terror e exílio em diálogues des carmélites , de g. bernanos · a tarefa de redigir os diálogos...

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1 Terror e Exílio em Diálogues des Carmélites, de G. Bernanos Fernanda Maria de Souza e Silva UFRJ / 1998

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Terror e Exílio em Diálogues

des Carmélites, de G. Bernanos

Fernanda Maria de Souza e Silva

UFRJ / 1998

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4

TERROR E EXÍLIO

em

DALOGUES DES CARMÉLITES, de G. BERNANOS

por

FERNANDA MARIA DE SOUZA E SILVA

Departamento de Letras Neolatinas

Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Letras da Universidade Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo.

Co-orientadora: Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello

Rio de janeiro

1998

5

A meu pai, consciência contra a prepotência do dinheiro, em seus acertos e desacertos, seu amor à vida, sua fé.

A minha mãe, que me ensinou a Ler ...

Para o Nélio, Fernando e Bárbara.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Doutora Maria do Carmo Peixoto Pandolfo, pela segura orientação competente e pela amizade segura.

À Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello, que apostou em mim.

Ao Professor Doutor Jacques Leenhardt, pela orientação desprendida, inteligente e amiga.

Aos Professores Doutores Monique Gosselin e Michael Kohlhauer, pelo apoio e comentários enriquecedores,

Aos Professores Doutores Ronaldo Lima Lins, Angela Correa, Maria Thereza Barrocas e Lígia Vassalo, pelas sugestões e encorajamento.

A Maria do Carmo Cardoso da Costa, pela amizade.

Amizade e gratidão

a todos aos amigos que me ajudaram seja indicando artigos ou livros, seja dando sugestões ou fazendo comentários enriquecedores.

Reconhecimento

ao CNPq, que me concedeu um ano de pesquisa na EHESS e ao Departamento de Letras Neolatatinas, que permitiu meu afastamento.

às pessoas que colaboraram direta ou indiretamente para a realização desta tese.

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SINOPSE

Diferentes formas de Terror na História Contemporânea. Dialogues des Carmélites: o martírio das carmelitas de Compiègne. Carmelo: espaço de conflitos entre princípio aristocrático e aos valores burgueses. Blanche de la Force, símbolo de contradição. Sua errância. O exílio de Bernanos. Errâncias.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

2. CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR

3. INTERTEXTO : FIGURAS

3.1. Compègne – um espaço de violência

3.2. A Ordem do Carmelo

4. O TEXTO

4.1. Prefigurações

4.1.1. O prólogo de Dialogues des Carmélites – prefiguração da tragédia

4.1.2. Mudanças

4.1.3. A Profanação

4.2. Valores

4.2.1. O código aristocrático

4.2.1. A reversão de valores

4.3. Onde está Blanche?

5. BERNANOS, O EXÍLIO?

6. CONCLUSÃO

7. BIBLIOGRAFIA

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1. INTRODUÇÃO

A Tese aqui apresentada, Terror e Exílio em Dialogues des carmélites de

Georges Bernanos, tem como objetivo analisar o Terror que se apresenta sob

diferentes formas no texto escolhido e propor uma leitura da obra de Bernanos

sob o ângulo do exílio.

Sinteticamente, pois deixei para momento oportuno o desenvolvimento das

questões aqui expostas, vou, de início, localizar o escritor no panorama

intelectual de sua época.

Georges Bernanos (1888-1948) é um escritor francês de destaque,

romancista consagrado, autor de Sous le soleil de Satan e de Journal d’un curé

de campagne, entre outros. Também escreveu uma obra polêmica, violenta

denúncia contra os regimes totalitários da época, conhecida sob o título geral de

Essais et Écrits de combat, entre os quais se destacam Les Grands Cimetières

sous la lune e Lettre aux Anglais.

Classificar Georges Bernanos constitui uma difícil tarefa. Ele recusou todos

os rótulos que lhe foram, por vezes, atribuídos. Rejeita ser considerado um

profeta: "Je n’ai jamais rien prédit, mais je veux aujourd’hui, comme d’habitude,

dire tout haut ce que chacun pense tout bas" (EEC II: 297)1. Não aceita ser

considerado um doutrinador (EEC II:141) ou um panfletário (EEC II: 1271). E,

surpreendentemente, opõe-se ao título de escritor: “Je ne suis pas un écrivain.

La seule vue d’une feuille de papier blanc me harasse l’âme” (EEC I: 353-4).

1 As obras de Bernanos serão citadas no corpo do trabalho, com a abreviatura convencionada no final da Introdução, seguida da página.

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Esta contestação da escritura, no comentário de Jacques Chabot, na edição

da Pléiade, significa que Bernanos não se iludia com a eficácia do instrumento do

qual se serve. O autor de Les Enfants humiliés aceita e assume a condição de

homem que escreve, mas recusa o falso prestígio de ser um criador: “Du moins

ne me suis-je jamais pris sérieusement pour un créateur” (EEC I: 873).

Ele se define como uma voz que denuncia e incomoda: “Ma seule et

modeste vocation en ce monde est de parler quand tout le monde se tait” (CORR

II: 328).

De todas estas tentativas de classificações de Bernanos, talvez a mais

persistente, para leitores menos atentos, seja a imagem de um romancista

católico, recusada pelo próprio autor: “Je ne suis pas un écrivain catholique

comme on dirait, par exemple, un écrivain marxiste” (EEC II:1189). Escritor

católico, sim, mas no sentido de ser responsável:

Je suis un écrivain catholique, je veux dire un homme qui se tient responsable de ce qu’il écrit, non seulement vis-à vis des catholiques, mais du premier venu qui le lit, et auquel il doit toute la vérité dont il dispose. (EEC II:1189)

A maioria dos leitores lê até: "sou um escritor católico" e não considera que

ele se dirige também a qualquer homem que o leia. E impressiona a acolhida feita

à obra de Bernanos por um grande número de ateus.

Gildas Bourdet, ao dirigir Dialogues des carmélites, em 1987, na Comédie

Française, declarou em uma entrevista:

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Inúmeras pessoas não cristãs dizem-me que não conseguem escapar aos problemas que o texto provoca. Acredito que a razão se deva ao fato de Bernanos ter ido até as ultimas conseqüências das interrogações que ele fazia a si mesmo. (Bourdet, 1988: 35)

Bourdet sugere ainda que as contradições de Bernanos, longe de afastar,

aproximam-no de pessoas provenientes das mais diferentes classes sociais e

intelectuais.

Contradições e paradoxos poderiam caracterizar o autor, testemunha de um

renascimento espiritual francês, marcado por grandes conversões: Ernest

Psichari, neto de Renan (1913), Jacques e Raïssa Maritain (1906) e Charles

Péguy (1908), entre outros.

Bernanos participou também de algumas das grandes querelas políticas e

religiosas que agitaram as primeiras décadas do século XX, na França: L’Affaire

Dreyfus, o desenvolvimento de le Sillon, organização católica de esquerda e o

apogeu de L’Action Française, movimento de extrema direita. O Vaticano

condenou, sucessivamente, le Sillon em 1910, e L’Action Française, em 1926,

provocando revolta e desorientação em muitos católicos, que não entenderam,

inicialmente, as razões do Sumo Pontífice em condenar a primazia da política

em detrimento da fé.

Bernanos participou, ativamente, da renascença espiritual que se consolidou

por volta dos anos vinte e conheceu sua idade de ouro na década de trinta.

Claudel, Mauriac e Bernanos são alguns dos grandes escritores que, aureolados

de prestígio, atingem o grande público.

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Bernanos recusou a imagem de escritor católico, no sentido de ser

propagandista da fé, executor de diretrizes, mesmo que emanadas da Igreja. Mas

foi um cristão que escreveu romances.

Suas dúvidas, certezas e incertezas permitiram-lhe ser o autor de La Grande

Peur des bien-pensants (1931), elogio ao anti-semita Drumond, e de Les Grands

Cimetières sous la lune (1938), denúncia ao regime franquista, para citar dois

extremos. E a proximidade da morte parece ter inspirado Dialogues des

carmélites, texto luminoso, sua vida passada a limpo.

Dialogues des carmélites, escrito na Tunísia, cenário de seu último exílio

voluntário, como um modo de manifestar seu desencanto com a França do pós-

guerra, é uma meditação sobre os grandes temas que angustiam o homem: a vida,

a morte, a dor, o medo.

Para uma melhor e mais rápida compreensão da gênese da obra, muito

complexa, esquematizei-a em um quadro que se segue e que será,

posteriormente, desenvolvido.

13

A

Fato histórico

B

C

D

E

F

G

Crônica (Relato)

Villecourt

Gertrud von le Fort

Bernanos

Solicitação

Realização

Publicação

Teatro

H

3

1 2 5

4

Cinema Ópera TV CD

14

Como para os grandes escritores clássicos franceses do século XVII, a

matière não é nova. Nova, sim, é a manière de tratá-la. E é o que conta, pois aí

reside o selo próprio do escritor, sua originalidade.

Dialogues des carmélites baseia-se em um fato histórico. Em 17 de julho de

1794, durante o Terror revolucionário na França, dezesseis religiosas do Carmelo

de Compiègne foram guilhotinadas na Praça do Trono, atual Praça da Nação,

acusadas de ser inimigas do povo e de conspirarem contra a Revolução. Foram

beatificadas por Pio X em 27 de maio de 1906.

Dois relatos do martírio foram escritos (Jauffret, 1803) e (Guillon, 1821),

porém somente em 1836 foram publicadas as memórias de Marie de

l’Incarnation com o título Histoire des religieuses carmélites de Compiègne,

conduites à l’échafaud le 17 juillet 1794. Ouvrage posthume de la soeur Marie

de l’Incarnation, carmélite du même monastère. Embora anônima, os catálogos

da Bibliothèque Nationale de Paris e da British Library assinalam o Cardeal

Villecourt como responsável pela edição, citada sob a sigla Villecourt.

Gertrud von le Fort consultou um exemplar dessa obra existente na

biblioteca de Munich e, inspirando-se, livremente, neste acontecimento histórico,

escreveu, em 1931, em alemão, uma novela traduzida para o francês e publicada,

em 1937, sob o título: La Dernière à l’échafaud. A romancista modificou

circunstâncias, permitindo-se grande liberdade criativa com a História: Madame

de Croissy, a antiga Priora, não padeceu uma agonia humilhante; na "realidade",

sofreu o martírio juntamente com sua comunidade.

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Marie de l’Incarnation não era Mestra de noviças e sim uma das mais

jovens religiosas. Seu temperamento dificilmente poderia ser qualificado de

admirável e heróico, como Gertrud von le Fort o considera, com base no

documento Villecourt, já citado, que lhe atribui qualidades que não

correspondem à "verdade" histórica.

A confrontação da novela La Dernière à l’échafaud com a História, assim

como as diferenças entre o texto da romancista alemã, o roteiro cinematográfico

do Padre Brückberger e os diálogos escritos por Bernanos foram analisadas, entre

outros, por Michel Estève (Estève, 1960) e Joseph Pfeifer (Pfeifer, 1963).

Remeto ao recente estudo Destinée providentielle des Carmélites de Compiègne

dans la littérature et les arts (Gendre, 1994), para eventuais consultas.

Gertrud von le Fort criou, talvez inspirada em suas próprias angústias e

temores, uma personagem central, Blanche de la Force, também medrosa e

angustiada, com a qual a autora se identificava, não apenas pelo nome que lhe

atribuiu (le Fort/de la Force) mas pelo medo generalizado diante do mundo

ameaçado pelo Terror. A autora revelou, posteriormente, a motivação inicial de

sua novela:

O ponto de partida de minha criação não foi em primeiro lugar o destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, mas a personagem da pequena Blanche. Ela nunca viveu, historicamente, mas recebeu o sopro de seu ser trêmulo, exclusivamente, de minha própria interioridade e não pode, de modo algum, ser separada desta origem que lhe é própria.[...] Esta figura levantou-se, por assim dizer, de dentro em mim como a encarnação da angústia mortal de toda uma época encaminhando-se para o seu fim. (le Fort, 1958:93 apud Gendre, 1994)

Esta obra é considerada pela maioria dos críticos como uma denúncia do

nacional-socialismo, e a própria autora apoiou esta interpretação.

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Tese mais recente considera que o alvo visado seria não o nazismo, porém o

comunismo (Pottier, 1991: 174-180). Quer se trate de uma denúncia do nazismo

ou do comunismo, o texto é, indubitalvelmente, uma denúncia contra o

totalitarismo em geral e constitui uma reflexão sobre a angústia contemporânea e

a vitória da Graça de Deus sobre o medo.

Terminada a II Guerra Mundial, o Padre Brückberger obteve os direitos

para a adaptação cinematográfica da novela de Gertrud von le Fort e escreveu um

roteiro - cinqüenta e quatro seqüências a serem filmadas -, o que se denominou

“le scénario”.

A tarefa de redigir os diálogos para o filme foi oferecida primeiramente a

Albert Camus, que recusou, alegando ser ateu, e sugeriu o nome de Bernanos.

Este aceitou a tarefa, iniciada em novembro de 1947, mas não a terminou no

tempo convencionado verbalmente, o que gerou uma série de equívocos e mal-

entendidos. Os diálogos foram concluídos em meados de março de 1948, quando

Bernanos já estava gravemente enfermo, vindo a falecer a 5 de julho do mesmo

ano.

O manuscrito, julgado inadequado para a linguagem cinematográfica, pelo

produtor Gaspard de Cugnac, permaneceu, literalmente, esquecido no fundo de

uma mala. Albert Béguin, grande admirador da obra de Bernanos e encarregado

pela família do acervo de suas obras, atribuiu um título ao texto, fez algumas

alterações e publicou-o em 1949.

Além de dar um título ao manuscrito, Béguin dividiu-o em cinco quadros e

um prólogo, resumiu algumas cenas e atribuiu nomes às religiosas que Bernanos

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deixara anônimas. Estas alterações foram exigidas pela mise en scène teatral. A

maioria dos críticos é formal: Béguin respeitou, escrupulosamente, o manuscrito

de Bernanos e a fidelidade da edição póstuma é total. Monique Gosselin revela,

entretanto, outras alterações feitas por Béguin (como a inserção da cena da

quebra da imagem do pequeno Rei da Glória) e lamenta que este não tenha

seguido o manuscrito da mão de Bernanos e sim o de sua secretária.

Existem dois manuscritos: um do próprio Bernanos e outro copiado por sua

secretária. Estes documentos se encontram na sala dos manuscritos da Biblioteca

Nacional de Paris.

O problema da autoria, objeto de muitas controvérsias, foi parcialmente

resolvido por Julien Green, em 25 de novembro de 1951, o qual opinou: a

significação espiritual da obra pertence a Bernanos, ao passo que a invenção e a

criação dos principais personagens pertencem a Gertrud von le Fort. O Padre

Brückberger e Philippe Agostini, roteiristas, também se consideram co-autores.

A lei francesa acolheu a questão que se prolonga até hoje. Os processos

referentes a Dialogues des carmélites impedem que o roteiro, sub judice, seja

consultado.

A sentença jurídica determinou que, em todas as edições e cartazes da peça,

devem constar obrigatoriamente os seguintes dados: "segundo uma novela de

Gertrud von le Fort e roteiro de R. P. Brückberger e de Philippe Agostini".

Dentre os estudos publicados sobre Dialogues des carmélites, destaca-se

uma Tese de Doutorado sobre a gênese da obra, posteriormente, publicada. A

autora, Meredith Murray, teve acesso ao scénario - roteiro - e reitera a

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originalidade de Bernanos, definida por Julien Green, em 1951, que consiste no

sentido espiritual da obra. Ao fazer reviver as personagens de Gertrud von le

Fort, “Bernanos deu à mesma aventura uma significação pessoal. A dependência

da origem não exclui, obrigatoriamente, a autonomia no plano espiritual.”

(Murray, 1963: 33). Esta pesquisa ainda não foi ultrapassada, tendo em vista que

ainda não veio a lume a edição crítica, que está sendo preparada sob a direção de

Monique Gosselin.

O cotejo formal estabelecido entre o texto de Bernanos, Dialogues des

carmélites, e La Dernière à l’échafaud (Boly, 1960) também fornece subsídios

para estudos da peça.

Entre outros estudos mais recentes, cito o artigo de Pierre Gille: "Drame

spirituel et forme dramatique dans Dialogues des carmélites" (Gille, 1984) e as

análises de Monique Gosselin: "Dialogues des carmélites, oeuvre testamentaire"

(Gosselin, 1988) e "Dialogues des carmélites, l’ultime méditation de Bernanos"

(Gosselin, 1995).

No tocante aos estudos históricos sobre as Carmelitas mártires, destacam-se

as publicações de William Bush, professor de literatura francesa em Ontario

(Canadá) e Le sang du Carmel ou la véritable passion des seize carmélites de

Compiègne texto publicado em 1954, de autoria do Padre Bruno de Jésus-Marie,

religioso carmelita. Trata-se uma obra indispensável ao estabelecimento da

verdade histórica, com documentos inéditos. A reedição, em 1992, comprova o

interesse dos estudos históricos, na época atual.

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A publicação dos Dialogues, em 1949, sob a forma de livro teve grande

sucesso, mas a revelação da força e do poder de sedução de Dialogues des

carmélites manifestou-se sobretudo no teatro. O texto traduzido para o alemão

foi encenado, com muito sucesso, no Festival de Zurique (1951) e depois em

Munique, onde a representação se transformou em verdadeira liturgia, com a

participação espontânea da assistência entoando o Salve Regina. Em 1952, a peça

foi encenada no Teatro Hébertot em Paris, numa adaptação de Albert Béguin e

Marcelle Tassencourt, onde permaneceu vários anos em cartaz, antes de ser

incluída no repertório da Comédie Française.

A repercussão na imprensa resume a pluralidade autoral de Dialogues des

carmélites, particularizando a contribuição de cada um:

O maior acontecimento da temporada teatral européia é uma peça abordando um fato histórico francês, tratado por uma romancista alemã, adaptado para o cinema por um Dominicano de Paris, teatralizado por Bernanos e representado no Festival de Zürique. (Carrefour, 8 de agosto de 1951)

Dialogues des carmélites, texto traduzido em várias línguas e submetido a

sucessivas adaptações para diferentes gêneros artísticos, teve sempre um grande

sucesso de crítica e de público, mas tornou-se internacionalmente conhecido,

graças à ópera de Francis Poulenc, que estreou no Ópera de Milão, em janeiro de

1957, e no Ópera de Paris, em junho do mesmo ano. Superando os numerosos e

complicados problemas de direitos autorais, foi encenada com imenso sucesso

nos principais teatros do mundo.

Um dos méritos de Poulenc foi o de alcançar a mesma grandeza dramática

atingida por Bernanos e provocar reflexões sobre o medo diante da morte, o

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mistério da graça divina e a violência do mal, em espaços onde tais discussões

seriam inusitadas. E, através da música, as carmelitas de Compiègne, que haviam

escolhido o silêncio e a solidão de um claustro, fazem ouvir seu canto,

interrompido pelo ruído da guilhotina em 1794.

Dialogues des carmélites foi difundido, também, através de discos. A ópera

de Poulenc foi gravada algumas vezes. A primeira gravação data de 1958 e

permanece um documento indispensável aos que amam a música.

O filme projetado pelo Padre Brückberger, em 1947, foi, finalmente, rodado

e exibido, em 1960, sob o título Le dialogue des carmélites. A crítica, em geral,

lhe foi desfavorável. A Société des Amis de Georges Bernanos e seus herdeiros

processaram os responsáveis, acusando-os de desonestidade intelectual e

infidelidade ao texto de Bernanos. O filme privilegia, não o plano espiritual, mas

as relações que unem a História, o homem e a sociedade.

Em 1984, Pierre Cardinal realizou, com sucesso, um filme para a televisão.

O diretor criou um Carmelo luminoso, dominado pela cor branca. No elenco,

uma coincidência: a jovem atriz Anne Caudry Bernanos, falecida

prematuramente, que incarnava Blanche de la Force, era a neta do escritor.

O apelo visual e dramático, a importância da imagem em detrimento da

narrativa, ressaltam não só da gênese da obra como também da transformação e

adaptação para diferentes gêneros artísticos: livro, peça de teatro, ópera, filme,

disco, etc. Qualquer estudo que se faça de Dialogues des carmélites deve ter em

vista a origem do processo criativo: diálogos para um filme a ser rodado.

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Este rápido resumo da gênese desta obra já aponta para a importância da

intertextualidade como caminho para a sua análise.

O conceito de intertextualidade, hoje amplamente difundido, exige a priori

que se explicite seu emprego e delimite sua extensão. O ponto de vista de Marc

Angenot, sobre o assunto, é categórico: "Na minha opinião, é necessário que o

pesquisador, colocando as cartas na mesa, exponha e manifeste sua

problemática, revelando a origem de suas filiações teóricas e os objetivos que

pretende atingir" (Angenot,1984: 103).

O conceito de intertextualidade foi cunhado principalmente por Julia

Kristeva (Kristeva, 1969), na esteira da polifonia de Bakhtine (Bakhtine, 1970).

O que assim se enfatiza é o trabalho de produção de sentidos do texto no diálogo,

implícito ou explicito, com outros tantos textos, anteriores ou sincrônicos. Não

mais produto, dentro do circuito comunicativo Autor-obra-público, o texto,

considerado como um tecido, textura (Barthes, 1973: 100), se elabora ao tecer os

fios dos discursos múltiplos, na mais ampla acepção do termo, que o permeiam.

Barthes acrescenta a possibilidade de diálogo também com textos posteriores,

visão correlata ao processo de escritura-leitura em que o leitor coparticipa, com

o seu próprio texto, sua cultura, da produção de efeitos de sentidos do texto

escrito.

Genette demonstra, em Palimpsestes (Genette, 1982), o jogo pelo qual um

texto se superpõe a outro, substituindo-o e escondendo-o, mas sem apagar

completamente o traço anterior.

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E Philippe Sollers resumiria a problemática do intertexto ao afirmar que

todo texto está situado na junção de vários textos dos quais ele é, ao mesmo

tempo, a releitura, a condensação, o deslocamento e a profundidade (Sollers,

1968: 75).

Em minha leitura de Dialogues des carmélites, não aponto as semelhanças e

diferenças entre o texto de Bernanos e os pré-textos que lhe foram fornecidos: a

novela de Gertrud von le Fort e o roteiro do filme que seria rodado, nem enfoco

as sucessivas adaptações do texto de Bernanos para diferentes gêneros artísticos:

livro, teatro, ópera, disco, cinema, por fugir este trabalho ao tema proposto.

Ao analisar Dialogues des carmélites, de Georges Bernanos, destaco o

contexto da ação na peça de teatro: o Terror, sob diferentes formas, e tento

responder à pergunta fundamental: onde está Blanche de la Force? (4.3). A

errância de Blanche, ao constituir o núcleo da Tese, remete ao questionamento:

onde estava o mundo em 1789-1794? e ao Carmelo de Compiègne. Em um

processo inverso, a Revolução Francesa é o eco dos debates internos entre o

princípio aristocrático e os valores burgueses discutidos no claustro (Cap. 4). A

inquietação de Blanche e sua angústia ressoam no nomadismo de Bernanos e seu

exílio interior. Esta problemática, a peregrinação do autor de Les Grands

Cimetières sous la lune conduz à questão: onde estava o mundo em 1948? E

finalmente provoca a indagação: onde estava Bernanos? Estas questões serão

transpostas para um plano espiritual superior, em um desenlace imprevisto do

ponto de vista humano, sob a ação da graça divina.

Procuro estudar, também, a significativa importância de dois contextos:

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1. Contexto histórico (Cap. 2) que, aliás, é duplo: contexto do fato

histórico, a Revolução Francesa e o Terror, com seus conflitos ideológicos, e o

contexto contemporâneo de Bernanos: a guerra civil espanhola, a ocupação

alemã, o pós-guerra e a guerra fria, um sendo lido através do outro, subentendido

mas atuante.

2. Contexto religioso da primeira metade do século XX. Trata-se do

momento em que a renovação da fé católica faz da idéia de santidade uma

solução e um problema e assim atinge o núcleo do mistério da salvação: a

questão da graça (4.3). Tal contexto ajuda a esclarecer certas opções políticas de

Bernanos referentes à L’Action Française e sua crise pessoal (Cap. 5).

A visão trágica de Bernanos (cap. 5) inserida nas duas panorâmicas

anteriores. Mais e melhor do que apenas a biografia do escritor, a sua visão do

mundo, sem dúvida consoante com a sua vivência da história e da religião. Visão

trágica, no sentido empregado por Lucien Goldmann, em Le Dieu caché, a

impossibilidade de viver sob o olhar de Deus, presente e escondido, em um

mundo dominado por valores incompatíveis com a fé (Goldmann, 1959).

Finalmente, proponho uma leitura de Bernanos, sob o ângulo do exílio,

(Cap. 5) exílio que se apresenta, sobretudo, através de uma contínua errância.

O corpus específico de minha análise é o texto Dialogues des carmélites tal

como o apresenta a edição Pléiade de 1961. Enquanto não for estabelecido,

através de uma edição crítica que está sendo preparada, um texto com maior rigor

ecdótico, minha escolha justifica-se pelo texto confiável, pelo rigor das notas,

comentários e variantes.

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Abreviaturas:

Dialogues des carmélites será referida no corpus da Tese sob a forma abreviada

de Dialogues e citada, nas referências bibliográficas, sob a sigla DC seguida da

página.

Oeuvres romanesques - OR

Essais et écrits de combat I - EEC I

Essais et écrits de combat II - EEC II

Combat pour la liberté - CORR II

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2. CONSCIÊNCIA CONTRA O TERROR*

Pour moi, j’appelle Terreur tout régime où les citoyens, soustraits à la protection de la loi, n’attendent plus la vie ou la mort que du bon plaisir de la police d’État.

Bernanos

Dialogues des carmélites, obra originalmente concebida para um filme foi

escrita por Bernanos nos últimos meses de sua vida, de novembro de 1947 a

março de 1948.

As datas são importantes porque indicam um período conturbado, doloroso

e polêmico, vivido pela sociedade francesa. Os anos de 1944 a 1949, de um

modo todo especial, foram dominados pelo que se denominou l’épuration, a

depuração, a tentativa de transformar a sociedade francesa, purificada dos

colaboracionistas e dos partidários de Vichy. Este processo prolonga-se até os

dias atuais, quando são julgados os acusados de crimes imprescritíveis, os crimes

contra a humanidade, como a Shoah ou o Holocausto, tentativa nazista de

destruir o povo judeu.

Constata-se a persistência de um grave problema não inteiramente

resolvido, que continua dividindo a sociedade francesa, como outrora o processo

Dreyfus a fragmentara, reafirmando a constatação, tornada banal, da existência

do que se convencionou chamar Les deux France.

Em 1947-1948, discutia-se e praticava-se a depuração. Bernanos, no último

exílio voluntário na Tunísia (Cap. 5), escreve seu “testamento espiritual” e

Vladimir Jankélévitch, professor de filosofia moral e um dos mentores da

* O capítulo muito deve ao Seminário Fonctions sociales de la littérature. Paris: EHESS, 1995

26

juventude da época, proclama a impossibilidade de se perdoar e de se esquecer:

“O perdão é forte como o mal, mas o mal é forte como o perdão” (Jankélévitch,

1986:15).

Os fatos são bem conhecidos: em junho de 1940, o Marechal Pétain, herói

da Primeira Guerra Mundial, assina o vergonhoso Armistício franco-alemão e,

em outubro do mesmo ano, anuncia, publicamente, sua decisão de colaborar com

os invasores nazistas. A França, dividida em zona livre e zona ocupada, obedece

ao que se convencionou chamar "Governo de Vichy".

O início da Resistência contra os alemães dataria de 8 de junho de 1940,

quando o General Charles de Gaulle, de Londres, falando através da rádio,

denunciou a ilegitimidade de Vichy e conclamou os franceses a resistirem: “a

flama da resistência francesa não deveria se apagar” (de Gaulle, 1944-1945: 13-

14).

Durante os três anos que se seguiram, o comitê do General de Gaulle, em

Londres, simbolizou principalmente o fato de que nem todos os franceses haviam

capitulado. O movimento gaulista poderia ter fracassado. Do ponto de vista

militar, era insignificante e, politicamente, representava apenas a si mesmo. Ter-

se tornado o Governo provisório da República Francesa foi o resultado de

acontecimentos ulteriores ocorridos na França, entre outros, o apoio da esquerda

e, principalmente, do partido comunista.

Em 1942, a Resistência metropolitana começou a considerar de Gaulle um

chefe e não um mero símbolo e, em 1943, a união estava consolidada entre os

resistentes de Londres e os franceses vivendo no exílio e na França ocupada.

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Em 25 de agosto de 1944, Paris é libertada pelas forças aliadas e, em 7 de

maio de 1945, a Alemanha rende-se incondicionalmente.

O processo de depuração é deflagrado a partir da libertação de Paris pelas

forças aliadas e culmina na condenação à morte de Pétain, cuja pena foi

comutada em prisão perpétua, em 1945.

Julgamentos, processos, condenações, discussões sucederam-se motivados

pelo ódio, pelo ressentimento, pelo desejo de justiça e também por motivos

menos nobres. Quem colaborou com os ocupantes nazistas? Quem resistiu

arriscando a vida?

Nesse contexto histórico e político, destaco os anos 1944 a 1949 por

constituírem o auge do processo de limpeza, de épuration, quando Dialogues foi

escrito.

Desencadeou-se, nesse período, uma verdadeira caça aos culpados. Importa

considerar que a depuração conseguiu desagradar à maioria dos franceses da

época. Os que haviam resistido aos alemães criticavam a sua brandura e

moderação, e alguns acusavam-na mesmo de fraqueza; os que colaboraram

lamentavam sua violência. Em todo caso, a maioria dos estudiosos concorda que

a aplicação das punições foi profundamente injusta, preconceituosa. Verificou-se

mais uma vez a verdade proclamada por La Fontaine: “Selon que vous serez

puissant ou misérable, les jugements de cour vous rendront blanc ou noir” (La

Fontaine, Les animaux malades de la peste).

28

O período da depuração suscitou numerosos estudos de historiadores

idôneos e competentes,1 mas parece que somente agora, mais de cinqüenta anos

decorridos, os franceses mostram-se capazes de examinar com isenção o tema

conflituoso de um passado doloroso - Vichy, um passado sempre presente e que

revela um luto mal resolvido, uma História inacabada.

As lembranças da Ocupação, no dizer dos autores de Vichy, un passé qui ne

passe pas (Conan & Rousso, 1994), ocupam, atualmente, um lugar

desmesurado na consciência nacional francesa.

Um passado desconhecido das gerações atuais ressurgiu brutalmente na

memória dos franceses. O que conduziu a vontade de fazer ou refazer o

julgamento de Vichy e da Colaboração e levou a uma crítica implícita da maneira

como a depuração foi realizada. Recusa-se a atitude antes preconizada, de "virar

a página", e rompe-se o silêncio mantido, durante longos anos, sobre certos

aspectos do problema que dilacerou uma nação.

Essa mudança permitiu melhor compreensão e valorização do notável

trabalho de Peter Novick, pesquisador americano que durante três anos, de 1960

a 1963, leu, verificou e comparou todas as fontes acessíveis na época. Sua Tese

de Doutorado, elaborada em inglês, foi publicada em 1968. A tradução francesa

veio a lume em 1985, quando seu livro deixou de interessar apenas aos

especialistas e passou a atrair um grande número de leitores. A grande vantagem

de Novick advém da objetividade e da seriedade com que informa os fatos. Sem

1 Cito, entre outros, Pascal Ory, Jean-François Sirinelli, Henry Rousso, Michel Winock, Jean-Pierre Azéma e Peter Novick cujas obras constam na bibliografia.

29

envolvimentos afetivos, o autor expõe, com honestidade e distância, o resultado

de sua pesquisa, traduzida em números.

A depuração foi obra dos vencedores, dos que fizeram a Resistência, e a

História desse período, pelo menos a curto prazo, por eles foi escrita. Como

decorrência, estabeleceram-se e prevaleceram os postulados históricos e jurídicos

da depuração: o Armistício de 1940 foi um crime, Vichy um regime usurpador e

a colaboração uma política de traição (Novick, 1985: 52).

Sob esse ângulo enfocarei, em termos gerais, a Resistência francesa e a

depuração. Este processo de limpeza da sociedade francesa aplicou-se de maneira

desigual, em um contexto conflituoso: alguns não queriam e não podiam

esquecer, e outros não admitiam reviver a lembrança dos anos negros da

Ocupação nazista que dividira a França.

Uma das conseqüências do governo de Vichy foi a modificação ocorrida no

espaço político e intelectual francês, face à escolha inevitável que se impôs:

recusar ou aceitar a política colaboracionista. A decisão revelou-se, a posteriori,

independente de posicionamentos anteriores. Embora fosse calculável que a

direita apoiaria Pétain e que a esquerda o rejeitaria, os acontecimentos mostraram

que cada indivíduo assumiu uma posição pessoal e imprevisível diante de um

fato consumado: o Armistício de 1940 e a colaboração.

A maioria dos intelectuais, na França, em um primeiro momento, entoou

louvores ao Marechal: Paul Claudel compôs uma Ode au Maréchal Pétain e mais

tarde elogiou, igualmente, o General de Gaulle em Ode au Général, o que foi

considerado, pelos contemporâneos, uma palinódia. François Mauriac teria sido,

30

por um curto período, partidário de Pétain. E não causou nenhum espanto a

expressão "divina surpresa" com que Charles Maurras saudou a consolidação do

colaboracionismo, em 9 de fevereiro de 1941.

Provenientes de católicos de direita, essas atitudes políticas poderiam ser

consideradas previsíveis; porém, como justificar que representantes da

intelligentsia da esquerda parisiense, como Emmanuel Berl e Gaston Bergery,

redigissem os discursos lidos por Pétain? (Ory & Sirinelli, 1992: 115-88).

A conclusão evidente é que, no início, reinava certa unanimidade entre os

intelectuais que permaneceram na França, em relação a Vichy.

Mas, a partir de maio de 1941, forma-se o Comité national des écrivains -

C.N.E. - reunindo os intelectuais que se opunham ao invasor e ao regime de

Vichy. De 1942 em diante, quando as tropas aliadas desembarcaram na África do

Norte e a Alemanha ocupou a Zona Livre, mudanças significativas acontecem.

Alguns permanecem colaboracionistas: Ferdinand Céline, Robert Brasillach e

Pierre Drieu la Rochelle, os mais conhecidos; outros guardam prudente silêncio e

afastam-se de Paris. E numerosos são os escritores que escolhem a via da

clandestinidade para protestar, fundando uma revista e uma editora: Les Lettres

françaises e Éditions de Minuit. Um dos fundadores dessa editora, Jean Bruller

Vercors, escreveu Le Silence de la mer (1941-1943), um dos mais conhecidos

textos de ficção inspirado pela Resistência. A célebre novela apresenta uma

metáfora da Resistência na personagem da jovem que, obrigada a hospedar um

oficial alemão, opõe-lhe, obstinadamente, o silêncio.

31

O silêncio livremente escolhido difere do silêncio imposto aos intelectuais

alemães antifascistas, refugiados na França e, que em 1940 se viram obrigados,

para escapar à prisão e à extradição, a recorrer à fuga ou ao suicídio. O drama

daqueles que consideravam a França como sua verdadeira pátria espiritual e que

foram compelidos a um novo exílio ou à morte foi analisado em Exil et

engagement, um estudo ímpar no gênero (Betz,1991).

A resistência existiu, desde o início da guerra, entre os que se exilaram:

Georges Bernanos, no Brasil, o filósofo tomista Jacques Maritain, nos Estados

Unidos, o romancista Jules Romains, em Nova York e depois no México, onde

também se exilou André Breton, o papa do Surrealismo. Apesar das diferenças

ideológicas inconciliáveis, unia-os um sentimento comum de abandono total, de

desamparo e de perda irreparável.

Uma das formas de resistência e de presença intelectual francesa, no exílio,

foi o funcionamento de 1942 a 1945 da École des hautes études em Nova York.

Aí lecionaram Maritain e Lévi-Strauss, entre muitos outros. Procuraram dar

testemunho, mas estavam longe, a salvo do dia a dia, da convivência quotidiana e

inevitável com o ocupante. Desaparecida logo após o final da guerra, essa

instituição prestigiosa era praticamente ignorada pelo grande público. E os que

dela tinham conhecimento não a valorizavam suficientemente.

Isto porque grande ressentimento caracterizou a atitude da maioria dos

franceses em relação aos ilustres exilados que não enfrentaram o dilema

diariamente renovado: que atitude assumir diante do mais forte? O que é mais

importante, a vida ou a honra? Uma vida sem honra teria sentido? E a realidade

32

comprova que os heróis, os mártires e os santos constituem uma exceção e não a

norma. Há várias espécies de coragem, como disse Bernanos: “si la force est une

vertu, il n’ y a pas assez de cette vertu pour tout le monde” (DC:1690).

Tratava-se não mais de hipotéticas discussões cornelianas, semelhantes

àquelas encontradas nos textos clássicos, mas de assegurar o pão de cada dia, de

sobreviver.

Após a Liberação - 1944 - e, sobretudo, depois da rendição incondicional da

Alemanha - 1945 -, instala-se na França l’épuration - a depuração - uma prática

visando julgar e punir todos os suspeitos de colaboração com o inimigo. Esses

acertos de conta do pós-guerra fizeram milhares de vítimas, culpadas ou

inocentes, em um processo que pode ser considerado um ressurgimento do Terror

reinante nos anos 1793-1794, e encerrado, oficialmente, após a execução de

Maximilien Robespierre e o advento do Thermidor.

Esse processo de "purificação", a imposição do que se considera o Bem e a

Virtude pela força, sempre movido por uma Fé, aparece, periodicamente, na

História da humanidade sob diferentes denominações: a caça às feiticeiras, a

Inquisição, a noite de São Bartolomeu. Períodos dominados pelo terror poderiam

ser enumerados e, ainda assim, a lista estaria sempre incompleta. Proponho-me a

evocar os Terrores contemporâneos na medida em que eles podem ser

comparados com o Terror de 1792-1793.

O Terror inicial da primeira República constituiu um modelo seguido por

outros processos de depuração violenta que pontuaram o curso da História: a

Comuna de Paris de 1871, a guerra civil espanhola, o terror nazista, o terror

33

comunista, o terror provocado pelo medo do comunismo, os terrores asiáticos: no

Japão, na China, no Cambodja e, mais recentemente, o terror movido pela

determinação de limpar a raça, na Bósnia. No dizer de René Sédillot, todos os

Terrores se assemelham e todos são diferentes. Mas todos os períodos de Terror

evocam, de um modo ou de outro, o Terror arquétipo: o da Revolução francesa

(Sédillot, 1990: 261).

Se todos os Terrores possuem características análogas às do Terror de 1793-

1794, com mais forte razão, l’épuration - a depuração - apresenta-se dominada

pelo espírito jacobino: o desejo de extirpar o mal, impor a virtude pela força,

castigar os culpados e construir uma nova sociedade.

Augustin Cochin, autor de L’esprit du jacobinisme, observa, com muita

propriedade, que a fé inspira o sacrifício pessoal a uma idéia a que se aderiu

apaixonadamente, enquanto o fanatismo sacrifica os outros a essa idéia. A fé e o

fanatismo constituiriam as duas faces do entusiasmo. E o espírito jacobino

somente conhece o fanatismo (Cochin, 1979:188).

O jacobinismo predominou na prática da limpeza da sociedade, no pós-

guerra francês, manifestando-se em julgamentos sumários, delações e muitas

vezes em castigos arbitrários como o aplicado às mulheres que mantiveram ou

teriam mantido relacionamentos amorosos com os alemães - o caso das femmes

tondues - mulheres tosquiadas. As vítimas, culpadas ou inocentes, tinham seus

cabelos raspados e eram expostas à execração pública.

