territÓrio epistemolÓgico da geografia fÍsica...

184
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Geociências JACY BANDEIRA ALMEIDA NUNES TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA CAMPINAS 2019

Upload: others

Post on 15-Mar-2021

1 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

Instituto de Geociências

JACY BANDEIRA ALMEIDA NUNES

TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA

CAMPINAS

2019

Page 2: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

JACY BANDEIRA ALMEIDA NUNES

TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA

TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE

GEOCIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE

CAMPINAS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE

DOUTORA EM GEOGRAFIA NA ÁREA DE ANÁLISE

AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL

ORIENTADOR: PROF. DR. ANTONIO CARLOS VITTE

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA JACY BANDEIRA

ALMEIDA NUNES E ORIENTADA PELO PROF. DR.

ANTONIO CARLOS VITTE

CAMPINAS

2019

Page 3: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de Geociências

Marta dos Santos - CRB 8/5892

Nunes, Jacy Bandeira Almeida, 1966- N922t NunTerritório epistemológico da geografia física brasileira contemporânea /

Jacy Bandeira Almeida Nunes. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.

NunOrientador: Antonio Carlos Vitte. NunTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

Geociências.

Nun1. Territórios. 2. Geografia física. 3. Epistemologia (Teoria do

conhecimento). 4. Pós-graduação. I. Vitte, Antonio Carlos, 1962-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Epistemological territory of contemporary brazilian physicalgeographyPalavras-chave em inglês:TerritoriesPhysical geographyEpistemology (theory of knowledge)Post-graduationÁrea de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica TerritorialTitulação: Doutora em GeografiaBanca examinadora:Antonio Carlos Vitte [Orientador]Carlos Francisco Gerencsez GeraldinoFrancisco Sergio Bernardes LadeiraAntonio Henrique BernardesArêude BortolozziData de defesa: 31-07-2019Programa de Pós-Graduação: Geografia

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9965-2962- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6965169125366979

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

Page 4: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

AUTORA: Jacy Bandeira Almeida Nunes

TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA

CONTEMPORÂNEA

ORIENTADOR: Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte

Aprovado em: 31 / 07 / 2019

EXAMINADORES:

Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte - Presidente

Prof. Dr. Antonio Henrique Bernardes

Prof. Dr. Carlos Francisco Gerencsez Geraldino

Profa. Dra. Arlêude Bortolozzi

Prof. Dr. Francisco Sergio Bernardes Ladeira

A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se

disponível no SIGA - Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria de Pós-

graduação do IG.

Campinas, 31 de julho de 2019.

Page 5: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

Dedico,

A Deus, por ter iluminado mais uma etapa de meu

caminho em busca do conhecimento, concedendo-

me inspiração e coragem.

À minha família, por suportar uma mãe,

companheira, sogra, filha, irmã, tia que, às vezes,

parecia pela metade; pelo auxílio nas horas difíceis

numa demonstração de amor incondicional.

Em especial, à minha mãe, meu maior exemplo de

garra e perseverança.

Page 6: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Antônio Carlos Vitte, pela confiança, pela orientação dada e,

sobretudo, pela compreensão, tranquilidade e sabedoria encorajadora em relação ao

meu caminhar no processo.

Aos colegas/amigos do Dinter UNEB/UNICAMP, pela atenção, pelo carinho e pela

especial relação afetiva construída na colaboração, que muito contribuíram para a

conclusão do doutorado.

Aos professores Antônio Bernardes e Rodrigo Dutra Gomes, pelas contribuições na

qualificação, bem como pelo atendimento ao nosso convite para fazer parte da

Banca Examinadora.

Às amigas e colegas da UNEB e da Escola Estadual Padre Alfredo Haasler, em

especial, Ione Oliveira Jatobá, sempre presente, e Luci Jatobá, pela compreensão.

À minha amiga Rejane Silva Santos, pela sua presteza em contribuir.

Enfim, a todos que contribuíram direta ou indiretamente para que esta pesquisa

fosse produzida, em especial, Gisele Lima, cujo auxílio foi imprescindível para a

conclusão desta tese.

Page 7: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

As ciências lidam efetivamente com seus limites, descobrem que não podem mais responder às suas perguntas nos redutos de suas especialidades, no reduto em que se mantiveram em reprodução ampliada. Separadas pelo advento de uma necessidade analítica, as ciências reencontram sua fonte comum, a busca que fora deixada de lado em favor de um conhecimento pragmático. Todas as construções científicas procuram o conhecimento e, como tal, este não pode ser reduzido aos limites institucionais, não se encerram no recorte analítico que se impõe às ciências e a seus específicos objetos. Diante de seus limites, as ciências clamam filosofia e, paradoxalmente, a filosofia se torna científica na Academia. A unidade do saber é cobrada depois de um longo voo no rumo da fragmentação e da produção técnica. Já não se pode produzir conhecimento em Física sem filosofar, já não se pode produzir conhecimento em Geografia sem colocar a questão de uma reconstrução epistemológica e, portanto, filosófica.

(SILVEIRA & VITTE, 2010, p. 13)

Page 8: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

RESUMO

Este estudo teve como objetivo geral compreender a evolução e o território epistemológico da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência empírica as produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos e a expectativa de construir uma proposta conceitual para o construto Território Epistemológico. Ele parte das premissas de que: I) as produções intelectuais (documentos) disponíveis no ciberespaço são práticas discursivas que refletem o cognitivo e o social; II) os coletivos sociotécnicos são os programas de pós-graduação em Geografia – PPGGs; e III) o Território Epistemológico é o campo ou a arena de domínio filosófico, histórico, político, social e cognitivo, que configura a dinâmica científica de um saber ou campo disciplinar. Defende a tese de que o território epistemológico de um campo científico é produto das múltiplas contingências que repercutem na evolução epistemológica de um saber, através das mudanças evolutivas oriundas das interações históricas, sociais e cognitivas. Utiliza como argumento principal que o período que corresponde à contemporaneidade, referente aos últimos 50 anos, é marcado por múltiplas contingências na atividade científica, entre elas a desqualificação ontológica, a desconfiguração axiológica, a desestabilização epistemológica e a diversidade metodológica, que, associadas à nova ordem social em rede da “Modernidade reflexiva”, afetam as tradições de pesquisa, implicando a Ressignificação Científica. Ressignificação proveniente das mudanças evolutivas, que afetam e afetarão os modos explicativos e interpretativos, as formas de produzir o conhecimento científico, as concepções, conceitos, propósitos e valores imbricados nas práticas discursivas que estruturam a episteme e na evolução epistemológica da Geografia. O desenho metodológico, à luz dos fundamentos teóricos e metodológicos da perspectiva epistemológica construcionista e da Arqueologia do Saber, articula elementos da Análise de Documentos e da Análise do Discurso, a partir da interlocução com os fragmentos das produções intelectuais (artigos, ensaios, teses e dissertações), disponíveis no ciberespaço. Os percursos da investigação trilhados foram configurados por três caminhos sucessivos, complementares, articulados e, conforme as necessidades, oriundos da busca digital, por documentos dos autores e dos coletivos sociotécnicos. Concebe os documentos de domínio público como produções intelectuais dos Programas de Pós-Graduação em Geografia, disponíveis nas plataformas digitais oficiais, tais como plataforma lattes, catálogo de teses e dissertações da Capes.

Palavras-Chave: Território Epistemológico; Geografia Física; Evolução epistemológica; Programas de Pós-Graduação em Geografia.

.

Page 9: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

ABSTRACT

This study aimed to understand the evolution and epistemological territory of contemporary Physical Geography in Brazil, taking as empirical reference the intellectual productions of socio-technical collectives, and the expectation of constructing a conceptual proposal for the Epistemological Territory construct. Part of the premises: I) the intellectual productions (documents) available in cyberspace are discursive practices that reflect the cognitive and the social; II) the socio-technical collectives are the postgraduate programs in Geography - PPGG; II) the Epistemological Territory is the field of philosophical, historical, political, social and cognitive domain that configures the scientific dynamics of a knowledge or disciplinary field. The thesis defends that the epistemological territory of a scientific field is the product of the multiple contingencies that affect the epistemological evolution of knowledge, through the evolutionary changes arising from historical, social and cognitive interactions. It uses as its main argument that the period that corresponds to contemporaneity, referring to the last 50 years, is marked by multiple contingencies in scientific activity, including ontological disqualification, axiological deconfiguration, epistemological destabilization and methodological diversity, which, associated to the new networked social order of “Reflective Modernity”, affect the research traditions and implied the Scientific Reframing. Reframing from evolutionary changes, which affect and affected the explanatory and interpretative modes, the ways of producing scientific knowledge, the conceptions, concepts, purposes and values imbricated in the discursive practices that structure the episteme and in the epistemological evolution of Geography. The methodological design, from the theoretical and methodological foundations of the constructionist epistemological perspective and the Archeology of Knowledge, articulates elements of Document Analysis and Discourse Analysis, from the dialogue with the fragments of intellectual productions (articles, essays, theses and dissertations), available in cyberspace. The routes of the research were configured through three successive, complementary, articulated paths and derived from the digital search for documents by the authors and the socio-technical collectives. It conceives public domain documents as intellectual productions of postgraduate programs in geography, and available on official digital platforms such as: lattes platform, catalog of theses and dissertations by Capes.

Keywords: Epistemological Territory; Physical geography; Epistemological evolution; Postgraduate programs in Geography.

Page 10: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Fragmentos do livro “Epistemologia”, de Bachelard ............................... 43

Quadro 2 - Abordagens da perspectiva antidiferenciacionista da sociologia da

ciência. ...................................................................................................................... 71

Quadro 3 - Fragmentos do texto do professor Antônio Carlos Vitte ......................... 80

Quadro 4 - Fragmentos do texto “A pesquisa Geográfica”, de Pierre Monbeig ...... 128

Quadro 5 - Fragmentos do texto “A revolução quantitativa na geografia e seus

reflexos no Brasil, de Galvão e Faissol (1970) ........................................................ 139

Quadro 6 - Fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de

Manuel Correira de Andrade, 1985 ......................................................................... 141

Quadro 7 - Fragmentos do texto “As perspectivas dos estudos geográficos”, de

Chistofoletti. ............................................................................................................. 150

Quadro 8 - Árvore genealógica de orientação ........................................................ 167

Page 11: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 - Representação dos quantitativos da produção intelectual dos PPGGs, de

2012 a 2018 .............................................................................................................. 35

Mapa 2 - Localidade onde foram realizadas as pesquisas da PPGG/USP-GF, no

recorte temporal 1987 – 2018 ................................................................................. 169

Page 12: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 Configuração do Objeto de Estudo da Geografia Física Contemporânea.

................................................................................................................................ 158

Ilustração 2 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFBA, recorte temporal 2012 –

2018 ........................................................................................................................ 161

Ilustração 3 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFF, recorte temporal 2012 –

2018 ........................................................................................................................ 163

Ilustração 4 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFF, recorte temporal 2012 –

2018 ........................................................................................................................ 164

Ilustração 5 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPA, recorte temporal 2012 –

2018 ........................................................................................................................ 165

Ilustração 6 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFG, recorte temporal 2012 –

2018 ........................................................................................................................ 165

Page 13: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

AD – Análise de Discurso

AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros

ANPEGE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia

BPG – Boletim Paulista de Geografia

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

DC – Desenvolvimento do conhecimento científico

PPGGs – Programas de Pós-Graduação em Geografia

TE – Território Epistemológico

Page 14: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

Sumário

INTRODUÇÃO ................................................................................................ 15

1 Das suposições filosóficas aos percursos da investigação: o caminho

metodológico trilhado ................................................................................... 25

1.1 As suposições filosófica .................................................................................26

1.2 o desenho metodológico .................................................................................27

1.3 A análise das produções intelectuais ............................................................36

2 Evolução epistemológica do desenvolvimento científico:

contextualizando as ligações evolutivas. ................................................... 40

2.1 A elucidação conceitual ...............................................................................40

2.2 A episteme do desenvolvimento do conhecimento científico ................49

2.3 As ligações evolutivas da evolução epistemológica na Geografia .......76

3 Cenário epistêmico da Modernidade Reflexiva: o espaço-tempo das

múltiplas contingências? .............................................................................. 85

3.1 Modernidade Reflexiva e a Ressignificação Científica ..............................87

3.2 As redes na ressignificação científica ..........................................................99

3.3 De disciplinas científicas ao conceito de territórios epistemológicos .. 108

3.3.1 Elementos estruturantes do TE ........................................................ 117

4 Da territorialidade dos programas de pós-graduação ao Território

Epistemológico da Geografia Física .......................................................... 122

4.1 Trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil. ............................ 123

4.2 A episteme dos Territórios Epistêmicos (TE) da Geografia Física

contemporânea ..................................................................................................... 157

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 173

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 176

Page 15: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

15

INTRODUÇÃO

Vamos, dia a dia, superando nossas ingenuidades. Ninguém tem uma compreensão total de todas as coisas, nem mesmo a compreensão total de uma única coisa. Vamos arranhando as coisas passo a passo, momento a momento, descobrindo novos sentidos, ampliando compreensões, penetrando mais a fundo no seu mistério.

Pedrinho A. Guareschi - PUC do Rio Grande do Sul

Empreender a produção de uma tese doutoral é um processo dialógico.

Implica imersão profunda não só na interlocução com os professores/autores das

obras lidas, apropriadas e (res)significadas, mas também nas idas e vindas com as

lembranças, inseguranças e inquietações, que vão contribuindo passo a passo para

a construção do relato, elucidando as compreensões construídas e reconstruídas.

Implica, por vezes, embates institucionais, cognitivos e afetivos sobre os fatos e

fenômenos estudados. Este relato de pesquisa diz respeito aos produtos dessa

jornada e tem como intuito apresentar as reflexões e interpretações estabelecidas no

processo de construção do objeto de investigação.

Produto que surgiu do desejo inicial de desvelar a complexidade da

dinâmica científica na Geografia contemporânea através da sua evolução

epistemológica. Entretanto, com as delimitações e (res)significações contínuas das

experiências no doutorado e no percurso da investigação, bem como das

contribuições na qualificação, observamos a ocorrência de setores específicos da

experiência científica no âmbito da ciência geográfica, para as quais, Bachelard

(2006) atribuía a noção de “região epistemológica”, passou a ter como focos o

saber1 e as condições históricas, sociais e cognitivas para a existência de seu

domínio epistêmico, daí a proposta de construção conceitual do construto Território

1 Consideramos relevante esclarecer que “o saber” a que nos referimos nesta tese “trata de uma

categoria metodológica, um recurso instrumental, que significa o nível do discurso e das formulações teóricas, próprios do saber científico ou com pretensão à cientificidade. Mesmo quando não legitimado como ciência, o saber possui uma positividade e obedece a regras de aparecimento, organização e transformação que podemos descrever”. (PORTOCARRERO, 2002, p. 45)

Page 16: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

16

Epistemológico2 - TE da Geografia Física contemporânea. Um fenômeno geográfico

e imaterial desvelado nas produções intelectuais dos programas de pós-graduação

em Geografia no Brasil, na condição de coletivos sociotécnicos que criam,

consolidam e propagam TEs na dinâmica científica.

Portanto, esta tese se revela numa produção que, através do olhar

geográfico sobre a evolução e o domínio epistemológico, dialoga com o campo da

Epistemologia3, da Historiografia e da Arqueologia dos Saberes. Por isso, manifesta-

se numa interlocução entre a Geografia do Conhecimento e outros campos

científicos como a Sociologia do Conhecimento, a Filosofia da Ciência e a História

Social da Ciência, com o intuito de promover a compreensão da dinâmica científica

“no tempo presente” (SILVA, 2012, p. 221).

A celeuma que vem se desvelando nos últimos anos nos estudos sobre a

Epistemologia da Geografia e a História social do pensamento geográfico contribuiu

para a existência de um número significativo de produções neste campo científico4.

No entanto, a expectativa é superar potenciais lacunas na Epistemologia da Ciência

Geográfica sobre a temática da evolução epistemológica, pois, conforme apontam

Bernardes, Reis Jr e Dutra Gomes (2015, p. 297), “a Geografia brasileira traz uma

situação de [...] incipiência de tais discussões (epistemológicas) em âmbito nacional

[...] Com isso, muitas vezes, são percebidas certas carências nas discussões”.

Perspectiva que confirmamos nas buscas nos bancos de teses e

dissertações on-line, pois, embora apareçam estudos sobre a produção científica na

2 Metáfora científica utilizada para designar o campo ou arena de domínio epistêmico de possibilidade

de existência de um saber (temática/área de conhecimento), que, no âmbito deste estudo, é a Geografia Física. 3Que “devotam atenção às questões da racionalidade, linguagem, julgamento e evolução das ideias e

práticas científicas – por isso, aliás, a estreita relação entre epistemologia e metodologia”. (BERNARDES; REIS JR; DUTRA GOMES, 2015, p. 297) 4 Pois, segundo Reis Jr (2007, p. 3), é impossível ignorar que “Os últimos anos vêm testemunhando

uma muito legítima preocupação por parte da comunidade acadêmica ligada à Geografia. Estamos nos referindo ao cuidado coerentemente dispensado ao resgate de autores e das textualizações que eles nos deixaram como herança [...], o empreendimento tem prosperado sobremaneira, fazendo com que, por conta disso, determinados centros de pesquisa – muitos dos quais já notabilizados pelas investigações a que tradicionalmente se propõem, em campos teóricos e/ou pragmáticos da disciplina geográfica – vão adquirindo status de polo. [...] poderíamos citar o caso da Universidade Estadual Paulista, com (no campus de Rio Claro) a atuação dos Professores Sílvio Carlos Bray e José Carlos Godoy Camargo e (no campus de Presidente Prudente) a do Professor Eliseu S. Sposito. Mas também os casos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em virtude da atuação engajada da Professora Lia Osório Machado, bem como do Professor Paulo César da Costa Gomes, e da Universidade de São Paulo, pelas sabidas preocupações historiográficas do Professor Antônio Carlos Robert Moraes.”

Page 17: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

17

Geografia em nível da pós-graduação, não identificamos nenhuma referência à

episteme da Geografia Física contemporânea ou sobre território epistemológico,

temáticas que serão abordadas nesta produção. Observamos nos últimos anos um

número significativo de historiografias que se aproximaram de tais discussões e que

trazem contribuições significativas na tessitura do relato de pesquisa.

Uma das produções cujas ideias mais se aproximaram da nossa temática

foi a tese de André Nunes de Souza, da Universidade Federal da Bahia, que teve

como objetivo “analisar o percurso historiográfico do campo disciplinar e acadêmico

da Geografia na Bahia e em São Paulo” (SOUZA, 2017, p. 10). Neste trabalho, o

autor responde a “como as universidades UFBA/USP se inserem na historiografia da

geografia brasileira”. O ponto de vista é que, pela constituição de dois programas

de pós-graduação, é possível elucidar as principais influências teórico-

epistemológicas que fundamentaram sua consolidação (institucionalização da

Geografia brasileira), diante dos antecedentes político-institucionais relevantes.

Mas qual a contribuição efetiva desta tese para este estudo? Entre as

várias contribuições, destacamos duas. Primeiro, por reconhecer e indicar a força

centrífuga e centrípeta dos programas de pós-graduação em Geografia, como

instituições sociais e lugares de mediação na construção epistêmica, dando-lhes a

atribuição de coletivos sociotécnicos na consolidação disciplinar, na diversidade das

perspectivas e práticas discursivas que permeiam a produção científica brasileira.

Segundo, por apontar a necessidade de superar as tradicionais análises

“internalistas” versus “externalistas”, que marcaram a história social da ciência,

conforme denúncia Lira (2013, p. 42):

Este paradoxo fomentou o debate cujas posições aparentemente opostas foram chamadas de ‘externalistas’ por aqueles que defendiam a determinação do contexto histórico e social sobre a teoria científica e de ‘internalistas’, cujos requisitos lógicos e a coerência davam conta de explicar o apogeu e o declínio das teorias.

Destarte, a nossa tese é que a evolução epistemológica é um produto

histórico, sociológico e simultaneamente cognitivo, que envolve uma multiplicidade

de contingências, entre elas: a concepção e os propósitos da ciência em vigor, a

forma como ela foi organizada no país, a interação entre ciências, atores e ideias, o

papel do Estado e como ela foi consolidada e legitimada pela sociedade. Por isso, o

nosso argumento principal é que as múltiplas contingências, oriundas da

Page 18: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

18

modernidade reflexiva, atuam como um conjunto de circunstâncias eventuais,

articuladas, complementares e, simultaneamente, contraditórias, contemplando

diversas dimensões – filosófica, social, cognitiva, afetiva, cultural, temporal,

científica, política e econômica – que afetam a evolução epistemológica dos campos

e saberes científicos. Em outras palavras, as múltiplas contingências funcionam

como estruturas objetivas e subjetivas, internas e externas, micro e macro, que

repercutem direta ou indiretamente na práxis científica e, por isso, implicam

diretamente a evolução epistemológica.

Outra produção que contribuiu de forma significativa para a construção do

nosso objeto de investigação foi a tese de Ana Lúcia Felix dos Santos, defendida em

2008, na UFPE. Seu estudo tem como foco a análise do “subcampo política e

educação nos programas de pós-graduação em Educação do Nordeste”. Entre as

várias contribuições que, inclusive, justificam a aproximação com nosso objeto de

estudo, destacamos: I) a compreensão de que o fazer científico é um processo de

produção, distribuição e consumo dos discursos científicos; II) a elucidação de que

existe uma relação intrínseca entre saber, poder, refletir e fazer, que repercute direta

ou indiretamente no potencial de “consolidação/manutenção e subversão do campo

acadêmico”; e III) o reconhecimento do potencial das produções intelectuais como

fontes de dados relevantes. (A. L., SANTOS, 2008)

No entanto, não foram só as teses e dissertações, na condição de

produções intelectuais, que esclareceram o que já se sabia e o que precisava ser

elucidado, contribuindo para a construção do nosso objeto de pesquisa, pois a

interlocução estabelecida nas leituras das obras e artigos indicados e/ou localizados

nos periódicos on-line no transcorrer do doutorado foi significativa, tendo feito com

que nossa investigação ganhasse novos contornos, diferenciando-se das teses

consultadas, por isso, faz-se relevante destacar algumas contribuições.

Por ser um estudo que transita no campo da História Social do

Pensamento Geográfico, considerando o que Godoy (2010) aponta no texto

“Algumas considerações para uma revisão crítica da História do Pensamento

Geográfico”, a produção científica da área vem se constituindo basicamente por

duas tendências: uma em que a reconstrução histórica vai em direção ao passado,

investigando as origens das concepções de ciência existentes no presente; e outra,

que faz o processo inverso, isto é, vai do “passado em direção ao presente”,

Page 19: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

19

convictos da existência de uma correlação entre a sucessão dos acontecimentos no

tempo e no espaço, com o intuito de “confirmar o paradigma do presente”. Para

transcender tais tendências, o autor alerta que é preciso compreender “a

organização, a produção do conhecimento, as disputas institucionais de segmentos

específicos da sociedade no interior da comunidade científica e as relações de poder

que o historiador estabelece com o passado, [...] fundamentais para a compreensão

e a crítica do pensamento científico” (GODOY, 2010, p. 159), visto que, além da

dimensão geográfica, contempla as dimensões sócio-históricas e filosóficas, pois

tenciona compreender a evolução e o domínio epistemológico do presente, em que

passado distante, recente e futuro estão imbricados, coexistem, performam e se

articulam de forma contínua e dinâmica nas práticas discursivas, produzindo

sentidos.

Claval (2013) alerta que, para superar o senso comum e construir uma

história que seja coerente com a ciência geografia, é condição indispensável que o

pesquisador se ligue “à evolução das práticas, dos saberes-fazeres e dos saberes

geográficos vernaculares, indispensáveis a todos”, de forma que esse relato possa

se situar e dar sentido, isto é, uma identidade (um sentido ou significado), sua

própria existência e a existência dos grupos de que faz parte. Na fala do próprio

autor:

Traçar a história da geografia tal como ela se desenrolou desde o fim do século XIX não é somente contar a história da carreira e das pesquisas de certo número de indivíduos, é sublinhar a formação que eles receberam, os saber-fazer que eles assimilaram, as práticas das quais eles se impregnaram, é relembrar que suas atividades se inscreviam dentro de um métier – o dos geógrafo universitários. (CLAVAL, 2013, p. 4 - 5)

A ideia é que a formação, o conteúdo geográfico, o saber-fazer e as

atividades dos pesquisadores, isto é, suas interações, estão inscritas numa

temporalidade e simultaneamente numa espacialidade, produzindo territorialidades,

que se consubstanciam no métier do doutor/geógrafo e ator social. Daí o intento

desta tese, que se constitui num “discurso” da pesquisadora, segundo seu métier de

licenciada e professora de Geografia na Educação Básica e na Graduação em

Geografia da Universidade Estadual da Bahia - UNEB, Campus IV/Jacobina.

Mas por que especificamente a aplicação da discussão teórica através

dos Territórios Epistemológicos na Geografia Física? Primeiro, é relevante

Page 20: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

20

esclarecer qual acepção de território estamos utilizando, pois, segundo Haesbaert

(2004) e Saquet (2010), é notória a polissemia que acompanha as várias utilizações

da categoria e de sua conceituação. Assim, com Fernandes (2017), dialogamos com

as ponderações de Saquet (2010) em relação às características que o autor atribui à

categoria:

Estou considerando central a necessidade de se apreender o movimento em estudos territoriais, como produto de determinações (i)material, de forças econômicas, políticas e culturais em unidade e em saltos quanti-qualitativos na dinâmica socioespacial. Movimento que é relacional, processual e condições da (i)materialidade de nossa vida cotidiana. A matéria e a ideia estão em movimento constante, no qual, há superações, articulações territoriais, internas e externas a cada território, des-

continuidades, fluidez e identidade. (SAQUET, 2010, p. 22)

Diante das características apontadas pelo autor, acreditamos que a

categoria Território seja adequada para contemplar a arena de domínio histórico,

político, social que a dinâmica científica configura, considerando que é um

fenômeno relacional, processual, multidimensional e multiescalar, é imaterial e

paradoxalmente produto das determinações objetivas e subjetivas e é portador de

uma territorialidade com fronteiras epistêmicas, embates, coletivos e solo.

Segundo, o que compreendemos com olhar ‘Epistemológico’? Utilizamos

epistemologia, epistemológico5 ou epistêmico, no sentido de elucidar o que garante

efetivamente a identidade científica entre as várias positividades de existência de

um saber, o seu núcleo de articulação da explicação científica e domínio de atuação

como campo acadêmico ou área de conhecimento científico, de forma que possa

apresentar “a ‘interface’ do campo disciplinar em questão com as demais ciências

[...] na intenção de desenhar as possibilidades de tráfego epistemológico entre as

vizinhanças: trânsito de conceitos, teorias e técnicas” (REIS JR, 2014, p. 3). Isso

porque tencionamos, com a investigação, compreender o que possibilita aos

pesquisadores geógrafos responder, através de suas produções discursivas, a

questões como: Qual(is) a(s) natureza(s), os propósitos da Geografia Física que

5 No âmbito desta produção, defendemos a perspectiva adotada por Gomes (2009, p. 15) de que a

epistemologia é “um domínio aberto ao reconhecimento da pluralidade de recursos e orientações disciplinares científicas. Ser um domínio de discussões significa exatamente não estar orientado de forma exclusiva e não agir como se detivéssemos algum tipo de certeza que legitimasse, a priori, esse ou aquele caminho em detrimento de outros possíveis”. Com isso, reconhecemos a existência de Epistemologias diversas e possíveis, daí porque o intuito de uma análise epistemológica não pode ser o de “estabelecer, ao final, uma orientação que deve ser seguida por todos ou quase todos”, mas de “demonstrar que a cada momento as respostas são múltiplas e que essa pluralidade crítica é a razão mesmo da existência da ciência” (GOMES, 2009, p. 15)

Page 21: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

21

está sendo produzida nos programas de pós-graduação em Geografia no Brasil na

contemporaneidade? Qual a maneira de fazer ciência, legitimada e apropriada pelo

coletivo sociotécnico da Geografia Física? E, o quê, efetivamente, dá à produção

intelectual da Geografia Física contemporânea o elo de pertencente à Ciência

Geográfica?

E, terceiro, esclarecemos que optamos pela Geografia Física porque, de

acordo com Vitte (2011a, p. 67):

Ao longo do tempo e, principalmente, a partir do forte impacto do positivismo na Ciência Geográfica, é que houve uma profunda especialização de as disciplinas se tornarem relativamente independentes entre si e, [...] se apresentarem desconexas em relação ao sentido da Ciência Geográfica e da Geografia Física em particular. Esse fato se reflete na constante criação de associações independentes, congressos e seminários específicos de cada disciplina em outros campos de investigação, como pode ser exemplificado pela geomorfologia, com a Geologia. A geografia física contemporânea tem uma grande diversidade de assuntos. [...] vivemos o problema filosófico da identidade.

O autor revela um itinerário e um fundo epistêmico em que a Geografia

Física, como uma especialidade cognitiva (um saber) da Ciência Geográfica, busca

uma identidade científica e social na contemporaneidade, não só em função de sua

natureza interdisciplinar com fronteiras epistêmicas transitórias, mas como produto

da fragmentação da própria Geografia, que, para Vitte (2011b), está enraizada e

reverbera no interior do saber-fazer, potencializando o “isolamento” do subcampo e

de seus pesquisadores, pois instaura barreiras epistemológicas6 e dialógicas na

comunidade científica e cria a imagem de que suas especialidades são ‘disciplinas’

“independentes da própria Ciência Geográfica”, que necessitam ser “aplicáveis”,

evidenciando uma imagem social desta ciência.

Nessa perspectiva, a fala de Vitte (2011b), entre outras, reafirma e

justifica a originalidade e a demanda pela pesquisa sobre as inquietações com que

se debruça esta tese, pois o foco de produzir uma análise das condições históricas,

sociais e cognitivas para a existência científica de um sabe, implica contemplar as

mudanças ou permanências e características de seu domínio epistêmico, através

da dinâmica científica do presente, bem como no diálogo com as dimensões

6 Defendemos que tais barreiras são constituídas através da diversidade lexical, epistemológica e

metodológica estabelecidas no sentido e no significado do fazer científico de um saber.

Page 22: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

22

filosóficas, sócio- históricas, geográficas e epistemológicas da Geografia Física

Contemporânea.

Daí a consciência de que a elaboração desta produção trará também

contribuições de ordem prática, porque, na trajetória profissional como professora de

metodologia da pesquisa em Geografia, orientadora de Trabalhos de Conclusão de

Curso - TCC, membro do Comitê Científico do campus IV/UNEB/Jacobina e do

Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos/UNEB, foi possível constatar

práticas científicas e conteúdos diversos que denotavam múltiplas imagens e

situações intersubjetivas de conceber e desenvolver ações com a função de

‘prescrever’, ‘normatizar’ e ‘colonizar’ o fazer científico na ciência geográfica, que

legitima, consolida e subverte determinados subcampos em detrimentos de outros,

fragmentando a ciência geográfica.

Outro fator a ser observado é que as produções intelectuais,

principalmente TCC e IC, só apresentavam padrões e critérios de cientificidade

estabelecidos à luz da racionalidade moderna, exaltação dos procedimentos

técnicos, sem mais reflexões axiológicas (ética e valores), epistemológicas e

metodológicas. Por vezes, o uso da técnica pela técnica ou da teoria pela teoria sem

articulação com a operacionalização dos conceitos, sem o exame da identidade

científica do componente curricular, independentemente da área ou modalidade,

pode estar a serviço de interesses diversos, seja omitindo dados e informações,

seja permanecendo no óbvio ou na mera descrição, desconsiderando a essência da

realidade e do raciocínio geográfico, isso porque não são consideradas as

características e propriedades inerentes à identidade social e científica da Geografia.

Daí, os percursos investigativos trilhados serem configurados numa

espiral dinâmica com encadeamento de autoprodução e reconstrução contínua do ir

e vir das produções intelectuais (seus fragmentos) para a teoria, por meio de etapas

sucessivas, complementares, articuladas entre análise documental e do discurso,

conforme as necessidades oriundas da construção do objeto, utilizando a busca

digital por documentos dos autores e dos coletivos sociotécnicos, disponíveis nas

plataformas digitais oficiais, tais como plataforma lattes, plataforma sucupira,

catálogo de teses e dissertações da Capes, entre outras fontes utilizadas na

investigação.

Page 23: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

23

O estudo se constitui num compromisso de produzir conhecimento ético e

científico sobre um fenômeno teórico e empírico, partindo do pressuposto de que o

“ciberespaço”7 se constitui num campo empírico, não como reflexo do ‘espaço real’,

mas se consubstanciando, efetivamente, como um espaço de interação entre os

atores sociais, portando, um “Espaço do saber” continuamente “presente, mas

dissimulado, disperso, transvertido, mesclado, produzindo rizomas aqui e ali.

Emerge por meio de manchas, em pontilhado, em filigrana” (LÉVY, 1999, p. 120),

mas pouco explorado teoricamente na produção científica da Geografia, cuja

relevância informa o potencial para responder à questão que emergiu das

considerações elencadas na construção do objeto de estudo – O que as produções

intelectuais dos programas de pós-graduação em Geografia, na condição de

coletivos sociotécnicos, nos revelam sobre a evolução e o território epistemológico

da Geografia Física Contemporânea no Brasil?

Nessa ótica, esta pesquisa tem como objetivo geral compreender a

evolução e o território epistemológico da Geografia Física contemporânea no país,

através das produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos, à luz dos

fundamentos da Arqueologia do Saber. E como objetivos específicos:

Apontar as circunstâncias que fazem do Território Epistemológico um

fenômeno oriundo das múltiplas contingências que afetam evolução

epistemológica.

Descrever as mudanças, permanências e características que

consubstanciam, nutrem e disseminam o Território Epistemológico da

Geografia Física na Ciência Geográfica brasileira e contemporânea.

Relatar o que as produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos nos

revelam sobre a episteme dos TEs na Geografia Física contemporânea, que

consolida sua identidade científica e social.

Para alcançar os objetivos propostos, a composição da tese está

organizada em quatro capítulos, esta introdução e as considerações finais. Uma

estrutura que, através do trânsito dialético entre teoria, empiria e reflexão, contém

7 Ciberespaço, assim como Espaço do saber, são construtos cunhados por Pierre Lévy (1999), na

obra “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço”.

Page 24: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

24

como macroestrutura a apresentação dos fundamentos metodológicos e do

processo de investigação no primeiro capítulo; no segundo, sistematização dos

fundamentos teóricos utilizados e obtidos, através da revisão bibliográfica sobre a

evolução epistemológica do desenvolvimento do conhecimento científico; o terceiro

capítulo caracteriza o cenário epistêmico da modernidade reflexiva e as múltiplas

contingências que contribuíram para a formação dos territórios epistemológicos na

contemporaneidade; o quarto capítulo apresenta os resultados e a análise dos

dados, descrevendo a territorialidade dos programas de pós-graduação em

Geografia - PPGGs no Brasil, que contribuíram para a formação da episteme da

Geografia Física, desvelando a episteme do Território Epistemológico da Geografia

Física.

No entanto, embora cada capítulo tenha uma função na tessitura da rede

de inferências e embates que emergiram das leituras, vivência profissional,

formação , análise e interpretação dos dados coletados no ciberespaço, eles podem

ser lidos de forma independente e estão diretamente relacionados com os objetivos

propostos, e todos estabelecem questionamentos e conexões diretas entre si e com

a tese final, por meio de argumentos, suposições iniciais e de seu papel no conjunto

da obra. Por isso, alertamos que:

A dificuldade no Espaço do saber consiste em organizar o organizador, objetivar o subjetivante. O saber sobre o saber deriva de uma circularidade essencial, originária, inelutável. O conhecimento do conhecimento é, ipso facto, uma transformação do conhecimento, uma perpétua deriva, um pôr-se em situação dinâmica de reativar, reavaliar continuamente. (LÉVY, 1999, p. 163)

Essa é razão pela qual este relato não pode ser concebido como “verdade

absoluta e acabada”, mas como um conjunto de elucubrações e provocações sobre

outras tantas inferências e ‘dados’, que são fluidos, exorbitantes e transcendentes,

características intrínsecas ao “ciberespaço”. Assim, fica a sugestão de que o intento

de entrar de forma mais profunda na temática dos Territórios Epistemológicos e dos

coletivos sociotécnicos no “Espaço do saber” implica uma contínua busca pelas

atualizações dos dados.

Nessa perspectiva, esta produção intelectual teve como desenho básico o

percurso metodológico que passaremos a apresentar.

Page 25: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

25

1 Das suposições filosóficas aos percursos da investigação: o

caminho metodológico trilhado

Caminhante, não há caminho, faz-se o caminho ao andar.

António Machado

Tomamos por empréstimo a fala do poeta espanhol António Machado

para introduzir este capítulo por acreditarmos que a Metodologia da pesquisa

utilizada foi uma contínua construção pautada inicialmente por três entendimentos

que balizaram o processo. O primeiro foi o entendimento de que este capítulo

deveria responder como desvelar a evolução e o território epistemológico da

Geografia Física contemporânea do país. Em outros termos, qual o melhor

percurso metodológico para nosso objeto de investigação? Nesse sentido, o intuito

principal deste capítulo é apresentar o desenho metodológico que nos possibilitou

alcançar os objetivos propostos na investigação.

O segundo entendimento que tínhamos foi necessidade de tomar como

referência a articulação entre as suposições filosóficas8 da pesquisadora, a natureza

do nosso objeto de investigação e os procedimentos de investigação. Isso porque

construir conhecimentos científicos implica a contínua reflexão sobre os

pressupostos que orientam a visão de ciência, de método e de realidade, bem como

das várias possibilidades de interpretá-la.

8 Optamos por usar o termo suposição filosófica como bases que sustentam o “conjunto de crenças

básicas que guiam a ação” do pesquisador. Isso porque as suposições filosóficas contemplam as

principais concepções “com orientação geral sobre o mundo e sobre a natureza da pesquisa

defendidas por um pesquisador. E tais concepções são moldadas pela área da disciplina do aluno,

pelas crenças dos orientadores e dos professores em uma área do aluno e pelas experiências que

tiveram em pesquisa. Os tipos de crenças abraçadas pelos pesquisadores individuais com frequência

os conduzirão a adotar em sua pesquisa uma abordagem qualitativa, quantitativa ou de métodos

mistos. (CRESWELL, 2010, p. 28 – 29)

Page 26: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

26

E, consequentemente, o terceiro entendimento é que consideramos o

método científico como “um conjunto de concepções sobre a natureza, sobre o ser

humano e sobre o próprio conhecimento, embasando os procedimentos utilizados na

construção do conhecimento científico.” (SPINK; MENEGON, 2004, p. 65). Destarte,

este capítulo introdutório coteja, além das suposições filosóficas que fundamentaram

a pesquisa, descrever os percursos empreendidos no transcorrer da investigação.

1.1 As suposições filosófica

A principal suposição filosófica que norteou os caminhos metodológicos

percorridos nesta pesquisa está diretamente vinculada à concepção de realidade e

do real. Trabalhamos com a concepção de que a realidade é uma construção sócio-

histórica e, simultaneamente cognitiva, na qual, elementos objetivos e subjetivos

existem e se articulam de forma indissociável, contraditória, complementar e

recursiva. Pois homens e mulheres vão de forma imbricada interpretando e

ressignificando o ‘real’ e o ‘ideal’, sendo que o real na contemporaneidade, além de

ser um fenômeno humano, social, espacial, temporal, é também virtual e passível

de interpretação pela compreensão dos elementos objetivos e subjetivos,

intrínsecos às práticas discursivas humanas.

Tomamos como referência que os critérios constituídos para definir

ciência e validar o científico, tais como a existência de “evidências empíricas” ou o

“ideal positivista” de um “método único” capaz de “dar conta do real”, fazem parte da

“perspectiva do empiricismo ontológico”, na qual, segundo Corrêa (2018, p. 300), “o

real se dá a conhecer e que o que devemos fazer é apreendê-lo com nossos

sentidos e informações obtidas com base em diversas fontes”. Em contrapartida:

A adoção de uma postura construcionista implica a ressignificação da relação entre sujeito e objeto, que pressupõe a desfamiliarização da ideia cristalizada de dualidade. Há duas posturas que alimentam essa dicotomia: a) o empirismo (perspectiva exogênica), em que o objeto é a determinação última do conhecimento, sendo o objetivo da ciência a aproximação cada vez mais precisa aos objetos; b) o idealismo (perspectiva endogênica), em que as categorias de entendimentos são constitutivas da mente humana, sendo universais e necessárias para que se chegue ao conhecimento. Em contraste, na perspectiva construcionista, tanto o objeto como o sujeito são construções sócio-históricas: o modo como acessamos a realidade institui os objetos que constituem a realidade. (SPINK; MENEGON, 2004, p. 76)

Page 27: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

27

Por isso, este estudo no ensejo de transcender e diferir das concepções

substantivas da tradicional epistemologia tomou como perspectiva epistemológica o

Construcionismo e adotou encaminhamentos diversos, entre os quais destacamos: i)

contempla o ciberespaço ou o virtual como mais uma dimensão do real, assim como

as dimensões espacial e temporal; ii) considera que as produções intelectuais como

referência empírica e, simultaneamente, como práticas discursivas, portadoras de

sentidos explícitos e implícitos, que refletem não só o estilo de pensamento do(s)

autor(es) como também o coletivo de pensamento legitimado no contexto de

produção e publicação; e iii) utiliza percursos e procedimentos metodológicos

diversos e articulados, considerando que o conhecimento científico se constitui

numa construção intelectual, obtido na interlocução dinâmica, complexa e dialética

entre sujeito e objeto do conhecimento, em que o trabalho do pesquisador, além de

descrever, “interpreta o objeto que o informa”, consciente que a interpretação não

nos permite “conhecer em sua plenitude” a realidade. E, por isso, concebe “a

pesquisa científica como uma prática reflexiva e crítica, mas também como uma

prática social”. (SPINK; MENEGON, 2004, p. 65).

1.2 o desenho metodológico

O esforço empreendido foi o de compatibiliza as referências teóricas e

metodológicas, primando pela sintonia entre os elementos da pesquisa e os

procedimentos utilizados, pois, conforme nos alerta Bonin (2001, p. 12), as:

Propostas multimetodológicas devem ser construídas em articulação orgânica com o problema, os objetivos e as problemáticas teóricas da pesquisa. Isto requer assumir efetivamente a tensão entre o objeto teórico e empírico na pesquisa. É neste embate que devem surgir as eleições de métodos e técnicas, assim como o desenho efetivo dos instrumentos de captação dos dados. Estratégias [...] não podem resultar de modismos, da pura e simples reprodução de construções já realizadas, nem do acionamento burocrático de métodos e de técnicas.

Diante da recomendação da autora, optamos por um desenho

metodológico de base qualitativa que dialogou com dados quantitativos9, pela

9 Isso porque “a postura construcionista não trata mais de definir que métodos - quantitativos ou

qualitativos – têm mais possibilidades de traduzir como são de fato as coisas. Ambas as metodologias, quantitativas e qualitativas, produzem versões sobre o mundo. A opção pela vertente

Page 28: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

28

pesquisa descritiva e, simultaneamente, interpretativa dos sentidos construídos, e

por procedimentos que conjugaram um desenho multimetodológico em três

percursos complementares, recursivos e articulados.

No primeiro percurso, com o intuito de responder às questões

norteadoras: o que a evolução epistemológica do desenvolvimento do conhecimento

científico nos revela na contemporaneidade sobre o seu território epistemológico? E

por que a modernidade reflexiva, através das múltiplas contingências, provocou a

ressignificação científica? Optamos como procedimentos a Revisão Bibliográfica,

considerando que esta é reconhecida como estado da arte e tem como intuito situar

o estado atual do conhecimento sobre a temática (evolução epistemológica),

contribuindo para a construção do objeto de investigação, através da sistematização

e do diálogo com as teorias já produzidas. No tocante aos resultados obtidos neste

percurso, nós os apresentamos nos dois primeiros capítulos da tese.

O segundo percurso considera a necessidade de responder: como a

territorialidade dos programas de pós-graduação em Geografia, através das redes

discursivas consolidam, nutrem e propagam territórios epistemológicos na ciência

geográfica contemporânea? Como a evolução epistemológica na modernidade

reflexiva repercutiu no processo de formação dos Territórios Epistemológicos da

Geografia Física no Brasil? E quais as ligações evolutivas oriundas dessa

territorialidade? No esforço de elaboração de uma proposta conceitual para o

construto científico Território Epistemológico, à luz dos fundamentos teóricos

estabelecidos pelo diálogo com as proposições teóricas, conceituais e

metodológicas da “Arqueologia do saber10”, de Foucault, estabelecemos com os

procedimentos para a coleta dos dados os fundamentos da Análise Documental,

isto, considerando que:

O documento constitui, portanto, uma fonte extremamente insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante, pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinadas épocas. [...] ele permanece como o único

qualitativa em pesquisa tem talvez o mérito de tornar mais claros [...] os problemas e possibilidades de dar sentido ao mundo.” (SPINK; MENEGON, 2004, p. 78) 10

Isso porque, conforme nos aponta Portocarrero (2002, p. 48), “A história das problematizações se realiza por uma Arqueologia dos saberes e de sua integração a uma genealogia dos poderes, que permite traçar suas práticas. A história arqueológica permite delinear a forma das problematizações por meio da pesquisa do surgimento dos saberes, explicitando o nível do discurso, ao passo que a genealogia remete à prática em que se exercem as relações de poder”.

Page 29: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

29

testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente. O documento permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social. [...] graças ao documento, pode-se operar um corte longitudinal que favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos, conceitos, conhecimento, comportamentos, mentalidades, práticas etc., bem como o de sua gênese até os nossos dias. (CELLARD, 2008, p. 295)

Nosso ponto de vista coaduna com a fala de Cellard (2008), além de

elucidarmos a relevância do ‘documento’ na condição de prática discursiva, ele

apresenta o potencial para nos revelar o estilo de pensamento de seu autor e,

simultaneamente, o coletivo de pensamento legitimado num dado contexto

geográfico, social e histórico, consequentemente, fazer emergir as ligações

evolutivas.

Nessa ótica, a estratégia de coleta foi feita por busca digital em

documentos de domínio público, disponibilizados pelos programas de pós-

graduação em Geografia – PPGGs (nos periódicos on-line) e de seus atores sociais

(doutores), considerando que tais produções intelectuais (artigos e capítulos de

livros, entre outras) são práticas discursivas que produzem sentido e nos remetem

às regularidades no modo-de-ser-ver-perceber-agir do sujeito e do coletivo, além de

que:

Os documentos de domínio público são produtos sociais tornados públicos. Eticamente estão abertos para análise por pertencerem ao espaço público, por terem sido tornados públicos de uma forma que permite a responsabilização. Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. Para os grupos profissionais, situados simultaneamente no institucional e no cotidiano, o mundo das publicações é igualmente rico, permitindo acesso às coalizões de pensamento e diálogo que denominou, [...] a partir de sua análise sociocultural. (P. SPINK, 2004, p. 136)

A perspectiva que adotamos e que converge com o ponto de vista do

autor é que os documentos de domínio público são cotejados por redes discursivas

peculiares que nos remetem a um estrato específico da sociedade, no nosso caso, a

comunidade científica. E seus fragmentos (ou vestígios conforme dispõe a

arqueologia) nos revelam, através dos elementos explicativos e explanatórios

utilizados pelo autor, seus fundamentos (pressupostos teóricos e metodológicos).

Daí, a razão por que os fragmentos foram utilizados como principal unidade desta

Page 30: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

30

análise, bem como fundamentos da visibilidade11 para a “explicitação do processo

de interpretação12” e “elemento básico da produção de sentidos” (SPINK; LIMA,

2004, p. 104), Destarte, nos possibilitaram identificar as ligações evolutivas, através

“dos ditos” (sentidos explícitos – termos, conceitos etc.) e dos “não ditos” (sentidos

implícitos – pressupostos, concepções etc.), que permeiam e informam a

legitimidade discursiva dos coletivos de pensamento na contemporaneidade, isso,

tomando como referência a questão – Quais as materialidades discursivas

(fragmentos) aparecem nessa episteme? E estas materialidades nos permitiram

construir as categorias específicas e derivadas (ligações evolutivas) que foram

utilizadas na análise das produções intelectuais (resumos das teses e dissertações).

Portanto, as categorias específicas e derivadas foram construídas segundo as

afinidades (similitudes) de significação que emergiram dos fragmentos das

produções intelectuais dos autores/obras (documentos públicos) analisados nesse

segundo percurso, cujos resultados apresentamos na primeira parte do quarto

capítulo quando abordamos a territorialidade dos coletivos sociotécnicos .

No terceiro percurso investigativo, o foco concentrou-se na aplicação da

proposta conceitual de território epistemológico, além de utilizarmos como estratégia

para coleta dos dados os programas computacionais13 scriplattes e Iramuteq,

levando em consideração suas potencialidades e limitações para obtenção,

mineralização e visibilidade dos dados, articulamos elementos da Análise do

Discurso - AD para estabelecermos a interlocução entre o referencial teórico-

metodológico utilizado e as produções intelectuais (teses e dissertações) da

Geografia Física, pela análise dos resumos das produções intelectuais, disponíveis

na biblioteca digital do catálogo de teses e dissertações da Capes. Um corpus que

teve seu recorte temporal de 2012 a 2018, período disponível na plataforma.

11 Para Spink e Lima (2004, p. 104), a visibilidade é concebida como pressuposto básico da

intersubjetividade, como estratégia para assegurar o “rigor” científico da interpretação. 12

Tomamos a fala de Spink e Lima (2004) também para indicar que defendemos o ponto de vista de que: “A interpretação emerge, dessa forma, como elemento intrínseco do processo de pesquisa. Não haveria, assim, momentos distintos entre o levantamento das informações e a interpretação. Durante o percurso da pesquisa, estamos imersos no processo de interpretação.” (SPINK; LIMA, 2004, p.105)

13 Caso contrário, seriam inviabilizadas a detecção, a visualização e a análise dos

dados/informações no ciberespaço, considerando o volume e fluxo de atualização contínua dos mesmos.

Page 31: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

31

Nessa ótica, além da Análise de Documentos que apontamos no

percurso anterior, utilizamos a Análise do Discurso14, cuja construção dos dados foi

conduzida em quatro etapas, sempre articuladas e complementares na interpretação

dos fragmentos encontrados. Na primeira etapa, considerando a representatividade

intencional, de máxima heterogeneidade, num universo de 64 Programas de Pós-

Graduação em Geografia no país, estabelecemos que a representatividade seria

determinada em função dos seguintes critérios:

i) incluir os cinco primeiros cursos de pós-graduação em Geografia

criados no Brasil – USP (1971), UFRJ (1972), UFPE(1976),

UNESP(1977), UFSC (1985);

ii) após eliminar os PPGGs incluídos no item anterior, incluir os cinco

coletivos sociotécnicos com maiores índices de produção intelectual

em Geografia Física, segundo a plataforma de teses e dissertações da

Capes – UFMG (277), UFRGS (197), UFPR (165), UECE (138), UFU

(135).

iii) observar a inclusão de, no mínimo, 01 PPGG de cada região do país,

estabelecendo como prioridade para aos menores índices de produção

intelectual – UFF (76), UFG (75), UFBA (37), UFPA (36), UFRN (36).

Com isso, ficaram 15 PPGGs e passamos para a segunda etapa, que

consistiu no levantamento nos sites dos programas para rastrear os nomes dos

professores que atuavam nos respectivos programas. Dessa etapa, conseguimos

uma relação com os nomes de 142 docentes.

Na terceira etapa, com o intuito de montar uma robusta base empírica

para o corpus de análise da produção intelectual dos coletivos, recorremos à

plataforma Catálogo de teses e dissertações15 da Capes, no período de julho a

14 Para Foucault (2014, p. 143), “A análise do discurso está colocada, na maior parte do tempo, sob o

duplo signo da totalidade e da pletora. Mostra-se como os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros, se organizam em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época. Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa. Substitui-se, assim, a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam “querido dizer”, não apenas em suas palavras e seus textos, seus discursos e seus escritos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem”.

