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0 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA HELDILENE GUERREIRO REALE TERRITÓRIOS DE MEMÓRIAS, CONFLITOS E DEVORAÇÕES: A Poética de Armando Queiroz no Prêmio Marcantonio Vilaça (2009-2010) BELÉM 2011

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0

UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA HELDILENE GUERREIRO REALE

TERRITÓRIOS DE MEMÓRIAS, CONFLITOS E DEVORAÇÕES: A Poética de Armando Queiroz no Prêmio Marcantonio Vilaça

(2009-2010)

BELÉM

2011

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HELDILENE GUERREIRO REALE

TERRITÓRIOS DE MEMÓRIAS, CONFLITOS E DEVORAÇÕES: A Poética de Armando Queiroz no Prêmio Marcantonio Vilaça

(2009-2010)

Pesquisa apresentada ao curso de

Mestrado em Comunicação,

Linguagem e Cultura da Universidade

da Amazônia, como requisito para

obtenção do grau de Mestre, sob

orientação da Profª Drª Marisa

Mokarzel.

BELÉM 2011

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HELDILENE GUERREIRO REALE

TERRITÓRIOS DE MEMÓRIAS, CONFLITOS E DEVORAÇÕES: A Poética de Armando Queiroz no Prêmio Marcantonio Vilaça

(2009-2010)

Pesquisa apresentada ao curso de

Mestrado em Comunicação,

Linguagem e Cultura da Universidade

da Amazônia, como requisito para

obtenção do grau de Mestre, sob

orientação da Profª Drª Marisa

Mokarzel.

Profª Drª MARISA DE OLIVEIRA MOKARZEL. (Orientadora). Universidade da Amazônia- UNAMA.

Prof. Dr. AGENOR SARRAF PACHECO. Universidade da Amazônia- UNAMA.

Profª Dr.a VALZELI FIGUEIRA SAMPAIO.

Universidade Federal do Pará - UFPA.

BELÉM 2011

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Em memória de Hugo Balby Reale.

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A Deus, a meus pais, a meus irmãos,

aos amigos, a minha orientadora Marisa

Mokarzel, a meus professores da vida

acadêmica, a Armando Queiroz e aos

demais profissionais que estiveram

envolvidos na construção desta

pesquisa.

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Toda forma é um rosto que me olha.

Serge Daney

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RESUMO

Esta pesquisa aborda o processo de criação desenvolvido pelo artista visual

paraense Armando Queiroz para o Prêmio Marcantonio Vilaça (2009-2010).

Nove obras (Mar Dulce Barroco, Midas, 252, Ymá Nhandehetama, A resposta

do Pajé, Pilatos, Espada Cabana, documentos e Ouro de Tolo) participaram de

um circuito expositivo formado em seis capitais do Brasil. Analisou-se a

contemporaneidade destas obras e a relação que estabelecem com o contexto

histórico e social para a construção do território expositivo. Trata-se de uma

pesquisa de caráter qualitativo, na qual se usou como procedimento

metodológico: o Estudo de Caso, o Método Bibliográfico e a Crítica Genética.

Para o auxilio do conhecimento e análise da temática deste trabalho foi

aplicada a técnica da entrevista com Armando Queiroz e coleta de dados

autógrafos. Dentre os autores que contribuíram para a construção desta

pesquisa destacam-se: Farias (2002) e Cauquelin (2005) que analisam a arte

contemporânea; Salles (2000) no conhecimento a respeito de metodologias no

processo de criação artística; Portelli (1997) com o discurso sobre a memória,

além de Haesbaert (2004) que formulou os conceitos acerca de Território.

Assim, a pesquisa gera novas possibilidades para análise e discussão da arte

contemporânea a partir de um caráter interdisciplinar entre a comunicação,

história, arte e antropologia, onde o diálogo formado pelo processo de criação

do artista tece memórias por meio da revisão de contextos históricos, sociais

econômicos e culturais.

Palavras-chave: Armando Queiroz. Arte Contemporânea. Processo de Criação. Memória. Território.

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ABSTRACT

This research addresses the creative process developed by visual artist

Armando Queiroz for Premium Vilaça Marcantonio (2009-2010). Nine works

(Mar Dulce Barroco, Midas, 252, Ymá Nhandehetama, A resposta do Pajé,

Pilatos, Espada Cabana, documentos e Ouro de Tolo) participated in an

exhibition circuit formed by six state capitals of Brazil. We analyzed the

contemporaneity of these works and the relationship they establish with the

social and historical context for the construction of exhibition area. This is a

qualitative research study, in which he used as a methodological procedure: the

Case Study Method and Critical Bibliographic Genetics. To the aid of

knowledge and analysis of the theme of this work was applied to the interview

with Armando Queiroz and data collection autographs. Among the authors who

contributed to the construction of this research are: Farias (2002) and

Cauquelin (2005) which examines the contemporary art, Salles (2000)

knowledge about methodologies in the process of artistic creation; Portelli

(1997) with the discourse on memory, Haesbaert (2004) who formulated the

concepts around the Territory. The research generates new possibilities for

analysis and discussion of contemporary art from an interdisciplinary character

of communication, history, art and anthropology, where dialogue formed by the

process of creating the artist weaves memories by reviewing the historical,

social economic and cultural.

Keywords: Armando Queiroz. Contemporary Art. Process Creation. Memory.

Territory.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 01: Armando Queiroz em seu ateliê, 2010 ......................................... 27

Imagem 02: Roda de Bicicleta, 1913 ................................................................ 29

Imagem 03: A Sacralização do Dessacralizado, 1993 ..................................... 29

Imagem 04: A cobra e os pássaros de miriti em grandes dimensões, 2005 .... 32

Imagem 05: Frame do videoarte Bebendo Mondrian, 2007. ............................ 34

Imagem 06: Projeto A Mão do Lugar, 2004 ...................................................... 35

Imagem 07: Mãodrian, 1995............................................................................. 35

Imagem 08: Pintura II Quadro II, 1921/25 ........................................................ 36

Imagem 09: Fio da Meada em exibição no XXV Arte Pará, 2006: ................... 38

Imagem 10: Guarda do MHEP interagindo com a obra, 2006 ........................ 39

Imagem 11: O Novelo construído durante o XXV Arte Pará, 2006................... 39

Imagem 12: Rádio de Poste, 2007 ................................................................... 40

Imagem 13: Frames do videoarte Retratos Vivos ............................................ 41

Imagem 14: Esboço feito pelo artista da “sala 01” montada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010 ......................................................................... 59

Imagem 15: “sala 01” montada no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo, 2010 .................................................................................................................. 60

Imagem 16: Esboço feito pelo artista da “sala 02”, montada no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo, 2010 .................................................................... 60

Imagem 17: “sala 02” montada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010. ................................................................................................................. 61

Imagem 18: Frame do videoarte 252, 2007 ..................................................... 67

Imagem 19: Frame do videoarte Mar Dulce Barroco, 2009 .............................. 69

Imagem 20: Mar Dulce Barroco e 252 em exposição no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo, 2010 .................................................................... 71

Imagem 21: documentos em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010 .................................................................................................... 76

Imagem 22: Espada Cabana em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010 .................................................................................................... 79

Imagem 23: Frame do videoarte Midas, 2010. ................................................. 81

Imagem 24: Garimpeiros em Serra Pelada. ..................................................... 83

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Imagem 25: Arcada dentária fundida e pintada de dourado, 2010 ................... 88

Imagem 26: Ouro de Tolo exposta no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010 .................................................................................................. 89

Imagem 27: Frame do videoarte Ymá Nhandehetama, 2009 ........................... 94

Imagem 28: A Resposta do Pajé em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, 2010 ......................................................................................... 99

Imagem 29: Frame do vídeoarte Pilatos, 2010 ..............................................100

Imagem 30: Armando conversando com Fernando sobre o vídeo, 2010 ...... 101

Imagem 31: Armando conversando com Walder e Fernando, 2010...............102

Imagem 32: Armando, Fernando e Marcelo realizando o trabalho, 2010.......103

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SUMÁRIO

ESPAÇOS EM TRANSIÇÃO ............................................................................ 11

1 O ARTISTA E SEU PERCURSO ................................................................... 17

1.1 O Artista ..................................................................................................... 18

1.2 Armando Queiroz e a Arte Contemporânea ............................................ 22

1.3 O Processo de Criação para o Prêmio Marcantonio Vilaça .................. 43

2 TERRITÓRIOS EXPOSITIVOS ..................................................................... 53

2.1 Território de Memórias, Conflitos e Tragédias ....................................... 61

2.2 Território de Conflitos, Devorações e Ritos ........................................... 77

ENTRE TERRITÓRIOS ................................................................................. 104

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 107

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ESPAÇOS EM TRANSIÇÃO

O primeiro contato que tive com Armando Queiroz foi no ano de 2006

por meio das aulas de Formação Artística Estética Interdisciplinar ministrada

pela Prof.ª Dr.ª Marisa Mokarzel no curso de Artes Visuais e Tecnologia da

Imagem da Universidade da Amazônia (UNAMA). Neste contexto, o artista foi

convidado a comentar o processo de pesquisa relativo a alguns de seus

trabalhos artísticos.

A partir desse conhecimento, comecei a desenvolver no ano de 2007,

pesquisas sobre as poéticas visuais do artista paraense Armando Queiroz. O

primeiro estudo foi A Poética Visual de Armando Queiroz e o Ver-o-Peso:

Espaço de Intervenção e Negociação, realizado para o trabalho de conclusão

do Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem da Universidade da

Amazônia (UNAMA). Sob orientação da Profª Drª Marisa Mokarzel, pesquisei o

processo de negociação que Armando Queiroz desenvolveu no Mercado de

Carne e Feira Livre do Complexo Ver-o-Peso, entrando em contato com os

atores sociais que participaram ativamente do processo de construção das

obras Lâmina (2005) e Fio da Meada (2006). Dentro deste contexto, coletei

dados acerca da relação entre o artista e os trabalhadores do mercado, do

processo de percepção da arte pelos usuários do complexo Ver-o-Peso e de

como aconteceram as negociações para que Queiroz utilizasse o mercado

como espaço expositivo de suas obras.

Em 2008 por meio do trabalho de conclusão do curso em Bacharel em

Turismo na Faculdade de Turismo da Universidade Federal do Pará (UFPA),

continuei o processo de pesquisa através do tema: Turismo e Arte:

Construindo Relações no Mercado de Carne do Complexo Ver-o-Peso por

meio da obra de Armando Queiroz. Neste contexto, por meio da orientação do

Prof. Marlúcio Marreco, analisei as relações entre turismo e arte, abordando,

em especial, a produção artística Lâmina, exposta no Mercado de Carne

Francisco Bolonha, durante o Arte Pará 2005. Considerei a contemporaneidade

da obra e a relação que a mesma estabeleceu com os trabalhadores,

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freqüentadores e turistas, entendendo o mercado de carne enquanto espaço

relacional habitante-artista e turista.

Depois das pesquisas realizadas, o contato que tive com Armando se

ampliou. Em 2009, ao conversar com o artista, soube que ele havia recebido

um dos mais significativos prêmios de artes visuais do Brasil: o Prêmio CNI

SESI Artes Plásticas 2009/2010 Marcantonio Vilaça1. O conhecimento deste

fato despertou-me o interesse em realizar a pesquisa para o mestrado.

Assim, revendo as pesquisas anteriores, e os percursos percorridos,

busquei compreender com maior profundidade como se fundamentou o

processo de criação das obras de Queiroz na construção dos territórios

delimitados na exposição desenvolvida para o Prêmio Marcantonio Vilaça. De

início, procurei analisar o processo de criação das obras elaboradas para o

prêmio. Ao todo, o artista desenvolveu treze trabalhos e destes somente nove

fizeram parte da exposição. Decidi, então, analisar os trabalhos destinados à

mostra e me concentrar nos territórios expositivos nos quais as nove obras

seriam apresentadas. A intenção era iniciar uma pesquisa que tornasse mais

nítido como se estabeleceu o processo de criação das obras e os mecanismos

de construção dos dois territórios que fariam parte da exposição. Visava

perceber que relações estariam explicitas no contexto histórico que o artista

pesquisou para a elaboração destes trabalhos.

Os procedimentos acima adotados poderiam fazer-me entender como

as obras seriam feitas, seus mecanismos de criação e como elas

estabeleceriam relações com o contexto histórico amazônico. Estes foram

alguns dos questionamentos que serviram de eixo condutor para a pesquisa. A

problemática deste trabalho buscou entender quais contextos histórico-sociais

influenciaram as reflexões presentes no processo criativo das obras

desenvolvidas por Armando Queiroz ao Prêmio Marcantonio Vilaça.

Desta forma, pode-se afirmar que o objetivo deste trabalho foi analisar

as nove obras presentes nos dois territórios construídos para abrigá-las,

evidenciando como se estabeleceu a relação destas com o contexto histórico-

social da Amazônia. Neste processo relacional, buscou-se investigar que

1 Informações sobre este prêmio estarão evidenciadas na seção um desta dissertação.

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memórias são estas levantadas pelo artista? A qual contexto elas fazem parte?

Que territórios são marcados na exposição? Que atores sociais estiveram

envolvidos na construção destas poéticas visuais?

Iniciei em abril de 2009 o processo de coletas de dados,

acompanhando o artista com observações sistemáticas, roteiros previamente

elaborados, além do uso de notas de campo, fotografias, filmagens e

gravações de depoimentos. Em todos os depoimentos respeitou-se o ponto de

vista do entrevistado e a análise dos dados obtidos foi realizada visando o

entendimento e reflexões sobre a temática escolhida. Contei ainda, com um

caderno de acompanhamento do desenvolvimento da pesquisa, no qual se

encontra registrado os passos que foram tomados durante todo o processo de

execução deste estudo.

Foi possível conhecer também os atores sociais que o artista entrou

em contato e que auxiliaram na realização das obras. Realizei o total de três

viagens, duas a Abaetetuba e uma a Santa Izabel, além de visitas ao mercado

de Carne do Ver-o-Peso em Belém. Tais roteiros foram necessários para

acompanhar o processo de criação de alguns trabalhos desenvolvidos pelo

artista para o prêmio.

Na ação de pesquisa, primeiramente entrevistei e acompanhei

Armando Queiroz no processo de criação das obras, percebendo os trabalhos

que estavam sendo construídos, revistos e selecionados pelo artista para a

exposição do prêmio. Foi possível identificar também o contexto histórico que

as obras estavam inseridas. Concomitante as isto fui realizando a leitura de

textos e produção de artigos. Ao todo foram realizadas seis entrevistas2 e sete

visitas a campo.

A metodologia da pesquisa em artes visuais dentro do processo de

construção dos trabalhos de um artista, não pressupõe a aplicação de um

método estabelecido a princípio, requer uma postura diferenciada. O

pesquisador caminha juntamente com as ações do processo de criação que o

artista está desenvolvendo. 2 Em relação as entrevistas deve-se considerar que além das seis realizadas durante o mestrado, na

construção deste texto também foram utilizadas entrevistas das pesquisas anteriores que desenvolvi sobre Armando Queiroz durante minhas graduações.

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Segundo Sandra Rey (2002), o processo de criação perpassa por três

dimensões de pesquisa no campo das artes visuais: a primeira se apresenta

abstrata, está presente no campo do pensamento e dos esboços a serem

realizados pelo artista, que poderão ou não serem concretizados como obra. A

segunda se organiza na prática onde estão presentes os mecanismos a serem

desenvolvidos enquanto técnicas, e relações com as interfaces e tecnologias. E

a terceira dimensão equivale à identificação da obra em processo, conectando-

se ao conhecimento.

Neste percurso Salles (2000, p.19) nos mostra que “a criação artística

é marcada por sua dinamicidade que nos põe, portanto, em contato com um

ambiente que se caracteriza pela flexibilidade, não fixidez, mobilidade e não

plasticidade”. Porém isso não impede que haja elaborações prévias de alguns

procedimentos a serem desenvolvidos.

Dentro destes aspectos, a pesquisa realizada tem caráter qualitativo,

adotando os seguintes procedimentos metodológicos: Estudo de Caso, Método

Bibliográfico e a Crítica Genética. Considerou-se que o estudo de caso “[...]

investiga um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto de vida real

[...]” (YIN, 2001, p. 32), e este método foi utilizado devido ao estudo específico

de um artista e das obras que foram desenvolvidas para a exposição do Prêmio

Marcantonio Vilaça. Trata-se de um fenômeno artístico contemporâneo no qual

o artista lança mão de procedimentos e categorias da arte atualmente

adotadas, como a apropriação, o vídeoarte, o objeto e a instalação. Este

método foi importante para investigar como ocorreu o processo de negociação

e criação do artista com os trabalhadores em Belém, Santa Izabel, Serra

Pelada (Curionópolis) e Abaetetuba. Mostrou-se igualmente importante na

compreensão do contexto histórico no qual as obras foram desenvolvidas.

Dando continuidade a metodologia utilizada, cito ainda o Método

Bibliográfico o qual se fundamentou nos conhecimentos de biblioteconomia,

documentação e bibliografia de apoio, tendo acesso às referências que

aprofundaram o conhecimento sobre processo de criação, arte contemporânea,

estética relacional, território, identidade, memória, conflitos e rituais na

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Amazônia. Este método auxiliou ainda no levantamento de dados obtidos em

publicações impressas, sites e textos curatoriais.

A Crítica Genética surgiu com a intenção de compreender o processo

de criação, através dos percursos realizados pelo próprio artista para a

efetivação de sua obra. Ela se baseia “nos critérios que regem as opções com

as quais o artista vai se defrontando ao longo do seu processo de criação”.

(SALLES, 2000, p. 30). Vale a pena ressaltar que este método fez parte da

análise de documentos desenvolvidos pelo artista ao longo do seu processo de

criação, identificando o movimento das ações como rede relacional, ou como

rede de conexões. Esta se caracteriza pela:

[...] simultaneidade de ações, ausência de hierarquia, não linearidade e intenso estabelecimento de nexos. Este conceito reforça a conectividade e a proliferação de conexões, associadas ao desenvolvimento do pensamento em criação e ao modo como o artista se relaciona com seu entorno. (SALLES, 2000, p. 17-18).

Nesta rede de conexões, busquei o acompanhamento teórico-crítico

do processo de criação dos trabalhos inseridos nos territórios expositivos

desenvolvidos para o prêmio Marcantonio Vilaça, compostos pelas obras: Mar

Dulce Barroco, 252, documentos, Espada Cabana, A Resposta do Pajé, Ouro

de Tolo, Pilatos, Ymá Nhandehetama e Midas, tomando como procedimento a

análise de documentos autógrafos3. Ao conviver com as particularidades

destas obras, pude compreender as opções e enfrentamentos do artista diante

da realização de suas poéticas.

Em relação aos autores que foram de fundamental importância para a

construção desta dissertação, destacam-se: Cauquelin (2005) e Farias (2002)

que analisam diferentes pontos de vista acerca da arte contemporânea. Harvey

(2003), Jameson (2000) e Giddens (1991) que contribuem com as diferentes

concepções sobre a pós-modernidade. Foram igualmente importantes: Salles

(2000) e Rey (2002) no conhecimento a respeito de metodologias no processo

de criação artística. Wood (2002) possibilitou um melhor entendimento sobre a

arte conceitual. A concepção de identidade foi possível graças a Hall (2001) e a

compreensão de memória deve-se aos discursos de Portelli (1997) e Diehl

3 Documentos vindos do próprio artista.

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(2002). Haesbaert (2004) auxiliou no entendimento dos conceitos acerca de

território e multiterritorialidade.

Desta forma, esta dissertação de mestrado é formada por duas

seções. Na primeira encontram-se informações a respeito da formação artística

de Armando Queiroz. Analisa-se o contexto em que sua arte está inserida e os

conceitos que regem sua obra, observando-se, ainda, as relações e referências

de outros artistas contemporâneos, linguagens e movimentos artísticos na

constituição de sua poética visual. Expõe-se a inserção do artista no Prêmio

Marcantonio Vilaça, revela-se o processo de criação e a importância do diálogo

curatorial; o encaminhamento e desenvolvimento dos trabalhos nos anos de

2009 a 2010; Considera-se também as relações criadas entre os atores sociais

e o artista para a concretização das obras, fazendo referência às negociações

que tornaram possível a realização de suas poéticas

A seção seguinte revela as obras escolhidas para o circuito expositivo

e sua distribuição no espaço da exposição, constituindo territórios simbólicos,

os quais são refletidos, seguindo uma perspectiva cultural; analisa-se o

processo de pesquisa desenvolvido pelo artista para a execução de seus

trabalhos; o contexto histórico dos elementos expostos e possíveis reflexões

sobre os mesmos, observando de que forma o artista se relacionou com o

espaço e com os atores sociais que fizeram parte de seu processo artístico.

Ao final encontram-se as considerações finais acerca do

desenvolvimento da pesquisa, levantando os dados mais significativos

observados e formando uma nova possibilidade de análise e discussão sobre a

arte contemporânea e o processo de criação de Armando Queiroz para o

Prêmio Marcantonio Vilaça, percebendo a importância dos critérios adotados

em diálogo com o curador Paulo Herkenhoff para a abordagem de um contexto

que constrói territórios expositivos que cruzam o passado, presente e futuro da

memória presente na história social da Cabanagem, dos conflitos agrários,

auríferos e indígenas, e dos ritos amazônicos.

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1 O ARTISTA E SEU PERCURSO

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1.1 O Artista

Armando Queiroz nasceu em Belém do Pará no ano de 1968 e expõe

desde 1993, quando participou com seu primeiro trabalho no II Salão Paraense

de Arte Contemporânea. Porém o envolvimento do artista com o universo das

artes visuais não se deu em um único momento, desde sua infância os fatos

que aconteciam em sua volta o inquietavam bastante.

As vivências experimentadas naquele período foram norteando este

caminho. O contato com a fazenda de seus pais, localizada na beira do Rio

Araguaia no Amapá, intensificou a prática do desenho. Ao conversar com os

trabalhadores da região, ampliou seu contato com o mundo a partir de histórias

por eles contadas. A questão com a visualidade foi pontuada também pela

relação de respeito que construía com estes sujeitos. Além disso, os

ensinamentos de seu tio, o arquiteto Renato Sidrin, fez Queiroz um dia pensar

em seguir esta profissão. Por meio de maquetes e desenhos de casas,

ilustradas pelo tio, Armando aprendeu a estrutura tridimensional do desenho

presente na técnica da perspectiva.

Mas o princípio de todo contato com o desenho, Armando revela que

nasceu da relação que teve com a mãe. Quando criança envolvia-se com as

histórias contadas pela mãe, o artista acredita que talvez ela nem percebesse o

quanto o alimentava em imaginação e criatividade. Deitados na cama, a mãe

narrava ao filho algumas histórias e as desenhava com caneta hidrográfica

sobre folhas de papel para carta. Com o passar do tempo as histórias, antes

desenhadas pela mãe, passaram a ser desenhadas pelo filho. Armando conta

o quanto esta lembrança traduziu a visualidade de novas histórias:

[...] eu acho que talvez o cerne de tudo isso, a raiz de tudo isso esteja nesse contato, nesta possibilidade de estar traduzindo visualmente uma história, de estar desenvolvendo essa capacidade de construção visual de uma lembrança, ou de um conto de alguma coisa, então

isso para mim foi muito especial.4

4 Armando Queiroz em entrevista a autora no Museu de Arte Sacra no dia 24 de novembro de 2010.

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Em 1989 a história permeia sua vida a partir de um novo contexto.

Queiroz ingressa na academia através do curso de História5, onde pôde

acumular novas informações que o fizeram refletir sobre a condição de estar no

mundo, de se relacionar com o que encontrava a sua volta. Nesse momento

passa a compreender que as artes visuais eram um meio que lhe possibilitava

expressar-se através da visualidade, já que desde cedo, a reflexão da

“realidade” o instigava. Dentro deste contexto, Silva (2010) dialoga com as

artes visuais caracterizando-a como um dispositivo de reflexões e

aprimoramentos de identificações onde:

[...] moldes, identitários, sempre foram e continuam sendo produzidos. Se o homem atua em sua constante interpretação do mundo, esse processo de leitura é guiado por uma gramática das formas que é, em grande parte, gerada pelas artes. (SILVA, 2010, p. 8).