A relação entre 1944 e 1793, evidenciada por historiadores, foi

demonstrada, anos mais tarde, em 1956, por Jean Anouilh em uma peça de teatro

34

Pauvre Bitos ou le dîner de têtes, onde o Terror e a depuração se misturam.

Anouilh reproduz a justiça sumária preconizada por um Saint-Just, mostra como

o mesmo modelo serviu em 1945 e denuncia ao excessos da depuração. O autor,

amargurado pelo que considerou injustiça, como a condenação de Brasillach,

também acertou suas contas. No dizer de Sédillot, seu dîner de têtes - jantar de

cabeças -, também foi um festival de cabeças decepadas.

Entretanto, descobrir, para castigar, os verdadeiros culpados de

colaboracionismo constituiu um problema complexo, delicado, quase

insuperável, de tal maneira o joio estava misturado com o trigo. Tentar separá-

los, antes do tempo da colheita, como adverte a parábola evangélica, seria correr

o risco de cometer danos irreparáveis (Mt.13, 24-30).

O passar do tempo permite maior equilíbrio na avaliação dos "anos negros":

a participação da França na vitória aliada foi menor do que os franceses

gostariam de pensar, mas também esta colaborou menos do que alguns a

acusam.

É difícil imaginar, entretanto, que os quarenta milhões de franceses que

aplaudiram Pétain em 1940 se tivessem transformado, em 1944, em quarenta

milhões de resistentes.

Ao assumir o poder, de Gaulle criou o mito da Resistência. Segundo Henry

Rousso, o general vitorioso procurou “escrever e reescrever a história dos anos

de ocupação propondo uma visão procedente de seu imaginário pessoal”

(Rousso, 1987: 26). A Resistência foi assimilada e estendida a toda a nação. A

35

salvação emanaria da France éternelle, abstração que constitui um dos

sustentáculos de seu ideário simbólico.

Criou-se um arquétipo do herói da Resistência que, no dizer de Jean Pierre

Azéma, apresentava uma

... imagem confusa onde se entremeavam o agente secreto, o justiceiro ou o fora da lei e que lembrava o herói dos filmes de faroeste e o cavalheiro medieval ao fazer explodir (...) um número incalculável de usinas e de pontes (Azéma, 1979: 169).

No pós-guerra e durante muitos anos, raciocinou-se do seguinte modo: a

Resistência é de Gaulle; ora, a Resistência é a França; logo, de Gaulle é a França.

Mas os mitos são dificilmente suportáveis por muito tempo e o General pede

demissão da presidência do Governo provisório, em 1946, só voltando ao poder

em 1958, para renunciar definitivamente em 1969.

O problema então era que os antigos resistentes achavam que a hora da

colheita já chegara, enquanto o General de Gaulle, considerado “o mais íntegro

dos franceses”, conclamava ao perdão e ao esquecimento, repetindo que a França

tinha necessidade de todos os seus filhos.

Viso, com estas reflexões, estabelecer o contexto no qual Dialogues foi

escrito. Por essa razão, limitar-me-ei a fazer uma breve síntese dos resultados da

depuração no pós-guerra francês, com base em estudos dos historiadores

anteriormente citados. A depuração a todos desagradou e foi aplicada de modo

desigual aos diferentes setores da sociedade francesa.

Segundo Novick, o sentimento geral era de que os escritores e jornalistas

constituíram os bodes expiatórios do colaboracionismo enquanto outros

36

segmentos, em particular os colaboradores econômicos, recebiam penas

simbólicas ou nem mesmo eram presos.

Também instituições tradicionais, como a Academia Francesa, quase não

sofreram retaliações. Comparável, no dizer de Paul Bourget, à Câmara dos

Lordes, ao Vaticano e ao Estado-maior da Prússia, a Academia Francesa

constituía um reduto reacionário, colaborou com os nazistas e apoiou Vichy. A

maior parte dos acadêmicos era germanófila, com exceção de Georges Duhamel

e, sobretudo, de François Mauriac, o único acadêmico que militou na atividade

clandestina ilegal.

Após a Liberação, os resistentes mais exaltados chegaram a cogitar da

dissolução da casa de Richelieu. Fiel à sua política de conciliação, o General de

Gaulle contemporizou, acalmando os ânimos, mas sugeriu à Academia a eleição

de escritores ligados à Resistência, para seus quadros. As promessas

tranqüilizadoras foram muito bem recebidas, mas as propostas inovadoras caíram

no vazio.

Algumas sanções, entretanto, foram aplicadas sem que a Academia pudesse

impedi-las: quatro colaboracionistas, condenados à degradação nacional, foram

excluídos automaticamente: Abel Bonnard, Ministro da Educação Nacional em

1942; Abel Hermant, escritor pedante e superficial; Charles Maurras e Philippe

Pétain. A reação da Academia foi passiva e eloqüente: os lugares dos dois

primeiros excluídos foram preenchidos, mas até a morte de Maurras (1952) e de

Pétain (1951) suas cadeiras permaneceram desocupadas.

37

A Academia Francesa não mudou após a depuração: continuou um reduto

de antigos colaboracionistas e partidários de Philippe Pétain. O que talvez

esclareça e justifique a recusa de Georges Bernanos em aceitar a eleição que lhe

foi proposta, por intermédio de François Mauriac, em 1946.

Ao rejeitar, formalmente, a honraria, em carta endereçada a François

Mauriac, em 27 de março do mesmo ano, Bernanos exprime-se em tom cortês e

deferente (CORR II: 627). Os verdadeiros sentimentos, entretanto, revelam-se em

sua correspondência, quando declara não desejar conviver com os acadêmicos

que lhe inspiram aversão, sobretudo, com o "velho impostor" Paul Claudel, eleito

em 5 de abril de 1946.

Em tom mordaz, Bernanos fustiga a vaidade, denuncia o que considera

ridículo e defende sua liberdade de opinião: "Je ne voudrais empêcher personne

de s’ habiller d’une manière ridicule, mais il y a des vérités qu’ on ne saurait

dire, ni même écrire, en habit de carnaval, c’ est-à-dire en jouant un

personnage” (CORR II: 642).

À semelhança da Academia francesa, a Igreja católica, na França, constituía

um verdadeiro monumento de conservadorismo e apoiara o governo de Vichy.

Houve exceções, entretanto, de simples católicos que honraram a Igreja, mas a

hierarquia - bispos e cardeais -, em sua maioria, era partidária de Pétain.

A reação contra o colaboracionismo da Igreja foi pautada por diplomacia,

prudência e firmeza. O cardeal Suhard, adepto de Pétain, foi impedido de

celebrar a missa em Notre-Dame de Paris e recebeu um tratamento glacial dos

representantes gaullistas. A morte do cardeal Baudrillart, colaborador declarado,

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poupou-lhe a vergonha de comparecer ao banco dos réus. O próprio

representante do Papa, o Núncio apostólico, perdeu o cargo. Sucedeu-lhe

Monsenhor Roncalli, o futuro João XXIII, que se viu obrigado a resolver o

problema de transferir de sede os bispos considerados indesejáveis, por terem

colaborado com Vichy e com os alemães. As pesquisas sobre o tema não são

exatas. O governo teria pedido por volta de trinta ou trinta e cinco transferências

e obteve apenas a revogação de sete bispos, em acordo concluído em 1945. As

negociações transcorreram com o mínimo de publicidade, o que evidencia a

cautela com que as partes trataram um problema envolvendo a Igreja e o Estado

(Novick, 1985: 210-13).

A depuração exerceu-se, assim, de forma desigual e aleatória. Os altos

funcionários, os grandes empresários, os militares, os magistrados e os artistas de

teatro e cinema recebiam penas simbólicas ou permaneciam em liberdade.

Georges Bernanos denuncia: “On fusille tous les jours des miliciens de vingt-

cinq ans, mais [...] les amiraux, les généraux, et les magistrats sont tabous”

(CORR II: 576).

Contrariamente, os escritores e, em particular, os jornalistas eram julgados e

condenados à morte. Robert Brasillac, jornalista de Je suis partout, órgão

colaboracionista e anti-semita, foi fuzilado em 1945, malgrado uma campanha

para obter uma comutação de sua pena. Pierre Drieu La Rochelle, diretor da

Nouvelle Revue Francaise (NRF), germanófilo declarado, suicida-se. Louis-

Ferdinand Céline, anti-semita notório e autor de panfletos em favor dos alemães,

foge e refugia-se na Dinamarca.

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Ao lado desses colaboracionistas eminentes, obscuros jornalistas que não

mereciam a pena máxima também eram condenados à morte, constatava Albert

Camus, desiludido e enojado, depois de acompanhar durante dois meses e meio o

desenrolar dos processos na Corte de Justiça de Paris.

Camus e Mauriac, durante o outono e o inverno de 1944-1945, debateram

calorosamente o tema da depuração. Camus, editorialista do jornal Combat,

rejeitava, ao mesmo tempo, o ódio e o perdão. O ódio, porque era um sentimento

que desconhecia e que lhe provocava repulsa, e o perdão, porque o considerava

um insulto aos companheiros, aos camaradas mortos durante o período de

clandestinidade e aos princípios por que tinham lutado.

Mauriac, no Figaro, fez-se o apóstolo da reconciliação e do perdão, e era

denominado "Saint François des Assises". Esta referência constitui um jogo de

palavras intraduzível em português: "Assise", cidade onde morou São Francisco,

o santo do perdão e do desprendimento; "Cour d'Assisses" designa os tribunais

criminais na França. Com a autoridade de quem se comprometeu na luta

clandestina pela Resistência, mas com a humildade de quem em um primeiro

momento elogiara Pétain, Mauriac concluía seu texto semanal com uma frase do

Evangelho: “O que de vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire a

pedra” (Jo. 8, 7).

Camus cedeu a Mauriac, concluindo, entretanto, que, se a caridade de seu

opositor era admirável, sua concepção de cidadania era deplorável. Anos mais

tarde, em 1950, o autor de L’homme révolté confessava que Mauriac tinha razão.

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O autor de L’étranger faz uma importante distinção entre os colaboradores,

que aceitaram as honrarias e as responsabilidades durante a ocupação, e o povo

em geral, preocupado em sobreviver durante um período de escassez, de

racionamento de víveres, filas intermináveis e câmbio negro (Rousso, 1992).

Pretendi, nesse breve histórico da questão, recortar um momento de

perturbação, violência, coragem, intranqüilidade e, sobretudo, de insatisfação e

não traçar, exaustivamente, o processo de depuração que se revelou, a longo

prazo, uma utopia.

Abstive-me de analisar o processo de limpeza nos movimentos sindicais,

assim como a radicalização relativa às mulheres, principalmente, às prostitutas;

apesar de sua relevância, por serem excessivamente complexos e fugirem, de

certo modo, ao tema proposto.

Concentrei, portanto, meu estudo em dois blocos que receberam tratamento

diverso do governo provisório: a Academia Francesa e a Igreja Católica,

poderosas instituições, objetos de uma depuração mitigada, e os intelectuais, alvo

fácil de investigações e violentas represálias.

No meio intelectual, há que se destacar os escritores e, principalmente, os

jornalistas considerados os mais responsáveis, por terem influenciado,

diretamente, a opinião pública.

A severidade com que foram julgados os jornalistas provocou um

sentimento geral de que eles estariam representando o papel de bode expiatório,

41

em uma sociedade que se sentia culpada e principalmente não distinguia, de

modo claro, os culpados dos inocentes.

Procurou-se, entretanto, discernir o diferente grau de culpabilidade dentre

os acusados. Alguns foram julgados pelo tribunal criminal e condenados à morte.

Outros sofreram diferentes restrições, abaixo esclarecidas.

No que tange aos escritores, houve uma depuração oficial e outras oficiosas

- as famosas "listas negras" que condenavam ao ostracismo aqueles que teriam

colaborado e com os quais os membros do Comité National des Écrivains (CNE)

não desejavam manter nenhum contato profissional.

O resultado prático dessas listas era nada publicar do escritor renegado, não

mencioná-lo e, principalmente, boicotar os jornais que, porventura, ousassem

publicar seus textos. O silêncio, o pior dos castigos, instalou-se em volta dos que

o próprio CNE reconhecia desigualmente culpados.

O valor das listas de exclusão, com o passar do tempo, tornou-se

meramente simbólico e perdeu sua importância quando os grandes escritores não

comunistas - Georges Duhamel, Jean Paulhan, François Mauriac e Jean

Schlumberger - afastaram-se do CNE, a partir de 1946, motivados pela utilização

indiscriminada da lista negra e, sobretudo, por discordar de sua orientação

marxista.

A depuração não conseguiu atingir o objetivo proposto: uma transformação

total da sociedade francesa. Contudo, modificações houve: mudanças sociais e

políticas que contribuíram para uma renovação parcial, mas profunda, na

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literatura francesa. Renovação motivada pela morte de alguns escritores -

Romain Rolland, Jean Giraudoux ou pela perda de credibilidade, decorrente de

ligações comprometedoras com Vichy - Charles Maurras, Louis-Ferdinand

Céline, Henry de Montherlant.

Albert Camus, Jean Bruller Vercors, Jean-Paul Sartre, outra geração de

escritores, marcada pela Resistência, ocupará, doravante, a cena literária, sem

conseguir, entretanto, “forçar as muralhas da Academia francesa, monumento

da vida intelectual francesa” (Novick,1985: 210).

Dialogues foi um texto escrito, no pós-guerra, em um momento de conflitos

históricos. O texto, entretanto, está vinculado, não à organização da resistência

armada, mas à luta, também clandestina, que alguns escritores sustentaram, com

as armas de que dispunham, para resistir, através das idéias, ao inimigo.

Esta luta desenvolveu-se, sobretudo, no teatro trágico, lugar das grandes

decisões, onde as contradições inerentes ao homem são expostas, em que se dá a

catarse, a liberação, a purgação da angústia humana (Leenhardt, 1995).

O teatro trágico ocupa um lugar de destaque na vida intelectual francesa

durante a Ocupação e no pós-guerra, enquanto o gênero romanesco apresenta

certa estagnação.

A relativa pobreza da produção romanesca, durante o decênio 1940-1950,

também pode ser explicada por fatores externos como a presença da censura, o

fechamento das fronteiras e a escassez de papel. A tiragem era limitada a 5000

exemplares o que diminuía a difusão das obras (de Beer, 1963: 266). Tais

43

motivos contribuíram para o florescimento do teatro que oferecia um campo

renovado e mais acessível à literatura.

Se, após a guerra, Aragon e Giono continuam sua obra, François Mauriac

dedica-se ao jornalismo; Martin du Gard não publica os romances que escreve e

Malraux já renunciara à obra romanesca, após a publicação de L’Espoir, em

1937. Bernanos sacrifica sua obra romanesca para dedicar-se aos Écrits de

Combat, sua obra polêmica, considerada prioritária naquele momento.

Graças à descentralização da cultura, um público maior e mais variado tem

acesso às grandes peças, antes restritas a Paris. Data de 1947 a criação do festival

de Avignon, uma data essencial na dramaturgia francesa do século XX, em que

se destacam a atuação de Jean Vilar e a preocupação do testemunho, a presença

atuante de Camus e de Jacques Copeau.

Parece-me, entretanto, que os motivos da escolha do teatro como meio de

expressão das tensões de um momento conturbado residem no próprio teatro.

No período da Ocupação, as reuniões foram, primeiramente, proibidas e,

posteriormente, desaconselhadas, por prudência. As representações teatrais

permitiam o agrupamento de pessoas, com o álibi do espetáculo público. E o

teatro constituía, muitas vezes, um lugar de resistência onde aconteciam

verdadeiras celebrações, congraçando público, atores, diretores e todos os que

contribuíam para a "festa do instante" (Bondy, 1996). O momento único e

mágico da representação teatral jamais pode ser repetido, mesmo com o texto

inalterado, os mesmos artistas, o mesmo espaço físico e, se possível, o mesmo

público. Trata-se de um instante fugaz e único.

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Razões de outra ordem também contribuíram para o auge do teatro nesta

época: o espaço físico era um abrigo, se não inviolável, pelo menos seguro. Além

disso, era aquecido, no rigor do inverno, quando a calefação era privilégio de

uma minoria.

Mas parece que o grau calorífíco não era o único elemento em jogo e o

teatro não monopolizava o interesse do público. As bibliotecas e os cinemas

estavam sempre repletos, as salas de espetáculo lotadas; o que cada um procurava

era evadir-se e esquecer, durante algumas horas, a dureza daqueles tempos.

Assim, o teatro foi, durante a Ocupação, e continuou a ser no pós-guerra,

um meio de comunicação, por excelência, entre os que se questionavam a si

próprios e às suas certezas e transformavam-nas em indagações.

No decênio 1940-1950, as peças de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre

constituem novidade no panorama teatral da época. Tradicionais quanto à forma,

revelam-se provocadoras quanto à visão do mundo que propõem.

Sem pretender repetir os inúmeros paralelos estabelecidos entre Camus e

Sartre, assinalo o papel de maître à penser - mentor intelectual - desempenhado

pelos dois escritores e a visão do mundo que exprimem, através do teatro, no

pós-guerra.

A percepção aguda do absurdo do mundo e a revolta, para Camus; a

responsabilidade do indivíduo colocado em situações-limite, para Sartre; negação

do trágico, para o autor de L’État de siège (1948); a condenação à liberdade, para

o autor de Les Mouches (1943), seriam estes os conceitos predominantes, o

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essencial das preocupações que os perseguem, partilhadas com o público, através

do teatro, utilizado como uma tribuna.

Camus, resistente de primeira data, lutara, como redator-chefe, à frente do

jornal Combat durante os primeiros anos do pós-guerra. À semelhança de

Mauriac, suas obras, publicadas durante os "anos negros", respectivamente, o

romance L’Étranger (1942), o ensaio Le Mythe de Sisyphe (1942) e a peça de

teatro Le Malentendu (1944) não parecem revelar nenhuma relação direta com a

conjuntura do momento político da época. Todavia, necessário se faz lembrar que

uma peça menos conhecida do grande público, Caligula, na qual o autor evoca o

clima de terror, a loucura e o crime foi escrita em 1938, publicada em 1944 e

representada em 1945.

Sartre combateu como escritor e não como resistente ativo na luta

clandestina. A representação de Les Mouches (1943), Huis clos (1944) e Les

Mains sales (1948) marcou época. A influência exercida pelo autor de La Nausée

é por demais conhecida. As gerações que se sucederam, do pós-guerra até sua

morte em 1980, revelam, de um modo ou de outro, marcas de sua influência,

exercida nos mais diferentes setores: filosofia, política e literatura.

Enquanto Camus e Sartre atingiam o grande público de esquerda, Henry de

Montherlant impunha-se a um público mais conservador. Seu percurso

intelectual caracteriza-se pela ambigüidade ideológica. Em 1945, Montherlant é

um dos poucos escritores de renome, punidos com a mais grave sanção do CNE:

interdição de publicar durante dois anos.

46

A reputação de colaboracionista justificava-se por seus escritos, durante a

ocupação, publicados em órgãos tais como: Cahiers franco-allemands (1940), La

Gerbe (1941-1942), Comoedia (1941). Esta revista, de jogo colaboracionista

sutil, conseguiu fazer com que grandes nomes da intelectualidade francesa

participassem de suas publicações: Giono, Sartre, Valéry, Copeau, Dullin,

Barrault. E também, ainda em 1941, quando o vazio se fazia em torno de Drieu

La Rochelle, Montherlant escreve artigos para a NRF. Além dos artigos em

jornais e revistas colaboracionistas ou simpatizantes, Montherlant publica, em

1941, Le Solstice de juin, obra menor, mas recebida pelos leitores como uma

apologia da Alemanha, uma celebração ambígüa do nazismo. Le Solstice de juin

merece importância porque modificou, por completo, o relacionamento do autor

com o público e justificou, aos olhos da maioria, sua presença na lista negra dos

condenados ao ostracismo intelectual, pela depuração.

O caso Montherlant não pode ser reduzido a simples colaboração pró-

Alemanha. Em 1942, o autor de Solstice de juin escreveu La Reine morte

representada com grande sucesso pela Comédie Française. A partir daí, cessa de

escrever romances, a exemplo de outros grandes nomes da literatura francesa, e

dedica-se ao teatro, afirmando-se como dramaturgo.

La Reine morte, com base em fato histórico português do século XIV, e no

drama espanhol do século XVII, Régner après la mort, de autoria de Luis Velez

de Guevara, narra o assassinato de Inês de Castro, a esposa secreta do herdeiro

do trono, por Alfonso V. Ao tornar-se rei, Pedro coroa o cadáver de Inês,

fazendo-a rainha.

47

Esse acontecimento inspirou inúmeros poetas e dramaturgos, entre eles,

Camões que imortalizou, em Os Lusíadas, o trágico episódio.

Montherlant enfatiza, sobretudo, a personalidade ambivalente do rei, atraído

por Inês de Castro, mas decidido a sacrificá-la, por razões políticas. O jogo do

poder, mesclado de sadismo, revela-se nessa peça que foi recebida, por

determinado público, como metáfora da Resistência francesa.

Jean Pierre Azéma observa, entretanto, que apenas uma única réplica: “En

prison se trouve la fleur du royaume” (Montherlant, La reine morte, 1958),

aplaudida pelo público, não permite que se possa considerar o autor de Solstice

de juin um jacobino, um resistente (Azéma, 1979:153).

Se se tratasse de um caso isolado na obra de Montherlant, La Reine morte

poderia ser considerada uma obra em que há alusões patrióticas, ou que o público

quis julgar como tais.

Em 1953, o dramaturgo publica Port-Royal, o drama da injustiça, no qual

expõe as perseguições infligidas por Luis XIV às religiosas da abadia de Port-

Royal-des-Champs; perseguições que culminaram com sua dispersão em

diferentes conventos e a destruição do próprio edifício onde florescera o

jansenismo.

O rigor, a procura do absoluto e, principalmente, a recusa dos valores

mundanos tornaram o jansenismo um elemento contestador da razão de Estado e

do argumento da autoridade sobre os quais se fundava o absolutismo. Por esses

motivos, entre outros, Port-Royal, no dizer de Louis Cognet, insere-se no vasto

48

movimento sociológico que provocaria o desmoronamento do Antigo Regime. E

não foi sem fundamento que certos meios jansenistas julgaram a execução de

Luís XVI, em 21 de janeiro de 1793, uma vingança póstuma do monastério

destruído (Cognet, 1961: 142-45).

A gênese da obra merece ser considerada. Em 1929, Montherlant, ao ler

Port-Royal de Sainte Beuve decide escrever uma peça de teatro inspirada em um

episódio desse movimento religioso e político que deixou marcas indeléveis na

História da França. Durante dois anos, de 1940 a 1942, trabalhou em uma

primeira peça que, por prudência, permaneceu inédita. Em 1948, ao relê-la, julga-

a insatisfatória e arquiva-a.

Uma nova leitura, em 1953, confirma o julgamento anterior, e Montherlant

resolve escrever uma segunda peça, inteiramente diferente da primeira, inspirada

em outro episódio da história da controvertida abadia.

Este breve histórico evidencia a importância do tema para o autor que

declarou ser o jansenismo sua verdadeira família espiritual: “Cette famille était et

ne cessera jamais d’être la mienne” (Montherlant, 1958: 664).

Considerado por muitos de seus contemporâneos um colaborador

ideológico, Montherlant escreveu, entretanto, La Reine Morte e onze anos mais

tarde, Port-Royal, que pode ser recebida como a tragédia da consciência livre

diante da prepotência da autoridade absoluta.

Os críticos julgam-no um escritor de múltiplas máscaras ou de inúmeras

facetas. E o próprio Montherlant parece confirmar sua ambigüidade e

49

complexidade ao atribuir a Soeur Angélique de Saint Jean, importante

personagem de Port-Royal, uma declaração que poderia endossar: “Ne cherchez

pas à percer ces choses. Il y a de tout en certaines âmes. Et parfois dans le

même moment” (Montherlant, 1958: 1047) (Grifos meus).

Julguei importante enfatizar este aspecto da obra de Montherlant porque

Port-Royal foi representada, na cena parisiense, aproximadamente, durante o

mesmo período em que Dialogues des Carmélites de Bernanos constituía o maior

sucesso da temporada teatral européia.

E não era por acaso que as duas peças tratavam de um fato histórico

francês, cujas personagens eram mulheres indefesas, religiosas, vivendo em

comunidade, vítimas de um poder absoluto e arbitrário.

Port-Royal também faz parte do repertório da Comédie Française e sempre

é representada com sucesso. Dialogues foi traduzida para várias línguas e as

sucessivas montagens alcançam grande êxito. No Brasil, foi representada

diversas vezes. Destaco a temporada, no teatro do Copacabana Palace, em 1955,

pela companhia de Henriette Morineau. Maria Clara Machado representava

Blanche de la Force e Madame Morineau vivenciou Madame Lidoine, a segunda

Priora. Se mais representações não há, a causa reside, entre outras, nos inúmeros

problemas de direitos autorais que uma montagem acarretaria. Bernanos deixou

muitos herdeiros e há processos ainda em curso.

Dialogues, julgada por muitos críticos a melhor peça teatral do pós-guerra,

foi elaborada em plena guerra fria, conflito eminentemente intelectual,

compreendido entre 1947-1956.

50

A noção de guerra fria assume, na França, conotações de uma verdadeira

luta com toda a carga semântica de agressividade nas relações interpessoais que o

termo acarreta e de recusa em admitir não somente a concessão, a negociação,

mas também a neutralidade e a cômoda posição de meio termo.

Após a efêmera fraternidade vivida na época da Resistência, os intelectuais

dividiam-se em campos opostos. Não ser comunista equivalia a ser anticomunista

e o anticomunista, no julgamento exaltado da época, correspondia a um fascista.

A guerra fria remete a um passado imediato: ao processo de depuração

posto em prática após a Liberação de Paris pelos Aliados e aos anos negros da

ocupação nazista.

Esses momentos caraterizaram-se por uma espécie de terror: a imposição,

pela força, do que se considerava um direito ou uma verdade. E, em se tratando

da depuração e da guerra fria, o terror assume o que poderia ser considerado uma

manifestação do jacobinismo sempre presente nas guerras franco-francesas

depois da Revolução de 1789.

O terror assumiu diferentes formas nos diversos momentos: o ocupante

alemão tentou eliminar os judeus, sufocar a Resistência e provocou sentimentos

de horror, medo e vergonha naqueles que "não cantaram" para o inimigo. O

acerto de contas do pós-guerra fez milhares de vítimas, em uma tentativa de

limpeza que se assemelhava ao Terror de 1793. E a esquerda, predominante na

guerra fria, não admitia a menor possibilidade de um intelectual não pertencer ao

partido comunista, desencadeando exclusões que equivaliam à morte em vida.

51

O último texto de Georges Bernanos trata de um fato histórico, ocorrido no

século XVIII durante o Terror da Revolução Francesa. Como já referido, o autor

fora solicitado a escrever os diálogos para um filme baseado em uma novela de

Gertrud von le Fort. Estas circunstâncias não invalidam o fato de que o autor se

apaixonou pela tarefa e dela fez não só uma última meditação sobre a vida e a

morte, como seus críticos assinalaram, mas também uma reflexão sobre o

momento histórico em que vivia.

A contemporaneidade, a ocupação alemã, a depuração e a guerra fria

formam o contexto implícito de Dialogues, que se inscreve na data de publicação

do texto.

No dizer de Derrida, uma data é sempre uma metonímia e designa a parte

de um acontecimento ou de uma seqüência de acontecimentos para lembrar o seu

todo (Derrida, 1986: 41). E também a referência à publicação da obra em 1949,

sabendo-se que fora escrita em 1947-1948, equivale ao todo, em determinado

contexto.

O contexto, implícito mas atuante, articula-se com o período do Terror no

qual a ação da peça se desenrola. Os dois momentos refletem-se como em um

processo especular - o Terror de 1792 -1793 é revisitado à luz da

contemporaneidade e esta desvela as constantes que a ligam à Revolução

Francesa, considerada por muitos historiadores como a inspiradora de todas as

revoluções modernas (Sédillot, 1990: 272).

Assim, a inscrição da História, em Dialogues, realiza-se através do

desenrolar da Revolução Francesa.

52

A História, manifestada sob o aspecto da Revolução Francesa, é

considerada la toile de fond - o pano de fundo - quando se privilegia o drama

espiritual, como julga Monique Gosselin. E também pode ser considerada a

structure portante de l’action - a estrutura que sustenta a ação - no dizer de

Pierrette Renard. A noção de estrutura, evocando um termo de engenharia,

acrescenta uma importância essencial ao papel desempenhado pela História em

Dialogues.

Parece-me, entretanto, que, além de pano de fundo e estrutura sustentadora,

a Revolução é, sobretudo, uma personagem discreta porém implacável que

modifica a sociedade e que teria uma função análoga ao Destino da tragédia

clássica.

Importa, assim, ressaltar que o Terror de 1793, reescrito por Bernanos, em

1948, acha-se contaminado, em Dialogues des Carmélites, por outros terrores

contemporâneos. O terror da ocupação nazista, da depuração e da guerra fria já

foram mencionados, mas o terror da guerra civil espanhola, vivido em Maiorca,

também está presente de modo implícito mas atuante.

O autor de Les Grands Cimetières sous la lune associava os dois terrores e

rebate, de antemão, em 1938, uma possível acusação de impropriedade de

termos: “Si le mot de Terreur vous semble trop gros, cherchez-en un autre, que

m’ importe!” (EEC I: 430).

Embora o terror reinante em Maiorca diferisse, aparentemente, do Terror de

1793, Bernanos discernia o elemento comum que os identificava: o desrespeito à

dignidade do homem e a imposição pela força, da ordem e do que se considerava

53

o bem e a virtude. O terror vivido em Maiorca articula-se, portanto, também, com

o de 1793.

Bernanos, em 1939, no Brasil, ao evocar a guerra civil espanhola, enfatiza a

distinção entre os dois momentos da Revolução Francesa: “Ce n’ est pas avec

Hoche ou Kléber, c’ est avec Fouquier-Tinville et Marat que vous avez trinqué”

(CORR II: 257). O general Louis Hoche e o general Jean-Baptiste Kléber,

representam, para Bernanos, um certo equilíbrio e moderação no âmbito do

processo revolucionário, o que os ligaria aos ideais de 1789, em oposição a Marat

e Fouquier-Tinville, nomes emblemáticos do Terror desmedido.

O autor aludira em Les Grands Cimetières sous la lune a outros terrores que

pontuaram a História da França como a noite de São Bartolomeu e a Comuna de

Paris, em 1871, denunciando o princípio que os impulsionava: a determinação de

exterminar todos aqueles que fossem julgados indesejáveis, em um processo de

limpeza (EEC I: 433). E indesejável é aquele que é diferente, aquele que se isola

de uma verdade global.

Cumpre ressaltar, porém, a modificação do ponto de vista de Bernanos

sobre a Revolução Francesa ao longo dos anos. Seu interesse pelo Movimento de

1789 manifesta-se após a ruptura com Maurras em 1932, época em que Bernanos

descobre “a mensagem universalista da Revolução, revista por Michelet e

corrigida por Péguy” (Kohlhauer, 1994: 105) e, sobretudo, os valores de uma

revolução até então depreciada.

Os textos são elucidativos: em 1931, ele escreve: “...cette Révolution

fameuse, celle de 1789, n’ a eu qu’ un résultat certain: la consolidation des biens

54

acquis grâce à quelques poignées d’ assignats, frauduleusement” (EEC I: 102).

Como observa Monique Gosselin, a guerra civil espanhola provoca em Bernanos

a descoberta de que o Terror não era o apanágio dos teóricos de esquerda, êmulos

de Robespierre e que poderia emanar de homens e cristãos com quem havia

partilhado os mesmos valores.

A atitude tomada em relação ao Movimento de 1789 evolui e leva

Bernanos a considerá-lo em 1947 “...non pas l’ écroulement, mais l’

épanouissement de l’ancienne France, éperdue jusqu’au délire de confiance en

elle-même et de foi dans l’ homme” (EEC II:1273).

Bernanos não considera a Revolução Francesa como um todo e opõe 1789 a

1793 dentro da tradição monarquista. Este antagonismo permanece em

Dialogues, seu último texto, no qual estão presentes todos os terrores vivenciados

ou que faziam parte de sua cultura, como o horror à Revolução de 1793 (CORR

II: 257), horror explicável por sua formação católica conservadora, tradicional e,

principalmente, por suas idéias monarquistas nunca renegadas.

A conclusão a que o autor chegara, em 1938, poderia ser repetida, após o

decurso de um decênio: “Toutes les Terreurs se ressemblent, toutes se valent,

vous ne me ferez pas distinguer entre elles, j’ai vu trop de choses maintenant, je

connais trop bien les hommes, je suis trop vieux” (EEC I: 433).

A repetição do advérbio trop - em excesso - indica o cansaço e o

desencanto do autor, já bastante doente, e exprime sua angústia e solidão moral.

55

Assinalada a articulação dos diferentes terrores, uma pergunta impõe-se:

tratar-se-ia de uma repetição ou de um paralelismo que deve ser questionado?

Repetição e paralelismo não são sinônimos. Repetir significa que um fato

ou ação torna a acontecer e paralelismo indica uma progressão semelhante de

coisas comparáveis ou que acontecem da mesma maneira.

No contexto histórico referido, trata-se de uma repetição e de um

paralelismo: o Terror de 1793 reaparece na guerra civil espanhola, durante a

ocupação nazista, na depuração e na guerra fria, de modo análogo, mas diverso.

Os diferentes terrores articulam-se e podem ser lidos como espelho e refração.

Trata-se, então, da concepção cíclica do tempo, da volta periódica de certos

acontecimentos e de personalidades, do retorno eterno?

A novela de Gertrud von le Fort parece autorizar essa leitura, porquanto a

autora admite a teoria dos ciclos cósmicos, do Caos: “O caos, que brame

eternamente no mais profundo dos elementos, rompeu a crosta aparentemente

firme dos hábitos” (le Fort, 1937: 15).

As concepções históricas da romancista alemã e do autor de La France

contre les robots, entretanto, diferem. Para Bernanos, a História existe em si e

não consiste em repetições inevitáveis, embora existentes. A fé, uma nova

categoria introduzida no contexto, permite, no dizer de Eliade, uma liberdade

criadora por excelência:

Ela constitui uma nova fórmula de colaboração do homem com a criação... Somente esta espécie de liberdade, (...) fundamentada, garantida e apoiada por Deus é capaz de defender o homem moderno contra o terror da história ... [...] Qualquer outro conceito de liberdade moderna, independentemente da satisfação que possa proporcionar a quem a possua, é impotente para justificar a história. E a não justificação eqüivale ao terror da história. (Eliade, 1969: 180)

56

Para Bernanos, cristão, a História existe como tal e não como mera

repetição. O passado permite-lhe melhor compreender seu próprio tempo.

Sua visão histórica orienta-se, não para o passado, mas para o futuro, na construção de uma utopia. O termo Utopia empregado não no sentido vulgarizado de projeto irrealizável, quimera, ou fantasia, mas na acepção de construir, de refazer um mundo para os homens livres" (Kohlhauer, 1988: 113-39).

Em conferência pronunciada, em 1946, em Genebra, intitulada: "L’esprit

européen et le monde des machines", Bernanos repete como um refrão: “Le

monde ne sera sauvé que par les hommes libres. Il faut faire un monde pour les

hommes libres” (EEC II: 1370).

Nesse contexto histórico, no final da primeira metade de um século

balisado, não pelos períodos de paz, mas por duas guerras mundiais, Bernanos

reflete sobre os regimes totalitários, sobre a prepotência da força e medita sobre o

destino das dezesseis carmelitas de Compiègne, vítimas de um regime de

exceção.

Como ser livre em um mundo dominado pela máquina? A vida seria mais

importante do que a honra? O sentimento de honra é mais importante do que a

vida? O que ameaça o homem? Como reagir diante da força? E, principalmente,

como conciliar o impasse diante do poder arbitrário e a promessa de libertação,

de participar “da liberdade gloriosa dos filhos de Deus” (Rom. 8,21) ?

Bernanos interrogava-se sobre estes problemas ao escrever seu último texto

e levou seu questionamento até às últimas conseqüências. A sinceridade das

indagações explicaria, talvez, por que esta peça comove mesmo aqueles que não

partilham sua fé e nela encontram o eco de suas preocupações.

57

Dialogues não é apenas um belo texto recitado por religiosas

contemplativas. É também uma peça sobre o medo, a vergonha de sentir-se

indigna, o drama. da exclusão, a procura de um lugar no mundo e um debate

interno sobre as mudanças revolucionárias que transpõem as paredes de um

Carmelo.

Todas estas questões serão discutidas, na forma de diálogos, à luz da fé que

norteava Bernanos.

58

INTERTEXTO: FIGURAS

Após ter estudado o contexto histórico em que foi escrita a peça Dialogues

e antes de analisar o texto propriamente dito, considero importante enfocar

algumas figuras que funcionam como intertexto da ação: a cidade de Compiègne,

a ordem do Carmelo, o convento do Carmelo na França em revolução. Poder-se-

ia caracterizá-las como intertextos, por vê-las não como meros cenários ou pano

de fundo. Classifico também a Revolução Francesa como intertexto porque a

considero, na peça, não um momento histórico congelado no tempo, mas um

conjunto de discursos, com os quais dialoga o texto de Bernanos.

Primeiramente, enfocarei, nessa perspectiva, a cena do mundo, o espaço

temporal, para em seguida propor uma leitura de Dialogues.

3.1. Compiègne - um espaço de violência

“Très fidèle au roi et au règne” - divisa da cidade de Compiègne, antes da Revolução Francesa.

O núcleo principal da ação de Dialogues se desenrola, como referi, durante

a Revolução Francesa, de 1789 a 1794, do início do processo revolucionário ao

ápice do Terror, no âmbito do Carmelo de Compiègne.

A Revolução Francesa inaugurou uma nova era e, ao abolir o Antigo

Regime, pretendia suprimir os privilégios garantidos à nobreza e eliminar as

injustiças sociais. Liberdade, Igualdade e Fraternidade, complexo e utópico

ideário revolucionário que, no dizer de Celina Maria Moreira de Mello, funciona

compactado apenas como slogan, e, se analisado, exibe contradições entre a idéia

59

de Liberdade vinculada ao liberalismo, a de Igualdade, inspirada no

republicanismo e o ideal de Fraternidade, influenciado pelo socialismo (Mello,

1994).

Apesar das contradições, a Revolução Francesa mudou a História do

mundo. A ruptura com o passado, a instauração no poder político de uma

ideologia burguesa e sobretudo a possibilidade de uma certa mobilidade social

marcam este período de mudanças, de transição e de crise.

Neste contexto, instaura-se o Terror, uma tentativa de impor a todos a

virtude através da força e da violência. A violência constitui uma resposta ao

medo, sentimento inaceitável para muitos e que só pode ser vencido e controlado

pela aceitação de sua existência. E o medo, no dizer de René Girard, em La

violence et le sacré (1972), uma vez desencadeado e exprimindo-se pela

violência, requer "bodes expiatórios" para ser apaziguado.

Durante o período do Terror da Revolução Francesa, o ódio dirigia-se

contra os representantes da nobreza e do clero, classes dominantes no Antigo

Regime, porque o povo temia que essas classes recuperassem o poder.

Quando se fala do Terror, há que se distinguir o Terror reinante em Paris,

comandado por Robespierre e seus partidários, e o Terror existente no resto da

França, desigual e dependente daqueles que o representavam. Assim, em algumas

regiões, salvavam-se as aparências, empregava-se uma terminologia

revolucionária, mas, na realidade, os extremismos eram evitados. Vivia-se no

compromis - um meio-termo.