15 http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/

Page 32: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

32

agosto de 2018. Conscientes da necessidade de garantir uma maior

representatividade do corpus e contemplar tanto produções mais antigas como

recentes, atentamos para o recorte temporal disponível da produção intelectual de

cada PPGG, com maior ou menor variação entre 1 a 2 anos de 2012 a 2018,

cotejando a totalidade de 871 títulos e resumos das teses e dissertações dos

PPGGs que disponibilizaram estas informações nos links “detalhes” da plataforma

digital.

No primeiro rastreamento digital automatizado, utilizando como parâmetro

as obras inscritas (registradas) como de “Geografia Física”, obtivemos como

resposta o total de 797 produções, 435 dissertações e 362 teses. Estas produções

estavam distribuídas entre 192 orientadores do PPGGs, sendo que os 5 primeiros

deles foram Jurandir Luciano Sanches Ross (53), Magda Adelaide Lombardo (47),

José Bueno Couti (38), Adailson Avasi de Abreu (33), Ailton Luchiari (26). As

universidades com maior número de produções intelectuais inscritas foram USP

(697), UFMG (14), UFRJ (11), UNICAMP (10), UECE (8). Das 25 áreas de

concentração, sendo “Geografia Física” (151), Natureza e produção do espaço (5),

Análise Ambiental (4), Amazônia: território e ambiente (3). Resultado que foi aferido

durante dez dias seguidos com pequenas variações de 1 ou 2 produções intelectuais

para mais.

No entanto, por consideramos que os dados obtidos com a consulta

(automática do sistema de busca) não apontaram uma quantidade significativa,

procedemos a um segundo rastreamento, utilizando com indicador “Geomorfologia”,

e tivemos como resultado 1.652 produções, distribuídas em 192 programas de pós-

graduação, sendo 10 deles de Geografia. Quando inserimos o filtro “programas de

pós-graduação em geografia”, o total foi reduzido para 815 obras, número superior

às produções classificadas como de Geografia Física, curiosamente, todas oriundas

dos PPGGs, e só 311 destas produções estavam simultaneamente inscritas como

de Geomorfologia e de Geografia Física, e alguns dos mais citados

professores/orientadores foram Jurandyr Luciano Sanches (37), Cristina Helena

Ribeiro Rocha Augustin (22), Cleide Rodrigues (21), Adilson Avansi Abreu (15) e

Silvio Carlos Rodrigues (13), todos inscritos como professores permanentes nos

PPGGs. As cinco áreas de concentração mais indicadas foram “Geografia Física”

(65), “Análise Ambiental” (33), Dinâmica das Paisagens (23) e “Análise das

Page 33: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

33

paisagens e Dinâmica Territorial” (14). Das universidades: USP (179), UFMG (106),

UFRJ (46), UNESP/RIO CLARO (36), UNICAMP (32). Portanto, das 815 obras, 394

foram agregadas às 792 produções que fariam parte do corpus de investigação.

Assim como na busca anterior, no transcorrer dos dez dias de observação, a

variação foi de 1 a 2 obras para mais. Daí é possível inferir com tais resultados que

os docentes dos PPGG consideram a Ciência Geográfica uma Geociências, o que

foi confirmado no terceiro rastreamento.

No terceiro rastreamento, utilizando como descritor “Geologia”, obtivemos

como resultado 7.752 produções oriundas de 310 programas de pós-graduação, 9

deles de Geografia. Dos PPGGs, obtivemos 352 produções, sendo que 198 delas

estavam simultaneamente classificadas como de Geologia e de Geografia Física,

distribuídas entre 206 orientadores, sendo eles: Jarbas Bonetti Filho (23), Norberto

Olmiro Horn Filho (22), Deocleciano Bittencout Rosa (7) e Antônio José Teixeira

Guerra (5). Das 43 áreas de concentração, as 4 mais inscritas foram “utilização e

conservação de recursos naturais” (32), “Geografia física” (17), “Análise ambiental e

territorial do cone sul” (6) e “Espaço sociedade e ambiente” (6). Das universidades,

UFSC (90), USP (40), UFRJ (19), UFMG (15) e UFRS (14). Desse acervo,

agregamos ao corpus 154 produções. A variação durante os dez dias foi uma média

de 2 a 3 obras para mais.

Em síntese, com o rastreamento digital (sistema de busca automático),

ficou perceptível:

i. A superioridade quantitativa da produção intelectual de Geologia e

Geomorfologia, respectivamente, em relação à Geografia Física;

ii. 73% das produções intelectuais dos PPGGs são catalogadas na

plataforma Capes como pertencentes à área de conhecimento

“Geociências”, 15% pertencentes à área de conhecimento “Geografia”

e 12% aparecem, simultaneamente, em ambas as áreas.

iii. 80% desta produção eram dos PPGGs de Geografia Física da USP,

isso porque o “sistema de busca” da plataforma só informava aquelas

produções que tinham no seu conteúdo a expressão “Geografia

Física”, sendo que muitas, inclusive, não tinham qualquer conteúdo

atribuído à Geografia Física.

Page 34: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

34

iv. 75% dos 142 docentes inscritos nos sites dos PPGGs como de

orientadores de Geografia Física não aparecem na coleta das

produções.

v. E, por fim, o corpus das 1.240 produções intelectuais não indicava a

representatividade do fenômeno que seria investigado, o que implicou

a necessidade de outra forma de obter os dados que fossem

representativos.

Diante de tais resultados e com o intuito de evitar possíveis vieses,

partimos para a busca orientada (uso de filtros) como procedimento de coleta dos

dados. No banco de teses e dissertações da Capes, para cada um dos 15 PPGGs,

fizemos os seguintes procedimentos:

i. Usar o descritor “Geografia” (sem a designação de Física);

ii. Aplicação dos filtros, indicando a “Universidade ‘tal’” e “programa de

geografia ...”, com isso buscava-se especificamente a produção

intelectual de cada um dos PPGGs;

iii. Refinamos a busca usando como filtro os nomes dos

professores/orientadores inscritos pelos coletivos sociotécnicos como

atores sociais da Geografia Física.

Esses procedimentos nos permitiram obter o retorno quantitativo de 7.304

produções intelectuais de Geografia (antes de aplicar o terceiro filtro); um total de

2.206 produções intelectuais de Geografia Física (ou que foram orientadas pelos

atores sociais deste subcampo disciplinar), sendo que destas produções apenas 871

continham o link para os “detalhes” (isto é, continham os dados disponíveis para

análise – o resumo) e apresentavam o recorte temporal de 2012 a 2018. Veja no

Mapa 01 como esse quantitativo está distribuído por PPGGs, considerando o recorte

temporal.

Page 35: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

35

Mapa 1- Representação dos quantitativos da produção intelectual dos PPGGs, de 2012 a 2018

Destarte, o corpus que serviu de base descritiva de análise e suporte

para a construção da segunda parte do quarto capítulo da tese foi composto

inicialmente por 871 produções (títulos e resumo), o que corresponde a 39,5% de

um universo de 2.206 produções, registradas e classificadas pelos coletivos

sociotécnicos como de Geografia Física na plataforma digital da Capes, no recorte

temporal de 2012 a 2018.

Na quarta etapa, de posse do corpus, partimos para a análise e a

interpretação. Inicialmente a sensação foi de pânico diante da quantidade de dados

que pareciam não ter qualquer conexão. Além disso, ficou evidente que 32% dos

resumos não continham dois ou mais dos elementos indicados nas normas da ABNT

(628/2013) para o resumo informativo (finalidade, objetivos, metodologia e

resultados).

Page 36: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

36

1.3 A análise das produções intelectuais

Frente à nossa vinculação teórico-metodológica à luz da perspectiva

epistemológica construcionista e da Arqueologia do Saber, procuramos nestas

produções as orientações para proceder com a análise dos resumos das teses e

dissertações, e a questão que suscitou de imediato foi: Que fragmentos dos

resumos deveriam ser considerados para compreender as mudanças

(descontinuidades), permanências (continuidade) e características, na condição de

ligações evolutivas – relações entre fragmentos que poderiam ser legitimamente

descritas como evolução epistemológica da Geografia Física na episteme

contemporânea deste saber? E como analisá-los? Para isso, levamos em

consideração que:

O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimentos, mas também problemas teóricos. [...]. Há em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa a dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência, que fornece um suporte – demasiado mágico para poder ser bem analisado – aos fatos de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento causal (mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenômenos de semelhanças ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo – como por intermédio de um meio de propagação – unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias. Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação, sua capacidade de inovação, a incessante correlação de seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilação e de trocas); descobrir, já atuantes em cada começo, um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre atuantes. (FOUCAULT, 2014, p. 25 -26)

Na ótica apontada pelo autor, o principal foco transita entre identificar,

analisar e descrever o original e o regular quando o saber-fazer aparece (a origem),

até quando permanece (regularidades) ou quando deixa de aparecer (distinções);

nas ligações entre saberes-fazeres que estabeleceram as condições (sociais,

Page 37: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

37

históricas, cognitivas) para a possibilidade de sua existência (materialização) em

diferentes especificidade, temporalidade e espacialidade. Diante de tais proposições,

a estrutura da análise feita na investigação contemplou as seguintes características:

I) as produções intelectuais são práticas discursivas16 e estas práticas são produtos

da articulação intrínseca entre as condições sociais, históricas e cognitivas (força

das evidências, da razão e das motivações pessoais), por isso, atuam como partes

constitutivas do próprio contexto de produção; II) as práticas discursivas são

permeadas por estilos de pensamento dos autores, assim como por pensamentos

coletivos informados e legitimados pela comunidade científica; III) não é nosso

intuito apenas interpretar o conteúdo pelo conteúdo, mas descrever e elucidar os

sentidos e o significados das mudanças, permanências e características

(similaridades e distinções) que contribuíram para tecer as redes de significações

discursivas legitimadas e apropriadas, isto é, a episteme do território epistemológico.

As seguintes etapas foram percorridas no transcorrer da análise e

interpretação dos dados construídos na investigação. Na primeira etapa,

procedemos à análise exploratória inicial pela leitura flutuante de todos os resumos,

quando constatamos que a principal regularidade na estrutura dos resumos foi o

referente, objetivo geral (primário), frequentemente de forma explícita, o que

facilitou sua identificação, além de que na sua configuração poderíamos identificar o

objeto (o que), os propósitos da investigação e a temática principal. A segunda

regularidade foi o referente - procedimentos utilizados na investigação - que nos

permitiu identificar as perspectivas epistêmicas das produções intelectuais.

Na segunda etapa de análise, uma vez que nosso intuito ia além de

produzir formas de visualização dos elementos explícitos e implícitos (e suas

articulações) no cerne das produções intelectuais, pois buscávamos descrever a

episteme do Território Epistemológico da Geografia Física, utilizamos também as

orientações de Martins e Cleps Junior (2013), Portocarrero (2002) e de Spink (1998),

visto estes autores trabalharem com os fundamentos da Arqueologia do Saber.

Passamos a considerar que:

16 No âmbito deste estudo, tomamos as produções intelectuais (teses, dissertações, artigos, relatórios,

entre outros) com práticas discursivas no contexto da dinâmica científica. Sendo prática discursiva, segundo a perspectiva de Foucault, um conjunto de circunstâncias históricas produzidas em determinado espaço-tempo que “definiram, em dada época e para determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2014, p. 143).

Page 38: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

38

I) De acordo com Spink (1998), uma “análise centrada na totalidade do

discurso é demorada, [...] estes estudos têm utilizado poucos sujeitos,

[...], o poder de representar o grupo de indivíduo”, com isso e

considerando a necessidade de examinar a “materialidade discursiva”

ou o texto materialmente considerado. Daí, tomamos como unidade de

análise os fragmentos dos textos (fossem eles na forma de frase,

enunciado, palavras e conceitos, desde que significativos).

II) Diante do entendimento de que “por detrás de uma geografia material,

há sempre uma geografia discursiva [...]”, conforme nos apontam

Martins e Cleps Junior (2013, p. 70), fizemos o tratamento dos

resumos utilizando o software Iramuteq para captar na totalidade do

corpus, por instituição, as palavras com maior frequência,

acompanhado do procedimento recursivo de leitura seletiva no corpus

(os resumos), para elucidar “as condições de existência” do saber-

fazer, pois “o discurso é um edifício de longa duração construído dentro

da continuidade histórica” (MARTINS; CLEPS JUNIOR, 2013, p. 71).

Uma vez que o discurso é:

[...] um fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAUT, 2014, p. 143)

E, por isso, faz parte de uma rede de significações, que conecta estilos de

pensamento a coletivos de pensamento e, por isso, é simultaneamente contínuo e

descontínuo, é permeado por rupturas e apagamentos, avanços, retornos e

reinterpretações.

Nesse sentido, tornou-se imprescindível na atividade de análise identificar

a ligações evolutivas (cotejadas na evolução epistêmica da territorialidade dos

coletivos) e descrever a cada fragmento selecionado o porquê dessa materialidade

discursiva nesse contexto, o que, segundo Martins e Cleps Junior (2013, p. 71),

“trata de indagar [...] os campos associados ao discurso, a função e o status dele.

Enfim o discurso é a materialidade dada, mas é compreendido no tecido de relações

que o determinam.” E, ainda, frente ao alerta de que:

Page 39: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

39

A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e domínios não discursivos (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos). Tais aproximações não têm por finalidade revelar grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de causalidade. Diante de um conjunto de fatos enunciativos, a arqueologia não questiona o que pôde motivá-los [...]; não busca tampouco encontrar o que neles exprime [...] ela tenta determinar como as regras de formação de que depende – e que caracterizam a positividade a que pertence – podem estar ligadas a sistemas não discursivos: procura definir formas específicas de articulação. (FOUCAULT, 2014, p. 198)

Portanto, estes foram os fundamentos teóricos e metodológicos, bem

como o processo de construção dos dados que apresentaremos ao longo dos

próximos capítulos.

Page 40: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

40

2 Evolução epistemológica do desenvolvimento científico:

contextualizando as ligações evolutivas.

A produção do conhecimento não é um empreendimento isolado. É uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema. A proposição adequada de um problema de pesquisa exige que o pesquisador se situe nesse processo, analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua área de interesse, comparando e contrastando abordagens teórico-metodológicas utilizadas e avaliando o peso e a confiabilidade de resultados de pesquisa, de modo a identificar pontos de consenso, bem como controvérsias, regiões de sombra e lacunas que merecem ser esclarecidas. (ALVES-MAZZOTTI, 2012, p. 43)

Seguindo a perspectiva indicada por Alves-Mazzotti (2012) na epígrafe, a

inserção da revisão bibliográfica numa produção intelectual, além de situar o estado

atual das teorias sobre a temática, auxilia na construção do objeto de investigação

pela contextualização do problema, elucida a definição dos construtos e expõe os

fundamentos teórico-metodológicos que serão utilizados no transcorrer desta tese.

É a partir dessa ótica que iremos desvelar o que a evolução

epistemológica do desenvolvimento do conhecimento científico nos revela na

contemporaneidade sobre seu território epistemológico e, no “caminhar” da

construção do objeto, apresentaremos os pressupostos teóricos que guiam nossos

argumentos na defesa desta tese.

2.1 A elucidação conceitual

Inicialmente, iremos elucidar os construtos essenciais e as premissas que

defendemos para a compreensão do capítulo e, consequentemente, da tese. A

primeira elucidação é que, no levantamento inicial sobre desenvolvimento do

conhecimento científico, foi possível constatar a legitimidade discursiva e a

Page 41: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

41

fertilidade teórica da temática17. Segundo Aguiar (1991, p. 7), “Diversos organismos

voltados à problemática [...] têm dedicado esforço para a elaboração de conceitos e

métodos [...] em nível de países, para acompanhamento [...] em âmbito nacional e

para permitir análises comparativas” entre eles. Basicamente, são estudos

estatísticos voltados à questão da produtividade da ciência e da tecnologia, sua

relação com a sociedade e ainda sobre os campos científicos ou acadêmicos. No

entanto, esse não é o nosso foco, pois estabelecemos como prioridade a evolução

epistemológica, uma vez que:

O desenvolvimento do conhecimento científico, em sua trajetória de avanços e retrocessos teóricos e metodológicos, traz as marcas daquilo que Bachelard (1996) denominou “rupturas epistemológicas” e [...] forneceram aos filósofos e historiadores da ciência os principais problemas relacionados à produção do conhecimento científico na modernidade. Isso devido à necessidade de encontrar as condições do conhecimento seguro, [...] antídotos para as já desgastadas relações entre sujeito-objeto. Essa busca gerou uma verdadeira institucionalização do embate teórico e ideológico no interior das grandes áreas do conhecimento e de suas respectivas comunidades científicas. A história da ciência, no entanto, não se reduz à sucessão de “rupturas epistemológicas” tampouco à arena dos debates teóricos, às vezes tão mal frequentada por pressupostos que visam, arbitrariamente, a instituir demarcações que garantam legitimidade discursiva, domínio epistemológico e hierarquia entre áreas do conhecimento. (GODOY, 2011, p. 68)

Nossa premissa é que quando “os avanços”, na condição de mudanças

e/ou permanências dos fundamentos de um saber, que lhe garante possibilidade de

existência, acontecem principalmente no “domínio epistemológico” de uma

temática18, caracterizam-se com o que denominamos de “desenvolvimento científico

de uma temática”. Em suma, tomamos a temática do desenvolvimento do

conhecimento científico ou dinâmica científica19 como evolução epistemológica da

possibilidade de existência, ampliação e delimitação de determinado ‘saber’20. O

17 Utilizando como indicador “desenvolvimento do conhecimento científico” na plataforma on-line do

catálogo de teses e dissertações da Capes (https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/), obtivemos como retorno 1.141 produções, sendo 726 dissertações e 283 teses de doutorado, num recorte temporal de 1996 a 2018. Destas produções, apenas 10 fazem parte da produção intelectual da Geografia, pertencentes às seguintes áreas de concentração: Desenvolvimento regional (6); Geografia e gestão do território (1); Geografia Humana (1); Organização e Gestão do território (1) Regionalização e análise regional (1). Portanto, nenhuma abordava especificamente a temática na perspectiva do desenvolvimento do conhecimento científico, nem na perspectiva da Geografia Física. 18

Temática é o conjunto de ideias que consolidam a delimitação e a designação atribuída à positividade de um saber – fato científico. 19

Doravante, no âmbito desta tese, desenvolvimento científico - DC, dinâmica científica - DC ou evolução epistemológica serão considerados sinônimos. 20

O “saber” considerado como temática de investigação ou “conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem

Page 42: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

42

que, conforme nos aponta Godoy(2011), lhe garante “legitimidade discursiva”

perante uma comunidade científica, “domínio epistemológico” e um lugar na

“hierarquia entre áreas de conhecimento”. Defendemos que a evolução

epistemológica é estabelecida por “ligações evolutivas” (FLECK, 2010), ou seja, por

elos que levam à continuidade (de fundamentos, práticas, teorias, métodos etc.) e

descontinuidade (rupturas entre ideias).

As ligações evolutivas frequentemente tomam a forma de contribuições,

influências, críticas, controvérsias, contingências e demandas, sejam de fontes

históricas (eventos, acontecimentos), sociológicas (interações, consensos e

embates) ou cognitivas (a força das evidências, razões, natureza do objeto e das

motivações pessoais). Estas ligações afetam a evolução epistemológica de uma

temática, ora o seu movimento (fluxo, ritmo e/ou sentido), ora a extensão

(abrangência), ora denominação (novas especialidades). O que pode acontecer

através de novas descobertas, aproximações com outros saberes ou campos

disciplinares, resistências às inovações, introduções de novas ideias, abordagens ou

técnicas, associações, germinações, retomadas e reinterpretações de estilos de

pensamentos ou de coletivos de pensamento legitimados.

No Quadro 01, cotejamos fragmentos da obra “Epistemologia” de

Bachelard (2006), que, acreditamos, ilustram muito bem o que defendemos como

evolução epistemológica, que coaduna com a concepção do autor. No Fragmento

01, o autor, ao problematizar a questão das fronteiras epistemológicas “rígidas”

(delimitações temáticas e hierarquia entre as ciências) dos saberes nos parâmetros

de um quadro de referência único, além de reconhecer a existência de temáticas

(“conhecimento científico”) que transcendem fronteiras disciplinares rígidas, ou a

impossibilidade de enquadramento dessas temáticas no padrão disciplinar, aponta o

desenvolvimento do conhecimento científico como fenômeno, colocando em xeque o

pressuposto que acata a evolução epistemológica como algo naturalizado (“regular”

e “orgânico”), progressivo e linear. Para Bachelard (2006), essa concepção faz

parte de uma filosofia da ciência clássica (empirismo lógico) que não permite

transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Neste sentido bastante lato, o conceito de saber poderá ser aplicado à aprendizagem de ordem prática (saber fazer, saber técnico...) e, ao mesmo tempo, às determinações de ordem propriamente intelectual e teórica. É nesse último sentido que tomamos o termo ‘saber’.” (JAPIASSU, 1986, p. 15)

Page 43: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

43

desvelar as múltiplas conexões (redes de significações) que o “novo espírito

científico” potencializa.

No Fragmento 02, Bachelard (2006) ainda nos revela que a essência da

evolução epistemológica é iniciada pela ruptura entre o saber de senso comum e o

científico, quando acontece a produção das “regiões epistemológicas” – um domínio

racional das ideias, um espaço imaterial (simbólico), permeado de elementos

subjetivos. Aponta, também, a existência das (pré)ideias dispersas, antes de

transformá-las em fato científico, e a “descoberta” como um elo evolutivo.

Quadro 1- Fragmentos do livro “Epistemologia” de Bachelard

Fragmento 01 – A evolução epistemológica (2006, p. 23)

Terá o conceito de limite do conhecimento científico um sentido absoluto? Será mesmo possível traçar as fronteiras do pensamento científico? Estaremos nós verdadeiramente encerrados num domínio objetivamente fechado? Seremos escravos de uma razão imutável? Será o espírito uma espécie de instrumento orgânico, invariável como a mão, limitado como a vista? Estará ele ao menos sujeito a uma evolução regular em ligação com uma evolução orgânica? Eis muitas perguntas, múltiplas e conexas, que põem em jogo toda uma filosofia e que devem dar interesse primordial ao estudo dos progressos do pensamento científico.

Fragmento 02 – As regiões epistemológicas (2006, p. 33 e 36)

As regiões do saber científico são determinadas pela reflexão. Não as encontraremos delineadas numa fenomelogia de primeira apreciação. Numa fenomenologia de primeira apreciação, as perspectivas são afectadas por um subjetivismo implicito, que teriámos de precisar se pudessemos trabalhar um dia na ciência do sujeito cioso de cultivar os fenómenos subjetivos, [...] Que os factos heteróclitos recebem o seu estatudo de factos científicos. Que a Terra gira é, pois, uma ideia antes de ser um facto. Tal facto não tem primitivamente antes de ser um facto. Tal facto não tem primitivamente nenhum traço empírico. É necessário colocá-lo no seu lugar, num domínio racional de ideias, para ousar afirmá-lo. É necessário compreendê-lo para apreender.

Fonte: Bachelard (2006).

Ainda nessa mesma perspectiva, tem-se a “arena” ou “campo” (GODOY,

2011) onde acontece o “domínio epistemológico” ou “Região epistemológica” de

legitimação discursiva e institucionalização teórica e metodológica (BACHELARD,

2006), que transformam temáticas em “facto científico” e dão o tom do que vamos

Page 44: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

44

considerar como “Território Epistemológico” e sua constituição, nossa segunda

elucidação.

Trabalhamos com a acepção de que o TE é, de forma simultânea e

coimbricada, um espaço imaterial e relacional; uma metáfora científica, tomada da

ciência geográfica em função da sua conflitualidade, considerando que “a produção

do território imaterial parte de uma ideia situada tanto num ponto no estilo de

pensamento, que é um espaço imaterial, quanto num ponto de espaço geográfico,

que é o território material.” (FERNANDES, 2014, p.41), portanto, uma construção

conceitual que funciona como texto e contexto de atuação da evolução

epistemológica. Perspectiva que se aproxima do construto Territórios

Paradigmáticos, pois esses:

[...] são textos e ideias bem definidos, rigorosamente demarcados no campo do saber, e que não se limitam ao abstrato, porque são propositivos para a transformação da realidade. Não há textos incógnitos: todos representam posturas teórico-políticas e devem ser analisados como tal. Infelizmente, a maior parte dos autores despreza os métodos e os paradigmas, embora não possam – nunca – estar fora deles. (FERNANDES, 2014, p.42)

A terceira elucidação refere-se à episteme21 como conexões que

exprimem “os grandes discursos”, legitimados e apropriados pela própria literatura

na área, ou seja, a rede de significações que compõe o movimento intelectual22 do

pensamento coletivo sobre uma temática. Pois de acordo com Foucault, episteme

está relacionada “aos códigos fundamentais de uma cultura, os que regem sua

linguagem, seus esquemas perceptivos, seus intercâmbios, suas técnicas, seus

valores, suas práticas e as teorias, [...]”; são também as “relações que existiram em

uma dada época entre os diferentes domínios do saber, [...] a homogeneidade no

modo de formação discursiva.” (FOUCAULT, 2007, p. 11-12). Em suma, episteme é

uma rede discursiva que conecta pressupostos filosóficos, práticas, saberes,

funcionando como uma base dos saberes empíricos e teóricos, vinculados pelas

determinações temporais e espaciais que fundamentam um campo científico e

21 Segundo Haracenko e Gonçalves Junior (2015, p. 21), “a palavra episteme é encontrada nas

bibliografias ora com acento circunflexo, ora com agudo e também sem acento. Optamos, nesse texto, por deixá-la conforme foi encontrada nas referências citadas. Todavia, a professora Raimone Fagundes nos esclarece que ‘o grego não tem acento, tem marcas de duração, sílabas breves ou longas. Para a tradução, é melhor seguir as normas de acentuação gráfica da língua portuguesa, em que paroxítonas terminadas em ‘e’ não são acentuadas”. 22

Para Claval (2013 p. 13), “a ideia de movimento intelectual conceitualiza assim a noção de contexto: é o conjunto da vida intelectual de uma época que é avaliado; o enfoque tem da mesma forma uma dimensão pluridisciplinar”.

Page 45: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

45

acadêmico e lhe concede legitimidade discursiva na comunidade científica. Sua

estrutura é de uma rede de significações explicativas, interpretativas e

compreensivas, conectada às contingências históricas, sociais, espaciais, políticas e

cognitiva, fazendo parte de um substrato legitimado pelos coletivos e expresso em

teorias científicas. Por isso, estamos considerando que desvelar a episteme é

desvelar o substrato do território epistemológico, captando as ligações evolutivas

que estão diretamente vinculadas às condições históricas, sociais, cognitivas e

políticas que possibilitam ou possibilitaram a dinâmica científica na ordem de

positividade de existência das ideias. Além disso, ao optarmos pelo construto

episteme, levamos em consideração suas características, que são:

1) É um campo inesgotável e que nunca se pode dar por fechado; não tem por finalidade reconstruir o sistema de postulados ao que obedecem a todos os conhecimentos de uma época, mas recorrer um campo indefinido de relações. 2) Não é uma figura imóvel que aparece um dia e depois desaparece bruscamente, é um conjunto indefinidamente móvel de escansões, de defasagens, de coincidências que se estabelecem e se desfazem. 3) Permite captar o jogo de coerções e limitações que, em um momento dado, impõem ao discurso. 4) Não é uma maneira de recolocar a questão crítica, isto é: dada uma determinada ciência, quais são suas condições de legitimidade? (CASTRO, 2016, p. 140)

Para Castro (2016), estas são as características da episteme na ótica de

Foucault e estão intrinsecamente relacionadas à natureza do que definimos como

uma rede de significações, que pressupõe estruturação contínua e dialógica de

fundamentos filosóficos (estilo de pensamento diversos), solo ou formação

discursiva23 de um território epistemológico.

Nossa premissa é que as ‘escolhas’24 conceituais, teóricas e

metodológicas de qualquer pesquisador estão diretamente vinculadas às acepções,

propósitos (sentidos e significados), estruturas epistemológicas, orientações políticas

e ideológicas dos coletivos ou de seus atores. Vejamos:

A forma como as pesquisas são metodologicamente construídas reflete a trajetória de constituição das Ciências [...] guardam as influências de diversos atores, lideranças acadêmicas históricas ou emergentes, das instituições e de suas respectivas culturas científicas. Mais do que uma escolha individual, de expertise douta, o exercício metodológico se dá num campo científico, como afirma Bourdieu, com suas intrínsecas relações de

23 Para Foucault (2014, p. 39), a formação discursiva é “um conjunto de regras anônimas, históricas,

sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. 24

Veja que estas “escolhas” estão sempre inscritas numa episteme e são influenciadas por múltiplas contingências.

Page 46: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

46

força, de monopólio e de lutas. O que sempre estará em jogo, [...] é a capacidade técnica e o poder social de falar e agir de maneira autorizada e com autoridade sobre nossos objetos e temas, como um agente legitimado

pela ciência. (DESLANDES; IRIART, 2012, p. 2380)

O ponto de vista que defendemos e que converge com a fala dos autores

é que os coletivos não só informam, mas condicionam a dinâmica científica ao

legitimar “o quê” os pesquisadores devem pesquisar, “como” pesquisar e “qual a”

validade social e científica do saber e do discurso produzido, distribuído e

consumido. Isso porque estão relacionados às práticas discursivas25, à produção

dos sentidos e às relações de poder oriundas da proposição organizacional implícita

e legitimada pela estratificação de um ator social ou da coletividade, que exerce

liderança, seja através das bancas de exame, da seleção para admissão, das

comissões científicas de avaliação, dos conselhos editoriais, da participação em

eventos técnicos e científicos, da indicação e uso das referências teóricas, das áreas

de concentração e linhas de pesquisa, da avaliação das Instituições, entre outros

dos diversos mecanismos de controle e poder, refletindo a coexistência,

convivências e articulação de diferentes “Estilos de pensamento26” ou “matrizes

intelectuais”27 ou de heterogeneidade ou homogeneidade de enfoque, abordagens e

técnicas, pluralidade metodológica ou singularidade metodológica, diversidade ou

particularização temática, numa mesma episteme de um dado território

epistemológico.

Deslandes e Iriart (2012) expressam muito bem nosso entendimento de

que as relações de poder/saber/fazer nos coletivos são orientadas, orientam e são

indutoras das ‘opções’ teóricas e metodológicas das investigações e fundamentos

conceituais validados, no entanto, não podemos esquecer da forma das evidências,

25 A análise das formações discursivas, das positividades e do saber em suas relações com as figuras

epistemológicas e as ciências é o que se chamou, para distingui-la das outras formas possíveis de história das ciências, de análise da episteme. Suspeitar-se-á, talvez, de essa episteme ser algo assim como uma visão de mundo, uma fração de história comum a todos os conhecimentos que importaria a cada uma as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, certa estrutura do pensamento da qual os homens de uma época não poderiam escapar. (FOUCAULT, 2014, p. 249) 26

Construto utilizado por Fleck (2010) para se referir à Matriz intelectual pertencente a um

determinado autor. 27

Para Moreira (2011, p. 47), “Matrizes são as formas de pensamentos que partem de um núcleo racional, por meio do qual uma estrutura global emerge como discurso de mundo, uma estrutura matricial se distinguindo da outra justamente pela maneira como o intelectual vê e integraliza o mundo. O conceito de matriz do pensamento supõe, então, o clareamento do campo epistemológico dos pensadores. Isto é, o fundamento conceitual-ideológico de onde eles partem como raiz de base e o quadro das mediações que utilizam para organizar esse fundamento num formato discursivamente localizado.”

Page 47: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

47

da razão e da própria natureza do objeto como contingências que afetam a dinâmica

científica, por vezes, nutrindo as matrizes intelectuais e, consequentemente, a

episteme, entre outros elementos que fazem parte do TE.

Ainda nessa perspectiva, é relevante esclarecer que, embora estejamos

utilizando o construto matriz intelectual, considerando as contribuições de Moreira

(2011), como similar ao construto “estilo de pensamento” de Fleck (2010), adotamos

no âmbito desta tese que um ou outro seja um conjunto de pressupostos filosóficos

(epistêmicos, ontológicos, axiológicos, gnosiológicos e metodológicos), na condição

de produto das reflexões e articulações que fazem parte do quadro de referência do

pesquisador/doutor. Quadro de referência que o pesquisador estabelece em relação

a “ideias do seu tempo e à sua compreensão própria de mundo” (valores sociais),

assim como dos significados, motivações e propósitos que ele atribui a suas ações,

indicando as filiações teóricas e políticas segundo princípios epistemológicos que o

pesquisador utiliza como recursos estilísticos e no uso dos termos ou categorias

conceituais, nas acepções/sentidos e (auto)representações que o ator social atribui

em relação ao ser humano, ciência, realidade, sociedade, geografia, e em suas

orientações ideológicas.

Portanto, matriz intelectual refere-se ao conjunto de fundamentos

teóricos, conceituais e metodológicos que compõe o núcleo discursivo das

produções intelectuais dos pesquisadores, isto é, o seu “estilo de pensamento”. Por

isso, “é comum as matrizes brotarem e se revelarem nas obras dos autores, uma

das quais acaba por condensar seu pensamento” (MOREIRA, 2011, p. 47). O que

justifica, portanto, nossa opção pela categoria matriz intelectual ou estilo de

pensamento para desvelar a episteme do território epistemológico do

desenvolvimento científico, já que, segundo Moreira, matriz intelectual e episteme

podem ser operacionalizadas como referências perfeitas e articuladas, uma vez que:

A individualidade significa a asserção de que a matriz é a forma de elaboração original de um pensador na Geografia, distinto por seu modo de pensar e ver o geral instituído, e de como ele capta o real através da Geografia como forma de leitura do mundo (mundo que, por definição, é a sociedade em seu tempo histórico, a matriz expressando esse real na forma do pensamento). A episteme, por sua vez, significa o modo como o âmbito geral das ideias do tempo se exprime no campo específico do pensamento do pensador, e assim como ele as formaliza na forma da sua linguagem conceitual e as reproduz na sua forma própria de dialogar com o modo geral de visão de mundo do seu tempo. (MOREIRA, 2011, p. 47)

Page 48: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

48

Destarte, com base em tais proposições, podemos defender que matriz

intelectual é a ferramenta cognitiva do pesquisador28 e, simultaneamente, faz parte

do capital cultural, social e científico, que permeia, informa e implica a práxis social

dos atores. As matrizes intelectuais são mediadoras das relações saber/poder/fazer,

pois, potencialmente, podem constituir-se em mecanismos para legitimação,

consolidação ou subversão de uma temática, de uma metodologia ou abordagem,

em função da sua força para manter tradições científicas, ou mobilizar e impor

obstáculos a inclusões inovadoras (mutações científicas), ou mesmo promover

“revolução científica”. O que indica sua relevância como categoria nos estudos sobre

a evolução epistemológica, superando a antinomia internalismo e externalismo. O

que nos leva ao nosso quinto esclarecimento, oriundo do entendimento de que:

Não quer dizer um desligamento recíproco entre pensamentos, pois, antes, pensa-se numa descontinuidade do contínuo, que é própria da cultura humana. Porque individualidade e episteme se adensam no universo vocabular do pensador, sem que ele se isole e se retire para a solidão de sua caverna, antes capte na sua integralidade o pensamento do real do seu tempo a partir do modo pessoal como combina e traz para si toda a bagagem de história das ideias com que convive, trazendo para seu campo discursivo com elas a capacidade de verbalizar a realidade que vive e explica. (MOREIRA, 2011, p. 47)

Por isso, o quinto esclarecimento é que o desenvolvimento do

conhecimento científico não acontece na forma de cortes abruptos de uma episteme

para outra, mas de maneira geracional e multidimensional, em função das

articulações e coimplicações entre as múltiplas contingências (temporais, espaciais,

sociais e cognitivas), tais como as interações no interior da ciência

(incomensurabilidade e diversidade lexical, força das evidências) e entre atores e

coletivos (as redes de produção científica), principalmente pelo poder (autonomia

relativa) de intervir dos próprios atores sociais na práxis social (razões),

estabelecendo, assim, o que denominamos “condições indutoras de inovações” ou

“tradições científicas”, no cerne das matrizes intelectuais ou da episteme. Muitas

vezes, um devir marcado, não só por continuidades e descontinuidades, mas por

mudanças, retrocessos, permanências, resgates, renovações, reproduções,

apropriações, num embate contínuo entre tradição e inovação, que, por vezes,

28 Defendemos que a ferramenta cognitiva do pesquisador são as categorias conforme a ótica de

Spink e Menegon (2004, p. 79) “As categorias constituem importantes estratégias linguísticas [..] são expressas por meio de práticas discursivas, são estratégias linguísticas delineadas para conversar, explicar, organizar e dar sentido ao mundo, cujas especificidades estão vinculadas ao contexto que as produzem. Estamos nos referindo à multiplicidade com que uma categoria pode ser empregada.”

Page 49: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

49

podem ou não culminar em revolução científica ou mutações que dão origem a uma

nova especialidade cognitiva. Quem ilustra bem essa ideia é Moreira (2011, p. 21):

O período que se estende dos meados do século XIX aos meados do século XX talvez seja um dos mais ricos e contraditórios no campo do pensamento e do empírico-real na história. Transformações e permanências coexistem lado a lado em conflitos, como se a história fosse uma senhora conservadora que necessitasse mudar o mundo e mantê-lo em seu estado ao mesmo tempo. O espírito arguto, no entanto, percebe, nas entrelinhas da coexistência, como as grandes mudanças se movem e se acumulam para operar o advento do novo.

Daí a razão pela qual os argumentos que sustentamos e se estruturam

ao longo da tese e, consequentemente, deste capítulo partem do entendimento de

que os principais elementos indutores que implicam e condicionam, direta ou

indiretamente, transformações na história das ideias são os mesmos para a

manutenção, consolidação ou subversão de um campo científico ou da episteme;

pois a evolução das ideias acontece em função “(i) da dimensão individual,

biográfica, da pesquisa, (ii) do contexto em que ela se desenvolve e (iii) da lógica

das ideias que ela coloca em evidência. [...] (iv) das leituras ideológicas que se

podem fazer de todo discurso”. (CLAVAL, 2013, p. 3)

2.2 A episteme do desenvolvimento do conhecimento científico

Afinando a busca em função da delimitação temática, foi possível detectar

a amplitude e abrangência significativa da evolução epistemológica do

desenvolvimento do conhecimento científico. As principais categorias eleitas e

correlacionadas que compõem sua rede de significações são evolução, mudanças e

processo científico, classificação e fragmentação das ciências, conteúdo, estrutura

e natureza do conhecimento científico, paradigmas, programas de pesquisa e

tradições de pesquisa, racionalidade, relativismo, realismo e verdade, disciplina,

entre outros, que fazem parte de muitas discussões contemporâneas em vários

domínios científicos e acadêmicos, sendo os principais Epistemologia, Filosofia da

Ciência, História da Ciência, Estudos Sociais da Ciência, Sociologia da Ciência e do

Conhecimento Científico.

Partimos da premissa de que, além das problemáticas elencadas por

Godoy (2011) – as circunstâncias que possam garantir a produção do conhecimento

Page 50: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

50

“verdadeiro” e a conflituosa relação sujeito-objeto29 –, na evolução epistemológica,

constatamos que as principais temáticas abordadas ao longo dos últimos 50 anos

apresentaram a germinação de novos temas, avanços, retomadas e

reinterpretações, mas não observamos propriamente rupturas abruptas ou definitivas

em relação às principais problemáticas, tais como: as implicações dos fatores

externos e internos no desenvolvimento do conhecimento científico ou na evolução

do conhecimento científico; o questionamento da existência ou não da racionalidade

nas escolhas teóricas e metodológicas dos pesquisadores; a atuação e

consequências dos valores sociais e cognitivos no fazer científico, na avaliação e na

natureza do conhecimento ou das teorias científicas; se existe continuidade ou

descontinuidade, ou ambos, no progresso científico; a questão da

incomensurabilidade na comparação entre duas ou mais teorias; o papel atribuído

aos domínios científicos que trabalham com a temática, como Sociologia da Ciência

e do Conhecimento Científico, Filosofia da Ciência, História da Ciência e Estudos

Sociais das Ciências; e se este papel (dos domínios) é normativo, prescritivo,

descritivo ou ilustrativo em relação aos objetivos dos estudos, entre outras

ponderações

Destarte, foi possível detectar que estas problemáticas e seus temas

correlatos perpassam, informam e são reinterpretadas constantemente na celeuma

das discussões teóricas que compõem redes de significações teóricas sobre o

desenvolvimento científico. Com isso, foi possível sistematizá-los em cinco

diferentes gerações dos coletivos de pensamento científico, cujos elos evolutivos

principais foram as contribuições, as retomadas, os esclarecimentos e as críticas.

Isto porque fazem parte do arsenal discursivo de várias suposições diretivas de

qualquer concepção histórica, seja progressista, desenvolvimentista ou evolucionária

do conhecimento científico.

No entanto, frequentemente emergem e são utilizadas abordagens e

concepções de ciências diferentes, o que implica conteúdos, contornos e valores

divergentes no núcleo das práticas discursivas das gerações anteriores, por vezes,

sob o olhar de um ou mais domínios do saber, gerando ou retomando embates

29 Paráfrase das principais problemáticas indicadas pelo autor.

Page 51: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

51

científicos tradicionais, criando ou autorizando novos direcionamentos, introduzindo

e legitimando novas teses, conforme veremos ao longo desta seção.

Barra (2011) nos informa que, mesmo antes de 1960, tradicionalmente os

estudos sobre a História do desenvolvimento do conhecimento científico foram

marcados por duas perspectivas metodológicas de análise. Uma perspectiva

internalista, com fundamentos estabelecidos no idealismo transcendental de Kant e

no positivismo lógico, defendendo o ponto de vista de que as mudanças científicas

são oriundas das condições internas ao fazer científico. E a perspectiva externalista,

fundada na “tradição historiográfica marxista”, que atribui como causa das

revoluções científicas “os compromissos políticos, ideológicos e econômicos

dominantes.” (BARRA, 2011, p. 75)

Segundo o ponto de vista do autor, as duas implicações mais danosas

desta controvérsia foram: 1) uma notória “pobreza dos referenciais de análise

epistemológica adotada por autores partidários dos enfoques externalistas”, (p. 76),

alegando que os estudos sobre a ótica na perspectiva externalista deixaram de

considerar as oportunas e profícuas críticas endereçadas aos fundamentos do

positivismo lógico e, consequentemente, ao “incontido preconceito a toda forma de

análise tipicamente epistemológica”, e esta foi praticamente desconsiderada. 2)

Como consequência da primeira implicação, os vieses atribuídos a tais fundamentos

funcionaram como germinadores das análises tipicamente sociológicas, sem

qualquer articulação entre tais análises.

Nos estudos sob o olhar da Sociologia, basicamente Robert Merton é

considerado o fundador da primeira geração (SHINN; RAGOUET, 2008). Embora

suas teses tenham sido alvo de muitas críticas negativas, suas contribuições ainda

figuram como ligações evolutivas nos estudos contemporâneos sobre o

desenvolvimento científico. Vejamos na fala dos autores:

As investigações de Merton sobre a ciência concentram-se na ciência como organização social. As conexões entre o conteúdo da ciência e os fatores sociais são intencionalmente desconsideradas, já que são todas elas formas de reflexão epistemológica ou filosófica. Com poucas exceções, Merton também se distancia das análises acerca da ciência e da cultura. Quando ele inclui os fatores culturais em seu pensamento é em conexão com o conhecimento, e as ligações entre o conhecimento em geral e a ciência recebem pouca atenção. [...] A exploração sociológica mertoniana da ciência como organização social autoriza certos parâmetros e deslegitima

outros. (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 256)

Page 52: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

52

Para os autores, o estilo de pensamento de Merton introduz proposições

significativas para a concepção progressista e faz parte das principais orientações

consideradas sobre a temática atualmente, tais como: a ciência é tomada como

objeto de estudo da Sociologia, e como um subsistema social quase autônomo, mas

diferente de outros subsistemas como a economia e a religião; o marco da

profissionalização da ciência se dá a partir da sua institucionalização pela academia

Royal Society Londrina; a existência da comunidade científica com papéis definidos,

com normas internas e sistema de premiação, serviu como indutora do progresso

científico; e a concepção de que as descobertas experimentais e as teorias

científicas não apresentam conexões com as condições iniciais explicariam o

avanço da ciência (SHINN; RAGOUET, 2008).

Os elos evolutivos do estilo de pensamento de Merton podem ser

observados no que Shinn e Ragouet (2008) designam como “perspectiva sociológica

diferenciacionista”. De cunho basicamente funcionalista, nessa perspectiva: I) a

ciência é tomada como um sistema com normas reguladoras das práticas e

recompensas para os atores, conforme critérios estabelecidos pela comunidade

científica; II) a análise sociológica deve ter como foco elucidar as condições sociais

da atividade científica, III) à Filosofia da Ciência cabe analisar os fatores

explicativos do pensamento científico e de sua evolução; IV) os conteúdos cognitivos

das ciências são domínios da epistemologia, não da investigação sociológica; V) a

ideia da influência dos fatores sócio-históricos externos à ciência sobre os conteúdos

dos enunciados teóricos bem como das técnicas experimentais de investigação é

rechaçada e, finalmente, VI) o progresso científico (contínuo) está vinculado ao

estatuto de notoriedade e ao sistema de “estratificação da honra na ciência”, através

da maior produtividade de comunicação científica publicada.

Nas conjecturas da “perspectiva diferenciacionista”, mesmo sendo

“reducionista” da atividade científica, continuísta e cumulativa em relação ao

“progresso científico”, foram fornecidas ligações evolutivas não só sob o olhar da

Sociologia da Ciência, mas da Sociologia do conhecimento científico e dos Estudos

Sociais da Ciência e da Tecnologia para uma abordagem de “concepção produtivista

e economicista da ciência”, cujo foco principal dos embates teóricos sobre a

atividade de investigação é a quantificação da produção científica. A perspectiva

adotada é que o indicador do desenvolvimento da ciência seja estabelecido pela

Page 53: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

53

cumulatividade do conhecimento, o que institui a cientrometria “como instrumento de

medida, [...] e gestão dos processos de estratificação nas ciências [...] que permite

elaborar sistemas de avaliação das universidades, dos laboratórios de pesquisa, das

revistas, dos indivíduos e das ciências nacionais” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 44).

Não existe dúvida de que essa concepção progressista da Sociologia da

Ciência, que germina na primeira geração da História das Ideias, converge com o

coletivo de pensamento da preocupação cientificista de mensuração da realidade

objetiva, isto conforme o princípio da “redutibilidade da linguagem teórica a

condições observáveis”, como critério principal para validação do conhecimento

científico, assim como reinterpreta e legitima as ideias do sistema filosófico

funcionalista, segundo nos revelam Shinn e Ragouet (2008, p. 45):

É preciso ver nisso a influência de uma ideologia particular, [...] de uma concepção de ciência que repousa sobre duas teses. A primeira é a ideia da autonomia universitária – os pesquisadores universitários são livres e as universidades autônomas. A segunda assimila a ciência à pesquisa ‘pura’ – a ciência é um bem público que não pertence àqueles que o produzem. Essa ideologia não deixa de lembrar certos aspectos da sociologia funcionalista, teve dois efeitos práticos: pôr em novo centro as enquetes governamentais sobre P&D industrial e governamental; revelar o caráter inoportuno da mediação dos resultados da pesquisa universitária, [...] não são produtos como os outros e devido à falta de métodos pertinentes para medir as atividades dos próprios pesquisadores. Esse fato como uma consequência da aplicação cada vez mais geral dos modelos econômicos de previsão, assentados na mão de obra e nos recursos investidos, o que conduziu a considerar os inputs antes que os outputs.

Para os autores, tais acepções ideológicas, além de afetarem o fazer

científico, propagam as concepções, propósitos e valores que fundamentam a

História das Ideias e acarretam implicações não só na autonomia universitária, mas

principalmente por estabelecer e legitimar a “cultura do produtivíssimo científico”,

pois, muitas vezes, potencializa determinados aspectos (domínios científicos,

temáticas “prioritárias”, procedimentos técnicos etc.) em detrimento de outros, cria

incoerências teórico-metodológicas para atender às demandas contemporâneas,

econômicas, principalmente, e amplia dualidades como quantidade x qualidade,

pesquisa aplicada x pura, ciências naturais e exatas x ciências humanas e sociais,

estruturando uma organização social não só na ambiência universitária, mas em

todo circuito da produção científica, que utiliza e legitima um modelo de produção de

ciência e tecnológica para “os usos sociais das ciências”, em função de interesses

Page 54: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

54

ideológicos, nem sempre explícitos, mas subjacentes ao modo de produção

capitalista contemporâneo, pois:

O sistema de medida da ciência tornou-se complexo. Ao lado dos atores supranacionais, tais como OCDE, apareceram outros produtores de estatísticas: as organizações estatísticas nacionais, as instâncias ministeriais, as agências ligadas ao campo da ciência e da tecnologia [...], os pesquisadores universitários [...] e as empresas [...]. Cada um desses atores arrogou-se um papel no campo da cientometria: os ministérios e as organizações estatísticas nacionais procedem à medida de inputs a partir de enquetes, a fim de produzir dados suscetíveis de ajudá-los a tomar decisões em matéria de políticas científicas; os universitários e as firmas privadas procedem a medidas de outputs a partir de dados provindos de bancos produzidos para outros fins (principalmente bibliográficos). (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 46)

Destarte, são acepções ideológicas que passaram a permear e orientar

as políticas públicas de financiamento e instrumentalização da ciência, afetando de

forma significativa os propósitos e valores (sociais e cognitivos) que transitam e

informam suas práticas discursivas. E, consequentemente, implicando as dimensões

axiológicas, metodológicas, ontológicas e epistemológicas que estruturam a

dinâmica científica, pois “As universidades brasileiras, [...] vivem um momento de

estresse quantitativista. [...] são avaliadas pelas métricas [...] da produtividade

docente que compõem os índices que irão creditar e classificar os programas de

pós-graduação” (LEITE, et. al, 2014, p. 292). Para Leite et al. (2014) e Shinn e

Ragouet (2008), embora os indicadores da cientometria venham sendo

paulatinamente revisados e substituídos por outros mais afinados com os propósitos

atentos para o “desenvolvimento científico, ético e social” ao longo dos anos, ainda

assim, não deixa de ser fato que a “cientometria é historicamente um produto do

diferenciacionismo” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 46), oriundo da concepção

histórica progressista da ciência e de um processo discursivo econômico, pois “trata-

se de uma medida da produtividade que irá influir no status internacional de uma

instituição a partir do micro contexto individual-local” (LEITE et al., 2014, p. 292).

Para Corrêa (2018), a mercantilização dos processos acadêmicos podem ser

percebidos no âmbito da Ciência Geográfica, através das seguintes práticas:

Aumento do número de orientandos e de trabalhos publicados, especialmente em periódicos internacionais. Isso tem levado a que se publique o mesmo texto, ou pequenas variações dele, em vários periódicos, aumentando, assim, a pontuação do pesquisador.

Utilização do trabalho de seus orientandos e bolsistas para amplicar e diversificar a produção por meio do artifício da coautoria. O orientador passa a ser coautor nato, mesmo que não tenha orientado ou que a orientação seja parte de sua tarefa (lembrar-se que, mesmo sem a coautoria, o

Page 55: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

55

orientador ganha muito intelectualmente com um bom trabalho de seu orientando). Com isso o orientador pode apresentar oito ou dez trabalhos em um único congresso, aumentando sua pontuação.

