terra e território. a luta pela descolonização na bolívia

195

Upload: sueiamamoto

Post on 03-Jul-2015

762 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) realizado entre 2007 e 2008 no curso de Jornalismo da Universidade de São Paulo. A autora percorre comunidades camponesas e indígenas na Bolívia durante os primeiros anos do governo de Evo Morales, levantando problemáticas como a reação à política norte-americana contra as drogas, a necessidade de reforma agrária e de reconstrução de territórios indígenas.

TRANSCRIPT

Page 1: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

1

Terra e território

Page 2: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

2

Terra e território

Page 3: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

3

Terra e território

Page 4: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

4

Terra e território

Page 5: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

5

Terra e território

Page 6: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

6

Terra e território

FICHA TÉCNICA

Trabalho de Conclusão de Cursoem Comunicação Social

habilitação em JornalismoDepartamento de Jornalismo e Editoração

Escola de Comunicações e ArtesUniversidade de São Paulo

Junho 2008

Sue Angélica Serra IamamotoNo. USP 3687200

[email protected]

Sobre a publicação

Projeto Visual: Comuna GráficaFotos: Sue Iamamoto

Formato: 23 cm x 15 cmMancha: 11,5 cm x 13 cm

Tipologia: Goudy Old Style 9/Estrangelo Edessa 10/12

Page 7: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

7

Terra e território

Agradecimentos

Aos meus pais, por todo o seu apoio.

À professora Alice Mitika Koshiyama, pela orientação nesta viagem.

A Alcimar e Nelson, da Comuna Gráfica, que, além de serem responsáveis por esta belíssima edição,

também deram um empurrão final para que o trabalho saísse.

A Rodrigo, pela amizade, carinho e incentivo constante.

A Igor, Margot e Christophe, Thais e Anselmo, que me acolheram e foram como uma família em

momentos especiais.

A Delphine e Julie, companheiras cochabambinas.

Às pessoas queridas que deixei no Brasil e às que conheci ao cruzar a fronteira.

Page 8: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

8

Terra e território

Este livro investiga os movimentos camponeses e indígenas na Bolívia. Concentra-se em três movimentos distintos, que ocupam também regiões geográficas bastante diferentes: o movimento sem-terra boliviano do departamento ocidental de Santa Cruz de la Sierra; o movimento cocaleiro da região tropical do departamento de Cochabamba; e o movimento aimará do departamento de La Paz, província Omasuyus. O trabalho foi feito a partir do acompanhamento do cotidiano de comunidades rurais e de uma intensa pesquisa bibliográfica, o que traz um panorama mais amplo sobre as disputas pela terra e pelo território na Bolívia.

This book investigates the peasant and indigenous movements in Bolivia. It focuses in three different movements, which are also set in very different geographical regions: the landless movement at the west-side department of Santa Cruz de la Sierra; the coca growers’ movement at the tropical region on Cochabamba department; and the aymara movement at La Paz department, Omasuyus province. The work was based on the rural communities’ daily life investigation and on a deep bibliographical research, which brings a wider view on the Bolivian land and territory disputes.

Palavras-chave:

Bolívia, movimento camponês, movimento indígena, sem-terra, cocaleiros, aimarás, descolonização, governo Evo Morales.

Bolivia, peasant movement, indigenous movement, landless movement, coca growers, aymaras, decolonization, Evo Morales period.

RESUMO/ABSTRACT

Page 9: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

9

Terra e território

ÍNDICE

Prólogo 13

1 - Ser índio e camponês na Bolívia 19As duas repúblicas 23Das comunidades às fazendas criollas 24A Revolução Nacional e a criação do campesinato 25Pacto Militar Camponês 27O katarismo e a CSUTCB 28Os cocaleiros 29Crise de mediação e Lei de Participação Popular 29Indígenas do oriente – a outra etnicidade 32Das primeiras revoltas do milênio à “revolução democrática cultural” 33

