com

Deus, recorre freqüentemente a uma linguagem erótica,

transgressora e poética, a “lingua nova”, a “logothesis" (Barthes,

1994:1043). E tentaria produzir na linguagem efeitos relativos ao

que não está na linguagem. Os místicos aspiram a um gozo além

do plano físico, a uma fusão, a uma comunhão que pode utilizar,

como metáfora, o amor humano. Neste sentido, pode ser

entendida a afirmação de que somente os corações religiosos

conhecem a verdadeira linguagem das grandes paixões.

A procura de um amor eterno, infinito, não submetido à

usura do tempo, poderia concretizar-se no Carmelo. Santa Teresa

dizia procurar um amor que durasse para sempre.

150

A alma diz-se seduzida por Deus e a distância que a separa

do Ser amado aumenta seu desejo em lugar de diminuí-lo. O

profeta Jeremias sintetiza o sentimento da alma envolvida no jogo

de sedução do qual Deus é o grande parceiro: “Tu me seduziste,

Senhor, e eu me deixei seduzir; foste mais forte do que eu, e pudeste mais"

(Jeremias, 20,7).

Além de ser um canto de amor, o Hino constitui os termos

de um contrato de casamento. Convém lembrar que o ministro

do sacramento do matrimônio não é o sacerdote e sim os

nubentes através de um consentimento mútuo.

A alma, enamorada de Deus, reafirma o dom total de si

própria e destaca o domínio de sua ação: “Je suis en ce monde pour

vous”. "Ce monde", este mundo, possui uma conotação espaço-

temporal, inscreve-se na História e se opõe ao reino de Deus.

“Meu reino não é deste mundo”, diz o Cristo (Jo, 18:36). A alma

reitera que ela vive neste mundo, de modo provisório, e anseia

encontrar Deus em uma outra vida, em um outro mundo. E

viver, de acordo com a tradição judaico-cristã, baseada, entre

outros, em Platão, seria um exílio.

O Hino de Santa Teresa é a expressão dessa espiritualidade

carmelitana. Ao ser recitado, estreitou os laços que uniam as

religiosas entre si, possibilitou a renovação dos votos proferidos e

a emissão de novos votos. A habilidade da Priora tornou possível

151

obedecer a Deus, sem provocar o poder civil, através da mètis, da

astúcia.

A Priora lê o decreto. Ler não é recitar. Ler vem de lex, do

latim legere. As autoridades civis tomaram uma decisão através de

um decreto, determinação escrita com força de lei. Sozinha, a

Superiora cumpre o dever de seu cargo de modo objetivo e

neutro. Trata-se de uma obrigação externa, civil. Não julga. Justo

ou não, o decreto deve ser obedecido e a Priora a ele se submete

para proteger a Comunidade. Neste momento, toda uma

habilidade entra em ação para conseguir um objetivo: a

sobrevivência das religiosas como indivíduos e como entidade

religiosa.

No estudo consagrado à mètis grega, há exemplos das

táticas de sobrevivência: a raposa finge estar morta e o ouriço

fecha-se em si mesmo. É a atitude oposta do herói que desafia a

morte e se expõe ao perigo.

Precisa-se, um pouco mais, a grande oposição entre os

valores, aristocrático e burguês, o emprego da astúcia para

sobreviver. Não se trata de covardia, mas de simples bom senso.

Agindo com habilidade e tendo superado o dilema entre o

sagrado e o profano, através da linguagem, a Priora, após ler o

decreto, permite-se um discurso pessoal. Depois de algumas

considerações preliminares que fazem apelo à generosidade, à

152

vocação carmelitana baseada na humildade e na modéstia, a

Priora, cônscia de sua responsabilidade, recusa a desmedida, a

hybris.

Primeiramente ela adverte:

Car en toute conscience des devoirs de ma charge, je dois vous dire que je ne saurais tolérer plus longtemps une certaine exaltation qui - si élevés qu’ en soient les motifs - ne nous en distrait pas moins des modestes devoirs de notre état. (DC: 1652) (grifo meu)

A advertência contra a exaltação, contra a desmedida

fundamenta-se, também, no ideal carmelitano: há que se ter a

justa medida em tudo o que se faz. Somente o amor de Deus

pode ser desmedido.

Prudente e reservada, a religiosa deve cumprir o seu dever e

desconfiar de tudo o que possa afastá-la da oração, mesmo que se

trate do martírio. Conta-se que, enquanto a Santa Inquisição

deliberava se as visões e êxtases de Teresa tinham origem divina

ou demoníaca, a Santa varria os corredores do convento,

observando que a mulher que ocupa as mãos não perde a cabeça.

Somente o trabalho pode afastar os delírios de uma imaginação

desregrada.

Após ter advertido, a Priora ordena: “Ma volonté bien réfléchie

est que cette communauté continue de vivre aussi simplement que par le

passé” (DC: 1652).

153

O valor dessa ordem deve ser avaliado dentro do espírito

da regra do Carmelo. Santa Teresa d’Avila introduziu um novo

elemento no processo de ascese mística: a obediência, na

tentativa de neutralizar as teorias do livre exame, as teorias de

Erasmo que circulavam na Espanha. Sob o signo da obediência,

reafirma a autoridade da Igreja, numa época em que o poder

espiritual abrangia também o poder temporal.

As religiosas despojaram-se, voluntariamente, da liberdade

através do voto de obediência e devem obedecer à Priora,

representante de Deus e intérprete da Lei. As relações

estabelecidas entre Deus, as religiosas e a superiora são

sintetizadas em Dialogues: “C’ est à Dieu qu’ elle appartient, mais Votre

Révérence en reste l’usufruitière de par la charge à laquelle nous l’ avons

volontairement et librement désignée”, pondera uma das

carmelitas (DC:1711) ( grifo meu).

A Priora responde diante de Deus e diante do poder civil

pelas religiosas. Este esquema repete, no convento, a mesma

estrutura da monarquia francesa de direito divino, como a de Luís

XIV. O rei só prestaria contas a Deus, mas é responsável pelo seu

povo - os súditos -, que lhe devem obediência.

É importante constatar a diferença existente entre a

personalidade da Priora e o exercício de seu cargo. Mère Lidoine

se caracteriza como uma velha religiosa, um pouco repetitiva e

154

sem grandes pretensões: “Une vieille femme un peu terre à terre, un peu

radoteuse.” (DC: 1664). Conciliante e bondosa, ela representaria a

sabedoria, o aspecto positivo da velhice. Entretanto, age de modo

autoritário, porque está investida de poder que lhe confere a

hierarquia da Ordem do Carmelo.

As religiosas devem obedecer à vontade de Deus expressa

através das ordens da Priora e esta tem plena consciência dos

deveres de seu cargo: “c’est moi qui répondrai de vous toutes et je suis

assez vieille pour savoir tenir mes comptes en règle” (DC: 1699).

Porém, antes de determinar sua ordem, a Priora tentara, ao

assumir o superiorato, convencer as religiosas utilizando uma

linguagem metafórica que ilustra, reitera e sintetiza sua maneira

de pensar. Primeiramente. ela aconselhou:

Je vous répete que nous sommes de pauvres filles rassemblées pour prier Dieu. Méfions-nous de tout ce qui pourrait nous détourner de la prière, méfions-nous même du martyre. [...]. Lorsqu’ un grand Roi, devant toute sa cour, fait signe à la servante de venir s’ asseoir avec lui sur son trône, ainsi qu’ une épouse bien-aimée, il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les meubles. (DC: 1615) (grifos meus)

A Priora não diz "si un grand roi" mas “lorsqu’un grand Roi".

O emprego da conjunção lorsque - quando, indica uma realidade,

uma circunstância atual. O grande Rei acena: o Terror

155

revolucionário fazia vítimas. Não se trata de uma hipótese, mas

de uma probabilidade cada vez mais próxima. A idéia do martírio

não é afastada, mas designada metaforicamente como "l’ invitation

du grand Roi". Mister se faz agir com prudência e uma certa

reserva. "Il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses

oreilles, et continue à frotter les meubles". "Frotter les meubles" que

significa esfregar os móveis para fazê-los brilhar, vai ao encontro

do costume praticado por Santa Teresa de trabalhar

manualmente. A palavra chave é o advérbio d’abord,

primeiramente. Desconfiar de tudo o que é extraordinário, seguir

a rotina, continuar a trabalhar como se nada tivesse acontecido e,

somente depois, admitir a possibilidade da exceção, do

extraordinário. O senso comum e, sobretudo a humildade

recomendam duvidar da imaginação e do amor próprio que

falseiam muitas vezes a realidade.

O bom senso caracteriza o espírito do Carmelo. Conta-se

que Santa Teresa teria prescrito comer carne a uma religiosa que

dizia ter visões. A ordem foi executada e as visões cessaram. Esse

equilíbrio, esse respeito pela natureza do homem, revela-se em

uma humildade que é sinônimo de verdade. É preciso vencer e

não forçar a natureza, dizia Madame de Croissy (DC: 1582).

Importa também estar consciente de que confiar em Deus

não significa estar protegido contra o sofrimento nem contra as

156

mudanças violentas. Numa época de transformações sociais e de

rupturas, tudo é aleatório, mais do que nunca:

(...) ne comptons jamais que sur cette espèce de courage que Dieu dispense au jour le jour, et comme sou par sou.. C’est ce courage-là qui nous convient, qui s’accorde le mieux à l’ humilité de notre état. (DC: 1652)

Mère Lidoine explicita seus argumentos: somos pobres

servas de Deus e a coragem que nos convém é aquela que é

concedida, dia a dia, e “comme sou par sou” expressão que revela

uma das características de quem se definiu: “je ne suis pas de celles

qui jettent leur bien par la fenêtre” (DC: 1716).

Trata-se de privilegiar a economia, a boa administração dos

bens materiais, de ter consciência de seus limites e de não se

envergonhar de saber calcular. Ao ser-lhe dito que Madame de

Croissy, tal como as aristocratas, não sabia fazer contas e que

desse fato retirava mesmo uma certa vaidade, Mère Saint-

Augustin replica que calcular é o seu forte (DC:1620).

Face às restrições impostas pela Revolução, ela calcula

aquilo de que dispõe, antes de começar a contar com rendas

futuras. Há uma oposição entre a atitude burguesa, que sabe

calcular, e o desprezo aristocrático do dinheiro que, de uma certa

forma, fazia parte da mentalidade reinante no Carmelo.

157

Os nobres afetavam desprezar o dinheiro, o lucro, e

julgavam ser o trabalho indigno de sua classe social. Atitudes que

lhes apressaram a decadência e a ruína.

Mère Saint-Augustin se opõe a esse discurso aristocrático,

sob todos os aspectos. Em relação à coragem, posiciona-se a

favor, não do heroísmo exaltante, mas da difícil coragem de

enfrentar o dia a dia, o quotidiano, o dever obscuro. “Car il y a

plusieurs sortes de courage, et celui des grands de la terre n’est pas celui des

petites gens, il ne leur permettrait pas de survivre” (DC: 1615). Aos

poderosos, convêm as virtudes heróicas; aos pequenos, as

virtudes sem brilho: a boa-vontade, a paciência, o espírito de

conciliação e, sobretudo, a humildade. Significativamente, a

astúcia não é mencionada, mas escondida. É preciso não esquecer

que Zeus engoliu Métis, incorporando-a.

As razões de Mère Lidoine podem ser resumidas em um

silogismo: existem as grandes e as pequenas virtudes. As grandes

virtudes convêm aos poderosos e aos ricos; as pequenas virtudes

convêm aos pequenos e aos humildes. Ora, nós somos pequenas.

Logo, somente nos convêm as pequenas virtudes.

O tema das pequenas virtudes encontra-se, também, em La

peste de Albert Camus. O Dr. Rieux, personagem principal do

romance, ao propor como herói, Grand, herói insignificante e

apagado (Camus, 1947:129) e ao definir a honestidade como fazer

158

seu trabalho, posiciona-se a favor do dever quotidiano, feito com

exatidão, e das virtudes escondidas e sem brilho. Cuidar dos

doentes, dizia o médico, era fazer seu trabalho. E Mère Lidoine

afirma: “La prière est un devoir, le martyre est une récompense” (DC:

1615), fazendo ressoar a afirmação da velha Priora: "Notre affaire

est de prier, comme l’affaire d’une lampe est d’éclairer" (DC: 1584). No

dilaceramento da depuração, já referida, Camus, em 1945, recusa

publicar, em Combat, um artigo violento e injusto de Bernanos, e

argumenta que o heroísmo e a santidade constituem exceções e

não são accessíveis ao comum dos homens.

Em 1948, Bernanos pode escrever: “Si la force est une vertu, il

n’y a pas assez de cette vertu pour tout le monde” (DC: 1649). A

intransigência do autor cedeu lugar à humildade que possibilita

aceitar as limitações individuais e as diferentes reações diante do

perigo, diante da morte.

Assim, a Priora evidencia, também, que desejar a morte não

significa trilhar o único caminho que leva a Deus. Não há infâmia

em defender-se, em tentar evitar a morte por todos os meios

legais.

Mère Marie de Saint-Augustin denuncia igualmente a

tentação de onipotência que se insinua no Carmelo: a de

preocupar-se com problemas que não dizem respeito à

comunidade: “Cela ne nous regarde pas”, (DC: 1662) afirma, no seu

159

sadio individualismo burguês. Individualismo que não significa

egoísmo, mas bom senso e humildade. Cada coisa virá a seu

tempo. Não é prudente imiscuir-se em assuntos que escapam ao

campo de ação destinado a cada um. O problema do outro é o

problema do outro.

Este pragmatismo se exprime freqüentemente por uma

Doxa, constituída de provérbios, frases feitas e clichês não

desprovidos de certo senso de humor.

Aspecto subestimado pela crítica bernanosiana em geral, o

humor marca a ruptura da tensão e a volta à vida quotidiana.

O apelo à sabedoria popular, ao consenso social, é um dos

recursos do discurso da Priora, que se humilha, voluntariamente,

ao empregar um registro coloquial e, às vezes dialetal, em um

espaço onde seria esperado um registro culto e formal. Monique

Gosselin, ao estudar o emprego das máximas aristocráticas e

provérbios populares em Dialogues, assinala, entre outras, a tensão

entre uma visão espiritual aristocrática e uma espiritualidade do

despojamento que se confrontam e se complementam, sem se

anularem (Gosselin,1983:241).

Ao enumerar estas máximas e provérbios justapostos e

modificados: “Chien qui aboie mord mie - paroles vides mauvaises raisons

- mieux vaut douceurs que violence et une seule once de miel prend plus de

mouches que sentier de vinaigre” (DC: 1615), a Priora emprega um

160

recurso que pode ser comparado à atitude de Ulisses fazendo-se

passar por desprovido de eloqüência diante de seus compatriotas,

para mais facilmente convencê-los.

Os argumentos da Doxa, vulneráveis, ambíguos, prestam-se

a uma réplica inevitável. A todo provérbio ou máxima, pode ser

oposto um outro provérbio ou máxima. Consciente dessa

limitação, a Priora cessa de utilizar esses meios e após ordenar a

fidelidade ao quotidiano e à simplicidade, muda o registro e,

superada a oposição entre os valores aristocráticos e os valores

burgueses, atinge outro domínio: o da transcendência.

Mère Saint-Augustin passa a contemplar o escândalo da

Paixão do Cristo.

Lorsqu’ on les considère de ce jardin de Gethsémani où fut divinisée, en le coeur Adorable du Seigneur, toute l’ angoisse humaine, la distinction entre la peur et le courage ne me parait pas loin d’ être superflue et ils nous apparaissent l’ un et l’autre comme des colifichets de luxe. (DC: 1653) (grifos meus)

Somente o homem contempla. Mais do que simplesmente

olhar, é necessário considerar, olhar com atenção, contemplar a

agonia do Cristo. A tortura moral, no Jardim das Oliveiras,

resgatou o medo, a angústia e reverteu todos os valores. O medo,

inconfessável e inadmissível, foi colocado no mesmo nível da

coragem. Aceitar o medo e a humilhação subseqüente, eis o

161

caminho dos pequenos e dos pobres. Sobretudo, insistir na

diferença entre o medo e a coragem seria compactuar com os

resíduos de uma moral aristocrática que sobreviveria no Carmelo.

A Priora restabelece o conceito da verdadeira honra,

lembrando a fidelidade à vocação escolhida: seguir o Cristo na

vergonha, na ignomínia e no medo. "Vous savez très bien que c’est

dans la honte et l’ignominie de sa passion que les filles du Carmel suivent

leur maître." (DC: 1648).