Estabelecimento de rede de trocas envolvendo convites para cursos ou congressos fora do lugar de origem, aumentando assim o desempenho do programa de pós-graduação em questões como extensão universitária e relações internacionais. A qualidade dos temas abordados é de natureza secundária e não avaliável. (CORREA, 2018, p. 320)

Para o autor são estratégias que vêm permeando e influenciando o

contexto dos programas do pós-graduação, e que, ao nosso ver, coloca a evolução

científica vinculada às demandas contemporâneas que reflete o avanço do

capitalismo no âmbito da produção científica e remodela a função social das

universidades, uma vez que produz o que os autores denominam de “capitalismo

acadêmico”. Citamos:

O redesenho capitalista das universidades [...] e a contingência do capitalismo acadêmico sobre o pesquisador deslocaram a produção de conhecimento desinteressado. O deslocamento pode ter dado lugar a inovações, [...] porém contribuiu bastante para ampliar o conhecimento cumulativo, o conhecimento decorrente e derivado do conhecimento anterior, o conhecimento sobre o estado da arte em determinado subcampo, mantendo a performance medíocre da pesquisa pela pesquisa de forma a dar continuidade ao financiamento do pesquisador. Veio também a despertar o interesse em originar produtos, processo e patentes comercializáveis. A universidade redesenhada deu espaço para a pós-universidade empreendedora [...] e nela se aninhou o pesquisador empreendedor de si mesmo. (LEITE; CAREGNATO; MIORANDO, 2018, p. 36)

Os autores apresentam aspectos negativos oriundos do império do

“produtivismo”, que vem ampliando significativamente o volume, o fluxo e a

qualidade da produção científica contemporânea. O fato é que é possível conceber

também avanços, reinterpretações e retomadas em relação às contribuições da

matriz intelectual de Merton, no sentido de que possam ser utilizadas para elucidar

a dinâmica científica na contemporaneidade. Na ótica de um processo discursivo

científico, destaca-se a fala de Trindade Lima (2002, p. 152):

[...] Robert Merton apresenta as limitações da perspectiva estrutural-funcionalista de que participa, sua abordagem sobre o mundo moderno (caracterizado pelo conflito de valores e pela ambiguidade de motivações) pode ser vista como uma contribuição, inclusive pela crítica à redução do ator social ao homo economicus. Ao abordar a contribuição de Merton para a sociologia do conhecimento e da ciência, identifico como um dos temas mais relevantes o privilégio da ambivalência, característica básica das sociedades contemporâneas e da atividade científica em particular. [..], com a retomada de uma agenda de pesquisa, relevante e atual, sem pretender apresentar uma defesa do conjunto de seus julgamentos e conclusões

Page 56: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

56

sobre o tema, em relação aos quais muitas das críticas de que sua obra foi objeto são pertinente.

Observe que autora propõe que no debate sobre a ciência no mundo

contemporâneo sejam retomadas e situadas as contribuições de Robert Merton,

principalmente com o intuito de superar as dualidades – comunidade X mercado e

valores X interesses – que marcam atualmente as controvérsias científicas na área.

Paradoxalmente, a ideia é que, ao reconhecer a influência e revisar a “adesão”

direta aos valores cognitivos e sociais “na análise da atividade científica”, o

pesquisador viabilize a possibilidade de superá-los. O que para a autora constitui-se

numa lacuna presente nas abordagens da Sociologia e da História da Ciência.

Trindade Lima (2008), com uma concepção histórica mais próxima da perspectiva

desenvolvimentista, aponta que o intento deve ser o de questionar a tese

contemporânea “de que o desenvolvimento científico é uma prática social racional e

de natureza essencialmente instrumental”, daí a necessidade de “situar a atividade

científica no âmbito de um debate mais amplo, que diz respeito ao conjunto da

produção sociológica e que está presente na origem das ciências sociais”

(TRINDADE LIMA, 2008, p. 152).

Kuhn (2011) também retoma essa problemática e faz menção a Merton,

esclarecendo que os embates iniciais, que marcam as discussões sobre o

desenvolvimento científico nos estudos da ciência do século XVII, giravam em torno

da “sobreposição de duas teses” ou conjecturas da “chamada tese de Merton”. A

primeira é a tese de que “os novos problemas, dados e métodos”, são oriundos do

contexto historiográfico e seus problemas práticos, com isso, alude às “principais

razões da transformação substancial sofrida por diversas ciências ao longo do

século XVII” em relação ao movimento da ciência baconiana (KUHN, 2011, p. 137).

A segunda tese relaciona o “puritanismo” como principal influência ideológica para

justificar a introdução do “tom empírico, instrumental e utilitário”, que identifica a

ciência institucionalizada no período. Kuhn (2011), sem descartar a retomada das

teses sobre as implicações dos fatores externos e internos no desenvolvimento

científico, refuta as proposições mertonianas, alegando que as evidências históricas

da época caminham em direção contrária, afirmando que “em versões mais

cuidadosas e detalhadas”, que devem incluir esclarecimentos imprescindíveis, as

teses apresentam “argumentos que são convincentes apenas até certo ponto [...]

pois os aspectos que transformaram a teoria científica no século XVII” não estão

Page 57: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

57

diretamente relacionados às ideias balconianas, o que põe “por terra” tais teses

(KUHN, 2011, p. 137).

Na década de 1960, além das ligações evolutivas estabelecidas pelas

ideias de Robert Merton, que já transitava nas teorias sobre desenvolvimento do

conhecimento científico, estas ideias ganharam novos domínios, conteúdos e

contornos nas práticas discursivas, com a introdução de novas orientações,

circunscrevendo a segunda geração. Embora tenham acontecido rupturas

epistemológicas (principalmente em relação ao positivismo) e evolução em relação à

germinação de conteúdos, não houve propriamente rupturas em relação às

problemáticas, isso porque,

No início dos anos 60, algumas novas teorias da ciência foram desenvolvidas como alternativas ao positivismo; trata-se dos trabalhos de N.R. Hanson, P. Feyerabend, S. Toulmine, acima de tudo, T. Kunh. Essas contribuições, ainda que problemáticas em suas teses positivas, puseram termo efetivamente à hegemonia do positivismo ao revelarem que suas doutrinas centrais (tais como a cumulatividade da ciência, a redutibilidade da linguagem teórica à observacional) conflitam radicalmente com a prática real da ciência. Kuhn destacou-se [...], como figura dominante dos anos 60. Na reação a Kuhn, entrou em cena nos anos 70 uma nova geração de teóricos: I. Lakatos, L. Laudan, G. Holton, M. Hesse, J. Sneed, E. McMullin, I.B. Cohen [...]. Todos esses autores desenvolveram modelos de mudanças e progresso científico que, segundo eles, estavam baseados no, e apoiados pelo estudo empírico das obras da ciência real, por oposição aos ideais lógicos ou filosóficos de garantia epistêmica enfatizados pela tradição positivista. Por todos eles, a filosofia da ciência foi caracterizada como uma disciplina responsável por sua história. (LAUDAN et. al., 1993, p. 8)

Além da primeira geração de pensamento científico já mencionada,

considerando a fala de Laudan (1993), podemos identificar mais duas gerações das

principais referências teóricas que apresentaram avanços em relação às

“conjecturas existentes e específicas sobre os processos de mudanças científicas”.

Na segunda geração, eram notórias as vinculações ao neopositivismo,

especificamente pela participação dos principais expoentes do Círculo de Viena,

tinha também forte cunho crítico ao positivismo lógico e estreita aproximação com o

relativismo radical. Nessa direção, destacam-se os estilos de pensamento de P.

Feyerabend e de T. Kunh.

Consideramos que o embate profícuo das ideias de Thomas S. Kuhn e

Karl Popper marcou o período de transição entre as teorias da evolução

epistemológica da primeira geração para a segunda e, consequentemente, de uma

concepção histórica progressista para uma desenvolvimentista. Contemporâneos,

Page 58: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

58

ambos pertenciam ao contexto de afinidade da epistemologia anglo-saxônica, mais

especificamente no cerne do sistema filosófico do empirismo lógico, que tinha como

pilares a experimentação e a lógica e como foco o intento de “livrar o discurso

científico das ambiguidades”, isto é, adequar as teorias (lógica do raciocínio

abstrato) à linguagem matemática (mensuração) através da lógica das experiências

práticas (observação empírica). A celeuma teórica principal que marca o espaço-

tempo tinha como problemática revelar a busca por condições que determinariam

como os cientistas produziriam uma “boa ciência’”, basicamente o intento era muito

próximo aos objetivos de Merton, voltado para a construção de um “metadiscurso

prescritivo”, isto é, de prescrições para chegar a uma “boa teoria” e produzir seu

desenvolvimento.

A matriz intelectual de Karl Popper indicava a existência de “três mundos”

no esquema de funcionamento da ciência. No primeiro mundo, aparecem os objetos

físicos (no caso, os fatos e os fenômenos); no segundo, estão os estados mentais e

de consciência, isto é, os pesquisadores que interagem com os objetos do primeiro

mundo; e no terceiro, os conteúdos objetivos do pensamento (teorias, hipóteses, leis

científicas etc.), ou seja, o produto das interações dos cientistas com os objetos

físicos, que poderia ser normativo ou prescritivo. Expressando críticas ao método

indutivo, o autor aponta o método científico dedutivo, alegando que a racionalidade

da ciência opera na forma do “silogismo dedutivo” – do geral para o particular.

Concebe a capacidade de os filósofos da ciência formularem normas e critérios

para a verificação empírica das hipóteses, teorias, leis científicas etc.. Karl Popper

ainda propõe que só é científico o que for passível de falsificação, portanto, o critério

de cientificidade é o “falsificacionismo”, procedimento metodológico que consiste em

coletar evidências suficientes para testar se a teoria é verdadeira ou falsa. Ainda

nesse sentido, o autor aponta que na atividade científica existem dois contextos nos

quais os pesquisadores chegam à sua teoria, contexto da justificação e o da

descoberta, sendo que supervaloriza o contexto de justificação, em relação ao

desenvolvimento científico. Segundo Lakatos (1979, p. 112),

Para Popper, a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn, a mudança – de um ‘paradigma’ a outro – é uma conversão mística, que não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança religiosa. O choque entre Popper e Kunh não se

Page 59: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

59

verifica em torno de um mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teórica, mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. Assim, a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não intencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos (‘estudantes-revolucionários’).

Lakatos (1979), além de elencar argumentos para justificar a matriz

intelectual de Popper, reinterpreta sua posição, defendendo que existem diferentes

estágios de desenvolvimento científico; e quando expressa o termo “ciências sociais

subdesenvolvidas”, coloca-se contrário às críticas formuladas por Kuhn, destacando

que para Popper as mudanças científicas não são “crença religiosa” ou “credo

político”, mas um processo racional que acontece no contexto da descoberta. Ainda

segundo Lakatos (1979), o desenvolvimento científico é cumulativo, progressivo e

acontece no contexto da justificação. Em tempo, acusa Kuhn de não compreender

“uma posição mais sofisticada” sobre as proposições de Popper e, com isso “recair

no irracionalismo”. Embora aconteça a germinação de conteúdos e expresse o

termo “desenvolvimento científico”, este é concebido como similar à acepção de

progresso, e os temas que dão o tom das problemáticas ainda giram em torno da

racionalidade, verdade e realismo. Portanto, o estilo de pensamento de Lakatos não

rompe definitivamente com as concepções da geração anterior, mas circunscreve o

cerne discursivo da segunda geração, que, segundo nos aponta Vitte (2009a, p. 94):

Alguns dos conceitos comumente empregados quando se fala em mudança científica, como, por exemplo, revolução científica, mudança de paradigma e a incomensurabilidade, foram desenvolvidas por Thomas Kuhn (1922 – 1996) na década de 1960. Sua obra mais importante, a Estrutura das Revoluções Científicas, publicada pela primeira vez em 1962, provocou impactos sobre a comunidade científica de então e continua a provocá-los, embora com intensidade atenuada, oferecendo uma alternativa ao modelo de progresso científico de Karl Popper, positivista e realista convergente. Em matéria de progresso científico, Kuhn parece ser uma referência.

Em síntese, as teses defendidas por T. Kuhn, apesar de serem “uma

referência”, conforme aponta a fala de Vitte (2009a), são alvo de inúmeras críticas

e apresentam uma reflexividade no próprio discurso, pois produz a evolução

epistemológica nos discursos expressos em suas três principais obras. Isso porque

é possível constatar a inserção de novos conteúdos, direcionamentos e elucidação

para muitas das problemáticas mencionadas no início desta seção, evidenciando o

Page 60: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

60

avanço em relação às teorias introduzidas na primeira geração que passaram a ser

os fios do que irão compor as futuras discussões teóricas.

No livro “A tensão essencial”, com o objetivo de apresentar “melhor” sua

concepção de “desenvolvimento científico”, o autor traz uma organização com 14

ensaios, onde fica evidente que o intuito maior foi esclarecer dúvidas, responder à

maioria das críticas e, simultaneamente, reafirmar as descobertas comunicadas em

sua obra “A estrutura das revoluções científicas”. Vejamos o que ele aponta sobre

desenvolvimento científico:

Embora tenha sido escrito apenas no fim de 1961 [...] O desenvolvimento científico depende em parte de um processo de mudança não cumulativa ou revolucionária. Algumas revoluções são amplas, tais como as associadas a nomes como Copérnico, Newton ou Darwin, mas, em sua maioria, são consideravelmente pequenas, como a descoberta do oxigênio ou do planeta Urano. O prelúdio usual às mudanças desse tipo é, a meu ver, a consciência de anomalias, de uma ocorrência ou de um conjunto de ocorrências que não se ajustam aos modos existentes de ordenação dos fenômenos. As mudanças que daí resultam exigem que se coloque um novo chapéu pensante, capaz de transformar o anômalo no esperado, mas que, nesse processo, também altere a ordem que será exibida por outros fenômenos que antes não eram problemáticos. (KUHN, 2011, p. 17)

Para o autor, o desenvolvimento científico é o produto das mudanças

científicas não cumulativas, mas descontínuas. O progresso científico passou a ser

revolucionário, e as revoluções científicas são oriundas da inadequação ou de

anomalias na dinâmica científica que colocam as ferramentas cognitivas como

insuficientes para responder às demandas da própria ciência ou dos novos

temas/problemas que surgem do contexto socioeconômico e, por vezes, têm o

potencial de alterar a própria ciência. Com isso, além de reafirmar uma nova

suposição diretiva, no caso o “paradigma”, ele retoma a tese da “ruptura

epistemológica”, de Bachelard (2006), nega enfaticamente algumas das principais

críticas atribuídas a seu relato, esclarecendo que não defende a assertiva de que o

desenvolvimento científico seja baseado de maneira quase exclusiva em fatores

internos às próprias ciências, pois não deixou de situar a comunidade científica no

contexto social do qual faz parte, uma vez que é impossível que o desenvolvimento

científico seja livre das implicações sociais, econômicas, religiosas e filosóficas de

seu tempo (KUHN, 2011, p. 18). Portanto, reafirma o estilo de pensamento

defendido em 1962, o que pode ser observado na seguinte fala:

Page 61: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

61

Os paradigmas não diferem somente por sua substância, pois visam não apenas à natureza, mas também à ciência que os produziu. Eles são fonte de métodos, áreas problemáticas e padrões de solução aceitos por qualquer comunidade científica amadurecida, em qualquer época que considerarmos. Consequentemente, a recepção de um novo paradigma requer com frequência uma redefinição da ciência correspondente. Alguns problemas antigos podem ser transferidos para outra ciência ou declarados absolutamente ‘não científicos’. Outros problemas anteriormente tidos como triviais ou não existentes podem converter-se, com um novo paradigma, nos arquétipos das realizações científicas importantes. À medida que os problemas mudam, mudam também, seguidamente, os padrões que distinguem uma verdadeira solução científica de uma simples especulação metafísica, de um jogo de palavras ou de uma brincadeira matemática. A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas, muitas vezes, verdadeiramente incomensurável com aquela que a precedeu (KUHN, 1962, pp. 137-138).

Sistematizando as principais proposições cotejadas na fala de Kuhn, é

possível destacar que seu estilo de pensamento: i) propõe como suposição diretiva

o Paradigma, cuja marca polissêmica fomentou a principal crítica formulada por

Popper, sendo que aparece não só como conteúdo das teorias e enunciados

científicos (substantivos), mas como concepções, propósitos e valores (não

substantivos) que compõem a visão de mundo e os sentidos/significados

estabelecidos em relação à ciência e ao método, que impera num determinado

período e numa dada comunidade científica; ii) reconhece a concepção de ciência

como um empreendimento coletivo e ‘resolvedora’ de problemas, ou “propositora de

verdadeiras soluções científicas”; iii) concebe a plasticidade dos “padrões”, que

distingue a verdade científica (o falsificacionismo de Popper) ou de demarcação da

“verdadeira” ciência, em função do desenvolvimento científico, daí a crítica em

relação à capacidade da especulação filosófica e da ‘quantificação’ como critérios de

cientificidade; iv) coloca a tradição de pesquisa como o núcleo da ciência normal,

alvo das mudanças evolutivas que repercutem no desenvolvimento científico e como

elemento que dificulta a comunicabilidade entre paradigmas, isto, é a

incomensurabilidade; e, por fim, v) legitima a ênfase no papel desempenhado pelas

condições históricas, sociais e cognitivas das comunidades científicas no

desenvolvimento da ciência.

Perspectiva que passou a legitimar na rede de significações do

desenvolvimento científico o olhar da História sobre a Filosofia da Ciência e

estabeleceu um novo papel e orientações para ela nos estudos sobre a temática,

vejamos:

Page 62: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

62

Em parte alguma o estudo histórico produziu uma transformação mais decisiva em nossa época do que em relação à nossa imagem filosófica da ciência. O que mantém a concepção de a filosofia ser um empreendimento inteiramente normativo pode contestar a afirmação de que uma disciplina descritiva como a história possa ter algum impacto significativo na filosofia. A famosa falácia naturalista parece impedir uma série interações entre a história da ciência e sua filosofia. Mas, de fato, os mais recentes filósofos afirmam que foram fortemente influenciados pela história na construção de suas teorias normativas. [...] constituíram uma escola, [...] conhecida como a abordagem histórica da filosofia da ciência, que vê a história como fonte e, pelo menos, árbitro parcial de afirmações filosóficas sobre a ciência. (LAUDAN et al., 1993, p. 12)

A fala de Laudan (1993) confirma o ponto de vista de que as proposições

introduzidas por Kuhn na Filosofia da Ciência germinavam novos elos evolutivos

para a “análise metacientífica”, dando destaque para o papel da natureza histórica

do desenvolvimento científico nas investigações, o que até então não era

considerado nos estudos sobre a temática. Para o autor, as teses de Kuhn

permitiram o rompimento com “as interpretações intelectualistas e empiristas

preferidas pela maioria dos historiadores da ciência da geração anterior e auxiliaram

a estabelecer a legitimidade do giro histórico” (LAUDAN et al., 1993, p. 18).

O livro “O caminho desde a Estrutura”, de T. Kuhn, produzido 20 anos

após a publicação de sua obra mais polêmica, “A estrutura das revoluções

científicas”, foi elaborado com o objetivo de apresentar o que estava “revendo e

reajustando” nos seus principais conceitos; esclarecer a relação entre progresso,

desenvolvimento, tradições e especialidades cognitivas; e defender e explicar as

conjecturas sobre incomensurabilidade e os novos rumos que estava trilhando. No

que tange especificamente à temática, no capítulo intitulado “Reconcebendo as

revoluções científicas”, o autor aponta que em função das diferentes mudanças

existem dois tipos de desenvolvimento científico, o normal e o revolucionário.

Esclarece ainda que o desenvolvimento normal é a principal imagem de ciência

que perpassa a literatura metodológica, indicando um avanço cumulativo e

progressivo, constituído pelos acréscimos e adições atribuídas ao conhecimento

científico através das pesquisas “bem-sucedidas”, cuja natureza de suas produções

se circunscreve como “descobertas” (KUHN, 2017, p. 23).

Já o desenvolvimento científico revolucionário e descontínuo, ao

contrário, é oriundo das mudanças problemáticas, revolucionárias, cuja natureza

gira em torno das “invenções” que “não podem ser acomodadas nos limites dos

conceitos conhecidos antes delas”, pois alteram significativamente “o modo como se

Page 63: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

63

pensa e se descreve algum conjunto de fenômenos naturais” (KUHN, 2017, p. 25),

o que implica a necessidade de novas ferramentas cognitivas (leis, teorias,

conceitos), bem como a redefinição e introdução de novos procedimentos de coleta,

análise e critérios de avaliação destas ferramentas. Na fala do autor:

Quando mudanças referenciais desse tipo acompanham mudanças de lei ou teoria, o desenvolvimento científico não pode ser inteiramente cumulativo. Não pode passa do velho ao novo simplesmente por um acréscimo ao que já era conhecido. Nem se pode descrever inteiramente o novo no vocabulário do velho ou vice-versa. (KUHN, 2017, p. 25)

Portanto, não retira a cumulatividade, além de reafirmar sua existência na

dinâmica normal e “familiar” (oriundo das pesquisas cotidianas). Kuhn (2017)

reformula seu ponto de vista, colocando a possibilidade da “não cumulatividade” no

desenvolvimento “revolucionário”, esclarecendo sobre a impossibilidade de as

mudanças centrais serem fragmentárias nos “paradigmas”, alegando a existência

das “rupturas súbitas e não estruturadas” nos arranjos distintos dos padrões

conceituais e orientadores da dinâmica científica, antes não observados na

“linguagem”. O autor fortalece sua argumentação, ilustrando com “episódios” da

História da Ciência as três características essenciais que as mudanças

revolucionárias compartilham, a saber: i) são holísticas e, com isso, não podem ser

alteradas de forma fragmentada, pois introduzem explicações que afetam

diretamente a natureza dos objetos investigados, caso contrário, “é preciso viver

com a incoerência ou revisar em conjunto várias generalizações inter-relacionadas”

(KUHN, 2017, p. 41); ii) são capazes de alterar não só a maneira como as palavras

e expressões se ligam à natureza do ente, mas os próprios critérios que ligam os

termos (construtos) ao conjunto de objetos ou situações, pois “o que caracteriza as

revoluções assim são as mudanças em várias das categorias taxonômicas que são

prerrequisitos para descrições e generalizações científicas” (KUHN, 2017, p. 43) e,

por fim, iii) são capazes de provocar alterações nos padrões de similaridades (a que)

e distinções (do quê) utilizados na linguagem científica, pois:

A prática científica sempre envolve a produção e a explicação de generalizações sobre a natureza, e essas atividades pressupõem uma linguagem com um grau mínimo de riqueza, e a aquisição de uma tal linguagem traz consigo conhecimento da natureza [...] o que é adquirido é um conhecimento conjunto da linguagem e do mundo. (KUHN, 2017, p. 45)

Desta forma, Kuhn reforça a relevância dos conceitos e introduz a ideia

de que a característica primordial das mudanças científicas revolucionárias é que

Page 64: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

64

elas afetam direta e indiretamente, por meio da “linguagem”, o desenvolvimento

científico, sendo, portanto, mudanças evolutivas. O seu ponto de vista é que as

mudanças repercutem no núcleo das práticas discursivas, isto é, no “intercurso” –

designação que o autor atribui para “discurso”, especificamente pela alteração da

produção dos sentidos, previamente estabelecidos, que reflete principalmente

sobre sua taxonomia ou a natureza do objeto científico. E, com isso, acontece “A

violação ou distorção de uma linguagem científica anteriormente não problemática

[...], pedra de toque para a mudança revolucionária” (KUHN, 2017, p. 45), mudanças

evolutivas potencializam a “diversidade lexical” e com ela seu produto, a

especialização30 cognitiva, que, segundo o autor, foi explorada de forma incipiente

em sua obra anterior. Vejamos nas palavras do autor como ele explica o processo

de formação de novas especialidades científicas ou “especializações cognitivas31”:

Depois de uma revolução, geralmente são encontradas [...] mais especialidades cognitivas [...] ou um novo ramo que se separou do tronco original, como especialidades científicas repetidamente se separaram, [...] nasceu em uma área de aparente de superposição entre duas especialidades preexistentes, [...] um tipo de divisão, [...] que, raramente ou nunca, é assimilado por algum de seus pais. Torna-se mais uma especialidade separada, conquistando suas próprias novas revistas especializadas, uma nova sociedade profissional e, amiúde, novas cátedras, laboratórios e, até mesmo, departamentos universitários. [...] um diagrama da evolução dos campos, especialidades e subespecialidades científicas acaba parecendo-se espantosamente com um diagrama, feito por um leigo, de uma árvore evolutiva biológica. Cada um desses campos em um léxico distinto, embora as diferenças sejam locais, ocorrendo apenas aqui e ali. Não há nenhuma língua franca capaz de expressar, em sua totalidade, o conteúdo de todos eles, ou mesmo de alguma parte. (resultante da diversidade lexical que permite às ciências, vistas em conjunto, resolver os quebra-cabeças suscitados por um domínio de fenômenos naturais mais amplos do que uma ciência lexicalmente homogênea poderia alcançar”. (KUHN, 2017, p. 124)

Retomando suas principais asserções, que estão diretamente

relacionadas a nossa temática, três merecem destaque especial na fala do autor: I)

mudanças revolucionárias provocam a diversidade lexical, que fortalece a

fragmentação nos campos científicos e amplia diferentes áreas de conhecimento,

30 Para Kuhn, a especialização é a síntese do estreitamento do âmbito de competência, conforme

pode ser observada através das “ferramentas cognitivas cada vez mais poderosas”. É igual ao tipo de desenvolvimento de instrumentos especiais para funções técnicas. 31

No âmbito desta tese, defendemos que a nova espacialidade cognitiva se configura como um

território epistemológico, pois enquanto não se constitui como um campo científico e acadêmico institucional, é constituído de uma episteme (que o diferencia da ciência “mãe”), de coletivos (que se identifica com pertencentes à especialidade), fronteiras (que delimitam e diferenciam com outros campos científicos) e controvérsias (questões teóricas e metodológicas próprias).

Page 65: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

65

com isso, a “emergência de individuação de novas especialidades científicas”; II) o

desenvolvimento científico tanto pode ser o avanço de um campo científico, como de

uma área de conhecimento ou de um saber de um determinado ponto para outro,

sendo distinto da “evolução biológica”, pois “as revoluções que produzem novas

divisões entre campos no desenvolvimento científico são muito semelhantes a

episódios de especiação na evolução biológica” (KUHN, 2017, p. 125); e III) a

relação entre o campo científico (inicial ou matriz) e a nova especialidade produz o

que ele denomina de “incomensurabilidade local”, pois o “novo ramo” do “campo”

passa a ter “um léxico distinto, embora as diferenças sejam locais, ocorrendo

apenas aqui e ali”, por isso não contemplam uma “totalidade, o conteúdo de todos

eles”, mas partes significativas do “campo pai” são alteradas, o que lhe concede

“autonomia relativa”.

Nosso ponto de vista é que, em relação à incomensurabilidade, Kuhn

(2017) reinterpreta seu estilo de pensamento de 1962, principalmente em função

das muitas críticas que recebeu, apontando que esse é um termo que “descreve a

relação entre as teorias científicas consecutivas”, oriundo das suas observações nas

atividades de interpretação dos textos científicos. Esclarece e acrescenta que a

principal base de diferenciação entre campos e novos ramos de saber é a “variação

de significado”, explicando que esta variação leva à impossibilidade de definir os

termos do vocabulário de uma teoria com os termos de outra. E, para responder às

críticas, tendo como referência as ponderações de Hilary Putnam, utiliza dois de

seus principais argumentos, vamos a eles.

O primeiro argumento utilizado por Putnam (apud Kuhn, 2017), que

Kuhn refuta, é que para comparar duas teorias consecutivas é essencial a existência

de um “terreno comum” entre elas. O segundo argumento é que se uma teoria é

incomensurável, então é “impossível traduzir velhas teorias numa linguagem

moderna”, o que explicaria “a reconstrução das teorias de Aristóteles, ou de

Newton [...] sem abandonar a linguagem que falamos todos os dias”. Em outros

termos, Putnam (apud Kuhn, 2017) alega que tradução e interpretação são

processos similares. Kuhn (2017), para defender sua tese, insere na discussão a

impossibilidade de “comparabilidade” entre duas teorias ou de dois campos

científicos:

Page 66: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

66

Aplicado ao vocabulário conceitual usado numa teoria científica e em seu entorno, o termo ‘incomensurabilidade’ funciona metaforicamente. A expressão ‘nenhuma medida comum’ passa a ser ‘nenhuma linguagem comum’. A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é, assim, a afirmação de que não há uma linguagem, neutra ou não, em que ambas as teorias, concebidas como conjuntos de sentenças, possam ser traduzidas sem haver resíduos ou perdas. A incomensurabilidade em sua forma metafórica não implica incomparabilidade, não mais do que o faz em sua forma literal e praticamente pela mesma razão. A maioria dos termos comuns às duas teorias funciona da mesma maneira em ambas; seus significados, quaisquer que sejam, são preservados; sua tradução é simplesmente homofônica. Problemas de tradutibilidade surgem apenas para um pequeno subgrupo de termos [...] e para as sentenças que os contenham. A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é mais modesta do que supuseram muitos de seus críticos. Chamarei essa versão modesta de ‘incomensurabilidade local’. Até o ponto em que incomensurabilidade constituiu uma tese referente à linguagem, à mudança de significado, sua forma local é a minha versão original. (KUHN, 2017, p. 50)

O autor, além de reafirmar que a incomensurabilidade é uma metáfora

que está vinculada à variação dos sentidos atribuídos aos termos (categorias),

insere a designação de “local”, o que restringe o poder da definição anterior. Além

disso, introduz o ponto de vista de que a incomensurabilidade não implica

necessariamente “incomparabilidade”, nem a existência de elementos/aspectos

comuns, e aponta que a tradução e a interpretação são processos diferentes:

enquanto a tradução requer o conhecimento de duas ou mais línguas para execução

e seu produto é um texto equivalente em outra língua, a interpretação busca o

sentido e seu produto é outro texto sob o ponto de vista do intérprete.

O fato é que, diante dos ensaios organizados no livro, assim como na

maioria de seus argumentos, ficam evidentes a inserção e a ênfase que o autor

passa a atribuir à “linguagem” (discurso) como principal elemento de referência para

elucidar as implicações das mudanças revolucionárias no desenvolvimento do

conhecimento científico; a distinção entre desenvolvimento científico e evolução

científica, assim como das representações da natureza da evolução epistemológica,

das estruturas sociais como condicionantes; a elucidação do processo de formação,

consolidação e manutenção da nova especialidade (ramo) e, consequentemente, da

autonomia do campo científico; e, ainda, a riqueza do conceito da

incomensurabilidade local ou dos sistemas de pensamento científico. As principais

ligações evolutivas emanadas de Kuhn, numa perspectiva socioconstrutivista para a

História das Ideias (pois passaram a ser referência no coletivo de pensamento

contemporâneo sobre a temática “desenvolvimento científico”) são: a difusão de

Page 67: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

67

novos conteúdos, o contorno atribuído às discussões, as novas diretrizes, e,

principalmente em relação ao olhar da História e da Filosofia da Ciência, que

provocou a germinação de novos embates científicos.

Ainda no final da década de 1970, o embate teórico passou a ser muito

mais do que uma reação crítica, e a suposição diretiva – “paradigma” – e os

construtos utilizados por Kuhn passaram a permear e informar a maioria das práticas

discursivas sobre a temática. Assim, a partir da década de 1980, o foco das

problemáticas se estabeleceu em torno da racionalidade científica,

incomensurabilidade, relatividade, realismo e verdade, levando em consideração as

ideias de introduzidas por T. Kunh. Entre os principais teóricos seguidores que

avançaram, criticaram ou reafirmaram seus conteúdos e direcionamentos,

destacam-se os estilos de pensamento de Lakatos e Laudan, como representantes

da terceira geração.

O estilo de pensamento de Lakatos, um dos defensores da perspectiva

epistemológica de Popper, critica e associa a esta perspectiva algumas proposições

de Kuhn na elaboração de uma perspectiva que defendia a racionalidade na História

da Ciência, através das análises filosóficas. Lakatos concebia as teorias como um

conjunto de enunciados passíveis de serem testados e que poderiam ser

comparados a outras teorias. Com isso, o autor introduz e legitima a concepção de

programas de investigação científica, ou programas de pesquisa, como principal

suposição diretiva. Segundo seu ponto de vista, o desenvolvimento científico

acontece através das teorias, é “progressivo” e intrinsecamente determinado pelos

“programas de pesquisa”. Estes programas têm a seguinte composição: um núcleo

duro, provisoriamente inume às refutações, que daria identidade ao programa de

pesquisa; as suposições auxiliares que formariam o cinto de proteção ao núcleo; e

as diretrizes heurísticas que guiariam os pesquisadores.

Já o estilo de pensamento de Laudan, reinterpretando e simultaneamente

dando continuidade às orientações kuhnianas, propõe que “a análise do problema

do desenvolvimento (ou progresso) científico deve ser fundamentalmente

historiográfico” e, diferentemente de Kuhn, coloca como cerne dos seus estudos “as

teorias científicas” e os modos como elas mudam. O autor traz como suposição

diretiva que as teorias existentes no âmago das “tradições de pesquisa”

“compartilham os pressupostos de que as únicas entidades postuláveis são sinais

Page 68: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

68

físicos observáveis (pressuposto ontológico) e de que o método mais adequado para

tratar estas entidades seria por meio do operacionalismo (pressuposto

metodológico)” (BATISTA; SILVA, 2011, p. 61-62).

As tradições de pesquisa, na ótica da Laudan, são constituídas por

“teorias particulares” com “vida curta”. Nas tradições de pesquisa, os coletivos

compartilham, informam e fornecem “as orientações gerais acerca da ontologia e da

metodologia a serem utilizadas pelas teorias. Estas orientações, por sua vez,

adotam ontologias e metodologias específicas” (BATISTA; SILVA, 2011, p. 63). No

entanto, é possível constatar elementos convergentes das contribuições de Lakatos

e Laudan sobre a temática do desenvolvimento do conhecimento científico, entre os

quais podemos destacar: I) é possível identificar elos evolutivos e, principalmente, a

reinterpretação e legitimação para muitas das ideias defendidas por T. Kuhn; II) a

ciência está intrinsecamente vinculada às suposições diretivas, embora com

denominações diferentes – paradigma, programas de pesquisa e tradições de

pesquisa –, na condição de constelações de crenças, valores e técnicas

compartilhadas por uma comunidade científica” e passíveis de serem afetadas pelas

“mudanças científicas”; III) as alterações nas suposições diretivas repercutem

diretamente no desenvolvimento do conhecimento científico, seja através das

“revoluções científicas”, do “progresso contínuo” do conhecimento, ou da

“incompatibilidade” entre suposições diretivas.

Em 1979, a obra de Ludwik Fleck32, “Gênese e desenvolvimento

científico”, é traduzida do polonês para o inglês e torna-se (re)conhecida na

comunidade científica, com o surgimento de contribuições significativas para a

celeuma das discussões teóricas sobre o desenvolvimento científico.

Caracterizamos suas contribuições como quarta geração na História das Ideias

sobre desenvolvimento científico. O autor, através da análise epistemológica, com

base no desenvolvimento do “conceito da sífilis” traz elementos que avançam e

passam a fazer parte de muitas análises futuras, fato reconhecido por Kuhn.

32 Publicada originalmente em 1935 e “após ter sido praticamente ignorado por vária décadas,

Gênese e Desenvolvimento de um fato científico (re)aparece em 1979 em sua tradução em inglês, na qual o primeiro desses ilustres apresentadores não foi nada menos que Thomas Kuhn” (CONDÉ, 2010, p. ix).

Page 69: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

69

É relevante apontar que sua “monografia” do autor é um campo de

germinação de ideias que até então (1935, ano em que foi produzida) não faziam

parte das discussões sobre a temática, tanto que na obra não faz citação a nenhum

autor que possa ter contribuído na construção das ideias sobre a dimensão

epistemológica. Entre suas ligações evolutivas, podemos elencar: I) a indicação de

que tanto as normas, como os fatores que explicam o desenvolvimento da ciência

moderna e de “um fato científico” são as estruturas sociais e, simultaneamente,

psíquicas; II) tanto a história, como a cultura são condicionantes (estrutura social) da

evolução dos fatos científicos; III) a concepção da ciência como uma organização

cooperativa, por isso, deve considerar a estrutura sociológica, na mesma proporção

que as convicções pessoais (crenças) que unem os pesquisadores, superando as

concepções empíricas e especulativas individuais (uma crítica aos pressupostos do

empirismo lógico, que imperava no período); e IV) propõe com suposições diretivas

os construtos de “coletivo de pensamento” e “estilo de pensamento”, sendo o

coletivo de pensamento como “a unidade social da comunidade de cientista de uma

disciplina” e o estilo de pensamento como “pressupostos e pensamento sobre os

quais o coletivo constrói seu edifício de saber”. Para o autor, aos dois construtos

“subjaz[em] o esboço epistemológico do saber, que nunca se torna possível em si,

mas apenas e sempre sob condições de determinadas pressuposições de conteúdo

sobre o objeto” (FLECK, 2010, p. 65). A premissa principal do autor é que as

suposições diretivas (coletivo de pensamento e estilo de pensamento) são produtos

sociológicos e, simultaneamente, cognitivos e históricos de um coletivo de

pensamento ativo e passivo (FLECK, 2010, p. 65).

Na obra “Conhecimento e imaginário social”, de David Bloor, na edição

publicada em 1991, o autor aponta que “a maior prova da possibilidade da sociologia

do conhecimento é sua efetividade” (BLOOR, 2009, p. 10). E na revisão

bibliográfica sobre o desenvolvimento do conhecimento científico, aponta que as

investigações nessa área indicam inúmeras descobertas específicas e interessantes

que desvelam a natureza social da ciência, os padrões de continuidade e

descontinuidade no desenvolvimento científico e as motivações para a aceitação ou

rejeição das teorias científicas. Todas as temáticas com documentações e

evidências contundentes sobre os seguintes processos: I) as implicações do

contexto histórico, econômico e sociopolítico na visão de mundo dos pesquisadores

Page 70: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

70

e, consequentemente, no conteúdo das teorias científicas; II) a existência do nexo

causal entre o desenvolvimento tecnológico e os instrumentos de pesquisa

utilizados, bem como no conteúdo das teorias; III) a influência da cultura geral e das

questões ideológicas na gênese, legitimação e avaliação das descobertas e

explicações científicas; IV) a relevância dos conhecimentos prévios (pré-ideias)

como fundamentos de outros saberes ou disciplina descobertas na área; e V) a

contribuição dos processos formativos e da socialização na condução da ciência, o

que implica a necessidade de analisá-la “à luz dos interesses, crenças e critérios de

validade compartilhados, que orientam a atividade dos cientistas e sua interação

com outros atores sociais” (BLOOR, 2009, p. 19). Tomando tais resultados como

elos evolutivos, o autor introduz nas discussões sobre a temática, quatro princípios,

que embora não sejam novidades, pois já faziam parte dos “traços mais otimistas e

científicos” de Durkheim (1938), Mannheim (1936) e de Znniecki (1965), Bloor (2009)

os considera essenciais para orientar os estudos de um “Programa Forte na

Sociologia do conhecimento33”, sendo estes conhecimentos causalidade,

imparcialidade, simetria e reflexividade.

Consideramos, assim como para Shinn e Ragouet (2008), que o

Programa Forte, proposto por Bloor, além de romper com o estilo de pensamento

mertoniano, em relação à “recusa a limitação da Sociologia da Ciência à análise das

instituições científicas”, retém proposições formuladas por Kuhn, mas precisamente

dá início a uma quinta geração de coletivo de pensamento. Isso porque o programa

forte utiliza os pilares propostos por Kuhn, assim como de outras abordagens que se

estabeleceram nos anos de 1970 a 1990, criando “uma nova ortodoxia”, comumente

designada por “nova Sociologia do conhecimento”, e os principais elementos

indutores que contribuíram para seu surgimento foram: (i) o impacto das análises de

Kuhn; (ii) a divulgação das reflexões documentadas sobre as implicações negativas

da ciência (com destaque para as questões socioambientais); e (iii) a emergência

das teses pós-modernas, que apresentavam multiplicidade de modelos mentais,

portadores de concepções específicas que repercutiam diretamente na atividade

científica. Embora fossem marcadas por contornos que as distinguiam entre si, têm

33 Alvo de muitas críticas, a defesa do Programa Forte na Sociologia do Conhecimento é o principal

intento de Bloor (2009) na obra “Conhecimento e Imaginário social”.

Page 71: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

71

em comum o intuito de “proceder a uma crítica fundamentada” nas gerações

anteriores e, com isso, caracterizaram-se por serem uma rejeição à “demarcação

clássica entre a ciência e a não ciência”, daí sua qualificação de

“antidiferenciacionista” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 65).

Nosso ponto de vista é que, além de defender a tese de que “o modo de

produção dos conhecimentos científicos se transformou a tal ponto que a ciência

clássica estaria claramente em curso de desaparição [...]” e, por isso, se dá “o

nascimento de novas formas de relações entre universidades, especialistas,

demanda social e indústria, de modo que o todo seja dominado pela lógica de

funcionamento e pelas necessidades das empresas” (SHINN; RAGOUET, 2008, p.

64). Um desenvolvimento marcado pela diferença em relação à ciência moderna

não só nos modos de produzir e difundir, mas nos princípios, nas aplicações e nas

interações universidade/sociedade.

Considerando o olhar da Epistemologia, da Filosofia da Ciência e da

Sociologia do Conhecimento, Shinn e Ragouer (2008) organizaram as principais

concepções em três abordagens que contêm outras vertentes e refletem sua

proliferação pós-década de 1980 (Quadro 02). Os autores alertam que foi apenas

uma forma de evidenciar as distinções entre essas concepções, já que o

enquadramento das abordagens e vertentes, pelas características comuns ou

divergentes, é sempre um processo “relativo”, além de que podem ocorrer também

divergências específicas entre concepções de determinados autores numa mesma

abordagem. Vejamos:

Quadro 2 - Abordagens da perspectiva antidiferenciacionista da sociologia da ciência.

Abordagens Modo de existência do social

Modo de existência da

natureza

Definição do social

Definição do cognitivo

Abordagens fortes e perifortes

Realidade Construção Cultura de interesses

Ciência feita (tomada de posição)

Abordagens etnográficas do trabalho empírico

Construção Construção Interesses Práticas in situ

Enfoques radicalmente construtivistas

Construção Construção Realidade híbrida em relação de entre – definição

Fonte: Shinn; Ragouet (2008, p. 63)

Page 72: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

72

No olhar dos autores, o “modo de existência social” refere-se à maneira

como a dimensão social se realiza no ambiento do objeto científico. As “abordagens

fortes e perifortes” concebem que o social existe na condição de realidade; mas,

nas abordagens “etnográficas” e “construtivistas”, essa concepção do real se realiza

pela “construção” – um “modelo mental” do vir a ser. No modo de existência da

natureza, se antes as abordagens indicavam dicotomia objetiva/subjetiva, as

abordagens antidiferenciacionistas concebem que “os fatos são considerados como

construídos a partir dos dados brutos através de processos ativos de construção

conceitual34” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 62), portanto, a “natureza não existe”

objetivamente, mas como “construção” do “espírito”. Nas definições das

abordagens fortes e perifortes, os autores apontam a “cultura de interesses” e o foco

da análise é a ciência pronta (produto), não seu processo de produção. Nas

abordagens etnográficas, o alvo são ‘os interesses e as situações práticas’ que

ocorrem durante a atividade científica, o foco principal é a “ciência em ação”, isto é,

seu processo de produção, portanto, não contempla a evolução epistemológica, e a

teoria ator-rede representa a forma mais completa dessa abordagem.

Já nas perspectivas construtivistas, tanto o social como o cognitivo são

definidos pelo devir da realidade, que passa a ser concebida como “híbrida”, o que

permite e potencializa a análise epistemológica, perspectiva que adotamos neste

estudo, e por isso será ao longo da tese mais abordada.

O ponto relevante é que a quinta geração não é delineada por um estilo

de pensamento, mas por várias matrizes intelectuais que perpassam, informam e

avançam em relação às gerações anteriores, principalmente sob a ideia de uma

ciência pós-positivista, postulando críticas profundas ao “androcentrismo”,

desvelando que as interações sociais, assim como as questões ideológicas não

apenas mobilizam a atividade científica, mas estão profundamente imbricadas em

suas práticas e produtos; com isso, coloca em dúvida a ideia de que a objetividade

científica possa ser regida apenas por “valores epistêmicos”. Pressupostos que

34 Ponto de vista que pode ser observado na perspectiva adotada por Guimarães (2017) de que “a

categoria natureza não é um dado ontológico “natural”, ou seja, deve-se partir do princípio de que os conceitos da categoria natureza (assim como qualquer outro, seja ele o de homem, de tempo, de espaço, de mundo, de civilização e de racionalidade, entre outros) não são conceitos a priori, sendo “pré-conceitos”. Ontologicamente, existem a partir do treinamento de um contexto social, que, no caso do próprio pensamento geográfico (ou geografia), é herdeiro e tributário de um modo de pensar que faz parte do modo-de-ser-no-mundo ocidental” (GUIMARAES, 2017, p. 17 -18).

Page 73: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

73

indagam diretamente sobre a função da epistemologia, posto que encaminharam

para uma ruptura com a acepção de epistemologia, legitimada até então, e que

passa a figurar nos discursos dos autores que classificamos como pertencentes à

quinta geração do pensamento, pois:

Enquanto a história epistemológica, situada basicamente ao nível dos conceitos científicos, investiga a produção da verdade na ciência, que ela considera como processo histórico que define e desenvolve inter-relações conceituais ao nível do saber, nem privilegia a questão normativa da verdade nem estabelece uma ordem temporal de recorrência a partir da racionalidade científica atual (MACHADO, 2017. p. 11)

Entre eles o estilo de pensamento de Michel Foucault, cujas obras trazem

ligações evolutivas com os estudos sobre a evolução epistemológica, inspirados em

Bachelard, Canguilhem e Cavaillés, uma linha que se aventura pelo pensamento

pós-estruturalista. No fragmento a seguir, Foucault, além de reconhecer a

descontinuidade e a dinâmica do desenvolvimento científico, indica a forma como a

análise epistemológica deve ser dirigida. Cito:

Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê, em que os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que deve aparecer, no espaço de saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mas que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma ‘arqueologia’. (FOUCAULT, 2007, XVIII-XIX)

A nosso ver, o entendimento do autor é de que a análise epistemológica

deve caracterizar-se, antes de tudo, por ser uma análise discursiva para elucidar a

“constituição e transformação dos saberes”. Na fala do próprio autor, é “Bem

diferente, ainda nisto, das descrições epistemológicas ou arquitetônicas que

analisam a estrutura interna de uma teoria, o estudo arqueológico está sempre no

plural: ele se exerce em uma multiplicidade de registros [...]” (FOUCAULT, 2014, p.

192). Para ele, a compreensão epistemológica deverá desvelar a configuração da

episteme, substrato da possibilidade de existência de qualquer saber. Mas além da

fissura com a epistemologia tradicional, o que Foucault introduz no coletivo de

pensamentos sobre a evolução epistemológica pós década de 1980?

Page 74: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

74

Primeiramente, conforme já mencionamos, além de mudar o foco da

epistemologia (do estatuto de cientificidade para a episteme), o autor indica uma

forma de apreendê-la, através da Arqueologia, afirmando que:

[...] a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão, por isso, um status de idealidade e de total independência histórica; o que ela revela é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos de historicidade e que estão relacionados com um conjunto de historicidades diversas. (FOUCAULT, 2014, p. 201)

Segundo, quando desvela a relevância do discurso, Foucault retoma as

ideias de T. Kuhn sobre a “linguagem” e, simultaneamente, na História das Ideias,

ele tira o foco da ciência para o “saber”, com isso, coloca a centralidade das práticas

discursivas como corpus empírico para a “análise do discurso” e “dispositivo” de

investigação. Destarte, vai reafirmar o “valor operativo dos conceitos” (pré-ideias)

como condição para a “formação do objeto”, o que implica que sejam concebidos

como engendrados numa “rede de significação” ou “formações discursivas”.

Terceiro, ao revelar a onipresença do poder – “capilar, insidioso e

microfísico” –, em todos os âmbitos das interações humanas, Foucault dá destaque

para a relação saber/poder/fazer na dinâmica científica, apontando, inclusive, que o

poder tem maior potencial quando acontece “na ordem do saber, da verdade, da

consciência, do discurso” (FOUCAULT, 2017, p. 71). Portanto, além de considerar a

dimensão epistemológica, dá destaque às dimensões históricas e sociais. O que

também confirma o ponto de vista de Kuhn.

Quarto, rompe com a suposição de teoria como uma explicação ou

descrição do “real” (da substância em si), desvela a teoria como “prática” com

potencial para representar ou refletir sobre a realidade. No entanto, esclarece que

não é a única, é apenas uma entre outros “modos possíveis”, com isso, os objetos

do mundo social, bem como sua constituição, passam a ser instituídos socialmente a

partir de “um complexo feixe de relações”, destituindo a supremacia da relação

causal, e se aproximando da perspectiva epistemológica do construcionismo. Por

isso, de acordo com o autor, a contribuição da Arqueologia, uma vez que só ela teria

a capacidade de “suprimir o tema da expressão do reflexo, se ela se recusa a ver no

discurso a superfície de projeção simbólica de acontecimentos ou de processos

Page 75: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

75

situados em outra parte, não é para encontrar um encadeamento causal”, mas o

funcionamento efetivo da prática discursiva (FOUCAULT, 2014, p. 201).

Quinto, a suposição diretiva indicada por Foucault é a episteme, o que

efetivamente a faz diferente do “Paradigma” de T. Kuhn ou do “Coletivo de

Pensamento” de Fleck (2010), destacando que ela não é apenas reflexo da “visão

de mundo” que uma comunidade compartilha, mas uma rede de significações

estabelecidas em torno de um saber(temática), através das conexões entre estilos

de pensamentos legitimados e expressos nos grandes discursos e fundamentos

filosóficos, teóricos e metodológicos do fazer científico.

Em suma, o nosso ponto de vista é que as ideias desveladas ao longo

desta seção situam brevemente a rede de significações sobre evolução

epistemológica da temática, pois a quantidade e a diversidade significativa de obras,

pensadores, abordagens e perspectivas ou vertentes que fazem parte dos estudos

sobre o desenvolvimento científico são um indicativo seguro do volume de

produções e de suposições epistemológicas que orientam a temática atualmente e

evidenciam um território epistemológico em pleno avanço. No entanto, é notório que

muitas ideias frequentemente são retomadas, independentemente de que geração

as tenha introduzido, pois existem muitas produções intelectuais com ligações

evolutivas de várias teorias específicas e de seus autores, principalmente de Kuhn,

estilo de pensamento predominante no discurso legitimado.

Diante da episteme do território epistemológico do desenvolvimento do

conhecimento científico que sistematizamos até aqui, a questão emergente é: Seria

possível ignorarmos tais conhecimentos acumulados, ressignificados e apropriados,

para elucidarmos a repercussão do movimento intelectual contemporâneo no âmbito

dos estudos sobre a Ciência Geográfica? Seguramente podemos afirmar que não!

E, por isso, com as asserções que consideramos coerentes com nossos

pressupostos filosóficos, passamos a descrever como esses estudos vêm sendo

apropriados e reinterpretados na ciência geográfica, através da Análise Documental,

utilizando como unidade de sentido os fragmentos (elementos explanatórios e

explicativos) dos textos de Reis Jr (2014), Claval (2013) e Vitte (2011), referências

obrigatórias nas produções sobre a temática na Geografia brasileira contemporânea.

