territÓrio epistemolÓgico da geografia fÍsica...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Geociências
JACY BANDEIRA ALMEIDA NUNES
TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
CAMPINAS
2019
JACY BANDEIRA ALMEIDA NUNES
TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
TESE APRESENTADA AO INSTITUTO DE
GEOCIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTORA EM GEOGRAFIA NA ÁREA DE ANÁLISE
AMBIENTAL E DINÂMICA TERRITORIAL
ORIENTADOR: PROF. DR. ANTONIO CARLOS VITTE
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL
DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA JACY BANDEIRA
ALMEIDA NUNES E ORIENTADA PELO PROF. DR.
ANTONIO CARLOS VITTE
CAMPINAS
2019
Ficha catalográficaUniversidade Estadual de CampinasBiblioteca do Instituto de Geociências
Marta dos Santos - CRB 8/5892
Nunes, Jacy Bandeira Almeida, 1966- N922t NunTerritório epistemológico da geografia física brasileira contemporânea /
Jacy Bandeira Almeida Nunes. – Campinas, SP : [s.n.], 2019.
NunOrientador: Antonio Carlos Vitte. NunTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Geociências.
Nun1. Territórios. 2. Geografia física. 3. Epistemologia (Teoria do
conhecimento). 4. Pós-graduação. I. Vitte, Antonio Carlos, 1962-. II.Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Geociências. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital
Título em outro idioma: Epistemological territory of contemporary brazilian physicalgeographyPalavras-chave em inglês:TerritoriesPhysical geographyEpistemology (theory of knowledge)Post-graduationÁrea de concentração: Análise Ambiental e Dinâmica TerritorialTitulação: Doutora em GeografiaBanca examinadora:Antonio Carlos Vitte [Orientador]Carlos Francisco Gerencsez GeraldinoFrancisco Sergio Bernardes LadeiraAntonio Henrique BernardesArêude BortolozziData de defesa: 31-07-2019Programa de Pós-Graduação: Geografia
Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0001-9965-2962- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/6965169125366979
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS
AUTORA: Jacy Bandeira Almeida Nunes
TERRITÓRIO EPISTEMOLÓGICO DA GEOGRAFIA FÍSICA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
ORIENTADOR: Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte
Aprovado em: 31 / 07 / 2019
EXAMINADORES:
Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte - Presidente
Prof. Dr. Antonio Henrique Bernardes
Prof. Dr. Carlos Francisco Gerencsez Geraldino
Profa. Dra. Arlêude Bortolozzi
Prof. Dr. Francisco Sergio Bernardes Ladeira
A Ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros, encontra-se
disponível no SIGA - Sistema de Fluxo de Tese e na Secretaria de Pós-
graduação do IG.
Campinas, 31 de julho de 2019.
Dedico,
A Deus, por ter iluminado mais uma etapa de meu
caminho em busca do conhecimento, concedendo-
me inspiração e coragem.
À minha família, por suportar uma mãe,
companheira, sogra, filha, irmã, tia que, às vezes,
parecia pela metade; pelo auxílio nas horas difíceis
numa demonstração de amor incondicional.
Em especial, à minha mãe, meu maior exemplo de
garra e perseverança.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Antônio Carlos Vitte, pela confiança, pela orientação dada e,
sobretudo, pela compreensão, tranquilidade e sabedoria encorajadora em relação ao
meu caminhar no processo.
Aos colegas/amigos do Dinter UNEB/UNICAMP, pela atenção, pelo carinho e pela
especial relação afetiva construída na colaboração, que muito contribuíram para a
conclusão do doutorado.
Aos professores Antônio Bernardes e Rodrigo Dutra Gomes, pelas contribuições na
qualificação, bem como pelo atendimento ao nosso convite para fazer parte da
Banca Examinadora.
Às amigas e colegas da UNEB e da Escola Estadual Padre Alfredo Haasler, em
especial, Ione Oliveira Jatobá, sempre presente, e Luci Jatobá, pela compreensão.
À minha amiga Rejane Silva Santos, pela sua presteza em contribuir.
Enfim, a todos que contribuíram direta ou indiretamente para que esta pesquisa
fosse produzida, em especial, Gisele Lima, cujo auxílio foi imprescindível para a
conclusão desta tese.
As ciências lidam efetivamente com seus limites, descobrem que não podem mais responder às suas perguntas nos redutos de suas especialidades, no reduto em que se mantiveram em reprodução ampliada. Separadas pelo advento de uma necessidade analítica, as ciências reencontram sua fonte comum, a busca que fora deixada de lado em favor de um conhecimento pragmático. Todas as construções científicas procuram o conhecimento e, como tal, este não pode ser reduzido aos limites institucionais, não se encerram no recorte analítico que se impõe às ciências e a seus específicos objetos. Diante de seus limites, as ciências clamam filosofia e, paradoxalmente, a filosofia se torna científica na Academia. A unidade do saber é cobrada depois de um longo voo no rumo da fragmentação e da produção técnica. Já não se pode produzir conhecimento em Física sem filosofar, já não se pode produzir conhecimento em Geografia sem colocar a questão de uma reconstrução epistemológica e, portanto, filosófica.
(SILVEIRA & VITTE, 2010, p. 13)
RESUMO
Este estudo teve como objetivo geral compreender a evolução e o território epistemológico da Geografia Física contemporânea no país, tomando como referência empírica as produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos e a expectativa de construir uma proposta conceitual para o construto Território Epistemológico. Ele parte das premissas de que: I) as produções intelectuais (documentos) disponíveis no ciberespaço são práticas discursivas que refletem o cognitivo e o social; II) os coletivos sociotécnicos são os programas de pós-graduação em Geografia – PPGGs; e III) o Território Epistemológico é o campo ou a arena de domínio filosófico, histórico, político, social e cognitivo, que configura a dinâmica científica de um saber ou campo disciplinar. Defende a tese de que o território epistemológico de um campo científico é produto das múltiplas contingências que repercutem na evolução epistemológica de um saber, através das mudanças evolutivas oriundas das interações históricas, sociais e cognitivas. Utiliza como argumento principal que o período que corresponde à contemporaneidade, referente aos últimos 50 anos, é marcado por múltiplas contingências na atividade científica, entre elas a desqualificação ontológica, a desconfiguração axiológica, a desestabilização epistemológica e a diversidade metodológica, que, associadas à nova ordem social em rede da “Modernidade reflexiva”, afetam as tradições de pesquisa, implicando a Ressignificação Científica. Ressignificação proveniente das mudanças evolutivas, que afetam e afetarão os modos explicativos e interpretativos, as formas de produzir o conhecimento científico, as concepções, conceitos, propósitos e valores imbricados nas práticas discursivas que estruturam a episteme e na evolução epistemológica da Geografia. O desenho metodológico, à luz dos fundamentos teóricos e metodológicos da perspectiva epistemológica construcionista e da Arqueologia do Saber, articula elementos da Análise de Documentos e da Análise do Discurso, a partir da interlocução com os fragmentos das produções intelectuais (artigos, ensaios, teses e dissertações), disponíveis no ciberespaço. Os percursos da investigação trilhados foram configurados por três caminhos sucessivos, complementares, articulados e, conforme as necessidades, oriundos da busca digital, por documentos dos autores e dos coletivos sociotécnicos. Concebe os documentos de domínio público como produções intelectuais dos Programas de Pós-Graduação em Geografia, disponíveis nas plataformas digitais oficiais, tais como plataforma lattes, catálogo de teses e dissertações da Capes.
Palavras-Chave: Território Epistemológico; Geografia Física; Evolução epistemológica; Programas de Pós-Graduação em Geografia.
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ABSTRACT
This study aimed to understand the evolution and epistemological territory of contemporary Physical Geography in Brazil, taking as empirical reference the intellectual productions of socio-technical collectives, and the expectation of constructing a conceptual proposal for the Epistemological Territory construct. Part of the premises: I) the intellectual productions (documents) available in cyberspace are discursive practices that reflect the cognitive and the social; II) the socio-technical collectives are the postgraduate programs in Geography - PPGG; II) the Epistemological Territory is the field of philosophical, historical, political, social and cognitive domain that configures the scientific dynamics of a knowledge or disciplinary field. The thesis defends that the epistemological territory of a scientific field is the product of the multiple contingencies that affect the epistemological evolution of knowledge, through the evolutionary changes arising from historical, social and cognitive interactions. It uses as its main argument that the period that corresponds to contemporaneity, referring to the last 50 years, is marked by multiple contingencies in scientific activity, including ontological disqualification, axiological deconfiguration, epistemological destabilization and methodological diversity, which, associated to the new networked social order of “Reflective Modernity”, affect the research traditions and implied the Scientific Reframing. Reframing from evolutionary changes, which affect and affected the explanatory and interpretative modes, the ways of producing scientific knowledge, the conceptions, concepts, purposes and values imbricated in the discursive practices that structure the episteme and in the epistemological evolution of Geography. The methodological design, from the theoretical and methodological foundations of the constructionist epistemological perspective and the Archeology of Knowledge, articulates elements of Document Analysis and Discourse Analysis, from the dialogue with the fragments of intellectual productions (articles, essays, theses and dissertations), available in cyberspace. The routes of the research were configured through three successive, complementary, articulated paths and derived from the digital search for documents by the authors and the socio-technical collectives. It conceives public domain documents as intellectual productions of postgraduate programs in geography, and available on official digital platforms such as: lattes platform, catalog of theses and dissertations by Capes.
Keywords: Epistemological Territory; Physical geography; Epistemological evolution; Postgraduate programs in Geography.
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Fragmentos do livro “Epistemologia”, de Bachelard ............................... 43
Quadro 2 - Abordagens da perspectiva antidiferenciacionista da sociologia da
ciência. ...................................................................................................................... 71
Quadro 3 - Fragmentos do texto do professor Antônio Carlos Vitte ......................... 80
Quadro 4 - Fragmentos do texto “A pesquisa Geográfica”, de Pierre Monbeig ...... 128
Quadro 5 - Fragmentos do texto “A revolução quantitativa na geografia e seus
reflexos no Brasil, de Galvão e Faissol (1970) ........................................................ 139
Quadro 6 - Fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de
Manuel Correira de Andrade, 1985 ......................................................................... 141
Quadro 7 - Fragmentos do texto “As perspectivas dos estudos geográficos”, de
Chistofoletti. ............................................................................................................. 150
Quadro 8 - Árvore genealógica de orientação ........................................................ 167
LISTA DE MAPAS
Mapa 1 - Representação dos quantitativos da produção intelectual dos PPGGs, de
2012 a 2018 .............................................................................................................. 35
Mapa 2 - Localidade onde foram realizadas as pesquisas da PPGG/USP-GF, no
recorte temporal 1987 – 2018 ................................................................................. 169
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1 Configuração do Objeto de Estudo da Geografia Física Contemporânea.
................................................................................................................................ 158
Ilustração 2 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFBA, recorte temporal 2012 –
2018 ........................................................................................................................ 161
Ilustração 3 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFF, recorte temporal 2012 –
2018 ........................................................................................................................ 163
Ilustração 4 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFF, recorte temporal 2012 –
2018 ........................................................................................................................ 164
Ilustração 5 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPA, recorte temporal 2012 –
2018 ........................................................................................................................ 165
Ilustração 6 Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFG, recorte temporal 2012 –
2018 ........................................................................................................................ 165
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
AD – Análise de Discurso
AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
ANPEGE – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia
BPG – Boletim Paulista de Geografia
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
DC – Desenvolvimento do conhecimento científico
PPGGs – Programas de Pós-Graduação em Geografia
TE – Território Epistemológico
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................ 15
1 Das suposições filosóficas aos percursos da investigação: o caminho
metodológico trilhado ................................................................................... 25
1.1 As suposições filosófica .................................................................................26
1.2 o desenho metodológico .................................................................................27
1.3 A análise das produções intelectuais ............................................................36
2 Evolução epistemológica do desenvolvimento científico:
contextualizando as ligações evolutivas. ................................................... 40
2.1 A elucidação conceitual ...............................................................................40
2.2 A episteme do desenvolvimento do conhecimento científico ................49
2.3 As ligações evolutivas da evolução epistemológica na Geografia .......76
3 Cenário epistêmico da Modernidade Reflexiva: o espaço-tempo das
múltiplas contingências? .............................................................................. 85
3.1 Modernidade Reflexiva e a Ressignificação Científica ..............................87
3.2 As redes na ressignificação científica ..........................................................99
3.3 De disciplinas científicas ao conceito de territórios epistemológicos .. 108
3.3.1 Elementos estruturantes do TE ........................................................ 117
4 Da territorialidade dos programas de pós-graduação ao Território
Epistemológico da Geografia Física .......................................................... 122
4.1 Trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil. ............................ 123
4.2 A episteme dos Territórios Epistêmicos (TE) da Geografia Física
contemporânea ..................................................................................................... 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 173
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................. 176
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INTRODUÇÃO
Vamos, dia a dia, superando nossas ingenuidades. Ninguém tem uma compreensão total de todas as coisas, nem mesmo a compreensão total de uma única coisa. Vamos arranhando as coisas passo a passo, momento a momento, descobrindo novos sentidos, ampliando compreensões, penetrando mais a fundo no seu mistério.
Pedrinho A. Guareschi - PUC do Rio Grande do Sul
Empreender a produção de uma tese doutoral é um processo dialógico.
Implica imersão profunda não só na interlocução com os professores/autores das
obras lidas, apropriadas e (res)significadas, mas também nas idas e vindas com as
lembranças, inseguranças e inquietações, que vão contribuindo passo a passo para
a construção do relato, elucidando as compreensões construídas e reconstruídas.
Implica, por vezes, embates institucionais, cognitivos e afetivos sobre os fatos e
fenômenos estudados. Este relato de pesquisa diz respeito aos produtos dessa
jornada e tem como intuito apresentar as reflexões e interpretações estabelecidas no
processo de construção do objeto de investigação.
Produto que surgiu do desejo inicial de desvelar a complexidade da
dinâmica científica na Geografia contemporânea através da sua evolução
epistemológica. Entretanto, com as delimitações e (res)significações contínuas das
experiências no doutorado e no percurso da investigação, bem como das
contribuições na qualificação, observamos a ocorrência de setores específicos da
experiência científica no âmbito da ciência geográfica, para as quais, Bachelard
(2006) atribuía a noção de “região epistemológica”, passou a ter como focos o
saber1 e as condições históricas, sociais e cognitivas para a existência de seu
domínio epistêmico, daí a proposta de construção conceitual do construto Território
1 Consideramos relevante esclarecer que “o saber” a que nos referimos nesta tese “trata de uma
categoria metodológica, um recurso instrumental, que significa o nível do discurso e das formulações teóricas, próprios do saber científico ou com pretensão à cientificidade. Mesmo quando não legitimado como ciência, o saber possui uma positividade e obedece a regras de aparecimento, organização e transformação que podemos descrever”. (PORTOCARRERO, 2002, p. 45)
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Epistemológico2 - TE da Geografia Física contemporânea. Um fenômeno geográfico
e imaterial desvelado nas produções intelectuais dos programas de pós-graduação
em Geografia no Brasil, na condição de coletivos sociotécnicos que criam,
consolidam e propagam TEs na dinâmica científica.
Portanto, esta tese se revela numa produção que, através do olhar
geográfico sobre a evolução e o domínio epistemológico, dialoga com o campo da
Epistemologia3, da Historiografia e da Arqueologia dos Saberes. Por isso, manifesta-
se numa interlocução entre a Geografia do Conhecimento e outros campos
científicos como a Sociologia do Conhecimento, a Filosofia da Ciência e a História
Social da Ciência, com o intuito de promover a compreensão da dinâmica científica
“no tempo presente” (SILVA, 2012, p. 221).
A celeuma que vem se desvelando nos últimos anos nos estudos sobre a
Epistemologia da Geografia e a História social do pensamento geográfico contribuiu
para a existência de um número significativo de produções neste campo científico4.
No entanto, a expectativa é superar potenciais lacunas na Epistemologia da Ciência
Geográfica sobre a temática da evolução epistemológica, pois, conforme apontam
Bernardes, Reis Jr e Dutra Gomes (2015, p. 297), “a Geografia brasileira traz uma
situação de [...] incipiência de tais discussões (epistemológicas) em âmbito nacional
[...] Com isso, muitas vezes, são percebidas certas carências nas discussões”.
Perspectiva que confirmamos nas buscas nos bancos de teses e
dissertações on-line, pois, embora apareçam estudos sobre a produção científica na
2 Metáfora científica utilizada para designar o campo ou arena de domínio epistêmico de possibilidade
de existência de um saber (temática/área de conhecimento), que, no âmbito deste estudo, é a Geografia Física. 3Que “devotam atenção às questões da racionalidade, linguagem, julgamento e evolução das ideias e
práticas científicas – por isso, aliás, a estreita relação entre epistemologia e metodologia”. (BERNARDES; REIS JR; DUTRA GOMES, 2015, p. 297) 4 Pois, segundo Reis Jr (2007, p. 3), é impossível ignorar que “Os últimos anos vêm testemunhando
uma muito legítima preocupação por parte da comunidade acadêmica ligada à Geografia. Estamos nos referindo ao cuidado coerentemente dispensado ao resgate de autores e das textualizações que eles nos deixaram como herança [...], o empreendimento tem prosperado sobremaneira, fazendo com que, por conta disso, determinados centros de pesquisa – muitos dos quais já notabilizados pelas investigações a que tradicionalmente se propõem, em campos teóricos e/ou pragmáticos da disciplina geográfica – vão adquirindo status de polo. [...] poderíamos citar o caso da Universidade Estadual Paulista, com (no campus de Rio Claro) a atuação dos Professores Sílvio Carlos Bray e José Carlos Godoy Camargo e (no campus de Presidente Prudente) a do Professor Eliseu S. Sposito. Mas também os casos da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em virtude da atuação engajada da Professora Lia Osório Machado, bem como do Professor Paulo César da Costa Gomes, e da Universidade de São Paulo, pelas sabidas preocupações historiográficas do Professor Antônio Carlos Robert Moraes.”
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Geografia em nível da pós-graduação, não identificamos nenhuma referência à
episteme da Geografia Física contemporânea ou sobre território epistemológico,
temáticas que serão abordadas nesta produção. Observamos nos últimos anos um
número significativo de historiografias que se aproximaram de tais discussões e que
trazem contribuições significativas na tessitura do relato de pesquisa.
Uma das produções cujas ideias mais se aproximaram da nossa temática
foi a tese de André Nunes de Souza, da Universidade Federal da Bahia, que teve
como objetivo “analisar o percurso historiográfico do campo disciplinar e acadêmico
da Geografia na Bahia e em São Paulo” (SOUZA, 2017, p. 10). Neste trabalho, o
autor responde a “como as universidades UFBA/USP se inserem na historiografia da
geografia brasileira”. O ponto de vista é que, pela constituição de dois programas
de pós-graduação, é possível elucidar as principais influências teórico-
epistemológicas que fundamentaram sua consolidação (institucionalização da
Geografia brasileira), diante dos antecedentes político-institucionais relevantes.
Mas qual a contribuição efetiva desta tese para este estudo? Entre as
várias contribuições, destacamos duas. Primeiro, por reconhecer e indicar a força
centrífuga e centrípeta dos programas de pós-graduação em Geografia, como
instituições sociais e lugares de mediação na construção epistêmica, dando-lhes a
atribuição de coletivos sociotécnicos na consolidação disciplinar, na diversidade das
perspectivas e práticas discursivas que permeiam a produção científica brasileira.
Segundo, por apontar a necessidade de superar as tradicionais análises
“internalistas” versus “externalistas”, que marcaram a história social da ciência,
conforme denúncia Lira (2013, p. 42):
Este paradoxo fomentou o debate cujas posições aparentemente opostas foram chamadas de ‘externalistas’ por aqueles que defendiam a determinação do contexto histórico e social sobre a teoria científica e de ‘internalistas’, cujos requisitos lógicos e a coerência davam conta de explicar o apogeu e o declínio das teorias.
Destarte, a nossa tese é que a evolução epistemológica é um produto
histórico, sociológico e simultaneamente cognitivo, que envolve uma multiplicidade
de contingências, entre elas: a concepção e os propósitos da ciência em vigor, a
forma como ela foi organizada no país, a interação entre ciências, atores e ideias, o
papel do Estado e como ela foi consolidada e legitimada pela sociedade. Por isso, o
nosso argumento principal é que as múltiplas contingências, oriundas da
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modernidade reflexiva, atuam como um conjunto de circunstâncias eventuais,
articuladas, complementares e, simultaneamente, contraditórias, contemplando
diversas dimensões – filosófica, social, cognitiva, afetiva, cultural, temporal,
científica, política e econômica – que afetam a evolução epistemológica dos campos
e saberes científicos. Em outras palavras, as múltiplas contingências funcionam
como estruturas objetivas e subjetivas, internas e externas, micro e macro, que
repercutem direta ou indiretamente na práxis científica e, por isso, implicam
diretamente a evolução epistemológica.
Outra produção que contribuiu de forma significativa para a construção do
nosso objeto de investigação foi a tese de Ana Lúcia Felix dos Santos, defendida em
2008, na UFPE. Seu estudo tem como foco a análise do “subcampo política e
educação nos programas de pós-graduação em Educação do Nordeste”. Entre as
várias contribuições que, inclusive, justificam a aproximação com nosso objeto de
estudo, destacamos: I) a compreensão de que o fazer científico é um processo de
produção, distribuição e consumo dos discursos científicos; II) a elucidação de que
existe uma relação intrínseca entre saber, poder, refletir e fazer, que repercute direta
ou indiretamente no potencial de “consolidação/manutenção e subversão do campo
acadêmico”; e III) o reconhecimento do potencial das produções intelectuais como
fontes de dados relevantes. (A. L., SANTOS, 2008)
No entanto, não foram só as teses e dissertações, na condição de
produções intelectuais, que esclareceram o que já se sabia e o que precisava ser
elucidado, contribuindo para a construção do nosso objeto de pesquisa, pois a
interlocução estabelecida nas leituras das obras e artigos indicados e/ou localizados
nos periódicos on-line no transcorrer do doutorado foi significativa, tendo feito com
que nossa investigação ganhasse novos contornos, diferenciando-se das teses
consultadas, por isso, faz-se relevante destacar algumas contribuições.
Por ser um estudo que transita no campo da História Social do
Pensamento Geográfico, considerando o que Godoy (2010) aponta no texto
“Algumas considerações para uma revisão crítica da História do Pensamento
Geográfico”, a produção científica da área vem se constituindo basicamente por
duas tendências: uma em que a reconstrução histórica vai em direção ao passado,
investigando as origens das concepções de ciência existentes no presente; e outra,
que faz o processo inverso, isto é, vai do “passado em direção ao presente”,
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convictos da existência de uma correlação entre a sucessão dos acontecimentos no
tempo e no espaço, com o intuito de “confirmar o paradigma do presente”. Para
transcender tais tendências, o autor alerta que é preciso compreender “a
organização, a produção do conhecimento, as disputas institucionais de segmentos
específicos da sociedade no interior da comunidade científica e as relações de poder
que o historiador estabelece com o passado, [...] fundamentais para a compreensão
e a crítica do pensamento científico” (GODOY, 2010, p. 159), visto que, além da
dimensão geográfica, contempla as dimensões sócio-históricas e filosóficas, pois
tenciona compreender a evolução e o domínio epistemológico do presente, em que
passado distante, recente e futuro estão imbricados, coexistem, performam e se
articulam de forma contínua e dinâmica nas práticas discursivas, produzindo
sentidos.
Claval (2013) alerta que, para superar o senso comum e construir uma
história que seja coerente com a ciência geografia, é condição indispensável que o
pesquisador se ligue “à evolução das práticas, dos saberes-fazeres e dos saberes
geográficos vernaculares, indispensáveis a todos”, de forma que esse relato possa
se situar e dar sentido, isto é, uma identidade (um sentido ou significado), sua
própria existência e a existência dos grupos de que faz parte. Na fala do próprio
autor:
Traçar a história da geografia tal como ela se desenrolou desde o fim do século XIX não é somente contar a história da carreira e das pesquisas de certo número de indivíduos, é sublinhar a formação que eles receberam, os saber-fazer que eles assimilaram, as práticas das quais eles se impregnaram, é relembrar que suas atividades se inscreviam dentro de um métier – o dos geógrafo universitários. (CLAVAL, 2013, p. 4 - 5)
A ideia é que a formação, o conteúdo geográfico, o saber-fazer e as
atividades dos pesquisadores, isto é, suas interações, estão inscritas numa
temporalidade e simultaneamente numa espacialidade, produzindo territorialidades,
que se consubstanciam no métier do doutor/geógrafo e ator social. Daí o intento
desta tese, que se constitui num “discurso” da pesquisadora, segundo seu métier de
licenciada e professora de Geografia na Educação Básica e na Graduação em
Geografia da Universidade Estadual da Bahia - UNEB, Campus IV/Jacobina.
Mas por que especificamente a aplicação da discussão teórica através
dos Territórios Epistemológicos na Geografia Física? Primeiro, é relevante
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esclarecer qual acepção de território estamos utilizando, pois, segundo Haesbaert
(2004) e Saquet (2010), é notória a polissemia que acompanha as várias utilizações
da categoria e de sua conceituação. Assim, com Fernandes (2017), dialogamos com
as ponderações de Saquet (2010) em relação às características que o autor atribui à
categoria:
Estou considerando central a necessidade de se apreender o movimento em estudos territoriais, como produto de determinações (i)material, de forças econômicas, políticas e culturais em unidade e em saltos quanti-qualitativos na dinâmica socioespacial. Movimento que é relacional, processual e condições da (i)materialidade de nossa vida cotidiana. A matéria e a ideia estão em movimento constante, no qual, há superações, articulações territoriais, internas e externas a cada território, des-
continuidades, fluidez e identidade. (SAQUET, 2010, p. 22)
Diante das características apontadas pelo autor, acreditamos que a
categoria Território seja adequada para contemplar a arena de domínio histórico,
político, social que a dinâmica científica configura, considerando que é um
fenômeno relacional, processual, multidimensional e multiescalar, é imaterial e
paradoxalmente produto das determinações objetivas e subjetivas e é portador de
uma territorialidade com fronteiras epistêmicas, embates, coletivos e solo.
Segundo, o que compreendemos com olhar ‘Epistemológico’? Utilizamos
epistemologia, epistemológico5 ou epistêmico, no sentido de elucidar o que garante
efetivamente a identidade científica entre as várias positividades de existência de
um saber, o seu núcleo de articulação da explicação científica e domínio de atuação
como campo acadêmico ou área de conhecimento científico, de forma que possa
apresentar “a ‘interface’ do campo disciplinar em questão com as demais ciências
[...] na intenção de desenhar as possibilidades de tráfego epistemológico entre as
vizinhanças: trânsito de conceitos, teorias e técnicas” (REIS JR, 2014, p. 3). Isso
porque tencionamos, com a investigação, compreender o que possibilita aos
pesquisadores geógrafos responder, através de suas produções discursivas, a
questões como: Qual(is) a(s) natureza(s), os propósitos da Geografia Física que
5 No âmbito desta produção, defendemos a perspectiva adotada por Gomes (2009, p. 15) de que a
epistemologia é “um domínio aberto ao reconhecimento da pluralidade de recursos e orientações disciplinares científicas. Ser um domínio de discussões significa exatamente não estar orientado de forma exclusiva e não agir como se detivéssemos algum tipo de certeza que legitimasse, a priori, esse ou aquele caminho em detrimento de outros possíveis”. Com isso, reconhecemos a existência de Epistemologias diversas e possíveis, daí porque o intuito de uma análise epistemológica não pode ser o de “estabelecer, ao final, uma orientação que deve ser seguida por todos ou quase todos”, mas de “demonstrar que a cada momento as respostas são múltiplas e que essa pluralidade crítica é a razão mesmo da existência da ciência” (GOMES, 2009, p. 15)
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está sendo produzida nos programas de pós-graduação em Geografia no Brasil na
contemporaneidade? Qual a maneira de fazer ciência, legitimada e apropriada pelo
coletivo sociotécnico da Geografia Física? E, o quê, efetivamente, dá à produção
intelectual da Geografia Física contemporânea o elo de pertencente à Ciência
Geográfica?
E, terceiro, esclarecemos que optamos pela Geografia Física porque, de
acordo com Vitte (2011a, p. 67):
Ao longo do tempo e, principalmente, a partir do forte impacto do positivismo na Ciência Geográfica, é que houve uma profunda especialização de as disciplinas se tornarem relativamente independentes entre si e, [...] se apresentarem desconexas em relação ao sentido da Ciência Geográfica e da Geografia Física em particular. Esse fato se reflete na constante criação de associações independentes, congressos e seminários específicos de cada disciplina em outros campos de investigação, como pode ser exemplificado pela geomorfologia, com a Geologia. A geografia física contemporânea tem uma grande diversidade de assuntos. [...] vivemos o problema filosófico da identidade.
O autor revela um itinerário e um fundo epistêmico em que a Geografia
Física, como uma especialidade cognitiva (um saber) da Ciência Geográfica, busca
uma identidade científica e social na contemporaneidade, não só em função de sua
natureza interdisciplinar com fronteiras epistêmicas transitórias, mas como produto
da fragmentação da própria Geografia, que, para Vitte (2011b), está enraizada e
reverbera no interior do saber-fazer, potencializando o “isolamento” do subcampo e
de seus pesquisadores, pois instaura barreiras epistemológicas6 e dialógicas na
comunidade científica e cria a imagem de que suas especialidades são ‘disciplinas’
“independentes da própria Ciência Geográfica”, que necessitam ser “aplicáveis”,
evidenciando uma imagem social desta ciência.
Nessa perspectiva, a fala de Vitte (2011b), entre outras, reafirma e
justifica a originalidade e a demanda pela pesquisa sobre as inquietações com que
se debruça esta tese, pois o foco de produzir uma análise das condições históricas,
sociais e cognitivas para a existência científica de um sabe, implica contemplar as
mudanças ou permanências e características de seu domínio epistêmico, através
da dinâmica científica do presente, bem como no diálogo com as dimensões
6 Defendemos que tais barreiras são constituídas através da diversidade lexical, epistemológica e
metodológica estabelecidas no sentido e no significado do fazer científico de um saber.
22
filosóficas, sócio- históricas, geográficas e epistemológicas da Geografia Física
Contemporânea.
Daí a consciência de que a elaboração desta produção trará também
contribuições de ordem prática, porque, na trajetória profissional como professora de
metodologia da pesquisa em Geografia, orientadora de Trabalhos de Conclusão de
Curso - TCC, membro do Comitê Científico do campus IV/UNEB/Jacobina e do
Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos/UNEB, foi possível constatar
práticas científicas e conteúdos diversos que denotavam múltiplas imagens e
situações intersubjetivas de conceber e desenvolver ações com a função de
‘prescrever’, ‘normatizar’ e ‘colonizar’ o fazer científico na ciência geográfica, que
legitima, consolida e subverte determinados subcampos em detrimentos de outros,
fragmentando a ciência geográfica.
Outro fator a ser observado é que as produções intelectuais,
principalmente TCC e IC, só apresentavam padrões e critérios de cientificidade
estabelecidos à luz da racionalidade moderna, exaltação dos procedimentos
técnicos, sem mais reflexões axiológicas (ética e valores), epistemológicas e
metodológicas. Por vezes, o uso da técnica pela técnica ou da teoria pela teoria sem
articulação com a operacionalização dos conceitos, sem o exame da identidade
científica do componente curricular, independentemente da área ou modalidade,
pode estar a serviço de interesses diversos, seja omitindo dados e informações,
seja permanecendo no óbvio ou na mera descrição, desconsiderando a essência da
realidade e do raciocínio geográfico, isso porque não são consideradas as
características e propriedades inerentes à identidade social e científica da Geografia.
Daí, os percursos investigativos trilhados serem configurados numa
espiral dinâmica com encadeamento de autoprodução e reconstrução contínua do ir
e vir das produções intelectuais (seus fragmentos) para a teoria, por meio de etapas
sucessivas, complementares, articuladas entre análise documental e do discurso,
conforme as necessidades oriundas da construção do objeto, utilizando a busca
digital por documentos dos autores e dos coletivos sociotécnicos, disponíveis nas
plataformas digitais oficiais, tais como plataforma lattes, plataforma sucupira,
catálogo de teses e dissertações da Capes, entre outras fontes utilizadas na
investigação.
23
O estudo se constitui num compromisso de produzir conhecimento ético e
científico sobre um fenômeno teórico e empírico, partindo do pressuposto de que o
“ciberespaço”7 se constitui num campo empírico, não como reflexo do ‘espaço real’,
mas se consubstanciando, efetivamente, como um espaço de interação entre os
atores sociais, portando, um “Espaço do saber” continuamente “presente, mas
dissimulado, disperso, transvertido, mesclado, produzindo rizomas aqui e ali.
Emerge por meio de manchas, em pontilhado, em filigrana” (LÉVY, 1999, p. 120),
mas pouco explorado teoricamente na produção científica da Geografia, cuja
relevância informa o potencial para responder à questão que emergiu das
considerações elencadas na construção do objeto de estudo – O que as produções
intelectuais dos programas de pós-graduação em Geografia, na condição de
coletivos sociotécnicos, nos revelam sobre a evolução e o território epistemológico
da Geografia Física Contemporânea no Brasil?
Nessa ótica, esta pesquisa tem como objetivo geral compreender a
evolução e o território epistemológico da Geografia Física contemporânea no país,
através das produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos, à luz dos
fundamentos da Arqueologia do Saber. E como objetivos específicos:
Apontar as circunstâncias que fazem do Território Epistemológico um
fenômeno oriundo das múltiplas contingências que afetam evolução
epistemológica.
Descrever as mudanças, permanências e características que
consubstanciam, nutrem e disseminam o Território Epistemológico da
Geografia Física na Ciência Geográfica brasileira e contemporânea.
Relatar o que as produções intelectuais dos coletivos sociotécnicos nos
revelam sobre a episteme dos TEs na Geografia Física contemporânea, que
consolida sua identidade científica e social.
Para alcançar os objetivos propostos, a composição da tese está
organizada em quatro capítulos, esta introdução e as considerações finais. Uma
estrutura que, através do trânsito dialético entre teoria, empiria e reflexão, contém
7 Ciberespaço, assim como Espaço do saber, são construtos cunhados por Pierre Lévy (1999), na
obra “A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço”.
24
como macroestrutura a apresentação dos fundamentos metodológicos e do
processo de investigação no primeiro capítulo; no segundo, sistematização dos
fundamentos teóricos utilizados e obtidos, através da revisão bibliográfica sobre a
evolução epistemológica do desenvolvimento do conhecimento científico; o terceiro
capítulo caracteriza o cenário epistêmico da modernidade reflexiva e as múltiplas
contingências que contribuíram para a formação dos territórios epistemológicos na
contemporaneidade; o quarto capítulo apresenta os resultados e a análise dos
dados, descrevendo a territorialidade dos programas de pós-graduação em
Geografia - PPGGs no Brasil, que contribuíram para a formação da episteme da
Geografia Física, desvelando a episteme do Território Epistemológico da Geografia
Física.
No entanto, embora cada capítulo tenha uma função na tessitura da rede
de inferências e embates que emergiram das leituras, vivência profissional,
formação , análise e interpretação dos dados coletados no ciberespaço, eles podem
ser lidos de forma independente e estão diretamente relacionados com os objetivos
propostos, e todos estabelecem questionamentos e conexões diretas entre si e com
a tese final, por meio de argumentos, suposições iniciais e de seu papel no conjunto
da obra. Por isso, alertamos que:
A dificuldade no Espaço do saber consiste em organizar o organizador, objetivar o subjetivante. O saber sobre o saber deriva de uma circularidade essencial, originária, inelutável. O conhecimento do conhecimento é, ipso facto, uma transformação do conhecimento, uma perpétua deriva, um pôr-se em situação dinâmica de reativar, reavaliar continuamente. (LÉVY, 1999, p. 163)
Essa é razão pela qual este relato não pode ser concebido como “verdade
absoluta e acabada”, mas como um conjunto de elucubrações e provocações sobre
outras tantas inferências e ‘dados’, que são fluidos, exorbitantes e transcendentes,
características intrínsecas ao “ciberespaço”. Assim, fica a sugestão de que o intento
de entrar de forma mais profunda na temática dos Territórios Epistemológicos e dos
coletivos sociotécnicos no “Espaço do saber” implica uma contínua busca pelas
atualizações dos dados.
Nessa perspectiva, esta produção intelectual teve como desenho básico o
percurso metodológico que passaremos a apresentar.
25
1 Das suposições filosóficas aos percursos da investigação: o
caminho metodológico trilhado
Caminhante, não há caminho, faz-se o caminho ao andar.
António Machado
Tomamos por empréstimo a fala do poeta espanhol António Machado
para introduzir este capítulo por acreditarmos que a Metodologia da pesquisa
utilizada foi uma contínua construção pautada inicialmente por três entendimentos
que balizaram o processo. O primeiro foi o entendimento de que este capítulo
deveria responder como desvelar a evolução e o território epistemológico da
Geografia Física contemporânea do país. Em outros termos, qual o melhor
percurso metodológico para nosso objeto de investigação? Nesse sentido, o intuito
principal deste capítulo é apresentar o desenho metodológico que nos possibilitou
alcançar os objetivos propostos na investigação.
O segundo entendimento que tínhamos foi necessidade de tomar como
referência a articulação entre as suposições filosóficas8 da pesquisadora, a natureza
do nosso objeto de investigação e os procedimentos de investigação. Isso porque
construir conhecimentos científicos implica a contínua reflexão sobre os
pressupostos que orientam a visão de ciência, de método e de realidade, bem como
das várias possibilidades de interpretá-la.
8 Optamos por usar o termo suposição filosófica como bases que sustentam o “conjunto de crenças
básicas que guiam a ação” do pesquisador. Isso porque as suposições filosóficas contemplam as
principais concepções “com orientação geral sobre o mundo e sobre a natureza da pesquisa
defendidas por um pesquisador. E tais concepções são moldadas pela área da disciplina do aluno,
pelas crenças dos orientadores e dos professores em uma área do aluno e pelas experiências que
tiveram em pesquisa. Os tipos de crenças abraçadas pelos pesquisadores individuais com frequência
os conduzirão a adotar em sua pesquisa uma abordagem qualitativa, quantitativa ou de métodos
mistos. (CRESWELL, 2010, p. 28 – 29)
26
E, consequentemente, o terceiro entendimento é que consideramos o
método científico como “um conjunto de concepções sobre a natureza, sobre o ser
humano e sobre o próprio conhecimento, embasando os procedimentos utilizados na
construção do conhecimento científico.” (SPINK; MENEGON, 2004, p. 65). Destarte,
este capítulo introdutório coteja, além das suposições filosóficas que fundamentaram
a pesquisa, descrever os percursos empreendidos no transcorrer da investigação.
1.1 As suposições filosófica
A principal suposição filosófica que norteou os caminhos metodológicos
percorridos nesta pesquisa está diretamente vinculada à concepção de realidade e
do real. Trabalhamos com a concepção de que a realidade é uma construção sócio-
histórica e, simultaneamente cognitiva, na qual, elementos objetivos e subjetivos
existem e se articulam de forma indissociável, contraditória, complementar e
recursiva. Pois homens e mulheres vão de forma imbricada interpretando e
ressignificando o ‘real’ e o ‘ideal’, sendo que o real na contemporaneidade, além de
ser um fenômeno humano, social, espacial, temporal, é também virtual e passível
de interpretação pela compreensão dos elementos objetivos e subjetivos,
intrínsecos às práticas discursivas humanas.
Tomamos como referência que os critérios constituídos para definir
ciência e validar o científico, tais como a existência de “evidências empíricas” ou o
“ideal positivista” de um “método único” capaz de “dar conta do real”, fazem parte da
“perspectiva do empiricismo ontológico”, na qual, segundo Corrêa (2018, p. 300), “o
real se dá a conhecer e que o que devemos fazer é apreendê-lo com nossos
sentidos e informações obtidas com base em diversas fontes”. Em contrapartida:
A adoção de uma postura construcionista implica a ressignificação da relação entre sujeito e objeto, que pressupõe a desfamiliarização da ideia cristalizada de dualidade. Há duas posturas que alimentam essa dicotomia: a) o empirismo (perspectiva exogênica), em que o objeto é a determinação última do conhecimento, sendo o objetivo da ciência a aproximação cada vez mais precisa aos objetos; b) o idealismo (perspectiva endogênica), em que as categorias de entendimentos são constitutivas da mente humana, sendo universais e necessárias para que se chegue ao conhecimento. Em contraste, na perspectiva construcionista, tanto o objeto como o sujeito são construções sócio-históricas: o modo como acessamos a realidade institui os objetos que constituem a realidade. (SPINK; MENEGON, 2004, p. 76)
27
Por isso, este estudo no ensejo de transcender e diferir das concepções
substantivas da tradicional epistemologia tomou como perspectiva epistemológica o
Construcionismo e adotou encaminhamentos diversos, entre os quais destacamos: i)
contempla o ciberespaço ou o virtual como mais uma dimensão do real, assim como
as dimensões espacial e temporal; ii) considera que as produções intelectuais como
referência empírica e, simultaneamente, como práticas discursivas, portadoras de
sentidos explícitos e implícitos, que refletem não só o estilo de pensamento do(s)
autor(es) como também o coletivo de pensamento legitimado no contexto de
produção e publicação; e iii) utiliza percursos e procedimentos metodológicos
diversos e articulados, considerando que o conhecimento científico se constitui
numa construção intelectual, obtido na interlocução dinâmica, complexa e dialética
entre sujeito e objeto do conhecimento, em que o trabalho do pesquisador, além de
descrever, “interpreta o objeto que o informa”, consciente que a interpretação não
nos permite “conhecer em sua plenitude” a realidade. E, por isso, concebe “a
pesquisa científica como uma prática reflexiva e crítica, mas também como uma
prática social”. (SPINK; MENEGON, 2004, p. 65).
1.2 o desenho metodológico
O esforço empreendido foi o de compatibiliza as referências teóricas e
metodológicas, primando pela sintonia entre os elementos da pesquisa e os
procedimentos utilizados, pois, conforme nos alerta Bonin (2001, p. 12), as:
Propostas multimetodológicas devem ser construídas em articulação orgânica com o problema, os objetivos e as problemáticas teóricas da pesquisa. Isto requer assumir efetivamente a tensão entre o objeto teórico e empírico na pesquisa. É neste embate que devem surgir as eleições de métodos e técnicas, assim como o desenho efetivo dos instrumentos de captação dos dados. Estratégias [...] não podem resultar de modismos, da pura e simples reprodução de construções já realizadas, nem do acionamento burocrático de métodos e de técnicas.
Diante da recomendação da autora, optamos por um desenho
metodológico de base qualitativa que dialogou com dados quantitativos9, pela
9 Isso porque “a postura construcionista não trata mais de definir que métodos - quantitativos ou
qualitativos – têm mais possibilidades de traduzir como são de fato as coisas. Ambas as metodologias, quantitativas e qualitativas, produzem versões sobre o mundo. A opção pela vertente
28
pesquisa descritiva e, simultaneamente, interpretativa dos sentidos construídos, e
por procedimentos que conjugaram um desenho multimetodológico em três
percursos complementares, recursivos e articulados.
No primeiro percurso, com o intuito de responder às questões
norteadoras: o que a evolução epistemológica do desenvolvimento do conhecimento
científico nos revela na contemporaneidade sobre o seu território epistemológico? E
por que a modernidade reflexiva, através das múltiplas contingências, provocou a
ressignificação científica? Optamos como procedimentos a Revisão Bibliográfica,
considerando que esta é reconhecida como estado da arte e tem como intuito situar
o estado atual do conhecimento sobre a temática (evolução epistemológica),
contribuindo para a construção do objeto de investigação, através da sistematização
e do diálogo com as teorias já produzidas. No tocante aos resultados obtidos neste
percurso, nós os apresentamos nos dois primeiros capítulos da tese.
O segundo percurso considera a necessidade de responder: como a
territorialidade dos programas de pós-graduação em Geografia, através das redes
discursivas consolidam, nutrem e propagam territórios epistemológicos na ciência
geográfica contemporânea? Como a evolução epistemológica na modernidade
reflexiva repercutiu no processo de formação dos Territórios Epistemológicos da
Geografia Física no Brasil? E quais as ligações evolutivas oriundas dessa
territorialidade? No esforço de elaboração de uma proposta conceitual para o
construto científico Território Epistemológico, à luz dos fundamentos teóricos
estabelecidos pelo diálogo com as proposições teóricas, conceituais e
metodológicas da “Arqueologia do saber10”, de Foucault, estabelecemos com os
procedimentos para a coleta dos dados os fundamentos da Análise Documental,
isto, considerando que:
O documento constitui, portanto, uma fonte extremamente insubstituível em qualquer reconstituição referente a um passado relativamente distante, pois não é raro que ele represente a quase totalidade dos vestígios da atividade humana em determinadas épocas. [...] ele permanece como o único
qualitativa em pesquisa tem talvez o mérito de tornar mais claros [...] os problemas e possibilidades de dar sentido ao mundo.” (SPINK; MENEGON, 2004, p. 78) 10
Isso porque, conforme nos aponta Portocarrero (2002, p. 48), “A história das problematizações se realiza por uma Arqueologia dos saberes e de sua integração a uma genealogia dos poderes, que permite traçar suas práticas. A história arqueológica permite delinear a forma das problematizações por meio da pesquisa do surgimento dos saberes, explicitando o nível do discurso, ao passo que a genealogia remete à prática em que se exercem as relações de poder”.
29
testemunho de atividades particulares ocorridas num passado recente. O documento permite acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social. [...] graças ao documento, pode-se operar um corte longitudinal que favorece a observação do processo de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos, conceitos, conhecimento, comportamentos, mentalidades, práticas etc., bem como o de sua gênese até os nossos dias. (CELLARD, 2008, p. 295)
Nosso ponto de vista coaduna com a fala de Cellard (2008), além de
elucidarmos a relevância do ‘documento’ na condição de prática discursiva, ele
apresenta o potencial para nos revelar o estilo de pensamento de seu autor e,
simultaneamente, o coletivo de pensamento legitimado num dado contexto
geográfico, social e histórico, consequentemente, fazer emergir as ligações
evolutivas.
Nessa ótica, a estratégia de coleta foi feita por busca digital em
documentos de domínio público, disponibilizados pelos programas de pós-
graduação em Geografia – PPGGs (nos periódicos on-line) e de seus atores sociais
(doutores), considerando que tais produções intelectuais (artigos e capítulos de
livros, entre outras) são práticas discursivas que produzem sentido e nos remetem
às regularidades no modo-de-ser-ver-perceber-agir do sujeito e do coletivo, além de
que:
Os documentos de domínio público são produtos sociais tornados públicos. Eticamente estão abertos para análise por pertencerem ao espaço público, por terem sido tornados públicos de uma forma que permite a responsabilização. Podem refletir as transformações lentas em posições e posturas institucionais assumidas pelos aparelhos simbólicos que permeiam o dia a dia ou, no âmbito das redes sociais, pelos agrupamentos e coletivos que dão forma ao informal, refletindo o ir e vir de versões circulantes assumidas ou advogadas. Para os grupos profissionais, situados simultaneamente no institucional e no cotidiano, o mundo das publicações é igualmente rico, permitindo acesso às coalizões de pensamento e diálogo que denominou, [...] a partir de sua análise sociocultural. (P. SPINK, 2004, p. 136)
A perspectiva que adotamos e que converge com o ponto de vista do
autor é que os documentos de domínio público são cotejados por redes discursivas
peculiares que nos remetem a um estrato específico da sociedade, no nosso caso, a
comunidade científica. E seus fragmentos (ou vestígios conforme dispõe a
arqueologia) nos revelam, através dos elementos explicativos e explanatórios
utilizados pelo autor, seus fundamentos (pressupostos teóricos e metodológicos).
Daí, a razão por que os fragmentos foram utilizados como principal unidade desta
30
análise, bem como fundamentos da visibilidade11 para a “explicitação do processo
de interpretação12” e “elemento básico da produção de sentidos” (SPINK; LIMA,
2004, p. 104), Destarte, nos possibilitaram identificar as ligações evolutivas, através
“dos ditos” (sentidos explícitos – termos, conceitos etc.) e dos “não ditos” (sentidos
implícitos – pressupostos, concepções etc.), que permeiam e informam a
legitimidade discursiva dos coletivos de pensamento na contemporaneidade, isso,
tomando como referência a questão – Quais as materialidades discursivas
(fragmentos) aparecem nessa episteme? E estas materialidades nos permitiram
construir as categorias específicas e derivadas (ligações evolutivas) que foram
utilizadas na análise das produções intelectuais (resumos das teses e dissertações).
Portanto, as categorias específicas e derivadas foram construídas segundo as
afinidades (similitudes) de significação que emergiram dos fragmentos das
produções intelectuais dos autores/obras (documentos públicos) analisados nesse
segundo percurso, cujos resultados apresentamos na primeira parte do quarto
capítulo quando abordamos a territorialidade dos coletivos sociotécnicos .
No terceiro percurso investigativo, o foco concentrou-se na aplicação da
proposta conceitual de território epistemológico, além de utilizarmos como estratégia
para coleta dos dados os programas computacionais13 scriplattes e Iramuteq,
levando em consideração suas potencialidades e limitações para obtenção,
mineralização e visibilidade dos dados, articulamos elementos da Análise do
Discurso - AD para estabelecermos a interlocução entre o referencial teórico-
metodológico utilizado e as produções intelectuais (teses e dissertações) da
Geografia Física, pela análise dos resumos das produções intelectuais, disponíveis
na biblioteca digital do catálogo de teses e dissertações da Capes. Um corpus que
teve seu recorte temporal de 2012 a 2018, período disponível na plataforma.