60

A cidade de Compiègne de 1789 a 1794 é a cena principal dos

acontecimentos do texto em estudo. A escolha da data em relação à Revolução

Francesa nunca é anódina e reflete uma escolha de caráter ideológico. Há os que

datam o processo revolucionário a partir de 1789, consideram-no um bloco

indiviso e não fazem distinção entre 1789, início do processo revolucionário, o

Terror de 1792, marcado pelo massacre dos padres refratários, os que se

recusaram a jurar fidelidade à Nação, e o Grande Terror de 1793-1794. Há

também os que aceitam os ideais de 1789 e condenam a violência do Grande

Terror.

Essa distinção permite concordar com os ideais de Liberdade, Igualdade e

Fraternidade e a proclamação dos Direitos do Homem. Bernanos, discípulo de

Péguy, julga a Revolução de 1789, “... l’épanouissement de l’ancienne France,

éperdue jusqu’ au délire de confiance en elle-même et de foi dans l’homme”

(EEC II:1273), porém confessa ter sido educado no horror da Revolução de

1793: "J'ai été élevé dans l'horreur de la Révolution de 1793, et de ce régime des

suspects dont Robespierre nous a laissé l'effrayante formule: Il n'y a pas

d'innocents parmi les aristocrates" (CORR: 257).

Ao escrever os diálogos, para o roteiro extraído da novela de Gertrud von le

Fort, Bernanos, ao contrário da romancista alemã, menciona, rigorosamente, as

datas e os espaços no início da ação, propondo, como observa Pierrette Renard,

um nível suplementar de significação. E, no final, não mais indica as datas com

precisão, compacta os acontecimentos, visando um maior impacto dramático,

enfatizando o Terror dominante.

61

O início da ação é datado de 1789 e o fato histórico refere-se à execução de

dezesseis carmelitas, em Compiègne em 1794. Cidade muito antiga que vem da

ocupação romana, Compiègne, está situada às margens do rio Oise, a cem

kilometros de Paris, fazendo parte do Departamento de Oise.

Sua fundação é atribuída, sem provas, a Júlio César. O mais antigo

documento onde consta o nome de Compiègne (do latim compendium) é datado

do século VI (diplôme de Childebert I, 557). Além de ser uma das residências

preferidas dos reis da França, esta cidade foi sempre um teatro de guerras, de

lutas e de decisões históricas.

Marcada por importantes acontecimentos políticos e violentas paixões que

tiveram como cena sua floresta, seus castelos e suas igrejas, a cidade de

Compiègne foi sempre um espaço de violência.

Em 1430, Joana d’Arc foi aprisionada por seus inimigos às portas da

cidade. Uma história controvertida e até hoje mal explicada. Foi no castelo de

Compiègne que Luis XV recebeu a arquiduquesa Maria-Antonieta, noiva do

futuro Luis XVI. Em 1810, Napoleão Bonaparte restaurou o castelo para

recepcionar Maria-Luiza d’Áustria.

O Armistício de 11 de novembro de 1918, quando a França venceu a

Alemanha, foi assinado na floresta de Compiègne, assim como o vergonhoso

Armistício de 1940 em que o governo de Vichy se rendeu ao inimigo.

Alvo de bombardeios durante a Segunda Guerra Mundial, Compiègne foi

sede de um campo de prisioneiros políticos.

62

A sociedade de Compiègne, antes da Revolução Francesa, podia ser

caracterizada pela moderação, pelo compromis, pelo meio-termo. E o meio-termo

permite soluções variadas e aleatórias.

Essa cidade, nostálgica das estadas lucrativas do rei e de sua corte,

amargava, nos idos de 1790, uma recente derrota: a perda do centro

administrativo que coube à cidade de Beauvais. Havia um certo acordo político,

em aceitar o conjunto das reformas impostas pela Revolução, sobretudo as

referentes à Igreja.

Nesta sociedade notava-se o peso da influência de um grande número de

padres conformistas, os que haviam jurado fidelidade à Constituição Civil do

Clero, em janeiro de 1791. O que se procurava, sobretudo, era salvaguardar o

equilíbrio interno da sociedade e, para isso, todos os acordos políticos

necessários eram realizados.

Importa considerar que a Revolução foi uma época favorável à ascensão de

categorias sociais durante muito tempo discriminadas. Entre estas destacava-se o

baixo clero, constituído de párocos e vigários, plebeus, mal remunerados e

descontentes com o alto clero. Os nobres, que formavam o alto clero, eram

beneficiários do dízimo e ocupavam importantes e rendosos cargos: eram bispos,

cônegos, vigários episcopais. Essa dicotomia do clero contribuiu para a queda do

Antigo Regime e para a consolidação das conquistas revolucionárias.

Ora, durante os anos 1793-1794, com o advento do Grande Terror, já não

havia possibilidade de acomodação, de meio-termo. Motivado, segundo alguns

historiadores, sobretudo pela revolta da Vendéia, pela presença dos inimigos nas

63

fronteiras e pelas dificuldades econômicas, o Terror se fez exigente. E as

autoridades e a sociedade de Compiègne foram acusadas de "tiédeur

républicaine", no jornal de Marat, pelo geógrafo Bussac. A reação não se fez

esperar: o autor da denúncia foi punido e encarcerado e a associação jacobina

Amis de la Constitution aderiu de maneira oportunista à Montanha, o partido de

Marat, Danton e Robespierre.

A sociedade de Compiègne procurou demonstrar, em seguida, um grande

espírito revolucionário. O clube jacobino chegou a propor que Compiègne fosse

rebatizada de Marat-sur-Oise. Além disto, as autoridades constituídas de

Compiègne apressaram-se em promulgar um edital descristianizador sobre a

regulamentação dos cemitérios, em 29 de outubro de 1793, calcado no edital de

10 de outubro do mesmo ano. O zelo em cumprir as determinações

revolucionárias revelaria talvez um receio de não se ser considerado

suficientemente patriota.

A condenação e a execução das dezesseis carmelitas de Compiègne, em

1794, estaria ligada ao desejo de fazer esquecer que Compiègne ostentara outrora

a divisa: "très fidèle au roi et au règne"? Teria sido um meio de exorcisar um

passado comprometedor e provar a fidelidade à Revolução?

Havia, evidentemente, um ódio contra os conventos. Entre outros motivos,

devido à estreita união entre a aristocracia e a Igreja católica, que constituía ao

mesmo tempo uma instituição religiosa e política. E os conventos eram

considerados, em geral, redutos da nobreza. Por isso foram perseguidos e

sofreram as medidas revolucionárias: proibição de emissão dos votos religiosos -

64

28 de outubro de 1789, anulação dos votos religiosos - 13 de fevereiro de 1790,

supressão da vida monástica: confisco dos bens e expulsão das religiosas de seus

conventos - 18 de agosto de 1792.

Por que as carmelitas foram guilhotinadas? As religiosas teriam

representado o papel de uma espécie de "bode expiatório"? De acordo com a

teoria de R. Girard, a escolha recai sempre sobre uma vítima um pouco marginal

em relação ao grupo social: mulheres, estrangeiros, loucos, crianças. A vítima

devia ser indefesa e não provocar vingança.

As carmelitas de Compiègne representaram, em um determinado momento

da Revolução, a vítima ideal. Mulheres que haviam renunciado ao mundo,

exilando-se em um convento e na maioria pertencendo à nobreza, representavam

um bom alvo à ira do povo que nelas via a síntese da opressão: religião e

nobreza. Fácil foi a Fouquier-Tinville, acusador público do tribunal

revolucionário e que também morreu guilhotinado, acusá-las de atividades

contra-revolucionárias e enviá-las ao cadafalso.

3.2. A Ordem do Carmelo

Non, ma fille, nous ne sommes pas une entreprise de mortification ou des conservatoires de vertus, nous sommes des maisons de prière. Bernanos - Dialogues

A palavra Carmelo serve para designar, ao mesmo tempo, a Ordem do

Carmelo (Irmãos da Bem-aventurada Virgem Maria, designação oficial) e os

conventos desta mesma Ordem.

65

Sua origem, pouco conhecida, remonta à 3ª cruzada (1189- 1192). Com

Jerusalém libertada, os cruzados descobriram os eremitas que viviam nas

encostas áridas do Monte Carmelo (Palestina), levando uma vida solitária, de

oração silenciosa e pessoal. No século XIII, por volta de 1220, Santo Alberto,

patriarca de Jerusalém, promulgou a Regra da Ordem que ainda hoje é

observada. Em torno de 1235, os carmelitas foram expulsos pelos Sarracenos e

espalharam-se pela Europa. Em 1254, São Luis, rei da França, trouxe de sua

Cruzada seis carmelitas que se estabeleceram em Paris.

Os carmelitas sofreram uma reforma no século XV, quando foi criado o

ramo feminino da Ordem, e outra no século XVI, mais profunda, orientando o

Carmelo para uma vida mais austera e mais contemplativa. Santa Teresa d’Avila

e São João da Cruz foram os grandes reformadores da Ordem. No século XVII,

em 1604, foi fundado em Paris o primeiro Carmelo Reformado.

O Carmelo desenvolveu-se extraordinariamente na França. Diferentes

classes sociais aí se encontravam, mas sempre constituiu o reduto de uma

aristocracia social e religiosa, que ali procurava um lugar propício à busca dos

valores eternos.

Esta ligação alienava a simpatia da alta burguesia, da noblesse de robe, para

com o Carmelo. O termo noblesse de robe (nobreza de toga), empregado

genericamente em sociologia, independe do fato de ter havido ou não

enobrecimento de um ou outro indivíduo e aplica-se principalmente aos

magistrados.

66

Cada grupo social possuia sua visão do mundo e essas se revelavam

antagônicas. A expressão "visão do mundo" é empregada segundo a definição de

Goldmann: "o conjunto de aspirações, de sentimentos e de idéias que reune os

membros de um grupo (freqüentemente de uma classe social) e os opõe a outros

grupos" (Goldmann, 1959: 26).

Assim, conta-se que no início do século XVII, Mère Marie-Angélique

Arnauld, a "abadessa-criança", filha de Antoine Arnauld, advogado do

Parlamento de Paris, no início de sua conversão, ao cogitar procurar um convento

mais austero, antes de descobrir que sua verdadeira vocação era reformar Port-

Royal, afastou a possibilidade de escolher o Carmelo. Entre outras razões, julgara

ser este bem-visto demais na Corte e contar com um número excessivo de

religiosas da mais alta nobreza. (Cognet, 1950: 81).

Ainda no século XVII, em 1674, Louise-Françoise de la Baume le Blanc,

duquesa de La Vallière, abandonada por Luis XIV, refugiou-se no Carmelo

parisiense da Encarnação, rue Saint Jacques, sob o nome de Louise de la

Miséricorde. Escreveu Réflexions sur la miséricorde de Dieu e, segundo as

crônicas, viveu uma vida exemplar.

No século XVIII, de maneira menos romanesca, porém igualmente

edificante, Madame Louise de France, filha de Luis XV e de Maria Leczinska,

fez-se carmelita no Carmelo de Saint-Denis. Inúmeros casos seguem o seguinte

esquema: ao ficar viúva, Madame X entrou no Carmelo, onde levou uma vida

edificante.

67

Há muito o que se dizer sobre a importância sócio-econômica, política e

sentimental dos conventos na França e alhures. De modo geral, em um certo

imaginário, os aspectos sócio-econômicos foram minimizados e o sentimental

exacerbado, encontrando no roman noir sua forma privilegiada de expressão. É

importante observar que este gênero literário, caracterizado pela hipérbole, que

explora o sentimentalismo dos leitores, abusando de um vocabulário onde

predominam palavras como mártir, sacrifício, renúncia, pecado, regeneração,

condenação, luz e trevas, conheceu seu apogeu entre 1780 e 1790, na França e na

Inglaterra, e era lido por um grande número de leitores.

O tema da religiosa a contragosto, assim como o da mulher desiludida com

o amor que se refugia num convento, revela-se recorrente na literatura. Bastaria

citar Mélanie ou la religieuse de la Harpe (1770), drama inspirado no suicídio de

uma jovem religiosa ou La victime cloîtrée de Boutet de Monvel (1792, atenção à

data) e o célebre La Religieuse de Diderot (1796) com o qual Bernanos

evidentemente dialoga, sem esquecer On ne badine pas avec l’amour de Alfred

de Musset (1834), sempre representado com sucesso e Port-Royal de

Montherlant (1954).

A figura da religiosa atrairia talvez por dois motivos: trata-se da virgem,

santa, meiga, compassiva, da esposa de Cristo. Desejá-la, seria provocar os céus;

seduzí-la, um sacrilégio. A outra explicação seria a fantasia masculina de

encontrar a mulher-irmã. Baudelaire, ao cantar a mulher amada, chamava-a

freqüentemente "ma soeur" (Baudelaire,1917: 195). Tratar-se-ia da necessidade

que o homem tem de bondade, de ternura e de cumplicidade. A irmã, soror, não

68

é o simples feminino de irmão, frater; aqui existe um componente a mais, de

compaixão e de simpatia (no sentido etimológico de sym + pathia: sofrer junto).

Roland Barthes qualifica esta forma de amor, cuja versão institucional seria o

casamento, como uma utopia “L'amour sororal... une utopie, un lointain très

ancien ou très futur" (Barthes, 1963: 17), utopia recorrente nos que

consideram a ternura uma qualidade exclusivamente feminina.

De modo geral, a religiosa que exerce fascínio é a contemplativa, a

enclausurada. A monja velada significa o interdito e por essa razão atrai as

fantasias masculinas que lhe atribuem beleza, juventude e fragilidade,

personificando a vítima indefesa. Bernanos ironiza esse cliché, vulgarizado por

Diderot, ao mostrar uma religiosa muito idosa, em vez da jovem seqüestrada que

os revolucionários esperavam encontrar, durante a busca ordenada pelo Comité

Revolucionário (DC: 1637).

Entretanto, as religiosas que exercem uma atividade apostólica e que podem

ser olhadas seriam consideradas seres assexuados e designadas indistintamente

como irmãs de caridade. Prevalece a qualificação caridosa, eliminando outras

possíveis adjetivações. E não é por acaso que os franceses englobam todas as

religiosas apostólicas com a designação: Les bonnes soeurs, que corresponde a

Les bonnes femmes, expressões ligeiramente pejorativas.

Os conventos representaram um papel muito importante na França, durante

o Antigo Regime, podendo ser um refúgio para as viúvas, as mulheres muito

pobres ou muito feias, uma espécie de colégio interno onde as jovens aristocratas

69

adquiriam alguns conhecimentos e esperavam o casamento, ou mesmo um lugar

onde se procurava viver um ideal de perfeição, através da renúncia e da oração.

No caso especfíco do Carmelo de Compiègne, há laços que sempre o

ligaram à família real. Ana d’Áustria, Luis XIV, o Duque de Orléans, Madame

de Maintenon, Maria Leczinska, Luis XV e mesmo Maria Antonieta e Luis XVI,

cultivaram grande amizade e admiração pelas filhas de Santa Teresa. Maria

Leczinska talvez tenha sido a que mais próxima esteve do Carmelo.

Profundamente católica, buscava, sempre que podia, refúgio no Carmelo.

As crônicas carmelitanas relatam até que ponto as religiosas eram

observantes da Regra. A rainha Maria Leczinska resolveu, um dia, dormir no

Carmelo, por motivos pessoais. Quando a Priora, que não tinha sido consultada,

tomou conhecimento do fato, forçou, delicadamente, a rainha a voltar para o

palácio, pois a Regra não permitia que mulheres casadas dormissem no convento.

Estas relações entre o Carmelo e a nobreza, com o Antigo Regime, mais do

que evidentes e em nenhum momento renegadas, constituíram um dos motivos

da condenação da comunidade de Compiègne em 1794.

Feitas estas considerações referentes ao intertexto: Revolução Francesa,

cidade de Compiègne, Ordem do Carmelo e o Convento do Carmelo, analisarei o

texto propriamente dito, ao propor uma leitura de Dialogues de Georges

Bernanos.

70

4. O TEXTO

J'ignore pour Qui j'écris, mais je sais pourquoi j'écris. J'écris pour me justifier. - Aux yeux de qui? - Je vous l'ai déjà dit, je brave le ridicule de vous le redire. Aux yeux de l'enfant que je fus. Bernanos

Dialogues des Carmélites, espécie de testamento espiritual de Bernanos,

representa o termo de uma evolução política, literária e espiritual. No dizer de

Monique Gosselin, esta obra sintetiza toda a experiência humana e espiritual de

Bernanos, elucidada e transfigurada pela escritura.

A epígrafe de Dialogues é uma citação de La joie:

En un sens, voyez-vous, la Peur est tout de même la fille de Dieu, rachetée la nuit du Vendredi-Saint. Elle n'est pas belle à voir - non - tantôt raillée, tantôt maudite, renoncée par tous... Et cependant, ne vous y trompez pas: elle est au chevet de chaque agonie, elle intercède pour l'homme (OR: 675).

O medo superado e resgatado, a reversão de valores, temas centrais em La

joie (1929) e em Dialogues (1947-48), textos separados por quase vinte anos,

revelam a unidade da obra bernanosiana.

Qualquer estudo que se faça da peça deve considerar o fato de Bernanos tê-

la escrito sob a forma de diálogos para um filme a ser realizado. O escritor

cronometrava as cenas e privilegiava as imagens. O apelo visual, o olhar do

escritor, caracteriza a obra bernanosiana em geral. Como observa Michael

Kohlhauer, em Traverses, sursauts, appartenances (1998), Bernanos escreve

como alguns filmam: o mais perto possível do olhar.

71

Olhar é uma ação voluntária e significa dirigir o olhar para ver melhor. Ver

significa uma percepção pela visão, que pode ser involuntária.

Bernanos emprega os significantes adequados a cada situação. Assim, em

Les grands cimetières sous la lune, o verbo ver é repetido como uma constante:

“Oui, certes, il m’a été donné de voir des choses curieuses, étranges" (EEC I:

419) confessa o autor, antes de relatar um acontecimento revoltante, do qual se

inteirara quase a contragosto. E comenta os massacres presenciados atestando sua

veracidade, com o argumento: eu vi. "J’ ai vu, j’ ai vu de mes yeux, j’ ai vu moi

qui vous parle, j’ ai vu un petit peuple chrétien [...] s’ endurcir tout à coup, j’ ai

vu s’ endurcir ces visages" (EEC I: 468). Quando deseja enfatizar a atenção, o

propósito, Bernanos emprega o verbo olhar: “Il est dur de regarder s’avilir sous

ses yeux ce qu’on est né pour aimer” (EEC I: 438).

Toda a obra de Bernanos pode ser lida sob o signo do olhar, de Sous le

soleil de Satan a Dialogues des carmélites. No prólogo da peça, o jogo ver - ser

visto será evidenciado na análise que se segue.

72

4.1. Prefigurações

4.1.1. O Prólogo de Dialogues des Carmélites - prefiguração da

tragédia

Ao escrever os diálogos para um filme baseado na novela La dernière à

l’échafaud, Bernanos reescreve tanto a História quanto a ficção.

Os dois planos, histórico e ficcional, interligam-se. É difícil separar, em

uma primeira leitura, a história da ficção. Os Duques de la Force, por exemplo,

realmente existiram e pertenciam à mais antiga nobreza da França. Gertrud von

le Fort identifica-os com o nome patronímico, com o significante la Force, mas

transforma os duques em marqueses. Bernanos mantém inalterada a modificação

feita pela romancista alemã.

Curiosamente, porém, os Duques de la Force eram os senhores de Caumont,

onde o pai de Mère Saint-Augustin seria negociante de gado - "marchand de

boeufs" - uma criação de Bernanos que será analisada posteriormente.

Em toda a peça, nota-se a coexistência de elementos históricos e ficcionais

que Maria Teresa de Freitas, em Literatura e história (1986), chama de

"narrativa híbrida", meio de expressão da visão trágica de Bernanos.

En 1774. Place Louis XV à Paris, le soir des fêtes données pour le mariage du Dauphin, futur Louis XVI, avec l’archiduchesse Marie-Antoinette. Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la foule joyeuse contenue par le service d’ordre. Dans l’un des carrosses, on aperçoit un jeune couple, le Marquis de la Force et sa femme, qui est enceinte. Le Marquis descend de voiture et s’ éloigne vers les tribunes. Bernanos- Dialogues - Prólogo

Paris, 1774. Especificar uma data, personagens e lugares referindo-se a um

acontecimento equivale a inserir-se na História. E esta data não é anódina.

73

Refere-se às festas oferecidas por ocasião do casamento de Maria Antonieta e do

futuro Luís XVI. Trata-se de um fato histórico verificável.

Ao introduzir uma data, Bernanos procuraria dar um estatuto histórico ao

seu texto? Ou seria uma maneira de alertar o leitor / espectador para a

prefiguração da Revolução que esta cena constitui?

O primeiro quadro apresentado é de alegria e de festas. Nas comemorações

do casamento do Delfim, futuro Luís XVI, enfatiza-se a função - príncipe

herdeiro - enquanto sua identidade, colocada como um aposto, indica uma

previsão a ser realizada. O contraste evidencia-se com a apresentação da futura

rainha - a arquiduquesa Maria Antonieta, designada por seu nome próprio. O

leitor, conhecedor dos fatos históricos, pode deduzir um indício de um dos

grandes processos da História: a importância do papel representado por Maria

Antonieta e seu destino trágico, contraposto ao do futuro Luís XVI, cuja função -

ser rei - foi mais importante do que sua personalidade. Embora suas

contradições, teimosia, hesitações e fraquezas tenham apressado o fim da

monarquia na França, Luís XVI é visto, por inúmeros historiadores, como o rei,

vítima dos nobres e, principalmente, daquela que é julgada ora "La pauvre

Marie-Antoinette" ora o castigo infligido por Deus à França.

Mas na festa de seu casamento com o herdeiro do trono francês, Maria

Antonieta, filha da imperatriz Maria-Teresa da Áustria, era festejada com

entusiasmo.

74

No prólogo, o primeiro quadro é de alegria e festa, movimentação

harmoniosa e policiada. "Les carrosses des aristocrates passent au milieu de la

foule joyeuse contenue par le service d'ordre".

As carruagens, fechadas, metonímia de casas, protegem os aristocratas e

permitem que eles possam atravessar "au milieu", no meio, a multidão sem entrar

em contato com o povo. Os nobres passam, não se detêm. Este movimento e a

carruagem agridem a massa popular que alegre e inconsciente libera a alegria

permitida e policiada pelo serviço de segurança.

O Marquês de la Force e sua mulher, que está grávida, estão, como os

outros nobres, dentro de sua carruagem. Eles possuem os valores positivos:

nobreza, juventude, beleza e fecundidade, esperados do casal real cujo casamento

é festejado. Uma ação provocará mudanças nos acontecimentos: "Le Marquis

descend de voiture et s' éloigne vers les tribunes". É noite, o que indica o final

de um ciclo.

O segundo quadro reverte o anterior:

Le feu d’artifice commence, mais soudain des caisses de fusées s’enflamment et les explosions se succèdent. Quoi qu’il n’y ait aucun danger grave, la panique s’empare de la foule. Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés. La jeune Marquise, effrayée, pousse le verrou de la portière. Le cocher fouette les chevaux qui s’emballent et se lancent dans une course folle. Brusque colère de la foule, on arrête les chevaux, une vitre vole en éclats. (DC: 1567)

"Le feu d'artifice commence". Manifestação luminosa, o fogo apresenta-se

qualificado como sendo de "artifício", indica o artifício da festa, sua precariedade

e alude ao brilho e desperdício das festas da nobreza, assim como à

superficialidade, à supremacia do parecer, características de uma classe social em

decadência.

75

Segundo Durand e Bachelard, o fogo, símbolo rico, de significações

complexas e opostas, apresenta duas direções ou duas constelações psíquicas,

dependendo da maneira como é obtido: por percussão ou por atrito. No primeiro

caso, ele está ligado ao relâmpago e à flecha, possui valor de purificação e de

iluminação e opõe-se ao fogo sexual, obtido por fricção.

O fogo, conforme observou Elias Canetti, em Masse et puissance, é o mais

poderoso símbolo da massa, da multidão. Múltiplo e destruidor, o fogo é

insaciável, podendo surgir rápida e inesperadamente de qualquer lugar. O fogo

atua como se fora um ser vivo e como tal deve ser tratado (Canetti, 1966: 78-83).

O prólogo da peça teatral em estudo ilustra a ação do fogo sobre a multidão

e sua identificação constitui a prova irrefutável da estreita ligação que existe

entre a massa e o fogo.

Em um primeiro momento, o fogo participou dos festejos e atuou de modo

lúdico. Mas o percurso previsto interrompe-se. "Soudain des caisses de fusées

s'enflamment et les explosions se succèdent" - Repentinamente (soudain), o fogo

aprisionado nas caixas (caisses) liberta-se e incendeia-se. Há explosões

sucessivas. O fogo imprevisível propaga-se.

"Quoique n' y ait aucun danger grave, la panique s' empare de la foule.

Bousculade, cris de peur, des gens tombent à terre et sont piétinés". O pânico,

injustificado, apodera-se da multidão. No espaço destinado às comemorações de

júbilo, um quadro de terror instala-se: "bousculade", empurrão, o contato físico

negativo, "cris de peur", gritos de medo, "des gens tombent à terre et sont

piétinés". A multidão é pisoteada, pisada pelos cavalos das carruagens.

76

Nestes dois quadros, prefigura-se a tragédia que se desenrolará. Os

elementos essenciais aí se encontram. Situação inicial: alegria, festa e fogos de

artifício mas também latência de possibilidade de excessos indicada pela ação

limitadora de um poder coercitivo. Reversão da situação: à explosão dos

foguetes de artifício corresponde o pânico generalizado: agressões, ameaças,

pisoteamentos.

Ao ser agredida, a multidão reage: "Brusque colère de la foule, on arrête

les chevaux, une vitre vole en éclats" (grifo meu).

A carruagem dos nobres significa uma proteção e seria o equivalente a uma

casa. Quebrar um vidro significa abolir uma separação, violar um espaço

interdito e tornar vulneráveis os seus ocupantes.

O vidro protege e permite que as elites possam olhar e serem olhadas, à

distância, sem qualquer contato. Mas o vidro pode também isolar e enfraquecer.

Há um desequilíbrio entre ver, sentido ativo, e ser visto, sofrer uma ação. Aquele

que é visto torna-se objeto e não sujeito da ação.

Esse tema revela-se recorrente na literatura francesa. Examinarei dois

exemplos paradigmáticos:

Flaubert, em 1857, mostra Emma Bovary dançando no salão de baile do

marquês d’ Andervilliers, no castelo de Vaubyessard e sendo vista pelos

camponeses que se comprimiam diante da janela envidraçada.

Une domestique monta sur une chaise et cassa deux vitres; au bruit des éclats de verre, madame Bovary tourna la tête et aperçut dans le jardin, contre les carreaux, des faces de paysans qui regardaient. Alors le souvenir des Bertaux lui arriva. Elle revit la ferme, la mare bourbeuse, son père en blouse sous les pommiers, et elle se revit elle-même, comme autrefois... (Flaubert, 1972:61) (grifos meus)

77

A presença dos significantes vidros, barulho de vidros quebrados, e a ação

de olhar e ser olhada justificam a aproximação do texto citado com o prólogo de

Dialogues. Um exemplo análogo ao texto de Flaubert é encontrado em Proust.

Em 1918, de maneira mais incisiva, o autor de À la recherche du temps perdu

denuncia a oposição povo/elite ao enfocar os pobres admirando os ricos que

jantavam num grande "aquário", separados pela barreira do vidro:

Une grande question sociale, de savoir si la paroi de verre protégera toujours le festin des bêtes merveilleuses et si les gens obscurs qui regardent avidement dans la nuit ne viendront pas les cueillir dans leur aquarium et les manger. (Proust, 1954: 681)

Proust é mais cruel porque se pergunta se, um dia, os pobres, que observam

avidamente, não quebrarão o aquário para comer os peixes - os ricos - que estão

protegidos pelo vidro. Remete a uma revolução social hipotética ou talvez à

Revolução Russa. Poderia referir-se também à Revolução Francesa, de certa

maneira malograda, visto que a igualdade não foi alcançada, o vidro persiste

como barreira.

As paredes de vidro podem isolar não apenas os indivíduos, mas os grupos

e classes sociais. O vidro seria o sinal sensível dos preconceitos, da intolerância e

da insensibilidade dos homens.

O vidro provoca a indignação e parece mais destrutível; a madeira da porta

fechada de uma casa excita a imaginação. A carruagem atrai, duplamente, a

fantasia e a cólera do multidão, por conter vidro e madeira, por parecer uma

unidade fechada que se crê inviolável.

78

Em Dialogues, após o confronto entre o povo e os soldados, a ordem é

restabelecida. Ressoara, porém, proferida por uma voz de homem, uma ameaça

que repercute também como uma maldição: "Tout va changer bientôt, c'est vous

autres qui serez massacrés, et nous roulerons dans vos carrosses!" (grifo meu).

Importa destacar que a superioridade social é representada por um objeto - a

carruagem, símbolo do poder de uma classe favorecida, na expressão "rouler

carrosse".

O texto indica que a violência premeditada contra a Marquise de la Force

não foi executada. E o prólogo termina. A seguir, uma indicação cênica informa

o nascimento de uma menina e a morte de sua mãe, a Marquesa de la Force. A

referência à Revolução que eclodirá bientôt é feita através do silêncio.

Se uma vidraça, uma porta fechada, uma carruagem, alimentam ódios e

fantasias, um convento de freiras enclausuradas constitui alvo ainda mais fácil

para o rancor, pois pertence ao domínio do interdito, do proibido.

O Carmelo, uma espécie de "bastilha" na imaginação popular, atrairá o

desejo de desvelar mistérios inexistentes, de demolir muros que separam, mais na

imaginação do que na realidade

O prólogo prepara e prefigura a grande reversão social que se anuncia. A

cena do mundo é o momento em que o Antigo Regime desmorona e instala-se

uma nova era, conseqüência da Revolução Francesa.

O Carmelo será invadido pelos revolucionários. Porém, antes de ser

ocupado, materialmente, sofrerá mudanças, intensificadas pela presença de

79

Blanche de la Force, nascida após a sublevação popular tratada no prólogo. Estas

mudanças se fazem sentir, através de conflitos de valores, que se refletem na

eleição de uma superiora burguesa, para um cargo tradicionalmente exercido pela

nobreza.

4.1 2. Mudanças

En d’autres temps, personne n’eut songé à Madame Lidoine, mais il y a maintenant de nos soeurs pour dire que Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la municipalité, parce que son père était marchand de boeufs à Caumont. [...] Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu. Bernanos

Bernanos consagra a primeira cena do terceiro quadro às conjecturas em

torno da eleição da nova Priora, da qual duas religiosas, Blanche de la Force e

Constance de Saint-Denis estão excluídas, por serem apenas noviças.

Poderia, à primeira vista, parecer anacrônico falar em eleições diretas no

século XVIII. Nas Congregações apostólicas, comumente chamadas ativas, as

eleições são indiretas. Os conventos não são autônomos: a superiora local é

nomeada pela superiora geral, eleita pelas delegadas, representantes das

diferentes comunidades religiosas. Quando a Congregação se distribui pelo

mundo inteiro, a superiora geral nomeia superioras provinciais que escolhem as

superioras locais.

Entretanto, desde a origem monástica, estruturada por São Bento, por volta

de 530, as Ordens religiosas elegem diretamente seus superiores, supervisionados

pelo bispo da diocese, em escrutínio secreto. A eleição não pode ser considerada

80

universal, porque as religiosas que ainda não proferiram os votos perpétuos e as

noviças dela são excluídas, como o texto o confirma.

No ano de 1789, morrera a Priora, a aristocrática Madame de Croissy.

Noutros tempos, a nova superiora seria Marie de l’Incarnation, uma nobre de

sangue e de espírito. Entretanto, as religiosas passam a cogitar no nome de uma

burguesa, uma plebéia, considerando as mudanças sociais, as rupturas definitivas

e sobretudo as ameaças que se fazem pressentir.

O contraste entre o outrora e o agora evidencia-se. Contrariamente ao

previsível, o curso de História mudou, os valores políticos e sociais inverteram-se

e Mère Saint-Augustin representa uma possibilidade de entendimento com a

municipalidade, tendo em vista sua origem plebéia.

Todo um passado de preconceitos e de ligações aristocráticas está contido

nesta constatação. Antes da Revolução de 1789, nem mesmo se cogitaria a

hipótese de eleger como Priora, em um Carmelo francês, uma plebéia, filha de

um negociante, de um "marchand de boeufs à Caumont".

A expressão marchand de boeufs - vendedor de gado, revela-se

extremamente rica em sentidos. O boi simboliza a burguesia que trabalha e

contrasta com a nobreza ociosa.

O comerciante está sempre trabalhando: pesa, discute, compra e vende com

lucro. Ele não produz. Está sempre em movimento e constitui um elo entre as

diferentes classes sociais. O fato de ser negociante de gado representa uma dupla

inserção espacial: por ser negociante está ligado à cidade e à estrada, às

81

mudanças rápidas, à ação. Vender gado representa também uma ligação com a

terra, com os valores estáveis, com o tempo, com o ser.

Na Europa, a origem do comerciante, negociante (le marchand), segundo os

estudos de Régine Pernoud, em Histoire de bourgeoisie en France (1962), está

situada entre o século X e XI e coincide com o renascimento do comércio. A

aparição do negociante é o índice da retomada de atividade em todos os domínios

e acompanha-se, se é que não o precede, de um recomeço da circulação. Em

todos os caminhos, principalmente os freqüentados pelos peregrinos, encontrar-

se-á o vendedor.

Aqueles que se recusam a lavrar a terra podem, de agora em diante,

procurar alhures a subsistência, mudar de condição social e encontrar em suas

andanças a fortuna que não teriam podido constituir nos domínios paternos.

Freqüentemente, o fluxo dos peregrinos os atrai. Espertos, os vendedores

compreenderam que a multidão de fiéis reunidos para as cerimônias religiosas

representava também uma clientela certa.

E estes negociantes também vão construir, porque necessitam de

entrepostos para a mercadoria e precisam, durante o inverno rigoroso, morar em

algum lugar. A origem de muitas cidades francesas, como Lille, está ligada à

atividade comercial. E em um mundo dominado, até então, por nobres ou

camponeses, a cidade será o feudo deste homem novo que se chamará: o burguês.

A cidade nasceu da estrada (Pernoud, R. 1962:120).

82

Em Dialogues, a expressão "marchand de boeufs" é pura criação de

Bernanos e, localizá-lo em Caumont, seria, talvez, uma referência implícita a

Pas-de Calais e aos burgueses imortalizados em uma escultura por Rodin.

Gertrud von le Fort, em La Dernière à l’ échafaud, não faz alusão à classe

social de Madame Lidoine, suas origens, sua família. E o documento histórico

também não justifica a criação de Bernanos, extremamente importante.

O padre Bruno de Jésus-Marie afirma, em Le sang du Carmel, que Madame

Lidoine era filha de um modesto funcionário do Observatório, que lhe

proporcionou uma boa educação, mas não podia dar-lhe o dote exigido pelo

convento, o que foi feito por Maria Antonieta, a pedido de Madame Louise de

France, filha de Luis XV.

O problema do dote merece algumas explicações. O dote era um costume

aceito e em nenhum momento questionado pela sociedade da época. Tratava-se

de uma soma em dinheiro ou em bens que a mulher levava para seu novo lar.

Dificilmente ela conseguiria casar-se sem dote. Seria tão fora dos costumes que

Molière apresenta esta possibilidade como um fato cômico. Quem não se lembra

do célebre "sans dot" de Harpagon, considerado um argumento irresistível?

Havia raras exceções, quando alguém se apaixonava por uma beldade pobre...

Mas a Doxa atesta a inconveniência de tal proceder: “Quand on ne prend en dot

que la seule beauté, le remords est bien près de la solennité”.

A História e a Literatura registram o problema enfrentado pelos pais ou

tutores para concederem um dote conveniente a suas filhas ou tuteladas. Quanto

maior o dote, mais vantajoso seria o casamento. Muitas vezes os pais

83

praticamente se arruinavam para casar bem suas filhas. E havia o caso de jovens

que eram obrigadas a entrar no convento, onde o dote exigido era

consideravelmente menor, mas existente. Hoje, esse costume foi abolido,

subsistindo apenas uma contribuição voluntária ocasional.

O costume obrigatório de levar um dote para o casamento perdurou depois

da Revolução Francesa, no século XIX, como ilustra Balzac em Le père Goriot

(1834) e mesmo no século XX, se bem que de maneira mais sofisticada e menos

explícita, embora Sartre refira-se explicitamente ao dote trazido por Odette em

L’Âge de raison.

Estas considerações explicam a importância do donativo feito por Maria

Antonieta à futura Mère Marie de Saint Augustin. Ter um dote facilitou sua

entrada no Carmelo. Caso contrário, ela teria sido talvez admitida como simples

irmã coadjutora (encarregada dos serviços domésticos), o que a

impossibilitaria de ser eleita Priora, mesmo em situações não previstas e

perturbadoras, como a França em revolução.

“Et Madame Lidoine est d’ avis qu’ on devrait faire la part du feu”.

“Faire la part du feu” significa renunciar ao que não se pode salvar para

preservar o que pode ser salvo. No conflito com o poder temporal, há que se

fazer maleável, saber fazer concessões no que é acidental.

O fogo, observa Elias Canetti, representa a massa humana, a multidão e, por

constituir o seu mais poderoso símbolo, teria direito, de fato, à sua parte. Para

salvar o essencial, mister se faz abrir mão do que não pode ser salvo. Mère Saint-

Augustin está disposta a fazer concessões, a dar a Cesar o que é de Cesar, com

84

uma única condição: que seja concedido, às religiosas, viver a vocação

carmelitana com dignidade, liberdade e honra. E exprime-se sem ambigüidade:

“Comptez donc bien que rien ne me coûtera pour obtenir qu’on nous laisse vivre

ici, selon notre vocation, dût le reste du monde s’ embraser” (DC: 1627).

Na rede textual, o signifiante feu faz ressoar o prólogo com suas seqüências:

o fogo de artifício da festa da realeza que se inflama e explode.

É preciso notar também que ao cogitar, para o cargo de Priora, no nome de

Mère Saint-Augustin, caracterizada, diretamente, como aquela que faz "la part

du feu", as religiosas também estão optando por uma atitude conciliadora. O

texto é explícito: "Mère Saint-Augustin serait mieux vue des gens de la

municipalité". O Carmelo representava uma espécie de Bastilha sitiada e não foi

preservado pela Revolução em curso. Destruí-lo, seria concretizar as mudanças:

“Oui, cette maison est une bastille, et nous détruirons ce repaire” (DC: 1642),

dizem os revolucionários.

As transformações da linguagem precederam as mudanças sociais e

políticas ou as provocaram. A violência da linguagem revolucionária revela-se no

emprego do significante repaire, antro, covil de animais ferozes e repugnantes e

traduz a representação que o povo fazia dos conventos: antros de despotismo, de

superstição e de mentira (DC: 1642). Ao anúncio da destruição sucedem-se as

seguintes etapas: ocupação do espaço físico através dos sons revolucionários, de

atos de vandalismo e finalmente a dessacralização de um lugar considerado

inviolável.

85

4.1.3. A profanação

On entend chanter la Carmagnole sous les murs du couvent; et les commissaires, suivis de la foule qui continue à chanter, font irruption dans l’enceinte. Ils enfoncent la porte de clôture. Précédés d’une Soeur sonnant la clochette, ils envahissent la sacristie. Bernanos

A Revolução invade, primeiramente, o Carmelo, através de uma sonoridade

profana: ruídos, desfiles, vozes e barulhos amedrontadores e pelas estrofes

provocantes das canções revolucionárias, La Carmagnole e Ça ira, escutadas a

contragosto.