Page 76: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

76

2.3 As ligações evolutivas da evolução epistemológica na Geografia

Para Reis Jr (2014), os estudos que abordam as temáticas correlatas ao

desenvolvimento do conhecimento científico na geografia podem ser sistematizados

em três setores. O primeiro, a Filosofia da ciência – FC, cujos principais aspectos

identitários foram cotejados em três dimensões: i) Trabalhos com os fundamentos ou

pressupostos filosóficos das investigações ou produções científicas, para identificar

os “sistemas de pensamento”, as matrizes orientadoras dos discursos, os “limites

epistêmicos” e o complexo da relação causal como explicação científica. Sua

principal premissa é que

As teorias são produtos sempre influenciados por infraestrutura ou horizonte filosófico; e que tal influência talvez até seja mais intensa do que a que se dá no ‘sentido contrário’, digamos assim. Nesse sentido, o pensamento científico de personagens tais como Descartes e Kant seria altamente tributário de suas respectivas visões filosóficas do mundo. E, nesse mesmo espírito de interpretação, os sistemas de pensamento atribuídos aos filósofos do Círculo de Viena, Mach, Comte, Bacon e pensadores mais pretéritos ainda, teriam respingado de algum modo nos empreendimentos intelectuais das ciências em geral. [...] O postulado basilar inerente a esse princípio geral da orientação ou embasamento filosófico reside, então, na concepção de que o pensamento científico nunca se desenvolve no vácuo; ele, na verdade, estará sempre inscrito num ‘quadro de ideias’. E, por ser assim, a própria transição entre tradições de pesquisa (marcada por aquilo que o historiador chamará ‘revoluções’) já deve, [...] prever na escala do substrato ou ‘subestrutura’ uma correspondente mudança de atitude filosófica. (REIS JR., 2014, p. s/p)

São notórios, no postulado apontado pelo autor, fragmentos que

representam a apropriação e reinterpretação das contribuições (os elos evolutivos)

ou tributos descritos ao longo deste capítulo. Principalmente de T. Kuhn e Fleck

(sobre as bases que estruturam o “Estilo de pensamento”, isto é, os pressupostos

filosóficos), bem como dos autores da quinta geração, com destaque para o

“Programa Forte”. ii) “As fronteiras e linguagens identitárias” – produções que

abordam a classificação das ciências, as disciplinas e os elos identitários científicos.

E iii) as estruturas explicativas da causalidade, encaixando-se nesta dimensão os

trabalhos que indagam sobre a explicação por meio de relações de causa-efeito,

bem como as variáveis indeterminadas utilizadas pelo pesquisador.

Ainda, para Reis Jr. (2014), os trabalhos nesse setor, embora não tão

frequentes, aparecem como fragmentos textuais (tanto de geógrafos físicos, quanto

humanos) que exprimem a ideia de: “substrato de ordem filosófica”; “epistemológica

Page 77: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

77

sedimentada sobre horizontes ontológicos”; “introjeção dos sistemas de pensamento

filosófico nos raciocínios e práticas geográficas”; “concepções metafísicas”;

“identidade epistemológica da Geografia”; “fronteiras disciplinares”; e alguns mais

seculares que expressam considerações em torno das “explicações causais”, com

termos mais próximos de “emergências” e “concomitâncias”.

No segundo setor, o autor classifica as produções sobre História da

Ciência – HC, apontando dois grupos: i) Sociologia do Conhecimento – o foco é a

compreensão/identificação/explicação dos condicionantes históricos, sociais,

políticos que afetam a prática científica numa dada época; o principal pressuposto é

que “a ciência está embebida num meio de processos sociais complexos (dele

absorvendo, então, demandas e regulamentos), mas não menos o fato de que ela

retroage (dando sustentação ou questionando o sistema social instaurado)” (REIS

JR., 2014, s/p). ii) “Padrões de evolução”, estão classificados os trabalhos que

buscam identificar “na linha do tempo a ocorrência de temporadas ao longo das

quais determinadas tendências interpretativas e procedimentais” se estabeleceram e

começam a fazer parte das ferramentas cognitivas utilizadas pelos pesquisadores,

se encaixando neste grupo as produções intelectuais que abordam as suposições

diretivas e os fundamentos indicados por Popper, Lakatos e T. Kuhn.

Ainda nesse setor, os principais fragmentos são: “ambiente” (intelectual);

“fatores responsáveis...”; “entidades de representação...”; “panorama político-

econômico”; “história institucional”; entre outros com o tema dos “conflitos”, “crise”,

“revolução” ou controvérsias científicas que, de acordo com o autor, não aparecem

de forma tão expressiva, mas nas produções intelectuais onde constam os termos,

“predomina entre os discursos o refrão da fraseologia kuhniana [...] (crise –

paradigma - anomalia), tendendo a replicá-los sem mais ponderações. Corre-se o

risco, portanto, de veicular informações contraditórias, visto serem inconciliáveis

com a proposta [...]” (REIS JR, 2014, s/p).

No terceiro setor, Reis Jr (2014) categoriza as abordagens que se

encaixam na Geografia da Ciência - GC, contemplando as produções intelectuais

que trabalham com foco nas “especificidades do lócus de manifestação”,

especificamente a GC coloca em destaque “as ‘idiossincrasias’ do lócus em questão,

[...] para desvendar o motivo pelo qual o ideário [...] da ciência sob análise acabou

sendo incorporado(a) de um modo peculiar [...], endógena [...]” (REIS JR, 2014). A

Page 78: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

78

pressuposição que se estabelece é a existência da heterogeneidade da ciência

contemporânea, sendo que, neste setor, se encaixam trabalhos da quinta geração

do pensamento historiográfico, cuja abordagem busca “empreender quase que uma

etnografia dos laboratórios”. “Lugar” constitui-se no principal fragmento identificado

nas produções deste setor, sempre na perspectiva de “uma evolução tomada em

seu aspecto ‘locacional’” (REIS JR, 2014, s/p), frequentemente expressando a

ideia de “novidade tardia”. O autor conclui a comunicação apontando que, embora já

exista um “número razoável” de produções no campo da História e da Filosofia da

Ciência, na Geografia ainda “há todo um largo espectro de abordagens que

permanecem intocadas” (REIS JR, 2014, s/p).

No texto prescritivo e simultaneamente reflexivo de Paul Claval, traduzido

e publicado no Brasil em 2013, “Como construir a história da geografia?”,

encontramos fragmentos que evidenciam a ligações evolutivas e nos auxiliam a

compreender a apropriação e a reinterpretação das teorias sobre o desenvolvimento

científico na Geografia, bem como identificar as orientações de como proceder para

construirmos uma “historiografia da Ciência Geográfica”. Tais orientações foram

classificadas em três dimensões, vejamos.

Na primeira dimensão, evidencia-se o reconhecimento de que existem

várias possibilidades de conduzir os estudos na área, o que implica o cuidado de

buscar um caminho que supere “os mitos” e o senso comum para construir o

conhecimento científico. O que, de acordo com o autor, requer “um olhar crítico

sobre os saberes que ela escolhe tratar e sobre o período em que eles são

elaborados”, uma vez que toda e qualquer “construção de uma história” é

seguramente um ponto de vista e, por isso, “[...] depende sempre da perspectiva que

ela retém, pois ela influencia as pistas que exploram aquele que a escreve e as

escolhas dos quais ele procede.” (CLAVAL, 2013, p. 3).

O entendimento explícito nos elementos explanatórios utilizados pelo

autor exprime três considerações que merecem destaque: i) o reconhecimento da

heterogeneidade da ciência; ii) a concepção de que o fazer científico é uma prática

discursiva (o “intercurso” proposto por T. Kuhn), por isso a produção historiográfica é

um discurso científico; e, iii) em consequência da anterior, a compreensão de que

esses discursos (produzidos pela historiografia) são carregados de pressupostos

filosóficos, considerando os elos evolutivos de Fleck (2010), de “estilo de

Page 79: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

79

pensamento” do pesquisador e de “coletivo de pensamento” do grupo social do qual

faz parte.

Sobre a segunda dimensão, consideremos o seguinte fragmento:

A construção da história de um desenvolvimento científico repousa sobre a tomada de consciência (i) da dimensão individual, biográfica, da pesquisa, (ii) do contexto em que ela se desenvolve e (iii) da lógica das ideias que ela coloca em evidência. Ela implica também (iv) que sejamos conscientes das leituras ideológicas que se podem fazer de todo discurso. (CLAVAL, 2013, p. 3)

O discurso do autor, além de desvelar a compreensão de ciência como

uma construção simultaneamente individual e social35, reforça o ponto de vista da

relevância da “linguagem” de Kuhn e do discurso de Foucault e reinterpreta a

problemática dos contextos da descoberta e da justificação como campos de

investigação das leituras “ideológicas”. Conforme nos aponta o próprio Claval (2013,

p. 3), “as aproximações contextuais, que são reafirmadas desde uma quarentena de

anos, têm enriquecido consideravelmente as temáticas abordadas[...]”. Ainda nessa

perspectiva, é relevante destacar que no transcorrer de todo o texto de 15 laudas é

possível identificar 6 vezes a utilização do termo “construir” e suas ramificações

(construção, construído, construída), mostrando uma aproximação com a concepção

de ciência como um processo de “construção”.

O texto do professor Vitte (2009b) analisado foi “As influências da filosofia

natural e da naturphilosophie na constituição do darwinismo: elementos para uma

filosofia da geografia física moderna”, publicado no Boletim Goiano de Geografia.

Um ensaio que tem como objetivo “argumenta[r] que a teoria da evolução de Charles

Darwin sofreu forte influência da naturphilosophie de Schelling e Hegel,

representando um avanço positivo nas concepções de teleologia da natureza.”

(VITTE, 2009b, p. 15). No Quadro 03, sistematizamos os dez principais fragmentos

que selecionamos para apresentar as ligações evolutivas expressas nos elementos

explicativos utilizados pelo autor sobre as teorias da evolução epistemológica.

Nos Fragmentos 01 e 02, é notória a concepção de que as Teorias são

condicionantes de grande relevância no desenvolvimento científico, inclusive com

35 Entendimento que pode ainda ser elucidado pela explicação do autor de que “a disciplina é

construída pelos homens, de onde convém conhecer suas ferramentas mentais, compreender as motivações, cercar as ambições e reconstituir a carreira: a dimensão biográfica é essencial” (CLAVAL, 2013, p. 3).

Page 80: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

80

potencial para consolidar, estruturar e manter um campo ou subcampo científico

como a Geografia Física, ilustrando que o evolucionismo teve influência nas

dimensões metodológica, epistemológica e ontológica na evolução da geografia

física.

Quadro 3 - Fragmentos do texto do professor Antônio Carlos Vitte

Fragmento 01 – Influência das teorias no desenvolvimento científico (p.14)

Nesse ano de 2009, comemoramos 200 anos de nascimento de Charles Darwin (1809-1888) e os 150 anos da publicação de sua obra célebre. A origem das Espécies (DARWIN, 1981), tornando-se um verdadeiro paradoxo na ciência, pois ao mesmo tempo em que a Teoria da Evolução permitiu o desenvolvimento da moderna biologia, com impactos na medicina e na biotecnologia, as suas ideias provocaram ainda, em 2009, um mal-estar na civilização, ao ponto de nas últimas décadas assistirmos a um revigoramento das teses criacionistas que vêm questionando o uso da Teoria da Evolução nas escolas. ‘Assim como Copérnico retirou a Terra do centro do universo, o universo darwinista destruiu o homem como epicentro do mundo natural’ (STIX, 2009, p. 28)

Fragmento 02 – Tipos de influência (p.14)

Para Claval (1974, p. 48 – 49), o traballho de Darwin promoveu um profundo recrudescimento metodológico na Geografia, particularmente na geografia humana, fornecendo um método para a análise científica da sociedade e dos agrupamentos humanos. Para Claval (op.cit.), Darwin demonstrava o papel do meio como motor da evolução, que ocorreria a partir de uma luta constante entre os organismos, sendo esse o motor da vida. Ainda para o autor (Claval, op. Cit), o evolucionismo desenvolvido segundo as teses darwinianas colocava-se como método e, ao mesmo tempo, permitia a abordagem histórica da sociedade. Fato que também é corroborado por Stoddardt (1986, p. 158 – 159), que além de fornecer o método de análise, as reflexões de Darwin propiciaram o desenvolvimento da geografia física, na medida em que os processos passaram a ser compreendidos como contínuos e que se ocorrem ao longo do tempo, perspectiva que produz uma série de transformações na paisagem. Essa concepção, segundo Stoddardt (op. Cit.), foi motivada pelo princípio da preservação da raça e da luta do mais forte e, do outro lado, pelo princípio da causalidade newtoniana, que permitiram o desenvolvimento da Geografia como um todo.

Fragmento 03 – Ruptura epistemológica (p. 16)

No entanto, a nosso ver, apesar dessas sérias e importantes contribuições à história da Geografia, essas análises carecem de um maior aprofundamento, no sentido de se buscar uma estrutura

Page 81: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

81

epistemológica que não seja necessariamente marcada por uma ruptura, mas a possibilidade de entendermos a história das ideias e sua matriz resultante a partir de um jogo tenso entre épocas e posições, muitas vezes dadas como contraditórias.

Fragmento 03 – Concepção de desenvolvimento científico (p. 17)

Outra interpretação epistemológica, e que nega a matriz humeana, é a ligada à filosofia transcendental de Kant. A questão é superar a interpretação epistemológica principalmente como formulada por Foucault (1970), admitindo a possibilidade de que haveria ganho real de conhecimento quando há transição de uma visão de mundo para outra, e de que esse ganho pode ser pragmatismo, pois quer tornar o que quer que ocorra no passado irrelevante para o que quer que venha a ocorrer em um tempo posterior. Embora não façamos objeção à proposta de Foucault (1970), qual seja, a de trazer à luz as condições de possibilidade de nossas alegações de conhecimento, acreditamos que o conhecimento científico, que consiste em um conjunto de proposições teóricas, que podem se revelar verdadeiras ou falsas, acrescido do conjunto não explicitado de concepções metateóricas ou mesmo metafísicas, constitui o ‘plano de fundo’ dessas proposições.

Fragmento 04 – Diversidade epistemológica (p. 18)

As interpretações eram múltiplas, assim como múltiplas eram as geografias e as biologias praticadas na Europa até o século XIX, quando a síntese darwiniana e a ratzeliana irão cada qual, a seu modo, unificar os seus objetos e suas epistemologias.

Fragmento 05 – Importância dos conceitos (p. 19)

Outro conceito importante, que exercerá forte influência em Herder, será o de Lebenkraft, que diz respeito ao papel do meio físico no desenvolvimento do organismo e das espécies. Para Blumembach, o meio natural, particularmente o clima e a oferta de alimentos, poderia causar degeneração das espécies, com sua hibridação, criando novos tipos de organismos (espécies), provocando assim uma degeneração da espécie com a formação de novos tipos. As concepções de Bildungstrieb e de Lebenkraf exerceram poderosa influência nas ciências naturais, demonstrndo claramente a possibilidade de produção de novas espécíes.

Fragmento 06 – Ligações evolutivas (p. 16)

Segundo o bloco criacionista no século XIX, representado por Cuvier, é possível que uma ou outra de suas partes, isto é, algumas das referidas concepções metateóricas e uma outra proposição teórica que tenha resistido, se despresdido e vindo,

Page 82: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

82

posteriormente, a se acomomodar em algum outro lugar. Um exempo para esse trabalho é o das mudanças evolutivas, que irão gerar a emergência de novos problemas e que, no caso da Geografia, serão mesclados com resíduos de concepções tidas como ultrapassadas, mas que serão importantes para a consolidação de modos explicativos e interpretativos da realidade.

Fragmento 07 – Valores sociais

Outro referência importante, que será fundamental para Darwine para a estruturação da geografia física, será Charles Lyell, que com seus ‘Princípios de Geologia’, com sua visão de geologia histórica e do princípio do ‘uniformitarismo’, mais a concepção paleontológica do geólogo Sedgwich, auxiliará Darwin na montagem do sistema explicativo para a Teoria da Evolução das Espécies, pois a despeito da variabilidade geográfica, as causas atuantes no presente serão sempre as mesmas e com a mesma intensidade e casualidade. Segundo Deswmond e Moore(1995), o princípio do uniformitarismo de Lyell fora elaborado para combater a concepção dialética de natureza de Hegel, fato que colocaria a sociedade vitoriana em confronto com as reinvidicações operárias que estavam em curso na Inglaterra.

Fragmento 08 – Estilo de pensamento de Laudan

O trabalho de Lyell é o ideal metodológico newtoniano, pois a explicação se fundamenta na vera causa, rejeitando a hipótese, reconhecida pelos newtonianos como especulação. Uma influência marcante em Lyell é John Herschel, que, com sua metodologia da vera causa, não permitia conjecturas e teorizações, criando, [...] uma fina aderência na metodologia indutiva. Lyell justificou a metodologia científica de Herschel e desenvolveu a geologia moderna, em que a estrutura chave foi o uniformitarismo. Herschel consideou o livro Princípios de Geologia, de Lyell, um brilhate exempo de aplicação da metodologia da vera causa na geologia.

Fragmento 9 – Definição de teoria e as múltiplas contingências

A teoria da evolução, como formulada por Darwin, é um processo de construção mental e epistemológica fundamentado em um idealismo metafísico da qual participaram Schelling, Goethe e Humboldt, tendo nas concepções de teleologia de Kant, a base para argumentarem cientificamente a dinâmica evolutiva da natureza. [...] a obra darwiniana não pode ser concebida apenas como o produto da sociedade e da ciência vitoriana, mas também como um complexo intercruzamente de várias influências, particularmente as desenvolvidas pela biologia da Naturphilosophie, pelas reflexões dos filósofos da natureza e pela metodologia newtoniana.

Fonte: Boletim Goiano de Geografia (2009. V.29, n.1, p. 13 – 32)

Page 83: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

83

Se nos Fragmentos 01 e 02, Vitte (2009b) reconhece a contribuição das

teorias no desenvolvimento científico, no Fragmento 03, no entanto, o autor chama

atenção para o fato de que, além de não ser a única fonte de evolução, ela não

acontece através de rupturas abruptas ou, como aponta Foucault, de mudança

direta de uma episteme para outra. Em outros textos, Vitte (2011a, 2011) explica e

ilustra a existência de “zonas de transição”, seja de uma episteme para outra, um

programa de pesquisa para outro, ou um campo científico para outro. Vejamos a

fala do professor na íntegra:

Os trabalhos mais recentes em sociologia do conhecimento sugerem que a ciência é um campo heterogêneo, cuja linguagem dos paradigmas sugere a existência de grandes continentes com ideias e práticas estáveis. A nova visão de ciência é que ela é semelhante a arquipélagos e ilhas, em que cada qual representa uma subcultura distinta com diferentes programas de pesquisa centrados sobre um problema particular. Mais do que incomensurabilidade entre os programas, há uma grande zona de transição entre as ilhas em que cada qual utiliza uma grande variedade de símbolos e de linguagens. (VITTE, 2011a, p. 43)

A fala de Vitte (2009b) também indica a heterogeneidade da ciência, o

que abroga o princípio moderno da universalização da ciência, que legitimou a

concepção de uma única forma de produzir conhecimento científico “válido”, através

da padronização e simplificação, independentemente da natureza do objeto, da

espacialidade, da temporalidade e da especialidade. A linha de pensamento é que

os estudos atuais sobre as ciências comprovam a existência da heterogeneidade,

não só em função do volume, abrangência e fluxo da produção científica

contemporânea, mas da atuação coimplicada de múltiplas contingências. Um

entendimento que, conforme apontado no Fragmento 04, existia antes do século

XIX e contemplava a diversidade de objetos, de interpretações e de epistemologias.

No Fragmento 05, nos argumentos utilizados por Vitte (2009b) sobre a

influência da filosofia natural e da naturphilosophie na teoria evolucionista, fica

explícita a relevância que o autor atribui à inserção de novos conceitos, assim como

de mudanças nas concepções de “natureza” e de “realidade” na evolução

epistemológica. Isso porque, nos elementos explicativos utilizados pelo autor, fica

explícito o entendimento que dialoga com Guimarães (2017, p. 15) de “as categorias

como entes ontológicos”. E, consequentemente, os conceitos não são “naturais” ou

a priori, pois “[...] toda conceituação da categoria será uma determinação da

Page 84: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

84

existência do modo-de-ser-no-mundo”, portanto, são “ontoepistemologicamente”

determinados pela sua possibilidade de existência.

No Fragmento 06, Vitte (2009b) apresenta a estrutura de um novo saber

após a consolidação dos modos explicativo-interpretativos, revelando a coexistência

de novos e velhos fundamentos e temas/problema, configurando a existência de

“resíduos” ou das ligações evolutivas desveladas por Fleck (2010).

No Fragmento 07, por sua vez, Vitte (2009b) nos revela a pressuposição

de que os saberes não são permeados apenas por valores epistêmicos, mas

também por valores sociais – “reivindicações operárias que estavam em curso na

Inglaterra.” (VITTE, 2009, p. 19) –, conforme nos aponta Bloor (2009).

Nos Fragmentos 08 e 09, além de apresentar a definição de teoria, com

uma construção mental impregnada de fundamentos filosóficos, de resíduos de

outras teorias (conceitos) e condicionantes socioculturais, recorrer ao estilo de

pensamento de Laudan justifica sua compreensão e potencializa a força das

múltiplas contingências para provocar mudanças evolutivas.

Em síntese, a presença dos elementos explicativos (implícitos e

explícitos) nos textos dos autores Reis Jr, Claval e Vitte, tais como concepções

(pressuposições), conceitos e referências a autores como Foucault, Kuhn, Laudan,

entre outras ligações evolutivas, revela-nos a apropriação, reinterpretação e

retomadas (através das mudanças, permanências e características) das teorias

sobre o desenvolvimento do conhecimento científico na ciência geográfica, que,

consequentemente, fazem parte dos pressupostos que permeiam e informam esta

tese, conforme poderá ser observado ao longo dos próximos capítulos.

Page 85: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

85

3 Cenário epistêmico da Modernidade Reflexiva: o espaço-tempo

das múltiplas contingências?

O momento é o de mundos que se intercruzam e se sobrepõem, o que, necessariamente, coloca a questão das cartografias das subjetividades quando o assunto é a análise das práticas espaciais. Isto porque não estamos inseridos apenas em teias, malhas e tramas, pois diferentemente da aranha, que, ao tecer os fios, constrói lentamente os nós dos destinos, falta-nos o sentido ontológico e teleológico do significado do ser e do estar para fundamentar os nós. Há um problema ontológico a ser enfrentado pela geografia, pois a Terra e o Mundo estão em crise, associada a uma mutação e a uma transição no sentido e no significado da condição humana. (VITTE, 2011a, p. 17)

Tomamos a fala de Vitte (2011a) na epígrafe como plano de fundo para

apresentarmos duas inferências que contribuem para esclarecer as premissas a

serem trabalhadas ao longo deste capítulo. A primeira é sobre a relação que se

estabelece entre o uso das “cartografias das subjetividades36 na análise das práticas

espaciais” e a expressão “múltiplas contingências” que aparece no título. Isso

porque, ao longo deste trabalho, utilizaremos a expressão múltiplas contingências

para designar as várias circunstâncias, oriundas da “Modernidade reflexiva”, que

atuam de forma eventual, difusa e imbricada em velhas e novas convergências na

dinâmica científica contemporânea. Mais especificamente, nossa premissa é que as

múltiplas contingências que produziram mudanças evolutivas ou “revolucionárias”

potencializaram direta e indiretamente a Ressignificação Científica contemporânea,

sendo esta um movimento intelectual, e descrevê-las “oferece uma maneira fecunda

de explicar a dinâmica do pensamento científico [...], a ideia de movimento

intelectual conceitualiza assim a noção de contexto; é o conjunto da vida intelectual

de uma época que é avaliado; o enfoque tem, da mesma forma, uma dimensão

pluridisciplinar” (CLAVAL, 2013, p. 11).

Quanto à segunda inferência, Vitte (2011a) deixa claro que estamos

imersos nas tramas das redes e, por isso, precisamos compreendê-las para elucidar

36 Não que estejamos nos propondo desenvolver “cartografias das subjetividades”, mas aproveitamos

o ensejo para apontar evidências do que qualificamos como diversidade metodológica, uma das múltiplas contingências inerentes da modernidade reflexiva que produziram mudanças científicas.

Page 86: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

86

o mundo contemporâneo. Pressuposto que está intrinsecamente relacionado ao

axioma de que os discursos científicos (ou “intercursos” conforme designa Kuhn)

mudam em função das interações que acontecem no tempo, no espaço e no virtual.

Com isso, a evolução epistemológica de um saber, que acontece através das trocas,

descobertas, construções, validações, aproximações e embates estabelecidos no

cotidiano do fazer científico contemporâneo, na condição de produção, circulação e

apropriação do discurso científico, é potencializada em função de sua organização

em redes.

A segunda premissa é que as redes, além de conectarem ideias, atores

(humanos e não humanos), eventos, coletivos e diferentes espacialidades e

especialidades na modernidade reflexiva, associadas às múltiplas contingências,

provocam mudanças científicas revolucionárias no desenvolvimento teórico,

conceitual e metodológico dos campos científicos e dos saberes contemporâneos.

Pois, as práticas discursivas orquestradas na e através das redes repercutem em

potenciais similitudes e distinções na dinâmica científica e, consequentemente, na

“especialização cognitiva”; o que consolida, nutre e propaga territórios

epistemológicos nas ciências contemporâneas.

Neste capítulo, o intento é responder às questões: Por que a

modernidade reflexiva, através das múltiplas contingências, provocou a

ressignificação científica? Como a evolução epistemológica na modernidade

reflexiva repercutiu no processo de formação de Territórios Epistemológicos? E por

fim, por que e como os programas de pós-graduação em Geografia, através das

redes discursivas, consolidam, nutrem e propagam territórios epistemológicos na

ciência geográfica contemporânea?

Ainda neste capítulo, produto da interlocução teórica, têm-se como

objetivos: explicar as características da modernidade reflexiva que repercutem na

dinâmica científica, através das múltiplas contingências; analisar o papel das redes

contemporâneas na ressignificação científica; e desvelar a contribuição da

ressignificação científica na “especialização cognitiva”.

Destarte, nosso argumento principal é de que o período que corresponde

à contemporaneidade, referente aos últimos 50 anos, é marcado por diversas

características que circunscrevem múltiplas contingências diretamente vinculadas à

Page 87: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

87

crise dos sentidos e suas implicações na atividade científica, entre elas a

desqualificação ontológica, a desconfiguração axiológica, a desestabilização

epistemológica e a diversidade metodológica, que, associadas à nova ordem social

em rede da “Modernidade reflexiva”, afetam as tradições de pesquisa, o que

implicou uma Ressignificação Científica para “um mundo singularmente novo”

(MORIN, 2002). Uma ressignificação proveniente das mudanças evolutivas, que,

segundo a perspectiva de Kuhn (1962, 2011 e 2017), são revolucionárias, uma vez

que afetam e afetaram significativamente não só o fazer científico, através

transformações dos modos explicativos e interpretativos, nas formas de produzir o

conhecimento científico, mas também alteraram e alteram de forma contingente

concepções, conceitos, propósitos e valores imbricados nos “intercursos” que

estruturam a episteme. Uma ressignificação que repercute na evolução

epistemológica da Geografia.

3.1 Modernidade Reflexiva e a Ressignificação Científica

Nos últimos anos, é grande a celeuma que vem acontecendo em torno da

temática “pós-modernidade”. Discussões variadas que apresentam pontos

divergentes e convergentes. Entre os principais pontos divergentes, podemos citar:

as terminologias pós-modernidade, alta modernidade, modernidade tardia ou

radicalizada; quanto à definição ou ao próprio conteúdo e amplitude do que se

caracteriza como a “condição pós-moderna” – superação, rejeição ou

descontinuidade dos pressupostos da modernidade; e os diferentes enfoques que

são dados ao tema para alterações culturais, artísticas, políticas, científicas,

econômicas e socais.

Modernidade ou modernização, para Rouanet (1985), refere-se ao

“Iluminismo”, isto é, a um movimento ocidental que tinha como pretensão provocar a

“transformação de sociedades arcaicas” para sociedades guiadas pelos “princípios

da racionalidade, universalidade e ordenação”, em que a reorganização das

“estruturas sociais obsoletas” seria regida para a “ordem” e o “progresso”, para

assegurar a todos condições mínimas de vida, à luz de novos princípios da ciência.

Page 88: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

88

O “projeto da razão iluminista” tinha como proposta a superação da

“tradição”, que estabelecia o sentido do que deveria ser no agir social, por isso teve

como objetivo reformador a promoção da liberdade e da autonomia no tríplice

registro: do pensamento, da política e do homem do “reino das

necessidades”/trevas. Uma sociedade que tivesse alcançado tais objetivos seria

“Moderna”. A perspectiva era de que tudo que representasse o tradicional fosse

diluído e estabelecesse uma nova forma de pensar, ser e agir, surgindo o império

da racionalidade. Assim também, indicam Dutra Gomes e Vitte (2017, p.53):

O projeto de conhecimento moderno pautou-se na busca de universais, objetivando entendimentos que representassem a universalidade, com as regras, leis gerais, que são validadas e aplicáveis a tudo e a todos a qualquer tempo e espaço. As influências como as neoplatônicas e herméticas no Renascimento (XIV-XVII) defenderam a existência de ‘forças ocultas’ que movimentavam e governavam a dinâmica da matéria e natureza, e que depois de Newton foram chamadas de Leis da Natureza [...] A matéria foi considerada como passiva, compondo uma natureza considerada como máquina. Ambas precisariam dessa força, vista como de índole absolutamente racional, ordenada e equilibrada, para funcionarem e se movimentarem – tudo o que parecia aleatório ou desordenado seria apenas aparente, imprecisões da subjetividade em captar o funcionamento fundamental da natureza. [...] as pretensões de construir um conhecimento universal fizeram com que a razão ocidental procurasse dar sentido, ou mesmo, dominar tudo o que era acaso, contingente, particular e incerto na dinâmica do mundo.

Basicamente, a existência de leis universais e a busca da ordem

(mecanismo) que tudo regia como “força oculta” são os pilares que sustentavam a

ciência moderna e, consequentemente, fundamentavam a forma de ver, conceber,

ser e agir em todos os âmbitos da experiência humana e social no contexto da

modernidade, inclusive na Geografia Moderna. Essa compreensão coaduna com a

fala de Silveira e Vitte (2011, p. 38) de que:

O caminho tomado pela ciência moderna no final do século XVIII e início do século XIX gerou uma série de ramificações e especializações que visavam ao domínio cada vez maior da esfera empírica de investigação e que, em contrapartida, excluía do universo científico a busca por uma verdade última ou pelo fundamento essencial da realidade. A ciência moderna pretensamente buscou a verdade, que seria alcançada pela reunião de um conhecimento meticuloso sobre o mundo para a composição de uma explicação cada vez mais sóbria e válida acerca da realidade. [...] ao longo dos tempos. Tal premissa se mostrou impossível, pois os campos disciplinares ficaram desconectados de suas premissas filosóficas no momento de gênese moderna das Ciências.

Para os autores, os pilares para “o completo domínio da natureza”,

principal intento da ciência moderna, seriam: I) a simplificação (a análise partir do

Page 89: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

89

simples para o complexo como procedimento para o conhecimento) e a

fragmentação (a análise em parte para conhecer a totalidade, o que gerou a

especialização) dos saberes como condição essencial da postura investigativa; II) a

verdade ou efetividade da investigação como a correspondência “ideal” (retrato

fidedigno) do empírico (este como o recorte analítico da realidade); III) a

materialidade da realidade (objetividade) e o objeto de estudo como independentes

do sujeito; IV) a crença de que o conhecimento científico progressivo da realidade

leva ao completo “domínio da natureza”; e V) a ruptura da ciência com a Filosofia, o

que, segundo Silveira e Vitte (2011), aconteceu pela total “ignorância da discussão

filosófica”. Em outros termos, a eliminação da investigação filosófica da ciência e/ou

o desconhecimento sobre os pressupostos filosóficos que fundamentam as escolhas

teóricas e metodológicas do pesquisador, pois toda seleção implica, de antemão, a

existência de “uma visão geral da realidade, pela qual se estabelecem os princípios

e a forma de proceder diante de qualquer objeto e, mesmo, de reconhecer como tal

qualquer objeto da ou na experiência” (SILVEIRA; VITTE, 2011, p. 39),

caracterizando-se pela simplificação errônea da “compreensão do que seja a

realidade” como objetiva, concepção confirmada pela indicação da “linguagem

lógico-matemática” como única forma de validar o conhecimento científico.

Entre as consequências da adoção dessa “postura investigativa”,

instituída e legitimada pela ciência moderna, principalmente através do sistema

filosófico do positivismo lógico, sem maiores reflexões filosóficas, os autores

destacam “a fragmentação das ciências” ou a (hiper)especialização. Tomando como

referência a unidade científico-filosófica da Geografia (física e humana), os autores

alegam que os caminhos da especialização foram constituídos pela diversidade de

método em função das exigências da natureza do objeto, o que provocou a

fragmentação de “inúmeras disciplinas científicas”. Nas palavras desses autores:

A variação metodológica, de acordo com o objeto, implicou uma diversificação das concepções de mundo subjacentes às teorias e análises em cada ciência. Sem a investigação filosófico-metafísica ou erroneamente estruturadas sobre um sistema positivista, as ciências começaram, no diferenciar metodológico que exigia seu objeto e seus objetivos, a falar línguas distintas, de maneira que a relação entre elas se tornou mesmo insustentável, imaginando cada uma em seu domínio caminhar no rumo da verdade pela compreensão cada vez mais apurada e detalhada a partir de seus métodos, cujos pressupostos filosóficos nem de longe haviam sido discutidos. (SILVEIRA; VITTE, 2011, p. 40).

Page 90: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

90

Silveira e Vitte (2011) ilustram como a inserção de novos pressupostos

filosóficos acarretam mudanças na dimensão metodológica da atividade científica.

Isso porque, quando alguma das dimensões (seja ontológica, epistemológica,

metodológica e axiológica) é alterada em função da coimplicação e da reflexividade,

as outras ou uma das outras dimensões também são afetadas. No trecho acima, os

autores indicam inserção da diversidade metodológica na investigação, e a

consequente desqualificação ontológica provoca a diversidade lexical que, segundo

Kuhn, produz a “especialização cognitiva”.

Para Castro-Gomez (2005, p. 87): “A crise atual da modernidade é vista

pela filosofia pós-moderna e os estudos culturais como a grande oportunidade

histórica para a emergência dessas diferenças largamente reprimidas”. A autora nos

alerta que a celeuma sobre o “‘fim’ da modernidade implica certamente a crise de

um dispositivo de poder que construía o “outro” mediante uma lógica binária que

reprimia as diferenças” (CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 87), portanto, cria e concretiza

as dualidades, a fragmentação e a dominação. A principal tese que a autora defende

é que “esta crise não conduz à debilitação da estrutura mundial no interior da qual

operava tal dispositivo”. Os próprios debates que se estabelecem na atualidade,

indagando sobre os conceitos e os fundamentos, evidenciam não só os desacertos

do “projeto da razão iluminista” como a própria delimitação sobre a modernidade –

Ainda estamos na modernidade? É período de transição? Ou é o fim da

modernidade? Seria o triunfo do irracionalismo ou do relativismo epistêmico? É

impossível pensar na atividade científica ou em qualquer outra prática social

contemporânea, com os ditames da racionalidade totalmente ausentes ou num “vale

tudo”.

Dos termos frequentemente utilizados pelos teóricos que abordam o

período contemporâneo denominado como modernidade “alta”, “tardia”, “pós” e

“hiper”, entre outras adjetivações, optamos por Modernidade “reflexiva”. Isso

porque é uma expressão que advém dos estudos realizados por Giddens (2002)

para designar o período marcado pela reflexividade37 e pela interseção e

37 Segundo Giddens (2002, p. 45): “a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as

práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informações renovadas sobre estas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter [...] todas as formas de vida social são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os atores têm delas. [...] em todas as culturas, as práticas sociais são rotineiramente alteradas à luz de descobertas sucessivas que

Page 91: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

91

reordenação do tempo e do espaço, numa organização social pós-tradicional que

repercutiu em transformações nas ferramentas cognitivas, nos conteúdos e sentidos

atribuídos às instituições modernas na vida social cotidiana. Para Silveira e Vitte

(2011, p. 44), não é pós-modernidade, com “estruturas epistêmicas diferenciadas,

mas [...] uma extrapolação da modernidade; trata-se de uma hipermodernidade, que

reclama a superação das condições ideológicas que povoam o universo do

conhecimento [...]”.

Segundo Ruiz (2003), se a modernidade trouxe a imposição do mito da

razão como única fonte do saber, a pós-modernidade traz consigo as coimplicações,

entre elas a diluição dos referentes simbólicos (os sentidos e significados

socialmente instituídos) que faziam parte das tradições e, como seu efeito tributário,

a “plurissignificação interpretativa” e/ou multiplicidade ou esvaziamento dos sentidos,

que trazem a relatividade das verdades, propósitos, crenças e valores, que

acarretaram consequências perversas à humanidade e ao meio ambiente. Unger

(1998, p. 28) coaduna com o ponto de vista do autor e complementa apontando a

existência do que denomina de “deserto contemporâneo [...] como o resultado de

uma dinâmica na qual o homem entende sua humanidade na razão direta da sua

capacidade de dominar a natureza e outros homens”, o que está intrinsecamente

vinculado à diluição dos fundamentos filosóficos e éticos nas experiências cotidianas

e suas reflexões, isto é, a reflexividade dos sentidos “do ser” e do que “deve ser”.

Para Giddens (2002, p. 10-11), a Modernidade Reflexiva coteja as seguintes

características:

A modernidade é uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional. A dúvida, característica generalizada da razão crítica moderna, permeia a vida cotidiana assim como a consciência da razão filosófica, e constitui uma dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo. A modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese – afirmações que bem podem ser verdadeiras, mas que por princípio estão sempre abertas à revisão e podem ter que ser, em algum momento, abandonadas. Sistemas de conhecimento acumulado – importantes influências de desencaixe – representam múltiplas fontes de autoridade [...]. Nas situações a que chamo de modernidade ‘alta’ ou ‘tardia’ – nosso mundo de hoje –, o

passam a informá-las. Mas somente na era da modernidade a revisão da convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana, inclusive à invenção tecnológica no mundo material”. Daí a adjetivação “reflexiva”, um espaço-tempo que sente e ressignifica as reflexões das reflexões sobre a própria prática, a reflexão dos conhecimentos sobre os próprios conhecimentos e das tecnologias - é a reflexividade do eu, dos saberes e das instituições sociais.

Page 92: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

92

eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído reflexivamente.

Parafraseando o autor, a modernidade reflexiva é circunscrita pelo

embate científico entre a racionalidade moderna e filosófica, entre o “colapso das

verdades” absolutas e o relativismo estabelecido pelo princípio da “dúvida” e das

“incertezas científicas”, entre a diversidade de dados, fontes, instituições e sentidos

e a confiabilidade a partir do “desencaixe” com o real e a pluralidade de sentidos,

imprimindo, com isso, uma crise existencial e ontológica nos “sistemas de

conhecimento acumulado”, nos “sistemas de inteligibilidade” consolidados e, com

ela, nas tradições de pesquisa. E, como consequência, instituindo a necessidade de

uma nova “agenda de pesquisa para as Ciências sociais” (GIDDENS, 2002).

A modernidade reflexiva é oriunda da associação intrínseca da Revolução

Tecnológica e Científica com a Mundialização/globalização e do avanço da

acumulação capitalista sem precedentes na história, que repercutiu e repercute em

profundas transformações nos sistemas social, físico e cognitivo, através de

alterações profundas nas bases substantivas e não substantivas tradicionais, que

definiam os conteúdos das práticas socioespaciais, as relações sociedade/natureza,

as concepções humanas e coletivas, os valores éticos e sociais e os propósitos da

existência humana (sentidos e significados tradicionalmente estabelecidos). Pois o

mundo, realidade, natureza e sociedade passaram a ser concebidos como

articulados, imprevisíveis, complexos, diversos, caóticos e múltiplos e, com isso,

“enfrentamos tempos incertos e fluidos com ferramentas intelectuais de outras

épocas, de outros tempos, observando a realidade como se ela ainda fosse

considerada estável, homogênea e determinada” (MORAES, 2008, p. 13). Dutra

Gomes e Vitte (2017, p. 52) complementam o ponto de vista da autora esclarecendo

que

Foi justamente a partir da Ciência que o acaso, o aleatório, as incertezas foram reconhecidas como inerentes aos fenômenos da natureza (físicos e humanos); influentes, de uma forma ou de outra, na totalidade dos processos e nas formas de conhecê-los. Entendimentos advindos de campos como a Eletrodinâmica no século XIX, Teoria da Relatividade, Mecânica Quântica, Teorias dos Sistemas na primeira metade do século XX e, mais recentemente no final do século XX, os Sistemas Dinâmicos Não lineares, Física do não equilíbrio, Sistemas Dinâmicos Complexos, Ciência e Teoria da Complexidade são alguns que oferecem o arcabouço de sustentação. É possível observar esse movimento histórico-epistemológico e condições atuais de afirmação e incorporação das incertezas científicas utilizando a Geografia como exemplo.

Page 93: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

93

Essa “ressignificação” do científico acontece em função da reflexividade

das novas descobertas científicas e repercute na evolução epistemológica dos

saberes e na relativização e mercantilização das instituições sociais e dos sistemas

tradicionais, principalmente da própria “tradição” para atender “às ordens da

transformação” do imaginário global e capitalista, das ciências, portanto. Pois as

experiências cotidianas reflexionam as alterações (em ritmo, amplitude e

profundidade) das múltiplas implicações da experiência global na práxis social e na

identidade do eu, que, na modernidade reflexiva, influenciam e são,

simultaneamente, influenciadas por ela. Identidades que se tornaram interligadas,

indefinidas e extensivas no tempo e no espaço e colocam a tradição “em constante

mutação [...] no contexto do deslocamento e da reapropriação de especialidades,

sob o impacto da invasão dos sistemas abstratos”. (GIDDENS, 1991; DUTRA

GOMES; VITTE, 2017)

Na modernidade reflexiva, a linguagem, a especialização e a tecnologia,

desempenharam as condições essenciais, através reflexividade institucional, “tanto

na forma de tecnologia material quanto da especializada expertise social”

(GIDDENS, 1991, p. 77) para consolidação de “novas” tradições modernas, a

ciência, que, no caso, são “os sistemas de peritos”. Vejamos o que Giddens (1991,

p. 74) nos aponta:

[...] uma finalização, sob o disfarce da emergência de uma sociedade pós-tradicional. Esta expressão pode, à primeira vista, parecer estranha. A modernidade, quase por definição, sempre se colocou em oposição à tradição; não é verdade que a sociedade moderna tem sido "pós-tradicional"? Não, pelo menos da maneira em que me proponho a falar aqui da "sociedade pós-tradicional". Durante a maior parte da sua história, a modernidade reconstruiu a tradição enquanto a dissolvia. Nas sociedades ocidentais, a persistência e a recriação da tradição foram fundamentais para a legitimação do poder, no sentido em que o Estado era capaz de se impor sobre ‘sujeitos’ relativamente passivos. A tradição polarizou alguns aspectos fundamentais da vida social pelo menos, a família e a identidade social, que, no que diz respeito ao "iluminismo radicalizador", foram deixados bastante intocados.

A tese do autor não é do fim da modernidade, mas de uma modernidade

tardia em que acontece a estruturação de uma nova forma de organização social,

que ele denomina “Sociedade pós-tradicional”. E, paradoxalmente, essa nova ordem

social não propõe a “dissolução absoluta” da tradição (por isso o pós), mas impõe à

tradição, e a tudo relativo a ela (família, identidade do eu, instituições e sistemas

abstratos de conhecimento), um novo papel na ordem social e científica, o que

Page 94: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

94

implica a sua “reconstrução”, de forma que possa atender às demandas do mercado

pela difusão intensiva e unificadora da globalização, que, necessariamente,

repercute em processos radicais, intencionais e conectados de “abandono,

desincorporação e problematização da tradição” (GIDDENS, 1991, p. 74).

Assim como Giddens (1991), para Kunh (2017), a especialização e a

tecnologia “assumem, aparentemente, relevo especial” nesse processo que

denominamos de ressignificação, com certeza na reflexividade oriunda do

imbricamento, pois potencializa o estreitamento no âmbito da competência técnica e

científica, necessária como “ferramentas cognitivas cada vez mais poderosas” para o

desenvolvimento dos instrumentos (científicos e técnicos) especiais para a evolução

do conhecimento. Por isso, para elucidar a reflexividade na ordem pós-tradicional, é

imprescindível a compreensão das características essenciais do que seja tradição:

Todas as tradições têm um conteúdo normativo ou moral que lhe proporciona um caráter de vinculação. Sua natureza moral está intimamente relacionada aos processos interpretativos por meio dos quais o passado e o presente são conectados. A tradição representa não apenas o que ‘é’ feito em uma sociedade, mas o que ‘deve ser’ feito. Isto não significa, é claro, que os componentes normativos da tradição sejam necessariamente enunciados. A maioria deles não o é: são interpretados nas atividades ou orientações dos guardiões. A tradição abarca o que faz, e pode ser inferida, porque seu caráter moral apresenta uma medida da segurança ontológica para aqueles que aderem a ela. Suas bases psíquicas são afetivas. Há, em geral, profundos investimentos emocionais na tradição, embora eles sejam mais indiretos que diretos; eles se originam dos mecanismos de controle da ansiedade proporcionados pelos modos tradicionais de ação e de crença. (GIDDENS, 2000, p. 84)

Um dos principais aspectos que chamam atenção na fala do autor sobre a

essência das tradições é a existência do conteúdo normativo, que determina o que

precisa ser feito e, com isso, liga e estrutura o círculo temporal – passado, presente

e futuro – e os laços sociais e psicoafetivos, que justificam sua existência e o

comprometimento dos participantes. O problema é quando a reflexividade38 provoca

mudanças no seu conteúdo que acarretam profundas alterações existenciais,

gerando de forma exacerbada o individualismo e a dominação sobre o outro ou

sobre o meio. Em relação à natureza, não é diferente, vejamos:

38 Por exemplo, a “reflexividade epistêmica”, que reconstrói as tradições científicas e provoca o que chamamos

de desestabilização epistemológica, pois potencializa novas formas de ver, conceber e fazer o científico onde já existiam modos e formas padronizadas de produzir o científico.

Page 95: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

95

A natureza assim como a tradição foram dissolvidas. Hoje em dia, entre os outros términos, podemos falar – em um sentido real – do fim da natureza, uma maneira de nos referirmos à sua completa socialização. A socialização da natureza significa muito mais que apenas o fato de o mundo natural estar sendo cada vez mais marcado pela humanidade. A ação humana [...] há muito deixou sua marca no ambiente físico. (GIDDENS, 1991, p. 97)

A premissa é que a intensidade, a abrangência, o fluxo e o volume das

interações que caracterizam as experiências locais e globais na contemporaneidade

requalificam as formas de conceber, isto é, de dar sentido ontológico e teológico ao

significado do ser, do estar e do para quê, tradicionalmente atribuídos à natureza e

à sociedade. E com a reflexividade, as novas concepções produziram mudanças

evolutivas no conteúdo e no contorno do que distinguia o que é Natureza do que é

Sociedade – ou o que estabelecia suas identidades científicas e sociais em função

da “socialização da natureza”. É a existência da complexificação da natureza que,

segundo Vitte (2011, p.17), “tem chamado atenção dos próprios geógrafos, [...] há

uma nova imaginação geográfica” em função do que denominamos de

desqualificação ontológica – um novo significado ontológico para as especialidades

que não admitem separação política e acadêmica entre natureza e sociedade, uma

vez que:

A tradição é um meio de identidade. Seja pessoal ou coletiva, a identidade pressupõe significado, mas também pressupõe o processo constante de recapitulação e reinterpretação [...] a identidade é a criação da constância através do tempo, a verdadeira união do passado com o futuro antecipado. Em todas as sociedades, a manutenção da identidade pessoal e sua conexão com identidades sociais mais amplas são um requisito primordial de segurança ontológica. Esta preocupação psicológica é uma das principais forças que permitem às tradições criar ligações emocionais tão fortes por parte do crente. As ameaças à integridade das tradições são [...] experimentadas como ameaças à integridade do eu. (GIDDENS, 1991, p. 100)

Nosso ponto de vista é que, para o autor, há uma vinculação intrínseca

entre tradição, identidade e imagem social, que interfere na experiência do ser social

(local e global), afetando, de modo intenso e difuso, os processos psíquicos, afetivos

e sociais e, com certeza, o científico. Na modernidade, foram todos implicados pela

reflexividade do eu e das instituições modernas tradicionais, pois a “Ciência,

tecnologia e especialização desempenham um papel fundamental no que chamo de

segregação da experiência” (GIDDENS, 2002, p. 15). Fenômeno que denominamos

de Ressignificação Científica, em função das transformações diretas e indiretas nos

quadrantes que compõem a dinâmica científica.

Page 96: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

96

Destarte, defendemos que a dinâmica científica é composta pela

estruturação contínua e coimbricada entre os quadrantes ou dimensões ontológicas,

axiológicas, epistemológicas e metodológicas. São as conexões estabelecidas entre

as pressuposições e através das teorias (saberes e saber-fazer), dos critérios e

princípios (valores sociais, cognitivos e éticos), dos conceitos (teóricos e empíricos),

da organização social (política e histórica) e orientações procedimentais

(instrumentos e técnicas) que informam, guiam, estabelecem, legitimam e dão

sentidos às práticas discursivas que consubstanciam a produção científica. Primeiro

porque, conforme situamos no primeiro capítulo, a evolução epistemológica das

teorias sobre o desenvolvimento do conhecimento científico apontou que as teorias

são construções sócio-históricas e, simultaneamente, cognitivas, que pressupõem

fundamentos ontológicos, metodológicos, epistemológicos e axiológicos, e que nelas

consolidam intrinsecamente o resultado do embate entre a tradição (do ser e deve

ser – o instituído) e a inovação (a descoberta – o do devir). Segundo, toda e

qualquer dinâmica científica (sejam as trocas de conhecimentos, as descobertas, as

construções teóricas, as aproximações com a realidade, as controvérsias teóricas,

entre outras práxis científicas), nem sempre de forma consciente, carrega consigo

explicações, justificativas e diretrizes que influenciam as escolhas teóricas,

metodológicas e empíricas (que orientam como estes elementos devem interagir) e

que, por sua vez, estão vinculadas a determinadas intencionalidades (ideológicas,

cognitivas e sociais) e perspectivas epistemológicas adotadas, que configuram

ligações evolutivas entre novas e velhas convergências num dado contexto espaço-

temporal de um dado campo científico e acadêmico. Por isso, as múltiplas

contingências, oriundas da modernidade reflexiva, afetam a evolução epistemológica

e trazem implicações para uma ou outra dimensão.

Na verdade, os autores Moraes (2008), Silveira; Vitte (2011a, 2011b,

2011c) e Dutra Gomes; Gomes; Vitte ( 2017) apontam que as descobertas

científicas do século XX induziram os questionamentos sobre a estabilidade do

mundo, a determinação, a previsibilidade, a simplificação, a possibilidade de controle

dos processos e a existência da causalidade linear, o que contribuiu para

estabelecer a crise dos pilares epistêmicos, inclusive no âmbito das ciências

naturais, através da diluição das bases teóricas do positivismo lógico, do

evolucionismo sociológico e do marxismo. Isso porque afetaram os princípios

Page 97: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

97

fundamentais do modelo de ciência moderna (racionalidade, universalidade e

ordenação), colocando em xeque os elementos utilizados nos sistemas tradicionais

do saber, tais como a causalidade, o mecanicismo, a fragmentação dos saberes, o

determinismo, a mensuração, a verificação, entre outros.

Argumentamos que a nova condição que implicou a revisão dos excessos

deterministas, recolocando em outros patamares a questão da subjetividade e da

objetividade do conhecimento científico, cria um novo cenário epistemológico, em

função do que caracterizamos de desestabilização do que se concebe como ciência

e como conhecimento científico, coimplicando diretamente na dimensão

metodológica.

Se para Moraes (2008) e Silveira e Vitte (2011), as novas descobertas

nas ciências naturais foram decisivas no processo de ressignificação do modelo

epistemológico de ciência proposto, validado e utilizado, as ciências humanas e

sociais, não tendo ficado aquém nesse processo. E em função disso, surge a

diversidade metodológica.