11 Para Spink e Lima (2004, p. 104), a visibilidade é concebida como pressuposto básico da
intersubjetividade, como estratégia para assegurar o “rigor” científico da interpretação. 12
Tomamos a fala de Spink e Lima (2004) também para indicar que defendemos o ponto de vista de que: “A interpretação emerge, dessa forma, como elemento intrínseco do processo de pesquisa. Não haveria, assim, momentos distintos entre o levantamento das informações e a interpretação. Durante o percurso da pesquisa, estamos imersos no processo de interpretação.” (SPINK; LIMA, 2004, p.105)
13 Caso contrário, seriam inviabilizadas a detecção, a visualização e a análise dos
dados/informações no ciberespaço, considerando o volume e fluxo de atualização contínua dos mesmos.
31
Nessa ótica, além da Análise de Documentos que apontamos no
percurso anterior, utilizamos a Análise do Discurso14, cuja construção dos dados foi
conduzida em quatro etapas, sempre articuladas e complementares na interpretação
dos fragmentos encontrados. Na primeira etapa, considerando a representatividade
intencional, de máxima heterogeneidade, num universo de 64 Programas de Pós-
Graduação em Geografia no país, estabelecemos que a representatividade seria
determinada em função dos seguintes critérios:
i) incluir os cinco primeiros cursos de pós-graduação em Geografia
criados no Brasil – USP (1971), UFRJ (1972), UFPE(1976),
UNESP(1977), UFSC (1985);
ii) após eliminar os PPGGs incluídos no item anterior, incluir os cinco
coletivos sociotécnicos com maiores índices de produção intelectual
em Geografia Física, segundo a plataforma de teses e dissertações da
Capes – UFMG (277), UFRGS (197), UFPR (165), UECE (138), UFU
(135).
iii) observar a inclusão de, no mínimo, 01 PPGG de cada região do país,
estabelecendo como prioridade para aos menores índices de produção
intelectual – UFF (76), UFG (75), UFBA (37), UFPA (36), UFRN (36).
Com isso, ficaram 15 PPGGs e passamos para a segunda etapa, que
consistiu no levantamento nos sites dos programas para rastrear os nomes dos
professores que atuavam nos respectivos programas. Dessa etapa, conseguimos
uma relação com os nomes de 142 docentes.
Na terceira etapa, com o intuito de montar uma robusta base empírica
para o corpus de análise da produção intelectual dos coletivos, recorremos à
plataforma Catálogo de teses e dissertações15 da Capes, no período de julho a
14 Para Foucault (2014, p. 143), “A análise do discurso está colocada, na maior parte do tempo, sob o
duplo signo da totalidade e da pletora. Mostra-se como os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros, se organizam em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época. Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa. Substitui-se, assim, a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam “querido dizer”, não apenas em suas palavras e seus textos, seus discursos e seus escritos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem”.
15 http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
32
agosto de 2018. Conscientes da necessidade de garantir uma maior
representatividade do corpus e contemplar tanto produções mais antigas como
recentes, atentamos para o recorte temporal disponível da produção intelectual de
cada PPGG, com maior ou menor variação entre 1 a 2 anos de 2012 a 2018,
cotejando a totalidade de 871 títulos e resumos das teses e dissertações dos
PPGGs que disponibilizaram estas informações nos links “detalhes” da plataforma
digital.
No primeiro rastreamento digital automatizado, utilizando como parâmetro
as obras inscritas (registradas) como de “Geografia Física”, obtivemos como
resposta o total de 797 produções, 435 dissertações e 362 teses. Estas produções
estavam distribuídas entre 192 orientadores do PPGGs, sendo que os 5 primeiros
deles foram Jurandir Luciano Sanches Ross (53), Magda Adelaide Lombardo (47),
José Bueno Couti (38), Adailson Avasi de Abreu (33), Ailton Luchiari (26). As
universidades com maior número de produções intelectuais inscritas foram USP
(697), UFMG (14), UFRJ (11), UNICAMP (10), UECE (8). Das 25 áreas de
concentração, sendo “Geografia Física” (151), Natureza e produção do espaço (5),
Análise Ambiental (4), Amazônia: território e ambiente (3). Resultado que foi aferido
durante dez dias seguidos com pequenas variações de 1 ou 2 produções intelectuais
para mais.
No entanto, por consideramos que os dados obtidos com a consulta
(automática do sistema de busca) não apontaram uma quantidade significativa,
procedemos a um segundo rastreamento, utilizando com indicador “Geomorfologia”,
e tivemos como resultado 1.652 produções, distribuídas em 192 programas de pós-
graduação, sendo 10 deles de Geografia. Quando inserimos o filtro “programas de
pós-graduação em geografia”, o total foi reduzido para 815 obras, número superior
às produções classificadas como de Geografia Física, curiosamente, todas oriundas
dos PPGGs, e só 311 destas produções estavam simultaneamente inscritas como
de Geomorfologia e de Geografia Física, e alguns dos mais citados
professores/orientadores foram Jurandyr Luciano Sanches (37), Cristina Helena
Ribeiro Rocha Augustin (22), Cleide Rodrigues (21), Adilson Avansi Abreu (15) e
Silvio Carlos Rodrigues (13), todos inscritos como professores permanentes nos
PPGGs. As cinco áreas de concentração mais indicadas foram “Geografia Física”
(65), “Análise Ambiental” (33), Dinâmica das Paisagens (23) e “Análise das
33
paisagens e Dinâmica Territorial” (14). Das universidades: USP (179), UFMG (106),
UFRJ (46), UNESP/RIO CLARO (36), UNICAMP (32). Portanto, das 815 obras, 394
foram agregadas às 792 produções que fariam parte do corpus de investigação.
Assim como na busca anterior, no transcorrer dos dez dias de observação, a
variação foi de 1 a 2 obras para mais. Daí é possível inferir com tais resultados que
os docentes dos PPGG consideram a Ciência Geográfica uma Geociências, o que
foi confirmado no terceiro rastreamento.
No terceiro rastreamento, utilizando como descritor “Geologia”, obtivemos
como resultado 7.752 produções oriundas de 310 programas de pós-graduação, 9
deles de Geografia. Dos PPGGs, obtivemos 352 produções, sendo que 198 delas
estavam simultaneamente classificadas como de Geologia e de Geografia Física,
distribuídas entre 206 orientadores, sendo eles: Jarbas Bonetti Filho (23), Norberto
Olmiro Horn Filho (22), Deocleciano Bittencout Rosa (7) e Antônio José Teixeira
Guerra (5). Das 43 áreas de concentração, as 4 mais inscritas foram “utilização e
conservação de recursos naturais” (32), “Geografia física” (17), “Análise ambiental e
territorial do cone sul” (6) e “Espaço sociedade e ambiente” (6). Das universidades,
UFSC (90), USP (40), UFRJ (19), UFMG (15) e UFRS (14). Desse acervo,
agregamos ao corpus 154 produções. A variação durante os dez dias foi uma média
de 2 a 3 obras para mais.
Em síntese, com o rastreamento digital (sistema de busca automático),
ficou perceptível:
i. A superioridade quantitativa da produção intelectual de Geologia e
Geomorfologia, respectivamente, em relação à Geografia Física;
ii. 73% das produções intelectuais dos PPGGs são catalogadas na
plataforma Capes como pertencentes à área de conhecimento
“Geociências”, 15% pertencentes à área de conhecimento “Geografia”
e 12% aparecem, simultaneamente, em ambas as áreas.
iii. 80% desta produção eram dos PPGGs de Geografia Física da USP,
isso porque o “sistema de busca” da plataforma só informava aquelas
produções que tinham no seu conteúdo a expressão “Geografia
Física”, sendo que muitas, inclusive, não tinham qualquer conteúdo
atribuído à Geografia Física.
34
iv. 75% dos 142 docentes inscritos nos sites dos PPGGs como de
orientadores de Geografia Física não aparecem na coleta das
produções.
v. E, por fim, o corpus das 1.240 produções intelectuais não indicava a
representatividade do fenômeno que seria investigado, o que implicou
a necessidade de outra forma de obter os dados que fossem
representativos.
Diante de tais resultados e com o intuito de evitar possíveis vieses,
partimos para a busca orientada (uso de filtros) como procedimento de coleta dos
dados. No banco de teses e dissertações da Capes, para cada um dos 15 PPGGs,
fizemos os seguintes procedimentos:
i. Usar o descritor “Geografia” (sem a designação de Física);
ii. Aplicação dos filtros, indicando a “Universidade ‘tal’” e “programa de
geografia ...”, com isso buscava-se especificamente a produção
intelectual de cada um dos PPGGs;
iii. Refinamos a busca usando como filtro os nomes dos
professores/orientadores inscritos pelos coletivos sociotécnicos como
atores sociais da Geografia Física.
Esses procedimentos nos permitiram obter o retorno quantitativo de 7.304
produções intelectuais de Geografia (antes de aplicar o terceiro filtro); um total de
2.206 produções intelectuais de Geografia Física (ou que foram orientadas pelos
atores sociais deste subcampo disciplinar), sendo que destas produções apenas 871
continham o link para os “detalhes” (isto é, continham os dados disponíveis para
análise – o resumo) e apresentavam o recorte temporal de 2012 a 2018. Veja no
Mapa 01 como esse quantitativo está distribuído por PPGGs, considerando o recorte
temporal.
35
Mapa 1- Representação dos quantitativos da produção intelectual dos PPGGs, de 2012 a 2018
Destarte, o corpus que serviu de base descritiva de análise e suporte
para a construção da segunda parte do quarto capítulo da tese foi composto
inicialmente por 871 produções (títulos e resumo), o que corresponde a 39,5% de
um universo de 2.206 produções, registradas e classificadas pelos coletivos
sociotécnicos como de Geografia Física na plataforma digital da Capes, no recorte
temporal de 2012 a 2018.
Na quarta etapa, de posse do corpus, partimos para a análise e a
interpretação. Inicialmente a sensação foi de pânico diante da quantidade de dados
que pareciam não ter qualquer conexão. Além disso, ficou evidente que 32% dos
resumos não continham dois ou mais dos elementos indicados nas normas da ABNT
(628/2013) para o resumo informativo (finalidade, objetivos, metodologia e
resultados).
36
1.3 A análise das produções intelectuais
Frente à nossa vinculação teórico-metodológica à luz da perspectiva
epistemológica construcionista e da Arqueologia do Saber, procuramos nestas
produções as orientações para proceder com a análise dos resumos das teses e
dissertações, e a questão que suscitou de imediato foi: Que fragmentos dos
resumos deveriam ser considerados para compreender as mudanças
(descontinuidades), permanências (continuidade) e características, na condição de
ligações evolutivas – relações entre fragmentos que poderiam ser legitimamente
descritas como evolução epistemológica da Geografia Física na episteme
contemporânea deste saber? E como analisá-los? Para isso, levamos em
consideração que:
O emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura, de limiar, de limite, de série, de transformação coloca, a qualquer análise histórica, não somente questões de procedimentos, mas também problemas teóricos. [...]. Há em primeiro lugar, um trabalho negativo a ser realizado: libertar-se de todo um jogo de noções que diversificam, cada uma à sua maneira, o tema da continuidade. Elas, sem dúvida, não têm uma estrutura conceitual bastante rigorosa; mas sua função é precisa. Assim é a noção de tradição: ela visa a dar uma importância temporal singular a um conjunto de fenômenos, ao mesmo tempo sucessivos e idênticos (ou, pelo menos, análogos); permite repensar a dispersão da história na forma desse conjunto; autoriza reduzir a diferença característica de qualquer começo, para retroceder, sem interrupção, na atribuição indefinida da origem; graças a ela, as novidades podem ser isoladas sobre um fundo de permanência, e seu mérito transferido para a originalidade, o gênio, a decisão própria dos indivíduos. O mesmo ocorre com a noção de influência, que fornece um suporte – demasiado mágico para poder ser bem analisado – aos fatos de transmissão e de comunicação; que atribui a um processo de andamento causal (mas sem delimitação rigorosa nem definição teórica) os fenômenos de semelhanças ou de repetição; que liga, a distância e através do tempo – como por intermédio de um meio de propagação – unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias. Assim também ocorre com as noções de desenvolvimento e de evolução: elas permitem reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos; relacioná-los a um único e mesmo princípio organizador; submetê-los ao poder exemplar da vida (com seus jogos de adaptação, sua capacidade de inovação, a incessante correlação de seus diferentes elementos, seus sistemas de assimilação e de trocas); descobrir, já atuantes em cada começo, um princípio de coerência e o esboço de uma unidade futura; controlar o tempo por uma relação continuamente reversível entre uma origem e um termo jamais determinados, sempre atuantes. (FOUCAULT, 2014, p. 25 -26)
Na ótica apontada pelo autor, o principal foco transita entre identificar,
analisar e descrever o original e o regular quando o saber-fazer aparece (a origem),
até quando permanece (regularidades) ou quando deixa de aparecer (distinções);
nas ligações entre saberes-fazeres que estabeleceram as condições (sociais,
37
históricas, cognitivas) para a possibilidade de sua existência (materialização) em
diferentes especificidade, temporalidade e espacialidade. Diante de tais proposições,
a estrutura da análise feita na investigação contemplou as seguintes características:
I) as produções intelectuais são práticas discursivas16 e estas práticas são produtos
da articulação intrínseca entre as condições sociais, históricas e cognitivas (força
das evidências, da razão e das motivações pessoais), por isso, atuam como partes
constitutivas do próprio contexto de produção; II) as práticas discursivas são
permeadas por estilos de pensamento dos autores, assim como por pensamentos
coletivos informados e legitimados pela comunidade científica; III) não é nosso
intuito apenas interpretar o conteúdo pelo conteúdo, mas descrever e elucidar os
sentidos e o significados das mudanças, permanências e características
(similaridades e distinções) que contribuíram para tecer as redes de significações
discursivas legitimadas e apropriadas, isto é, a episteme do território epistemológico.
As seguintes etapas foram percorridas no transcorrer da análise e
interpretação dos dados construídos na investigação. Na primeira etapa,
procedemos à análise exploratória inicial pela leitura flutuante de todos os resumos,
quando constatamos que a principal regularidade na estrutura dos resumos foi o
referente, objetivo geral (primário), frequentemente de forma explícita, o que
facilitou sua identificação, além de que na sua configuração poderíamos identificar o
objeto (o que), os propósitos da investigação e a temática principal. A segunda
regularidade foi o referente - procedimentos utilizados na investigação - que nos
permitiu identificar as perspectivas epistêmicas das produções intelectuais.
Na segunda etapa de análise, uma vez que nosso intuito ia além de
produzir formas de visualização dos elementos explícitos e implícitos (e suas
articulações) no cerne das produções intelectuais, pois buscávamos descrever a
episteme do Território Epistemológico da Geografia Física, utilizamos também as
orientações de Martins e Cleps Junior (2013), Portocarrero (2002) e de Spink (1998),
visto estes autores trabalharem com os fundamentos da Arqueologia do Saber.
Passamos a considerar que:
16 No âmbito deste estudo, tomamos as produções intelectuais (teses, dissertações, artigos, relatórios,
entre outros) com práticas discursivas no contexto da dinâmica científica. Sendo prática discursiva, segundo a perspectiva de Foucault, um conjunto de circunstâncias históricas produzidas em determinado espaço-tempo que “definiram, em dada época e para determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2014, p. 143).
38
I) De acordo com Spink (1998), uma “análise centrada na totalidade do
discurso é demorada, [...] estes estudos têm utilizado poucos sujeitos,
[...], o poder de representar o grupo de indivíduo”, com isso e
considerando a necessidade de examinar a “materialidade discursiva”
ou o texto materialmente considerado. Daí, tomamos como unidade de
análise os fragmentos dos textos (fossem eles na forma de frase,
enunciado, palavras e conceitos, desde que significativos).
II) Diante do entendimento de que “por detrás de uma geografia material,
há sempre uma geografia discursiva [...]”, conforme nos apontam
Martins e Cleps Junior (2013, p. 70), fizemos o tratamento dos
resumos utilizando o software Iramuteq para captar na totalidade do
corpus, por instituição, as palavras com maior frequência,
acompanhado do procedimento recursivo de leitura seletiva no corpus
(os resumos), para elucidar “as condições de existência” do saber-
fazer, pois “o discurso é um edifício de longa duração construído dentro
da continuidade histórica” (MARTINS; CLEPS JUNIOR, 2013, p. 71).
Uma vez que o discurso é:
[...] um fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua temporalidade, não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo. (FOUCAUT, 2014, p. 143)
E, por isso, faz parte de uma rede de significações, que conecta estilos de
pensamento a coletivos de pensamento e, por isso, é simultaneamente contínuo e
descontínuo, é permeado por rupturas e apagamentos, avanços, retornos e
reinterpretações.
Nesse sentido, tornou-se imprescindível na atividade de análise identificar
a ligações evolutivas (cotejadas na evolução epistêmica da territorialidade dos
coletivos) e descrever a cada fragmento selecionado o porquê dessa materialidade
discursiva nesse contexto, o que, segundo Martins e Cleps Junior (2013, p. 71),
“trata de indagar [...] os campos associados ao discurso, a função e o status dele.
Enfim o discurso é a materialidade dada, mas é compreendido no tecido de relações
que o determinam.” E, ainda, frente ao alerta de que:
39
A arqueologia faz também com que apareçam relações entre as formações discursivas e domínios não discursivos (instituições, acontecimentos políticos, práticas e processos econômicos). Tais aproximações não têm por finalidade revelar grandes continuidades culturais ou isolar mecanismos de causalidade. Diante de um conjunto de fatos enunciativos, a arqueologia não questiona o que pôde motivá-los [...]; não busca tampouco encontrar o que neles exprime [...] ela tenta determinar como as regras de formação de que depende – e que caracterizam a positividade a que pertence – podem estar ligadas a sistemas não discursivos: procura definir formas específicas de articulação. (FOUCAULT, 2014, p. 198)
Portanto, estes foram os fundamentos teóricos e metodológicos, bem
como o processo de construção dos dados que apresentaremos ao longo dos
próximos capítulos.
40
2 Evolução epistemológica do desenvolvimento científico:
contextualizando as ligações evolutivas.
A produção do conhecimento não é um empreendimento isolado. É uma construção coletiva da comunidade científica, um processo continuado de busca, no qual cada nova investigação se insere, complementando ou contestando contribuições anteriormente dadas ao estudo do tema. A proposição adequada de um problema de pesquisa exige que o pesquisador se situe nesse processo, analisando criticamente o estado atual do conhecimento em sua área de interesse, comparando e contrastando abordagens teórico-metodológicas utilizadas e avaliando o peso e a confiabilidade de resultados de pesquisa, de modo a identificar pontos de consenso, bem como controvérsias, regiões de sombra e lacunas que merecem ser esclarecidas. (ALVES-MAZZOTTI, 2012, p. 43)
Seguindo a perspectiva indicada por Alves-Mazzotti (2012) na epígrafe, a
inserção da revisão bibliográfica numa produção intelectual, além de situar o estado
atual das teorias sobre a temática, auxilia na construção do objeto de investigação
pela contextualização do problema, elucida a definição dos construtos e expõe os
fundamentos teórico-metodológicos que serão utilizados no transcorrer desta tese.
É a partir dessa ótica que iremos desvelar o que a evolução
epistemológica do desenvolvimento do conhecimento científico nos revela na
contemporaneidade sobre seu território epistemológico e, no “caminhar” da
construção do objeto, apresentaremos os pressupostos teóricos que guiam nossos
argumentos na defesa desta tese.
2.1 A elucidação conceitual
Inicialmente, iremos elucidar os construtos essenciais e as premissas que
defendemos para a compreensão do capítulo e, consequentemente, da tese. A
primeira elucidação é que, no levantamento inicial sobre desenvolvimento do
conhecimento científico, foi possível constatar a legitimidade discursiva e a
41
fertilidade teórica da temática17. Segundo Aguiar (1991, p. 7), “Diversos organismos
voltados à problemática [...] têm dedicado esforço para a elaboração de conceitos e
métodos [...] em nível de países, para acompanhamento [...] em âmbito nacional e
para permitir análises comparativas” entre eles. Basicamente, são estudos
estatísticos voltados à questão da produtividade da ciência e da tecnologia, sua
relação com a sociedade e ainda sobre os campos científicos ou acadêmicos. No
entanto, esse não é o nosso foco, pois estabelecemos como prioridade a evolução
epistemológica, uma vez que:
O desenvolvimento do conhecimento científico, em sua trajetória de avanços e retrocessos teóricos e metodológicos, traz as marcas daquilo que Bachelard (1996) denominou “rupturas epistemológicas” e [...] forneceram aos filósofos e historiadores da ciência os principais problemas relacionados à produção do conhecimento científico na modernidade. Isso devido à necessidade de encontrar as condições do conhecimento seguro, [...] antídotos para as já desgastadas relações entre sujeito-objeto. Essa busca gerou uma verdadeira institucionalização do embate teórico e ideológico no interior das grandes áreas do conhecimento e de suas respectivas comunidades científicas. A história da ciência, no entanto, não se reduz à sucessão de “rupturas epistemológicas” tampouco à arena dos debates teóricos, às vezes tão mal frequentada por pressupostos que visam, arbitrariamente, a instituir demarcações que garantam legitimidade discursiva, domínio epistemológico e hierarquia entre áreas do conhecimento. (GODOY, 2011, p. 68)
Nossa premissa é que quando “os avanços”, na condição de mudanças
e/ou permanências dos fundamentos de um saber, que lhe garante possibilidade de
existência, acontecem principalmente no “domínio epistemológico” de uma
temática18, caracterizam-se com o que denominamos de “desenvolvimento científico
de uma temática”. Em suma, tomamos a temática do desenvolvimento do
conhecimento científico ou dinâmica científica19 como evolução epistemológica da
possibilidade de existência, ampliação e delimitação de determinado ‘saber’20. O
17 Utilizando como indicador “desenvolvimento do conhecimento científico” na plataforma on-line do
catálogo de teses e dissertações da Capes (https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/), obtivemos como retorno 1.141 produções, sendo 726 dissertações e 283 teses de doutorado, num recorte temporal de 1996 a 2018. Destas produções, apenas 10 fazem parte da produção intelectual da Geografia, pertencentes às seguintes áreas de concentração: Desenvolvimento regional (6); Geografia e gestão do território (1); Geografia Humana (1); Organização e Gestão do território (1) Regionalização e análise regional (1). Portanto, nenhuma abordava especificamente a temática na perspectiva do desenvolvimento do conhecimento científico, nem na perspectiva da Geografia Física. 18
Temática é o conjunto de ideias que consolidam a delimitação e a designação atribuída à positividade de um saber – fato científico. 19
Doravante, no âmbito desta tese, desenvolvimento científico - DC, dinâmica científica - DC ou evolução epistemológica serão considerados sinônimos. 20
O “saber” considerado como temática de investigação ou “conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, mais ou menos sistematicamente organizados e suscetíveis de serem
42
que, conforme nos aponta Godoy(2011), lhe garante “legitimidade discursiva”
perante uma comunidade científica, “domínio epistemológico” e um lugar na
“hierarquia entre áreas de conhecimento”. Defendemos que a evolução
epistemológica é estabelecida por “ligações evolutivas” (FLECK, 2010), ou seja, por
elos que levam à continuidade (de fundamentos, práticas, teorias, métodos etc.) e
descontinuidade (rupturas entre ideias).
As ligações evolutivas frequentemente tomam a forma de contribuições,
influências, críticas, controvérsias, contingências e demandas, sejam de fontes
históricas (eventos, acontecimentos), sociológicas (interações, consensos e
embates) ou cognitivas (a força das evidências, razões, natureza do objeto e das
motivações pessoais). Estas ligações afetam a evolução epistemológica de uma
temática, ora o seu movimento (fluxo, ritmo e/ou sentido), ora a extensão
(abrangência), ora denominação (novas especialidades). O que pode acontecer
através de novas descobertas, aproximações com outros saberes ou campos
disciplinares, resistências às inovações, introduções de novas ideias, abordagens ou
técnicas, associações, germinações, retomadas e reinterpretações de estilos de
pensamentos ou de coletivos de pensamento legitimados.
No Quadro 01, cotejamos fragmentos da obra “Epistemologia” de
Bachelard (2006), que, acreditamos, ilustram muito bem o que defendemos como
evolução epistemológica, que coaduna com a concepção do autor. No Fragmento
01, o autor, ao problematizar a questão das fronteiras epistemológicas “rígidas”
(delimitações temáticas e hierarquia entre as ciências) dos saberes nos parâmetros
de um quadro de referência único, além de reconhecer a existência de temáticas
(“conhecimento científico”) que transcendem fronteiras disciplinares rígidas, ou a
impossibilidade de enquadramento dessas temáticas no padrão disciplinar, aponta o
desenvolvimento do conhecimento científico como fenômeno, colocando em xeque o
pressuposto que acata a evolução epistemológica como algo naturalizado (“regular”
e “orgânico”), progressivo e linear. Para Bachelard (2006), essa concepção faz
parte de uma filosofia da ciência clássica (empirismo lógico) que não permite
transmitidos por um processo pedagógico de ensino. Neste sentido bastante lato, o conceito de saber poderá ser aplicado à aprendizagem de ordem prática (saber fazer, saber técnico...) e, ao mesmo tempo, às determinações de ordem propriamente intelectual e teórica. É nesse último sentido que tomamos o termo ‘saber’.” (JAPIASSU, 1986, p. 15)
43
desvelar as múltiplas conexões (redes de significações) que o “novo espírito
científico” potencializa.
No Fragmento 02, Bachelard (2006) ainda nos revela que a essência da
evolução epistemológica é iniciada pela ruptura entre o saber de senso comum e o
científico, quando acontece a produção das “regiões epistemológicas” – um domínio
racional das ideias, um espaço imaterial (simbólico), permeado de elementos
subjetivos. Aponta, também, a existência das (pré)ideias dispersas, antes de
transformá-las em fato científico, e a “descoberta” como um elo evolutivo.
Quadro 1- Fragmentos do livro “Epistemologia” de Bachelard
Fragmento 01 – A evolução epistemológica (2006, p. 23)
Terá o conceito de limite do conhecimento científico um sentido absoluto? Será mesmo possível traçar as fronteiras do pensamento científico? Estaremos nós verdadeiramente encerrados num domínio objetivamente fechado? Seremos escravos de uma razão imutável? Será o espírito uma espécie de instrumento orgânico, invariável como a mão, limitado como a vista? Estará ele ao menos sujeito a uma evolução regular em ligação com uma evolução orgânica? Eis muitas perguntas, múltiplas e conexas, que põem em jogo toda uma filosofia e que devem dar interesse primordial ao estudo dos progressos do pensamento científico.
Fragmento 02 – As regiões epistemológicas (2006, p. 33 e 36)
As regiões do saber científico são determinadas pela reflexão. Não as encontraremos delineadas numa fenomelogia de primeira apreciação. Numa fenomenologia de primeira apreciação, as perspectivas são afectadas por um subjetivismo implicito, que teriámos de precisar se pudessemos trabalhar um dia na ciência do sujeito cioso de cultivar os fenómenos subjetivos, [...] Que os factos heteróclitos recebem o seu estatudo de factos científicos. Que a Terra gira é, pois, uma ideia antes de ser um facto. Tal facto não tem primitivamente antes de ser um facto. Tal facto não tem primitivamente nenhum traço empírico. É necessário colocá-lo no seu lugar, num domínio racional de ideias, para ousar afirmá-lo. É necessário compreendê-lo para apreender.
Fonte: Bachelard (2006).
Ainda nessa mesma perspectiva, tem-se a “arena” ou “campo” (GODOY,
2011) onde acontece o “domínio epistemológico” ou “Região epistemológica” de
legitimação discursiva e institucionalização teórica e metodológica (BACHELARD,
2006), que transformam temáticas em “facto científico” e dão o tom do que vamos
44
considerar como “Território Epistemológico” e sua constituição, nossa segunda
elucidação.
Trabalhamos com a acepção de que o TE é, de forma simultânea e
coimbricada, um espaço imaterial e relacional; uma metáfora científica, tomada da
ciência geográfica em função da sua conflitualidade, considerando que “a produção
do território imaterial parte de uma ideia situada tanto num ponto no estilo de
pensamento, que é um espaço imaterial, quanto num ponto de espaço geográfico,
que é o território material.” (FERNANDES, 2014, p.41), portanto, uma construção
conceitual que funciona como texto e contexto de atuação da evolução
epistemológica. Perspectiva que se aproxima do construto Territórios
Paradigmáticos, pois esses:
[...] são textos e ideias bem definidos, rigorosamente demarcados no campo do saber, e que não se limitam ao abstrato, porque são propositivos para a transformação da realidade. Não há textos incógnitos: todos representam posturas teórico-políticas e devem ser analisados como tal. Infelizmente, a maior parte dos autores despreza os métodos e os paradigmas, embora não possam – nunca – estar fora deles. (FERNANDES, 2014, p.42)
A terceira elucidação refere-se à episteme21 como conexões que
exprimem “os grandes discursos”, legitimados e apropriados pela própria literatura
na área, ou seja, a rede de significações que compõe o movimento intelectual22 do
pensamento coletivo sobre uma temática. Pois de acordo com Foucault, episteme
está relacionada “aos códigos fundamentais de uma cultura, os que regem sua
linguagem, seus esquemas perceptivos, seus intercâmbios, suas técnicas, seus
valores, suas práticas e as teorias, [...]”; são também as “relações que existiram em
uma dada época entre os diferentes domínios do saber, [...] a homogeneidade no
modo de formação discursiva.” (FOUCAULT, 2007, p. 11-12). Em suma, episteme é
uma rede discursiva que conecta pressupostos filosóficos, práticas, saberes,
funcionando como uma base dos saberes empíricos e teóricos, vinculados pelas
determinações temporais e espaciais que fundamentam um campo científico e
21 Segundo Haracenko e Gonçalves Junior (2015, p. 21), “a palavra episteme é encontrada nas
bibliografias ora com acento circunflexo, ora com agudo e também sem acento. Optamos, nesse texto, por deixá-la conforme foi encontrada nas referências citadas. Todavia, a professora Raimone Fagundes nos esclarece que ‘o grego não tem acento, tem marcas de duração, sílabas breves ou longas. Para a tradução, é melhor seguir as normas de acentuação gráfica da língua portuguesa, em que paroxítonas terminadas em ‘e’ não são acentuadas”. 22
Para Claval (2013 p. 13), “a ideia de movimento intelectual conceitualiza assim a noção de contexto: é o conjunto da vida intelectual de uma época que é avaliado; o enfoque tem da mesma forma uma dimensão pluridisciplinar”.
45
acadêmico e lhe concede legitimidade discursiva na comunidade científica. Sua
estrutura é de uma rede de significações explicativas, interpretativas e
compreensivas, conectada às contingências históricas, sociais, espaciais, políticas e
cognitiva, fazendo parte de um substrato legitimado pelos coletivos e expresso em
teorias científicas. Por isso, estamos considerando que desvelar a episteme é
desvelar o substrato do território epistemológico, captando as ligações evolutivas
que estão diretamente vinculadas às condições históricas, sociais, cognitivas e
políticas que possibilitam ou possibilitaram a dinâmica científica na ordem de
positividade de existência das ideias. Além disso, ao optarmos pelo construto
episteme, levamos em consideração suas características, que são:
1) É um campo inesgotável e que nunca se pode dar por fechado; não tem por finalidade reconstruir o sistema de postulados ao que obedecem a todos os conhecimentos de uma época, mas recorrer um campo indefinido de relações. 2) Não é uma figura imóvel que aparece um dia e depois desaparece bruscamente, é um conjunto indefinidamente móvel de escansões, de defasagens, de coincidências que se estabelecem e se desfazem. 3) Permite captar o jogo de coerções e limitações que, em um momento dado, impõem ao discurso. 4) Não é uma maneira de recolocar a questão crítica, isto é: dada uma determinada ciência, quais são suas condições de legitimidade? (CASTRO, 2016, p. 140)
Para Castro (2016), estas são as características da episteme na ótica de
Foucault e estão intrinsecamente relacionadas à natureza do que definimos como
uma rede de significações, que pressupõe estruturação contínua e dialógica de
fundamentos filosóficos (estilo de pensamento diversos), solo ou formação
discursiva23 de um território epistemológico.
Nossa premissa é que as ‘escolhas’24 conceituais, teóricas e
metodológicas de qualquer pesquisador estão diretamente vinculadas às acepções,
propósitos (sentidos e significados), estruturas epistemológicas, orientações políticas
e ideológicas dos coletivos ou de seus atores. Vejamos:
A forma como as pesquisas são metodologicamente construídas reflete a trajetória de constituição das Ciências [...] guardam as influências de diversos atores, lideranças acadêmicas históricas ou emergentes, das instituições e de suas respectivas culturas científicas. Mais do que uma escolha individual, de expertise douta, o exercício metodológico se dá num campo científico, como afirma Bourdieu, com suas intrínsecas relações de
23 Para Foucault (2014, p. 39), a formação discursiva é “um conjunto de regras anônimas, históricas,
sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa”. 24
Veja que estas “escolhas” estão sempre inscritas numa episteme e são influenciadas por múltiplas contingências.
46
força, de monopólio e de lutas. O que sempre estará em jogo, [...] é a capacidade técnica e o poder social de falar e agir de maneira autorizada e com autoridade sobre nossos objetos e temas, como um agente legitimado
pela ciência. (DESLANDES; IRIART, 2012, p. 2380)
O ponto de vista que defendemos e que converge com a fala dos autores
é que os coletivos não só informam, mas condicionam a dinâmica científica ao
legitimar “o quê” os pesquisadores devem pesquisar, “como” pesquisar e “qual a”
validade social e científica do saber e do discurso produzido, distribuído e
consumido. Isso porque estão relacionados às práticas discursivas25, à produção
dos sentidos e às relações de poder oriundas da proposição organizacional implícita
e legitimada pela estratificação de um ator social ou da coletividade, que exerce
liderança, seja através das bancas de exame, da seleção para admissão, das
comissões científicas de avaliação, dos conselhos editoriais, da participação em
eventos técnicos e científicos, da indicação e uso das referências teóricas, das áreas
de concentração e linhas de pesquisa, da avaliação das Instituições, entre outros
dos diversos mecanismos de controle e poder, refletindo a coexistência,
convivências e articulação de diferentes “Estilos de pensamento26” ou “matrizes
intelectuais”27 ou de heterogeneidade ou homogeneidade de enfoque, abordagens e
técnicas, pluralidade metodológica ou singularidade metodológica, diversidade ou
particularização temática, numa mesma episteme de um dado território
epistemológico.
Deslandes e Iriart (2012) expressam muito bem nosso entendimento de
que as relações de poder/saber/fazer nos coletivos são orientadas, orientam e são
indutoras das ‘opções’ teóricas e metodológicas das investigações e fundamentos
conceituais validados, no entanto, não podemos esquecer da forma das evidências,
25 A análise das formações discursivas, das positividades e do saber em suas relações com as figuras
epistemológicas e as ciências é o que se chamou, para distingui-la das outras formas possíveis de história das ciências, de análise da episteme. Suspeitar-se-á, talvez, de essa episteme ser algo assim como uma visão de mundo, uma fração de história comum a todos os conhecimentos que importaria a cada uma as mesmas normas e os mesmos postulados, um estágio geral da razão, certa estrutura do pensamento da qual os homens de uma época não poderiam escapar. (FOUCAULT, 2014, p. 249) 26
Construto utilizado por Fleck (2010) para se referir à Matriz intelectual pertencente a um
determinado autor. 27
Para Moreira (2011, p. 47), “Matrizes são as formas de pensamentos que partem de um núcleo racional, por meio do qual uma estrutura global emerge como discurso de mundo, uma estrutura matricial se distinguindo da outra justamente pela maneira como o intelectual vê e integraliza o mundo. O conceito de matriz do pensamento supõe, então, o clareamento do campo epistemológico dos pensadores. Isto é, o fundamento conceitual-ideológico de onde eles partem como raiz de base e o quadro das mediações que utilizam para organizar esse fundamento num formato discursivamente localizado.”
47
da razão e da própria natureza do objeto como contingências que afetam a dinâmica
científica, por vezes, nutrindo as matrizes intelectuais e, consequentemente, a
episteme, entre outros elementos que fazem parte do TE.
Ainda nessa perspectiva, é relevante esclarecer que, embora estejamos
utilizando o construto matriz intelectual, considerando as contribuições de Moreira
(2011), como similar ao construto “estilo de pensamento” de Fleck (2010), adotamos
no âmbito desta tese que um ou outro seja um conjunto de pressupostos filosóficos
(epistêmicos, ontológicos, axiológicos, gnosiológicos e metodológicos), na condição
de produto das reflexões e articulações que fazem parte do quadro de referência do
pesquisador/doutor. Quadro de referência que o pesquisador estabelece em relação
a “ideias do seu tempo e à sua compreensão própria de mundo” (valores sociais),
assim como dos significados, motivações e propósitos que ele atribui a suas ações,
indicando as filiações teóricas e políticas segundo princípios epistemológicos que o
pesquisador utiliza como recursos estilísticos e no uso dos termos ou categorias
conceituais, nas acepções/sentidos e (auto)representações que o ator social atribui
em relação ao ser humano, ciência, realidade, sociedade, geografia, e em suas
orientações ideológicas.
Portanto, matriz intelectual refere-se ao conjunto de fundamentos
teóricos, conceituais e metodológicos que compõe o núcleo discursivo das
produções intelectuais dos pesquisadores, isto é, o seu “estilo de pensamento”. Por
isso, “é comum as matrizes brotarem e se revelarem nas obras dos autores, uma
das quais acaba por condensar seu pensamento” (MOREIRA, 2011, p. 47). O que
justifica, portanto, nossa opção pela categoria matriz intelectual ou estilo de
pensamento para desvelar a episteme do território epistemológico do
desenvolvimento científico, já que, segundo Moreira, matriz intelectual e episteme
podem ser operacionalizadas como referências perfeitas e articuladas, uma vez que:
A individualidade significa a asserção de que a matriz é a forma de elaboração original de um pensador na Geografia, distinto por seu modo de pensar e ver o geral instituído, e de como ele capta o real através da Geografia como forma de leitura do mundo (mundo que, por definição, é a sociedade em seu tempo histórico, a matriz expressando esse real na forma do pensamento). A episteme, por sua vez, significa o modo como o âmbito geral das ideias do tempo se exprime no campo específico do pensamento do pensador, e assim como ele as formaliza na forma da sua linguagem conceitual e as reproduz na sua forma própria de dialogar com o modo geral de visão de mundo do seu tempo. (MOREIRA, 2011, p. 47)
48
Destarte, com base em tais proposições, podemos defender que matriz
intelectual é a ferramenta cognitiva do pesquisador28 e, simultaneamente, faz parte
do capital cultural, social e científico, que permeia, informa e implica a práxis social
dos atores. As matrizes intelectuais são mediadoras das relações saber/poder/fazer,
pois, potencialmente, podem constituir-se em mecanismos para legitimação,
consolidação ou subversão de uma temática, de uma metodologia ou abordagem,
em função da sua força para manter tradições científicas, ou mobilizar e impor
obstáculos a inclusões inovadoras (mutações científicas), ou mesmo promover
“revolução científica”. O que indica sua relevância como categoria nos estudos sobre
a evolução epistemológica, superando a antinomia internalismo e externalismo. O
que nos leva ao nosso quinto esclarecimento, oriundo do entendimento de que:
Não quer dizer um desligamento recíproco entre pensamentos, pois, antes, pensa-se numa descontinuidade do contínuo, que é própria da cultura humana. Porque individualidade e episteme se adensam no universo vocabular do pensador, sem que ele se isole e se retire para a solidão de sua caverna, antes capte na sua integralidade o pensamento do real do seu tempo a partir do modo pessoal como combina e traz para si toda a bagagem de história das ideias com que convive, trazendo para seu campo discursivo com elas a capacidade de verbalizar a realidade que vive e explica. (MOREIRA, 2011, p. 47)
Por isso, o quinto esclarecimento é que o desenvolvimento do
conhecimento científico não acontece na forma de cortes abruptos de uma episteme
para outra, mas de maneira geracional e multidimensional, em função das
articulações e coimplicações entre as múltiplas contingências (temporais, espaciais,
sociais e cognitivas), tais como as interações no interior da ciência
(incomensurabilidade e diversidade lexical, força das evidências) e entre atores e
coletivos (as redes de produção científica), principalmente pelo poder (autonomia
relativa) de intervir dos próprios atores sociais na práxis social (razões),
estabelecendo, assim, o que denominamos “condições indutoras de inovações” ou
“tradições científicas”, no cerne das matrizes intelectuais ou da episteme. Muitas
vezes, um devir marcado, não só por continuidades e descontinuidades, mas por
mudanças, retrocessos, permanências, resgates, renovações, reproduções,
apropriações, num embate contínuo entre tradição e inovação, que, por vezes,
28 Defendemos que a ferramenta cognitiva do pesquisador são as categorias conforme a ótica de
Spink e Menegon (2004, p. 79) “As categorias constituem importantes estratégias linguísticas [..] são expressas por meio de práticas discursivas, são estratégias linguísticas delineadas para conversar, explicar, organizar e dar sentido ao mundo, cujas especificidades estão vinculadas ao contexto que as produzem. Estamos nos referindo à multiplicidade com que uma categoria pode ser empregada.”
49
podem ou não culminar em revolução científica ou mutações que dão origem a uma
nova especialidade cognitiva. Quem ilustra bem essa ideia é Moreira (2011, p. 21):
O período que se estende dos meados do século XIX aos meados do século XX talvez seja um dos mais ricos e contraditórios no campo do pensamento e do empírico-real na história. Transformações e permanências coexistem lado a lado em conflitos, como se a história fosse uma senhora conservadora que necessitasse mudar o mundo e mantê-lo em seu estado ao mesmo tempo. O espírito arguto, no entanto, percebe, nas entrelinhas da coexistência, como as grandes mudanças se movem e se acumulam para operar o advento do novo.
Daí a razão pela qual os argumentos que sustentamos e se estruturam
ao longo da tese e, consequentemente, deste capítulo partem do entendimento de
que os principais elementos indutores que implicam e condicionam, direta ou
indiretamente, transformações na história das ideias são os mesmos para a
manutenção, consolidação ou subversão de um campo científico ou da episteme;
pois a evolução das ideias acontece em função “(i) da dimensão individual,
biográfica, da pesquisa, (ii) do contexto em que ela se desenvolve e (iii) da lógica
das ideias que ela coloca em evidência. [...] (iv) das leituras ideológicas que se
podem fazer de todo discurso”. (CLAVAL, 2013, p. 3)
2.2 A episteme do desenvolvimento do conhecimento científico
Afinando a busca em função da delimitação temática, foi possível detectar
a amplitude e abrangência significativa da evolução epistemológica do
desenvolvimento do conhecimento científico. As principais categorias eleitas e
correlacionadas que compõem sua rede de significações são evolução, mudanças e
processo científico, classificação e fragmentação das ciências, conteúdo, estrutura
e natureza do conhecimento científico, paradigmas, programas de pesquisa e
tradições de pesquisa, racionalidade, relativismo, realismo e verdade, disciplina,
entre outros, que fazem parte de muitas discussões contemporâneas em vários
domínios científicos e acadêmicos, sendo os principais Epistemologia, Filosofia da
Ciência, História da Ciência, Estudos Sociais da Ciência, Sociologia da Ciência e do
Conhecimento Científico.
Partimos da premissa de que, além das problemáticas elencadas por
Godoy (2011) – as circunstâncias que possam garantir a produção do conhecimento
50
“verdadeiro” e a conflituosa relação sujeito-objeto29 –, na evolução epistemológica,
constatamos que as principais temáticas abordadas ao longo dos últimos 50 anos
apresentaram a germinação de novos temas, avanços, retomadas e
reinterpretações, mas não observamos propriamente rupturas abruptas ou definitivas
em relação às principais problemáticas, tais como: as implicações dos fatores
externos e internos no desenvolvimento do conhecimento científico ou na evolução
do conhecimento científico; o questionamento da existência ou não da racionalidade
nas escolhas teóricas e metodológicas dos pesquisadores; a atuação e
consequências dos valores sociais e cognitivos no fazer científico, na avaliação e na
natureza do conhecimento ou das teorias científicas; se existe continuidade ou
descontinuidade, ou ambos, no progresso científico; a questão da
incomensurabilidade na comparação entre duas ou mais teorias; o papel atribuído
aos domínios científicos que trabalham com a temática, como Sociologia da Ciência
e do Conhecimento Científico, Filosofia da Ciência, História da Ciência e Estudos
Sociais das Ciências; e se este papel (dos domínios) é normativo, prescritivo,
descritivo ou ilustrativo em relação aos objetivos dos estudos, entre outras
ponderações
Destarte, foi possível detectar que estas problemáticas e seus temas
correlatos perpassam, informam e são reinterpretadas constantemente na celeuma
das discussões teóricas que compõem redes de significações teóricas sobre o
desenvolvimento científico. Com isso, foi possível sistematizá-los em cinco
diferentes gerações dos coletivos de pensamento científico, cujos elos evolutivos
principais foram as contribuições, as retomadas, os esclarecimentos e as críticas.
Isto porque fazem parte do arsenal discursivo de várias suposições diretivas de
qualquer concepção histórica, seja progressista, desenvolvimentista ou evolucionária
do conhecimento científico.
No entanto, frequentemente emergem e são utilizadas abordagens e
concepções de ciências diferentes, o que implica conteúdos, contornos e valores
divergentes no núcleo das práticas discursivas das gerações anteriores, por vezes,
sob o olhar de um ou mais domínios do saber, gerando ou retomando embates
29 Paráfrase das principais problemáticas indicadas pelo autor.
51
científicos tradicionais, criando ou autorizando novos direcionamentos, introduzindo
e legitimando novas teses, conforme veremos ao longo desta seção.
Barra (2011) nos informa que, mesmo antes de 1960, tradicionalmente os
estudos sobre a História do desenvolvimento do conhecimento científico foram
marcados por duas perspectivas metodológicas de análise. Uma perspectiva
internalista, com fundamentos estabelecidos no idealismo transcendental de Kant e
no positivismo lógico, defendendo o ponto de vista de que as mudanças científicas
são oriundas das condições internas ao fazer científico. E a perspectiva externalista,
fundada na “tradição historiográfica marxista”, que atribui como causa das
revoluções científicas “os compromissos políticos, ideológicos e econômicos
dominantes.” (BARRA, 2011, p. 75)
Segundo o ponto de vista do autor, as duas implicações mais danosas
desta controvérsia foram: 1) uma notória “pobreza dos referenciais de análise
epistemológica adotada por autores partidários dos enfoques externalistas”, (p. 76),
alegando que os estudos sobre a ótica na perspectiva externalista deixaram de
considerar as oportunas e profícuas críticas endereçadas aos fundamentos do
positivismo lógico e, consequentemente, ao “incontido preconceito a toda forma de
análise tipicamente epistemológica”, e esta foi praticamente desconsiderada. 2)
Como consequência da primeira implicação, os vieses atribuídos a tais fundamentos
funcionaram como germinadores das análises tipicamente sociológicas, sem
qualquer articulação entre tais análises.
Nos estudos sob o olhar da Sociologia, basicamente Robert Merton é
considerado o fundador da primeira geração (SHINN; RAGOUET, 2008). Embora
suas teses tenham sido alvo de muitas críticas negativas, suas contribuições ainda
figuram como ligações evolutivas nos estudos contemporâneos sobre o
desenvolvimento científico. Vejamos na fala dos autores:
As investigações de Merton sobre a ciência concentram-se na ciência como organização social. As conexões entre o conteúdo da ciência e os fatores sociais são intencionalmente desconsideradas, já que são todas elas formas de reflexão epistemológica ou filosófica. Com poucas exceções, Merton também se distancia das análises acerca da ciência e da cultura. Quando ele inclui os fatores culturais em seu pensamento é em conexão com o conhecimento, e as ligações entre o conhecimento em geral e a ciência recebem pouca atenção. [...] A exploração sociológica mertoniana da ciência como organização social autoriza certos parâmetros e deslegitima
outros. (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 256)
52
Para os autores, o estilo de pensamento de Merton introduz proposições
significativas para a concepção progressista e faz parte das principais orientações
consideradas sobre a temática atualmente, tais como: a ciência é tomada como
objeto de estudo da Sociologia, e como um subsistema social quase autônomo, mas
diferente de outros subsistemas como a economia e a religião; o marco da
profissionalização da ciência se dá a partir da sua institucionalização pela academia
Royal Society Londrina; a existência da comunidade científica com papéis definidos,
com normas internas e sistema de premiação, serviu como indutora do progresso
científico; e a concepção de que as descobertas experimentais e as teorias
científicas não apresentam conexões com as condições iniciais explicariam o
avanço da ciência (SHINN; RAGOUET, 2008).
Os elos evolutivos do estilo de pensamento de Merton podem ser
observados no que Shinn e Ragouet (2008) designam como “perspectiva sociológica
diferenciacionista”. De cunho basicamente funcionalista, nessa perspectiva: I) a
ciência é tomada como um sistema com normas reguladoras das práticas e
recompensas para os atores, conforme critérios estabelecidos pela comunidade
científica; II) a análise sociológica deve ter como foco elucidar as condições sociais
da atividade científica, III) à Filosofia da Ciência cabe analisar os fatores
explicativos do pensamento científico e de sua evolução; IV) os conteúdos cognitivos
das ciências são domínios da epistemologia, não da investigação sociológica; V) a
ideia da influência dos fatores sócio-históricos externos à ciência sobre os conteúdos
dos enunciados teóricos bem como das técnicas experimentais de investigação é
rechaçada e, finalmente, VI) o progresso científico (contínuo) está vinculado ao
estatuto de notoriedade e ao sistema de “estratificação da honra na ciência”, através
da maior produtividade de comunicação científica publicada.