O ritmo alegre, em contrate com as palavras ameaçadoras, ambos

contribuíam para tornar mais brutal a oposição entre a paisagem sonora

revolucionária e a existente no Carmelo.

A noção de paisagem sonora, empregada por Murray Schafer em O ouvido

pensante (1970), subverte o universo sonoro, englobando em um novo olhar os

ruídos, as canções, os silêncios aparentes, os gritos, os sons da natureza. Escolhi

esta abordagem por julgá-la mais adequada ao presente estudo.

A paisagem sonora violadora agita, provoca medo e mesmo pânico e

contrasta com a do convento. Há que se fazer distinção entre o silêncio-ausência,

que só existe teoricamente, e o silêncio-paz, a “música callada, la soledad

sonora” de que fala São João da Cruz, densa e plena, introspectiva e que se

executa em um outro registro.

A paisagem sonora do Carmelo compõe-se não só de silêncio- paz, mas

também de orações em voz alta, diálogos e conversas informais em alegres

86

recreios. Mas, tudo transcorre de modo previsto, obedecendo a uma rotina,

regulada pelo som dos sinos. O grande sino chama para a oração, marca o início

do grande silêncio e ordena o despertar. Um sininho - “clochette” - pode indicar

o início e o fim de atividades rotineiras como levantar-se, sentar-se, ajoelhar-se,

entre outras. Pode também servir de aviso discreto de que algo de inusitado está

acontecendo. Os sinos desempenham papel importante em todas as religiões e

têm como função primordial convocar para o momento presente, para o agora.

Esta paisagem sonora contrapõe-se aos cantos revolucionários que incitam à

violência. Em várias indicações cênicas de Dialogues, as duas canções La

Carmagnole e Ça ira são citadas, sempre provocando angústia e medo.

La Carmagnole foi um dos cantos mais difundidos da Revolução. A origem

da melodia é controvertida, porém todos concordam que a letra foi composta

logo após a prisão de Luís XVI e de sua família no Templo. A canção evoca com

precisão os acontecimentos de 1792. Dançado e cantado nas mais variadas

ocasiões, tornou-se um dos acompanhamentos habituais das execuções pela

guilhotina.

Trata-se de uma canção de treze estrofes e um refrão. Há algumas variações

e paródias. Cito, apenas, duas estrofes e o refrão, julgando-os suficientes para o

estudo que desenvolvo.

87

Madame Veto avait promis (bis) De faire égorger tout Paris. (bis) Mais le coup a manqué Grâce à nos canonniers

Dansons la Carmagnole, Vive le son,vive le son, Refrain Dansons la Carmagnole, Vive le son du canon!

Monsieur Veto avait promis D’être fidèle à son pays. Mais il y a manqué Ne faisons plus d’quartier.

Sabe-se que Luis XVI, apelidado de "Monsieur Veto", usando o direito de

vetar de que ainda dispunha, proibiu o decreto contra os padres refratários e

opôs-se à permanência do acampamento dos federados em Paris. Apesar da

manifestação do povo que invadiu as Tulherias, Luis XVI manteve a interdição.

Maria-Antonieta, considerada a inspiradora das proibições, era cognominada de

"Madame Veto". O canto arrebatador e violento denuncia a traição do rei e faz o

elogio da força, exaltando o som dos canhões.

A canção Ça ira também foi uma das mais populares do período

revolucionário. Composta por volta de 1786 intitulava-se Le Carillon National.

Maria-Antonieta tocava esta música, sem imaginar que seus últimos momentos

seriam ritmados por esta canção tornada ameaçadora. A letra original foi

substituída, em 1790, por uma estrofe que refletia o otimismo revolucionário

(“...le bon temps reviendra... tout trouble s’ apaisera”) para finalmente

transformar-se no célebre refrão:

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Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates à la lanterne Ah! Ça ira, ça ira, ça ira! Les aristocrates on les pendra.

Si on n’les pend pas On les rompra. Si on n’les rompt pas On les brûl’ra. Ah! Ça ira, ça ira, ça ira...

Nesta canção: os significantes pendre - enforcar, rompre -despedaçar e

brûler - queimar, exprimem o ódio aos aristocratas, aos quais se desejava a

tortura, a degradação e a ignomínia. No Antigo Regime, enforcavam-se os

plebeus, porém os nobres eram fuzilados. A guilhotina democratizaria as

execuções, não mais fazendo diferença entre nobres e plebeus. Mas o que o povo

cantava, na sua revanche, era o desejo de infligir uma morte infamante aos

antigos senhores.

A multidão invisível, mas não menos ameaçadora, se faz presente através

dos sons que invadem a clausura e violam o espaço sagrado, antes que a

profanação se concretize. A pilhagem da sacristia é ritmada pelas violentas

estrofes de La Carmagnole.

A este canto as religiosas opõem o som de um sininho. As canções

perturbadoras, os barulhos da multidão, sempre inesperados, provocam, em um

primeiro momento, grande agitação nas religiosas: “Le premier mouvement des

religieuses est de courir ça et là dans le petit jardin” (DC:1678). Trata-se de uma

reação natural de medo, diante de uma ameaça que não se vê, mas se escuta.

89

Mas, logo em seguida há uma mudança de registro. As religiosas se acalmam e

rezam diante da estátua da Virgem. O medo foi superado pela ação da graça.

A Revolução penetrou no Carmelo, não somente através das canções e dos

barulhos e ruídos. Os problemas sociais aí se fazem sentir. A própria negação: “Il

n’ y a point chez nous de bourgeoises ou d’ aristocrates” (DC: 1621) revela um

vocabulário contaminado pela nova ideologia.

A nobreza começou a ser chamada de aristocracia por volta de 1789, em

uma acepção pejorativa, reveladora de um conflito social inevitável. Embora o

significante aristocrata, proveniente do grego aristos, signifique o melhor, era

empregado, nos panfletos difundidos depois da queda da Bastilha, para designar

os insensatos nobres que pretendem possuir bens, privilégios, altos postos,

honrarias e dignidades sem o mínimo de trabalho (Martin, 1990: 64).

Se a religiosa repreendida afirma ter querido dizer simplesmente que todas

eram irmãs, o que foi dito, já não pode ser anulado. E a Priora constata com

sabedoria e uma certa ironia: “Voilà dix minutes que nous vous laissons un peu la

bride sur le col et vous en êtes déjà, Dieu me pardonne, à tenir séance entre

vous, comme ces Messieurs du Parlement” (DC: 1626).

O emprego da expressão "laisser la bride sur le col" deve ser entendida no

contexto da obediência cega exigida pela Ordem do Carmelo. Ela significa

permitir a alguém toda liberdade possível, entregá-lo a si mesmo, como quando

não se usa o freio para um animal de montaria. Há uma alusão implícita a "cavalo

domado". O homem necessitaria de freios para controlar seus instintos e a

obediência religiosa exerceria tal função. A observação feita pela Priora revela

90

pessimismo em relação à natureza humana: livres, durante dez minutos, as

religiosas discutem e agem como se estivessem no Parlamento. A referência ao

Parlamento, lugar onde todos os representantes do povo podem exprimir,

livremente, sua opinião, possui conotação negativa e precisa ser entendida no

contexto histórico da época. Em 17 de junho de 1789, instalou-se a Assembléia

Nacional e a França passou a ser regida por um regime parlamentar. Na opinião

das religiosas, católicas e monarquistas, a instituição parlamentar soa como

sinônimo de desordem, desrespeito à hierarquia, demagogia.

O Carmelo, onde vivem as religiosas, exiladas do mundo por vontade

própria, não constitui uma ilha isolada, inatingível. “Dirait-on pas que l’ esprit

du siècle pénètre partout, jusqu’à travers les murailles du Carmel” (DC: 1621)

constata a Priora ao ouvir as discussões das religiosas. E por "siècle"

compreende-se, na linguagem religiosa, a vida do mundo, cujos valores são

mutáveis, em oposição à vida espiritual, de valores imutáveis e atemporais.

Nesse espaço, diferentes discursos existentes na época circulam, entrelaçam-se e

confrontam-se de modo violento e dissimulado, na linguagem e através da

linguagem.

Estes discursos representam diferentes valores que se opõem: o discurso

da nobreza e o discurso que chamaria de burguês. Os valores aristocráticos

concentram-se nas intransigências de um código de honra e os valores burgueses

caracterizam-se pelo equilíbrio, pela maleabilidade, mas principalmente, por

constituírem uma outra maneira de julgar, uma outra visão do mundo.

91

4.2. Valores

4.2.1. O código aristocrático

[...] mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps renoncé à l’estime du monde. Bernanos

Bernanos, ao escrever Dialogues, lembra conceitos de honra e de coragem

emblemáticos do século XVII, na França. Este ideal, individualista, nobre, com

laivos de paganismo e resquícios do compromisso feudal, é uma herança intacta

recebida do século XVI.

Honra é uma exigência pessoal, mas se manifesta na opinião do outro, na

reputação desfrutada. Em si, não só constitui uma virtude, como também um

conjunto de qualidades, variáveis no tempo e no espaço social. O rei podia

distribuir honrarias - des honneurs - mas não podia conceder nem retirar a honra

- l’honneur.

O conceito de honra está ligado, originalmente, à nobreza e ao exercício do

poder. Somente os nobres mereceriam confiança em seus compromissos; era-lhes

outorgado o porte de armas e a honra era um de seus insolentes privilégios.

Em que consiste a honra do fidalgo, este sentimento de dignidade própria

que leva o indivíduo a procurar merecer e manter a consideração geral de seus

pares?

Os nobres obedeciam a um código de regras fixas, a certos costumes

imutáveis e julgavam que o fato de ser nobre assegurava possuir todas as

92

qualidades inerentes a sua classe social: coragem, altivez, generosidade,

fidelidade, etc. Acreditavam tudo saber sem nada ter aprendido, e a força do

sangue da raça - Genos - garantia-lhes sucesso e perfeição em todos os

empreendimentos. Como observa Maria do Carmo Pandolfo, “A linhagem reúne,

verticalmente, no tempo, os membros de uma mesma família, ligada pelo sangue

e unificada como um só ser na noção de Genos” (Pandolfo,1977: 88).

E a noção de família amplia-se, pelos laços de parentesco, fazendo com que

a nobreza se considere um grande clã. Fato reconhecido pela velha Priora: “Sur

une personne telle que Blanche de la Force, et qui est un peu notre parente”

(DC: 1599), aludindo aos laços de sangue que entrelaçam os nobres.

Nesta acepção, a honra parece ser uma qualidade especificamente

masculina dependente de outros valores tais como força, lealdade e coragem.

O grande teatro clássico francês constitui um hino ao herói que possuiria

todos os atributos específicos da fidalguia: grandeza de alma, energia, audácia,

força de vontade, intrepidez. Todas estas qualidades estariam encarnadas em

Rodrigue, personagem principal de Le Cid de Pierre Corneille (1637), o herói

completo que consegue realizar em vida a conciliação do desejo e da honra

(Pandolfo: 1977: 101-102), quando Rodrigue, orgulhosamente, exclama:

Je suis jeune,il est vrai; mais aux âmes bien nées La valeur n’attend pas le nombre des années (Le Cid: v. 405-6)

não exprimia senão a consciência de pertencer a uma classe superior. Os nobres

julgavam possuir um sangue mais puro e formar uma espécie de casta. Exigiam

93

seus privilégios com altivez e intransigência e proclamavam superioridade e

virtude.

A origem etimológica prevalece ao tratar-se da virtude do herói, aquele que

é forte e que se esforça por superar os próprios limites.

O termo virtude, proveniente do latim virtus, significa força viril, oriunda

de vir, homem. No antigo francês, designava bravura, força física, poder. A

Chanson de Roland (1080) qualifica o herói de vertueux, no sentido de valente,

corajoso.

A nobreza, arrogante e intransigente quanto aos seus direitos, deveria,

entretanto, ser dotada de uma qualidade essencial - a coragem - da qual

decorreriam a honra e todos os privilégios e prerrogativas que lhe eram

outorgados. Ter sua coragem proclamada constituía a mais alta qualificação a ser

obtida.

A honra, segundo o código da nobreza, é mais importante do que a vida.

Uma vida desonrada não teria nenhum sentido. Esse conceito de honra sintetiza-

se na interrogação de Rodrigue: "Qui m’ose ôter l’honneur craint de m’ôter la

vie?" (v.438).

No que se refere às mulheres, o sentido da palavra honra difere do conceito

de honra atribuído aos homens. A honra feminina estava ligada à fidelidade e

importava não somente à mulher, mas também aos homens de sua família - pai,

irmão, marido - que dela seriam os guardiães.

94

A honra acha-se ligada ao sentimento de orgulho, manifestado sob a forma

de altivez e, freqüentemente, de arrogância. Importa ressaltar que a altivez não

era considerada pelos nobres um defeito, e sim uma qualidade imprescindível.

E o que seria o orgulho? Esta tendência humana é quase sempre

apresentada de maneira negativa, embora não sejam claras as razões dos critérios

depreciativos que lhe são atribuídos. O orgulho constitui um dos sete pecados

capitais e merece uma reflexão e uma breve revisão.

Os sete pecados capitais: orgulho, ira, gula, preguiça, luxúria, inveja e

avareza constituem tendências fundamentais do homem e passaram a ser

considerados pecados capitais somente a partir do século XIII. Essas tendências

fundamentais, quando são exageradas, tornam-se pecados para a Igreja. Elas

originam-se numa desordem patológica individual, ou resultam de condições de

ordem sociológica e caracterizam-se pela desmedida, afirmou Norma Tasca, em

conferência sobre o orgulho, proferida no Congresso de Semiótica, realizado em

1995 em Urbino (Itália).

O orgulho seria uma estima exagerada de si mesmo, logo, é uma

desmedida, e estaria ligado a uma hybris insultante. Ele transgride o limite

concedido a uma auto-estima legítima e a sociedade moraliza este excesso,

condenando-o.

A tradição judaico-cristã está baseada na humildade e na submissão a Deus.

E a transgressão, fruto do orgulho, normalmente associada à desobediência de

Eva e à revolta de Lúcifer contra Deus, pode ser também encarada, sob o aspecto

de ignorar o outro e não respeitar os seus direitos. O orgulhoso não conhece

95

limites, porque não sabe quem é o outro e quem é ele próprio. Volta-se para si

mesmo, numa atitude ilegítima e narcisista, que acarreta conflitos na ordem

social existente.

O orgulho apresenta-se de variadas maneiras: vaidade, altivez, vanglória,

presunção e outros parassinônimos. De certo modo, estas diferentes

manifestações do orgulho são menos sutis e mais superficiais do que a falsa

humildade, espécie de orgulho que muitas vezes se esconde atrás de uma

aparente modéstia.

Em Dialogues, os valores aristocráticos, como o ideal de uma casta

ameaçada, podem ser sintetizados em um código de honra e exprimem-se através

de diferentes personagens: Blanche de la Force, o Marquês de la Force, o

Chevalier de la Force, a antiga Priora, Madame de Croissy, Constance de Saint-

Denis, mas, sobretudo, por Mère Marie de l’Incarnation, a sub-Priora do

Carmelo.

Cada personagem profere seu discurso pessoal, entretanto, todos

apresentam um ponto em comum: constituem a expressão de uma ideologia

aristocrática, de uma casta social que se crê superior, que acredita em suas

prerrogativas e não se esquiva dos deveres e das responsabilidades decorrentes de

uma situação privilegiada.

Emprego o termo discurso não só na acepção de texto ou de manifestação

verbal, mas também no sentido de “conjunto coerente de conhecimentos

partilhados, construído, a maior parte do tempo, de maneira inconsciente pelos

indivíduos de um grupo social.” (Charaudeau, 1982: 40 ).

96

Esses fragmentos de discursos sociais, exprimindo valores, presentes no

texto de Bernanos, pressupõem uma interdiscursividade e se apóiam nos saberes

compartilhados socialmente pelas personagens.

Há os que se identificam com o discurso de sua casta e, verbalmente, o

assumem. O que importa ressaltar é que as personagens têm seus traços

discursivos identificadores acentuados pelo meio a que pertencem.

O código de honra da nobreza, em que predominam o orgulho da raça e a

altivez, as diversas manifestações dos valores aristocráticos revelam-se nos

discursos das personagens deste grupo social, e, principalmente, em Marie de

l’Incarnation, protótipo desse imaginário.

Enfocarei, primeiramente, um grupo familiar: Blanche, o velho Marquês, o

Chevalier de la Force e, em seguida, o Carmelo, espaço influenciado pela

nobreza.

Blanche, filha do Marquês de la Force, consciente de sua linhagem, decidiu

tudo sacrificar para recuperar a honra de que se acredita privada. Um dos

argumentos, a seu ver muito importante, é obrigar-se a conviver com religiosas

que lhe seriam inferiores pelo nascimento e pela educação. Avalia, inclusive, a

eventual hipótese de dever obediência a uma superiora de nível social muito

diferente do seu. Dispõe-se a “vivre parmi des compagnes et sous l’autorité de

supérieurs d’une naissance et d’une éducation souvent bien inférieures” (DC:

1578). Acredita agir de boa fé ao pretender negociar com Deus, mas seu pai

denuncia o orgulho inconsciente dessa atitude:

97

Ma fille, il y a dans votre résolution plus d’orgueil que vous ne pensez. Je ne passe certes pour dévot, mais j’ai toujours cru que les gens de notre état devaient en agir honnêtement avec Dieu.On ne quitte pas le monde par dépit... (DC: 1578).

Observe-se que, ao condenar o orgulho de um despojamento aparente, o

Marquês denuncia, implicitamente, o mérito da troca burguesa e incorre em um

orgulho de classe, restringindo à nobreza o privilégio de uma relação honesta

com Deus. Como se apenas os nobres merecessem confiança, o que seria um

outro nome da honra.

A consciência dessa superioridade traduz-se, aqui, não pela arrogância, mas

pela condescendência, atitude aparentemente positiva, que, no entanto, nega a

existência do outro. Assim, o velho Marquês por não vislumbrar um pretendente

melhor, aceitaria como genro, um nobre que outrora não seria considerado um

grande partido, visto que sua nobreza era recente, pois datava apenas de três

séculos (DC: 1572). E também, por alguns instantes, sua memória o faz reviver a

noite trágica da explosão dos fogos de artifício, mas logo se controla e tenta

convencer-se de que a Revolução não começou e que “Le peuple de Paris est

bon diable et tout finit par des chansons” (DC: 1574).

O Chevalier de la Force, irmão de Blanche, é o protótipo do nobre soldado

a serviço do rei, em uma relação que remontaria ao feudalismo. Lúcido e protetor

em relação a Blanche, não teme a morte e procura somente cumprir o dever. Sem

pretensões intelectuais, ele admite que, às vezes, é rude e que fala como um

soldado (DC:1630).

98

Os valores e o código de honra da nobreza também são válidos no Carmelo,

espaço de uma "transposição espiritual e eclesial do mundo aristocrático"

(Balthazar, 1956: 446) e microcosmo da sociedade francesa da época.

O Carmelo pretende conciliar a busca da perfeição evangélica e os valores

sociais e morais de um passado que desmorona.

A nobre Madame de Croissy reconhece que, mesmo em um claustro, a

mentalidade reinante não poderia deixar de ser influenciada por “certaines

habitudes de penser selon le siècle, que la vie religieuse a bien pu discipliner,

mais non pas tout à fait réduire” (DC: 1599).

Experiente e sábia, ela admite que as religiosas trazem para o convento

toda a sua cultura, compreendendo, entre outros, a mentalidade e os preconceitos

da classe social a que pertencem. A vida religiosa pode atenuar tais exageros,

mas não destruí-los completamente.

Às vésperas da morte, a velha Priora alude ao próprio conhecimento do

coração humano: “Oh! Je sais ce que je dis” (DC: 1599). Por essa razão, ela

já advertira Blanche, de que não lhe seria exigido esquecer sua grande nobreza e

que também era necessário vencer e não forçar a natureza. E forçar a natureza

seria querer o impossível, pretender que as religiosas, ao entrar para o convento,

fizessem tabula rasa dos valores inerentes a seu meio social.

No Carmelo, onde todas as classes sociais estavam representadas, com o

predomínio da nobreza., refletiam-se, como em uma espécie de prisma, as

ideologias circulantes na França em revolução.

99

A velha e aristocrática Madame de Croissy assume o discurso de sua casta,

com o qual se identifica. Da mesma forma, a jovem Constance de Saint-Denis,

revela uma perfeita adequação ao código de honra e aos valores morais da

nobreza. A alegria, a irreverência de suas réplicas e afirmações não escondem a

realidade: Constance ignora as transformações que ocorrem a sua volta e tudo

enxerga sob o ângulo desses valores.

Desse modo, ao evocar os camponeses de sua região, refere-se a eles como

“nos bons villageois de Tilly” e afirma: "Ces pauvres gens m’aimaient tous à la

folie, parce que j’étais gaie..." (DC:1592) o que faz ressoar La nouvelle Heloïse

de Rousseau. O orgulho às vezes ingênuo de Constance, leva-a a indagar sobre o

paradeiro dos franceses, dos bons franceses que deveriam proteger e defender os

padres perseguidos (DC: 102-103). Os preconceitos sociais, o orgulho atávico e a

conhecida ignorância da nobreza revelam-se na interrogação: “Hé! Qu’avons-

nous besoin des Grecs et des Romains? Est-ce que nos Français ont des leçons à

recevoir de personne?” (DC:1624).

A personagem nobre, luminosa e quase perfeita de Constance de Saint-

Denis, historicamente filha de um agricultor, revela inconseqüência e presunção,

ao afirmar que São Pedro renegara o Cristo porque não era nem francês nem

nobre (DC:1625).

A indicação cênica (régie) assinala que todas as religiosas riem após ouvir

essa declaração. Constance tenta, com habilidade, remediar o que dissera,

invocando um mal-entendido. Mas suas palavras reiteraram os valores da

nobreza que, em breve, revelar- se iam anacrônicos.

100

Demarcar, entretanto, as classes sociais, atribuindo-lhes um discurso

correspondente é não levar em conta a complexidade do real. Cada um fala

também a linguagem de sua família espiritual e não apenas a de sua casta social.

Como observou Proust, "... on s’ exprime toujours comme les gens de sa classe

mentale et non de sa caste d’ origine” ( Proust,19, 900).

A concepção moral é determinada não só pelo Genos, mas também pelas

afinidades intelectuais e morais que levam o homem a escolher seus antepassados

intelectuais, espirituais e morais. E esta escolha nunca é aleatória.

Esta observação torna-se imprescindível em se tratando de Mère Marie de l’

Incarnation que, com sua força de caráter, serve de contraponto à fraqueza de

Blanche de la Force e, em seu desejo exaltado de martírio, opõe-se ao equilíbrio

da nova Priora, Madame Lidoine, em religião, Mère Marie de Saint-Augustin.

É importante aclarar que não é meu objetivo tentar, sistematicamente,

assinalar a "verdade histórica" e a ficção, só o fazendo quando imprescindível,

como a análise da personagem Marie de l’Incarnation, que impõe uma pergunta

preliminar: em que medida se trata de uma personagem histórica ou fictícia?

Françoise-Geneviève Philippe, Madame Philippe, em religião, Soeur

Joséphine-Marie de l’Incarnation (1761-1836), filha natural de Louis-François de

Bourbon, Príncipe de Conti, relatou, transcorridos mais de quarenta anos, o

martírio das dezesseis religiosas do Carmelo de Compiègne, ao qual pertencera.

A redação do manuscrito ocorreu em um outro contexto político: a

Revolução de 1830 colocara no trono Louis-Philippe d’Orléans, filho de

Philippe-Égalité, guilhotinado pelo Terror e de quem Madame Philippe era prima

irmã.

101

O fato não poderia deixar de impressionar o futuro Cardeal Villecourt, que

prefaciou e publicou o manuscrito, deixando-se levar pela imaginação e pelos

devidos respeito e deferência por uma sobrevivente do martírio, idosa e bem

nascida. O prefácio forneceu subsídios para a construção de uma personagem

literária, ao conceder-lhe qualidades admiráveis, não comprovadas

historicamente.

Há um certo comedimento ao falar de Madame Philippe-Soeur Marie de

l’Incarnation. William Bush fala de sua "destinée mystérieuse e si intrigante

personnalité" (Bush, 1991: 10). E o Padre Bruno de Jésus-Marie refere, além da

documentação histórica, estudos grafológicos, que não revelam nenhuma

tendência para a grandeza trágica que lhe é atribuída por Gertrud von le Fort e

reiterada por Bernanos e Poulenc.

Gertrud von le Fort modifica a personagem e faz-lhe o panegírico em seu

texto. Marie de l’Incarnation é sempre apresentada com grandes elogios -

"grande dama de sangue real, grande carmelita, mulher admirável",

impressionante, notável, milagrosa, grande e digna religiosa, heróica e muitos

outros encômios (le Fort, 1938).

Francis Poulenc, em sua ópera, fá-la partilhar uma grandeur terrifiante com

Madame de Croissy e a nova Priora, no constante oscilar entre luzes e escuridão,

cumes e abismos (Coutance, 1994).

Terrível, parece ser a melhor caracterização da personagem, fazendo ressoar

o Cântico dos Cânticos: “Quem é esta, que avança como a aurora quando se

levanta [...] terrível como um exercito formado em batalha?" (Cântico: 6,9 ).

102

Assim, uma personagem histórica tornou-se inteiramente fictícia,

caracterizada pela grandeza trágica.

Importa enfatizar que Marie de l’Incarnation, como referido, era filha

natural do Príncipe de Conti. Gertrud von le Fort menciona o fato, omitido por

Bernanos, embora este faça referências às relações de família e de amizades que

a ligavam à nobreza.

Os filhos naturais não eram estigmatizados na corte francesa. Louis XIV

reconheceu e dignificou os seus bastardos. Cito, entre outros exemplos, a

legitimação dos dois filhos de Louise, Duquesa de la Vallière, assim como a de

todos os filhos de Madame de Montespan, outra favorita.

Mas o fato de ser filha ilegítima modificaria, a meu ver, seu posicionamento

em relação ao código de honra da nobreza. Seu lugar na sociedade não é algo que

lhe é devido - seu quinhão e seus direitos - mas o resultado de uma certa

condescendência e tolerância social.

As pesquisas não fazem referência ao nome da mãe de Marie de

l’Incarnation, sendo somente mencionado o nome do pai, o Princípe de Conti,

que lhe legara uma pensão. Isso justificou a ida da religiosa à Paris para tratar da

referida pensão. Portanto, quando suas compenheiras foram encarceradas e

condenadas à guilhotina, ela não estava presente.

Em Dialogues, Bernanos apresenta Marie de l’Incarnation com uma

sobriedade clássica. Ela seria a mais digna de ser eleita Priora. Tal constatação,

feita por Blanche (DC:1613) e por Mère Lidoine (DC:1665), não explicita as

103

razões de sua superioridade. Apenas uma vez lhe é atribuído o adjetivo

admirável, contrariamente à Gertrud von le Fort que o banaliza pela repetição.

A personagem se caracteriza pelas ações e pela maneira de ser: sua voz

“basse et martelée où l’on sent toute la passion contenue” (DC: 1663); a

violência, às vezes, transparece: “Son visage trahit violemment un premier

mouvement, sans doute impossible à reprimer, de mépris et de colère pour la

lâcheté de Blanche” (DC: 1638). A paixão e a violência manifestam-se em uma

conduta firme e inflexível, sendo reconhecidas inclusive por adversários, em um

confronto que não exclui certa admiração (DC:1642).

Seu discurso revela-se com ímpeto contido. Emoções controladas, mas não

menos violentas que poderiam fazer ressoar um “jardim fechado, fonte selada ”

(Cântico: 4,12).

A violência se esconde no despojamento, na obediência voluntária, na

linguagem polida e codificada, misteriosa e diferente das religiosas. A paixão é

linguagem e a linguagem torna-se ação.

A personagem Marie de l’Incarnation apropria-se do discurso masculino

sobre a honra e lhe confere características mundanas em desacordo com o

espírito da honra cristã. É preciso considerar que se trata de um discurso

masculino, uma vez que não era exigido das mulheres heroísmo e coragem. Das

mulheres, esperava-se dignidade e fidelidade. Conforme observa Paul Bénichou,

“as princesas disputavam a posse dos reis ou dos grandes homens”

(Bénichou,1948: 27).

104

E Marie de l’Incarnation acredita ser a esposa de “Sa Majesté”, designação

corrente no Carmelo para designar Deus. Nesse ponto, embora sob a ótica

mundana, identifica-se com Santa Teresa que escolheu um amor que durasse

eternamente.

Bernanos considera a honra uma espécie de manifestação carnal do amor de

Deus e o tema da honra cristã é recorrente em sua obra. Em Jeanne relapse et

sainte (1929), La grande peur des bien pensants (1931), Les Grands Cimetières

sous la lune (1938), Scandale de la vérité (1939) e Lettre aux Anglais (1942)

perpassa e define-se um conceito de honra cristã, que o autor considera mais

importante para o gênero humano do que a tradição helênica (EEC I: 572 ). O

autor declara: “car il y a un honneur chrétien. [...] Il est humain et divin tout

ensemble. [...] Il est la fusion mystérieuse de l’honneur humain et de la charité

du Christ” (EEC I: 572).

O conceito de honra para Santa Teresa d’Avila, a reformadora do Carmelo,

opõe-se à honra mundana e acrescenta outra dimensão à honra cristã,

ultrapassando-a. Madame de Croissy, a velha Priora, em agonia, precisa as

diferenças:

Dans l’humiliation où je me trouve, il m’est plus facile de comprendre qu’il en est de la règle de l’honneur mondain à l’égard des pauvres filles du Carmel comme de l’ancienne loi pour le Seigneur Jésus- Christ et ses apôtres. Nous ne sommes pas ici pour l’abolir, mais au contraire pour l’accomplir en la dépassant. (DC: 1600)

105

Importa observar que dépasser - ultrapassar - não significa abolir. Uma

etapa pode ser superada, ultrapassada, mas não necessariamente abolida.

Portanto, Santa Teresa de Jesus, não invalida o conceito cristão, mas o cumpre e

vai mais além, transpondo seus limites.

A reformadora do Carmelo, em seus escritos, afirma, primeiramente, que a

verdadeira honra não consiste no que o mundo chama de honra (Ávila, 1995:

139), sendo os dois conceitos incompatíveis (Ávila, 1995: 493). O primeiro, uma

completa reversão de valores, consistiria em perder a vida e a honra segundo o

mundo para compartilhar a humilhação do Cristo (Ávila,1995: 141).

O grande obstáculo na conquista da verdadeira honra seria o amor próprio,

concretizado no que se chamava uma questão de honra - le point d’honneur.

Com perspicácia, a Doutora da Igreja observa que “acreditamos ter renunciado à

honra entrando no convento, ou iniciando a vida espiritual em busca da

perfeição, porém, se se toca em nossa honra pessoal , esquecemos que já a

confiamos a Deus” (Ávila, 1995: 70).

A maior honra consistiria em ser pobre. “A pobreza", para Teresa de Jesus,

é "... um bem que encerra todos os bens do mundo. A verdadeira pobreza é, em

si, uma honra imensa que por ninguém pode ser contestada" (Ávila,1995: 367-

368) que se traduz em desapego total não só dos valores mundanos: nascimento,

sangue nobre (Ávila,1995:495), como também da consideração do outro, “a

alma... não se preocupa em ser estimada ou não. [...] ela se aflige mais de ser

honrada do que de ser desonrada” (Ávila, 1995: 494-495).

106

O desejo de ser desprezada, tema recorrente nos escritos de Teresa de Jesus,

pode ser sintetizado em uma de suas poesias, no qual encoraja suas filhas

espirituais a caminharem para o céu, "humildes e desprezadas"

(Ávila,1995:1089).

Humildade e desprezo da honra do mundo não caracterizam a personagem

Marie de l’Incarnation. Vale ressaltar, entretanto, que a cena se desenrola em um

contexto histórico-social que explica, sem justificar, seus desvios do ideal

carmelitano.

O texto de Bernanos, como observa Monique Gosselin, além de escrito em

estilo literário característico do século XVII, também faz reviver a moral dessa

época, através do código de honra da nobreza.

Se a Igreja valorizava, pelo menos teoricamente, a humildade, a moral do

século não considerava o orgulho um defeito e sim uma qualidade. Como

referido, os grandes não eram modestos e nem desejavam a obscuridade. O herói

corneliano nunca é humilde. Seu orgulho se afirma com altivez, insolência e

desmedida, valores remanescentes de uma sociedade feudal.

O conceito de honra para Marie de l’Incarnation identifica-se com estas

exigências de uma honra aristocrática e mundana. “La véritable humilité est

d’abord une décence, un équilibre” (DC: 1633). Equilíbrio, decência e dignidade

são os valores fundamentais desse sistema. Em todas as circunstâncias, há que se

manter calma, tranqüilidade e altivez.

107

Marie de l’Incarnation dirige-se, com autoridade e firmeza, à Blanche,

transtornada pela visita do irmão: “Remettez-vous, Soeur Blanche” para acalmá-

la (DC:1632). Depois, exorta, em um misto de advertência e ordem: “Tenez-vous

fière” (DC:1633). Blanche deve corrigir não apenas o porte que se encurvara,

mas agir com altivez, moldar-se às exigências e obrigações impostas por seu

nascimento ilustre. Tenez-vous droite, ordem recebida por todas as meninas bem

nascidas, seria a expressão prevista na situação e não tenez-vous fière. Marie de

l’Incarnation joga com o significante fière, produzindo essa multiplicidade de

sentidos.

O discurso de Marie de l’Incarnation apresenta várias peculiaridades. Trata-

se de um posicionamento sobre o código de honra ligado a um grupo social que

raramente ultrapassa os limites da família. Esses valores persistem e são

tolerados no convento. Com perspicácia, Madame de Croissy observara:

Et pour tout résumer d’un mot qui ne se trouve plus jamais sur nos lèvres, bien que nos coeurs ne l’aient pas renié, en quelque conjoncture que ce soit, pensez que votre honneur est à la garde de Dieu. (DC: 1601)

Entretanto, mesmo em relação aos valores da nobreza, há uma desmedida,

Hybris gerada pelo orgulho, que faz com que a personagem Marie de l’

Incarnation exorbite constantemente seu lugar. Ao ser-lhe concedida a palavra no

Capítulo, em uma deferência excepcional que lhe faz a Priora, ela argumenta:

Mes Soeurs, Sa Révérence vient de vous dire que notre premier devoir est la prière. Mais celui de l’obéissance n’est pas moins grand et doit être accompli dans le même esprit, c’est-à-dire dans un profond abandon de nous-mêmes et de notre jugement propre. Conformons-nous donc, non seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence. (DC:1615)

108

Para refutar o discurso de sua superiora, ela o repete: “Sa Révérence vient

de vous dire que notre premier devoir est la prière”. É importante notar que a

personagem não se inclui entre as destinatárias do discurso, pois diz vous dire e

não nous dire. E passa a argumentar, mostrando seu desacordo.

A proposição é ambígüa. É preciso obedecer à Priora. Entretanto, é preciso

também obedecer ao convite ao martírio. Nesse dilema, resta conformar-se à

vontade expressa da Priora, representante de Deus: “Conformons-nous donc, non

seulement de bouche, mais de coeur, aux volontés de Sa Révérence”. O

raciocínio deve ser entendido no contexto do Carmelo, onde a obediência é

considerada virtude primordial. Pois, para a reformadora, Deus pode ser

encontrado mesmo no meio das panelas e a obediência é preferível ao sacrifício.

“O caminho da obediência é o que mais rapidamente conduz à perfeição” (Ávila,

1995: 633).

Há uma contestação camuflada nessa aparente submissão. Conformar-se

significa submeter-se a contragosto. É preciso amoldar-se à maneira de ser da

Priora. "Conformons-nous... aux volontés de Sa Révérence". A expressão

prevista seria conformar-se com a vontade de Deus de quem a Priora é a

representante. O emprego do plural "aux volontés de Sa Révérence" possui um

sentido ambígüo e insinua que a ordem da Priora origina-se de um ponto de vista

pessoal, o de suas vontades, que não coincidiria necessariamente com a de Deus.

Embora convoque a uma obediência "non seulement de bouche, mais de coeur",

na realidade, Marie de l’ Incarnation contesta, parcialmente, a ordem da Priora e

de um certo modo a invalida.

109

Lembro que coeur faz ressoar também o tema da coragem, no campo

semântico do martírio, “conformons-nous... de coeur” assume um sentido

primeiro de conformemo-nos de coração, mas faz ressoar seu oposto, nesta

situação, o qual seria tomemos a forma da coragem, ou seja, do martírio.

Se Rodrigue, personagem principal de Le Cid, seria o protótipo literário dos

valores da nobreza francesa, o modelo discursivo de Marie de l’ Incarnation,

segundo Bernanos, pode ser aproximado daquele de Polyeucte (1643) de Pierre

Corneille, em sua atração desmedida pelo heroísmo.

Polyeucte, recém-convertido, destrói as imagens dos ídolos pagãos, desafia

a autoridade romana e permanece inabalável diante das súplicas de Pauline, sua

mulher, que tenta salvá-lo da morte.

Este procedimento era desaprovado pela Igreja que sempre aconselhou a

prudência e a não provocação.

Os valores de um grupo social, a nobreza, evidenciam-se no confronto entre

Marie de l’Incarnation e os revolucionários que investigam possíveis abusos

contra a liberdade humana no espaço conventual.

A perquirição do Comissário e de seu auxiliar tem como resultado destacar

o sentido de honra para Marie de l’Incarnation. A honra falaria mais forte do que

o medo, o temor. Assim, a sub-Priora declara ao Comissário que procura

encontrar religiosas enclausuradas a contragosto, para libertá-las: “Monsieur,

sachez que chez la plus pauvre fille du Carmel, l’honneur parle plus haut que la

crainte.” (DC:1640).

110

Exprimindo-se por uma máxima, gênero literário valorizado pelos escritores

mundanos do século XVII, Marie de l’Incarnation emprega o registro de sua

classe social, ao opor a honra ao temor.

Ao contrariar as ordens da Priora, Marie de l’Incarnation mostra-se altiva,

arrogante e insolente diante do Comissário, pondo em risco a segurança de toda a

comunidade. Age de modo individualista e não como humilde carmelita que

deveria ser (DC: 1681).

É necessário, em primeiro lugar, tentar responder à seguinte indagação:

como se caracteriza sua visão do mundo? Em Dialogues, o discurso manifesta-se

cheio de certezas, não admitindo a dúvida nem a possibilidade de diálogo.

Caracterizada pela desmedida e pela rigidez, a visão do mundo de Marie de

l’Incarnation apresenta-se tradicional e rigorista. Sua maneira de agir poderia

mesmo ser qualificada de jacobina, se tal adjetivo não fosse reservado, naquele

momento histórico, aos mentores do Terror revolucionário de 1792 e 1794.

Ainda segundo a ótica de Marie de l’ Incarnation, os lugares no mundo

estão previamente marcados pelo nascimento, pelo sangue, pela linhagem, e não

existiria possibilidade de mudanças nem transformações. Suas exigências e

intransigências tornam impossível aceitar as transformações do mundo. Diante

das mudanças operadas, ela declara preferir a morte a aceitá-las:

Vivre n’ est rien, c’est cela que vous voulez dire. Car il n’ est plus que la mort qui compte lorsque la vie est dévaluée jusqu’ au ridicule, elle n’a pas plus de prix que vos assignats. (DC: 1681).

111

Cair no ridículo, ser ridículo, equivalia a uma degradação em um sistema de

valores em que essa era a mais eficiente das armas. “Est-il croyable qu’un

gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux?" (DC: 1647).

O ridículo, o grotesco, deveria ser evitado a todo custo.