De fato, a emergência de abordagens metodológicas qualitativas induziu

uma concepção de ciência social de posição “antipositivista”, indicando outras bases

epistemológicas e colocando em xeque os sistemas filosóficos tradicionais. O

entendimento é que as mudanças implicaram o surgimento das “metodologias

alternativas”, a “pluralidade metodológica” e o “ecletismo metodológico”. A

perspectiva é que, com a inserção das metodologias diversas e diferentes das

tradicionalmente validadas, legitimadas e utilizadas nas ciências naturais, tais como

as abordagens qualitativas e quali-quantitativas, passou-se a conceber a existência

do conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em detrimento do

objetivo, quantitativo e explicativo. Com isso, ensejou-se a múltipla contingência da

diversidade metodológica e intensificou-se uma celeuma sobre as questões

epistemológicas, conforme desvela Sousa Santos (2010, p. 144-145):

O debate sobre a diversidade epistemológica do mundo apresenta hoje duas vertentes: uma, que poderíamos designar de interna, questiona o caráter monolítico do cânone epistemológico e interroga-se sobre a relevância epistemológica, sociológica e política da diversidade interna das práticas científicas, dos diferentes modos de fazer ciência, da pluralidade interna da ciência; a outra vertente interroga-se sobre o exclusivismo epistemológico da ciência e se centra nas relações entre a ciência e outros conhecimentos no que podemos designar por pluralidade externa da ciência. Trata-se, pois, de dois conjuntos de epistemologias setoriais ou

Page 98: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

98

regionais, que procuram, sob diferentes perspectivas, responder às premissas culturais da diversidade e da globalização.

Para o autor, na contemporaneidade existem várias possibilidades de

compreensão do fenômeno epistêmico (as quais denomina de “epistemologias

regionais”) ou realização das práticas científicas. Ele justifica que isso acontece em

função da “convivência”, isto é, performam e coexistem, numa mesma espacialidade

e temporalidade, diferentes formas de conceber, fazer, descrever e validar a ciência

e seus produtos, gerando um fenômeno denominado pelo autor de “pluralidade

epistemológica”, principalmente pela vinculação da dinâmica científica ao contexto

de produção. Sousa Santos (2010, p. 145-146) ilustra ainda esse fenômeno,

descrevendo que:

A questão da pluralidade interna da ciência foi suscitada [...] pelas epistemologias feministas, pelos estudos sociais e culturais da ciência e pelas correntes da história e da filosofia das ciências por estes influenciadas. [...] questiona a neutralidade da ciência, tornando explícita a dependência da atividade de investigação científica de escolher sob os temas, os problemas, os modelos teóricos, as metodologias, as linguagens e imagens e as formas de argumentação; de caracterizar, via investigação histórica e etnográfica, as culturas materiais das ciências de reconstruir os diferentes modos de relacionamento dos cientistas com contextos institucionais com os seus pares, o Estado, as entidades financiadoras, os interesses econômicos ou o interesse público; de interrogar as condições e os limites da autonomia das atividades científicas [...]. Ao analisar a heterogeneidade das práticas e das narrativas científicas, as novas abordagens epistemológicas, sociológicas e históricas pulverizaram a pretensa unidade epistemológica da ciência e transformaram a oposição entre as duas culturas – a científica e a humanística –, na condição de estruturantes do campo dos saberes, numa pluralidade pouco estável de culturas científicas e de configurações de conhecimentos.

Para sintetizar a fala do autor, podemos cotejar a diversidade de

perspectivas epistêmicas, a heterogeneidade das práticas discursivas, a pluralidade

metodológica e epistemológica, a evidência da cultura científica e da sua

multiplicidade em função da vinculação entre as tradições de pesquisa e seu

contexto de produção, bem como a formação de coletivos em redes de produção de

saberes, que trazem novas “configurações” ao fazer científico – demarcadas pelas

distinções e similitudes que garantem a diversidade de práticas discursivas, de

sentidos e formas de produção científica. E, consequentemente afetam a evolução

epistemológica dos saberes.

Page 99: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

99

3.2 As redes na ressignificação científica

O ab-rogar das bases epistemológicas que sustentavam a concepção de

ciência tradicional implicou também a necessidade de propor/criar nova dinâmica

científica para produzi-la, o que, consequentemente, deu origem a um produto

diferente (saber) e que não poderia ser avaliado/validado/justificado à luz de critérios

de cientificidade divergentes, estabelecendo a “desestabilização epistemológica”,

isto é, a desestabilização dos padrões da ciência moderna, caracterizada por Araújo

(2003). Ou a “reconfiguração epistêmica”, indicada por Lima (2014, p. 11), como

resultado da:

A reformulação teórico-metodológica pela qual vem passando a ciência (abalando com isso, os alicerces cartesianos que a fundamenta) abre uma espécie de salvo-contudo para o sujeito, o qual, por muito tempo, se viu negligenciado do processo lógico de objetivação do real. Reorientação essa que remota ao início do século XX, quando a física da relatividade, a mecânica quântica e a psicanálise vieram à tona reclamar um novo paradigma da ciência, refutando a tradicional inclinação cientificista de hipostasiar o objeto a um estatuo de lei ou de verdade fundamental e

universal.

Um processo que, segundo nosso ponto de vista, requer o que

caracterizamos no primeiro capítulo como mudanças evolutivas, tais como: I) o

“rearranjo na ordem do saber”; II) a maior projeção aos sujeitos nas investigações

geográficas; e III) a “complexificação do meio geográfico da escala local à

planetária”. Sendo assim, as múltiplas contingências da Modernidade Reflexiva

provocaram diversas e profundas alterações na dinâmica das tradições de pesquisa.

Na fala de Dutra Gomes (2010), a seguir, encontramos fragmentos que reforçam,

ampliam e indicam os motivos e as características que atribuímos ao que

denominamos de Ressignificação científica:

Na segunda metade do século XX, [...] se estabeleceu um 'salto qualitativo' tanto na experiência espacial, com a emergência da Sociedade Informacional, quanto nos avanços científicos ligados à emergência na ciência do contexto da Complexidade. A crise da razão e da matriz espacial atinge uma situação limiar. Os ajustes sociais, financeiros e espaciais do capitalismo a partir da acumulação flexível, mais a intensa compressão espaço/temporal advinda da intensidade e formação das redes nas comunicações, [...] aliados aos entendimentos em torno dos avanços ligados ao contexto da Complexidade – [...] colocaram em xeque o sentido de universal e sua relação com o particular, como havia se estruturado a partir do século XVIII. (DUTRA GOMES, 2010, p. 6)

Na fala do autor, podemos identificar proposições que consideramos

evidências para confirmar a tese da Ressignificação Científica. Primeiro, o que autor

Page 100: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

100

chama de motivos que contribuíram para a “crise da matriz espacial moderna” é

similar ao que apontamos como circunstâncias indutoras da Ressignificação

científica contemporânea, sendo elas: (a) o avanço tecnológico que ampliou as

redes de articulações sociais, econômicas, culturais, científicas, entre outras; (b) as

contribuições das ‘novas’ teorias da Complexidade, Relatividade etc.; e (c) os

processos de globalização, expansão capitalista e de reestruturação produtiva, isto

é, a reorganização no modelo de produção fordista para o modelo de produção

flexível, que provocaram novo ordenamento social, econômico e cultural. Por isso,

argumentamos que as circunstâncias não são isoladas, mas que se articulam,

divergem, complementam, ampliam e (res)significam noções e ferramentas

conceituais consagradas, tais como as noções de tempo e espaço e suas

implicações nas concepções de ciência e realidade. Vejamos:

O espaço – as interações espaciais – torna-se o configurador do dinamismo temporal, agora não guia exterior, mas atrelado às particularidades de vivência – temporalidades – dos corpos. O espaço torna-se a coexistência da multiplicidade, das temporalidades; antevê-se uma nova postura de reconstrução do projeto de humanidade, agora a partir do aporte espacial, com respeito à convivência das diferenças. O progresso deixa de ser algo externo e impositor, a favor do capital, para tornar-se vinculado aos objetivos e pretensões específicas em cada caso. [...]. Destaca-se na reconstrução do projeto de humanidade, pois as diferenciações, as multiplicidades espacialmente manifestas, colocam em relevo a pertinência e a necessidade de se incorporar e desenvolver a alteridade na prática científica. (DUTRA GOMES, 2010, p.10)

A nosso ver, a perspectiva é que com a interseção espaço e do tempo (e

acrescentando a especialidade – tempo, espaço e especialidade) passam a coexistir

diferenças e similaridades, interesses e interações diversas, produtoras de

multiplicidades e alteridades, que afetam todos os âmbitos da experiência humana,

principalmente o desenvolvimento histórico-epistemológico. Nessa mesma linha de

pensamento e avançando um pouco mais nas circunstâncias da modernidade

reflexiva e suas implicações na dinâmica científica, temos a fala de Afonso (2018, p.

12):

A compressão do tempo-espaço, que David Harvey, há quase três décadas, tão bem discutiu na Condição pós-moderna, a propósito da transição do fordismo para o pós-fordismo, tem hoje novas expressões e apropriações, que se traduzem na expansão do capitalismo cognitivo a partir da centralidade econômica do conhecimento, apoiada, em grande medida, pela ampliação global do acesso (desigual) às tecnologias da informação e da comunicação. E a esta centralidade emergente da produção imaterial que reinventa as práticas sociais, nomeadamente através dos usos múltiplos das redes sociais, em geral, e das redes científicas de pesquisa e

Page 101: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

101

colaboração, em particular. Tudo, num primeiro instante, parece estar a passar-se aqui e agora. No entanto, se isso é verdade em termos tecnológicos e digitais, não dá conta, com objetividade, dos tempos e espaços que recriamos e alargamos quando a colaboração entre pares e pesquisadores pressupõe e exige tempos múltiplos e variados [...]. E é nestas temporalidades complexas que se inscrevem processos novos de participação ampliada na produção de conhecimento e reflexividade crítica – tarefa, aliás, mais fácil de enunciar do que de praticar. Na verdade, trata-se não apenas de fugir da quantofrenia congruente com uma (suposta) ciência just in time, ditada pelos cerceamentos impostos por uma outra compressão do tempo-espaço, exigida pela desenfreada produtividade do capitalismo acadêmico numa economia do conhecimento, mas de resistir para fazer ciência com profundidade teórico-conceptual e metodológica (sem deixar de lado questões propriamente políticas, sociais e éticas).

Para o autor, a evolução do “capitalismo acadêmico”, que caracteriza a

contemporaneidade, manifesta-se pelo aumento expressivo das práticas científicas

automatizadas pelo volume significativo, multiplicidade e fluxo (em termos de

atualização contínua) dos saberes científicos (capital cognitivo) e pela “reflexividade

crítica” (epistêmica). Tais manifestações se aliam às potencialidades oferecidas

pelo uso das tecnologias das comunicações, como as possibilidades de executar

grande quantidade de dados, acontecer a produção colaborativa, promover o

acesso democrático e remoto ao capital cognitivo, potencializar a ubiquidade, a

simultaneidade e a flexibilização, que marcam as transformações nas dimensões do

real/virtual, do espaço e do tempo, bem como pela legitimação da “cultura do

produtivismo”, na busca contínua (e “esquizofrênica”) por maiores índices

bibliométricos (pessoais e coletivos) requeridos pelas redes de pesquisa. O ponto

de vista é que a produção científica em redes surge basicamente como uma das

estratégias para atender às demandas do capitalismo cognitivo. Mas quais as

mudanças efetivas que a ordem social das redes, aliada à inserção das tecnologias

da comunicação, provocou nos modos de produção do trabalho acadêmico? Para

responder a essa questão, devemos tomar como referência que:

Ao longo das duas últimas décadas, as mudanças na organização da universidade contemporânea foram vertiginosas. Os novos processos acadêmicos de formação e curricular, a gestão e a produção de novos conhecimentos, a geração de plataformas digitais e virtuais para fins de aprendizagem, o impulso e as estruturas inter e transdisciplinares, a internacionalização Norte-Sul e Sul-Sul foram, entre muitas outras, importantes mudanças que reconfiguraram a tradicional constituição da universidade e estão em processo de tendências de transformação e criação de novas instituições em diferentes partes do mundo [...]. Uma das tendências mais pronunciadas e vitais que estão se apresentando no contexto dessas mudanças nas universidades é a organização de redes. [...]. A existência de redes e sua proliferação têm sido exponencial, tanto a nível local e nacional quanto no global, introduzindo variáveis de avaliação

Page 102: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

102

do mesmo trabalho acadêmico que antes não apareciam como importantes, porém, agora, o são cada vez mais. (TAKAYANAGUI, 2018, p. 17)

A perspectiva do autor é que se torna impossível pensar ou investigar ou

compreender a universidade contemporânea sem considerar as repercussões da

organização social das redes e do uso dos computadores e internet na produção

científica. Ainda complementando as ideias dos já mencionados autores Afonso

(2008) e Dutra Gomes (2010), Takayanagui (2018, p. 17-18) avança e nos indica

que:

Redes e macroprojetos, que podem organizar-se estando nelas, tornam possível a produção de um conhecimento muito mais dinâmico, aberto, socialmente responsável, tanto a curto como a médio e longo prazo, desde dimensões meta e macrocognitivas, porquanto geradas pelo trabalho cotidiano e em contextos de aplicações locais e específicos, introduzindo uma riqueza excepcional ao processo de articulação entre saberes e aprendizagens. Além disso, a organização em redes introduz um elemento fundamental que valoriza o trabalho acadêmico, por sua estrita e fundamental condição de colegialidade e horizontalidade. Isso faz com que a organização do conhecimento possa estar sempre aberta, ser de acesso livre e público, sem restrições, e que a pertinência do trabalho universitário se torne mais rigorosa, porque está à vista de qualquer pessoa ou grupo social interessado. [...] um salto qualitativo na exigência do que as redes produzem, na medida em que os seus processos intelectuais e cognitivos são e devem ser processados para serem conhecidos por especialistas, mas também porque alcança espaços anteriormente pouco concebidos, porque seus processos e seus resultados, seus debates e sua interação cooperativa estão mediados por complexos processos informáticos, virtuais ou digitais. [...] impulsionar macroprojetos, locais e globais, em que os limites da participação de pesquisadores, professores ou analistas se tornam mais flexíveis e interativos desde o novo meio ambiente das TICs. [...] ultrapassa o trabalho acadêmico do tipo individualista e os construtos isolados dos contextos de aplicação dos conhecimentos, [...] tanto a partir de uma perspectiva intercultural (ecologia de saberes) como teórico-metodológica e epistêmica.

Para o autor, além do volume, do fluxo e do acesso democrático aos

dados e conhecimentos mais atualizados, acontece maior articulação entre saberes

e aprendizagens, quebra das estruturas rígidas, lineares e hierarquizadas,

produções colaborativas, melhorias significativas da qualidade dos processos e

produtos científicos, entre outros. Tudo isso se reflete diretamente na evolução

epistemológica. Vitte (2011b) também corrobora o ponto de vista dos autores e

complementa, desvelando as implicações das redes para a evolução

epistemológica, esclarecendo que a

Situação que fica mais complicada e complexa na atual fase contemporânea, pois advindo do forte questionamento da Ciência Moderna e de suas racionalidades, cada vez mais a sociedade e a comunidade científica vêm tomando consciência de uma nova teia e de sua dinâmica,

Page 103: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

103

em que é inconcebível a fragmentação, e a natureza, por sua vez, lentamente está sendo requalificada por questões culturais sociais e ambientais, em que a antropologia cultural aparece com grande destaque para as pesquisas de geografia física. (VITTE, 2011b, p. 37)

Para o autor, a ressignificação científica amplia a necessidade de

superação da fragmentação científica, com destaque para os fenômenos

geográficos, repercute na demanda por uma “nova cognição do sistema mundo”,

traz a necessidade da especialização cognitiva, principalmente através da

complexização do social e do ambiental que coloca em evidência:

A crise da geografia na atual fase contemporânea faz-se a partir de uma reinvenção metafísica da natureza, agora rara, mercantilizada, relativizada pelo dinheiro. Ou seja, a uma nova superfície da Terra que precisa ser requalificada, como se dizia no século XVII há terrae incognitae, que aí está. É o momento de realizarmos novamente o ajuste ou a invenção de palavras com as coisas, pois o sentido de empiria está sendo recriado. Os olhos e o sentido do explorador são outros, a cognição do mundo e da Terra é outra. (VITTE, 2011a, p. 34)

Segundo Vitte (2011a), com a crise, é necessário reinventar a forma de

ver, conceber, dar sentido e explicar a realidade geográfica, pois existe uma nova

cognição no sistema mundo que implica uma reorientação das dimensões

ontológicas e epistemológicas das tradições de pesquisa na contemporaneidade, o

que afeta a Geografia, pois “a questão que se coloca não seria [...] de ruptura

epistemológica, mas que a Geografia física e suas subdisciplinas têm uma tradição

[...] em que um de seus papéis é a construção de uma imagem simbólica de mundo

e de natureza” (VITTE, 2011a, p. 37), portanto, de busca de sentido/significação e

pertencimento a um campo científico diante das demandas contemporâneas, isto é,

de uma identidade científica (dimensão epistemológica) e social (dimensão

axiológica).

Castells (2013) caracteriza a contemporaneidade como “tempos

confusos” e de “desorientação”, indicando que as deficiências nas “categorias

intelectuais que usamos para compreender o que acontece à nossa volta foram

cunhadas em circunstâncias diferentes e dificilmente podem dar conta do que é

novo” (CASTELLES, 2013, p. II). Desorientação que reflete o processo de transição

entre diferentes formas de organização e constituição social, promovida pelas

radicais transformações tecnológicas, econômicas e culturais, por isso exigindo a

Urgência de uma abordagem para compreendermos o tipo de economia, cultura e sociedade em que vivemos é intensificada pelas crises e conflitos

Page 104: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

104

que caracterizam primeira década do século XXI. A crise financeira global; as mudanças drásticas nos mercados de negócios e mão de obra; o crescimento irrefreável da economia criminosa global; a exclusão social e cultural de grandes segmentos da população do planeta das redes globais que acumulam conhecimento, riqueza e poder; a reação dos descontentes sob a forma do fundamentalismo religioso; o recrudescimento de divisões nacionais, étnicas e territoriais, prenunciando a negação do outro e, portanto, o recurso à violência [...]; a crise ambiental simbolizada pela mudança climática; a crescente incapacidade das instituições políticas baseadas no Estado-nação em lidar com os problemas globais e as demandas locais. Tudo isso são expressões diversas de um processo de mudança multidimensional e estrutural que se dá em meio à agonia e à incerteza. Estes são, de fato, tempos conturbados. (CASTELLS, 2013, p. I)

O autor considera como pressuposto que “as sociedades são organizadas

em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção,

experiência e poder”, defendendo a tese “naturalista” e “reducionista39” de que na

sociedade contemporânea existe a tendência de os processos dominantes serem

organizados em redes ou em torno delas. Castells (2013) chama atenção para a

transformação do cenário social da vida humana advinda da Revolução da

Tecnologia da Informação, que remodelou em ritmo acelerado e em grande volume

a base material da experiência cotidiana humana, promovendo uma nova estrutura

social – “a morfologia social das redes”. Para o autor, a Sociedade em Rede é o

produto desta nova forma de organização social e cultural; produto da transformação

dos meios de comunicação tradicionais para os sistemas de redes e que gira em

torno da internet e da virtualidade em todos os âmbitos da experiência humana, pois:

A revolução tecnológica, com seus dois principais campos inter-relacionados, as tecnologias de comunicação baseadas em microeletrônica e a engenharia genética, continuou a aumentar de ritmo, transformando a base material de nossas vidas. As redes se tornaram a forma organizacional predominante de todos os campos da atividade humana. A globalização se intensificou e se diversificou. As tecnologias de comunicação construíram virtualidade como uma dimensão fundamental da nossa realidade. O espaço de fluxos sobrepujou a lógica do espaço dos lugares, prenunciando uma arquitetura espacial global de [...] interconectadas, enquanto as pessoas continuam a achar significado em lugares e a criar suas próprias redes no espaço dos fluxos. O tempo atemporal se espalha como um manto de ausência de significado à medida que a consciência ambiental global aumenta em defesa do tempo glacial, como uma prática compartilhada com nossos netos. (CASTELLS, 2013, p. XXX)

É possível sintetizar, nas contribuições do autor, algumas das principais

características da “Sociedade em Rede” que nos interessam, sendo elas: o intenso

39 A nosso ver, é naturalista porque coloca a ordem social das redes como resultado de um processo

natural de evolução das redes capitalistas. E simultaneamente reducionista, pois desconsidera a existência de outros interesses mediadores e contextuais no processo de ordenação social contemporâneo.

Page 105: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

105

uso das tecnologias da comunicação; o ritmo e o fluxo contínuo e acelerado de

produção e acesso das informações; e o estar conectado como condição de

existência social. Também é possível inferir que a dinâmica científica

contemporânea, diante destas características, requer: i) novas ferramentas

cognitivas – conceitos e abordagens de investigação; II) o reconhecimento da

natureza multidimensional, multiescalar, processual e relacional dos fenômenos

sociais e naturais – nova natureza para as entidades da investigação científica; III) a

compreensão da virtualidade como mais uma das tradicionais dimensões da

realidade (tempo e espaço), uma nova concepção de realidade, surgindo um novo

campo de investigação; IV) aumento da consciência sobre os danos, implicações e

potencial das questões ambientais; V) a reconfiguração das tradicionais categorias

espaço e tempo – espaço de fluxos e o tempo atemporal e circular; VI) a percepção

da rede como forma espacial predominante da organização social e dos saberes,

constituída basicamente pelas interações ou interconexão de processos discursivos;

e como não poderíamos deixar de mencionar, VII) a afirmação pela identidade como

a busca do sentido e da significação do ser social na Sociedade em Rede. Uma vez

que, para Castells (2013, p. 41), a

[...] busca da identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social. Essa tendência não é nova, uma vez que a identidade e, em especial, a identidade religiosa e étnica tem sido a base do significado desde os primórdios da sociedade humana. [...] a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significação em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. [...] as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que sejam. [...] as redes globais de intercâmbios instrumentais conectam e desconectam indivíduos, grupos, regiões e até países, de acordo com sua pertinência na realização dos objetivos processados na rede, em um fluxo contínuo de decisões estratégicas. [...] divisão fundamental entre o instrumentalismo universal abstrato e as identidades particulares historicamente enraizadas. Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o Ser.

Assim como Giddens (1991 e 2002), para Castells (2013), o significado do

fazer para existir, nesta nova ordem social, está vinculado à “busca da identidade”,

pois essa significação social acontece em função do fundamento ontológico das

interações – do estar conectado em “redes globais de intercâmbios instrumentais

que conectam e desconectam [...]” com extrema facilidade ou fluidez ,o ser, o estar e

o fazer parte, já que as identidades, assim como as redes são fluidas, efêmeras,

Page 106: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

106

simultâneas, assíncronas e diversas. Com isso, enfraquecendo e deslegitimando as

bases que sustentavam as interações tradicionais, tais como tempo longo de

permanência, bidimensional, proximidade, contiguidade física e profundidade, pois

as grandes mudanças alicerçadas no tempo e no espaço da experiência humana

estão contribuindo para a (des)estruturação de “uma nova cultura, [...] na qual, redes

digitalizadas de comunicação multimodal passaram a incluir de tal maneira todas as

expressões culturais e pessoais [...], transformado a virtualidade em uma dimensão

fundamental da nossa realidade” (CASTELLS, 2013, p. XVI).

A nosso ver, na Modernidade reflexiva, o fundamento ontológico do ser

social são as interações, sejam elas entre ideias, atores, lugares, eventos, coletivos;

sejam no espaço, no tempo, na virtualidade; sejam no ambiente do trabalho, do lazer

e da família. O fato é que em todos os âmbitos da experiência humana,

principalmente através das práticas discursivas, existem implicações sociais,

psíquicas e afetivas da reflexividade e da organização social em rede, isto é, das

interações. Com isso, “a problemática do conhecimento no mundo atual diz respeito

não somente a novo arranjo teórico-metodológico, mas também às noções que

fundamentam as próprias concepções de existir e devir” (ARAUJO, 2003, p. 37). Isso

porque consideramos no âmbito desta tese que a ontologia se refere à natureza dos

fenômenos (objetos) da investigação, sendo notória a existência de uma

requalificação da dimensão ontológica em função das mudanças revolucionárias

oriundas da modernidade reflexiva.

Pontuamos ainda que a reflexividade também é perceptível em relação

às influências da revolução científica, oriunda das descobertas científicas mais

recentes, que alimentaram a Física, a Química e a Biologia, e reinventaram não só a

teoria atômica e os estudos do cosmo, mas, através das suas diversas

reflexividades e aplicações, conseguiram transformar, de forma significativa, nossa

visão de mundo, de ciência, de realidade e de homem. Com isso, requalificaram

nossas percepções, concepções e modelos, pois redimensionaram as relações

Terra-mundo, colocando abaixo “as belas certezas” que balizavam o fazer científico

Page 107: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

107

moderno40, visto que criaram novos instrumentos de apreensão da realidade, novos

modelos, posturas políticas e científicas diante do real. A ideia é que:

A grande mudança paradigmática na ciência do século XX aconteceu a partir das descobertas da Física Quântica no alvorecer desse século e que alteraram substancialmente os conceitos [...] da mecânica newtoniana que se havia convertido em modelo para todas as demais ciências. Um modelo no qual não havia lugar para as dimensões subjetivas do ser humano, seus valores e os significados de suas experiências interiores. (...) as repercussões de tudo isso, não apenas na ciência, mas em todo processo evolutivo da humanidade, foram extremamente importantes e significativos. (MORAES, 2008, p.29)

Este trecho da fala da autora se refere ao que denominamos de

reflexividade epistêmica em função da descoberta da Física Quântica, como “a

grande virada científica”, pois a matéria já não pode mais ser concebida apenas em

“orgânica e inorgânica, em animada ou inanimada, [...] um tipo constituído de feixes

dinâmicos de energia. [...] no nível subatômico, o mundo não consiste em objetos

isolados, mas em redes de interconexões dinâmicas caracterizadoras dos mais

diferentes processos, [...] e fluxos” (MORAES, 2008, p. 35). A fala da autora ilustra o

que explicamos como coimplicação dos quadrantes da dinâmica ontológica e

epistemológica, que, para Dutra Gomes e Vitte (2017), são os fragmentos das

questões ontológicas contemporâneas, que refletem as “singularidades irredutíveis

de manifestações epistemológicas, como pertinência do diálogo” entre dimensões.

Isso porque não concebemos as tradições científicas como um amontoado caótico

de fragmentos (teóricos, práticos, metodológicos), mas como um conjunto de

fundamentos filosóficos (epistemológicos, metodológicos, axiológicos e ontológicos)

e cognitivos, um todo articulado, cujas partes coexistem e são simultaneamente

contraditórias e complementares. Daí trazem coimplicações entre si e com o todo,

num processo contínuo, multidimensional e relacional.

Em suma, nossa inferência principal é que as mudanças evolutivas ou

“revolucionárias”, oriundas da modernidade reflexiva, produziram múltiplas

contingências (a desqualificação ontológica, reconfiguração axiológica, diversidade

metodológica e desestabilização epistemológica) nas formas de ver, conceber, agir e

dar sentido ao fazer científico (tradições de pesquisa ou modelos científico

legitimado), isso porque repercutiu nos fundamentos socialmente instituídos, aceitos

40 Para Fourez (1995, p. 24), “no campo da ciência pode haver diversas maneiras de abordar certas

questões, diversas tradições”, ou modelos de fazer científico.

Page 108: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

108

e validados do que seria ciência, método, realidade, sociedade e natureza. Com

isso, propagaram e afetaram a dinâmica científica contemporânea, potencializando a

Ressignificação Científica. Paradoxalmente, esta dinâmica chega e informa, através

das redes discursivas, onde são (ou não) apropriadas pelos coletivos (nas diversas

espacialidades e especialidades), produzindo similitudes e/ou41 distinções,

resistências e/ou aceitações, fragmentações e/ou unificações, que repercutem na

evolução epistemológica, pela consolidação, manutenção, subversão dos campos

científicos e acadêmicos, ou pela ampliação e transbordamento dos saberes em

novos domínios epistemológicos – processo que denominamos como “formação de

territórios epistemológicos”.

Em outros termos, o nosso ponto de vista é que as mudanças evolutivas,

oriundas da ressignificação científica na modernidade reflexiva, são revolucionárias,

segundo a concepção de T. Kuhn, pois afetam direta e indiretamente as dimensões

(os quadrantes) das tradições de pesquisa. Com isso, produzem a “diversidade

lexical”, que coloca “em primeiro plano a heterogeneidade da ciência, a divisão de

tarefas, bem como a distribuição diferencial e a dispersão de habilidades essenciais

ao trabalho científico” (LENOIR, 2004, p. 62), por isso, cria, nutre e propaga

Territórios Epistemológicos nos campos científicos. Mas, afinal, por que criam

territórios epistemológicos e não novas disciplinas científicas ou acadêmicas?

3.3 De disciplinas científicas ao conceito de territórios epistemológicos

Partimos do entendimento de que uma disciplina para se constituir como

disciplina científica e acadêmica, conforme nos elucida Fourez (1995, p. 101), “é

determinada por uma organização mental. [...] uma matriz disciplinar [...] uma

estrutura mental, consciente ou não, que serve para classificar o mundo e para

poder abordá-lo.” E, nessa perspectiva deve contemplar duas condições essenciais,

sendo:

i) Definir-se como um saber – ter uma identidade científica – com

características que especificam este saber, de forma que possa

41 Utilizamos “e/ou”, no transcorrer desta tese, como recurso para expressar o potencial da simultaneidade e a

dinâmica da estruturação contínua entre os elementos.

Page 109: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

109

responder: Em quais condições podemos dizer que um dado saber

pode ser entendido como tal? Ou o que faz uma dada pesquisa ser

uma pesquisa pertencente propriamente a este saber? Para Lenoir

(2004, p.63):

As disciplinas são a infraestrutura da ciência corporificada, antes de qualquer coisa, nos departamentos universitários, nas sociedades profissionais, nos manuais e livros didáticos [...] a identidade disciplinar forma a identidade vocacional de um investigador, estabelecendo problemas e definindo ferramentas para abordá-las; além disso, a disciplina premia realizações intelectuais.

Para o autor, a natureza de disciplina parte do reconhecimento e da

legitimidade institucional, desvelando-se como um conjunto de

estratégias sociais ou acadêmicas que lhe concede o estatuto de área

de conhecimento pertencente a uma grande área de saber. De acordo

com Lenoir, “As disciplinas são os mecanismos institucionais para

regular as relações de mercado entre consumidores e produtores de

conhecimento” (2004, p. 63), por isso, elas “são formações

institucionalizadas para organizar esquemas de percepção, apreciação

e ação”, como acontece no caso do CNPQ.

Se para Lenoir(2004) a identidade científica se dá pela existência de

um coletivo sociotécnico, com reconhecimento externo na comunidade

científica onde identifica-se como inscritos na área de conhecimento,

socialmente instituída, para Gomes (2009) a identidade disciplinar se

estabelece quando se é capaz de indicar um quadro de referência

conceitual ou “campo de características e atributos”. Na fala do autor:

A identidade disciplinar como qualquer outra, aliás, deve ser suficientemente restritiva para assinar a singularidade daquilo que estamos distinguindo das demais, porém deve ser larga o suficiente para abranger as mudanças que ocorreram durante a trajetória evolutiva desse objeto. (GOMES, 2009, p. 16 – 17)

O autor, explica que o elo que dá singularidade a Geografia, faz com

que um saber possa receber “o qualitativo de geográfico”, mesmo com

“toda variedade das aplicações” e “usos que foram dados” na evolução

epistemológica da Ciência Geográfica (“ciência de síntese”; “ciência

indutiva”, “ciência charneira”, “ciência do empírico”) e, marca a

Page 110: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

110

contribuição de geografia no estudo da realidade é a “ordem espacial”.

Portanto, a espacialidade ou o “ordenamento espacial de alguns

fenômenos”.

ii) um domínio epistemológico - ter um campo de análise, que no caso

da Geografia, surge a partir da “ideia de que há um arranjo físico das

coisas, pessoas e fenômenos que é orientado seguindo um plano de

dispersão sobre o espaço.” (GOMES, 2009, p. 25). O que implica num

conjunto de pressupostos filosóficos, crenças e valores (éticos,

estéticos e políticos) coerentes entre si e que vão lhe fornecer os

fundamentos para o saber, considerado e que vão lhe moldar a

conduta e os hábitos no âmbito da comunidade científica, consolidando

uma tradição de pesquisa. Ter um padrão disciplinar - “uma ordem de

sentidos e significações fundamentais que constituem os

fenômenos”(GOMES, 2009, P. 27), que institui as fronteiras

epistemológicas a partir da delimitação temática e das relações que

estabelecem com outras áreas de conhecimento, uma unidade na

diversidade.

Portanto, construções sociohistóricas relativamente estáveis e

distinguíveis numa estrutura institucional, e passíveis de subdivisões ao longo do

tempo e do espaço. Já, a concepção de território epistemológico que estamos

contemplando ao longo desta produção se articula ao sentido de ‘saber’ proposto

por Japiassu (1986), como temática ou conjunto de conhecimentos

metodologicamente organizados, seja para investigação, ou transmissão (ensino-

aprendizagem), o que desloca o foco da ciência para o saber ou área de

conhecimento, sendo ou não este uma disciplina acadêmica.

Nossa concepção de TE está diretamente vinculada ao conceito de

Campo Científico42 de Bourdieu (2015). O autor concebe Campo Científico como um

espaço de interação que configura uma rede social para produção de saberes, em

42 “Campo como espaço de conflitos, como campo de acção socialmente construído em que os

agentes dotados de diferentes recursos se defrontam para conservar ou transformar as relações de força vigentes. Os agentes empreendem aqui acções que dependem, nos seus fins, meios e eficácias, da sua posição no campo de forças, ou seja, da posição na estrutura da distribuição do capital” (BOURDIEU, 2015, p. 54).

Page 111: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

111

que agentes, através das relações de poder/saber/fazer, coexistem e performam a

dinâmica da produção, distribuição e consumo do discurso científico, um domínio

sociológico. No TE, as interações são entre ideias (estilos de pensamentos ou

coletivos de pensamento), portanto, acontecem principalmente na articulação e

imbricamento entre os domínios epistemológico, ontológico, metodológico e

axiológico.

Consideramos que a noção de disciplina de Lenoir (2004), que se integra

à ideia de “formação discursiva” de Foucault, seja coerente com a nossa concepção

de TE, por ser capaz de: i) “captar o sentido de heterogeneidade” da ciência; ii)

apreender o significado das afirmações como configuração da “regularidade

historicamente condicionada para a coexistência de afirmações” (elementos

explicativos) presentes nas práticas discursivas, pois parte do entendimento de que

“os objetos e conceitos são coproduzidos no discurso.” (LENOIR, 2004. p. 64); iii)

reter o caráter disperso, semelhante a uma rede, responsável pela construção de

sentido e de objetos mediante a estabilização em rede mais ampla de elementos

heterogêneos, que configuram a episteme.

E, assim, também dialogamos com a concepção de “território

paradigmático” de Fernandes (2014), que o concebe como um “texto lido num

contexto”, composto por “visões de mundo e estilos de pensamento dos autores,

que expressam suas ideias e interpretações de diversas realidades, espaços e

territórios”. Um construto científico que toma “o texto como ponto de partida para a

transformação da realidade que produz tantos textos” (FERNANDES, 2014, p. 26).

Nosso entendimento é que as categorias assim como os conceitos são

“ferramentas intelectuais” que o pesquisador utiliza para explicar ou compreender ou

descrever o fenômeno, e sua escolha pode trazer tanto a elucidação como

complicações na investigação. Por isso, “prestigiar um conceito, aprioristicamente, à

revelia das circunstâncias concretas, em detrimento dos demais, [...] na pesquisa,

tende a produzir interpretações que são autênticos aleijões analíticos, [...] e o

fracasso estará pré-programado” (SOUZA, 2013, p. 11). Isso porque, assim como

Guimarães (2017, p. 15), partimos do pressuposto de que as categorias são entes

ontológicos e, consequentemente, toda sua conceituação é determinada por

fundamentos ontológicos, axiológicos e epistemológicos e, consequentemente,

implicam o metodológico de forma coimplicada por meio do seu contexto de

Page 112: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

112

existência (estilo de pensamento, visão de mundo, espacialidade, especialidade,

temporalidade, etc.).

Institucionalizados ainda na modernidade as categorias e os conceitos,

que são considerados ferramentas intelectuais ou cognitivas que ampliam a

capacidade humana para explicar, pela linguagem, a realidade e/ou o fenômeno ou

o fato investigado. O entendimento é que os pesquisadores, para procederem à

conceitualização da realidade, com o intuito de elucidá-la e facilitar a

comunicabilidade, transformam seus conceitos chave em construtos científicos, isto

é, em significações imaginárias científicas, ao lhes atribuir uma “identidade

categorial” (MOREIRA, 2016, p. 211). Para isso, essas categorias devem contemplar

um significado e sentido produzido imaginariamente por um coletivo com

intencionalidade, segundo um referencial teórico que lhe atribui uma ‘pretensa

cientificidade’. A finalidade é estabelecer a delimitação temática através das

proposições passíveis de serem ‘confirmadas’ ou ‘refutadas’ e/ou elucidadas como

categorias na pesquisa científica.

Os construtos são uma construção lógica de um conjunto de propriedades aplicáveis a elementos reais, que distingue o que inclui e o que exclui como intenção e extensão, fundamentado no consenso dos pesquisadores. O objetivo do construto é fazer com que não haja ambiguidade no referencial empírico dos conceitos utilizados pela comunidade de pesquisadores. Com o construto, todos (...) atribuirão a mesma significação (...), tornando-se claros e específicos. Desta forma, pode a ciência, no nível empírico, fazer as observações e elaborar os testes intersubjetivos de que necessita. (KOCHE, 1999, p. 116)

Assim, no âmbito desta tese, defendemos que o conceito, além de ser

uma produção social e cognitiva simultaneamente, é: I) uma significação imaginária

científica por ser elaborado por um marco teórico, validado intersubjetivamente

pela comunidade de pesquisadores, funcionando como metáforas43 no discurso

científico; II) um marco metodológico que estabelece uma unidade de análise, pois,

ao delimitar e especificar o fenômeno ou o fato, dá-lhe a extensão de sua

43 Podemos ilustrar essa característica com base na fala de Souza (2015) ao afirmar que “‘espaços’

e ‘territórios’ têm um sentido metafórico (por mais que, como arenas de luta, conflito e disputa, não existam sem estar multifacetadamente vinculados a espaços concretos), uma vez que as referências diretas das reflexões não são espaços concretos e uma vez que as referências diretas das reflexões não são espaços geográficos, mas, sim, instituições e relações sociais. É o caso, por exemplo, das universidades e do ‘campo libertário’.” (SOUZA, 2015, p. 9)

Page 113: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

113

ocorrência e o significado como objeto de estudo44; III) uma construção histórica e

política, uma vez que são atrelados a intencionalidades e conteúdos oriundos de

uma temporalidade e de interações socioespaciais diversas, destarte, os conceitos,

os construtos e as categorias “são carregados de historicidade. [...] fruto de uma

época e das condições internas e externas ao debate científico e intelectual próprias

de cada época, mesmo quando [...] sobrevivem às redefinições e mudanças de

conteúdo” (SOUZA, 2013, p. 14). Isso porque, a definição atribuída ao conceito é

“construída cientificamente, sendo uma tradução da noção corrente ligada ao termo.

Porém, ela não lhe é equivalente” (FOUREZ, 1995, p. 109). Esse ponto de vista

pode ser ilustrado pela fala de Moreira (2016, p. 211) ao afirmar que “as décadas

finais do século XX foram de domínio da categoria do espaço, as iniciais do século

XXI vêm sendo de domínio da categoria do território.”

Atualmente, não só pelo fato de a maioria dos postulados da ciência

clássica ter sido ab-rogada em função das descobertas científicas da Física

Quântica, da Biologia e das Ciências humanas e sociais, entre outras, mas também

pelo reconhecimento da existência de novas práticas discursivas, da multiplicidade

da realidade geográfica, da natureza do fato/fenômeno e dos sujeitos da ação,

muitos categorias foram substituídas ou (res)significadas, ganhando novos

contornos, conteúdos e significados para dar conta de elucidar o objeto de estudo.

Nessa perspectiva, Haesbaert (2009) lembra-nos que a essência dos conceitos não

pode ser limitada à visão estereotipada da lógica formal positivista em relação à sua

separação diante de outros conceitos. Vejamos a fala do autor:

A identidade de um conceito, um pouco como na própria construção de uma identidade social, não se define simplesmente pela concepção clara de um outro frente ao qual ele se impõe, mas pela própria definição que este outro lhe concede, portanto, na sua interação. Isto significa que as identidades conceituais devem ser trabalhadas também através das fronteiras, no interior dessas delimitações que aparentemente separam, ou seja, nos liminares, nas interfaces, nas interseções, sem, às vezes, o obsessivo estabelecimento de um recorte de delimitação estanque e bem definido. (HAESBAERT, 2009, p. 621)

44 Um bom exemplo para ilustrar esta relação entre a categoria e a temporalidade é o caso da

utilização da bacia hidrográfica como unidade de análise. De acordo com Carvalho (2009, p. 202), “o conceito de que a bacia hidrográfica representa uma boa e relevante demarcação na paisagem para o planejamento do uso do solo não é uma ideia original, pois já era reconhecida por muitos conservacionistas como John Powel e Clarecence King e utilizada na China antiga para o planejamento urbano.”

Page 114: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

114

Na mesma linha de pensamento e para ilustrar nosso ponto de vista,

vejamos na fala de Moreira as ligações evolutivas que implicaram a substituição da

categoria espaço pelo território na produção científica:

O deslocamento do olhar espacial para o territorial é decorrência da mudança do foco e do modo de ação que então ocorre. O que significa dizer, da natureza dos sujeitos. Ao espaço, correspondem sujeitos das lutas de classes, ao território, sujeitos dos movimentos sociais, se podemos assim dizer. A questão é, então, a causa da mudança das formas de luta. Então dos sujeitos [...] a partir dos anos 1970, com a urbanização, os serviços tomam o lugar de fase das relações de indústria, criam-se novas relações sociais, dando origem a novos sujeitos e a novas formas de tensão e conflitos, as lutas sociais se dilatando para abrigar a dilatação de sujeitos e agendas, abarcando o mundo, e conflitos fabris, mas ganhando o cunho mais genérico de movimentos sociais. (MOREIRA, 2016, p. 213)

Deste modo, a ideia é que se a categoria não dá conta de circunscrever a

natureza do objeto de investigação, para além dos embates que defendem a

“identidade conceitual absoluta”, seu conceito necessita ser revisto, conforme nos

alerta Souza (2013). Daí a conveniência de um dos fatores que implicam a

necessidade da reflexão ontológico-epistemológica na investigação científica e que

trazem desdobramentos para a compreensão do fenômeno, uma vez que as

categorias ou os construtos denotam as singularidades e a abrangência que

caracterizam o objeto de estudo e, no caso da ciência geográfica, também seu

recorte espacial. Na verdade, vai além de ser considerado “uma representação da

realidade”, ele é a própria realidade “no sentido de que ele não simplesmente traduz

ou representa, como no positivismo clássico, mas, ao pretender traduzir, reproduzir

ou reapresentar, [...] produz realidade, ou seja, é também um instrumento de

criação, ou se preferirmos, de devir” (HAESBAERT, 2009, p. 622).

Na Geografia, temos alguns dos “conceitos fundamentais45” atrelados ao

pensamento geográfico, que auxiliam na investigação do espaço, entre eles:

Paisagem, Lugar, Região, Redes e Território. E o que os distingue de fato é uma

“questão de foco, já que todos eles incidem, de uma forma ou de outra, sobre o

mesmo universo, no caso da geografia, a dimensão espacial da sociedade”

(HAESBAERT, 2009, p. 622). Daí porque nossa indicação é que o conceito “ilha”,

além de ser um espaço, pode ser um território, dependendo do contexto (conteúdo,

45 Para Haesbaert (2009), na geografia (em torno da categoria espaço) existe uma “ampla

constelação de conceitos da Geografia, dois dos conceitos mais utilizados são, sem dúvida, o de região, majoritário na chamada Geografia Regional Clássica, e o de território”.

Page 115: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

115

contorno, significado, natureza do objeto e do sujeito), não dá conta da dinâmica

socioespacial que caracterizamos como espacialidade e singularidades inerentes

ao conteúdo e contorno da dinâmica científica contemporânea, levando em

consideração dois fatos.

O primeiro fato está relacionado à concepção de ciência como “a arte

interpretando a realidade, [...] rearranjar informações [...], um produto da criação que

permite construir o desenho do mundo, das coisas e dos seres, das suas complexas

relações e dos seus lugares”, (HISSA, 2002, p. 14), ou como uma “tecnologia

intelectual”, conforme nos aponta Fourez (1995). É, portanto, simultaneamente

instituição, produto e processo de construção social e cognitiva, o que implica a

coexistência e a performance de interações marcadas por relações de

poder/saber/fazer que se apoiam no espaço e no tempo (na virtualidade) com a

finalidade de construir conhecimento sobre o objeto. Em outros termos, na

perspectiva epistemológica construcionista que utilizamos nesta tese, o fazer

científico, além de ser um processo de produção, distribuição e consumo do

discurso científico, é, simultaneamente, uma dinâmica, circunscrita por trocas,

descobertas, construções, aproximações e embates estabelecidos numa estrutura

social, histórica e cultural de apropriação do discurso científico, que consolidam

tradições de pesquisa. O segundo fato está na ordem do entendimento de que:

Ler o território é ler, assim, o espaço segundo as singularidades locacionais de referência. O foco configurando, justamente, o olhar de conjuntura, consagrando o território como um poderoso instrumento de leitura e de luta espacial dentro de uma sociedade, [...] referindo-se ao poder ordenante do espaço do território [...] leitura espacial o ponto da compreensão real dos lugares. Cada lugar aí expressa a natureza do conteúdo estrutural da totalidade. O conteúdo relacional, justamente, que faz da estrutura, porque do espaço, o fundamento ontológico do mapa fragmentário dos territórios. (MOREIRA, 2016, p. 218)

O que, além de confirmar a abrangência do conteúdo, constitui-se no

nosso entendimento de que a acepção de território está relacionada ao espaço

apropriado e configurado por redes de relações de poder/saber/fazer, construída

pelos coletivos sociotécnicos. Um campo de estratégias de legitimação e/ou

consolidação e/ou subversão de múltiplas intencionalidades, que, simultaneamente,

estabelece sua singularidade ao domínio das redes de lugares como campo de lutas

e embates entre as ideias dos atores sociais e coletivos pertencentes a um campo

científico. Condição que, segundo nos aponta Foucault (2017, p. 251), caracteriza o

Page 116: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

116

território como metáfora espacial e, simultaneamente, fato e condição manifestada

que condicionam o exercício do poder. Por isso, “é sem dúvida uma noção

geográfica, mas antes de tudo uma noção jurídico-política, aquilo que é controlado

por um certo tipo de poder”.

Nosso entendimento é de que as interações para produção do

saber/fazer, em qualquer domínio científico, são, antes de tudo, circunscritas pelas

“relações que podem existir entre poder e saber”. E, por isso, só podemos [...]

“analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de

deslocamento de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber

funciona como um poder e reproduz seus efeitos” (FOUCAULT, 2017, p. 251).

Destarte, a utilização do termo Território como metáfora científica se adapta à

asserção do autor de que

A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história com as velhas formas de evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do progresso da consciência ou do projeto que era contra o tempo. [...] Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos – históricos certamente – de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados. (FOUCAULT, 2017, p. 253)

Com isso, podemos justificar que a arena ou campo de domínio

epistemológico de um saber que transcende as fronteiras epistêmicas, no âmbito da

análise geográfica do desenvolvimento do conhecimento científico, corresponde ao

que designamos de Território Epistemológico – TE, por consubstanciar as

especificidades, abrangência e espacialidades do fazer científico, que fazem dele,

simultaneamente, um conceito e um fenômeno geográfico multidimensional,

processual, relacional e contemporâneo. Pela compreensão de que “o território

pode ser concebido pela imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais

material das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2004, p.

79).

A nosso ver, a proposta de TE como conceito se justifica em função das

distinções e similitudes oriundas da interseção espacialidade, temporalidade e

especialização cognitiva dos saberes-fazeres propagados e consolidados pelos

coletivos sociotécnicos. Em outras palavras, representa a espacialidade apropriada

pela legitimidade discursiva atribuída ao domínio epistemológico de um ou mais

Page 117: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

117

campos científicos. O saber cuja melhor forma de configuração é de rede de

significações que circunscreve a articulação das diferenças e semelhanças

construídas pelos processos de espacialização e especialização da dinâmica

científica contemporânea.

Uma rede de significações estabelecida através dos padrões de

localização, distribuição e conexões de consensos, controvérsias, fronteiras

epistêmicas e/ou transgressões disciplinares, que imprime uma identidade científica

e social ao saber. Assim, pode-se inferir que o TE tem potencial como conceito e

fenômeno geográfico para investigação, pois pode: funcionar como contexto de

formação científica e de interdependência estruturais (objetivas e subjetivas, macro

e micro); requisitar contiguidade ou proximidade cognitiva ou física; criar, manter ou

subverter tradições científicas peculiares, bem como barreiras epistêmicas, ou

“aglomerados” de produção científica específicas; e influenciar ou ser influenciado

pela interações locais ou globais; ser indutor ou inibidor de inovações, seja de

práticas/estratégias investigativas, seja de modelos teóricos ou, ainda, de

pressupostos filosóficos, entre outros. Características e implicações oriundas de

múltiplas contingências, produto da ressignificação científica da modernidade

reflexiva, que justifica a relevância do estudo dos TEs no universo das pesquisas

geográficas.

3.3.1 Elementos estruturantes do TE

Conforme elucidado nos capítulos anteriores, a dinâmica científica que

consolida uma tradição de pesquisa comporta as dimensões epistemológica,

axiológica, metodológica e ontológica. No caso específico do TE, além de

contemplar de forma autoimbricada tais dimensões, apresenta, no mínimo, quatro

elementos que atuam de forma articulada, não linear e simultânea como

estruturantes, isto é, como constituidores46 e constituintes das características que

fazem do TE uma espacialidade apropriada pelos saberes/fazeres do campo

científico, sendo eles:

46 Constituidores e simultaneamente constituintes, porque o TE só existe como tal com a presença

destes elementos que, ao mesmo tempo, lhe dão identidade e conteúdo.

Page 118: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

118

Os coletivos sociotécnicos – são os agregados de atores sociais ou agentes47,

conforme aponta Bourdieu (2015), as entidades de ensino e pesquisa,

fundações, agências (financiadoras e reguladoras), programas de ensino e de

pesquisa, os recursos técnicos, estruturais e financeiros, entre outros, que, em

redes sociais heterogêneas, compõem as condições estruturais (objetivas e

subjetivas) do fazer ciência num dado campo científico. Podemos sintetizar

apontando que fazem parte desse elemento todos e tudo o que, com suas

interações, atuam em redes diretamente na constituição, manutenção e

disseminação do TE, seja no papel de formadores/consumidores da episteme,

seja estabelecendo ou transgredindo fronteiras disciplinares, seja, ainda,

elegendo consensos e controvérsias. No entanto, o principal mecanismo de

constituição dos TEs é a dinâmica da produção, distribuição e consumo do

discurso científico.

A episteme – Tomamos como referência o ponto de vista de Foucault (2017), por

isso, no TE, a episteme representa a rede discursiva que ordena/explica/justifica

a conexão entre conteúdos (saberes), práticas (fazeres), pressupostos filosóficos

(perspectivas epistêmicas) e pensamentos, sendo vinculada à situação

geográfica, representando as possibilidades de existência de determinado

‘saber’ ou de um campo científico. Em outros termos, caracteriza o substrato de

onde estabelece a configuração dos saberes e do saber-fazer, consubstanciado

em estruturas discursivas que fazem parte do conhecimento científico ou

acadêmico que estruturam os TEs. Nessa ótica, as produções científicas dos e

nos coletivos sociotécnicos (principalmente as teses, dissertações e artigos

científicos) são concebidas como corpus de investigação, pois contemplam, além

dos procedimentos retóricos utilizados pelos pesquisadores, a episteme

legitimada no discurso científico numa dada espacialidade.