Nas conjecturas da “perspectiva diferenciacionista”, mesmo sendo
“reducionista” da atividade científica, continuísta e cumulativa em relação ao
“progresso científico”, foram fornecidas ligações evolutivas não só sob o olhar da
Sociologia da Ciência, mas da Sociologia do conhecimento científico e dos Estudos
Sociais da Ciência e da Tecnologia para uma abordagem de “concepção produtivista
e economicista da ciência”, cujo foco principal dos embates teóricos sobre a
atividade de investigação é a quantificação da produção científica. A perspectiva
adotada é que o indicador do desenvolvimento da ciência seja estabelecido pela
53
cumulatividade do conhecimento, o que institui a cientrometria “como instrumento de
medida, [...] e gestão dos processos de estratificação nas ciências [...] que permite
elaborar sistemas de avaliação das universidades, dos laboratórios de pesquisa, das
revistas, dos indivíduos e das ciências nacionais” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 44).
Não existe dúvida de que essa concepção progressista da Sociologia da
Ciência, que germina na primeira geração da História das Ideias, converge com o
coletivo de pensamento da preocupação cientificista de mensuração da realidade
objetiva, isto conforme o princípio da “redutibilidade da linguagem teórica a
condições observáveis”, como critério principal para validação do conhecimento
científico, assim como reinterpreta e legitima as ideias do sistema filosófico
funcionalista, segundo nos revelam Shinn e Ragouet (2008, p. 45):
É preciso ver nisso a influência de uma ideologia particular, [...] de uma concepção de ciência que repousa sobre duas teses. A primeira é a ideia da autonomia universitária – os pesquisadores universitários são livres e as universidades autônomas. A segunda assimila a ciência à pesquisa ‘pura’ – a ciência é um bem público que não pertence àqueles que o produzem. Essa ideologia não deixa de lembrar certos aspectos da sociologia funcionalista, teve dois efeitos práticos: pôr em novo centro as enquetes governamentais sobre P&D industrial e governamental; revelar o caráter inoportuno da mediação dos resultados da pesquisa universitária, [...] não são produtos como os outros e devido à falta de métodos pertinentes para medir as atividades dos próprios pesquisadores. Esse fato como uma consequência da aplicação cada vez mais geral dos modelos econômicos de previsão, assentados na mão de obra e nos recursos investidos, o que conduziu a considerar os inputs antes que os outputs.
Para os autores, tais acepções ideológicas, além de afetarem o fazer
científico, propagam as concepções, propósitos e valores que fundamentam a
História das Ideias e acarretam implicações não só na autonomia universitária, mas
principalmente por estabelecer e legitimar a “cultura do produtivíssimo científico”,
pois, muitas vezes, potencializa determinados aspectos (domínios científicos,
temáticas “prioritárias”, procedimentos técnicos etc.) em detrimento de outros, cria
incoerências teórico-metodológicas para atender às demandas contemporâneas,
econômicas, principalmente, e amplia dualidades como quantidade x qualidade,
pesquisa aplicada x pura, ciências naturais e exatas x ciências humanas e sociais,
estruturando uma organização social não só na ambiência universitária, mas em
todo circuito da produção científica, que utiliza e legitima um modelo de produção de
ciência e tecnológica para “os usos sociais das ciências”, em função de interesses
54
ideológicos, nem sempre explícitos, mas subjacentes ao modo de produção
capitalista contemporâneo, pois:
O sistema de medida da ciência tornou-se complexo. Ao lado dos atores supranacionais, tais como OCDE, apareceram outros produtores de estatísticas: as organizações estatísticas nacionais, as instâncias ministeriais, as agências ligadas ao campo da ciência e da tecnologia [...], os pesquisadores universitários [...] e as empresas [...]. Cada um desses atores arrogou-se um papel no campo da cientometria: os ministérios e as organizações estatísticas nacionais procedem à medida de inputs a partir de enquetes, a fim de produzir dados suscetíveis de ajudá-los a tomar decisões em matéria de políticas científicas; os universitários e as firmas privadas procedem a medidas de outputs a partir de dados provindos de bancos produzidos para outros fins (principalmente bibliográficos). (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 46)
Destarte, são acepções ideológicas que passaram a permear e orientar
as políticas públicas de financiamento e instrumentalização da ciência, afetando de
forma significativa os propósitos e valores (sociais e cognitivos) que transitam e
informam suas práticas discursivas. E, consequentemente, implicando as dimensões
axiológicas, metodológicas, ontológicas e epistemológicas que estruturam a
dinâmica científica, pois “As universidades brasileiras, [...] vivem um momento de
estresse quantitativista. [...] são avaliadas pelas métricas [...] da produtividade
docente que compõem os índices que irão creditar e classificar os programas de
pós-graduação” (LEITE, et. al, 2014, p. 292). Para Leite et al. (2014) e Shinn e
Ragouet (2008), embora os indicadores da cientometria venham sendo
paulatinamente revisados e substituídos por outros mais afinados com os propósitos
atentos para o “desenvolvimento científico, ético e social” ao longo dos anos, ainda
assim, não deixa de ser fato que a “cientometria é historicamente um produto do
diferenciacionismo” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 46), oriundo da concepção
histórica progressista da ciência e de um processo discursivo econômico, pois “trata-
se de uma medida da produtividade que irá influir no status internacional de uma
instituição a partir do micro contexto individual-local” (LEITE et al., 2014, p. 292).
Para Corrêa (2018), a mercantilização dos processos acadêmicos podem ser
percebidos no âmbito da Ciência Geográfica, através das seguintes práticas:
Aumento do número de orientandos e de trabalhos publicados, especialmente em periódicos internacionais. Isso tem levado a que se publique o mesmo texto, ou pequenas variações dele, em vários periódicos, aumentando, assim, a pontuação do pesquisador.
Utilização do trabalho de seus orientandos e bolsistas para amplicar e diversificar a produção por meio do artifício da coautoria. O orientador passa a ser coautor nato, mesmo que não tenha orientado ou que a orientação seja parte de sua tarefa (lembrar-se que, mesmo sem a coautoria, o
55
orientador ganha muito intelectualmente com um bom trabalho de seu orientando). Com isso o orientador pode apresentar oito ou dez trabalhos em um único congresso, aumentando sua pontuação.
Estabelecimento de rede de trocas envolvendo convites para cursos ou congressos fora do lugar de origem, aumentando assim o desempenho do programa de pós-graduação em questões como extensão universitária e relações internacionais. A qualidade dos temas abordados é de natureza secundária e não avaliável. (CORREA, 2018, p. 320)
Para o autor são estratégias que vêm permeando e influenciando o
contexto dos programas do pós-graduação, e que, ao nosso ver, coloca a evolução
científica vinculada às demandas contemporâneas que reflete o avanço do
capitalismo no âmbito da produção científica e remodela a função social das
universidades, uma vez que produz o que os autores denominam de “capitalismo
acadêmico”. Citamos:
O redesenho capitalista das universidades [...] e a contingência do capitalismo acadêmico sobre o pesquisador deslocaram a produção de conhecimento desinteressado. O deslocamento pode ter dado lugar a inovações, [...] porém contribuiu bastante para ampliar o conhecimento cumulativo, o conhecimento decorrente e derivado do conhecimento anterior, o conhecimento sobre o estado da arte em determinado subcampo, mantendo a performance medíocre da pesquisa pela pesquisa de forma a dar continuidade ao financiamento do pesquisador. Veio também a despertar o interesse em originar produtos, processo e patentes comercializáveis. A universidade redesenhada deu espaço para a pós-universidade empreendedora [...] e nela se aninhou o pesquisador empreendedor de si mesmo. (LEITE; CAREGNATO; MIORANDO, 2018, p. 36)
Os autores apresentam aspectos negativos oriundos do império do
“produtivismo”, que vem ampliando significativamente o volume, o fluxo e a
qualidade da produção científica contemporânea. O fato é que é possível conceber
também avanços, reinterpretações e retomadas em relação às contribuições da
matriz intelectual de Merton, no sentido de que possam ser utilizadas para elucidar
a dinâmica científica na contemporaneidade. Na ótica de um processo discursivo
científico, destaca-se a fala de Trindade Lima (2002, p. 152):
[...] Robert Merton apresenta as limitações da perspectiva estrutural-funcionalista de que participa, sua abordagem sobre o mundo moderno (caracterizado pelo conflito de valores e pela ambiguidade de motivações) pode ser vista como uma contribuição, inclusive pela crítica à redução do ator social ao homo economicus. Ao abordar a contribuição de Merton para a sociologia do conhecimento e da ciência, identifico como um dos temas mais relevantes o privilégio da ambivalência, característica básica das sociedades contemporâneas e da atividade científica em particular. [..], com a retomada de uma agenda de pesquisa, relevante e atual, sem pretender apresentar uma defesa do conjunto de seus julgamentos e conclusões
56
sobre o tema, em relação aos quais muitas das críticas de que sua obra foi objeto são pertinente.
Observe que autora propõe que no debate sobre a ciência no mundo
contemporâneo sejam retomadas e situadas as contribuições de Robert Merton,
principalmente com o intuito de superar as dualidades – comunidade X mercado e
valores X interesses – que marcam atualmente as controvérsias científicas na área.
Paradoxalmente, a ideia é que, ao reconhecer a influência e revisar a “adesão”
direta aos valores cognitivos e sociais “na análise da atividade científica”, o
pesquisador viabilize a possibilidade de superá-los. O que para a autora constitui-se
numa lacuna presente nas abordagens da Sociologia e da História da Ciência.
Trindade Lima (2008), com uma concepção histórica mais próxima da perspectiva
desenvolvimentista, aponta que o intento deve ser o de questionar a tese
contemporânea “de que o desenvolvimento científico é uma prática social racional e
de natureza essencialmente instrumental”, daí a necessidade de “situar a atividade
científica no âmbito de um debate mais amplo, que diz respeito ao conjunto da
produção sociológica e que está presente na origem das ciências sociais”
(TRINDADE LIMA, 2008, p. 152).
Kuhn (2011) também retoma essa problemática e faz menção a Merton,
esclarecendo que os embates iniciais, que marcam as discussões sobre o
desenvolvimento científico nos estudos da ciência do século XVII, giravam em torno
da “sobreposição de duas teses” ou conjecturas da “chamada tese de Merton”. A
primeira é a tese de que “os novos problemas, dados e métodos”, são oriundos do
contexto historiográfico e seus problemas práticos, com isso, alude às “principais
razões da transformação substancial sofrida por diversas ciências ao longo do
século XVII” em relação ao movimento da ciência baconiana (KUHN, 2011, p. 137).
A segunda tese relaciona o “puritanismo” como principal influência ideológica para
justificar a introdução do “tom empírico, instrumental e utilitário”, que identifica a
ciência institucionalizada no período. Kuhn (2011), sem descartar a retomada das
teses sobre as implicações dos fatores externos e internos no desenvolvimento
científico, refuta as proposições mertonianas, alegando que as evidências históricas
da época caminham em direção contrária, afirmando que “em versões mais
cuidadosas e detalhadas”, que devem incluir esclarecimentos imprescindíveis, as
teses apresentam “argumentos que são convincentes apenas até certo ponto [...]
pois os aspectos que transformaram a teoria científica no século XVII” não estão
57
diretamente relacionados às ideias balconianas, o que põe “por terra” tais teses
(KUHN, 2011, p. 137).
Na década de 1960, além das ligações evolutivas estabelecidas pelas
ideias de Robert Merton, que já transitava nas teorias sobre desenvolvimento do
conhecimento científico, estas ideias ganharam novos domínios, conteúdos e
contornos nas práticas discursivas, com a introdução de novas orientações,
circunscrevendo a segunda geração. Embora tenham acontecido rupturas
epistemológicas (principalmente em relação ao positivismo) e evolução em relação à
germinação de conteúdos, não houve propriamente rupturas em relação às
problemáticas, isso porque,
No início dos anos 60, algumas novas teorias da ciência foram desenvolvidas como alternativas ao positivismo; trata-se dos trabalhos de N.R. Hanson, P. Feyerabend, S. Toulmine, acima de tudo, T. Kunh. Essas contribuições, ainda que problemáticas em suas teses positivas, puseram termo efetivamente à hegemonia do positivismo ao revelarem que suas doutrinas centrais (tais como a cumulatividade da ciência, a redutibilidade da linguagem teórica à observacional) conflitam radicalmente com a prática real da ciência. Kuhn destacou-se [...], como figura dominante dos anos 60. Na reação a Kuhn, entrou em cena nos anos 70 uma nova geração de teóricos: I. Lakatos, L. Laudan, G. Holton, M. Hesse, J. Sneed, E. McMullin, I.B. Cohen [...]. Todos esses autores desenvolveram modelos de mudanças e progresso científico que, segundo eles, estavam baseados no, e apoiados pelo estudo empírico das obras da ciência real, por oposição aos ideais lógicos ou filosóficos de garantia epistêmica enfatizados pela tradição positivista. Por todos eles, a filosofia da ciência foi caracterizada como uma disciplina responsável por sua história. (LAUDAN et. al., 1993, p. 8)
Além da primeira geração de pensamento científico já mencionada,
considerando a fala de Laudan (1993), podemos identificar mais duas gerações das
principais referências teóricas que apresentaram avanços em relação às
“conjecturas existentes e específicas sobre os processos de mudanças científicas”.
Na segunda geração, eram notórias as vinculações ao neopositivismo,
especificamente pela participação dos principais expoentes do Círculo de Viena,
tinha também forte cunho crítico ao positivismo lógico e estreita aproximação com o
relativismo radical. Nessa direção, destacam-se os estilos de pensamento de P.
Feyerabend e de T. Kunh.
Consideramos que o embate profícuo das ideias de Thomas S. Kuhn e
Karl Popper marcou o período de transição entre as teorias da evolução
epistemológica da primeira geração para a segunda e, consequentemente, de uma
concepção histórica progressista para uma desenvolvimentista. Contemporâneos,
58
ambos pertenciam ao contexto de afinidade da epistemologia anglo-saxônica, mais
especificamente no cerne do sistema filosófico do empirismo lógico, que tinha como
pilares a experimentação e a lógica e como foco o intento de “livrar o discurso
científico das ambiguidades”, isto é, adequar as teorias (lógica do raciocínio
abstrato) à linguagem matemática (mensuração) através da lógica das experiências
práticas (observação empírica). A celeuma teórica principal que marca o espaço-
tempo tinha como problemática revelar a busca por condições que determinariam
como os cientistas produziriam uma “boa ciência’”, basicamente o intento era muito
próximo aos objetivos de Merton, voltado para a construção de um “metadiscurso
prescritivo”, isto é, de prescrições para chegar a uma “boa teoria” e produzir seu
desenvolvimento.
A matriz intelectual de Karl Popper indicava a existência de “três mundos”
no esquema de funcionamento da ciência. No primeiro mundo, aparecem os objetos
físicos (no caso, os fatos e os fenômenos); no segundo, estão os estados mentais e
de consciência, isto é, os pesquisadores que interagem com os objetos do primeiro
mundo; e no terceiro, os conteúdos objetivos do pensamento (teorias, hipóteses, leis
científicas etc.), ou seja, o produto das interações dos cientistas com os objetos
físicos, que poderia ser normativo ou prescritivo. Expressando críticas ao método
indutivo, o autor aponta o método científico dedutivo, alegando que a racionalidade
da ciência opera na forma do “silogismo dedutivo” – do geral para o particular.
Concebe a capacidade de os filósofos da ciência formularem normas e critérios
para a verificação empírica das hipóteses, teorias, leis científicas etc.. Karl Popper
ainda propõe que só é científico o que for passível de falsificação, portanto, o critério
de cientificidade é o “falsificacionismo”, procedimento metodológico que consiste em
coletar evidências suficientes para testar se a teoria é verdadeira ou falsa. Ainda
nesse sentido, o autor aponta que na atividade científica existem dois contextos nos
quais os pesquisadores chegam à sua teoria, contexto da justificação e o da
descoberta, sendo que supervaloriza o contexto de justificação, em relação ao
desenvolvimento científico. Segundo Lakatos (1979, p. 112),
Para Popper, a mudança científica é racional ou, pelo menos, pode ser racionalmente reconstruída e cai no domínio da lógica da descoberta. Para Kuhn, a mudança – de um ‘paradigma’ a outro – é uma conversão mística, que não é, nem pode ser, governada por regras da razão e cai totalmente no reino da psicologia (social) da descoberta. A mudança científica é uma espécie de mudança religiosa. O choque entre Popper e Kunh não se
59
verifica em torno de um mero ponto técnico de epistemologia. Refere-se aos nossos valores intelectuais centrais, e tem implicações não só para a física teórica, mas também para as ciências sociais subdesenvolvidas e até para a filosofia moral e política. Se nem mesmo na ciência há outro modo de julgar uma teoria senão calculando o número, a fé e a energia vocal dos seus apoiadores, isso terá de ocorrer principalmente nas ciências sociais: a verdade está no poder. Assim, a posição de Kuhn reivindica, sem dúvida, não intencionalmente, o credo político básico dos maníacos religiosos contemporâneos (‘estudantes-revolucionários’).
Lakatos (1979), além de elencar argumentos para justificar a matriz
intelectual de Popper, reinterpreta sua posição, defendendo que existem diferentes
estágios de desenvolvimento científico; e quando expressa o termo “ciências sociais
subdesenvolvidas”, coloca-se contrário às críticas formuladas por Kuhn, destacando
que para Popper as mudanças científicas não são “crença religiosa” ou “credo
político”, mas um processo racional que acontece no contexto da descoberta. Ainda
segundo Lakatos (1979), o desenvolvimento científico é cumulativo, progressivo e
acontece no contexto da justificação. Em tempo, acusa Kuhn de não compreender
“uma posição mais sofisticada” sobre as proposições de Popper e, com isso “recair
no irracionalismo”. Embora aconteça a germinação de conteúdos e expresse o
termo “desenvolvimento científico”, este é concebido como similar à acepção de
progresso, e os temas que dão o tom das problemáticas ainda giram em torno da
racionalidade, verdade e realismo. Portanto, o estilo de pensamento de Lakatos não
rompe definitivamente com as concepções da geração anterior, mas circunscreve o
cerne discursivo da segunda geração, que, segundo nos aponta Vitte (2009a, p. 94):
Alguns dos conceitos comumente empregados quando se fala em mudança científica, como, por exemplo, revolução científica, mudança de paradigma e a incomensurabilidade, foram desenvolvidas por Thomas Kuhn (1922 – 1996) na década de 1960. Sua obra mais importante, a Estrutura das Revoluções Científicas, publicada pela primeira vez em 1962, provocou impactos sobre a comunidade científica de então e continua a provocá-los, embora com intensidade atenuada, oferecendo uma alternativa ao modelo de progresso científico de Karl Popper, positivista e realista convergente. Em matéria de progresso científico, Kuhn parece ser uma referência.
Em síntese, as teses defendidas por T. Kuhn, apesar de serem “uma
referência”, conforme aponta a fala de Vitte (2009a), são alvo de inúmeras críticas
e apresentam uma reflexividade no próprio discurso, pois produz a evolução
epistemológica nos discursos expressos em suas três principais obras. Isso porque
é possível constatar a inserção de novos conteúdos, direcionamentos e elucidação
para muitas das problemáticas mencionadas no início desta seção, evidenciando o
60
avanço em relação às teorias introduzidas na primeira geração que passaram a ser
os fios do que irão compor as futuras discussões teóricas.
No livro “A tensão essencial”, com o objetivo de apresentar “melhor” sua
concepção de “desenvolvimento científico”, o autor traz uma organização com 14
ensaios, onde fica evidente que o intuito maior foi esclarecer dúvidas, responder à
maioria das críticas e, simultaneamente, reafirmar as descobertas comunicadas em
sua obra “A estrutura das revoluções científicas”. Vejamos o que ele aponta sobre
desenvolvimento científico:
Embora tenha sido escrito apenas no fim de 1961 [...] O desenvolvimento científico depende em parte de um processo de mudança não cumulativa ou revolucionária. Algumas revoluções são amplas, tais como as associadas a nomes como Copérnico, Newton ou Darwin, mas, em sua maioria, são consideravelmente pequenas, como a descoberta do oxigênio ou do planeta Urano. O prelúdio usual às mudanças desse tipo é, a meu ver, a consciência de anomalias, de uma ocorrência ou de um conjunto de ocorrências que não se ajustam aos modos existentes de ordenação dos fenômenos. As mudanças que daí resultam exigem que se coloque um novo chapéu pensante, capaz de transformar o anômalo no esperado, mas que, nesse processo, também altere a ordem que será exibida por outros fenômenos que antes não eram problemáticos. (KUHN, 2011, p. 17)
Para o autor, o desenvolvimento científico é o produto das mudanças
científicas não cumulativas, mas descontínuas. O progresso científico passou a ser
revolucionário, e as revoluções científicas são oriundas da inadequação ou de
anomalias na dinâmica científica que colocam as ferramentas cognitivas como
insuficientes para responder às demandas da própria ciência ou dos novos
temas/problemas que surgem do contexto socioeconômico e, por vezes, têm o
potencial de alterar a própria ciência. Com isso, além de reafirmar uma nova
suposição diretiva, no caso o “paradigma”, ele retoma a tese da “ruptura
epistemológica”, de Bachelard (2006), nega enfaticamente algumas das principais
críticas atribuídas a seu relato, esclarecendo que não defende a assertiva de que o
desenvolvimento científico seja baseado de maneira quase exclusiva em fatores
internos às próprias ciências, pois não deixou de situar a comunidade científica no
contexto social do qual faz parte, uma vez que é impossível que o desenvolvimento
científico seja livre das implicações sociais, econômicas, religiosas e filosóficas de
seu tempo (KUHN, 2011, p. 18). Portanto, reafirma o estilo de pensamento
defendido em 1962, o que pode ser observado na seguinte fala:
61
Os paradigmas não diferem somente por sua substância, pois visam não apenas à natureza, mas também à ciência que os produziu. Eles são fonte de métodos, áreas problemáticas e padrões de solução aceitos por qualquer comunidade científica amadurecida, em qualquer época que considerarmos. Consequentemente, a recepção de um novo paradigma requer com frequência uma redefinição da ciência correspondente. Alguns problemas antigos podem ser transferidos para outra ciência ou declarados absolutamente ‘não científicos’. Outros problemas anteriormente tidos como triviais ou não existentes podem converter-se, com um novo paradigma, nos arquétipos das realizações científicas importantes. À medida que os problemas mudam, mudam também, seguidamente, os padrões que distinguem uma verdadeira solução científica de uma simples especulação metafísica, de um jogo de palavras ou de uma brincadeira matemática. A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas, muitas vezes, verdadeiramente incomensurável com aquela que a precedeu (KUHN, 1962, pp. 137-138).
Sistematizando as principais proposições cotejadas na fala de Kuhn, é
possível destacar que seu estilo de pensamento: i) propõe como suposição diretiva
o Paradigma, cuja marca polissêmica fomentou a principal crítica formulada por
Popper, sendo que aparece não só como conteúdo das teorias e enunciados
científicos (substantivos), mas como concepções, propósitos e valores (não
substantivos) que compõem a visão de mundo e os sentidos/significados
estabelecidos em relação à ciência e ao método, que impera num determinado
período e numa dada comunidade científica; ii) reconhece a concepção de ciência
como um empreendimento coletivo e ‘resolvedora’ de problemas, ou “propositora de
verdadeiras soluções científicas”; iii) concebe a plasticidade dos “padrões”, que
distingue a verdade científica (o falsificacionismo de Popper) ou de demarcação da
“verdadeira” ciência, em função do desenvolvimento científico, daí a crítica em
relação à capacidade da especulação filosófica e da ‘quantificação’ como critérios de
cientificidade; iv) coloca a tradição de pesquisa como o núcleo da ciência normal,
alvo das mudanças evolutivas que repercutem no desenvolvimento científico e como
elemento que dificulta a comunicabilidade entre paradigmas, isto, é a
incomensurabilidade; e, por fim, v) legitima a ênfase no papel desempenhado pelas
condições históricas, sociais e cognitivas das comunidades científicas no
desenvolvimento da ciência.
Perspectiva que passou a legitimar na rede de significações do
desenvolvimento científico o olhar da História sobre a Filosofia da Ciência e
estabeleceu um novo papel e orientações para ela nos estudos sobre a temática,
vejamos:
62
Em parte alguma o estudo histórico produziu uma transformação mais decisiva em nossa época do que em relação à nossa imagem filosófica da ciência. O que mantém a concepção de a filosofia ser um empreendimento inteiramente normativo pode contestar a afirmação de que uma disciplina descritiva como a história possa ter algum impacto significativo na filosofia. A famosa falácia naturalista parece impedir uma série interações entre a história da ciência e sua filosofia. Mas, de fato, os mais recentes filósofos afirmam que foram fortemente influenciados pela história na construção de suas teorias normativas. [...] constituíram uma escola, [...] conhecida como a abordagem histórica da filosofia da ciência, que vê a história como fonte e, pelo menos, árbitro parcial de afirmações filosóficas sobre a ciência. (LAUDAN et al., 1993, p. 12)
A fala de Laudan (1993) confirma o ponto de vista de que as proposições
introduzidas por Kuhn na Filosofia da Ciência germinavam novos elos evolutivos
para a “análise metacientífica”, dando destaque para o papel da natureza histórica
do desenvolvimento científico nas investigações, o que até então não era
considerado nos estudos sobre a temática. Para o autor, as teses de Kuhn
permitiram o rompimento com “as interpretações intelectualistas e empiristas
preferidas pela maioria dos historiadores da ciência da geração anterior e auxiliaram
a estabelecer a legitimidade do giro histórico” (LAUDAN et al., 1993, p. 18).
O livro “O caminho desde a Estrutura”, de T. Kuhn, produzido 20 anos
após a publicação de sua obra mais polêmica, “A estrutura das revoluções
científicas”, foi elaborado com o objetivo de apresentar o que estava “revendo e
reajustando” nos seus principais conceitos; esclarecer a relação entre progresso,
desenvolvimento, tradições e especialidades cognitivas; e defender e explicar as
conjecturas sobre incomensurabilidade e os novos rumos que estava trilhando. No
que tange especificamente à temática, no capítulo intitulado “Reconcebendo as
revoluções científicas”, o autor aponta que em função das diferentes mudanças
existem dois tipos de desenvolvimento científico, o normal e o revolucionário.
Esclarece ainda que o desenvolvimento normal é a principal imagem de ciência
que perpassa a literatura metodológica, indicando um avanço cumulativo e
progressivo, constituído pelos acréscimos e adições atribuídas ao conhecimento
científico através das pesquisas “bem-sucedidas”, cuja natureza de suas produções
se circunscreve como “descobertas” (KUHN, 2017, p. 23).
Já o desenvolvimento científico revolucionário e descontínuo, ao
contrário, é oriundo das mudanças problemáticas, revolucionárias, cuja natureza
gira em torno das “invenções” que “não podem ser acomodadas nos limites dos
conceitos conhecidos antes delas”, pois alteram significativamente “o modo como se
63
pensa e se descreve algum conjunto de fenômenos naturais” (KUHN, 2017, p. 25),
o que implica a necessidade de novas ferramentas cognitivas (leis, teorias,
conceitos), bem como a redefinição e introdução de novos procedimentos de coleta,
análise e critérios de avaliação destas ferramentas. Na fala do autor:
Quando mudanças referenciais desse tipo acompanham mudanças de lei ou teoria, o desenvolvimento científico não pode ser inteiramente cumulativo. Não pode passa do velho ao novo simplesmente por um acréscimo ao que já era conhecido. Nem se pode descrever inteiramente o novo no vocabulário do velho ou vice-versa. (KUHN, 2017, p. 25)
Portanto, não retira a cumulatividade, além de reafirmar sua existência na
dinâmica normal e “familiar” (oriundo das pesquisas cotidianas). Kuhn (2017)
reformula seu ponto de vista, colocando a possibilidade da “não cumulatividade” no
desenvolvimento “revolucionário”, esclarecendo sobre a impossibilidade de as
mudanças centrais serem fragmentárias nos “paradigmas”, alegando a existência
das “rupturas súbitas e não estruturadas” nos arranjos distintos dos padrões
conceituais e orientadores da dinâmica científica, antes não observados na
“linguagem”. O autor fortalece sua argumentação, ilustrando com “episódios” da
História da Ciência as três características essenciais que as mudanças
revolucionárias compartilham, a saber: i) são holísticas e, com isso, não podem ser
alteradas de forma fragmentada, pois introduzem explicações que afetam
diretamente a natureza dos objetos investigados, caso contrário, “é preciso viver
com a incoerência ou revisar em conjunto várias generalizações inter-relacionadas”
(KUHN, 2017, p. 41); ii) são capazes de alterar não só a maneira como as palavras
e expressões se ligam à natureza do ente, mas os próprios critérios que ligam os
termos (construtos) ao conjunto de objetos ou situações, pois “o que caracteriza as
revoluções assim são as mudanças em várias das categorias taxonômicas que são
prerrequisitos para descrições e generalizações científicas” (KUHN, 2017, p. 43) e,
por fim, iii) são capazes de provocar alterações nos padrões de similaridades (a que)
e distinções (do quê) utilizados na linguagem científica, pois:
A prática científica sempre envolve a produção e a explicação de generalizações sobre a natureza, e essas atividades pressupõem uma linguagem com um grau mínimo de riqueza, e a aquisição de uma tal linguagem traz consigo conhecimento da natureza [...] o que é adquirido é um conhecimento conjunto da linguagem e do mundo. (KUHN, 2017, p. 45)
Desta forma, Kuhn reforça a relevância dos conceitos e introduz a ideia
de que a característica primordial das mudanças científicas revolucionárias é que
64
elas afetam direta e indiretamente, por meio da “linguagem”, o desenvolvimento
científico, sendo, portanto, mudanças evolutivas. O seu ponto de vista é que as
mudanças repercutem no núcleo das práticas discursivas, isto é, no “intercurso” –
designação que o autor atribui para “discurso”, especificamente pela alteração da
produção dos sentidos, previamente estabelecidos, que reflete principalmente
sobre sua taxonomia ou a natureza do objeto científico. E, com isso, acontece “A
violação ou distorção de uma linguagem científica anteriormente não problemática
[...], pedra de toque para a mudança revolucionária” (KUHN, 2017, p. 45), mudanças
evolutivas potencializam a “diversidade lexical” e com ela seu produto, a
especialização30 cognitiva, que, segundo o autor, foi explorada de forma incipiente
em sua obra anterior. Vejamos nas palavras do autor como ele explica o processo
de formação de novas especialidades científicas ou “especializações cognitivas31”:
Depois de uma revolução, geralmente são encontradas [...] mais especialidades cognitivas [...] ou um novo ramo que se separou do tronco original, como especialidades científicas repetidamente se separaram, [...] nasceu em uma área de aparente de superposição entre duas especialidades preexistentes, [...] um tipo de divisão, [...] que, raramente ou nunca, é assimilado por algum de seus pais. Torna-se mais uma especialidade separada, conquistando suas próprias novas revistas especializadas, uma nova sociedade profissional e, amiúde, novas cátedras, laboratórios e, até mesmo, departamentos universitários. [...] um diagrama da evolução dos campos, especialidades e subespecialidades científicas acaba parecendo-se espantosamente com um diagrama, feito por um leigo, de uma árvore evolutiva biológica. Cada um desses campos em um léxico distinto, embora as diferenças sejam locais, ocorrendo apenas aqui e ali. Não há nenhuma língua franca capaz de expressar, em sua totalidade, o conteúdo de todos eles, ou mesmo de alguma parte. (resultante da diversidade lexical que permite às ciências, vistas em conjunto, resolver os quebra-cabeças suscitados por um domínio de fenômenos naturais mais amplos do que uma ciência lexicalmente homogênea poderia alcançar”. (KUHN, 2017, p. 124)
Retomando suas principais asserções, que estão diretamente
relacionadas a nossa temática, três merecem destaque especial na fala do autor: I)
mudanças revolucionárias provocam a diversidade lexical, que fortalece a
fragmentação nos campos científicos e amplia diferentes áreas de conhecimento,
30 Para Kuhn, a especialização é a síntese do estreitamento do âmbito de competência, conforme
pode ser observada através das “ferramentas cognitivas cada vez mais poderosas”. É igual ao tipo de desenvolvimento de instrumentos especiais para funções técnicas. 31
No âmbito desta tese, defendemos que a nova espacialidade cognitiva se configura como um
território epistemológico, pois enquanto não se constitui como um campo científico e acadêmico institucional, é constituído de uma episteme (que o diferencia da ciência “mãe”), de coletivos (que se identifica com pertencentes à especialidade), fronteiras (que delimitam e diferenciam com outros campos científicos) e controvérsias (questões teóricas e metodológicas próprias).
65
com isso, a “emergência de individuação de novas especialidades científicas”; II) o
desenvolvimento científico tanto pode ser o avanço de um campo científico, como de
uma área de conhecimento ou de um saber de um determinado ponto para outro,
sendo distinto da “evolução biológica”, pois “as revoluções que produzem novas
divisões entre campos no desenvolvimento científico são muito semelhantes a
episódios de especiação na evolução biológica” (KUHN, 2017, p. 125); e III) a
relação entre o campo científico (inicial ou matriz) e a nova especialidade produz o
que ele denomina de “incomensurabilidade local”, pois o “novo ramo” do “campo”
passa a ter “um léxico distinto, embora as diferenças sejam locais, ocorrendo
apenas aqui e ali”, por isso não contemplam uma “totalidade, o conteúdo de todos
eles”, mas partes significativas do “campo pai” são alteradas, o que lhe concede
“autonomia relativa”.
Nosso ponto de vista é que, em relação à incomensurabilidade, Kuhn
(2017) reinterpreta seu estilo de pensamento de 1962, principalmente em função
das muitas críticas que recebeu, apontando que esse é um termo que “descreve a
relação entre as teorias científicas consecutivas”, oriundo das suas observações nas
atividades de interpretação dos textos científicos. Esclarece e acrescenta que a
principal base de diferenciação entre campos e novos ramos de saber é a “variação
de significado”, explicando que esta variação leva à impossibilidade de definir os
termos do vocabulário de uma teoria com os termos de outra. E, para responder às
críticas, tendo como referência as ponderações de Hilary Putnam, utiliza dois de
seus principais argumentos, vamos a eles.
O primeiro argumento utilizado por Putnam (apud Kuhn, 2017), que
Kuhn refuta, é que para comparar duas teorias consecutivas é essencial a existência
de um “terreno comum” entre elas. O segundo argumento é que se uma teoria é
incomensurável, então é “impossível traduzir velhas teorias numa linguagem
moderna”, o que explicaria “a reconstrução das teorias de Aristóteles, ou de
Newton [...] sem abandonar a linguagem que falamos todos os dias”. Em outros
termos, Putnam (apud Kuhn, 2017) alega que tradução e interpretação são
processos similares. Kuhn (2017), para defender sua tese, insere na discussão a
impossibilidade de “comparabilidade” entre duas teorias ou de dois campos
científicos:
66
Aplicado ao vocabulário conceitual usado numa teoria científica e em seu entorno, o termo ‘incomensurabilidade’ funciona metaforicamente. A expressão ‘nenhuma medida comum’ passa a ser ‘nenhuma linguagem comum’. A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é, assim, a afirmação de que não há uma linguagem, neutra ou não, em que ambas as teorias, concebidas como conjuntos de sentenças, possam ser traduzidas sem haver resíduos ou perdas. A incomensurabilidade em sua forma metafórica não implica incomparabilidade, não mais do que o faz em sua forma literal e praticamente pela mesma razão. A maioria dos termos comuns às duas teorias funciona da mesma maneira em ambas; seus significados, quaisquer que sejam, são preservados; sua tradução é simplesmente homofônica. Problemas de tradutibilidade surgem apenas para um pequeno subgrupo de termos [...] e para as sentenças que os contenham. A afirmação de que duas teorias são incomensuráveis é mais modesta do que supuseram muitos de seus críticos. Chamarei essa versão modesta de ‘incomensurabilidade local’. Até o ponto em que incomensurabilidade constituiu uma tese referente à linguagem, à mudança de significado, sua forma local é a minha versão original. (KUHN, 2017, p. 50)
O autor, além de reafirmar que a incomensurabilidade é uma metáfora
que está vinculada à variação dos sentidos atribuídos aos termos (categorias),
insere a designação de “local”, o que restringe o poder da definição anterior. Além
disso, introduz o ponto de vista de que a incomensurabilidade não implica
necessariamente “incomparabilidade”, nem a existência de elementos/aspectos
comuns, e aponta que a tradução e a interpretação são processos diferentes:
enquanto a tradução requer o conhecimento de duas ou mais línguas para execução
e seu produto é um texto equivalente em outra língua, a interpretação busca o
sentido e seu produto é outro texto sob o ponto de vista do intérprete.
O fato é que, diante dos ensaios organizados no livro, assim como na
maioria de seus argumentos, ficam evidentes a inserção e a ênfase que o autor
passa a atribuir à “linguagem” (discurso) como principal elemento de referência para
elucidar as implicações das mudanças revolucionárias no desenvolvimento do
conhecimento científico; a distinção entre desenvolvimento científico e evolução
científica, assim como das representações da natureza da evolução epistemológica,
das estruturas sociais como condicionantes; a elucidação do processo de formação,
consolidação e manutenção da nova especialidade (ramo) e, consequentemente, da
autonomia do campo científico; e, ainda, a riqueza do conceito da
incomensurabilidade local ou dos sistemas de pensamento científico. As principais
ligações evolutivas emanadas de Kuhn, numa perspectiva socioconstrutivista para a
História das Ideias (pois passaram a ser referência no coletivo de pensamento
contemporâneo sobre a temática “desenvolvimento científico”) são: a difusão de
67
novos conteúdos, o contorno atribuído às discussões, as novas diretrizes, e,
principalmente em relação ao olhar da História e da Filosofia da Ciência, que
provocou a germinação de novos embates científicos.
Ainda no final da década de 1970, o embate teórico passou a ser muito
mais do que uma reação crítica, e a suposição diretiva – “paradigma” – e os
construtos utilizados por Kuhn passaram a permear e informar a maioria das práticas
discursivas sobre a temática. Assim, a partir da década de 1980, o foco das
problemáticas se estabeleceu em torno da racionalidade científica,
incomensurabilidade, relatividade, realismo e verdade, levando em consideração as
ideias de introduzidas por T. Kunh. Entre os principais teóricos seguidores que
avançaram, criticaram ou reafirmaram seus conteúdos e direcionamentos,
destacam-se os estilos de pensamento de Lakatos e Laudan, como representantes
da terceira geração.
O estilo de pensamento de Lakatos, um dos defensores da perspectiva
epistemológica de Popper, critica e associa a esta perspectiva algumas proposições
de Kuhn na elaboração de uma perspectiva que defendia a racionalidade na História
da Ciência, através das análises filosóficas. Lakatos concebia as teorias como um
conjunto de enunciados passíveis de serem testados e que poderiam ser
comparados a outras teorias. Com isso, o autor introduz e legitima a concepção de
programas de investigação científica, ou programas de pesquisa, como principal
suposição diretiva. Segundo seu ponto de vista, o desenvolvimento científico
acontece através das teorias, é “progressivo” e intrinsecamente determinado pelos
“programas de pesquisa”. Estes programas têm a seguinte composição: um núcleo
duro, provisoriamente inume às refutações, que daria identidade ao programa de
pesquisa; as suposições auxiliares que formariam o cinto de proteção ao núcleo; e
as diretrizes heurísticas que guiariam os pesquisadores.
Já o estilo de pensamento de Laudan, reinterpretando e simultaneamente
dando continuidade às orientações kuhnianas, propõe que “a análise do problema
do desenvolvimento (ou progresso) científico deve ser fundamentalmente
historiográfico” e, diferentemente de Kuhn, coloca como cerne dos seus estudos “as
teorias científicas” e os modos como elas mudam. O autor traz como suposição
diretiva que as teorias existentes no âmago das “tradições de pesquisa”
“compartilham os pressupostos de que as únicas entidades postuláveis são sinais
68
físicos observáveis (pressuposto ontológico) e de que o método mais adequado para
tratar estas entidades seria por meio do operacionalismo (pressuposto
metodológico)” (BATISTA; SILVA, 2011, p. 61-62).
As tradições de pesquisa, na ótica da Laudan, são constituídas por
“teorias particulares” com “vida curta”. Nas tradições de pesquisa, os coletivos
compartilham, informam e fornecem “as orientações gerais acerca da ontologia e da
metodologia a serem utilizadas pelas teorias. Estas orientações, por sua vez,
adotam ontologias e metodologias específicas” (BATISTA; SILVA, 2011, p. 63). No
entanto, é possível constatar elementos convergentes das contribuições de Lakatos
e Laudan sobre a temática do desenvolvimento do conhecimento científico, entre os
quais podemos destacar: I) é possível identificar elos evolutivos e, principalmente, a
reinterpretação e legitimação para muitas das ideias defendidas por T. Kuhn; II) a
ciência está intrinsecamente vinculada às suposições diretivas, embora com
denominações diferentes – paradigma, programas de pesquisa e tradições de
pesquisa –, na condição de constelações de crenças, valores e técnicas
compartilhadas por uma comunidade científica” e passíveis de serem afetadas pelas
“mudanças científicas”; III) as alterações nas suposições diretivas repercutem
diretamente no desenvolvimento do conhecimento científico, seja através das
“revoluções científicas”, do “progresso contínuo” do conhecimento, ou da
“incompatibilidade” entre suposições diretivas.
Em 1979, a obra de Ludwik Fleck32, “Gênese e desenvolvimento
científico”, é traduzida do polonês para o inglês e torna-se (re)conhecida na
comunidade científica, com o surgimento de contribuições significativas para a
celeuma das discussões teóricas sobre o desenvolvimento científico.
Caracterizamos suas contribuições como quarta geração na História das Ideias
sobre desenvolvimento científico. O autor, através da análise epistemológica, com
base no desenvolvimento do “conceito da sífilis” traz elementos que avançam e
passam a fazer parte de muitas análises futuras, fato reconhecido por Kuhn.
32 Publicada originalmente em 1935 e “após ter sido praticamente ignorado por vária décadas,
Gênese e Desenvolvimento de um fato científico (re)aparece em 1979 em sua tradução em inglês, na qual o primeiro desses ilustres apresentadores não foi nada menos que Thomas Kuhn” (CONDÉ, 2010, p. ix).
69
É relevante apontar que sua “monografia” do autor é um campo de
germinação de ideias que até então (1935, ano em que foi produzida) não faziam
parte das discussões sobre a temática, tanto que na obra não faz citação a nenhum
autor que possa ter contribuído na construção das ideias sobre a dimensão
epistemológica. Entre suas ligações evolutivas, podemos elencar: I) a indicação de
que tanto as normas, como os fatores que explicam o desenvolvimento da ciência
moderna e de “um fato científico” são as estruturas sociais e, simultaneamente,
psíquicas; II) tanto a história, como a cultura são condicionantes (estrutura social) da
evolução dos fatos científicos; III) a concepção da ciência como uma organização
cooperativa, por isso, deve considerar a estrutura sociológica, na mesma proporção
que as convicções pessoais (crenças) que unem os pesquisadores, superando as
concepções empíricas e especulativas individuais (uma crítica aos pressupostos do
empirismo lógico, que imperava no período); e IV) propõe com suposições diretivas
os construtos de “coletivo de pensamento” e “estilo de pensamento”, sendo o
coletivo de pensamento como “a unidade social da comunidade de cientista de uma
disciplina” e o estilo de pensamento como “pressupostos e pensamento sobre os
quais o coletivo constrói seu edifício de saber”. Para o autor, aos dois construtos
“subjaz[em] o esboço epistemológico do saber, que nunca se torna possível em si,
mas apenas e sempre sob condições de determinadas pressuposições de conteúdo
sobre o objeto” (FLECK, 2010, p. 65). A premissa principal do autor é que as
suposições diretivas (coletivo de pensamento e estilo de pensamento) são produtos
sociológicos e, simultaneamente, cognitivos e históricos de um coletivo de
pensamento ativo e passivo (FLECK, 2010, p. 65).
Na obra “Conhecimento e imaginário social”, de David Bloor, na edição
publicada em 1991, o autor aponta que “a maior prova da possibilidade da sociologia
do conhecimento é sua efetividade” (BLOOR, 2009, p. 10). E na revisão
bibliográfica sobre o desenvolvimento do conhecimento científico, aponta que as
investigações nessa área indicam inúmeras descobertas específicas e interessantes
que desvelam a natureza social da ciência, os padrões de continuidade e
descontinuidade no desenvolvimento científico e as motivações para a aceitação ou
rejeição das teorias científicas. Todas as temáticas com documentações e
evidências contundentes sobre os seguintes processos: I) as implicações do
contexto histórico, econômico e sociopolítico na visão de mundo dos pesquisadores
70
e, consequentemente, no conteúdo das teorias científicas; II) a existência do nexo
causal entre o desenvolvimento tecnológico e os instrumentos de pesquisa
utilizados, bem como no conteúdo das teorias; III) a influência da cultura geral e das
questões ideológicas na gênese, legitimação e avaliação das descobertas e
explicações científicas; IV) a relevância dos conhecimentos prévios (pré-ideias)
como fundamentos de outros saberes ou disciplina descobertas na área; e V) a
contribuição dos processos formativos e da socialização na condução da ciência, o
que implica a necessidade de analisá-la “à luz dos interesses, crenças e critérios de
validade compartilhados, que orientam a atividade dos cientistas e sua interação
com outros atores sociais” (BLOOR, 2009, p. 19). Tomando tais resultados como
elos evolutivos, o autor introduz nas discussões sobre a temática, quatro princípios,
que embora não sejam novidades, pois já faziam parte dos “traços mais otimistas e
científicos” de Durkheim (1938), Mannheim (1936) e de Znniecki (1965), Bloor (2009)
os considera essenciais para orientar os estudos de um “Programa Forte na
Sociologia do conhecimento33”, sendo estes conhecimentos causalidade,
imparcialidade, simetria e reflexividade.
Consideramos, assim como para Shinn e Ragouet (2008), que o
Programa Forte, proposto por Bloor, além de romper com o estilo de pensamento
mertoniano, em relação à “recusa a limitação da Sociologia da Ciência à análise das
instituições científicas”, retém proposições formuladas por Kuhn, mas precisamente
dá início a uma quinta geração de coletivo de pensamento. Isso porque o programa
forte utiliza os pilares propostos por Kuhn, assim como de outras abordagens que se
estabeleceram nos anos de 1970 a 1990, criando “uma nova ortodoxia”, comumente
designada por “nova Sociologia do conhecimento”, e os principais elementos
indutores que contribuíram para seu surgimento foram: (i) o impacto das análises de
Kuhn; (ii) a divulgação das reflexões documentadas sobre as implicações negativas
da ciência (com destaque para as questões socioambientais); e (iii) a emergência
das teses pós-modernas, que apresentavam multiplicidade de modelos mentais,
portadores de concepções específicas que repercutiam diretamente na atividade
científica. Embora fossem marcadas por contornos que as distinguiam entre si, têm
33 Alvo de muitas críticas, a defesa do Programa Forte na Sociologia do Conhecimento é o principal
intento de Bloor (2009) na obra “Conhecimento e Imaginário social”.
71
em comum o intuito de “proceder a uma crítica fundamentada” nas gerações
anteriores e, com isso, caracterizaram-se por serem uma rejeição à “demarcação
clássica entre a ciência e a não ciência”, daí sua qualificação de
“antidiferenciacionista” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 65).
Nosso ponto de vista é que, além de defender a tese de que “o modo de
produção dos conhecimentos científicos se transformou a tal ponto que a ciência
clássica estaria claramente em curso de desaparição [...]” e, por isso, se dá “o
nascimento de novas formas de relações entre universidades, especialistas,
demanda social e indústria, de modo que o todo seja dominado pela lógica de
funcionamento e pelas necessidades das empresas” (SHINN; RAGOUET, 2008, p.
64). Um desenvolvimento marcado pela diferença em relação à ciência moderna
não só nos modos de produzir e difundir, mas nos princípios, nas aplicações e nas
interações universidade/sociedade.
Considerando o olhar da Epistemologia, da Filosofia da Ciência e da
Sociologia do Conhecimento, Shinn e Ragouer (2008) organizaram as principais
concepções em três abordagens que contêm outras vertentes e refletem sua
proliferação pós-década de 1980 (Quadro 02). Os autores alertam que foi apenas
uma forma de evidenciar as distinções entre essas concepções, já que o
enquadramento das abordagens e vertentes, pelas características comuns ou
divergentes, é sempre um processo “relativo”, além de que podem ocorrer também
divergências específicas entre concepções de determinados autores numa mesma
abordagem. Vejamos:
Quadro 2 - Abordagens da perspectiva antidiferenciacionista da sociologia da ciência.
Abordagens Modo de existência do social
Modo de existência da
natureza
Definição do social
Definição do cognitivo
Abordagens fortes e perifortes
Realidade Construção Cultura de interesses
Ciência feita (tomada de posição)
Abordagens etnográficas do trabalho empírico
Construção Construção Interesses Práticas in situ
Enfoques radicalmente construtivistas
Construção Construção Realidade híbrida em relação de entre – definição
Fonte: Shinn; Ragouet (2008, p. 63)
72
No olhar dos autores, o “modo de existência social” refere-se à maneira
como a dimensão social se realiza no ambiento do objeto científico. As “abordagens
fortes e perifortes” concebem que o social existe na condição de realidade; mas,
nas abordagens “etnográficas” e “construtivistas”, essa concepção do real se realiza
pela “construção” – um “modelo mental” do vir a ser. No modo de existência da
natureza, se antes as abordagens indicavam dicotomia objetiva/subjetiva, as
abordagens antidiferenciacionistas concebem que “os fatos são considerados como
construídos a partir dos dados brutos através de processos ativos de construção
conceitual34” (SHINN; RAGOUET, 2008, p. 62), portanto, a “natureza não existe”
objetivamente, mas como “construção” do “espírito”. Nas definições das
abordagens fortes e perifortes, os autores apontam a “cultura de interesses” e o foco
da análise é a ciência pronta (produto), não seu processo de produção. Nas
abordagens etnográficas, o alvo são ‘os interesses e as situações práticas’ que
ocorrem durante a atividade científica, o foco principal é a “ciência em ação”, isto é,
seu processo de produção, portanto, não contempla a evolução epistemológica, e a
teoria ator-rede representa a forma mais completa dessa abordagem.