E seria risível demonstrar emoção de forma excessiva. Dor, alegria, ódio,

amor e medo, sentimentos inerentes ao coração humano, poderiam ser revelados,

mas de maneira contida, sem exageros. Decência resumiria a atitude a ser

mantida a todo custo. Oferecer-se em espetáculo, sob o efeito de uma forte

emoção, constituiria uma prova de mau gosto, seria ridículo.

Assim, Marie de l’Incarnation, mesmo durante a profanação da capela do

convento, acompanhada do canto da Carmagnole, permanece digna e

aristocraticamente calma: “Allons! Allons! Mes filles, soyez calmes. Pour l’

instant il n’est d’ autre prière possible que celle-là.” (DC:1654).

Atitude análoga, assumem os nobres presos, à espera da guilhotina. A

indicação cênica (régie) indica que eles são “très énervés mais qui le laissent

paraître le moins possible et se reprennent dès qu’il le faut” (DC: 1693). Para

isso, até jogam baralho. Um dos nobres, ao ser chamado para a execução,

despede-se da mulher amada, prevê uma gorjeta para o carcereiro e acrescenta:

“et vous présenterez mes civilités au Marquis de la Force. Je le vois là-bas qui

sommeille et je n’oserais pas le réveiller pour si peu” (DC: 1693).

A expressão si peu é a litotes irônica e lírica com a qual o condenado se

refere à morte iminente e à separação da mulher de quem gostaria de beijar as

mãos, se este gesto galante não soasse ridículo em espaço inadequado. “Adieu,

Héloïse. Je vous baiserais bien les mains si la chose n’était ici ridicule”

(DC:1695) (grifo meu).

112

A secreta satisfação de considerar-se superior e o desprezo pela vida

revelam-se na réplica do aristocrata, acusado por um dos seus, de não amar a

vida: “Nous avons joui d’ elle, et elle jouit de vous. Nous l’avons possédée, et

c’est elle qui vous possède” (DC: 1696).

Marie de l’Incarnation compartilha esse sistema de valores e acrescenta-lhe

a atração pelo martírio, considerada como a expressão de um amor que deseja a

morte. É importante salientar que seu amor se manifesta de modo contido e frio.

Essa maneira de ser e agir coaduna-se com a personagem histórica que lhe serviu

de inspiração. Ao tentar justificar a não retomada da vida conventual, Madame

Philippe arguia ter tido uma vocação “d’ appel” - de chamado e não “d’ attrait” -

atração (Bush,1988:14). Nenhuma semelhança com os êxtases amorosos de

Teresa de Jesus que exclamava: “Ansiosa de verte/deseo morir” (Ávila,

1995:1082).

Ao propor e, de certo modo, impor o voto de martírio a uma comunidade

pouco entusiasmada com a possibilidade concreta de morrer, declara:

Je me félicite de vous voir accueillir cette proposition aussi froidement que le Seigneur m’ inspire de la faire. (...) Nous devons donner notre vie avec décence. La donner même à regret, ou du moins avec une arrière-pensée de tristesse, ne saurait nullement offenser la décence. Ce serait, au contraire, y manquer gravement et grossièrement que de nous monter la tête entre nous avec de grands mots et de grands gestes. (DC:1684-5) (grifos meus)

113

Os valores perseguidos são a decência e a dignidade. Devem ser evitados: o

exagero, a exibição dos sentimentos. O ideal de uma moral nobre e clássica seria

viver a litotes na literatura e na vida de todos os dias. Litotes que, em grego,

significa simplicidade, é a figura discursiva que melhor caracteriza a atitude

reservada e violenta de Marie de l’Incarnation. “Elle est toujours

extraordinairement simple et naturelle” (DC: 1684), diz o texto.

Sua atitude diante da vida imita a do herói e a do santo que se despojam dos

bens sem os usufruir ou para melhor usufruí-los.

O herói e o santo se assemelham, numa função mistificante, praticando em

si próprios a grande e magnífica destruição que constitui o ideal de uma família

espiritual. Diferem, entretanto, no que toca às provas que lhes são impostas por

Deus. O herói não duvida de seu destino e até vai ao encontro das perdas e do

sofrimento, enquanto o santo se submete ao despojamento que lhe é imposto e o

aceita.

Marie de l’ Incarnation atua no domínio do heroísmo, desejando o martírio

em um movimento individual, ainda que o preço a pagar seja a destruição, uma

espécie de potlatch. Potlatch seria um dom ou uma destruição com

características sagradas, que exigiria do favorecido o desafio de uma retribuição

equivalente. Enfocarei não a estrutura potencialmente violenta do dom (Mauss,

1960: 173), mas a destruição improdutiva, conceito desenvolvido em Saint Genet

comédien et martyr (Sartre,1952) e em La part maudite (Bataille, 1967).

114

Segundo esses estudos, algumas elites praticam o potlatch, sob o aspecto do

dispêndio improdutivo. Elas não produzem, não consomem e desejariam tudo

destruir em um rito sacrificial.

Considerado como a suprema glória, o potlatch exige requisitos: para

destruir riquezas é necessário antes de tudo possuí-las. Enfocado desse modo, o

dispêndio inútil é o contrário do instinto de conservação. Trata-se de um não à

vida e de uma atração pela morte.

Aparenta-se ao potlatch o que Sartre chama de sophistique du non: uma

identificação total entre uma elite e um processo de destruição, que ninguém

aproveita do ponto de vista social. O supremo requinte consistiria em aniquilar

um bem, sem dele aproveitar-se. Mas o aristocrata possui, em alto grau, o bem

sacrificado, pois, segundo essa ótica, o prazer supremo consistiria em recusar o

prazer.

Os aristocratas inutilizaram o ouro, aplicando-o nas paredes das igrejas

(Sartre,1952:190). O ouro inútil seria uma metáfora do trabalho humano, dos

prazeres da vida sacrificados e destruídos, não por amor aos pobres, mas por

amor a Deus.

Como justificativa, fala-se de honra e principalmente de suprema renúncia:

viver é morrer; morrer é viver; a recusa é aceitação. E Sartre cita o espanhol São

João da Cruz, poeta maior, que cantou o despojamento total

115

Para venir a gustarlo todo no quieras tener gusto en nada. Para venir a saberlo todo no quieras saber algo en nada. Para venir a poseerlo todo no quieras poseer algo en nada. ... Para venir a lo que gustas has de ir por donde no gustas.

(São João da Cruz, Monte Carmelo)

Tal é a visão de Sartre, coerente com sua visão do mundo. O que não

invalida suas observações pertinentes, quando afirma que esta sophistique du non

agrada, não apenas aos místicos, mas também aos aristocratas em geral, e,

sobretudo aos conservadores. A Sophistique du non não constitui uma ação;

muitas vezes, é apenas uma retórica, e não é isto que mudará o curso do mundo.

Os nobres, durante a Revolução Francesa, não queriam mudar a História,

um conceito dinâmico e burguês; preferiram perder a vida a renunciar aos

privilégios. A morte física pouco lhes importava diante da destruição de um

mundo, de um regime com o qual se identificavam e que fazia parte de suas

existências.

A personagem Marie de l’Incarnation, em sua visão do mundo

individualista e exaltada, despreza a vida que não mais corresponde aos padrões

rígidos e intransigentes da classe privilegiada. Deseja o martírio, que lhe será,

posteriormente, negado, e deve, no momento, submeter-se à autoridade de uma

superiora que representa o ponto de vista comunitário, burguês, astucioso,

pragmático, flexível e que, surpreendentemente, a conduzirá ao martírio.

116

4.2.2. A reversão de Valores

Par ma coiffe! Le Carmel n’est un pas un ordre de chevalerie, que je sache” ! Bernanos

Como qualificar o discurso que se opõe aos princípios aristocráticos?

Classificá-lo apenas como um discurso burguês seria por demais simplista. No

século XVIII, às vésperas da Revolução, a sociedade francesa compreendia dois

grandes grupos, havia os nobres e os plebeus - les roturiers - que se subdividiam

em burgueses, artesãos e camponeses. A burguesia é diversa e múltipla. Talvez o

único ponto em comum entre a grande, a média e a pequena burguesia seja o fato

de não ser nobre. E a nobreza também possuía subdivisões: nobreza de sangue,

de toga, pequena, grande nobreza, etc.

Contra todas estas discriminações será proclamado em 1789: “todos os

homens nascem iguais”. O nobre adquiriu nobreza, em alguma longínqua

ocasião, em que foi recompensado pelo bel prazer do rei ou por lealdade e

coragem. Sua superioridade advém de possuir um nome com grande extensão no

tempo e conhecer o que faziam seus antepassados na época das Cruzadas.

Orgulhava-se o fidalgo de ter nascido distinto, filho d’ algo, de alguém célebre,

conhecido por suas posses ou suas façanhas. Ser nobre, ao contrário do que se

queria fazer crer, não é possuir uma essência inata, mas uma questão de tempo e

de memória, apenas.

Assim pensava Arouet de Voltaire, em 1726, ao acreditar pertencer à

nobreza por suas qualidades intelectuais e permitir-se responder ao Cavalheiro de

Rohan que zombara de sua nobreza recente e de seu nome: “J’ aime mieux être le

117

premier du mien que le dernier du vôtre” (Peyrefitte, 1985). Voltaire foi

espancado, preso na Bastilha e pressionado a deixar a França, refugiando-se na

Inglaterra.

Cito este episódio emblemático, por ter Voltaire se iludido a respeito de

seus amigos da alta estirpe e remeto à leitura das Mémoires do Duque de Saint-

Simon que desperdiçava parte do seu talento contestando a nobreza de seus

pares.

Reiteradas a insolência, a arrogância da aristocracia e a multiplicidade e

diversidade da burguesia, indago: que nome atribuir ao discurso que contesta o

princípio aristocrático? Qualificá-lo de pragmático não seria abrangente e

limitaria o seu emprego. Classificá-lo como novo não corresponde à realidade,

pois os valores que se afirmam e se fazem ouvir sempre existiram, embora

ocultados por uma moral heróica oficial. Princípio democrático também não

engloba o conjunto de valores que se opõem à moral aristocrática. Resta-me

empregar a expressão discurso burguês, embora considere o sentido pejorativo

que atualmente lhe é atribuído. Enfatizo que o termo é utilizado no sentido de

valor plebeu, daquele que não é nobre, de quem acredita em mudanças, em que

não há mérito em nascer nobre e principalmente crê que todos os homens nascem

iguais.

O discurso burguês representado em Dialogues, principalmente, por Mère

Lidoine, a nova Priora, oriunda da pequena burguesia, denuncia as incoerências e

exageros do código de honra da nobreza. E vai revelar a rigidez e as contradições

de um discurso distorcido pela exaltação, pela desmedida e que se manifesta

118

entre as religiosas no desejo do martírio: “Il n’est pas question pour nous de

martyre, je ne veux pas que vos têtes s’echauffent là-dessus. Nous risquons

d’être jetées à la rue, rien de plus. [...]. Voilà de quoi refroidir vos imaginations”

(DC:1627) (grifos meus).

A Priora usa toda a autoridade que o cargo lhe confere para ordenar: “Je ne

veux pas”. A força brutal da expressão deve ser avaliada em um meio em que

predominam as perífrases corteses e as fórmulas antiquadas de polidez. O

emprego da forma verbal na lª pessoa do singular explica-se pela gravidade da

situação e é reforçado por: “Nous risquons d’ être jetées à la rue, rien de plus”.

"Rien de plus", nada mais, coloca um ponto final na ordem expressa da

Superiora, não admitindo réplicas ou contestações.

A oposição s’échauffer x refroidir revela o que deve ser evitado;

s’échauffer, perder o controle, deformar a realidade por causa dos sentimentos

exaltados e refroidir contém a idéia de equilíbrio, predominância da razão. A

linguagem popular emprega freqüentemente “não esquenta”, “é uma pessoa

esquentada” e também o “fica fria”, no sentido de “veja os problemas de um

modo racional”, “mantenha a calma”.

Em um registro voluntariamente coloquial, a Priora, serena e modesta,

procura preservar as religiosas contra o fanatismo do ideal que seria desejar o

martírio, quando o problema que se coloca é o de serem expulsas do convento,

que a ameaça existente é ficar sem teto, ser jogada na rua, nada mais.

Ela dialoga com um discurso não explícito, mas em circulação - o dos

valores aristocráticos. Responsável pela comunidade diante de Deus e diante das

119

autoridades civis, tentará todos os meios lícitos para preservá-la. Seu

comportamento visa o poder civil e as religiosas. Quanto à lei, conformar-se-á

com os decretos, sem discutí-los (DC:1647) e quanto às religiosas, procurará

mantê-las equilibradas e dentro da realidade, opondo à exaltação do desejo de

martírio, o equilíbrio e a humildade. A humildade consiste em conhecer o seu

lugar e representa o oposto do orgulho. Enquanto Blanche procura seu lugar no

mundo e Marie de l’Incarnation extrapola o seu, Mère Saint-Augustin sabe

exatamente qual é o seu lugar. Sua força e equilíbrio decorrem deste

conhecimento. A propósito do desejo de martírio, ela declara:

Ce n’est pas à nous de décider si nous aurons ou non, plus tard, nos pauvres noms dans le bréviaire. Je prétends bien n’être jamais de ces convives, dont parle l’ Evangile, qui prennent la première place et risquent d’ être envoyées à la dernière par le Maître du festin. (DC:1663)

Ter o nome inscrito no breviário, ser um santo canonizado, reconhecido

publicamente pela Igreja, é uma alusão recorrente em Bernanos. Convém ser

humilde e procurar não os primeiros lugares nos banquetes, como os grandes

deste mundo, mas sim os últimos lugares, pois “quem se exalta será humilhado e

quem se humilha será exaltado” (Lc: 18,14). Aqui se estabelece um diálogo em

surdina com outro texto do Evangelho “os últimos serão os primeiros”

(Mt:19,30), que prenuncia uma reversão total no desenrolar previsto da ação.

O tema da graça, da escolha misteriosa de Deus, que chama alguns e recusa

outros, está presente nessa postura contrária à visão exaltada de Maria de

l’Incarnation que representa, no momento, a quase maioria da comunidade.

120

Referindo-se ao desejo do martírio, a Priora afirma falar como todo o

mundo, usando o sentido mais comum das palavras:

Je donne au mot son sens ordinaire, je parle le langage de tout le monde. [...] Par ma cornette! Lorsque nous aurons nommé bonheur ce que le commun des hommes appelle malheur, en serons-nous bien avancées? (D.C:1664) (grifos meus)

Em um discurso coloquial, intercalado por uma expressão popular - "par

ma cornette", a Priora assume uma posição em favor da Doxa, saber comum. A

acumulação de "sens ordinaire, tout le monde, le commun des hommes" faz

ressoar a Declaração dos direitos do homem e do cidadão que proclama a

igualdade fundamental do homem. Segundo estes valores, quem decide é a

maioria, composta de pessoas comuns. Importa a quantidade de vozes e não a

posição social de quem pleiteia.

Esta é a grande mudança em relação ao princípio aristocrático, em que o

poder emanaria de Deus, que se faz representar pelo rei, que por sua vez delega

poderes aos nobres.

No seu discurso, Mère Lidoine alude aos valores comumente aceitos,

exprime a opinião geral, a Doxa, em oposição aos valores de uma elite.

Continuando sua exposição, a Priora denuncia a fatuidade de desejar o

martírio: “Désirer la mort en bonne santé, c’ est se remplir l’ âme de vent,

comme un fou qui croit se nourrir à la fumée du rôti” (DC: 1664). Ela refuta a

sophistique du non, e evidencia o vazio e um certo ridículo contido no jogo de

palavras e na reversão dos valores: o viver é morrer, morrer é viver etc. E

121

desqualifica, de modo definitivo, qualquer ação que precipitasse o martírio e, até

mesmo, o simples desejo de martírio.

O efeito provocado por esse discurso é previsível: todas as religiosas

abaixaram a cabeça, em sinal de submissão aparente. Após observar a reação da

Comunidade, sobretudo das freiras mais jovens e, portanto, mais seduzidas pela

idéia do martírio, a Priora muda de tom e de tática:

J’avais besoin de vous remettre un peu d’aplomb, mes filles. Vous ne teniez plus au sol, vous deveniez si légères qu’un coup de vent dans vos jupes aurait suffi pour vous élever au ciel et vous perdre dans les nuages, comme le ballon de Monsieur Pilâtre. (DC: 1664)

O discurso da Priora é extremamente hábil. Após falar com toda a

autoridade que lhe confere seu cargo, ela faz apelo ao sentimento, à emoção. Ela

possui um Logos, mas, por tática, dissimula-o, ao empregar um registro

coloquial, expressões familiares, visando convencer e conseguir a adesão não

apenas formal, mas de coração, daquelas que considera suas filhas. Denuncia a

ilusão de desejar e provocar o martírio, em termos concretos e familiares, e alude

a um acontecimento da época. Um vento mais forte nas saias - "dans vos jupes" -

seria suficiente para que elas voassem e se perdessem nas nuvens "comme le

ballon de Monsieur Pilâtre". Hoje, o nome de Pilâtre de Rozier é desconhecido,

mas, por volta de 1783, este pseudo-cientista fazia experiências com a

eletricidade e balões diante de um público elegante, constituído sobretudo de

mulheres, encantadas com as lições de física experimental do jovem professor

(Darnton,1984: 188). A alusão de Bernanos não é inocente e reforça a idéia de

que desejar o martírio é alimentar uma quimera, uma ilusão, como os

extraordinários jogos de luz utilizados por Pilâtre de Rozier em 1783, em Paris.

122

Prudente na direção de sua comunidade religiosa, a Priora se mostra

igualmente hábil e correta em relação ao poder civil. Tendo já declarado que

tentaria todos os meios lícitos para preservar seu convento, tanto do ponto de

vista espiritual quanto material, ela se mostrará conciliante, porém digna. Procura

viver o espírito da regra carmelitana que, antes de enfrentar a violência, tudo faz

para desarmá-la.

Ao se submeter ao decreto que proíbe a emissão de novos votos religiosos,

a Priora age com uma correção exemplar. Dá a César o que é de César. Diante da

reação apaixonada de Marie de l’Incarnation, que esperaria uma atitude de

desobediência ao poder civil, ela replica não poder arriscar a segurança de toda a

comunidade e infringir uma ordem, em benefício de uma única pessoa, mesmo

em se tratando de Blanche de la Force. Prevalece o critério democrático da

maioria: “Je ne puis risquer de sacrifier à Mademoiselle de la Force la sécurité

de toutes mes filles” (DC: 1648).

Inconformada, Marie de l’Incarnation apela para um sentimento de honra

mundano e alude às últimas vontades de Madame de Croissy. A Priora relembra

em que consiste a verdadeira honra, para uma carmelita, e alude à possibilidade

de um desígnio particular para Marie de l’Incarnation. A argumentação que se

segue pertence a uma outra ordem: “Mère Marie, je ne veux rien dire de trop,

mais vous parlez de l’honneur comme si nous n’avions pas depuis longtemps

renoncé à l’estime du monde” (DC:1648). A Priora sabe muito mais do que faz

transparecer e deixa sem resposta a pergunta que é uma afirmação: “Que

pourrions-nous désirer de mieux que de mourir?" (DC: 1649).

123

O silêncio também é uma resposta. A verdade intuída não pode ser

demonstrada pela lógica e Mère Saint-Augustin se cala, indicando que o mais

importante não foi dito. Silêncio que dialoga com a atitude de Cristo, diante de

Pilatos: “E Jesus se calava” (Mt: 27,14).

O discurso de Mère Lidoine percorre vários registros de linguagem: alterna

uma linguagem coloquial com expressões populares e, quando necessário,

exprime-se com elevação e grandeza. Além disto, tem a habilidade de esconder a

própria habilidade em argumentar, em convencer.

Para convencer, a Priora emprega diversos recursos que serão assinalados

ao longo desta análise e que consistem em: argumento da autoridade pura e

simples, considerações de ordem espiritual, apelo à emoção, razões de ordem

prática e de sobrevivência e a tática de conceder a última réplica ao interlocutor.

O confronto entre os dois sistemas de valores, aristocrático e plebeu,

representados no texto por Marie de l’Incarnation e Mère Saint- Augustin, pode

ser exemplificado no diálogo que se segue :

Mère Marie: Est-il croyable qu’un gouvernement puisse se donner le ridicule de supprimer les voeux?

La Prieure: Croyable ou non, ce décret doit vous paraître assez clair.

Mère Marie: Votre Révérence est-elle décidée à s’y conformer?

La Prieure: Oui (DC:1647)

Ao finalizar a discussão densa e contida, Mère Lidoine explicita suas razões

de prudência e de obediência civil: uma cerimônia no Carmelo dificilmente

passaria despercebida em uma cidade cheia de espiões. E a menor indiscrição

lhes faria perder a cabeça. A inserção no momento histórico e na cidade de

124

Compiègne marca a mudança de registro finalizada com o intencionalmente

prosaico: “La moindre indiscrétion nous ferait couper le cou” (DC:1649).

O Carmelo não mais é visto como uma cidadela inviolável e, de certo

modo, invisível. Os muros da clausura, tornados transparentes, exporiam as

religiosas ao olhar ameaçador do outro.

A Priora enfrenta um conflito que se desenrola em dois planos: o

circunstancial, com as medidas hostis da Revolução contra os religiosos e o

espiritual, agravado pelas visões do mundo antagônicas, no interior do Carmelo.

A proibição de emitir novos votos atingiu particularmente duas noviças, as

personagens Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis.

Diante do dilema: obedecer a Deus e arriscar a segurança da Comunidade,

ou curvar-se diante de uma ordem arbitrária, a Superiora assume o conflito, mas

tenta, primeiramente, resolvê-lo de modo prático.

Se a Assembléia Nacional interditara a profissão de votos religiosos e se

Blanche se revelara incapaz de superar o medo, o mais prudente seria considerar

seu período de noviciado insatisfatório e despedi -la.

A Priora age dentro das normas, pois o noviciado é um tempo de

preparação imposto pela Igreja aos candidatos à vida religiosa, com uma duração

mínima de doze meses e no máximo de três anos. Durante esse período, o

canditado pode desistir ou ser julgado inapto à vida religiosa ou àquela

determinada Ordem ou Congregação.

125

Diante da reação humilde e desesperada de Blanche, a Priora decide refletir

mais sobre o assunto. Despedir Blanche era uma solução oficial e parcial: restava

solucionar o problema dos votos de Constance de Saint-Denis.

Importa observar que, antes de tentar resolver o problema da proibição de

emitir votos religiosos, a Priora já o tinha dirimido através da linguagem ao

empregar uma grande habilidade ou a inteligência astuta, a Mètis grega.

Segundo Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne (1974), a civilização grega,

caracterizada pela Mètis, cala freqüentemente a seu respeito. Não há tratados nem

sistemas filosóficos sobre os princípios da inteligência astuta, como há tratados

sobre a lógica. A astúcia, a mètis, presente no universo mental dos gregos,

precisa ser descoberta no jogo das práticas sociais e intelectuais, em que sua

presença se revela de modo às vezes obsessivo. Os dois helenistas estudam a

etimologia de mètis. Como substantivo comum, mètis significaria uma forma de

inteligência, uma certa prudência. Como nome próprio, Mètis teria sido a

primeira mulher de Zeus, filha do Oceano e mãe de Atena. Sua atividade cessa ao

ser engolida por Zeus que, receoso de ser suplantado por um possível filho,

conserva a Astúcia dentro de si e torna-se a própria astúcia. Há deuses colocados

sob o signo da astúcia: Atena, Hermes, Afrodite, Hefesto, e os que não a

possuem como Apolo e Dionísio.

Mètis, a astúcia, seria, portanto, mais uma categoria mental do que uma

noção. Ela é uma forma de inteligência e de pensamento; um modo de conhecer;

implica um conjunto complexo, mas muito coerente, de atitudes mentais, de

comportamentos intelectuais que combinam o faro, a sagacidade, a previsão, a

126

maleabilidade de espírito, o fingimento, o desembaraço, a atenção vigilante, o

senso da oportunidade, habilidades diversas e uma experiência longamente

adquirida (Detienne & Vernant, 1974:10).

O agir da Priora revela habilidade e astúcia, sua mètis, ao recitar o Hino de

Santa Teresa d’Avila antes de ler o decreto da Assembléia Nacional. Observarei,

primeiramente, a indicação cênica - régie - que antecede o Hino.

Chapitre. Toutes les religieuses sont solennellement rassemblées. Avant de lire le décret, la Prieure récite avec ses filles l’hymne de Sainte Thérèse d’Avila:

Je suis vôtre et je suis en ce monde pour vous. Comment voulez-vous disposer de moi? Donnez-moi richesse ou dénuement, Donnez-moi consolation ou tristesse, Donnez-moi l’allégresse ou l’affliction Douce vie et soleil sans voile Puisque je me suis abandonnée tout entière Comment voulez-vous disposer de moi?

La Prieure: Je dois vous donner lecture du décret de l’Assemblée qui suspend jusqu’ à nouvel ordre les voeux de religion.

No tocante a "Chapitre" - Capítulo ou sala do Capítulo - deve ser

esclarecido que se trata de um espaço, no interior do Carmelo, onde se reúnem as

religiosas para deliberar e tomar decisões. A Priora comunica as diretivas do dia.

Tudo o que é importante decide-se, oficialmente, nesse espaço consagrado à

autoridade.

Outra indicação teatral já havia descrito a sala do Capítulo “Comme toute

les salles communes, celle-ci est petite et voûtée. Au mur un très beau crucifix.

Sous le crucifix le fauteuil de la Prieure.Le long des murs, un banc où s’assoient

les religieuses” (DC:1614).

127

Nessa sala comum, destaca-se "un très beau crucifix. Sous le crucifix le

fauteuil de la Prieure". A oposição "fauteuil - banc" -poltrona - banco -

representa a hierarquia religiosa. As religiosas sentam-se em um banco. Há que

se notar o apelo cinematográfico da indicação que, no quadro espaço-temporal,

destaca três planos: no alto, o crucifixo; abaixo, a poltrona da Priora; e a uma

certa distância, o banco das religiosas, anônimas.

Nesse espaço organizado sob o signo da autoridade espiritual, "Toutes les

religieuses sont solennellement rassemblées". As religiosas são aquelas que

pronunciaram votos numa religião. Várias hipóteses tentam explicar a etimologia

da palavra religião. Originária do latim religio (veneração, atenção escrupulosa),

religião pode ter sua origem no verbo religare e este sentido é muito conhecido.

Pode também significar juntar e sua origem etimológica seria o verbo legere:

reunir, no sentido próprio, e ler, no sentido figurado.

As religiosas, religadas a um poder sobrenatural, reúnem-se em

comunidades, para melhor atingir seu objetivo. Elas sabem, principalmente, ler,

descobrir o sentido não evidente dos seres e das coisas (Kristeva,1969:181).

Em Dialogues, trata-se de uma reunião solene. Solennellement, de acordo

com sua etimologia, solennelle, radical en do latim annus, exprime um

acontecimento, um fato que ocorria apenas uma vez por ano. O emprego do

advérbio solennellement destaca o caráter oficial e excepcional da reunião

capitular.

Antes de ler o Decreto - domínio civil -, a Priora recita o Hino -domínio

espiritual -. No conflito entre a horizontalidade - a marcha da História - e a

128

verticalidade - a aspiração para o alto -, destaca-se a mètis, a astúcia da Priora.

Ela se adapta ao imprevisto das circunstâncias e diante dos acontecimentos sabe

pilotar seu navio com arte e segurança.

A inteligência astuta exerce-se em diversos planos, mas sempre de modo

prático: a habilidade do artesão, do sofista, a prudência do político ou a arte do

piloto dirigindo seu navio. Não existem regras imutáveis. Cada dificuldade exige

a procura de uma solução, de uma saída.

À rigidez aristocrática opõe-se a maleabilidade burguesa. A astúcia é um

valor não-nobre. O fidalgo julgaria aviltante ser astuto. Somente quem está em

situação inferior precisa empregar ardis, ser esperto. Quem exerce o poder,

aquele que é ou se julga superior emprega a condescendência, a autoridade ou a

arrogância.

Diante do impasse, ameaçada pelo Terror, Mère Lidoine na condição de

autoridade, recorre, então, à astúcia, através da linguagem.

O verbo réciter, do latim recitare, tem como raiz o verbo latino cio:

empurrar, agitar, provocar, excitar. Recitar significa ler em voz alta um

documento em uma sessão pública. Recitar não é simplesmente repetir palavras.

Significa pedir socorro, provocar emoções, despertar sentimentos. Todas essas

idéias são evocadas no texto. As religiosas conhecem o Hino, tantas vezes

repetido. Sua recitação solene, na sala do Capítulo, é um pedido de socorro e uma

ação que se concretizam no dizer. O Hino constitui uma promessa de união

espiritual e um compromisso que se realizam no momento em que é pronunciado.

129

A idéia de que existem atos que podem ser realizados pela palavra não

constitui uma novidade. A criação do mundo, relatada no livro do Gênesis,

decorre da palavra de Deus: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz” (Gênesis,1,3).

E esta fórmula repete-se na narrativa da criação, centralizada no verbo dizer e

seguida do verbo ver: "E viu Deus que isso era bom” (Gênesis, 1,18). A idéia da

palavra criadora é tratada por Aristóteles principalmente na Poética.

A palavra cria, constitui uma ação e pode tornar-se uma realidade

autônoma. Na tragédia clássica francesa o dizer equivale a um fazer. Roland

Barthes, ao analisar Phèdre, a tragédia da palavra, conclui:

O que é que torna tão terrível a palavra? Primeiramente, porque ela é um ato; a palavra é poderosa. Mas é sobretudo porque ela é irreversível: nenhuma palavra pode ser retomada (...) sua criação é definitiva (Barthes,1960:119)

Quando a personagem Phèdre de Racine revela sua paixão incestuosa por

Hippolyte, torna-se culpada pelo fato de ter falado, dado corpo a um sentimento.

O silêncio constituía sua liberdade; seu falar coincide com o fazer.

Esta noção está presente no pensamento grego antigo, embora não seja tão

evidente em nossa época, na qual a ação concreta é mais valorizada. Existiria

uma gradação de importância crescente em pensar, falar e agir. Assim, no

Confiteor, o cristão se acusa de ter pecado "por pensamento, palavras e obras".

Recitado na 1ª pessoa do singular do Indicativo Presente, o Hino de Santa

Teresa realiza o que enuncia. Renovou os votos das religiosas e permitiu que

Blanche de la Force e Constance de Saint-Denis professassem, apesar da

proibição da Assembléia Nacional.

130

Expressão de um amor intenso, síntese do espírito carmelitano, o cântico

congrega todas as religiosas. É também o ponto de convergência, em que os

discursos antagônicos encontram um denominador comum: o abandono total à

vontade de Deus. O discurso da alma enamorada de Deus e os termos nos quais

se exprime a paixão humana muitas vezes coincidem.

O místico, ao comunicar sua experiência de união com Deus, recorre

freqüentemente a uma linguagem erótica, transgressora e poética, a “lingua

nova”, a “logothesis" (Barthes, 1994:1043). E tentaria produzir na linguagem

efeitos relativos ao que não está na linguagem. Os místicos aspiram a um gozo

além do plano físico, a uma fusão, a uma comunhão que pode utilizar, como

metáfora, o amor humano. Neste sentido, pode ser entendida a afirmação de que

somente os corações religiosos conhecem a verdadeira linguagem das grandes

paixões.

A procura de um amor eterno, infinito, não submetido à usura do tempo,

poderia concretizar-se no Carmelo. Santa Teresa dizia procurar um amor que

durasse para sempre.

A alma diz-se seduzida por Deus e a distância que a separa do Ser amado

aumenta seu desejo em lugar de diminuí-lo. O profeta Jeremias sintetiza o

sentimento da alma envolvida no jogo de sedução do qual Deus é o grande

parceiro: “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir; foste mais forte do

que eu, e pudeste mais" (Jeremias, 20,7).

131

Além de ser um canto de amor, o Hino constitui os termos de um contrato

de casamento. Convém lembrar que o ministro do sacramento do matrimônio não

é o sacerdote e sim os nubentes através de um consentimento mútuo.

A alma, enamorada de Deus, reafirma o dom total de si própria e destaca o

domínio de sua ação: “Je suis en ce monde pour vous”. "Ce monde", este mundo,

possui uma conotação espaço-temporal, inscreve-se na História e se opõe ao

reino de Deus. “Meu reino não é deste mundo”, diz o Cristo (Jo, 18:36). A alma

reitera que ela vive neste mundo, de modo provisório, e anseia encontrar Deus

em uma outra vida, em um outro mundo. E viver, de acordo com a tradição

judaico-cristã, baseada, entre outros, em Platão, seria um exílio.

O Hino de Santa Teresa é a expressão dessa espiritualidade carmelitana. Ao

ser recitado, estreitou os laços que uniam as religiosas entre si, possibilitou a

renovação dos votos proferidos e a emissão de novos votos. A habilidade da

Priora tornou possível obedecer a Deus, sem provocar o poder civil, através da

mètis, da astúcia.

A Priora lê o decreto. Ler não é recitar. Ler vem de lex, do latim legere. As

autoridades civis tomaram uma decisão através de um decreto, determinação

escrita com força de lei. Sozinha, a Superiora cumpre o dever de seu cargo de

modo objetivo e neutro. Trata-se de uma obrigação externa, civil. Não julga.

Justo ou não, o decreto deve ser obedecido e a Priora a ele se submete para

proteger a Comunidade. Neste momento, toda uma habilidade entra em ação para

conseguir um objetivo: a sobrevivência das religiosas como indivíduos e como

entidade religiosa.

132

No estudo consagrado à mètis grega, há exemplos das táticas de

sobrevivência: a raposa finge estar morta e o ouriço fecha-se em si mesmo. É a

atitude oposta do herói que desafia a morte e se expõe ao perigo.

Precisa-se, um pouco mais, a grande oposição entre os valores, aristocrático

e burguês, o emprego da astúcia para sobreviver. Não se trata de covardia, mas

de simples bom senso. Agindo com habilidade e tendo superado o dilema entre o

sagrado e o profano, através da linguagem, a Priora, após ler o decreto, permite-

se um discurso pessoal. Depois de algumas considerações preliminares que

fazem apelo à generosidade, à vocação carmelitana baseada na humildade e na

modéstia, a Priora, cônscia de sua responsabilidade, recusa a desmedida, a

hybris.

Primeiramente ela adverte:

Car en toute conscience des devoirs de ma charge, je dois vous dire que je ne saurais tolérer plus longtemps une certaine exaltation qui - si élevés qu’ en soient les motifs - ne nous en distrait pas moins des modestes devoirs de notre état. (DC:1652) (grifo meu)

A advertência contra a exaltação, contra a desmedida fundamenta-se,

também, no ideal carmelitano: há que se ter a justa medida em tudo o que se faz.

Somente o amor de Deus pode ser desmedido.

Prudente e reservada, a religiosa deve cumprir o seu dever e desconfiar de

tudo o que possa afastá-la da oração, mesmo que se trate do martírio. Conta-se

que, enquanto a Santa Inquisição deliberava se as visões e êxtases de Teresa

tinham origem divina ou demoníaca, a Santa varria os corredores do convento,

133

observando que a mulher que ocupa as mãos não perde a cabeça. Somente o

trabalho pode afastar os delírios de uma imaginação desregrada.

Após ter advertido, a Priora ordena: “Ma volonté bien réfléchie est que

cette communauté continue de vivre aussi simplement que par le passé”

(DC:1652).

O valor dessa ordem deve ser avaliado dentro do espírito da regra do

Carmelo. Santa Teresa d’Avila introduziu um novo elemento no processo de

ascese mística: a obediência, na tentativa de neutralizar as teorias do livre exame,

as teorias de Erasmo que circulavam na Espanha. Sob o signo da obediência,

reafirma a autoridade da Igreja, numa época em que o poder espiritual abrangia

também o poder temporal.

As religiosas despojaram-se, voluntariamente, da liberdade através do voto

de obediência e devem obedecer à Priora, representante de Deus e intérprete da

Lei. As relações estabelecidas entre Deus, as religiosas e a superiora são

sintetizadas em Dialogues: “C’ est à Dieu qu’ elle appartient, mais Votre

Révérence en reste l’usufruitière de par la charge à laquelle nous l’ avons

volontairement et librement désignée”, pondera uma das carmelitas (DC:1711) (

grifo meu).

A Priora responde diante de Deus e diante do poder civil pelas religiosas.

Este esquema repete, no convento, a mesma estrutura da monarquia francesa de

direito divino, como a de Luís XIV. O rei só prestaria contas a Deus, mas é

responsável pelo seu povo - os súditos -, que lhe devem obediência.

134

É importante constatar a diferença existente entre a personalidade da Priora

e o exercício de seu cargo. Mère Lidoine se caracteriza como uma velha

religiosa, um pouco repetitiva e sem grandes pretensões: “Une vieille femme un

peu terre à terre, un peu radoteuse.” (DC: 1664). Conciliante e bondosa, ela

representaria a sabedoria, o aspecto positivo da velhice. Entretanto, age de

modo autoritário, porque está investida de poder que lhe confere a hierarquia da

Ordem do Carmelo.

As religiosas devem obedecer à vontade de Deus expressa através das

ordens da Priora e esta tem plena consciência dos deveres de seu cargo: “c’est

moi qui répondrai de vous toutes et je suis assez vieille pour savoir tenir mes

comptes en règle” (DC: 1699).

Porém, antes de determinar sua ordem, a Priora tentara, ao assumir o

superiorato, convencer as religiosas utilizando uma linguagem metafórica que

ilustra, reitera e sintetiza sua maneira de pensar. Primeiramente. ela aconselhou:

Je vous répete que nous sommes de pauvres filles rassemblées pour prier Dieu. Méfions-nous de tout ce qui pourrait nous détourner de la prière, méfions-nous même du martyre. [...]. Lorsqu’ un grand Roi, devant toute sa cour, fait signe à la servante de venir s’ asseoir avec lui sur son trône, ainsi qu’ une épouse bien-aimée, il est préférable qu’ elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les meubles. (DC: 1615) ( grifos meus )

A Priora não diz "si un grand roi" mas “lorsqu’un grand Roi". O emprego

da conjunção lorsque - quando, indica uma realidade, uma circunstância atual. O

grande Rei acena: o Terror revolucionário fazia vítimas. Não se trata de uma

hipótese, mas de uma probabilidade cada vez mais próxima. A idéia do martírio

não é afastada, mas designada metaforicamente como "l’ invitation du grand

135

Roi". Mister se faz agir com prudência e uma certa reserva. "Il est préférable qu’

elle n’en croie pas d’ abord ses yeux ni ses oreilles, et continue à frotter les

meubles". "Frotter les meubles" que significa esfregar os móveis para fazê-los

brilhar, vai ao encontro do costume praticado por Santa Teresa de trabalhar

manualmente. A palavra chave é o advérbio d’abord, primeiramente. Desconfiar

de tudo o que é extraordinário, seguir a rotina, continuar a trabalhar como se

nada tivesse acontecido e, somente depois, admitir a possibilidade da exceção, do

extraordinário. O senso comum e, sobretudo a humildade recomendam duvidar

da imaginação e do amor próprio que falseiam muitas vezes a realidade.

O bom senso caracteriza o espírito do Carmelo. Conta-se que Santa Teresa

teria prescrito comer carne a uma religiosa que dizia ter visões. A ordem foi

executada e as visões cessaram. Esse equilíbrio, esse respeito pela natureza do

homem, revela-se em uma humildade que é sinônimo de verdade. É preciso

vencer e não forçar a natureza, dizia Madame de Croissy (DC: 1582).