2 – O oriente boliviano e a luta pela terra 37Parte 1 – MST – Comunidade Agroecológica de Pueblos Unidos 39O assentamento em Yuquises 41Impactos políticos da ocupação em Los Yuquises 46Parte 2 – Políticas Agrárias na Bolívia 48A intervenção do Estado e a Lei Inra 49A Lei de Recondução Comunitária 53Limitação da propriedade individual de terras 54Regularização das terras em tempos de Evo 56A revolução agrária e o “salto qualitativo” 57Parte 3 - Desafios para Pueblos Unidos 60“Nós sabemos produzir” 60Reunião comunal 64O que fazer com o dinheiro comum? 65“Vem, mulher. Vem ver seu chaco!” 66Chaqueos, desmatamento e impactos ambientais 67Parte 4 – Tierra Prometida, uma outra experiência sem-terra 69

Page 10: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

10

Terra e território

“Tem que continuar caminhando, nem que seja em cima de quatro patas” 72Parte 5 – A batalha de Santa Cruz 74Bloqueio em San Julián 74Elite crucenha, racismo e polarização 76A aparente regionalização da política 81Estatuto Autonômico e interesses agrários 86

3 - Movimento cocaleiro e a luta pela soberania nacional 89Parte 1 - Chapare 91Finados em Santa Helena 91A região 94O auge da coca: lógica inversa do camponês 95Parte 2 - O Estado contra a coca 97Negociando com o inimigo 97Lei 1008 100Erradicação voluntária 102Desenvolvimento alternativo 103Parte 3 – A resistência cocaleira 107Opção Zero 108Cocaleiras e a opinião pública 109Coca Zero e erradicação forçosa 110Guerra pela Coca 111Parte 4 - O inimigo mora ao norte 113Viva a coca! Morte aos yankis! 113Nos EUA: “war on drugs!” 114Estratégia de domínio 116Parte 5 – Um cocaleiro no Palácio Quemado 120Economia da coca 120“Un catito, no más!” 121Dona Isabela 123Parte 6 - Movimento social e político no Chapare 127Mulheres cocaleiras 129

Page 11: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

11

Terra e território

A voz soberana do cocaleiro 131Visita à Federação do Trópico 134De movimento social a movimento político 135Mineiros e cocaleiros 139Institucionalidade: tática ou estratégia? 140

4 – O movimento indígena aimará de Omasuyus 143Parte 1 - Rebeliões aimarás 145A promessa de Katari 145A convulsão de movimentos de 2000 146O surgimento do Quartel de Q’alachaka 148Assassinos em nossa terra 151A mobilização aimará de 2001 151A Guerra do Gás e a derrocada de Goni em 2003 152Parte 2 – O aimará político 158Luta pela reivindicação ou reivindicação pela luta? 158A República de Qullasuyu 159Dialética e dualismo aimará 162O que é aimará? 164Parte 3 - Três histórias aimarás 166Antecedentes de 2000, a história do Mallku 166Vivendo como os aimarás 171A Escola Ayllu de Warisata 173

Perguntas, certezas e esperanças 181

Livros e artigos de referência 185Jornais consultados 187

Legenda de fotos 188Siglas 191Glossário 193

Page 12: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

12

Terra e território

Dedico este trabalho ao povo boliviano, que não se rendeu à barbárie e ainda acredita na humanidade.

Page 13: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

13

Terra e território

PRÓLOGO

Page 14: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

14

Terra e território

Page 15: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

15

Terra e território

“É incrível. As pessoas na França estudam anos, têm acesso a jornais, revistas, noticiários, etc., e mesmo assim, elegem um fascista para presidente. Em compensação, aqui na Bolívia, as pessoas muitas vezes nem certidão de nascimento têm, mas têm um entendimento das coisas impressionante”.

Vários motivos me levaram à Bolívia. Mas a frase desta amiga francesa, que quando cheguei, já morava há sete anos no país, resume o principal deles. O “entendimento das coisas” boliviano pode ser chamado de diversas formas: de consciência de classe, de autodeterminação dos povos, de excesso de politização, até de ignorância.

De qualquer forma, a conversa embalou e logo me lembrei da minha adolescência vivida em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Contei para minha amiga que, no Brasil, adolescentes de classe média como eu só discutiam temas sociais nas aulas de redação preparatórias para os concorridos vestibulares paulistas. Nestas aulas, éramos estimulados a apresentar soluções para os problemas da sociedade, geralmente nos dois últimos parágrafos dos textos. A grande maioria das soluções apresentadas – festejadíssimas pelos nossos mestres – passava pela melhoria do sistema educacional no país. Aquecimento global, violência urbana, tráfico de drogas, desemprego: tudo se resolveria se o povo fosse mais educado.