Para o autor, a arte gera um processo de constante interpretação do

mundo, revelando identidades de sujeitos, culturas e lugares. A partir do

momento em que Armando Queiroz percebeu que podia trazer tais memórias

para o universo artístico, naturalmente as artes visuais alojaram-se em sua

vida.

O universo das memórias que Armando trazia, fez gerar possibilidades

de estudos de memórias sociais em seu campo artístico, “o estudo da memória

social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da

história, relativamente aos quais a memória está ora em retraimento, ora em

transbordamento” (LE GOFF, 2003, p. 422). Assim a memória “cresce na

história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado, para servir ao

presente e ao futuro” (LE GOFF, 2003, p. 471).

Na perspectiva de que era possível ordenar este acervo de memórias

em obras de arte, Armando Queiroz começa a desenvolver poéticas visuais no

cenário da arte contemporânea paraense a partir de histórias que sugerem

memórias afetivas, políticas, econômicas e sociais, memórias que costuram o

5 Armando Queiroz iniciou em 1989 o Curso de História na Universidade Federal do Pará (UFPA),

freqüentando regularmente até 1993. Depois trancou o curso. Em 2010 iniciou a graduação no curso de Artes Visuais na Faculdade de Artes da Universidade Federal do Pará, o qual se encontra em desenvolvimento.

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passado e presente de uma época, de um lugar, obras como instrumento de

identidade de sujeitos, de um local ou de uma cultura.

Neste percurso, entre os trabalhos que marcaram sua trajetória

individual se destacam as exposições: Identidade Interior (1995), sua primeira

mostra individual, realizada na Galeria Theodoro Braga (PA); Sermões (1997)

na Galeria de Arte da UNAMA (PA) e a exposição do Projeto Macunaíma

(1997) na Galeria Macunaíma (RJ). As mais recentes: Objetos (2001) na

Galeria Sandra Rezende – Vitória (ES); Confluências (2002) na Galeria

Theodoro Braga – CENTUR (PA) e ANIMA (2003) no Museu Histórico do

Estado do Pará – MHEP (PA). Além disso, no XIX Arte Pará foi o artista

homenageado, sobre curadoria de Marisa Mokarzel, com um conjunto de salas

especiais no Museu Histórico do Estado do Pará, denominada Cântico Guarani,

no Museu da Universidade Federal do Pará com a ação e o vídeo

Desassossego e no Museu Paraense Emilio Goeldi com o vídeo Ymá

Nhandehetama que fez parte do circuito expositivo do Prêmio Marcantonio

Vilaça.

Desta forma, o artista vem conquistando várias premiações. Dentre

elas o “Prêmio Espaço” (XIX Arte Pará, “Operai dell‟arte e della Vita”, Belém,

2000), promovido pela Fundação Rômulo Maiorana (PA), o “Prêmio Especial

Graça Landeira” (IX Salão de Pequenos Formatos, Belém, 2003), “Grande

Prêmio” (I Salão UniversidArte da Faculdade do Pará, Belém, 2004), “Prêmio

Aquisitivo” (XIII Salão Unama de Pequenos Formatos, Belém, 2007), e o

Prêmio Marcantonio Vilaça Artes Plásticas 2009-2010 concedido pela

Confederação Nacional da Indústria (CNI) e Serviço Social da indústria (SESI).

Além destes prêmios, o artista desenvolveu uma série de exposições

coletivas e em 2003 foi bolsista do Instituto de Artes do Pará - IAP, com o

projeto Possibilidades do Miriti como Elemento Plástico Contemporâneo. Em

2007 desenvolveu outra bolsa de pesquisa no mesmo Instituto: Estudos em

videoarte: o corpo como intermediador entre a vida e a arte. Vale ressaltar

ainda que o artista é profissional no Sistema Integrado de Museus em Belém

desde o ano de 2002, onde trabalha com curadoria e montagens de

exposições. Foi juri de seleção e premiação do XVII Salão Unama de

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Pequenos Formatos, e tem contribuido com a produção do cinema paraense,

na maioria das vezes como diretor de arte, ampliando ainda mais sua relação

com as artes visuais.

Queiroz chama à atenção para o fato de que antes de exibir seus

trabalhos publicamente não se via como artista, e confessa que até hoje tem

dificuldade de lidar com o que se constrói em torno da imagem do artista,

conta:

[...] eu nunca consegui lidar bem com essa coisa de ser artista, e não estou falando isso por falar. Isso já se dá durante a minha trajetória, de querer estar muito mais envolvido com a vida do que criar um status de ser artista, que acaba dificultando a minha relação com a vida e com a realidade, acho que sempre foi minha questão de como eu poderia estar lidando com isso e não criando essas barreiras, essas limitações. Não que eu queira me eximir de responsabilidades, pelo contrário, da questão de ser o propositor, disso eu não me desvio, lógico que tem o interesse de provocar situações, mas eu fico muito orgulhoso, de coração, quando o trabalho ele sobrepõe a figura do artista, quando a obra é mais importante do que o artista, e eu fico muito feliz quando eu alcanço algo dentro da minha trajetória e que ela vai a partir do trabalho, sendo construída a partir do momento em que o trabalho vai à frente, isso para mim é muito importante e eu acho que não pode ser de outra forma. Eu sempre tive dificuldade em como lidar com esta questão de ser o meu agente, eu não consigo ser o meu agente, eu acho também que tem isso, de você ter capacidade artística expressiva, mas eu acho que necessariamente na construção dessa figura do artista, você precisa muito bem saber administrar você mesmo, saber muito bem ser interessante para as coisas que giram em torno da arte. E eu tenho dificuldade com isso, eu não consigo ser o meu agente, eu não consigo me promover por mim mesmo. Não sei, acho que isso é da minha natureza, às vezes até me chamam atenção puxando minha orelha, mas às vezes eu acho assim, que é uma questão de respeito pelo que eu faço, acho que a obra é fundamental, eu tenho respeito por aquilo que eu

desenvolvo6.

Em seu depoimento, Queiroz deixa claro que por mais que tenha

dificuldades em ser visto como a figura do artista, não abre mão de ser

reconhecido como um propositor. A questão de ser um propositor pode ser

exemplificada na reflexão da arte desenvolvida no final da década de 1960,

pelo artista brasileiro Hélio Oiticica. Em seus trabalhos, Hélio não mais

enxergava o público como espectador da obra de arte, mas como participador.

Dentro desta concepção, para a obra existir era necessário propor a

participação do público, como nas obras Parangolés (1964) e Penetráveis

6 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 24 de Setembro de 2010.

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(1967). Dissolve-se a autoria de se ter o artista que cria a obra isoladamente,

Hélio propõe ações artísticas que se constroem a partir da imersão do público.

Esta imersão do público é vista nos trabalho de Queiroz no momento

em que o artista passa a ser um propositor que negocia seus trabalhos a partir

do envolvimento de atores sociais em suas poéticas. Muitos trabalhos de

Queiroz só são concretizados a partir da interação destes agentes, que se

tornam participadores da comunhão de novas histórias e na formulação de

novos trabalhos.

O desenvolvimento de seus trabalhos perpassa por uma relação de

negociação que prima pelo respeito aos atores sociais envolvidos em suas

obras. Este respeito confirma-se quando Armando, tem plena consciência de

que as pessoas não são descartadas mais sim integradas ao processo de

criação de suas poéticas.

Apesar de sua resistência, em ser conhecido como artista, torna-se

impossível identificar Armando sem a sua inclusão nesta categoria. Trata-se de

fato de um artista propositor contemporâneo, que se relaciona com as questões

de um tempo presente, passado e/ou futuro, interpretando histórias e

transformando-as em arte, muitas vezes construídas em conjunto com a

própria sociedade.

1.2 Armando Queiroz e a Arte Contemporânea

Para entender o contexto da arte contemporânea é importante nos

determos em dois momentos presentes na história da arte: o Renascimento e o

Modernismo. O Renascimento atingiu as camadas urbanas da Europa

Ocidental entre os séculos XIV e XVI, neste período a arte passa a ser vista e

situada através de uma cronologia temporal, onde a pré-história seria o inicio

dos registros humanos como elemento artístico. As bases do Renascimento

enfocam uma corrente filosófica reinante: o humanismo. O homem passou a

dar importância a si mesmo como indivíduo, a natureza passou a ser vista com

mais detalhes, e os olhos da ciência passou a pesquisar como a natureza

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funcionava. A arte deveria seguir princípios que a encaminhassem para a

perfeição da forma e o racionalismo.

A arte moderna rompe com os princípios artísticos renascentistas.

Propõe desenvolver uma arte inovadora, longe dos princípios estéticos que

marcaram o Renascimento. O passado é desconsiderado e ações inéditas são

priorizadas.

A presença da arte moderna e sua proximidade com o tempo atual, faz

com que a confundamos com a arte contemporânea. Esta proximidade muitas

vezes dificulta o entendimento e a importância de cada movimento. O olhar

para o inédito, tão presente na modernidade, talvez seja o motivo, segundo

Cauquelin (2005), de não enxergarmos a arte contemporânea tal como ela é,

por estar próxima demais do nosso tempo, a arte contemporânea “desempenha

o papel do „novo‟, e nós temos a propensão de querer nela incluir à força as

manifestações atuais” (CAUQUELIN, 2005, p.19).

A arte contemporânea não é um campo especializado como foi a arte moderna. Centradas na busca de uma arte autônoma em relação ao universo temático, particularmente aquele do naturalismo acadêmico, as primeiras safras de artistas modernos pretendiam proteger o campo da arte das infiltrações de elementos literários ou narrativos. (COCCHIARALE, 2007, p.15)

Deste modo, a arte contemporânea carrega em sí, o fim da carga

purista presente no modernismo, segue um hibridismo de linguagens, épocas e

ações, estabelecendo relações dialógicas com outras obras já produzidas e

com contextos históricos diferentes.

O entendimento da arte contemporânea não deve ser marcado

cronologicamente, pois há o fim da narrativa temporal que existia nos

movimentos artísticos anteriores. Porém, autores como Farias (2002) procuram

estabelecer uma cronologia para o contemporâneo. O autor revela que a partir

da crise do movimento modernista, iniciada em 1950, é que surge a arte

contemporânea. Para o autor:

A arte contemporânea nasce como resposta ao esgotamento desse ensimesmamento da arte, com as modalidades canônicas – pintura e escultura – explorando-se, investigando suas naturezas até o avesso. Entre os índices [...] desse esgotamento, figuram desde o retorno de

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questões e fórmulas antes vistas como ultrapassadas – a pintura e a escultura figurativas, de conteúdo político, mitológico, etc. – até o florescimento de expressões hibridas, quando não inteiramente novas, como obras que oscilam entre a pintura e escultura, os happenings e as performances; as obras que exigiam a participação do público; as instalações, a arte ambiental, etc. (FARIAS, 2002, pp. 15-16).

Algumas obras que antecedem a década de 1950 já possuem

características do que se diz hoje ser a arte contemporânea. Vale à pena

lembrar também que nem tudo que hoje está sendo realizado no campo das

artes pode ser definido como contemporâneo. A efemeridade e a amplitude do

universo conceitual e técnico da arte contemporânea, desestabilizam artistas,

educadores, curadores, críticos e o público. Por estar dentro de um sistema

complexo a arte contemporânea provoca:

[...] estranhamento, desconforto e perplexidade em que solicita e/ou no contexto/espaço-tempo em que acontece. Nesse sentido, a produção artística contemporânea recusa categorias fixas, fechadas e autônomas, solicitando uma reflexibilidade, uma multiplicidade de experiências e procedimentos que se interceptam num hibridismo formal conceitual. (LAMAS, 2007, p.76)

Segundo Cattani (2007) a arte contemporânea acompanha moventes

misturas de elementos culturais, de linguagens que tornam a obra propícia às

hibridações e mestiçagens. Aqui a mestiçagem insere-se na ordem do

heterogêneo, por não fundir os diversos elementos, e por acolhê-los em sua

permanente diversidade.

A arte contemporânea por definição é uma arte em processo, que não

se limita em reproduzir os fatos que a influenciam. Para Vergara (1996),

através da arte contemporânea “os artistas se transformaram em produtores de

expressão cultural, cuja esfera de interferência é cada vez mais ampla”

(VERGARA, 1996, p. 1). No Brasil a arte contemporânea vem sendo esboçada

através de uma produção que depende das “sendas abertas pelos artistas que

vieram anteriormente e que transpuseram os modelos da arte européia”

(FARIAS, 2002, pp. 16-17). Segundo o autor muitos trabalhos artísticos

desenvolvidos na passagem dos anos 1970 a 1990, possuem características

contemporâneas em seus esboços.

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Nos anos 1970, a produção da arte expandiu o objeto artístico, seja

pela apropriação de coisas e imagens do cotidiano, seja por produções mais

complexas conceitualmente. A arte deste período apostou em uma relação

mais intima com o público, preocupando-se em criticar a intensa urbanização

do país, além de querer coletivizar a liberdade de expressão apagada durante

a ditadura militar.

Foi em nome disso que as obras abertas a manipulação chegaram aos museus e galerias junto com a busca de lugares alternativos e de outros materiais e suportes expressivos: um fluxo de novidades que punham em xeque a natureza e o papel da arte, de seu circuito, do aparato institucional que a legitimava e a veiculava. (FARIAS, 2002, p.18).

Os artistas que surgiram em 1980 retomaram a pintura como

linguagem visual, muitas vezes utilizando referências pictóricas de outro

período, acompanhando, assim, o retorno ao passado proposto pelo pós-

modernismo.

Em relação ao termo pós-modernismo, é interessante evidenciar que o

mesmo, não possui uma definição precisa, é descrito de diferentes formas por

diversos autores. Para Harvey (2003) representa alguma espécie de reação ou

afastamento do “modernismo”, para Jameson (2000), o pós-modernismo é

mais um estágio do modernismo, classificando-o como alto modernismo, pois

identifica que algumas característica do pós-modernismo já podem ser

detectadas no modernismo. Giddens (1991) contextualiza o termo revelando

que:

[...] no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder o que está nos levando para além da própria modernidade. Uma estonteante variedade de termos tem sido sugerida para esta transição, alguns dos quais se referem positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social (tal como a “sociedade de informação” ou a “sociedade de consumo”), mas cuja a maioria sugere que, mas do que um estado de coisas precedentes, está chegando a um encerramento (“pós- modernidade”, “pós-modernismo”, “sociedade pós- industrial”, e assim por diante). (GIDDENS, 1991, p.11).

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Mediante os termos acima citados, a produção estética atual está

integrada ao cultivo das mercadorias em geral, que visam em um tempo mais

intenso à inovação estética e ao experimentalismo.

Os artistas dos anos 1990 desenvolveram seu processo artístico a

partir de poéticas compostas por referências históricas e pessoais, de paródias

ao universo artístico, de críticas a autonomia da arte. Os artistas

contemporâneos interpretam e desenvolvem seus trabalhos a partir de ideias e

conceitos, de referências provenientes da história da arte, do contexto em que

vivem, da relação com os lugares e da utilização de diversos materiais. Este

conjunto de procedimentos forma o patrimônio de cada artista, dotando de

significados a produção de suas obras.

Armando Queiroz defende que a inserção de seus trabalhos na

contemporaneidade foi algo que nunca buscou, apesar de ter conhecimento

sobre como se processa esta arte, considerar fundamental visitar exposições e

perceber o trabalho de outros artistas. Na verdade, Queiroz nunca procurou ser

contemporâneo. Avalia que esta é uma condição que não se deve buscar, pois

ao se procurar indiscriminadamente inserir-se na contemporaneidade acaba-se

criando uma fórmula de caminhos já traçados. Como afirma em entrevista a

autora: “[...] buscar ser contemporâneo, saber que você está na

contemporaneidade não é o mais importante de tudo”7. Porém, mesmo sem

adotar esta atitude premeditada de inserção na arte contemporânea, sua

produção está inserida neste contexto.

A contemporaneidade, ao mesmo tempo em que estabelece princípios

artísticos que se tornam padrões, fornece uma ampla liberdade de linguagens e

expressões. Pode-se perceber na produção artística de Armando Queiroz

referências que não provêm apenas de um único movimento ou linguagem

artística. O artista dialoga com várias linguagens e a cada momento, vai

associando o seu trabalho com um determinado contexto. Entre as linguagens

que utiliza em seus trabalhos destacam-se os objetos, instalações, a arte

pública e os vídeoartes.

7 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 05 de março de 2007.

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Desde o inicio de sua produção Armando tem uma relação direta com

obras que trazem à tona objetos encontrados em seu dia a dia, em lojas de

brincabraques. Estes objetos evocam um contexto simbólico próprio, são

achados ou não casualmente, recolhidos e levados ao seu ateliê, como mostra

a imagem abaixo. Assim, miniaturas de bonecos, fotogramas antigos, e demais

objetos recolhidos no cotidiano do artista são tocados pelo artista, repensados

e introduzidos em um novo contexto histórico onde serão articulados como

poéticas visuais.

Imagem 01: Armando Queiroz em seu ateliê. Fonte: DVD Rios de Terras e Águas: navegar é preciso, 2010.

Quando Queiroz desloca estes objetos para um espaço expositivo,

exerce o ato da apropriação. A ideia de apropriação parte do princípio de que o

artista utiliza na construção de seus trabalhos artísticos elementos que fazem

parte de seu cotidiano: sejam estes objetos, imagens, ideias. Trata-se de algo

que é retirado do seu contexto usual passando a ter um novo significado

quando é transferido para o campo da arte.

No inicio de sua carreira, quando se apropria dos objetos encontrados

em muitas lojas de bricabraque, Armando Queiroz interferia diretamente nestes

aplicando novas cores, pintando, transformando, unindo-os a outros objetos.

Mas, atualmente, em muito dos seus trabalhos quase não há nenhuma

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interferência, todavia isso não o impede de novamente intervir no objeto

quando considerar conveniente.

Segundo Chiarelli (2002, p. 21), “os termo „apropriação‟ e

„apropriacionismo‟ surgiram como indicativos de mais uma modalidade artística

no fim dos anos 70”. Através destes termos buscou-se sintetizar como os

artistas estavam desenvolvendo seus trabalhos, tendo como foco as

modificações que ocorriam na sociedade devido à proliferação dos meios de

comunicação de massa. O uso do termo está relacionado ao momento histórico

posterior às rupturas modernistas. Para Chiarelli:

Apropriar-se não significa, em princípio, apropriar-se de apenas um ou dois objetos ou imagens de uma mesma natureza, ou com uma ou várias características em comuns. Apropriar-se é matar simbolicamente o objeto ou a imagem, é retirá-lo do fluxo da vida – aquele contínuo devir, que vai da concepção/ produção até a destruição/ morte -, colocando-os lado a lado a outros objetos, com intuitos mais diversos. (CHIARELLI, 2002, p. 21).

Vale mencionar ainda que a apropriação também se encontra

relacionada à prática do colecionismo, quando o artista passa a ter a atitude de

colecionar objetos e imagens para construir sua obra. Tanto a apropriação

quanto o colecionismo desestruturam o conceito da arte modernista relativo à

originalidade e à autoria.

A apropriação se intensificou com o readymade criado por Duchamp8.

Em 1913 realizou a obra Roda de Bicicleta, a partir de objetos industriais já

prontos. Seu readymade mais polêmico foi um urinol de louça o qual

denominou de Fonte (1914). Retirando do fluxo da vida, objetos como

bicicletas, bancos e urinol, Duchamp os re-significou e atribuiu a estes novos

conceitos e significados. Com o readymade a linguagem artística estabelece

uma nova relação com o público, fazendo-o refletir que um objeto utilizado no

cotidiano pode ser deslocado de seu contexto usual e assumir um valor

artístico quando ressignificado, instigando uma nova interpretação do mundo,

possibilitando uma diferente postura diante dos objetos que antes tinham

função apenas utilitária.

8 O artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) foi uma das figuras mais influentes da arte moderna.

Além de participar do dadaísmo e surrealismo, inspirou diversos outros movimentos, da pop arte ao conceitualismo.

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Muitos artistas passaram a utilizar o readymade como uma prática,

como um processo que fazia uso da apropriação. A apropriação passou a se

apresentar, então, como um conceito importante para a reflexão sobre as

práticas artísticas do século XX. Tal prática revisa as significações já atribuídas

às obras da história da arte e conferem uma maior complexidade aos discursos

da arte contemporânea.

Armando Queiroz é um dos artistas que exemplifica este contexto em

alguns de seus trabalhos. Baseado na obra Roda de Bicicleta de Duchamp

(1913), Queiroz realiza a obra Sacralização do Dessacralizado (1993),

apresentada no XII Arte Pará.

Nesta obra o artista faz uma citação direta a obra de Duchamp. O

banco é trazido de uma esfera popular, assim como o aro da bicicleta, atrás

dele o recorte de uma parede de madeira lembra a casa ribeirinha, da periferia,

que carrega consigo uma espécie de altar. O “santinho” deste “altar” é a xerox

da Roda de Bicicleta de Duchamp, que como em um oratório recebe uma luz

Imagem 03: A Sacralização do Dessacralizado. Armando Queroz (1993). Fonte: Catálago O Fio da Ameaça - Armando Queiroz. Arte Pará 2011.

Imagem 02: Roda de Bicicleta. Marcel Duchamp (1913). Fonte: artemodernafavufg.blogspot.com.

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acesa para oração. Por meio desta obra a Roda de Bicicleta é ressignicada a

partir de um contexto amazônico. Nas palavras de Paulo Herkenhoff (2011):

Estavam ali justapostas referencias ao debate sobre a visualidade amazônica é a imagem de uma obra chave do grande vértice da arte do século XX canibalizada pelo vernáculo caboclo, oriundo de um lugar na estrutura de classes sem conceito de arte, mas regido por uma norma de gosto inscrita no artesanato e na arquitetura. [...] Sobretudo, a obra se propõe como um campo de tensões e politização do signo visual. O irônico paradoxo proposto por Queiroz é “ressacralizar” Duchamp para dessacralizar certezas. É seu modo invertido de ser duchampiano. No Pará cabem Duchamp e a estética cabocla como maneira povera de dar forma ao imaginário. (HERKENHOFF, 2011, p. 4).

Percebe-se que a obra é ressignificada em uma formalidade

duchampiana com um conceito estético amazônico. Queiroz defende as

questões formais em seus trabalhos como algo de grande importância, porém,

acredita que deve haver um equilíbrio entre o formalismo do trabalho e a

compreensão do mesmo através de outros elementos que fornecem conteúdo

à obra. Porém o artista não deixa de desenvolver as questões sobre a forma

em alguns trabalhos, por ter um interesse muito grande em sintetizar a obra

com elementos visuais que não ocasionem excessos.

[...] tenho uma necessidade muito grande de que algo vá além do resultado formal, eu acho que deve haver um equilíbrio, os trabalhos tem que ter um apelo visual, é uma coisa que deve ser buscada. O que eu acho temeroso, no meu caso, no que eu desenvolvo, é que tu vivas apenas nisso de conseguires um resultado formal interessante, mas que tu não tenhas algo de substancioso, que tu tenhas uma força de que isso esteja muito bem compreendido e maturado por outros elementos que são elementos exteriores que na verdade estão dialogando com a obra. Então é quase a necessidade de que aquela obra, aquele objeto ele pertença a um significado, pertença a uma relação que é exterior a ela e que seja complementar. Eu sinto essa necessidade de que o trabalho seja um elemento que dialogue com outras questões que não é só o seu resultado formal e [...] acho que desde o inicio a questão formal sempre me acompanhou, porque á algo inerente ao fazer plástico, você ter uma preocupação com essa visualidade, como você vai estruturar o trabalho, mas eu nunca quis

que fosse somente isso, acho que essa é a questão.9

O interessante é perceber que o artista não quer que somente as

questões formais sejam o foco principal do seu trabalho, mas que haja uma

completude entre o conceito e a forma. Seus trabalhos mantêm

9 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 25 de Maio de 2007.

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fundamentalmente uma relação com a arte contemporânea, principalmente a

conceitual. O objeto “em cena” já não é fundamental, a ideia é a obra.