Já nas perspectivas construtivistas, tanto o social como o cognitivo são
definidos pelo devir da realidade, que passa a ser concebida como “híbrida”, o que
permite e potencializa a análise epistemológica, perspectiva que adotamos neste
estudo, e por isso será ao longo da tese mais abordada.
O ponto relevante é que a quinta geração não é delineada por um estilo
de pensamento, mas por várias matrizes intelectuais que perpassam, informam e
avançam em relação às gerações anteriores, principalmente sob a ideia de uma
ciência pós-positivista, postulando críticas profundas ao “androcentrismo”,
desvelando que as interações sociais, assim como as questões ideológicas não
apenas mobilizam a atividade científica, mas estão profundamente imbricadas em
suas práticas e produtos; com isso, coloca em dúvida a ideia de que a objetividade
científica possa ser regida apenas por “valores epistêmicos”. Pressupostos que
34 Ponto de vista que pode ser observado na perspectiva adotada por Guimarães (2017) de que “a
categoria natureza não é um dado ontológico “natural”, ou seja, deve-se partir do princípio de que os conceitos da categoria natureza (assim como qualquer outro, seja ele o de homem, de tempo, de espaço, de mundo, de civilização e de racionalidade, entre outros) não são conceitos a priori, sendo “pré-conceitos”. Ontologicamente, existem a partir do treinamento de um contexto social, que, no caso do próprio pensamento geográfico (ou geografia), é herdeiro e tributário de um modo de pensar que faz parte do modo-de-ser-no-mundo ocidental” (GUIMARAES, 2017, p. 17 -18).
73
indagam diretamente sobre a função da epistemologia, posto que encaminharam
para uma ruptura com a acepção de epistemologia, legitimada até então, e que
passa a figurar nos discursos dos autores que classificamos como pertencentes à
quinta geração do pensamento, pois:
Enquanto a história epistemológica, situada basicamente ao nível dos conceitos científicos, investiga a produção da verdade na ciência, que ela considera como processo histórico que define e desenvolve inter-relações conceituais ao nível do saber, nem privilegia a questão normativa da verdade nem estabelece uma ordem temporal de recorrência a partir da racionalidade científica atual (MACHADO, 2017. p. 11)
Entre eles o estilo de pensamento de Michel Foucault, cujas obras trazem
ligações evolutivas com os estudos sobre a evolução epistemológica, inspirados em
Bachelard, Canguilhem e Cavaillés, uma linha que se aventura pelo pensamento
pós-estruturalista. No fragmento a seguir, Foucault, além de reconhecer a
descontinuidade e a dinâmica do desenvolvimento científico, indica a forma como a
análise epistemológica deve ser dirigida. Cito:
Não se tratará, portanto, de conhecimentos descritos no seu progresso em direção a uma objetividade na qual nossa ciência de hoje pudesse enfim se reconhecer; o que se quer trazer à luz é o campo epistemológico, a epistémê, em que os conhecimentos, encarados fora de qualquer critério referente a seu valor racional ou a suas formas objetivas, enraízam sua positividade e manifestam assim uma história que não é a de sua perfeição crescente, mas, antes, a de suas condições de possibilidade; neste relato, o que deve aparecer, no espaço de saber, as configurações que deram lugar às formas diversas do conhecimento empírico. Mas que de uma história no sentido tradicional da palavra, trata-se de uma ‘arqueologia’. (FOUCAULT, 2007, XVIII-XIX)
A nosso ver, o entendimento do autor é de que a análise epistemológica
deve caracterizar-se, antes de tudo, por ser uma análise discursiva para elucidar a
“constituição e transformação dos saberes”. Na fala do próprio autor, é “Bem
diferente, ainda nisto, das descrições epistemológicas ou arquitetônicas que
analisam a estrutura interna de uma teoria, o estudo arqueológico está sempre no
plural: ele se exerce em uma multiplicidade de registros [...]” (FOUCAULT, 2014, p.
192). Para ele, a compreensão epistemológica deverá desvelar a configuração da
episteme, substrato da possibilidade de existência de qualquer saber. Mas além da
fissura com a epistemologia tradicional, o que Foucault introduz no coletivo de
pensamentos sobre a evolução epistemológica pós década de 1980?
74
Primeiramente, conforme já mencionamos, além de mudar o foco da
epistemologia (do estatuto de cientificidade para a episteme), o autor indica uma
forma de apreendê-la, através da Arqueologia, afirmando que:
[...] a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão, por isso, um status de idealidade e de total independência histórica; o que ela revela é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos de historicidade e que estão relacionados com um conjunto de historicidades diversas. (FOUCAULT, 2014, p. 201)
Segundo, quando desvela a relevância do discurso, Foucault retoma as
ideias de T. Kuhn sobre a “linguagem” e, simultaneamente, na História das Ideias,
ele tira o foco da ciência para o “saber”, com isso, coloca a centralidade das práticas
discursivas como corpus empírico para a “análise do discurso” e “dispositivo” de
investigação. Destarte, vai reafirmar o “valor operativo dos conceitos” (pré-ideias)
como condição para a “formação do objeto”, o que implica que sejam concebidos
como engendrados numa “rede de significação” ou “formações discursivas”.
Terceiro, ao revelar a onipresença do poder – “capilar, insidioso e
microfísico” –, em todos os âmbitos das interações humanas, Foucault dá destaque
para a relação saber/poder/fazer na dinâmica científica, apontando, inclusive, que o
poder tem maior potencial quando acontece “na ordem do saber, da verdade, da
consciência, do discurso” (FOUCAULT, 2017, p. 71). Portanto, além de considerar a
dimensão epistemológica, dá destaque às dimensões históricas e sociais. O que
também confirma o ponto de vista de Kuhn.
Quarto, rompe com a suposição de teoria como uma explicação ou
descrição do “real” (da substância em si), desvela a teoria como “prática” com
potencial para representar ou refletir sobre a realidade. No entanto, esclarece que
não é a única, é apenas uma entre outros “modos possíveis”, com isso, os objetos
do mundo social, bem como sua constituição, passam a ser instituídos socialmente a
partir de “um complexo feixe de relações”, destituindo a supremacia da relação
causal, e se aproximando da perspectiva epistemológica do construcionismo. Por
isso, de acordo com o autor, a contribuição da Arqueologia, uma vez que só ela teria
a capacidade de “suprimir o tema da expressão do reflexo, se ela se recusa a ver no
discurso a superfície de projeção simbólica de acontecimentos ou de processos
75
situados em outra parte, não é para encontrar um encadeamento causal”, mas o
funcionamento efetivo da prática discursiva (FOUCAULT, 2014, p. 201).
Quinto, a suposição diretiva indicada por Foucault é a episteme, o que
efetivamente a faz diferente do “Paradigma” de T. Kuhn ou do “Coletivo de
Pensamento” de Fleck (2010), destacando que ela não é apenas reflexo da “visão
de mundo” que uma comunidade compartilha, mas uma rede de significações
estabelecidas em torno de um saber(temática), através das conexões entre estilos
de pensamentos legitimados e expressos nos grandes discursos e fundamentos
filosóficos, teóricos e metodológicos do fazer científico.
Em suma, o nosso ponto de vista é que as ideias desveladas ao longo
desta seção situam brevemente a rede de significações sobre evolução
epistemológica da temática, pois a quantidade e a diversidade significativa de obras,
pensadores, abordagens e perspectivas ou vertentes que fazem parte dos estudos
sobre o desenvolvimento científico são um indicativo seguro do volume de
produções e de suposições epistemológicas que orientam a temática atualmente e
evidenciam um território epistemológico em pleno avanço. No entanto, é notório que
muitas ideias frequentemente são retomadas, independentemente de que geração
as tenha introduzido, pois existem muitas produções intelectuais com ligações
evolutivas de várias teorias específicas e de seus autores, principalmente de Kuhn,
estilo de pensamento predominante no discurso legitimado.
Diante da episteme do território epistemológico do desenvolvimento do
conhecimento científico que sistematizamos até aqui, a questão emergente é: Seria
possível ignorarmos tais conhecimentos acumulados, ressignificados e apropriados,
para elucidarmos a repercussão do movimento intelectual contemporâneo no âmbito
dos estudos sobre a Ciência Geográfica? Seguramente podemos afirmar que não!
E, por isso, com as asserções que consideramos coerentes com nossos
pressupostos filosóficos, passamos a descrever como esses estudos vêm sendo
apropriados e reinterpretados na ciência geográfica, através da Análise Documental,
utilizando como unidade de sentido os fragmentos (elementos explanatórios e
explicativos) dos textos de Reis Jr (2014), Claval (2013) e Vitte (2011), referências
obrigatórias nas produções sobre a temática na Geografia brasileira contemporânea.
76
2.3 As ligações evolutivas da evolução epistemológica na Geografia
Para Reis Jr (2014), os estudos que abordam as temáticas correlatas ao
desenvolvimento do conhecimento científico na geografia podem ser sistematizados
em três setores. O primeiro, a Filosofia da ciência – FC, cujos principais aspectos
identitários foram cotejados em três dimensões: i) Trabalhos com os fundamentos ou
pressupostos filosóficos das investigações ou produções científicas, para identificar
os “sistemas de pensamento”, as matrizes orientadoras dos discursos, os “limites
epistêmicos” e o complexo da relação causal como explicação científica. Sua
principal premissa é que
As teorias são produtos sempre influenciados por infraestrutura ou horizonte filosófico; e que tal influência talvez até seja mais intensa do que a que se dá no ‘sentido contrário’, digamos assim. Nesse sentido, o pensamento científico de personagens tais como Descartes e Kant seria altamente tributário de suas respectivas visões filosóficas do mundo. E, nesse mesmo espírito de interpretação, os sistemas de pensamento atribuídos aos filósofos do Círculo de Viena, Mach, Comte, Bacon e pensadores mais pretéritos ainda, teriam respingado de algum modo nos empreendimentos intelectuais das ciências em geral. [...] O postulado basilar inerente a esse princípio geral da orientação ou embasamento filosófico reside, então, na concepção de que o pensamento científico nunca se desenvolve no vácuo; ele, na verdade, estará sempre inscrito num ‘quadro de ideias’. E, por ser assim, a própria transição entre tradições de pesquisa (marcada por aquilo que o historiador chamará ‘revoluções’) já deve, [...] prever na escala do substrato ou ‘subestrutura’ uma correspondente mudança de atitude filosófica. (REIS JR., 2014, p. s/p)
São notórios, no postulado apontado pelo autor, fragmentos que
representam a apropriação e reinterpretação das contribuições (os elos evolutivos)
ou tributos descritos ao longo deste capítulo. Principalmente de T. Kuhn e Fleck
(sobre as bases que estruturam o “Estilo de pensamento”, isto é, os pressupostos
filosóficos), bem como dos autores da quinta geração, com destaque para o
“Programa Forte”. ii) “As fronteiras e linguagens identitárias” – produções que
abordam a classificação das ciências, as disciplinas e os elos identitários científicos.
E iii) as estruturas explicativas da causalidade, encaixando-se nesta dimensão os
trabalhos que indagam sobre a explicação por meio de relações de causa-efeito,
bem como as variáveis indeterminadas utilizadas pelo pesquisador.
Ainda, para Reis Jr. (2014), os trabalhos nesse setor, embora não tão
frequentes, aparecem como fragmentos textuais (tanto de geógrafos físicos, quanto
humanos) que exprimem a ideia de: “substrato de ordem filosófica”; “epistemológica
77
sedimentada sobre horizontes ontológicos”; “introjeção dos sistemas de pensamento
filosófico nos raciocínios e práticas geográficas”; “concepções metafísicas”;
“identidade epistemológica da Geografia”; “fronteiras disciplinares”; e alguns mais
seculares que expressam considerações em torno das “explicações causais”, com
termos mais próximos de “emergências” e “concomitâncias”.
No segundo setor, o autor classifica as produções sobre História da
Ciência – HC, apontando dois grupos: i) Sociologia do Conhecimento – o foco é a
compreensão/identificação/explicação dos condicionantes históricos, sociais,
políticos que afetam a prática científica numa dada época; o principal pressuposto é
que “a ciência está embebida num meio de processos sociais complexos (dele
absorvendo, então, demandas e regulamentos), mas não menos o fato de que ela
retroage (dando sustentação ou questionando o sistema social instaurado)” (REIS
JR., 2014, s/p). ii) “Padrões de evolução”, estão classificados os trabalhos que
buscam identificar “na linha do tempo a ocorrência de temporadas ao longo das
quais determinadas tendências interpretativas e procedimentais” se estabeleceram e
começam a fazer parte das ferramentas cognitivas utilizadas pelos pesquisadores,
se encaixando neste grupo as produções intelectuais que abordam as suposições
diretivas e os fundamentos indicados por Popper, Lakatos e T. Kuhn.
Ainda nesse setor, os principais fragmentos são: “ambiente” (intelectual);
“fatores responsáveis...”; “entidades de representação...”; “panorama político-
econômico”; “história institucional”; entre outros com o tema dos “conflitos”, “crise”,
“revolução” ou controvérsias científicas que, de acordo com o autor, não aparecem
de forma tão expressiva, mas nas produções intelectuais onde constam os termos,
“predomina entre os discursos o refrão da fraseologia kuhniana [...] (crise –
paradigma - anomalia), tendendo a replicá-los sem mais ponderações. Corre-se o
risco, portanto, de veicular informações contraditórias, visto serem inconciliáveis
com a proposta [...]” (REIS JR, 2014, s/p).
No terceiro setor, Reis Jr (2014) categoriza as abordagens que se
encaixam na Geografia da Ciência - GC, contemplando as produções intelectuais
que trabalham com foco nas “especificidades do lócus de manifestação”,
especificamente a GC coloca em destaque “as ‘idiossincrasias’ do lócus em questão,
[...] para desvendar o motivo pelo qual o ideário [...] da ciência sob análise acabou
sendo incorporado(a) de um modo peculiar [...], endógena [...]” (REIS JR, 2014). A
78
pressuposição que se estabelece é a existência da heterogeneidade da ciência
contemporânea, sendo que, neste setor, se encaixam trabalhos da quinta geração
do pensamento historiográfico, cuja abordagem busca “empreender quase que uma
etnografia dos laboratórios”. “Lugar” constitui-se no principal fragmento identificado
nas produções deste setor, sempre na perspectiva de “uma evolução tomada em
seu aspecto ‘locacional’” (REIS JR, 2014, s/p), frequentemente expressando a
ideia de “novidade tardia”. O autor conclui a comunicação apontando que, embora já
exista um “número razoável” de produções no campo da História e da Filosofia da
Ciência, na Geografia ainda “há todo um largo espectro de abordagens que
permanecem intocadas” (REIS JR, 2014, s/p).
No texto prescritivo e simultaneamente reflexivo de Paul Claval, traduzido
e publicado no Brasil em 2013, “Como construir a história da geografia?”,
encontramos fragmentos que evidenciam a ligações evolutivas e nos auxiliam a
compreender a apropriação e a reinterpretação das teorias sobre o desenvolvimento
científico na Geografia, bem como identificar as orientações de como proceder para
construirmos uma “historiografia da Ciência Geográfica”. Tais orientações foram
classificadas em três dimensões, vejamos.
Na primeira dimensão, evidencia-se o reconhecimento de que existem
várias possibilidades de conduzir os estudos na área, o que implica o cuidado de
buscar um caminho que supere “os mitos” e o senso comum para construir o
conhecimento científico. O que, de acordo com o autor, requer “um olhar crítico
sobre os saberes que ela escolhe tratar e sobre o período em que eles são
elaborados”, uma vez que toda e qualquer “construção de uma história” é
seguramente um ponto de vista e, por isso, “[...] depende sempre da perspectiva que
ela retém, pois ela influencia as pistas que exploram aquele que a escreve e as
escolhas dos quais ele procede.” (CLAVAL, 2013, p. 3).
O entendimento explícito nos elementos explanatórios utilizados pelo
autor exprime três considerações que merecem destaque: i) o reconhecimento da
heterogeneidade da ciência; ii) a concepção de que o fazer científico é uma prática
discursiva (o “intercurso” proposto por T. Kuhn), por isso a produção historiográfica é
um discurso científico; e, iii) em consequência da anterior, a compreensão de que
esses discursos (produzidos pela historiografia) são carregados de pressupostos
filosóficos, considerando os elos evolutivos de Fleck (2010), de “estilo de
79
pensamento” do pesquisador e de “coletivo de pensamento” do grupo social do qual
faz parte.
Sobre a segunda dimensão, consideremos o seguinte fragmento:
A construção da história de um desenvolvimento científico repousa sobre a tomada de consciência (i) da dimensão individual, biográfica, da pesquisa, (ii) do contexto em que ela se desenvolve e (iii) da lógica das ideias que ela coloca em evidência. Ela implica também (iv) que sejamos conscientes das leituras ideológicas que se podem fazer de todo discurso. (CLAVAL, 2013, p. 3)
O discurso do autor, além de desvelar a compreensão de ciência como
uma construção simultaneamente individual e social35, reforça o ponto de vista da
relevância da “linguagem” de Kuhn e do discurso de Foucault e reinterpreta a
problemática dos contextos da descoberta e da justificação como campos de
investigação das leituras “ideológicas”. Conforme nos aponta o próprio Claval (2013,
p. 3), “as aproximações contextuais, que são reafirmadas desde uma quarentena de
anos, têm enriquecido consideravelmente as temáticas abordadas[...]”. Ainda nessa
perspectiva, é relevante destacar que no transcorrer de todo o texto de 15 laudas é
possível identificar 6 vezes a utilização do termo “construir” e suas ramificações
(construção, construído, construída), mostrando uma aproximação com a concepção
de ciência como um processo de “construção”.
O texto do professor Vitte (2009b) analisado foi “As influências da filosofia
natural e da naturphilosophie na constituição do darwinismo: elementos para uma
filosofia da geografia física moderna”, publicado no Boletim Goiano de Geografia.
Um ensaio que tem como objetivo “argumenta[r] que a teoria da evolução de Charles
Darwin sofreu forte influência da naturphilosophie de Schelling e Hegel,
representando um avanço positivo nas concepções de teleologia da natureza.”
(VITTE, 2009b, p. 15). No Quadro 03, sistematizamos os dez principais fragmentos
que selecionamos para apresentar as ligações evolutivas expressas nos elementos
explicativos utilizados pelo autor sobre as teorias da evolução epistemológica.
Nos Fragmentos 01 e 02, é notória a concepção de que as Teorias são
condicionantes de grande relevância no desenvolvimento científico, inclusive com
35 Entendimento que pode ainda ser elucidado pela explicação do autor de que “a disciplina é
construída pelos homens, de onde convém conhecer suas ferramentas mentais, compreender as motivações, cercar as ambições e reconstituir a carreira: a dimensão biográfica é essencial” (CLAVAL, 2013, p. 3).
80
potencial para consolidar, estruturar e manter um campo ou subcampo científico
como a Geografia Física, ilustrando que o evolucionismo teve influência nas
dimensões metodológica, epistemológica e ontológica na evolução da geografia
física.
Quadro 3 - Fragmentos do texto do professor Antônio Carlos Vitte
Fragmento 01 – Influência das teorias no desenvolvimento científico (p.14)
Nesse ano de 2009, comemoramos 200 anos de nascimento de Charles Darwin (1809-1888) e os 150 anos da publicação de sua obra célebre. A origem das Espécies (DARWIN, 1981), tornando-se um verdadeiro paradoxo na ciência, pois ao mesmo tempo em que a Teoria da Evolução permitiu o desenvolvimento da moderna biologia, com impactos na medicina e na biotecnologia, as suas ideias provocaram ainda, em 2009, um mal-estar na civilização, ao ponto de nas últimas décadas assistirmos a um revigoramento das teses criacionistas que vêm questionando o uso da Teoria da Evolução nas escolas. ‘Assim como Copérnico retirou a Terra do centro do universo, o universo darwinista destruiu o homem como epicentro do mundo natural’ (STIX, 2009, p. 28)
Fragmento 02 – Tipos de influência (p.14)
Para Claval (1974, p. 48 – 49), o traballho de Darwin promoveu um profundo recrudescimento metodológico na Geografia, particularmente na geografia humana, fornecendo um método para a análise científica da sociedade e dos agrupamentos humanos. Para Claval (op.cit.), Darwin demonstrava o papel do meio como motor da evolução, que ocorreria a partir de uma luta constante entre os organismos, sendo esse o motor da vida. Ainda para o autor (Claval, op. Cit), o evolucionismo desenvolvido segundo as teses darwinianas colocava-se como método e, ao mesmo tempo, permitia a abordagem histórica da sociedade. Fato que também é corroborado por Stoddardt (1986, p. 158 – 159), que além de fornecer o método de análise, as reflexões de Darwin propiciaram o desenvolvimento da geografia física, na medida em que os processos passaram a ser compreendidos como contínuos e que se ocorrem ao longo do tempo, perspectiva que produz uma série de transformações na paisagem. Essa concepção, segundo Stoddardt (op. Cit.), foi motivada pelo princípio da preservação da raça e da luta do mais forte e, do outro lado, pelo princípio da causalidade newtoniana, que permitiram o desenvolvimento da Geografia como um todo.
Fragmento 03 – Ruptura epistemológica (p. 16)
No entanto, a nosso ver, apesar dessas sérias e importantes contribuições à história da Geografia, essas análises carecem de um maior aprofundamento, no sentido de se buscar uma estrutura
81
epistemológica que não seja necessariamente marcada por uma ruptura, mas a possibilidade de entendermos a história das ideias e sua matriz resultante a partir de um jogo tenso entre épocas e posições, muitas vezes dadas como contraditórias.
Fragmento 03 – Concepção de desenvolvimento científico (p. 17)
Outra interpretação epistemológica, e que nega a matriz humeana, é a ligada à filosofia transcendental de Kant. A questão é superar a interpretação epistemológica principalmente como formulada por Foucault (1970), admitindo a possibilidade de que haveria ganho real de conhecimento quando há transição de uma visão de mundo para outra, e de que esse ganho pode ser pragmatismo, pois quer tornar o que quer que ocorra no passado irrelevante para o que quer que venha a ocorrer em um tempo posterior. Embora não façamos objeção à proposta de Foucault (1970), qual seja, a de trazer à luz as condições de possibilidade de nossas alegações de conhecimento, acreditamos que o conhecimento científico, que consiste em um conjunto de proposições teóricas, que podem se revelar verdadeiras ou falsas, acrescido do conjunto não explicitado de concepções metateóricas ou mesmo metafísicas, constitui o ‘plano de fundo’ dessas proposições.
Fragmento 04 – Diversidade epistemológica (p. 18)
As interpretações eram múltiplas, assim como múltiplas eram as geografias e as biologias praticadas na Europa até o século XIX, quando a síntese darwiniana e a ratzeliana irão cada qual, a seu modo, unificar os seus objetos e suas epistemologias.
Fragmento 05 – Importância dos conceitos (p. 19)
Outro conceito importante, que exercerá forte influência em Herder, será o de Lebenkraft, que diz respeito ao papel do meio físico no desenvolvimento do organismo e das espécies. Para Blumembach, o meio natural, particularmente o clima e a oferta de alimentos, poderia causar degeneração das espécies, com sua hibridação, criando novos tipos de organismos (espécies), provocando assim uma degeneração da espécie com a formação de novos tipos. As concepções de Bildungstrieb e de Lebenkraf exerceram poderosa influência nas ciências naturais, demonstrndo claramente a possibilidade de produção de novas espécíes.
Fragmento 06 – Ligações evolutivas (p. 16)
Segundo o bloco criacionista no século XIX, representado por Cuvier, é possível que uma ou outra de suas partes, isto é, algumas das referidas concepções metateóricas e uma outra proposição teórica que tenha resistido, se despresdido e vindo,
82
posteriormente, a se acomomodar em algum outro lugar. Um exempo para esse trabalho é o das mudanças evolutivas, que irão gerar a emergência de novos problemas e que, no caso da Geografia, serão mesclados com resíduos de concepções tidas como ultrapassadas, mas que serão importantes para a consolidação de modos explicativos e interpretativos da realidade.
Fragmento 07 – Valores sociais
Outro referência importante, que será fundamental para Darwine para a estruturação da geografia física, será Charles Lyell, que com seus ‘Princípios de Geologia’, com sua visão de geologia histórica e do princípio do ‘uniformitarismo’, mais a concepção paleontológica do geólogo Sedgwich, auxiliará Darwin na montagem do sistema explicativo para a Teoria da Evolução das Espécies, pois a despeito da variabilidade geográfica, as causas atuantes no presente serão sempre as mesmas e com a mesma intensidade e casualidade. Segundo Deswmond e Moore(1995), o princípio do uniformitarismo de Lyell fora elaborado para combater a concepção dialética de natureza de Hegel, fato que colocaria a sociedade vitoriana em confronto com as reinvidicações operárias que estavam em curso na Inglaterra.
Fragmento 08 – Estilo de pensamento de Laudan
O trabalho de Lyell é o ideal metodológico newtoniano, pois a explicação se fundamenta na vera causa, rejeitando a hipótese, reconhecida pelos newtonianos como especulação. Uma influência marcante em Lyell é John Herschel, que, com sua metodologia da vera causa, não permitia conjecturas e teorizações, criando, [...] uma fina aderência na metodologia indutiva. Lyell justificou a metodologia científica de Herschel e desenvolveu a geologia moderna, em que a estrutura chave foi o uniformitarismo. Herschel consideou o livro Princípios de Geologia, de Lyell, um brilhate exempo de aplicação da metodologia da vera causa na geologia.
Fragmento 9 – Definição de teoria e as múltiplas contingências
A teoria da evolução, como formulada por Darwin, é um processo de construção mental e epistemológica fundamentado em um idealismo metafísico da qual participaram Schelling, Goethe e Humboldt, tendo nas concepções de teleologia de Kant, a base para argumentarem cientificamente a dinâmica evolutiva da natureza. [...] a obra darwiniana não pode ser concebida apenas como o produto da sociedade e da ciência vitoriana, mas também como um complexo intercruzamente de várias influências, particularmente as desenvolvidas pela biologia da Naturphilosophie, pelas reflexões dos filósofos da natureza e pela metodologia newtoniana.
Fonte: Boletim Goiano de Geografia (2009. V.29, n.1, p. 13 – 32)
83
Se nos Fragmentos 01 e 02, Vitte (2009b) reconhece a contribuição das
teorias no desenvolvimento científico, no Fragmento 03, no entanto, o autor chama
atenção para o fato de que, além de não ser a única fonte de evolução, ela não
acontece através de rupturas abruptas ou, como aponta Foucault, de mudança
direta de uma episteme para outra. Em outros textos, Vitte (2011a, 2011) explica e
ilustra a existência de “zonas de transição”, seja de uma episteme para outra, um
programa de pesquisa para outro, ou um campo científico para outro. Vejamos a
fala do professor na íntegra:
Os trabalhos mais recentes em sociologia do conhecimento sugerem que a ciência é um campo heterogêneo, cuja linguagem dos paradigmas sugere a existência de grandes continentes com ideias e práticas estáveis. A nova visão de ciência é que ela é semelhante a arquipélagos e ilhas, em que cada qual representa uma subcultura distinta com diferentes programas de pesquisa centrados sobre um problema particular. Mais do que incomensurabilidade entre os programas, há uma grande zona de transição entre as ilhas em que cada qual utiliza uma grande variedade de símbolos e de linguagens. (VITTE, 2011a, p. 43)
A fala de Vitte (2009b) também indica a heterogeneidade da ciência, o
que abroga o princípio moderno da universalização da ciência, que legitimou a
concepção de uma única forma de produzir conhecimento científico “válido”, através
da padronização e simplificação, independentemente da natureza do objeto, da
espacialidade, da temporalidade e da especialidade. A linha de pensamento é que
os estudos atuais sobre as ciências comprovam a existência da heterogeneidade,
não só em função do volume, abrangência e fluxo da produção científica
contemporânea, mas da atuação coimplicada de múltiplas contingências. Um
entendimento que, conforme apontado no Fragmento 04, existia antes do século
XIX e contemplava a diversidade de objetos, de interpretações e de epistemologias.
No Fragmento 05, nos argumentos utilizados por Vitte (2009b) sobre a
influência da filosofia natural e da naturphilosophie na teoria evolucionista, fica
explícita a relevância que o autor atribui à inserção de novos conceitos, assim como
de mudanças nas concepções de “natureza” e de “realidade” na evolução
epistemológica. Isso porque, nos elementos explicativos utilizados pelo autor, fica
explícito o entendimento que dialoga com Guimarães (2017, p. 15) de “as categorias
como entes ontológicos”. E, consequentemente, os conceitos não são “naturais” ou
a priori, pois “[...] toda conceituação da categoria será uma determinação da
84
existência do modo-de-ser-no-mundo”, portanto, são “ontoepistemologicamente”
determinados pela sua possibilidade de existência.
No Fragmento 06, Vitte (2009b) apresenta a estrutura de um novo saber
após a consolidação dos modos explicativo-interpretativos, revelando a coexistência
de novos e velhos fundamentos e temas/problema, configurando a existência de
“resíduos” ou das ligações evolutivas desveladas por Fleck (2010).
No Fragmento 07, por sua vez, Vitte (2009b) nos revela a pressuposição
de que os saberes não são permeados apenas por valores epistêmicos, mas
também por valores sociais – “reivindicações operárias que estavam em curso na
Inglaterra.” (VITTE, 2009, p. 19) –, conforme nos aponta Bloor (2009).
Nos Fragmentos 08 e 09, além de apresentar a definição de teoria, com
uma construção mental impregnada de fundamentos filosóficos, de resíduos de
outras teorias (conceitos) e condicionantes socioculturais, recorrer ao estilo de
pensamento de Laudan justifica sua compreensão e potencializa a força das
múltiplas contingências para provocar mudanças evolutivas.
Em síntese, a presença dos elementos explicativos (implícitos e
explícitos) nos textos dos autores Reis Jr, Claval e Vitte, tais como concepções
(pressuposições), conceitos e referências a autores como Foucault, Kuhn, Laudan,
entre outras ligações evolutivas, revela-nos a apropriação, reinterpretação e
retomadas (através das mudanças, permanências e características) das teorias
sobre o desenvolvimento do conhecimento científico na ciência geográfica, que,
consequentemente, fazem parte dos pressupostos que permeiam e informam esta
tese, conforme poderá ser observado ao longo dos próximos capítulos.
85
3 Cenário epistêmico da Modernidade Reflexiva: o espaço-tempo
das múltiplas contingências?
O momento é o de mundos que se intercruzam e se sobrepõem, o que, necessariamente, coloca a questão das cartografias das subjetividades quando o assunto é a análise das práticas espaciais. Isto porque não estamos inseridos apenas em teias, malhas e tramas, pois diferentemente da aranha, que, ao tecer os fios, constrói lentamente os nós dos destinos, falta-nos o sentido ontológico e teleológico do significado do ser e do estar para fundamentar os nós. Há um problema ontológico a ser enfrentado pela geografia, pois a Terra e o Mundo estão em crise, associada a uma mutação e a uma transição no sentido e no significado da condição humana. (VITTE, 2011a, p. 17)
Tomamos a fala de Vitte (2011a) na epígrafe como plano de fundo para
apresentarmos duas inferências que contribuem para esclarecer as premissas a
serem trabalhadas ao longo deste capítulo. A primeira é sobre a relação que se
estabelece entre o uso das “cartografias das subjetividades36 na análise das práticas
espaciais” e a expressão “múltiplas contingências” que aparece no título. Isso
porque, ao longo deste trabalho, utilizaremos a expressão múltiplas contingências
para designar as várias circunstâncias, oriundas da “Modernidade reflexiva”, que
atuam de forma eventual, difusa e imbricada em velhas e novas convergências na
dinâmica científica contemporânea. Mais especificamente, nossa premissa é que as
múltiplas contingências que produziram mudanças evolutivas ou “revolucionárias”
potencializaram direta e indiretamente a Ressignificação Científica contemporânea,
sendo esta um movimento intelectual, e descrevê-las “oferece uma maneira fecunda
de explicar a dinâmica do pensamento científico [...], a ideia de movimento
intelectual conceitualiza assim a noção de contexto; é o conjunto da vida intelectual
de uma época que é avaliado; o enfoque tem, da mesma forma, uma dimensão
pluridisciplinar” (CLAVAL, 2013, p. 11).
Quanto à segunda inferência, Vitte (2011a) deixa claro que estamos
imersos nas tramas das redes e, por isso, precisamos compreendê-las para elucidar
36 Não que estejamos nos propondo desenvolver “cartografias das subjetividades”, mas aproveitamos
o ensejo para apontar evidências do que qualificamos como diversidade metodológica, uma das múltiplas contingências inerentes da modernidade reflexiva que produziram mudanças científicas.
86
o mundo contemporâneo. Pressuposto que está intrinsecamente relacionado ao
axioma de que os discursos científicos (ou “intercursos” conforme designa Kuhn)
mudam em função das interações que acontecem no tempo, no espaço e no virtual.
Com isso, a evolução epistemológica de um saber, que acontece através das trocas,
descobertas, construções, validações, aproximações e embates estabelecidos no
cotidiano do fazer científico contemporâneo, na condição de produção, circulação e
apropriação do discurso científico, é potencializada em função de sua organização
em redes.
A segunda premissa é que as redes, além de conectarem ideias, atores
(humanos e não humanos), eventos, coletivos e diferentes espacialidades e
especialidades na modernidade reflexiva, associadas às múltiplas contingências,
provocam mudanças científicas revolucionárias no desenvolvimento teórico,
conceitual e metodológico dos campos científicos e dos saberes contemporâneos.
Pois, as práticas discursivas orquestradas na e através das redes repercutem em
potenciais similitudes e distinções na dinâmica científica e, consequentemente, na
“especialização cognitiva”; o que consolida, nutre e propaga territórios
epistemológicos nas ciências contemporâneas.
Neste capítulo, o intento é responder às questões: Por que a
modernidade reflexiva, através das múltiplas contingências, provocou a
ressignificação científica? Como a evolução epistemológica na modernidade
reflexiva repercutiu no processo de formação de Territórios Epistemológicos? E por
fim, por que e como os programas de pós-graduação em Geografia, através das
redes discursivas, consolidam, nutrem e propagam territórios epistemológicos na
ciência geográfica contemporânea?
Ainda neste capítulo, produto da interlocução teórica, têm-se como
objetivos: explicar as características da modernidade reflexiva que repercutem na
dinâmica científica, através das múltiplas contingências; analisar o papel das redes
contemporâneas na ressignificação científica; e desvelar a contribuição da
ressignificação científica na “especialização cognitiva”.
Destarte, nosso argumento principal é de que o período que corresponde
à contemporaneidade, referente aos últimos 50 anos, é marcado por diversas
características que circunscrevem múltiplas contingências diretamente vinculadas à
87
crise dos sentidos e suas implicações na atividade científica, entre elas a
desqualificação ontológica, a desconfiguração axiológica, a desestabilização
epistemológica e a diversidade metodológica, que, associadas à nova ordem social
em rede da “Modernidade reflexiva”, afetam as tradições de pesquisa, o que
implicou uma Ressignificação Científica para “um mundo singularmente novo”
(MORIN, 2002). Uma ressignificação proveniente das mudanças evolutivas, que,
segundo a perspectiva de Kuhn (1962, 2011 e 2017), são revolucionárias, uma vez
que afetam e afetaram significativamente não só o fazer científico, através
transformações dos modos explicativos e interpretativos, nas formas de produzir o
conhecimento científico, mas também alteraram e alteram de forma contingente
concepções, conceitos, propósitos e valores imbricados nos “intercursos” que
estruturam a episteme. Uma ressignificação que repercute na evolução
epistemológica da Geografia.
3.1 Modernidade Reflexiva e a Ressignificação Científica
Nos últimos anos, é grande a celeuma que vem acontecendo em torno da
temática “pós-modernidade”. Discussões variadas que apresentam pontos
divergentes e convergentes. Entre os principais pontos divergentes, podemos citar:
as terminologias pós-modernidade, alta modernidade, modernidade tardia ou
radicalizada; quanto à definição ou ao próprio conteúdo e amplitude do que se
caracteriza como a “condição pós-moderna” – superação, rejeição ou
descontinuidade dos pressupostos da modernidade; e os diferentes enfoques que
são dados ao tema para alterações culturais, artísticas, políticas, científicas,
econômicas e socais.
Modernidade ou modernização, para Rouanet (1985), refere-se ao
“Iluminismo”, isto é, a um movimento ocidental que tinha como pretensão provocar a
“transformação de sociedades arcaicas” para sociedades guiadas pelos “princípios
da racionalidade, universalidade e ordenação”, em que a reorganização das
“estruturas sociais obsoletas” seria regida para a “ordem” e o “progresso”, para
assegurar a todos condições mínimas de vida, à luz de novos princípios da ciência.
88
O “projeto da razão iluminista” tinha como proposta a superação da
“tradição”, que estabelecia o sentido do que deveria ser no agir social, por isso teve
como objetivo reformador a promoção da liberdade e da autonomia no tríplice
registro: do pensamento, da política e do homem do “reino das
necessidades”/trevas. Uma sociedade que tivesse alcançado tais objetivos seria
“Moderna”. A perspectiva era de que tudo que representasse o tradicional fosse
diluído e estabelecesse uma nova forma de pensar, ser e agir, surgindo o império
da racionalidade. Assim também, indicam Dutra Gomes e Vitte (2017, p.53):
O projeto de conhecimento moderno pautou-se na busca de universais, objetivando entendimentos que representassem a universalidade, com as regras, leis gerais, que são validadas e aplicáveis a tudo e a todos a qualquer tempo e espaço. As influências como as neoplatônicas e herméticas no Renascimento (XIV-XVII) defenderam a existência de ‘forças ocultas’ que movimentavam e governavam a dinâmica da matéria e natureza, e que depois de Newton foram chamadas de Leis da Natureza [...] A matéria foi considerada como passiva, compondo uma natureza considerada como máquina. Ambas precisariam dessa força, vista como de índole absolutamente racional, ordenada e equilibrada, para funcionarem e se movimentarem – tudo o que parecia aleatório ou desordenado seria apenas aparente, imprecisões da subjetividade em captar o funcionamento fundamental da natureza. [...] as pretensões de construir um conhecimento universal fizeram com que a razão ocidental procurasse dar sentido, ou mesmo, dominar tudo o que era acaso, contingente, particular e incerto na dinâmica do mundo.
Basicamente, a existência de leis universais e a busca da ordem
(mecanismo) que tudo regia como “força oculta” são os pilares que sustentavam a
ciência moderna e, consequentemente, fundamentavam a forma de ver, conceber,
ser e agir em todos os âmbitos da experiência humana e social no contexto da
modernidade, inclusive na Geografia Moderna. Essa compreensão coaduna com a
fala de Silveira e Vitte (2011, p. 38) de que:
O caminho tomado pela ciência moderna no final do século XVIII e início do século XIX gerou uma série de ramificações e especializações que visavam ao domínio cada vez maior da esfera empírica de investigação e que, em contrapartida, excluía do universo científico a busca por uma verdade última ou pelo fundamento essencial da realidade. A ciência moderna pretensamente buscou a verdade, que seria alcançada pela reunião de um conhecimento meticuloso sobre o mundo para a composição de uma explicação cada vez mais sóbria e válida acerca da realidade. [...] ao longo dos tempos. Tal premissa se mostrou impossível, pois os campos disciplinares ficaram desconectados de suas premissas filosóficas no momento de gênese moderna das Ciências.
Para os autores, os pilares para “o completo domínio da natureza”,
principal intento da ciência moderna, seriam: I) a simplificação (a análise partir do
89
simples para o complexo como procedimento para o conhecimento) e a
fragmentação (a análise em parte para conhecer a totalidade, o que gerou a
especialização) dos saberes como condição essencial da postura investigativa; II) a
verdade ou efetividade da investigação como a correspondência “ideal” (retrato
fidedigno) do empírico (este como o recorte analítico da realidade); III) a
materialidade da realidade (objetividade) e o objeto de estudo como independentes
do sujeito; IV) a crença de que o conhecimento científico progressivo da realidade
leva ao completo “domínio da natureza”; e V) a ruptura da ciência com a Filosofia, o
que, segundo Silveira e Vitte (2011), aconteceu pela total “ignorância da discussão
filosófica”. Em outros termos, a eliminação da investigação filosófica da ciência e/ou
o desconhecimento sobre os pressupostos filosóficos que fundamentam as escolhas
teóricas e metodológicas do pesquisador, pois toda seleção implica, de antemão, a
existência de “uma visão geral da realidade, pela qual se estabelecem os princípios
e a forma de proceder diante de qualquer objeto e, mesmo, de reconhecer como tal
qualquer objeto da ou na experiência” (SILVEIRA; VITTE, 2011, p. 39),
caracterizando-se pela simplificação errônea da “compreensão do que seja a
realidade” como objetiva, concepção confirmada pela indicação da “linguagem
lógico-matemática” como única forma de validar o conhecimento científico.
Entre as consequências da adoção dessa “postura investigativa”,
instituída e legitimada pela ciência moderna, principalmente através do sistema
filosófico do positivismo lógico, sem maiores reflexões filosóficas, os autores
destacam “a fragmentação das ciências” ou a (hiper)especialização. Tomando como
referência a unidade científico-filosófica da Geografia (física e humana), os autores
alegam que os caminhos da especialização foram constituídos pela diversidade de
método em função das exigências da natureza do objeto, o que provocou a
fragmentação de “inúmeras disciplinas científicas”. Nas palavras desses autores:
A variação metodológica, de acordo com o objeto, implicou uma diversificação das concepções de mundo subjacentes às teorias e análises em cada ciência. Sem a investigação filosófico-metafísica ou erroneamente estruturadas sobre um sistema positivista, as ciências começaram, no diferenciar metodológico que exigia seu objeto e seus objetivos, a falar línguas distintas, de maneira que a relação entre elas se tornou mesmo insustentável, imaginando cada uma em seu domínio caminhar no rumo da verdade pela compreensão cada vez mais apurada e detalhada a partir de seus métodos, cujos pressupostos filosóficos nem de longe haviam sido discutidos. (SILVEIRA; VITTE, 2011, p. 40).
90
Silveira e Vitte (2011) ilustram como a inserção de novos pressupostos
filosóficos acarretam mudanças na dimensão metodológica da atividade científica.
Isso porque, quando alguma das dimensões (seja ontológica, epistemológica,
metodológica e axiológica) é alterada em função da coimplicação e da reflexividade,
as outras ou uma das outras dimensões também são afetadas. No trecho acima, os
autores indicam inserção da diversidade metodológica na investigação, e a
consequente desqualificação ontológica provoca a diversidade lexical que, segundo
Kuhn, produz a “especialização cognitiva”.
Para Castro-Gomez (2005, p. 87): “A crise atual da modernidade é vista
pela filosofia pós-moderna e os estudos culturais como a grande oportunidade
histórica para a emergência dessas diferenças largamente reprimidas”. A autora nos
alerta que a celeuma sobre o “‘fim’ da modernidade implica certamente a crise de
um dispositivo de poder que construía o “outro” mediante uma lógica binária que
reprimia as diferenças” (CASTRO-GOMEZ, 2005, p. 87), portanto, cria e concretiza
as dualidades, a fragmentação e a dominação. A principal tese que a autora defende
é que “esta crise não conduz à debilitação da estrutura mundial no interior da qual
operava tal dispositivo”. Os próprios debates que se estabelecem na atualidade,
indagando sobre os conceitos e os fundamentos, evidenciam não só os desacertos
do “projeto da razão iluminista” como a própria delimitação sobre a modernidade –
Ainda estamos na modernidade? É período de transição? Ou é o fim da
modernidade? Seria o triunfo do irracionalismo ou do relativismo epistêmico? É
impossível pensar na atividade científica ou em qualquer outra prática social
contemporânea, com os ditames da racionalidade totalmente ausentes ou num “vale
tudo”.
Dos termos frequentemente utilizados pelos teóricos que abordam o
período contemporâneo denominado como modernidade “alta”, “tardia”, “pós” e
“hiper”, entre outras adjetivações, optamos por Modernidade “reflexiva”. Isso
porque é uma expressão que advém dos estudos realizados por Giddens (2002)
para designar o período marcado pela reflexividade37 e pela interseção e
37 Segundo Giddens (2002, p. 45): “a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informações renovadas sobre estas próprias práticas, alterando, assim, constitutivamente, seu caráter [...] todas as formas de vida social são parcialmente constituídas pelo conhecimento que os atores têm delas. [...] em todas as culturas, as práticas sociais são rotineiramente alteradas à luz de descobertas sucessivas que
91
reordenação do tempo e do espaço, numa organização social pós-tradicional que
repercutiu em transformações nas ferramentas cognitivas, nos conteúdos e sentidos
atribuídos às instituições modernas na vida social cotidiana. Para Silveira e Vitte
(2011, p. 44), não é pós-modernidade, com “estruturas epistêmicas diferenciadas,
mas [...] uma extrapolação da modernidade; trata-se de uma hipermodernidade, que
reclama a superação das condições ideológicas que povoam o universo do
conhecimento [...]”.
Segundo Ruiz (2003), se a modernidade trouxe a imposição do mito da
razão como única fonte do saber, a pós-modernidade traz consigo as coimplicações,
entre elas a diluição dos referentes simbólicos (os sentidos e significados
socialmente instituídos) que faziam parte das tradições e, como seu efeito tributário,
a “plurissignificação interpretativa” e/ou multiplicidade ou esvaziamento dos sentidos,
que trazem a relatividade das verdades, propósitos, crenças e valores, que
acarretaram consequências perversas à humanidade e ao meio ambiente. Unger
(1998, p. 28) coaduna com o ponto de vista do autor e complementa apontando a
existência do que denomina de “deserto contemporâneo [...] como o resultado de
uma dinâmica na qual o homem entende sua humanidade na razão direta da sua
capacidade de dominar a natureza e outros homens”, o que está intrinsecamente
vinculado à diluição dos fundamentos filosóficos e éticos nas experiências cotidianas
e suas reflexões, isto é, a reflexividade dos sentidos “do ser” e do que “deve ser”.
Para Giddens (2002, p. 10-11), a Modernidade Reflexiva coteja as seguintes
características:
A modernidade é uma ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional. A dúvida, característica generalizada da razão crítica moderna, permeia a vida cotidiana assim como a consciência da razão filosófica, e constitui uma dimensão existencial geral do mundo social contemporâneo. A modernidade institucionaliza o princípio da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese – afirmações que bem podem ser verdadeiras, mas que por princípio estão sempre abertas à revisão e podem ter que ser, em algum momento, abandonadas. Sistemas de conhecimento acumulado – importantes influências de desencaixe – representam múltiplas fontes de autoridade [...]. Nas situações a que chamo de modernidade ‘alta’ ou ‘tardia’ – nosso mundo de hoje –, o
passam a informá-las. Mas somente na era da modernidade a revisão da convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana, inclusive à invenção tecnológica no mundo material”. Daí a adjetivação “reflexiva”, um espaço-tempo que sente e ressignifica as reflexões das reflexões sobre a própria prática, a reflexão dos conhecimentos sobre os próprios conhecimentos e das tecnologias - é a reflexividade do eu, dos saberes e das instituições sociais.
92
eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído reflexivamente.
Parafraseando o autor, a modernidade reflexiva é circunscrita pelo
embate científico entre a racionalidade moderna e filosófica, entre o “colapso das
verdades” absolutas e o relativismo estabelecido pelo princípio da “dúvida” e das
“incertezas científicas”, entre a diversidade de dados, fontes, instituições e sentidos
e a confiabilidade a partir do “desencaixe” com o real e a pluralidade de sentidos,
imprimindo, com isso, uma crise existencial e ontológica nos “sistemas de
conhecimento acumulado”, nos “sistemas de inteligibilidade” consolidados e, com
ela, nas tradições de pesquisa. E, como consequência, instituindo a necessidade de
uma nova “agenda de pesquisa para as Ciências sociais” (GIDDENS, 2002).
A modernidade reflexiva é oriunda da associação intrínseca da Revolução
Tecnológica e Científica com a Mundialização/globalização e do avanço da
acumulação capitalista sem precedentes na história, que repercutiu e repercute em
profundas transformações nos sistemas social, físico e cognitivo, através de
alterações profundas nas bases substantivas e não substantivas tradicionais, que
definiam os conteúdos das práticas socioespaciais, as relações sociedade/natureza,
as concepções humanas e coletivas, os valores éticos e sociais e os propósitos da
existência humana (sentidos e significados tradicionalmente estabelecidos). Pois o
mundo, realidade, natureza e sociedade passaram a ser concebidos como
articulados, imprevisíveis, complexos, diversos, caóticos e múltiplos e, com isso,
“enfrentamos tempos incertos e fluidos com ferramentas intelectuais de outras
épocas, de outros tempos, observando a realidade como se ela ainda fosse
considerada estável, homogênea e determinada” (MORAES, 2008, p. 13). Dutra
Gomes e Vitte (2017, p. 52) complementam o ponto de vista da autora esclarecendo
que
Foi justamente a partir da Ciência que o acaso, o aleatório, as incertezas foram reconhecidas como inerentes aos fenômenos da natureza (físicos e humanos); influentes, de uma forma ou de outra, na totalidade dos processos e nas formas de conhecê-los. Entendimentos advindos de campos como a Eletrodinâmica no século XIX, Teoria da Relatividade, Mecânica Quântica, Teorias dos Sistemas na primeira metade do século XX e, mais recentemente no final do século XX, os Sistemas Dinâmicos Não lineares, Física do não equilíbrio, Sistemas Dinâmicos Complexos, Ciência e Teoria da Complexidade são alguns que oferecem o arcabouço de sustentação. É possível observar esse movimento histórico-epistemológico e condições atuais de afirmação e incorporação das incertezas científicas utilizando a Geografia como exemplo.