Importa também estar consciente de que confiar em Deus não significa estar

protegido contra o sofrimento nem contra as mudanças violentas. Numa época de

transformações sociais e de rupturas, tudo é aleatório, mais do que nunca:

(...) ne comptons jamais que sur cette espèce de courage que Dieu dispense au jour le jour, et comme sou par sou.. C’ est ce courage-là qui nous convient, qui s’ accorde le mieux à l’ humilité de notre état. (DC: 1652)

136

Mère Lidoine explicita seus argumentos: somos pobres servas de Deus e a

coragem que nos convém é aquela que é concedida, dia a dia, e “comme sou par

sou” expressão que revela uma das características de quem se definiu: “je ne suis

pas de celles qui jettent leur bien par la fenêtre” (DC: 1716).

Trata-se de privilegiar a economia, a boa administração dos bens materiais,

de ter consciência de seus limites e de não se envergonhar de saber calcular. Ao

ser-lhe dito que Madame de Croissy, tal como as aristocratas, não sabia fazer

contas e que desse fato retirava mesmo uma certa vaidade, Mère Saint-Augustin

replica que calcular é o seu forte (DC:1620).

Face às restrições impostas pela Revolução, ela calcula aquilo de que

dispõe, antes de começar a contar com rendas futuras. Há uma oposição entre a

atitude burguesa, que sabe calcular, e o desprezo aristocrático do dinheiro que, de

uma certa forma, fazia parte da mentalidade reinante no Carmelo.

Os nobres afetavam desprezar o dinheiro, o lucro, e julgavam ser o trabalho

indigno de sua classe social. Atitudes que lhes apressaram a decadência e a ruína.

Mère Saint-Augustin se opõe a esse discurso aristocrático, sob todos os

aspectos. Em relação à coragem, posiciona-se a favor, não do heroísmo exaltante,

mas da difícil coragem de enfrentar o dia a dia, o quotidiano, o dever obscuro.

“Car il y a plusieurs sortes de courage, et celui des grands de la terre n’est pas

celui des petites gens, il ne leur permettrait pas de survivre” (DC: 1615). Aos

poderosos, convêm as virtudes heróicas; aos pequenos, as virtudes sem brilho: a

boa-vontade, a paciência, o espírito de conciliação e, sobretudo, a humildade.

137

Significativamente, a astúcia não é mencionada, mas escondida. É preciso não

esquecer que Zeus engoliu Métis, incorporando-a.

As razões de Mère Lidoine podem ser resumidas em um silogismo: existem

as grandes e as pequenas virtudes. As grandes virtudes convêm aos poderosos e

aos ricos; as pequenas virtudes convêm aos pequenos e aos humildes. Ora, nós

somos pequenas. Logo, somente nos convêm as pequenas virtudes.

O tema das pequenas virtudes encontra-se, também, em La peste de Albert

Camus. O Dr. Rieux, personagem principal do romance, ao propor como herói,

Grand, herói insignificante e apagado (Camus,1947:129) e ao definir a

honestidade como fazer seu trabalho, posiciona-se a favor do dever quotidiano,

feito com exatidão, e das virtudes escondidas e sem brilho. Cuidar dos doentes,

dizia o médico, era fazer seu trabalho. E Mère Lidoine afirma: “La prière est un

devoir, le martyre est une récompense” (DC:1615), fazendo ressoar a

afirmação da velha Priora: "Notre affaire est de prier, comme l’affaire d’une

lampe est d’éclairer" (DC: 1584). No dilaceramento da depuração, já referida,

Camus, em 1945, recusa publicar, em Combat, um artigo violento e injusto de

Bernanos, e argumenta que o heroísmo e a santidade constituem exceções e não

são accessíveis ao comum dos homens.

Em 1948, Bernanos pode escrever: “Si la force est une vertu, il n’y a pas

assez de cette vertu pour tout le monde” (DC: 1649). A intransigência do autor

cedeu lugar à humildade que possibilita aceitar as limitações individuais e as

diferentes reações diante do perigo, diante da morte.

138

Assim, a Priora evidencia, também, que desejar a morte não significa trilhar

o único caminho que leva a Deus. Não há infâmia em defender-se, em tentar

evitar a morte por todos os meios legais.

Mère Marie de Saint-Augustin denuncia igualmente a tentação de

onipotência que se insinua no Carmelo: a de preocupar-se com problemas que

não dizem respeito à comunidade: “Cela ne nous regarde pas”, (DC: 1662)

afirma, no seu sadio individualismo burguês. Individualismo que não significa

egoísmo, mas bom senso e humildade. Cada coisa virá a seu tempo. Não é

prudente imiscuir-se em assuntos que escapam ao campo de ação destinado a

cada um. O problema do outro é o problema do outro.

Este pragmatismo se exprime freqüentemente por uma Doxa, constituída de

provérbios, frases feitas e clichês não desprovidos de certo senso de humor.

Aspecto subestimado pela crítica bernanosiana em geral, o humor marca a

ruptura da tensão e a volta à vida quotidiana.

O apelo à sabedoria popular, ao consenso social, é um dos recursos do

discurso da Priora, que se humilha, voluntariamente, ao empregar um registro

coloquial e, às vezes dialetal, em um espaço onde seria esperado um registro

culto e formal. Monique Gosselin, ao estudar o emprego das máximas

aristocráticas e provérbios populares em Dialogues, assinala, entre outras, a

tensão entre uma visão espiritual aristocrática e uma espiritualidade do

despojamento que se confrontam e se complementam, sem se anularem

(Gosselin,1983:241).

139

Ao enumerar estas máximas e provérbios justapostos e modificados: “Chien

qui aboie mord mie - paroles vides mauvaises raisons - mieux vaut douceurs que

violence et une seule once de miel prend plus de mouches que sentier de

vinaigre” (DC: 1615), a Priora emprega um recurso que pode ser comparado à

atitude de Ulisses fazendo-se passar por desprovido de eloqüência diante de seus

compatriotas, para mais facilmente convencê-los.

Os argumentos da Doxa, vulneráveis, ambíguos, prestam-se a uma réplica

inevitável. A todo provérbio ou máxima, pode ser oposto um outro provérbio ou

máxima. Consciente dessa limitação, a Priora cessa de utilizar esses meios e após

ordenar a fidelidade ao quotidiano e à simplicidade, muda o registro e, superada

a oposição entre os valores aristocráticos e os valores burgueses, atinge outro

domínio: o da transcendência.

Mère Saint-Augustin passa a contemplar o escândalo da Paixão do Cristo.

Lorsqu’ on les considère de ce jardin de Gethsémani où fut divinisée, en le coeur Adorable du Seigneur, toute l’ angoisse humaine, la distinction entre la peur et le courage ne me parait pas loin d’ être superflue et ils nous apparaissent l’ un et l’autre comme des colifichets de luxe. (DC:1653) (grifos meus)

Somente o homem contempla. Mais do que simplesmente olhar, é

necessário considerar, olhar com atenção, contemplar a agonia do Cristo. A

tortura moral no Jardim das Oliveiras, resgatou o medo, a angústia e reverteu

todos os valores. O medo, inconfessável e inadmissível, foi colocado no mesmo

nível da coragem. Aceitar o medo e a humilhação subseqüente, eis o caminho dos

pequenos e dos pobres. Sobretudo, insistir na diferença entre o medo e a coragem

140

seria compactuar com os resíduos de uma moral aristocrática que sobreviveria no

Carmelo.

A Priora restabelece o conceito da verdadeira honra, lembrando a fidelidade

à vocação escolhida: seguir o Cristo na vergonha, na ignomínia e no medo. "Vous

savez très bien que c’est dans la honte et l’ignominie de sa passion que les filles

du Carmel suivent leur maître." (DC:1648).

Sua exposição oscila sempre entre um clímax e um anticlímax. Depois da

evocação da Agonia do Cristo, do escândalo de sua Paixão, a reversão dos

valores é traduzida em outro registro, mais coloquial. A distinção entre o medo e

a coragem seria comparável a "colifichets de luxe" - pendurucalhos. Esta palavra

possui um sentido pejorativo e significa: pequeno objeto de fantasia, sem grande

valor e também enfeites de um gosto duvidoso. Em conseqüência, o sentimento

de honra segundo os critérios mundanos, o desejo do martírio, o medo do medo,

seriam apenas vãos enfeites de uma moral aristocrática, inúteis em um convento.

A espiritualidade da Priora denuncia a vaidade de provocar o martírio e

valoriza o abandono total à vontade de Deus. Estar na mão de Deus não significa

uma imunidade contra o sofrimento, contra a dor. A lógica divina não coincide,

necessariamente, com a lógica humana. “...nous oublions trop aisément que rien

ne nous assure contre le mal, que nous sommes toujours dans la main de Dieu”

(DC:1614). E o Evangelho prega a reversão de valores (Sermão da Montanha,

Mt 5,1-10), facilmente esquecida em tempos prósperos e de tranqüilidade.

A fraqueza, na obra de Bernanos, pode dar acesso ao sagrado, e o opróbrio

pode transformar-se em glória. A ruptura das normas, a humilhação e a morte

141

podem vir a ser outro caminho, caminho que não se escolhe, mas no qual se é

colocado. O texto de Bernanos dialoga com o célebre texto de Pascal "Grandeur

de Jésus-Christ: les trois ordres" (Pascal, 793) e com as Epístolas de São Paulo

onde o tema da fraqueza transformada em força é recorrente. “Mas Deus

escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; Deus escolheu

as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes” ( I Coríntios, I, 2).

No Carmelo, um espaço onde fermentam conflitos latentes, duas ordens de

valores enfrentam-se, coexistem e complementam-se: a moral espiritual

aristocrática e a de Mère Marie de Saint-Augustin, baseada no despojamento

total, agindo no mesmo domínio, com meios de ação diferentes. Convém

ressaltar que Bernanos expõe os diálogos, mas não toma partido. Cada leitor faz a

sua leitura, cada espectador se posiciona, diferentemente, diante da problemática

apresentada.

Ao sentimento exacerbado de honra, ligado a uma classe social, ao desejo

do martírio, à sophistique du non, à desmedida, é contraposta a aceitação do

humilde dever quotidiano que é a oração e o trabalho. Sobretudo, trata-se de ter a

sabedoria e a humildade de distinguir entre o que se deve aceitar perder e a

renúncia para preservar o que pode e deve ser salvo. A difícil distinção entre o

essencial e o acidental.

Marie de l’Incarnation deseja o martírio individual e procura arrastar toda a

Comunidade em sua hybris. Representaria um certo discurso aristocrático, aquele

que expressa o sentimento exacerbado da honra, o desprezo pela vida e a

renúncia aos prazeres deste mundo. A intuição impulsiona suas decisões. Sua

142

meta consiste em atingir o supremo gozo de não gozar. O martírio, um magnífico

potlatch, afigura-se-lhe um meio de abolir o tempo, a espera e a ausência que a

separam do Eterno.

A Priora representa a moral burguesa, com seus valores peculiares: a

austeridade, a astúcia, o pragmatismo, o bom senso, a dignidade do homem, a

liberdade de escolha. Ela se considera não a esposa, mas a serva de Deus. O

priorizado é o serviço. Seu ideal é ser ancilla Domini.

Cada personagem possui sua verdade, resultado de um olhar sobre o

mundo. As duas visões do mundo completam-se no grande jogo de tentar ler,

decifrar o mundo. E é ainda a Priora que define a aparente oposição: “Nous

paraissons un peu différentes, nos voies ne sont pas tout à fait les mêmes, et

pourtant nous nous comprendrons toujours très bien, s’il plaît à Dieu”

(DC:1617-1618). Representam duas maneiras de amar a Deus.

Em relação ao bem comum, também as atitudes são divergentes. Marie de

l’Incarnation procura realizar seu ideal, sem levar em consideração as fraquezas e

peculiaridades do grupo a que pertence. A Priora, ao contrário, cônscia de seus

deveres, preocupa-se com a comunidade como um todo, constituído de diferentes

elementos, uns mais fortes, outros mais fracos. Com muita sabedoria, faz a

importante distinção: se a responsável diante de Deus e da sociedade fosse Marie

de l’Incarnation, de bom grado ela pronunciaria o voto de martírio, em suas

mãos: “Si vous étiez à ma place, ce serait aussi un grand bonheur pour moi de

prononcer ce voeu du martyre, et de le prononcer entre vos mains.” (DC: 1665).

143

Estas duas maneiras de ser podem ser encontradas em todos os domínios:

Marta e Maria, D. Quixote e Sancho Pança, o sonho e a realidade, a morte e a

vida. Nem sempre as duas atitudes se apresentam nitidamente separados. Há um

pouco de Marta em cada Maria e um pouco de Maria em cada Marta.

E o Carmelo acolhe os diferentes discursos. Cada um fala a sua linguagem,

cada um segue o seu caminho, mas existe um denominador comum que é a

procura do Eterno.

Os valores aristocráticos e burgueses coexistiam no Carmelo, mas havia

uma predominância do princípio aristocrático do código de honra, a valorização

do fanatismo do martírio, da destruição improdutiva - potlatch -. As rupturas e

transformações ocasionadas pela Revolução Francesa repercutem no Carmelo. E

a primeira grande mudança ocasionada foi a eleição para Priora da burguesa

Marie de Saint-Augustin, preferida à aristocrática Marie de l’Incarnation. Esta

eleição anunciou o fim do Antigo Regime, a instauração dos valores burgueses, a

ruptura com o passado e sobretudo uma renovação.

Os conflitos existentes no Carmelo intensificam-se com a presença de

Blanche de la Force, nobre e covarde, à procura de sua identidade, de seu lugar

no mundo.

144

4.3. Onde está Blanche?

Qu’importe pour quoi nous sommes faits puisque Dieu peut nous faire, défaire et refaire à mesure? Bernanos

Blanche de la Force, nascida logo após o tumulto da multidão em pânico,

provocado pela explosão dos fogos de artifício, é um ser marcado pelo medo e

pela angústia. Ela “oferece o exemplo limite desta articulação do sobrenatural

sobre o real da angústia.[...] Ela é angústia” (Renard,1989: 243).

Frágil e desamparada, Blanche assume o código de honra de sua classe

social, mas exagera seus deveres na tentativa de não desmerecer seus ancestrais,

de respeitar o nome de seu pai, de ser de la Force. E, pelo medo, sente-se

desonrada.

Seu conflito desenvolve-se em dois planos: interiormente, o que ela exige

de si mesma, de acordo com o que imagina ser seu dever, e no plano exterior - as

obrigações que lhe são realmente impostas.

Dialogues inicia-se com uma indagação: “Où est Blanche?”. Esta pergunta

formulada por seu irmão, o Cavalheiro de la Force, assume outras conotações e

informa o problema fundamental de Blanche: ela não sabe qual o seu lugar no

mundo e desconhece sua identidade.

O conhecimento da identidade pessoal e social e do lugar que lhes

correspondem estão interligados. Em seu ensaio sobre a abjeção, Julia Kristeva

analisa a situação do exilado, do excluído que se indaga onde está, em vez de se

perguntar quem ele é. Em vez de se interrogar sobre o seu ser, ele se interroga

145

sobre o seu lugar. Isto porque o espaço que o preocupa apresenta-se-lhe divisível,

dobrável e catastrófico. O lugar onde está confere-lhe uma certa identidade, a

única que lhe parece concedida (Kristeva,1980:15).

Onde está Blanche? Onde está “esta alma que se procura, se revolta e foge,

sem cessar, de si mesma. [...] Onde está realmente Blanche? Em que tempo e em

que espaço se movem sua alma e seu espírito?”, interroga-se o cenógrafo da

versão da ópera de Francis Poulenc, representada na estação teatral de 1994-

1995, na França (Coutance, 1994).

Antes de tentar seguir Blanche em suas errâncias, mostrarei como sua

personagem se caracteriza e depois analisarei onde ela está ou procura ficar,

mostrando a interação das duas questões.

Quem é Blanche? Ao se referir a Blanche, o Cavalheiro emprega um tom

que faz pensar no início dos contos de fadas:

Elle est venue au monde comblée de tous les dons de la naissance, de la fortune de la nature. La vie était pour elle comme remplie à pleins bords d’un breuvage délicieux qui se changeait en amertume dès qu’elle y trempait les lèvres. (DC: 1634)

Como não pensar na estória da princesa que recebera todos os dons das

fadas madrinhas, mas fora amaldiçoada pela excluída da festa? E se fada procede

etimologicamente de fatum - destino, teria a multidão, pisoteada na noite dos

fogos de artifício, representado o papel de uma Erínia vingadora? Anatole

France, em Le Livre de mon ami (1996), reafirma a crença difundida pelos contos

infantis que cada ser humano teria uma fada madrinha, responsável pelos dons

maravilhosos ou terríveis que nos acompanharão ao longo de toda a vida.

146

Blanche de La Force, ao nascer, recebera dons especiais e um defeito - o

medo - infamante para sua classe social, o que a torna um ser contraditório e

inquietante.

A imagem da personagem Blanche é construída através do diálogo entre o

Marquês, seu pai, e o Cavalheiro de la Force, seu irmão. Suas posições divergem

a respeito da personalidade e da conduta de Blanche. O irmão exprime inquietude

diante do medo incontrolável, da singuralidade de Blanche enquanto o pai tenta

minimizar tais receios:

Le Chevalier: Oh! Ce n’est pas pour sa sécurité que je crains, vous le savez, mais pour son imagination malade. Le Marquis: Blanche n’est que trop impressionnable, en effet. Un bon mariage arrangera tout cela. Allons! Allons! Une jolie fille a bien le droit d’être un peu craintive. [...] Le Chevalier: Croyez-moi: ce qui met la santé de Blanche en péril, ou peut-être sa vie, ne saurait être seulement la crainte. Ou alors, c’est la crainte refoulée au plus profond de l' être, c’est le gel au coeur de l’arbre... Oui, croyez-moi. Monsieur, l’humeur de Blanche a quelque chose qui passe l’entendement ordinaire [...] Le Marquis: Ouais! Vous parlez comme un villageois superstitieux. L’attachement que vous avez toujours eu pour votre soeur égare un peu votre jugement. Blanche me paraît le plus souvent naturelle, et parfois même enjouée. Le Chevalier: Oh! Sans doute, il arrive qu’elle me fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours la malédiction dans son regard.... [...]

147

O diálogo prossegue entre o Marquês e o Cavalheiro, do qual seleciono

apenas os julgamentos sobre Blanche:

Le Chevalier: Vous voulez dire qu’elle en aura été une fois de plus quitte pour la peur ... Quitte pour la peur! Quand il s’agit de Blanche. Le rapprochement de ces deux mots fait frémir... Une fille si noble et si fière! Le mal est entré en elle comme le ver dans le fruit...

[...]

Le Chevalier: J’ignore si la bizarrerie de sa nature pourrait entraîner Blanche à quelque action blâmable, du moins selon l’idée qu’elle se fait des devoirs d’une fille de qualité, mais je sens bien qu’elle n’y survivrait pas. (DC:1570-71) (Grifos meus)

As qualidades que são atribuídas a Blanche: juventude, beleza, nobreza e

altivez, constituem dons gratuitos, efêmeros e ambivalentes. A altivez e a

nobreza representam atributos questionáveis. A nobreza é um simples acaso. Não

há mérito em nascer nobre. E a altivez, considerada pela aristocracia uma

qualidade e não um defeito, representava, durante a Revolução Francesa, uma

ameaça, uma séria indicação para a guilhotina.

A afirmação do Cavalheiro de que Blanche teria uma imaginação doentia:

"son imagination malade", é contestada, parcialmente, com um eufemismo:

"Blanche n’est que trop impressionnable". E uma moça bonita teria o direito de

ser um pouco medrosa, afirma o velho Marquês.

E ao constatar que o medo de Blanche não se trata de um simples receio,

mas de um temor profundo, como "le gel au coeur de l’arbre", o Cavalheiro é

censurado pelo Marquês que considera sua linguagem exagerada, análoga à de

um camponês supersticioso.

148

A linguagem do velho Marquês, contida e equilibrada, é a de um nobre do

Antigo Regime, a do Cavalheiro, colorida, cheia de imagens, um pouco

excessiva, é a linguagem do período que antecedeu a Revolução Francesa.

Segundo o Marquês de la Force, Blanche parece "le plus souvent naturelle,

et parfois même enjouée". Importa notar que Blanche parece natural. No seu

esforço para demonstrar uma normalidade que não possui, provoca um efeito

contrário, um mal-estar naqueles que não se enganam com sua atitude enjouée -

amável, alegre. A etimologia de enjouée (en + jeu) revela um outro sentido:

entrar no jogo, na acepção de respeitar as convenções estabelecidas, o conjunto

de regras a serem observadas. Blanche joga conscientemente um jogo, tenta

dissimular o medo que a humilha, porém é traída pelo olhar "il arrive qu’elle me

fasse illusion à moi-même, et je croirais le sort conjuré si je n’en lisais toujours

la malédiction dans son regard".

O emprego das palavras le sort - feitiço, magia -, e la malédiction -

maldição, intensificado pelo advérbio toujours - sempre - poderia indicar uma

infelicidade à qual se foi condenado pelo destino, uma situação da qual se é a

vítima. O cavalheiro insinua a possibilidade do cumprimento da maldição, a

ameaça proferida durante o incidente da carruagem jogada contra o povo (4.1.1.).

As palavras pronunciadas possuiriam, no imaginário humano, força e

possibilidade de se tornar realidade. O dizer tornou-se ação.

Blanche se caracteriza, principalmente, pela desmedida. Seu

comportamento foge à normalidade: "l’ humeur de Blanche a quelque chose qui

passe l’entendement ordinaire". A expressão quelque chose não revela pobreza

149

de linguagem. Trata-se de uma imprecisão voluntária, uma decisão de

permanecer vago, por motivos táticos. O Cavalheiro não quer revelar tudo o que

sabe e prefere manter-se na generalidade. Seu julgamento sobre Blanche é

matizado de inquietude e lucidez.

A excentricidade, a anomalia da natureza de Blanche "la bizarrerie de sa

nature" justificaria todos os temores. Tanto o melhor quanto o pior podem ser

esperados de sua parte. Esse leque de possibilidades imprevisíveis e inquietantes

encontraria, talvez, um obstáculo na exagerada concepção que ela se faz de seus

deveres de nobre. A tensão entre o sentido da honra, "les devoirs d’une fille de

qualité" e sua vulnerabilidade, prenuncia um desenlace trágico: "mais je sens

bien qu’elle n’ y survivrait pas".

Ao aparecer, pela primeira vez em cena, Blanche revela perturbação,

vulnerabilidade e esforço em se dominar, verificáveis na indicação cênica e no

diálogo que se seguem:

Les traits de Blanche sont profondément altérés, mais elle a eu visiblement le temps de se reprendre, et s’ efforce de parler avec enjouement.

Blanche: Monsieur le Chevalier est trop bon pour son petit lièvre...

Le Chevalier: Ne répétez pas à tout propos une plaisanterie qui n’a de sens que pour nous deux.

Blanche: Les lièvres n’ont pas l’habitude de passer la journée hors de leur gîte. Il est vrai que je transportais le mien avec moi. mais une simple glace entre cette foule et ma craintive personne m’a paru un moment, je vous assure, une proctection bien dérisoire. Je devais avoir l’air très ridicule.

Le Marquis fait signe à son fils de se taire. (DC: 1573) (Grifos meus)

150

Embora seu rosto esteja profundamente alterado, Blanche se controla e

admite ser temerosa, em uma tática defensiva: adiantar-se em aceitar um defeito

minimizado. Ela se intitula "un petit lièvre", uma lebrezinha. Trata-se de uma

brincadeira afetuosa entre os dois irmãos, e o Cavalheiro sente-se constrangido

pelo fato de Blanche repeti-la diante do pai.

Reminiscência, talvez, de leituras integrantes da cultura francesa, como as

fábulas de La Fontaine ou referência à Doxa que considera a lebre medrosa. Este

animal representa, em certos imaginários, o mesmo papel do cordeiro cristão:

animal manso, inofensivo, herói e mártir por excelência (Durand,1969: 362).

O nome próprio Blanche, que também pode ser empregado como adjetivo,

remete a imaculado, inocente, e seria uma personificação da pureza.

Blanche representa uma personagem. Isto é, joga continuamente durante

toda a cena, procurando esconder sua perturbação através das palavras, o que

provoca certo constrangimento.

Nas duas primeiras cenas do primeiro quadro, reaparece a importância da

carruagem e do vidro (4.1.1.) considerados como uma proteção segregadora. O

Marquês procurara tranqüilizar-se, quanto à segurança de Blanche,

argumentando que sua carruagem é sólida, os velhos cavalos, tranqüilos, o

cocheiro, fiel, e os dois lacaios, velhos e corajosos soldados.

Entretanto, Blanche, retida pela multidão “au carrefour de Bucy”

(DC:1569), julga insuficiente o espaço-abrigo da carruagem. Um simples vidro a

separá-la da massa popular, que compra e vende na feira da encruzilhada de

151

Bucy, parece-lhe uma proteção irrisória, como se revelara ilusório e ineficaz no

acidente dos fogos de artifícios. A multidão executa a ação silenciosa de reter a

carruagem. Não há registros nem de ameaças verbais nem de violências físicas.

As ruas de Paris, espaço aberto, amedrontavam Blanche; o incidente

ocorrido inspira-lhe pavor. Horas depois, ela confessa, o sentimento

experimentado: “...j’ étais glacée jusqu’au coeur” (DC: 1579).

A caracterização da personagem, dominada pelo medo, completa-se quando

o jogo de representar é interrompido, o frágil equilíbrio se rompe e ela grita,

aterrorizada por uma sombra.

A casa paterna, o palacete do Marquês de la Force, espaço semi-aberto, não

representava para Blanche o abrigo desejado. O sobrenome de la Force

constituía, ao mesmo tempo, um motivo de legitímo orgulho e de humilhação.

“Par quel miracle serais-je née tout à fait indigne de tant d’hommes de bien,

justement réputés pour leur valeur?" (DC: 1578), tortura-se Blanche, assumindo

um ônus que não lhe era exigido.

Blanche refere-se a si mesma como "ma craintive personne", admitindo ser

timorata, temerosa, o que não constituía uma desonra. Na casa paterna, que

participa do mundo e portanto, ameaça e, ao mesmo tempo, protege, Blanche

oscila entre admitir o medo e minimizá-lo, preocupada em salvar as aparências,

sob o olhar benevolente dos que a amam.

Admitindo que não consegue viver em sua casa, em seu meio, enfim, no

mundo, Blanche resolve cessar o jogo de fazer de conta que é forte, que é digna

152

de ser de La Force. Decide conquistar o seu espaço e entrar para o Carmelo,

espaço fechado, que sua imaginação apresenta como um refúgio. O claustro

parece-lhe o único lugar onde ela poderia recuperar a honra e o respeito pessoal.

Blanche propõe uma troca com Deus, enfatizando suas renúncias. Mas, ao

tentar negociar com Deus, Blanche age segundo o valor burguês da permuta e

não com a generosidade atribuída ao aristocrata. Há orgulho e ingenuidade em

sua atitude. Ela espera resolver, humanamente, seu problema, longe de um

mundo que seus nervos não podem suportar.

Blanche luta para entrar no Carmelo. Há que se fazer aceitar como

postulante, aquela que pede. Sua nobreza pode lhe facilitar o caminho, mas não

constitui um fator decisivo. Há que ter caráter, força e sobretudo vocação - ter

sido chamada. Madame de Croissy, já velha e bastante doente, mas perspicaz e

clarividente, percebe as ilusões de Blanche quanto ao Carmelo e tenta desfazê-

las, durante uma longa entrevista. Deixando de representar, de jogar, a postulante

reconhece com sinceridade: “Je n’ai pas d’autre refuge, en effet.” (DC: 1587).

Admitida na Ordem, ela acredita-se protegida e julga que nada pode atingi-la

dentro dos muros do claustro.

Blanche fugiu do mundo, mas este está presente dentro do claustro e

manifesta-se nos critérios de julgamento, semelhantes aos valores sociais da

época. Ali também a coragem era valorizada e o medo, desprezado.

Medo, receio, angústia, pavor, terror não são sinônimos, embora designem

situações análogas e apresentem vários pontos em comum. A angústia é

experimentada diante de algo impreciso, interno, porém ameaçador. O medo

153

resulta do conhecimento de um perigo real e externo, bem delimitado (Freud,

1951: 97). Pavor e terror não podem ser empregados indiferentemente. O pavor

emudece e paralisa, enquanto o terror não exclui a possibilidade de agir.

Antes de entrar para o convento, Blanche angustiava-se diante do mundo

que não conhecia, experimentava medo e terror diante de sombras e deixou-se

dominar pelo pavor imobilizante ao se ver ameaçada pela multidão, protegida

somente por um vidro.

No espaço fechado do convento, o medo de Blanche torna-se mais visível e

sem disfarces. O olhar do outro, nem sempre benevolente, acentua sua fraqueza

revelada em diferentes circunstâncias: ao recusar fechar a porta de sua cela antes

de dormir e principalmente ao fugir da vigília mortuária da antiga Priora (DC:

1608).

Seu medo aumenta e transforma-se em pavor. O episódio da perquirição

mostra Blanche paralisada e sem voz, depois de emitir um grito dilacerante

(DC:1638). A personagem é mostrada como apavorada (effrayée), aterrorizada

(terrifiée), com um olhar desvairado (hagard).

Sua angústia mortal, terrível tristeza e imenso cansaço se fossem

enumerados sucessivamente poderiam remeter a um caso patológico.

Esse comportamento e maneira de ser provocam o desdém mal disfarçado

da maioria das religiosas, sintetizado em um cruel jogo de palavras: “Blanche de

la Force... Sans méchanceté, Soeur Blanche, on devrait plutôt vous appeler

Blanche de la Faiblesse.” (DC: 1670). A restrição "sans méchanceté", mera

154

fórmula de delicadeza, suaviza, mas não anula, a falta de piedade e a dureza em

relação a Blanche e revela o quanto uma casta predominava no Carmelo. O

sobrenome de la Force impõe-se mesmo quando Blanche já se chama de

l’Agonie du Christ, confirmando o que a velha Priora afirmara: que não lhe seria

exigido o esquecimento de sua grande nobreza. O que se revelaria uma faca de

dois gumes, pois a exigência de ser corajosa continua a ser-lhe feita, mesmo no

espaço consagrado ao espiritual, ao transcendente.

Os sentimentos de rejeição de uma grande parte da comunidade religiosa

em relação a Blanche são sintetizados por Marie de l’Incarnation: “J’ ai honte de

penser qu’ une fille de grande naissance puisse, le cas échéant, manquer de

coeur” (DC: 1599).

A expressão manquer de coeur significa não ter coragem. Coeur, usado no

sentido de coragem, é recorrente na linguagem do século XVII. Avoir du coeur

significa ser corajoso.

Mais do que por ser medrosa, Blanche é menosprezada por sua falta de

firmeza e de coerência de atitudes, o que poderá constituir uma ameaça à sua

comunidade religiosa. “...ce manque de caractère peut devenir un péril pour la

Communauté.” (DC: 1617).

Os sentimentos de angústia, medo, e terror experimentados por Blanche

intensificam-se e atingem o clímax na última noite de Natal passada no Carmelo

já invadido e despojado. Ao ouvir ressoar o canto da Carmagnole, sob os muros

do convento, Blanche deixa cair a estátua representando Jesus Menino. Mais uma

vez, faz-se sentir a ação da massa popular, embora invisível, através do canto

155

revolucionário. O texto assinala o efeito produzido em Blanche: “Terrifiée, avec

l’expression d’une stigmatisée” (DC: 1656).

A nova Priora, inicialmente, subestimara a fraqueza de Blanche e acreditava

ter tempo de transformá-la em uma verdadeira filha de Santa Teresa d’Ávila. O

processo revolucionário, entretanto, pressionava cada vez mais as religiosas,

visando acabar com os conventos.

Considerando que Blanche se revelara incapaz de superar o seu medo,

levando em conta a fraqueza de seu caráter, tendo em vista o bem comum e

usando do direito que lhe conferia seu cargo, a Priora decidiu julgar seu período

de noviciado insatisfatório e despedi-la, isto é, devolvê-la à sua família (4.2.2 ).

Ao entrar para o Carmelo, Blanche acreditara ser possível, como referido,

mediante uma troca com Deus, vencer sua fraqueza e seu medo. Durante algum

tempo iludiu-se a respeito de si mesma e julgou poder enfrentar as dificuldades.

Suas palavras soam falsas e mesmo arrogantes e não convencem o irmão, que

tentou persuadi-la a voltar ao palácio da família de La Force, pois o Carmelo já

não constituía uma fortaleza intransponível.

Ao tomar conhecimento da decisão da Priora, Blanche, humildemente,

declara já não ter a veleidade de poder superar seu medo e que arrastaria onde

quer que fosse sua desonra, como um condenado aos trabalhos forçados os seus

grilhões. Com imenso esforço, ela declara:

C’ est vrai que je n’espère plus surmonter ma nature.[...] Oh! Ma mère, partout ailleurs je traînerai mon opprobre ainsi qu’un forçat son boulet. Cette maison est bien le seul lieu au monde où je puisse espérer l’offrir à Sa Majesté, comme un infirme ses plaies honteuses. (DC: 1658)

156

Blanche já não é mais a aristocrata disposta a todos os sacrifícios para

recuperar uma honra mundana. Assume sua angústia mortal, seu medo, sua

covardia, e esperaria poder oferecê-los a Deus no Carmelo. Oferecer, remete a

oferenda e a sacrifício. Ela quer oferecer o que tem e sobretudo o que é,

considerando-se uma enferma, no sentido de não ter forças, de ser fraca.

A Priora perturba-se diante da angústia de Blanche, vislumbra um desígno

especial de Deus e suspende sua decisão.

Os acontecimentos precipitam-se. A Revolução invade o Carmelo, através

de cantos, barulhos, ruídos, desfiles e perquirições que se amiúdam.

Sentindo-se ameaçada dentro do recinto que julgara inviolável, e tornado

inseguro, Blanche sucumbe ao medo e refugia-se no “séchoir” - secadouro (DC:

1682). Reservado à secagem de roupas, o secadouro comumente localiza-se no

sótão, na parte superior das construções. Blanche escondera-se ali, como uma

criança, e preocupara Mère Marie de l’Incarnation que a procurava em silêncio:

“... je ne savais où la chercher” (DC: 1682).

As ações de Marie de l’Incarnation, que a velha Priora antes de morrer,

tornara responsável por Blanche, revelam-se contraditórias. Se, por um lado,

procura-a, e após localizá-la, habilmente, faz cessar os comentários sobre sua

ausência, alegando um motivo honroso, por outro lado, precipita sua fuga do

convento, ao insistir no pronunciamento do voto de martírio. Esse voto, para a

preservação do Carmelo e salvação da França, obrigaria as religiosas, não a

provocar o martírio, mas a evitar qualquer medida para impedi-lo, “... comme un

malade refuse la médecine qui le sauverait ...” (DC: 1685).

157

Incapaz de se opor publicamente ao que quer que seja, cansada de lutar

contra seu terror, Blanche pronuncia o voto de martírio com voz forçada e muito

clara e depois, abandona o Carmelo, foge (DC: 1688).

Blanche refugia-se no mundo, outrora tão temido, abdica de toda e

qualquer consideração humana e acredita-se protegida por ter atingido o mais

alto grau de abjeção: “Où je me trouve, qui penserait à me chercher? La mort ne

frappe qu’en haut.” (DC:1701), declara a Marie de l’Incarnation que viera buscá-

la.

Nada mais esperando nem do outro nem de si mesma, ela grita com a

violência inesperada dos fracos:

La peur n’offense pas le bon Dieu. Je suis née dans la peur, j’ y ai vécu, j’ y vis encore, tout le monde méprise la peur, il est donc juste que je vive aussi dans le mépris. Voilà longtemps que je le pense. Le seul être qui aurait pu m’ empêcher de le dire, c’ était mon père. Ils l’ ont guillotiné voilà peu de jours. (DC:1702) ( grifo meu)

A morte do pai liberou a voz de Blanche. Nada a impede de proclamar sua

miséria. Já não há mais troca nem oferenda, apenas a aceitação de uma fraqueza

da qual não se sente responsável. Blanche faz mesmo questão de declarar sua

vergonha de ter sido espancada em sua própria casa, onde desempenha o papel de

criada (DC: 1702). Nada resta da aristocrata orgulhosa de sua linhagem.

Nas ruas de Paris, um paralelo com a situação inicial, Blanche, despojada

de tudo o que possa significar segurança, começa a dominar, pouco a pouco, seu

medo. Embora demonstre, algumas vezes, terror em seu rosto (DC: 1705), já não

se encontra paralisada pelo pavor. Ela se comunica com o povo, fala, indaga.

158

No convento, Blanche era considerada uma criança - une enfant (DC,

1640), etimologicamente, aquela que não fala. Seu sobrenome - de la Force - e o

nome escolhido ao professar os votos - de l’Agonie du Christ - pesados demais,

sufocavam-na.

Como uma voz anônima, Blanche pode informar-se da sorte das carmelitas

encarceradas. O processo de libertação coexiste com sua covardia. Ela nega

conhecer até mesmo a cidade de Compiègne e fornece uma identidade social

fictícia (DC:1705). Esta negação poderia fazer ressoar a de São Pedro, quando o

Cristo foi aprisionado.

Embora revele sinais, mesmo físicos, de medo e de terror, ela os supera

com uma "résolution désespérée" (DC: 1705) e dirige-se à casa da atriz Rose

Ducor, que lhe fora sugerida, como abrigo, por Marie de l’Incarnation.

A reversão de valores evidencia-se. No Antigo Regime, os atores eram

desprezados e discriminados, socialmente. Nem mesmo tinham o direito de

serem enterrados em cemitérios religiosos, lugar sagrado. Durante a Revolução,

Rose Ducor, uma atriz, tem coragem de proteger os que estão ameaçados. Sua

casa, espaço semi-aberto, revela-se protetor.

A revolta motiva a ida de Blanche à casa da atriz. Ela quer impedir a morte

decretada das carmelitas e indigna-se com a alegria e aceitação demonstradas por

Marie de l’Incarnation:

Mourir, mourir, vous n’avez plus que ce mot à la bouche! Serez-vous tous jamais las de tuer ou de mourir? Serez-vous jamais rassasiés du sang d’autrui ou de votre propre sang? (DC: 1707)

159

Blanche tornou-se a figura da revolta e do horror. Ela quer viver e recusa a

morte. Esta aversão diante do sofrimento antevisto seria, talvez, uma atualização

da agonia do Cristo no Monte das Oliveiras (Mc:14-33). Blanche de la Force age

com a força do nome recebido ao nascer e vive o mistério do nome que escolhera

ao tornar-se religiosa: de l’Agonie du Christ. Há uma crença de que o nome

escolhido ao entrar no convento norteará o caminho espiritual a ser trilhado.

Blanche vivenciou sua própria agonia e revive a agonia do Cristo.

As últimas palavras que pronuncia, no texto, são um grito de protesto: “Je

ne veux pas qu’elles meurent! Je ne veux pas mourir” (DC: 1707).

Depois de tentar mudar os acontecimentos, Blanche foge, volta às ruas de

Paris, espaço aberto, que lhe parece o lugar mais seguro. Ela volta ao mundo,

outrora temido, recomeça sua errância e não mais falará, até o canto final.

A procura de um lugar pode ser esquematizada no quadro que se segue:

Espaço Aberto (Ameaça)

Espaço Semi-Aberto (Insegurança)

Espaço Fechado (Refúgio)

Ruas de Paris →

Palacete →

Convento

Palacete →

Convento →

“Séchoir”: secadouro

Palacete →

Casa da Atriz →

Cadafalso ↓

Lugar mais exposto = refúgio

160

Como já referido, as dezesseis Carmelitas do Carmelo de Compiègne,

condenadas pelo Terror Revolucionário, foram executadas em 1794. E, segundo

o texto de Bernanos, baseado na novela de Gertrud von le Fort, a personagem

Blanche de la Force termina o canto de suas irmãs que o ruído da guilhotina

calara uma a uma.