As fronteiras epistêmicas e suas transgressões disciplinares – Indicamos as

linhas fixas ou móveis que estabelecem as delimitações e/ou zonas de

47 Assim como o habitus científico, pois “um cientista é a materialização de um campo científico, e

suas estruturas cognitivas são homólogas à estrutura do campo, por isso, constantemente ajustada às expectativas inscritas no campo. As normas e princípios que determinam, se quisermos, o comportamento do cientista, só existem como tal, ou seja, como instâncias eficientes, capazes de orientar a prática dos cientistas no sentido da conformidade às exigências de cientificidade [...]”. (BOURDIEU, 2015, p. 62)

Page 119: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

119

confrontos estabelecidas (epistemológica e historicamente) na interface entre os

campos científicos e acadêmicos, pelos coletivos sociotécnicos, com outras

ciências (externas) ou no âmago do mesmo campo, demarcando os subcampos

disciplinares e estabelecendo seus TEs. A demarcação externa institucionaliza

a identidade científica, dá unidade ao pensamento científico, pois estabelece os

liames e transgressões entre as diferentes áreas de conhecimento, ao passo que

podem oferecer uma noção de consistência a seus conteúdos, ideias e

discursos, assim como legitima e consolida determinados campos científicos. A

fala de Hissa (2002, p.13-14) ilustra bem esse elemento:

A geografia, tal como todas as disciplinas entendidas como científicas ou não, tem sua existência e seu significado condicionados pela fuga de seus territórios, edificados ao longo da história da modernidade. Não há geografia sem transgressão de suas próprias fronteiras, assim como não há, em qualquer outra disciplina, ausência da contínua ultrapassagem de seus próprios territórios, tão sonhados como rigidamente demarcados.

Os consensos e controvérsias – atribuímos aos acordos ou desacordos

(embates) estabelecidos pelas relações de poder/saber/fazer dos e nos coletivos

sociotécnicos no campo científico ou que envolvem a temática. Estão

relacionados às convergências e divergências de pressupostos filosóficos,

perspectivas epistêmicas, metodologias e teorias, entre outras questões técnico-

científicas que se entrelaçam no processo produtivo do campo, por isso

contribuem para a estruturação do TE. Sua elucidação compõe a dimensão

política no estudo do campo científico, pois é um fenômeno que se revela como

produto das relações poder/saber/fazer, que performam e coexistem nas e das

interações (internas e externas) dos atores sociais dos e nos coletivos

sociotécnicos, sejam eles oriundas das orientações, das aulas, das leituras ou

indicações teórico-metodológicas, que permeiam, informam e impactam o fazer

científico.

Portanto, desvelar a organização espacial e epistemológica de um saber,

pela análise das determinações (articulações) de ordem teórica e metodológica das

especificidades e espacialidades do conhecimento científico oriundo da produção,

distribuição e consumo do discurso científico – análise geográfica do

desenvolvimento científico – é compreender a configuração dos elementos

estruturantes do TE na condição de fenômeno geográfico contemporâneo. O que

precisa ser feito, numa perspectiva processual e relacional, e implica, ainda,

Page 120: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

120

considerar a complexidade de suas múltiplas dimensões, a exemplo das dimensões:

epistemológica (sistema explicativo, estatuto e identidade científica etc.), sociológica

e política (atores, interações, redes sociais, relações de poder, círculos de afinidades

etc.) e geográfica (espacialidade, geolocalização, distribuição no espaço).

E por fim, a questão agora é: Por que e como os programas de pós-

graduação em Geografia - PPGG consolidam, nutrem e propagam TE no

pensamento geográfico? Sustentamos que os PPGG, além de absorverem,

replicarem e envolverem a espacialidade, se articulam através das interações das

ideias dos atores sociais e/ou dos coletivos sociotécnicos na dinâmica de produção,

distribuição e consumo do discurso científico, como, por exemplo, na realização da

formação de pesquisadores, nas produções intelectuais, na participação de eventos

técnicos e científicos, nas redes e/ou grupos de pesquisa (formais ou informais),

nos programas de pesquisa/agendas de pesquisa (principalmente através das áreas

de concentração e linhas de pesquisa) e nas disciplinas ofertadas. Isso porque

acabam por valorizar determinadas áreas em detrimento de outras, institucionalizar

temas/problemas, priorizar perspectivas epistêmicas e favorecer práticas e

estruturas discursivas, que legitimam a formação conceitual teórico-metodológica e

epistemológica. Em outros termos, a interseção temporalidade, espacialidade e

especialização de um saber é um fenômeno oriundo da produção, distribuição e

consumo do discurso científico dos coletivos sociotécnicos, pois os TEs formam e

são formados por redes de significações estabelecidas pelas ideias dos atores

sociais e/ou redes discursivas que consubstanciam uma episteme, pelos

conglomerados e/ou barreiras epistemológicas que estabelecem os domínios e

fronteiras epistêmicas e pelos embates técnico-científicos, que, conforme

desvelamos na seção, são elementos estruturantes que, articulados, nem sempre

são comensuráveis, mas, com certeza, consubstanciam, nutrem e propagam TE no

fazer científico.

Para ilustrar nosso ponto de vista, com a representação da

macroestrutura da espacialização e especialização na Geografia brasileira,

desvelada nos rastros digitais dos programas de pós-graduação. Para sua

elaboração, utilizamos como campo empírico as produções intelectuais dos

programas de pós-graduação em Geografia - PPGG, disponíveis na plataforma

Page 121: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

121

digital “Catálogo de Teses e Dissertações da Capes”48, de 01 a 30 de maio de 2018.

A totalidade dos resultados indicados na plataforma reflete o discurso geográfico

legitimado no período de 2012 a 2018.

A macroestrutura dos TEs na ciência geográfica, consubstanciados pelos

nove subcampos disciplinares, obtidos pela categorização das produções

intelectuais em Geografia Regional, Cultural, Urbana, Escolar, Agrária, da

População, Política, Econômica e Ambiental, reflete uma especialização desvelada

pelos temáticas abordadas, assim como pelas inscrições dos próprios coletivos

sociotécnicos quando disponibilizam as obras na base de publicação científica digital

da Plataforma Capes.

Na especialidade expressa pelos subcampos disciplinares, é notória a

concentração em determinados PPGGs, espacialidade que, na dinâmica de

produção, distribuição e consumo do conhecimento científico, torna os coletivos

sociotécnicos produtores de perspectivas epistêmicas, geralmente fundamentadas

pelas próprias referências teóricas, por vezes desconhecendo outras epistemologias

de situações geográficas específicas, um lócus legitimado e simultaneamente

legitimador dos saberes da Geografia, pois a ciência, na condição de produto

humano e social, é “sempre eivada de política e embebida de valores político-

filosóficos, interpretações, termos, conceitos, classificações e tipologias, que trazem

preferências ou, no mínimo, um lugar de enunciação, lócus da produção discursiva”

(SOUZA, 2015, p. 11).

Diante das especificidades que caracterizam o conceito TE, ele se revela

num fenômeno cuja elucidação, pela ciência geográfica, pode trazer contribuições

significativas para compreender a reflexividade da especialidade e da espacialização

no fazer científico contemporâneo. No mesmo sentido, indica o potencial para

explicar o que justifica a existência de posições metodológicas e/ou epistemológicas

específicas em determinados lugares e outros não, pois desvelam distinções e

similitudes no desenvolvimento espacial de um saber em um dado campo ou

subcampo científico. No próximo capítulo, centralizar os nossos estudos em torno

na territorialidade dos coletivos sociotécnicos (PPGGs) e na episteme do TE da

Geografia Física contemporânea.

48 http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/

Page 122: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

122

4 Da territorialidade dos programas de pós-graduação ao Território

Epistemológico da Geografia Física

[...] as fronteiras espaciais, sejam elas simbólicas ou físicas, inserem-se na pauta de discussão da Ciência, que, portanto, afetam as disciplinas e seus currículos universitários; a questão da transmutação dos conceitos e categorias, no caso, as espaciais, o que está conduzindo a uma transterritorialidade epistêmica, acompanhada de uma postura pós-disciplinar. (VITTE, 2011b, p. 10)

A fala de Vitte (2011b) na epígrafe nos remete ao pressuposto de que a

pós-graduação, principalmente no Brasil, configura-se num modelo de organização

social que reflete os imperativos da modernidade reflexiva, bem como da história

política e econômica nacional e global, e que seus impactos repercutem na

produção científica e tecnológica no país e nas tendências da educação nacional.

Nossa premissa é que a evolução epistemológica da Geografia Física no Brasil foi

consolidada pela territorialidade dos PPGGs, no decorrer do século XX.

Nessa ótica, este capítulo, à luz da Arqueologia do Saber proposta por

Foucault, tem como intuito descrever a territorialidade dos Programas de Pós-

Graduação em Geografia - PPGGs no Brasil que contribuíram para a formação da

episteme da Geografia Física brasileira, bem como desvelar a episteme do seu

Território Epistemológico. Assim, entende-se que existe uma “autonomia relativa”

dos PPGGs diante deste cenário e, por isso, para alcançar o objetivo geral desta

tese, compreender a evolução e o território epistemológico da Geografia Física

contemporânea no país implica a necessidade de pensar criticamente a

territorialidade dos coletivos sociotécnicos (PPGGs) no espaço nacional e dela

construir as categorias especificas e derivadas utilizadas para desvelar a episteme.

Isso porque consideramos territorialidade segundo a perspectiva apontada por

Hesbaert (2009, p. 626):

Territorialidade em seu sentido mais amplo, já que não se trata, obrigatoriamente, da territorialização concreta realizada. O que não quer dizer que ela seja menos importante, pois, dependendo do contexto, essas significações construídas por referência a um espaço, ainda que simbólico e/ou historicamente datado, [...] podem ser fundamentais na constituição do poder do grupo social. Embora todo território tenha uma territorialidade (tanto no sentido abstrato-epistemológico de qualidade ou condição de ser território, quanto no de sua dimensão real simbólica), nem toda

Page 123: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

123

territorialidade – e o mesmo se diria da espacialidade – tem i um território (no sentido de sua efetiva realização material)

Nosso argumento é que cada programa de pós-graduação representa um

coletivo sociotécnico (composto por grupos sociais, um entorno, dispositivos

técnicos e financeiros) que, no contexto de uma instituição universitária localizada,

estabelece relações de saber/fazer/poder entre si e com outros PPGGs. Tais

pressupostos articulados podem ser sistematizados em perguntas, a saber: Como a

trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil contribui para a formação do

Território Epistemológico da Geografia Física? E quais as mudanças e

permanências, bem com as características do Território Epistemológico da Geografia

Física, tomando como referência empírica a produção intelectual dos PPGGs?

Questões a que nos propomos responder ao longo deste capítulo com o auxílio da

reflexão teórica contemplada nos capítulos anteriores.

4.1 Trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil.

Não se trata de uma história factual, linear e neutra, que obedeceria aos ideais de descrever os fatos com objetividade total, seguindo uma sequência causal e cronológica, mas uma história arqueológica e genealógica. Tal história não obedece à noção de uma sucessão progressiva, linear e gradual, mas a continuidades e descontinuidades. (PORTOCARRERO, 2002, p.46)

Considerando a fala de Portocarrero(2002) como orientação, indicamos

que os antecedentes da pós-graduação no Brasil nos remetem ao período que

compreende aproximadamente entre 1930 a 1970, cujos marcos vão da

institucionalização da investigação científica nas universidades à implantação dos

primeiros programas de pós-graduação no início da década de 1970. O Decreto nº

19.851/1931 do presidente Getúlio Vargas institucionalizou a pesquisa científica, as

instituições universitárias e as condições para a formação dos doutorados no país,

pois:

O decreto nº 19.851 conferira às universidades nascentes o duplo atributo de lugares realizadores de pesquisa e, ao mesmo tempo, de lugares formadores de pesquisadores e doutores em ciências. Nesse sentido, esse decreto cola, desde a origem de sua institucionalização, a investigação científica, a saber, a pesquisa, nos seus diferentes domínios, com a finalidade de ensino dos institutos universitários. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p.80)

Page 124: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

124

Assim, instituída a pesquisa científica, vinculada ao ensino para a

formação dos pesquisadores no país, passa a vigorar prioritariamente nas

Universidades púbicas como principal responsável pela formação dos doutores em

ciências, que iriam atuar no quadro das próprias instituições de ensino superior e

promover o ‘desenvolvimento científico e tecnológico da nação brasileira’. No caso

específico da Geografia, os autores nos revelam que:

É desses anos de 1930 a criação da Universidade de São Paulo (USP), com a contratação de inúmeros professores/pesquisadores estrangeiros e também do curso de doutorado em direito da Universidade de Minas Gerais, atual UFMG [...]. O Curso de Geografia da USP é de 1934, com a participação de importantes professores franceses em sua fundação, a exemplo de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig. Nessa mesma conjuntura, e quase que simultâneo ao surgimento do Curso de Geografia da USP, nascem a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), fundada em 17 de setembro de 1934, em São Paulo, e o IBGE, criado em 1937. Assinaram a Ata de Fundação da AGB Pierre Deffontaines (presidente), Caio Prado Jr (secretário), Rubens Borba de Moraes (tesoureiro) e Luiz Flores de Moraes Rego. É importante ressaltar que até a criação da ANPEGE em 1994, foi a AGB que no campo profissional representou no cenário nacional a Geografia Brasileira, se pronunciando, inclusive, no tocante a assuntos relativos à pós-graduação. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p. 80)

Com a criação da USP em 1934, como uma instituição do Governo

Federal, estruturada no modelo de universidade francês (cátedra), embebida nos

paradigmas e concepções da Geografia humana de Paulo Vital de La Blache e

voltada para a promoção do progresso da ciência através da articulação pesquisa e

ensino, estabelecia-se no país uma primeira geração de coletivos sociotécnicos em

Geografia, através dos professores franceses e dos brasileiros que atuavam nas

instituições científicas USP, IBGE e AGB. Estas instituições passaram a ocupar o

lugar de propagadores do pensamento geográfico francês, promovendo o

“afastamento das concepções alemãs, distância de temáticas políticas, realização de

pesquisas empíricas e descrições localizadas através de monografias, que serão as

marcas da geografia uspiana” (CAMPOS, 2011, p. 138-139). Schwartziman (2015)

nos esclarece que este:

Foi uma época de contatos intensos com a Europa, especialmente a França, introduzindo no Brasil os conceitos de evolução, do darwinismo biológico e social, do positivismo e do materialismo filosófico e político. [...] O positivismo reina no meio militar, [...] no que se refere especificamente à área científica e intelectual, haveria que examinar, além do papel do positivismo e da influência do ambiente intelectual e universitário francês, a influência alemã. É da França e da Alemanha que chegam, muitas vezes com atraso e distorcidos, os modelos intelectuais e institucionais que são adotados no Brasil.[...] o contingente de cientistas e pesquisadores assumiu

Page 125: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

125

a liderança de muitas instituições de pesquisa. (SCHWARTZIMAN, 2015, p. 143)

Na fala do autor, podemos identificar o fundo epistemológico que

permeava as produções intelectuais tributárias das visões filosóficas da ciência

europeia. Cardoso (2013), nesta mesma linha de pensamento, chama atenção para

a significativa contribuição dos professores franceses para a formação da episteme

do campo disciplinar da Geografia brasileira nesta geração, que, paradoxalmente,

denomina uma “cultura geográfica nacionalista”, alegando que ela imprimiu um viés

“eminentemente prático à disciplina”, voltada para atender às demandas do governo

provisório de Getúlio Vargas, com destaque para as temáticas relacionadas à saúde,

educação e trabalho.

Contudo, mesmo com essa característica eminentemente nacionalista,

para a autora, este período “pré-científico” é também marcado pela falta de

“autonomia epistemológica” em função da “dependência cultural com “os grandes

centros do Velho Mundo”. Isso porque, embora suas problemáticas fossem

circunscritas aos interesses para “identificar os problemas nacionais e tentar resolvê-

los, de modo a inserir o país no rol das nações civilizadas” (CARDOSO, 2013, p. 26),

as abordagens e a visão de ciência utilizadas estavam profundamente imbricadas às

concepções ocidentais49 (principalmente da escola francesa), compondo um modo

de ser, ver e agir conduzido pelos imperativos dos interesses estrangeiros, o que

legitimou a adoção de um modelo de ciência internacional, adaptado para a

realidade nacional, uma vez que “ seria certamente ingênuo, nesta apreciação,

contrapor a ciência europeia a uma possível ciência nacional” (SCHWARTZMAN,

2015, p. 143). Sem contudo, deixar de considerar que, “os estudos geográficos, por

conseguinte, estavam também a serviço dos interesses ‘imperialistas’, pois a

conquista de um território implicava também o reconhecimento de sua realidade”

(CARDOSO, 2013, p. 27). Para isso:

A estatística era o modo mais eficaz de conhecer os problemas e de orientar as soluções para os mesmos, reduzindo a possibilidade de insucessos administrativos. Um Estado planejador da vida da Nação

49 O nosso entendimento dialoga com a concepção de que “Esse modo-de-ser-no-mundo

hegemônico, civilizado, científico e pautado no modo de vida capitalista demonstra que os entes (individuais e coletivos, os sujeitos e seres sociais) são reprodutores do mundo e, ao mesmo tempo, encontram-se sujeitados a este próprio processo condicionante do modo-de-ser-no-mundo. O mundo seria o ‘objeto’ deste sujeito que, ao mesmo tempo, projeta, produz e reproduz o mundo e se encontra condicionado a ele.” (GUIMARÃES, 2017, p. 18).

Page 126: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

126

necessitaria de métodos modernos, científicos e neutros para justificar sua ação, provando que a decisão tomada era a melhor para todos. [...] redescobrir o Brasil e fornecer dados que permitissem a consolidação de um Estado, que se dizia Nacional. (CAMPOS, 2011, p. 141)

O autor pontua que esta forma de ver, conceber e produzir o

conhecimento científico é “útil ao nacionalismo da época ao ter como uma das suas

metas o ataque ao determinismo fisiográfico e ao afirmar a possibilidade de

desenvolvimento dos países tropicais” (CAMPOS, 2011, p.141). Na crença pujante

de que a estatística seria a forma mais eficaz de realizar a pesquisa científica e

contribuir para o “Estado planejador”, é possível constatar fragmentos que refletem a

forma de abordagem legitimada e instituída nos elementos explicativos (explícitos e

implícitos), que evidenciam a coimplicação das dimensões axiológicas (os valores

econômicos, sociais e éticos), na dimensão metodológica (nos procedimentos, nas

estratégias e abordagens), e que, consequentemente, repercutiram na trajetória de

formação epistêmica da Geografia brasileira.

Nas historiografias contemporâneas sobre as produções intelectuais da

época, é possível constatar fragmentos com ligações evolutivas históricas

(contribuições, influências, críticas) desta episteme. Primeiro, no trabalho realizado

por Cardoso (2013) sobre “o lugar da geografia brasileira na sociedade de geografia

do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945”, em que analisa e descreve os dados

coletados nos documentos históricos da época, que comprovam a existência da

“cultura geográfica” do Estado Novo nas produções intelectuais dos principais

eventos científicos. Vejamos na fala da professora:

[...] como já era de se prever, todas as teses oficiais confluíam para o desenvolvimento da ‘cultura geográfica’ do Estado Novo, também na escolha dos temas para estudo, quando na busca de subsídios para orientar a formulação de políticas públicas. A esse respeito, no programa do congresso de 1940, veja-se na seção de geografia humana o item ‘estudo funcional de um centro urbano’, solicitava-se aos autores de monografias que identificassem as condições geográficas e topográficas que influíam na formação de uma cidade. Na mesma seção, outro exemplo expressivo constava da redação de um ‘inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante’, em aspectos, ‘a origem, a categoria social, a atitude do imigrante em relação ao trabalho, aos ‘conceitos médios sobre propriedade, família, religião, educação e às questões internacionais, e se o tipo era assimilável ou não’. (CARDOSO, 2013, p.181)

De modo geral, segundo a autora, os temas alvo das pesquisas eram

escolhidos em função das demandas nacionais, com o intuito de oferecer subsídios

para a elaboração das políticas públicas. Os trabalhos de conclusão eram orientados

Page 127: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

127

para produzir diagnósticos geográficos e topográficos que impactavam diretamente

na formação do espaço urbano “como o seu ‘histórico geograficamente

interpretado’”, e a dimensão humana abordada tinha alto viés do “inquérito

antropogeográfico sobre o imigrante”, conhecer a estrutura social, a partir das

“questões internacionais”. (CARDOSO, 2013, p. 181)

Segundo, os elementos da “cultura geográfica” também podem ser

identificados nos textos do Boletim Geográfico (nº31), publicado em outubro de

1945, conforme podemos ver no Quadro 04 fragmentos do texto “Pesquisas

Geográficas”, de Pierre Monbeig, professor, geógrafo, francês, discípulo da primeira

geração de Vidal de La Blache, e o segundo numa série de estrangeiros que vieram

para o Brasil ensinar na USP. Para Moreira (2010, p. 27), a marca que distingue

Monbeig entre todos é o pluralismo de abordagens/temas, “é [...] a referência nos

estudos seminais das cidades brasileiras, da formação do espaço agrário via

movimento das frentes de expansão agrícolas e de teorias e do ensino da Geografia,

[...] textos que depois reúne em um livro, cobrindo um lapso de tempo de 15 anos.”

Com um estilo de pensamento que se aproxima da Geografia na “modalidade de

integração” a partir da “superposição em camadas”, em que “as esferas física e

humana vão se superpondo, num acamamento mais mecânico que orgânico de

integração, bem no estilo da Geografia regional de Vidal de La Blache” (MOREIRA,

2010, p. 31), com isso coloca o “quadro físico” como base das dinâmicas sociais e

econômicas.

Uma comunicação de caráter prescritivo. Apresenta-se como um

“receituário” aprovado pela autoridade hierárquica da posição de ser “o professor

francês”, contempla nos elementos explicativos vários fragmentos que denotam o

estilo de pensamento do professor e a “cultura geográfica” da época. No Fragmento

01, fica evidente a ênfase atribuída para os estudos regionais nas monografias como

produto das pesquisas geográficas e “científicas”, o autor aponta a carência das

“monografias regionais” e indica que só através delas é possível obter a

‘científicidade’ e a distinção dos textos geográficos de outros (literário e jornalístico).

No Fragmento 2, identificamos o modelo de análise geográfica proposto (legitimado)

e a descrição de suas vantagens. Um primeiro elemento explícito que chama

atenção é a referência a “quadro”, inclusive citado em vários fragmentos ao longo do

texto.

Page 128: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

128

[...] afinal, esse termo serve, entre outras coisas, para denominar figuras, tabelas, gráficos ou grandes diagnóstios sobre um determinado assunto. [...] o apelo à ideia de quadro passou a ser característico do vocabulário científico dos séculos XVIII e XIX. Esse uso era sobretudo precioso quando se tratava de um volume grande e/ou variado de informações que precisavam ser organizadas, enquadradas.” (GOMES, 2017, p. 93)

A ideia expressa no uso do quadro é a sistematização dos dados

científicos em partes (quadros), físico depois humano, para facilitar a análise das

partes e chegar a compreender a “complexidade” da totalidade, pois, conforme nos

alerta Gomes (2017), o recurso do quadro como modelo de análise requer o olhar

pelas partes na busca das conexões possíveis, a concepção da existência de

elementos objetivos, a ordem e a disposição dos quadros . Prevê, ainda, o contato

“íntimo” com a realidade (do visível), através do trabalho de campo (ênfase no

empirismo), e o procedimento lógico da indução, cujas principais vantagens seriam

a atividade prática como processo formativo, freio à “imaginação” e possibilidade de

registrar os problemas “reais” da “zona estudada” – “[...] a forma de trabalhar com

imagens enquadradas tem sido um poderoso instrumento de constituição da

Geografia. [...] o quadro é, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um

procedimento do saber” (GOMES, 2017, p. 97).

Quadro 4 Fragmentos do texto “A pesquisa Geográfica” de Pierre Monbeig

Fragmento 01 – As monografias regionais (1945, p. 3)

É indiscutível que neste terreno há mais o fazer: aumentar os estudos regionais, realizados dentro dos moldes dos métodos modernos da Geografia. Se se comparar a bibliografia geográfica nacional com a de ouros países novos, nos quais as condições de trabalho eram frequentemente tão e mesmo mais difícieis, fica-se chocado pela pequena representação das monografias geográficas brasileiras. A deficiência é mutio menor em geologia ou mesmo em botânica. Também não faltam artigos jornalísticos ou literários que nada têm de científico senão a apresentação de seus autores. Mas as nonografias regionais são raras.

Fragmento 02 – Modelo de análise geográfica e suas vantagens (1945, p. 4)

É entretanto no quadro da região que melhor se entra em contacto com a realidade: a complexidade das relações entre os grupos humanos e as condições naturais aparece em maior destaque que em golpes de vista de conjunto. O estudo é essencialmente analítico, trantando sucessivamente dos direfentes aspectos físicos e depois dos fatos humanos; não se limita a uma descrição seca e não exclui uma conclusão onde for possível trazer à luz o ajustamento ou, ao contrário, o desajustamento entre as condições

Page 129: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

129

geográficas permanentes e o estado atual das atividades humanas. Este modo de trabalho apresenta duas vantagens: a primeira é a de travar um contacto mais íntimo com o concreto, o que constitui a melhor escola desejável para o principiante e o freio mais sólido suscetível de permitir uma apresciação exata dos verdadeiros problemas da zona estudada, podendo, em consequência, a pesquisa científica adquirir uma utilidade prática.

Fragmento 03 - A geografia nacional, moderna e aplicada (1945, p.5)

[...] relativas a diferntes países e às discussões da Royal Geographic Society, relativas à renovação da agricultura britânica, aos problemas da indústria e às questões da população. Em todos esses países, onde há muito tempo triunfou a concepção moderna da Geografia, onde o ensino nas escolas de todos os graus é ministrado por pforessores especialmente preparados e posto de acordo com as ideais novas e a pesquisa é encorajada, a Geografia foi chamada para render os melhores serviços.

Fragmento 04 – A região homogênica (1945, p. 5)

É certo que a realização dessas monografias regionais nem sempre é fácil: requer certo conhecimento dos princípios e dos métodos de trabalho geográficos a fim de poder começar por bem colocar a região que se pretende analisar. A principal dificuldade reside, sem dúvida, na escolha da região e em sua delimitação. Poder-se-ia classificar de ideal a porção do globo que é tão invidualizada pelo conjunto de suas características físicas, naturezaa das rochas, formas de relevo, clima, vegetação, a ponto de essas lhe conferirem, por si sós, uma unidade indiscutível; esta unidade se concretiza na paisagem que se opõe em todos os seus aspectos e mesmo quase brutalmente aos dos territórios vizinhos. Frequentemente, graças a essa homogeneidade dos fatores físicos, o povoamente é antigo e as atividades humanas encontraram muito cedo um quadro natural no interior do qual atingiram rapidamente sua plenitude. A união do homem e da natureza é, nesse caso, bastante desenvolvida para que a região não seja somente ‘natural’, mas também histórica: é um país retomando a terminologia espontânea dos camponeses franceses (ou de outras populações europeias: o gau germânico).

Fragmento 05 – A indicação dos temas/problemas (1945, p. 6)

As monografias relativas a essas unidades naturais bem definidas constituíram os principais objetivos de pesquisas dos geógrafos franceses da escola de Vidal de la Blache; teses de doutoramento sobre a Flandres, sobre o Bas-Maine, alguns valores alpinos [...], etc. As terras paulistas oferecem exemplos idênticos, mas que ainda esperam por seus geógrafos: o vale do Paraíba, o litoral, a serra do Mar; e no imenso Brasil, desde as coxilhas até Marajó, passando pela baixada fluminense, o vale do São Francisco, o Pantanal matogrossense, assuntos não faltam. As dificuldades surgem quando os caracteres físicos são mais complexos, os limites menos preciosos e as nuances mais diversas. No Estado de São Paulo, por exemplo, há uma região cuja unidade topográfica não pode escapar a quem quer que observe o mapa orográfico; a

Page 130: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

130

que se estende desde a fronteira com o Estado do Paraná, nas redondezas de Itararé. Indo como um vasto crescente em direção ao norte, além de Casa Branca [...] Todo o complexo jogo das condições naturais, natureza das rochas e dos solos, variações de clima e, sem dúvida alguma, também a ação das contingências históricas (antiuidade, importancia e constância do povoamento), contribuíram para esclarecer as razões de ser dessas nuances locais; é necessário, entretanto, as precisar e traçar tão exatamente quanto possível os limites de cada paisagem.

Fragmento 06- O possibilismo (1945, p. 7)

Os exemplos citados parecem admitir que as atividades humanas se adaptaram sempre perfeitamente ao quadro natural; estado ideal na concepção de uma Geografia estreita, mas que nem sempre é realizada. Se assim fosse, o geógrafo poderia raciocinar como outrora o fazia Cuvier, ao qual bastava um único fragmento de osso para reconstituir um animal: um único pedaço de rocha, uma cota de altitude e um gráfico climático seriam suficientes para descrever em seguida o povoamente e a economia da regição. É fazer muito pouco caso dos homens e de suas paixões. Assim, no conjunto dos planaltos do interior paulista e do norte do Paraná, os elementos não oferecem nunca constrastes muito marcantes: um conjunto, não é impossível de os considerar como formando uma região natural. Por outro lado, os modos de ocupação do solo são muito mais variados e, sobretudo, evoluem rapidamente. Em consequência, torna-se mais difícil basear-se nos limites físicos e, nesse caso, como em muitos outros, a pesquisa deve partir dos fatos humanos.

Fragmento 07 – As monografias municipais com alternativas (1945, p. 8)

Notar-se-á que os referidos quadros não são quadros administrativos, limites de Estados ou de municípios. Não porque seja necessário os repelir sistemáticamente, mas porque, na maioria das vezes, as fronteiras políticas concordam mal, quer com os limites físicos, quer com os contatos históricos ou econômicos. Limitar-se a priori aos quadros políticos seria arriscar a perder de vista a realidade e, por conseguinte, chegar a conclusões práticas erradas. Entretanto, por falta de trabalhos feitos levando em cosideração as unidades naturais ou antropogeográficas, as monografias municipais oferecem um grande interesse.

Fragmento 08 - Contribuição das análise estatístas (1945, p. 8)

Ao lado das pesquisas regionais, restam ainda muitas outras a realizar, onde o ponto de vista do geógrafo não seria inútil. Poderia ser a Geografia Urbana, que conheceu um extraordinário desenvolvimento tanto em França quanto nos Estados Unidos; alguns dos alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo realizaram várias pesquisas bem desenvolvidas sobre cidades como Santo André, Casa Branca, Franca, Campinas, Jabuticabal, Belo Horizonte. É Bem pouco, em relação ao que resta fazer ou mesmo refazer, pois algumas dessas cidades já passaram por transformações depois de 1938 ou 1939. Em um país onde a população é distribuída tão desigualmente e onde está em perpétuo deslocamento, há uma série de problemas

Page 131: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

131

relativos às densidades, à evolução do volume dos habitantes em unidades territoriais precisas, à distribuição dos elementos exógenos. Mapas organizados segundo o recenseamento de 1940 e concernentes às densidade de população nos diferentes Estados do Brasil, com análises mais preciss para o Estado de São Paulo, tornam mais tangíveis fatos frequentemente ignorados, como, por exemplo, o desequilíbrio que se acentua entre as diferentes zonas paulistas. Essas representações cartográficas constituem complemento indispensável dos recenseamentos e devem ser efetuadas de acordo com as análises estatísticas.

Fragmento 09 - Os propósitos da geografia (1945, p. 9)

Há ainda numerosas outras questões na solução das quais os estudos geográficos podem contribuir: eis, por exemplo, dois volumes que mostram o valor prático que se lhes podem atribuir: um, uma publicação da Universidade de Chicago, intitulada Geographic aspects of international relations, que reúne conferências de Bowan, Pierre Denis, Preston James, Robert Platt, D. Whittlesey e outros. Vários dessas conferências tratam dos problemas de população, particularmente na América do Sul, examinando-os no quadro das condições geográficas; as de Pierre Denis, universitário que se transferiu para o mundo dos negógicos, aborda o tema dos aspectos internacionais da intervenção do Estado na vida econômica, tratando-o sempre dentro de um espírito geográfico.

Fragmento 10 – O modelo francês de cátedras (1945, p. 11)

Esses tipos de pesquisa nos afataram sensivelmente do que fora outrora a Geografia. Restaria saber como passar à realização e como pôr em obra as sugestões desse gênero. Os exemplos citados, tomados quer em França, quer nos Estados Eunidos, indicam o papel que aí têm os centros de estudos geográficos das Universidades. Sabe-se que essas Universidades dispõem de pessoal e de recursos suficientes. O exemplo deveria ser seguido. Naturalmente, nem a realização nem a direção desses trabalhos poderiam ser confiados aos estudantes recém-saídos dos cursos secundários: o grupo de pesquisadores deveria ser reccurtado entre os licenciados, muito cuidadosamente selecionados. Por sua vez, eles poderiam utilizar alguns dos candidatos ao licenciamento, para as fases mais elementares do trabalho, a fim de começar um treinamento progressivo. Um verdadeiro laboratório de pesquisa geográficas seria assim formado, cujos membros não teriam outras preocupações e seriam colocados em condições materiais tais que se teria o direito de exigir um trabalho constante. Esse centro de estudos não poderia de maneira alguma funcionar como um seminário sem contacto com o exterior: ao contrário, seus membros manteriam relações estreitas com as outras seções da Universidade bem como com os departamentos extrauniversitários, cujos trabalhos e funções estão próximos da Geografia. Nenhum obstáculo sério poderia travar a elaboração de planos de pesquisas coletivas, permitindo cobrir todos os aspectos de um mesmo problema. O conhecimento científico e a vida prática não têm senão a lucrar com uma melhor organização e desenvolvimento dos estudos geográficos.

Fonte: Boletim Geográfico (1945, v2 n31)

Page 132: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

132

No Fragmento 03, Monbeig (1945) conclama para a produção de uma

Geografia moderna, nacional e aplicada, paradoxalmente nos moldes da Geografia

europeia. No 4º Fragmento, o autor descreve os princípios que devem ser

considerados no método de trabalho do geógrafo: “as monografias regionais”; “a

necessidade do recorte espacial – região homogênea”; e a orientação para “utilizar

como critério para estabelecer a regionalização e como unidade da paisagem a

homogeneidade dos fatores físicos”.

Nos Fragmentos 05 e 06, é possível constatar a vinculação explícita ao

coletivo de pensamento francês, que, segundo Andrade (1992, p. 69), refere-se ao

fato de que “Escola Francesa foi formada na primeira metade do século XX, tendo

por centro as ideias defendidas por Vidal de La Blache”. Embora o autor deixe claro

que este coletivo de pensamento não apresenta um bloco monológico, pois

“havendo muitos dos geógrafos nela classificados que aceitavam, em parte, as

ideias de Vidal de La Blache, discordavam do mestre em outros momentos”

(ANDRADE, 1992, p. 71). No entanto, no cerne das práticas discursivas desta

primeira geração de coletivos, é possível pensar a relação homem/meio físico a

partir do axioma “o meio exerce alguma influência sobre o homem, mais que este,

dependendo das condições técnicas e do capital de que disponha, poderia exercer

influência sobre o meio, daí [...] o Possibilismo” (ANDRADE, 1992, p. 70).

Concepção que está implícita em vários fragmentos do texto e mais especificamente

na fala “as atividades humanas parecem se adaptar sempre perfeitamente ao

quadro natural. Estado ideal na concepção de uma geografia estreita [...]”

(MONBEIG, 1945, p. 7).

Nos Fragmentos de 07 a 10, o autor enaltece: as monografias municipais

como alternativas para as análises regionais; as contribuições da análise estatística

e cartográfica para a Geografia; o alcance da Geografia moderna internacional e

produção colaborativa de pesquisa para ampliar sua abordagem, respectivamente

(MONBEIG, 1945). O ponto convergente nos fragmentos é o incentivo “aos fins

pragmáticos” que deveria tomar a pesquisa geográfica.

Os geógrafos que vinham trabalhando isoladamente ou no ensino universitário teriam de se adaptar a um sistema de trabalho realizado em comum e em colaboração com outros especialistas, procurando atingir fins pragmáticos. Daí o crescimento e até o surgimento de disciplinas do conhecimento geográfico que se interpunham entre a Geografia e a Economia, a Sociologia ou Antropologia, e se passou a falar em uma

Page 133: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

133

Geografia Aplicada e em uma Geografia Ativa. Este desafio conduziria os geógrafos a fazer uma revisão nas categorias científicas que utilizavam e a promover grandes polêmicas em torno da transformação do conhecimento e do estudo da Geografia. (ANDRADE, 1992, p. 95)

A inserção de novos campos disciplinares nos currículos dos cursos de

Geografia, bem como a mudança nas categorias de análise geográfica, as

alterações em relação aos propósitos (sentidos) da ciência geográfica e a frequente

adjetivação de “aplicada”, que passa a ser vinculada à Geografia, mostram as fortes

ligações evolutivas, de caráter histórico e social na dinâmica científica.

Ligações evolutivas oriundas também das transformações socioespaciais,

principalmente do contexto pós-guerra, atuaram de forma significativa como fato

condicionante da evolução epistemológica do saber geográfico, principalmente

através dos fundamentos do pragmatismo.50 Nos elementos implícitos, é possível

interpretar essa inserção das disciplinas nos cursos, segundo a concepção de que a

formação (iniciação) do professor e pesquisador traz impacto no desenvolvimento

científico, legitimando e propagando a episteme válida.

Esta mesma cultura geográfica nacionalista (episteme) legitimada e

propagada pelas instituições oficiais e pela comunidade científica, da primeira

geração de coletivos sociotécnicos, vai ser intensificada no período de 1940 a 1950,

pois atendiam aos imperativos da política modernizadora do Estado Nacional,

aquela voltada para a formação da “identidade nacional”, e em função dela vários

órgãos (inclusive, agências de fomento) foram criados. Entre eles, em 1949, através

da lei 1.310, cria-se o “Conselho Nacional de Pesquisa”, atual Conselho Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, com a finalidade de regulamentar

e promover a investigação científica no país, auxiliar e potencializar a formação, o

aperfeiçoamento e o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como formar o

quadro técnico e científico nacional e o intercâmbio com instituições estrangeiras.

De acordo com Silva e Oliveira (2009, p. 81), o CNPq ainda hoje constitui-se num

dos “principais sustentáculos para a promoção da pesquisa e formação de quadros

50 “Essa postura epistemológica e metodológica tem suas raízes filosóficas na tradição pragmática,

mais claramente expressa por Charles S. Peirce, que, para Karl Popper, foi o maior filósofo norte-americano de todos os tempos (Popper, 1959). O pragmatismo surgiu nos Estados Unidos e contrastava nitidamente com a metafísica, pois propunha que o conhecimento fosse originado pela atividade prática, a partir de experimentos e da experiência científica. Os pressupostos diziam respeito às suas consequências no que tange à verdade e ao significado. As teorias serviam como guias para a ação positiva, enquanto todo o conhecimento deveria ser empregado para solucionar os problemas práticos do cotidiano. “(VITTE, 2007, p. 24 – 25)

Page 134: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

134

técnico-científicos, nos quais se incluem a pós-graduação, em todas as áreas do

conhecimento”, através não só do fornecimento das bolsas e dos editais de

pesquisa, mas, diretamente, através do financiamento e controle dos Planos

Nacionais de Pós-Graduação (PNPG)51, pois seleciona as áreas de conhecimento

(institucionalizadas) e os temas “prioritários” para as finalidades (metas)

estabelecidas pelos planos ou programas de desenvolvimento em vigor. Vejamos no

fragmento do texto de Kato e Ferreira (2016, p. 667):

Quando analisados os antecedentes do PNPG (2011 – 2020), nota-se que há uma indução histórica, da base econômica, expressa nos planos anteriores, que corroboram a hipótese [...], de que há uma relação direta entre a condução política do nosso recém-Sistema Nacional de Pós-Graduação e nosso modelo de desenvolvimento econômico, que funcionaliza o papel da universidade e do conhecimento ali produzido para a reprodução ampliada do capital.

Ainda para ilustrar, podemos considerar como exemplo que, no final da

década de 1960, a situação muda, mudanças evolutivas trazem novos rumos para a

universidade brasileira, não só em função dos conflitos políticos com o golpe de

1964, através da implantação de medidas radicais e restritivas52 às Universidades e

aos movimentos de resistências, mas principalmente com a Reforma Universitária

instituída pela Lei 5540/68, cujas bases vinham sendo construídas desde 1940, no

Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), através dos serviços de assessores

norte-americanos contratados pelo acordo MEC-Usaid, implantados pelo Ministério

da Educação. Na fala do autor:

A modernização do ensino superior na direção do modelo norte-americano já vinha ganhando terreno lenta, mas solidamente, desde os anos de 1940 [...]. A própria Universidade de Brasília expunha esse modelo à pronta difusão. Ele consistia na radical mudança de organização dos recursos materiais e humanos da universidade. Em vez de agrupá-los em função dos produtos profissionais (isto é, nas faculdades), passavam a ser agregados

51 Oficialmente, os Planos Nacionais de Pós-Graduação-PNPG no Brasil “cumprem o objetivo de

definir novas diretrizes, estratégias e metas com vistas ao desenvolvimento da pós-graduação e pesquisa no Brasil [...]. Alguns eixos são destacados como centrais no âmbito deste documento: expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação; criação de agenda nacional de pesquisa; o papel de indução da Capes e do CNPq; o aperfeiçoamento da avaliação; o apoio aos demais níveis de ensino; e a formação de recursos humanos para empresas”. (KATO; FERREIRA, 2016, p. 684) 52

Para Cunha (2007, p. 21), “as medidas restritivas eram de vários tipos, desde a demissão de reitores e diretores e expulsão de professores e estudantes, até o impedimento legal de certas experiências específicas de modernização do ensino superior, como a da Universidade de São Paulo. As resistências iam desde o revigoramento do movimento estudantil, que chegou a buscar uma concepção original de universidade, até a rejeição da intromissão dos consultores norte-americanos no planejamento do ensino superior brasileiro.”

Page 135: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

135

em função das economias de escala no uso dos indutos (implicando a estrutura departamental). O conhecimento a ser ensinado se fragmentava em pequenas unidades chamadas disciplinas, já descoladas das matérias correspondentes às cátedras. No nível da universidade, a agregação das disciplinas dava origem aos departamentos, por processos indutivos (ao contrário do processo dedutivo que originava a cátedra); no nível do estudante, resultava no currículo a ser composto mediante um sistema peculiar de contabilidade – o crédito. Assim, a própria estrutura da universidade revelava a vitória do empirismo anglo-saxônico sobre o racionalismo francês e o idealismo alemão, embora este fosse evocado em sua justificativa. (CUNHA, 2007, p. 21)

Com a Reforma, houve uma mudança radical da estrutura de cátedra

(modelo universitário francês) para o modelo disciplinar norte-americano, em que

para cada disciplina foi atribuído um departamento, e os alunos deveriam conquistar

o número de créditos estabelecidos nas grades curriculares dos departamentos

(modelo que vigora atualmente nas universidades brasileiras). No fundo foi a

transformação “das tradicionais instituições em instituições modernas”, cerne do

discurso que justificava a implantação da Reforma e atendia aos imperativos da

modernidade e caracterizam a segunda geração dos coletivos sociotécnicos no

período de 1970 a 1980, que vai culminar com a primeira fase de implantação dos

programas de pós-graduação no país. Vejamos no fragmento a seguir:

Em texto escrito em 1972, Newton Sucupira rememorou as razões que, no seu entender, levaram à fragmentação das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLs). A extrema especialização do saber científico moderno tornaria impraticável a reunião, na mesma unidade de disciplinas tão diversas. A heterogeneidade da congregação de uma FFCL, reunindo professores de uma dezena de áreas, ignorando-se uns aos outros, evidenciaria tal impossibilidade prática (Sucupira, 1973, p. 54). É estranho que, coerentemente com esse diagnóstico, aquele conselheiro não tivesse proposto, também, a fragmentação dos conselhos universitários, por certo ainda mais heterogêneos que as congregações das FFCLs. (CUNHA, 2007, p. 76)

A vinculação explícita com a ciência moderna da “modernização

universitária” instituída no Brasil elimina definitivamente a possibilidade de uma

concepção de “cultura geral desinteressada e unidade do saber” - características

da filosofia alemã fundada por Von Humboldt, que vigorava na Europa -

legitimando a fragmentação dos saberes, principalmente entre as ciências humanas

e as ciências naturais. Veja que não há como distinguir as implicações internas e

externas da dinâmica científica, assim com o elemento marcante, que são as

repercussões da reflexividade epistêmica nas várias dimensões do fazer científico,

uma vez que estão efetivamente coimbricadas, pois:

Page 136: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

136

Essa fragmentação epistemológica é também ontológica, pois reforça a especialização positivista das ciências, que, no caso da geografia, ira distanciar o diálogo entre as chamadas “geografias setoriais” e reforça ainda mais a fragmentação interna – muitas vezes, velada como especialização do conhecimento científico – tais como: geografia humana, geografia física, geografia regional e geografia socioambiental. Destarte, a construção desse modelo de totalidade fragmentário baseado na antinomia homem/natureza acaba por negligenciar os modos-de-ser-do-humano-na-Terra em prol de um modo hegemônico, o modo-de-ser-no-mundo civilizador-moderno-ocidental. (GUIMARAES, 2017, p. 19)

Na mesma linha de pensamento de Guimarães (2017), Suertgaray (2017)

nos adverte que a fragmentação surge na Ciência Moderna como possibilidade de

ampliar a análise geográfica (articulação entre as dimensões epistemológica e

metodológica), seja na perspectiva espacial (por exemplo, as escalas geográficas),

seja na perspectiva temática (Geografia Urbana, Geografia Rural etc.), seja na

perspectiva do objeto de estudo da Geografia, através das diferentes concepções

atribuídas ao espaço (natural, social, vivido, geográfico, geométrico). Observe que

já nos anais do “9º Congresso Brasileiro de Geografia” de 1941, analisados por

Cardoso (2013), é possível comprovar a especialização da ciência geográfica,

indicada na fala de ambos os autores, não só nas orientações (normatizações do

evento), mas na distribuição das temáticas das produções intelectuais apresentadas

no congresso. Cito:

[...] a maior incidência de trabalhos recaiu sobre as seções de geografia humana e de geografia econômica, seguidas das contribuições voltadas para a temática regional e as monografias dedicadas ao estudo da geografia física. Afora a indicação recorrente da necessidade de elaboração de uma carta topográfica brasileira [...] as demais moções aprovadas pelas comissões técnicas espelham o contexto político e cultural que o país atravessava. (CARDOSO, 2013, p. 182)

A fala da autora também reflete a vinculação explícita das temáticas

elegidas pela comunidade científica sobre as demandas políticas e econômicas

vigentes, desvelando permanências em relação aos valores sociais (dimensão

axiológica), que foram importantes para o próprio fortalecimento e interpretação do

Brasil. Até porque, do mesmo modo que não é possível determinar causa única ou

específica proveniente de fatores internos ou externos isolados, também em relação

à temporalidade, as múltiplas contingências se entrelaçam: passado (o que

aconteceu), presente (com o que está acontecendo) e futuro (podem ou não

repercutir no futuro). Na tese de Cunha (2007), podemos visualizar essa suposição,

pois, para a autora, as concepções que culminaram na “modernização

Page 137: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

137

institucionalizada” da reforma universitária de 1968 foram gestadas desde 1940 e

representavam, além de um mecanismo de controle do sistema educacional que

atendia aos interesses do Estado, uma busca dos “administradores educacionais,

professores e estudantes”, na época. Linha de pensamento que coaduna com

Andrade (1992), que alerta que era possível a “constatação destes fatos e a

necessidade de participar do movimento de reformulação científica e política da

sociedade, que inquietou os geógrafos, ora a percorrer novos caminhos, ora

procurando atualizar os princípios gerais da geografia clássica e tradicional”

(ANDRADE, 1992, p. 82). O autor nos revela ainda que, no coletivo de pensamento

da época, o dilema era “reforma” ou “revolução”, e o ‘ideal’ que perpassa e informa o

social e o científico era romper com a ordem instituída, abrindo possibilidade para

“uma ‘nova geografia”, à luz dos fundamentos neopositivista53.

No texto “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil”,

de Marília Velloso Galvão e Speridião Faissol, Geógrafos do IBG (antigo IBGE),

publicado na Revista Brasileira - RBG de 1970, numa comunicação prescritiva, é

possível identificar vários fragmentos que ilustram os estilos de pensamento dos

autores e do coletivo de pensamento da segunda geração (GALVÃO; FAISSOL,

1970). No Quadro 04 é o possível observar os fragmentos desses autores.

No Fragmento 01, os autores, com o intuito de declarar dois pontos que

consideram relevantes para a evolução científica da Geografia, deixam visível que o

método quantitativo é a “nova” e “poderosa” “arma” para combater e eliminar a

condição de não científica da Geografia, pois só estes métodos possibilitariam a

realização de procedimento “científico”, elevando a produção geográfica à categoria

de ciência, pela construção de “princípios gerais” (leis e teorias substantivas).

Alegam que a própria natureza dos conhecimentos geográficos requer este tipo de

procedimento, análise dos padrões espaciais, quando fica implícita uma concepção

53 “O principal fundamento concebido pelos neopositivistas era o ‘princípio da verificabilidade’,

bastante similar ao ‘princípio da falseabilidade’ popperiano. Verificar seria tomar um enunciado significativo e reduzi-lo ao conjunto de dados empíricos imediatos, para constatar se eles ocorreram ou não no mundo real. Conforme este princípio, havendo compatibilidade entre o enunciado e o dado empírico, pode-se dizer que o enunciado é verdadeiro. A matemática é uma fonte de parâmetros a partir dos quais os pseudoenunciados são substituídos por afirmações claras e objetivas. Assim, o neopositivismo tentou fugir da subjetividade e da imprecisão conceitual pela abstração matemática. Na esteira deste empreendimento científico, valoriza-se o procedimento indutivo como metodologia de replicações de resultados a partir de fatos particulares experimentados, que constatariam as

hipóteses anteriormente levantadas.” (ARMOND, 2013, p. 104)

Page 138: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

138

de natureza e de realidade como algo concreto (objetivo) e passível de ser

mensurado, objetivado. Para isso, declaram que, só através da mensuração e da

utilização dos modelos matemáticos para explicar a organização espacial, a

Geografia seria capaz de oferecer contribuições “substantivas” (Fragmento 2) ao

desenvolvimento econômico – pressupondo que fornecer subsídios para o

desenvolvimento socioeconômico seja a principal função social da ciência

geográfica, desvelando uma concepção de Ciência, imbricada com os princípios da

modernidade, conforme vimos no capítulo 2. E à Geografia Física cabia explicar os

‘fatores físicos’, ou ‘as relações causais, que explicariam o quadro natural’ da

superfície terrestre, pela lógica dedutiva, que estabeleceria a verificabilidade de

hipóteses e potencializaria a capacidade de prever os fenômenos naturais. Uma

concepção de mundo físico pautada no mecanismo. Para Vitte (2011b, p. 66), o

pensamento coletivo na época refletia:

[...] as relações entre a filosofia da ciência e a geografia ficaram mais estreitas, em que a visão positivista de ciência acabou impondo aos geógrafos que o progresso seria alcançado mediante formulação de teorias e produção de leis [...] assim, novas teorias poderiam propiciar não apenas uma melhor explicação sobre a realidade, mas também, ao construir novas descobertas, estaria atuando no avanço progressivo da ciência geográfica, dotando-a de uma estrutura científica madura, onde, inclusive, seria permitida a realização de predições.