Sua exposição oscila sempre entre um clímax e um

anticlímax. Depois da evocação da Agonia do Cristo, do

escândalo de sua Paixão, a reversão dos valores é traduzida em

outro registro, mais coloquial. A distinção entre o medo e a

coragem seria comparável a "colifichets de luxe" - pendurucalhos.

Esta palavra possui um sentido pejorativo e significa: pequeno

objeto de fantasia, sem grande valor e também enfeites de um

gosto duvidoso. Em conseqüência, o sentimento de honra

segundo os critérios mundanos, o desejo do martírio, o medo do

medo, seriam apenas vãos enfeites de uma moral aristocrática,

inúteis em um convento.

A espiritualidade da Priora denuncia a vaidade de provocar

o martírio e valoriza o abandono total à vontade de Deus. Estar

na mão de Deus não significa uma imunidade contra o

sofrimento, contra a dor. A lógica divina não coincide,

162

necessariamente, com a lógica humana. “... nous oublions trop

aisément que rien ne nous assure contre le mal, que nous sommes toujours

dans la main de Dieu” (DC: 1614). E o Evangelho prega a reversão

de valores (Sermão da Montanha, Mt 5,1-10), facilmente esquecida

em tempos prósperos e de tranqüilidade.

A fraqueza, na obra de Bernanos, pode dar acesso ao

sagrado, e o opróbrio pode transformar-se em glória. A ruptura

das normas, a humilhação e a morte podem vir a ser outro

caminho, caminho que não se escolhe, mas no qual se é colocado.

O texto de Bernanos dialoga com o célebre texto de Pascal

"Grandeur de Jésus-Christ: les trois ordres" (Pascal, 793) e com as

Epístolas de São Paulo onde o tema da fraqueza transformada em

força é recorrente. “Mas Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para

confundir as sábias; Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para

confundir as fortes” (I Coríntios, I, 2).

No Carmelo, um espaço onde fermentam conflitos latentes,

duas ordens de valores enfrentam-se, coexistem e

complementam-se: a moral espiritual aristocrática e a de Mère

Marie de Saint-Augustin, baseada no despojamento total, agindo

no mesmo domínio, com meios de ação diferentes. Convém

ressaltar que Bernanos expõe os diálogos, mas não toma partido.

Cada leitor faz a sua leitura, cada espectador se posiciona,

diferentemente, diante da problemática apresentada.

163

Ao sentimento exacerbado de honra, ligado a uma classe

social, ao desejo do martírio, à sophistique du non, à desmedida, é

contraposta a aceitação do humilde dever quotidiano que é a

oração e o trabalho. Sobretudo, trata-se de ter a sabedoria e a

humildade de distinguir entre o que se deve aceitar perder e a

renúncia para preservar o que pode e deve ser salvo. A difícil

distinção entre o essencial e o acidental.

Marie de l’Incarnation deseja o martírio individual e

procura arrastar toda a Comunidade em sua hybris. Representaria

um certo discurso aristocrático, aquele que expressa o sentimento

exacerbado da honra, o desprezo pela vida e a renúncia aos

prazeres deste mundo. A intuição impulsiona suas decisões. Sua

meta consiste em atingir o supremo gozo de não gozar. O

martírio, um magnífico potlatch, afigura-se-lhe um meio de abolir o

tempo, a espera e a ausência que a separam do Eterno.

A Priora representa a moral burguesa, com seus valores

peculiares: a austeridade, a astúcia, o pragmatismo, o bom senso,

a dignidade do homem, a liberdade de escolha. Ela se considera

não a esposa, mas a serva de Deus. O priorizado é o serviço. Seu

ideal é ser ancilla Domini.

Cada personagem possui sua verdade, resultado de um

olhar sobre o mundo. As duas visões do mundo completam-se no

grande jogo de tentar ler, decifrar o mundo. E é ainda a Priora

164

que define a aparente oposição: “Nous paraissons un peu différentes,

nos voies ne sont pas tout à fait les mêmes, et pourtant nous nous

comprendrons toujours très bien, s’il plaît à Dieu” (DC:1617-1618).

Representam duas maneiras de amar a Deus.

Em relação ao bem comum, também as atitudes são

divergentes. Marie de l’Incarnation procura realizar seu ideal, sem

levar em consideração as fraquezas e peculiaridades do grupo a

que pertence. A Priora, ao contrário, cônscia de seus deveres,

preocupa-se com a comunidade como um todo, constituído de

diferentes elementos, uns mais fortes, outros mais fracos. Com

muita sabedoria, faz a importante distinção: se a responsável

diante de Deus e da sociedade fosse Marie de l’Incarnation, de

bom grado ela pronunciaria o voto de martírio, em suas mãos: “Si

vous étiez à ma place, ce serait aussi un grand bonheur pour moi de

prononcer ce voeu du martyre, et de le prononcer entre vos mains”.(DC:

1665).

Estas duas maneiras de ser podem ser encontradas em

todos os domínios: Marta e Maria, D. Quixote e Sancho Pança, o

sonho e a realidade, a morte e a vida. Nem sempre as duas

atitudes se apresentam nitidamente separados. Há um pouco de

Marta em cada Maria e um pouco de Maria em cada Marta.

165

E o Carmelo acolhe os diferentes discursos. Cada um fala a

sua linguagem, cada um segue o seu caminho, mas existe um

denominador comum que é a procura do Eterno.

Os valores aristocráticos e burgueses coexistiam no

Carmelo, mas havia uma predominância do princípio aristocrático

do código de honra, a valorização do fanatismo do martírio, da

destruição improdutiva - potlatch -. As rupturas e transformações

ocasionadas pela Revolução Francesa repercutem no Carmelo. E

a primeira grande mudança ocasionada foi a eleição para Priora

da burguesa Marie de Saint-Augustin, preferida à aristocrática

Marie de l’Incarnation. Esta eleição anunciou o fim do Antigo

Regime, a instauração dos valores burgueses, a ruptura com o

passado e, sobretudo uma renovação.

Os conflitos existentes no Carmelo intensificam-se com a

presença de Blanche de la Force, nobre e covarde, à procura de

sua identidade, de seu lugar no mundo.

166

Onde está Blanche?

Qu’importe pour quoi nous sommes faits puisque Dieu peut nous faire, défaire et refaire à mesure?

Bernanos

Blanche de la Force, nascida logo após o tumulto da

multidão em pânico, provocado pela explosão dos fogos de

artifício, é um ser marcado pelo medo e pela angústia. Ela “oferece

o exemplo limite desta articulação do sobrenatural sobre o real da angústia.

[...] Ela é angústia” (Renard, 1989: 243).

Frágil e desamparada, Blanche assume o código de honra

de sua classe social, mas exagera seus deveres na tentativa de não

desmerecer seus ancestrais, de respeitar o nome de seu pai, de ser

de la Force. E, pelo medo, sente-se desonrada.

Seu conflito desenvolve-se em dois planos: interiormente, o

que ela exige de si mesma, de acordo com o que imagina ser seu

dever, e no plano exterior - as obrigações que lhe são realmente

impostas.

Dialogues inicia-se com uma indagação: “Où est Blanche?”.

Esta pergunta formulada por seu irmão, o Cavalheiro de la Force,

assume outras conotações e informa o problema fundamental de

167

Blanche: ela não sabe qual o seu lugar no mundo e desconhece

sua identidade.

O conhecimento da identidade pessoal e social e do lugar

que lhes correspondem estão interligados. Em seu ensaio sobre a

abjeção, Julia Kristeva analisa a situação do exilado, do excluído

que se indaga onde está, em vez de se perguntar quem ele é. Em vez

de se interrogar sobre o seu ser, ele se interroga sobre o seu lugar.

Isto porque o espaço que o preocupa apresenta-se-lhe divisível,

dobrável e catastrófico. O lugar onde está confere-lhe uma certa

identidade, a única que lhe parece concedida (Kristeva,1980:15).

Onde está Blanche? Onde está “esta alma que se procura, se

revolta e foge, sem cessar, de si mesma. [...] Onde está realmente Blanche?

Em que tempo e em que espaço se movem sua alma e seu espírito?”,

interroga-se o cenógrafo da versão da ópera de Francis Poulenc,

representada na estação teatral de 1994-1995, na França

(Coutance, 1994).

Antes de tentar seguir Blanche em suas errâncias, mostrarei

como sua personagem se caracteriza e depois analisarei onde ela

está ou procura ficar, mostrando a interação das duas questões.

Quem é Blanche? Ao se referir a Blanche, o Cavalheiro

emprega um tom que faz pensar no início dos contos de fadas:

Elle est venue au monde comblée de tous les dons de la naissance, de la fortune de la nature. La vie était pour elle comme remplie à pleins bords d’un breuvage

168

délicieux qui se changeait en amertume dès qu’elle y trempait les lèvres. (DC: 1634)

Como não pensar na estória da princesa que recebera todos

os dons das fadas madrinhas, mas fora amaldiçoada pela excluída

da festa? E se fada procede etimologicamente de fatum - destino,

teria a multidão, pisoteada na noite dos fogos de artifício,

representado o papel de uma Erínia vingadora? Anatole France,

em Le Livre de mon ami (1996), reafirma a crença difundida pelos

contos infantis que cada ser humano teria uma fada madrinha,

responsável pelos dons maravilhosos ou terríveis que nos

acompanharão ao longo de toda a vida.

Blanche de La Force, ao nascer, recebera dons especiais e

um defeito - o medo - infamante para sua classe social, o que a

torna um ser contraditório e inquietante.

A imagem da personagem Blanche é construída através do

diálogo entre o Marquês, seu pai, e o Cavalheiro de la Force, seu

irmão. Suas posições divergem a respeito da personalidade e da

conduta de Blanche. O irmão exprime inquietude diante do medo

incontrolável, da singuralidade de Blanche enquanto o pai tenta

minimizar tais receios:

Le Chevalier: Oh! Ce n’est pas pour sa sécurité que je crains, vous le savez, mais pour son imagination malade.

169

Le Marquis: Blanche n’est que trop impressionnable, en effet. Un bon mariage arrangera tout cela. Allons! Allons! Une jolie fille a bien le droit d’être un peu craintive. [...] Le Chevalier: Croyez-moi: ce qui met la santé de Blanche en péril, ou peut-être sa vie, ne saurait être seulement la crainte. Ou alors, c’est la crainte refoulée au plus profond de l' être, c’est le gel au coeur de l’arbre... Oui, croyez-moi. Monsieur, l’humeur de Blanche a quelque chose qui passe l’entendement ordinaire [...] Le Marquis: Ouais! Vous parlez comme un villageois superstitieux. L’attachement que vous avez toujours eu pour votre soeur égare un peu votre jugement. Blanche me paraît le plus souvent naturelle, et parfois même enjouée. Le Chevalier: Oh! Sans doute, il arrive qu’elle me fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction dans son regard.... [...]

O diálogo prossegue entre o Marquês e o Cavalheiro, do

qual seleciono apenas os julgamentos sobre Blanche:

Le Chevalier: Vous voulez dire qu’elle en aura été une fois de plus quitte pour la peur ... Quitte pour la peur! Quand il s’agit de Blanche. Le rapprochement de ces deux mots fait frémir... Une fille si noble et si fière! Le mal est entré en elle comme le ver dans le fruit... [...] Le Chevalier: J’ignore si la bizarrerie de sa nature pourrait entraîner Blanche à quelque action blâmable, du moins selon l’idée qu’elle se fait des devoirs d’une fille de qualité, mais je sens

170

bien qu’elle n’y survivrait pas. (DC: 1570-71) (Grifos meus)

As qualidades que são atribuídas a Blanche: juventude,

beleza, nobreza e altivez, constituem dons gratuitos, efêmeros e

ambivalentes. A altivez e a nobreza representam atributos

questionáveis. A nobreza é um simples acaso. Não há mérito em

nascer nobre. E a altivez, considerada pela aristocracia uma

qualidade e não um defeito, representava, durante a Revolução

Francesa, uma ameaça, uma séria indicação para a guilhotina.

A afirmação do Cavalheiro de que Blanche teria uma

imaginação doentia: "son imagination malade", é contestada,

parcialmente, com um eufemismo: "Blanche n’est que trop

impressionnable". E uma moça bonita teria o direito de ser um

pouco medrosa, afirma o velho Marquês.

E ao constatar que o medo de Blanche não se trata de um

simples receio, mas de um temor profundo, como "le gel au coeur de

l’arbre", o Cavalheiro é censurado pelo Marquês que considera sua

linguagem exagerada, análoga à de um camponês supersticioso.

A linguagem do velho Marquês, contida e equilibrada, é a

de um nobre do Antigo Regime, a do Cavalheiro, colorida, cheia

de imagens, um pouco excessiva, é a linguagem do período que

antecedeu a Revolução Francesa.

171

Segundo o Marquês de la Force, Blanche parece "le plus

souvent naturelle, et parfois même enjouée". Importa notar que Blanche

parece natural. No seu esforço para demonstrar uma normalidade

que não possui, provoca um efeito contrário, um mal-estar

naqueles que não se enganam com sua atitude enjouée - amável,

alegre. A etimologia de enjouée (en + jeu) revela um outro sentido:

entrar no jogo, na acepção de respeitar as convenções

estabelecidas, o conjunto de regras a serem observadas. Blanche

joga conscientemente um jogo, tenta dissimular o medo que a

humilha, porém é traída pelo olhar "il arrive qu’elle me fasse illusion à

moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction

dans son regard".

O emprego das palavras le sort - feitiço, magia -, e la

malédiction - maldição, intensificado pelo advérbio toujours - sempre

- poderia indicar uma infelicidade à qual se foi condenado pelo

destino, uma situação da qual se é a vítima. O cavalheiro insinua

a possibilidade do cumprimento da maldição, a ameaça proferida

durante o incidente da carruagem jogada contra o povo (4.1.1.).

As palavras pronunciadas possuiriam, no imaginário

humano, força e possibilidade de se tornar realidade. O dizer

tornou-se ação.

Blanche se caracteriza, principalmente, pela desmedida. Seu

comportamento foge à normalidade: "l’ humeur de Blanche a quelque

172

chose qui passe l’entendement ordinaire". A expressão quelque chose não

revela pobreza de linguagem. Trata-se de uma imprecisão

voluntária, uma decisão de permanecer vago, por motivos táticos.

O Cavalheiro não quer revelar tudo o que sabe e prefere manter-

se na generalidade. Seu julgamento sobre Blanche é matizado de

inquietude e lucidez.

A excentricidade, a anomalia da natureza de Blanche "la

bizarrerie de sa nature" justificaria todos os temores. Tanto o melhor

quanto o pior podem ser esperados de sua parte. Esse leque de

possibilidades imprevisíveis e inquietantes encontraria, talvez, um

obstáculo na exagerada concepção que ela se faz de seus deveres

de nobre. A tensão entre o sentido da honra, "les devoirs d’une fille

de qualité" e sua vulnerabilidade, prenuncia um desenlace trágico:

"mais je sens bien qu’elle n’ y survivrait pas".

Ao aparecer, pela primeira vez em cena, Blanche revela

perturbação, vulnerabilidade e esforço em se dominar,

verificáveis na indicação cênica e no diálogo que se seguem:

Les traits de Blanche sont profondément altérés, mais elle a eu visiblement le temps de se reprendre, et s’ efforce de parler avec enjouement. Blanche: Monsieur le Chevalier est trop bon pour son petit lièvre... Le Chevalier: Ne répétez pas à tout propos une plaisanterie qui n’a de sens que pour nous deux. Blanche: Les lièvres n’ont pas l’habitude de passer la journée hors de leur gîte. Il est vrai que je transportais le

173

mien avec moi. mais une simple glace entre cette foule et ma craintive personne m’a paru un moment, je vous assure, une proctection bien dérisoire. Je devais avoir l’air très ridicule. Le Marquis fait signe à son fils de se taire. (DC: 1573) (Grifos meus)

Embora seu rosto esteja profundamente alterado, Blanche

se controla e admite ser temerosa, em uma tática defensiva:

adiantar-se em aceitar um defeito minimizado. Ela se intitula "un

petit lièvre", uma lebrezinha. Trata-se de uma brincadeira afetuosa

entre os dois irmãos, e o Cavalheiro sente-se constrangido pelo

fato de Blanche repeti-la diante do pai.