93
Essa “ressignificação” do científico acontece em função da reflexividade
das novas descobertas científicas e repercute na evolução epistemológica dos
saberes e na relativização e mercantilização das instituições sociais e dos sistemas
tradicionais, principalmente da própria “tradição” para atender “às ordens da
transformação” do imaginário global e capitalista, das ciências, portanto. Pois as
experiências cotidianas reflexionam as alterações (em ritmo, amplitude e
profundidade) das múltiplas implicações da experiência global na práxis social e na
identidade do eu, que, na modernidade reflexiva, influenciam e são,
simultaneamente, influenciadas por ela. Identidades que se tornaram interligadas,
indefinidas e extensivas no tempo e no espaço e colocam a tradição “em constante
mutação [...] no contexto do deslocamento e da reapropriação de especialidades,
sob o impacto da invasão dos sistemas abstratos”. (GIDDENS, 1991; DUTRA
GOMES; VITTE, 2017)
Na modernidade reflexiva, a linguagem, a especialização e a tecnologia,
desempenharam as condições essenciais, através reflexividade institucional, “tanto
na forma de tecnologia material quanto da especializada expertise social”
(GIDDENS, 1991, p. 77) para consolidação de “novas” tradições modernas, a
ciência, que, no caso, são “os sistemas de peritos”. Vejamos o que Giddens (1991,
p. 74) nos aponta:
[...] uma finalização, sob o disfarce da emergência de uma sociedade pós-tradicional. Esta expressão pode, à primeira vista, parecer estranha. A modernidade, quase por definição, sempre se colocou em oposição à tradição; não é verdade que a sociedade moderna tem sido "pós-tradicional"? Não, pelo menos da maneira em que me proponho a falar aqui da "sociedade pós-tradicional". Durante a maior parte da sua história, a modernidade reconstruiu a tradição enquanto a dissolvia. Nas sociedades ocidentais, a persistência e a recriação da tradição foram fundamentais para a legitimação do poder, no sentido em que o Estado era capaz de se impor sobre ‘sujeitos’ relativamente passivos. A tradição polarizou alguns aspectos fundamentais da vida social pelo menos, a família e a identidade social, que, no que diz respeito ao "iluminismo radicalizador", foram deixados bastante intocados.
A tese do autor não é do fim da modernidade, mas de uma modernidade
tardia em que acontece a estruturação de uma nova forma de organização social,
que ele denomina “Sociedade pós-tradicional”. E, paradoxalmente, essa nova ordem
social não propõe a “dissolução absoluta” da tradição (por isso o pós), mas impõe à
tradição, e a tudo relativo a ela (família, identidade do eu, instituições e sistemas
abstratos de conhecimento), um novo papel na ordem social e científica, o que
94
implica a sua “reconstrução”, de forma que possa atender às demandas do mercado
pela difusão intensiva e unificadora da globalização, que, necessariamente,
repercute em processos radicais, intencionais e conectados de “abandono,
desincorporação e problematização da tradição” (GIDDENS, 1991, p. 74).
Assim como Giddens (1991), para Kunh (2017), a especialização e a
tecnologia “assumem, aparentemente, relevo especial” nesse processo que
denominamos de ressignificação, com certeza na reflexividade oriunda do
imbricamento, pois potencializa o estreitamento no âmbito da competência técnica e
científica, necessária como “ferramentas cognitivas cada vez mais poderosas” para o
desenvolvimento dos instrumentos (científicos e técnicos) especiais para a evolução
do conhecimento. Por isso, para elucidar a reflexividade na ordem pós-tradicional, é
imprescindível a compreensão das características essenciais do que seja tradição:
Todas as tradições têm um conteúdo normativo ou moral que lhe proporciona um caráter de vinculação. Sua natureza moral está intimamente relacionada aos processos interpretativos por meio dos quais o passado e o presente são conectados. A tradição representa não apenas o que ‘é’ feito em uma sociedade, mas o que ‘deve ser’ feito. Isto não significa, é claro, que os componentes normativos da tradição sejam necessariamente enunciados. A maioria deles não o é: são interpretados nas atividades ou orientações dos guardiões. A tradição abarca o que faz, e pode ser inferida, porque seu caráter moral apresenta uma medida da segurança ontológica para aqueles que aderem a ela. Suas bases psíquicas são afetivas. Há, em geral, profundos investimentos emocionais na tradição, embora eles sejam mais indiretos que diretos; eles se originam dos mecanismos de controle da ansiedade proporcionados pelos modos tradicionais de ação e de crença. (GIDDENS, 2000, p. 84)
Um dos principais aspectos que chamam atenção na fala do autor sobre a
essência das tradições é a existência do conteúdo normativo, que determina o que
precisa ser feito e, com isso, liga e estrutura o círculo temporal – passado, presente
e futuro – e os laços sociais e psicoafetivos, que justificam sua existência e o
comprometimento dos participantes. O problema é quando a reflexividade38 provoca
mudanças no seu conteúdo que acarretam profundas alterações existenciais,
gerando de forma exacerbada o individualismo e a dominação sobre o outro ou
sobre o meio. Em relação à natureza, não é diferente, vejamos:
38 Por exemplo, a “reflexividade epistêmica”, que reconstrói as tradições científicas e provoca o que chamamos
de desestabilização epistemológica, pois potencializa novas formas de ver, conceber e fazer o científico onde já existiam modos e formas padronizadas de produzir o científico.
95
A natureza assim como a tradição foram dissolvidas. Hoje em dia, entre os outros términos, podemos falar – em um sentido real – do fim da natureza, uma maneira de nos referirmos à sua completa socialização. A socialização da natureza significa muito mais que apenas o fato de o mundo natural estar sendo cada vez mais marcado pela humanidade. A ação humana [...] há muito deixou sua marca no ambiente físico. (GIDDENS, 1991, p. 97)
A premissa é que a intensidade, a abrangência, o fluxo e o volume das
interações que caracterizam as experiências locais e globais na contemporaneidade
requalificam as formas de conceber, isto é, de dar sentido ontológico e teológico ao
significado do ser, do estar e do para quê, tradicionalmente atribuídos à natureza e
à sociedade. E com a reflexividade, as novas concepções produziram mudanças
evolutivas no conteúdo e no contorno do que distinguia o que é Natureza do que é
Sociedade – ou o que estabelecia suas identidades científicas e sociais em função
da “socialização da natureza”. É a existência da complexificação da natureza que,
segundo Vitte (2011, p.17), “tem chamado atenção dos próprios geógrafos, [...] há
uma nova imaginação geográfica” em função do que denominamos de
desqualificação ontológica – um novo significado ontológico para as especialidades
que não admitem separação política e acadêmica entre natureza e sociedade, uma
vez que:
A tradição é um meio de identidade. Seja pessoal ou coletiva, a identidade pressupõe significado, mas também pressupõe o processo constante de recapitulação e reinterpretação [...] a identidade é a criação da constância através do tempo, a verdadeira união do passado com o futuro antecipado. Em todas as sociedades, a manutenção da identidade pessoal e sua conexão com identidades sociais mais amplas são um requisito primordial de segurança ontológica. Esta preocupação psicológica é uma das principais forças que permitem às tradições criar ligações emocionais tão fortes por parte do crente. As ameaças à integridade das tradições são [...] experimentadas como ameaças à integridade do eu. (GIDDENS, 1991, p. 100)
Nosso ponto de vista é que, para o autor, há uma vinculação intrínseca
entre tradição, identidade e imagem social, que interfere na experiência do ser social
(local e global), afetando, de modo intenso e difuso, os processos psíquicos, afetivos
e sociais e, com certeza, o científico. Na modernidade, foram todos implicados pela
reflexividade do eu e das instituições modernas tradicionais, pois a “Ciência,
tecnologia e especialização desempenham um papel fundamental no que chamo de
segregação da experiência” (GIDDENS, 2002, p. 15). Fenômeno que denominamos
de Ressignificação Científica, em função das transformações diretas e indiretas nos
quadrantes que compõem a dinâmica científica.
96
Destarte, defendemos que a dinâmica científica é composta pela
estruturação contínua e coimbricada entre os quadrantes ou dimensões ontológicas,
axiológicas, epistemológicas e metodológicas. São as conexões estabelecidas entre
as pressuposições e através das teorias (saberes e saber-fazer), dos critérios e
princípios (valores sociais, cognitivos e éticos), dos conceitos (teóricos e empíricos),
da organização social (política e histórica) e orientações procedimentais
(instrumentos e técnicas) que informam, guiam, estabelecem, legitimam e dão
sentidos às práticas discursivas que consubstanciam a produção científica. Primeiro
porque, conforme situamos no primeiro capítulo, a evolução epistemológica das
teorias sobre o desenvolvimento do conhecimento científico apontou que as teorias
são construções sócio-históricas e, simultaneamente, cognitivas, que pressupõem
fundamentos ontológicos, metodológicos, epistemológicos e axiológicos, e que nelas
consolidam intrinsecamente o resultado do embate entre a tradição (do ser e deve
ser – o instituído) e a inovação (a descoberta – o do devir). Segundo, toda e
qualquer dinâmica científica (sejam as trocas de conhecimentos, as descobertas, as
construções teóricas, as aproximações com a realidade, as controvérsias teóricas,
entre outras práxis científicas), nem sempre de forma consciente, carrega consigo
explicações, justificativas e diretrizes que influenciam as escolhas teóricas,
metodológicas e empíricas (que orientam como estes elementos devem interagir) e
que, por sua vez, estão vinculadas a determinadas intencionalidades (ideológicas,
cognitivas e sociais) e perspectivas epistemológicas adotadas, que configuram
ligações evolutivas entre novas e velhas convergências num dado contexto espaço-
temporal de um dado campo científico e acadêmico. Por isso, as múltiplas
contingências, oriundas da modernidade reflexiva, afetam a evolução epistemológica
e trazem implicações para uma ou outra dimensão.
Na verdade, os autores Moraes (2008), Silveira; Vitte (2011a, 2011b,
2011c) e Dutra Gomes; Gomes; Vitte ( 2017) apontam que as descobertas
científicas do século XX induziram os questionamentos sobre a estabilidade do
mundo, a determinação, a previsibilidade, a simplificação, a possibilidade de controle
dos processos e a existência da causalidade linear, o que contribuiu para
estabelecer a crise dos pilares epistêmicos, inclusive no âmbito das ciências
naturais, através da diluição das bases teóricas do positivismo lógico, do
evolucionismo sociológico e do marxismo. Isso porque afetaram os princípios
97
fundamentais do modelo de ciência moderna (racionalidade, universalidade e
ordenação), colocando em xeque os elementos utilizados nos sistemas tradicionais
do saber, tais como a causalidade, o mecanicismo, a fragmentação dos saberes, o
determinismo, a mensuração, a verificação, entre outros.
Argumentamos que a nova condição que implicou a revisão dos excessos
deterministas, recolocando em outros patamares a questão da subjetividade e da
objetividade do conhecimento científico, cria um novo cenário epistemológico, em
função do que caracterizamos de desestabilização do que se concebe como ciência
e como conhecimento científico, coimplicando diretamente na dimensão
metodológica.
Se para Moraes (2008) e Silveira e Vitte (2011), as novas descobertas
nas ciências naturais foram decisivas no processo de ressignificação do modelo
epistemológico de ciência proposto, validado e utilizado, as ciências humanas e
sociais, não tendo ficado aquém nesse processo. E em função disso, surge a
diversidade metodológica.
De fato, a emergência de abordagens metodológicas qualitativas induziu
uma concepção de ciência social de posição “antipositivista”, indicando outras bases
epistemológicas e colocando em xeque os sistemas filosóficos tradicionais. O
entendimento é que as mudanças implicaram o surgimento das “metodologias
alternativas”, a “pluralidade metodológica” e o “ecletismo metodológico”. A
perspectiva é que, com a inserção das metodologias diversas e diferentes das
tradicionalmente validadas, legitimadas e utilizadas nas ciências naturais, tais como
as abordagens qualitativas e quali-quantitativas, passou-se a conceber a existência
do conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em detrimento do
objetivo, quantitativo e explicativo. Com isso, ensejou-se a múltipla contingência da
diversidade metodológica e intensificou-se uma celeuma sobre as questões
epistemológicas, conforme desvela Sousa Santos (2010, p. 144-145):
O debate sobre a diversidade epistemológica do mundo apresenta hoje duas vertentes: uma, que poderíamos designar de interna, questiona o caráter monolítico do cânone epistemológico e interroga-se sobre a relevância epistemológica, sociológica e política da diversidade interna das práticas científicas, dos diferentes modos de fazer ciência, da pluralidade interna da ciência; a outra vertente interroga-se sobre o exclusivismo epistemológico da ciência e se centra nas relações entre a ciência e outros conhecimentos no que podemos designar por pluralidade externa da ciência. Trata-se, pois, de dois conjuntos de epistemologias setoriais ou
98
regionais, que procuram, sob diferentes perspectivas, responder às premissas culturais da diversidade e da globalização.
Para o autor, na contemporaneidade existem várias possibilidades de
compreensão do fenômeno epistêmico (as quais denomina de “epistemologias
regionais”) ou realização das práticas científicas. Ele justifica que isso acontece em
função da “convivência”, isto é, performam e coexistem, numa mesma espacialidade
e temporalidade, diferentes formas de conceber, fazer, descrever e validar a ciência
e seus produtos, gerando um fenômeno denominado pelo autor de “pluralidade
epistemológica”, principalmente pela vinculação da dinâmica científica ao contexto
de produção. Sousa Santos (2010, p. 145-146) ilustra ainda esse fenômeno,
descrevendo que:
A questão da pluralidade interna da ciência foi suscitada [...] pelas epistemologias feministas, pelos estudos sociais e culturais da ciência e pelas correntes da história e da filosofia das ciências por estes influenciadas. [...] questiona a neutralidade da ciência, tornando explícita a dependência da atividade de investigação científica de escolher sob os temas, os problemas, os modelos teóricos, as metodologias, as linguagens e imagens e as formas de argumentação; de caracterizar, via investigação histórica e etnográfica, as culturas materiais das ciências de reconstruir os diferentes modos de relacionamento dos cientistas com contextos institucionais com os seus pares, o Estado, as entidades financiadoras, os interesses econômicos ou o interesse público; de interrogar as condições e os limites da autonomia das atividades científicas [...]. Ao analisar a heterogeneidade das práticas e das narrativas científicas, as novas abordagens epistemológicas, sociológicas e históricas pulverizaram a pretensa unidade epistemológica da ciência e transformaram a oposição entre as duas culturas – a científica e a humanística –, na condição de estruturantes do campo dos saberes, numa pluralidade pouco estável de culturas científicas e de configurações de conhecimentos.
Para sintetizar a fala do autor, podemos cotejar a diversidade de
perspectivas epistêmicas, a heterogeneidade das práticas discursivas, a pluralidade
metodológica e epistemológica, a evidência da cultura científica e da sua
multiplicidade em função da vinculação entre as tradições de pesquisa e seu
contexto de produção, bem como a formação de coletivos em redes de produção de
saberes, que trazem novas “configurações” ao fazer científico – demarcadas pelas
distinções e similitudes que garantem a diversidade de práticas discursivas, de
sentidos e formas de produção científica. E, consequentemente afetam a evolução
epistemológica dos saberes.
99
3.2 As redes na ressignificação científica
O ab-rogar das bases epistemológicas que sustentavam a concepção de
ciência tradicional implicou também a necessidade de propor/criar nova dinâmica
científica para produzi-la, o que, consequentemente, deu origem a um produto
diferente (saber) e que não poderia ser avaliado/validado/justificado à luz de critérios
de cientificidade divergentes, estabelecendo a “desestabilização epistemológica”,
isto é, a desestabilização dos padrões da ciência moderna, caracterizada por Araújo
(2003). Ou a “reconfiguração epistêmica”, indicada por Lima (2014, p. 11), como
resultado da:
A reformulação teórico-metodológica pela qual vem passando a ciência (abalando com isso, os alicerces cartesianos que a fundamenta) abre uma espécie de salvo-contudo para o sujeito, o qual, por muito tempo, se viu negligenciado do processo lógico de objetivação do real. Reorientação essa que remota ao início do século XX, quando a física da relatividade, a mecânica quântica e a psicanálise vieram à tona reclamar um novo paradigma da ciência, refutando a tradicional inclinação cientificista de hipostasiar o objeto a um estatuo de lei ou de verdade fundamental e
universal.
Um processo que, segundo nosso ponto de vista, requer o que
caracterizamos no primeiro capítulo como mudanças evolutivas, tais como: I) o
“rearranjo na ordem do saber”; II) a maior projeção aos sujeitos nas investigações
geográficas; e III) a “complexificação do meio geográfico da escala local à
planetária”. Sendo assim, as múltiplas contingências da Modernidade Reflexiva
provocaram diversas e profundas alterações na dinâmica das tradições de pesquisa.
Na fala de Dutra Gomes (2010), a seguir, encontramos fragmentos que reforçam,
ampliam e indicam os motivos e as características que atribuímos ao que
denominamos de Ressignificação científica:
Na segunda metade do século XX, [...] se estabeleceu um 'salto qualitativo' tanto na experiência espacial, com a emergência da Sociedade Informacional, quanto nos avanços científicos ligados à emergência na ciência do contexto da Complexidade. A crise da razão e da matriz espacial atinge uma situação limiar. Os ajustes sociais, financeiros e espaciais do capitalismo a partir da acumulação flexível, mais a intensa compressão espaço/temporal advinda da intensidade e formação das redes nas comunicações, [...] aliados aos entendimentos em torno dos avanços ligados ao contexto da Complexidade – [...] colocaram em xeque o sentido de universal e sua relação com o particular, como havia se estruturado a partir do século XVIII. (DUTRA GOMES, 2010, p. 6)
Na fala do autor, podemos identificar proposições que consideramos
evidências para confirmar a tese da Ressignificação Científica. Primeiro, o que autor
100
chama de motivos que contribuíram para a “crise da matriz espacial moderna” é
similar ao que apontamos como circunstâncias indutoras da Ressignificação
científica contemporânea, sendo elas: (a) o avanço tecnológico que ampliou as
redes de articulações sociais, econômicas, culturais, científicas, entre outras; (b) as
contribuições das ‘novas’ teorias da Complexidade, Relatividade etc.; e (c) os
processos de globalização, expansão capitalista e de reestruturação produtiva, isto
é, a reorganização no modelo de produção fordista para o modelo de produção
flexível, que provocaram novo ordenamento social, econômico e cultural. Por isso,
argumentamos que as circunstâncias não são isoladas, mas que se articulam,
divergem, complementam, ampliam e (res)significam noções e ferramentas
conceituais consagradas, tais como as noções de tempo e espaço e suas
implicações nas concepções de ciência e realidade. Vejamos:
O espaço – as interações espaciais – torna-se o configurador do dinamismo temporal, agora não guia exterior, mas atrelado às particularidades de vivência – temporalidades – dos corpos. O espaço torna-se a coexistência da multiplicidade, das temporalidades; antevê-se uma nova postura de reconstrução do projeto de humanidade, agora a partir do aporte espacial, com respeito à convivência das diferenças. O progresso deixa de ser algo externo e impositor, a favor do capital, para tornar-se vinculado aos objetivos e pretensões específicas em cada caso. [...]. Destaca-se na reconstrução do projeto de humanidade, pois as diferenciações, as multiplicidades espacialmente manifestas, colocam em relevo a pertinência e a necessidade de se incorporar e desenvolver a alteridade na prática científica. (DUTRA GOMES, 2010, p.10)
A nosso ver, a perspectiva é que com a interseção espaço e do tempo (e
acrescentando a especialidade – tempo, espaço e especialidade) passam a coexistir
diferenças e similaridades, interesses e interações diversas, produtoras de
multiplicidades e alteridades, que afetam todos os âmbitos da experiência humana,
principalmente o desenvolvimento histórico-epistemológico. Nessa mesma linha de
pensamento e avançando um pouco mais nas circunstâncias da modernidade
reflexiva e suas implicações na dinâmica científica, temos a fala de Afonso (2018, p.
12):
A compressão do tempo-espaço, que David Harvey, há quase três décadas, tão bem discutiu na Condição pós-moderna, a propósito da transição do fordismo para o pós-fordismo, tem hoje novas expressões e apropriações, que se traduzem na expansão do capitalismo cognitivo a partir da centralidade econômica do conhecimento, apoiada, em grande medida, pela ampliação global do acesso (desigual) às tecnologias da informação e da comunicação. E a esta centralidade emergente da produção imaterial que reinventa as práticas sociais, nomeadamente através dos usos múltiplos das redes sociais, em geral, e das redes científicas de pesquisa e
101
colaboração, em particular. Tudo, num primeiro instante, parece estar a passar-se aqui e agora. No entanto, se isso é verdade em termos tecnológicos e digitais, não dá conta, com objetividade, dos tempos e espaços que recriamos e alargamos quando a colaboração entre pares e pesquisadores pressupõe e exige tempos múltiplos e variados [...]. E é nestas temporalidades complexas que se inscrevem processos novos de participação ampliada na produção de conhecimento e reflexividade crítica – tarefa, aliás, mais fácil de enunciar do que de praticar. Na verdade, trata-se não apenas de fugir da quantofrenia congruente com uma (suposta) ciência just in time, ditada pelos cerceamentos impostos por uma outra compressão do tempo-espaço, exigida pela desenfreada produtividade do capitalismo acadêmico numa economia do conhecimento, mas de resistir para fazer ciência com profundidade teórico-conceptual e metodológica (sem deixar de lado questões propriamente políticas, sociais e éticas).
Para o autor, a evolução do “capitalismo acadêmico”, que caracteriza a
contemporaneidade, manifesta-se pelo aumento expressivo das práticas científicas
automatizadas pelo volume significativo, multiplicidade e fluxo (em termos de
atualização contínua) dos saberes científicos (capital cognitivo) e pela “reflexividade
crítica” (epistêmica). Tais manifestações se aliam às potencialidades oferecidas
pelo uso das tecnologias das comunicações, como as possibilidades de executar
grande quantidade de dados, acontecer a produção colaborativa, promover o
acesso democrático e remoto ao capital cognitivo, potencializar a ubiquidade, a
simultaneidade e a flexibilização, que marcam as transformações nas dimensões do
real/virtual, do espaço e do tempo, bem como pela legitimação da “cultura do
produtivismo”, na busca contínua (e “esquizofrênica”) por maiores índices
bibliométricos (pessoais e coletivos) requeridos pelas redes de pesquisa. O ponto
de vista é que a produção científica em redes surge basicamente como uma das
estratégias para atender às demandas do capitalismo cognitivo. Mas quais as
mudanças efetivas que a ordem social das redes, aliada à inserção das tecnologias
da comunicação, provocou nos modos de produção do trabalho acadêmico? Para
responder a essa questão, devemos tomar como referência que:
Ao longo das duas últimas décadas, as mudanças na organização da universidade contemporânea foram vertiginosas. Os novos processos acadêmicos de formação e curricular, a gestão e a produção de novos conhecimentos, a geração de plataformas digitais e virtuais para fins de aprendizagem, o impulso e as estruturas inter e transdisciplinares, a internacionalização Norte-Sul e Sul-Sul foram, entre muitas outras, importantes mudanças que reconfiguraram a tradicional constituição da universidade e estão em processo de tendências de transformação e criação de novas instituições em diferentes partes do mundo [...]. Uma das tendências mais pronunciadas e vitais que estão se apresentando no contexto dessas mudanças nas universidades é a organização de redes. [...]. A existência de redes e sua proliferação têm sido exponencial, tanto a nível local e nacional quanto no global, introduzindo variáveis de avaliação
102
do mesmo trabalho acadêmico que antes não apareciam como importantes, porém, agora, o são cada vez mais. (TAKAYANAGUI, 2018, p. 17)
A perspectiva do autor é que se torna impossível pensar ou investigar ou
compreender a universidade contemporânea sem considerar as repercussões da
organização social das redes e do uso dos computadores e internet na produção
científica. Ainda complementando as ideias dos já mencionados autores Afonso
(2008) e Dutra Gomes (2010), Takayanagui (2018, p. 17-18) avança e nos indica
que:
Redes e macroprojetos, que podem organizar-se estando nelas, tornam possível a produção de um conhecimento muito mais dinâmico, aberto, socialmente responsável, tanto a curto como a médio e longo prazo, desde dimensões meta e macrocognitivas, porquanto geradas pelo trabalho cotidiano e em contextos de aplicações locais e específicos, introduzindo uma riqueza excepcional ao processo de articulação entre saberes e aprendizagens. Além disso, a organização em redes introduz um elemento fundamental que valoriza o trabalho acadêmico, por sua estrita e fundamental condição de colegialidade e horizontalidade. Isso faz com que a organização do conhecimento possa estar sempre aberta, ser de acesso livre e público, sem restrições, e que a pertinência do trabalho universitário se torne mais rigorosa, porque está à vista de qualquer pessoa ou grupo social interessado. [...] um salto qualitativo na exigência do que as redes produzem, na medida em que os seus processos intelectuais e cognitivos são e devem ser processados para serem conhecidos por especialistas, mas também porque alcança espaços anteriormente pouco concebidos, porque seus processos e seus resultados, seus debates e sua interação cooperativa estão mediados por complexos processos informáticos, virtuais ou digitais. [...] impulsionar macroprojetos, locais e globais, em que os limites da participação de pesquisadores, professores ou analistas se tornam mais flexíveis e interativos desde o novo meio ambiente das TICs. [...] ultrapassa o trabalho acadêmico do tipo individualista e os construtos isolados dos contextos de aplicação dos conhecimentos, [...] tanto a partir de uma perspectiva intercultural (ecologia de saberes) como teórico-metodológica e epistêmica.
Para o autor, além do volume, do fluxo e do acesso democrático aos
dados e conhecimentos mais atualizados, acontece maior articulação entre saberes
e aprendizagens, quebra das estruturas rígidas, lineares e hierarquizadas,
produções colaborativas, melhorias significativas da qualidade dos processos e
produtos científicos, entre outros. Tudo isso se reflete diretamente na evolução
epistemológica. Vitte (2011b) também corrobora o ponto de vista dos autores e
complementa, desvelando as implicações das redes para a evolução
epistemológica, esclarecendo que a
Situação que fica mais complicada e complexa na atual fase contemporânea, pois advindo do forte questionamento da Ciência Moderna e de suas racionalidades, cada vez mais a sociedade e a comunidade científica vêm tomando consciência de uma nova teia e de sua dinâmica,
103
em que é inconcebível a fragmentação, e a natureza, por sua vez, lentamente está sendo requalificada por questões culturais sociais e ambientais, em que a antropologia cultural aparece com grande destaque para as pesquisas de geografia física. (VITTE, 2011b, p. 37)
Para o autor, a ressignificação científica amplia a necessidade de
superação da fragmentação científica, com destaque para os fenômenos
geográficos, repercute na demanda por uma “nova cognição do sistema mundo”,
traz a necessidade da especialização cognitiva, principalmente através da
complexização do social e do ambiental que coloca em evidência:
A crise da geografia na atual fase contemporânea faz-se a partir de uma reinvenção metafísica da natureza, agora rara, mercantilizada, relativizada pelo dinheiro. Ou seja, a uma nova superfície da Terra que precisa ser requalificada, como se dizia no século XVII há terrae incognitae, que aí está. É o momento de realizarmos novamente o ajuste ou a invenção de palavras com as coisas, pois o sentido de empiria está sendo recriado. Os olhos e o sentido do explorador são outros, a cognição do mundo e da Terra é outra. (VITTE, 2011a, p. 34)
Segundo Vitte (2011a), com a crise, é necessário reinventar a forma de
ver, conceber, dar sentido e explicar a realidade geográfica, pois existe uma nova
cognição no sistema mundo que implica uma reorientação das dimensões
ontológicas e epistemológicas das tradições de pesquisa na contemporaneidade, o
que afeta a Geografia, pois “a questão que se coloca não seria [...] de ruptura
epistemológica, mas que a Geografia física e suas subdisciplinas têm uma tradição
[...] em que um de seus papéis é a construção de uma imagem simbólica de mundo
e de natureza” (VITTE, 2011a, p. 37), portanto, de busca de sentido/significação e
pertencimento a um campo científico diante das demandas contemporâneas, isto é,
de uma identidade científica (dimensão epistemológica) e social (dimensão
axiológica).
Castells (2013) caracteriza a contemporaneidade como “tempos
confusos” e de “desorientação”, indicando que as deficiências nas “categorias
intelectuais que usamos para compreender o que acontece à nossa volta foram
cunhadas em circunstâncias diferentes e dificilmente podem dar conta do que é
novo” (CASTELLES, 2013, p. II). Desorientação que reflete o processo de transição
entre diferentes formas de organização e constituição social, promovida pelas
radicais transformações tecnológicas, econômicas e culturais, por isso exigindo a
Urgência de uma abordagem para compreendermos o tipo de economia, cultura e sociedade em que vivemos é intensificada pelas crises e conflitos
104
que caracterizam primeira década do século XXI. A crise financeira global; as mudanças drásticas nos mercados de negócios e mão de obra; o crescimento irrefreável da economia criminosa global; a exclusão social e cultural de grandes segmentos da população do planeta das redes globais que acumulam conhecimento, riqueza e poder; a reação dos descontentes sob a forma do fundamentalismo religioso; o recrudescimento de divisões nacionais, étnicas e territoriais, prenunciando a negação do outro e, portanto, o recurso à violência [...]; a crise ambiental simbolizada pela mudança climática; a crescente incapacidade das instituições políticas baseadas no Estado-nação em lidar com os problemas globais e as demandas locais. Tudo isso são expressões diversas de um processo de mudança multidimensional e estrutural que se dá em meio à agonia e à incerteza. Estes são, de fato, tempos conturbados. (CASTELLS, 2013, p. I)
O autor considera como pressuposto que “as sociedades são organizadas
em processos estruturados por relações historicamente determinadas de produção,
experiência e poder”, defendendo a tese “naturalista” e “reducionista39” de que na
sociedade contemporânea existe a tendência de os processos dominantes serem
organizados em redes ou em torno delas. Castells (2013) chama atenção para a
transformação do cenário social da vida humana advinda da Revolução da
Tecnologia da Informação, que remodelou em ritmo acelerado e em grande volume
a base material da experiência cotidiana humana, promovendo uma nova estrutura
social – “a morfologia social das redes”. Para o autor, a Sociedade em Rede é o
produto desta nova forma de organização social e cultural; produto da transformação
dos meios de comunicação tradicionais para os sistemas de redes e que gira em
torno da internet e da virtualidade em todos os âmbitos da experiência humana, pois:
A revolução tecnológica, com seus dois principais campos inter-relacionados, as tecnologias de comunicação baseadas em microeletrônica e a engenharia genética, continuou a aumentar de ritmo, transformando a base material de nossas vidas. As redes se tornaram a forma organizacional predominante de todos os campos da atividade humana. A globalização se intensificou e se diversificou. As tecnologias de comunicação construíram virtualidade como uma dimensão fundamental da nossa realidade. O espaço de fluxos sobrepujou a lógica do espaço dos lugares, prenunciando uma arquitetura espacial global de [...] interconectadas, enquanto as pessoas continuam a achar significado em lugares e a criar suas próprias redes no espaço dos fluxos. O tempo atemporal se espalha como um manto de ausência de significado à medida que a consciência ambiental global aumenta em defesa do tempo glacial, como uma prática compartilhada com nossos netos. (CASTELLS, 2013, p. XXX)
É possível sintetizar, nas contribuições do autor, algumas das principais
características da “Sociedade em Rede” que nos interessam, sendo elas: o intenso
39 A nosso ver, é naturalista porque coloca a ordem social das redes como resultado de um processo
natural de evolução das redes capitalistas. E simultaneamente reducionista, pois desconsidera a existência de outros interesses mediadores e contextuais no processo de ordenação social contemporâneo.
105
uso das tecnologias da comunicação; o ritmo e o fluxo contínuo e acelerado de
produção e acesso das informações; e o estar conectado como condição de
existência social. Também é possível inferir que a dinâmica científica
contemporânea, diante destas características, requer: i) novas ferramentas
cognitivas – conceitos e abordagens de investigação; II) o reconhecimento da
natureza multidimensional, multiescalar, processual e relacional dos fenômenos
sociais e naturais – nova natureza para as entidades da investigação científica; III) a
compreensão da virtualidade como mais uma das tradicionais dimensões da
realidade (tempo e espaço), uma nova concepção de realidade, surgindo um novo
campo de investigação; IV) aumento da consciência sobre os danos, implicações e
potencial das questões ambientais; V) a reconfiguração das tradicionais categorias
espaço e tempo – espaço de fluxos e o tempo atemporal e circular; VI) a percepção
da rede como forma espacial predominante da organização social e dos saberes,
constituída basicamente pelas interações ou interconexão de processos discursivos;
e como não poderíamos deixar de mencionar, VII) a afirmação pela identidade como
a busca do sentido e da significação do ser social na Sociedade em Rede. Uma vez
que, para Castells (2013, p. 41), a
[...] busca da identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social. Essa tendência não é nova, uma vez que a identidade e, em especial, a identidade religiosa e étnica tem sido a base do significado desde os primórdios da sociedade humana. [...] a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significação em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. [...] as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que sejam. [...] as redes globais de intercâmbios instrumentais conectam e desconectam indivíduos, grupos, regiões e até países, de acordo com sua pertinência na realização dos objetivos processados na rede, em um fluxo contínuo de decisões estratégicas. [...] divisão fundamental entre o instrumentalismo universal abstrato e as identidades particulares historicamente enraizadas. Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o Ser.
Assim como Giddens (1991 e 2002), para Castells (2013), o significado do
fazer para existir, nesta nova ordem social, está vinculado à “busca da identidade”,
pois essa significação social acontece em função do fundamento ontológico das
interações – do estar conectado em “redes globais de intercâmbios instrumentais
que conectam e desconectam [...]” com extrema facilidade ou fluidez ,o ser, o estar e
o fazer parte, já que as identidades, assim como as redes são fluidas, efêmeras,
106
simultâneas, assíncronas e diversas. Com isso, enfraquecendo e deslegitimando as
bases que sustentavam as interações tradicionais, tais como tempo longo de
permanência, bidimensional, proximidade, contiguidade física e profundidade, pois
as grandes mudanças alicerçadas no tempo e no espaço da experiência humana
estão contribuindo para a (des)estruturação de “uma nova cultura, [...] na qual, redes
digitalizadas de comunicação multimodal passaram a incluir de tal maneira todas as
expressões culturais e pessoais [...], transformado a virtualidade em uma dimensão
fundamental da nossa realidade” (CASTELLS, 2013, p. XVI).
A nosso ver, na Modernidade reflexiva, o fundamento ontológico do ser
social são as interações, sejam elas entre ideias, atores, lugares, eventos, coletivos;
sejam no espaço, no tempo, na virtualidade; sejam no ambiente do trabalho, do lazer
e da família. O fato é que em todos os âmbitos da experiência humana,
principalmente através das práticas discursivas, existem implicações sociais,
psíquicas e afetivas da reflexividade e da organização social em rede, isto é, das
interações. Com isso, “a problemática do conhecimento no mundo atual diz respeito
não somente a novo arranjo teórico-metodológico, mas também às noções que
fundamentam as próprias concepções de existir e devir” (ARAUJO, 2003, p. 37). Isso
porque consideramos no âmbito desta tese que a ontologia se refere à natureza dos
fenômenos (objetos) da investigação, sendo notória a existência de uma
requalificação da dimensão ontológica em função das mudanças revolucionárias
oriundas da modernidade reflexiva.
Pontuamos ainda que a reflexividade também é perceptível em relação
às influências da revolução científica, oriunda das descobertas científicas mais
recentes, que alimentaram a Física, a Química e a Biologia, e reinventaram não só a
teoria atômica e os estudos do cosmo, mas, através das suas diversas
reflexividades e aplicações, conseguiram transformar, de forma significativa, nossa
visão de mundo, de ciência, de realidade e de homem. Com isso, requalificaram
nossas percepções, concepções e modelos, pois redimensionaram as relações
Terra-mundo, colocando abaixo “as belas certezas” que balizavam o fazer científico
107
moderno40, visto que criaram novos instrumentos de apreensão da realidade, novos
modelos, posturas políticas e científicas diante do real. A ideia é que:
A grande mudança paradigmática na ciência do século XX aconteceu a partir das descobertas da Física Quântica no alvorecer desse século e que alteraram substancialmente os conceitos [...] da mecânica newtoniana que se havia convertido em modelo para todas as demais ciências. Um modelo no qual não havia lugar para as dimensões subjetivas do ser humano, seus valores e os significados de suas experiências interiores. (...) as repercussões de tudo isso, não apenas na ciência, mas em todo processo evolutivo da humanidade, foram extremamente importantes e significativos. (MORAES, 2008, p.29)
Este trecho da fala da autora se refere ao que denominamos de
reflexividade epistêmica em função da descoberta da Física Quântica, como “a
grande virada científica”, pois a matéria já não pode mais ser concebida apenas em
“orgânica e inorgânica, em animada ou inanimada, [...] um tipo constituído de feixes
dinâmicos de energia. [...] no nível subatômico, o mundo não consiste em objetos
isolados, mas em redes de interconexões dinâmicas caracterizadoras dos mais
diferentes processos, [...] e fluxos” (MORAES, 2008, p. 35). A fala da autora ilustra o
que explicamos como coimplicação dos quadrantes da dinâmica ontológica e
epistemológica, que, para Dutra Gomes e Vitte (2017), são os fragmentos das
questões ontológicas contemporâneas, que refletem as “singularidades irredutíveis
de manifestações epistemológicas, como pertinência do diálogo” entre dimensões.
Isso porque não concebemos as tradições científicas como um amontoado caótico
de fragmentos (teóricos, práticos, metodológicos), mas como um conjunto de
fundamentos filosóficos (epistemológicos, metodológicos, axiológicos e ontológicos)
e cognitivos, um todo articulado, cujas partes coexistem e são simultaneamente
contraditórias e complementares. Daí trazem coimplicações entre si e com o todo,
num processo contínuo, multidimensional e relacional.
Em suma, nossa inferência principal é que as mudanças evolutivas ou
“revolucionárias”, oriundas da modernidade reflexiva, produziram múltiplas
contingências (a desqualificação ontológica, reconfiguração axiológica, diversidade
metodológica e desestabilização epistemológica) nas formas de ver, conceber, agir e
dar sentido ao fazer científico (tradições de pesquisa ou modelos científico
legitimado), isso porque repercutiu nos fundamentos socialmente instituídos, aceitos
40 Para Fourez (1995, p. 24), “no campo da ciência pode haver diversas maneiras de abordar certas
questões, diversas tradições”, ou modelos de fazer científico.
108
e validados do que seria ciência, método, realidade, sociedade e natureza. Com
isso, propagaram e afetaram a dinâmica científica contemporânea, potencializando a
Ressignificação Científica. Paradoxalmente, esta dinâmica chega e informa, através
das redes discursivas, onde são (ou não) apropriadas pelos coletivos (nas diversas
espacialidades e especialidades), produzindo similitudes e/ou41 distinções,
resistências e/ou aceitações, fragmentações e/ou unificações, que repercutem na
evolução epistemológica, pela consolidação, manutenção, subversão dos campos
científicos e acadêmicos, ou pela ampliação e transbordamento dos saberes em
novos domínios epistemológicos – processo que denominamos como “formação de
territórios epistemológicos”.
Em outros termos, o nosso ponto de vista é que as mudanças evolutivas,
oriundas da ressignificação científica na modernidade reflexiva, são revolucionárias,
segundo a concepção de T. Kuhn, pois afetam direta e indiretamente as dimensões
(os quadrantes) das tradições de pesquisa. Com isso, produzem a “diversidade
lexical”, que coloca “em primeiro plano a heterogeneidade da ciência, a divisão de
tarefas, bem como a distribuição diferencial e a dispersão de habilidades essenciais
ao trabalho científico” (LENOIR, 2004, p. 62), por isso, cria, nutre e propaga
Territórios Epistemológicos nos campos científicos. Mas, afinal, por que criam
territórios epistemológicos e não novas disciplinas científicas ou acadêmicas?
3.3 De disciplinas científicas ao conceito de territórios epistemológicos
Partimos do entendimento de que uma disciplina para se constituir como
disciplina científica e acadêmica, conforme nos elucida Fourez (1995, p. 101), “é
determinada por uma organização mental. [...] uma matriz disciplinar [...] uma
estrutura mental, consciente ou não, que serve para classificar o mundo e para
poder abordá-lo.” E, nessa perspectiva deve contemplar duas condições essenciais,
sendo:
i) Definir-se como um saber – ter uma identidade científica – com
características que especificam este saber, de forma que possa
41 Utilizamos “e/ou”, no transcorrer desta tese, como recurso para expressar o potencial da simultaneidade e a
dinâmica da estruturação contínua entre os elementos.
109
responder: Em quais condições podemos dizer que um dado saber
pode ser entendido como tal? Ou o que faz uma dada pesquisa ser
uma pesquisa pertencente propriamente a este saber? Para Lenoir
(2004, p.63):
As disciplinas são a infraestrutura da ciência corporificada, antes de qualquer coisa, nos departamentos universitários, nas sociedades profissionais, nos manuais e livros didáticos [...] a identidade disciplinar forma a identidade vocacional de um investigador, estabelecendo problemas e definindo ferramentas para abordá-las; além disso, a disciplina premia realizações intelectuais.
Para o autor, a natureza de disciplina parte do reconhecimento e da
legitimidade institucional, desvelando-se como um conjunto de
estratégias sociais ou acadêmicas que lhe concede o estatuto de área
de conhecimento pertencente a uma grande área de saber. De acordo
com Lenoir, “As disciplinas são os mecanismos institucionais para
regular as relações de mercado entre consumidores e produtores de
conhecimento” (2004, p. 63), por isso, elas “são formações
institucionalizadas para organizar esquemas de percepção, apreciação
e ação”, como acontece no caso do CNPQ.
Se para Lenoir(2004) a identidade científica se dá pela existência de
um coletivo sociotécnico, com reconhecimento externo na comunidade
científica onde identifica-se como inscritos na área de conhecimento,
socialmente instituída, para Gomes (2009) a identidade disciplinar se
estabelece quando se é capaz de indicar um quadro de referência
conceitual ou “campo de características e atributos”. Na fala do autor:
A identidade disciplinar como qualquer outra, aliás, deve ser suficientemente restritiva para assinar a singularidade daquilo que estamos distinguindo das demais, porém deve ser larga o suficiente para abranger as mudanças que ocorreram durante a trajetória evolutiva desse objeto. (GOMES, 2009, p. 16 – 17)
O autor, explica que o elo que dá singularidade a Geografia, faz com
que um saber possa receber “o qualitativo de geográfico”, mesmo com
“toda variedade das aplicações” e “usos que foram dados” na evolução
epistemológica da Ciência Geográfica (“ciência de síntese”; “ciência
indutiva”, “ciência charneira”, “ciência do empírico”) e, marca a
110
contribuição de geografia no estudo da realidade é a “ordem espacial”.
Portanto, a espacialidade ou o “ordenamento espacial de alguns
fenômenos”.
ii) um domínio epistemológico - ter um campo de análise, que no caso
da Geografia, surge a partir da “ideia de que há um arranjo físico das
coisas, pessoas e fenômenos que é orientado seguindo um plano de
dispersão sobre o espaço.” (GOMES, 2009, p. 25). O que implica num
conjunto de pressupostos filosóficos, crenças e valores (éticos,
estéticos e políticos) coerentes entre si e que vão lhe fornecer os
fundamentos para o saber, considerado e que vão lhe moldar a
conduta e os hábitos no âmbito da comunidade científica, consolidando
uma tradição de pesquisa. Ter um padrão disciplinar - “uma ordem de
sentidos e significações fundamentais que constituem os
fenômenos”(GOMES, 2009, P. 27), que institui as fronteiras
epistemológicas a partir da delimitação temática e das relações que
estabelecem com outras áreas de conhecimento, uma unidade na
diversidade.
Portanto, construções sociohistóricas relativamente estáveis e
distinguíveis numa estrutura institucional, e passíveis de subdivisões ao longo do
tempo e do espaço. Já, a concepção de território epistemológico que estamos
contemplando ao longo desta produção se articula ao sentido de ‘saber’ proposto
por Japiassu (1986), como temática ou conjunto de conhecimentos
metodologicamente organizados, seja para investigação, ou transmissão (ensino-
aprendizagem), o que desloca o foco da ciência para o saber ou área de
conhecimento, sendo ou não este uma disciplina acadêmica.
Nossa concepção de TE está diretamente vinculada ao conceito de
Campo Científico42 de Bourdieu (2015). O autor concebe Campo Científico como um
espaço de interação que configura uma rede social para produção de saberes, em
42 “Campo como espaço de conflitos, como campo de acção socialmente construído em que os
agentes dotados de diferentes recursos se defrontam para conservar ou transformar as relações de força vigentes. Os agentes empreendem aqui acções que dependem, nos seus fins, meios e eficácias, da sua posição no campo de forças, ou seja, da posição na estrutura da distribuição do capital” (BOURDIEU, 2015, p. 54).
111
que agentes, através das relações de poder/saber/fazer, coexistem e performam a
dinâmica da produção, distribuição e consumo do discurso científico, um domínio
sociológico. No TE, as interações são entre ideias (estilos de pensamentos ou
coletivos de pensamento), portanto, acontecem principalmente na articulação e
imbricamento entre os domínios epistemológico, ontológico, metodológico e
axiológico.
Consideramos que a noção de disciplina de Lenoir (2004), que se integra
à ideia de “formação discursiva” de Foucault, seja coerente com a nossa concepção
de TE, por ser capaz de: i) “captar o sentido de heterogeneidade” da ciência; ii)
apreender o significado das afirmações como configuração da “regularidade
historicamente condicionada para a coexistência de afirmações” (elementos
explicativos) presentes nas práticas discursivas, pois parte do entendimento de que
“os objetos e conceitos são coproduzidos no discurso.” (LENOIR, 2004. p. 64); iii)
reter o caráter disperso, semelhante a uma rede, responsável pela construção de
sentido e de objetos mediante a estabilização em rede mais ampla de elementos
heterogêneos, que configuram a episteme.
E, assim, também dialogamos com a concepção de “território
paradigmático” de Fernandes (2014), que o concebe como um “texto lido num
contexto”, composto por “visões de mundo e estilos de pensamento dos autores,
que expressam suas ideias e interpretações de diversas realidades, espaços e
territórios”. Um construto científico que toma “o texto como ponto de partida para a
transformação da realidade que produz tantos textos” (FERNANDES, 2014, p. 26).
Nosso entendimento é que as categorias assim como os conceitos são
“ferramentas intelectuais” que o pesquisador utiliza para explicar ou compreender ou
descrever o fenômeno, e sua escolha pode trazer tanto a elucidação como
complicações na investigação. Por isso, “prestigiar um conceito, aprioristicamente, à
revelia das circunstâncias concretas, em detrimento dos demais, [...] na pesquisa,
tende a produzir interpretações que são autênticos aleijões analíticos, [...] e o
fracasso estará pré-programado” (SOUZA, 2013, p. 11). Isso porque, assim como
Guimarães (2017, p. 15), partimos do pressuposto de que as categorias são entes
ontológicos e, consequentemente, toda sua conceituação é determinada por
fundamentos ontológicos, axiológicos e epistemológicos e, consequentemente,
implicam o metodológico de forma coimplicada por meio do seu contexto de
112
existência (estilo de pensamento, visão de mundo, espacialidade, especialidade,
temporalidade, etc.).
Institucionalizados ainda na modernidade as categorias e os conceitos,
que são considerados ferramentas intelectuais ou cognitivas que ampliam a
capacidade humana para explicar, pela linguagem, a realidade e/ou o fenômeno ou
o fato investigado. O entendimento é que os pesquisadores, para procederem à
conceitualização da realidade, com o intuito de elucidá-la e facilitar a
comunicabilidade, transformam seus conceitos chave em construtos científicos, isto
é, em significações imaginárias científicas, ao lhes atribuir uma “identidade
categorial” (MOREIRA, 2016, p. 211). Para isso, essas categorias devem contemplar
um significado e sentido produzido imaginariamente por um coletivo com
intencionalidade, segundo um referencial teórico que lhe atribui uma ‘pretensa
cientificidade’. A finalidade é estabelecer a delimitação temática através das
proposições passíveis de serem ‘confirmadas’ ou ‘refutadas’ e/ou elucidadas como
categorias na pesquisa científica.
Os construtos são uma construção lógica de um conjunto de propriedades aplicáveis a elementos reais, que distingue o que inclui e o que exclui como intenção e extensão, fundamentado no consenso dos pesquisadores. O objetivo do construto é fazer com que não haja ambiguidade no referencial empírico dos conceitos utilizados pela comunidade de pesquisadores. Com o construto, todos (...) atribuirão a mesma significação (...), tornando-se claros e específicos. Desta forma, pode a ciência, no nível empírico, fazer as observações e elaborar os testes intersubjetivos de que necessita. (KOCHE, 1999, p. 116)
Assim, no âmbito desta tese, defendemos que o conceito, além de ser
uma produção social e cognitiva simultaneamente, é: I) uma significação imaginária
científica por ser elaborado por um marco teórico, validado intersubjetivamente
pela comunidade de pesquisadores, funcionando como metáforas43 no discurso
científico; II) um marco metodológico que estabelece uma unidade de análise, pois,
ao delimitar e especificar o fenômeno ou o fato, dá-lhe a extensão de sua
43 Podemos ilustrar essa característica com base na fala de Souza (2015) ao afirmar que “‘espaços’
e ‘territórios’ têm um sentido metafórico (por mais que, como arenas de luta, conflito e disputa, não existam sem estar multifacetadamente vinculados a espaços concretos), uma vez que as referências diretas das reflexões não são espaços concretos e uma vez que as referências diretas das reflexões não são espaços geográficos, mas, sim, instituições e relações sociais. É o caso, por exemplo, das universidades e do ‘campo libertário’.” (SOUZA, 2015, p. 9)
113
ocorrência e o significado como objeto de estudo44; III) uma construção histórica e
política, uma vez que são atrelados a intencionalidades e conteúdos oriundos de
uma temporalidade e de interações socioespaciais diversas, destarte, os conceitos,
os construtos e as categorias “são carregados de historicidade. [...] fruto de uma
época e das condições internas e externas ao debate científico e intelectual próprias
de cada época, mesmo quando [...] sobrevivem às redefinições e mudanças de
conteúdo” (SOUZA, 2013, p. 14). Isso porque, a definição atribuída ao conceito é
“construída cientificamente, sendo uma tradução da noção corrente ligada ao termo.