O primeiro uso do termo “arte conceito”, segundo Wood (2002), surgiu

no texto do escritor e músico Henry Flynt, em 1961. Nesse texto, o artista

defende que a matéria da arte são os conceitos e por isso ela estaria vinculada

à linguagem. O mais importante para a arte conceitual são as ideias, a

execução da obra fica em segundo plano. Além disso, caso o projeto

artístico venha a ser realizado, não há exigência de que a obra seja construída

pelas mãos do artista. Ele pode muitas vezes delegar o trabalho físico a

uma pessoa que tenha habilidade técnica específica.

Assim, o que importa é a invenção da obra, o conceito, que é

elaborado antes de sua materialização. Quando escreveu este texto, Henry

Flynt fazia referencia ao Grupo Fluxus, nascido no Festival Internacional de

Música Nova, em Wiesbaden, Alemanha. O termo, originalmente criado para

dar título a uma publicação de arte de vanguarda, passa a caracterizar uma

série de performances organizadas pelo artista George Maciunas na Europa,

entre 1961 e 1963. O grupo reunia uma mistura de crítica e de humor

extravagante através da pintura, da música e da arte performática.

A arte conceitual cresce em um espaço criado pela Vanguarda,

estruturado por uma crítica às ideias modernistas relativas à estética e às

reivindicações de autonomia da arte. O surgimento da arte conceitual deu-se

por volta de 1968, levando em consideração o pensamento artistico de Marcel

Duchamp e tendo como representante Joseph Kossuth. A arte conceitual

acredita em processos mentais, os quais nem sempre conduzem à

materialização da obra de arte, além disso, defende que o simples

deslocamento dos objetos de seu contexto habitual pode provocar uma ação

reflexiva de interpretação do mundo.

[...] não é simplesmente um sistema independente de significação. Ela é, na verdade, uma prática social e a gama de possíveis significados, a sua disposição em qualquer tempo ou período é circunscrita por um contexto histórico”. (WOOD, 2002, p. 15).

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Percebe-se, sem dúvida, uma afinidade dos trabalhos de Queiroz com

a arte conceitual, na maioria das vezes, para executar seus projetos no

processo de criação de seus trabalhos, recorre a estruturas construídas por

outros profissionais. Como no caso dos objetos de miriti idealizados pelo artista

e realizados em grandes dimensões pelos artesãos de Abaetetuba10. O

conjunto de objetos realizados pelos artesãos foram expostos em 2005 na

França durante o Festival de L‟OH, inserido na programação do ano do Brasil

na França.

Espalhados pelo jardim francês, os brinquedos de miriti em grandes

dimensões revelam-se em meio a um cenário verde. Em um espaço público

que aproxima os espaços da França e de Abaetetuba, o miriti é resignificado.

Imagem 04: A cobra e os pássaros de miriti em grandes dimensões. Foto: Armando Queiroz. 2005.

10

O município de Abaetuba, situado à margem direita da foz do Rio Tocantins, foi primitivamente chamado Abaeté, topônimo indígena que significa “homem forte e valente”. Há divergência quanto às primeiras penetrações no território, sabe-se que foram realizadas em 1745 por Francisco de Azevedo Monteiro, abrigando-se de forte temporal. Afirma-se que a fundação de Abaeté ocorreu em 1750. Inicialmente, o território pertencia ao município da Capital, passando, em 1844, ao de Igarapé-Miri. Por força da legislação federal que proibia a duplicidade de topônimos de Cidade e Vilas brasileiras, em 1944, passou a chamar-se Abaetetuba, de origem tupi que significa “lugar de homem ilustre”. Disponível em: <http://www.abaetetuba.pa.gov.br/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=83&Itemid=298>.

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Neste trabalho é perceptível a relação que se constrói entre a arte

contemporânea e a cultura popular por meio do brinquedo de miriti que é

tradição dos artesãos que moram na região de Abaetetuba.

[...] a cultura popular pode referir-se tanto a artefatos individuais (muitas vezes tratados como textos), como uma música popular ou um programa de televisão, quanto ao estilo de vida de um grupo (portanto, aos padrões dos artefatos, das práticas) e das compreensões que servem para estabelecer a identidade distintiva do grupo. (EDGAR; SEDGWICK, 2003, p.77).

A respeito deste universo Armando Queiroz revela que no começo de

seu percurso artístico, seus trabalhos encontravam afinidades com a pesquisa

desenvolvida por Emanuel Nassar11, artista que desde suas primeiras obras,

faz referências à cultura popular. Referindo-se as possíveis influências

artísticas, Queiroz reconfirma esta aproximação conceitual com Nassar:

A influência mais próxima possível seria a do Emmanuel Nassar, não a obra em si, mas um compartilhar de olhar, de uma visão que alcança a visualidade popular. É muito mais nisso que ele acabou me influenciando, no sentido de quase que uma formação de um olhar do que estritamente a obra. Acho que, se no inicio minha obra tinha alguma identificação com a obra dele, hoje [...] é muito difícil da gente perceber isso. Acho que isso é uma circunstância, o trabalho vai amadurecendo. Mas, eu não deixo de ter todo um respeito, um carinho pelo trabalho do Emanuel. Acho que, na verdade, o ponto de vista ele não alterou [...], acho que alterou os procedimentos, a forma,

as experiências.12

Esta conexão das obras de Armando Queiroz com as de Emanuel

Nassar refere-se ao fato de ambos utilizarem como processo de criação uma

iconografia proveniente da cultura popular. Esta aproximação pode ser

evidenciada através dos projetos Bebendo Mondrian (Imagem 05), um vídeo

no qual o artista bebe as cores que fazem parte da obra de Mondrian, que

também encontra-se presente n‟ A mão do Lugar, (Imagem 06) intervenção

11

Emmanuel Nassar nasceu em Capanema, no Estado do Pará, em 1949 graduando-se em Arquitetura

pela Universidade Federal do Pará. Ao longo de sua carreira realizou diversas exposições individuais e

participou da XX Bienal de São Paulo em 1989 e da XXIV Bienal de São Paulo em 1998, da coletiva UAB-

C Stedelijk Museum de Amsterdan, entre outras. Fez parte da representação brasileira na Bienal de

Veneza de 1993. Em 2003/4 realizou a retrospectiva “A Poesia da Gambiarra”, com curadoria de Denise

Mattar, no CCBB do Rio de Janeiro, Brasília e em São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake.Tem obras em

acervos: Museu de Arte Moderna de SP; Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; Museu de Arte

Contemporânea de Niterói; Museu do Estado do Pará; University Essex Museum na Inglaterra. 12

Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 08 de Setembro de 2007.

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realizada por Armando Queiroz no Bar São Jorge, situado no Bairro do Condor,

ambiente que fez parte da cultura boêmia de Belém. Neste projeto, Queiroz faz

referência à obra Mãodrian (Imagem 07) de Emanuel Nassar e à obra Pintura II

– Quadro II, de Piet Mondrian (Imagem 08).

Nos trabalhos desses dois artistas paraenses pode-se observar que

tanto Queiroz quanto Nassar fizeram uma explícita homenagem à composição

geométrica de Mondrian. Desta forma, as cores utilizadas por Armando e

Nassar refletem a utilização de cores puras presentes tanto na moderna arte de

Mondrian como na cultura popular.

Imagem 05: Frame do videoarte Bebendo Mondrian, 2007. Fonte: Acervo Armando Queiroz.

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35

Imagem 07: Mãodrian, 1995.

Fonte: Catálogo Emmanuel Nassar, 2003

Imagem 06: Projeto n‟ A Mão do Lugar, 2004.

Fonte: Acervo Armando Queiroz.

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Definir que a cultura popular deve ser vista separadamente da cultura

erudita é um caso a se pensar, pois apesar da cultura erudita ser legitimada

através da ciência, do saber produzido nas universidades e nas instituições

científicas, o que se percebe é que muitos artistas como Queiroz e Nassar,

lançam mão da cultura erudita para desenvolverem produções de caráter

popular. “A cultura popular não é, num sentido „puro‟, nem as tradições

populares de resistência a esses processos [de modernização], nem as formas

que as sobrepõem” (HALL, 2003, p. 232). A cultura popular, vista sob a lógica

de Hall realiza o movimento duplo de conter e resistir, considerando o trabalho

ativo sobre as tradições existentes e a sua reconfiguração.

Outra característica presente nos trabalhos do artista é a realização de

obras em espaços públicos. A arte do final do século XX é constituída pelas

instalações13, intervenções, intermídia ou multimídia, tendo-se a expansão da

13

A instalação é um termo incorporado ao vocabulário das artes visuais na década de 1960, designando assemblages ou ambientes construídos nos espaços das galerias e museus. Modalidade de produção artística que lança a obra no espaço, com o auxílio de materiais muito variados, na tentativa de construir

Imagem 08: Pintura II Quadro II, 1921/25. Fonte: Coleção Mestres da Pintura- Mondrian, 1978.

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arte para vários tipos de manifestações e áreas do conhecimento, estendendo-

a para espaços públicos, os quais já serviram de suporte para a arte desde a

antiguidade. Atualmente, no entanto, a questão não é perpetuar um ato ou

personagem histórico, ou mesmo decorar o ambiente, mas provocar o sujeito

intervindo em seu cotidiano e fazendo muitas vezes que ele seja parte

integrante da obra. Paralela a essas intervenções em áreas abertas, longe dos

espaços convencionais de exposição,

[...] o que se nota é que paradoxalmente, a arte se esforça para definir sua inserção ou sua relação com a matéria ou material que constitui o universo cotidiano. Isto se dá através de apropriações e deslocamentos deste universo para o espaço „sagrado‟ dos museus e galerias – a arte volta aos museus, mas quer trazer o mundo junto e dentro de si para dentro do museu”. (VERGARA, 1996, p.4).

Desta maneira, tudo indica que se busca estratégias e discussões no

campo da arte que aliviem a crise entre sujeito e mundo, tornando possível a

integração entre arte e sociedade.

Em espaços urbanos da Alemanha e da Europa, é comum dentro das

programações culturais a existência de projetos artísticos em espaços não

institucionais. Na década de 1980 uma série de eventos surgiu e segundo

Buttner (2002), muitos questionamentos críticos a respeito da legitimidade de

uma arte que passou a fazer parte do cotidiano da cidade. A solução

encontrada para tais questionamentos foi a denominação da arte como

sitespecific, ou seja, uma arte:

[...] especifica em relação ao contexto para que tivesse seu lugar garantido no ambiente cotidiano. As proporções, o material e as formas dos trabalhos guardavam uma relação com o respectivo ambiente. Mas tarde foram pesquisados e incluídos também os conteúdos, a história e o contexto social. (BUTTNER, 2002, p.74).

Porém este processo da arte em espaço público pode ser visto de

modo mais amplo, uma vez que engloba os espetáculos teatrais e cinemas

exibidos em locais abertos, assim como a arquitetura e a cultura de rua (rap e

grafite). Segundo Coelho (1999, p. 49). “A melhor arte pública neste caso é [...]

certo ambiente ou cena, cujo movimento está dado pela relação entre objetos, construções, o ponto de vista e o corpo do observador. (BUTTNER, 2002).

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a que se mostra como um enigma, uma provocação ou, ela mesma, uma

reflexão sobre a vida em geral, ou sobre a vida na cidade em particular”.

Dentro desta perspectiva, destaco o projeto Fio da Meada,

desenvolvido por Armado no XXV Arte Pará. Este trabalho tem como ponto de

partida a arte pública, a intervenção urbana14 e a instalação. Ao encontrar com

um novelo construído pelo comerciante Rosenildo Araújo Ferreira 15, Armando

por meio de processo de negociação com o comerciante, desloca este objeto

para dentro do Museu Histórico do Estado do Pará. Neste local, o novelo é

posto em conjunto com um cubo de vidro, que traz adesivado um texto do

escritor Dalcidio Jurandir16. O trecho escolhido, “Canoeiros levantam as velas”,

fala sobre um Ver-o-Peso de sessenta anos atrás. Durante a exposição no

MHEP os visitantes deslocavam as palavras adesivadas no cubo para a

formação de um novo novelo. Inseria-se a participação do público na

construção da obra:

Imagem 09: Fio da Meada em exibição no XXV Arte Pará. Foto: Armando Queiroz. 2006.

14

A intervenção urbana é um processo artístico onde o espaço urbano é redescoberto através de uma manifestação artística que gera uma mediação cultural entre a arte, a cidade e o publico, abrindo novos espaços de interação e de interpretação de ideias e concepções artísticas. Amplia-se desta maneira, as ações em espaços urbanos, rompendo mais as fronteiras entre a cidade e a arte, e redefinindo o contexto do local onde a obra se encontra. (BUTTNER, 2002) 15

Comerciante que trabalhava na mercearia F. Noronha localizada na lateral do Mercado de Ferro do Ver-o-Peso. 16

Dalcídio Ramos Pereira nasceu em 1909, na Ilha Pontas de Pedras, Marajó. Em 1940 ganhou o concurso literário do Jornal Dom Casmurro, com seu romance Chove nos Campos de Cachoeira. Entre seus livros destacam-se: Marajó, Trés casas e um rio, Linha do parque, Belém do Grão Pará, dente outros. Em 1972 recebe o prêmio Machado de Assis, pelo conjunto de obras concedido pela Academia Brasileira de Letras. Morre em 1979 no Rio de Janeiro deixando uma significativa obra literária amazônica.

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39

Imagem 10: Guarda do MHEP interagindo com a obra. Foto: Armando Queiroz. 2006.

Imagem 11: O Novelo construído durante o XXV Arte Pará. Foto:Armando Queiroz. 2006.

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No espaço do Ver-o-Peso, o trecho de Dalcídio foi gravado pela voz de

pessoas que vivenciam o Mercado e seus arredores, passando a ser veiculado

diariamente dentro da grade de programação de uma rádio, circunscrita ao Ver-

o-Peso, chamada Blue-Moon17. Conhecida como Rádio de Poste, ou Radio

Cipó, este sistema sonoro é bastante tradicional no comércio de Belém, e

durante o Fio da Meada, foi canal das vozes que declamaram o poema de

Dalcídio.

Imagem 12: Rádio de Poste em frente ao prédio da Rádio Blue-Moon. Foto: Heldilene Reale. 2007.

O Fio da Meada estabeleceu um diálogo entre a arte e o urbano, por

meio da relação mantida com os trabalhadores e freqüentadores da feira livre

do Ver-o-Peso e dos visitantes da exposição no Museu, contribuindo para o

processo de integração entre a arte, a literatura, a sociedade e a cidade.

Há ainda nos trabalhos de Armando, produções voltadas para o

universo de videoartes. O video surge como linguagem artística depois de vinte

e cinco anos do advento da televisão. Segundo Walter Zanini (1978) dois

artistas são considerados como pioneiros desta linguagem: o coreano Nam

17

A Rádio Blue Moon possui 39 anos de existência e sua abrangência alcança a extensão da Rua XV de Novembro (atingindo bancários, lojistas, camelôs, taxistas e transeuntes), Av. Portugal e Av. Castilho França (atingindo entre outros, os comerciantes, consumidores e turistas da Feira do Ver-o-Peso, do Mercado de ferro, do Solar da Beira, da Praça dos Pescadores e da Estação da Docas), até a Praça Waldemar Henrique.

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June Paik e o alemão Wolf Vostell. Na década de 1970 enquanto a Europa

tentava resistir a utilização da tecnologia no processo de criação, Estados

Unidos e Canadá intensificavam a utilização do vídeo enquanto linguagem

artística. Nessa mesma década, também se intensifica no Brasil a utilização do

vídeo como arte. Destacam-se as produções artísticas desenvolvidas no Rio de

Janeiro e em São Paulo, que tinham como autores Ligya Pape, Anna Bella

Geyger, Fernando Cocchiarale, Angelo de Aquino, Letícia Parente, Paulo

Herkenhoff, dentre outros.

No Brasil o video caminhou a passos lentos, devido ao alto custo dos

materiais de filmagem, a rara abertura à pesquisa e a escassez de espaços

culturais para exibição de trabalhos multimídia. Hoje em dia tais dificuldades

foram ultrapassadas pela existência constante de novas tecnologias, facilidade

de acesso aos equipamentos, baixo custo dos mesmos e maior abertura dos

espaços culturais para a exibição desta linguagem.

O video possibilita, o exercício do processo de criação artística por

meio de vários procedimentos desde a captura do objeto em tempo real, até a

manipulação de técnicas e o fluxo de imagens, convertidas em significantes

diversos que podem ser retrabalhados, adquirindo novos significados. O vídeo

muitas vezes convive com o desenho, a pintura e demais linguagens. Em

Retratos Vivos de Armando Queiroz (Imagem 13), apresentado no Instituto de

Artes do Pará em 2007, há uma inter-relação entre o vídeo e outras linguagens.

Neste trabalho o artista promove a fusão do vídeo com o desenho do seu auto-

retrato que realizou quando tinha quinze anos. Em movimento performático,

Queiroz sobrepõe ao desenho a projeção do seu rosto já adulto que tenta se

fundir ao seu auto-retrato quando jovem.

Imagem 13: Seqüência de frames do videoarte Retratos Vivos. Fonte: DVD Rios de Terras e Águas: navegar é preciso, 2010.

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Percebe-se neste trabalho a memória de um passado adolescente em

conjunto com o presente adulto do artista. Em movimento, dois corpos se unem

um tentando se encaixar no outro, revelando um novo auto-retrato desfigurado

em múltiplas e fragmentadas identidades. Esta é uma possível interpretação do

trabalho, já que somos tomados por uma gama de significados e cada um pode

desenvolver sua própria leitura. De acordo com Hall:

[...] tudo o que dizemos tem um “antes” e um “depois” – uma “margem” na qual outras pessoas podem escrever. O significado é inerentemente instável: ele procura o fechamento (a identidade), mas ele é constantemente perturbado (pela diferença). Ele está constantemente escapulindo de nós. Existem sempre significados suplementares sobre os quais não temos qualquer controle, que surgirão e subverterão nossas tentativas para criar mundos fixos e estáveis. (HALL, 2001, p. 41).

A diversidade de reflexões presentes na produção visual de Armando,

é acrescida quando o artista utiliza em seus trabalhos materiais cotidianos,

apropria-se de objetos já fabricados, constrói diálogos com a cidade e seus

atores sociais. Estes procedimentos são usuais na arte contemporânea. Dentro

deste contexto, Armando defini-se como um artista de sua época e afirma que

se seu trabalho fosse desenvolvido em outro período não saberia se ele teria o

mesmo grau de aceitação e visibilidade. Esta dúvida vai ao encontro do

pensamento de Archer (2001, p. 73), o qual defende a “[...] ideia da arte como

um processo que coincide, temporariamente com a vida do artista e

especialmente, com o mundo em que essa vida é vivida”.

É importante perceber que a proposta de trabalho de Armando envolve

a pesquisa e a observação da realidade que ele busca expor, o que faz surgir

uma arte de forma consciente, e não a arte pela arte ou o objeto pelo objeto.

Neste caso, a arte necessita de um conceito para ser revelada, e assim o

artista apresenta em suas experimentações e resultados sua percepção em

relação aos elementos culturais que o cerca. Estes elementos muitas vezes

abordam questões sociais e políticas que estão presentes ou não nos arquivos

de nossa memória.

Esta realidade está também presente nos trabalhos que o artista

desenvolveu para o Prêmio Marcantonio Vilaça. O processo de criação destes

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trabalhos traz à tona contextos históricos da Amazônia, como os referentes à

Cabanagem, rituais amazônicos, aos conflitos de terras, aos conflitos indígenas

e aos conflitos presentes na região do ouro de Serra Pelada, estimulando a

construção de reflexões e de uma memória acerca destes contextos.

1.3 O Processo de Criação para o Prêmio Marcantonio Vilaça

O Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça18 de Artes Plásticas teve inicio

no ano de 2007. A intenção do prêmio é estimular o processo de criação

artística visual no Brasil por meio de pesquisa, criação e exposição de obras

que são acompanhadas por um crítico em um período de dois anos. Cinco

artistas são premiados com o valor de R$ 30.000,00 e participam de uma

mostra coletiva itinerante em seis capitais do país, além da edição de dois

catálogos. Ao final da itinerância, cada artista doa uma obra de sua autoria a

uma das instituições do circuito.

Armando se inscreveu pela primeira vez no Prêmio em 2008, ficando

entre os trinta artistas selecionados. Em 2009, ficou entre os cinco artistas

premiados. Nesta terceira edição do prêmio, o júri de seleção foi formado pelos

críticos Gaudêncio Fidelis (RS), Nivalda Assunção (DF) e Orlando Maneschy

(PA). Já o júri de premiação foi formado pelos críticos de arte: Aracy Amaral

(SP), Eduardo Frota (CE) e Paulo Herkenhoff (RJ). Os artistas premiados foram

Armando Queiroz (PA), Eduardo Beliner (RJ), Henrique Oliveira (SP), Rosana

Ricalde (RJ) e Yuri Firmeza (SP).

Em relação ao processo de criação de Armando Queiroz para o

prêmio, o olhar atento do artista para a construção de seus trabalhos não se

deu isoladamente, partiu da necessidade de Queiroz pensar o processo de

criação de suas poéticas, como “rede de conexões” (SALLES, 2000) cuja

amplitude está relacionada a multiplicidade de relações. Quanto mais relações

18

Nascido em 1962 em Pernambuco, Marcantonio Vilaça foi um advogado que teve um percurso significativo nas artes plásticas. Aos 28 anos já tinha sua própria galeria: “Pasárgada Arte Contemporânea”, no Recife, fundada com a irmã Taciana. Em 1992, inaugurou a galeria “Camargo Vilaça”, em São Paulo, considerada a mais importante referência para a arte brasileira nos anos 90. Com ela Marcantonio projetou a arte contemporânea brasileira internacionalmente. Marcantonio Vilaça morreu no Recife, aos 37 anos de idade, no dia 1ª de janeiro de 2000. Como reconhecimento aos inestimáveis serviços prestados à cultura do Brasil, o governo brasileiro outorgou-lhe “post mortem”, a mais alta condecoração do país: a Ordem do Rio Branco, entregue pessoalmente pelo Presidente da República à família Vilaça. Fonte: Catálogo Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça Artes Plásticas 2009/2010.

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foram sendo estabelecidas ao longo de seu processo de criação, maior foi a

complexidade refletida em seus trabalhos.

O processo de criação segundo Salles (2000), parte de um percurso

continuo em permanente mobilidade e transformação, que reflete o olhar do

artista para todos os elementos que possam gerar seu interesse em criar uma

obra. Seja em uma matéria de jornal, em uma exposição, em um

acontecimento histórico, etc. Para a autora, todo processo de criação é

incompleto na medida que há sempre uma diferença entre aquilo que se

concretiza e aquilo que está por ser realizado, afirma ainda que:

O artista lida com sua obra em estado de contínuo inacabamento, o que é experenciado como insatisfação. No entanto, a incompletude traz consigo também valor dinâmico, na medida em que gera a busca que se materializa neste processo aproximativo, na construção de uma obra específica e na criação de outras obras, mais outras e mais outras. O objeto dito acabado pertence, portanto, a um processo inacabado. Não se trata de uma desvalorização da obra entregue ao público, mas da dessacralização dessa como final e única forma possível.(SALLES, 2006, p. 21)

Esta relação de contínuo inacabamento foi refletida por Armando em

seus trabalhos, ao retomar algumas obras e ideias pensadas anteriormente.

Esta evidencia foi estimulada ainda mais, pelo acompanhamento do crítico de

arte Paulo Herkenhoff19. O contato do artista com o crítico, não se resume ao

prêmio, Herkenhoff já havia acompanhado alguns dos trabalhos do artista em

anos anteriores, mas não durante o processo de criação dos mesmos.