Reminiscência, talvez, de leituras integrantes da cultura

francesa, como as fábulas de La Fontaine ou referência à Doxa

que considera a lebre medrosa. Este animal representa, em certos

imaginários, o mesmo papel do cordeiro cristão: animal manso,

inofensivo, herói e mártir por excelência (Durand, 1969: 362).

O nome próprio Blanche, que também pode ser

empregado como adjetivo, remete a imaculado, inocente, e seria

uma personificação da pureza.

Blanche representa uma personagem. Isto é, joga

continuamente durante toda a cena, procurando esconder sua

perturbação através das palavras, o que provoca certo

constrangimento.

174

Nas duas primeiras cenas do primeiro quadro, reaparece a

importância da carruagem e do vidro (4.1.1.) considerados como

uma proteção segregadora. O Marquês procurara tranqüilizar-se,

quanto à segurança de Blanche, argumentando que sua carruagem

é sólida, os velhos cavalos, tranqüilos, o cocheiro, fiel, e os dois

lacaios, velhos e corajosos soldados.

Entretanto, Blanche, retida pela multidão “au carrefour de

Bucy” (DC:1569), julga insuficiente o espaço-abrigo da carruagem.

Um simples vidro a separá-la da massa popular, que compra e

vende na feira da encruzilhada de Bucy, parece-lhe uma proteção

irrisória, como se revelara ilusório e ineficaz no acidente dos

fogos de artifícios. A multidão executa a ação silenciosa de reter a

carruagem. Não há registros nem de ameaças verbais nem de

violências físicas.

As ruas de Paris, espaço aberto, amedrontavam Blanche; o

incidente ocorrido inspira-lhe pavor. Horas depois, ela confessa,

o sentimento experimentado: “...j’ étais glacée jusqu’au coeur” (DC:

1579).

A caracterização da personagem, dominada pelo medo,

completa-se quando o jogo de representar é interrompido, o

frágil equilíbrio se rompe e ela grita, aterrorizada por uma

sombra.

175

A casa paterna, o palacete do Marquês de la Force, espaço

semi-aberto, não representava para Blanche o abrigo desejado. O

sobrenome de la Force constituía, ao mesmo tempo, um motivo

de legitímo orgulho e de humilhação. “Par quel miracle serais-je née

tout à fait indigne de tant d’hommes de bien, justement réputés pour leur

valeur?" (DC: 1578), tortura-se Blanche, assumindo um ônus que

não lhe era exigido.

Blanche refere-se a si mesma como "ma craintive personne",

admitindo ser timorata, temerosa, o que não constituía uma

desonra. Na casa paterna, que participa do mundo e, portanto,

ameaça e, ao mesmo tempo, protege, Blanche oscila entre admitir

o medo e minimizá-lo, preocupada em salvar as aparências, sob o

olhar benevolente dos que a amam.

Admitindo que não consegue viver em sua casa, em seu

meio, enfim, no mundo, Blanche resolve cessar o jogo de fazer de

conta que é forte, que é digna de ser de La Force. Decide

conquistar o seu espaço e entrar para o Carmelo, espaço fechado,

que sua imaginação apresenta como um refúgio. O claustro

parece-lhe o único lugar onde ela poderia recuperar a honra e o

respeito pessoal.

Blanche propõe uma troca com Deus, enfatizando suas

renúncias. Mas, ao tentar negociar com Deus, Blanche age

segundo o valor burguês da permuta e não com a generosidade

176

atribuída ao aristocrata. Há orgulho e ingenuidade em sua atitude.

Ela espera resolver, humanamente, seu problema, longe de um

mundo que seus nervos não podem suportar.

Blanche luta para entrar no Carmelo. Há que se fazer

aceitar como postulante aquela que pede. Sua nobreza pode lhe

facilitar o caminho, mas não constitui um fator decisivo. Há que

ter caráter, força e, sobretudo vocação - ter sido chamada.

Madame de Croissy, já velha e bastante doente, mas perspicaz e

clarividente, percebe as ilusões de Blanche quanto ao Carmelo e

tenta desfazê-las, durante uma longa entrevista. Deixando de

representar, de jogar, a postulante reconhece com sinceridade: “Je

n’ai pas d’autre refuge, en effet”.(DC: 1587). Admitida na Ordem, ela

acredita-se protegida e julga que nada pode atingi-la dentro dos

muros do claustro.

Blanche fugiu do mundo, mas este está presente dentro do

claustro e manifesta-se nos critérios de julgamento, semelhantes

aos valores sociais da época. Ali também a coragem era

valorizada e o medo, desprezado.

Medo, receio, angústia, pavor, terror não são sinônimos,

embora designem situações análogas e apresentem vários pontos

em comum. A angústia é experimentada diante de algo impreciso,

interno, porém ameaçador. O medo resulta do conhecimento de

um perigo real e externo, bem delimitado (Freud, 1951: 97).

177

Pavor e terror não podem ser empregados indiferentemente. O

pavor emudece e paralisa, enquanto o terror não exclui a

possibilidade de agir.

Antes de entrar para o convento, Blanche angustiava-se

diante do mundo que não conhecia, experimentava medo e terror

diante de sombras e deixou-se dominar pelo pavor imobilizante

ao se ver ameaçada pela multidão, protegida somente por um

vidro.

No espaço fechado do convento, o medo de Blanche torna-se

mais visível e sem disfarces. O olhar do outro, nem sempre

benevolente, acentua sua fraqueza revelada em diferentes

circunstâncias: ao recusar fechar a porta de sua cela antes de

dormir e principalmente ao fugir da vigília mortuária da antiga

Priora (DC: 1608).

Seu medo aumenta e transforma-se em pavor. O episódio

da perquirição mostra Blanche paralisada e sem voz, depois de

emitir um grito dilacerante (DC:1638). A personagem é mostrada

como apavorada (effrayée), aterrorizada (terrifiée), com um olhar

desvairado (hagard).

Sua angústia mortal, terrível tristeza e imenso cansaço se

fossem enumerados sucessivamente poderiam remeter a um caso

patológico.

178

Esse comportamento e maneira de ser provocam o desdém

mal disfarçado da maioria das religiosas, sintetizado em um cruel

jogo de palavras: “Blanche de la Force... Sans méchanceté, Soeur Blanche,

on devrait plutôt vous appeler Blanche de la Faiblesse”.(DC: 1670). A

restrição "sans méchanceté", mera fórmula de delicadeza, suaviza,

mas não anula, a falta de piedade e a dureza em relação a Blanche

e revela o quanto uma casta predominava no Carmelo. O

sobrenome de la Force impõe-se mesmo quando Blanche já se

chama de l’Agonie du Christ, confirmando o que a velha Priora

afirmara: que não lhe seria exigido o esquecimento de sua grande

nobreza. O que se revelaria uma faca de dois gumes, pois a

exigência de ser corajosa continua a ser-lhe feita, mesmo no

espaço consagrado ao espiritual, ao transcendente.

Os sentimentos de rejeição de uma grande parte da

comunidade religiosa em relação a Blanche são sintetizados por

Marie de l’Incarnation: “J’ ai honte de penser qu’ une fille de grande

naissance puisse, le cas échéant, manquer de coeur” (DC: 1599).

A expressão manquer de coeur significa não ter coragem.

Coeur, usado no sentido de coragem, é recorrente na linguagem

do século XVII. Avoir du coeur significa ser corajoso.

Mais do que por ser medrosa, Blanche é menosprezada por

sua falta de firmeza e de coerência de atitudes, o que poderá

179

constituir uma ameaça à sua comunidade religiosa. “...ce manque de

caractère peut devenir un péril pour la Communauté.” (DC: 1617).

Os sentimentos de angústia, medo, e terror experimentados

por Blanche intensificam-se e atingem o clímax na última noite de

Natal passada no Carmelo já invadido e despojado. Ao ouvir

ressoar o canto da Carmagnole, sob os muros do convento,

Blanche deixa cair a estátua representando Jesus Menino. Mais

uma vez, faz-se sentir a ação da massa popular, embora invisível,

através do canto revolucionário. O texto assinala o efeito

produzido em Blanche: “Terrifiée, avec l’expression d’une stigmatisée”

(DC: 1656).

A nova Priora, inicialmente, subestimara a fraqueza de

Blanche e acreditava ter tempo de transformá-la em uma

verdadeira filha de Santa Teresa d’Ávila. O processo

revolucionário, entretanto, pressionava cada vez mais as

religiosas, visando acabar com os conventos.

Considerando que Blanche se revelara incapaz de superar o

seu medo, levando em conta a fraqueza de seu caráter, tendo em

vista o bem comum e usando do direito que lhe conferia seu

cargo, a Priora decidiu julgar seu período de noviciado

insatisfatório e despedi-la, isto é, devolvê-la à sua família (4.2.2).

Ao entrar para o Carmelo, Blanche acreditara ser possível,

como referido, mediante uma troca com Deus, vencer sua

180

fraqueza e seu medo. Durante algum tempo iludiu-se a respeito

de si mesma e julgou poder enfrentar as dificuldades. Suas

palavras soam falsas e mesmo arrogantes e não convencem o

irmão, que tentou persuadi-la a voltar ao palácio da família de La

Force, pois o Carmelo já não constituía uma fortaleza

intransponível.

Ao tomar conhecimento da decisão da Priora, Blanche,

humildemente, declara já não ter a veleidade de poder superar seu

medo e que arrastaria onde quer que fosse sua desonra, como um

condenado aos trabalhos forçados os seus grilhões. Com imenso

esforço, ela declara:

C’ est vrai que je n’espère plus surmonter ma nature.[...] Oh! Ma mère, partout ailleurs je traînerai mon opprobre ainsi qu’un forçat son boulet. Cette maison est bien le seul lieu au monde où je puisse espérer l’offrir à Sa Majesté, comme un infirme ses plaies honteuses. (DC: 1658)

Blanche já não é mais a aristocrata disposta a todos os

sacrifícios para recuperar uma honra mundana. Assume sua

angústia mortal, seu medo, sua covardia, e esperaria poder

oferecê-los a Deus no Carmelo. Oferecer, remete a oferenda e a

sacrifício. Ela quer oferecer o que tem e, sobretudo o que é,

considerando-se uma enferma, no sentido de não ter forças, de

ser fraca.

181

A Priora perturba-se diante da angústia de Blanche,

vislumbra um desígno especial de Deus e suspende sua decisão.

Os acontecimentos precipitam-se. A Revolução invade o

Carmelo, através de cantos, barulhos, ruídos, desfiles e

perquirições que se amiúdam.

Sentindo-se ameaçada dentro do recinto que julgara

inviolável, e tornado inseguro, Blanche sucumbe ao medo e

refugia-se no “séchoir” - secadouro (DC: 1682). Reservado à

secagem de roupas, o secadouro comumente localiza-se no sótão,

na parte superior das construções. Blanche escondera-se ali,

como uma criança, e preocupara Mère Marie de l’Incarnation que

a procurava em silêncio: “... je ne savais où la chercher” (DC: 1682).

As ações de Marie de l’Incarnation, que a velha Priora antes

de morrer, tornara responsável por Blanche, revelam-se

contraditórias. Se, por um lado, procura-a, e após localizá-la,

habilmente, faz cessar os comentários sobre sua ausência,

alegando um motivo honroso, por outro lado, precipita sua fuga

do convento, ao insistir no pronunciamento do voto de martírio.

Esse voto, para a preservação do Carmelo e salvação da França,

obrigaria as religiosas, não a provocar o martírio, mas a evitar

qualquer medida para impedi-lo, “... comme un malade refuse la

médecine qui le sauverait ...” (DC: 1685).

182

Incapaz de se opor publicamente ao que quer que seja,

cansada de lutar contra seu terror, Blanche pronuncia o voto de

martírio com voz forçada e muito clara e depois, abandona o

Carmelo, foge (DC: 1688).

Blanche refugia-se no mundo, outrora tão temido, abdica

de toda e qualquer consideração humana e acredita-se protegida

por ter atingido o mais alto grau de abjeção: “Où je me trouve, qui

penserait à me chercher? La mort ne frappe qu’en haut.” (DC:1701),

declara a Marie de l’Incarnation que viera buscá-la.

Nada mais esperando nem do outro nem de si mesma, ela

grita com a violência inesperada dos fracos:

La peur n’offense pas le bon Dieu. Je suis née dans la peur, j’ y ai vécu, j’ y vis encore, tout le monde méprise la peur, il est donc juste que je vive aussi dans le mépris. Voilà longtemps que je le pense. Le seul être qui aurait pu m’ empêcher de le dire, c’ était mon père. Ils l’ ont guillotiné voilà peu de jours. (DC: 1702) (grifo meu)

A morte do pai liberou a voz de Blanche. Nada a impede

de proclamar sua miséria. Já não há mais troca nem oferenda,

apenas a aceitação de uma fraqueza da qual não se sente

responsável. Blanche faz mesmo questão de declarar sua

vergonha de ter sido espancada em sua própria casa, onde

desempenha o papel de criada (DC: 1702). Nada resta da

aristocrata orgulhosa de sua linhagem.

183

Nas ruas de Paris, um paralelo com a situação inicial,

Blanche, despojada de tudo o que possa significar segurança,

começa a dominar, pouco a pouco, seu medo. Embora

demonstre, algumas vezes, terror em seu rosto (DC: 1705), já não

se encontra paralisada pelo pavor. Ela se comunica com o povo,

fala, indaga.

No convento, Blanche era considerada uma criança - une

enfant (DC, 1640), etimologicamente, aquela que não fala. Seu

sobrenome - de la Force - e o nome escolhido ao professar os

votos - de l’Agonie du Christ - pesados demais, sufocavam-na.

Como uma voz anônima, Blanche pode informar-se da

sorte das carmelitas encarceradas. O processo de libertação

coexiste com sua covardia. Ela nega conhecer até mesmo a

cidade de Compiègne e fornece uma identidade social fictícia

(DC: 1705). Esta negação poderia fazer ressoar a de São Pedro,

quando o Cristo foi aprisionado.

Embora revele sinais, mesmo físicos, de medo e de terror,

ela os supera com uma "résolution désespérée" (DC: 1705) e dirige-se

à casa da atriz Rose Ducor, que lhe fora sugerida, como abrigo,

por Marie de l’Incarnation.

A reversão de valores evidencia-se. No Antigo Regime, os

atores eram desprezados e discriminados, socialmente. Nem

mesmo tinham o direito de serem enterrados em cemitérios

184

religiosos, lugar sagrado. Durante a Revolução, Rose Ducor, uma

atriz, tem coragem de proteger os que estão ameaçados. Sua casa,

espaço semi-aberto, revela-se protetor.

A revolta motiva a ida de Blanche à casa da atriz. Ela quer

impedir a morte decretada das carmelitas e indigna-se com a

alegria e aceitação demonstradas por Marie de l’Incarnation:

Mourir, mourir, vous n’avez plus que ce mot à la bouche! Serez-vous tous jamais las de tuer ou de mourir? Serez-vous jamais rassasiés du sang d’autrui ou de votre propre sang? (DC: 1707)

Blanche tornou-se a figura da revolta e do horror. Ela quer

viver e recusa a morte. Esta aversão diante do sofrimento

antevisto seria, talvez, uma atualização da agonia do Cristo no

Monte das Oliveiras (Mc: 14-33). Blanche de la Force age com a

força do nome recebido ao nascer e vive o mistério do nome que

escolhera ao tornar-se religiosa: de l’Agonie du Christ. Há uma

crença de que o nome escolhido ao entrar no convento norteará

o caminho espiritual a ser trilhado. Blanche vivenciou sua própria

agonia e revive a agonia do Cristo.

As últimas palavras que pronuncia, no texto, são um grito

de protesto: “Je ne veux pas qu’elles meurent! Je ne veux pas mourir”

(DC: 1707).

Depois de tentar mudar os acontecimentos, Blanche foge,

volta às ruas de Paris, espaço aberto, que lhe parece o lugar mais

185

seguro. Ela volta ao mundo, outrora temido, recomeça sua

errância e não mais falará, até o canto final.