O Fragmento 3 estabelece que só com a inserção das tecnologias,

principalmente dos computadores, em todos os ramos da Geografia e com inúmeras

possibilidades de uso, poderá se dar conta da dinâmica das transformações globais,

principalmente nos campos que afetam diretamente as concepções geográficas, o

que implicou a mudança das pesquisas empíricas pela ênfase no uso dos

laboratórios. Os autores recomendam no documento que todas as pesquisas

geográficas sejam aplicadas em função das demandas do contexto da sociedade

moderna e que a geografia tenha como propósito de investigação a organização do

espaço, com isso, dando legitimidade discursiva a uma forma de fazer ciência,

fortemente influenciada pelo pragmatismo e pelo realismo, conforme nos informa

Vitte (2011b).

Nos Fragmentos 4 e 5, Galvão e Faissol (1970) descartam a

impossibilidade de a Geografia produzir teorias, indicando que esse tipo de

concepção é “errôneo”, alegando que pode trazer como consequência uma

“disciplina enciclopedista e descritiva” que pouco contribuirá para o bem-estar social,

Page 139: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

139

defendendo a tese de que é possível e recomendável produzir teorias na ciência

geográfica, sendo esse, portanto, o principal sentido da Ciência, o de legitimar a

construção de uma explicação científica para a Geografia Física.

No Fragmento 06, os autores reconhecem os elos evolutivos, pela

influência dos geógrafos franceses na episteme da Geografia Regional brasileira, e

com o elemento discursivo explicativo, revelam que desde a década de 1950 os

Estados Unidos e alguns países da Europa já adotavam a Geografia Quantitativa e

propuseram uma revolução quantitativa para promover novos dispositivos para a

pesquisa geográfica no Brasil.

Quadro 5 - Fragmentos do texto “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos

no Brasil, Galvão e Faissol (1970)

Fragmento 01 – Objetivos da comunicação (1970, p.1)

O objetivo do presente trabalho é mostrar simultaneamente dois pontos importantes no desenvolvimento da geográfica: 1- o de que os métodos quantitativos na geografia representam uma nova e poderosa arma para a análise dos fenômenos geográficos, capazes de tornar a geografia um ramo do conhecimento humano igual aos outros de natureza científica, pela sua capacidade de precisar os fenômenos e estabelecer princípios gerais, segundo os quais eles ocorrem; 2 – o de que, além disso, pela natureza dos problemas que tais métodos permitem analisar e pela forma por que agora se pode analisá-los, alguns conceitos teóricos podem ser questionados ou restabelecidos. Êste fato é fundamental, pois afeta a própria estrutura do conhecimento geográfico.

Fragmento 02 - Os propósitos da Geografia (1970, p. 2)

Em todo caso a preocupação com a formulação de conceitos teóricos na geografia está estreitamente associada à sua matematização, desde as mais simples formas de quantificar os fenômenos até os mais complexos raciocínios da lógica dos sistemas regionais ou das redes urbanas, na construção de modelos de organização espacial, enfim, na conceitualização do espaço geográfico. O impacto das novas formulações teóricas nos processos de definições da regionalização foi, talvez, o mais contudente, pois é neste setor que a geografia pode oferecer as contribuições mais susbstantivas aos processos de planejamento do desenvolvimento econômico – tão importantes hoje em dia.

Fragmento 03 – Apologia ao uso das tecnologias (1970, p. 2)

A história das invenções humanas, se bem que apoiadas no fluxo contínuo de pesquisas, produz verdadeiras revoluções não só na

Page 140: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

140

tecnologia, mas também e, muitas vezes, no próprio conhecimento científico. A máquina a vapor produziu o que se convencionou chamar de Revolução Industrial, um dos processos mais importantes do desenvolvimento humano destes últimos 200 anos. Agora e já de algum tempo, apareceu o computador eletrônico. A única relação de um com o outro é que muitos comparam o que fez a máquina a vapor com a força muscular do homem, com o que está fazendo e sobretudo virá a fazer o computador com a capacidade de elaboração intelectual do homem. A diferença essencial é mais ou menos a mesma que existe entre a força físico-muscular e a capacidade intelectual. [...] A geografia não poderia deixar de ter sido afetada, fosse pela possibilidade de usar o computador, fosse pelas ideias e possibilidades tecnológicas que foram se abrindo aos pesquisadores na era dos computadores. Por outro lado, a evolução do conhecimento científico, tanto em termos dos processos que se desenvolvem na superfície da terra, como em termos de unificação de todos eles em processos globais (tornado possível pela capacidade de massa do computador), não poderia deixar de afetar também as concepções dos geógrafos.

Fragmento 04 – A pesquisa geográfica para o século XX (1970, p. 4)

É notório que o tempo no século XX, que medeia entre a pesquisa científica e a sua aplicação tecnológico-prática, foi tão encurtado que todos os pesquisadores adquiriram uma consciência nítida da aplicabilidade de sua pesquisa, a ponto de tornar praticamente inexistente a fronteira entre pesquisa pura e a aplicada. Toda a pesquisa hoje é aplicada e quase que de imediato. Na geografia, esta tendência está tendo um efeito de procurar-se enquadrá-la num contexto interdisciplinar – sem prejuízo de sua individualidade – com o objetivo de que ela traga sua interpretação a um problema de transcendental importância nas sociedades modernas: a organização do espaço que constitui o próprio objeto das investigações geográficas.

Fragmento 06 – A geografia quantitativa (1970, p. 6)

A criação do Conselho Nacional de Geografia agrupou em torno dele uma atividade geográfica que vinha de longe, porém muito dispersa. Na própria formulação da ideia de uma instituição deste tipo a influência de geógrafos franceses, era preponderante, quase que exclusiva; consequentemente, a formação dos geógrafos brasileiros vinha sendo fortemente afetada pela escola francesa, com uma tendência regionalista muito marcada, fosse seguindo conceitos de Gallois, das regiões naturais. Foi, de certa forma, associada a estes conceitos que surgiram e foram até incrementadas, pelo antigo CNG, numerosas monografias regionais, inclusive em seus próprios estudos e publicações. Com a revolução quantitativa ocorrida na Geografia há cerca de 20 anos, principalmente nos EE UU, Inglaterra e Suécia, o Departamente de Geografia não poderia ficar à margem do acontecimento e, aproveitando a vinda do Dr. Brian Berry ao Brasil, em 1967, procurou manter os primeiros contactos com novas técnicas e métodos matemáticos que vinham possibilitando resultados mais positivos e precisos às pesquisas geográficas.

Fonte: Revista Brasileira de Geografia (1970, v32. N. 4)

Page 141: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

141

A terceira geração dos coletivos sociotécnicos, ao coletivo de

pensamento, estrutura-se, ainda na década de 1980 e, para compreendermos essa

transição de uma geração para outra, apontamos o Quadro 06, onde selecionamos

05 fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de Manuel C. de

Andrade, publicado em 1985, que reflete não só o estilo de pensamento do autor,

mas o que o pensamento coletivo na época legitimava na ciência geográfica

brasileira.

Nos Fragmentos 01 e 02, Andrade (1985, p. 15-16) aponta a relevância

da institucionalização dos cursos de Geografia, na década de 1930, para a política

nacional de formação dos quadros de técnicos e de professores da Educação

Básica, desvelando a vinculação explícita da evolução epistemológica com os

condicionantes socioeconômicos e históricos. Observe que, no Fragmento 02, o

autor ilustra com fatos históricos os elos evolutivos que contribuíram para o

desenvolvimento da Geografia Científica no Brasil.

Quadro 6 - Fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de Manuel Correira de Andrade, 1985

Fragmento 01 – Condicionantes socioeconômicos e históricos (1985, p. 15)

Na área de ensino e da produção de conhecimento geográfico, o processo modernizador foi iniciado com a fundação da Universidade de São Paulo (1934) e da Universidade do Distrito Federal (1935), quando foram criadas as faculdades que deveriam formar pesquisadores e professores de ensino médio, nos vários ramos do conhecimento. Para a Geografia, esta seria a grande oportunidade, sabendo-se que o Brasil, país de dimensões continentais (8.456.508m), e pouco conhecido, tinha um grande campo a ser explorado. A literatura geográfica brasileira já fora iniciada, mas era muito pobre, constituída de ensaios que abordavam temas não geográficos, embora dessem grande importância a certos aspectos de interesse para a Geografia, e de livros especificamente geográficos. Assim, tiveram grande difusão no Brasil, nos fins do século XIX, os livros de Elisée Reclus, Estados Unidos do Brasil, traduzido para o português por Ramiz Galvão, e o de Pierre Denis, Le Brésil au Xxème siécle, divulgado em Língua francesa que era, então, largamente difundida nos meios culturais brasileiros.

Fragmento 02 - Elos evolutivos do desenvolvimento da geografia científica no Brasil (p. 15)

As universidade criadas nos anos trinta, juntamente com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatista (IBGE), tiveram uma grande importancia para o desenvolvimento e a consolidação de Geografia Científica no Brasil. O papel mais importante coube, inegavelmente, à Universidade de São Paulo, uma vez que,

Page 142: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

142

situada no centro urbano mais rico e mais dinâmico do país, contratou numerosos professores europeus, que se conscientizaram de que estavam fundando uma Universidade e preparando uma elite cultural. Além disso, ela pode promover a vinda de professores visitantes estrangeiros, tanto na área de Geografia como das outras ciências sociais, desenvolvendo um programa de Doutoramente que levava os melhores alunos, sobretudo aqueles que aspiravam ao magistério superior, a escrever teses de doutorado, de livre-docência e de cátedra. Muitos professores, impossibilitados de voltar, em vista da Segunda Guerra, que assolava a Europa, aqui ficaram muito mais tempo do que imaginavam. Numerosas teses defendidas nesse período são modelos de trabalho geográfico da chamada escola clássica, em que o doutorando procurava desenvolver estudos regionais. Influenciados por Vidal de la Blahe, procuravam desenvolver uma Geografia limitada.

Fragmento 03 – As temáticas locais

A preocupação com o social e o econômico se acentuaria nos fins da década de 50, quando, ao período eufórico do pós-guerra, seguiu-se uma crise econômica que levou o povo a pensar na viabilidade do Brasil como Nação, como Estado. Daí a preocupação com o planejamento econômico regional, com a criação de agências de desenvolvimento e com a tomada de posições ideológicas diante da realidade nacional. Se a sociedade brasileira vivia uma crise e se sentia desestabilizada, procurou naturalmente, novos caminhos para a solução dos seus problemas; a comunidade de geógrafos, nela inerida, teria de participar desses caminhos, dessa procura. Grandes foram os debates travados nessa época sobre a conveniência ou não da transferencia da capital do país para o Planalto Central, e a forma como Brasília fora construída, debates sobre a estrutura agrária, altamente concentradora da propriedade da terra e da dificuldade de acesso ao uso e a propriedade da mesma, pelas massas rurais de trabalhadores; sobre a necessidade de desenvolver indústrias de bens de capital e de produção de energia: sob a reforma administrativa e tributária [...]

Fragmento 04 – Territorialização da pós-graduação (1985, p. 19)

A fundação dos cursos de pós-graduação em Geografia, nas universidades do Rio de Janeiro (1972), de Pernambuco (1975), no campus de Rio Claro da UNESP (1977) e na Universidade Federal de Sergipe (1983) e a reorganização do sistema de pós-graduação, iniciado em 1961 na Universidade de São Paulo nos moldes padronizados pelo Governo Federal provocaram um forte crescimento da produção geográfica e do debate de ideias a respeito dos caminhos metodológicos e epistemológicos seguidos pela Geografia. Os debates transbordaram para as associaões de geógrafos e se veem multiplicando os encontros, seminários e simpósios promovidos pelas universidades, pela AGB e por outras instituições. O domínio do neopositivismo, que troxera um forte engajamento da Geografia à matemática e à estatística e que comprometera a mesma com o modelo econômico brasileiro, teve o seu período de maior esplendor na fase de euforia do crescimento capitalista.

Page 143: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

143

Fragmento 05 – A Geografia Física (1985, p. 20)

Na área da Geografia Física, observa-se uma maior integração dos geógrafos com as implicações antrópicas na formação do relevo e no papel desempenhado pelas condições climáticas; geomorfólógicas, que, a partir da década de cinquenta, abondonaram os postulados de M. M. Devis e adotaram as ideias morfoclimatológicas de Trincart, passaram a integrar mais os elemenos condições naturais e ação do homem, caminhando em direção à sua Geo-climatologia. Assim, Aziz Ab’Saber vem reformulando a análise do meio natural na linha mais moderna, tanto em trabalhos acadêmicos como em campanhas em favor de tombamento de áreas ainda pouco devastadas, como a Serra do Mar, e contra a implantação de grandes obras públicas em locais não favoráveis ecologicamente; Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro vem, com discípulos e orientandos, desenvolvendo estudos de climatologia, correlacionando a distribuição das chuvas com a expansão agrícola e desenvolvendo estudo da poluição sobre microáreas climáticas, sobetudo nas grandes cidades. Observa-se, assim, nas atitudes dos dois mestres paulistas, que se caminha para o desaparecimento do velho dualismo Geografia Física/Geografia Humana que tanto prejudicou o desenvolvimento da Geografia, para uma integração entre as várias divisões que o neopositivismo estimulou se desenvolvesse na área de conhecimeno geográfico.

Fonte: Geonordeste, Ano II, nº 2 (1985, pp 14/23)

No Fragmento 03, Andrade (1985) descreve o impacto da crise

econômica e social na seleção das temáticas de investigação. Fica explícito que,

muito embora o coletivo de pensamento dos geógrafos brasileiros tenha bebido nas

centralidades europeias, como a França na década de 1930, os atores sociais de

1950 iniciaram a produção do seu próprio “status”, a “realidade brasileira”,

compondo o seu próprio interesse analítico e o seu ‘jeito de ser’, que é muito o da

elite e do Estado “formulador de políticas públicas” da cultura regional local. Para o

autor, à ciência geográfica cabia o propósito de fornecer subsídios para o

planejamento do desenvolvimento econômico, o que é amplamente potencializado

pelas agências de fomento. O autor também deixa explícito, no fragmento, o ponto

de vista de que as produções intelectuais da época, pelas suas temáticas, refletiam

as posições ideológicas e os embates políticos, sociais e econômicos que

permeavam o contexto brasileiro, inclusive, enfatiza que poucos trabalhos tinham

“interesse puramente físico”, e os que tinham aconteceram em função da influência

Page 144: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

144

de “De Martone54 e outras fundamentações biológicas, seguindo as linhas traçadas

por Max Sorre” (ANDRADE, 1985, p. 16).

No Fragmento 04, Andrade (1985) indica que a expansão espacial dos

cursos de pós-graduação na década de 1970 aconteceu nos mesmos moldes da

USP em 1961, provocou aumento significativo da produção geográfica nacional,

dos debates teóricos e metodológicos, das associações de geógrafos, dos eventos

e encontros na área, do engajamento ao domínio epistemológico do

neopositivista55, assim como da inserção da lógica matemática, do uso da

estatística, enfim dos modelos de ciência que privilegiavam as simulações ou

simplificação da realidade na ciência geográfica; consequentemente, desvelando

o comprometimento dos geógrafos com os condicionantes políticos, econômicos e

sociais do país.

A nosso ver, o autor confirma nossa tese, pois deixar evidente o

entendimento de que a expansão espacial dos PPGGs é um dos mecanismos de

consolidação da Geografia, o fragmento denota ainda a ideia de que a evolução

epistemológica também é afetada pela espacialidade, a cada lugar aonde os PPGGs

‘chegam’, eles provocam a Territorialidade Epistemológica – fenômeno que pode

desvelar o aparecimento de domínios metodológicos e epistemológicos específicos

54 Segundo Suertegaray (2017), a obra de De Martone - “Tratado de Geografia Física” no século XX,

em 1909, representa um marco na consolidação dos fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia e da identidade da Geografia Física, onde o autor aponta que “o aprendizado das relações entre esses diferentes campos se coloque claramente e que a unidade da Geografia se mostre ao principiante (ao estudante de Geografia) e que seja lembrado aos estudantes que a especialização é uma ordem particular de investigação.” (SUERTEGARAY, 2017), p. 25 – 26) 55

Para Campos (2011, p. 426): “As teses principais do neopositivismo se encontravam no Tratado Lógico-Filosófico [...] de autoria do professor de filosofia em Cambridge, Ludwig Wittegnstein (1889 – 1951). Nesta obra, partia-se do atomismo lógico de Bertrand Russel, uma das figuras de destaque do neorrealismo inglês. Os Neorrealistas ingleses se caracterizavam por serem empiristas convictos, afirmando que todo o nosso conhecimento era proveniente da experiência; para vários deles, a experiência era exclusivamente sensível e, para grande parte, o verdadeiro método filosófico era o das ciências naturais. Interessavam-se pelas condições teóricas de lógica, de epistemologia, de matemática, de física ou de biologia, e mostravam afeição pela pesquisa de problemas particulares, mantendo-se ‘[...] fiéis ao método microscópico, à tendência para analisar e decompor todos os problemas’[...]. Como os positivistas clássicos não viam sentido na metafísica, defendiam que somente os métodos das ciências naturais poderiam proporcionar conhecimentos e acreditavam, de modo entusiasmado, na técnica e no progresso. [...] partindo de Wittegnstein, os neopositivistas elaboraram uma teoria excessivamente técnica, tendo a sensação como a única fonte de conhecimentos que somente capta acontecimentos isolados e materiais. Sua base acabou sendo a intuição e, apesar de glorificar a razão humana e realçar a objetividade, acabou dando um poder relativo ao conhecimento humano. Era possível um conhecimento racional do mundo, mas este existia independentemente da consciência. Seu conceito de ciência mostra certa recusa em discutir os problemas que angustiam os homens, seus sofrimentos, seus dilemas morais.”

Page 145: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

145

– a exemplo da abordagem do neopositivismo, um movimento intelectual

internacional que se estabeleceu nos Estados Unidos e na Europa, depois da

década de 1950, período do pós-guerra em que houve

[...] uma crescente atração, por parte dos geógrafos, para a mensuração, motivada pelo fato de que novas abordagens dependiam da mensuração, de que os métodos estatísticos estavam disponíveis para serem adotados e de que a tecnologia estava tornando possível a coleta, o processamento e a computação de dados para lidar com maiores quantidades de informações do que se poderia anteriormente imaginar. É tentadora a sugestão de que a Geografia Física estaria, até certo ponto, imune aos dramáticos impactos em consequência da quantificação, uma vez que os dados números haviam sempre sido empregados na climatologia, por exemplo. (GREGORY, 1992, p. 74)

Um contexto geopolítico que repercutiu na evolução científica para

atender às suas demandas, e, conforme nos aponta Gregory (1992), o

neopositivismo pode até ter sido um dos indutores da positividade de existência da

“linha quantitativista” na Geografia Física, mas, com certeza, nossa suposição é de

que sua inserção aconteceu em função da reflexividade epistêmica da interseção da

tecnologia (disponibilidade das tecnologias e dispositivos técnicos), com a lógica

matemática (do racionalismo e da mensuração, como pilares da Ciência Moderna),

com concepção da natureza (com modo de existência de realidade concreta,

objetiva como fundamento ontoepistemológico56), o que fez germinar na tradição de

pesquisa da Geografia os “pressupostos básicos da denominada Geografia

‘Teorética e Quantitativa’”, demonstrando que os geógrafos da terceira geração dos

coletivos sociotécnicos, adeptos de tal corrente. foram “buscar fundamentos teóricos

metodológicos na filosofia neopositivista.” (CAMARGO; REIS JR, 2007, p. 97). Ponto

de vista que coaduna com a fala de Ferreira (2007) sobre os sistemas de

informações geográficas (SIG):

Influenciados por pressupostos estatísticos e modelos matemáticos derivados da geometria analítica, os algoritmos de análise espacial foram rapidamente adaptados a softwares por meio de linguagem computacional relativamente simples. [...] Desde meados da década de 1960 – ambiente dominado pelo paradigma da quantificação do fato geográfico em

56 Segundo nos aponta Guimarães (2017, p. 19), “o impasse entre as categorias homem e natureza,

que chega como herança para a geografia no seio da modernidade, [...] o racionalista-organicista. Este impasse não direcionou somente as questões de método e de operacionalização das pesquisas em geografia, mas constitui também os fundamentos ontoepistemológicos que, na modernidade, segmentaram tanto o objeto de análise quanto os campos do pensamento geográfico na geografia humana (atrelada à concepção moderna de homem) e na geografia física (vinculada à concepção de natureza)”.

Page 146: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

146

detrimento de sua visualização –, até o início de século XXI, instante em que a visualização do fato geográfico numerizado já é possível graças a softwares residentes em SIG, as técnicas de análise espacial têm sido aplicadas com sucesso em diferentes campos do conhecimento geográfico. (FERREIRA, 2007, p. 102)

No entanto, fica evidente nos fragmentos dos estudos sobre a temática

(CAMARGO; REIS JR, 2007) que não houve ruptura ou corte abrupto da geografia

tradicional para a “geografia científica” (slogan da Teorética quantitativa), até porque

é possível perceber a permanência de seu conteúdo, contornos e procedimentos na

produção intelectual no Brasil na década de 1970, conforme nos revelam os autores.

A nosso ver e de acordo com os fragmentos indicados por Andrade

(1982), com a institucionalização do Sistema Nacional de Pós-Graduação e o

acirramento da política universitária, dada principalmente com a federalização dos

cursos de pós-graduação, centralizados em SP (USP, RIO CLARO) e no RJ (UFRJ),

processo que caracteriza a terceira geração de coletivos sociotécnicos, eles

passaram a exercer o domínio cultural, político e epistemológico, através da relação

saber/poder/fazer e ser ciência57. O que foi exercido com força, introduzindo o

coletivo de pensamento nas áreas de atuação de seus cursos. Isso porque, embora

para muitos geógrafos da época o coletivo de pensamento “da escola geográfica

clássica ou tradicional” já estivesse “saturado” de produções, muitas das

problemáticas locais e regionais continuaram sendo foco das pesquisas geográficas

(ANDRADE, 1982; CAMPOS, 2011; CARDOSO, 2013), assim como o “levantamento

de informações mais detalhadas sobre o território brasileiro”, os debates persistiam e

atores sociais sentiam o desejo de abandonar a lógica da mera descrição e o

empirismo, “então dominante para a maioria dos autores”, e, simultaneamente, daria

à Geografia a “cientificidade” tão enaltecida. Daí a busca por modelos de

inteligibilidade que lhe oferecessem “condições de competititvidade com os demais

cientistas sociais” – garantindo à Geografia uma identidade científica e social,

inserindo nos seus propósitos as práticas de “planejamento” para o desenvolvimento

social e econômico. Nesse momento, conforme nos aponta Andrade (1985), as

57 Até por que, conforme nos aponta Schwartzman (2015, p. 181), “A concentração de recursos

institucionais e financeiros em São Paulo e Rio de Janeiro inibia projetos semelhantes em outras regiões. Os melhores estudantes da Bahia, do Nordeste, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul – os que podiam fazê-lo – iam estudar naquelas duas cidades e, normalmente, não retornavam aos estados de origem. Mas essa concentração não foi absoluta, tendo ocorrido uma exceção em um polo regional importante: Minas Gerais”.

Page 147: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

147

agências de desenvolvimento e fomento passaram a ter papel relevante, pois

estimulavam pesquisas em determinadas temáticas que contemplassem

prerrequisitos sociais para receber financiamentos. Portanto, a fragmentação, fosse

espacial, fosse temática ou do objeto da geografia, não foi e não é uma evolução

natural na ciência geográfica, mas uma construção social, histórica e

simultaneamente cognitiva.

No Fragmento 05, Andrade (1985), descrevendo as tendências para a

área da Geografia Física, nos revela que as concepções de Geografia Física que

permeavam o coletivo de pensamento estavam vinculadas ao estudo da ‘relação

homem/natureza’. Existia no contexto intelectual na época uma busca por uma

“geografia da integração”, ou inserção de uma perspectiva de análise geográfica

integradora, a partir do reconhecimento da fragmentação de seus saberes, um

problema epistemológico oriundo da dualidade “Geografia Física/Geografia

Humana”, e assim como Gregory (1992) apontou em 198558, era possível

identificar na “atmosfera intelectual”, na década de 1980 no Brasil, tendência de

“declínio” das proposições teóricas de Davis59 em prol das ideias de “Tricart” – que

postulava a integração entre os elementos físicos e humanos, através de “uma Geo-

climatologia”. Segundo Andrade (1985), as formulações teóricas de Tricart foram

apropriadas e reformuladas pelos geógrafos da USP. Segundo o professor Vitte

(2011b, p. 86), a influência dos estudos de Tricart foi definitiva para “as pesquisas

geomorfológicas no Brasil, com marcante desenvolvimento da geomorfologia

climática nos cursos de geografia”.

Um dos autores mencionados por Andrade (1985) e por Vitte (2011), foi

Aziz Ab’Saber, na “análise do meio natural”, cujas proposições estavam sendo

rapidamente assimiladas e passaram a permear e informar nas pesquisas

geográficas na época. Entre os principais postulados introduzidos pelo autor na

dimensão metodológica, destacam-se: o uso da observação e da descrição crítica

das paisagens (com destaque para o uso de fotografias aéreas); e a concepção de

que o natural só poderia ser elucidado considerando o social e o histórico (tempo e o

58 Data da publicação original da obra “The Nature of Physical Geography”, de K.J. Gregory, que foi

publicada no Brasil em 1992. 59

Para Gregory (1992, p. 51) “O enfoque essencial da geomorfologia davisiana baseava-se no fato de

propiciar um ciclo de erosão normal, de modo que se tornava possível classificar qualquer paisagem de acordo com o estágio alcançado no ciclo de erosão, fosse juventude, maturidade ou senilidade.” O que tornava sua teoria “perfeita” era a capacidade de replicação e capilaridade.

Page 148: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

148

homem como principais modeladores da paisagem), articulando a formação atual do

objeto de estudo a seu processo de formação histórica para explicar sua

configuração na contemporaneidade - os domínios morfoclimáticos (considerando

solo, vegetação, relevo, clima e as condições hidrológicas como seus elementos

constituintes). Com isso, são institucionalizadas na episteme da Geografia

contemporânea e brasileira a prática dos trabalhos de campo, através dos estudos

da paisagem, e a inserção da perspectiva epistêmica Aziz-bigarella, em função da

forte influência dos estudos de João José Bigarella (1964).

Modelo de Ab’Saber e Bigarella, a década de 1960 foi fundamental para se construir um verdadeiro paradigma na geomorfologia brasileira, pois se montou uma estrutura teórica, metodológica e interpretativa do relevo e de seus processos, construindo, juntamente, uma verdadeira geomorfologia geográfica, que tem por modelo o artigo de Aziz Ab’Saber, A geomorfologia a serviço das pesquisas do quaternário, de 1969 até hoje, 2009, que exerce forte influência nas pesquisas geomorfológicas do Brasil, mesmo porque nada mais de relevante foi construído em termos teóricos e metodológicos para buscar análises mais precisa e profundaa sobre a gênese do relevo brasileiro. (VITTE, 2011b, p. 93)

As mudanças na tradição de pesquisa oriundas da inserção da

perspectiva Aziz-Bigarella nos modos de fazer pesquisa geográfica refletem as

condições cognitivas, provocadas por fatores internos a ciência – lógica da teoria e

pela força das evidências (comprovada pelos resultados obtidos com sua aplicação),

conforme apontamos no primeiro capítulo.

Retornando ao documento de Andrade (1985), em vários fragmentos ao

longo do texto, o autor desvela que se na década de 197060 predominava no Brasil a

concepção epistemológica neopositivista, no final da década, era notório um clima

de insatisfação com tal modelo epistemológico, o que já indicava a possibilidade de

declínio na década de 1980, simultaneamente caracterizando esta terceira geração

de coletivo sociotécnico como de transição. Num texto escrito em 198861 por Rui

Moreira (2008), ele também assim o faz e explica que “desde 1978, [...] o

pensamento geográfico brasileiro passa por um processo interno de

questionamento, renovação discursiva e intenso debate.” (MOREIRA, 2008, p. 24).

Para Vitte (2011b, p. 74), especificamente na Geografia Física:

60 “Em 1970, existiam nas universidades brasileiras cerca de 57 programas de doutorado; em 1985,

havia mais de 300, com cerca de 800 para a formação em nível de mestrado. Cerca de 90% desses cursos funcionavam em universidades públicas. Combinados, os dois níveis estavam graduando cerca de cinco mil estudantes a cada ano. Segundo o consenso geral, o Brasil começara a construir uma comunidade acadêmica significativa.” (SCHWARTZMAN, 2015, p. 344) 61

Publicado pela primeira vez no Boletim Prudentino de Geografia em 1992.

Page 149: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

149

Essa crise será acirrada a partir dos anos 1970 com a crise ambiental e com a entrada nas reflexões acadêmicas e políticas, em que os trabalhos em pequenas escalas exigem maior instrumental técnico e tecnológico para explicar as relações causais e as interações entre os elementos da geomorfologia e da paisagem, exigindo, inclusive, maior diálogo da geografia para com as ciências sociais e maior matematização dos fluxos e dos processos, obrigando a geografia física a rever o sentido de causalidade.

A nosso ver, no vetor epistemológico, as mudanças que ocorreram no

período foram evolutivas, pois provocaram aumento significativo de abordagens

teórico-metodológicas (dimensão metodológica) nos estudos geográficos, assim

como nos fundamentos ontoepistemológicos que permeavam o coletivo de

pensamento, repercutindo, com isso, na diversidade de perspectivas epistêmicas.

Para compreendermos esse coletivo de pensamento, resgatamos o texto “As

perspectivas dos Estudos geográficos”, de António Chistofoletti, uma comunicação

científica com muitos fragmentos que ilustram não só o estilo de pensamento, mas,

simultaneamente, o coletivo de pensamento, pois:

[...] pelo ângulo do quantitativismo, expresso pelas análises morfométricas, que a geomorfologia brasileira ganha incremento metodológico. E o papel de Antonio Christofoletti, a partir da década dos setenta, foi saliente para tal. O autor não apenas torna-se usuário dos recursos matemáticos (geradores de índices de mensuração geométrica), mas um dos principais nomes na defesa publicitária de seu emprego. É certo que nem todo usuário da ferramenta quantitativa, porque ela engendra um estilo de explanação abstrata (excludente, pois, dos tradicionais discorrimentos), vai entender-se partidário de uma nova “causa metodológica”. De qualquer maneira, uma vez que esse uso em Christofoletti também quis dizer ensaios homológicos (e, notadamente, a tentativa de empregar conceitos termodinâmicos no estudo de bacias hidrográficas), o autor acaba personificando um exemplo de fato autêntico de engajamento. (REIS JR; ARAUJO NETO, 2010, p. 6)

Reis Jr (2010), além de descrever as principais ligações evolutivas da

inserção da Geografia “quantitativista”, aponta Christofoletti como seu principal

expoente. É relevante destacar que a versão digital do documento62 que rastreamos

não indica número de páginas, nem ano de publicação. No entanto, considerando a

necessidade de elucidar as condições de existência e materialidade discursiva (os

fragmentos), é possível inferir que ele tenha sido produzido na década de 1980, isso

porque, no Fragmento 01 do Quadro 07, o autor cita outras obras publicadas em

1979, além de mencionar a efervescência dos debates que circunscrevem a

Geografia brasileira no final da década de 1970.

62Disponível em http://sigcursos.tripod.com/perspetivas.pdf, acesso em 22 de fevereiro de 2019.

Page 150: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

150

Quadro 7 - Fragmentos do texto “As perspectivas dos estudos geográficos” de Chistofoletti.

Fragmento 01 – O contexto de produção, (198*, s/p)

Em língua portuguesa, encontram-se disponíveis diversas obras e artigos relacionados com a Geografia Radical. Entre as traduções, convém mencionar as obras de Yves Laconste (A Geografia Serve Antes de Mais Nada para fazer a Guerra, 1977), de Massimo Quaine (Marxísmo e Geografia, 1979) e de Davido Harvey (Justiça Social e a Cidade, 1980), além do artigo de James Anderson (1977) sobre a ideologia na Geografia. Entre os geógrafos brasileiros, Milton Santos vem-se salientando nessa perspectiva geográfica, através de diversos artigos e de duas obras mais expressivas, denominadas Por uma Geografia Nova (1978) e Economia Espacial (1979). Carlos Gonçalves (1978) e Ruy Moreira (1979) também já elaboraram artigos engajados nessa temática.

Fragmento 02 – A ciência heterogenia e engajada, (198*, s/p)

As transformações sucessivas que ocorrem no conhecimento científico e no contexto socioeconômico promovem contínua mudança nos desafios e nos problemas enfrentados pelos homens. Procurando analisar e explicar esses problemas, a fim de propor soluções e prever as possíveis consequências futuras, o conhecimento científico está sempre aceitando os desafios e lutando para superar as questões relevantes para as sociedades. Considerando as mais variadas ciências, que são parcelas da comunidade científica global, podemos observar que cada ciência particular reage de modo diferente a esse desafio e à solicitação, e o seu momento histórico pode colocá-la na posição de vanguarda ou na posição de acompanhante do cortejo das ciências, conforme a valorização que a elas é destinada.

Fragmento 03 – Diversidade epistemológica, (198*, s/p)

A nossa preocupação restringe-se ao conhecimento geográfico. Não é nosso desejo retraçar a evolução histórica desta parcela científica, nem analisar as obras e as contribuições dos grandes mestres. O nosso objetivo é oferecer um quadro genérico sobre as principais perspectivas que foram predominantes, no transcurso do século XX, no comando e na orientação das pesquisas, assim como norteadoras das finalidades propostas para a Geografia. A focalização maior é sobre as tendências que mesclam na atualidade, cada uma procurando ser a mais substantiva, mostrando ser melhor que as precedentes ou as competidoras. Todavia, não se poderá compreender esse debate atual se não abordamos as características da geografia predominante na primeira metade do século XX, se não tivermos uma visão mais abrangente do seu desenvolvimento no tempo. A fim de esclarecer e caracterizar as diversas perspectivas atuantes nos estudos geográficos, procuramos estabelecer o seguinte esquema sequencial em nossa exposição: a fase tradicional (pré-1950), a Nova Geografia, a Geografia Humanística, a Geografia Radical e a

Page 151: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

151

Geografia Têmporo-Espacial.

Fragmento 04 – As dicotomias geográficas, (198*, s/p)

Entre elas, duas merecem ser destacadas nesta oportunidade. A primeira dicotomia estava relacionada com a Geografia Física e a Geografia Humana. Representando os conjuntos meio geográfico e atividades humanas, a Geografia Física destinava-se ao estudo do quadro natural, enquanto a Geografia Humana se preocupava com a distribuição dos aspectos originados pelas atividades humanas. Em virtude do aparato metodológico mais eficiente das ciências físicas e da esplêndida concatenação teórica elaborada por William Morris Davis, a Geografia Física rapidamente ganhou a imagem de ser a parte cientificamente mais bem consolidada e executada praticamente, não havia mais necessidade de ser preocupações metodológicas e conceituais a seu propósito. Destituída de aparato teórico e explicativo para as atividades humanas, assim como da imprecisão dos procedimentos metodológicos, a Geografia Humana sempre se debatia na procura de justificar seu gabarito científico e estabelecer sua definição e finalidades como ciência. A esta dicotomia se juntava o conflito conceitual de ser a Geografia uma ciência única ou um conjunto de ciências. Os debates relativos a essa temática são contínuos e sempre reabertos, sem chegar a uma conclusão definitiva. Do artigo de Vital de la Blache (1913) ao de Henri Baulig (1948), para exemplificar, esses assuntos são relevantes.

Frgmento 05 – Ligações evolutivas, (198*, s/p)

A segunda dicotomia se refere à geografia geral e à geografia regional. Objetivando estudar a distribuição dos fenômenos de maneira autônoma. Essa focalização resultou na geografia sistemática ou tópica e na subdivisão da geografia (geomorfologia, hidrologia, climatologia, biogeografia, geografia da população, da energia, urbana, industrial, da circulação e outras). Entretanto, deve-se lembrar que o designativo geral não se referia ao conceito de metodologia científica de procurar generalizações ou leis, mas se baseava no princípio da ‘unidade terrestre’ (La Blache, !896) e na ‘escla planetaria’ (Choley, 1951). Levava em consideração o ato de comparar constantemente determinado fenômeno em um lugar com ‘os fenômenos análogos que podem se apresentar em outros pontos do globo, ... a fim de como é que as suas particularidades se explicam pelos princípios gerais da evolução’ (De Martone, 1954, p. 18). Tendo em vista as concepções davisianas, De Martone exemplificou com o caso da morfologia litorânea. Nessa circunstância, se possuía um modelo de evolução das formas litorâneas a ele se comparavam as características dos casos cujas especificidade propiciavam classificá-los conforme as etapas da evolução ou de acordo com os tipos de influências externas (costas de emersão, costas de submersão; costas atlânticas, costas pacíficas etc.)

Fonte: http://sigcursos.tripod.com/perspetivas.pdf

Page 152: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

152

No Fragmento 02, observamos que o título “As perspectivas dos Estudos

Geográficos” assim como o gancho narrativo utilizado por Christofoletti nos

revelam: i) uma concepção de ciência heterogênea, passível de ser afetada por

mudanças do contexto socioeconômico e histórico como instituição social que

tem como “função” responder às demandas relevantes para a sociedade; e ii) os

referentes no item anterior expressam regularidades ou elos com a evolução

epistemológica do desenvolvimento científico no estilo de pensamento de Kuhn.

Com o intuito de apresentar o objetivo do texto e sua estrutura no

Fragmento 03, o autor nos aponta que, embora existisse a possibilidade de uma

perspectiva “predominante”, ainda no século XX existem “diversas perspectivas

atuantes nos estudos geográficos”. A nosso ver, nos elementos explicativos

implícitos é possível identificar e inferir que: i) “as perspectivas” cotejadas pelo autor

funcionam como suposições diretivas da pesquisa geográfica; ii) duas ou mais “

perspectivas” podem coexistir, competir e evoluir numa mesma temporalidade; e iii)

o autor concebe a evolução epistemológica como descontínua, passível de ser

afetada pelas práticas discursivas, e permeada pela diversidade epistemológica (ou

de múltiplas perspectivas epistêmicas, conforme expressa o autor). Isso porque o

autor ilustra que no coletivo de pensamento da época, além dos vestígios da fase

tradicional da Geografia, era possível identificar a coexistência das perspectivas

“Nova Geografia, Geografia Humanista, Geografia Idealista, Geografia Radical e

Geografia Têmporo-Espacial”.

No Fragmento 04, Christofoletti explica que a evolução epistemológica da

Geografia, tradicionalmente, é marcada pela existência de dualismos. Alega que o

primeiro deles é a convivência no âmago da Ciência Geográfica de dois TEs: a

Geografia Física, que tem como objeto de estudo o “quadro natural”, dispõe de

aparato metodológico “eficiente” e em conformidade com os padrões estabelecidos

pelas ciências físicas, concebendo que ela já “progrediu” ou “avançou

cientificamente” – ligações evolutivas com o coletivo de pensamento “progressista” –

alegando que tem “quadro teórico desenvolvido”, o que dá à Geografia Física uma

identidade científica e social legitimada. Acrescenta ainda que o mesmo não

acontece com a Geografia Humana, ainda em busca de “justificativas” para

estabilizar sua identidade científica, pois, além de não ter aparato teórico e

explicativo, não dispõe de “procedimentos metodológicos precisos”, condições que

Page 153: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

153

circunscrevem uma concepção de disciplina científica. Para o autor, são problemas

epistemológicos que provocaram frequentemente embates conceituais na Geografia

e a busca contínua pelo status de científica.

A nosso ver, há uma questão relevante, implícita no estilo de pensamento

do autor. Primeiro que a postura adotada pelo autor reflete o que Armond (2013)

classifica com uma das principais heranças do pensamento neopositivista, no qual:

Essa acentuada valorização das ciências naturais acabou por provocar tendências reducionistas, principalmente com relação às ciências humanas e sociais, já que sofriam fortes pressões para também absorverem as diretrizes e recomendações conceituais e metodológicas das ciências naturais. Este quadro levava adiante o objetivo de uma caracterização geral e definitiva da ciência, dos métodos apropriados e de seus critérios de avaliação, justificada pela busca de uma linguagem que fosse “verdadeiramente científica”, alcançada somente por meio do rigor e da objetividade. (ARMOND, 2013, p. 105)

Segundo, em relação à fragmentação ou à “dualidade Geografia Humana

/ Geografia Física”, conforme caracteriza o autor e já pontuamos ainda nesse

capítulo, esta fragmentação não é apenas metodológica, mas também

epistemológica (oriunda dos pilares da concepção de Ciência Moderna), sendo,

simultaneamente, ontológica, pois expressa o entendimento da separação do

homem/natureza com entes de naturezas diferentes, daí o reflexo na dimensão

metodológica, por deixar implícito que, por terem objetos de estudos de natureza

diversa, implicam opções metodológicas distintas.

Os elementos explicativos utilizados pelo autor denotam ainda a

concepção de que o objeto de estudo da Geografia Humana, “as atividades

humanas”, tem a natureza essencialmente diferente do homem/mulher, alegando

que isso dificulta sua explicação, por isso as Ciências Sociais e Humanos devem

sempre “justificar” a falta de “objetividade”, ao contrário das Ciências da Natureza e

o caso da Geografia Física, que explicam os fatos objetivos e mensuráveis da

realidade, evidenciando ligações evolutivas tributárias do pensamento neopositivista

que o autor defende fortemente ao longo do texto, Fragmento 05, inclusive

associando a esta concepção a defesa de uma Epistemologia Normativa, conforme

nos alerta Reis Jr.

Para Guimarães (2017), este estilo de pensamento é tributário dos

“fundamentos ontoepistemológicos” herdados do modo de vida capitalista ocidental ,

Page 154: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

154

que gerou, com isso, fragmentação na ciência geográfica. Linha de pensamento

que defendemos como múltiplas contingências e converge com a fala:

Vinculada ao projeto científico moderno, cuja especialização é uma de suas características básicas, a especialização na geografia também foi interpretada como um progresso para a disciplina. Esta divisão de tarefas também tem sido vista como promotora de um definitivo crescimento para a disciplina pelo aumento da diversidade do campo e complexificação dos entendimentos de seu objeto. Assim, seria somente por meio da especialização que a geografia, como ciência moderna, elaborada de teorias e modelos, poderia refinar os reconhecimentos e a investigação dos multidomínios e dimensões que compõem os processos de seu objeto total. A relação unidade/especialidade constitui, portanto, uma associação que também pode ser vista como necessária para o aprofundamento do conhecimento do fenômeno geográfico e o progresso da disciplina. (DUTRA GOMES; VITTE, 2012, p. 131)

Paradoxalmente, a fragmentação como problema epistemológico da

Ciência Geográfica e a especialização como necessária ou produto natural da

evolução epistemológica para elucidar as especificidades de cada objeto de estudo

são diferentes discursivos que permeiam e informam o coletivo de pensamento no

contexto espaço-temporal, assim como evidenciam a presença, na episteme, de

fortes vínculos (ligações evolutivas) com os princípios da Ciência Moderna. Linha de

pensamento que converge com o ponto de vista de Suertegaray (2017, p. 96 - 97):

A fragmentação e a compartimentação não são novas na ciência, a fragmentação atual e a compartimentação discutidas em fases anteriores da Geografia são expressões diferentes. Fragmentar é a ação de dividir em pequenas partes, quebrar em pedaços. Compartimentar é um processo que consiste em dividir um espaço sem, necessariamente, separá-lo por completo. Pode-se “compartimentar” determinado espaço sem deixar os “compartimentos” ausentes de relação entre si.

A perspectiva da autora é que a “fragmentação” assim como a

“compartimentação” não são apenas uma especialização cognitiva, mas sócio-

histórica na evolução epistemológica, sendo fenômenos epistêmicos diferentes,

pois se na compartimentação as conexões entre as partes são mantidas, na

fragmentação isso não acontece, pois rompe os elos entre a matriz disciplinar e o

novo ramos do saber.

Daí o nosso terceiro entendimento de que a Geografia Física mantém

uma identificação maior com as ciências físicas (Geociências), não só porque ambas

têm ‘teoria substantiva desenvolvida” - dimensões metodológicas e ontológicas que

se aproximam - , que estabelece a hierarquia “de cientificidade” entre as áreas de

Page 155: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

155

conhecimento, mas, principalmente, em função da legitimidade discursiva que

institucionaliza situação diferente em relação às Ciências Humanas e Socais e às

Ciências da Natureza e exatas, por isso a dificuldade para promover ‘o diálogo entre

elas. O que no nosso ponto de vista reproduz a ideia de incomensurabilidade local,

indicada por Khun, em função da diversidade lexical, ou seja, da legitimidade

discursiva (consolidada no novo ramo do saber), estabelecendo distinções entre a

Geografia Física e a Geografia Humana.

Além dos debates sobre os problemas indicados por Cristofoletti (198*), é

notória no final da década de 1970 a insatisfação com as questões epistemológicas

neopositivistas, pois crescia, de forma significativa, o sistema de controle e

regulação estatal sobre os cursos universitários, quando se inicia a

institucionalização, através da Capes, dos cursos de pós-graduação e do Sistema

Nacional de Pós-Graduação. Para se ter uma a dimensão do impacto desta

evolução na década, citamos:

No Brasil, vale lembrar que, em 1965 havia 27 mestrados e 11doutorados; em 1975, 429 mestrados e 149 doutorados. Já em 2014, segundo dados do GEOCAPES, sistematizados pela Diretoria de Avaliação da CAPES [...] em 2015, o SNPG estava constituído por 5537 cursos de pós-graduação, dos quais, 1905 doutorados, 3105 mestrados e 527 mestrados profissionais. (AZEVEDO; OLIVEIRA; CATANI, 2016, p. 787)

Os dados apresentados pelos autores refletem a configuração do Sistema

Nacional de Pós-Graduação no país, com significativo controle do campo científico

através da Capes, usando como mecanismo a “acreditação”, o “credenciamento”,

avaliação, supervisão e o financiamento para todo sistema nacional, principalmente

pelo fornecimento de bolsa. No caso específico da Geografia, a institucionalização

foi caracterizada pela concentração espacial e, consequentemente, científica, em

função da “forte influência" epistêmica das universidades estaduais paulistas,

“especificamente as detentoras da modalidade de doutorado”, sendo elas: A USP,

com os Programas de Geografia Física e Geografia Humana, seguida pela

UNESP/RC (em 1977), decisiva na ‘expansão’ da Geografia “Teorética” Brasileira.

Ainda na década de 1970, criou-se o mestrado da Universidade Federal de

Pernambuco (UFPE) em 1976. Segundo Silva e Oliveira (2009), os fatores que

implicaram a expansão da pós-graduação na época foram:

A exigência de titulação pós-graduada para a progressão na carreira do magistério superior; a necessidade de formação de pesquisadores para a

Page 156: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

156

ciência nacional (em especial para os grandes projetos de desenvolvimento do país); prestígio dos cursos de mestrado e doutorado para a universidade (status e recursos financeiros); pressão dos novos mestres e doutores que, em suas instituições de origem, desejam fomentar um ambiente favorável às atividades docentes e de pesquisa; o próprio I PNPG (Plano Nacional de Desenvolvimento da Pós-Graduação), ao fixar metas para a titulação de novos mestres e doutores. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p. 83)

É visível toda uma lógica socioeconômica - demanda do mercado local e

regional que afetou de forma significativa a dimensão axiológica do fazer científico

na época - voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico no país, que,

consequentemente implicou o vetor epistemológico. Na década de 1980, surgem

mais quatro PPGGs, com cursos de mestrado e/ou doutorado, na Universidade

Estadual de Campinas – UNICAMP (1983), Universidade Federal de Santa Catarina

–UFSC (1985), Universidade Federal de Sergipe (1985), Universidade Federal de

Minas Gerais (1988) e na Universidade Estadual Paulista – Rio Claro –

UNESPE/RC(1983). Percebe-se que, conforme apontam Silva e Oliveira (2009, p.

84), “apenas os Programas de Pós-Graduação em Geografia da UFPE, da UFSE e

UFSC se situavam em outras regiões fora do Sudeste”. É relevante pontuar que

mesmo nestes cursos predominava o domínio cultural das universidades paulistas,

pois o quadro de docentes e técnicos que atuavam nestes cursos era formado pelos

PPGGs paulistas. Ainda segundo os autores, nesse período houve aumento dos

mecanismos de controle e regulação dos coletivos sociotécnicos, através da forte

atuação da Capes, imbuída pelo “esforço de implantação do sistema de avaliação e

mecanismos de acompanhamento dos programas, buscando unificar nacionalmente

a pós-graduação e orientar seu crescimento com o estabelecimento de diretrizes,

metas e prazos a serem cumpridos pelos programas. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p,

84)

No entanto, a ruptura dessa lógica somente se inicia nos anos 1980, se

estende pelos anos 1990 e tem continuidade nos anos 2000 e 2010, guardando,

cada um dos períodos, suas especificidades (CAPES, 2016, p. 2). Isso devido à

expansão dos PPGGs na década de 1980 ainda incipiente em relação à

descentralização do Sudeste para outras regiões do país, mas dá o tom do que

caracterizamos como quarta geração de coletivos sociotécnicos .

No Documento de Área 36 Geografia (CAPES, 2016a), apresentado na

avaliação quadrienal de 2017, encontramos fragmentos relevantes nesta discussão,

Page 157: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

157

como a evolução quantitativa e qualitativa dos PPGGs. Não restam dúvidas de que o

quadro evolutivo da ciência geográfica no país é significativo, se consideramos a

expansão, consolidação e fortalecimento dos PPGGs pelo território nacional,

inclusive superando a concentração espacial e epistêmica, com 64 cursos, sendo 34

mestrados e doutorados, 25 mestrados acadêmicos e 4 mestrados profissionais,

reconhecidos e atuantes em todas as regiões do Brasil.

Em síntese, a territorialidade dos PPGGs no Brasil no contexto geográfico

de 1930 aos idos de 2018 consolidou a episteme do território epistêmico da

Geografia Física contemporânea no Brasil.

4.2 A episteme dos Territórios Epistêmicos (TE) da Geografia Física

contemporânea

Inicialmente esclarecemos que para desvelar a episteme dos Territórios

Epistêmicos (TE) da Geografia Física contemporânea no país, que consolida sua

identidade científica e social, levamos em consideração que ela é constituída por

mudanças, permanências e características do processo de evolução epistêmica,

tomando como pressuposto que:

O que é Geografia? A pergunta de aparência tão simples se dirige ao que de mais importante existe em um campo do conhecimento, sua especificidade, sua identidade. A partir disso, todo o edifício cognitivo desse campo, suas propriedades, sua relevância, suas competências, sua finalidade e, sobretudo, seus sistemas explicativos podem ser discutidos. Através da aparente simplicidade da formulação da pergunta, ergue-se um mundo de questões. Trata-se, pois, de um convite a uma discussão propriamente epistemológica pois incide diretamente sobre as condições de produção do conhecimento, sua consistência lógica, seus sistemas de validade. (GOMES, 2017, p. 14)

Na perspectiva apontada pelo autor que consideramos relevante, a

acepção de Geografia ou de Geografia Física (resposta à questão –“O que é

geografia?”) é o que lhe confere identidade científica e acadêmica e,

consequentemente, nos revela seus propósitos e imagem social. Isso porque,

segundo o autor, para responder à pergunta o que é uma ciência, a condição

essencial é responder à pergunta o que esta ciência estuda, isto é, qual seu objeto

de estudo. Nessa ótica, objetivando apreender o objeto de estudo que os atores

sociais atribuíam à Geografia Física e tomando como referência empírica a

Page 158: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

158

totalidade dos resumos das produções intelectuais através da análise por similitude,

indagamos a cada produção intelectual: O que este estudo investigou?

Nessa ótica, optamos por trabalhar o objeto de estudo da Geografia

Física, que contempla as temáticas que informam a episteme e, consequentemente,

estabilizavam a identidade científica e social da Geografia Física, de forma que

pudéssemos sistematizar o que emergiu do corpus ou suas regularidades para

“reconstruir os processos geradores” e interpretá-los, tendo o cuidado ético de não

estabelecer juízos de valores (verdadeiros ou falsos, certos ou errados), nem tomá-

los numa “linha de progresso em direção a uma verdade cada vez mais afastada dos

erros iniciais.” (PORTOCARRERO, 2002, p.46).