Armando revela que uma das grandes possibilidade que o prêmio permitiu foi

estreitar este contato com o crítico a quem dirigi profunda admiração e respeito:

[...] esse meu contato com ele, parte do respeito pela figura do Paulo como um homem de uma grande capacidade intelectual, e conjuntamente com essa grande capacidade que ele possui, de lidar com os artistas. Ele vai a fundo, não necessariamente de uma visita ao ateliê, mais de uma pessoa que constantemente está interessado naquilo que está acontecendo na cena local, ai não te falo somente em relação a minha pessoa, porque foi a primeira e grande

19 Crítico de arte e curador independente. Foi curador do Arte Pará (2005-2007), do Museu de Arte

Moderna de Nova York (1999-2002), curador geral do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1985-1990), da XXIV Bienal Internacional de São Paulo (1998), e do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. foi diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas (1983-1985). Participou do comitê de escolha do curador da XIII Documenta de Kassel (2012) Exerceu vários cargos de coordenação e direção de coleções e instituições de arte, e entre eles, o de curador da Fundação Eva Klabin Rapaport, consultor da Coleção Cisneros (Caracas) e da IX Documenta de Kassel, em 1991. Fonte: Catálogo Prêmio CNI SESI Marcantonio Vilaça Artes Plásticas 2009/2010.

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oportunidade que eu tive de estar em contato com ele. A presença do Paulo sempre foi muito marcante aqui no norte, e ele já tinha tido oportunidade de conhecer o que eu produzia, mas como ele mesmo relatou, nunca ter tido oportunidade de se deter mais sobre a minha produção, e esse talvez tenha sido este momento. [...] É tão interessante porque quando a relação se pauta pelo respeito, ela se pauta também pela possibilidade de ouvir de tentar conversar, colocar questões, apresentar coisa, ideias. É ter a possibilidade, de ter uma relação de, não apontar caminhos fechados, mas colocar algumas pitadas de duvida, no sentido de que a busca seria minha, e seria compartilhada na questão de se construir a figura de um companheiro de viajem. Eu gosto muito de perceber a curadoria como um companheiro de caminhos, de perceber as coisas muito proximamente. Ou elas esta ali a tua vista e tu não esta percebendo, e que sutilmente te diz para olhar de uma maneira mais acurada as coisas, isso é muito legal, e eu te falo isso porque foi a forma como eu percebi a nossa relação, de conversar bastante de colocar meus questionamentos e tudo mais, e de tentar perceber uma coisa que estava ali muito claro mas que eu não estava percebendo.

20

Durante o prêmio, o encontro do artista com Herkenhoff se deu de

maneira informal, primeiro houve uma reunião em que programaram a

organização dos encontros para o acompanhamento do processo de pesquisa.

Neste mesmo encontro inicial, Armando apresentou as primeiras propostas de

seus trabalhos, pelas quais, segundo o artista, o crítico demonstrou interesse.

Armando revela que o acompanhamento e a troca de ideias com o

curador, não prejudicaram o seu processo de criação, mas, ao contrário,

aguçou e aprofundou questionamentos. Para o artista foi muito importante a

escolha de Paulo Herkenhoff para acompanhar a sua produção, uma vez que o

crítico tem conhecimento das poéticas visuais que o artista desenvolveu em

anos anteriores, além disso, o artista pontua que estes encontros possibilitaram

a amplitude de reflexões acerca dos trabalhos que estavam sendo criados,

construindo seu percurso, sem perder sua autonomia como artista:

[...] vai da capacidade do curador de construir uma relação de respeito com o artista, de perceber que o artista é capaz também de construir seus rumos, sua trajetória. É ai que eu acho que é a grande questão do curador: como você lidar com isso? De não apagar a força da personalidade do artista, mas que seja pelo contrario, alguém que vá construído uma possibilidade reflexiva de fazer com que você pense. Isso foi fundamental. É sair de uma conversa com a

sensação de tanta intensidade naquilo.21

20 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra em 24 de Junho de 2010. 21

Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra em 24 de Junho de 2010.

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Neste caso, o processo de acompanhamento se reflete em uma

orientação que gera reflexões, o que não significa apontar caminhos, e sim

estimular pensamentos sobre a arte, sobre a vida, os contextos sociais e

políticos. Não houve um direcionamento de ações ou de produção artística.

Segundo Mario Pedrosa, os critérios de seleção de um trabalho artístico está

em transformação permanente, para o autor:

O crítico planteia-se neste tropel de movimentos, como o outro lado inevitável do artista; seria a consciência involuntária, ou não reprimida deste. Sua função, cada vez mais incomoda, o leva, ou a assumir deliberadamente um papel partidário, ativo de um ismo ou a ser, de mais a mais, uma alma dilacerada que, por dever de universalidade, testemunha impávida e viva de seu tempo, tem de relacionar os pólos, descobrir-lhes a estrutura comum em que se encerra ou deve encerrar os critérios de juízo que são seus. Cada artista faz, uma vez, sua revolução, mas o crítico é a testemunha sem repouso de cada revolução. Um episódio revolucionário após outro perfaz, numa só época, um processo. O papel do crítico é definir em sua totalidade esse processo, ou o processo de uma só revolução, mas em permanência. (PEDROSA, 1986, p. 233)

No segundo momento que esteve com Paulo Herkenhoff, Queiroz

apresentou alguns dos vídeos que já estava produzindo antes do encontro, o

que gerou mais interesse, reflexões e estímulos de ambas as partes. No

decorrer da realização dos trabalhos, todas as ações e obras pensados pelo

artista em companhia do crítico, estavam em contínuo processo, podendo ser

modificados ou não até a exposição. A mudança em qualquer elemento da

obra é comum durante o processo de criação, como afirma Sandra Rey:

[...] na obra a fazer, o modo de fazê-la, não é conhecido a priori com evidência, mas é preciso descobri-lo e encontrá-lo, e para descobrir como fazer a obra é necessário proceder por tentativas, por tateamento, inventando várias possibilidades, testando-as e selecionando-as de tal maneira que, de tentativa em tentativa, a cada operação, se consiga inventar a possibilidade que se desejava, isto é, o surgimento da obra (REY, 2002, p. 06)

Dentro deste contexto, Queiroz costuma ter alguns projetos guardados

que segundo o artista, passam por um processo de maturação e mais tarde

podem se transformar em obra. Muitas vezes pensa o objeto, mas o expõe

somente tempos depois, e o mesmo elemento integrante de uma obra pode

fazer parte de um novo processo. Anteriormente, Queiroz possuía um caderno

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de anotações que o acompanhava na construção dos conceitos de suas

poéticas, as quais hoje em dia são organizadas em arquivos e pastas em seu

computador. Tais ideias podem ser aplicadas ou retomadas pelo artista em um

determinado momento que ache mais apropriado ou que o próprio processo

criativo se manifeste. Como no caso de alguns trabalhos que foram

desenvolvidos para o Marcantonio Vilaça.

Salles (2000) nos revela que estes resquícios de memórias obtidos por

meio de anotações e demais documentos e ideias guardados pelo artista,

acabam por se completarem em outras ações, exigindo permanente atenção

do artista a contextualizações e relações que o mantém em rede de criação. Na

rede de criação uma decisão do artista tomada em um determinado momento

pode ter relação com outras anteriores e posteriores.

A rede de criação se define em seu próprio processo de expansão: são as relações que vão sendo estabelecidas durante o processo que constituem a obra. O artista cria um sistema a parir de determinadas características que vai atribuindo em um processo de apropriações, transformações e ajustes, que vai ganhando complexidade à medida que novas relações vão sendo estabelecidas. (SALLES, 2000, p. 33).

Por meio de relações construídas por histórias, objetos e vivências,

Armando desenvolveu para o prêmio, no ano de 2009-2010, os seguintes

trabalhos: Mar Dulce Barroco, Pé na Cova, Babilônia, Midas, Urubu-Rei, Paris

N’américa, 252, Ymá Nhandehetama, A Resposta do Pajé, Pilatos, Espada

Cabana, documentos e Ouro de Tolo.

Todas as obras acima mencionadas tiveram processos de construção

diferentes, porém nesta pesquisa serão abordadas somente as obras que

foram escolhidas para serem expostas durante as mostras do Prêmio

Marcantonio Vilaça. Dos trabalhos realizados apenas nove fazem parte desta

montagem, mas, isto não quer dizer que as demais obras desenvolvidas pelo

artista não possam fazer parte de exposições futuras.

O artista juntamente com o curador Paulo Herkenhoff, após vários

encontros, escolheram entre as treze obras produzidas, as nove que

participariam da exposição. São elas: Mar Dulce Barroco, Midas, 252, Ymá

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Nhandehetama, A Resposta do Pajé, Pilatos, Espada Cabana, documentos e

Ouro de Tolo.

Para a materialização de alguns destes projetos, Queiroz recorreu a

profissionais de diversas áreas. As poéticas desenvolvidas no ano de 2009 a

2010 foram registradas por meio da contratação do serviço técnico de filmagem

de Marcelo Rodrigues. Marcelo é um profissional que vem acompanhando

Armando Queiroz com a filmagem e edição da maioria da produção em vídeo

do artista, muito antes da realização das obras pensadas para o Prêmio.

Em relação aos atores sociais que Armando entrou em contato no

processo de negociação de suas poéticas, destaca-se: o pesquisador João

Lúcio Mazzini que possibilitou o acesso aos documentos provindos de arquivo

público, o pesquisador Almires Martins que realizou o depoimento presente no

vídeo Ymá Nhandehetama. O artesão de Abaetetuba Mestre Amadeu22 que

tornou viável o caminho para a realização da obra A Resposta do Pajé. A

jornalista Killzy Kelly Pereira de Lucena que formou as vias de acesso até

Serra Pelada para a construção da obra Ouro de Tolo, e Fernando Gomes da

Silva23, açougueiro e presidente da Comissão do Mercado de Carne do

Complexo Ver-o-Peso, que colaborou na concretização dos vídeos 252 e

Pilatos.

Esta iniciativa compartilhada revela a presença de uma arte relacional,

definida por Bourriaud como sendo “uma arte que toma como horizonte teórico

a esfera das relações humanas e seu contexto social, mais do que a afirmação

de um espaço simbólico autônomo e privado” (BOURRIAUD, 2009, p.19).

Assim, o artista posiciona-se como um mediador cultural na construção

das teias de comunicação formadas na colaboração de seus pares. Segundo

Barbero (2000, p.154) “mediação significa que entre estímulo e resposta há um

espesso espaço de crenças, costumes, sonhos, medos, tudo o que configura a

cultura cotidiana”. Porém, “[...] é impossível entender a importância, a influência

22

Mestre Amadeu é um artesão que esteve envolvido na maioria dos trabalhos de Armando concernente ao miriti. 23 Ele é açougueiro, trabalha no Mercado há 39 anos, exerce a função de presidente da Comissão do

Mercado e representa o mesmo no Sindicato do Comércio Varejista do Pará e Amapá. Dentro do processo histórico das poéticas desenvolvidas por Armando em sua trajetória artística, Gigante esteve presente na construção de quatro trabalhos, dois destes destinados para o Prêmio Vilaça.

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nas pessoas, se não estudarmos como as pessoas se relacionam com os

meios” (BARBERO, 2000, p. 154).

Esta mediação acaba por gerar uma rede cultural nos trabalhos do

artista, pois Queiroz, através deste contato se insere diretamente na cultura

que forma estes agentes, por meio de múltiplas trocas, diversidades de

opiniões, ideias, e concepções. Morin (1998 apud SALLES 2000, p. 39)

defende que tais renovações de pensamentos, só são introduzidas por este

calor cultural, através do ato dialógico, que possibilita a convivência com uma

pluralidade de pontos de vistas, intercâmbio de ideias, que produzem o

conseqüente crescimento do pensamento e fazem gerar as proposições

reflexivas das obras do artista.

Armando expõe que sem esse contato com os demais atores sociais,

seria muito difícil a execução de seu trabalho. Por outro lado, se o artista não

tivesse a sensibilidade de saber negociar tais ações com estes agentes,

acredito que também, seu processo de criação encontraria dificuldades. Nas

poéticas desenvolvidas para o Prêmio foi possível identificar como o artista

procurou estabelecer uma aproximação e investigar sobre a realidade dessas

pessoas. Sua relação com o meio foi construída de forma sensível e

participativa. Ainda sobre seu processo relacional durante as etapas referentes

à criação da obra, Armando comenta:

[...] eu quero muito envolver as pessoas, e que elas possam na verdade, estarem trabalhando e rompendo seus limites. Às vezes a gente vê as coisas de uma maneira muito poética, mas a vida das pessoas é muito dura, e acho que a gente dá esta possibilidade de romperem isso em seu cotidiano tão pesado. Acho que de certa maneira a gente está contribuindo com a nossa realidade e isso é uma coisa que me chama muita atenção: trabalhar com essas pessoas, não de uma maneira piegas, mas perceber no outro uma força, um valor, [...] esta questão para mim do artista ser visto como alguém extraordinário, fora da realidade, para mim nunca foi o que eu desejo, acho que nós somos quase uma antena que capta isso, logicamente temos uma sensibilidade mais apurada,

mas porque não se pode compartilhar isso?. 24

Quando se discute essas relações, é importante compreender que o

artista escolhe compartilhar suas idéias. A cada contato que teve com estas

24 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 05 de Março de 2007.

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pessoas, compartilhou com as mesmas o que estava pretendendo fazer,

revelando suas dificuldades, angústias e descobrindo soluções em conjunto

com esses trabalhadores. Este canal de trocas se caracteriza por ser um

espaço de criação em uma perspectiva de natureza coletiva e não individual.

Neste processo de relação é importante compreender que a obra foi articulada

a partir da negociação geradas do artista com os atores sociais envolvidos.

Segundo Bourriaud:

[...] a forma só assume sua consistência (e adquire uma existência real) quando coloca em jogo interações humanas; a forma de uma obra de arte nasce de uma negociação com o inteligível que nos coube. Através dela o artista inicia um diálogo. A essência da prática artística residiria, assim, na invenção de relações entre sujeitos, cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito. (BOURRIAUD, 2009, p. 30-31).

Nos trabalhos que foram pensados pelo artista para o prêmio, um outro

tipo de relação se estabelece. A relação entre a obra e o espaço museológico.

Como citado anteriormente, Armando Queiroz trabalha no Sistema Integrado

de Museus, onde tem compartilhado de diversas experiências museológicas.

Nos trabalhos que constrói para o prêmio essa experiência é refletida quando o

artista comenta que a sua exposição acaba por revelar a construção de um

possível museu não institucionalizado por normas e regras a serem seguidas.

Este museu é formado por obras que não estão catalogadas, não são

parte de um processo histórico datado, nem possuem um valor de

originalidade. O artista revela:

Este fato me agrada muito porque querendo ou não é minha experiência de museu que também direcionou muito no que está sendo apresentado neste resultado, que é quase o meu museu, eu não diria meu, mas um museu que eu gostaria de ver que trata de questões que também são importantes e até mesmo de colocar em cheque algumas opções que são feitas por uma tipografia mais tradicional ou não. Quer dizer, como é que você pode ter elementos tipográficos, que tem uma força da expressividade mais que eles não estão ali tutelados por uma veracidade, de que aquilo ali pertenceu a fulano de tal, mas muito mais na relação de afetividade que você constrói com os objetos. Como é que você também, e todos nós

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enquanto indivíduos, criamos interesse e valor as coisas? e como

isso pode tornar um interesse coletivo?.25

A concepção do museu de Queiroz revela um museu humanizado, que

em constante movimento expõe falas de pessoas simples, de fatos esquecidos

narrados e revelados em objetos que tentam mostrar o invisível. Esta

expectativa, de criar imagens que mostrem um contexto de reflexões a partir de

elementos não tão evidentes para a sociedade, é contada por Armando da

seguinte forma:

Sempre gostei muito de um personagem do romance Chove nos Campos de Cachoeira, do Dalcídio Jurandir, chamada Marialva que, por ser cega, constrói todo um universo mental de possibilidades: “(...) Tem dezessete anos Marialva? Ninguém sabe. Tudo nela envelheceu, tomou uma cor de gesso, ao mesmo tempo de infância perdida, de silêncio. Mas seus dedos ficam mágicos depois de acariciar o bichano. Traçam pequenas coisas no ar, sonhos ilhas e imagens, seu pai, o gato, uma árvore, o sol, a lua, folhas caindo, os olhos da irmã, coroas de espinhos, teias de ouro. Seus dedos desfiam sonhos e sombras, tecem, num imaginário tear, certos mundos misteriosos que ela mesma desconhece e só os seus dedos sabem e tecem talvez para seus olhos mortos”. Criar imagens, relações, objetos, é tentar reconstruir um mundo, tentar ver o invisível.

26

Dentro deste aspecto, as obras tornam visíveis realidades de conflitos

que ocorreram e continuam ocorrendo na Amazônia, sendo alvos de intensas

discussões. Nas obras 252, Mar Dulce Barroco, Espada Cabana e

documentos, o artista propôs a reflexão do contexto histórico da Cabanagem27

e de conflitos agrários. A questão dos conflitos indígenas e dos garimpos, foi

tratada nas obras Ymá Nhandehetama, Ouro de Tolo e Midas,

respectivamente. Em Pilatos e A Resposta do Pajé, Queiroz evidencia dois

rituais, o primeiro ligado a um acontecimento histórico bíblico, e o outro ligado a

um ritual de pajelança. Porém as obras se entrecruzam quando seus contextos

dialogam entre si.

Ao deparar-se com a obra o visitante pode ter um outro olhar, que

talvez não esteja ligado as reflexões desenvolvidas pelo artista. Para Fontanille

(2007) o artista não abarca a sua obra como um todo, sempre há coisas que 25 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010. 26

Armando Queiroz em entrevista a Orlando Maneschy registrada no Catálogo O Fio da Ameaça, 2010. 27

Detalhes a respeito dos contextos históricos aqui citados serão vistos na seção seguinte que forma esta pesquisa.

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escapam a sua própria percepção. Por isso abre para a leitura do espectador,

acabando por fazer com que não haja uma definição precisa da obra. Desta

maneira as obras também suscitam reflexões acerca de identidades possíveis.

De acordo com Hall:

a medida que os sistemas de significações e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar- ao menos temporariamente

(HALL, 2001, p.13).

A partir da idéia de museu do Armando presente na exposição e dos

canais de diálogos que as obras possuem dentro do contexto histórico

amazônico, pode-se caracterizar a exposição realizada para o prêmio, partindo

da reflexão do conceito de território. Considera-se que o museu de Amando é

formado por territórios de memórias, conflitos e devorações, os quais serão

analisados na seção que segue.

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2 TERRITÓRIOS EXPOSITIVOS

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Para a exposição dos trabalhos que integraram o circuito do Prêmio

pelas capitais brasileiras ficou decidido que as obras selecionadas ocupariam

duas salas que, sob o meu ponto de vista, funcionaram como territórios

expositivos. Estas salas não foram nomeadas. A respeito deste fato o artista

pontua que as obras estão apresentadas em uma situação de conjunto na qual

os objetos estão como elementos fundamentais na articulação conceitual e

formal com os vídeos.

Na composição e organização das obras, estavam presentes

elementos que dialogavam entre si, inseridos em um determinado contexto

histórico-social. Esta organização do espaço acabou por trazer à tona questões

sociais que se formam a partir de „relações de poder‟28. O poder segundo

Blackburn (1992 apud Haesbaert 2004) pode ser atribuído a propriedade da

natureza e da espécie humana que:

[...] num sentido geral, pode ser provisoriamente definido como a habilidade de criar, destruir, consumir, preservar ou reparar. (...) Dentro desta perspectiva o poder humano é definido como a habilidade de realizar as intenções ou potencialidades humanas de criar, destruir, consumir ou preservar coisas. (BLACKBURN 1992 p. 287 apud HAESBAERT, 2004, p. 54)

Segundo Souza (2001), o poder é quem delimita e define o território.

Dentro desta perspectiva, o poder não se restringe ao Estado e não se

confunde com violência e dominação. Nas palavras do autor, “todo espaço

definido e delimitado por e a partir de relações de poder é um território”. (2001,

p.11). A relação de poder é refletida nas poéticas de Armando por meio de

conflitos sociais, agrários e indígenas na Amazônia, bem como a presença de

rituais. Tais realidades apresentadas nos trabalhos geram os territórios

expositivos.

O território, segundo Haesbaert (2004), perpassa por uma série de

conceitos. De acordo com o autor, apesar de ser um conceito central da

geografia, território e territorialidade, possuem também referenciais teóricos em

28

A relação de poder é um termo definido por Michel Foucault tendo como base a teoria de que cada membro da sociedade produz poder e o distribui aos indivíduos em um fluxo permanente e contínuo. O poder é visto pelo autor como uma engenharia de participação social, onde os sujeitos devem estar atentos as situações que fazem surgir este poder. Desta maneira, o poder é fruto de uma lógica circunstancial que se faz presente cotidianamente, em uma instancia transitória de trocas. (FOULCAUT, 1988)

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outras áreas como a Ciência Política, a Economia, a Antropologia, a Sociologia

e a Psicologia. Assim, o autor agrupou as concepções de território em quatro

vertentes básicas: a política, a cultural, a econômica e a naturalista. A primeira

corresponde ao território visto como espaço delimitado e controlado onde se

exerce relações de poder em geral. A vertente cultural prioriza o território como

uma dimensão simbólica e mais subjetiva, o território é visto “como o produto

da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço

vivido” (2004, p. 40). A econômica revela o território como dimensão espacial

das relações econômicas, como fonte de recursos. A vertente naturalista utiliza

a noção de território com base nas relações vivenciadas pela natureza dos

animais, e no comportamento natural do homem em relação ao seu ambiente

físico.

Stuart Hall é considerado por Haesbaert (2004) o primeiro antropólogo

que desenvolveu um estudo sistemático sobre o tema da territorialidade. A

territorialidade é um conceito utilizado para enfatizar as questões de ordem

simbólico-cultural, enfatizando a questão simbólica do território. O autor define

território como signo que tem seu significado compreensível somente por meio

de códigos culturais.

Dentro da perspectiva cultural de território, José Luis Garcia (1976,

apud HAESBAERT, 2004, p.70) defende a existência de um “território

semantizado” que em sentido mais amplo seria:

Um território “socializado e culturalizado”, pois tudo o que se encontra no entorno do homem é dotado de algum significado. É precisamente este significado ou „ideia‟ que se interpõe entre o meio natural e a atividade humana que (...) o estudo da territorialidade se converte assim em uma análise da atividade humana no que diz respeito a semantização do espaço territorial. (GARCIA, 1976, p. 94 apud HAESBAERT, 2004, p.70).

Apesar da conceituação de território cultural estar mais interligada a

Antropologia e a Sociologia, é valido ressaltar que há geógrafos que somam no

que concerne a perspectiva ideal-simbólica de território. Bonnemaison (1996,

apud HAESBAERT, 2004, p.70) defende que “o pertencimento ao território

implica a representação da identidade cultural”, neste fato a identidade cultural

supõe a presença de redes múltiplas. Assim, o território é dimensionado

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também enquanto representação, valor simbólico. Revelam ainda que a

abordagem utilitária de território não dá conta dos principais conflitos do mundo

contemporâneo.

O poder do laço territorial revela que o espaço está invertido de valores, não apenas materiais, mas também éticos, espirituais, simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o território político e com ainda mais razão precede o espaço econômico. (BONNEMAISON 1996, p.10 apud HAESBAERT, 2004, p.72).

Em vista das demais áreas e conceitos, tomarei como base a vertente

cultural conceituada pela Antropologia e as Ciências Sociais, por considerá-la

mais apropriada para analisar as obras de Armando Queiroz, que simbolizam

realidades presentes nos conflitos históricos sociais da Amazônia e que se

manifestam por meio de relações identitárias entre o passado, o presente e um

possível futuro.

Dentro destes conceitos, defino o espaço criado para a obra de

Armando Queiroz na exposição do Prêmio Marcantônio Vilaça como territórios

culturais que simbolizam memórias, conflitos e devorações. O processo de

criação, do artista que incluiu pesquisas e produção em Abaetetuba, Carajás

(Curionópolis), Santa Izabel e Belém, proporcionou relações de trabalho e

afetividade, com os atores sociais envolvidos, além de reavivar memórias

presentes no contexto do local visitado.

Este procedimento adotado trouxe a tona elementos presentes no

contexto histórico da Amazônia e representativos da cultura universal: o

movimento da Cabanagem, a tragédia do Brigue Palhaço, os Rituais de

Pajelança, o ouro do El Dorado de Carajás, a memória Indígena e os mitos de

Midas e de Poncio Pilatos. Dentro deste universo abordado, revelam-se

territórios de conflitos, de tensões sociais e políticas. Conflitos

permanentemente percebidos no passado histórico são confrontados com um

presente igualmente conflituoso. Relações impositivas e opressoras são

intensificadas e se constituem em territórios de devorações, nos quais se

sobressai uma concorrência pelo poder de criar, destruir, consumir, preservar

ou reparar ambientes e estruturas que demarcam o espaço de luta.