A procura de um lugar pode ser esquematizada no quadro

que se segue:

Espaço Aberto

(Ameaça)

Espaço Semi-Aberto

(Insegurança)

Espaço Fechado

(Refúgio)

Ruas de Paris

Palacete → Convento

Palacete → Convento → “Séchoir”: secadouro

Palacete → Casa da Atriz → Cadafalso

Lugar mais exposto =

refúgio

Como já referido, os dezesseis Carmelitas do Carmelo de

Compiègne, condenadas pelo Terror Revolucionário, foram

executadas em 1794. E, segundo o texto de Bernanos, baseado na

novela de Gertrud von le Fort, a personagem Blanche de la Force

termina o canto de suas irmãs que o ruído da guilhotina calara

uma a uma.

186

Imprevisivelmente, aquela que não queria morrer, que

fugira, que tinha medo, sob a ação da Graça Divina, contra as

humanas previsões, dirige-se para o cadafalso. O texto acentua

que Blanche se exprime através do canto, porém de modo mais

claro, mais resoluto do que o das outras religiosas e deixando

entrever algo de infantil que remete à sua verdadeira natureza:

“une nouvelle voix s’élève, plus nette, plus résolue encore que les autres, avec

pourtant quelque chose d’enfantin” (DC: 1719).

Ao deixar transparecer algo de infantil, Blanche afirma a

ação da Graça que se enxertou em sua natureza, transformando-a,

sem anulá-la.

A transformação de Blanche revela a força do dogma da

Comunhão dos Santos, a circulação da Graça Divina entre os

membros do Corpo Místico de Cristo. Cumpre-se o que

Constance de Saint-Denis previra: "On ne meurt pas chacun pour soi,

mais les uns pour les autres, ou même les uns à la place des autres, qui sait?"

(DC:1613).

Importa salientar que, segundo a fé cristã, Deus age através

dos acontecimentos e pessoas. Deste modo, a massa humana,

sempre presente e atuante na vida de Blanche, antecipa o

desenlace: “Brusque mouvement de foule. Un groupe de femmes entoure

Blanche, la pousse vers l’échafaud, on la perd de vue” (DC: 1719). O

grupo de mulheres participa, inconscientemente, do plano de

187

Deus, precipitando os acontecimentos e auxiliando a vontade de

Blanche, movida pela Graça. E tudo é graça, como dizia o humilde

Curé de Campagne (OR: 1259), repetindo a expressão de Santa

Teresa de Lisieux.

Em sua errância, Blanche intensificou sua angústia e seu

medo ao acrescentar-lhes sucessivas rupturas, informadas pelo

sentimento essencial de exílio, na busca incessante de seu lugar

no mundo, uma manifestação da procura de sua identidade. E

cada lugar conquistado revelou-se inadequado e perigoso.

Apesar de parecer aniquilada, Blanche tornou-se capaz de

reviver pois “a abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu)”

(Kristeva, 1980: 22). Ela participara da Agonia do Cristo, ao

recusar a morte e também o acompanha ao subir, livremente, ao

cadafalso. Blanche, finalmente, encontrou seu lugar.

A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos,

que admitia, em carta a Jorge de Lima: “Je suis vraiment, comme vous

le dites, un exilé”.(CORR II 248).

188

BERNANOS, O EXÍLIO?

Tout monde est un exil pour ceux qui philosophent. C’est encore un voluptueux, celui pour qui la patrie est douce. C’est déjà un courageux, celui pour qui tout sol est une patrie. Mais il est parfait, celui pour qui le monde entier est un exil.

Hugues de Saint Victor

Todo exílio é doloroso, ainda que para alguns se apresente,

aparentemente, dourado, o que não é o caso de Bernanos.

Exílio não deve ser confundido com desterro, degredo,

deportação, expatriação, proscrição, ou outros parassinônimos.

Desterro é o lugar onde vive aquele que está fora de sua terra. O

degredo consiste na pena de desterro que a justiça impõe a

criminosos. A deportação refere-se, sobretudo à execução da

sentença condenatória de expulsão de um lugar, enquanto

expatriar emprega-se nos casos de banimento da pátria.

Proscrever refere a existência de um edital, voto escrito ou

sentença de condenação. Os editais de degredo eram escritos em

tábuas que se afixavam em lugares públicos.

O exílio não é uma punição desonrosa. Banimento e

desterro o são. Na monarquia absoluta, o rei podia exilar um

ministro, mas não banir. Os dois verbos exilar e banir exprimem

189

uma sanção pronunciada contra alguém, porém não são

sinônimos. Banir possui uma carga semântica mais forte do que

exilar, mas pode ser empregado no sentido figurado, de forma

atenuada: banir uma preocupação. O verbo exilar, ao contrário,

restringe-se à acepção de afastamento de algum lugar. Costuma

ser empregado na forma pronominal ou na voz passiva.

Deleuze afirma que não há conceito simples; todo conceito

seria, pelo menos, duplo ou triplo e teria um contorno irregular,

dificilmente demarcável. Trata-se de um problema de articulação,

de recorte e de desbaste (Deleuze & Guattari, 1991:21).

Assim, a noção de exílio aqui adotada ultrapassa a idéia de

um simples deslocamento geográfico, um afastamento

temporário. Cito, a título paradigmático, o célebre exílio de

Ulisses, a viagem sem retorno de Enéias e o ostracismo de

Ovídio, exilado por Augusto na longínqua Dácia, atual Romênia.

E como exemplo da atualidade, assinalo uma vertente na

literatura romena que se intitula uma literatura de exílio, na qual

figuram, entre muitos outros, os nomes de Emil Cioran e Eugène

Ionesco.

Examinarei o conceito de exílio, considerando

rapidamente seus aspectos filosóficos e religiosos. Em seguida,

analisarei a obra de Georges Bernanos sob esse ângulo,

demonstrando as diferentes formas de exílio que se apresentam:

190

numerosas e sucessivas mudanças de domicílio, rupturas

marcantes, exílio voluntário, exílio interior, o que sugere uma

forma de nomadismo ou errância.

A origem do conceito de exílio, do ponto de vista

filosófico, encontra-se, como se sabe, em Platão. Segundo os

ensinamentos do filósofo que tanta influência exerceu sobre o

pensamento cristão, a alma é imortal, provém da esfera do divino.

Existiu antes de prender-se a um corpo e continuará a existir após

a morte. O corpo seria uma prisão, um túmulo para a alma.

Platão exprime essa teoria em duas palavras: SOMA = SÈMA. O

corpo - soma - é um túmulo - sèma - para a alma que sofre como se

estivesse doente. De acordo com essa teoria, a finalidade da vida

terrestre é o retorno da alma a seu estado original (Platon, 1954:

1213).

Considerado sob o ponto de vista religioso, a origem do

exílio essencial, para a mística judáica (Kabala), situava-se em

Deus, exilando-se de si mesmo no ato da criação, e nos

consecutivos exílios vividos pelo homem em sua dimensão

histórica ou pessoal. José Augusto Seabra escreve:

Era em Deus mesmo que para os kabalistas se situava a origem do exílio de que Israel fez a experiência trágica, desde o Exílio no Egipto aos sucessivos exílios da Diáspora. Esta abriu-se tanto mais à mística kabalista quanto ela correspondia à sua própria vivência de uma errância. Mas o Exílio de Israel não é

191

apenas um acontecimento histórico e sim, como a Redenção, algo que tem a ver com o mistério do ser, do homem e de Deus mesmo, desde o início da criação. Ele é o símbolo místico de tudo quanto existe e da Divindade que o criou. (Seabra, 1996)

O exílio seria também uma missão e não apenas um

sofrimento e é sob esse enfoque que a Kabala procura explicar os

sucessivos exílios, conseqüências das expulsões motivadas pela

intolerância religiosa, através dos séculos. A expulsão dos judeus

da Península Ibérica, em 1492, ao provocar a dispersão, pode ser

considerada sob esse ângulo.

O conceito de Platão sobre a alma exilada, difundido

principalmente por Santo Agostinho, e a mística judáica, raiz do

cristianismo, influenciaram o pensamento religioso cristão que

privilegia, entretanto, a Queda e a Redenção do Homem e

sobretudo o mistério da Encarnação da Segunda Pessoa da

Santíssima Trindade. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós”

(João, 1,14).

As três correntes afins, Platonismo, Kabala e Cristianismo

confluem e alimentam um pensamento eclético em que,

teologicamente, todos se sentem exilados, prisioneiros do próprio

corpo e vivendo exilados, em um vale de lágrimas, como o atesta

o belo hino à Virgem Maria, o Salve Rainha.

192

Essa concepção pessimista da vida influenciou de tal modo

o pensamento cristão, predominante na Idade Média, que

necessário foi esperar o Século das Luzes para que a idéia de

felicidade fosse recuperada e considerada uma idéia nova na

Europa (Lins, 1993:23). Séculos de cristianismo privilegiaram a

imagem de um Cristo padecente; enfatizava-se a permanência do

sofrimento, enquanto o direito à alegria e aos prazeres dessa terra

eram minimizados ou, prudentemente, esquecidos.

O tema do sofrimento inerente à vida humana, do qual o

exílio essencial seria uma das conseqüências, apresenta-se como

tema constante de nossa cultura.

O exílio é um tema recorrente do pensamento e da criação dos tempos modernos e contemporâneos. Ele está no centro de muitas obras, de inspiração religiosa ou não, tocadas, de uma forma ou de outra, pela mística judaica. (Seabra, 1996).

Nessa acepção, todo homem seria um exilado. Apesar das

diferenças, existe um denominador comum entre as diversas

concepções que consideram o exílio uma condição do ser

humano nesse mundo. O exílio definiria a condição do homem

nessa terra. Emmanuel Levinas confirma essa especulação, em

um evidente diálogo com o Deuteronômio (6,12):

La condition - ou l’incondition - d’étrangers et d'ésclaves en pays d’Égypte, rapproche l’homme du prochain. Les hommes se cherchent dans leur incondition d’étrangers.

193

Personne n’est chez soi. Le souvenir de cette servitude rassemble l’humanité. (Levinas, 1972: 108)

Segundo se depreende da reflexão de Levinas, as razões

definitivas do exílio seriam transcendentais, porém as causas que

o determinam relacionam-se com circunstâncias sócio-

econômicas, com a História.

Em que sentido pode ser empregada a palavra exílio para

caracterizar a obra de Bernanos? Distinguirei diferentes formas de

exílio: uma errância - as inúmeras mudanças de casa e de país. E

um exílio total - no tempo e no espaço - o que permitiria talvez o

emprego da expressão um exílio no exílio, revelado em sua obra.

Antes de propor uma leitura da obra de Bernanos, sob este

ângulo, julgo pertinente extrair de sua biografia elementos

esclarecedores e referências cronológicas.

Há alguns anos atrás, a crítica universitária, de inspiração

estruturalista em sua vertente mais radical, rejeitaria referências

biográficas. Hoje, voltou a ser considerada importante e mesmo

indispensável uma biografia sem biografismos.

Isto porque o escritor, independente de sua vontade, está

ligado à História, à sua estória. E quem conta um conto, conta o

seu conto, diz a sabedoria popular. A biografia importa, na

medida em que esclarece o texto, e este adquiriria valor

testemunhal quando o narrador, ao fazer a enunciação na

194

primeira pessoa do singular, assume um discurso aparentemente

autobiográfico. O que não garante a autenticidade do

testemunho, que pode ser mera ficção. A vida do escritor, no

fundo, não tem a menor importância, exceto se deixou marcas

em seus textos, como é o caso de Georges Bernanos.

Em se tratando da relação vida e obra, as declarações de

Bernanos são, aparentemente, contraditórias. Se, por um lado,

afirma: “Je ne suis pas l’homme de mes livres, mais du moins je ne mens pas

à mes livres, ma vie ne dit rien, ma vie se tait” (EEC I: p.877), declara

também: “Mon oeuvre, c’est moi-même, c’est ma maison" (EEC II :16).

Como ler essas declarações? O que interessa é apenas o texto

escrito, e por que não a personagem do escritor produzida pelo

texto? Por outro lado, se Bernanos e sua escritura constituiriam

algo indivisível, a razão derradeira, o que realmente importa? As

duas interpretações parecendo-me válidas, opto por recortar na

vida de Bernanos os fatos e as circunstâncias que julgo

esclarecedores e que corroboram minha hipótese de leitura da

obra bernanosiana sob o ângulo do exílio.

Minha pesquisa biográfica baseia-se, entre outros, em dois

livros que se completam: Georges Bernanos à la merci des passants,

(1986), de Jean-Loup Bernanos, filho mais novo do escritor.

Exaustivo trabalho biográfico, o autor retraça um perfil do pai,

com a necessária distância e objetividade, atingindo o objetivo

195

proposto - o olhar do filho depurado pelo tempo e matizado pela

emoção; e Georges Bernanos (1989), de Max Milner, professor

universitário e eminente especialista bernanosiano. Trata-se de

uma documentada síntese biográfica que procura analisar,

imparcialmente, a complexa obra do autor de Les grands cimetières

sous la lune. Refiro as fontes consultadas, reconhecendo, de

antemão, que posso ter assimilado informações, extraídas das

obras mencionadas e que já não poderia, rigidamente, demarcá-

las.

Considerando as suas inúmeras e sucessivas mudanças de

casa, região e país, procurarei responder à pergunta: Onde estava

Bernanos?

A leitura de uma biografia de Georges Bernanos revela seus

constantes e inúmeros deslocamentos. Os motivos evocados são

quase sempre de saúde ou de ordem econômica, excetuando o

exílio no Brasil, por razões ideólogicas.

Julgo pertinente considerar vários exílios dentro de um

grande Exílio. Bernanos era monarquista em pleno regime

republicano; católico, em um mundo ateu; patriota quando

muitos se rendiam à Alemanha. A solidão, a independência, a

valorização de um modelo heróico, enraizado na Idade Média

feudal, não revelariam uma estrutura de exílio? Qualquer que seja

196

a leitura destes fatos, há que se reconhecer a existência de uma

inadequação ao momento presente; Bernanos está sempre ailleurs.

Uma tentativa de classificar as diferentes formas de

romantismo anticapitalista, de Michael Löwy e Robert Sayre, em

Romantismo e política, qualifica Georges Bernanos de "romântico

restitucionista". “O tipo restitucionista [...] aspira à restituição - ou seja, à

restauração ou a recriação desse passado no presente...”. Em sua maioria

literatos, como Chateaubriand, Vigny, Lamartine e Hugo, entre

outros, o romântico restitucionista volta-se para uma Idade Média

idealizada. “Tal concentração do ideal no passado medieval, sobretudo em

sua forma feudal, talvez se explique, por um lado, devido à sua relativa

proximidade no tempo (comparada às sociedades antigas, pré-históricas etc.)”

Georges Bernanos pode ser considerado um caso exemplar do

restitucionismo. “Em seu universo romanesco a única atitude válida é a

aceitação da necessidade de uma luta absurda e perdida de antemão, para

restaurar o paraíso perdido”.(Löwy & Sayre, 1993: 41-46).

Ao se exilar, Bernanos difere da atitude predominante entre

os católicos que confiam na Providência Divina e normalmente

não se expatriam. O judeu e o protestante, pertencentes a

minorias raciais e religiosas, tentam mudar os acontecimentos e

muitas vezes se exilam.

No século XX, Jacques Maritain e Georges Bernanos

constituem exceções no meio católico. Maritain, convertido de

197

origem protestante, emigra para os Estados Unidos em 1940 e

publica À travers le désastre, difundido na França por Edmond

Michelet.

Bernanos exilou-se no Brasil, onde escreveu a maior parte

de seus Écrits de Combat, uma violenta e apaixonada acusação

contra o poder temporal da Igreja e contra as classes

conservadoras. E o protesto vindo de dois grandes escritores

católicos não é um mero acaso (Cf. 2).

Ler a obra de Bernanos através da ótica do exílio

esclareceria seus aspectos aparentemente contraditórios e

permitiria melhor compreender as rupturas que pontilharam sua

existência e deixaram marcas em sua escritura.

Delimitei o exílio bernanosiano stricto sensu à sua estada no

Brasil - 1938-1945 - e o conceito de exílio lato sensu à sua visão

trágica do mundo.

Para Bernanos, a visão trágica do mundo caracteriza-se pela

presença multiforme de Satã e a ausência aparente de Deus. E

para vencer esta presença é preciso resistir, lutar, submeter-se à

vontade divina e, principalmente, superar a tentação do

desespero: “La plus haute forme de l’ espérance, c’ est le désespoir

surmonté” (EEC II: 1263).