Na análise exploratória inicial, obtivemos como resultado a configuração

que representamos na Ilustração 01.

Ilustração 1 - Configuração do Objeto de Estudo da Geografia Física Contemporânea.

Fonte: Dados disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, acesso em 16.04.2019

Observamos que aparece de forma explícita e implícita a categoria

específica e derivada é a relação Homem/Natureza ou o estudo da relação

sociedade / natureza, acepção que aparece em 41% do corpus. Concepção da

ciência geográfica tributária das “prescrições” de Monbeig (1945), nos moldes

científicos da Geografia europeia.

Page 159: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

159

Faz parte desta categoria de análise a concepção da Geografia Física

como estudo das “implicações/repercussões” do “uso”/”ocupação” da “bacia” ou

“sub-bacia hidrográfica (61%), das “paisagens” (22%), do espaço rural ou urbano

(11%) do Território (4%), outros (2%), com a finalidade de fornecer “subsídios” para

o “planejamento”, a “gestão” e o “uso” sustentável dos recursos naturais. Os

referentes com maior frequência na totalidade dos fragmentos foram: “uso e

ocupação”, “degradação ambiental”, “fragilidade ambiental”, “monitoramento”,

“diagnóstico”, “ação antrópica”, entre outros. Observa-se que a categoria paisagem

perde cada vez mais espaço nas produções intelectuais para a categoria geográfica

bacia hidrográfica, assim como o propósito da Geografia Física de “análise espacial”

ou da “paisagem” para a “análise ambiental”, Ilustração 02, ou “análise da bacia” ou

“análise das redes de drenagem”, embora na indicação dos procedimentos

metodológicos utilizados, apareça, em primeiro lugar, o Fragmento “Dinâmicas das

paisagens”.

Conforme vimos no capítulo anterior, essa concepção nos remete à

primeira geração de pensamento dos coletivos sociotécnicos e, que de acordo com

Suertegaray (2017), estes estudos também estão diretamente relacionados com as

demandas do contexto contemporâneo. Vejamos na fala da autora que:

[...] muda a perspectiva dos estudos da natureza e valorizam-se os estudos de forma, da dinâmica/funcionalidade com vistas a decifrar os problemas decorrentes de seu uso/subordinação. Por essa razão, são comuns em nosso meio os trabalhos cujos objetivos e intenções são o reconhecimento da funcionalidade mediante condições de risco, objetivando intervenções que, por sua vez, transfiguram/densificam tecnicamente a natureza. Estes estudos são objetivados na linguagem ambiental tão comum entre os geógrafos físicos na atualidade, através dos diagnósticos, dos monitoriamentos e das medidas mitigadoras. Monitoramento pressupõe controle e medidas mitigadoras, soluções técnicas de restauração da natureza tecnificada, natureza artificializada, na expressão de Milton Santos.(SUERTEGARAY, 2017, p. 28)

Na mesma linha de pensamento da autora, é possível constatar uma

vinculação explícita entre as temáticas de investigação ‘selecionadas’ e a existência

de problemas oriundos do “processo de globalização da natureza”, conforme nos

indicam Porto-Gonçalves (2006), Giddens (1991), Vitte (2011b) e

Suertegaray(2017) sobre as experiências globais que afetam as práticas

socioespaciais locais e potencializam os problemas ambientais. As problemáticas

eleitas e as temáticas correlatas giram em torno das necessidades dos “diagnósticos

geográficos e topográficos”, que impactam diretamente na formação do espaço”,

Page 160: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

160

sendo o foco principal no arsenal discursivo o “ planejamento e a gestão das bacias

hidrográficas” com viés eminentemente prático atribuído à disciplina e uma

concepção implícita de domínio e controle da natureza. Para Carvalho (2009), assim

como para Rodriguez, Silva e Leal (2011), nos últimos anos essa concepção vem

ganhando novos conteúdos, contornos e enfoque, vejamos na fala dos autores:

O planejamento das bacias hidrográficas vem se alteando conceitualmente, primeiro com um enfoque de manejo das águas, depois com uma concepção da bacia com a conjunção de fatores ambientais e, mais recentemente, com uma visão de planejamento ambiental integrado, a qual tem sido interpretada sob diversos enfoques. (RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 112)

O ponto de vista que os autores apontam e que confirmamos nas

produções intelectuais analisadas é que houve uma evolução epistêmica em relação

aos estudos sobre a bacia hidrográfica, que vem, paulatinamente, deixando de ser

meramente “uma superfície terrestre drenada por um sistema fluvial contínuo e bem

definido” (RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 112), para ser concebida “como

uma unidade físico-territorial, definida em lei, para a implantação das políticas e

sistema de gerenciamento de recursos hídricos no Brasil”. Uma mudança ontológica,

pois, a natureza da realidade e do objeto de estudo esta coimbricada com a

mudança axiológica (nos valores sociais, que são os recursos econômicos), tendo

potencializado mudanças metodológicas, pois:

A análise da água, vista como recurso, é eminentemente uma hidrologia ambiental, na qual a função é essencialmente de caráter ecológico, e a estrutura estará dada pelos limites que lhe impõem a paisagem ou espaço natural e as transformações nele exercidas pelas atividades humanas. ((RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 113)

Uma concepção de Geografia como “ciência charneira” (GOMES, 2009, p.

18), onde o campo das questões geográficas se situa na relação com o intuito de

‘descrever’ “as múltiplas influências ou condicionamentos gerados entre o mundo

natural e a organização social”. O que, segundo nos apontam nos Rodriguez, Silva e

Leal (2011), vai além de estar envolvida na adoção da “Geoecologia das Paisagens

como fundamento de caráter teórico e metodológico, que responde de maneira mais

efetiva aos requisitos mencionados”, mas demostram um comprometimento como o

objetivo “produzir modelos abstratos generalizantes” (GOMES, 2009, p. 21).

Concepção que é claramente evidenciada nas palavras de maior frequência nas

Page 161: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

161

análises dos resumos feitas no software, veja nas ilustrações, em 79% dos coletivos

sociotécnicos analisados.

Ilustração 2 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPR, recorte temporal 2012 – 2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, 26.11. 2018

Em segundo lugar, a categoria específica e derivada Fatores naturais

ou quadro natural em 36% do corpus aponta a “evolução morfológica” dos

processos “geológicos” com 35% das produções intelectuais nessa categoria, sendo

maior destaque para o coletivo PPGG/UFMG; os processos “geomorfológicos”, com

34% das produções intelectuais, principalmente nos PPGG/UFRJ e PPGG/USP; os

“hidrológicos”, com 27%; os “oceanográficos”, com 18% das produções intelectuais,

com destaque para PPGG/UFSC e PPGG/UFRN; os “pedoclimáticos locais”, com

11% do corpus, com destaque para os PPGGs – UECE e UFPE; “biogeográficos”,

com 9%; e “glaciais”, com 6%. Os referentes utilizados foram “relevo”, “solo”, “rio”,

“praia”, entre outros “recursos naturais”. Nessa categoria, assim como na categoria

anterior, o principal recorte espacial é a bacia ou sub-bacia (58%), em segundo

lugar, a paisagem (31%). A principal distinção entre estes estudos e os da categoria

anterior é a ‘falta do homem” ou do papel atribuído ao homem/mulher nos

“fenômenos naturais”. Para Figueiró (2011, p. 18):

Page 162: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

162

O forte vínculo da nascente geomorfologia do século XIX com os postulados teóricos e metodológicos da Geologia produziu, desde a origem, uma determinada orientação no entendimento do conjunto dos processos naturais [...], hegemonicamente voltada para a explicação da morfologia da superfície terrestre e, por conseguinte, equivalendo a fisiografia à Geografia Física. Nesta linha, encontramos os nomes dos primeiros grandes ‘geógrafos físicos’ modernos, como Richthofen ou Davis.

Em termos de ligações evolutivas, observamos os vínculos com a

segunda geração de coletivos sociotécnicos quando é possível constatar que:

A Geografia Física, por sua vez, em crise pela perda de campo de investigação para novas áreas do conhecimento que se estruturavam (pedologia, ecologia, botânica, zoologia) e atraída pelos notáveis avanços alcançados pela Geologia, tanto nos aspectos teórico-conceituais, quanto no aspecto metodológico, acaba se transformando em uma “caixa de ressonância” do conhecimento geológico, o que se constitui no fundamento do aparecimento e do desenvolvimento da geomorfologia como carro-chefe da geografia física, uma simples disciplina geológica, de fato cultivada no marco da geologia e desenvolvida por geólogos, caracterizados por uma formação naturalista ampla. (FIGUEIRÓ, 2011, p. 29)

Essa “formação naturalista” contribui de forma definitiva para a

especialização cognitiva no âmbito da própria Geografia Física (seu esfacelamento),

em função da busca de fundamentos teóricos e metodológicos em outras áreas de

conhecimento, o que contribuiu para o fortalecimento da Geologia e da

Geomorfologia, conforme dados obtidos no levantamento inicial, em que estas

áreas apresentam produção intelectual muito superior no âmbito dos programas de

pós-graduação em Geografia, além dar legitimidade discursiva no âmbito da

Geografia Física, que diverge consideravelmente da Ciência Geográfica.

Evidenciando ainda uma concepção de “ciência de síntese”, que segundo nos

informa Gomes (2009, p. 18) “a ciência geográfica não tem como papel explicar,

mas simplesmente relacionar os campos analíticos advindos de outras disciplinas”.

Observe a diversidade lexical que aparece na nuvem de palavras da

Ilustração 3, onde as categorias de análises geográficas (Território, Região, Lugar)

não obtiveram frequência significativa (ou superior a 10).

Page 163: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

163

Ilustração 3 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFMG, recorte temporal 2012 – 2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e

dissertações da Capes, 26.11. 2018

Terceiro lugar, a categoria Métodos e Técnicas onde classificamos os

estudos sobre os procedimentos técnicos utilizados na pesquisa geográfica (13%)

ou que tinham como objetivo gerar instrumentos de análise do campo empírico. Os

principais referentes para esta classificação relacionam-se à “validação” de “teorias”,

“instrumentos” e “indicadores”, ao uso de procedimentos relacionados a

geotecnologias, tais como imagens de satélites, drones, fotografias áreas, os

softwares “ArcGIS 9.3”, “Surfer 10”, “Strater 1.02.27” e “Global Mapper”, entre

outros. Tendência já apontada por Gregory (1980) da crescente apropriação

metodológicas das técnicas e tecnologias nas pesquisas geográficas, o que

repercutiu na necessidade dos temas voltados para investigar sua aplicabilidade, e,

em função do fundamento da Ciência Geográfica, como “ciência indutiva”, de que “ o

uso e a legitimidade de qualquer modelo de análise teórico ficam submetidas ao

conhecimento empírico, quase exaustivo, do conjunto dos lugares, ou seja, só pode

haver teoria depois que a massa de conhecimento empírico for estabelecida e

sistematizada”, daí a demanda pelo aprimoramento dos métodos e das técnicas de

coleta de dados. No entanto, observamos poucas produções com discussões dos

Page 164: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

164

fundamentos filosóficos (epistemológicas) e quando aparece o recorte espacial, é

visível a diversidade relacionada a área, bacia, paisagem, território.

Ilustração 4 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFRGS, recorte temporal 2012 – 2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e

dissertações da Capes, 26.11. 2018

Em quarto lugar, vem a categoria Sociogeográfica ou Ecogeográfica,

com 6% dos estudos sobre as questões socioambientais ou ecológicas. Os

referentes foram “unidades de conservação”, “áreas de preservação”, “comunidades

tradicionais” e “territorialidades”. Uma concepção de Geografia como ciência das

interações humanas no espaço ou da espacialidade dos fenômenos (sejam físicos

ou sociais), contemplando a complexidade dos sistemas espaciais, o que segundo

Gomes (2009, p. 26) “é tão somente o reconhecimento” de que os elementos estão

“inter-relacionados na composição dos sistemas espaciais”. O PPGG que se

destacou foi o da UFPA.

Page 165: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

165

Ilustração 5 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPA, recorte temporal 2012 – 2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, 26.11. 2018

Em quinto lugar, classificamos a categoria Diversos, com 4% dos

estudos, tais como educação ambiental, ensino da Geografia Física, Geografia

Agrária, Geografia Urbana etc., sendo um dos destaques o PPGG/UFG, com forte

inclinação para a Geografia Escolar (Ilustração 6).

Ilustração 6 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFG, recorte temporal 2012 –

2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e

dissertações da Capes, 26.11. 2018

Page 166: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

166

A nosso ver, é relevante esclarecer que é possível encontrar estudos de

todas as categorias em quase todos os coletivos sociotécnicos, com maior ou menor

frequência, indicando ainda, certa regularidade nas produções intelectuais, que

estabilizam a identidade científica da Geografia Física como estudo da natureza,

com forte aderência as concepções de ciência ora de “síntese”, ora “empírica” e ora

“indutiva”, e, uma identidade social de “ciência aplicada”, o que segundo Gomes

(2009, p. 23) responde por um

Colossal equívoco entre produção do conhecimento, relativo à esfera da ciência e, portanto, necessariamente atravessado por questões epistemológicas e a aplicação do conhecimento, relativo à esfera das engenharias, da solução de problemas práticos, tecnicidade e operacionalização dos conhecimentos, tem sido fruto de imensos problemas na definição do papel do geógrafo e de suas competências. Esse equívoco não afeta somente à identidade do saber geográfico, ele se transforma em grave problema na formação dos geógrafos e na inserção deles no mercado de trabalho.

A forte inclinação para as ciências aplicadas além de nos revelar uma

ligação evolutiva como o pragmatismo, desvela como os propósitos e finalidades (os

valores sociais) atribuídos a um saber ou área de conhecimento repercutem

diretamente na seleção de seu objeto de investigação, bem como, nas práticas

desenvolvidas e legitimadas, aja visto a frequência significativa de fragmentos como

“diagnósticos”, “planejamento” e “gestão” que aparece nas produções intelectuais,

No entanto, é visível que um dos principais indutores das “escolhas”

temáticas ou do objeto de estudo são, em segundo lugar, é a linha de pesquisa

associada às temáticas foco de trabalho dos professores (orientadores).

Constatamos esta situação nos coletivos de UFMG, UFSC, UFG e UFU. Para

ilustrar essa proposição no PPGG/UFU, na Ilustração 07, a palavra em destaque é

Saúde. Quando nos indagamos “Quais as condições que contribuíram para que a

temática da saúde tivesse destaque no coletivo?”, constatamos que as condições de

existência da temática podem ser atribuídas à atuação do professor Dr. Samuel do

Carmo (árvore genealógica de orientação no Quadro 08), no coletivo sociotécnico,

com alto índice de descendência (59) num recorte temporal entre 1996 e 2018 e

formação na área de “Saúde Coletiva”.

Page 167: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

167

Ilustração 7 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFU, recorte temporal 2012

– 2018

Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e

dissertações da Capes, 26.11. 2018

Quadro 8 - Árvore genealógica de orientação

Grande Área: Ciências da Saúde Área: Saúde Coletiva Titulação: Doutorado Ano de Titulação: 1996

Descendência (D): 59 Fecundidade (F): 40 Índice Genealógico (IG): 3

ASCENDENTES

N Nome Nível Ano D F IG

1 Edison Dausacker Bidone

Mestrado 1985 207 43 7

2 José Pereira de Queiroz Neto

Doutorado 1996 829 41 11

3 Raul Borges Guimarães

Pós-doutorado

2007 118 32 3

Fonte: Relatório da plataforma Acácia, com informações retiradas do Currículo Lattes dos

professores, de 01 a 16 de março de 2019.

É relevante considerar que, no coletivo PPGG/UFU, a área de

concentração é “Geografia e Gestão do Território”, sendo suas linhas: I Ensino,

métodos e técnicas em geografia”; e “II Análise, planejamento e gestão ambiental

Page 168: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

168

dos espaços urbanos e rural”. Observando a nuvem de palavras, Ilustração 6, é

explícita a aderência aos temas/problemas investigados e às linhas que estruturam o

programa. Um elemento que contribuiu para essa condição de existência foi, com

certeza, a atuação da CAPES, através da avaliação63. No entanto, defendemos que

não foi o único, conforme nos aponta Lencioni (2013, p. 7):

Enquanto sua avaliação tem sua face constrangedora e indutora de projetos e práticas, as linhas de pesquisa de cada programa gozam de inteira liberdade, pois os programas podem livremente definir suas linhas de pesquisa. Em outros termos, a definição das linhas de pesquisa se constitui num espaço de liberdades. Aí valorizam-se temas, enquanto outros encontram ostracismo. Isso não se dá ao acaso, tem sentido e é coletivamente produzido. No entanto, muitas vezes, presencia-se inconsciência dos porquês.

A professora Lencioni (2013), além de desvelar no fragmento as

repercussões da avaliação/controle e regulação da Capes na ambiência dos

PPGGs (constrangimento/desconforto), aponta a “liberdade” que os PPGGs têm na

seleção de suas linhas de pesquisa. No entanto, defendemos que mesmo essa

“liberdade” é “relativa”, isso porque existem interesses nem sempre explícitos, mas

sempre presentes dos profissionais (atores sociais) que participam das “escolhas”

(colegiados, departamentos, Instituições), pois trazem implicações na carreira e

formação docente, na sua atuação como profissional. Para Gregory (1992, p. 13),

“as perspectivas e experiências pessoais [...] são importantes porque são

influenciadas pelo treinamento e pelo conhecimento sobre o desenvolvimento das

pesquisas nas diferentes partes do mundo”, assim como envolvem questões

ideológicas e a incidência das múltiplas contingências oriundas da modernidade

reflexiva. Portanto, não são condições indutoras isoladas, mas coimbricadas,

complementares e, por vezes, contraditórias.

O segundo elemento que chama atenção é concernente à escala

geográfica e à área foco das investigações, isso porque é visível a aderência aos

fenômenos empíricos nas escalas: local (73%), regional (18%), nacional (7%) e

internacional (2%) (Mapa 02).

63 Na “Ficha de avaliação para o quadriênio 2013 – 2016”, um dos critérios de avaliação dos PPGGs,

com peso de 50% é “Coerência, consistência, abrangência e atualização das áreas de concentração, linhas de pesquisa, projetos em andamento e proposta curricular” (BRASIL/CAPES, 2016, p. 23)

Page 169: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

169

Mapa 2 - Localidade onde foram feitas as pesquisas da PPGG/USP-GF, no

recorte temporal 1987 – 2018

No entanto, é notável a situação da PPGG/USP-GF, PPGG/UNESP-Rio

Claro, UFRJ e UFRGS, em que é perceptível certa diversidade na escala das

localidades de estudo, inclusive com a internacionalização, o mesmo não acontece

nos estudos de Geografia Física nos outros PPGGs, em que imperam, largamente,

as temáticas locais, no máximo transcendendo para a região.

No que concerne às perspectivas epistêmicas, utilizamos a estrutura e a

conceitualização que fizemos em estudo anterior (NUNES; VITTE, 2017) para

classificar as ligações evolutivas associadas às perspectivas epistêmicas. Com esse

procedimento, obtivemos os seguintes resultados analisando os resumos.

Em primeiro lugar, aparecem os estudos que se encaixam na Perspectiva

Epistêmica Científica ou geotecnológica, com 62% das produções intelectuais dos

resumos analisados, contemplando as áreas de geomorfologia, geologia,

hidrologia, climatologia e biogeografia, com ligações evolutivas vinculadas ao

sistema filosófico do neopositivismo, que, no Brasil, foi reinterpretado e contribuiu

para introduzir na Geografia Física “o paradigma Aziz-Bigarella”, a partir da década

Page 170: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

170

de 1960 (VITTE, 2007, 2011). Funciona como uma suposição diretiva que informa,

permeia e legitima no coletivo de pensamento “um modelo operacional e

interpretativo da geomorfologia brasileira”, que, em função das múltiplas

contingências, aderiu e potencializou na Geografia Física o uso das geotecnologias,

através do paradigma da análise espacial do SIG (FERREIRA, 2007), “que

provocou profundas transformações de ordem teórica e metodológica” (CAMARGO;

REIS JÚNIOR, 2007, p. 84).

Essa perspectiva frequentemente trabalha com a concepção de que a

Geografia Física estuda a relação homem/natureza ou os fatores físicos na

superfície terrestre. No entanto, Suertegaray64 (2017, p. 19) alerta que nestes

estudos existem diferentes “concepções” e “espaço” para a natureza, assim como

Lima (2014), que indica que o mesmo acontece em relação ao “homem”. Nessa

perspectiva epistêmica, o que se observa na episteme da Geografia Física

contemporânea é o homem concebido como “agente poluidor”, o principal

responsável pela “degradação ambiental”, separado e exterior à natureza; ou agente

econômico que pode utilizar os “recursos naturais”, ‘justificadamente’ e de forma

‘planejada’ e ‘sustentável’ para promover o desenvolvimento econômico. Outras

vezes,

Dificilmente aparece a interlocução direta com os seres humanos, mesmo o papel dos elementos exógenos, no caso a ação antrópica na transformação do meio, são analisados a partir do que é visível na superfície terrestre (por exemplo, usos e ocupação do solo), com a utilização de indicadores quantitativos e a formulação de modelos, daí os fundamentos epistemológicos implícitos, que são: a verificabilidade empírica (trabalho de campo), a objetividade e a precisão através da mensuração (daí o uso intenso das geotecnologias). A maioria são pesquisas de natureza básica e descritiva cujo produto principal é a produção de mapas, que, frequentemente, destinam-se ao planejamento ambiental e/ou socioeconômico. (NUNES; VITTE, 2017, s/p.)

Em segundo lugar, aparecem os estudos categorizados na Perspectiva

Epistêmica Sistêmica, com fortes ligações evolutivas com a Teoria Geral dos

Sistemas ou Teoria Sistêmica e uso instrumento conceitual sobre a organização

espacial. Matriz filosófica que é reinterpretada pela abordagem “ecodinâmica” de

64 “A natureza, no espaço geográfico, se revela pela condição constituinte/fundante da vida e das

sociedades humanas. Sem a natureza, não haveria os homens/mulheres/sociedades. Sem homens/mulheres, não haveria natureza (como concepção conceitual, portanto, cultural; mas também econômica e política). No campo materialista, a natureza é objetiva e antecede o homem, entretanto, é reconhecida por diferentes formas conceituais, de acordo com a sociedade/cultura. (SUERTEGARAY, 2017, p. 18)

Page 171: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

171

Tricart, apropriada pelo modelo metodológico de Ross. Vinte e dois por cento das

produções intelectuais analisadas apontaram, de forma explícita, a aderência a esta

perspectiva e 7%, de forma implícita. Os principais referentes que nos levaram a

classificá-las nessa perspectiva foram a “fragilidade ambiental” – “Unidades

Ecodinâmicas Instáveis” e as referências a Monteiro e a Ross. Caracteriza-se por

forte aderência ao empirismo, à lógica indutiva e ao uso das geotecnologias, assim

como prioriza a pesquisa aplicada, descritiva e a finalidade de suas produções, não

diferindo da perspectiva epistêmica anterior.

Na perspectiva epistêmica sociogeográfica e/ou ecogeográfica, ainda

incipiente na maioria dos PPGGs, classificamos 7% das produções intelectuais

nos coletivos PPGG/UFPA, PPGG/UFBA e PPGG/UNESP-Rio Claro. Essas

produções intelectuais se evidenciavam na natureza do ente (objeto de estudo),

simultaneamente objetiva e subjetiva dos fatos ou fenômenos no espaço

(territorialidade, espacialidade, ruralidades, urbanidades etc.), indo do social para

anatureza (física) ou vice-versa, articulando e contemplando as diferentes escalas

geográficas (micro e macro), as múltiplas dimensões (culturais, naturais ou físicas,

históricas, econômicas, pessoais etc.). Para Souza (2016),

A distinção entre as perspectivas ecogeográfica e sociogeográfica é [...] uma questão de perspectiva [...] de se construir o objeto de conhecimento. Assim, da mesma maneira como feições e dinâmicas da natureza primeira podem ser objeto de reflexão sociogeográfica (por exemplo, ao se estudarem processos de territorialização e ressignificação de [geo]ecossistemas ao serem estes convertidos em unidades de proteção ambiental, ou ao se examinarem as prováveis implicações geoeconômicas e geopolíticas do aquecimento global), igualmente espaços socialmente produzidos, como cidades e campos de cultivo, podem ser objeto de investigação do ponto de vista ecogeográfico (pesquisando-se os processos geoecológicos que ali ocorrem). [...] O fato de que as naturezas primeira e segunda [...] se entrelaçam a todo momento, em todo lugar e de incontáveis formas, é o fato básico que sugere a existência de um imenso e imensamente fecundo campo para a cooperação daquelas duas perspectivas. (SOUZA, 2016, p. 41- 42)

Na ótica de Nunes e Vitte (2017), estes estudos concebem a realidade

como dinâmica, processual, em que se articulam elementos objetivos e subjetivos.

Dimensão metodológica, por vezes, é uma construção no caminhar e contempla a

abordagem multidimensional e multiescalar, concebendo os fenômenos e processos

socioespaciais e da ““natureza primeira” como objetos de estudo da Geografia, não

Page 172: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

172

da Geografia Física ou Ambiental. E o propósito de seus estudos é compreender tais

fenômenos e processos no intuito de superar a “descrição das formas ou a

explicação (causal), sem atentar para as significações sociais, históricas, políticas,

ambiental, econômicas e culturais”, intencionalidades implícitas e explicitas que

informam e guiam o homem/mulher.

E, por fim, a Perspectiva Epistêmica crítico-dialética, que consta de 2%

dos estudos geográficos analisados. O interessante é que foram caracterizadas

nessa perspectiva as produções intelectuais que transitavam ou articulavam a

Geografia Física com temáticas da agrária, urbana, escolar e saúde. Com seus

pilares no materialismo histórico e dialético, seus elementos explanatórios indicavam

de forma explicita as ligações evolutivas, fossem elas críticas, fosse pelo uso de

suas categorias totalidade, contradição, universal, particular e singular, ou pela

historicidade dos fenômenos. Na dimensão metodológica, trilham o caminho da

abordagem mista (quanti-qualitativa), usam dados secundários e realizam trabalho

de campo, através da interlocução com os atores sociais (“uso de questionários e/ou

entrevista individuais ou em grupos, entre outras técnicas de coleta de dados”).

Conforme pontuam Nunes e Vitte (2017), é incipiente o uso das geotecnologias, o

que Ferreira (2007) chama de refratariedade, pois:

As pesquisas socioeconômicas, talvez pela refratariedade resultante de

algumas posturas geográficas originadas talvez da época da geografia

crítica brasileira, contrárias à parceria entre a informação socioespacial e o

sistema de informação geográfica, têm tardiamente incluído o SIG como

instrumento de análise e compreensão social do espaço geográfico. Essa

refratariedade não aconteceu com as ciências sociais, a arquitetura, a

demografia e o planejamento, que têm amplamente adotado o paradigma

da análise espacial em SIG. (FERREIRA, 2007, p. 103)

As ponderações desveladas pelo autor sobre o “fenômeno da

refratariedade” convergem com as evidências teóricas e empíricas que utilizamos na

argumentação desta tese sobre o TE da Geografia Física e a apropriação e a

incorporação das geotecnologias nas tradições de pesquisa.

Page 173: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

173

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.

Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.

Clarice Lispector

Busquei, por meio desta pesquisa, compreender a evolução

epistemológica da Geografia Física contemporânea, através de documentos de

domínio público (artigos publicados em periódicos on-line), e o território

epistemológico desta pesquisa através das produções intelectuais (resumos das

teses e dissertações) dos coletivos sociotécnicos, utilizando os fundamentos da

Arqueologia do Saber de Foucault (2014, 2017) e as proposições teórico-

conceituais de Fleck (2010) e Kuhn (2011, 2017).

Partimos da premissa de que os programas de pós-graduação em

Geografia – PPGGs são coletivos sociotécnicos, cuja trajetória de expansão,

consolidação e fortalecimento repercutiu no coletivo de pensamento que permeia e

informa o domínio dos saberes, fazeres e propagares do fazer científico da

Geografia Física contemporânea, ou seja, o seu Território Epistemológico.

Defendo a tese que o território epistemológico de um campo científico é

produto das múltiplas contingências que repercutem na evolução epistemológica de

um saber, através das mudanças evolutivas oriundas das interações históricas,

sociais e cognitivas. O nosso argumento principal é que as múltiplas contingências

oriundas da modernidade reflexiva atuam como um conjunto de circunstâncias

eventuais, articuladas, complementares e, simultaneamente, contraditórias,

contemplando diversas dimensões – filosófica, social, cognitiva, afetiva, cultural,

temporal, científica, política e econômica – que afetam a evolução epistemológica

dos campos e saberes científicos. Em outras palavras, as múltiplas contingências

funcionam como estruturas objetivas e subjetivas, internas e externas, micro e

macro, que repercutem direta ou indiretamente na práxis científica, influenciando,

consequentemente, na evolução epistemológica.

Page 174: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

174

Tomar como foco a produção de uma arqueologia do território

epistemológico da Geografia Física, através da dinâmica científica do presente,

implicou o diálogo com as dimensões geográfica, sociológica, filosófica, histórica e

epistemológica da Geografia Física.

A estratégia de coleta compreendeu a busca digital por documentos de

domínio público, disponibilizados pelos programas de pós-graduação em Geografia -

PPGGs e de seus atores sociais (doutores), considerando que tais produções

intelectuais (relatórios, teses, dissertações, artigos e capítulos de livros, entre outras)

são práticas discursivas que produzem sentido e nos remetem às regularidades no

modo-de-ser-ver-perceber-agir do sujeito (seu estilo de pensamento) e do coletivo

de pensamento.

As evidências teóricas e empíricas coletadas e analisadas no transcorrer

da investigação tornaram visíveis a incidência das influências históricas,

piscoafetivas, ideológicas, sociológicas e geográficas, que repercutiram na evolução

epistemológica da Geografia Física e na constituição de sua identidade científica e

social, que se estabiliza na episteme do TE.

Em termos de considerações explícitas e implícitas nos fragmentos dos

resumos analisados para responder à questão de investigação que norteou este

estudo, podemos elucidar que a configuração do TE da Geografia Física apresenta

uma identidade circunscrita pela imagem de subcampo científico da “Geografia”,

institucionalmente classificado como área de conhecimento pertencente à área de

“Geociências”. Um TE marcado pela dualidade das suas principais concepções,

dualidade atribuída e legitimada por múltiplas contingências da modernidade

reflexiva. Um saber que transcende as fronteiras disciplinares rígidas e usufrui de

outros campos científicos. E, por fim, um TE com forte aderência às análises

empíricas, ao uso das geotecnologias e ao firme propósito de contribuir para o

“planejamento” e a “gestão ambiental”, ou “gerenciamento do espaço”, desvelando a

incidência das múltiplas contingências oriundas da modernidade reflexiva.

Tais asserções, construídas no “caminhar”, mostraram-se

extremamente relevantes para compreender o entrelaçamento das condições

objetivas e subjetivas, micro e macrossociais, racionais e afetivo/ideológicas no

desenvolvimento do conhecimento científico, superando teorias e embates, que

Page 175: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

175

tradicionalmente apontavam para um ou outro extremo (interno ou externo, social ou

cognitivo etc.). Desvelando, ainda, a existência da coimplicação entre as dimensões

do fazer científico que se realiza nas interações de ideias, atores e instituições,

produzindo redes de significações, materializadas nas práticas discursivas

(produções intelectuais). Indicando, com isso, o potencial das produções intelectuais

disponíveis no ciberespaço para compreender/elucidar a dinâmica científica

contemporânea, enraizada nas tradições de pesquisas da modernidade, diante da

ressignificação científica contemporânea, que coloca obstáculos na elucidação do

real.

Page 176: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

176

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AFONSO, A. J. Não há longe nem distância. Notas para uma avaliação participativa de redes de pesquisa e colaboração em educação superior. In: LEITE, D.; CAREGNATO, C. E. Redes de pesquisa e colaboração: conhecimento, avaliação e controle internacional da ciência. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 11 – 16.

AGUIAR, A. C. Informação e atividades de desenvolvimento científico, tecnológico e industrial: tipologia proposta com base em análise funcional. In: Ci. Inf., Brasília, 20(1):7-15, jan./jun. 1991.

ALVES-MAZZOTTI, A. J. A revisão da bibliográfica em teses e dissertações: meus tipos inesquecíveis – o retorno. In: BIANCHETTI, L.; MACHADO, A. M. N. A bússola do escrever: desafios e estratégias na orientação e escrita de teses e dissertações. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2012

ANDRADE, M. C. Tendências atuais da Geografia Brasileira. In: GEONORDESTE, ano II, nº2, 1985, pp. 14/23

______. Uma geografia para o século XXI. Campinas: Papirus, 1992

ARAUJO. F. G. B de. Saber sobre os homens, saber sobre as coisas: história e tempo, geografia e espaço, ecologia e natureza. Rio de Janeiro, 2003

ARMOND, N. B. Impressões sobre as trajetórias recentes da Geografia Física Integradora no Brasil. In: Revista Terra Livre, São Paulo, ano 29, vol. 2, nº41, p. 101 – 131, jul-Dez/2013

AZEVEDO, M. L. N de ; OLIVEIRA, J. F. de; CATANI, A. M. O Sistema Nacional de Pós-graduação (SNPG) e o Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024): regulação, avaliação e financiamento. In: Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - RBPAE. V.32, n.3. p. 639 – 935, set/dez, 2016. p. 783 – 804.

BACHELARD, G. A Epistemologia. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2006.

BARRA, E. S. O. Na história da ciência quem tem medo do interior? SALVI, R. F. ; MARANDOLA JR, E. (org.) Geografia e interfaces de conhecimento: debate contemporâneos sobre ciência, cultura e ambiente. Londrina: Eduel, 2011. p. 75 – 84

BERNARDES, A.; REIS JUNIOR, D. F. DA C; GOMES, R. D . Filosofia e

Epistemologia da Geografia: grupo de trabalho em discussão (ENANPEGE 2015).

Revista da ANPEGE , v. 12, p. 283-302, 2016.

BATISTA, I. L.; SILVA, M. R. O desenvolvimento científico e as tradições de pesquisa de Larry Laudan. SALVI, R. F. ; MARANDOLA JR, E. (org.) Geografia e interfaces de conhecimento: debate contemporâneos sobre ciência, cultura e ambiente. Londrina: Eduel, 2011. p. 75 – 84

Page 177: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

177

BLOOR, D. Conhecimento e imaginário social. 2 ed. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

BONIN, J. A. Estratégia Multimetodológica Em Pesquisa De Recepção: Revisitando A Investigação. “Telenovela, Identidade Étnica E Cotidiano Familiar”. In: Trabalho apresentado ao NP 01 – Teorias da Comunicação, do IV Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. 2001.

BOURDIEU, P. Para uma Sociologia da Ciência. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2015

CAMARGO, J. C. G. REIS JR, D. F. da C. A Filosofia (Neo)Positivista e a Geografia Quantitativa. VITTE, A. C. (org.) Contribuições à história e à epistemologia da geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 83 - 99

CAMPOS, R. R. de. Breve Histórico do pensamento Geográfico Brasileiro nos séculos XIX e XX. Jundiaí: Paco Editorial, 2011.

CAPES. COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL

SUPERIOR. Documento de Área 36 Geografia. 2016a.

https://www.capes.gov.br/component/content/article/44-avaliacao/4673-geografia

Acesso em: 20 de março de 2019.

______. Relatório de Área 36 Geografia. 2016b. Disponível em: <https://www.capes.gov.br/component/content/article/44-avaliacao/4673-geografia.>

CARDOSO, L. P. C. O Lugar da Geografia Brasileira: A sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945. São Paulo: Annablume, 2013.

CARVALHO, S. M.; A Contribuição dos estudos em bacias hidrográficas para a abordagem ambiental na geografia. In: MENDONÇA, F.; LOWEN-SAHR, C. L. ; SILVA, M. da. (Org) Espaço e Tempo: complexidade e desafio do penar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN, 2009, p. 201 - 220

CASTELLS, M. A. Sociedade em Rede: a era da informação: economia, sociedade e cultura. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2013.

CASTRO, E. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016

CASTRO-GOMEZ, S. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, E. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J. et. al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis, RJ: 2008

CHIRSTOFOLETTI, A. As perspectivas dos Estudos Geográficos. Disponível em http://sigcursos.tripod.com/perspetivas.pdf. Acesso em 22 de fevereiro de 2019.

Page 178: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

178

CLAVAL, P. Como construir a história da geografia? In: Terra Brasilis (Nova Série)[online], 2013. Acesso em 19 de março de 2016. Disponível em URL: http://terrabrasilis.revues.org/637;DOI:10.4000/ terrabrasilis.637

CONDÉ, M. L. L. Prefácio a edição brasileira. In: FLECK, L. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. p. vii – xv.

CORRÊA, R.L. Caminhos paralelos e entrecruzados. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

CUNHA, L. A. A universidade reformada: o golpe de 1964 e a modernização do ensino superior. 2 ed. São Paulo: Editora UNESP, 2007

CRESWELL, J. W. Investigação Qualitativa e Projeto de Pesquisa: escolhendo entre cinco abordagens. Porto Alegre: Penso, 210

DESLANDES, S. F.; IRIART, J. A. B. Usos teórico-metodológicos das pesquisas na área de Ciências Sociais e Humanas em Saúde. In: Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 28(12):2380-2386, dez, 2012

DUTRA GOMES, R. ; VITTE, A. C. As incertezas Científicas e a Geografia. In: Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 62, n. 1, p. 51-72, jan./jun. 2017

DUTRA GOMES, R. Geografia e Complexidade: da diferenciação de áreas à nova

cognição do sistema Terra-Mundo. Campinas, SP: Programa de Pós-graduação em

Geografia/ PPGG/ UNICAMP. Tese de Doutorado (Geografia), 2010

FERNANDES, B. M. Territórios paradigmáticos: uma leitura preliminar da produção

do conhecimento na geografia agrária brasileira a partir dos Encontros Nacionais e

dos Congressos Brasileiros de Geógrafos. Terra Livre, ano 30, v. 2, n. 42, 2014

FERREIRA, M. C. Considerações teórico-metodológicas sobre as origens e inserção do Sistema de Informação Geográfica na Geografia. In: VITTE, A. C. (org.) Contribuições à história e à epistemologia da geografia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 127 -161

FIGUEIRÓ, A.S. Tradição e Mudança em Geografia Física: apontamentos para um diálogo interno. In: FIGUEIRÓ, A. S. ; FOLETO, E. (Org.) Diálogos em Geografia Física. Santa Maria: Editora UFSM, 2011c. p. 17 – 44.

FLECK, L. Gênese e Desenvolvimento de um Fato Científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.

FOUCAULT, M. A Arqueologia do Saber. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

______. As palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 2007

______. Microfísica do poder. 6 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

Page 179: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

179

FOUREZ, G. A construção das ciências: Introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995

GALVÃO, M. V. ; FAISSOL, S. A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos

no Brasil. Revista Brasileira – RBG, 1970, v32. N. 4.

GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

______. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002

GODOY, P. R. T. de. Paradigmas e Geografia. . In: Revista da ANPEGE, v. 7, n. 1,

número especial. p. 67 – 80, out. 2011.

________. Algumas considerações para uma revisão crítica da História do

Pensamento Geográfico. In: GODOY, P. R. T. de. História do pensamento

geográfico e epistemologia em geografia. São Paulo: Ed. UNESP, 2010. p. 145 -

156

GOMES, P. C. da C. Quadros Geográficos: uma forma de ver, uma forma de pensar. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2017.

______. DA C. Um lugar para a geografia: contra o simples, o banal e o doutrinário. In: MENDONÇA, F.; LOWEN-SAHR, C. L. ; SILVA, M. da. (Org) Espaço e Tempo: complexidade e desafio do penar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN, 2009, p. 13 - 30

GREGORY, K. J. A natureza da Geografia Física. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1992.

GUIMARÃES, H. G. Os fundamentos ontológicos e epistemológicos da categoria natureza no pensamento geográfico moderno. In: Terra Livre, São Paulo. Ano 32, vol. 2, n. 49. p. 13 – 51.

HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004

______. Território e região numa constelação de conceitos. In: MENDONÇA, F.; LOWEN-SAHR, C. L. ; SILVA, M. (org.) Espaço e Tempo: complexidade e desafios do pensar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN ANTONINA, 2009. p. 621 – 634.

HARACENKO, A. A. de S.; GONÇALVES JUNIOR, F. de A. Considerações sobre a epistemologia na geografia. In: HARACENKO, A. A. de S.; et. al. (org.) Geografia: Temas e reflexões. Maringá, PR: Eduem, 2015, p. 19 – 48

HISSA, C. E. V. A mobilidade das fronteiras: inserções da geografia na crise da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002

JAPIASSU, H. Introdução ao pensamento epistemológico. 4 ed. Rio de Janeiro: Francisco Aleves, 1986.

Page 180: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

180

KATO, F. B. G.; FERREIRA, L. R. A política de expansão e financiamento da pós-graduação: as diretrizes do PNPG (2011 – 2020) e PNE (2014- 2024). In: Revista Brasileira de Política e Administração da Educação - RBPAE. V.32, n.3. p. 639 – 935, set/dez, 2016. p. 677 – 698.

KOCHE, J. C. Fundamentos de metodologia científica: teoria da ciência e prática da pesquisa. 16 ed. Petropólis, RJ: Vozes, 1999

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva S.A, 1962

_______. A tensão essencial: Estudos selecionados sobre a tradição e mudança científica. São Paulo: Editora UNESP, 2011

______. O caminho desde A estrutura: Ensaios Filosóficos, 1970 – 1993, com uma entrevista autobiográfica. São Paulo: Editora UNESP, 2017

LAKATOS, I. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In: LAKATOS, I. e MUSGRAVE, A. (orgs.). A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Cultrix, 1979. p. 102-243.

LAUDAN, L. et. al.. Mudança científica: Modelos filosóficos e pesquisa histórica. In: Estudos Avançados, 7(19), 1993

LAUDAN, L. O Progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do crescimento

científico, São Paulo: Editora UNESP, 2011.

LEITE, D.; CAREGNATO, C. E. Redes de pesquisa e colaboração: conhecimento, avaliação e controle internacional da ciência. Porto Alegre: Sulina, 2018.

LEITE, D.; CAREGNATO, C. E.; MIORANDO, B. S. Redif: experiência de trabalho colaborativo. Rede Nacional de Investigação. In: LEITE, D.; CAREGNATO, C. E. Redes de pesquisa e colaboração: conhecimento, avaliação e controle internacional da ciência. Porto Alegre: Sulina, 2018.

LENCIONI, S. Linhas de pesquisa da pós-graduação em Geografia: mudanças, esquecimentos e emergência de (novos) temas. In: Revista da ANPEGE, v. 9, n.11, p. 5 -9, jan /jul. 2013

LENOIR, T. Instituindo a ciência: A produção cultural das disciplinas científicas. São Leopoldo: UNISINOS, 2004.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

LIMA, L. de. Encruzilhadas geográficas: Notas sobre a compreensão do sujeito na teoria social crítica. Rio de Janeiro: 2014

LIRA, L. A. O mediterrâneo de Vidal de La Blache: o primeiro esboço do método geográfico (1872 – 1918). São Paulo: Alameda, 2013

MACHADO, R. Introdução: por uma Genealogia do Poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 6 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017. p. 7 – 34.

Page 181: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

181

MARTINS, G. I.; CLEPS JR, J. Nas tramas do discurso: possibilidades teóricas e metodológicas em Michel Foucault. In: MARFON, G. J. et al. (org.) Pesquisa qualitativa em geografia: reflexões teórico-conceituais e aplicada. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. p. 69 – 87.

MONBEIG, P. Pesquisas Geográficas. In: Boletim Geográfico, 1945, v2 n31

MORAES, M.C. Ecologia dos saberes: complexidade, transdisciplinares e educação: novos fundamentos para iluminar novas práticas educacionais, São Paulo: Antakarana, 2008

MOREIRA, R. A geografia do espaço-mundo: conflitos e superações no espaço do capital. Rio de Janeiro: Consequência, 2016

______. Da espacialidade ao espaço real: O problema da teoria geral a propósito do simples e do complexo em geografia. In: MENDONÇA, F.; LOWEN-SAHR, C. L. ; SILVA, M. da. (Org) Espaço e Tempo: complexidade e desafio do penar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN, 2009, p. 121 – 136

______. O pensamento Geográfico Brasileiro: As matrizes clássicas originais. São Paulo: Contexto, 2011

MORIN, E. O Problema Epistemológico da Complexidade. 3 ed. Portugal:

Publicações Europa-América , 2002.

NUNES, J.B.A; VITTE, A. C. PERSPECTIVAS EPISTÊMICAS IMPLÍCITAS E EXPLICITAS NOS ESTUDOS GEOGRÁFICOS CONTEMPORÂNEOS. Campinas: (no prelo), 2017.

P. SPINK. Análise de documentos de domínio público. In: SPINK, M. J. (org.) Práticas discursivas e produções de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 123 – 150.

PORTOCARRERO, V. Foucault: a história dos saberes e das práticas. In: PORTOCARRERO, V. (Org.) Filosofia, História e Sociologia das Ciências 1: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.

REIS JR, D. Universais de filosofia, história e Geografia das Ciências ... e o exemplo fértil da ciência geográfica. In: Anais Eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT. Belo Horizonte, campus Pampulha da Universidade Federal de Minas Gerais – 08 a 11 de outubro de 2014. ISBN: 978-85-62707-62-9

______. Um modelo de classificação e de periodização dos estudos científicos em Geografia. In: Anais Eletrônicos do 15º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 15º SNHCT Florianópolis, Santa Catarina, 16 a 18 de novembro de 2016.

Page 182: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

182

REIS JR, D; ARAÚJO NETO, M.D. Do classicismo ao Sistemismo: uma pesquisa sobre a história da geografia física brasileira. In: Anais do VI Seminário Latino Americano de Geografia Física; II Seminário Ibero Americano de Geografia Física Universidade de Coimbra, Maio de 2010. Disponível em http://www.uc.pt/fluc/cegot/VISLAGF/actas/tema1/dante

RODRIGUEZ, SILVA, E. V. da; LEAL, A. C. Planejamento ambiental de bacias hidrográficas desde a visão da geoecologia das paisagens. In: FIGUEIRÓ, A. S. ; FOLETO, E. (Org.) Diálogos em Geografia Física. Santa Maria: Editora UFSM, 2011c. p. 111 - 126

ROUANET, S. P. Iluminismo e contra Iluminismo (sobre a modernidade e seu projeto inacabado) textos de cultura e comunicação. Salvador n. 1 p. 5 – 22, 1985 (Texto 29).

RUIZ, C. B. Os paradoxos do Imaginário. São Leopoldo, RS: UNISINOS, 2003.

SANTOS, A. L. F. dos. A pós-graduação em Educação e o tratamento do tema

Política Educacional: uma análise da produção do conhecimento no nordeste do

Brasil. Recife: UFPE, 2008(Tese)

SCHWARTZMAN, S. Um espaço para a ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. 4 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015

SAQUET, M. A. Abordagens e concepções de território. 2 ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2010.

SHINN, T.; RAGOUET, P. Controvérsias sobre a ciência: por uma sociologia transversalista da atividade científica. São Paulo: Associação Filosófica Scientia Studia: Editora 34, 2008.

SILVA, C. A. da. O fazer geográfico em busca de sentidos ou a Geografia em diálogo com a Sociologia do tempo presente. In: Boletim Campineiro de Geografia. v. 2, n. 2, 2012.

SILVA, J. B. da; OLIVEIRA, M. P. A trajetória da Pós-graduação no Brasil e a ANPEGE: algumas questões. In: Revista da ANPEGE. V. 5, 2009. p. 79 – 91

SILVEIRA, R. W. ; VITTE, A. C. A emergência de um novo saber geográfico: o retorno da ciência à filosofia. In: Sociedade & Natureza, Uberlândia, 23 (1): 37-49, abr. 2011.

______. Debate e epistemologia na gênese da geografia moderna: pensamento e imaginação geográfica. In: Actas do XII Colóquio Ibérico de Geografia 6 a 9 de outubro 2010, Porto: Faculdade de Letras (Universidade do Porto).

SOUSA SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010.

Page 183: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

183

SOUZA, A. N. Percurso Historiográfico do Campo Disciplinar Geográfico na

Bahia e em São Paulo: Contribuições da Universidade Federal da Bahia e da

Universidade de São Paulo. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE

GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

DOUTORADO EM GEOGRAFIA, SALVADOR, BA: 2017 (Tese)

SOUZA, M. L. de. Dos espaços de controle aos territórios dissidentes: escritos de divulgação científica e análise política. Rio de Janeiro: Consequência, 2015

______. Os conceitos fundamentais da Pesquisa sócio-espacial. Rio de Janeiro, 2013

______. Consiliência ou bipolarização epistemológica? Sobre o persistente fosso entre as ciências da natureza e as da sociedades - e o papel dos geógrafos. In: SPOSITO, E. S. et. al. (orgs) A diversidade da Geografia brasileira: escalas e dimensões da análise e da ação. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2016, p. 13 – 56.

SPINK, M. J. (org.) Práticas discursivas e produções de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2004

SPINK, M. J. ; LIMA, H. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação. In: SPINK, M. J. (org.) Práticas discursivas e produções de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 93 – 121.

SPINK, J,P.; MENEGON, V.M. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: SPINK, M. J. (org.) Práticas discursivas e produções de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2004. p. 42 – 63.

SUERTEGARAY, D. (Re)Ligar a geografia: natureza e sociedade. Porto Alegre: Compasso Lugar-Cultura, 2017

TAKAYANAGUI, A. D. Redes de pesquisa e colaboração, produção científica, avaliação e controle internacional da Ciência. In: LEITE, D.; CAREGNATO, C. E. Redes de pesquisa e colaboração: conhecimento, avaliação e controle internacional da ciência. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 17 - 20

TRINDADE LIMA, N. Valores Sociais e Atividade Científica: um retorno à agenda de Robert Merton. In: PORTOCARRERO, V. (Org.) Filosofia, História e Sociologia das Ciências 1: abordagens contemporâneas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.

UNGER, N. M. Cosmos e pólis: Fundamentos filosóficos do pensamento ecológico. Tese de Doutorado em Educação. Campinas, SP: UNICAMP, 1998.

VITTE, A. C . Apontamentos históricos e sociológicos sobre a Geografia Física: a questão do mecanicismo e da multicausalidade. In: Sociedade e Território, Natal, v. 23, nº 2, p. 38 - 56, jul./dez. 2011a

Page 184: TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA ...repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/335274/1/...da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência

184

______. Da caixa de pandora à teia do cosmos: uma contribuição ao debate sobre a reestruturação da geografia física. In: FIGUEIRÓ, A. S. ; FOLETO, E. (Org.) Diálogos em Geografia Física. Santa Maria: Editora UFSM, 2011b. p. 59 –

_______. Os fundamentos metodológicos da Geomorfologia e a sua influência no desenvolvimento das Ciências da Terra. In: VITTE, A. C.; GUERRA, A. J. T. (ORGs). Reflexões sobre a Geografia Física no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p. 23 – 48.

______. A geografia da revolução científica moderna: uma introdução. In: HARACENKO, A. A. de S.; et. al. (org.) Geografia: Temas e reflexões. Maringá, PR: Eduem, 2015, p. 49 - 72

______. Por uma Geografia Híbrida: ensaios sobre os mundos, as naturezas e as culturas. Curitiba: CRV, 2011c

______.Teoria do método científico e geografia. In: MENDONÇA, F.; LOWEN-SAHR, C. L. ; SILVA, M. da. (Org) Espaço e Tempo: complexidade e desafio do penar e do fazer geográfico. Curitiba: ADEMADAN, 2009a, p. 91 – 106

______. As influências da filosofia natural e da naturphilosophie na constituição do darwinismo: elementos para uma filosofia da geografia física moderna - DOI 10.5216/bgg.v29i1.6172. Boletim Goiano De Geografia, 2009b, 29(1), 13-32. https://doi.org/10.5216/bgg.v29i1.6172.