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Os devoramentos presentes nos trabalhos de Armando, dizem respeito

ao modo como a sociedade em meio a conflitos, não somente individuais, mas

também coletivos, acaba por ser consumida por um sistema de dominação.

É importante lembrar que o ato de consumir, pode ser interpretado

também como uma lógica de diferenciação social, refletindo a existência de

prestígio e reconhecimento, de status e integração social. Assim, “[...] as

estratégias distintivas e as lutas de concorrência opondo as classes sociais é

que estão no principio da excrescência gigantesca do consumo e da

impossibilidade de chegar a um limiar de saturação de necessidades”

(LIPOVETSKY, 2007, p.39).

Atualmente a sociedade de consumo passou por um processo de

transformação, fazendo surgir uma nova fase do capitalismo, responsável pelo

nascimento da sociedade do hiperconsumo. Esta é caracterizada pela

presença de um consumo para si e não para o outro, gerando um movimento

de individualização das expectativas, dos gostos e dos comportamentos. Pode-

se associar estas questões aos trabalhos desenvolvidos por Queiroz, pois os

devoramentos nada mais são do que consumos individuais que estimulam o

processo de diferenciação social, o que se torna mais claro ainda quando se

analisa o processo de criação de cada uma das nove obras.

Um outro processo de diferenciação é percebido no contexto

expositivo, quando este território é visto por Armando Queiroz como o resultado

de um museu imaginário, que gostaria que existisse. Um museu que mostra a

história construída a partir do relato do outro, um museu que expõe objetos

precários, porém cheios de histórias, lembranças e memórias, que não datam

de um período histórico como exigem as instituições museológicas. Esta

concepção museológica gera um questionamento, sobre o que pode integrar o

acervo de um museu? Que grau de importância deposita-se em um

determinado elemento visual? Para o artista o teor das poéticas é mais

importante que o objeto em si:

[...] tem muito essa coisa nessa exposição dos objetos ordinários, nada é o que parece ser e nenhum deles teria uma relevância numa expografia museológica que tivesse um rigor, mas acho que a gente deveria repensar tudo isso. Também são possibilidade da gente estar

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contando uma história através desses fragmentos daquilo que não

tem valor tanto museal quanto financeiro29

.

Em meio ao objeto ordinário em que “nada é o que parece ser”, as

histórias que formam o território expositivo, refletem simbolicamente nas obras

o contexto da Cabanagem, a tragédia do Brigue Palhaço, os conflitos

indígenas, agrários e auríferos. Estes múltiplos contextos dialogam entre si, e o

território se torna multiterritorializado. A multerritorialização (HAESBAERT,

2004, p. 338), corresponde a permanência de relações sociais construídas

através de territórios-rede, sobrepostos e descontínuos, mas que integram em

um mesmo local a experiência cultural, econômica e política das pessoas que

fazem parte deste espaço.

Trata-se assim da possibilidade de acessar ou conectar diversos territórios, o que pode se dá tanto através de uma “mobilidade concreta”, no sentido de um deslocamento físico, quanto “virtual”, no sentido de acionar diferentes territorialidades mesmo sem deslocamento físico, no caso das novas experiências espaço-temporais proporcionadas através do ciberespaço (HAESBAERT, 2004, pp. 343-344).

No contexto expositivo para o Prêmio Marcantônio Vilaça, esta

multiterritorialidade se faz presente na permanência de um território, o

expositivo, que traz contextos históricos distintos, que convivem lado a lado e

que dialogam entre si através das obras criadas pelo artista.

Assim, o território demarcado pelo artista e curador na construção das

salas expositivas, gera novas estruturas e reflexões que perpassam conflitos,

memórias e devorações, muito presentes nos episódios do contexto histórico

da Amazônia. Mas há também a presença de uma reflexão que pretende

encontrar um meio de se livrar de todos estes males, praticando um ato de

purificação relacionado a uma memória marcada por tragédia e tristezas.

Desta forma, no território expositivo foram demarcadas duas salas que

dialogam entre si. Torna-se importante esclarecer que como a exposição

integra um circuito de seis capitais do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia,

Salvador, Rio Branco e Florianópolis), e como os locais onde foram expostas

29 Armando Queiroz em entrevista realizada na galeria de Arte Graça Landeira em 25 de outubro de 2010.

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possuem estruturas diferentes, a organização das obras na composição de

cada sala sofreu modificações de acordo com o local oferecido para a

exposição (Imagens 14 a 17). Porém as obras presentes em cada sala

permaneceram as mesmas durante todo o circuito. A primeira estava composta

com as obras: 252, Mar Dulce Barroco (projetados em duas paredes) e os

documentos (revestidos por uma cúpula de vidro). A segunda sala estava

formada pelas obras: Pilatos, Ymá Nhandehetama, Midas (exibidas em vídeo

por meio de tela planas fixadas nas paredes), A resposta do Pajé, Ouro de Tolo

e Espada Cabana (revestidos por uma cúpula de vidro).

Imagem 14: Esboço feito pelo artista da “sala 01” montada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Fonte: Acervo da pesquisadora, 2010.

No Rio de Janeiro as obras Mar Dulce

Barroco e 252 encontravam-se frente

a frente como mostra o esboço.

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Imagem 15: “sala 01” montada no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo. Foto: Armando Queiroz, 2010.

Imagem 16: Esboço feito pelo artista da “sala 02" montada no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo. Fonte: Acervo da pesquisadora, 2010.

Em São Paulo as

obras Mar Dulce

Barroco e 252

encontravam-se

lado a lado.

Em São Paulo as obra Pilatos, Midas e Ymá

Nhandehetama encontravam-se na sala expositiva

organizadas de maneira triangular.

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Imagem 17: “sala 02” montada no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Foto: Armando Queiroz, 2010.

No território expositivo mesmo havendo diferenciação em sua

organização espacial, continuou-se a permanecia de reflexões que tecem

conflitos, tragédias e ritos amazônicos. Na presença de significantes e

formação de significados, dentro de uma realidade que foi construída como

poética visual, identifica-se o diálogo das narrativas com o contexto histórico

amazônico. Queiroz trabalha em um universo contemporâneo que se amplia

cada vez mais com processos de experimentações que expandem e migram de

um lugar a outro e de um contexto a outro, onde o local e o global conversam

constantemente em diversos canais de comunicação.

2.1 Território de Memórias, Conflitos e Tragédias

Denomino a sala onde se encontravam expostos os vídeoartes Mar

Dulce Barroco e 252, além dos documentos (Auto da Devassa, Lista da Morte e

Atestado de Óbito), como território de memórias, conflitos e tragédias.

No Rio de Janeiro

Pilatos e abaixo da

mesma a obra

Espada Cabana, em

local diferente.

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O vídeoarte 252, produzido por Armando Queiroz em 2007 foi exibido

primeiramente na sala da Cabanagem do Museu Histórico do Estado do Pará.

Naquela ocasião o Museu estava sendo reinaugurado, e Armando foi

convidado para fazer parte da equipe de técnicos que iria pensar uma sala

expositiva composta por obras ou objetos que levantassem questões

pertinentes a história do Pará. Desta forma, esta sala piloto trouxe uma questão

pouco discutida até então no campo das artes visuais e nos espaços

expositivos: A Cabanagem.

Para compreensão deste acontecimento histórico na Amazônia, é

necessário lembrar que no final do século XVIII e início do XIX a província do

Pará, cresceu significativamente em número de pessoas e comércio. A

população era formada por índios, africanos, portugueses, e todo o tipo de

estrangeiros. A coroa portuguesa manifestava uma grande influência cultural e

religiosa direcionando a interpretação de seu mundo através dos dizeres de

párocos, das citações bíblicas, fazendo o elo entre o mundo de Deus e dos

homens, recriminando os rituais de pajelanças e feitiçarias. Em 07 de janeiro

de 1835, dia da festividade de São Tomé, um grande número de homens que

se autodenominavam patriotas (soldados, negros, índios), vindos de várias

partes da Amazônia, invadiram a cidade de Belém, assassinando autoridades,

senhores de escravos, e quem os impedissem de viver sua liberdade. Tem

inicio a Cabanagem.

[...] opondo-se ao despotismo civil e religioso de diversas outras autoridades estrangeiras e locais, senhoras absoluta do céu e da terra. O movimento espalhou-se rapidamente pelo que hoje se conhece como os Estados do Pará, Amazonas e arredores, ganhando ares revolucionários internacionais, com o assassinato de autoridades diplomáticas e a possibilidade de invasão de territórios circunvizinhos, como a Guiana e o Caribe. No entanto em pouco mais de um ano os Cabanos começaram a perder terreno, sendo que em 13 de maio de 1836, a cidade de Belém foi novamente retomada por tropas imperiais. Da revolução para a fuga, seguiu-se um duro período de repressão, no qual os cabanos ficaram reconhecidos como “os malvados” e “sediciosos”, por atacarem o centro daquele mundo: as autoridades, chegando ao extremo de assassinarem o maior representante do Império do Pará, o governador Lobo de Souza. (RICCI, 2003, p. 180-181).

Para fazer frente ao levante, os portugueses lutaram contra os

revoltosos que perderam o embate e foram aprisionados. Nos dias 20 e 21 de

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outubro de 1836, esses prisioneiros foram transportados das cadeias públicas

para o navio São José Diligente. Neste ultimo dia, duzentos e cinqüenta e dois

soldados do 2º Regimento de Artilharia de Belém foram brutalmente

assassinados no porão do navio São José Diligente, denominado, mais tarde,

de Brigue Palhaço.

Nas reuniões que foram desenvolvidas para a composição da sala do

Museu Histórico do Estado do Pará onde ficaria o vídeo 252, Armando

conheceu João Lúcio Mazzini, que na época da pesquisa era diretor do Arquivo

Público do Estado do Pará. O encontro entre os dois acabou por definir o início

do processo de criação da obra. Sobre este encontro Armando declara:

[...] ele estava nessa reunião com o resultado de uma pesquisa de levantamento que teve acesso a lista de mortos do Brigue Palhaço, e eu fiquei muito impressionado com a existência de um documento que confirmava que tinha acontecido realmente isso e que nomeava, e digo até mesmo que pormenorizava a patente, que a grande maioria eram militares de baixa patente e ai dizia de qual regimento

eles eram.30

O primeiro vídeo foi feito em frente ao casarão, situado no terreno

denominado de Pé na Cova, localizado no estado do Pará em um lugar

chamado Miramar, onde provavelmente se encontram as ossadas dos

cabanos. O artista o denominou o vídeo com o mesmo nome do terreno, Pé na

Cova, e comenta:

[...] foi feito um vídeo porque eu fiquei muito emocionado de estar lá e no finalzinho quando nós estávamos para ir embora eu percebi uma manga que estava sendo devorada por insetos na calçada deste casarão e era impressionante para mim aquilo porque depois de estar tão envolvido com estas questões da quantidade de mortos e tudo o mais, eu vi naquele devoramento dos insetos talvez um pouco daquele momento. Até hoje eu imagino que ele possa nos trazer uma imagem de um corpo que está sendo devorado, um corpo que poderia ser de algum daqueles mortos, e ai eu pedi para que a

pessoa do MIS31

que estava nos acompanhando, fazer essa

imagem, mas ai depois em reunião, eu nem sei se eu mostrei diretamente a imagem, mas falei do conceito e do interesse e acho

que não houve vontade de que isso fosse levado adiante.32

30 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010. 31 Sigla referente ao Museu da Imagem e do Som. 32 Armando Queiroz em entrevista a autora no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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No segundo vídeo, denominado 252, a equipe foi novamente a campo,

desta vez tendo como cenário principal o Complexo Ver-o-Peso. Em relação a

escolha do local para a realização deste vídeo o artista revela que este espaço

foi escolhido principalmente porque o navio Brigue Palhaço estava fundiado na

frente do Ver-o-Peso, e seu interesse era reavivar a memória das pessoas com

a revisitação do local. O artista pontua:

A tragédia acontece em frente ali ao Ver-o-Peso e é interessante pela carga simbólica que o Ver-o-Peso representa para todos nós e para as pessoas de fora, de como vêem Belém. Belém é muito Ver-o-Peso. Então você descortinar outras formas de perceber o Ver-o-Peso, não somente como atrativo turístico ou um ambiente de exotismo. Ali também é palco de questões vitais da cidade, de questões, de como a cidade se movimenta e se transforma, eu acho que até mesmo é um espelho que reflete o que é a cidade. É tão identitário pra gente o Ver-o-Peso, que ele se torna quase algo artificial. As pessoas têm muita dificuldade de compreender o Ver-o-Peso como um ambiente de chão, representativo. Parece que é uma coisa “só para inglês ver”. E o que me interessa no Ver-o-Peso é o que está por trás, por dentro dele, pelas bordas, é a perspectiva de problematizar o Ver-o-Peso, não é somente assimilá-lo na superfície. Então, acho que meu interesse foi esse, de compreender aquele local como ambiente de complexidade e de força identitária, mesmo que a gente ache que não. Talvez o que representa nas cabeças das pessoas é que o Brasil é o país do futebol, do samba, e talvez para o Pará seja o Ver-o-Peso, ou sei lá o que. Mas eu acho que é tudo isso, nós somos futebol, samba, Ver-o-Peso, não só naquilo que a gente quer ver, mas nas suas reentrâncias. A gente tem uma dificuldade muito grande com a nossa identidade, de como a gente quer ser visto, então às vezes é até uma reação ao contrário dessa coisa de querer ser cosmopolita. Essa coisa das raízes, elas acabam sendo um entrave, mas para mim não, ela é muito rica, justamente

por ser o que é.33

Aproveito este depoimento do Armando para fazer um entrecruzamento

com o filme Shoah34, dirigido pelo cineasta Claude Lazmann, ambientado em

Buenos Aires em 1989. No filme o diretor conta a história do holocausto a partir

de depoimentos de judeus e soldados sobreviventes da era nazista. As

imagens do filme apresentam a materialidade do sofrimento a partir de

resíduos materiais dos campos de concentração: ruínas de edifícios, traçados

dos trilhos e estradas, campos vazios. A memória do holocausto é relembrada

a partir das histórias contadas por depoimentos de moradores e sobreviventes

que vivenciaram estes locais. Lazmann ao fazer o filme abre mão de fotografias

de corpos esqueléticos, de cadáveres amontoados:

33

Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira em 25 de outubro de 2010. 34

Palavra alemã que significa catástrofe.

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[...] sustenta que estas imagens já deram tudo de si, foram vistas diversas vezes e, se não perderam sua verdade documental, foram nos acostumando ao seu horror. Lazmann constrói Shoah, com outras imagens, que ainda não haviam revelado os significados de que são portadoras ou, para fazer jus à estratégia do cineasta, o

significado que delas consegue extrair. (SARLO, 1997, pp. 37-38).

Com esta estratégia o cineasta mostra que é possível pensar uma cena

fora de uma lógica daquilo que já estamos acostumados a ver, pois assim

reduz-se o risco de tornar o horror algo normal e comum a nós, mesmo sendo

profundamente trágico. Ou então enxergar apenas o que é superficial em uma

totalidade, enquanto é preciso investigar a lógica dos fatos históricos que

podem estar presentes em um determinado acontecimento ou lugar. Assim

como em Shoah a história é revisitada de uma maneira mais profunda por meio

de depoimentos dos próprios sobreviventes do holocauto, o Ver-o-Peso é

revisitado, não como cartão postal, ou ponto turístico, mas em outra

perspectiva.

Armando traz a tona a história do lugar através da tragédia do Brigue

Palhaço, por meio do reconhecimento da mesma pelos atuais atores sociais

que circulam neste espaço. Ao partir desta iniciativa, o artista ergue novamente

um momento histórico de horror, não para intensificar essa lembrança, mas

para dificultar seu talvez inevitável apagamento. Relembrando a realização do

vídeo, Queiroz descreve:

[...] nós tivemos até mesmo o cuidado de fazer um documento, que até mesmo tu gentilmente participastes, e que tinha um pequeno texto que explicava o que era aquilo, qual era o objetivo, e se contextualizava a ação. Então as pessoas não eram convidadas de uma maneira aleatória , “olha toma e lê isso”, esse não era o objetivo. O objetivo era envolver as pessoas e isso quase era uma ação que hoje se fala dos direitos das pessoas à memória, essa memória coletiva, e querendo ou não eu acho que isso chama a atenção das pessoas para se perceberem enquanto elementos que advém de um passado, de uma trajetória. A pessoa passa a compreender também que tem uma herança por trás dela, uma herança que vem dos acontecimentos que voltam ao fundo de sua própria história. Forçosamente o Brigue Palhaço está relacionado a história do Ver-o-Peso, o navio estava fundiado em frente ao Ver-o-Peso quando aconteceu o massacre, ou seja, faz parte da história do

Ver-o-Peso e creio que muitos dali sabem desse fato.35

35

Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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O processo de filmagem envolveu duzentos e cinqüenta e dois

trabalhadores e usuários do espaço, que foram informados sobre o conteúdo

do vídeo. A equipe explicou que a participação de cada um consistia na leitura

da lista de mortos na tragédia do Brigue Palhaço. Assim, os trabalhadores e

usuários do Ver-o-Peso foram convidados a emprestarem seus rostos e suas

vozes para pronunciar o nome das vítimas do massacre do Brigue Palhaço.

Este ato simbólico fez surgir o videoarte com a duração de dez minutos.

As pessoas que participaram do vídeo eram feirantes ou pessoas que

transitavam pelo Ver-o-Peso. O artista já havia, em anos anteriores,

desenvolvido outros trabalhos36 neste espaço, tendo uma proximidade com

alguns atores sociais que de uma forma ou de outra vivenciam esse local. No

vídeo, na passagem de uma pessoa para outra, o artista utiliza como processo

de transição o fade out37 em branco. Esse efeito técnico funciona como um ato

simbólico onde a nuvem de cal que foi jogada no navio no momento da

tragédia, se fizesse presente como elemento que pertenceu ao massacre.

A escolha do público que integraria o vídeo foi intencional, diz respeito

ao tempo vivenciado no Ver-o-Peso, que carrega uma memória de

acontecimentos históricos que ocorreram em Belém, a exemplo da tragédia do

Brigue Palhaço, além das inúmeras lembranças vivênciadas por cada pessoa

que circula neste espaço, no transito intenso do Ver-o-Peso. Local onde as

ervas exalam, promovem a crendice de curas, histórias que marcam um

passado de lutas, conquistas, perdas e ganhos. Trata-se de um lugar de trocas

e convivências de diferentes culturas, heranças de um fazer que advém da

memória pessoal que se transforma em memória coletiva. Portelli (1997)

aborda que a reconstituição da memória se dá de acordo com a necessidade

de uma memória social, ela é uma ação individual que se processa em um

contexto coletivo. Dentro deste contexto, o artista pergunta-se como

compartilhar a dor histórica, um fato esquecido ou lembrado, um espaço de

referência?

36

Dentre estes destacam-se Lâmina (2005), Fio da Meada (2006) e Novelo (2007). 37

Este termo diz respeito a um efeito de edição de vídeo que ao ser acionado possibilita a transição esmaecida de uma imagem para outra. Assim, o fade out consiste em fazer com que a transparência da imagem anterior aumente para o surgimento com nitidez da próxima imagem filmada, no caso deste vídeo a transparência foi definida com a cor branca.

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Como você pode conseguir algo que venha do particular, mas que seja devolvido como algo que diz respeito a todos. Eu acho que é uma coisa que eu gostaria de estar trabalhando também com a memória destas pessoas, não somente oficializá-la através de um memorial. Eu acho que isso é importante como um espaço de referencia, mas que eles próprios se percebam como agentes de viveram no Ver-o-Peso. Quanto de vida, de experiência humana foi

estabelecido ali? Isso é incrível.38

Imagem 18: Frame do videoarte 252. Fonte: Acervo Armando Queiroz, 2007.

O artista acaba por fazer emergir mais do que nomes, memórias

apagadas ou esquecidas. Por meio do percurso histórico da tragédia do Brigue

Palhaço, acaba por lutar contra o esquecimento de uma memória histórica do

Ver-o-Peso. Sarlo (1997) mostra que:

A relação entre memória e esquecimento pode-se objetivar num discurso, mas, para que a relação exista, deve também existir o documento capaz de dar à memória pelo menos a mesma força do esquecimento: o documento que se imponha como pilar da memória e que a memória tende, inevitavelmente a rejeitar. (SARLO, 1997, p. 41)

Através do vídeo se tem a materialização poética de uma imagem

desta memória. Foi interessante perceber que durante o processo de gravação

gerou-se uma colaboração e atenção voltada para um fato histórico que estava

sendo lembrado, perguntava-se o que foi a Cabanagem? E quem foram

aquelas pessoas cujos nomes estavam sendo lidos pelos trabalhadores do Ver-

o-Peso? Despertou-se a curiosidade e um canal de comunicação.

38 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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O Ver-o-Peso, apesar de acolher diversos trabalhadores, é um lugar

também de passagem de diversas pessoas, e para se conseguir este interesse,

e atenção para a realização da gravação foi preciso uma aproximação dos

discursos entre o artista e os atores sociais envolvidos. A equipe, formada por

mim, Armando e técnicos do Museu da Imagem e do Som (MIS), além de

explicar a proposta, apresentou uma tira de papel com um breve texto sobre a

Cabanagem e a tragédia do Brigue Palhaço, como forma de informar e criar a

possibilidade de participação do ator social que era envolvido. Assim duzentos

e cinqüenta e duas pessoas foram filmadas no Ver-o-Peso. Existe um termo de

autorização destinado às pessoas que emprestaram o seu rosto e vozes

durante a gravação, e há um grande interesse de Armando em mostrar este

vídeo no mercado. Segundo o artista talvez isso se faça em uma data muito

específica, que marque a tragédia do Brigue Palhaço, ou da Cabanagem. O

resultado desta produção fez parte primeiramente da sala da Cabanagem

presente no Museu Histórico do Estado do Pará.

Quando o artista começou a elaborar, juntamente com Herkenhoff,

aquilo que seria o corpo da exposição, Armando pediu autorização para a

diretora do Museu da Imagem e do Som e o diretor do Museu Histórico do

Estado do Pará, para que liberassem o uso dessas imagens, já que as mesmas

foram feitas por solicitação do museu, quando Armando estava cumprindo um

papel profissional ligado diretamente à instituição.

O videoarte 252 talvez seja a obra que antecipe o interesse em tratar

sobre questões de devoramentos, elaborando uma reflexão concernente a

sociedade em meio a conflitos, que é consumida e consome-se em um sistema

de dominação e esquecimento. Sobre este fato o artista expõe:

[...] acho que ele [o vídeo] dentro desta trajetória de construção que foi feita para o prêmio, ele tem essa importância também de apontar um caminho, [...] então eu acho que também foi uma coisa maravilhosa com o Paulo de tentar me provocar e refletir sobre o que

é esta produção, para o que ela estava apontando.39

O artista desenvolveu o videoarte Mar Dulce Barroco, o qual faz

relação com o contexto da tragédia do Brigue Palhaço. O primeiro nome do

39 Armando Queiroz em entrevista a realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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vídeo foi Rio Mar, o qual foi modificado a partir de uma conversa que Armando

teve com o curador Orlando Maneschy o qual identificou características do

Barroco na cor presente no vídeo, nos contrastes da luz e a violência da água,

decidiu nomear então de Mar Dulce Barroco. Queiroz expõe que aceitou sem

restrição o novo nome:

[...] eu achei tão interessante, e eu não tenho restrições com essas coisas, acho que quando vem para o bem, é uma contribuição. Eu achei tão bonito Mar Dulce Barroco, ele tem uma força poética, que dá todo um sentido na história das nossas reminiscências da nossa construção histórica. Eu acho assim, não desmerecendo, que ele ainda é Rio Mar e ainda é mais Mar Dulce Barroco, talvez até possa ter outro nome, mas eu acho que seria tão bom se as coisas tivessem essa vivacidade, de que a cada pessoa que da uma interpretação aquilo possa contribuir com alguma leitura, porque querendo ou não o Orlando quando ele renomeia a obra ganha mais uma camada então eu deixo isso muito aberto e livre para que as coisas possam ser transformadas também com a impressão das

pessoas, isso para mim é bem vindo40.