A visão trágica de Bernanos, a impossibilidade de viver em

um mundo em que Deus se esconde (Goldmann, 1959)

198

concretiza-se em mudanças, rupturas e, sobretudo em estar sempre

longe. "Où sommes-nous ? me demandera-t-on. Heureux l’artiste qui peut

répondre, qui aurait le droit de répondre: Que vous importe? Nous

sommes loin.” Bernanos (EEC I: 1097) (Grifo meu).

As rupturas e continuidades da obra bernanosiana

constituíram o tema de um Colóquio realizado em 1988, em

Nancy, e serão enfatizadas no recorte de sua peregrinação que

se segue.

Georges Bernanos (1888-1948) nasceu em Paris, cidade que

ele amava quando estava longe, no dizer de Jean-Loup Bernanos,

mas o cenário da maior parte de seus romances será Fressin, em

Pas-de-Calais, onde sua família passava as férias.

Quando a Primeira Guerra Mundial foi deflagrada, ele se

alistou e foi aceito, embora tivesse sido reformado em 1910.

Após a guerra, trabalhou como inspetor de uma companhia

de seguros. Durante suas viagens de trem no leste da França, de

1920 a 1925, redigiu, lentamente, seu primeiro grande sucesso

literário, Sous le soleil de Satan, publicado em fins de março de

1926, ano em que também veio a lume Saint Dominique, obra

hagiográfica. Bernanos, provavelmente, começou a amadurecer a

idéia do romance, logo após o Armistício em 1918. Em todo

caso, oito anos decorreram entre o final da guerra e sua

publicação.

199

Em entrevista concedida a Frédéric Lefèvre, redator de Les

Nouvelles Littéraires, periódico caracterizado pela imparcialidade

política e aceitação de verdadeiros talentos, Bernanos declara: “Je

crois que mon livre est un des livres nés de la guerre” (EEC I: p.1039).

Esta afirmação pode ser estendida ao conjunto de sua obra,

nascida da guerra. Cito o notável artigo de Joseph Jurt sobre o

assunto, Un univers né de la guerre (1998) antes de fazer minha

leitura e reiterar a pertinência dessa afirmação.

No pós-guerra, 1926 foi um ano marcado pelo

aparecimento de grandes obras literárias: La Tentation de l’Occident

de Malraux, Les Faux-Monnayeurs de Gide, Les Bestiaires de

Montherlant. Georges Bernanos publica Sous le soleil de Satan,

graças aos esforços de seus amigos. Robert Vallery-Radot, Henri

Massis e François Le Grix convenceram a Editora Plon a publicar

o romance na coleção Le roseau d’or, dirigida por Maritain. Foi

ainda Massis quem teria pedido a Daudet que escrevesse sobre a

obra. Saudado por Léon Daudet, um fazedor e também

demolidor de reputações, inclusive literárias, como o romancista

do pós-guerra, Bernanos conheceu a consagração de um dia para

o outro.

Artigos, declarações e entrevistas multiplicaram-se. A

primeira edição esgotou-se rapidamente, providenciou-se uma

segunda edição, o que é muito significativo em termos editoriais.

200

Autores existem que experimentam um sucesso efêmero, porém,

não ultrapassam uma primeira edição esgotada, dificilmente

seguida de uma outra.

Uma pergunta impõe-se: quem lia Sous le soleil de Satan em

1926? Joseph Jurt, ao pesquisar, exaustivamente, a recepção de

Bernanos pela crítica jornalística de 1926 a 1936, inferiu que a

maior parte das leituras, favoravéis ou hostis, eram

predominantemente ideológicas. Dissociar valor estético e

ideologia constituía uma exceção.

Durante os anos loucos, Bernanos antecipa a consciência

trágica dos anos 30. Sua obra estaria em desacordo com a idéia de

gratuidade, característica da literatura dos anos 20. Essa falta de

adequação às idéias em voga, à l’air du temps, não impediu um

imenso sucesso literário, talvez mesmo o justifique.

Anos mais tarde, o escritor dirá com certa ironia:

“... car je n’ai pas l’honneur d’ être un écrivain méconnu, mes livres se vendent - ce qui prouve qu’un grand nombre de gens les lisent sans les comprendre, ou peut-être, hélas! Les achètent sans les lire”.(EEC I: 896).

Após o êxito de Sous le soleil de Satan, Bernanos resolve

abandonar a Companhia de Seguros em que trabalhava e se

dedicar à sua obra literária. Essa decisão foi tomada,

principalmente, devido à saúde de sua mulher que precisava

201

passar dois anos à beira mar. Esta escolha condená-lo-á aos

trabalhos forçados literários até o fim de sua vida. Envelhecido e

doente, vivia, exclusivamente, da remuneração do seu trabalho de

escritor, paga por seu editor a cada página escrita. Os problemas

financeiros acompanharam-no durante toda a sua existência.

Outra conseqüência do êxito obtido foi a mudança de

domicílio. Instalou-se durante o verão em Ciboure e em seguida

em Bagnères-de-Bigorre, localidade próxima a Tarbes, não mais

sendo obrigado a residir em Paris ou no Leste da França.

Esses deslocamentos revelaram-se, a posteriori, as primeiras

etapas de uma longa errância, justificados, aparentemente, por

problemas monetários e pela busca de um clima ameno, favorável

à saúde de sua família. Jean-Loup Bernanos menciona uma

trintena de mudanças que sua mãe enfrentou ao longo do

casamento. Sem pretender arrolar todas as mudanças de casa,

região, país ou continente, empreendidas por Bernanos,

procurarei destacar as que considero mais importantes e

significativas para a leitura proposta.

Tendo abandonado um emprego seguro, Bernanos

acreditou-se livre para escrever com tranqüilidade. Os

acontecimentos provariam o contrário. Em 27 de agosto de 1926,

o arcebispo de Bordeaux publicou uma declaração condenando

202

as posições doutrinais da Action Française e acusando seu diretor,

Charles Maurras, de paganismo.

Movimento de extrema direita, L’Action Française marcou a

primeira metade do século XX francês sob todos os aspectos:

religioso, intelectual e político, e ainda hoje se manifesta, entre

outros, no jornal quotidiano lepenista Présent.

Fundada em 1898 por Maurice Pujo e Henri Vaugeois,

L’Action Française prega a doutrina da restauração monarquista,

sob a influência de Charles Maurras que preconizava o

nacionalismo integral. Para Maurras, ser patriota equivaleria,

obrigatoriamente, a ser monarquista. Dispondo, a partir de 1908,

de um jornal quotidiano do mesmo nome, L’Action Française

exerceu grande influência no meio católico de extrema direita,

sobretudo sobre os estudantes e sua ação se estende a uma

grande parte da burguesia.

Ao apogeu de 1918 seguiu-se a condenação pontifical em 5

de setembro de 1926, em que o Papa Pio XI ratifica a tomada de

posição do arcebispo de Bordeaux.

Diante das reações violentas e para esclarecer as

controvérsias, o Sumo Pontífice pronuncia uma nova condenação

da Action Française em 20 de dezembro do mesmo ano. Colocado

publicamente no Index, uma das proscrições máximas da Igreja,

por um decreto da Congregação do Santo-Ofício, em 29 de

203

dezembro, esse movimento será definitivamente condenado, em

março de 1927.

A reprovação formal, pela Igreja, da Action Française

transtornou Bernanos. Embora já se tivesse afastado do

movimento em 1919, julgou ser uma questão de honra defender

Charles Maurras e o movimento ao qual estava ligado desde a

juventude, quando, Camelot du Roi, se batia nas ruas do Quartier

Latin.

Les Camelots du roi eram um grupo de monarquistas de

extrema direita, filiados à L’Action Française, reputados pela

violência de seus métodos de ação. Vendiam jornais e promoviam

tumultos no Quartier Latin e na Sorbonne. Elementos de diferentes

classes sociais faziam parte de suas fileiras. Uma das últimas

manifestações do grupo, registradas pela imprensa, data de 6 de

fevereiro de 1934 e Sartre denuncia em Le Mur o fanatismo e a

intransigência desta associação.

Bernanos, dividido entre o dever do católico de submeter-

se a Roma e o senso pessoal de honra, opta, dentro dos limites

compatíveis com a obediência, pela solidariedade à pessoa de

Charles Maurras. Essa escolha contraditória apresentaria analogia

com o dever de fidelidade feudal que ligava pessoalmente o

vassalo ao suzerano. Bernanos acreditava que uma vez

204

empenhada a palavra, um homem - ou um povo “doit la tenir, quel

que soit celui auquel il l’a engagée” (EEC II: 969).

A contradição reside no fato de que, desde o final da

guerra, Bernanos discordava da nova orientação política da Action

Française, julgando-a infiel a seus ideais primeiros, passiva demais

e jogando o jogo do poder. A essa discordância acresce-se o fato

de que Bernanos admirava Maurras, porém não era seu amigo

pessoal. Nada, entretanto, o impediu de lançar-se numa defesa

desesperada daquele que considerava um verdadeiro mártir,

defensor da integridade da pátria e, sobretudo da Igreja Católica,

na França. Bernanos enfocava o problema de um ponto de vista

exclusivamente religioso, o que não era exatamente a ótica de

Maurras, ateu notório, mas defensor da Igreja, por patriotismo.

Essa diferença de motivações constituiu o cerne de um mal-

entendido que, posteriormente, transformou-se em ruptura.

O julgamento da Action Française representou uma etapa

decisiva na vida de Bernanos. Durante anos, a dilaceração foi a

tônica de seus sentimentos. Mas superou a provação e, livre das

limitações de um partido, pôde escrever, mais tarde, entre outras

obras-primas, Les Grands Cimetières sous la lune (1938), Journal d’un

curé de campagne (1936) e Dialogues des Carmélites (1949).

Ao deter-me sobre essa condenação, meu objetivo

consistiu em salientar a importância da crise pessoal provocada

205

em Bernanos e, sobretudo da célebre ruptura de 1932, início de

uma série de rupturas, as inúmeras partidas sem voltas que balizaram

a existência de Georges Bernanos.

No meio do turbilhão de idéias provocado pela condenação

da Action Française, em um ambiente entristecido por doenças e

luto, Bernanos redige, em menos de um ano, seu segundo

romance, L’Imposture, lançando-o em novembro de 1927. O

projeto inicial chamar-se-ia Les Ténèbres, porém as circunstâncias

obrigaram-no a publicar, separadamente, dois romances que, na

realidade, constituem uma unidade. Bernanos declara,

amargurado:

“Personne n’est obligé de savoir - mais moi je le sais - quel roman eût été L’Imposture et la Joie si le temps m’avait été laissé de fondre les deux volumes en un seul, soit.” (CORR II: 26).

Poucos meses depois de terminar L’Imposture, ele muda-se,

em julho, para Clermont-de-l’Oise, uma pequena cidade ao Norte

de Paris. Seus biógrafos referem que ele escrevia não em casa,

mas em um café, na cidade vizinha de Mouy-sur-Oise, para onde

se dirigia, de bicicleta, em um pequeno deslocamento, todos os

dias. As mudanças, o amor ao movimento são constantes que se

revelarão ao longo de sua vida.

O hábito, comum entre os franceses, de trabalhar em cafés,

não significa apenas a fuga dos inevitáveis barulhos familiares. O

206

escritor gostava dos trens, dos albergues e, principalmente, dos

cafés. Precisava dos ruídos da vida para escrever. E o ambiente de

um café sinistro parecia-lhe a garantia de um contacto com a

realidade e uma proteção contra um excesso de fantasia e de

irrealidade. Confessa essa particularidade a uma correspondente:

“...et moi j’ écris dans le seul café vraiment sordide que j’ ai pu trouver sous

ce ciel béni” (CORR I: 65), que contraria o imaginário tributário de

um certo romantismo que se tem, freqüentemente, do autor, que

necessita de silêncio e paz para deixar fluir a inspiração. E

Bernanos precisava de ruídos para escrever e precisava publicar

para garantir seu ganha-pão.

O recorte efetuado nos dados biográficos de Bernanos

permite-me uma interpretação. Nasceu em Paris, porém, escolheu

como cenário de quatro romances: Sous le soleil de Satan, (1926),

Journal d’un curé de campagne (1936), Nouvelle histoire de Mouchette

(1937) e Monsieur Ouine (1946), a localidade de Fressin, o paraíso

de sua infância. E não se trata de um simples cenário, mas de

uma relação vital com a terra, com a região de Artois: a energia

tradicionalista, o ritmo das estações e as formas de que se

revestem as pessoas e a natureza.

Atribuiu a suas personagens nomes próprios característicos

da região; descreveu os caminhos, o clima e o ambiente da terra

207

de Artois como alguém que realmente aí viveu e, sobretudo a

amou.

Este assunto foi estudado, entre outros especialistas, por

Monique Gosselin, em Bernanos et le pays d’Artois, e por Yves-

Marie Hilaire em Bernanos et l' Artois (cf. Anais do Colóquio

Bernanos et le monde moderne, 1989). Refiro as fontes para uma

possível consulta, observando, entretanto, que a ligação do

escritor com a paisagem de sua infância ultrapassa um simples

apego ou enraizamento. Essa terra, que não era o torrão natal,

fazia parte de seu ser.

Considero significativo que, em sua errância, anos mais

tarde, Bernanos não tenha retornado a esses sítios. Procurou

regiões mais ensolaradas, climas mais amenos. Como se não fosse

possível voltar ao oásis da infância, tornado mítico e,

provisoriamente, inatingível. Comprova-se, assim, uma

característica bernanosiana - a procura de um ailleurs, o estar

longe do que se ama.

A errância ou nomadismo, as rupturas com os lugares,

refletem-se também no interior dos textos de Bernanos e foram

analisadas por Michael Kohlhauer em Traverses, sursauts;

appartenances. Modernité du roman bernanosien (Kohlhauer, 1998:

57).

Bernanos escreveu em 1939, de Vassouras, a um amigo:

208

Pour moi, l’oeuvre de l’artiste n’est jamais la somme de ses déceptions, de ses souffrances, de ses doutes, du mal et du bien de toute sa vie, mais sa vie même, transfigurée, illuminée, réconcililée [...] Voyez-vous, je crois qu’il ne s’agit pas de se préférer à son oeuvre ou son oeuvre à soi, mais d’être assez simple pour s’aimer dans son oeuvre, ainsi que Dieu dans sa création. (CORR II: 250)

Antes de tentar considerar a vida transfigurada, iluminada e

reconciliada de Bernanos, mister se faz assinalar as etapas vividas

pelo autor. Não se pretende aplicar o método lansoniano de

descobrir a vida na obra ou a obra na vida. Trata-se de sugerir,

não uma solução ou saída, mas de propor um caminho a

percorrer.

Em 1928, Bernanos lança Une nuit e Dialogue d’ombres, obras

menores, escritas em 1922, que passaram relativamente

despercebidas. Em compensação, o ano de 1929 revelou-se

particularmente fecundo. Publicou Jeanne, relapse et sainte e obteve

o prêmio Femina com um romance que mostra uma certa

evolução espiritual, La Joie. O tema da Comunhão dos Santos, a

circulação da graça divina entre os membros do Corpo Místico de

Cristo, que poderia constituir um fio condutor de leitura da obra

de Bernanos, perpassa, de maneira implícita, Sous le soleil de Satan;

apresenta-se em L’Imposture com conatações sombrias e

tenebrosas e revela-se de maneira clara e luminosa em La Joie.

209

A evolução das posições de Bernanos, a este respeito,

aparece no diálogo explícito de La Joie com a doutrina de Santa

Teresa de Lisieux, praticada por Chantal, a principal personagem

feminina. Perturbadora em sua luminosidade, a heroína defende-

se do mal com uma única arma, a simplicidade, “une foudroyante

simplicité” (OR: 611).

Bernanos dizia a respeito dessa obra: "Tous les gens qui

m’aiment, aiment ce livre", relatou D. Letícia Redig de Campos, em

comunicação no Colloque Bernanos e o Brasil (1998).

La Joie, alegria, refere-se ao latim gaudium e significa

sobretudo um sentimento agradável e profundo experimentado

pela consciência, podendo até mesmo coexistir com o

sofrimento. Nessa acepção, alegria não significa, necessariamente,

prazer. Bernanos define, alhures, o sentido da palavra alegria: “La

joie vient d’une part trop profonde de l’âme, pour que ses racines ne plongent

pas dans la tristesse, qui est le fonds de l’homme depuis qu’il a perdu le

paradis" (CORR II: 54). E o próprio texto do romance confirma a

importância desse sentimento em sua visão do mundo: “... la joie

suffit, la joie de Dieu, dont nous sommes avares” (OR: 603).