Imprevisivelmente, aquela que não queria morrer, que fugira, que tinha

medo, sob a ação da Graça Divina, contra as humanas previsões, dirige-se para o

cadafalso. O texto acentua que Blanche se exprime através do canto, porém de

modo mais claro, mais resoluto do que o das outras religiosas e deixando

entrever algo de infantil que remete à sua verdadeira natureza: “une nouvelle voix

s’élève, plus nette, plus résolue encore que les autres, avec pourtant quelque

chose d’enfantin” (DC: 1719).

Ao deixar transparecer algo de infantil, Blanche afirma a ação da Graça que

se enxertou em sua natureza, transformando-a, sem anulá-la.

A transformação de Blanche revela a força do dogma da Comunhão dos

Santos, a circulação da Graça Divina entre os membros do Corpo Místico de

Cristo. Cumpre-se o que Constance de Saint-Denis previra: "On ne meurt pas

chacun pour soi, mais les uns pour les autres, ou même les uns à la place des

autres, qui sait?" (DC:1613).

Importa salientar que, segundo a fé cristã, Deus age através dos

acontecimentos e pessoas. Deste modo, a massa humana, sempre presente e

atuante na vida de Blanche, antecipa o desenlace: “Brusque mouvement de foule.

Un groupe de femmes entoure Blanche, la pousse vers l’échafaud, on la perd de

161

vue” (DC: 1719). O grupo de mulheres participa, inconscientemente, do plano de

Deus, precipitando os acontecimentos e auxiliando a vontade de Blanche, movida

pela Graça. E tudo é graça, como dizia o humilde Curé de Campagne (OR:

1259), repetindo a expressão de Santa Teresa de Lisieux.

Em sua errância, Blanche intensificou sua angústia e seu medo ao

acrescentar-lhes sucessivas rupturas, informadas pelo sentimento essencial de

exílio, na busca incessante de seu lugar no mundo, uma manifestação da procura

de sua identidade. E cada lugar conquistado revelou-se inadequado e perigoso.

Apesar de parecer aniquilada, Blanche tornou-se capaz de reviver pois “a

abjeção é uma ressurreição que passa pela morte (do eu)” (Kristeva, 1980: 22).

Ela participara da Agonia do Cristo, ao recusar a morte e também o acompanha

ao subir, livremente, ao cadafalso. Blanche, finalmente, encontrou seu lugar.

A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos, que admitia, em

carta a Jorge de Lima: “Je suis vraiment, comme vous le dites, un exilé.” (CORR

II 248).

162

5. BERNANOS, O EXÍLIO ?

Tout monde est un exil pour ceux qui philosophent. C’est encore un voluptueux, celui pour qui la patrie est douce. C’est déjà un courageux, celui pour qui tout sol est une patrie. Mais il est parfait, celui pour qui le monde entier est un exil. Hugues de Saint Victor

Todo exílio é doloroso, ainda que para alguns se apresente, aparentemente,

dourado, o que não é o caso de Bernanos.

Exílio não deve ser confundido com desterro, degredo, deportação,

expatriação, proscrição, ou outros parassinônimos. Desterro é o lugar onde vive

aquele que está fora de sua terra. O degredo consiste na pena de desterro que a

justiça impõe a criminosos. A deportação refere-se sobretudo à execução da

sentença condenatória de expulsão de um lugar, enquanto expatriar emprega-se

nos casos de banimento da pátria. Proscrever refere a existência de um edital,

voto escrito ou sentença de condenação. Os editais de degredo eram escritos em

tábuas que se afixavam em lugares públicos.

O exílio não é uma punição desonrosa. Banimento e desterro o são. Na

monarquia absoluta, o rei podia exilar um ministro, mas não banir. Os dois

verbos exilar e banir exprimem uma sanção pronunciada contra alguém, porém

não são sinônimos. Banir possui uma carga semântica mais forte do que exilar,

mas pode ser empregado no sentido figurado, de forma atenuada: banir uma

preocupação. O verbo exilar, ao contrário, restringe-se à acepção de afastamento

de algum lugar. Costuma ser empregado na forma pronominal ou na voz passiva.

163

Deleuze afirma que não há conceito simples; todo conceito seria, pelo

menos, duplo ou triplo e teria um contorno irregular, dificilmente demarcável.

Trata-se de um problema de articulação, de recorte e de desbaste (Deleuze &

Guattari, 1991:21).

Assim, a noção de exílio aqui adotada ultrapassa a idéia de um simples

deslocamento geográfico, um afastamento temporário. Cito, a título

paradigmático, o célebre exílio de Ulisses, a viagem sem retorno de Enéias e o

ostracismo de Ovídio, exilado por Augusto na longínqua Dácia, atual Romênia. E

como exemplo da atualidade, assinalo uma vertente na literatura romena que se

intitula uma literatura de exílio, na qual figuram, entre muitos outros, os nomes

de Emil Cioran e Eugène Ionesco.

Examinarei o conceito de exílio, considerando rapidamente seus aspectos

filosóficos e religiosos. Em seguida, analisarei a obra de Georges Bernanos sob

esse ângulo, demonstrando as diferentes formas de exílio que se apresentam:

numerosas e sucessivas mudanças de domicílio, rupturas marcantes, exílio

voluntário, exílio interior, o que sugere uma forma de nomadismo ou errância.

A origem do conceito de exílio, do ponto de vista filosófico, encontra-se,

como se sabe, em Platão. Segundo os ensinamentos do filósofo que tanta

influência exerceu sobre o pensamento cristão, a alma é imortal, provém da

esfera do divino. Existiu antes de prender-se a um corpo e continuará a existir

após a morte. O corpo seria uma prisão, um túmulo para a alma. Platão exprime

essa teoria em duas palavras: SOMA = SÈMA. O corpo - soma - é um túmulo -

sèma - para a alma que sofre como se estivesse doente. De acordo com essa

164

teoria, a finalidade da vida terrestre é o retorno da alma a seu estado original

(Platon, 1954: 1213).

Considerado sob o ponto de vista religioso, a origem do exílio essencial,

para a mística judáica (Kabala), situava-se em Deus, exilando-se de si mesmo no

ato da criação, e nos consecutivos exílios vividos pelo homem em sua dimensão

histórica ou pessoal. José Augusto Seabra escreve:

Era em Deus mesmo que para os kabalistas se situava a origem do exílio de que Israel fez a experiência trágica, desde o Exílio no Egipto aos sucessivos exílios da Diáspora. Esta abriu-se tanto mais à mística kabalista quanto ela correspondia à sua própria vivência de uma errância. Mas o Exílio de Israel não é apenas um acontecimento histórico e sim, como a Redenção, algo que tem a ver com o mistério do ser, do homem e de Deus mesmo, desde o início da criação. Ele é o símbolo místico de tudo quanto existe e da Divindade que o criou. (Seabra, 1996)

O exílio seria também uma missão e não apenas um sofrimento e é sob esse

enfoque que a Kabala procura explicar os sucessivos exílios, conseqüências das

expulsões motivadas pela intolerância religiosa , através dos séculos. A expulsão

dos judeus da Península Ibérica, em 1492, ao provocar a dispersão, pode ser

considerada sob esse ângulo.

O conceito de Platão sobre a alma exilada, difundido principalmente por

Santo Agostinho, e a mística judáica, raiz do cristianismo, influenciaram o

pensamento religioso cristão que privilegia, entretanto, a Queda e a Redenção do

Homem e sobretudo o mistério da Encarnação da Segunda Pessoa da Santíssima

Trindade. “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (João, 1,14).

As três correntes afins, Platonismo, Kabala e Cristianismo confluem e

alimentam um pensamento eclético em que, teologicamente, todos se sentem

165

exilados, prisioneiros do próprio corpo e vivendo exilados, em um vale de

lágrimas, como o atesta o belo hino à Virgem Maria, o Salve Rainha.

Essa concepção pessimista da vida influenciou de tal modo o pensamento

cristão, predominante na Idade Média, que necessário foi esperar o Século das

Luzes para que a idéia de felicidade fosse recuperada e considerada uma idéia

nova na Europa (Lins, 1993:23). Séculos de cristianismo privilegiaram a imagem

de um Cristo padecente; enfatizava-se a permanência do sofrimento, enquanto o

direito à alegria e aos prazeres dessa terra eram minimizados ou, prudentemente,

esquecidos.

O tema do sofrimento inerente à vida humana, do qual o exílio essencial

seria uma das conseqüências, apresenta-se como tema constante de nossa cultura.

O exílio é um tema recorrente do pensamento e da criação dos tempos modernos e contemporâneos. Ele está no centro de muitas obras, de inspiração religiosa ou não, tocadas, de uma forma ou de outra, pela mística judaica. (Seabra, 1996).

Nessa acepção, todo homem seria um exilado. Apesar das diferenças, existe

um denominador comum entre as diversas concepções que consideram o exílio

uma condição do ser humano nesse mundo. O exílio definiria a condição do

homem nessa terra. Emmanuel Levinas confirma essa especulação, em um

evidente diálogo com o Deuteronômio ( 6,12):

La condition - ou l’incondition - d’étrangers et d'ésclaves en pays d’Égypte, rapproche l’homme du prochain. Les hommes se cherchent dans leur incondition d’étrangers. Personne n’est chez soi. Le souvenir de cette servitude rassemble l’humanité. (Levinas, 1972: 108)

166

Segundo se depreende da reflexão de Levinas, as razões definitivas do

exílio seriam transcendentais, porém as causas que o determinam relacionam-se

com circunstâncias sócio-econômicas, com a História.

Em que sentido pode ser empregada a palavra exílio para caracterizar a

obra de Bernanos? Distinguirei diferentes formas de exílio: uma errância - as

inúmeras mudanças de casa e de país. E um exílio total - no tempo e no espaço -

o que permitiria talvez o emprego da expressão um exílio no exílio, revelado em

sua obra.

Antes de propor uma leitura da obra de Bernanos, sob este ângulo, julgo

pertinente extrair de sua biografia elementos esclarecedores e referências

cronológicas.

Há alguns anos atrás, a crítica universitária, de inspiração estruturalista em

sua vertente mais radical, rejeitaria referências biográficas. Hoje, voltou a ser

considerada importante e mesmo indispensável uma biografia sem biografismos.

Isto porque o escritor, independente de sua vontade, está ligado à História, à

sua estória. E quem conta um conto, conta o seu conto, diz a sabedoria popular.

A biografia importa, na medida em que esclarece o texto, e este adquiriria valor

testemunhal quando o narrador, ao fazer a enunciação na primeira pessoa do

singular, assume um discurso aparentemente autobiográfico. O que não garante a

autenticidade do testemunho, que pode ser mera ficção. A vida do escritor, no

fundo, não tem a menor importância, exceto se deixou marcas em seus textos,

como é o caso de Georges Bernanos.

167

Em se tratando da relação vida e obra, as declarações de Bernanos são,

aparentemente, contraditórias. Se, por um lado, afirma : “Je ne suis pas l’homme

de mes livres, mais du moins je ne mens pas à mes livres, ma vie ne dit rien, ma

vie se tait” (EEC I: p.877), declara também: “Mon oeuvre, c’est moi-même, c’est

ma maison" (EEC II :16). Como ler essas declarações? O que interessa é apenas

o texto escrito, e por que não a personagem do escritor produzida pelo texto? Por

outro lado, se Bernanos e sua escritura constituiriam algo indivisível, a razão

derradeira, o que realmente importa? As duas interpretações parecendo-me

válidas, opto por recortar na vida de Bernanos os fatos e as circunstâncias que

julgo esclarecedores e que corroboram minha hipótese de leitura da obra

bernanosiana sob o ângulo do exílio.

Minha pesquisa biográfica baseia-se, entre outros, em dois livros que se

completam: Georges Bernanos à la merci des passants, (1986), de Jean-Loup

Bernanos, filho mais novo do escritor. Exaustivo trabalho biográfico, o autor

retraça um perfil do pai, com a necessária distância e objetividade, atingindo o

objetivo proposto - o olhar do filho depurado pelo tempo e matizado pela

emoção; e Georges Bernanos (1989), de Max Milner, professor universitário e

eminente especialista bernanosiano. Trata-se de uma documentada síntese

biográfica que procura analisar, imparcialmente, a complexa obra do autor de Les

grands cimetières sous la lune. Refiro as fontes consultadas, reconhecendo, de

antemão, que posso ter assimilado informações, extraídas das obras

mencionadas e que já não poderia, rigidamente, demarcá-las.

168

Considerando as suas inúmeras e sucessivas mudanças de casa, região e

país, procurarei responder à pergunta: Onde estava Bernanos?

A leitura de uma biografia de Georges Bernanos revela seus constantes e

inúmeros deslocamentos. Os motivos evocados são quase sempre de saúde ou de

ordem econômica, excetuando o exílio no Brasil, por razões ideólogicas.

Julgo pertinente considerar vários exílios dentro de um grande Exílio.

Bernanos era monarquista em pleno regime republicano; católico, em um mundo

ateu; patriota quando muitos se rendiam à Alemanha. A solidão, a independência,

a valorização de um modelo heróico, enraizado na Idade Média feudal, não

revelariam uma estrutura de exílio? Qualquer que seja a leitura destes fatos, há

que se reconhecer a existência de uma inadequação ao momento presente;

Bernanos está sempre ailleurs.

Uma tentativa de classificar as diferentes formas de romantismo

anticapitalista, de Michael Löwy e Robert Sayre, em Romantismo e política,

qualifica Georges Bernanos de "romântico restitucionista". “O tipo

restitucionista [...] aspira à restituição - ou seja, à restauração ou a recriação

desse passado no presente...”. Em sua maioria literatos, como Chateaubriand,

Vigny, Lamartine e Hugo, entre outros, o romântico restitucionista volta-se para

uma Idade Média idealizada. “Tal concentração do ideal no passado medieval,

sobretudo em sua forma feudal, talvez se explique, por um lado, devido à sua

relativa proximidade no tempo (comparada às sociedades antigas, pré-históricas

etc.)” Georges Bernanos pode ser considerado um caso exemplar do

restitucionismo. “Em seu universo romanesco a única atitude válida é a

169

aceitação da necessidade de uma luta absurda e perdida de antemão, para

restaurar o paraíso perdido.” (Löwy & Sayre, 1993: 41-46).

Ao se exilar, Bernanos difere da atitude predominante entre os católicos que

confiam na Providência Divina e normalmente não se expatriam. O judeu e o

protestante, pertencentes a minorias raciais e religiosas, tentam mudar os

acontecimentos e muitas vezes se exilam.

No século XX, Jacques Maritain e Georges Bernanos constituem exceções

no meio católico. Maritain, convertido de origem protestante, emigra para os

Estados Unidos em 1940 e publica À travers le désastre, difundido na França por

Edmond Michelet.

Bernanos exilou-se no Brasil, onde escreveu a maior parte de seus Écrits de

Combat, uma violenta e apaixonada acusação contra o poder temporal da Igreja e

contra as classes conservadoras. E o protesto vindo de dois grandes escritores

católicos não é um mero acaso (Cf. 2).

Ler a obra de Bernanos através da ótica do exílio esclareceria seus aspectos

aparentemente contraditórios e permitiria melhor compreender as rupturas que

pontilharam sua existência e deixaram marcas em sua escritura.

Delimitei o exílio bernanosiano stricto sensu à sua estada no Brasil - 1938-

1945 - e o conceito de exílio lato sensu à sua visão trágica do mundo.

Para Bernanos, a visão trágica do mundo caracteriza-se pela presença

multiforme de Satã e a ausência aparente de Deus. E para vencer esta presença é

preciso resistir, lutar, submeter-se à vontade divina e, principalmente, superar a

170

tentação do desespero: “La plus haute forme de l’ espérance, c’ est le désespoir

surmonté” (EEC II: 1263).

A visão trágica de Bernanos, a impossibilidade de viver em um mundo em

que Deus se esconde (Goldmann,1959) concretiza-se em mudanças, rupturas e

sobretudo em estar sempre longe. "Où sommes-nous ? me demandera-t-on.

Heureux l’artiste qui peut répondre, qui aurait le droit de répondre: Que vous

importe? Nous sommes loin.” Bernanos (EEC I: 1097) (Grifo meu).

As rupturas e continuidades da obra bernanosiana constituíram o tema de

um Colóquio realizado em 1988, em Nancy, e serão enfatizadas no recorte de

sua peregrinação que se segue.

Georges Bernanos (1888-1948) nasceu em Paris, cidade que ele amava

quando estava longe, no dizer de Jean- Loup Bernanos, mas o cenário da maior

parte de seus romances será Fressin, em Pas-de-Calais, onde sua família passava

as férias.

Quando a Primeira Guerra Mundial foi deflagrada, ele se alistou e foi

aceito, embora tivesse sido reformado em 1910.

Após a guerra, trabalhou como inspetor de uma companhia de seguros.

Durante suas viagens de trem no leste da França, de 1920 a 1925, redigiu,

lentamente, seu primeiro grande sucesso literário, Sous le soleil de Satan,

publicado em fins de março de 1926, ano em que também veio a lume Saint

Dominique, obra hagiográfica. Bernanos, provavelmente, começou a amadurecer

171

a idéia do romance, logo após o Armistício em 1918. Em todo caso, oito anos

decorreram entre o final da guerra e sua publicação.

Em entrevista concedida a Frédéric Lefèvre, redator de Les Nouvelles

Littéraires, periódico caracterizado pela imparcialidade política e aceitação de

verdadeiros talentos, Bernanos declara: “Je crois que mon livre est un des livres

nés de la guerre” (EEC I: p.1039). Esta afirmação pode ser estendida ao conjunto

de sua obra, nascida da guerra. Cito o notável artigo de Joseph Jurt sobre o

assunto, Un univers né de la guerre (1998) antes de fazer minha leitura e reiterar

a pertinência dessa afirmação.

No pós-guerra, 1926 foi um ano marcado pelo aparecimento de grandes

obras literárias: La Tentation de l’Occident de Malraux, Les Faux-Monnayeurs

de Gide, Les Bestiaires de Montherlant. Georges Bernanos publica Sous le soleil

de Satan, graças aos esforços de seus amigos. Robert Vallery-Radot, Henri

Massis e François Le Grix convenceram a Editora Plon a publicar o romance na

coleção Le roseau d’or, dirigida por Maritain. Foi ainda Massis quem teria

pedido a Daudet que escrevesse sobre a obra. Saudado por Léon Daudet, um

fazedor e também demolidor de reputações, inclusive literárias, como o

romancista do pós-guerra, Bernanos conheceu a consagração de um dia para o

outro.

Artigos, declarações e entrevistas multiplicaram-se. A primeira edição

esgotou-se rapidamente, providenciou-se uma segunda edição, o que é muito

significativo em termos editoriais. Autores existem que experimentam um

172

sucesso efêmero, porém, não ultrapassam uma primeira edição esgotada,

dificilmente seguida de uma outra.

Uma pergunta impõe-se: quem lia Sous le soleil de Satan em 1926? Joseph

Jurt, ao pesquisar, exaustivamente, a recepção de Bernanos pela crítica

jornalística de 1926 a 1936, inferiu que a maior parte das leituras, favoravéis ou

hostis, eram predominantemente ideológicas. Dissociar valor estético e ideologia

constituía uma exceção.

Durante os anos loucos, Bernanos antecipa a consciência trágica dos anos

30. Sua obra estaria em desacordo com a idéia de gratuidade, característica da

literatura dos anos 20. Essa falta de adequação às idéias em voga, à l’air du

temps, não impediu um imenso sucesso literário, talvez mesmo o justifique.

Anos mais tarde, o escritor dirá com certa ironia: "...car je n’ai pas

l’honneur d’ être un écrivain méconnu, mes livres se vendent - ce qui prouve

qu’un grand nombre de gens les lisent sans les comprendre, ou peut-être, hélas!

Les achètent sans les lire." (EEC I: 896).

Após o êxito de Sous le soleil de Satan, Bernanos resolve abandonar a

Companhia de Seguros em que trabalhava e se dedicar à sua obra literária. Essa

decisão foi tomada, principalmente, devido à saúde de sua mulher que precisava

passar dois anos à beira mar. Esta escolha, condená-lo-á aos trabalhos forçados

literários até o fim de sua vida. Envelhecido e doente, vivia, exclusivamente, da

remuneração do seu trabalho de escritor, paga por seu editor a cada página

escrita. Os problemas financeiros acompanharam-no durante toda a sua

existência.

173

Outra conseqüência do êxito obtido foi a mudança de domicílio. Instalou-se

durante o verão em Ciboure e em seguida em Bagnères-de-Bigorre, localidade

próxima a Tarbes, não mais sendo obrigado a residir em Paris ou no Leste da

França.

Esses deslocamentos revelaram-se, a posteriori, as primeiras etapas de uma

longa errância, justificados, aparentemente, por problemas monetários e pela

busca de um clima ameno, favorável à saúde de sua família. Jean-Loup Bernanos

menciona uma trintena de mudanças que sua mãe enfrentou ao longo do

casamento. Sem pretender arrolar todas as mudanças de casa, região, país ou

continente, empreendidas por Bernanos, procurarei destacar as que considero

mais importantes e significativas para a leitura proposta.

Tendo abandonado um emprego seguro, Bernanos acreditou-se livre para

escrever com tranqüilidade. Os acontecimentos provariam o contrário. Em 27 de

agosto de 1926, o arcebispo de Bordeaux publicou uma declaração condenando

as posições doutrinais da Action Française e acusando seu diretor, Charles

Maurras, de paganismo.

Movimento de extrema direita, L’Action Française marcou a primeira

metade do século XX francês sob todos os aspectos: religioso, intelectual e

político, e ainda hoje se manifesta, entre outros, no jornal quotidiano lepenista

Présent.

Fundada em 1898 por Maurice Pujo e Henri Vaugeois, L’Action Française

prega a doutrina da restauração monarquista, sob a influência de Charles Maurras

que preconizava o nacionalismo integral. Para Maurras, ser patriota equivaleria,

174

obrigatoriamente, a ser monarquista. Dispondo, a partir de 1908, de um jornal

quotidiano do mesmo nome, L’Action Française exerceu grande influência no

meio católico de extrema direita, sobretudo sobre os estudantes e sua ação se

estende a uma grande parte da burguesia.

Ao apogeu de 1918 seguiu-se a condenação pontifical em 5 de setembro de

1926, em que o Papa Pio XI ratifica a tomada de posição do arcebispo de

Bordeaux.

Diante das reações violentas e para esclarecer as controvérsias, o Sumo

Pontífice pronuncia uma nova condenação da Action Française em 20 de

dezembro do mesmo ano. Colocado publicamente no Index, uma das proscrições

máximas da Igreja, por um decreto da Congregação do Santo-Ofício, em 29 de

dezembro, esse movimento será definitivamente condenado, em março de 1927.

A reprovação formal, pela Igreja, da Action Française transtornou

Bernanos. Embora já se tivesse afastado do movimento em 1919, julgou ser uma

questão de honra defender Charles Maurras e o movimento ao qual estava ligado

desde a juventude, quando, Camelot du Roi, se batia nas ruas do Quartier Latin.

Les Camelots du roi eram um grupo de monarquistas de extrema direita,

filiados à L’Action Française, reputados pela violência de seus métodos de ação.

Vendiam jornais e promoviam tumultos no Quartier Latin e na Sorbonne.

Elementos de diferentes classes sociais faziam parte de suas fileiras. Uma das

últimas manifestações do grupo, registradas pela imprensa, data de 6 de

fevereiro de 1934 e Sartre denuncia em Le Mur o fanatismo e a intransigência

desta associação.

175

Bernanos, dividido entre o dever do católico de submeter-se a Roma e o

senso pessoal de honra, opta, dentro dos limites compatíveis com a obediência,

pela solidariedade à pessoa de Charles Maurras. Essa escolha contraditória

apresentaria analogia com o dever de fidelidade feudal que ligava pessoalmente o

vassalo ao suzerano. Bernanos acreditava que uma vez empenhada a palavra, um

homem - ou um povo “doit la tenir, quel que soit celui auquel il l’a engagée”

(EEC II: 969).

A contradição reside no fato de que, desde o final da guerra, Bernanos

discordava da nova orientação política da Action Française, julgando-a infiel a

seus ideais primeiros, passiva demais e jogando o jogo do poder. A essa

discordância acresce-se o fato de que Bernanos admirava Maurras, porém não era

seu amigo pessoal. Nada, entretanto, o impediu de lançar-se numa defesa

desesperada daquele que considerava um verdadeiro mártir, defensor da

integridade da pátria e sobretudo da Igreja Católica, na França. Bernanos

enfocava o problema de um ponto de vista exclusivamente religioso, o que não

era exatamente a ótica de Maurras, ateu notório, mas defensor da Igreja, por

patriotismo. Essa diferença de motivações constituiu o cerne de um mal-

entendido que, posteriormente, transformou-se em ruptura.

O julgamento da Action Française representou uma etapa decisiva na vida

de Bernanos. Durante anos, a dilaceração foi a tônica de seus sentimentos. Mas

superou a provação e, livre das limitações de um partido, pôde escrever, mais

tarde, entre outras obras-primas, Les Grands Cimetières sous la lune (1938),

Journal d’un curé de campagne (1936) e Dialogues des Carmélites (1949).

176

Ao deter-me sobre essa condenação, meu objetivo consistiu em salientar a

importância da crise pessoal provocada em Bernanos e sobretudo da célebre

ruptura de 1932, início de uma série de rupturas, as inúmeras partidas sem voltas

que balizaram a existência de Georges Bernanos.

No meio do turbilhão de idéias provocado pela condenação da Action

Française, em um ambiente entristecido por doenças e luto, Bernanos redige, em

menos de um ano, seu segundo romance, L’Imposture, lançando-o em novembro

de 1927. O projeto inicial chamar-se-ia Les Ténèbres, porém as circunstâncias

obrigaram-no a publicar, separadamente, dois romances que, na realidade,

constituem uma unidade. Bernanos declara, amargurado: “Personne n’est obligé

de savoir - mais moi je le sais - quel roman eût été L’Imposture et la Joie si le

temps m’avait été laissé de fondre les deux volumes en un seul, soit.” (CORR II:

26).

Poucos meses depois de terminar L’Imposture, ele muda-se, em julho, para

Clermont-de-l’Oise, uma pequena cidade ao Norte de Paris. Seus biógrafos

referem que ele escrevia não em casa, mas em um café, na cidade vizinha de

Mouy-sur-Oise, para onde se dirigia, de bicicleta, em um pequeno deslocamento,

todos os dias. As mudanças, o amor ao movimento são constantes que se

revelarão ao longo de sua vida.

O hábito, comum entre os franceses, de trabalhar em cafés, não significa

apenas a fuga dos inevitáveis barulhos familiares. O escritor gostava dos trens,

dos albergues e, principalmente, dos cafés. Precisava dos ruídos da vida para

escrever. E o ambiente de um café sinistro parecia-lhe a garantia de um contacto

177

com a realidade e uma proteção contra um excesso de fantasia e de irrealidade.

Confessa essa particularidade a uma correspondente: “...et moi j’ écris dans le

seul café vraiment sordide que j’ ai pu trouver sous ce ciel béni” (CORR I: 65),

que contraria o imaginário tributário de um certo romantismo que se tem,

freqüentemente, do autor, que necessita de silêncio e paz para deixar fluir a

inspiração. E Bernanos precisava de ruídos para escrever e precisava publicar

para garantir seu ganha-pão.

O recorte efetuado nos dados biográficos de Bernanos permite-me uma

interpretação. Nasceu em Paris, porém, escolheu como cenário de quatro

romances: Sous le soleil de Satan, (1926), Journal d’un curé de campagne

(1936), Nouvelle histoire de Mouchette (1937) e Monsieur Ouine (1946), a

localidade de Fressin, o paraíso de sua infância. E não se trata de um simples

cenário, mas de uma relação vital com a terra, com a região de Artois: a energia

tradicionalista, o ritmo das estações e as formas de que se revestem as pessoas e a

natureza.

Atribuiu a suas personagens nomes próprios característicos da região;

descreveu os caminhos, o clima e o ambiente da terra de Artois como alguém que

realmente aí viveu e sobretudo a amou.

Este assunto foi estudado, entre outros especialistas, por Monique Gosselin,

em Bernanos et le pays d’Artois, e por Yves- Marie Hilaire em Bernanos et l'

Artois (cf. Anais do Colóquio Bernanos et le monde moderne, 1989). Refiro as

fontes para uma possível consulta, observando, entretanto, que a ligação do

178

escritor com a paisagem de sua infância ultrapassa um simples apego ou

enraizamento. Essa terra, que não era o torrão natal, fazia parte de seu ser.

Considero significativo que, em sua errância, anos mais tarde, Bernanos não

tenha retornado a esses sítios. Procurou regiões mais ensolaradas, climas mais

amenos. Como se não fosse possível voltar ao oásis da infância, tornado mítico e,

provisoriamente, inatingível. Comprova-se, assim, uma característica

bernanosiana - a procura de um ailleurs, o estar longe do que se ama.

A errância ou nomadismo, as rupturas com os lugares, refletem-se também

no interior dos textos de Bernanos e foram analisadas por Michael Kohlhauer em

Traverses, sursauts; appartenances. Modernité du roman bernanosien

(Kohlhauer, 1998: 57).

Bernanos escreveu em 1939, de Vassouras, a um amigo:

Pour moi, l’oeuvre de l’artiste n’est jamais la somme de ses déceptions, de ses souffrances, de ses doutes, du mal et du bien de toute sa vie, mais sa vie même, transfigurée, illuminée, réconcililée [...]

Voyez-vous, je crois qu’il ne s’agit pas de se préférer à son oeuvre ou son oeuvre à soi, mais d’être assez simple pour s’aimer dans son oeuvre, ainsi que Dieu dans sa création. (CORR II: 250)

Antes de tentar considerar a vida transfigurada, iluminada e reconciliada

de Bernanos, mister se faz assinalar as etapas vividas pelo autor. Não se pretende

aplicar o método lansoniano de descobrir a vida na obra ou a obra na vida. Trata-

se de sugerir, não uma solução ou saída, mas de propor um caminho a percorrer.

179

Em 1928, Bernanos lança Une nuit e Dialogue d’ombres, obras menores,

escritas em 1922, que passaram relativamente despercebidas. Em compensação,

o ano de 1929 revelou-se particularmente fecundo. Publicou Jeanne, relapse et

sainte e obteve o prêmio Femina com um romance que mostra uma certa

evolução espiritual, La Joie. O tema da Comunhão dos Santos, a circulação da

graça divina entre os membros do Corpo Místico de Cristo, que poderia constituir

um fio condutor de leitura da obra de Bernanos, perpassa, de maneira implícita,

Sous le soleil de Satan; apresenta-se em L’Imposture com conatações sombrias e

tenebrosas e revela-se de maneira clara e luminosa em La Joie.

A evolução das posições de Bernanos, a este respeito, aparece no diálogo

explícito de La Joie com a doutrina de Santa Teresa de Lisieux, praticada por

Chantal, a principal personagem feminina. Perturbadora em sua luminosidade, a

heroína defende-se do mal com uma única arma, a simplicidade, “une

foudroyante simplicité” (OR: 611).

Bernanos dizia a respeito dessa obra: "Tous les gens qui m’aiment, aiment

ce livre", relatou D. Letícia Redig de Campos, em comunicação no Colloque

Bernanos e o Brasil (1998).

La Joie, alegria, refere-se ao latim gaudium e significa sobretudo um

sentimento agradável e profundo experimentado pela consciência, podendo até

mesmo coexistir com o sofrimento. Nessa acepção, alegria não significa,

necessariamente, prazer. Bernanos define, alhures, o sentido da palavra alegria:

“La joie vient d’une part trop profonde de l’âme, pour que ses racines ne

plongent pas dans la tristesse, qui est le fonds de l’homme depuis qu’il a perdu le

180

paradis" (CORR II: 54). E o próprio texto do romance confirma a importância

desse sentimento em sua visão do mundo: “... la joie suffit, la joie de Dieu, dont

nous sommes avares” (OR: 603).

Consagrada pela crítica e pelo público, La Joie é, raramente, considerada

uma obra autônoma. Ora releva-se a intenção primeira, confirmada pelo escritor,

ora enfatiza-se a unidade temática da trilogia Sous le soleil de Satan, L’Imposture

e La Joie. Caracteriza-os: a presença do mal e a luta da alma diante de Deus,

solucionados à luz da Comunhão dos Santos e sobretudo a presença de

personagens emblemáticas - os sacerdotes.

O sacerdote era considerado um ser à parte, misteriosamente escolhido por

Deus. Cercava-o uma aura de mistério, provocando respeito e admiração ou ódio

e agressividade; em todo caso, nunca a indiferença.

A figura do sacerdote, vivendo no mundo sem ser do mundo, a serviço dos

homens, domina o universo romanesco de Bernanos na trilogia inicial e trava

uma luta com o demônio, o anjo decaído. Já se observou que o pecado da carne

não se apresenta relevante, na obra bernanosiana.

Ao contrário de François Mauriac e suas personagens atormentadas pela

luxúria, Bernanos enfatiza o pecado do espírito, o orgulho e as sutis e profundas

manifestações de que pode se revestir.

Qualquer que seja a leitura que se faça dos romances citados, impõe-se

constatar a presença de sacerdotes, suas lutas com o invisível e a ação da Graça

Divina alterando o jogo da vida.

181

Não é por acaso que no ano de 1929, Bernanos publicou La Joie e Paul

Claudel encenou Le Soulier de Satin, redigido durante o período de 1919 a 1924.

Os dois escritores abordam, cada um a seu modo, uma só temática: renúncia,

despojamento, primazia do espiritual e triunfo da Graça sobre a natureza.

Bernanos (1888-1948) e Claudel (1868-1955) possuem em comum,

malgrado as diferenças de geração e divergências pessoais, o fato de pertencerem

à burguesia, pequena burguesia em ascensão, no caso de Bernanos, média

burguesia no de Claudel. Ambos eram franceses, escritores e católicos.

Participaram de um renascimento espiritual, que coincidiu com a Belle Époque,

afirmou-se na década de 20 e conheceu uma idade de ouro nos anos 30. O que

explicaria certa recorrência dos temas encontrados em suas obras.

A recepção feita a La Joie, mais calorosa do que a acolhida dispensada a

L’Imposture, mas sem o entusiasmo quase unânime do consagrado Sous le soleil

de Satan, indica que os críticos e o público começavam a desejar que Bernanos

superasse a evocação do estreito e sufocante ambiente clerical e abordasse outros

temas.

Em 1929, ele interrompe provisoriamente sua produção romanesca e

envolve-se no turbilhão da luta política: pronuncia conferências e escreve artigos,

obstinando-se em defender L’Action Française, apesar dos desentendimentos e

mal-entendidos se acumularem de parte a parte. O período de 1929 a 1934 foi

marcado por atitudes contraditórias, dificuldades financeiras, problemas de

saúde, mudanças de domicílio e sobretudo pela grande ruptura com Charles

Maurras.

182

Reitero que julgo as referências acima aludidas uma manifestação de uma

problemática interna e nunca o fundamento da explicação. Os dados biográficos

esclarecem e objetivam as hipóteses levantadas e funcionam como um

procedimento auxiliar e parcial, a ser controlado e enriquecido por abordagens

diferentes (Goldmann, 1959:19).

A questão que norteia esta etapa da pesquisa é: Onde estava Bernanos de

1929 a 1934?

Durante esse período, ele colabora, eventualmente, no jornal de Charles

Maurras, ao mesmo tempo que encoraja o grupo da revista Réaction, de extrema-

direita, dissidente da Action Française. Em abril de 1931, publica La Grande

Peur des Bien-Pensants, uma espécie de biografia de Édouard Drumont, escritor

e jornalista conhecido por suas idéias anti-semitas e chamado de "meu velho

mestre", por Bernanos. Essa filiação espiritual constrange a maioria dos

admiradores do escritor, que preferem enfatizar a importância de Léon Bloy e de

Charles Péguy, na evolução do pensamento bernanosiano.

Teria sido Bernanos anti-semita? Os críticos bernanosianos tentam

distinguir o anti-semitismo da tradicional aversão francesa pelo judeu, detentor

do poder econômico. Neste sentido, Bernanos não poderia ser acusado de

racismo. E a partir do terror nazista, ele repudia o termo anti-semitismo. Mas em

1944, no Brasil, escreve, em um artigo intitulado Encore la question juive, essa

declaração surpreendente: “Ce mot me fait de plus en plus horreur, Hitler l’ a

déshonoré à jamais” (EEC II: 614). Como se, outrora, noutro contexto, tivesse

sido possível honrar o anti-semitismo.

183

Bernanos permaneceu fiel à memória de Drumont de quem se considerou

sempre discípulo. Essa fidelidade à pessoa revela um sentimento feudal que

remonta à Idade Média. Trata-se de uma questão de honra, de um vínculo que

não poderia ser rompido sem desonra. Além disso, voltar-se para Drumond

poderia representar a procura de sua família intelectual, cuja escolha nunca é

aleatória e sobretudo um retorno em busca de certezas, à época em que tudo se

apresentava claro e seguro, em contraste com o momento atual: incerto, doloroso

e conturbado.

A evocação de Drumond por Bernanos pode ser, de certo modo, explicada e

compreendida; mas torna-se extremamente difícil justificar da mesma maneira a

participação do escritor no jornal de direita, Le Figaro, a partir de novembro de

1931. A amizade que o unia a Robert Vallery-Radot, diretor literário, não

convence totalmente, tendo em vista que Le Figaro representava tudo o que

Bernanos sempre denunciou: o poder do dinheiro, as elites elegantes, mundanas e

bem-pensantes. O proprietário e diretor do quotidiano, o milionário François

Coty, conhecido perfumista, intervinha na orientação do jornal, imprimindo-lhe

uma orientação favorável ao fascismo.

L’Action Française desencadeou, no início de 1932, uma violenta

campanha, para destruir Coty. Bernanos, mais uma vez, acha-se na obrigação de

defender aquele que considera injustiçado e tenta esclarecer a opinião pública.

Maurras toma a iniciativa da separação, dizendo adeus ao antigo Camelot du Roi.

Bernanos concretiza a ruptura, anunciada desde 1919, com a célebre carta A

Dieu, Maurras, publicada em maio de 1932.

184

As conseqüências dessa separação não se fizeram esperar. L’Action

Française desenvolveu uma das mais torpes campanhas visando desmoralizar o

antigo aliado. Georges Bernanos foi ridicularizado, caluniado e exposto à

execração pública. Sua vida foi submetida a uma rigorosa devassa e suas faltas

reais, exageradas ou inventadas, foram divulgadas pela imprensa. O ódio e o

ressentimento de seus primeiros amigos não desapareceram com o tempo.

Quarenta anos após sua morte, em 1988, um jornal que se intitula La

Restauration Nationale - Centre de Propagande Royaliste et d’Action Française,

qualifica Bernanos de "incoerente e instável" e acrescenta que para ele não há

nem amnésia nem anistia.

Se os inimigos enfatizavam suas contínuas flutuações, os acontecimentos

pareciam confirmar esse julgamento desfavorável. Em junho de 1932, afasta-se

do Figaro, por discordar da sua orientação ideológica, retornando em outubro do

mesmo ano para defender sua equipe dos virulentos ataques da Action Française.

Ao se convencer que suas sugestões para transformar o Figaro em um

instrumento de luta por grandes ideais caiam no vazio, o escritor separa-se,

definitivamente, do polêmico jornal.

Esses cinco anos, de 1929 a 1934, foram marcados por grandes perdas, o

amadurecer de uma renovação literária, dificuldades financeiras e mudanças de

domicílio - o que configura um processo de despojamento e errância. Bernanos

perde: reputação, amigos, saúde, dinheiro e torna-se cada vez mais solitário.