Neste videoarte, o artista filmou o movimento das ondas do Rio

Guamá, que se debatiam contra a parede construída na estrutura de proteção

que se situa em frente ao Espaço Cultural Casa das 11 Janelas, localizada no

Complexo Feliz Lusitânia.41

Imagem 19: Frame do videoarte Mar Dulce Barroco. Fonte: Acervo Armando Queiroz, 2009.

40 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira em 25 de outubro de 2010. 41 Compõe as primeiras construções da cidade de Belém, como: O Forte do Presépio, a Casa das 11

Janelas, a Catedral da Sé, a Praça Dom Frei Caetano Brandão e a Igreja de Santo Alexandre, onde também se encontra o Museu de Arte Sacra e o Museu do Círio.

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Mar Dulce Barroco foi feito em 2009, trata-se de uma produção que

inicialmente não foi pensada para participar do Prêmio. Segundo o artista esta

obra foi resgatada pelo olhar do próprio curador.

O Paulo, quando nós tivemos o encontro, ele ficou muito interessado neste vídeo e percebeu o quanto estava relacionado com minhas próprias buscas, porque até então ele foi produzido de uma maneira bem isolada, porque faz parte do meu momento, não foi direcionado

para o projeto, ele veio pelas bordas do meu interesse [...]42

O artista revela ter ficado muito impressionado com a força da água do

Rio Guamá. Realizou a filmagem utilizando uma câmera cyber-shot que o

acompanha sempre quando faz algum tipo de registro. De acordo com seu

depoimento, a obra surge como um esboço por não ser possível reproduzir

novamente o mesmo momento. O vídeo se apresenta como o próprio momento

da descoberta do artista. Neste caso trata-se do instante em que percebe a

força da água presente naquele local. Apesar do artista ter voltado, juntamente

com Marcelo Rodrigues, para fazer a nova filmagem com uma câmera de maior

qualidade, esse momento não se repetiu. Armando confessa:

[...] nós tentamos duas vezes filmar no mesmo local, e não conseguimos captar aquele momento especial, é interessante a gente perceber isso, são os caprichos também da própria natureza, num momento que felizmente eu estava ali e acabei registrando aquilo. Mas eu tive muita dificuldade depois de reproduzir aquele momento e ai, nesse sentido, eu preferi optar por uma qualidade

menor de imagem, mas respeitando aquele momento especial.43

É possível perceber que o vídeo revela o olhar atento e sensível de

quem registrou a violência da maré do Rio Guamá. Para o artista, o que

aconteceu partiu de uma determinada época, sob uma determinada luz do ano

que coincidiu com a maré. Pode-se pensar que mesmo que o fenômeno

aconteça diversas vezes, ele jamais se repetirá como naquele momento, o

artista revela ainda que o registro daquele instante ocorreu como uma captura

precária por ser uma ciber-shot, mas o que vale é o momento de percepção de

tudo aquilo.

42 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010. 43 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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Salles (2000), considera que a decisão do artista sobre o que deve ser

guardado e como deve ser guardado enquanto obra, está normalmente

associada ao plano de necessidades do artista e à natureza de suas buscas

naquele momento determinado ou em um outro momento futuro. A autora

enfatiza que o espaço de criação do artista, segue neste caso, uma perspectiva

de caráter mais individual:

Poderíamos dizer que este espaço é o artista, na medida em que retrata seus gestos. De uma certa forma, seu modo de ação deixa registros ou inscreve-se nestes locais, assim como acontece em suas “caminhadas. Cada artista escolhe seus instrumentos de trabalho e, principalmente, o modo como estes podem ser acessados. [...] Podemos assim, compreender o modo como o artista relaciona-se com esse espaço como uma forma de obtenção de conhecimento sobre a obra em construção, sobre aquilo que o artista quer e sobre ele mesmo, pois nesse sentido o espaço pode ser visto como uma exteriorização da subjetividade. (SALLES, 2006, p. 54).

O video Mar Dulce Barroco foi pensado, num primeiro momento, para

ser apresentado ao público de maneira isolada, mas é interessante perceber o

quanto ganhou força ao ser mostrado com os outros elementos presentes no

contexto da exposição, como o video 252 e os documentos que, no conjunto,

compõem a instalação.

Imagem 20: Mar Dulce Barroco e 252 em exposição no Museu de Arte Contemporânea, São Paulo. Foto: Armando Queiroz, 2010.

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Mar Dulce Barroco, acaba por ganhar um novo significado, estabelece

seu discurso em diálogo com o contexto histórico da Cabanagem presente nos

outros trabalhos. Em relação a este fato o artista afirma:

Eu acho que foi muito bem vindo o olhar do Paulo, percebendo esta relação e sugerindo que eu pudesse incluí-lo entre os outros trabalhos. Eu acho interessante a gente pontuar também o papel de alguém que está próximo, que acompanha e que consegue perceber e estabelecer estas relações que são muito bem vindas porque eu acho que ele foi detalista no que percebeu e no quanto isto está

relacionado ao vídeo 252, aos documentos. 44

Os documentos, que se inserem na exposição, têm a intenção de

marcar a trajetória de um passado, um presente e um possível futuro,

levantando questões de conflitos sociais. O Auto da Devassa é um dos

documentos apresentados e se encontra no Arquivo Nacional do Rio de

Janeiro. Neste documento encontram-se registrados os nomes das pessoas

que participaram da tragédia do Brigue Palhaço. Além desta lista, o artista

utiliza outra, relativa ao momento atual, denominada de Lista da Morte, que

aponta o nome de pessoas que estão ameaçadas de morte devido às questões

de conflitos agrários. O outro documento refere-se a um atestado de óbito em

branco simbolizando o lugar reservado para um possível futuro preenchimento,

mais um registro de morte.

O auto da devassa, documento que representa os duzentos e

cinqüenta e dois mortos na tragédia do Brigue Palhaço, foi conseguido por

meio do pesquisador João Lucio, que na época estava junto com Armando

fazendo parte da comissão de técnicos do MHEP, para pensar a sala piloto que

discutiria a Cabanagem, já abordada anteriormente. João Lúcio sabia da

existência desse documento e em uma das reuniões no Museu, levou a cópia

de uma revista na qual havia uma matéria que se referia à lista dos mortos da

Cabanagem, o que gerou o interesse do artista, o qual solicitou a xerox da

matéria.

Por conta desta lista Queiroz realizou o video 252 e quando começou

produzir as obras para o Marcantonio Vilaça, já de posse desta informação,

44 Armando Queiroz em entrevista realizada no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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perguntou ao João Lúcio onde poderia ter contato com o documento original

que trazia a relação dos mortos. Neste caso, a negociação para ter acesso à

lista começou entre Queiroz e João Lucio, e se estendeu às instituições. A

vinda da cópia do documento para o artista realizar o seu trabalho, ocorreu da

seguinte forma:

[...] eu perguntei para ele [João Lúcio] aonde é que eu poderia ter contato com o original e ai ele me falou que isso pertencia ao arquivo nacional e se predispôs a ajudar, foi super generoso da parte dele, e ai esse documento foi conseguido. Logicamente eu fiz uma carta falando do meu interesse de adquirir o documento e qual motivo, mas essa carta foi entregue ao Arquivo Público do Pará e a instituição negociou a vinda do documento, tanto que ele não chegou as minhas mãos diretamente, veio através do arquivo público. Então foi uma conversa entre instituições, com todo um tramite, e que foi facilitado

pelo João Lucio.45

Para Armando Queiroz mesmo que este documento seja uma cópia

xerográfica se mantém o mesmo valor do original, já que se trata da essência

do que está escrito, e a ausência da originalidade documental não interfere em

seu processo de criação nem no discurso que desenvolve sobre a Cabanagem,

sobre a violência praticada pela luta de poder, pois a lista com o nome dos

cabanos simboliza muito mais do que está colocado em texto, uma vez que se

trata de uma memória que foi apagada, de perdas humanas esquecidas. A

tragédia encontra-se registrada nos livros de História, mas o nome dos que

morreram diluíram-se no tempo, na própria narrativa histórica.

No processo de pesquisa, a forma investigativa de buscar similitudes

da violência no Pará, conduziu o artista à outra lista mais atualizada: a lista dos

ameaçados de morte. Trata-se de uma lista nacional, ela não se restringe

somente ao Pará, mas inclui outros estados em que há perseguição e

assassinatos por conta dos conflitos agrários. Bastante detalhada, a relação

revela o nome da pessoa, qual tipo de atividade exerce naquele momento, qual

a região e local onde o conflito está instaurado.

Queiroz contatou com algumas pessoas, militantes de entidades de

direitos humanos e estas foram dando pistas a onde poderia conseguir a lista.

45 Armando Queiroz em entrevista realizada na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de Outubro de

2010.

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Caso os militantes saibam que alguma pessoa está sendo ameaçada de morte,

automaticamente ela entra para lista. O artista pacientemente procurou um

contexto que o levasse até os ameaçados de morte em conflitos agrários.

Primeiro encontrou muitas dificuldades por se tratar de uma lista pública,

escrita por entidades que atuam no campo dos direitos humanos.

As entidades de direitos humanos, como a Comissão Pastoral da

Terra, estão muito preocupadas com essas pessoas ameaçadas, e quando

essas listas chegam ao seu conhecimento são utilizadas como prova de que as

pessoas juradas de morte estão em risco. Neste caso, servem para que os

indivíduos da lista sejam alertados, inibindo tragédias e sofrimentos. Estas

entidades publicam a lista dos nomes para explicitarem as ameaças. Na

verdade, este procedimento denuncia o risco que essas pessoas estão

correndo. A respeito deste documento. Queiroz pontua:

[...] é uma lista muito dura quando nos depararmos com ela, porque ela é uma lista verdadeira e essas pessoas estão ali e a qualquer momento, infelizmente, só sairão dali se a gente não tiver nenhum tipo de postura diante isso, aquela pessoa só sairá dali quando for

assassinada, é muito triste, é muito duro a gente pensar nessa lista46

Quando o artista traz à tona esta lista faz-nos pensar que há uma

estratégia ou uma metodologia criada pelas entidades de direitos humanos,

para que se avise e se evite a possível morte dos inscritos. Porém, a lista

acaba funcionando também como uma antecipação da perspectiva de morte.

Mesmo não sendo sua intenção, gera tensão e ansiedade na certeza de que a

morte pode estar mais perto do que se imagina. A lista por si só já é o estigma

da morte.

O fenômeno das listas dos “marcados para morrer” é um dos

testemunhos mais cruéis da violência na região sul e sudeste do Pará. Para o

artista, este fenômeno “é de uma crueldade muito grande, (...) é um triste

termômetro do que nós somos, do quanto nós utilizamos ainda da violência

para resolvermos coisas comuns” 47. Essa lista circula na região não raro

46 Armando Queiroz em entrevista realizada na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de Outubro de

2010. 47 Armando Queiroz em entrevista a autora no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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acompanhada de uma tabela de preços de execuções, na qual se diferencia os

valores de acordo com a posição social do ameaçado. Segundo Silva:

[...] existe uma burocracia da morte que se transforma em arquivo. Em certos casos, esta auto documentação da barbárie atingiu na história um grau de detalhamento que desafia a psicologia social. Pois se, por um lado, poderíamos argumentar que do ponto de vista dos fundamentalistas o assassinato do outro grupo é recomendável e justificável, por outro lado é sabido que em qualquer cena genocidária paira o espectro da violência. (SILVA, 2010, p. 12)

Este processo de violência e ameaça que marca os conflitos agrários

traz à tona a presença de um genocídio. As execuções da lista da morte são

precedidas de ameaças, que acabam se cumprindo. A tática da intimidação

parece ser utilizada para advertir os trabalhadores, os defensores dos direitos

humanos e a sociedade em geral, criando um clima de medo e tensão,

provocado pela existência de um poder de execução.

O drama da morte que persegue tais pessoas, faz com que reflitamos

até que ponto temos uma postura crítica em vista a esta realidade de terror?

Percebe-se outra espécie de holocausto, permanente e contínuo, que está

presente não somente na realidade dos conflitos agrários, mas em diversas

outras situações, como nos conflitos indígenas nos quais se testemunha o

extermínio de pessoas, de culturas e identidades. Desta maneira, torna-se

visível na obra de Queiroz, a sua intenção de criticar a sociedade atual através

da arte, de revelar o que é silenciado frente à violência que nos consome.

No conjunto de documentos presentes na primeira sala expositiva, o

artista também inseriu um atestado de óbito em branco. Marcelo Rodrigues,

que filmou as ações de Armando sugeriu ao artista que este atestado fosse em

branco, como forma de simbolizar um possível futuro registro de morte. Queiroz

acolheu a sugestão e diz ter sido um presente que o amigo lhe dera naquele

momento. Assim, o atestado de óbito, é um documento que traz dados já

preenchidos que foram manipulados diretamente pelo artista por meio de

programa de edição de imagem, para que voltasse a ser em branco. Todos

temos na mão um atestado de óbito em branco para assinalar o nome de

alguém ou de nós mesmos.

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Imagem 21: documentos em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Foto: Armando Queiroz, 2010.

Há na obra de Armando Queiroz uma crítica a condição do ser humano

e por mais que se trate de uma questão local ela abrange um contexto maior,

está relacionado a uma questão de poder que diz respeito a todos,

independente de lugar, de país ou continente. Para Bourrriaud (2009, p.23), “a

arte contemporânea realmente desenvolve um projeto político quando se

empenha em investir e problematizar a esfera das relações”. O autor ainda

afirma que na arte contemporânea:

[...] as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista, [...] o artista habita as circunstancias dadas pelo presente para transformar o contexto de sua vida (sua relação com o mundo sensível ou conceitual) num universo duradouro. (BOURRRIAUD, 2009, p. 18-19)

Os documentos provenientes de circunstâncias sociais e políticas

integrantes da exposição passam a ser então para Queiroz, a presentificação

de tudo que está nos vídeo Mar Dulce Barroco e o 252. Há no trabalho

realizado por ele uma preocupação em estar engajado com a realidade social

atual, isto se torna perceptível nas relações estabelecidas com os marcos

históricos dos conflitos presentes na memória de Belém.

Em relação a este território expositivo, no qual as obras se articulam,

percebe-se a presença de três elementos de ligação: a violência marcada pelas

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ações humanas que se manifestam utilizando mecanismos de força e

concentração de poder; a morte desencadeada como conseqüência da

violência que busca a possível “solução” de um problema e o conflito que é

gerado pela permanência de ações de violência geradoras de morte. A respeito

dos documentos o artista declara:

[...] para mim eles são objetos que produzem uma reflexão do nosso posicionamento também diante dessas coisas. Então, a premissa vem se estabelecendo em torno do nosso processo histórico de uma forma puramente cheia de significados. Da forma que prevalece uma violência muitas vezes extremamente além da conta, ela é uma violência que não somente elimina aquelas pessoas, mas dá exemplo para que outros não cometam o erro de se posicionar, ou seja, sempre é uma violência que dá um exemplo para as pessoas

[...] não se expressarem. Então, para mim, isso é muito assustador.48

Em que aspecto a violência é recomendável? Em que momento a

solução final de um problema é o genocídeo? Infelizmente, continua-se

buscando estratégias para se exterminar com eficácia o outro “indesejável”.

Para enfatizar esta realidade, nos damos conta que “a constância do horror

pode não destruir materialmente tudo, mas ao mesmo tempo, ninguém está

salvo desta presença permanente” (SARLO, 1997, p. 39).

As obras citadas acima expressam um processo de criação construído

a partir da percepção do artista sobre o contexto histórico marcado pelos

acontecimentos da Cabanagem no Pará, e os conflitos agrários na Amazônia.

Este contexto abarca ainda uma esfera mais ampla, pois serve de metáfora

para reflexão sobre as desigualdades sociais e a relação de poder e

hegemonia que continuam presentes não somente no contexto Amazônico,

mas também no mundo todo. O interessante é perceber que estas questões se

estendem na concepção das obras que formam o segundo território expositivo.

2.2 Território de Conflitos, Devorações e Ritos

A outra sala que forma a exposição de Armando no Marcantônio

Vilaça, se encontrava composta pelas seguintes obras: Espada Cabana, Midas,

Ouro de Tolo, Ymá Nhandehetama, Pilatos e A resposta do Pajé. 48 Armando Queiroz em entrevista a autora no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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A abordagem de questões referentes a Cabanagem, presente na

primeira sala, dialoga com a segunda por meio da obra Espada Cabana. Trata-

se de uma espada que foi concebida durante as caminhadas de Armando pelo

Ver-o-Peso quando conheceu Cezar Angelim, uma pessoa que se diz

tataraneto de Eduardo Angelim49. Com Cezar se encontrava uma espada que

afirmou pertencer ao presidente cabano. Este objeto despertou o interesse de

Queiroz que solicitou ao trabalhador local que o emprestasse para fazer parte

do circuito expositivo do prêmio. Para o artista pouco importa se o parentesco

ou a espada compõem uma verdade histórica, pois esta “autenticidade”

representa a força da memória cabana entre a população, por esta razão:

[...] de pouco interessa, porque a partir do momento que alguém constrói um passado, constrói uma relação com este passado através de um objeto, ou seja, esta espada. Ele não esta construindo algo devido ao fato dela ser ou não do Eduardo Angelim, mas me interessa por ser algo que pertence a construção de afetividade e de valor que ele (Cezar) atribui àquela espada. Então para mim sim ela é uma espada cabana, e principalmente porque vai de encontro ao esquecimento que todos nós temos deste ideário cabano, que querendo ou não é uma coisa que se forma dentro de nossos costumes. E acho interessante quando uma pessoa e até mesmo a família dele cria esta relação, não enquanto parentesco, mas que faz nascer o elo de algo que acho que não é somente daquela família, mas que pertence a todos nós. Se a gente relembrar a cabanagem como um momento especial da história do Pará e não somente como um ideal de luta, mas problematizando essa questão, [...] acho que é legal quando a gente acaba tratando dessas coisas que fala do nosso

passado e fala do nosso presente.50

Há nessa proposta artística de Armando Queiroz, uma costura entre o

passado e o presente. A persistente presença da luta cabana, símbolo de

defesa e liberdade, é relembrada e atualizada a partir do momento que a

espada é vista e defendida como símbolo de memória, não exatamente do

acontecimento histórico, mas do valor afetivo atribuído pelo trabalhador local.

Sandra Nogueira (2002) faz-nos refletir sobre os objetos que desempenham

um papel necessário a vida do ser humano, por estarem sempre presentes na

história da construção de uma sociedade, resistindo, permanecendo e se

eternizando, em face de outras criações humanas. Ao permanecerem e

49 Eduardo Francisco Nogueira foi um revolucionário brasileiro, líder da revolta da Cabanagem. Chegou

ao Pará em 1820. Devido ao seu espirito de luta partidária, foi apelidado de “Angelim”, madeira muito resistente. Lutou pela autonomia da província do Pará, separando-a do Império do Brasil. Fonte: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Angelim>. 50 Armando Queiroz em entrevista no Museu de Arte Sacra no dia 30 de Março de 2010.

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resistirem ao tempo, ganham novos significados e marcam evidências

históricas de uma cultura.

A memória social é o „armário‟ das nossas aprendizagens e vivências culturais, e a cultura material, nada mais é do que uma infinita quantidade de „prateleiras‟ deste mesmo „armário‟ onde as portas estão sempre entreabertas, permitindo a quem chega recriar, reinventar, acrescentar e também alterar. (NOGUEIRA, 2002, p. 6).

Imagem 22: Espada Cabana em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Foto: Armando Queiroz, 2010.

A presença material de um elemento memorável, dialoga com a tríade:

passado-presente-futuro, que Diehl (2002) nos faz pensar. O autor define a

memória como o significado de experiências consistentes facilmente

localizáveis num tempo passado, por ser uma representação produzida pela e

através da experiência. Possui contextualidade e pode ser atualizada.

A memória pode constituir-se de elementos individuais e coletivos, fazendo parte de perspectiva de futuro, de utopias, de consciências do passado e de sofrimentos. Ela possui a capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e cultural, uma vez que pode abranger a totalidade do passado num determinado corte temporal. (DIEHL, 2002, p. 116).

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A memória também está presente na construção do vídeo Midas, no

qual, através de uma ação performática, o artista recorre à mitologia grega para

levantar questões sobre a hegemonia e o poder. O nome da obra se refere ao

rei Midas, que na mitologia grega era um camponês eleito rei pelo povo. Certa

vez, Sileno, pai de criação do deus Baco, foi encontrado bêbado por Midas,

que o acolheu e o tratou muito bem. Baco resolveu presentear Midas

oferecendo-lhe a possibilidade de escolher uma recompensa. Midas escolheu o

poder de transformar tudo o que tocasse em ouro, e assim aconteceu, até o

momento em que não podia mais comer nem beber, pois tudo que tocava

transformava-se em ouro. Percebendo que este desejo acabaria levando-o a

morte, decidiu então pedir a Baco para livrá-lo do pedido. Ao se livrar daquela

situação Midas transformou-se em um simples camponês e passou a odiar a

riqueza.

Midas é representado neste vídeo, pelo próprio artista. Pintado de

dourado, Armando Queiroz devora vários besouros chineses51, mastigando-os

de forma voraz. Os besourinhos que lutam pela sobrevivência, podem nos

remeter à condição do ser humano em meio a relação de poder à situação

desigual que se estabelece entre dominador e dominado. No segundo

momento, o vídeo é projetado no sentido contrário, de trás para frente, e este

procedimento técnico faz com que o próprio “Midas” seja devorado pelos

besouros que saem de sua boca, como se estivessem acabado de consumir

alguém já morto.

A obra viaja à mitologia grega para falar de mais um drama humano na

Amazônia: o dos garimpos. Midas acaba por representar os atores sociais que

se deixaram envolver pelo sonho de ficar rico por meio do garimpo, porém

muitos desses acabaram por permanecer em estado decadente de miséria. Por

não saberem como utilizar tanta riqueza, acabaram empobrecendo, devorados

51

O besouro chinês (Anoplophora glabripennis) é nativo da China e de outros países da região do

Pacífico. Foi introduzido em Chicago, e na área da cidade de Nova Iorque através de material de

embalagem de madeira maciça da China. Internamente, a movimentação de materiais infestados feitos de

árvore, incluindo toras e lenha, pode dispersar facilmente esse inseto. Ele é conhecido por atacar pelo

menos 18 espécies de árvores de madeira de lei, incluindo bordo,vidoeiro, castanha, choupo, salgueiro,

ulmeiro e locusta cinza e preta. Leva de um a três anos para atingir a maturidade. Fonte:

<http://objetoseducacionais2.mec.gov.br/handle/mec/12057>.

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por um tempo e por um lugar que se envolve a cada dia na permanência de

conflitos.

Imagem 23: Frame do videoarte Midas. Fonte: Acervo Armando Queiroz, 2010.

Atualmente existem cerca de 20 regiões de alta concentração de

garimpos onde conflitos econômicos e sociais se manifestam. A maioria dos

garimpeiros que atuam diretamente na coleta de ouro são trabalhadores

braçais, com baixo grau de escolaridade. Fonseca (2000) descreve que no

trabalho do garimpo não há nenhuma assistência médica, a exposição aos

agentes da natureza é constante e há o risco de desabamento de barrancos.

Frequentemente em outros países, a riqueza produzida na mineração é

usada para investimento no desenvolvimento local, com o auxílio do Estado. O

garimpo de ouro na Amazônia não se enquadra nesta regra: os comerciantes

de ouro, que compram o produto do garimpo, e os "donos de garimpo" vivem

do usufruto da riqueza produzida no local. Estes donos e empresários investem

o dinheiro em terras na região e no mercado financeiro.

Segundo Fonseca (2000), o Brasil não possui uma política mineral

explícita, sendo a exploração do ouro organizada regionalmente pelas

populações locais, movidas por aspirações de ascensão e fuga da eterna

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exclusão social. Freqüentemente os garimpos funcionam com infra-estrutura

precária, agredindo o ambiente e liberando grandes quantidades de mercúrio

nos rios, no ar e no solo. Tal realidade se traduz nas contradições presentes no

sistema econômico que rege a vida contemporânea.