Consagrada pela crítica e pelo público, La Joie é, raramente,

considerada uma obra autônoma. Ora releva-se a intenção

primeira, confirmada pelo escritor, ora enfatiza-se a unidade

temática da trilogia Sous le soleil de Satan, L’Imposture e La Joie.

210

Caracteriza-os: a presença do mal e a luta da alma diante de Deus,

solucionados à luz da Comunhão dos Santos e, sobretudo a

presença de personagens emblemáticas - os sacerdotes.

O sacerdote era considerado um ser à parte,

misteriosamente escolhido por Deus. Cercava-o uma aura de

mistério, provocando respeito e admiração ou ódio e

agressividade; em todo caso, nunca a indiferença.

A figura do sacerdote, vivendo no mundo sem ser do

mundo, a serviço dos homens, domina o universo romanesco de

Bernanos na trilogia inicial e trava uma luta com o demônio, o

anjo decaído. Já se observou que o pecado da carne não se

apresenta relevante, na obra bernanosiana.

Ao contrário de François Mauriac e suas personagens

atormentadas pela luxúria, Bernanos enfatiza o pecado do

espírito, o orgulho e as sutis e profundas manifestações de que

pode se revestir.

Qualquer que seja a leitura que se faça dos romances

citados, impõe-se constatar a presença de sacerdotes, suas lutas

com o invisível e a ação da Graça Divina alterando o jogo da

vida.

Não é por acaso que no ano de 1929, Bernanos publicou

La Joie e Paul Claudel encenou Le Soulier de Satin, redigido durante

o período de 1919 a 1924. Os dois escritores abordam, cada um a

211

seu modo, uma só temática: renúncia, despojamento, primazia do

espiritual e triunfo da Graça sobre a natureza.

Bernanos (1888-1948) e Claudel (1868-1955) possuem em

comum, malgrado as diferenças de geração e divergências

pessoais, o fato de pertencerem à burguesia, pequena burguesia

em ascensão, no caso de Bernanos, média burguesia no de

Claudel. Ambos eram franceses, escritores e católicos.

Participaram de um renascimento espiritual, que coincidiu com a Belle

Époque, afirmou-se na década de 20 e conheceu uma idade de

ouro nos anos 30. O que explicaria certa recorrência dos temas

encontrados em suas obras.

A recepção feita a La Joie, mais calorosa do que a acolhida

dispensada a L’Imposture, mas sem o entusiasmo quase unânime

do consagrado Sous le soleil de Satan, indica que os críticos e o

público começavam a desejar que Bernanos superasse a evocação

do estreito e sufocante ambiente clerical e abordasse outros

temas.

Em 1929, ele interrompe provisoriamente sua produção

romanesca e envolve-se no turbilhão da luta política: pronuncia

conferências e escreve artigos, obstinando-se em defender

L’Action Française, apesar dos desentendimentos e mal-entendidos

se acumularem de parte a parte. O período de 1929 a 1934 foi

marcado por atitudes contraditórias, dificuldades financeiras,

212

problemas de saúde, mudanças de domicílio e, sobretudo pela

grande ruptura com Charles Maurras.

Reitero que julgo as referências acima aludidas uma

manifestação de uma problemática interna e nunca o fundamento da

explicação. Os dados biográficos esclarecem e objetivam as

hipóteses levantadas e funcionam como um procedimento

auxiliar e parcial, a ser controlado e enriquecido por abordagens

diferentes (Goldmann, 1959:19).

A questão que norteia esta etapa da pesquisa é: Onde estava

Bernanos de 1929 a 1934?

Durante esse período, ele colabora, eventualmente, no

jornal de Charles Maurras, ao mesmo tempo que encoraja o

grupo da revista Réaction, de extrema-direita, dissidente da Action

Française. Em abril de 1931, publica La Grande Peur des Bien-

Pensants, uma espécie de biografia de Édouard Drumont, escritor

e jornalista conhecido por suas idéias anti-semitas e chamado de

"meu velho mestre", por Bernanos. Essa filiação espiritual

constrange a maioria dos admiradores do escritor, que preferem

enfatizar a importância de Léon Bloy e de Charles Péguy, na

evolução do pensamento bernanosiano.

Teria sido Bernanos anti-semita? Os críticos bernanosianos

tentam distinguir o anti-semitismo da tradicional aversão francesa

pelo judeu, detentor do poder econômico. Neste sentido,

213

Bernanos não poderia ser acusado de racismo. E a partir do terror

nazista, ele repudia o termo anti-semitismo. Mas em 1944, no

Brasil, escreve, em um artigo intitulado Encore la question juive, essa

declaração surpreendente: “Ce mot me fait de plus en plus horreur,

Hitler l’ a déshonoré à jamais” (EEC II: 614). Como se, outrora,

noutro contexto, tivesse sido possível honrar o anti-semitismo.

Bernanos permaneceu fiel à memória de Drumont de quem

se considerou sempre discípulo. Essa fidelidade à pessoa revela

um sentimento feudal que remonta à Idade Média. Trata-se de

uma questão de honra, de um vínculo que não poderia ser

rompido sem desonra. Além disso, voltar-se para Drumont

poderia representar a procura de sua família intelectual, cuja

escolha nunca é aleatória e, sobretudo um retorno em busca de

certezas, à época em que tudo se apresentava claro e seguro, em

contraste com o momento atual: incerto, doloroso e conturbado.

A evocação de Drumont por Bernanos pode ser, de certo

modo, explicada e compreendida; mas torna-se extremamente

difícil justificar da mesma maneira a participação do escritor no

jornal de direita, Le Figaro, a partir de novembro de 1931. A

amizade que o unia a Robert Vallery-Radot, diretor literário, não

convence totalmente, tendo em vista que Le Figaro representava

tudo o que Bernanos sempre denunciou: o poder do dinheiro, as

elites elegantes, mundanas e bem-pensantes. O proprietário e

214

diretor do quotidiano, o milionário François Coty, conhecido

perfumista, intervinha na orientação do jornal, imprimindo-lhe

uma orientação favorável ao fascismo.

L’Action Française desencadeou, no início de 1932, uma

violenta campanha, para destruir Coty. Bernanos, mais uma vez,

acha-se na obrigação de defender aquele que considera

injustiçado e tenta esclarecer a opinião pública. Maurras toma a

iniciativa da separação, dizendo adeus ao antigo Camelot du Roi.

Bernanos concretiza a ruptura, anunciada desde 1919, com a

célebre carta A Dieu, Maurras, publicada em maio de 1932.

As conseqüências dessa separação não se fizeram esperar.

L’Action Française desenvolveu uma das mais torpes campanhas

visando desmoralizar o antigo aliado. Georges Bernanos foi

ridicularizado, caluniado e exposto à execração pública. Sua vida

foi submetida a uma rigorosa devassa e suas faltas reais,

exageradas ou inventadas, foram divulgadas pela imprensa. O

ódio e o ressentimento de seus primeiros amigos não

desapareceram com o tempo. Quarenta anos após sua morte, em

1988, um jornal que se intitula La Restauration Nationale - Centre de

Propagande Royaliste et d’Action Française, qualifica Bernanos de

"incoerente e instável" e acrescenta que para ele não há nem amnésia

nem anistia.

215

Se os inimigos enfatizavam suas contínuas flutuações, os

acontecimentos pareciam confirmar esse julgamento

desfavorável. Em junho de 1932, afasta-se do Figaro, por

discordar da sua orientação ideológica, retornando em outubro

do mesmo ano para defender sua equipe dos virulentos ataques

da Action Française. Ao se convencer que suas sugestões para

transformar o Figaro em um instrumento de luta por grandes

ideais caiam no vazio, o escritor separa-se, definitivamente, do

polêmico jornal.

Esses cinco anos, de 1929 a 1934, foram marcados por

grandes perdas, o amadurecer de uma renovação literária,

dificuldades financeiras e mudanças de domicílio - o que

configura um processo de despojamento e errância. Bernanos

perde: reputação, amigos, saúde, dinheiro e torna-se cada vez

mais solitário.

Os ataques à sua honra e à sua credibilidade, a perda dos

antigos companheiros da Action Française amarguraram-no

profundamente. Em 1930, morre sua mãe. Além dos danos

morais, em 1933, Bernanos sofreu um acidente de moto que o

deixou, para sempre, dependente de muletas. Com o tempo, a

limitação física foi superada, e o escritor pode referir-se a seu

acidente como a execução de parte dos desígnios da Providência

a seu respeito.

216

Do ponto de vista literário, vários projetos foram

desenvolvidos simultaneamente: Un Mauvais Rêve, Un Crime e os

primeiros capítulos de M. Ouine, embora nenhum romance tenha

sido concluído e publicado.

A vida errante se acentua: Vésenex, Toulon, La Bayorre.

Sua situação financeira tornou-se insustentável. As dificuldades

acumularam-se a tal ponto que todos os pertences do escritor

foram leiloados para pagamento de três meses de aluguel

atrasados antes de sua partida para Palma de Maiorca.

Em 1934, viaja para a ilha de Maiorca, à procura de

melhores condições de vida: “Je suis venu ici parce que la vie est

matériellement moins difficile qu’en France. Un point c’est tout”.(CORR II:

19).

O período vivido em Maiorca, de 1934 a 1937, pontilhado

por cinco mudanças de domicílio, coincide com uma grande

transformação em sua vida. “Cette expérience d’Espagne a été, peut-être,

l’événement capital de ma vie”.(EEC II: 969) avaliará o escritor em

1945, já no Brasil.

A evolução de seu pensamento político tornada pública em

Les Grands Cimetières sous la lune (1938), poderia parecer brusca e

repentina. Ao contrário, ela foi progressiva e correspondeu a uma

tomada de consciência, revelada na correspondência enviada a

amigos.

217

Enquanto esteve absorvido pela redação de Journal d’un curé

de campagne (1936), Bernanos não prestou muita atenção aos

problemas políticos espanhóis. Terminado o romance, ele

começa a refletir sobre o que acontecia no país e a ver os

massacres cometidos à sua volta. E revolta-se contra a repressão

da direita espanhola e, sobretudo, com a cumplicidade da Igreja.

"Le personnage que les convenances m’ obligent à qualifier d’ évêque-archevêque avait délégué là-bas un de ses prêtres qui, les souliers dans le sang, distribuait les absolutions entre deux décharges." (GCL: 422).

Essa mudança provocou uma grande surpresa nos leitores,

porque o escritor, no início, manifestara admiração e entusiasmo

pelo movimento franquista, comprovada pela presença de seu

filho mais velho, Yves, de 16 anos, nas fileiras da Falange.

Vários fatores podem explicar essa adesão primeira: sua

formação católica, o amor pela ação e todo o seu passado de

Camelot du Roi e militante da Action Française. Pouco a pouco, a

surpresa, o horror e a reprovação o dominam. Seu filho, Yves,

começa a discordar dos métodos empregados pela Falange, pensa

em desertar e acaba fazendo-o. Jean-Loup Bernanos relata que o

irmão, antes de partir para o Brasil, teria manifestado o desejo de

voltar à Espanha para lutar ao lado dos republicanos. Não o fez,

mas a mudança foi radical.

218

O horror presenciado em Maiorca inspirou a Bernanos

além de Les Grands Cimetières sous la lune, Nouvelle Histoire de

Mouchette, (1937), seu último romance. O objetivo do autor é,

além de denunciar, ensinar o leitor a ver, a ler, a decifrar os

acontecimentos e não apenas comover e provocar emoção.

Denuncia o processo de degradação, que faz do adversário um

trapo ensopado de gasolina, contorcido pelo fogo, depois de ter

sido abatido como um animal, nos grandes cemitérios sob a lua.

Ele não ignora os excessos do campo oposto e os

menciona, além de declarar: “L’ armée républicaine ne m’ inspirait, je l’

avoue, aucune confiance” (GCL: 415). Os republicanos de todas as

tendências - anarquistas, comunistas - também matavam e

torturavam, mas não em nome da honra, da ordem ou de Cristo.

Matavam em nome do ideário da Revolução Francesa: Liberdade,

Igualdade e Fraternidade. O grande escândalo consistia no fato de

a Igreja aprovar o Terror franquista, justificando-o em nome de

valores religiosos e morais.

"Où que le général de l’episcopat espagnol mette maintenant le pied, la mâchoire d’une tête de mort se referme sur son talon, et il est obligé de secouer sa botte pour la décrocher” (GCL: 409 ).

Bernanos retorna à França em março de 1937 e publica, em

1938, Les Grands Cimetières sous la lune, um divisor de águas em sua

vida. Abandonado pela direita, sem querer se filiar à esquerda,

219

recusa todas as etiquetas. É um homem pobre, solitário e livre e

nisso consiste sua força.

A repercussão da denúncia do terror franquista, ao alienar

os bem-pensantes, atraiu, em compensação, as simpatias da

esquerda. Simone Weil escreveu-lhe, em 1938, uma longa carta da

qual citarei um trecho:

Depuis que j’ai été en Espagne, que j’entends, que je lis toutes sortes de considérations sur l’Espagne, je ne puis citer personne, hors vous seul, qui, à ma connaissance, ait baigné dans l’atmosphère de la guerre espagnole et y ait résisté. Vous êtes royaliste, disciple de Drumont - que m’importe? Vous m’êtes plus proche, sans comparaison, que mes camarades des milices d’ Aragon - ces camarades que, pourtant, j’ aimais.”(CORR II: 203-204)”.

Apesar desse fervor da esquerda, Bernanos sente-se

isolado. Abandona a criação romanesca e dedica-se a seus Écrits

de Combat. Os problemas financeiros continuam. A experiência do

terror franquista o faz compreender a inexorabilidade da guerra

que se anuncia.

Volta-se para a América do Sul, realizando seu velho

sonho, muitas vezes reiterado, de partir alhures... As razões de

sua partida, ele as evocará, mais tarde, já instalado no Brasil, em

1941:

J’ ai quitté mon pays en 1938. Je l’ ai quitté librement. Je n’ en ai pas été chassé. Je ne l’ ai pas fui non plus.

220

(...) J’ ai quitté mon pays parce que la vérité y était devenue stérile, parce qu’ une parole libre y était aussitôt étouffée. (EE II:293)

Em 20 de julho de 1938, Bernanos, sua família e alguns

amigos embarcam para o Paraguai, com uma escala prevista no

Rio de Janeiro. No Brasil, o escritor foi acolhido

entusiasticamente por Alceu Amoroso Lima, Augusto-Frederico

Schmidt e Aluisio de Salles que foram encontrá-lo a bordo do

navio Flórida e o convidaram a almoçar em Copacabana. Essa

recepção calorosa determinará mais tarde o estabelecimento, por

sete anos, de Bernanos no Brasil.

O Paraguai representava, na época, para Bernanos, uma

espécie de Eldorado mítico. Criar uma colônia francesa no

Paraguai constituíra, outrora, um dos sonhos de Bernanos e de

seus amigos Maxence de Colleville e Ernest de Malibran. Estes

dois realizaram em parte o projeto, visitando o país por volta de

1914, mas foram convocados para lutar na Primeira Guerra

Mundial.

Bernanos, ao decidir se exilar, resolve viver o antigo sonho: "Je partais pour le Paraguay, ce Paraguay que notre dictionnaire Larousse, d’accord avec le Bottin, qualifie de Paradis Terrestre. Je n’ai pas trouvé là-bas le Paradis Terrestre” (EEC I : 629).

221

O paraíso se revelou uma decepção. Dificuldades de visto

de permanência, vida cara, acolhida fria, levam-no a voltar ao

Brasil, onde é acolhido com entusiasmo.

Uma elite de intelectuais - Virgilio de Mello Franco, Alceu

Amoroso Lima, Raul Fernandes, Oswaldo Aranha, Joaquim de

Salles - o acolhe e desdobra-se para facilitar sua estada no Brasil e

tornar o exílio mais suportável.

Amou o Brasil. Considerava-o uma segunda pátria

espiritual. Mas não foi um amor à primeira vista. Ele passou a

amá-lo quando o compreendeu melhor, ultrapassando clichés e

preconceitos. Os brasileiros corresponderam a esse amor

desmitificando a imagem oficial de Bernanos, visto na França da

época como uma espécie de santo literário.

No Brasil, ele é evocado pelos que o conheceram como um

homem que ama a vida, os amigos e um bom vinho e não apenas

como o atormentado escritor que tinha se encontrado com o

demônio, imagem predominante em certos meios literários

franceses da época.