Márcio Pochmann, economista da Universidade Estadual de Campinas, há pouco tempo escreveu sobre a nossa incrível crença na educação para resolver o problema específico do desemprego. Compa-rando dados do final da década de 1980 e do final da década de 1990 no Brasil, percebeu que o número de jovens empregados era de cerca de 16 milhões em ambos períodos. Em contrapartida, o número de jovens desempregados foi de 1 milhão a 3,3 milhões. Sendo que, segundo números do Ministério da Educação, houve um aumento de 43% nas matrículas no ensino superior, somente no período de 1995 a 2000. A questão central é, segundo Pochmann, que o desemprego no país é estrutural, não é uma questão

Page 16: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

16

Terra e território

de falta de ajuste entre a demanda do mercado e a formação do trabalhador1. Contudo, se a educação não garante a inclusão, a falta dela sim garante a exclusão, criando um critério bastante perverso a partir deste recorte.

Mas estas estatísticas pouco importam para o imaginário da classe média brasileira. Exemplos da vida real recheiam os nossos meios de comunicação, as nossas conversas cotidianas. Famílias desequilibradas investem em bens quando têm dinheiro, famílias bem estruturadas investem na educação de seus filhos. Programas assistenciais em favelas tiram crianças do crime e as ensinam a fazer todo tipo de atividade. Quantos jovens brasileiros não sonham em ultrapassar a barreira da pobreza ao serem esforçados, ao estu-darem bastante? Nada disso é mentira, mas transpor este tipo de resolução de problemas individuais para uma resolução sistêmica é de uma superficialidade tão grande que chega a ser criminosa.

O entendimento das coisas boliviano, aquele muitas vezes do analfabeto sem cidadania, obviamente não é o que o senso comum brasileiro entende por educação. Ele é o oposto dela. Não se trata de uma luta para galgar degraus da sociedade, fugindo da miséria, mas sim de uma luta por libertação. Ele não tem suas causas simples de localizar, mas foi forjado durante estes quinhentos anos de presença espanhola. Parte dele, obviamente, vem do movimento operário, mineiro, fortíssimo durante quase todo o século passado no país. Mas a organização em sindicatos de todos os tipos, juntas de vizinhos, federações, coordenadorias, etc., não se deve somente a esta contribuição. Ela parte também de um passado indígena muito relembrado, de organização comunitária forte, de uma relação de respeito com a terra e com os recursos naturais, de uma revolta histórica frente à presença espanhola e ao Estado criollo2 que foi imposto a partir da independência da nação.

Na Bolívia hoje, as memórias se cruzam em uma coexistência de tempos históricos diferentes, como foi formulado pelo sociólogo boliviano Zavaleta Mercado3. Trata-se de combater ao mesmo tempo os colonizadores europeus; o capitalismo que se expande por todos os lados e impõe um modelo de mercado de terras e de trabalho assalariado; as políticas neoliberais que vendem os recursos naturais para estrangeiros; o imperialismo do governo estadunidense, que interveio militarmente inúmeras vezes na dizimação dos plantadores de coca; a elite criolla e racista que nunca aceitou a presença indígena fora da sua situação histórica de servidão.

As lutas bolivianas - sejam elas pré, anti ou de superação do capitalismo - são um fenômeno estranho ao Brasil, apesar de acontecerem justo cruzando a fronteira oeste. São lutas de uma população que teve massacrados seus valores, cultura e formas de organização social. Mas ela só se organiza porque

1.Entrevista com Marcio Pochmann no site: http://www.educacional.com.br/entrevistas/entrevista0027.asp

2.Criollo é o termo que de-signa o descendente de espa-nhóis nascido na América La-tina. Uma explicação bastante completa sobre as diversas formas de utilizar o termo nos diferentes países da América Latina pode ser encontrada em: http://es.wikipedia.org/wiki/Criollo

3.ZAVALETA Mercado, René apud URQUIDI, Vivian. Mo-vimento Cocaleiro na Bolívia. Editora Hucitec. São Paulo, 2007.

Page 17: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

17

Terra e território

permanece, quinhentos anos depois, explorada. O mundo continua miserável, com escravos, fome, corrupção, violência e pobreza. As respostas que encontra neste resgate ao passado e nesta luta contra o presente mesquinho trazem um conhecimento novo, distinto do conhecimento formal ao qual estamos acostumados. Ele é o inverso de submissão e colonização.