A realidade de conquista e devoração da riqueza presente em Midas,

acaba por representar não somente os donos do garimpo que anseiam pelo

lucro, mas os próprios garimpeiros que na ânsia de devorar a terra em busca

de ouro, acabaram por perder a razão de si mesmos na permanência em um

ambiente de miséria. Este contexto é também aprofundado na obra Ouro de

Tolo. Trata-se da exibição de dezesseis próteses dentárias que foram

confeccionadas a partir da arcada dentária de garimpeiros de Serra Pelada.

Esta região localizada no sul do Estado do Pará, na década de 1980, foi

invadida por milhares de pessoas que buscavam o enriquecimento rápido

através do ouro. Em razão da grande concentração de garimpeiros surgiu uma

série de necessidades para ser supridas. A região atraiu, então, lavradores,

médicos, motoristas, padres, engenheiros, entre outros. Porém, com o objetivo

de evitar possíveis confusões, proibiu-se a entrada de mulheres e bebidas nos

garimpos. O major do Exército, Sebastião Curió, era o responsável pela

organização no garimpo.

As condições de trabalho, assim como os demais garimpos na

Amazônia, eram muito precárias: calor intenso, utilização de escadas

danificadas, barrancos, poeira de monóxido de ferro no ar, inaladas pelos

trabalhadores, e prejudicial aos pulmões. Apesar destes fatores, os garimpeiros

trabalhavam dia e noite na esperança de “bamburrar”52.

A produção aurífera em Serra Pelada decresceu, ocorrendo em 1992, a

paralisação da extração de ouro. A grande cratera aberta para a retirada do

ouro transformou-se num enorme lago. A Companhia Vale do Rio Doce

recebeu uma indenização de 59 milhões do Governo Federal, pois tinha

direitos sobre as jazidas de ouro, invadidas por milhares de garimpeiros.

52

Expressão relacionada ao fato de enriquecer.

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Imagem 24: Garimpeiros em Serra Pelada. Foto: Alfredo Jaar. <http://www.luxflux.net/n5/.htm>

Em 2002, o Congresso Nacional aprovou um decreto que permitiu aos

garimpeiros a execução de suas atividades em uma área próxima a Serra

Pelada. Em poucos meses, aproximadamente 10.000 garimpeiros foram

atraídos para essa região. Serra Pelada foi considerada o maior garimpo a céu

aberto do mundo. Toneladas de ouro foram retiradas do local. Porém, a maioria

dos garimpeiros não conseguiu enriquecer, e o que é pior, muitos morreram

durante o trabalho.

A ideia de Armando de ir até este local partiu de um interesse muito

antigo. Surgiu por conta do que ficou registrado em sua memória, das imagens

da Serra Pelada que viu através de reportagens passadas na televisão.

Naquela época, mais precisamente em 1980, a expressão que definia aquele

lugar veio do discurso dos repórteres que o denominavam de “formigueiro

humano”, um tratamento que despersonifica o ser humano e o configura como

um animal. Como então se aproximar daquele lugar?

[...] eu ficava me perguntando como conseguir essa penetração, pois como em qualquer outro lugar você é um estranho. E como é que você vai se apresentar? Para eles, é uma coisa muito vaga eu dizer “olha eu estou desenvolvendo um projeto, eu vim aqui conhecer

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vocês”. É tão difícil você ser compreendido dessa forma. Ai comecei

a pensar como eu poderia fazer isso.53

Em meio a essa angústia Armando lembrou que conhecia uma pessoa

de Marabá, chamada Killzy Kelly Pereira de Lucena, repórter que se aproximou

do artista quando precisou fazer uma matéria que citava Armando e o artista

Marcone Moreira54, como os únicos artistas do norte entre os trinta indicados

ao prêmio Marcantônio Vilaça no ano de 2007.

Killzy foi lembrada porque havia comentado a Armando, que sua

família tinha ido para o sudeste do Pará por conta do garimpo. Primeiro o tio,

depois o avô, e em seguida toda a família. Ao recordar este fato, o artista por

meio de uma ligação para a jornalista revelou o interesse em ir até Serra

Pelada e da dificuldade em ter uma via de acesso para que a visita ocorresse

no local. Como Killzy estava estudando em Belém, disse que não poderia

acompanhar o artista neste percurso, porém direcionou Armando ao roteiro que

tornaria viável este acesso. Propôs que o artista fosse a Marabá conversar com

seus pais, José Geraldo de Brito e Raimunda Pereira de Lucena, os quais o

encaminhariam ao contato com algumas pessoas em Serra Pelada. O artista

conta que este encontro se deu da seguinte forma:

[...] os pais dela (Killzy) me receberam assim de uma maneira fantástica. Eles moram em Marabá há muitos anos, em Curionópolis, são agentes de saúde. [...] Eles tiveram muitas histórias também para me contar, além de permitir que eu conhecesse pessoas através deles. Então, foi primeiro com a família deles, do tio e do avo, que eu fiz uma entrevista, depois com outras pessoas como o Carioca, um garimpeiro bem conhecido lá, e ai o Carioca me levou no carro dele a Serra Pelada e me apresentou as pessoas já em Curionopolis. [...] muito provavelmente se eu fosse para lá sem conhecer ninguém isso tudo seria muito dificultoso, tanto que depois [...] a própria presença minha e do Marcelo lá no local foi motivo de curiosidade e nós fomos perguntados o que fomos fazer lá, porque ali também ainda é um

ambiente de disputa.55

Como revelado no depoimento de Armando, por meio do seu José e

dona Raimunda, conheceu Carioca, que lhe permitiu o contato direto com

53

Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010. 54

Marcone Moreira é um artista paraense que iniciou suas experimentações em 1997. É sócio-fundador da Associação dos Artistas Plásticos de Marabá. Realizou importantes exposições individuais no Centro Cultural São Paulo em 2007, no Museu da Pampulha em 2006 (Minas Gerais), na Galeria Virgílio (São Paulo) e Graça Landeira (Belém). Fonte: <http://www.lurixs.com/artista.php?codArtista=10> 55

Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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Curionópolis. O povoado de Curionópolis foi criado para abrigar as famílias dos

garimpeiros, os mais velhos, e as prostitutas. Esta espécie de retaguarda do

garimpo recebeu o nome de currutela.56 Os garimpeiros visitavam este espaço

nos fins de semana, de quinze em quinze dias ou mesmo depois de alguns

meses. Certas famílias moradoras de Curionópolis acabavam passando por

algumas dificuldades porque muitas vezes os garimpeiros as esqueciam devido

às farras que podiam durar dias, e assim retornavam depois com fardos de

comida que abasteciam a alimentação, correspondente ao tempo de sua

ausência. Este deslocamento gerava um clima de grande tensão, violência e

morte. Em Curionópolis, era resolvido todas as pendências de conflitos gerados

nos garimpos. Ao se direcionar, juntamente com Carioca e Marcelo, a

Curionópolis, Armando se deparou com a seguinte realidade:

[...] a impressão que eu tive era quase de uma cidade fantasma, com fantasmas ainda vivendo nela e esses fantasmas ainda com esse sonho e o brilho do ouro nos olhos. Muitos não saem dali [...] é uma questão de honra para eles, em não saírem de uma maneira pior do que chegaram, não tem coragem de voltar mais para suas famílias. Eles estão envelhecendo, [...] e a grande maioria deles conseguiu de alguma forma uma aposentadoria, que, gira a economia local. [...] É uma situação muito difícil porque ali é um bolsão de misérias, doenças contagiosas, que se proliferam. O número de casos de hanseníase é muito grande no local, tuberculose muito presente. Tem uma questão de saúde publica alarmante. Os casebres são todos insalubres, de pouca ventilação. [...] O alcoolismo é muito grande entre eles, e alcança os homens já maduros. A prostituição infantil está instalada lá e é vista de uma maneira que faz parte do dia a dia, não é vista como algo que não seja natural para aquelas pessoas. [...] A prostituição também está ligada a uma forma de sobrevivência das

famílias. É uma situação assim, muito precária.57

A partir daí a imagem de Serra Pelada que habitava o imaginário do

artista se materializa por meio de sua visita ao local e das narrativas dos

garimpeiros que teve contato na região. Embora a história oral diga respeito:

[...] a padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos, visa aprofundá-los, em essência, por meio de conversas com pessoas

56

A Currutela pode ser empregada nas movimentações de exercito em guerra. O movimento das tropas precisa de uma estrutura para a subsistência do exercito então atrás vão as carroças, as mulheres que sejam casadas ou não, as prostitutas, os mantimentos, os primeiros socorros de enfermos. A currutela se caracteriza por a retaguarda da vanguarda do exercito. Em Serra Pelada a currutela foi a retaguarda dos homens que exploravam o garimpo. Fonte: Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010. 57 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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sobre a experiência e a memória individuais e ainda por meio do impacto que tiveram na vida de cada uma. (PORTELLI, 1997, p. 15).

Armando se direciona a Curionópolis não em busca de uma história

oficial, sob o ponto de vista institucional, foi ao encontro dos garimpeiros que

continuam vivenciando de alguma forma Serra Pelada, pois não se afastaram

do local que lhes prometeu o ouro. Muitos deles continuam, em condições de

miséria, vivendo em Curionópolis, cada vez mais distantes da chance de

possuírem grandes riquezas. Lipovetsky (2007) aponta que ao longo da

segunda metade do século XX foi construída a “civilização do desejo” esta:

É inseparável das novas orientações do capitalismo posto no caminho da estimulação perpétua da demanda, da mercantilização e da multiplicação indefinida das necessidades: o capitalismo de consumo tomou o lugar das economias de produção [...] A vida do presente tomou o lugar das expectativas do futuro histórico e do hedonismo, o das militâncias políticas; a febre do conforto substitui as paixões nacionalistas e os lazeres, a revolução. (LIPOVETSKY, 2007, p. 11).

De fato, de uma forma ou de outra o garimpo provocou uma reviravolta,

criou um complexo cenário para aqueles que acreditaram no sonho de

enriquecer de forma rápida. Juntamente com o sonho de riqueza, da efetivação

de desejos, instaurou-se a ambição. A acirrada disputa pelo ouro tornou Serra

Pelada um grande lago de aproximadamente 200 metros de profundidade,

totalmente contaminado de mercúrio. Ainda assim alguns homens continuam a

garimpar.

O local também atraiu a presença de alguns artistas que de alguma

forma representaram o sonho de garimpeiros, como Rita Cadilaque, ou foram

atraídos pelo cenário de Serra Pelada, como no caso dos Trapalhões, ou de

fotógrafos como Paulo Santos, Elza Lima, Sebastião Salgado e Paula

Sampaio. Pessoas do mundo da arte, que exploraram de alguma maneira o

garimpo. Junto a estes, Armando Queiroz.

[...] De certa forma o garimpo sempre foi um local onde as pessoas exploravam alguma coisa e eu creio também que eu fui ao garimpo explorar alguma coisa eu não me furto também desse pensamento, que o garimpo me atraiu de alguma maneira e eu quis explorar alguma coisa ali e a minha exploração não é melhor nem pior do que a de tantos outros que estão lá, mas é atração por isso, de alguma

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forma a ambição humana está presente ali. [...] eu fico imaginando o volume de riqueza que não saiu daquilo lá e o que ficaram na verdade foram os desafortunados, ou os que tiveram muito dinheiro e empobreceram. E muitos, acho que nunca conseguiram realizar seu sonho. É tão estranho este contraste entre riqueza e miséria, isso

tudo me atraiu para perceber o que foi Serra Pelada.58

A reflexão sobre essa riqueza e miséria está compartilhada na obra

Ouro de Tolo. A forte relação do homem com o ouro, se presentifica em uma

das características bastantes presentes no local até hoje: a inserção de dentes

de ouro na arcada dentária dos garimpeiros. Os dentes perdidos devido às más

condições de tratamento médico são substituídos por dentes de ouro maciço.

Armando tinha o propósito de expor as arcadas dentárias de alguns

dos garimpeiros da região. O processo de negociação para moldar essas

arcadas foi facilitado por José Geraldo, dona Raimunda e por Carioca que

proporcionaram a Armando visitar Curionópolis e a região da Serra pelada.

Assim, artista e parceiros entraram em contato com os garimpeiros da região

fazendo a mediação no local a fim de conhecer estas pessoas, expor o projeto

e ter a possível doação das dezesseis arcadas. Se não fosse a colaboração

dos pais de Killzy e de Carioca, segundo Armando, não teria conseguido a

adesão dos garimpeiros para fornecer os moldes das arcadas. Para obter a

permissão da moldagem dos dentes foi necessário estabelecer um grau de

confiança e neste sentido o Carioca e os pais de Killzy foram de grande

importância.

Depois de realizada as negociações, Armando foi até Adão, o protético

de Curionópolis, o qual concentrou o serviço para a produção das arcadas

dentárias dos garimpeiros. As arcadas moldadas em gesso em Curionópolis

foram direcionada a Armando em Belém. O artista procurou no mercado do

Ver-o-Peso, o acesso a informações sobre profissionais que trabalhavam com

fundição, devido ser um local onde ele já mantinha alguns contatos e pelo

ambiente dispor em seu entorno de grande variedades de profissionais.

Queiroz encontrou uma dificuldade muito grande em achar alguém que fizesse

o processo de fundição, que exigia uma técnica específica.

58 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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Entre os caminhos percorridos, Armando encontrou o Doutor Mizael,

um protético que gosta de fazer experimentos. Ele conhecia a técnica, e ajudou

o artista neste objetivo, fundindo as peças em uma substância dourada que

não era ouro. Armando teve a intenção de trabalhar com um material falseado,

com algo que mostrasse essa expectativa frustrada do garimpo. Por conta

disso o nome Ouro de Tolo onde “nem tudo que reluz é ouro”.

Imagem 25: Arcada dentária fundida e pintada de dourado. Foto: Armando Queiroz, 2010.

O interessante foi perceber que durante as conversas que teve com

Mizael, Armando acabou descobrindo que o Doutor também havia passado

pela experiência no garimpo, Armando conta que:

[...] ele esteve em Serra Pelada, foi dono de máquinas, depois foi

para outro garimpo Maria Preta, próximo de lá. Conseguiu pegar

algum ouro, fez sociedade e depois acabou saindo do garimpo por

conta também de ameaça de morte. Ele disse que já não é uma coisa

para ele, essas coisas com conflitos em sociedade com o sócio. É

interessante isso de como a gente sem querer, vai resgatando a

história. Para ti veres que aquela arcada tem tanta história, são

camadas e camadas de memórias [...] essas arcadas é do seu Adão,

é do Carioca, é dos pais da Killzy, são camadas de memória.59

59 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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89

“Camadas de memórias” construídas nas relações, nas negociações

estabelecidas entre o artista e todos os atores sociais envolvidos, que

despertou memórias de sofrimentos, memórias afetivas, memórias de

sonhos,... trazendo de volta cenas e sentimentos vividos tempos atrás nas

regiões de garimpos. Sem ter a intenção de desvelar a realidade vivenciada há

tempos pelo Dr. Mizael, Armando acabou também despertando esta memória

no ato de construção de sua poética.

Imagem 26: Ouro de Tolo exposta no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Foto: Armando Queiroz, 2010.

Ouro de Tolo traz a tona este reflexo, da busca de um ouro que atraiu

uma riqueza instantânea, porém passageira que provocou um quadro de

pobreza e miséria na região. Além disso, outros problemas continuam

ocorrendo com a disputa de interesses políticos, que envolvem líderes

sindicais, mineradoras e antigos garimpeiros, gerando vários conflitos. O clima

na região continua tenso, vários assassinatos ocorrem pela busca do ouro.

A tensão continua em outro conflito também discutido por Armando em

suas poéticas, o conflito indígena presente na obra Ymá Nhandehetama, cujo

significado é “Antigamente fomos muitos”. Este vídeo apresenta a imagem de

um índio, chamado Almires Martins, que forneceu um contundente depoimento

posicionando-se em relação à sociedade como um todo, em seus aspectos

econômicos, políticos e também em relação à específica condição indígena.

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Armando conheceu Almires por conta de um convite que recebeu para

participar de uma comissão de técnicos que iria definir a expografia proposta

pela Fundação Curro Velho60 para a semana dos povos indígenas. Almires, na

época, era responsável pelo setor do Curro Velho que trata de questões

indígenas. Durante as reuniões para decidir a expografia, Armando ficou

impressionado com Almires, pela sua clareza de pensamento e seu

posicionamento bastante seguro diante das questões colocadas em discussão.

A partir daí mantiveram contato, trocando número de celular, e-mail. Por

ocasião da produção das obras para o Prêmio, meses depois, através das

conversas com Paulo Herkenhoff acerca das questões indígenas surgiu a

possibilidade de aprofundar essas questões:

[...] e ai eu pensei na possibilidade de estar trabalhando com a

invisibilidade e fiquei pensando em fazer alguma coisa em relação ao

desaparecimento, como incapacidade nossa de perceber o outro, e ai

eu pensei que poderia chamar o Almires para tecer uma ação

performática de alguém que apagava a sua figura através de uma

tinta negra que o envolvesse de novo a escuridão.61

Como sinal de respeito ao outro, Armando pensou que não era justo ter

o rosto de Almires no vídeo somente porque provinha de uma etnia indígena.

Quando conversaram sobre a questão da invisibilidade, pediu para que

pensasse, se a ação de pintar o rosto de negro, para se tornar invisível, fazia

sentido. De acordo com Armando, Almires respondeu da seguinte forma:

[...] “Armando isso que tu estas dizendo de ter o rosto pintado de

negro para nós é luto. Então tem ressonância”. Perguntei: “Faz

sentido para ti?” Ai ele disse: “com certeza faz”, ai eu disse “tu te

dispões a fazer isso por conta do que eu estou te falando, do que eu

quero discutir? Isso pra ti é importante?” ele disse: “com certeza.”

Então disse pra ele: “vamos fazer o seguinte Almires, vamos marcar

daqui uma semana, eu queria muito que tu pensasses em tudo isso

que a gente esta conversando agora, que eu queria muito construir

isso contigo”, e ai nós nos despedimos.62

60

A Fundação Curro Velho é uma instituição que promove cursos e oficinas relacionados a questões culturais da cidade de Belém, coordenada por Walmir Bispo, oferece também um espaço de exposição assim como um setor referente a questões indígenas presentes no estado do Pará. Fonte: <http://www.currovelho.pa.gov.br>. 61 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010. 62 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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Dentro do espaço de tempo combinado, Armando encontrou

dificuldade em encontrar o local da gravação, pois precisava de um ambiente

silencioso para trabalhar. Depois de uma semana, conseguiu com profissionais

da Fotoativa63 um lugar adequado para as filmagens.

Participaram da gravação somente Armando, Almires e Marcelo. Para

aquele momento o artista havia comprado uma grande lona negra de plástico e

um tecido de veludo, com o intuito de fazer um fundo infinito e proporcionar

menos brilho a gravação. Quando Armando estendeu a lona, Almires falou que

o cheiro lembrava as noites que havia dormido embaixo de outra lona. Em

Mato Grosso do Sul foi bóia fria, cortador de cana, e debaixo da lona

costumava se proteger do frio. Através dessas recordações, Armando

percebeu o momento propício para as gravações:

[...] eu voltei e disse: “Almires, tu não queres agora que a gente esta aqui com a câmera, falares um pouco do que representa tudo isso pra ti, qual é o teu papel? como tu estas te vendo agora?” ai ele disse “com certeza”, ai o Marcelo ligou a câmera e nós ficamos em silencio e ele deu esse depoimento de uma única vez. Foi tão forte isso que quando o Marcelo desligou a câmera nos ficamos algum tempo em silencio eu fiquei muito impressionado e emocionado e depois de ter percebido que aquilo era algo muito forte e que aquilo que eu tinha pedido para que ele se expressasse, e que não foi somente uma vontade minha de estar fazendo o que ele fez que se presentificou ali

na fala dele64

.

Para a realização deste vídeo, Armando Queiroz utiliza-se da história

oral de Almires como forma de evidenciar o imaginário indígena. Ao revelar seu

depoimento Almires traz à tona sua memória individual lembrada a partir das

relações que construiu em seu meio social, onde:

A essencialidade do individuo é salientada pelo fato da história oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, a memória. Ainda que esta seja sempre molada de diversas formas pelo meio social, em ultima analise o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, não o deposito de dados, poderemos constatar que, à

63

A Fotoativa é um ponto de cultura localizada próximo a Praça das Mercês em Belém, dirigido por Michel Pinho e que oferece cursos e oficinas, além de conter um espaço expositivo, com a intenção de promover ações que estimulem a fotografia como forma de inserção na sociedade e na cidade de Belém Fonte: www.fotoativa.org.br/sede.html 64

Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. (PORTELLI,1997, p. 16).

Assim, Almires inicia seu depoimento declarando que o povo indígena

sempre foi invisível para o mundo, segundo ele o índio é um ser humano que é

perseguido, que passa fome, que é morto em conflitos na floresta, nas estradas

e nas aldeias sofre com a “doença de ser invisível”65, por não ser visto pelo

“mundo do direito”. Além disso, afirma que na academia, o índio é invisibilizado

quando estudiosos entendem mais do índio do que o próprio índio. Em sua

opinião, com esses procedimentos acaba-se fazendo com que o índio perca o

seu próprio foco.

Para Almires, a imagem indígena só é colocada em evidência quando

se tem o conflito, “quando a mídia procura a notícia para vender jornal”, quando

mostra o índio morto, bêbado, ou preguiçoso. Considera que o índio é aquele

que tem e quer muita terra. Porém o índio que é humano e que têm direitos

desaparece. Conta ainda que a história indígena sempre foi escrita com muito

sofrimento e dor, com muito sangue no passado e no presente, incluindo o

sangue inocente. Revela que até hoje “se mata muito índio nas aldeias que

existem pela floresta”. Este ato de violência classifica como “um grito no

silencio da noite, ninguém sabe de onde veio, o que aconteceu, e ninguém

sabe aonde encontrar”.

Almires destaca também em sua fala, elementos que questionam a

condição de ser indígena na contemporaneidade. Segundo ele, o índio é visto

como um elemento de entretenimento, “o homem exótico que usa cocar, colar,

que dança e canta, com performances para o turista ver”. Para Gruzinski

(2001), este exotismo além de ser um fornecedor de clichês é a maneira pela

qual o ocidente imprime a sua marca na Amazônia, alimentada há muito tempo

pela nossa sede de exotismo e pureza:

65

Trechos em aspas foram retirados do depoimento de Almires presente no videoarte Ymá Nhandehetama.

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[...] desde o Renascimento, os mistérios da floresta excitaram todos os imaginários, fossem eles espanhóis, portugueses, franceses, ingleses ou italianos: ali os primeiros exploradores procuravam Amazonas, eldorados e jardins das Hespérides. (...) Por ultimo, as ameaças que hoje pairam sobre essa região do globo introduzem uma tensão dramática que a torna ainda mais atraente. A Amazônia está se transformando num paraíso perdido, se é que já não se

transformou. (GRUZINSKI, 2001, p. 30).

Em seu depoimento Almires analisa o olhar estereotipado, próximo ao

que se tem em relação à Amazônia, quando se define o índio como exótico.

Esta imagem surge através de reminiscências, ou seja, das lembranças mais

significativas presentes em sua história marcada por conflitos. Para Gruzinski:

Frequentemente a Amazônia serviu para imaginar a criação indígena em termos de sobrevivência e para se pensar no homem, em geral, como “o sintoma de um inquietante conservadorismo”, e de uma forma tão abstrata a ponto de esvaziar a singularidade das situações (...) Nem sempre a ciência moderna eliminou tais fantasmas e preconceitos. Fazendo pouco caso das mudanças históricas e pré-históricas que as populações amazônicas conheceram, minimizando suas capacidades de inovação e difusão, ignorando as federações que reuniram as tribos em unidades maiores, subestimando o impacto das circulações em grandes escalas que animavam a floresta, os antropólogos alimentaram a imagem de sociedades imóveis na tradição. Ora, de tanto privilegiar a adaptação do grupo a seu ambiente natural, acabaram esquecendo as interações entre os povos e, em especial, as repercussões da cultura européia. (GRUZINSKI, 2001, p. 30-31).