Somente mais tarde, Bernanos pode entender o alcance de

sua estada no Brasil. Em 1946, na França, ele escreverá:

Depuis que je suis rentré dans mon pays, je comprends mieux qu’ autrefois que mon séjour au Brésil n’ a pas été un simple épisode de ma pauvre vie, mais qu’ il était inscrit depuis toujours dans la trame de mon destin. (CORR II: 615)

222

Acaso, destino, Providência Divina, pouco importa.

Bernanos viveu no Brasil durante sete anos, anos que o marcaram

indelevelmente.

Seu itinerário, no Brasil: Rio de Janeiro, Itaipava, Juiz de

Fora, Vassouras, Pirapora, Barbacena e Paquetá, revelou-se uma

verdadeira peregrinação pelo interior do país, pelo sertão, à procura

de uma utopia - um lugar tranqüilo, longe das grandes cidades,

onde ele pudesse trabalhar e sustentar sua numerosa família.

Pirapora, na época última estação da Central do Brasil, às

margens do rio São Francisco, representou para Bernanos um

desafio para sua força e capacidade de resistência. Lá ele

encontrou, não a casa de seus sonhos, mas a que mais se

assemelhava à sua vida:

“Les portes n’ y ont pas de serrures, les fenêtres pas de vitres, les chambres pas de plafond. [...] Pour une maison ouverte, on peut dire de cette maison qu’ elle est ouverte." (EEC I: 878-879).

A casa aberta, "la maison ouverte", parece tornar-se o símbolo

da própria vida o escritor que aceita o despojamento e afirma

desejar estar, ele e seus livros, à mercê dos que passam. Além da

casa aberta, outras metáforas são empregadas pelo escritor: a do

223

pão comum - “Dieu veuille que je sois ce pain de ménage” (EEC I: 869)

e, dentro do mesmo campo semântico, a imagem de um forno

banal, comum.

Un four banal c’ est le four de tout le monde. Je ne suis pas un homme de théâtre, je n’ ai pas le préjugé des fours, je voudrais pouvoir espérer que mon l’ oeuvre fût ce four où chacun vient librement cuire son pain. (EEC I: 874)

O texto fala de "four" - forno - lugar onde o pão é assado.

Four, na gíria do meio artístico e, sobretudo na de teatro, significa

fracasso. Forno ou insucesso, qualquer uma das acepções pode

ser aplicada à leitura que se faça de Bernanos. Quem considera o

tempo transcorrido e os espaços percorridos, entre Sous le soleil de

Satan e Dialogues des Carmélites, não pode deixar de surpreender-se

com um desenrolar entrecortado de rupturas e de partidas,

sucessos e desastres.

É importante ressaltar que foi no Brasil que ele escreveu a

maior parte de seus Écrits de Combat - sua obra política.

Cada texto corresponde aproximadamente a um lugar,

como se pode verificar no quadro que se segue:

ITINERÁRIO OBRAS Itaipava - novembro, 1938 - um mês

Início de Nous autres Français

Juiz de Fora - dezembro, 1938 - janeiro, 1939 - dois meses

Scandale de la vérité - 1939

224

Vassouras - fevereiro - julho, 1939 - cinco meses

Nous Autres Français - 1939

Pirapora - julho,1939 - maio, 1940 - oito meses

Les Enfants humiliés, publicado em 1949. O último capítulo de M. Ouine.

Belo Horizonte e Rio de Janeiro - junho e julho, 1940

Artigos publicados na imprensa brasileira.

Barbacena - Agosto, 1940 - junho, 1945 - cinco anos

Lettre aux Anglais - 1942 La France contre les robots -1944 Le Chemin de la Croix-des-Âmes - 1943-1945.

Paquetá - uma temporada durante o ano de 1943-1944.

Artigos publicados na imprensa brasileira

Bernanos mudava, freqüentemente, de casa após terminar

um livro. Quando são mencionadas as inúmeras e sucessivas

mudanças do escritor, importa ressaltar que não se trata apenas

de um elemento curioso, anedótico, ou meramente de registro

biográfico. As repetições constituem um sintoma, produzem

sentidos. Outros diriam: revelam uma estrutura.

O romper, sistematicamente, com lugares, coisas ou

pessoas significa expressões plurais de uma grande ruptura,

manifestações visíveis de sua visão trágica do mundo.

Os anos de exílio, no Brasil - de 1938 a 1945 - foram

extremamente fecundos do ponto de vista intelectual, como pode

ser verificado no quadro acima.

Vale ressaltar: Les Enfants humiliés - uma espécie de diário, é

um texto escrito de 1939 a 1940 e publicado em 1949, após sua

morte. E Lettre aux Anglais é uma obra do exílio, que se apresenta,

225

desde a escolha da forma de carta ou cartas ligada à condição de

um duplo exílio: geográfico e histórico. Geográfico, porque

escrito no Brasil, mas, sobretudo histórico: a renúncia definitiva a

uma certa idéia da grandeza da França (Kohlhauer, 1995).

O último capítulo de M. Ouine, considerado um dos textos

mais estranhos da literatura francesa do século XX, iniciado em

1931 foi terminado no Brasil em 1940. Publicado, primeiramente,

no Rio de Janeiro, em 1943, e, posteriormente, na França, em

1946, numa versão incompleta, conheceu a primeira versão

integral em 1955.

Le Chemin de la Croix-des-Âmes, coletânea de artigos

publicados na imprensa brasileira de 1940-1945, conheceu uma

primeira edição em quatro volumes de 1943 a 1945, no Brasil,

antes de ser reeditada em 1948, pela Editora Gallimard.

O exílio de Bernanos no Brasil não deve ser considerado

um todo indivisível. Sua correspondência, abrangendo o período

1938- 1945, revela duas etapas bem distintas: antes e após o

Armistício de 1940.

Em um primeiro momento, apesar das dificuldades

materiais, das desilusões inevitáveis, e das freqüentes mudanças

de domicílio, o tempo decorrido entre sua chegada - setembro de

1938 - e a rendição da França em junho de 1940 - não constituiu,

a meu ver, um período de dépaysement, de estranhamento.

226

Acolhido com entusiasmo por uma elite intelectual e social,

em tudo parecida com o estilo da alta classe média francesa,

Bernanos freqüentava amigos que conheciam e amavam a França

e tudo fizeram para que seu exílio lhe fosse suportável.

Se Bernanos declarou, já de volta à França, que gostaria de

morrer no Brasil, os sentimentos confiados a seu Diário (1939-

1940) são mais comedidos: “Je ne hais pas ce pays, je ne saurais dire

que je l’ aime, je l’ aimerais s’ il pouvait m’ aimer”1 (EEC II:824).

Durante algum tempo, ele se considerava um exilado recente, em

um país completamente estranho, “ce pays absolument étranger à mon

âme” (EEC II: 824). Sentindo-se cada vez mais ligado à sua pátria,

refuta de antemão a possibilidade de ser considerado un déraciné,

um desarraigado; e o próprio nome de exílio parece-lhe um

exagero: “... ce mot d’ exil est trop grand pour moi” (EEC II: 788).

O tom muda sensivelmente após a ocupação de junho de

1940. Sente-se isolado, humilhado e procura mais do que nunca o

conforto da amizade.

“Au point où je suis, l’amitié sera peut-être demain pour moi, ma

seule patrie” declara em 1941 (CORR II: 387). Seu artigo "Brésil,

terre d’amitié" (EEC II: 1121) revela o quanto esse sentimento lhe

era precioso e indispensável.

1 Não fica claro, no texto, se o autor se refere ao Brasil ou, mais especificamente a Pirapora.

227

Entretanto, mesmo a amizade revelou-se impotente diante

da sensação de exílio total, inscrito no tempo e no espaço,

sentimento que o dominava. “Nous avons connu quelque chose de pire

que l’exil, ou plutôt l’ exil total, lorsque résolus à aimer plus que jamais

notre peuple, nous désespérions de le comprendre.” (EEC II: 207). De

Pirapora, ele escreve ao grande amigo, o poeta Jorge de Lima:

“J’ai la sensation de traverser l’enfer. Dans la plus profonde humiliation et avec une honte écrasante, je viens de reprendre la conscience de mon pays”.(CORR II: 285).

À dor, à vergonha, à humilhação que o abatem, acrescenta-

se o angustiante sentimento de estar dividido, cindido: “Car une

part de moi-même est restée de l’ autre côté de l’ eau, je pense à moi, je pense

à cette créature délaissée, je pense à elle, comme à un parent lointain.” (EEC

I: 862). Bernanos fala de si mesmo como de um outro, não com

desprezo, mas com distância e estranheza. Suas crises de angústia

se sucedem, crises que o obrigarão, posteriormente, a procurar

um tratamento específico no Rio de Janeiro.

O desânimo inicial, entretanto, foi superado e Bernanos

parte, corajosamente, para o combate por uma França livre, com

as armas de que dispunha: sua voz e seus artigos. "Je travaille

beaucoup. J’ écris pour les journaux clandestins français, pour un journal de

Beyrouth et pour la Marseillaise du Caire.”(CORR II: 512),

escrevia na época. Falava também pela BBC, de Londres, mesmo

228

que esse recurso lhe fosse doloroso:” J’ ai répugnance à parler

personnellellement à la BBC. Il est douloureux pour un Français de ne

pouvoir parler à son pays que par l ’ intermédiaire de l’ étranger” (CORR

II:.341).

Escrevia, sobretudo artigos em francês, que eram

traduzidos antes de serem publicados na imprensa brasileira. O

fato de escrever em sua língua materna reforça a idéia de

testemunho.

Derrida afirmava, em suas aulas na EHESS, em 1995, que

não se pode testemunhar em língua estrangeira, o que

configuraria uma ficção. Bernanos testemunhava e fazia tudo o

que podia para ajudar a Resistência francesa. “Ce n’ est pas que je me

fasse illusion sur l’ aide que je puis apporter au chef de la Résistance

française, mais en ce moment, on offre ce qu’ on peut” (CORR II: 515).

O peso do exílio, apesar dos amigos poderosos e

dedicados, fazia-se sentir: solidão, doenças, dificuldades

financeiras e as mudanças de domicílio que pontilharam sua

existência. Bernanos aceita o ônus do exílio sabendo que: “L’ exil

est l’ exil. Je n’ ai jamais désiré que le mien fût un exil truqué ou doré”

(CORR II: 490).

A peregrinação através do sertão interrompe-se durante

algum tempo: os cinco anos passados em Barbacena, onde

229

encontrou uma certa tranqüilidade. Participava, ativamente,

através de artigos e conferências, da vida intelectual do país.

Sua ação enriqueceu o pensamento intelectual da época,

contribuindo para a evolução política de Tristão de Athayde que

declarou: “Através de Bernanos, então vivendo no Brasil, de Chesterton e

Maritain. (...) iria evoluir numa direção que é a de hoje” (Carpeaux,

1978: 57). Bernanos, sobretudo, impediu que os intelectuais

brasileiros adotassem Pétain, como já se tinham enganado com

Franco e os franquistas “endeusados como anjos, em luta contra os

republicanos demoníacos” (Carpeaux, 1978: 82).

A voz do autor de Les Grands Cimetières sous la lune

incomodou, profundamente, com suas denúncias, muitas vezes

violentas e intempestivas, mas contribuiu para a divulgação de

idéias novas e acenou com outras perspectivas no panorama

intelectual da época, freqüentemente pouco informado ou mal

informado, sofrendo as conseqüências da ditadura Vargas.

Os anos passados no Brasil concorreram para a evolução

de seu pensamento político. Bernanos evoluiu, indubitavelmente,

mas não mudou de ideologia. Continuará católico e monarquista,

porém, como observa Monique Gosselin, um evidente

amadurecimento permitir-lhe-á compreender melhor os que o

cercam e, sobretudo a França, sua pátria.

230

Durante seu exílio no Brasil, Bernanos tomou plena

consciência ao mesmo tempo da universalidade e da

especificidade da civilização francesa. No momento em que a

França decepcionava o mundo, ele pôde constatar que a vocação

histórica da França correspondia ao que o mundo dela esperava.

E essa constatação exacerbava seu sentimento de estar

duplamente exilado: "L’immense étendue de mer qui me sépare de mon

pays peut toujours être traversée; l’obstacle infranchissable, c’est le souvenir de

l’Affront”.(EEC II: 26).

Quando Bernanos parecia ter terminado sua errância,

instalado em Cruz-das-Almas, o General de Gaulle insiste em

chamá-lo de volta à França. “Votre place est parmi nous”, telegrafou-

lhe, no dia 16 de fevereiro de 1945, o próprio General.

Seus amigos brasileiros tentam convencê-lo a não voltar.

Bernanos decide partir e retorna à França em junho de 1945,

onde conhecerá uma outra espécie de exílio, paradoxal e

doloroso, o exílio dentro da própria pátria. Desiludido, ele

constata que apenas mudou o cenário de seu exílio. “J’ai compris

depuis six mois que le poids de l’ exil est parfois moins lourd à porter sur une

terre étrangère que dans son propre pays”, escreve ele já de volta à

França (EEC II: 1115).

231

Ao deixar, livremente, a França em 1938, Bernanos

consumara uma separação que não permitia volta. Pergunta-se

Pierre Gille:

"Por que Bernanos teria voltado à França? Ele deixou um lugar onde tinha encontrado sua verdadeira pátria espiritual, para reencontrar um país do qual se sente separado por uma espécie de divórcio moral, consumado por sua partida desde 1938 e que os acontecimentos da guerra, provavelmente, pouco atenuaram. (EEC II: 1760).

No pós-guerra de 1945, o escritor representava um passado

muito recente que muitos queriam esquecer. A Resistência, que

ele idealizara, tinha se transformado em um partido político. A

voz de Bernanos soava anacrônica e incomodava aqueles que

desejavam esquecer um passado muito recente, onde nem sempre

a Resistência e a Colaboração foram nítidas. Fiel a suas

exigências, recusou uma embaixada, um ministério, a Academia

Francesa e declinou, pela quarta vez, receber a Légion d’Honneur.

As dificuldades financeiras persistem. A casa que abriga o

escritor e sua numerosa família é descrita como fria, gelada, sem

gás, sem eletricidade e sem água encanada - um “château de la

Misère”. As mudanças se sucedem.

Ele enfrenta, em 1945, não mais uma campanha

difamatória, como em 1932, por ocasião de seu rompimento com

Maurras, mas um muro de silêncio, o imenso vazio que se

232

constituiu a sua volta. “Ce n’ est plus maintenant la solitude qui m’

entoure, c’ est le vide. Il me semble que rien ne me répond plus, ne me

répondra jamais”, escreve em janeiro de 1946 (CORR II: 601).

Sua correspondência revela a situação insustentável em que

se encontra: "Quant à la France, elle est inhabitable pour moi. J’ y étouffe.

Le régime de la libération - je veux dire le régime issu d’ elle - se trouve

aujourd’ hui en pleine décomposition." (CORR II: 747).

Em 1947, decide instalar-se na Tunísia, um outro sonho

longamente acalentado. Desde 1943, ainda em Barbacena,

escrevera a um amigo:

Ce que je souhaite seulement peut-être, c’ est d’ aller m’ installer, avec les miens, dans quelque coin du Maroc, et d’ y vivre comme je vis ici, avec la possibilité pourtant d’ aller passer une semaine ou deux ici, ou là. (CORR II: 525)

O que prova que o último estágio do exílio não foi uma

decisão súbita, mas um desejo há muito existente.

Bernanos lamentará sempre ter deixado o Brasil: “Combien je

regrette d’ avoir quitté le Brésil! Si j’ étais encore là-bas, j’ aurais du moins la

certitude d’ être utile à mon pays” (CORR II: 751), escreve em 1948,

ano de sua morte.

Uma pergunta impõe-se: Por que Bernanos não retornou

ao Brasil, onde era respeitado, possuía amigos dedicados e

influentes que o receberiam de braços abertos? Várias hipóteses

233

podem ser levantadas. Parece-me, entretanto, baseada nas

partidas e rupturas que pontilharam sua vida, que ele nunca

retornava aos lugares, mesmo amados, por onde passara.