Este livro tem como finalidade cruzar esta fronteira, ver as causas do turbilhão que vive o nosso país vizinho, mas de forma aprofundada e contextualizada. Talvez as pessoas queiram saber mais do que o efeito para o consumidor brasileiro das políticas de nacionalização do gás de Evo Morales. Talvez ainda haja um sentido de solidariedade entre povos que acenda um interesse dos brasileiros para saber como vivem e o que pensam os bolivianos.

Escolhi o movimento camponês e indígena como tema geral porque ele foi o grande protagonista dos processos políticos e sociais destes últimos anos na Bolívia. O termo “terra” é ligado ao trabalho agrícola, à reprodução biológica, faz parte do repertório camponês. O termo “território” é ligado à gestão política do espaço ocupado, à reprodução social e cultural, faz parte do repertório indígena. Juntos formam a palavra de ordem deste intenso movimento que nas próximas páginas será apresentado.

Page 18: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

18

Terra e território

MAPA DA BOLÍVIA

Page 19: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

19

Terra e território

1 - SER ÍNDIO E CAMPONÊS NA BOLÍVIA

Page 20: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

20

Terra e território

Page 21: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

21

Terra e território

Passei o meu último aniversário em Cochabamba. Estava na casa de amigos e era uma sexta-feira. No meio do jantar, meu anfitrião saiu e começou a montar uma churrasqueira improvisada, tentando deixar os carvões em brasa. Quando eles já estavam quentes, ele colocou em cima um papel de seda grande, em cujo centro havia uma série de ervas, torrões de açúcar em forma de amuletos e mais um ou outro objeto. Tratava-se do q’owa, uma oferenda à Pachamama, a mãe-terra, e que em Cochabamba se repetia toda primeira sexta-feira do mês. O que é queimado é chamado de mesa e nela podem ser acrescentados objetos diversos, comidas e folhas de coca. É um dia festivo, os homens vão às chicherias (botecos onde se bebe chicha, um fermentado de milho típico da região dos vales bolivianos) e a cidade toda ganha um cheiro de incenso graças à queima das mesas. Uma das características mais marcantes da Bolívia para o visitante estrangeiro é a fortíssima presença indígena na vida cotidiana da população. Não é necessário passar muitos dias no país para perceber isso, é visível em praticamente todo o território boliviano - com mais intensidade no campo, mas também nas cidades. Por todo lado vemos mulheres vestidas como cholitas: uma camisa justa de botões na frente e de mangas curtas ligeiramente bufantes; uma saia pregueada chamada pollera, que vai até o joelho ou, se forem de La Paz, até o tornozelo; e duas tranças compridas, que levam nas extremidades penduricalhos de fios trançados. Trata-se de uma roupa que as mulheres indígenas aprenderam a vestir nos tempos de colônia e mantêm esta tradição até hoje. Nos centros urbanos, as cholitas estão sempre presentes nos negócios informais de rua, nas pequenas vendas de frutas, pães, refrescos, doces e quinquilharias chinesas. Segundo dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), a população indígena boliviana é de 66%, de um total de pouco mais de oito milhões de habitantes. Na área rural, esta porcentagem aumenta muito mais, chega a 79%. Deste total de povos indígenas, 40% se identifica como

Page 22: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

22

Terra e território

aimará, grupo étnico tem a sua origem anterior à chegada dos incas e que se concentra principalmente nos departamentos de La Paz e Oruro. Outros 50% se identifica como quíchua, grupo étnico que fala a antiga língua dos incas e que se tornou uma espécie de idioma geral dos indígenas na colônia1. 1.CEPAL / NAÇÕES UNI-

DAS. Los pueblos indígenas de Bolivia: diagnóstico socio-demográfico a partir del cen-so del 2001, p. 42-46. Santiago do Chile, 2005. Disponível em: http://www.cepal.org.ar/publicaciones/xml/3/23263/bolivia.pdf

Quanto mais tempo se passa na Bolívia, mais perceptível e entendível se torna este elemento indígena. No início, é somente algo exótico, objeto de pensamentos generalizantes. Aos poucos, ele invade os sentidos. Não resta outra opção que não vivê-lo, mesmo sabendo que não fazemos parte dele. Trata-se de uma identidade em constante mutação, em relação dialética com o presente vivido e o passado reconstituído. Ele é como as cholitas que têm como principal característica uma roupa imposta pela colônia ou o quíchua, código geral das populações indígenas andinas, que serviu ele mesmo para dizimar algumas