Porém, ela não lhe é equivalente” (FOUREZ, 1995, p. 109). Esse ponto de vista
pode ser ilustrado pela fala de Moreira (2016, p. 211) ao afirmar que “as décadas
finais do século XX foram de domínio da categoria do espaço, as iniciais do século
XXI vêm sendo de domínio da categoria do território.”
Atualmente, não só pelo fato de a maioria dos postulados da ciência
clássica ter sido ab-rogada em função das descobertas científicas da Física
Quântica, da Biologia e das Ciências humanas e sociais, entre outras, mas também
pelo reconhecimento da existência de novas práticas discursivas, da multiplicidade
da realidade geográfica, da natureza do fato/fenômeno e dos sujeitos da ação,
muitos categorias foram substituídas ou (res)significadas, ganhando novos
contornos, conteúdos e significados para dar conta de elucidar o objeto de estudo.
Nessa perspectiva, Haesbaert (2009) lembra-nos que a essência dos conceitos não
pode ser limitada à visão estereotipada da lógica formal positivista em relação à sua
separação diante de outros conceitos. Vejamos a fala do autor:
A identidade de um conceito, um pouco como na própria construção de uma identidade social, não se define simplesmente pela concepção clara de um outro frente ao qual ele se impõe, mas pela própria definição que este outro lhe concede, portanto, na sua interação. Isto significa que as identidades conceituais devem ser trabalhadas também através das fronteiras, no interior dessas delimitações que aparentemente separam, ou seja, nos liminares, nas interfaces, nas interseções, sem, às vezes, o obsessivo estabelecimento de um recorte de delimitação estanque e bem definido. (HAESBAERT, 2009, p. 621)
44 Um bom exemplo para ilustrar esta relação entre a categoria e a temporalidade é o caso da
utilização da bacia hidrográfica como unidade de análise. De acordo com Carvalho (2009, p. 202), “o conceito de que a bacia hidrográfica representa uma boa e relevante demarcação na paisagem para o planejamento do uso do solo não é uma ideia original, pois já era reconhecida por muitos conservacionistas como John Powel e Clarecence King e utilizada na China antiga para o planejamento urbano.”
114
Na mesma linha de pensamento e para ilustrar nosso ponto de vista,
vejamos na fala de Moreira as ligações evolutivas que implicaram a substituição da
categoria espaço pelo território na produção científica:
O deslocamento do olhar espacial para o territorial é decorrência da mudança do foco e do modo de ação que então ocorre. O que significa dizer, da natureza dos sujeitos. Ao espaço, correspondem sujeitos das lutas de classes, ao território, sujeitos dos movimentos sociais, se podemos assim dizer. A questão é, então, a causa da mudança das formas de luta. Então dos sujeitos [...] a partir dos anos 1970, com a urbanização, os serviços tomam o lugar de fase das relações de indústria, criam-se novas relações sociais, dando origem a novos sujeitos e a novas formas de tensão e conflitos, as lutas sociais se dilatando para abrigar a dilatação de sujeitos e agendas, abarcando o mundo, e conflitos fabris, mas ganhando o cunho mais genérico de movimentos sociais. (MOREIRA, 2016, p. 213)
Deste modo, a ideia é que se a categoria não dá conta de circunscrever a
natureza do objeto de investigação, para além dos embates que defendem a
“identidade conceitual absoluta”, seu conceito necessita ser revisto, conforme nos
alerta Souza (2013). Daí a conveniência de um dos fatores que implicam a
necessidade da reflexão ontológico-epistemológica na investigação científica e que
trazem desdobramentos para a compreensão do fenômeno, uma vez que as
categorias ou os construtos denotam as singularidades e a abrangência que
caracterizam o objeto de estudo e, no caso da ciência geográfica, também seu
recorte espacial. Na verdade, vai além de ser considerado “uma representação da
realidade”, ele é a própria realidade “no sentido de que ele não simplesmente traduz
ou representa, como no positivismo clássico, mas, ao pretender traduzir, reproduzir
ou reapresentar, [...] produz realidade, ou seja, é também um instrumento de
criação, ou se preferirmos, de devir” (HAESBAERT, 2009, p. 622).
Na Geografia, temos alguns dos “conceitos fundamentais45” atrelados ao
pensamento geográfico, que auxiliam na investigação do espaço, entre eles:
Paisagem, Lugar, Região, Redes e Território. E o que os distingue de fato é uma
“questão de foco, já que todos eles incidem, de uma forma ou de outra, sobre o
mesmo universo, no caso da geografia, a dimensão espacial da sociedade”
(HAESBAERT, 2009, p. 622). Daí porque nossa indicação é que o conceito “ilha”,
além de ser um espaço, pode ser um território, dependendo do contexto (conteúdo,
45 Para Haesbaert (2009), na geografia (em torno da categoria espaço) existe uma “ampla
constelação de conceitos da Geografia, dois dos conceitos mais utilizados são, sem dúvida, o de região, majoritário na chamada Geografia Regional Clássica, e o de território”.
115
contorno, significado, natureza do objeto e do sujeito), não dá conta da dinâmica
socioespacial que caracterizamos como espacialidade e singularidades inerentes
ao conteúdo e contorno da dinâmica científica contemporânea, levando em
consideração dois fatos.
O primeiro fato está relacionado à concepção de ciência como “a arte
interpretando a realidade, [...] rearranjar informações [...], um produto da criação que
permite construir o desenho do mundo, das coisas e dos seres, das suas complexas
relações e dos seus lugares”, (HISSA, 2002, p. 14), ou como uma “tecnologia
intelectual”, conforme nos aponta Fourez (1995). É, portanto, simultaneamente
instituição, produto e processo de construção social e cognitiva, o que implica a
coexistência e a performance de interações marcadas por relações de
poder/saber/fazer que se apoiam no espaço e no tempo (na virtualidade) com a
finalidade de construir conhecimento sobre o objeto. Em outros termos, na
perspectiva epistemológica construcionista que utilizamos nesta tese, o fazer
científico, além de ser um processo de produção, distribuição e consumo do
discurso científico, é, simultaneamente, uma dinâmica, circunscrita por trocas,
descobertas, construções, aproximações e embates estabelecidos numa estrutura
social, histórica e cultural de apropriação do discurso científico, que consolidam
tradições de pesquisa. O segundo fato está na ordem do entendimento de que:
Ler o território é ler, assim, o espaço segundo as singularidades locacionais de referência. O foco configurando, justamente, o olhar de conjuntura, consagrando o território como um poderoso instrumento de leitura e de luta espacial dentro de uma sociedade, [...] referindo-se ao poder ordenante do espaço do território [...] leitura espacial o ponto da compreensão real dos lugares. Cada lugar aí expressa a natureza do conteúdo estrutural da totalidade. O conteúdo relacional, justamente, que faz da estrutura, porque do espaço, o fundamento ontológico do mapa fragmentário dos territórios. (MOREIRA, 2016, p. 218)
O que, além de confirmar a abrangência do conteúdo, constitui-se no
nosso entendimento de que a acepção de território está relacionada ao espaço
apropriado e configurado por redes de relações de poder/saber/fazer, construída
pelos coletivos sociotécnicos. Um campo de estratégias de legitimação e/ou
consolidação e/ou subversão de múltiplas intencionalidades, que, simultaneamente,
estabelece sua singularidade ao domínio das redes de lugares como campo de lutas
e embates entre as ideias dos atores sociais e coletivos pertencentes a um campo
científico. Condição que, segundo nos aponta Foucault (2017, p. 251), caracteriza o
116
território como metáfora espacial e, simultaneamente, fato e condição manifestada
que condicionam o exercício do poder. Por isso, “é sem dúvida uma noção
geográfica, mas antes de tudo uma noção jurídico-política, aquilo que é controlado
por um certo tipo de poder”.
Nosso entendimento é de que as interações para produção do
saber/fazer, em qualquer domínio científico, são, antes de tudo, circunscritas pelas
“relações que podem existir entre poder e saber”. E, por isso, só podemos [...]
“analisar o saber em termos de região, de domínio, de implantação, de
deslocamento de transferência, pode-se apreender o processo pelo qual o saber
funciona como um poder e reproduz seus efeitos” (FOUCAULT, 2017, p. 251).
Destarte, a utilização do termo Território como metáfora científica se adapta à
asserção do autor de que
A utilização de termos espaciais tem um quê de anti-história para todos que confundem a história com as velhas formas de evolução, da continuidade viva, do desenvolvimento orgânico, do progresso da consciência ou do projeto que era contra o tempo. [...] Eles não compreendem que, na demarcação das implantações, das delimitações, dos recortes de objetos, das classificações, das organizações de domínios, o que se fazia aflorar eram processos – históricos certamente – de poder. A descrição espacializante dos fatos discursivos desemboca na análise dos efeitos de poder que lhe estão ligados. (FOUCAULT, 2017, p. 253)
Com isso, podemos justificar que a arena ou campo de domínio
epistemológico de um saber que transcende as fronteiras epistêmicas, no âmbito da
análise geográfica do desenvolvimento do conhecimento científico, corresponde ao
que designamos de Território Epistemológico – TE, por consubstanciar as
especificidades, abrangência e espacialidades do fazer científico, que fazem dele,
simultaneamente, um conceito e um fenômeno geográfico multidimensional,
processual, relacional e contemporâneo. Pela compreensão de que “o território
pode ser concebido pela imbricação de múltiplas relações de poder, do poder mais
material das relações de ordem mais estritamente cultural” (HAESBAERT, 2004, p.
79).
A nosso ver, a proposta de TE como conceito se justifica em função das
distinções e similitudes oriundas da interseção espacialidade, temporalidade e
especialização cognitiva dos saberes-fazeres propagados e consolidados pelos
coletivos sociotécnicos. Em outras palavras, representa a espacialidade apropriada
pela legitimidade discursiva atribuída ao domínio epistemológico de um ou mais
117
campos científicos. O saber cuja melhor forma de configuração é de rede de
significações que circunscreve a articulação das diferenças e semelhanças
construídas pelos processos de espacialização e especialização da dinâmica
científica contemporânea.
Uma rede de significações estabelecida através dos padrões de
localização, distribuição e conexões de consensos, controvérsias, fronteiras
epistêmicas e/ou transgressões disciplinares, que imprime uma identidade científica
e social ao saber. Assim, pode-se inferir que o TE tem potencial como conceito e
fenômeno geográfico para investigação, pois pode: funcionar como contexto de
formação científica e de interdependência estruturais (objetivas e subjetivas, macro
e micro); requisitar contiguidade ou proximidade cognitiva ou física; criar, manter ou
subverter tradições científicas peculiares, bem como barreiras epistêmicas, ou
“aglomerados” de produção científica específicas; e influenciar ou ser influenciado
pela interações locais ou globais; ser indutor ou inibidor de inovações, seja de
práticas/estratégias investigativas, seja de modelos teóricos ou, ainda, de
pressupostos filosóficos, entre outros. Características e implicações oriundas de
múltiplas contingências, produto da ressignificação científica da modernidade
reflexiva, que justifica a relevância do estudo dos TEs no universo das pesquisas
geográficas.
3.3.1 Elementos estruturantes do TE
Conforme elucidado nos capítulos anteriores, a dinâmica científica que
consolida uma tradição de pesquisa comporta as dimensões epistemológica,
axiológica, metodológica e ontológica. No caso específico do TE, além de
contemplar de forma autoimbricada tais dimensões, apresenta, no mínimo, quatro
elementos que atuam de forma articulada, não linear e simultânea como
estruturantes, isto é, como constituidores46 e constituintes das características que
fazem do TE uma espacialidade apropriada pelos saberes/fazeres do campo
científico, sendo eles:
46 Constituidores e simultaneamente constituintes, porque o TE só existe como tal com a presença
destes elementos que, ao mesmo tempo, lhe dão identidade e conteúdo.
118
Os coletivos sociotécnicos – são os agregados de atores sociais ou agentes47,
conforme aponta Bourdieu (2015), as entidades de ensino e pesquisa,
fundações, agências (financiadoras e reguladoras), programas de ensino e de
pesquisa, os recursos técnicos, estruturais e financeiros, entre outros, que, em
redes sociais heterogêneas, compõem as condições estruturais (objetivas e
subjetivas) do fazer ciência num dado campo científico. Podemos sintetizar
apontando que fazem parte desse elemento todos e tudo o que, com suas
interações, atuam em redes diretamente na constituição, manutenção e
disseminação do TE, seja no papel de formadores/consumidores da episteme,
seja estabelecendo ou transgredindo fronteiras disciplinares, seja, ainda,
elegendo consensos e controvérsias. No entanto, o principal mecanismo de
constituição dos TEs é a dinâmica da produção, distribuição e consumo do
discurso científico.
A episteme – Tomamos como referência o ponto de vista de Foucault (2017), por
isso, no TE, a episteme representa a rede discursiva que ordena/explica/justifica
a conexão entre conteúdos (saberes), práticas (fazeres), pressupostos filosóficos
(perspectivas epistêmicas) e pensamentos, sendo vinculada à situação
geográfica, representando as possibilidades de existência de determinado
‘saber’ ou de um campo científico. Em outros termos, caracteriza o substrato de
onde estabelece a configuração dos saberes e do saber-fazer, consubstanciado
em estruturas discursivas que fazem parte do conhecimento científico ou
acadêmico que estruturam os TEs. Nessa ótica, as produções científicas dos e
nos coletivos sociotécnicos (principalmente as teses, dissertações e artigos
científicos) são concebidas como corpus de investigação, pois contemplam, além
dos procedimentos retóricos utilizados pelos pesquisadores, a episteme
legitimada no discurso científico numa dada espacialidade.
As fronteiras epistêmicas e suas transgressões disciplinares – Indicamos as
linhas fixas ou móveis que estabelecem as delimitações e/ou zonas de
47 Assim como o habitus científico, pois “um cientista é a materialização de um campo científico, e
suas estruturas cognitivas são homólogas à estrutura do campo, por isso, constantemente ajustada às expectativas inscritas no campo. As normas e princípios que determinam, se quisermos, o comportamento do cientista, só existem como tal, ou seja, como instâncias eficientes, capazes de orientar a prática dos cientistas no sentido da conformidade às exigências de cientificidade [...]”. (BOURDIEU, 2015, p. 62)
119
confrontos estabelecidas (epistemológica e historicamente) na interface entre os
campos científicos e acadêmicos, pelos coletivos sociotécnicos, com outras
ciências (externas) ou no âmago do mesmo campo, demarcando os subcampos
disciplinares e estabelecendo seus TEs. A demarcação externa institucionaliza
a identidade científica, dá unidade ao pensamento científico, pois estabelece os
liames e transgressões entre as diferentes áreas de conhecimento, ao passo que
podem oferecer uma noção de consistência a seus conteúdos, ideias e
discursos, assim como legitima e consolida determinados campos científicos. A
fala de Hissa (2002, p.13-14) ilustra bem esse elemento:
A geografia, tal como todas as disciplinas entendidas como científicas ou não, tem sua existência e seu significado condicionados pela fuga de seus territórios, edificados ao longo da história da modernidade. Não há geografia sem transgressão de suas próprias fronteiras, assim como não há, em qualquer outra disciplina, ausência da contínua ultrapassagem de seus próprios territórios, tão sonhados como rigidamente demarcados.
Os consensos e controvérsias – atribuímos aos acordos ou desacordos
(embates) estabelecidos pelas relações de poder/saber/fazer dos e nos coletivos
sociotécnicos no campo científico ou que envolvem a temática. Estão
relacionados às convergências e divergências de pressupostos filosóficos,
perspectivas epistêmicas, metodologias e teorias, entre outras questões técnico-
científicas que se entrelaçam no processo produtivo do campo, por isso
contribuem para a estruturação do TE. Sua elucidação compõe a dimensão
política no estudo do campo científico, pois é um fenômeno que se revela como
produto das relações poder/saber/fazer, que performam e coexistem nas e das
interações (internas e externas) dos atores sociais dos e nos coletivos
sociotécnicos, sejam eles oriundas das orientações, das aulas, das leituras ou
indicações teórico-metodológicas, que permeiam, informam e impactam o fazer
científico.
Portanto, desvelar a organização espacial e epistemológica de um saber,
pela análise das determinações (articulações) de ordem teórica e metodológica das
especificidades e espacialidades do conhecimento científico oriundo da produção,
distribuição e consumo do discurso científico – análise geográfica do
desenvolvimento científico – é compreender a configuração dos elementos
estruturantes do TE na condição de fenômeno geográfico contemporâneo. O que
precisa ser feito, numa perspectiva processual e relacional, e implica, ainda,
120
considerar a complexidade de suas múltiplas dimensões, a exemplo das dimensões:
epistemológica (sistema explicativo, estatuto e identidade científica etc.), sociológica
e política (atores, interações, redes sociais, relações de poder, círculos de afinidades
etc.) e geográfica (espacialidade, geolocalização, distribuição no espaço).
E por fim, a questão agora é: Por que e como os programas de pós-
graduação em Geografia - PPGG consolidam, nutrem e propagam TE no
pensamento geográfico? Sustentamos que os PPGG, além de absorverem,
replicarem e envolverem a espacialidade, se articulam através das interações das
ideias dos atores sociais e/ou dos coletivos sociotécnicos na dinâmica de produção,
distribuição e consumo do discurso científico, como, por exemplo, na realização da
formação de pesquisadores, nas produções intelectuais, na participação de eventos
técnicos e científicos, nas redes e/ou grupos de pesquisa (formais ou informais),
nos programas de pesquisa/agendas de pesquisa (principalmente através das áreas
de concentração e linhas de pesquisa) e nas disciplinas ofertadas. Isso porque
acabam por valorizar determinadas áreas em detrimento de outras, institucionalizar
temas/problemas, priorizar perspectivas epistêmicas e favorecer práticas e
estruturas discursivas, que legitimam a formação conceitual teórico-metodológica e
epistemológica. Em outros termos, a interseção temporalidade, espacialidade e
especialização de um saber é um fenômeno oriundo da produção, distribuição e
consumo do discurso científico dos coletivos sociotécnicos, pois os TEs formam e
são formados por redes de significações estabelecidas pelas ideias dos atores
sociais e/ou redes discursivas que consubstanciam uma episteme, pelos
conglomerados e/ou barreiras epistemológicas que estabelecem os domínios e
fronteiras epistêmicas e pelos embates técnico-científicos, que, conforme
desvelamos na seção, são elementos estruturantes que, articulados, nem sempre
são comensuráveis, mas, com certeza, consubstanciam, nutrem e propagam TE no
fazer científico.
Para ilustrar nosso ponto de vista, com a representação da
macroestrutura da espacialização e especialização na Geografia brasileira,
desvelada nos rastros digitais dos programas de pós-graduação. Para sua
elaboração, utilizamos como campo empírico as produções intelectuais dos
programas de pós-graduação em Geografia - PPGG, disponíveis na plataforma
121
digital “Catálogo de Teses e Dissertações da Capes”48, de 01 a 30 de maio de 2018.
A totalidade dos resultados indicados na plataforma reflete o discurso geográfico
legitimado no período de 2012 a 2018.
A macroestrutura dos TEs na ciência geográfica, consubstanciados pelos
nove subcampos disciplinares, obtidos pela categorização das produções
intelectuais em Geografia Regional, Cultural, Urbana, Escolar, Agrária, da
População, Política, Econômica e Ambiental, reflete uma especialização desvelada
pelos temáticas abordadas, assim como pelas inscrições dos próprios coletivos
sociotécnicos quando disponibilizam as obras na base de publicação científica digital
da Plataforma Capes.
Na especialidade expressa pelos subcampos disciplinares, é notória a
concentração em determinados PPGGs, espacialidade que, na dinâmica de
produção, distribuição e consumo do conhecimento científico, torna os coletivos
sociotécnicos produtores de perspectivas epistêmicas, geralmente fundamentadas
pelas próprias referências teóricas, por vezes desconhecendo outras epistemologias
de situações geográficas específicas, um lócus legitimado e simultaneamente
legitimador dos saberes da Geografia, pois a ciência, na condição de produto
humano e social, é “sempre eivada de política e embebida de valores político-
filosóficos, interpretações, termos, conceitos, classificações e tipologias, que trazem
preferências ou, no mínimo, um lugar de enunciação, lócus da produção discursiva”
(SOUZA, 2015, p. 11).
Diante das especificidades que caracterizam o conceito TE, ele se revela
num fenômeno cuja elucidação, pela ciência geográfica, pode trazer contribuições
significativas para compreender a reflexividade da especialidade e da espacialização
no fazer científico contemporâneo. No mesmo sentido, indica o potencial para
explicar o que justifica a existência de posições metodológicas e/ou epistemológicas
específicas em determinados lugares e outros não, pois desvelam distinções e
similitudes no desenvolvimento espacial de um saber em um dado campo ou
subcampo científico. No próximo capítulo, centralizar os nossos estudos em torno
na territorialidade dos coletivos sociotécnicos (PPGGs) e na episteme do TE da
Geografia Física contemporânea.
48 http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
122
4 Da territorialidade dos programas de pós-graduação ao Território
Epistemológico da Geografia Física
[...] as fronteiras espaciais, sejam elas simbólicas ou físicas, inserem-se na pauta de discussão da Ciência, que, portanto, afetam as disciplinas e seus currículos universitários; a questão da transmutação dos conceitos e categorias, no caso, as espaciais, o que está conduzindo a uma transterritorialidade epistêmica, acompanhada de uma postura pós-disciplinar. (VITTE, 2011b, p. 10)
A fala de Vitte (2011b) na epígrafe nos remete ao pressuposto de que a
pós-graduação, principalmente no Brasil, configura-se num modelo de organização
social que reflete os imperativos da modernidade reflexiva, bem como da história
política e econômica nacional e global, e que seus impactos repercutem na
produção científica e tecnológica no país e nas tendências da educação nacional.
Nossa premissa é que a evolução epistemológica da Geografia Física no Brasil foi
consolidada pela territorialidade dos PPGGs, no decorrer do século XX.
Nessa ótica, este capítulo, à luz da Arqueologia do Saber proposta por
Foucault, tem como intuito descrever a territorialidade dos Programas de Pós-
Graduação em Geografia - PPGGs no Brasil que contribuíram para a formação da
episteme da Geografia Física brasileira, bem como desvelar a episteme do seu
Território Epistemológico. Assim, entende-se que existe uma “autonomia relativa”
dos PPGGs diante deste cenário e, por isso, para alcançar o objetivo geral desta
tese, compreender a evolução e o território epistemológico da Geografia Física
contemporânea no país implica a necessidade de pensar criticamente a
territorialidade dos coletivos sociotécnicos (PPGGs) no espaço nacional e dela
construir as categorias especificas e derivadas utilizadas para desvelar a episteme.
Isso porque consideramos territorialidade segundo a perspectiva apontada por
Hesbaert (2009, p. 626):
Territorialidade em seu sentido mais amplo, já que não se trata, obrigatoriamente, da territorialização concreta realizada. O que não quer dizer que ela seja menos importante, pois, dependendo do contexto, essas significações construídas por referência a um espaço, ainda que simbólico e/ou historicamente datado, [...] podem ser fundamentais na constituição do poder do grupo social. Embora todo território tenha uma territorialidade (tanto no sentido abstrato-epistemológico de qualidade ou condição de ser território, quanto no de sua dimensão real simbólica), nem toda
123
territorialidade – e o mesmo se diria da espacialidade – tem i um território (no sentido de sua efetiva realização material)
Nosso argumento é que cada programa de pós-graduação representa um
coletivo sociotécnico (composto por grupos sociais, um entorno, dispositivos
técnicos e financeiros) que, no contexto de uma instituição universitária localizada,
estabelece relações de saber/fazer/poder entre si e com outros PPGGs. Tais
pressupostos articulados podem ser sistematizados em perguntas, a saber: Como a
trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil contribui para a formação do
Território Epistemológico da Geografia Física? E quais as mudanças e
permanências, bem com as características do Território Epistemológico da Geografia
Física, tomando como referência empírica a produção intelectual dos PPGGs?
Questões a que nos propomos responder ao longo deste capítulo com o auxílio da
reflexão teórica contemplada nos capítulos anteriores.
4.1 Trajetória da pós-graduação em Geografia no Brasil.
Não se trata de uma história factual, linear e neutra, que obedeceria aos ideais de descrever os fatos com objetividade total, seguindo uma sequência causal e cronológica, mas uma história arqueológica e genealógica. Tal história não obedece à noção de uma sucessão progressiva, linear e gradual, mas a continuidades e descontinuidades. (PORTOCARRERO, 2002, p.46)
Considerando a fala de Portocarrero(2002) como orientação, indicamos
que os antecedentes da pós-graduação no Brasil nos remetem ao período que
compreende aproximadamente entre 1930 a 1970, cujos marcos vão da
institucionalização da investigação científica nas universidades à implantação dos
primeiros programas de pós-graduação no início da década de 1970. O Decreto nº
19.851/1931 do presidente Getúlio Vargas institucionalizou a pesquisa científica, as
instituições universitárias e as condições para a formação dos doutorados no país,
pois:
O decreto nº 19.851 conferira às universidades nascentes o duplo atributo de lugares realizadores de pesquisa e, ao mesmo tempo, de lugares formadores de pesquisadores e doutores em ciências. Nesse sentido, esse decreto cola, desde a origem de sua institucionalização, a investigação científica, a saber, a pesquisa, nos seus diferentes domínios, com a finalidade de ensino dos institutos universitários. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p.80)
124
Assim, instituída a pesquisa científica, vinculada ao ensino para a
formação dos pesquisadores no país, passa a vigorar prioritariamente nas
Universidades púbicas como principal responsável pela formação dos doutores em
ciências, que iriam atuar no quadro das próprias instituições de ensino superior e
promover o ‘desenvolvimento científico e tecnológico da nação brasileira’. No caso
específico da Geografia, os autores nos revelam que:
É desses anos de 1930 a criação da Universidade de São Paulo (USP), com a contratação de inúmeros professores/pesquisadores estrangeiros e também do curso de doutorado em direito da Universidade de Minas Gerais, atual UFMG [...]. O Curso de Geografia da USP é de 1934, com a participação de importantes professores franceses em sua fundação, a exemplo de Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig. Nessa mesma conjuntura, e quase que simultâneo ao surgimento do Curso de Geografia da USP, nascem a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), fundada em 17 de setembro de 1934, em São Paulo, e o IBGE, criado em 1937. Assinaram a Ata de Fundação da AGB Pierre Deffontaines (presidente), Caio Prado Jr (secretário), Rubens Borba de Moraes (tesoureiro) e Luiz Flores de Moraes Rego. É importante ressaltar que até a criação da ANPEGE em 1994, foi a AGB que no campo profissional representou no cenário nacional a Geografia Brasileira, se pronunciando, inclusive, no tocante a assuntos relativos à pós-graduação. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p. 80)
Com a criação da USP em 1934, como uma instituição do Governo
Federal, estruturada no modelo de universidade francês (cátedra), embebida nos
paradigmas e concepções da Geografia humana de Paulo Vital de La Blache e
voltada para a promoção do progresso da ciência através da articulação pesquisa e
ensino, estabelecia-se no país uma primeira geração de coletivos sociotécnicos em
Geografia, através dos professores franceses e dos brasileiros que atuavam nas
instituições científicas USP, IBGE e AGB. Estas instituições passaram a ocupar o
lugar de propagadores do pensamento geográfico francês, promovendo o
“afastamento das concepções alemãs, distância de temáticas políticas, realização de
pesquisas empíricas e descrições localizadas através de monografias, que serão as
marcas da geografia uspiana” (CAMPOS, 2011, p. 138-139). Schwartziman (2015)
nos esclarece que este:
Foi uma época de contatos intensos com a Europa, especialmente a França, introduzindo no Brasil os conceitos de evolução, do darwinismo biológico e social, do positivismo e do materialismo filosófico e político. [...] O positivismo reina no meio militar, [...] no que se refere especificamente à área científica e intelectual, haveria que examinar, além do papel do positivismo e da influência do ambiente intelectual e universitário francês, a influência alemã. É da França e da Alemanha que chegam, muitas vezes com atraso e distorcidos, os modelos intelectuais e institucionais que são adotados no Brasil.[...] o contingente de cientistas e pesquisadores assumiu
125
a liderança de muitas instituições de pesquisa. (SCHWARTZIMAN, 2015, p. 143)
Na fala do autor, podemos identificar o fundo epistemológico que
permeava as produções intelectuais tributárias das visões filosóficas da ciência
europeia. Cardoso (2013), nesta mesma linha de pensamento, chama atenção para
a significativa contribuição dos professores franceses para a formação da episteme
do campo disciplinar da Geografia brasileira nesta geração, que, paradoxalmente,
denomina uma “cultura geográfica nacionalista”, alegando que ela imprimiu um viés
“eminentemente prático à disciplina”, voltada para atender às demandas do governo
provisório de Getúlio Vargas, com destaque para as temáticas relacionadas à saúde,
educação e trabalho.
Contudo, mesmo com essa característica eminentemente nacionalista,
para a autora, este período “pré-científico” é também marcado pela falta de
“autonomia epistemológica” em função da “dependência cultural com “os grandes
centros do Velho Mundo”. Isso porque, embora suas problemáticas fossem
circunscritas aos interesses para “identificar os problemas nacionais e tentar resolvê-
los, de modo a inserir o país no rol das nações civilizadas” (CARDOSO, 2013, p. 26),
as abordagens e a visão de ciência utilizadas estavam profundamente imbricadas às
concepções ocidentais49 (principalmente da escola francesa), compondo um modo
de ser, ver e agir conduzido pelos imperativos dos interesses estrangeiros, o que
legitimou a adoção de um modelo de ciência internacional, adaptado para a
realidade nacional, uma vez que “ seria certamente ingênuo, nesta apreciação,
contrapor a ciência europeia a uma possível ciência nacional” (SCHWARTZMAN,
2015, p. 143). Sem contudo, deixar de considerar que, “os estudos geográficos, por
conseguinte, estavam também a serviço dos interesses ‘imperialistas’, pois a
conquista de um território implicava também o reconhecimento de sua realidade”
(CARDOSO, 2013, p. 27). Para isso:
A estatística era o modo mais eficaz de conhecer os problemas e de orientar as soluções para os mesmos, reduzindo a possibilidade de insucessos administrativos. Um Estado planejador da vida da Nação
49 O nosso entendimento dialoga com a concepção de que “Esse modo-de-ser-no-mundo
hegemônico, civilizado, científico e pautado no modo de vida capitalista demonstra que os entes (individuais e coletivos, os sujeitos e seres sociais) são reprodutores do mundo e, ao mesmo tempo, encontram-se sujeitados a este próprio processo condicionante do modo-de-ser-no-mundo. O mundo seria o ‘objeto’ deste sujeito que, ao mesmo tempo, projeta, produz e reproduz o mundo e se encontra condicionado a ele.” (GUIMARÃES, 2017, p. 18).
126
necessitaria de métodos modernos, científicos e neutros para justificar sua ação, provando que a decisão tomada era a melhor para todos. [...] redescobrir o Brasil e fornecer dados que permitissem a consolidação de um Estado, que se dizia Nacional. (CAMPOS, 2011, p. 141)
O autor pontua que esta forma de ver, conceber e produzir o
conhecimento científico é “útil ao nacionalismo da época ao ter como uma das suas
metas o ataque ao determinismo fisiográfico e ao afirmar a possibilidade de
desenvolvimento dos países tropicais” (CAMPOS, 2011, p.141). Na crença pujante
de que a estatística seria a forma mais eficaz de realizar a pesquisa científica e
contribuir para o “Estado planejador”, é possível constatar fragmentos que refletem a
forma de abordagem legitimada e instituída nos elementos explicativos (explícitos e
implícitos), que evidenciam a coimplicação das dimensões axiológicas (os valores
econômicos, sociais e éticos), na dimensão metodológica (nos procedimentos, nas
estratégias e abordagens), e que, consequentemente, repercutiram na trajetória de
formação epistêmica da Geografia brasileira.
Nas historiografias contemporâneas sobre as produções intelectuais da
época, é possível constatar fragmentos com ligações evolutivas históricas
(contribuições, influências, críticas) desta episteme. Primeiro, no trabalho realizado
por Cardoso (2013) sobre “o lugar da geografia brasileira na sociedade de geografia
do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945”, em que analisa e descreve os dados
coletados nos documentos históricos da época, que comprovam a existência da
“cultura geográfica” do Estado Novo nas produções intelectuais dos principais
eventos científicos. Vejamos na fala da professora:
[...] como já era de se prever, todas as teses oficiais confluíam para o desenvolvimento da ‘cultura geográfica’ do Estado Novo, também na escolha dos temas para estudo, quando na busca de subsídios para orientar a formulação de políticas públicas. A esse respeito, no programa do congresso de 1940, veja-se na seção de geografia humana o item ‘estudo funcional de um centro urbano’, solicitava-se aos autores de monografias que identificassem as condições geográficas e topográficas que influíam na formação de uma cidade. Na mesma seção, outro exemplo expressivo constava da redação de um ‘inquérito antropogeográfico sobre um tipo de imigrante’, em aspectos, ‘a origem, a categoria social, a atitude do imigrante em relação ao trabalho, aos ‘conceitos médios sobre propriedade, família, religião, educação e às questões internacionais, e se o tipo era assimilável ou não’. (CARDOSO, 2013, p.181)
De modo geral, segundo a autora, os temas alvo das pesquisas eram
escolhidos em função das demandas nacionais, com o intuito de oferecer subsídios
para a elaboração das políticas públicas. Os trabalhos de conclusão eram orientados
127
para produzir diagnósticos geográficos e topográficos que impactavam diretamente
na formação do espaço urbano “como o seu ‘histórico geograficamente
interpretado’”, e a dimensão humana abordada tinha alto viés do “inquérito
antropogeográfico sobre o imigrante”, conhecer a estrutura social, a partir das
“questões internacionais”. (CARDOSO, 2013, p. 181)
Segundo, os elementos da “cultura geográfica” também podem ser
identificados nos textos do Boletim Geográfico (nº31), publicado em outubro de
1945, conforme podemos ver no Quadro 04 fragmentos do texto “Pesquisas
Geográficas”, de Pierre Monbeig, professor, geógrafo, francês, discípulo da primeira
geração de Vidal de La Blache, e o segundo numa série de estrangeiros que vieram
para o Brasil ensinar na USP. Para Moreira (2010, p. 27), a marca que distingue
Monbeig entre todos é o pluralismo de abordagens/temas, “é [...] a referência nos
estudos seminais das cidades brasileiras, da formação do espaço agrário via
movimento das frentes de expansão agrícolas e de teorias e do ensino da Geografia,
[...] textos que depois reúne em um livro, cobrindo um lapso de tempo de 15 anos.”
Com um estilo de pensamento que se aproxima da Geografia na “modalidade de
integração” a partir da “superposição em camadas”, em que “as esferas física e
humana vão se superpondo, num acamamento mais mecânico que orgânico de
integração, bem no estilo da Geografia regional de Vidal de La Blache” (MOREIRA,
2010, p. 31), com isso coloca o “quadro físico” como base das dinâmicas sociais e
econômicas.
Uma comunicação de caráter prescritivo. Apresenta-se como um
“receituário” aprovado pela autoridade hierárquica da posição de ser “o professor
francês”, contempla nos elementos explicativos vários fragmentos que denotam o
estilo de pensamento do professor e a “cultura geográfica” da época. No Fragmento
01, fica evidente a ênfase atribuída para os estudos regionais nas monografias como
produto das pesquisas geográficas e “científicas”, o autor aponta a carência das
“monografias regionais” e indica que só através delas é possível obter a
‘científicidade’ e a distinção dos textos geográficos de outros (literário e jornalístico).
No Fragmento 2, identificamos o modelo de análise geográfica proposto (legitimado)
e a descrição de suas vantagens. Um primeiro elemento explícito que chama
atenção é a referência a “quadro”, inclusive citado em vários fragmentos ao longo do
texto.
128
[...] afinal, esse termo serve, entre outras coisas, para denominar figuras, tabelas, gráficos ou grandes diagnóstios sobre um determinado assunto. [...] o apelo à ideia de quadro passou a ser característico do vocabulário científico dos séculos XVIII e XIX. Esse uso era sobretudo precioso quando se tratava de um volume grande e/ou variado de informações que precisavam ser organizadas, enquadradas.” (GOMES, 2017, p. 93)
A ideia expressa no uso do quadro é a sistematização dos dados
científicos em partes (quadros), físico depois humano, para facilitar a análise das
partes e chegar a compreender a “complexidade” da totalidade, pois, conforme nos
alerta Gomes (2017), o recurso do quadro como modelo de análise requer o olhar
pelas partes na busca das conexões possíveis, a concepção da existência de
elementos objetivos, a ordem e a disposição dos quadros . Prevê, ainda, o contato
“íntimo” com a realidade (do visível), através do trabalho de campo (ênfase no
empirismo), e o procedimento lógico da indução, cujas principais vantagens seriam
a atividade prática como processo formativo, freio à “imaginação” e possibilidade de
registrar os problemas “reais” da “zona estudada” – “[...] a forma de trabalhar com
imagens enquadradas tem sido um poderoso instrumento de constituição da
Geografia. [...] o quadro é, ao mesmo tempo, uma técnica de poder e um
procedimento do saber” (GOMES, 2017, p. 97).
Quadro 4 Fragmentos do texto “A pesquisa Geográfica” de Pierre Monbeig
Fragmento 01 – As monografias regionais (1945, p. 3)
É indiscutível que neste terreno há mais o fazer: aumentar os estudos regionais, realizados dentro dos moldes dos métodos modernos da Geografia. Se se comparar a bibliografia geográfica nacional com a de ouros países novos, nos quais as condições de trabalho eram frequentemente tão e mesmo mais difícieis, fica-se chocado pela pequena representação das monografias geográficas brasileiras. A deficiência é mutio menor em geologia ou mesmo em botânica. Também não faltam artigos jornalísticos ou literários que nada têm de científico senão a apresentação de seus autores. Mas as nonografias regionais são raras.
Fragmento 02 – Modelo de análise geográfica e suas vantagens (1945, p. 4)
É entretanto no quadro da região que melhor se entra em contacto com a realidade: a complexidade das relações entre os grupos humanos e as condições naturais aparece em maior destaque que em golpes de vista de conjunto. O estudo é essencialmente analítico, trantando sucessivamente dos direfentes aspectos físicos e depois dos fatos humanos; não se limita a uma descrição seca e não exclui uma conclusão onde for possível trazer à luz o ajustamento ou, ao contrário, o desajustamento entre as condições
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geográficas permanentes e o estado atual das atividades humanas. Este modo de trabalho apresenta duas vantagens: a primeira é a de travar um contacto mais íntimo com o concreto, o que constitui a melhor escola desejável para o principiante e o freio mais sólido suscetível de permitir uma apresciação exata dos verdadeiros problemas da zona estudada, podendo, em consequência, a pesquisa científica adquirir uma utilidade prática.
Fragmento 03 - A geografia nacional, moderna e aplicada (1945, p.5)
[...] relativas a diferntes países e às discussões da Royal Geographic Society, relativas à renovação da agricultura britânica, aos problemas da indústria e às questões da população. Em todos esses países, onde há muito tempo triunfou a concepção moderna da Geografia, onde o ensino nas escolas de todos os graus é ministrado por pforessores especialmente preparados e posto de acordo com as ideais novas e a pesquisa é encorajada, a Geografia foi chamada para render os melhores serviços.
Fragmento 04 – A região homogênica (1945, p. 5)
É certo que a realização dessas monografias regionais nem sempre é fácil: requer certo conhecimento dos princípios e dos métodos de trabalho geográficos a fim de poder começar por bem colocar a região que se pretende analisar. A principal dificuldade reside, sem dúvida, na escolha da região e em sua delimitação. Poder-se-ia classificar de ideal a porção do globo que é tão invidualizada pelo conjunto de suas características físicas, naturezaa das rochas, formas de relevo, clima, vegetação, a ponto de essas lhe conferirem, por si sós, uma unidade indiscutível; esta unidade se concretiza na paisagem que se opõe em todos os seus aspectos e mesmo quase brutalmente aos dos territórios vizinhos. Frequentemente, graças a essa homogeneidade dos fatores físicos, o povoamente é antigo e as atividades humanas encontraram muito cedo um quadro natural no interior do qual atingiram rapidamente sua plenitude. A união do homem e da natureza é, nesse caso, bastante desenvolvida para que a região não seja somente ‘natural’, mas também histórica: é um país retomando a terminologia espontânea dos camponeses franceses (ou de outras populações europeias: o gau germânico).
Fragmento 05 – A indicação dos temas/problemas (1945, p. 6)
As monografias relativas a essas unidades naturais bem definidas constituíram os principais objetivos de pesquisas dos geógrafos franceses da escola de Vidal de la Blache; teses de doutoramento sobre a Flandres, sobre o Bas-Maine, alguns valores alpinos [...], etc. As terras paulistas oferecem exemplos idênticos, mas que ainda esperam por seus geógrafos: o vale do Paraíba, o litoral, a serra do Mar; e no imenso Brasil, desde as coxilhas até Marajó, passando pela baixada fluminense, o vale do São Francisco, o Pantanal matogrossense, assuntos não faltam. As dificuldades surgem quando os caracteres físicos são mais complexos, os limites menos preciosos e as nuances mais diversas. No Estado de São Paulo, por exemplo, há uma região cuja unidade topográfica não pode escapar a quem quer que observe o mapa orográfico; a
130
que se estende desde a fronteira com o Estado do Paraná, nas redondezas de Itararé. Indo como um vasto crescente em direção ao norte, além de Casa Branca [...] Todo o complexo jogo das condições naturais, natureza das rochas e dos solos, variações de clima e, sem dúvida alguma, também a ação das contingências históricas (antiuidade, importancia e constância do povoamento), contribuíram para esclarecer as razões de ser dessas nuances locais; é necessário, entretanto, as precisar e traçar tão exatamente quanto possível os limites de cada paisagem.
Fragmento 06- O possibilismo (1945, p. 7)
Os exemplos citados parecem admitir que as atividades humanas se adaptaram sempre perfeitamente ao quadro natural; estado ideal na concepção de uma Geografia estreita, mas que nem sempre é realizada. Se assim fosse, o geógrafo poderia raciocinar como outrora o fazia Cuvier, ao qual bastava um único fragmento de osso para reconstituir um animal: um único pedaço de rocha, uma cota de altitude e um gráfico climático seriam suficientes para descrever em seguida o povoamente e a economia da regição. É fazer muito pouco caso dos homens e de suas paixões. Assim, no conjunto dos planaltos do interior paulista e do norte do Paraná, os elementos não oferecem nunca constrastes muito marcantes: um conjunto, não é impossível de os considerar como formando uma região natural. Por outro lado, os modos de ocupação do solo são muito mais variados e, sobretudo, evoluem rapidamente. Em consequência, torna-se mais difícil basear-se nos limites físicos e, nesse caso, como em muitos outros, a pesquisa deve partir dos fatos humanos.
Fragmento 07 – As monografias municipais com alternativas (1945, p. 8)
Notar-se-á que os referidos quadros não são quadros administrativos, limites de Estados ou de municípios. Não porque seja necessário os repelir sistemáticamente, mas porque, na maioria das vezes, as fronteiras políticas concordam mal, quer com os limites físicos, quer com os contatos históricos ou econômicos. Limitar-se a priori aos quadros políticos seria arriscar a perder de vista a realidade e, por conseguinte, chegar a conclusões práticas erradas. Entretanto, por falta de trabalhos feitos levando em cosideração as unidades naturais ou antropogeográficas, as monografias municipais oferecem um grande interesse.
Fragmento 08 - Contribuição das análise estatístas (1945, p. 8)
Ao lado das pesquisas regionais, restam ainda muitas outras a realizar, onde o ponto de vista do geógrafo não seria inútil. Poderia ser a Geografia Urbana, que conheceu um extraordinário desenvolvimento tanto em França quanto nos Estados Unidos; alguns dos alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo realizaram várias pesquisas bem desenvolvidas sobre cidades como Santo André, Casa Branca, Franca, Campinas, Jabuticabal, Belo Horizonte. É Bem pouco, em relação ao que resta fazer ou mesmo refazer, pois algumas dessas cidades já passaram por transformações depois de 1938 ou 1939. Em um país onde a população é distribuída tão desigualmente e onde está em perpétuo deslocamento, há uma série de problemas
131
relativos às densidades, à evolução do volume dos habitantes em unidades territoriais precisas, à distribuição dos elementos exógenos. Mapas organizados segundo o recenseamento de 1940 e concernentes às densidade de população nos diferentes Estados do Brasil, com análises mais preciss para o Estado de São Paulo, tornam mais tangíveis fatos frequentemente ignorados, como, por exemplo, o desequilíbrio que se acentua entre as diferentes zonas paulistas. Essas representações cartográficas constituem complemento indispensável dos recenseamentos e devem ser efetuadas de acordo com as análises estatísticas.
Fragmento 09 - Os propósitos da geografia (1945, p. 9)
Há ainda numerosas outras questões na solução das quais os estudos geográficos podem contribuir: eis, por exemplo, dois volumes que mostram o valor prático que se lhes podem atribuir: um, uma publicação da Universidade de Chicago, intitulada Geographic aspects of international relations, que reúne conferências de Bowan, Pierre Denis, Preston James, Robert Platt, D. Whittlesey e outros. Vários dessas conferências tratam dos problemas de população, particularmente na América do Sul, examinando-os no quadro das condições geográficas; as de Pierre Denis, universitário que se transferiu para o mundo dos negógicos, aborda o tema dos aspectos internacionais da intervenção do Estado na vida econômica, tratando-o sempre dentro de um espírito geográfico.
Fragmento 10 – O modelo francês de cátedras (1945, p. 11)
Esses tipos de pesquisa nos afataram sensivelmente do que fora outrora a Geografia. Restaria saber como passar à realização e como pôr em obra as sugestões desse gênero. Os exemplos citados, tomados quer em França, quer nos Estados Eunidos, indicam o papel que aí têm os centros de estudos geográficos das Universidades. Sabe-se que essas Universidades dispõem de pessoal e de recursos suficientes. O exemplo deveria ser seguido. Naturalmente, nem a realização nem a direção desses trabalhos poderiam ser confiados aos estudantes recém-saídos dos cursos secundários: o grupo de pesquisadores deveria ser reccurtado entre os licenciados, muito cuidadosamente selecionados. Por sua vez, eles poderiam utilizar alguns dos candidatos ao licenciamento, para as fases mais elementares do trabalho, a fim de começar um treinamento progressivo. Um verdadeiro laboratório de pesquisa geográficas seria assim formado, cujos membros não teriam outras preocupações e seriam colocados em condições materiais tais que se teria o direito de exigir um trabalho constante. Esse centro de estudos não poderia de maneira alguma funcionar como um seminário sem contacto com o exterior: ao contrário, seus membros manteriam relações estreitas com as outras seções da Universidade bem como com os departamentos extrauniversitários, cujos trabalhos e funções estão próximos da Geografia. Nenhum obstáculo sério poderia travar a elaboração de planos de pesquisas coletivas, permitindo cobrir todos os aspectos de um mesmo problema. O conhecimento científico e a vida prática não têm senão a lucrar com uma melhor organização e desenvolvimento dos estudos geográficos.
Fonte: Boletim Geográfico (1945, v2 n31)
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No Fragmento 03, Monbeig (1945) conclama para a produção de uma
Geografia moderna, nacional e aplicada, paradoxalmente nos moldes da Geografia
europeia. No 4º Fragmento, o autor descreve os princípios que devem ser
considerados no método de trabalho do geógrafo: “as monografias regionais”; “a
necessidade do recorte espacial – região homogênea”; e a orientação para “utilizar
como critério para estabelecer a regionalização e como unidade da paisagem a
homogeneidade dos fatores físicos”.
Nos Fragmentos 05 e 06, é possível constatar a vinculação explícita ao
coletivo de pensamento francês, que, segundo Andrade (1992, p. 69), refere-se ao
fato de que “Escola Francesa foi formada na primeira metade do século XX, tendo
por centro as ideias defendidas por Vidal de La Blache”. Embora o autor deixe claro
que este coletivo de pensamento não apresenta um bloco monológico, pois
“havendo muitos dos geógrafos nela classificados que aceitavam, em parte, as
ideias de Vidal de La Blache, discordavam do mestre em outros momentos”
(ANDRADE, 1992, p. 71). No entanto, no cerne das práticas discursivas desta
primeira geração de coletivos, é possível pensar a relação homem/meio físico a
partir do axioma “o meio exerce alguma influência sobre o homem, mais que este,
dependendo das condições técnicas e do capital de que disponha, poderia exercer
influência sobre o meio, daí [...] o Possibilismo” (ANDRADE, 1992, p. 70).
Concepção que está implícita em vários fragmentos do texto e mais especificamente
na fala “as atividades humanas parecem se adaptar sempre perfeitamente ao
quadro natural. Estado ideal na concepção de uma geografia estreita [...]”
(MONBEIG, 1945, p. 7).