Acredito ter encontrado uma explicação, na longa passagem em

que ele fala das paisagens de sua infância e juventude:

Je n’ ai pas revu ceux de ma jeunesse, j’ en ai préféré d’ autres, je tiens à la Provence par un sentiment mille fois plus fort et plus jaloux. (...) Pourquoi évoquerais-je avec mélancolie l’ eau noire du chemin creux, la haie qui siffle sous l’ averse, puisque je suis moi-même la haie et l’ eau noire? (EEC I: 788)

Os lugares e as pessoas passariam a fazer parte de seu ser e

não precisariam ser revisitados para continuarem amados. Não se

repete sucesso. Não se repete fracasso. Não se volta ao que

passou.

As dificuldades habituais enfrentadas na Tunísia - falta de

dinheiro, luto, foram acrescidas pela doença do escritor, atingido

por um câncer no fígado. Nessas condições precárias, Bernanos

empreende a redação de sua última obra.

De novembro de 1947 a março de 1948, gravemente

enfermo, Bernanos dedica-se a esse texto, publicado,

posteriormente, sob o título de Dialogues des Carmélites.

Transportado, às pressas, para a França, morreu no Hospital

Americano de Neuilly, em 5 de julho de 1948.

234

A leitura dos fatos mais marcantes da vida de Bernanos

revela uma errância, que procurei ressaltar ao longo desse

capítulo. Ele mesmo se definiu como uma espécie de viajante, de

vagabundo “Jamais je ne me suis plus senti un errant, un vagabond, un

clochard” (CORR II: 275) (grifo meu).

E a errância informa a vida de Bernanos. Um longo e

progressivo despojamento tornou-o solitário e livre, uma voz e

um olhar, um vagabundo.

Bernanos viveu a vida como um exilado. Durante toda a

vida, procurou um lugar onde pudesse trabalhar livremente. Tudo

o que ele pedia era: “Un coin,le plus éloigné possible, où je puisse le cas

échéant nourrir ma pension de famille de ce qui pousse dans mon jardin, ou

broute dans mon pré” (CORR II: 650). Essa aspiração, dialogando

com os escritos de Rousseau, permaneceu um anseio, uma utopia

nunca concretizada.

No Brasil, ele parecia ter encontrado o que mais se

aproximava daquilo que buscava incessantemente; porém as

circunstâncias e o que considerava ser o seu dever impeliram-no a

recomeçar uma errância que somente terminou com sua morte.

Ler sua obra através da ótica do exílio esclareceria seus

aspectos aparentemente contraditórios e permitiria compreender

suas rupturas, expressão de uma Ruptura essencial: o homem,

235

expulso do Paraíso Terrestre, procura Deus, que se esconde, e só

o encontra através da morte.

Dialogues des Carmélites, coincidentemente, apresenta a

mesma problemática: Blanche de la Force buscou um refúgio, um

lugar onde recuperar a honra, mas procurou, sobretudo, seu lugar

no mundo, sua identidade. Sua errância faz ressoar a peregrinação

de Bernanos.

E não é certamente por acaso que o autor se identifica, às

vésperas da morte, com o destino das carmelitas, discípulas de

Teresa d’Ávila, acusada de ser "uma mulher inquieta e errante"

(Auclair, 1960).

Quatro figuras femininas teriam ajudado Bernanos em sua

meditação derradeira: Madame de Croissy, a vencer o medo da

morte; Marie de l’Incarnation, a superar o sentimento de desonra

experimentado no pós-guerra (Bush,1988:18); Mère Lidoine, a

entregar-se inteiramente à vontade divina; e Blanche de la Force,

a dominar o terror e a angústia, através da Comunhão dos Santos.

Quem foi Bernanos? Certamente um autor contraditório.

Os que o criticavam consideravam-no um desadaptado. Seus

admiradores diziam que o exílio lhe convinha e que ele era feito

para falar do alto e de longe. Os dois julgamentos não se excluem

e até confirmam sua visão trágica do mundo: “a impossibilidade

236

radical de realizar uma vida que valha a pena no mundo”

(Goldmann,1959:117).

Proponho qualificar Bernanos como o errante. Sempre longe

e sempre presente, Bernanos, no final de sua vida reconhecia: "On

y réussit mieux de loin. C' est d' ailleurs pourquoi j' ai bien envie de

reprendre le bateau" (CORR II: 676).

Retomar o barco, expressão empregada em seu sentido

próprio, mas, certamente, metáfora da vida, considerada a viagem

na qual estamos todos embarcados, como disse Pascal. De porto em

porto, somos todos viajantes, queiramos ou não.

Bernanos vivenciou a errância. E o mundo lhe foi um

incessante exílio.

237

UMA OBRA ETERNA?

Une oeuvre est éternelle, non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle toujours la même langue symbolique à des temps multiples.

R. Barthes

Dialogues des carmélites, obra escrita no pós-guerra de 1947-

1948, é um texto nascido dos conflitos e da guerra: da Primeira

Guerra Mundial, do Terror de 1793-1794 vivenciado por

Bernanos na guerra civil espanhola e da Segunda Guerra mundial.

Os diferentes terrores destes diversos momentos históricos

dialogam, articulam-se e constituem manifestações do mesmo

fenômeno, de um único Terror. Terror foi conceituado como

todo e qualquer regime pautado, não pela lei, mas pela exceção,

mesmo que esta pretenda ser necessária e provisória. Todos os

regimes de terror invocaram e invocam a manutenção da ordem

geral em detrimento da liberdade individual.

Bernanos, em uma linguagem calcada no estilo do século

XVII, reescreve um fato histórico ocorrido no século XVIII, que

se repete sob a forma de paralelismo, na França do pós-guerra. A

sociedade francesa, que vivera o vergonhoso Armistício de 1940 e

a Ocupação alemã, uma vez terminada a guerra, preocupava-se

238

com sua reconstrução. Mas, antes de reconstruir, era necessário

proceder a uma limpeza, à l’épuration.

Neste contexto histórico, discutia-se o que se passara

durante os anos negros - les années noires (1940-1944) e indagava-se

qual a atitude que se deve manter diante da força? A vida seria

mais importante do que a honra? Quem colaborou com os

alemães e sobreviveu? Quem fugiu? Quem resistiu ao poder e

morreu?

As carmelitas de Compiègne, em 1794, tinham-se

defrontado com um dilema análogo: como viver a fé em um

momento de perturbação? Elas haviam tentado resolver o

problema, humanamente, através da astúcia da linguagem, o que

se revelou ineficaz. Condenadas à guilhotina, pelo Terror

Revolucionário, acederam a uma outra ordem, à da

transcendência, através do martírio.

Bernanos aceitou escrever diálogos, para um filme, sobre

este episódio e ele se apaixonou pela idéia de examinar o martírio

das carmelitas, à luz das questões do século XX e das indagações

que o atormentavam, às vésperas de sua morte.

Dialogues des carmélites permite diversas leituras ou, no dizer

de Barthes, sugere sentidos diferentes ao mesmo leitor. Minha

leitura apresentou o contexto histórico e político no qual a obra foi

escrita (1947-1948) e as Figuras que atuam como intertexto: a

239

cidade de Compiègne, a Ordem do Carmelo e o convento das

carmelitas em Compiègne, espaços modificados pela Revolução

Francesa.

O movimento revolucionário é visto, no texto,

principalmente, como uma troca de lugares. A ameaça referida no

prólogo do texto: “... et nous roulerons dans vos carrosses”, anuncia a a

reversão dos espaços sociais. Rodar alude ao movimento giratório

da vida e carruagem seria uma metonímia dos privilégios do poder,

um dos sinais visíveis da nobreza. Nos movimentos da roda da

fortuna, os revolucionários ocupam os palacetes e conventos, os

nobres são encarcerados, condenados e executados. A rua e o

anonimato tornam-se o melhor refúgio. As mudanças são

múltiplas e consistem em uma “reversão de situações, opiniões, valores,

sentimentos, linguagens”. (Barthes,1980:38).

No Carmelo, a primeira grande mudança é a eleição para

Priora da burguesa Mère Lidoine, preferida à aristocrática Marie

de l’Incarnation. Esta escolha revela uma situação nova: a

necessidade de contemporizar com as autoridades revolucionárias

e também a mobilidade social crescente, uma vez que Mère

Lidoine é filha de um vendedor de gado.

Foi analisado de que modo o princípio aristocrático e os

valores burgueses coexistem no denso espaço do convento, com

o predomínio dos valores da nobreza. A eleição da nova Priora

240

possibilita, então, a manifestação de um discurso plebeu, já

existente, intensificado pela influência dos ideais revolucionários

sofrida, a contragosto, pelas religiosas. Esta modificação se reflete

na variedade de registros dos diálogos e na diversidade dos

sentimentos expressos pelas religiosas. O Carmelo mostrou-se

permeável, às novas idéias, antes de ser invadido e saqueado pela

multidão e agredido pelas canções revolucionárias. O século está

presente no claustro e seus conflitos e seus muros não são

intransponíveis.

O mundo está presente no Carmelo, sobretudo, nos

conflitos entre os valores aristocráticos e burgueses,

intensificados diante da contradição vivida por Blanche de la

Force, nobre e covarde. Blanche representa o elemento

catalisador da oposição entre o heroísmo exaltado de Marie de

l’Incarnation e o senso prático e comunitário da Priora.

A nova Priora opõe o equilíbrio e a humildade, valores

antes subestimados, às exigências do código de honra da nobreza.

Ela restabelece o conceito da verdadeira honra e explicita, a seu

modo, a loucura da santidade. A aceitação do medo torna-se,

portanto, um valor, sentimentos humano, assumido pelo Cristo

no Jardim das Oliveiras, em sua agonia.

Blanche de la Force, Blanche de l'Agonie du Christ oferece

o exemplo-limite desta mudança de valores. Tendo atingido o

241

mais baixo nível de auto-estima, ela é a própria imagem da

abjeção e da exclusão, antes de se tornar a figura emblemática da

vitória da fé, sobre o medo, propiciada pela Graça.

Blanche de la Force, em seus deslocamentos sucessivos, à

procura de seu lugar no mundo, em busca de sua identidade

pessoal e social, concentra em si a angústia e o terror diante da

morte, dos quais seria a própria representação.

As carmelitas de Compiègne foram acusadas por Fouquier-

Tinville, promotor público, de conspirar contra a República e

condenadas, sumariamente, em 1794. Estas mulheres que

escolheram o silêncio e o anonimato, ao serem sacrificadas,

alcançam a graça do martírio, negado a Marie de l’Incarnation e

concedido a Blanche. Graça imprevisível, porque: “Dieu choisit ou

réserve qui lui plaît” (DC: 1718).

A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos,

vivido sob a forma de um certo nomadismo. Dialoga, sobretudo,

com a visão trágica do escritor, com o viver sob o olhar de um

Deus presente, mas escondido.

“Il y a plusieurs sortes de courage, voilà ce que je pense

maintenant”.(DC: 1578), dizia Blanche de la Force. Parafraseando-

a, relembro que há várias formas de exílio manifestadas no

repouso, no silêncio, na errância.

242

BIBLIOGRAFIA

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BERNANOS, Georges. Oeuvres romanesques. Préface par

Gaëtan Picon. Texte et variantes établis par Albert Béguin. Notes

par Michel Estève. Paris: Gallimard, 1961 (Bibliothèque de la

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------. Essais et écrits de combat I. Textes présentés et annotés par

Yves Bridel, Jacques Chabot et Joseph Jurt, sous la direction de

Michel Estève. Paris, Gallimard, 1971 (Bibliothèque de la

Pléiade).

------. Correspondance. Recueillie par Albert Béguin et présentée

par Jean Murray, O. P. Paris: Plon, 1971. (2 v.)

------. Combat pour la vérité. Paris: Plon, 1971.

------. Combat pour la liberté. Paris: Plon, 1971.

------. Lettres retrouvées. Paris: Plon, 1983.

------. Essais et écrits de combat II. Textes établis, présentés et

annotés par Yves Bridel, Jacques Chabot, Michel Estève,

François Frison, Pierre Gille, Joseph Jurt et Hubert Sarrazin, sous

la direction de Michel Estève. Paris: Gallimard, 1995

(Bibliothèque de la Pléiade).

243

Todas as citações, salvo indicação expressa, referem-se às edições

da Bibliothèque de la Pléiade.

O corpus específico de minha análise é o Dialogues des carmélites,

obra publicada pela Bibliothèque de la Pléiade em 1961. Minha

escolha justifica-se pela confiabilidade do texto, rigor das notas,

comentários e variantes. Esta edição da Pléiade é a fonte mais

segura de que se pode dispor, no momento, enquanto não for

estabelecido, através de uma edição crítica que está sendo

preparada, um texto com maior rigor ecdótico.

2. Períodicos, Anais, Coletâneas.

"Etudes bernanosiennes" in: La Revue des Lettres Modernes. Paris:

Minard. 20 volumes a partir de 1960. Consultei especialmente o

nº 19 Confrontations 2.

Georges Bernanos 1888-1988. Nord’. Lille: Société de littérature

du Nord, nº11, juin 1988.

Paradoxes et permanence de la pensée bernanosienne.Etudes publiées

sous la direction de Joël Pottier. Paris: Amateurs de Livres, 1989.

Bernanos et le monde moderne. Textes recueillis par Monique

Gosselin et Max Milner. Lille: Presses Universitaires de Lille,

1989.

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Annales Historiques de la Révolution Française. Paris: nº 297, juillet-

septembre, 1994: nº3.

Georges Bernanos, Témoin. Textes publiés sous la direction de

Pierrette Renard. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail,

1994.

Georges Bernanos. Europe. Paris: nº 789-790, janvier-février.

1995.

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Paris: Seuil, 1970.

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Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.

RESUMO

Esta tese assinala diferentes formas de Terror na História

contemporânea: no período revolucionário de 1792-1794, na

guerra civil espanhola, na Ocupação alemã, no pós-guerra e na

guerra fria na França, que se articulam e se exprimem em

Dialogues des Carmélites, peça de teatro de Georges Bernanos, re-

escritura do martírio das Carmelitas de Compiègne em 1794. O

objetivo foi estudar o conflito entre o princípio aristocrático e os

valores burgueses, solucionado na Transcendência. Angustiada,

Blanche de la Force, personagem nobre e covarde, é um símbolo

de contradição e torna-se elemento catalisador entre os diferentes

valores. Sua errância, à procura de um lugar no mundo,

equivalência de uma busca de identidade, dialoga com o exílio de

Bernanos. A leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do tema

do exílio, diferentes exílios, esclarece algumas contradições e

paradoxos.

260

SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues

des Carmélites, de Georges Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ,

Fac. de Letras, 1998. 259 fl. mimeo. Tese de Doutorado em

Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.

RÉSUMÉ

Cette thèse signale différents moments de la Terreur dans

l’Histoire contemporaine: la période révolutionnaire de 1792-

1794, la guerre d’Espagne, l’Occupation allemande, l’après-guerre

et la guerre froide em France, qui s’articulent, s’entrecroisent et

s’expriment dans Dialogues des Carmélites, de Georges Bernanos,

pièce qui réécrit le martyre des carmélites de Compiègne em

1794. Le but en a été d’étudier l’antagonisme entre le principe

aristocratique et les valeurs bougeoises, résolu dans la

Transcendencee. Angoissée, Blanche de la Force, personnage

nobre et lâche, est le symbole de cette contradiction. Son errance,

à la recherche de son identité, rejoint celle des nombreux

déplacements de Bernanos. La lecture de l’oeuvre de Bernanos à

la lumière du thème de l’exil expliquerait alors les contradictions e

les paradoxes de cet auteur.

261

SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em

Dialogues des Carmélites, de Georges Bernanos. Rio de Janeiro:

UFRJ, Fac. de Letras, 1998. 259 fl. mimeo. Tese de Doutorado

em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.

ABSTRACT

This thesis presents forms of Terror in the Contemporary

History: in the 1792-1794 revolutionary period, in the Spanish

Civil War, during the German occupation, in the post-warperiod

and during the Cold War in France. These different ‘terrors’

articulate and express themselves in Dialogues des Carmélites, a play

by Georges Bernanos, re-script of the martyrdom of the

carmelites of Compiègne in 1794. My aim was to study the conflit

disclosed in the Carmel between the aristocratic principle and the

bourgeois values, which was solved by transcendency. Blanche

de la Force, a noble, coward anguished character is a symbol of

contrradiction and becomes a catalyst element between differents

values. Her wandering insearch of a place in the world,

equivalence of a search for her own identity, interacts with

Bernanos’ exile. The reading of Bernanos’ oeuvre through the

exile’s point of view, through different exiles’ point of view,

clarifies some of his contradictions and paradoxes.