Page 23: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

23

Terra e território

2.REGALSKY, Pablo. Etni-cidad y clase: El Estado boli-viano y las estrategias andinas de manejo de su espacio, p. 38. CEIDIS / CESU-UMSS / CENDA e Plural. La Paz, 2003. Tradução da autora.

línguas regionais, mas que hoje é um símbolo forte da cultura pré-colonial, resistente a muitos anos de presença massiva da língua espanhola. Com dois terços da população nacional indígena, é possível dizer que na Bolívia qualquer mobilização popular tem em suas fileiras uma quantidade gigantesca de índios. No caso do movimento camponês, ele se confunde profundamente com o movimento indígena. É extremamente difícil tratar os dois enquanto movimentos isolados, as suas histórias e lutas se cruzam desde o tempo da chegada dos espanhóis. Portanto, determinar o quanto de tal organização é indígena ou é camponesa é, no geral, uma tarefa que depende mais das movimentações políticas da época, de quais são as pautas e as bandeiras que levantam a população, do que necessariamente de uma caracterização racial em si.

As duas repúblicas Os camponeses, na época da colônia, não existiam enquanto tal. Eram brancos ou índios, tratava-se de uma demarcação étnica por parte dos espanhóis necessária para o estabelecimento da colônia. Pablo Regalsky, pesquisador do Centro de Comunicação e Desenvolvimento Andino (Cenda), caracteriza essa etnicidade da seguinte forma: “Está claro que o próprio colonialismo promoveu a diferença cultural como forma de dominação. A etnicidade é um subproduto do colonialismo. Contudo, a etnicidade tem um duplo caráter e pode se transformar em uma ferramenta política de resistência. Nisto consiste a sua fluidez, o seu duplo caráter contraditório de instrumento classificatório de dominação e de resistência”2. A história deste movimento ora indígena, ora camponês, ora ambos reflete esta dinâmica entre identidades impostas ou autodefinidas, entre opressão e resistência. Durante a colônia, como coloca Regalsky, era necessário estabelecer esta diferença para justificar a invasão de território, o uso de mão-de-obra gratuita, a catequização dos índios, etc. Nesta época, para facilitar a exploração da força de trabalho indígena nas recém descobertas minas de prata, a Coroa Espanhola estabeleceu com as elites indígenas locais um acordo baseado no antigo sistema de tributos inca, a mita. Ela consistia em um fornecimento anual de força de trabalho servil, recrutada nas comunidades. Os incas utilizavam esta mão de obra para atividades militares, construção de obras públicas, rituais, etc. Em troca da mita, neste momento utilizada para o trabalho nas minas, a Coroa dava aos indígenas liberdade de organização em suas comunidades tradicionais, os ayllus, sob obediência aos seus respectivos caciques ou kurakas (autoridades locais). As leis e as autoridades tradicionais indígenas eram, portanto, mantidas. Este sistema predominava nas regiões altiplânicas da Bolívia, sendo a colonização das

.

Page 24: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

24

Terra e território

terras baixas, do oriente boliviano, um processo diferente e muito mais recente. Isso resultou, nesta parte ocidental boliviana, no que foi chamado de sistema de “duas repúblicas”, a república dos espanhóis e a república dos índios. Ambas deviam obediência à Coroa espanhola, mas cada uma possuía sistemas legislativos e administrativos diferentes. O poder acumulado pela elite indígena, que controlava a mão-de-obra disponível, começou a incomodar a elite criolla. No final do século XVIII e princípios do século XIX, há uma demanda maior por mão-de-obra livre para trabalhar nas fazendas e nos centros urbanos, além de haver um movimento do sistema capitalista como um todo para acabar no campo com mão-de-obra servil, escrava ou de pequenos produtores de subsistência e transformá-la em assalariada. Regalsky caracteriza o processo da seguinte forma: “quando a burguesia [boliviana] começa a se desenvolver mais, no fim do século XVIII, começa a querer se livrar desta elite e exercer o controle diretamente através do mercado, tanto de terras quanto de força de trabalho”. A elite indígena era indesejada porque trazia um empecilho para o assalariamento da mão-de-obra, já que a controlava segundo os seus costumes e normas jurídicas, e também porque administrava parte considerável do território boliviano através das comunidades indígenas.