Nos Fragmentos de 07 a 10, o autor enaltece: as monografias municipais
como alternativas para as análises regionais; as contribuições da análise estatística
e cartográfica para a Geografia; o alcance da Geografia moderna internacional e
produção colaborativa de pesquisa para ampliar sua abordagem, respectivamente
(MONBEIG, 1945). O ponto convergente nos fragmentos é o incentivo “aos fins
pragmáticos” que deveria tomar a pesquisa geográfica.
Os geógrafos que vinham trabalhando isoladamente ou no ensino universitário teriam de se adaptar a um sistema de trabalho realizado em comum e em colaboração com outros especialistas, procurando atingir fins pragmáticos. Daí o crescimento e até o surgimento de disciplinas do conhecimento geográfico que se interpunham entre a Geografia e a Economia, a Sociologia ou Antropologia, e se passou a falar em uma
133
Geografia Aplicada e em uma Geografia Ativa. Este desafio conduziria os geógrafos a fazer uma revisão nas categorias científicas que utilizavam e a promover grandes polêmicas em torno da transformação do conhecimento e do estudo da Geografia. (ANDRADE, 1992, p. 95)
A inserção de novos campos disciplinares nos currículos dos cursos de
Geografia, bem como a mudança nas categorias de análise geográfica, as
alterações em relação aos propósitos (sentidos) da ciência geográfica e a frequente
adjetivação de “aplicada”, que passa a ser vinculada à Geografia, mostram as fortes
ligações evolutivas, de caráter histórico e social na dinâmica científica.
Ligações evolutivas oriundas também das transformações socioespaciais,
principalmente do contexto pós-guerra, atuaram de forma significativa como fato
condicionante da evolução epistemológica do saber geográfico, principalmente
através dos fundamentos do pragmatismo.50 Nos elementos implícitos, é possível
interpretar essa inserção das disciplinas nos cursos, segundo a concepção de que a
formação (iniciação) do professor e pesquisador traz impacto no desenvolvimento
científico, legitimando e propagando a episteme válida.
Esta mesma cultura geográfica nacionalista (episteme) legitimada e
propagada pelas instituições oficiais e pela comunidade científica, da primeira
geração de coletivos sociotécnicos, vai ser intensificada no período de 1940 a 1950,
pois atendiam aos imperativos da política modernizadora do Estado Nacional,
aquela voltada para a formação da “identidade nacional”, e em função dela vários
órgãos (inclusive, agências de fomento) foram criados. Entre eles, em 1949, através
da lei 1.310, cria-se o “Conselho Nacional de Pesquisa”, atual Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, com a finalidade de regulamentar
e promover a investigação científica no país, auxiliar e potencializar a formação, o
aperfeiçoamento e o desenvolvimento científico e tecnológico, bem como formar o
quadro técnico e científico nacional e o intercâmbio com instituições estrangeiras.
De acordo com Silva e Oliveira (2009, p. 81), o CNPq ainda hoje constitui-se num
dos “principais sustentáculos para a promoção da pesquisa e formação de quadros
50 “Essa postura epistemológica e metodológica tem suas raízes filosóficas na tradição pragmática,
mais claramente expressa por Charles S. Peirce, que, para Karl Popper, foi o maior filósofo norte-americano de todos os tempos (Popper, 1959). O pragmatismo surgiu nos Estados Unidos e contrastava nitidamente com a metafísica, pois propunha que o conhecimento fosse originado pela atividade prática, a partir de experimentos e da experiência científica. Os pressupostos diziam respeito às suas consequências no que tange à verdade e ao significado. As teorias serviam como guias para a ação positiva, enquanto todo o conhecimento deveria ser empregado para solucionar os problemas práticos do cotidiano. “(VITTE, 2007, p. 24 – 25)
134
técnico-científicos, nos quais se incluem a pós-graduação, em todas as áreas do
conhecimento”, através não só do fornecimento das bolsas e dos editais de
pesquisa, mas, diretamente, através do financiamento e controle dos Planos
Nacionais de Pós-Graduação (PNPG)51, pois seleciona as áreas de conhecimento
(institucionalizadas) e os temas “prioritários” para as finalidades (metas)
estabelecidas pelos planos ou programas de desenvolvimento em vigor. Vejamos no
fragmento do texto de Kato e Ferreira (2016, p. 667):
Quando analisados os antecedentes do PNPG (2011 – 2020), nota-se que há uma indução histórica, da base econômica, expressa nos planos anteriores, que corroboram a hipótese [...], de que há uma relação direta entre a condução política do nosso recém-Sistema Nacional de Pós-Graduação e nosso modelo de desenvolvimento econômico, que funcionaliza o papel da universidade e do conhecimento ali produzido para a reprodução ampliada do capital.
Ainda para ilustrar, podemos considerar como exemplo que, no final da
década de 1960, a situação muda, mudanças evolutivas trazem novos rumos para a
universidade brasileira, não só em função dos conflitos políticos com o golpe de
1964, através da implantação de medidas radicais e restritivas52 às Universidades e
aos movimentos de resistências, mas principalmente com a Reforma Universitária
instituída pela Lei 5540/68, cujas bases vinham sendo construídas desde 1940, no
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), através dos serviços de assessores
norte-americanos contratados pelo acordo MEC-Usaid, implantados pelo Ministério
da Educação. Na fala do autor:
A modernização do ensino superior na direção do modelo norte-americano já vinha ganhando terreno lenta, mas solidamente, desde os anos de 1940 [...]. A própria Universidade de Brasília expunha esse modelo à pronta difusão. Ele consistia na radical mudança de organização dos recursos materiais e humanos da universidade. Em vez de agrupá-los em função dos produtos profissionais (isto é, nas faculdades), passavam a ser agregados
51 Oficialmente, os Planos Nacionais de Pós-Graduação-PNPG no Brasil “cumprem o objetivo de
definir novas diretrizes, estratégias e metas com vistas ao desenvolvimento da pós-graduação e pesquisa no Brasil [...]. Alguns eixos são destacados como centrais no âmbito deste documento: expansão do Sistema Nacional de Pós-Graduação; criação de agenda nacional de pesquisa; o papel de indução da Capes e do CNPq; o aperfeiçoamento da avaliação; o apoio aos demais níveis de ensino; e a formação de recursos humanos para empresas”. (KATO; FERREIRA, 2016, p. 684) 52
Para Cunha (2007, p. 21), “as medidas restritivas eram de vários tipos, desde a demissão de reitores e diretores e expulsão de professores e estudantes, até o impedimento legal de certas experiências específicas de modernização do ensino superior, como a da Universidade de São Paulo. As resistências iam desde o revigoramento do movimento estudantil, que chegou a buscar uma concepção original de universidade, até a rejeição da intromissão dos consultores norte-americanos no planejamento do ensino superior brasileiro.”
135
em função das economias de escala no uso dos indutos (implicando a estrutura departamental). O conhecimento a ser ensinado se fragmentava em pequenas unidades chamadas disciplinas, já descoladas das matérias correspondentes às cátedras. No nível da universidade, a agregação das disciplinas dava origem aos departamentos, por processos indutivos (ao contrário do processo dedutivo que originava a cátedra); no nível do estudante, resultava no currículo a ser composto mediante um sistema peculiar de contabilidade – o crédito. Assim, a própria estrutura da universidade revelava a vitória do empirismo anglo-saxônico sobre o racionalismo francês e o idealismo alemão, embora este fosse evocado em sua justificativa. (CUNHA, 2007, p. 21)
Com a Reforma, houve uma mudança radical da estrutura de cátedra
(modelo universitário francês) para o modelo disciplinar norte-americano, em que
para cada disciplina foi atribuído um departamento, e os alunos deveriam conquistar
o número de créditos estabelecidos nas grades curriculares dos departamentos
(modelo que vigora atualmente nas universidades brasileiras). No fundo foi a
transformação “das tradicionais instituições em instituições modernas”, cerne do
discurso que justificava a implantação da Reforma e atendia aos imperativos da
modernidade e caracterizam a segunda geração dos coletivos sociotécnicos no
período de 1970 a 1980, que vai culminar com a primeira fase de implantação dos
programas de pós-graduação no país. Vejamos no fragmento a seguir:
Em texto escrito em 1972, Newton Sucupira rememorou as razões que, no seu entender, levaram à fragmentação das faculdades de Filosofia, Ciências e Letras (FFCLs). A extrema especialização do saber científico moderno tornaria impraticável a reunião, na mesma unidade de disciplinas tão diversas. A heterogeneidade da congregação de uma FFCL, reunindo professores de uma dezena de áreas, ignorando-se uns aos outros, evidenciaria tal impossibilidade prática (Sucupira, 1973, p. 54). É estranho que, coerentemente com esse diagnóstico, aquele conselheiro não tivesse proposto, também, a fragmentação dos conselhos universitários, por certo ainda mais heterogêneos que as congregações das FFCLs. (CUNHA, 2007, p. 76)
A vinculação explícita com a ciência moderna da “modernização
universitária” instituída no Brasil elimina definitivamente a possibilidade de uma
concepção de “cultura geral desinteressada e unidade do saber” - características
da filosofia alemã fundada por Von Humboldt, que vigorava na Europa -
legitimando a fragmentação dos saberes, principalmente entre as ciências humanas
e as ciências naturais. Veja que não há como distinguir as implicações internas e
externas da dinâmica científica, assim com o elemento marcante, que são as
repercussões da reflexividade epistêmica nas várias dimensões do fazer científico,
uma vez que estão efetivamente coimbricadas, pois:
136
Essa fragmentação epistemológica é também ontológica, pois reforça a especialização positivista das ciências, que, no caso da geografia, ira distanciar o diálogo entre as chamadas “geografias setoriais” e reforça ainda mais a fragmentação interna – muitas vezes, velada como especialização do conhecimento científico – tais como: geografia humana, geografia física, geografia regional e geografia socioambiental. Destarte, a construção desse modelo de totalidade fragmentário baseado na antinomia homem/natureza acaba por negligenciar os modos-de-ser-do-humano-na-Terra em prol de um modo hegemônico, o modo-de-ser-no-mundo civilizador-moderno-ocidental. (GUIMARAES, 2017, p. 19)
Na mesma linha de pensamento de Guimarães (2017), Suertgaray (2017)
nos adverte que a fragmentação surge na Ciência Moderna como possibilidade de
ampliar a análise geográfica (articulação entre as dimensões epistemológica e
metodológica), seja na perspectiva espacial (por exemplo, as escalas geográficas),
seja na perspectiva temática (Geografia Urbana, Geografia Rural etc.), seja na
perspectiva do objeto de estudo da Geografia, através das diferentes concepções
atribuídas ao espaço (natural, social, vivido, geográfico, geométrico). Observe que
já nos anais do “9º Congresso Brasileiro de Geografia” de 1941, analisados por
Cardoso (2013), é possível comprovar a especialização da ciência geográfica,
indicada na fala de ambos os autores, não só nas orientações (normatizações do
evento), mas na distribuição das temáticas das produções intelectuais apresentadas
no congresso. Cito:
[...] a maior incidência de trabalhos recaiu sobre as seções de geografia humana e de geografia econômica, seguidas das contribuições voltadas para a temática regional e as monografias dedicadas ao estudo da geografia física. Afora a indicação recorrente da necessidade de elaboração de uma carta topográfica brasileira [...] as demais moções aprovadas pelas comissões técnicas espelham o contexto político e cultural que o país atravessava. (CARDOSO, 2013, p. 182)
A fala da autora também reflete a vinculação explícita das temáticas
elegidas pela comunidade científica sobre as demandas políticas e econômicas
vigentes, desvelando permanências em relação aos valores sociais (dimensão
axiológica), que foram importantes para o próprio fortalecimento e interpretação do
Brasil. Até porque, do mesmo modo que não é possível determinar causa única ou
específica proveniente de fatores internos ou externos isolados, também em relação
à temporalidade, as múltiplas contingências se entrelaçam: passado (o que
aconteceu), presente (com o que está acontecendo) e futuro (podem ou não
repercutir no futuro). Na tese de Cunha (2007), podemos visualizar essa suposição,
pois, para a autora, as concepções que culminaram na “modernização
137
institucionalizada” da reforma universitária de 1968 foram gestadas desde 1940 e
representavam, além de um mecanismo de controle do sistema educacional que
atendia aos interesses do Estado, uma busca dos “administradores educacionais,
professores e estudantes”, na época. Linha de pensamento que coaduna com
Andrade (1992), que alerta que era possível a “constatação destes fatos e a
necessidade de participar do movimento de reformulação científica e política da
sociedade, que inquietou os geógrafos, ora a percorrer novos caminhos, ora
procurando atualizar os princípios gerais da geografia clássica e tradicional”
(ANDRADE, 1992, p. 82). O autor nos revela ainda que, no coletivo de pensamento
da época, o dilema era “reforma” ou “revolução”, e o ‘ideal’ que perpassa e informa o
social e o científico era romper com a ordem instituída, abrindo possibilidade para
“uma ‘nova geografia”, à luz dos fundamentos neopositivista53.
No texto “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos no Brasil”,
de Marília Velloso Galvão e Speridião Faissol, Geógrafos do IBG (antigo IBGE),
publicado na Revista Brasileira - RBG de 1970, numa comunicação prescritiva, é
possível identificar vários fragmentos que ilustram os estilos de pensamento dos
autores e do coletivo de pensamento da segunda geração (GALVÃO; FAISSOL,
1970). No Quadro 04 é o possível observar os fragmentos desses autores.
No Fragmento 01, os autores, com o intuito de declarar dois pontos que
consideram relevantes para a evolução científica da Geografia, deixam visível que o
método quantitativo é a “nova” e “poderosa” “arma” para combater e eliminar a
condição de não científica da Geografia, pois só estes métodos possibilitariam a
realização de procedimento “científico”, elevando a produção geográfica à categoria
de ciência, pela construção de “princípios gerais” (leis e teorias substantivas).
Alegam que a própria natureza dos conhecimentos geográficos requer este tipo de
procedimento, análise dos padrões espaciais, quando fica implícita uma concepção
53 “O principal fundamento concebido pelos neopositivistas era o ‘princípio da verificabilidade’,
bastante similar ao ‘princípio da falseabilidade’ popperiano. Verificar seria tomar um enunciado significativo e reduzi-lo ao conjunto de dados empíricos imediatos, para constatar se eles ocorreram ou não no mundo real. Conforme este princípio, havendo compatibilidade entre o enunciado e o dado empírico, pode-se dizer que o enunciado é verdadeiro. A matemática é uma fonte de parâmetros a partir dos quais os pseudoenunciados são substituídos por afirmações claras e objetivas. Assim, o neopositivismo tentou fugir da subjetividade e da imprecisão conceitual pela abstração matemática. Na esteira deste empreendimento científico, valoriza-se o procedimento indutivo como metodologia de replicações de resultados a partir de fatos particulares experimentados, que constatariam as
hipóteses anteriormente levantadas.” (ARMOND, 2013, p. 104)
138
de natureza e de realidade como algo concreto (objetivo) e passível de ser
mensurado, objetivado. Para isso, declaram que, só através da mensuração e da
utilização dos modelos matemáticos para explicar a organização espacial, a
Geografia seria capaz de oferecer contribuições “substantivas” (Fragmento 2) ao
desenvolvimento econômico – pressupondo que fornecer subsídios para o
desenvolvimento socioeconômico seja a principal função social da ciência
geográfica, desvelando uma concepção de Ciência, imbricada com os princípios da
modernidade, conforme vimos no capítulo 2. E à Geografia Física cabia explicar os
‘fatores físicos’, ou ‘as relações causais, que explicariam o quadro natural’ da
superfície terrestre, pela lógica dedutiva, que estabeleceria a verificabilidade de
hipóteses e potencializaria a capacidade de prever os fenômenos naturais. Uma
concepção de mundo físico pautada no mecanismo. Para Vitte (2011b, p. 66), o
pensamento coletivo na época refletia:
[...] as relações entre a filosofia da ciência e a geografia ficaram mais estreitas, em que a visão positivista de ciência acabou impondo aos geógrafos que o progresso seria alcançado mediante formulação de teorias e produção de leis [...] assim, novas teorias poderiam propiciar não apenas uma melhor explicação sobre a realidade, mas também, ao construir novas descobertas, estaria atuando no avanço progressivo da ciência geográfica, dotando-a de uma estrutura científica madura, onde, inclusive, seria permitida a realização de predições.
O Fragmento 3 estabelece que só com a inserção das tecnologias,
principalmente dos computadores, em todos os ramos da Geografia e com inúmeras
possibilidades de uso, poderá se dar conta da dinâmica das transformações globais,
principalmente nos campos que afetam diretamente as concepções geográficas, o
que implicou a mudança das pesquisas empíricas pela ênfase no uso dos
laboratórios. Os autores recomendam no documento que todas as pesquisas
geográficas sejam aplicadas em função das demandas do contexto da sociedade
moderna e que a geografia tenha como propósito de investigação a organização do
espaço, com isso, dando legitimidade discursiva a uma forma de fazer ciência,
fortemente influenciada pelo pragmatismo e pelo realismo, conforme nos informa
Vitte (2011b).
Nos Fragmentos 4 e 5, Galvão e Faissol (1970) descartam a
impossibilidade de a Geografia produzir teorias, indicando que esse tipo de
concepção é “errôneo”, alegando que pode trazer como consequência uma
“disciplina enciclopedista e descritiva” que pouco contribuirá para o bem-estar social,
139
defendendo a tese de que é possível e recomendável produzir teorias na ciência
geográfica, sendo esse, portanto, o principal sentido da Ciência, o de legitimar a
construção de uma explicação científica para a Geografia Física.
No Fragmento 06, os autores reconhecem os elos evolutivos, pela
influência dos geógrafos franceses na episteme da Geografia Regional brasileira, e
com o elemento discursivo explicativo, revelam que desde a década de 1950 os
Estados Unidos e alguns países da Europa já adotavam a Geografia Quantitativa e
propuseram uma revolução quantitativa para promover novos dispositivos para a
pesquisa geográfica no Brasil.
Quadro 5 - Fragmentos do texto “A revolução quantitativa na geografia e seus reflexos
no Brasil, Galvão e Faissol (1970)
Fragmento 01 – Objetivos da comunicação (1970, p.1)
O objetivo do presente trabalho é mostrar simultaneamente dois pontos importantes no desenvolvimento da geográfica: 1- o de que os métodos quantitativos na geografia representam uma nova e poderosa arma para a análise dos fenômenos geográficos, capazes de tornar a geografia um ramo do conhecimento humano igual aos outros de natureza científica, pela sua capacidade de precisar os fenômenos e estabelecer princípios gerais, segundo os quais eles ocorrem; 2 – o de que, além disso, pela natureza dos problemas que tais métodos permitem analisar e pela forma por que agora se pode analisá-los, alguns conceitos teóricos podem ser questionados ou restabelecidos. Êste fato é fundamental, pois afeta a própria estrutura do conhecimento geográfico.
Fragmento 02 - Os propósitos da Geografia (1970, p. 2)
Em todo caso a preocupação com a formulação de conceitos teóricos na geografia está estreitamente associada à sua matematização, desde as mais simples formas de quantificar os fenômenos até os mais complexos raciocínios da lógica dos sistemas regionais ou das redes urbanas, na construção de modelos de organização espacial, enfim, na conceitualização do espaço geográfico. O impacto das novas formulações teóricas nos processos de definições da regionalização foi, talvez, o mais contudente, pois é neste setor que a geografia pode oferecer as contribuições mais susbstantivas aos processos de planejamento do desenvolvimento econômico – tão importantes hoje em dia.
Fragmento 03 – Apologia ao uso das tecnologias (1970, p. 2)
A história das invenções humanas, se bem que apoiadas no fluxo contínuo de pesquisas, produz verdadeiras revoluções não só na
140
tecnologia, mas também e, muitas vezes, no próprio conhecimento científico. A máquina a vapor produziu o que se convencionou chamar de Revolução Industrial, um dos processos mais importantes do desenvolvimento humano destes últimos 200 anos. Agora e já de algum tempo, apareceu o computador eletrônico. A única relação de um com o outro é que muitos comparam o que fez a máquina a vapor com a força muscular do homem, com o que está fazendo e sobretudo virá a fazer o computador com a capacidade de elaboração intelectual do homem. A diferença essencial é mais ou menos a mesma que existe entre a força físico-muscular e a capacidade intelectual. [...] A geografia não poderia deixar de ter sido afetada, fosse pela possibilidade de usar o computador, fosse pelas ideias e possibilidades tecnológicas que foram se abrindo aos pesquisadores na era dos computadores. Por outro lado, a evolução do conhecimento científico, tanto em termos dos processos que se desenvolvem na superfície da terra, como em termos de unificação de todos eles em processos globais (tornado possível pela capacidade de massa do computador), não poderia deixar de afetar também as concepções dos geógrafos.
Fragmento 04 – A pesquisa geográfica para o século XX (1970, p. 4)
É notório que o tempo no século XX, que medeia entre a pesquisa científica e a sua aplicação tecnológico-prática, foi tão encurtado que todos os pesquisadores adquiriram uma consciência nítida da aplicabilidade de sua pesquisa, a ponto de tornar praticamente inexistente a fronteira entre pesquisa pura e a aplicada. Toda a pesquisa hoje é aplicada e quase que de imediato. Na geografia, esta tendência está tendo um efeito de procurar-se enquadrá-la num contexto interdisciplinar – sem prejuízo de sua individualidade – com o objetivo de que ela traga sua interpretação a um problema de transcendental importância nas sociedades modernas: a organização do espaço que constitui o próprio objeto das investigações geográficas.
Fragmento 06 – A geografia quantitativa (1970, p. 6)
A criação do Conselho Nacional de Geografia agrupou em torno dele uma atividade geográfica que vinha de longe, porém muito dispersa. Na própria formulação da ideia de uma instituição deste tipo a influência de geógrafos franceses, era preponderante, quase que exclusiva; consequentemente, a formação dos geógrafos brasileiros vinha sendo fortemente afetada pela escola francesa, com uma tendência regionalista muito marcada, fosse seguindo conceitos de Gallois, das regiões naturais. Foi, de certa forma, associada a estes conceitos que surgiram e foram até incrementadas, pelo antigo CNG, numerosas monografias regionais, inclusive em seus próprios estudos e publicações. Com a revolução quantitativa ocorrida na Geografia há cerca de 20 anos, principalmente nos EE UU, Inglaterra e Suécia, o Departamente de Geografia não poderia ficar à margem do acontecimento e, aproveitando a vinda do Dr. Brian Berry ao Brasil, em 1967, procurou manter os primeiros contactos com novas técnicas e métodos matemáticos que vinham possibilitando resultados mais positivos e precisos às pesquisas geográficas.
Fonte: Revista Brasileira de Geografia (1970, v32. N. 4)
141
A terceira geração dos coletivos sociotécnicos, ao coletivo de
pensamento, estrutura-se, ainda na década de 1980 e, para compreendermos essa
transição de uma geração para outra, apontamos o Quadro 06, onde selecionamos
05 fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de Manuel C. de
Andrade, publicado em 1985, que reflete não só o estilo de pensamento do autor,
mas o que o pensamento coletivo na época legitimava na ciência geográfica
brasileira.
Nos Fragmentos 01 e 02, Andrade (1985, p. 15-16) aponta a relevância
da institucionalização dos cursos de Geografia, na década de 1930, para a política
nacional de formação dos quadros de técnicos e de professores da Educação
Básica, desvelando a vinculação explícita da evolução epistemológica com os
condicionantes socioeconômicos e históricos. Observe que, no Fragmento 02, o
autor ilustra com fatos históricos os elos evolutivos que contribuíram para o
desenvolvimento da Geografia Científica no Brasil.
Quadro 6 - Fragmentos do texto “Tendências atuais da Geografia Brasileira”, de Manuel Correira de Andrade, 1985
Fragmento 01 – Condicionantes socioeconômicos e históricos (1985, p. 15)
Na área de ensino e da produção de conhecimento geográfico, o processo modernizador foi iniciado com a fundação da Universidade de São Paulo (1934) e da Universidade do Distrito Federal (1935), quando foram criadas as faculdades que deveriam formar pesquisadores e professores de ensino médio, nos vários ramos do conhecimento. Para a Geografia, esta seria a grande oportunidade, sabendo-se que o Brasil, país de dimensões continentais (8.456.508m), e pouco conhecido, tinha um grande campo a ser explorado. A literatura geográfica brasileira já fora iniciada, mas era muito pobre, constituída de ensaios que abordavam temas não geográficos, embora dessem grande importância a certos aspectos de interesse para a Geografia, e de livros especificamente geográficos. Assim, tiveram grande difusão no Brasil, nos fins do século XIX, os livros de Elisée Reclus, Estados Unidos do Brasil, traduzido para o português por Ramiz Galvão, e o de Pierre Denis, Le Brésil au Xxème siécle, divulgado em Língua francesa que era, então, largamente difundida nos meios culturais brasileiros.
Fragmento 02 - Elos evolutivos do desenvolvimento da geografia científica no Brasil (p. 15)
As universidade criadas nos anos trinta, juntamente com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatista (IBGE), tiveram uma grande importancia para o desenvolvimento e a consolidação de Geografia Científica no Brasil. O papel mais importante coube, inegavelmente, à Universidade de São Paulo, uma vez que,
142
situada no centro urbano mais rico e mais dinâmico do país, contratou numerosos professores europeus, que se conscientizaram de que estavam fundando uma Universidade e preparando uma elite cultural. Além disso, ela pode promover a vinda de professores visitantes estrangeiros, tanto na área de Geografia como das outras ciências sociais, desenvolvendo um programa de Doutoramente que levava os melhores alunos, sobretudo aqueles que aspiravam ao magistério superior, a escrever teses de doutorado, de livre-docência e de cátedra. Muitos professores, impossibilitados de voltar, em vista da Segunda Guerra, que assolava a Europa, aqui ficaram muito mais tempo do que imaginavam. Numerosas teses defendidas nesse período são modelos de trabalho geográfico da chamada escola clássica, em que o doutorando procurava desenvolver estudos regionais. Influenciados por Vidal de la Blahe, procuravam desenvolver uma Geografia limitada.
Fragmento 03 – As temáticas locais
A preocupação com o social e o econômico se acentuaria nos fins da década de 50, quando, ao período eufórico do pós-guerra, seguiu-se uma crise econômica que levou o povo a pensar na viabilidade do Brasil como Nação, como Estado. Daí a preocupação com o planejamento econômico regional, com a criação de agências de desenvolvimento e com a tomada de posições ideológicas diante da realidade nacional. Se a sociedade brasileira vivia uma crise e se sentia desestabilizada, procurou naturalmente, novos caminhos para a solução dos seus problemas; a comunidade de geógrafos, nela inerida, teria de participar desses caminhos, dessa procura. Grandes foram os debates travados nessa época sobre a conveniência ou não da transferencia da capital do país para o Planalto Central, e a forma como Brasília fora construída, debates sobre a estrutura agrária, altamente concentradora da propriedade da terra e da dificuldade de acesso ao uso e a propriedade da mesma, pelas massas rurais de trabalhadores; sobre a necessidade de desenvolver indústrias de bens de capital e de produção de energia: sob a reforma administrativa e tributária [...]
Fragmento 04 – Territorialização da pós-graduação (1985, p. 19)
A fundação dos cursos de pós-graduação em Geografia, nas universidades do Rio de Janeiro (1972), de Pernambuco (1975), no campus de Rio Claro da UNESP (1977) e na Universidade Federal de Sergipe (1983) e a reorganização do sistema de pós-graduação, iniciado em 1961 na Universidade de São Paulo nos moldes padronizados pelo Governo Federal provocaram um forte crescimento da produção geográfica e do debate de ideias a respeito dos caminhos metodológicos e epistemológicos seguidos pela Geografia. Os debates transbordaram para as associaões de geógrafos e se veem multiplicando os encontros, seminários e simpósios promovidos pelas universidades, pela AGB e por outras instituições. O domínio do neopositivismo, que troxera um forte engajamento da Geografia à matemática e à estatística e que comprometera a mesma com o modelo econômico brasileiro, teve o seu período de maior esplendor na fase de euforia do crescimento capitalista.
143
Fragmento 05 – A Geografia Física (1985, p. 20)
Na área da Geografia Física, observa-se uma maior integração dos geógrafos com as implicações antrópicas na formação do relevo e no papel desempenhado pelas condições climáticas; geomorfólógicas, que, a partir da década de cinquenta, abondonaram os postulados de M. M. Devis e adotaram as ideias morfoclimatológicas de Trincart, passaram a integrar mais os elemenos condições naturais e ação do homem, caminhando em direção à sua Geo-climatologia. Assim, Aziz Ab’Saber vem reformulando a análise do meio natural na linha mais moderna, tanto em trabalhos acadêmicos como em campanhas em favor de tombamento de áreas ainda pouco devastadas, como a Serra do Mar, e contra a implantação de grandes obras públicas em locais não favoráveis ecologicamente; Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro vem, com discípulos e orientandos, desenvolvendo estudos de climatologia, correlacionando a distribuição das chuvas com a expansão agrícola e desenvolvendo estudo da poluição sobre microáreas climáticas, sobetudo nas grandes cidades. Observa-se, assim, nas atitudes dos dois mestres paulistas, que se caminha para o desaparecimento do velho dualismo Geografia Física/Geografia Humana que tanto prejudicou o desenvolvimento da Geografia, para uma integração entre as várias divisões que o neopositivismo estimulou se desenvolvesse na área de conhecimeno geográfico.
Fonte: Geonordeste, Ano II, nº 2 (1985, pp 14/23)
No Fragmento 03, Andrade (1985) descreve o impacto da crise
econômica e social na seleção das temáticas de investigação. Fica explícito que,
muito embora o coletivo de pensamento dos geógrafos brasileiros tenha bebido nas
centralidades europeias, como a França na década de 1930, os atores sociais de
1950 iniciaram a produção do seu próprio “status”, a “realidade brasileira”,
compondo o seu próprio interesse analítico e o seu ‘jeito de ser’, que é muito o da
elite e do Estado “formulador de políticas públicas” da cultura regional local. Para o
autor, à ciência geográfica cabia o propósito de fornecer subsídios para o
planejamento do desenvolvimento econômico, o que é amplamente potencializado
pelas agências de fomento. O autor também deixa explícito, no fragmento, o ponto
de vista de que as produções intelectuais da época, pelas suas temáticas, refletiam
as posições ideológicas e os embates políticos, sociais e econômicos que
permeavam o contexto brasileiro, inclusive, enfatiza que poucos trabalhos tinham
“interesse puramente físico”, e os que tinham aconteceram em função da influência
144
de “De Martone54 e outras fundamentações biológicas, seguindo as linhas traçadas
por Max Sorre” (ANDRADE, 1985, p. 16).
No Fragmento 04, Andrade (1985) indica que a expansão espacial dos
cursos de pós-graduação na década de 1970 aconteceu nos mesmos moldes da
USP em 1961, provocou aumento significativo da produção geográfica nacional,
dos debates teóricos e metodológicos, das associações de geógrafos, dos eventos
e encontros na área, do engajamento ao domínio epistemológico do
neopositivista55, assim como da inserção da lógica matemática, do uso da
estatística, enfim dos modelos de ciência que privilegiavam as simulações ou
simplificação da realidade na ciência geográfica; consequentemente, desvelando
o comprometimento dos geógrafos com os condicionantes políticos, econômicos e
sociais do país.
A nosso ver, o autor confirma nossa tese, pois deixar evidente o
entendimento de que a expansão espacial dos PPGGs é um dos mecanismos de
consolidação da Geografia, o fragmento denota ainda a ideia de que a evolução
epistemológica também é afetada pela espacialidade, a cada lugar aonde os PPGGs
‘chegam’, eles provocam a Territorialidade Epistemológica – fenômeno que pode
desvelar o aparecimento de domínios metodológicos e epistemológicos específicos
54 Segundo Suertegaray (2017), a obra de De Martone - “Tratado de Geografia Física” no século XX,
em 1909, representa um marco na consolidação dos fundamentos teóricos e metodológicos da Geografia e da identidade da Geografia Física, onde o autor aponta que “o aprendizado das relações entre esses diferentes campos se coloque claramente e que a unidade da Geografia se mostre ao principiante (ao estudante de Geografia) e que seja lembrado aos estudantes que a especialização é uma ordem particular de investigação.” (SUERTEGARAY, 2017), p. 25 – 26) 55
Para Campos (2011, p. 426): “As teses principais do neopositivismo se encontravam no Tratado Lógico-Filosófico [...] de autoria do professor de filosofia em Cambridge, Ludwig Wittegnstein (1889 – 1951). Nesta obra, partia-se do atomismo lógico de Bertrand Russel, uma das figuras de destaque do neorrealismo inglês. Os Neorrealistas ingleses se caracterizavam por serem empiristas convictos, afirmando que todo o nosso conhecimento era proveniente da experiência; para vários deles, a experiência era exclusivamente sensível e, para grande parte, o verdadeiro método filosófico era o das ciências naturais. Interessavam-se pelas condições teóricas de lógica, de epistemologia, de matemática, de física ou de biologia, e mostravam afeição pela pesquisa de problemas particulares, mantendo-se ‘[...] fiéis ao método microscópico, à tendência para analisar e decompor todos os problemas’[...]. Como os positivistas clássicos não viam sentido na metafísica, defendiam que somente os métodos das ciências naturais poderiam proporcionar conhecimentos e acreditavam, de modo entusiasmado, na técnica e no progresso. [...] partindo de Wittegnstein, os neopositivistas elaboraram uma teoria excessivamente técnica, tendo a sensação como a única fonte de conhecimentos que somente capta acontecimentos isolados e materiais. Sua base acabou sendo a intuição e, apesar de glorificar a razão humana e realçar a objetividade, acabou dando um poder relativo ao conhecimento humano. Era possível um conhecimento racional do mundo, mas este existia independentemente da consciência. Seu conceito de ciência mostra certa recusa em discutir os problemas que angustiam os homens, seus sofrimentos, seus dilemas morais.”
145
– a exemplo da abordagem do neopositivismo, um movimento intelectual
internacional que se estabeleceu nos Estados Unidos e na Europa, depois da
década de 1950, período do pós-guerra em que houve
[...] uma crescente atração, por parte dos geógrafos, para a mensuração, motivada pelo fato de que novas abordagens dependiam da mensuração, de que os métodos estatísticos estavam disponíveis para serem adotados e de que a tecnologia estava tornando possível a coleta, o processamento e a computação de dados para lidar com maiores quantidades de informações do que se poderia anteriormente imaginar. É tentadora a sugestão de que a Geografia Física estaria, até certo ponto, imune aos dramáticos impactos em consequência da quantificação, uma vez que os dados números haviam sempre sido empregados na climatologia, por exemplo. (GREGORY, 1992, p. 74)
Um contexto geopolítico que repercutiu na evolução científica para
atender às suas demandas, e, conforme nos aponta Gregory (1992), o
neopositivismo pode até ter sido um dos indutores da positividade de existência da
“linha quantitativista” na Geografia Física, mas, com certeza, nossa suposição é de
que sua inserção aconteceu em função da reflexividade epistêmica da interseção da
tecnologia (disponibilidade das tecnologias e dispositivos técnicos), com a lógica
matemática (do racionalismo e da mensuração, como pilares da Ciência Moderna),
com concepção da natureza (com modo de existência de realidade concreta,
objetiva como fundamento ontoepistemológico56), o que fez germinar na tradição de
pesquisa da Geografia os “pressupostos básicos da denominada Geografia
‘Teorética e Quantitativa’”, demonstrando que os geógrafos da terceira geração dos
coletivos sociotécnicos, adeptos de tal corrente. foram “buscar fundamentos teóricos
metodológicos na filosofia neopositivista.” (CAMARGO; REIS JR, 2007, p. 97). Ponto
de vista que coaduna com a fala de Ferreira (2007) sobre os sistemas de
informações geográficas (SIG):
Influenciados por pressupostos estatísticos e modelos matemáticos derivados da geometria analítica, os algoritmos de análise espacial foram rapidamente adaptados a softwares por meio de linguagem computacional relativamente simples. [...] Desde meados da década de 1960 – ambiente dominado pelo paradigma da quantificação do fato geográfico em
56 Segundo nos aponta Guimarães (2017, p. 19), “o impasse entre as categorias homem e natureza,
que chega como herança para a geografia no seio da modernidade, [...] o racionalista-organicista. Este impasse não direcionou somente as questões de método e de operacionalização das pesquisas em geografia, mas constitui também os fundamentos ontoepistemológicos que, na modernidade, segmentaram tanto o objeto de análise quanto os campos do pensamento geográfico na geografia humana (atrelada à concepção moderna de homem) e na geografia física (vinculada à concepção de natureza)”.
146
detrimento de sua visualização –, até o início de século XXI, instante em que a visualização do fato geográfico numerizado já é possível graças a softwares residentes em SIG, as técnicas de análise espacial têm sido aplicadas com sucesso em diferentes campos do conhecimento geográfico. (FERREIRA, 2007, p. 102)
No entanto, fica evidente nos fragmentos dos estudos sobre a temática
(CAMARGO; REIS JR, 2007) que não houve ruptura ou corte abrupto da geografia
tradicional para a “geografia científica” (slogan da Teorética quantitativa), até porque
é possível perceber a permanência de seu conteúdo, contornos e procedimentos na
produção intelectual no Brasil na década de 1970, conforme nos revelam os autores.
A nosso ver e de acordo com os fragmentos indicados por Andrade
(1982), com a institucionalização do Sistema Nacional de Pós-Graduação e o
acirramento da política universitária, dada principalmente com a federalização dos
cursos de pós-graduação, centralizados em SP (USP, RIO CLARO) e no RJ (UFRJ),
processo que caracteriza a terceira geração de coletivos sociotécnicos, eles
passaram a exercer o domínio cultural, político e epistemológico, através da relação
saber/poder/fazer e ser ciência57. O que foi exercido com força, introduzindo o
coletivo de pensamento nas áreas de atuação de seus cursos. Isso porque, embora
para muitos geógrafos da época o coletivo de pensamento “da escola geográfica
clássica ou tradicional” já estivesse “saturado” de produções, muitas das
problemáticas locais e regionais continuaram sendo foco das pesquisas geográficas
(ANDRADE, 1982; CAMPOS, 2011; CARDOSO, 2013), assim como o “levantamento
de informações mais detalhadas sobre o território brasileiro”, os debates persistiam e
atores sociais sentiam o desejo de abandonar a lógica da mera descrição e o
empirismo, “então dominante para a maioria dos autores”, e, simultaneamente, daria
à Geografia a “cientificidade” tão enaltecida. Daí a busca por modelos de
inteligibilidade que lhe oferecessem “condições de competititvidade com os demais
cientistas sociais” – garantindo à Geografia uma identidade científica e social,
inserindo nos seus propósitos as práticas de “planejamento” para o desenvolvimento
social e econômico. Nesse momento, conforme nos aponta Andrade (1985), as
57 Até por que, conforme nos aponta Schwartzman (2015, p. 181), “A concentração de recursos
institucionais e financeiros em São Paulo e Rio de Janeiro inibia projetos semelhantes em outras regiões. Os melhores estudantes da Bahia, do Nordeste, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul – os que podiam fazê-lo – iam estudar naquelas duas cidades e, normalmente, não retornavam aos estados de origem. Mas essa concentração não foi absoluta, tendo ocorrido uma exceção em um polo regional importante: Minas Gerais”.
147
agências de desenvolvimento e fomento passaram a ter papel relevante, pois
estimulavam pesquisas em determinadas temáticas que contemplassem
prerrequisitos sociais para receber financiamentos. Portanto, a fragmentação, fosse
espacial, fosse temática ou do objeto da geografia, não foi e não é uma evolução
natural na ciência geográfica, mas uma construção social, histórica e
simultaneamente cognitiva.
No Fragmento 05, Andrade (1985), descrevendo as tendências para a
área da Geografia Física, nos revela que as concepções de Geografia Física que
permeavam o coletivo de pensamento estavam vinculadas ao estudo da ‘relação
homem/natureza’. Existia no contexto intelectual na época uma busca por uma
“geografia da integração”, ou inserção de uma perspectiva de análise geográfica
integradora, a partir do reconhecimento da fragmentação de seus saberes, um
problema epistemológico oriundo da dualidade “Geografia Física/Geografia
Humana”, e assim como Gregory (1992) apontou em 198558, era possível
identificar na “atmosfera intelectual”, na década de 1980 no Brasil, tendência de
“declínio” das proposições teóricas de Davis59 em prol das ideias de “Tricart” – que
postulava a integração entre os elementos físicos e humanos, através de “uma Geo-
climatologia”. Segundo Andrade (1985), as formulações teóricas de Tricart foram
apropriadas e reformuladas pelos geógrafos da USP. Segundo o professor Vitte
(2011b, p. 86), a influência dos estudos de Tricart foi definitiva para “as pesquisas
geomorfológicas no Brasil, com marcante desenvolvimento da geomorfologia
climática nos cursos de geografia”.
Um dos autores mencionados por Andrade (1985) e por Vitte (2011), foi
Aziz Ab’Saber, na “análise do meio natural”, cujas proposições estavam sendo
rapidamente assimiladas e passaram a permear e informar nas pesquisas
geográficas na época. Entre os principais postulados introduzidos pelo autor na
dimensão metodológica, destacam-se: o uso da observação e da descrição crítica
das paisagens (com destaque para o uso de fotografias aéreas); e a concepção de
que o natural só poderia ser elucidado considerando o social e o histórico (tempo e o
58 Data da publicação original da obra “The Nature of Physical Geography”, de K.J. Gregory, que foi
publicada no Brasil em 1992. 59
Para Gregory (1992, p. 51) “O enfoque essencial da geomorfologia davisiana baseava-se no fato de
propiciar um ciclo de erosão normal, de modo que se tornava possível classificar qualquer paisagem de acordo com o estágio alcançado no ciclo de erosão, fosse juventude, maturidade ou senilidade.” O que tornava sua teoria “perfeita” era a capacidade de replicação e capilaridade.
148
homem como principais modeladores da paisagem), articulando a formação atual do
objeto de estudo a seu processo de formação histórica para explicar sua
configuração na contemporaneidade - os domínios morfoclimáticos (considerando
solo, vegetação, relevo, clima e as condições hidrológicas como seus elementos
constituintes). Com isso, são institucionalizadas na episteme da Geografia
contemporânea e brasileira a prática dos trabalhos de campo, através dos estudos
da paisagem, e a inserção da perspectiva epistêmica Aziz-bigarella, em função da
forte influência dos estudos de João José Bigarella (1964).
Modelo de Ab’Saber e Bigarella, a década de 1960 foi fundamental para se construir um verdadeiro paradigma na geomorfologia brasileira, pois se montou uma estrutura teórica, metodológica e interpretativa do relevo e de seus processos, construindo, juntamente, uma verdadeira geomorfologia geográfica, que tem por modelo o artigo de Aziz Ab’Saber, A geomorfologia a serviço das pesquisas do quaternário, de 1969 até hoje, 2009, que exerce forte influência nas pesquisas geomorfológicas do Brasil, mesmo porque nada mais de relevante foi construído em termos teóricos e metodológicos para buscar análises mais precisa e profundaa sobre a gênese do relevo brasileiro. (VITTE, 2011b, p. 93)
As mudanças na tradição de pesquisa oriundas da inserção da
perspectiva Aziz-Bigarella nos modos de fazer pesquisa geográfica refletem as
condições cognitivas, provocadas por fatores internos a ciência – lógica da teoria e
pela força das evidências (comprovada pelos resultados obtidos com sua aplicação),
conforme apontamos no primeiro capítulo.
Retornando ao documento de Andrade (1985), em vários fragmentos ao
longo do texto, o autor desvela que se na década de 197060 predominava no Brasil a
concepção epistemológica neopositivista, no final da década, era notório um clima
de insatisfação com tal modelo epistemológico, o que já indicava a possibilidade de
declínio na década de 1980, simultaneamente caracterizando esta terceira geração
de coletivo sociotécnico como de transição. Num texto escrito em 198861 por Rui
Moreira (2008), ele também assim o faz e explica que “desde 1978, [...] o
pensamento geográfico brasileiro passa por um processo interno de
questionamento, renovação discursiva e intenso debate.” (MOREIRA, 2008, p. 24).
Para Vitte (2011b, p. 74), especificamente na Geografia Física:
60 “Em 1970, existiam nas universidades brasileiras cerca de 57 programas de doutorado; em 1985,
havia mais de 300, com cerca de 800 para a formação em nível de mestrado. Cerca de 90% desses cursos funcionavam em universidades públicas. Combinados, os dois níveis estavam graduando cerca de cinco mil estudantes a cada ano. Segundo o consenso geral, o Brasil começara a construir uma comunidade acadêmica significativa.” (SCHWARTZMAN, 2015, p. 344) 61
Publicado pela primeira vez no Boletim Prudentino de Geografia em 1992.
149
Essa crise será acirrada a partir dos anos 1970 com a crise ambiental e com a entrada nas reflexões acadêmicas e políticas, em que os trabalhos em pequenas escalas exigem maior instrumental técnico e tecnológico para explicar as relações causais e as interações entre os elementos da geomorfologia e da paisagem, exigindo, inclusive, maior diálogo da geografia para com as ciências sociais e maior matematização dos fluxos e dos processos, obrigando a geografia física a rever o sentido de causalidade.
A nosso ver, no vetor epistemológico, as mudanças que ocorreram no
período foram evolutivas, pois provocaram aumento significativo de abordagens
teórico-metodológicas (dimensão metodológica) nos estudos geográficos, assim
como nos fundamentos ontoepistemológicos que permeavam o coletivo de
pensamento, repercutindo, com isso, na diversidade de perspectivas epistêmicas.
Para compreendermos esse coletivo de pensamento, resgatamos o texto “As
perspectivas dos Estudos geográficos”, de António Chistofoletti, uma comunicação
científica com muitos fragmentos que ilustram não só o estilo de pensamento, mas,
simultaneamente, o coletivo de pensamento, pois:
[...] pelo ângulo do quantitativismo, expresso pelas análises morfométricas, que a geomorfologia brasileira ganha incremento metodológico. E o papel de Antonio Christofoletti, a partir da década dos setenta, foi saliente para tal. O autor não apenas torna-se usuário dos recursos matemáticos (geradores de índices de mensuração geométrica), mas um dos principais nomes na defesa publicitária de seu emprego. É certo que nem todo usuário da ferramenta quantitativa, porque ela engendra um estilo de explanação abstrata (excludente, pois, dos tradicionais discorrimentos), vai entender-se partidário de uma nova “causa metodológica”. De qualquer maneira, uma vez que esse uso em Christofoletti também quis dizer ensaios homológicos (e, notadamente, a tentativa de empregar conceitos termodinâmicos no estudo de bacias hidrográficas), o autor acaba personificando um exemplo de fato autêntico de engajamento. (REIS JR; ARAUJO NETO, 2010, p. 6)
Reis Jr (2010), além de descrever as principais ligações evolutivas da
inserção da Geografia “quantitativista”, aponta Christofoletti como seu principal
expoente. É relevante destacar que a versão digital do documento62 que rastreamos
não indica número de páginas, nem ano de publicação. No entanto, considerando a
necessidade de elucidar as condições de existência e materialidade discursiva (os
fragmentos), é possível inferir que ele tenha sido produzido na década de 1980, isso
porque, no Fragmento 01 do Quadro 07, o autor cita outras obras publicadas em
1979, além de mencionar a efervescência dos debates que circunscrevem a
Geografia brasileira no final da década de 1970.
62Disponível em http://sigcursos.tripod.com/perspetivas.pdf, acesso em 22 de fevereiro de 2019.
150
Quadro 7 - Fragmentos do texto “As perspectivas dos estudos geográficos” de Chistofoletti.
Fragmento 01 – O contexto de produção, (198*, s/p)
Em língua portuguesa, encontram-se disponíveis diversas obras e artigos relacionados com a Geografia Radical. Entre as traduções, convém mencionar as obras de Yves Laconste (A Geografia Serve Antes de Mais Nada para fazer a Guerra, 1977), de Massimo Quaine (Marxísmo e Geografia, 1979) e de Davido Harvey (Justiça Social e a Cidade, 1980), além do artigo de James Anderson (1977) sobre a ideologia na Geografia. Entre os geógrafos brasileiros, Milton Santos vem-se salientando nessa perspectiva geográfica, através de diversos artigos e de duas obras mais expressivas, denominadas Por uma Geografia Nova (1978) e Economia Espacial (1979). Carlos Gonçalves (1978) e Ruy Moreira (1979) também já elaboraram artigos engajados nessa temática.
Fragmento 02 – A ciência heterogenia e engajada, (198*, s/p)
As transformações sucessivas que ocorrem no conhecimento científico e no contexto socioeconômico promovem contínua mudança nos desafios e nos problemas enfrentados pelos homens. Procurando analisar e explicar esses problemas, a fim de propor soluções e prever as possíveis consequências futuras, o conhecimento científico está sempre aceitando os desafios e lutando para superar as questões relevantes para as sociedades. Considerando as mais variadas ciências, que são parcelas da comunidade científica global, podemos observar que cada ciência particular reage de modo diferente a esse desafio e à solicitação, e o seu momento histórico pode colocá-la na posição de vanguarda ou na posição de acompanhante do cortejo das ciências, conforme a valorização que a elas é destinada.
Fragmento 03 – Diversidade epistemológica, (198*, s/p)
A nossa preocupação restringe-se ao conhecimento geográfico. Não é nosso desejo retraçar a evolução histórica desta parcela científica, nem analisar as obras e as contribuições dos grandes mestres. O nosso objetivo é oferecer um quadro genérico sobre as principais perspectivas que foram predominantes, no transcurso do século XX, no comando e na orientação das pesquisas, assim como norteadoras das finalidades propostas para a Geografia. A focalização maior é sobre as tendências que mesclam na atualidade, cada uma procurando ser a mais substantiva, mostrando ser melhor que as precedentes ou as competidoras. Todavia, não se poderá compreender esse debate atual se não abordamos as características da geografia predominante na primeira metade do século XX, se não tivermos uma visão mais abrangente do seu desenvolvimento no tempo. A fim de esclarecer e caracterizar as diversas perspectivas atuantes nos estudos geográficos, procuramos estabelecer o seguinte esquema sequencial em nossa exposição: a fase tradicional (pré-1950), a Nova Geografia, a Geografia Humanística, a Geografia Radical e a
151
Geografia Têmporo-Espacial.