Os ataques à sua honra e à sua credibilidade, a perda dos antigos

companheiros da Action Française amarguraram-no profundamente. Em 1930,

185

morre sua mãe. Além dos danos morais, em 1933, Bernanos sofreu um acidente

de moto que o deixou, para sempre, dependente de muletas. Com o tempo, a

limitação física foi superada, e o escritor pode referir-se a seu acidente como a

execução de parte dos desígnios da Providência a seu respeito.

Do ponto de vista literário, vários projetos foram desenvolvidos

simultaneamente: Un Mauvais Rêve, Un Crime e os primeiros capítulos de M.

Ouine, embora nenhum romance tenha sido concluído e publicado.

A vida errante se acentua: Vésenex, Toulon, La Bayorre. Sua situação

financeira tornou-se insustentável. As dificuldades acumularam-se a tal ponto

que todos os pertences do escritor foram leiloados para pagamento de três meses

de aluguel atrasados antes de sua partida para Palma de Maiorca.

Em 1934, viaja para a ilha de Maiorca, à procura de melhores condições de

vida: “Je suis venu ici parce que la vie est matériellement moins difficile qu’en

France. Un point c’est tout.” (CORR II: 19).

O período vivido em Maiorca, de 1934 a 1937, pontilhado por cinco

mudanças de domicílio, coincide com uma grande transformação em sua vida.

“Cette expérience d’Espagne a été, peut-être, l’événement capital de ma vie.”

(EEC II: 969) avaliará o escritor em 1945, já no Brasil.

A evolução de seu pensamento político tornada pública em Les Grands

Cimetières sous la lune (1938), poderia parecer brusca e repentina. Ao contrário,

ela foi progressiva e correspondeu a uma tomada de consciência, revelada na

correspondência enviada a amigos.

186

Enquanto esteve absorvido pela redação de Journal d’un curé de campagne

(1936), Bernanos não prestou muita atenção aos problemas políticos espanhóis.

Terminado o romance, ele começa a refletir sobre o que acontecia no país e a ver

os massacres cometidos à sua volta. E revolta-se contra a repressão da direita

espanhola e, sobretudo, com a cumplicidade da Igreja. "Le personnage que les

convenances m’ obligent à qualifier d’ évêque-archevêque avait délégué là-bas

un de ses prêtres qui, les souliers dans le sang, distribuait les absolutions entre

deux décharges." (GCL: 422).

Essa mudança provocou uma grande surpresa nos leitores, porque o

escritor, no início, manifestara admiração e entusiasmo pelo movimento

franquista, comprovada pela presença de seu filho mais velho, Yves, de 16 anos,

nas fileiras da Falange.

Vários fatores podem explicar essa adesão primeira: sua formação católica,

o amor pela ação e todo o seu passado de Camelot du Roi e militante da Action

Française. Pouco a pouco, a surpresa, o horror e a reprovação o dominam. Seu

filho, Yves, começa a discordar dos métodos empregados pela Falange, pensa

em desertar e acaba fazendo-o. Jean-Loup Bernanos relata que o irmão, antes de

partir para o Brasil, teria manifestado o desejo de voltar à Espanha para lutar ao

lado dos republicanos. Não o fez, mas a mudança foi radical.

O horror presenciado em Maiorca inspirou a Bernanos além de Les Grands

Cimetières sous la lune, Nouvelle Histoire de Mouchette, (1937), seu último

romance. O objetivo do autor é, além de denunciar, ensinar o leitor a ver, a ler, a

decifrar os acontecimentos e não apenas comover e provocar emoção. Denuncia

187

o processo de degradação, que faz do adversário um trapo ensopado de gasolina,

contorcido pelo fogo, depois de ter sido abatido como um animal, nos grandes

cemitérios sob a lua .

Ele não ignora os excessos do campo oposto e os menciona, além de

declarar: “L’ armée républicaine ne m’ inspirait, je l’ avoue, aucune confiance”

(GCL: 415). Os republicanos de todas as tendências - anarquistas, comunistas -

também matavam e torturavam, mas não em nome da honra, da ordem ou de

Cristo. Matavam em nome do ideário da Revolução Francesa: Liberdade,

Igualdade e Fraternidade. O grande escândalo consistia no fato de a Igreja

aprovar o Terror franquista, justificando-o em nome de valores religiosos e

morais. "Où que le général de l’episcopat espagnol mette maintenant le pied, la

mâchoire d’une tête de mort se referme sur son talon, et il est obligé de secouer

sa botte pour la décrocher” (GCL: 409 ).

Bernanos retorna à França em março de 1937 e publica, em 1938, Les

Grands Cimetières sous la lune, um divisor de águas em sua vida. Abandonado

pela direita, sem querer se filiar à esquerda, recusa todas as etiquetas. É um

homem pobre, solitário e livre e nisso consiste sua força.

A repercussão da denúncia do terror franquista, ao alienar os bem-

pensantes, atraiu, em compensação, as simpatias da esquerda. Simone Weil

escreveu-lhe, em 1938, uma longa carta da qual citarei um trecho:

188

Depuis que j’ai été en Espagne, que j’entends, que je lis toutes sortes de considérations sur l’Espagne, je ne puis citer personne, hors vous seul, qui, à ma connaissance, ait baigné dans l’atmosphère de la guerre espagnole et y ait résisté. Vous êtes royaliste, disciple de Drumont - que m’importe? Vous m’êtes plus proche, sans comparaison, que mes camarades des milices d’ Aragon - ces camarades que, pourtant, j’ aimais.” (CORR II: 203-204)

Apesar desse fervor da esquerda, Bernanos sente-se isolado. Abandona a

criação romanesca e dedica-se a seus Écrits de Combat. Os problemas

financeiros continuam. A experiência do terror franquista o faz compreender a

inexorabilidade da guerra que se anuncia.

Volta-se para a América do Sul, realizando seu velho sonho, muitas vezes

reiterado, de partir alhures... As razões de sua partida, ele as evocará, mais tarde,

já instalado no Brasil, em 1941:

J’ ai quitté mon pays en 1938. Je l’ ai quitté librement. Je n’ en ai pas été chassé. Je ne l’ ai pas fui non plus. (...) J’ ai quitté mon pays parce que la vérité y était devenue stérile, parce qu’ une parole libre y était aussitôt étouffée. (EE II :293)

Em 20 de julho de 1938, Bernanos, sua família e alguns amigos embarcam

para o Paraguai, com uma escala prevista no Rio de Janeiro. No Brasil, o escritor

foi acolhido entusiasticamente por Alceu Amoroso Lima, Augusto-Frederico

Schmidt e Aluisio de Salles que foram encontrá-lo a bordo do navio Flórida e o

convidaram a almoçar em Copacabana. Essa recepção calorosa determinará mais

tarde o estabelecimento, por sete anos, de Bernanos no Brasil.

O Paraguai representava, na época, para Bernanos, uma espécie de

Eldorado mítico. Criar uma colônia francesa no Paraguai constituíra, outrora, um

dos sonhos de Bernanos e de seus amigos Maxence de Colleville e Ernest de

189

Malibran. Estes dois realizaram em parte o projeto, visitando o país por volta de

1914, mas foram convocados para lutar na Primeira Guerra Mundial.

Bernanos, ao decidir se exilar, resolve viver o antigo sonho: "Je partais

pour le Paraguay, ce Paraguay que notre dictionnaire Larousse, d’accord avec

le Bottin, qualifie de Paradis Terrestre. Je n’ai pas trouvé là-bas le Paradis

Terrestre” (EEC I : 629).

O paraíso se revelou uma decepção. Dificuldades de visto de permanência,

vida cara, acolhida fria, levam-no a voltar ao Brasil, onde é acolhido com

entusiasmo.

Uma elite de intelectuais - Virgilio de Mello Franco, Alceu Amoroso Lima,

Raul Fernandes, Oswaldo Aranha, Joaquim de Salles - o acolhe e desdobra-se

para facilitar sua estada no Brasil e tornar o exílio mais suportável.

Amou o Brasil. Considerava-o uma segunda pátria espiritual. Mas não foi

um amor à primeira vista. Ele passou a amá-lo quando o compreendeu melhor,

ultrapassando clichés e preconceitos. Os brasileiros corresponderam a esse amor

desmitificando a imagem oficial de Bernanos, visto na França da época como

uma espécie de santo literário.

No Brasil, ele é evocado pelos que o conheceram como um homem que

ama a vida, os amigos e um bom vinho e não apenas como o atormentado

escritor que tinha se encontrado com o demônio, imagem predominante em

certos meios literários franceses da época.

190

Somente mais tarde, Bernanos pode entender o alcance de sua estada no

Brasil. Em 1946, na França, ele escreverá:

Depuis que je suis rentré dans mon pays, je comprends mieux qu’ autrefois que mon séjour au Brésil n’ a pas été un simple épisode de ma pauvre vie, mais qu’ il était inscrit depuis toujours dans la trame de mon destin. (CORR II: 615)

Acaso, destino, Providência Divina, pouco importa. Bernanos viveu no

Brasil durante sete anos, anos que o marcaram indelevelmente.

Seu itinerário, no Brasil: Rio de Janeiro, Itaipava, Juiz de Fora, Vassouras,

Pirapora, Barbacena e Paquetá, revelou-se uma verdadeira peregrinação pelo

interior do país, pelo sertão, à procura de uma utopia - um lugar tranqüilo, longe

das grandes cidades, onde ele pudesse trabalhar e sustentar sua numerosa família.

Pirapora, na época última estação da Central do Brasil, às margens do rio

São Francisco, representou para Bernanos um desafio para sua força e capacidade

de resistência. Lá ele encontrou, não a casa de seus sonhos, mas a que mais se

assemelhava à sua vida: “Les portes n’ y ont pas de serrures, les fenêtres pas de

vitres, les chambres pas de plafond. [...] Pour une maison ouverte, on peut dire

de cette maison qu’ elle est ouverte." (EEC I: 878-879).

A casa aberta, "la maison ouverte", parece tornar-se o símbolo da própria

vida o escritor que aceita o despojamento e afirma desejar estar, ele e seus livros,

à mercê dos que passam. Além da casa aberta, outras metáforas são empregadas

pelo escritor: a do pão comum - “Dieu veuille que je sois ce pain de ménage”

(EEC I: 869) e, dentro do mesmo campo semântico, a imagem de um forno

banal, comum.

191

Un four banal c’ est le four de tout le monde. Je ne suis pas un homme de théâtre, je n’ ai pas le préjugé des fours, je voudrais pouvoir espérer que mon l’ oeuvre fût ce four où chacun vient librement cuire son pain. (EEC I: 874)

O texto fala de "four" - forno - lugar onde o pão é assado. Four, na gíria do

meio artístico e sobretudo na de teatro, significa fracasso. Forno ou insucesso,

qualquer uma das acepções pode ser aplicada à leitura que se faça de Bernanos.

Quem considera o tempo transcorrido e os espaços percorridos, entre Sous le

soleil de Satan e Dialogues des Carmélites, não pode deixar de surpreender-se

com um desenrolar entrecortado de rupturas e de partidas, sucessos e desastres.

É importante ressaltar que foi no Brasil que ele escreveu a maior parte de

seus Écrits de Combat - sua obra política.

Cada texto corresponde aproximadamente a um lugar, como se pode

verificar no quadro que se segue:

192

ITINERÁRIO OBRAS

Itaipava - novembro, 1938 - um mês

Início de Nous autres Français

Juiz de Fora - dezembro, 1938 - janeiro, 1939 - dois meses

Scandale de la vérité - 1939

Vassouras - fevereiro - julho, 1939 - cinco meses

Nous Autres Français - 1939

Pirapora - julho,1939 - maio, 1940 - oito meses

Les Enfants humiliés, publicado em 1949.

O último capítulo de M. Ouine.

Belo Horizonte e Rio de Janeiro - junho e julho, 1940

Artigos publicados na imprensa brasileira.

Barbacena - Agosto, 1940 - junho, 1945 - cinco anos

Lettre aux Anglais - 1942

La France contre les robots -1944

Le Chemin de la Croix-des-Âmes - 1943-1945.

Paquetá - uma temporada durante o ano de 1943-1944.

Artigos publicados na imprensa brasileira

193

Bernanos mudava, freqüentemente, de casa após terminar um livro. Quando

são mencionadas as inúmeras e sucessivas mudanças do escritor, importa

ressaltar que não se trata apenas de um elemento curioso, anedótico, ou

meramente de registro biográfico. As repetições constituem um sintoma,

produzem sentidos. Outros diriam: revelam uma estrutura.

O romper, sistematicamente, com lugares, coisas ou pessoas significa

expressões plurais de uma grande ruptura, manifestações visíveis de sua visão

trágica do mundo.

Os anos de exílio, no Brasil - de 1938 a 1945 - foram extremamente

fecundos do ponto de vista intelectual, como pode ser verificado no quadro

acima.

Vale ressaltar: Les Enfants humiliés - uma espécie de diário, é um texto

escrito de 1939 a 1940 e publicado em 1949, após sua morte. E Lettre aux

Anglais é uma obra do exílio, que se apresenta, desde a escolha da forma de carta

ou cartas ligada à condição de um duplo exílio: geográfico e histórico.

Geográfico, porque escrito no Brasil, mas sobretudo histórico: a renúncia

definitiva a uma certa idéia da grandeza da França (Kohlhauer,1995).

O último capítulo de M. Ouine, considerado um dos textos mais estranhos

da literatura francesa do século XX, iniciado em 1931 foi terminado no Brasil em

1940. Publicado, primeiramente, no Rio de Janeiro, em 1943, e, posteriormente,

na França, em 1946, numa versão incompleta, conheceu a primeira versão

integral em 1955.

194

Le Chemin de la Croix-des-Âmes, coletânea de artigos publicados na

imprensa brasileira de 1940-1945, conheceu uma primeira edição em quatro

volumes de 1943 a 1945, no Brasil, antes de ser reeditada em 1948, pela Editora

Gallimard.

O exílio de Bernanos no Brasil não deve ser considerado um todo

indivisível. Sua correspondência, abrangendo o período 1938- 1945, revela duas

etapas bem distintas: antes e após o Armistício de 1940.

Em um primeiro momento, apesar das dificuldades materiais, das desilusões

inevitáveis, e das freqüentes mudanças de domicílio, o tempo decorrido entre sua

chegada - setembro de 1938 - e a rendição da França em junho de 1940 - não

constituiu, a meu ver, um período de dépaysement, de estranhamento.

Acolhido com entusiasmo por uma elite intelectual e social, em tudo

parecida com o estilo da alta classe média francesa, Bernanos freqüentava

amigos que conheciam e amavam a França e tudo fizeram para que seu exílio lhe

fosse suportável.

Se Bernanos declarou, já de volta à França, que gostaria de morrer no

Brasil, os sentimentos confiados a seu Diário (1939- 1940) são mais comedidos:

“Je ne hais pas ce pays, je ne saurais dire que je l’ aime, je l’ aimerais s’ il

pouvait m’ aimer”1 (EEC II:

824). Durante algum tempo, ele se considerava um exilado recente, em um país

completamente estranho, “ce pays absolument étranger à mon âme” (EEC II:

824). Sentindo-se cada vez mais ligado à sua pátria, refuta de antemão a 1 Não fica claro, no texto, se o autor se refere ao Brasil ou, mais especificamente a Pirapora.

195

possibilidade de ser considerado un déraciné, um desarraigado; e o próprio nome

de exílio parece-lhe um exagero: “...ce mot d’ exil est trop grand pour moi” (EEC

II: 788).

O tom muda sensivelmente após a ocupação de junho de 1940. Sente-se

isolado, humilhado e procura mais do que nunca o conforto da amizade.

“Au point où je suis, l’amitié sera peut-être demain pour moi, ma seule

patrie” declara em 1941 (CORR II: 387). Seu artigo "Brésil, terre d’amitié" (EEC

II: 1121) revela o quanto esse sentimento lhe era precioso e indispensável.

Entretanto, mesmo a amizade revelou-se impotente diante da sensação de

exílio total, inscrito no tempo e no espaço, sentimento que o dominava. “Nous

avons connu quelque chose de pire que l’exil, ou plutôt l’ exil total, lorsque

résolus à aimer plus que jamais notre peuple, nous désespérions de le

comprendre.” (EEC II: 207). De Pirapora, ele escreve ao grande amigo, o poeta

Jorge de Lima: “J’ ai la sensation de traverser l’enfer. Dans la plus profonde

humiliation et avec une honte écrasante, je viens de reprendre la conscience de

mon pays.” (CORR II: 285).

À dor, à vergonha, à humilhação que o abatem, acrescenta-se o angustiante

sentimento de estar dividido, cindido: “Car une part de moi-même est restée de l’

autre côté de l’ eau, je pense à moi, je pense à cette créature délaissée, je pense

à elle, comme à un parent lointain.” (EEC I: 862). Bernanos fala de si mesmo

como de um outro, não com desprezo, mas com distância e estranheza. Suas

crises de angústia se sucedem, crises que o obrigarão, posteriormente, a procurar

um tratamento específico no Rio de Janeiro.

196

O desânimo inicial, entretanto, foi superado e Bernanos parte,

corajosamente, para o combate por uma França livre, com as armas de que

dispunha: sua voz e seus artigos. "Je travaille beaucoup. J’ écris pour les

journaux clandestins français, pour un journal de Beyrouth et pour la

Marseillaise du Caire." (CORR II: 512), escrevia na época. Falava também

pela BBC, de Londres, mesmo que esse recurso lhe fosse doloroso: “J’ ai

répugnance à parler personnellellement à la BBC. Il est douloureux pour un

Français de ne pouvoir parler à son pays que par l’ intermédiaire de l’

étranger” (CORR II:.341).

Escrevia sobretudo artigos em francês, que eram traduzidos antes de serem

publicados na imprensa brasileira. O fato de escrever em sua língua materna

reforça a idéia de testemunho.

Derrida afirmava, em suas aulas na EHESS, em 1995, que não se pode

testemunhar em língua estrangeira, o que configuraria uma ficção. Bernanos

testemunhava e fazia tudo o que podia para ajudar a Resistência francesa. “Ce n’

est pas que je me fasse illusion sur l’ aide que je puis apporter au chef de la

Résistance française, mais en ce moment, on offre ce qu’ on peut” (CORR II:

515).

O peso do exílio, apesar dos amigos poderosos e dedicados, fazia-se sentir:

solidão, doenças, dificuldades financeiras e as mudanças de domicílio que

pontilharam sua existência. Bernanos aceita o ônus do exílio sabendo que: “L’

exil est l’ exil. Je n’ ai jamais désiré que le mien fût un exil truqué ou doré”

(CORR II: 490).

197

A peregrinação através do sertão interrompe-se durante algum tempo: os

cinco anos passados em Barbacena, onde encontrou uma certa tranqüilidade.

Participava, ativamente, através de artigos e conferências, da vida intelectual do

país.

Sua ação enriqueceu o pensamento intelectual da época, contribuindo para a

evolução política de Tristão de Athayde que declarou: “Através de Bernanos,

então vivendo no Brasil, de Chesterton e Maritain. (...) iria evoluir numa direção

que é a de hoje” (Carpeaux, 1978: 57). Bernanos, sobretudo, impediu que os

intelectuais brasileiros adotassem Pétain, como já se tinham enganado com

Franco e os franquistas “endeusados como anjos, em luta contra os republicanos

demoníacos” (Carpeaux, 1978: 82).

A voz do autor de Les Grands Cimetières sous la lune incomodou,

profundamente, com suas denúncias, muitas vezes violentas e intempestivas, mas

contribuiu para a divulgação de idéias novas e acenou com outras perspectivas no

panorama intelectual da época, freqüentemente pouco informado ou mal

informado, sofrendo as conseqüências da ditadura Vargas.

Os anos passados no Brasil concorreram para a evolução de seu pensamento

político. Bernanos evoluiu, indubitavelmente, mas não mudou de ideologia.

Continuará católico e monarquista, porém, como observa Monique Gosselin, um

evidente amadurecimento permitir-lhe-á compreender melhor os que o cercam e

sobretudo a França, sua pátria.

Durante seu exílio no Brasil, Bernanos tomou plena consciência ao mesmo

tempo da universalidade e da especificidade da civilização francesa. No

198

momento em que a França decepcionava o mundo, ele pôde constatar que a

vocação histórica da França correspondia ao que o mundo dela esperava. E essa

constatação exacerbava seu sentimento de estar duplamente exilado: "L’immense

étendue de mer qui me sépare de mon pays peut toujours être traversée;

l’obstacle infranchissable, c’est le souvenir de l’Affront." (EEC II : 26).

Quando Bernanos parecia ter terminado sua errância, instalado em Cruz-

das-Almas, o General de Gaulle insiste em chamá-lo de volta à França. “Votre

place est parmi nous”, telegrafou-lhe, no dia 16 de fevereiro de 1945, o próprio

General.

Seus amigos brasileiros tentam convencê-lo a não voltar. Bernanos decide

partir e retorna à França em junho de 1945, onde conhecerá uma outra espécie de

exílio, paradoxal e doloroso, o exílio dentro da própria pátria. Desiludido, ele

constata que apenas mudou o cenário de seu exílio. “J’ai compris depuis six mois

que le poids de l’ exil est parfois moins lourd à porter sur une terre étrangère

que dans son propre pays”, escreve ele já de volta à França (EEC II: 1115).

Ao deixar, livremente, a França em 1938, Bernanos consumara uma

separação que não permitia volta. Pergunta-se Pierre Gille:

"Por que Bernanos teria voltado à França? Ele deixou um lugar onde tinha encontrado sua verdadeira pátria espiritual, para reencontrar um país do qual se sente separado por uma espécie de divórcio moral, consumado por sua partida desde 1938 e que os acontecimentos da guerra, provavelmente, pouco atenuaram. (EEC II: 1760).

199

No pós-guerra de 1945, o escritor representava um passado muito recente

que muitos queriam esquecer. A Resistência, que ele idealizara, tinha se

transformado em um partido político. A voz de Bernanos soava anacrônica e

incomodava aqueles que desejavam esquecer um passado muito recente, onde

nem sempre a Resistência e a Colaboração foram nítidas. Fiel a suas exigências,

recusou uma embaixada, um ministério, a Academia Francesa e declinou, pela

quarta vez, receber a Légion d’Honneur.

As dificuldades financeiras persistem. A casa que abriga o escritor e sua

numerosa família é descrita como fria, gelada, sem gás, sem eletricidade e sem

água encanada - um “château de la Misère”. As mudanças se sucedem.

Ele enfrenta, em 1945, não mais uma campanha difamatória, como em

1932, por ocasião de seu rompimento com Maurras, mas um muro de silêncio, o

imenso vazio que se constituiu a sua volta. “Ce n’ est plus maintenant la solitude

qui m’ entoure, c’ est le vide. Il me semble que rien ne me répond plus, ne me

répondra jamais”, escreve em janeiro de 1946 (CORR II: 601).

Sua correspondência revela a situação insustentável em que se encontra:

"Quant à la France, elle est inhabitable pour moi. J’ y étouffe. Le régime de la

libération - je veux dire le régime issu d’ elle - se trouve aujourd’ hui en pleine

décomposition." (CORR II: 747).

Em 1947, decide instalar-se na Tunísia, um outro sonho longamente

acalentado. Desde 1943, ainda em Barbacena, escrevera a um amigo:

200

Ce que je souhaite seulement peut-être, c’ est d’ aller m’ installer, avec les miens, dans quelque coin du Maroc, et d’ y vivre comme je vis ici, avec la possibilité pourtant d’ aller passer une semaine ou deux ici, ou là. (CORR II: 525)

O que prova que o último estágio do exílio não foi uma decisão súbita, mas

um desejo há muito existente.

Bernanos lamentará sempre ter deixado o Brasil: “Combien je regrette d’

avoir quitté le Brésil! Si j’ étais encore là-bas, j’ aurais du moins la certitude d’

être utile à mon pays” (CORR II: 751), escreve em 1948, ano de sua morte.

Uma pergunta impõe-se: Por que Bernanos não retornou ao Brasil, onde era

respeitado, possuía amigos dedicados e influentes que o receberiam de braços

abertos? Várias hipóteses podem ser levantadas. Parece-me, entretanto, baseada

nas partidas e rupturas que pontilharam sua vida, que ele nunca retornava aos

lugares, mesmo amados, por onde passara. Acredito ter encontrado uma

explicação, na longa passagem em que ele fala das paisagens de sua infância e

juventude:

Je n’ ai pas revu ceux de ma jeunesse, j’ en ai préféré d’ autres, je tiens à la Provence par un sentiment mille fois plus fort et plus jaloux. (...) Pourquoi évoquerais-je avec mélancolie l’ eau noire du chemin creux, la haie qui siffle sous l’ averse, puisque je suis moi-même la haie et l’ eau noire? (EEC I: 788)

Os lugares e as pessoas passariam a fazer parte de seu ser e não precisariam

ser revisitados para continuarem amados. Não se repete sucesso. Não se repete

fracasso. Não se volta ao que passou.

201

As dificuldades habituais enfrentadas na Tunísia - falta de dinheiro, luto,

foram acrescidas pela doença do escritor, atingido por um câncer no fígado.

Nessas condições precárias, Bernanos empreende a redação de sua última obra.

De novembro de 1947 a março de 1948, gravemente enfermo, Bernanos

dedica-se a esse texto, publicado, posteriormente, sob o título de Dialogues des

Carmélites. Transportado, às pressas, para a França, morreu no Hospital

Americano de Neuilly, em 5 de julho de 1948.

A leitura dos fatos mais marcantes da vida de Bernanos revela uma

errância, que procurei ressaltar ao longo desse capítulo. Ele mesmo se definiu

como uma espécie de viajante, de vagabundo “Jamais je ne me suis plus senti un

errant, un vagabond, un clochard” (CORR II: 275) (grifo meu).

E a errância informa a vida de Bernanos. Um longo e progressivo

despojamento tornou-o solitário e livre, uma voz e um olhar, um vagabundo.

Bernanos viveu a vida como um exilado. Durante toda a vida, procurou um

lugar onde pudesse trabalhar livremente. Tudo o que ele pedia era: “Un coin,le

plus éloigné possible, où je puisse le cas échéant nourrir ma pension de famille

de ce qui pousse dans mon jardin, ou broute dans mon pré” (CORR II: 650). Essa

aspiração, dialogando com os escritos de Rousseau, permaneceu um anseio, uma

utopia nunca concretizada.

No Brasil, ele parecia ter encontrado o que mais se aproximava daquilo que

buscava incessantemente; porém as circunstâncias e o que considerava ser o seu

202

dever impeliram-no a recomeçar uma errância que somente terminou com sua

morte.

Ler sua obra através da ótica do exílio esclareceria seus aspectos

aparentemente contraditórios e permitiria compreender suas rupturas, expressão

de uma Ruptura essencial: o homem, expulso do Paraíso Terrestre, procura Deus,

que se esconde, e só o encontra através da morte.

Dialogues des Carmélites, coincidentemente, apresenta a mesma

problemática: Blanche de la Force buscou um refúgio, um lugar onde recuperar

a honra, mas procurou, sobretudo, seu lugar no mundo, sua identidade. Sua

errância faz ressoar a peregrinação de Bernanos.

E não é certamente por acaso que o autor se identifica, às vésperas da morte,

com o destino das carmelitas, discípulas de Teresa d’Ávila, acusada de ser "uma

mulher inquieta e errante" (Auclair, 1960).

Quatro figuras femininas teriam ajudado Bernanos em sua meditação

derradeira: Madame de Croissy, a vencer o medo da morte; Marie de

l’Incarnation, a superar o sentimento de desonra experimentado no pós-guerra

(Bush,1988:18); Mère Lidoine, a entregar-se inteiramente à vontade divina; e

Blanche de la Force, a dominar o terror e a angústia, através da Comunhão dos

Santos.

Quem foi Bernanos? Certamente um autor contraditório. Os que o criticavam

consideravam-no um desadaptado. Seus admiradores diziam que o exílio lhe

convinha e que ele era feito para falar do alto e de longe. Os dois julgamentos

não se excluem e até confirmam sua visão trágica do mundo: “a impossibilidade

radical de realizar uma vida que valha a pena no mundo” (Goldmann,1959:117).

203

Proponho qualificar Bernanos como o errante. Sempre longe e sempre

presente, Bernanos, no final de sua vida reconhecia: "On y réussit mieux de loin.

C' est d' ailleurs pourquoi j' ai bien envie de reprendre le bateau" (CORR II:

676).

Retomar o barco, expressão empregada em seu sentido próprio, mas,

certamente, metáfora da vida, considerada a viagem na qual estamos todos

embarcados, como disse Pascal. De porto em porto, somos todos viajantes,

queiramos ou não.

Bernanos vivenciou a errância. E o mundo lhe foi um incessante exílio.

204

6. CONCLUSÃO

Une oeuvre est éternelle, non parce qu’elle impose un sens unique à des hommes différents, mais parce qu’elle suggère des sens différents à un homme unique, qui parle toujours la même langue symbolique à des temps multiples. Barthes

Dialogues des carmélites, obra escrita no pós-guerra de 1947-1948, é um

texto nascido dos conflitos e da guerra: da Primeira Guerra Mundial, do Terror

de 1793-1794 vivenciado por Bernanos na guerra civil espanhola e da Segunda

Guerra mundial. Os diferentes terrores destes diversos momentos históricos

dialogam, articulam-se e constituem manifestações do mesmo fenômeno, de um

único Terror. Terror foi conceituado como todo e qualquer regime pautado, não

pela lei, mas pela exceção, mesmo que esta pretenda ser necessária e provisória.

Todos os regimes de terror invocaram e invocam a manutenção da ordem geral

em, detrimento da liberdade individual.

Bernanos, em uma linguagem calcada no estilo do século XVII, reescreve

um fato histórico ocorrido no século XVIII, que se repete sob a forma de

paralelismo, na França do pós-guerra. A sociedade francesa, que vivera o

vergonhoso Armistício de 1940 e a Ocupação alemã, uma vez terminada a

guerra, preocupava-se com sua reconstrução. Mas, antes de reconstruir, era

necessário proceder a uma limpeza, à l’épuration.

Neste contexto histórico, discutia-se o que se passara durante os anos

negros- les années noires (1940-1944) e indagava-se qual a atitude que se deve

manter diante da força? A vida seria mais importante do que a honra? Quem

205

colaborou com os alemães e sobreviveu? Quem fugiu? Quem resistiu ao poder e

morreu?

As carmelitas de Compiègne, em 1794, tinham-se defrontado com um

dilema análogo: como viver a fé em um momento de perturbação? Elas haviam

tentado resolver o problema, humanamente, através da astúcia da linguagem, o

que se revelou ineficaz. Condenadas à guilhotina, pelo Terror Revolucionário,

acederam a uma outra ordem, à da transcendência, através do martírio.

Bernanos aceitou escrever diálogos, para um filme, sobre este episódio e ele

se apaixonou pela idéia de examinar o martírio das carmelitas, à luz das questões

do século XX e das indagações que o atormentavam, às vésperas de sua morte.

Dialogues des carmélites permite diversas leituras ou, no dizer de Barthes,

sugere sentidos diferentes ao mesmo leitor. Minha leitura apresentou o contexto

histórico e político no qual a obra foi escrita (1947-1948) e as Figuras que atuam

como intertexto: a cidade de Compiègne, a Ordem do Carmelo e o convento das

carmelitas em Compiègne, espaços modificados pela Revolução Francesa.

O movimento revolucionário é visto, no texto, principalmente, como uma

troca de lugares. A ameaça referida no prólogo do texto: “... et nous roulerons

dans vos carrosses”, ao destacar os significantes rouler e carrosses, anuncia a

colisão de classes e a reversão dos espaços sociais. Rodar alude ao inevitável

movimento giratório da vida e carruagem seria uma metonímia dos privilégios

do poder, um dos sinais visíveis da nobreza. Nos movimentos da roda da fortuna,

os revolucionários ocupam os palacetes e conventos, os nobres são encarcerados,

condenados e executados. A rua e o anonimato tornam-se o melhor refúgio. As

206

mudanças são múltiplas e consistem em uma “reversão de situações, opiniões,

valores, sentimentos, linguagens. ” (Barthes,1980:38).

No Carmelo, a primeira grande mudança é a eleição para Priora da

burguesa Mère Lidoine, preferida à aristocrática Marie de l’Incarnation. Esta

escolha revela uma situação nova: a necessidade de contemporizar com as

autoridades revolucionárias e também a mobilidade social crescente, uma vez

que Mère Lidoine é filha de um vendedor de gado.

Foi analisado de que modo o princípio aristocrático e os valores burgueses

coexistem no denso espaço do convento, com o predomínio dos valores da

nobreza. A eleição da nova Priora possibilita, então, a manifestação de um

discurso plebeu, já existente, intensificado pela influência dos ideais

revolucionários sofrida, a contragosto, pelas religiosas. Esta modificação se

reflete na variedade de registros dos diálogos e na diversidade dos sentimentos

expressos pelas religiosas. O Carmelo mostrou-se permeável, às novas idéias,

antes de ser invadido e saqueado pela multidão e agredido pelas canções

revolucionárias. O século está presente no claustro e seus conflitos e seus muros

não são intransponíveis.

O mundo está presente no Carmelo, sobretudo, nos conflitos entre os

valores aristocráticos e burgueses, intensificados diante da contradição vivida por

Blanche de la Force, nobre e covarde. Blanche representa o elemento catalisador

da oposição entre o heroísmo exaltado de Marie de l’Incarnation e o senso

prático e comunitário da Priora.

207

A nova Priora opõe o equilíbrio e a humildade, valores antes subestimados,

às exigências do código de honra da nobreza. Ela restabelece o conceito da

verdadeira honra e explicita, a seu modo, a loucura da santidade. A aceitação do

medo torna-se, portanto, um valor, sentimentos humano, assumido pelo Cristo no

Jardim das Oliveiras, em sua agonia.

Blanche de la Force, Blanche de l'Agonie du Christ oferece o exemplo-

limite desta mudança de valores. Tendo atingido o mais baixo nível de auto-

estima, ela é a própria imagem da abjeção e da exclusão, antes de se tornar a

figura emblemática da vitória da fé, sobre o medo, propiciada pela Graça.

Blanche de la Force, em seus deslocamentos sucessivos, à procura de seu

lugar no mundo, em busca de sua identidade pessoal e social, concentra em si a

angústia e o terror diante da morte, dos quais seria a própria representação.

As carmelitas de Compiègne foram acusadas por Fouquier-Tinville,

promotor público, de conspirar contra a República e condenadas, sumariamente,

em 1794. Estas mulheres que escolheram o silêncio e o anonimato, ao serem

sacrificadas, alcançam a graça do martírio, negado a Marie de l’Incarnation e

concedido a Blanche. Graça imprevisível, porque: “Dieu choisit ou réserve qui

lui plaît” ( DC: 1718).

A errância de Blanche dialoga com o exílio de Bernanos, vivido sob a

forma de um certo nomadismo. Dialoga, sobretudo, com a visão trágica do

escritor, com o viver sob o olhar de um Deus presente, mas escondido.

“Il y a plusieurs sortes de courage, voilà ce que je pense maintenant.”

(DC:1578), dizia Blanche de la Force. Parafraseando-a, relembro que há várias

formas de exílio manifestadas no repouso, no silêncio, na errância.

208

7. BIBLIOGRAFIA

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et variantes établis par Albert Béguin. Notes par Michel Estève. Paris:

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Bridel, Jacques Chabot, Michel Estève, François Frison, Pierre Gille,

Joseph Jurt et Hubert Sarrazin, sous la direction de Michel Estève. Paris:

Gallimard, 1995 (Bibliothèque de la Pléiade).

Todas as citações, salvo indicação expressa, referem-se às edições da

Bibliothèque de la Pléiade.

O corpus específico de minha análise é o Dialogues des carmélites, obra

publicada pela Bibliothèque de la Pléiade em 1961. Minha escolha justifica-se

pela confiabilidade do texto, rigor das notas, comentários e variantes. Esta edição

da Pléiade é a fonte mais segura de que se pode dispor, no momento, enquanto

209

não for estabelecido, através de uma edição crítica que está sendo preparada, um

texto com maior rigor ecdótico.

2. Períodicos, Anais, Coletâneas

"Etudes bernanosiennes" in: La Revue des Lettres Modernes. Paris: Minard. 20

volumes a partir de 1960. Consultei especialmente o nº 19 Confrontations

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Georges Bernanos 1888-1988. Nord’. Lille: Société de littérature du Nord,

nº11, juin 1988.

Paradoxes et permanence de la pensée bernanosienne.Etudes publiées sous la

direction de Joël Pottier. Paris: Amateurs de Livres,1989.

Bernanos et le monde moderne. Textes recueillis par Monique Gosselin et Max

Milner. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1989.

Annales Historiques de la Révolution Française. Paris: nº 297, juillet-septembre,

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Georges Bernanos, Témoin. Textes publiés sous la direction de Pierrette Renard.

Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 1994.

Georges Bernanos. Europe. Paris: nº 789-790, janvier-février. 1995.

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RESUMO

Esta tese assinala diferentes formas do Terror na História comtemporânea: no período revolucionário de 1792-1794, na guerra civil espanhola, na Ocupação alemã, no pós-guerra e na guerra fria na França, que se articulam e se exprimem em Dialogues des Carmélites, peça de teatro de Georges Bernanos, re-escritura do martírio das Carmelitas de Compiègne em 1794. O objetivo foi estudar o conflito entre o princípio aristocrático e os valores burgueses, solucionado na Transcendência. Angustiada, Blanche de la Force, personagem nobre e covarde, é um símbolo de contradição e torna-se elemento catalisador entre os diferentes valores. Sua errância, à procura de um lugar no mundo, equivalência de uma busca de identidade, dialoga com o exílio de Bernanos. A leitura da obra de Bernanos sob o ângulo do tema do exílio, diferentes exílios, esclarece algumas contradições e paradoxos.

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SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues dês Carmélites, de George Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. De Letras, 1998. 263 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.

RÉSUMÉ

Cette thèse signale différents moments de la Terreur dans l’Histoire contemporaine: la période révolutionnaire de 1792-1794, la guerre d’Espagne, l’Occupation allemande, l’après-guerre et la guerre froide en France, qui s’articulent, s’entrecroisent et s’expriment dans Dialogues des Carmélites de Georges Bernanos, pièce qui réécrit le martyre des carmélites de Compiègne en 1794. Le but en a été d’étudier l’antagonisme entre le príncipe aristocratique et les valeurs bourgeoises, résolu dans la Transcendence. Angoissée, Blanche de la Frce, personnage noble et lâche, est le symbole de cette contradiction. Son errance, à la recherche de son identité, rejoint celle des nombreux déplacements de Bernanos. La lecture de l’oevre de Bernanos à la lumière du thème de l’oevre de Bernanos à la lumière du thème de l’exil expliquerait alors les contradictions et les paradoxes de cet auteur

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SILVA, Fernanda Maria de Souza. Terror e Exílio em Dialogues dês Carmélites, de George Bernanos. Rio de Janeiro: UFRJ, Fac. De Letras, 1998. 263 fl. Mimeo. Tese de Doutorado em Língua Francesa e Literaturas de Língua Francesa.

ABSTRACT

This thesis presents different forms of Terror in the Contemporary History: in the 1792-1794 revolutionary period, in the Spanish Civil War, during the German occupation, in the post-war period and during the Cold War in France. These different ‘terros’ articulate and Express themselves in Dialogues des Carmélites, a play by Georges Bernanos, re-script of the martydom of the carmelites of Compiègne in 1794. My aim was to study the conflict disclosed in the Carmel between the aristocratic principle and the bourgeois values, which was solved by transcendency. Blanche de la Force, a noble, coward anguished character is a symbol of contradiction and becomes a catalyst element between different values. Her wandering in search of a place in the world, equivalence of a serach for her own identity, interacts with Bernanos’ exile. The reading of Bernanos’ oeuvre through the exile’s point of view, through different exiles’ point of view, clarifes some of his contradictions and paradoxes.