Das comunidades às fazendas criollas Ironicamente, foi exatamente a independência da Bolívia e a sua transformação em Estado nacional que criou condições para esta burguesia criolla esfacelar os territórios controlados pelos indígenas e incorporá-los enquanto mão-de-obra às suas próprias aspirações produtivas, como a mineração e as fazendas. O golpe ideológico do nacionalismo era caracterizar as comunidades autônomas indígenas como um resquício do colonialismo e do passado atrasado, tentando borrar as diferenciações culturais estabelecidas pelos espanhóis na colônia e estabelecer uma identidade comum de cidadão. Obviamente, o modelo de Estado respeitava um padrão europeu liberal e impunha mais uma vez uma forma de dominação aos indígenas. Esta imposição ideológica se manteve, como veremos, na Revolução Nacional de 1952 e só começou a ser questionada de forma mais profunda pelo movimento katarista de meados de 1970. Mas, voltando a nossa cronologia, o fim do século XIX marca uma importante ação contra as comunidades indígenas feita pela burguesia criolla. Em 1874, foi publicada a famosa Lei de Ex-vinculação, que acabava com os territórios comunais de origem na tentativa de transformá-los em propriedades

Page 25: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

25

Terra e território

agrícolas individuais e extinguia as autoridades tradicionais. Como conseqüência desta política, as fazendas criollas se multiplicaram e passaram a agregar parte dos indígenas enquanto colonos, que igualmente tinham que pagar um tributo ao seu patrão na forma de dias por semana trabalhados nas terras ou na casa do fazendeiro. Em troca, eles podiam cultivar as suas próprias terras. Os índios passaram então a tentar reconstruir a figura da comunidade dentro das fazendas. Esta estrutura agrária se manteve até a Revolução Nacional de 1952 e a sua respectiva Reforma Agrária de 1953. O período de servidão marca profundamente o repertório histórico do indígena boliviano, em especial a população aimará da província de Omasuyus, movimento que será apresentado melhor no quarto capítulo.

A Revolução Nacional e a criação do campesinato O processo revolucionário da década de 1950 na Bolívia foi marcado por um nacionalismo arraigado e bastante massivo, forjado pelas penúrias vividas na Guerra do Chaco e também acompanhando as tendências políticas da Argentina de Perón e do Brasil de Getúlio Vargas. O Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), partido que levou a cabo a revolução, foi criado transitando entre o fascismo e o populismo da época. Entre os seus mentores intelectuais tinha figuras da elite criolla urbana insatisfeita com a conjuntura política. Era então o período de domínio da chamada Rosca, pequena elite de donos de minas de estanho que estava ligada aos interesses do imperialismo norte-americano3. A princípio, os camponeses indígenas não estavam envolvidos no processo revolucionário que se deu nas cidades e nas minas em abril de 1952. Mas se lembravam vivamente de um decreto anterior do governo de Villarroel que acabava com o sistema de pongueaje (trabalho gratuito) nas fazendas. Devido às suas políticas populares, este governo terminou precocemente em 1946, quando houve um golpe de estado e Villarroel foi assassinado. O fim do trabalho gratuito foi, portanto, a primeira reivindicação camponesa na revolução e, para concretizá-la, uma intensa ebulição no campo se iniciou. A reforma agrária foi anunciada um ano depois, em 1953, e tratava-se mais de uma medida para acalmar e controlar as rebeliões camponesas que já aconteciam em todo o país do que uma convicção política do MNR. Aos poucos, antigas fazendas são tomadas pelos seus colonos e transformadas em pequenas comunidades. Foi um processo que durou muitos anos, pois dependia muito do nível de mobilização dos próprios colonos. Havia regiões que possuíam um movimento camponês mais adiantado, como os vales de Cochabamba, e regiões que demoraram mais para se organizar e reivindicar os seus territórios. É importante lembrar

3.Este período é retratado por Dunkerley. DUNKERLEY, James. Rebelión en las venas, la lucha política en Bolivia 1952-1982. Editora Plural. La Paz, 2003.