Para Armando o depoimento de Almires é fundamental, é uma forma

de dar voz a quem quase sempre é silenciado e tornado invisível. O vídeo é

concebido de maneira respeitosa, pois Armando percebe a questão indígena e

o outro nela inserido que costuma sofrer discriminações e ser pouco ouvido.

Trata-se de uma fala contundente de quem atravessou conflitos culturais e

exerce papel importante diante dos seus iguais. Armando reconhece que na

convivência com o não índio Almires buscou o seu espaço e o de seus

companheiros:

[...] dele vem a força de um fenômeno muito presente agora, de que pessoas de etnia indígena estão vindo para a academia e com isso lidar com o mundo não índio, é como estrategicamente você pudesse se colocar diante desse mundo que não é o seu, e ele, eu acho que é um grande representante disso, quando eu conheci ele estava defendendo a tese dele de mestrado em direito, quando ele fez o vídeo ele já tinha defendido e agora ele está aguardando o doutorado. Mas é incrível, tem poesia que é recheada de uma

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vivencia de tudo aquilo. É uma coisa muito forte o depoimento dele a

fala dele é muito forte.66

Para a cena simbólica do apagamento, em que Almires pinta o rosto,

Armando havia pensado em utilizar o jenipapo, mas, trata-se de um produto de

demorada absorção, por isso levaria horas e até mesmo dias, para que fosse

possível o seu uso. Para a substituição do mesmo o artista conseguiu uma tinta

atóxica, com uma viscosidade que lembra o petróleo. No vídeo, ao final de seu

depoimento Almires pinta com tinta preta sua face onde, em um plano fechado,

funde-se com o fundo preto da filmagem. A tinta para Armando tem a

significativa função do desaparecimento de um rosto, e ainda:

Este apagamento decide diversas camadas de percepção, tanto do eu da pessoa do Almires, quanto eu etnia, do ser enquanto humanidade, enquanto todos nós. Então tem uma coisa assim de como a gente entra nessas camadas também? De que desaparecimento a gente está tratando? Do individuo ou da essência do ser? Que eu acho que pode ser todas essas coisas juntas

também.67

Pode-se refletir sobre o próprio ato performático como uma anulação

total não somente de Almires, mas de toda uma marca cultural presente em

sua história. Reflete também a presença de um ritual indígena que compreende

o luto referente a alguém que morreu em uma tribo.

Imagem 27: Frame do videoarte Ymá Nhandehetama. Foto: Armando Queiroz, 2009.

66 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010. 67 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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Outra obra que está presente neste contexto ritualístico, é A Resposta

do Pajé, que tem como princípio o afastamento dos males, de doenças por

meio de um ritual de pajelança, ação comum na cultura indígena. Para a

realização deste trabalho, Armando fez o cruzamento de informações trazidas

por Paulo Herkenhoff e Carlos Meigue. Estas informações dizem respeito a

acontecimentos que envolveram rituais de eliminação de uma etnia e rituais de

cura da mesma.

Durante os encontros que teve com Paulo Herkenhoff, o curador falou

ao artista que a contaminação de índios foi usada historicamente no Brasil para

limpar áreas inteiras, e expandir os latifúndios. Dentre elas, roupas infectadas

com viroses eram jogadas em tribos indígenas como forma de proliferar

doenças, ocasionando a eliminação de etnias, já que não se tinha tratamento

específico na tribo para a cura destas doenças.

Segundo o antropólogo Mércio Pereira Gomes (1988) a primeira

utilização de guerra bacteriológica conhecida no Brasil aconteceu em Caxias,

no Maranhão, em 1815. Na época, índios Canelas Finas estiveram naquela

localidade durante um epidemia de varíola. Segundo o autor, as autoridades da

época distribuíam brindes e roupas previamente contaminadas por doentes. Os

índios pegaram a doença e, dando-se conta do caráter do contágio, fugiram

para as matas. Os sobreviventes contaminaram outros mais e, meses depois,

essa epidemia alcançava os índios já em Goiás.

No Pará, segundo dados levantados pelo pesquisador inglês Alfred

Russel Wallace (1979), a epidemia de varíola nas tribos indígenas se deu

através da ação do presidente da Bolívia na década de 1960. Em vez de

queimar as roupas dos doentes que morriam de varíola na época, o presidente

boliviano colocou a roupa em locais onde índios pudessem pegá-las. Desta

forma, cinco tribos indígenas foram inteiramente dizimadas.

Assim proliferou-se um quadro de infecção bacteriológica indígena

com a introdução deliberada de varíola, gripe, tuberculose e sarampo entre

tribos da região do Mato Grosso, entre 1957 e 1963. A introdução consciente

de tuberculose entre as tribos do norte da Bacia Amazônica ocorreram entre

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1964 e 1965. Alastrando um quadro de genocídeo indígena, por meio da

infecção de roupas destinadas as tribos.

Armando ao escutar estas histórias, relembrou de outra contada pelo

artista Carlos Meigue em 2003 quando participou em conjunto com outros

artistas de intervenções artísticas em Abaetetuba, realizadas pelo Projeto

Tridimensionais II, do Instituto de Artes do Pará.

O projeto teve participação de Carlos Meigue o qual optou em fazer

sua intervenção em um engenho de cachaça que já estava desativado, o

objetivo era revitalizar aquele espaço. Por conta deste trabalho, passou mais

de uma semana no engenho, passando a conviver com as pessoas que

moravam próximo a este alambique, enquanto os demais artistas se

deslocaram para a cidade de Abaetetuba.

Finalizados os trabalhos, todos os artistas se reuniram em Abaetetuba

e se encontraram novamente com Meigue, que estava cheio de histórias para

contar. Dentre as histórias que Meigue contou havia a de um senhor que

tomava conta do que restou do engenho, o qual estava muito doente e era

tratado tanto pela medicina tradicional como por um pajé. Mas, como se

encontrava muito debilitado este senhor não podia se deslocar, então a família

levava a sua roupa ao pajé para que este tratasse do enfermo. Por meio de

um ritual a roupa era purificada. Armando ao relembrar esta história contada

por Meigue, associou-a com a conversa que veio a ter com Herkenhoff sobre

as roupas infectadas:

[...] acabei cruzando essa informação eu tomei a liberdade poética de unir essas duas histórias [...] perceber sim que uma roupa que pode matar também pode curar, e ai eu pensei nossa eu posso tentar ativar essas histórias em um elemento que seria essa roupa e ai a roupa ela surgiu dentro da possibilidade de que meu próprio corpo fizesse parte

de toda essa história.68

Na expectativa de que uma roupa sua fosse “tratada” por um pajé,

Armando decide voltar ao local onde surgiu esta história, levando algumas

fotografias que havia tirado da família que morava em Abaetetuba, próximo ao

alambique. Ao chegar, se deparou com outra realidade: o senhor que na época

68 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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estava doente havia morrido, e a filha dele que no período do Projeto do IAP

tinha doze anos já estava casada e com filhos. Foi ela que acolheu o artista e o

informou como poderia localizar o pajé:

[...] eu tive dificuldade porque os pajés na região estão sofrendo um grau de preconceito muito grande, não atendem qualquer pessoa, eles me indicaram a pessoa que tinha tratado desse senhor do engenho, e ai eu fui até ele, me apresentei e ai ele se desculpou dizendo que não trabalhava mais com isso, que para ele já era muito difícil pois exigia muito fisicamente, e a saúde já debilitada. [...] ele trabalhava esporadicamente, e ai eu respeitei logicamente, mas sabia

da presença de outras pessoas na cidade.69

Através do artesão de miriti, mestre Amadeu, Armando encontrou Dona

Iraci, a benzedeira que possibilitou o tratamento de sua roupa. A sábia senhora

tratava de tudo: mal olhado, espinhela caída, luxações, pessoas que tem

problema de coluna e, principalmente, de crianças que são muito frágeis

espiritualmente:

[...] eu fui através do mestre Amadeu, que é uma pessoa querida. Trabalhamos algumas vezes juntos por conta do miriti e tudo mais, e eu pedi para que ele me ajudasse e foi tão curioso [...] já não se chama mais pajé chama curandeiro ou benzedeiro e ai ele falou que ia me levar em uma senhora que benze, “ela até benze minha família, meus filhos”, e ele falou quase envergonhadamente disso, que ele era tratado por essa senhora, e é tão estranho isso porque elas fazem um bem tão grande a essas pessoas, elas protegem, é lindo o ritual e ela é chamada de benzedeira mas tem toda a tradição da

pajelança, [...] e ai nós fomos juntos lá e ela tratou a roupa.70

Armando conta que o ritual foi feito de frente para o sol. Daquele

momento não se tem imagem nenhuma, o artista considerou um instante muito

especial, portanto, não queria transformá-lo em uma imagem. Para ele, o ritual

guardava um segredo, uma intimidade. Assim como Iraci, tantas outras

benzedeiras e benzedeiros na cidade são chamados para exercer a cura

espiritual, que é a própria proteção espiritual dada as crianças e aos adultos.

Segundo o artista por mais que os curandeiros tenham a função de cuidar das

doenças e do espírito, muitas pessoas não os vêem com bons olhos. Por

tratarem com forças da natureza, com segredos, com o imponderável, por isso

muitas vezes são mal interpretados.

69 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010. 70 Armando Queiroz em entrevista na Galeria de Arte Graça Landeira no dia 25 de outubro de 2010.

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Maués (1995) considera que o ritual da pajelança possui elementos

classificados de humanos, místicos e materiais, o autor explica:

Na primeira categoria se incluem o pajé (ou curador), o servente, o responsável (ou dono) do trabalho, o doente (que pode também ser o dono) e a assistência. Os elementos místicos incluem Deus, os santos, os encantados e os espíritos (estes, indesejáveis). Já os elementos materiais são em grande numero, do qual vale destacar o canto, a dança (elementos, sobretudo estéticos), o chá, as penas, o maracá, a rede e/ou banco, os cigarros (especialmente o que é enrolado como líber da planta chamada tauari), a cachaça, o fogareiro, as velas, a mesa e as imagens de santos. Nem todos estes elementos são indispensáveis. Alguns, porém, não podem faltar e, sem eles, o trabalho não pode ser realizado. (MAUÉS,1995, p. 187-188).

Na pajelança os males que resultam das forças humanas são definidos

de duas maneiras, o grupo classificado como doenças “mandadas por Deus”,

ou “normais”, que incluem a gripe, febre, feridas, congestão, alergias, etc, ou

seja, doenças que podem ser tratadas tanto pelas mãos do Pajé quanto pela

medicina tradicional. O outro grupo designado por expressões como

“sofrimentos de pajé”, “não são normais”, “sofrimento que depende de pajé” ou

“doenças por malinesa”, estas exigem um tratamento exclusivo dos pajés, não

pode ser cuidado pelos médicos. Neste caso se incluem todos os tipos de mal

olhado e de feitiço, quebranto, mal assombração, ataque de espíritos, etc.

Existem remédios naturais para o tratamento destas doenças, porém os casos

mais graves somente o Pajé pode tratar.

Dentro do ritual os encantados ou caraunas são mais importantes, pois

são eles que incorporam nos pajés, comandando todas as ações e o

tratamento de doentes. “O ritual da pajelança - embora não exclusivamente -

destina-se, sobretudo, à cura de doenças. Por isso, seus elementos materiais

são utilizados como instrumentos de cura, além dos remédios que possam ser

prescritos pelos pajés” (Maués, 1995, p.188). Segundo Sennett (2001, p. 62),

“os ritos podem parecer uma força estática que preserva a memória através de

palavras e gestos periodicamente repetidos”. Para Mauss, o rito é definido

como:

[...] a manifestação prática das representações. Atrás de todos os atos religiosos, há uma representação religiosa; mas na medida em que todos os fatos da consciência, ou seja, as ações, propriamente

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ditas, são também as representações, a ritualização toca o aspecto profano da vida social. O rito pois é uma linguagem que ilustra uma ideia. (MAUSS apud LEGROS, 2007, p. 83).

Armando pediu a dona Iraci que fizesse um ritual de afastamento dos

males da humanidade. Neste tipo de ritual acredita-se que uma roupa branca,

nunca vestida pelo homem, ao ser usada pela primeira vez, pode atrair todos

os males em volta, por isso deve ser velada para nunca mais se ter contato. A

roupa que o artista vestiu durante o ritual foi embalada em papel e posta em

uma cúpula de vidro. O pacote jamais será aberto e assim simbolicamente os

males que foram transmitidos para roupa jamais sairão.

Imagem 28: A Resposta do Pajé em exposição no Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Foto: Armando Queiroz, 2010.

O ato simbólico de uma possível abdicação de contaminação se faz

presente também no vídeo Pilatos. Este trabalho faz referência à história

bíblica de Poncio Pilatos. Pilatos é um personagem bem conhecido em todo o

cristianismo, tanto entre protestantes, católicos ou ortodoxos. Incluído no antigo

Credo Romano, conhecido como Credo dos Apóstolos está sempre ligado à

morte de Jesus Cristo, “(...) padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e

sepultado (...)”. Governador da Judeia, ao assumir o poder realizou sucessivas

ações de humilhação aos judeus como afirmação de sua autoridade. Em vista

desta situação, os judeus levaram seus descontentamentos ao Imperador

Cezar, e Pilatos teve de sacrificar a sua vaidade e prestígio como autoridade

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romana, sendo obrigado a fazer tudo para ganhar a confiança dos judeus. Uma

nova revolta poderia significar a sua substituição no cargo de Governador da

Judeia e o fim da sua carreira. Precisava então arranjar uma boa oportunidade

para obter a simpatia do povo e das autoridades religiosas.

Quando o povo levou Jesus para ser julgado por Pilatos, este prevê um

novo descontentamento entre o povo, que poderia ser fatal para a sua carreira

como governador. Para evitar novas revoltas, novas contrariedades, tenta uma

saída airosa ordenando ao povo: “Levai-o vós e julgai-o segundo a vossa lei”.

Com esta ação fez com que o povo arcasse com todas a responsabilidade.

O preço que Pilatos teve de pagar para conquistar a simpatia do povo

foi ser responsável pela morte de um inocente. Teve de legalizar um

assassínio perante o governo de Roma. Naquele ato lavou as suas mãos em

frente da multidão, a qual levou Jesus a condenação: a morte.

O artista repete o ato de lavar as mãos, só que ao invés da água tem-

se o sangue. Neste ato não se sabe ao certo se as mãos estão abdicando de

qualquer culpa ou se envolvendo cada vez mais em situações de violência. Ao

retomar esta história, Armando gera várias reflexões. Trata-se de um

personagem que Armando ressignifica. Ao lavar as mãos com sangue não as

limpa, pelo contrário, as suja cada vez mais neste sangue, simbolicamente tão

derramado em conflitos que percorrem a Amazônia.

Imagem 29: Frame do vídeoarte Pilatos. Fonte: Acervo Armando Queiroz, 2010.

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A obra foi desenvolvida em um abatedouro de porcos em Santa Izabel.

Para a realização deste trabalho, Queiroz entrou em contato no Mercado de

Carne, com Fernando Gomes da Silva71, para conversar sobre o vídeo que

pretendia desenvolver. Falou ainda sobre a necessidade de ter o sangue de

uma animal morto para a execução da performance seria gravada em vídeo.

Imagem 30: Armando conversando com Fernando sobre o vídeo. Foto: Heldilene Reale, 2010.

Durante a conversa, Fernando apresentou Armando ao açougueiro

Walder Paródio da Silva Ramos, mais conhecido como Peruca, que tinha a

informação sobre um abatedouro de porcos em Santa Izabel onde Armando

poderia conseguir o sangue para a execução do vídeo. Peruca se

disponibilizou em viajar juntamente com Armando e Fernando até o

abatedouro.

71

presidente da Comissão do Mercado de Carne do Pará. Fernando esteve presente na construção de dois trabalhos do prêmio, os videos 252 e Pilatos.

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Imagem 31: Armando conversando com Walder e Fernando. Foto: Heldilene Reale, 2010.

No dia seis de fevereiro de 2010, desloquei-me até Santa Izabel,

juntamente com Armando, Fernando, Peruca e Marcelo Rodrigues, para

acompanhar a realização da filmagem do vídeo. No local, Peruca já havia

falado anteriormente com os donos do abatedouro sobre o trabalho do Artista.

Na chegada ao local, fomos apresentados ao dono do matadouro, que

ofereceu gentilmente o espaço para a realização da filmagem, além de doar o

sangue fresco do porco para a realização da performance que comporia o

vídeo. Assim, com os equipamentos montados, iniciou-se o processo de

filmagem. Enquanto Marcelo realizava a gravação, Fernando auxiliava

Armando a derramar o sangue que lavava a mão do artista. Pude perceber que

todos se envolveram no processo para que as ações pensadas por Armando

fossem executadas.

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Imagem 32: Armando, Fernando e Marcelo realizando o trabalho. Foto: Heldilene Reale, 2010.

Esta proposta relacional esteve presente em todos os trabalhos que

compõe o território expositivo formado por Armando. Independente do contexto

onde as obras foram pesquisadas e realizadas, a relação de negociação e

participação com os atores sociais envolvidos foi algo permanente. Segundo

Bourriaud (2009) a arte de hoje propõe modelos de percepção e

experimentação que envolvem a crítica e a participação da sociedade.

O território expositivo formado pelas nove obras aqui abordadas

promovem diálogo, fornecem uma dinâmica que se inscrevem em um tempo e

em um espaço. Quando o artista nos mostra seus trabalhos ele expõe também

o reflexo de seu processo e de sua relação com o outro. Nas palavras do

artista: “o outro me interessa profundamente. Somente na tentativa de

conhecer o outro, é que percebo verdadeiramente minha face, pois o outro, a

meu ver, é aquilo que completa meu rosto”72. Assim, por entre territórios

surgem obras que propõem conceitos artísticos, detém-se no sentido crítico da

composição histórica de um rosto Amazônico, marcado por memórias, conflitos

e devorações.

72

Armando Queiroz em entrevista a Orlando Maneschy registrada no Catálogo O Fio da Ameaça, 2010.

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ENTRE TERRITÓRIOS

Na poética dos nove trabalhos que formaram o território expositivo

presente no Prêmio Marcantonio Vilaça, é possível identificar que Armando

continua repetindo o gesto antes feito por sua mãe: o ato de contar histórias e

desenhá-las. A partir de um olhar amazônico, nos conta por meio de suas

obras, histórias presentes em territórios de memórias, conflitos e devorações.

Em seu processo de criação artística, Armando Queiroz priorizou o

cuidado com a pesquisa, o respeito à memória do local e das pessoas que

estiveram envolvidas nas obras. Além disso, a execução dos trabalhos fez

parte de um processo de intervenção e de apropriação da memória presente no

contexto histórico da cabanagem, da região dos garimpos, de questões

indígenas e latifundiárias. As negociações realizadas pelo artista com os atores

sociais envolvidos foram de fundamental importância para ter acesso a

documentos, histórias, objetos e locais visitados, formando a concretude de

suas poéticas.

Dentro do território expositivo a obras dialogam entre sí por meio da

permanência de contextos históricos que se cruzam e são ressignificados com

elementos da atualidade. As poéticas que formam o território expositivo são o

amálgama de contextos políticos, econômicos, culturais e sociais amazônicos.

O artista propõe questões a serem refletidas e interrogadas, que ganham força

ao se ter conhecimento de seu processo de criação. Assim, no território

expositivo, “o indivíduo, quando acredita que está olhando objetivamente, no

final das contas, está contemplando apenas o resultado de intermináveis

transações com a subjetividade dos outros” (BOURRIAUD, 2009, p. 30).

Em uma realidade contemporânea, Queiroz também revisitou histórias

de um passado ressignificando-as em um contexto do presente. A memória do

artista se junta a história oficial da Amazônia contida nos livros, e a história oral

contada pelos atores sociais envolvidos. Faz-nos refletir sobre o lugar do real e

da verdade contida nessas narrativas.

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No Ver-o-Peso o artista empunhou uma espada que resistiu ao tempo

cabano, navegou em um Mar Dulce Barroco, até ancorar seu navio, e libertar

na voz de 252 trabalhadores do local, os personagens calados no porão do

Brigue Palhaço. Por meio de documentos, Armando insistiu em não apagar da

memória pessoas que morreram, morrem e possivelmente continuarão a

morrer, caso não se anule o quadro de violência que ainda persiste em

conflitos sociais, econômicos e políticos existentes na Amazônia.

Armando trouxe até Serra Pelada, a visita de um rei revestido de ouro:

o rei Midas. Conheceu outros antigos reis no vilarejo de Curionópolis,

garimpeiros que tiveram muitas riquezas, mas assim como o rei Midas, não

souberam lidar com ela. Tornaram-se pobres sonhadores consumidos por

doenças e pelo tempo que não lhes devolveu a riqueza de outrora. Serra

Pelada, hoje mais desnuda do que antes, foi devorada a mais de 200 metros

de profundidade por arcadas dentárias preenchidas de ouro, que cumpriram o

desígnio de que nem tudo o que reluz é ouro. O que reluz certamente são

memórias de conflitos nas regiões dos garimpos, que até hoje assolam o clima

de tensão existente no lugar.

Esta sombra de conflitos é refletida também na obra Ymá

Nhandehetama, antigamente fomos muitos. Foram-se índios, etnias dizimadas,

seja pela infecção bacteriológica trazida por roupas, ou por conflitos diretos

pela luta de terra. Antigamente a Amazônia era preenchida por índios que

tinham ricas histórias a serem contadas, histórias felizes ou tão tocantes

quanto o depoimento de Almires. Por mais que o ato de se pintar de preto faça

parte de um ritual indígena que representa o luto, existem outras possibilidades

de percepção. A imagem de Almires cobrindo o rosto com tinta preta que

lembra o petróleo, traz a tona novamente a possibilidade da ação de aniquilar

uma etnia por conta do poder e da riqueza.

Em um olhar introspectivo, restrospectivo e prospectivo o processo de

criação de Armando Queiroz para o Prêmio Marcantonio Vilaça abordado nesta

dissertação, se assenta na denuncia de um silêncio, do esquecimento,

propondo revisões de histórias a partir do olhar atento à experiência humana.

Armando nos ensina por meio de seu processo de criação que na contramão

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da história oficial a escrita da história envolve afetividade e imaginação poética

por meio do processo de luta contra o esquecimento, valorizando memórias

apresentadas pela história oral.

De maneira interdisciplinar, analisei por meio do diálogo entre a

comunicação, história, arte e antropologia, a relação entre arte e vida, seus

aspectos efêmeros, dinâmicos, interativos, e relacionais, questionando por

meio das poéticas de Queiroz, a permanência de uma estrutura histórica que

não se modifica. Continuamos sondados por diversos contextos de lutas pelo

poder, de ações de violência, de abdicações de culpa e impunidades, o que

modifica é o cenário e os personagens que fazem parte dessas histórias.

Quando Armando cria seu território expositivo, permeia fragmentos de

histórias que nos alertam para olharmos atentamente, na luta contra o

esquecimento, os fatores críticos que envolvem a Amazônia. Este lugar que

possui um rio imenso de riquezas naturais, que nos beneficia com alimentos

para o corpo e para alma, se encontra permeado por conflitos diários. No

território expositivo de Armando, o mesmo sangue que fez flutuar 252 mortes

no navio Brigue Palhaço escorre pelas mãos de um Pilatos amazônico, que se

omite diante de conflitos agrários, de conflitos de garimpos e de conflitos

indígenas. Um sangue que reflete a situação de uma impunidade, de uma

diferença social e de um sistema dotado de poder hegemônico que impõe e

decide destinos. Estejamos então atentos para que antes do entardecer,

possamos tornar-nos imunes a esta infecção.

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Entrevistas:

Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 05 de Mar. 2007. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 25 de Mai. 2007. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 08 de Set. 2007. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 30 de Mar. 2010. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 24 de Jun. 2010. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 24 de Set. 2010. Entrevista Armando Queiroz realizada na Galeria de Arte Graça Landeira. 25 de Out. 2010. Entrevista Armando Queiroz realizada no Museu de Arte Sacra. 24 de Nov. 2010.