Fragmento 04 – As dicotomias geográficas, (198*, s/p)
Entre elas, duas merecem ser destacadas nesta oportunidade. A primeira dicotomia estava relacionada com a Geografia Física e a Geografia Humana. Representando os conjuntos meio geográfico e atividades humanas, a Geografia Física destinava-se ao estudo do quadro natural, enquanto a Geografia Humana se preocupava com a distribuição dos aspectos originados pelas atividades humanas. Em virtude do aparato metodológico mais eficiente das ciências físicas e da esplêndida concatenação teórica elaborada por William Morris Davis, a Geografia Física rapidamente ganhou a imagem de ser a parte cientificamente mais bem consolidada e executada praticamente, não havia mais necessidade de ser preocupações metodológicas e conceituais a seu propósito. Destituída de aparato teórico e explicativo para as atividades humanas, assim como da imprecisão dos procedimentos metodológicos, a Geografia Humana sempre se debatia na procura de justificar seu gabarito científico e estabelecer sua definição e finalidades como ciência. A esta dicotomia se juntava o conflito conceitual de ser a Geografia uma ciência única ou um conjunto de ciências. Os debates relativos a essa temática são contínuos e sempre reabertos, sem chegar a uma conclusão definitiva. Do artigo de Vital de la Blache (1913) ao de Henri Baulig (1948), para exemplificar, esses assuntos são relevantes.
Frgmento 05 – Ligações evolutivas, (198*, s/p)
A segunda dicotomia se refere à geografia geral e à geografia regional. Objetivando estudar a distribuição dos fenômenos de maneira autônoma. Essa focalização resultou na geografia sistemática ou tópica e na subdivisão da geografia (geomorfologia, hidrologia, climatologia, biogeografia, geografia da população, da energia, urbana, industrial, da circulação e outras). Entretanto, deve-se lembrar que o designativo geral não se referia ao conceito de metodologia científica de procurar generalizações ou leis, mas se baseava no princípio da ‘unidade terrestre’ (La Blache, !896) e na ‘escla planetaria’ (Choley, 1951). Levava em consideração o ato de comparar constantemente determinado fenômeno em um lugar com ‘os fenômenos análogos que podem se apresentar em outros pontos do globo, ... a fim de como é que as suas particularidades se explicam pelos princípios gerais da evolução’ (De Martone, 1954, p. 18). Tendo em vista as concepções davisianas, De Martone exemplificou com o caso da morfologia litorânea. Nessa circunstância, se possuía um modelo de evolução das formas litorâneas a ele se comparavam as características dos casos cujas especificidade propiciavam classificá-los conforme as etapas da evolução ou de acordo com os tipos de influências externas (costas de emersão, costas de submersão; costas atlânticas, costas pacíficas etc.)
Fonte: http://sigcursos.tripod.com/perspetivas.pdf
152
No Fragmento 02, observamos que o título “As perspectivas dos Estudos
Geográficos” assim como o gancho narrativo utilizado por Christofoletti nos
revelam: i) uma concepção de ciência heterogênea, passível de ser afetada por
mudanças do contexto socioeconômico e histórico como instituição social que
tem como “função” responder às demandas relevantes para a sociedade; e ii) os
referentes no item anterior expressam regularidades ou elos com a evolução
epistemológica do desenvolvimento científico no estilo de pensamento de Kuhn.
Com o intuito de apresentar o objetivo do texto e sua estrutura no
Fragmento 03, o autor nos aponta que, embora existisse a possibilidade de uma
perspectiva “predominante”, ainda no século XX existem “diversas perspectivas
atuantes nos estudos geográficos”. A nosso ver, nos elementos explicativos
implícitos é possível identificar e inferir que: i) “as perspectivas” cotejadas pelo autor
funcionam como suposições diretivas da pesquisa geográfica; ii) duas ou mais “
perspectivas” podem coexistir, competir e evoluir numa mesma temporalidade; e iii)
o autor concebe a evolução epistemológica como descontínua, passível de ser
afetada pelas práticas discursivas, e permeada pela diversidade epistemológica (ou
de múltiplas perspectivas epistêmicas, conforme expressa o autor). Isso porque o
autor ilustra que no coletivo de pensamento da época, além dos vestígios da fase
tradicional da Geografia, era possível identificar a coexistência das perspectivas
“Nova Geografia, Geografia Humanista, Geografia Idealista, Geografia Radical e
Geografia Têmporo-Espacial”.
No Fragmento 04, Christofoletti explica que a evolução epistemológica da
Geografia, tradicionalmente, é marcada pela existência de dualismos. Alega que o
primeiro deles é a convivência no âmago da Ciência Geográfica de dois TEs: a
Geografia Física, que tem como objeto de estudo o “quadro natural”, dispõe de
aparato metodológico “eficiente” e em conformidade com os padrões estabelecidos
pelas ciências físicas, concebendo que ela já “progrediu” ou “avançou
cientificamente” – ligações evolutivas com o coletivo de pensamento “progressista” –
alegando que tem “quadro teórico desenvolvido”, o que dá à Geografia Física uma
identidade científica e social legitimada. Acrescenta ainda que o mesmo não
acontece com a Geografia Humana, ainda em busca de “justificativas” para
estabilizar sua identidade científica, pois, além de não ter aparato teórico e
explicativo, não dispõe de “procedimentos metodológicos precisos”, condições que
153
circunscrevem uma concepção de disciplina científica. Para o autor, são problemas
epistemológicos que provocaram frequentemente embates conceituais na Geografia
e a busca contínua pelo status de científica.
A nosso ver, há uma questão relevante, implícita no estilo de pensamento
do autor. Primeiro que a postura adotada pelo autor reflete o que Armond (2013)
classifica com uma das principais heranças do pensamento neopositivista, no qual:
Essa acentuada valorização das ciências naturais acabou por provocar tendências reducionistas, principalmente com relação às ciências humanas e sociais, já que sofriam fortes pressões para também absorverem as diretrizes e recomendações conceituais e metodológicas das ciências naturais. Este quadro levava adiante o objetivo de uma caracterização geral e definitiva da ciência, dos métodos apropriados e de seus critérios de avaliação, justificada pela busca de uma linguagem que fosse “verdadeiramente científica”, alcançada somente por meio do rigor e da objetividade. (ARMOND, 2013, p. 105)
Segundo, em relação à fragmentação ou à “dualidade Geografia Humana
/ Geografia Física”, conforme caracteriza o autor e já pontuamos ainda nesse
capítulo, esta fragmentação não é apenas metodológica, mas também
epistemológica (oriunda dos pilares da concepção de Ciência Moderna), sendo,
simultaneamente, ontológica, pois expressa o entendimento da separação do
homem/natureza com entes de naturezas diferentes, daí o reflexo na dimensão
metodológica, por deixar implícito que, por terem objetos de estudos de natureza
diversa, implicam opções metodológicas distintas.
Os elementos explicativos utilizados pelo autor denotam ainda a
concepção de que o objeto de estudo da Geografia Humana, “as atividades
humanas”, tem a natureza essencialmente diferente do homem/mulher, alegando
que isso dificulta sua explicação, por isso as Ciências Sociais e Humanos devem
sempre “justificar” a falta de “objetividade”, ao contrário das Ciências da Natureza e
o caso da Geografia Física, que explicam os fatos objetivos e mensuráveis da
realidade, evidenciando ligações evolutivas tributárias do pensamento neopositivista
que o autor defende fortemente ao longo do texto, Fragmento 05, inclusive
associando a esta concepção a defesa de uma Epistemologia Normativa, conforme
nos alerta Reis Jr.
Para Guimarães (2017), este estilo de pensamento é tributário dos
“fundamentos ontoepistemológicos” herdados do modo de vida capitalista ocidental ,
154
que gerou, com isso, fragmentação na ciência geográfica. Linha de pensamento
que defendemos como múltiplas contingências e converge com a fala:
Vinculada ao projeto científico moderno, cuja especialização é uma de suas características básicas, a especialização na geografia também foi interpretada como um progresso para a disciplina. Esta divisão de tarefas também tem sido vista como promotora de um definitivo crescimento para a disciplina pelo aumento da diversidade do campo e complexificação dos entendimentos de seu objeto. Assim, seria somente por meio da especialização que a geografia, como ciência moderna, elaborada de teorias e modelos, poderia refinar os reconhecimentos e a investigação dos multidomínios e dimensões que compõem os processos de seu objeto total. A relação unidade/especialidade constitui, portanto, uma associação que também pode ser vista como necessária para o aprofundamento do conhecimento do fenômeno geográfico e o progresso da disciplina. (DUTRA GOMES; VITTE, 2012, p. 131)
Paradoxalmente, a fragmentação como problema epistemológico da
Ciência Geográfica e a especialização como necessária ou produto natural da
evolução epistemológica para elucidar as especificidades de cada objeto de estudo
são diferentes discursivos que permeiam e informam o coletivo de pensamento no
contexto espaço-temporal, assim como evidenciam a presença, na episteme, de
fortes vínculos (ligações evolutivas) com os princípios da Ciência Moderna. Linha de
pensamento que converge com o ponto de vista de Suertegaray (2017, p. 96 - 97):
A fragmentação e a compartimentação não são novas na ciência, a fragmentação atual e a compartimentação discutidas em fases anteriores da Geografia são expressões diferentes. Fragmentar é a ação de dividir em pequenas partes, quebrar em pedaços. Compartimentar é um processo que consiste em dividir um espaço sem, necessariamente, separá-lo por completo. Pode-se “compartimentar” determinado espaço sem deixar os “compartimentos” ausentes de relação entre si.
A perspectiva da autora é que a “fragmentação” assim como a
“compartimentação” não são apenas uma especialização cognitiva, mas sócio-
histórica na evolução epistemológica, sendo fenômenos epistêmicos diferentes,
pois se na compartimentação as conexões entre as partes são mantidas, na
fragmentação isso não acontece, pois rompe os elos entre a matriz disciplinar e o
novo ramos do saber.
Daí o nosso terceiro entendimento de que a Geografia Física mantém
uma identificação maior com as ciências físicas (Geociências), não só porque ambas
têm ‘teoria substantiva desenvolvida” - dimensões metodológicas e ontológicas que
se aproximam - , que estabelece a hierarquia “de cientificidade” entre as áreas de
155
conhecimento, mas, principalmente, em função da legitimidade discursiva que
institucionaliza situação diferente em relação às Ciências Humanas e Socais e às
Ciências da Natureza e exatas, por isso a dificuldade para promover ‘o diálogo entre
elas. O que no nosso ponto de vista reproduz a ideia de incomensurabilidade local,
indicada por Khun, em função da diversidade lexical, ou seja, da legitimidade
discursiva (consolidada no novo ramo do saber), estabelecendo distinções entre a
Geografia Física e a Geografia Humana.
Além dos debates sobre os problemas indicados por Cristofoletti (198*), é
notória no final da década de 1970 a insatisfação com as questões epistemológicas
neopositivistas, pois crescia, de forma significativa, o sistema de controle e
regulação estatal sobre os cursos universitários, quando se inicia a
institucionalização, através da Capes, dos cursos de pós-graduação e do Sistema
Nacional de Pós-Graduação. Para se ter uma a dimensão do impacto desta
evolução na década, citamos:
No Brasil, vale lembrar que, em 1965 havia 27 mestrados e 11doutorados; em 1975, 429 mestrados e 149 doutorados. Já em 2014, segundo dados do GEOCAPES, sistematizados pela Diretoria de Avaliação da CAPES [...] em 2015, o SNPG estava constituído por 5537 cursos de pós-graduação, dos quais, 1905 doutorados, 3105 mestrados e 527 mestrados profissionais. (AZEVEDO; OLIVEIRA; CATANI, 2016, p. 787)
Os dados apresentados pelos autores refletem a configuração do Sistema
Nacional de Pós-Graduação no país, com significativo controle do campo científico
através da Capes, usando como mecanismo a “acreditação”, o “credenciamento”,
avaliação, supervisão e o financiamento para todo sistema nacional, principalmente
pelo fornecimento de bolsa. No caso específico da Geografia, a institucionalização
foi caracterizada pela concentração espacial e, consequentemente, científica, em
função da “forte influência" epistêmica das universidades estaduais paulistas,
“especificamente as detentoras da modalidade de doutorado”, sendo elas: A USP,
com os Programas de Geografia Física e Geografia Humana, seguida pela
UNESP/RC (em 1977), decisiva na ‘expansão’ da Geografia “Teorética” Brasileira.
Ainda na década de 1970, criou-se o mestrado da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE) em 1976. Segundo Silva e Oliveira (2009), os fatores que
implicaram a expansão da pós-graduação na época foram:
A exigência de titulação pós-graduada para a progressão na carreira do magistério superior; a necessidade de formação de pesquisadores para a
156
ciência nacional (em especial para os grandes projetos de desenvolvimento do país); prestígio dos cursos de mestrado e doutorado para a universidade (status e recursos financeiros); pressão dos novos mestres e doutores que, em suas instituições de origem, desejam fomentar um ambiente favorável às atividades docentes e de pesquisa; o próprio I PNPG (Plano Nacional de Desenvolvimento da Pós-Graduação), ao fixar metas para a titulação de novos mestres e doutores. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p. 83)
É visível toda uma lógica socioeconômica - demanda do mercado local e
regional que afetou de forma significativa a dimensão axiológica do fazer científico
na época - voltada para o desenvolvimento científico e tecnológico no país, que,
consequentemente implicou o vetor epistemológico. Na década de 1980, surgem
mais quatro PPGGs, com cursos de mestrado e/ou doutorado, na Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP (1983), Universidade Federal de Santa Catarina
–UFSC (1985), Universidade Federal de Sergipe (1985), Universidade Federal de
Minas Gerais (1988) e na Universidade Estadual Paulista – Rio Claro –
UNESPE/RC(1983). Percebe-se que, conforme apontam Silva e Oliveira (2009, p.
84), “apenas os Programas de Pós-Graduação em Geografia da UFPE, da UFSE e
UFSC se situavam em outras regiões fora do Sudeste”. É relevante pontuar que
mesmo nestes cursos predominava o domínio cultural das universidades paulistas,
pois o quadro de docentes e técnicos que atuavam nestes cursos era formado pelos
PPGGs paulistas. Ainda segundo os autores, nesse período houve aumento dos
mecanismos de controle e regulação dos coletivos sociotécnicos, através da forte
atuação da Capes, imbuída pelo “esforço de implantação do sistema de avaliação e
mecanismos de acompanhamento dos programas, buscando unificar nacionalmente
a pós-graduação e orientar seu crescimento com o estabelecimento de diretrizes,
metas e prazos a serem cumpridos pelos programas. (SILVA; OLIVEIRA, 2009, p,
84)
No entanto, a ruptura dessa lógica somente se inicia nos anos 1980, se
estende pelos anos 1990 e tem continuidade nos anos 2000 e 2010, guardando,
cada um dos períodos, suas especificidades (CAPES, 2016, p. 2). Isso devido à
expansão dos PPGGs na década de 1980 ainda incipiente em relação à
descentralização do Sudeste para outras regiões do país, mas dá o tom do que
caracterizamos como quarta geração de coletivos sociotécnicos .
No Documento de Área 36 Geografia (CAPES, 2016a), apresentado na
avaliação quadrienal de 2017, encontramos fragmentos relevantes nesta discussão,
157
como a evolução quantitativa e qualitativa dos PPGGs. Não restam dúvidas de que o
quadro evolutivo da ciência geográfica no país é significativo, se consideramos a
expansão, consolidação e fortalecimento dos PPGGs pelo território nacional,
inclusive superando a concentração espacial e epistêmica, com 64 cursos, sendo 34
mestrados e doutorados, 25 mestrados acadêmicos e 4 mestrados profissionais,
reconhecidos e atuantes em todas as regiões do Brasil.
Em síntese, a territorialidade dos PPGGs no Brasil no contexto geográfico
de 1930 aos idos de 2018 consolidou a episteme do território epistêmico da
Geografia Física contemporânea no Brasil.
4.2 A episteme dos Territórios Epistêmicos (TE) da Geografia Física
contemporânea
Inicialmente esclarecemos que para desvelar a episteme dos Territórios
Epistêmicos (TE) da Geografia Física contemporânea no país, que consolida sua
identidade científica e social, levamos em consideração que ela é constituída por
mudanças, permanências e características do processo de evolução epistêmica,
tomando como pressuposto que:
O que é Geografia? A pergunta de aparência tão simples se dirige ao que de mais importante existe em um campo do conhecimento, sua especificidade, sua identidade. A partir disso, todo o edifício cognitivo desse campo, suas propriedades, sua relevância, suas competências, sua finalidade e, sobretudo, seus sistemas explicativos podem ser discutidos. Através da aparente simplicidade da formulação da pergunta, ergue-se um mundo de questões. Trata-se, pois, de um convite a uma discussão propriamente epistemológica pois incide diretamente sobre as condições de produção do conhecimento, sua consistência lógica, seus sistemas de validade. (GOMES, 2017, p. 14)
Na perspectiva apontada pelo autor que consideramos relevante, a
acepção de Geografia ou de Geografia Física (resposta à questão –“O que é
geografia?”) é o que lhe confere identidade científica e acadêmica e,
consequentemente, nos revela seus propósitos e imagem social. Isso porque,
segundo o autor, para responder à pergunta o que é uma ciência, a condição
essencial é responder à pergunta o que esta ciência estuda, isto é, qual seu objeto
de estudo. Nessa ótica, objetivando apreender o objeto de estudo que os atores
sociais atribuíam à Geografia Física e tomando como referência empírica a
158
totalidade dos resumos das produções intelectuais através da análise por similitude,
indagamos a cada produção intelectual: O que este estudo investigou?
Nessa ótica, optamos por trabalhar o objeto de estudo da Geografia
Física, que contempla as temáticas que informam a episteme e, consequentemente,
estabilizavam a identidade científica e social da Geografia Física, de forma que
pudéssemos sistematizar o que emergiu do corpus ou suas regularidades para
“reconstruir os processos geradores” e interpretá-los, tendo o cuidado ético de não
estabelecer juízos de valores (verdadeiros ou falsos, certos ou errados), nem tomá-
los numa “linha de progresso em direção a uma verdade cada vez mais afastada dos
erros iniciais.” (PORTOCARRERO, 2002, p.46).
Na análise exploratória inicial, obtivemos como resultado a configuração
que representamos na Ilustração 01.
Ilustração 1 - Configuração do Objeto de Estudo da Geografia Física Contemporânea.
Fonte: Dados disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, acesso em 16.04.2019
Observamos que aparece de forma explícita e implícita a categoria
específica e derivada é a relação Homem/Natureza ou o estudo da relação
sociedade / natureza, acepção que aparece em 41% do corpus. Concepção da
ciência geográfica tributária das “prescrições” de Monbeig (1945), nos moldes
científicos da Geografia europeia.
159
Faz parte desta categoria de análise a concepção da Geografia Física
como estudo das “implicações/repercussões” do “uso”/”ocupação” da “bacia” ou
“sub-bacia hidrográfica (61%), das “paisagens” (22%), do espaço rural ou urbano
(11%) do Território (4%), outros (2%), com a finalidade de fornecer “subsídios” para
o “planejamento”, a “gestão” e o “uso” sustentável dos recursos naturais. Os
referentes com maior frequência na totalidade dos fragmentos foram: “uso e
ocupação”, “degradação ambiental”, “fragilidade ambiental”, “monitoramento”,
“diagnóstico”, “ação antrópica”, entre outros. Observa-se que a categoria paisagem
perde cada vez mais espaço nas produções intelectuais para a categoria geográfica
bacia hidrográfica, assim como o propósito da Geografia Física de “análise espacial”
ou da “paisagem” para a “análise ambiental”, Ilustração 02, ou “análise da bacia” ou
“análise das redes de drenagem”, embora na indicação dos procedimentos
metodológicos utilizados, apareça, em primeiro lugar, o Fragmento “Dinâmicas das
paisagens”.
Conforme vimos no capítulo anterior, essa concepção nos remete à
primeira geração de pensamento dos coletivos sociotécnicos e, que de acordo com
Suertegaray (2017), estes estudos também estão diretamente relacionados com as
demandas do contexto contemporâneo. Vejamos na fala da autora que:
[...] muda a perspectiva dos estudos da natureza e valorizam-se os estudos de forma, da dinâmica/funcionalidade com vistas a decifrar os problemas decorrentes de seu uso/subordinação. Por essa razão, são comuns em nosso meio os trabalhos cujos objetivos e intenções são o reconhecimento da funcionalidade mediante condições de risco, objetivando intervenções que, por sua vez, transfiguram/densificam tecnicamente a natureza. Estes estudos são objetivados na linguagem ambiental tão comum entre os geógrafos físicos na atualidade, através dos diagnósticos, dos monitoriamentos e das medidas mitigadoras. Monitoramento pressupõe controle e medidas mitigadoras, soluções técnicas de restauração da natureza tecnificada, natureza artificializada, na expressão de Milton Santos.(SUERTEGARAY, 2017, p. 28)
Na mesma linha de pensamento da autora, é possível constatar uma
vinculação explícita entre as temáticas de investigação ‘selecionadas’ e a existência
de problemas oriundos do “processo de globalização da natureza”, conforme nos
indicam Porto-Gonçalves (2006), Giddens (1991), Vitte (2011b) e
Suertegaray(2017) sobre as experiências globais que afetam as práticas
socioespaciais locais e potencializam os problemas ambientais. As problemáticas
eleitas e as temáticas correlatas giram em torno das necessidades dos “diagnósticos
geográficos e topográficos”, que impactam diretamente na formação do espaço”,
160
sendo o foco principal no arsenal discursivo o “ planejamento e a gestão das bacias
hidrográficas” com viés eminentemente prático atribuído à disciplina e uma
concepção implícita de domínio e controle da natureza. Para Carvalho (2009), assim
como para Rodriguez, Silva e Leal (2011), nos últimos anos essa concepção vem
ganhando novos conteúdos, contornos e enfoque, vejamos na fala dos autores:
O planejamento das bacias hidrográficas vem se alteando conceitualmente, primeiro com um enfoque de manejo das águas, depois com uma concepção da bacia com a conjunção de fatores ambientais e, mais recentemente, com uma visão de planejamento ambiental integrado, a qual tem sido interpretada sob diversos enfoques. (RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 112)
O ponto de vista que os autores apontam e que confirmamos nas
produções intelectuais analisadas é que houve uma evolução epistêmica em relação
aos estudos sobre a bacia hidrográfica, que vem, paulatinamente, deixando de ser
meramente “uma superfície terrestre drenada por um sistema fluvial contínuo e bem
definido” (RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 112), para ser concebida “como
uma unidade físico-territorial, definida em lei, para a implantação das políticas e
sistema de gerenciamento de recursos hídricos no Brasil”. Uma mudança ontológica,
pois, a natureza da realidade e do objeto de estudo esta coimbricada com a
mudança axiológica (nos valores sociais, que são os recursos econômicos), tendo
potencializado mudanças metodológicas, pois:
A análise da água, vista como recurso, é eminentemente uma hidrologia ambiental, na qual a função é essencialmente de caráter ecológico, e a estrutura estará dada pelos limites que lhe impõem a paisagem ou espaço natural e as transformações nele exercidas pelas atividades humanas. ((RODRIGUEZ, SILVA E LEAL, 2011, p. 113)
Uma concepção de Geografia como “ciência charneira” (GOMES, 2009, p.
18), onde o campo das questões geográficas se situa na relação com o intuito de
‘descrever’ “as múltiplas influências ou condicionamentos gerados entre o mundo
natural e a organização social”. O que, segundo nos apontam nos Rodriguez, Silva e
Leal (2011), vai além de estar envolvida na adoção da “Geoecologia das Paisagens
como fundamento de caráter teórico e metodológico, que responde de maneira mais
efetiva aos requisitos mencionados”, mas demostram um comprometimento como o
objetivo “produzir modelos abstratos generalizantes” (GOMES, 2009, p. 21).
Concepção que é claramente evidenciada nas palavras de maior frequência nas
161
análises dos resumos feitas no software, veja nas ilustrações, em 79% dos coletivos
sociotécnicos analisados.
Ilustração 2 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPR, recorte temporal 2012 – 2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, 26.11. 2018
Em segundo lugar, a categoria específica e derivada Fatores naturais
ou quadro natural em 36% do corpus aponta a “evolução morfológica” dos
processos “geológicos” com 35% das produções intelectuais nessa categoria, sendo
maior destaque para o coletivo PPGG/UFMG; os processos “geomorfológicos”, com
34% das produções intelectuais, principalmente nos PPGG/UFRJ e PPGG/USP; os
“hidrológicos”, com 27%; os “oceanográficos”, com 18% das produções intelectuais,
com destaque para PPGG/UFSC e PPGG/UFRN; os “pedoclimáticos locais”, com
11% do corpus, com destaque para os PPGGs – UECE e UFPE; “biogeográficos”,
com 9%; e “glaciais”, com 6%. Os referentes utilizados foram “relevo”, “solo”, “rio”,
“praia”, entre outros “recursos naturais”. Nessa categoria, assim como na categoria
anterior, o principal recorte espacial é a bacia ou sub-bacia (58%), em segundo
lugar, a paisagem (31%). A principal distinção entre estes estudos e os da categoria
anterior é a ‘falta do homem” ou do papel atribuído ao homem/mulher nos
“fenômenos naturais”. Para Figueiró (2011, p. 18):
162
O forte vínculo da nascente geomorfologia do século XIX com os postulados teóricos e metodológicos da Geologia produziu, desde a origem, uma determinada orientação no entendimento do conjunto dos processos naturais [...], hegemonicamente voltada para a explicação da morfologia da superfície terrestre e, por conseguinte, equivalendo a fisiografia à Geografia Física. Nesta linha, encontramos os nomes dos primeiros grandes ‘geógrafos físicos’ modernos, como Richthofen ou Davis.
Em termos de ligações evolutivas, observamos os vínculos com a
segunda geração de coletivos sociotécnicos quando é possível constatar que:
A Geografia Física, por sua vez, em crise pela perda de campo de investigação para novas áreas do conhecimento que se estruturavam (pedologia, ecologia, botânica, zoologia) e atraída pelos notáveis avanços alcançados pela Geologia, tanto nos aspectos teórico-conceituais, quanto no aspecto metodológico, acaba se transformando em uma “caixa de ressonância” do conhecimento geológico, o que se constitui no fundamento do aparecimento e do desenvolvimento da geomorfologia como carro-chefe da geografia física, uma simples disciplina geológica, de fato cultivada no marco da geologia e desenvolvida por geólogos, caracterizados por uma formação naturalista ampla. (FIGUEIRÓ, 2011, p. 29)
Essa “formação naturalista” contribui de forma definitiva para a
especialização cognitiva no âmbito da própria Geografia Física (seu esfacelamento),
em função da busca de fundamentos teóricos e metodológicos em outras áreas de
conhecimento, o que contribuiu para o fortalecimento da Geologia e da
Geomorfologia, conforme dados obtidos no levantamento inicial, em que estas
áreas apresentam produção intelectual muito superior no âmbito dos programas de
pós-graduação em Geografia, além dar legitimidade discursiva no âmbito da
Geografia Física, que diverge consideravelmente da Ciência Geográfica.
Evidenciando ainda uma concepção de “ciência de síntese”, que segundo nos
informa Gomes (2009, p. 18) “a ciência geográfica não tem como papel explicar,
mas simplesmente relacionar os campos analíticos advindos de outras disciplinas”.
Observe a diversidade lexical que aparece na nuvem de palavras da
Ilustração 3, onde as categorias de análises geográficas (Território, Região, Lugar)
não obtiveram frequência significativa (ou superior a 10).
163
Ilustração 3 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFMG, recorte temporal 2012 – 2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e
dissertações da Capes, 26.11. 2018
Terceiro lugar, a categoria Métodos e Técnicas onde classificamos os
estudos sobre os procedimentos técnicos utilizados na pesquisa geográfica (13%)
ou que tinham como objetivo gerar instrumentos de análise do campo empírico. Os
principais referentes para esta classificação relacionam-se à “validação” de “teorias”,
“instrumentos” e “indicadores”, ao uso de procedimentos relacionados a
geotecnologias, tais como imagens de satélites, drones, fotografias áreas, os
softwares “ArcGIS 9.3”, “Surfer 10”, “Strater 1.02.27” e “Global Mapper”, entre
outros. Tendência já apontada por Gregory (1980) da crescente apropriação
metodológicas das técnicas e tecnologias nas pesquisas geográficas, o que
repercutiu na necessidade dos temas voltados para investigar sua aplicabilidade, e,
em função do fundamento da Ciência Geográfica, como “ciência indutiva”, de que “ o
uso e a legitimidade de qualquer modelo de análise teórico ficam submetidas ao
conhecimento empírico, quase exaustivo, do conjunto dos lugares, ou seja, só pode
haver teoria depois que a massa de conhecimento empírico for estabelecida e
sistematizada”, daí a demanda pelo aprimoramento dos métodos e das técnicas de
coleta de dados. No entanto, observamos poucas produções com discussões dos
164
fundamentos filosóficos (epistemológicas) e quando aparece o recorte espacial, é
visível a diversidade relacionada a área, bacia, paisagem, território.
Ilustração 4 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFRGS, recorte temporal 2012 – 2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e
dissertações da Capes, 26.11. 2018
Em quarto lugar, vem a categoria Sociogeográfica ou Ecogeográfica,
com 6% dos estudos sobre as questões socioambientais ou ecológicas. Os
referentes foram “unidades de conservação”, “áreas de preservação”, “comunidades
tradicionais” e “territorialidades”. Uma concepção de Geografia como ciência das
interações humanas no espaço ou da espacialidade dos fenômenos (sejam físicos
ou sociais), contemplando a complexidade dos sistemas espaciais, o que segundo
Gomes (2009, p. 26) “é tão somente o reconhecimento” de que os elementos estão
“inter-relacionados na composição dos sistemas espaciais”. O PPGG que se
destacou foi o da UFPA.
165
Ilustração 5 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFPA, recorte temporal 2012 – 2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e dissertações da Capes, 26.11. 2018
Em quinto lugar, classificamos a categoria Diversos, com 4% dos
estudos, tais como educação ambiental, ensino da Geografia Física, Geografia
Agrária, Geografia Urbana etc., sendo um dos destaques o PPGG/UFG, com forte
inclinação para a Geografia Escolar (Ilustração 6).
Ilustração 6 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFG, recorte temporal 2012 –
2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e
dissertações da Capes, 26.11. 2018
166
A nosso ver, é relevante esclarecer que é possível encontrar estudos de
todas as categorias em quase todos os coletivos sociotécnicos, com maior ou menor
frequência, indicando ainda, certa regularidade nas produções intelectuais, que
estabilizam a identidade científica da Geografia Física como estudo da natureza,
com forte aderência as concepções de ciência ora de “síntese”, ora “empírica” e ora
“indutiva”, e, uma identidade social de “ciência aplicada”, o que segundo Gomes
(2009, p. 23) responde por um
Colossal equívoco entre produção do conhecimento, relativo à esfera da ciência e, portanto, necessariamente atravessado por questões epistemológicas e a aplicação do conhecimento, relativo à esfera das engenharias, da solução de problemas práticos, tecnicidade e operacionalização dos conhecimentos, tem sido fruto de imensos problemas na definição do papel do geógrafo e de suas competências. Esse equívoco não afeta somente à identidade do saber geográfico, ele se transforma em grave problema na formação dos geógrafos e na inserção deles no mercado de trabalho.
A forte inclinação para as ciências aplicadas além de nos revelar uma
ligação evolutiva como o pragmatismo, desvela como os propósitos e finalidades (os
valores sociais) atribuídos a um saber ou área de conhecimento repercutem
diretamente na seleção de seu objeto de investigação, bem como, nas práticas
desenvolvidas e legitimadas, aja visto a frequência significativa de fragmentos como
“diagnósticos”, “planejamento” e “gestão” que aparece nas produções intelectuais,
No entanto, é visível que um dos principais indutores das “escolhas”
temáticas ou do objeto de estudo são, em segundo lugar, é a linha de pesquisa
associada às temáticas foco de trabalho dos professores (orientadores).
Constatamos esta situação nos coletivos de UFMG, UFSC, UFG e UFU. Para
ilustrar essa proposição no PPGG/UFU, na Ilustração 07, a palavra em destaque é
Saúde. Quando nos indagamos “Quais as condições que contribuíram para que a
temática da saúde tivesse destaque no coletivo?”, constatamos que as condições de
existência da temática podem ser atribuídas à atuação do professor Dr. Samuel do
Carmo (árvore genealógica de orientação no Quadro 08), no coletivo sociotécnico,
com alto índice de descendência (59) num recorte temporal entre 1996 e 2018 e
formação na área de “Saúde Coletiva”.
167
Ilustração 7 - Nuvem de palavras do coletivo PPGG/UFU, recorte temporal 2012
– 2018
Fonte: Resumos das produções intelectuais disponíveis no banco de teses e
dissertações da Capes, 26.11. 2018
Quadro 8 - Árvore genealógica de orientação
Grande Área: Ciências da Saúde Área: Saúde Coletiva Titulação: Doutorado Ano de Titulação: 1996
Descendência (D): 59 Fecundidade (F): 40 Índice Genealógico (IG): 3
ASCENDENTES
N Nome Nível Ano D F IG
1 Edison Dausacker Bidone
Mestrado 1985 207 43 7
2 José Pereira de Queiroz Neto
Doutorado 1996 829 41 11
3 Raul Borges Guimarães
Pós-doutorado
2007 118 32 3
Fonte: Relatório da plataforma Acácia, com informações retiradas do Currículo Lattes dos
professores, de 01 a 16 de março de 2019.
É relevante considerar que, no coletivo PPGG/UFU, a área de
concentração é “Geografia e Gestão do Território”, sendo suas linhas: I Ensino,
métodos e técnicas em geografia”; e “II Análise, planejamento e gestão ambiental
168
dos espaços urbanos e rural”. Observando a nuvem de palavras, Ilustração 6, é
explícita a aderência aos temas/problemas investigados e às linhas que estruturam o
programa. Um elemento que contribuiu para essa condição de existência foi, com
certeza, a atuação da CAPES, através da avaliação63. No entanto, defendemos que
não foi o único, conforme nos aponta Lencioni (2013, p. 7):
Enquanto sua avaliação tem sua face constrangedora e indutora de projetos e práticas, as linhas de pesquisa de cada programa gozam de inteira liberdade, pois os programas podem livremente definir suas linhas de pesquisa. Em outros termos, a definição das linhas de pesquisa se constitui num espaço de liberdades. Aí valorizam-se temas, enquanto outros encontram ostracismo. Isso não se dá ao acaso, tem sentido e é coletivamente produzido. No entanto, muitas vezes, presencia-se inconsciência dos porquês.
A professora Lencioni (2013), além de desvelar no fragmento as
repercussões da avaliação/controle e regulação da Capes na ambiência dos
PPGGs (constrangimento/desconforto), aponta a “liberdade” que os PPGGs têm na
seleção de suas linhas de pesquisa. No entanto, defendemos que mesmo essa
“liberdade” é “relativa”, isso porque existem interesses nem sempre explícitos, mas
sempre presentes dos profissionais (atores sociais) que participam das “escolhas”
(colegiados, departamentos, Instituições), pois trazem implicações na carreira e
formação docente, na sua atuação como profissional. Para Gregory (1992, p. 13),
“as perspectivas e experiências pessoais [...] são importantes porque são
influenciadas pelo treinamento e pelo conhecimento sobre o desenvolvimento das
pesquisas nas diferentes partes do mundo”, assim como envolvem questões
ideológicas e a incidência das múltiplas contingências oriundas da modernidade
reflexiva. Portanto, não são condições indutoras isoladas, mas coimbricadas,
complementares e, por vezes, contraditórias.
O segundo elemento que chama atenção é concernente à escala
geográfica e à área foco das investigações, isso porque é visível a aderência aos
fenômenos empíricos nas escalas: local (73%), regional (18%), nacional (7%) e
internacional (2%) (Mapa 02).
63 Na “Ficha de avaliação para o quadriênio 2013 – 2016”, um dos critérios de avaliação dos PPGGs,
com peso de 50% é “Coerência, consistência, abrangência e atualização das áreas de concentração, linhas de pesquisa, projetos em andamento e proposta curricular” (BRASIL/CAPES, 2016, p. 23)
169
Mapa 2 - Localidade onde foram feitas as pesquisas da PPGG/USP-GF, no
recorte temporal 1987 – 2018
No entanto, é notável a situação da PPGG/USP-GF, PPGG/UNESP-Rio
Claro, UFRJ e UFRGS, em que é perceptível certa diversidade na escala das
localidades de estudo, inclusive com a internacionalização, o mesmo não acontece
nos estudos de Geografia Física nos outros PPGGs, em que imperam, largamente,
as temáticas locais, no máximo transcendendo para a região.
No que concerne às perspectivas epistêmicas, utilizamos a estrutura e a
conceitualização que fizemos em estudo anterior (NUNES; VITTE, 2017) para
classificar as ligações evolutivas associadas às perspectivas epistêmicas. Com esse
procedimento, obtivemos os seguintes resultados analisando os resumos.
Em primeiro lugar, aparecem os estudos que se encaixam na Perspectiva
Epistêmica Científica ou geotecnológica, com 62% das produções intelectuais dos
resumos analisados, contemplando as áreas de geomorfologia, geologia,
hidrologia, climatologia e biogeografia, com ligações evolutivas vinculadas ao
sistema filosófico do neopositivismo, que, no Brasil, foi reinterpretado e contribuiu
para introduzir na Geografia Física “o paradigma Aziz-Bigarella”, a partir da década
170
de 1960 (VITTE, 2007, 2011). Funciona como uma suposição diretiva que informa,
permeia e legitima no coletivo de pensamento “um modelo operacional e
interpretativo da geomorfologia brasileira”, que, em função das múltiplas
contingências, aderiu e potencializou na Geografia Física o uso das geotecnologias,
através do paradigma da análise espacial do SIG (FERREIRA, 2007), “que
provocou profundas transformações de ordem teórica e metodológica” (CAMARGO;
REIS JÚNIOR, 2007, p. 84).
Essa perspectiva frequentemente trabalha com a concepção de que a
Geografia Física estuda a relação homem/natureza ou os fatores físicos na
superfície terrestre. No entanto, Suertegaray64 (2017, p. 19) alerta que nestes
estudos existem diferentes “concepções” e “espaço” para a natureza, assim como
Lima (2014), que indica que o mesmo acontece em relação ao “homem”. Nessa
perspectiva epistêmica, o que se observa na episteme da Geografia Física
contemporânea é o homem concebido como “agente poluidor”, o principal
responsável pela “degradação ambiental”, separado e exterior à natureza; ou agente
econômico que pode utilizar os “recursos naturais”, ‘justificadamente’ e de forma
‘planejada’ e ‘sustentável’ para promover o desenvolvimento econômico. Outras
vezes,
Dificilmente aparece a interlocução direta com os seres humanos, mesmo o papel dos elementos exógenos, no caso a ação antrópica na transformação do meio, são analisados a partir do que é visível na superfície terrestre (por exemplo, usos e ocupação do solo), com a utilização de indicadores quantitativos e a formulação de modelos, daí os fundamentos epistemológicos implícitos, que são: a verificabilidade empírica (trabalho de campo), a objetividade e a precisão através da mensuração (daí o uso intenso das geotecnologias). A maioria são pesquisas de natureza básica e descritiva cujo produto principal é a produção de mapas, que, frequentemente, destinam-se ao planejamento ambiental e/ou socioeconômico. (NUNES; VITTE, 2017, s/p.)
Em segundo lugar, aparecem os estudos categorizados na Perspectiva
Epistêmica Sistêmica, com fortes ligações evolutivas com a Teoria Geral dos
Sistemas ou Teoria Sistêmica e uso instrumento conceitual sobre a organização
espacial. Matriz filosófica que é reinterpretada pela abordagem “ecodinâmica” de
64 “A natureza, no espaço geográfico, se revela pela condição constituinte/fundante da vida e das
sociedades humanas. Sem a natureza, não haveria os homens/mulheres/sociedades. Sem homens/mulheres, não haveria natureza (como concepção conceitual, portanto, cultural; mas também econômica e política). No campo materialista, a natureza é objetiva e antecede o homem, entretanto, é reconhecida por diferentes formas conceituais, de acordo com a sociedade/cultura. (SUERTEGARAY, 2017, p. 18)
171
Tricart, apropriada pelo modelo metodológico de Ross. Vinte e dois por cento das
produções intelectuais analisadas apontaram, de forma explícita, a aderência a esta
perspectiva e 7%, de forma implícita. Os principais referentes que nos levaram a
classificá-las nessa perspectiva foram a “fragilidade ambiental” – “Unidades
Ecodinâmicas Instáveis” e as referências a Monteiro e a Ross. Caracteriza-se por
forte aderência ao empirismo, à lógica indutiva e ao uso das geotecnologias, assim
como prioriza a pesquisa aplicada, descritiva e a finalidade de suas produções, não
diferindo da perspectiva epistêmica anterior.
Na perspectiva epistêmica sociogeográfica e/ou ecogeográfica, ainda
incipiente na maioria dos PPGGs, classificamos 7% das produções intelectuais
nos coletivos PPGG/UFPA, PPGG/UFBA e PPGG/UNESP-Rio Claro. Essas
produções intelectuais se evidenciavam na natureza do ente (objeto de estudo),
simultaneamente objetiva e subjetiva dos fatos ou fenômenos no espaço
(territorialidade, espacialidade, ruralidades, urbanidades etc.), indo do social para
anatureza (física) ou vice-versa, articulando e contemplando as diferentes escalas
geográficas (micro e macro), as múltiplas dimensões (culturais, naturais ou físicas,
históricas, econômicas, pessoais etc.). Para Souza (2016),
A distinção entre as perspectivas ecogeográfica e sociogeográfica é [...] uma questão de perspectiva [...] de se construir o objeto de conhecimento. Assim, da mesma maneira como feições e dinâmicas da natureza primeira podem ser objeto de reflexão sociogeográfica (por exemplo, ao se estudarem processos de territorialização e ressignificação de [geo]ecossistemas ao serem estes convertidos em unidades de proteção ambiental, ou ao se examinarem as prováveis implicações geoeconômicas e geopolíticas do aquecimento global), igualmente espaços socialmente produzidos, como cidades e campos de cultivo, podem ser objeto de investigação do ponto de vista ecogeográfico (pesquisando-se os processos geoecológicos que ali ocorrem). [...] O fato de que as naturezas primeira e segunda [...] se entrelaçam a todo momento, em todo lugar e de incontáveis formas, é o fato básico que sugere a existência de um imenso e imensamente fecundo campo para a cooperação daquelas duas perspectivas. (SOUZA, 2016, p. 41- 42)
Na ótica de Nunes e Vitte (2017), estes estudos concebem a realidade
como dinâmica, processual, em que se articulam elementos objetivos e subjetivos.
Dimensão metodológica, por vezes, é uma construção no caminhar e contempla a
abordagem multidimensional e multiescalar, concebendo os fenômenos e processos
socioespaciais e da ““natureza primeira” como objetos de estudo da Geografia, não
172
da Geografia Física ou Ambiental. E o propósito de seus estudos é compreender tais
fenômenos e processos no intuito de superar a “descrição das formas ou a
explicação (causal), sem atentar para as significações sociais, históricas, políticas,
ambiental, econômicas e culturais”, intencionalidades implícitas e explicitas que
informam e guiam o homem/mulher.
E, por fim, a Perspectiva Epistêmica crítico-dialética, que consta de 2%
dos estudos geográficos analisados. O interessante é que foram caracterizadas
nessa perspectiva as produções intelectuais que transitavam ou articulavam a
Geografia Física com temáticas da agrária, urbana, escolar e saúde. Com seus
pilares no materialismo histórico e dialético, seus elementos explanatórios indicavam
de forma explicita as ligações evolutivas, fossem elas críticas, fosse pelo uso de
suas categorias totalidade, contradição, universal, particular e singular, ou pela
historicidade dos fenômenos. Na dimensão metodológica, trilham o caminho da
abordagem mista (quanti-qualitativa), usam dados secundários e realizam trabalho
de campo, através da interlocução com os atores sociais (“uso de questionários e/ou
entrevista individuais ou em grupos, entre outras técnicas de coleta de dados”).
Conforme pontuam Nunes e Vitte (2017), é incipiente o uso das geotecnologias, o
que Ferreira (2007) chama de refratariedade, pois:
As pesquisas socioeconômicas, talvez pela refratariedade resultante de
algumas posturas geográficas originadas talvez da época da geografia
crítica brasileira, contrárias à parceria entre a informação socioespacial e o
sistema de informação geográfica, têm tardiamente incluído o SIG como
instrumento de análise e compreensão social do espaço geográfico. Essa
refratariedade não aconteceu com as ciências sociais, a arquitetura, a
demografia e o planejamento, que têm amplamente adotado o paradigma
da análise espacial em SIG. (FERREIRA, 2007, p. 103)
As ponderações desveladas pelo autor sobre o “fenômeno da
refratariedade” convergem com as evidências teóricas e empíricas que utilizamos na
argumentação desta tese sobre o TE da Geografia Física e a apropriação e a
incorporação das geotecnologias nas tradições de pesquisa.
173
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas.
Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Clarice Lispector
Busquei, por meio desta pesquisa, compreender a evolução
epistemológica da Geografia Física contemporânea, através de documentos de
domínio público (artigos publicados em periódicos on-line), e o território
epistemológico desta pesquisa através das produções intelectuais (resumos das
teses e dissertações) dos coletivos sociotécnicos, utilizando os fundamentos da
Arqueologia do Saber de Foucault (2014, 2017) e as proposições teórico-
conceituais de Fleck (2010) e Kuhn (2011, 2017).
Partimos da premissa de que os programas de pós-graduação em
Geografia – PPGGs são coletivos sociotécnicos, cuja trajetória de expansão,
consolidação e fortalecimento repercutiu no coletivo de pensamento que permeia e
informa o domínio dos saberes, fazeres e propagares do fazer científico da
Geografia Física contemporânea, ou seja, o seu Território Epistemológico.
Defendo a tese que o território epistemológico de um campo científico é
produto das múltiplas contingências que repercutem na evolução epistemológica de
um saber, através das mudanças evolutivas oriundas das interações históricas,
sociais e cognitivas. O nosso argumento principal é que as múltiplas contingências
oriundas da modernidade reflexiva atuam como um conjunto de circunstâncias
eventuais, articuladas, complementares e, simultaneamente, contraditórias,
contemplando diversas dimensões – filosófica, social, cognitiva, afetiva, cultural,
temporal, científica, política e econômica – que afetam a evolução epistemológica
dos campos e saberes científicos. Em outras palavras, as múltiplas contingências
funcionam como estruturas objetivas e subjetivas, internas e externas, micro e
macro, que repercutem direta ou indiretamente na práxis científica, influenciando,
consequentemente, na evolução epistemológica.
174
Tomar como foco a produção de uma arqueologia do território
epistemológico da Geografia Física, através da dinâmica científica do presente,
implicou o diálogo com as dimensões geográfica, sociológica, filosófica, histórica e
epistemológica da Geografia Física.
A estratégia de coleta compreendeu a busca digital por documentos de
domínio público, disponibilizados pelos programas de pós-graduação em Geografia -
PPGGs e de seus atores sociais (doutores), considerando que tais produções
intelectuais (relatórios, teses, dissertações, artigos e capítulos de livros, entre outras)
são práticas discursivas que produzem sentido e nos remetem às regularidades no
modo-de-ser-ver-perceber-agir do sujeito (seu estilo de pensamento) e do coletivo
de pensamento.
As evidências teóricas e empíricas coletadas e analisadas no transcorrer
da investigação tornaram visíveis a incidência das influências históricas,
piscoafetivas, ideológicas, sociológicas e geográficas, que repercutiram na evolução
epistemológica da Geografia Física e na constituição de sua identidade científica e
social, que se estabiliza na episteme do TE.
Em termos de considerações explícitas e implícitas nos fragmentos dos
resumos analisados para responder à questão de investigação que norteou este
estudo, podemos elucidar que a configuração do TE da Geografia Física apresenta
uma identidade circunscrita pela imagem de subcampo científico da “Geografia”,
institucionalmente classificado como área de conhecimento pertencente à área de
“Geociências”. Um TE marcado pela dualidade das suas principais concepções,
dualidade atribuída e legitimada por múltiplas contingências da modernidade
reflexiva. Um saber que transcende as fronteiras disciplinares rígidas e usufrui de
outros campos científicos. E, por fim, um TE com forte aderência às análises
empíricas, ao uso das geotecnologias e ao firme propósito de contribuir para o
“planejamento” e a “gestão ambiental”, ou “gerenciamento do espaço”, desvelando a
incidência das múltiplas contingências oriundas da modernidade reflexiva.
Tais asserções, construídas no “caminhar”, mostraram-se
extremamente relevantes para compreender o entrelaçamento das condições
objetivas e subjetivas, micro e macrossociais, racionais e afetivo/ideológicas no
desenvolvimento do conhecimento científico, superando teorias e embates, que
175
tradicionalmente apontavam para um ou outro extremo (interno ou externo, social ou
cognitivo etc.). Desvelando, ainda, a existência da coimplicação entre as dimensões
do fazer científico que se realiza nas interações de ideias, atores e instituições,
produzindo redes de significações, materializadas nas práticas discursivas
(produções intelectuais). Indicando, com isso, o potencial das produções intelectuais
disponíveis no ciberespaço para compreender/elucidar a dinâmica científica
contemporânea, enraizada nas tradições de pesquisas da modernidade, diante da
ressignificação científica contemporânea, que coloca obstáculos na elucidação do
real.
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