Page 26: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

26

Terra e território

também que este processo de Reforma Agrária se deu principalmente nas regiões altiplânicas e nos vales cochabambinos, já que no oriente – região que ocupa grande parte do território boliviano – um outro processo de desenvolvimento agrário foi adotado, o das empresas agrícolas e latifúndios. No próximo capítulo este processo agrário da região oriental boliviana será mais aprofundado, pois se trata de uma luta pela reforma agrária que se estende até hoje. A forma escolhida para a organização destas novas comunidades criadas pela reforma agrária era o sindicato agrário, que repetia estrutura formal do sindicato operário, com secretário geral, secretário de atas, tesoureiro, etc. Contudo, se o contato muito próximo com o movimento operário, vanguarda da Revolução de 1952, determinou a forma, a função de fato que estes sindicatos cumpriam – e cumprem até hoje – remetia a uma organização territorial que tem muito mais a ver com as antigas comunidades indígenas. Paulatinamente, os dirigentes assumiam a figura do antigo cacique na liderança comunitária, e as assembléias de base eram as que se responsabilizam pela jurisdição interna. Nesta época, a denominação “índio” era carregada de exacerbado racismo e preconceito. As movimentações indígenas anteriores à revolução foram em sua maioria caracterizadas como mobilizações incivilizadas de uma população inferior. James Dunkerley relata a posição do embaixador britânico em 1914 sobre as rebeliões indígenas no campo “‘atualmente (...) toda tentativa de sublevação está condenada ao fracasso, e o sonho dos índios de reconstruir a dinastia inca, se na verdade ela existiu alguma vez em seu cérebro torpe e cheio de álcool, desaparecerá frente a uma saraivada de balas mauser’”4. Frente a tal racismo, extremamente arraigado na população branca e nas elites urbanas que também participaram da revolução de 52, os índios habitantes da área rural somente puderam se encaixar no processo assumindo a sua identidade de camponeses. A ideologia nacionalista não permitia a reafirmação da identidade étnica. Houve um processo extremamente contraditório em curso: ao mesmo tempo em que os camponeses indígenas eram estimulados a criar seus sindicatos e estruturar um movimento corporativista com forte ligação com o Estado do MNR e com a sua casta burocrática em reformulação, haviam resgatado o domínio territorial que lhes foi paulatinamente retirado no período republicano anterior. Tinham, portanto, todas as condições materiais para reconstruir suas comunidades indígenas. Deborah Yasher coloca isso da seguinte maneira: “como parte deste projeto corporativista, os estados da América Latina incorporam aos índios (...) através de associações camponesas (organizando-as, desta forma, em linhas corporativistas) (...) O corporativismo, por fim, criou um dualismo dinâmico, com

4.Idem, p. 49. Tradução da autora.

Page 27: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

27

Terra e território

identidades que mudavam de acordo com o cenário: para o estado os índios assumiram a identidade de camponeses, no interior da comunidade, os camponeses assumiram sua identidade como índios”5. Ao revisarmos os acontecimentos futuros no cenário rural boliviano, podemos perceber que, de forma também bastante contraditória, estas duas tendências se desenvolveram e dão dinâmica ao movimento camponês indígena até hoje.

Pacto Militar Camponês Com a promoção da Reforma Agrária, o governo ganhou o respaldo do campesinato, situação diferente do que ocorria com os operários, que se mantinham mais autônomos ao governo no desenrolar das suas políticas entre 1952 até o golpe militar de 1964. Contudo, as brigas internas pelo controle do aparato do governo e do partido se transmitiam aos dirigentes camponeses, ligados a diferentes lideranças políticas do MNR. As brigas no campo se estenderam até chegar a uma situação bastante sangrenta, com assassinatos de figuras políticas locais e enfrentamento de diferentes milícias camponesas. Até certo ponto, o governo do MNR se utilizou desta instabilidade interna, que apontava para a falta de independência do movimento camponês. Foram milícias camponesas, por exemplo, as que combateram diversas rebeliões mineiras, como a greve feita em São José em 1959. A violência e a instabilidade no campo chegaram, porém, a uma situação insustentável, com os vales cochabambinos nesta época sendo considerados zona militar. Os camponeses passaram, paulatinamente, a depender cada vez mais do recém recriado aparato militar para “apaziguar” os conflitos e assim, o general das Forças Aéreas René Barrientos Ortuño começou a ganhar muita popularidade entre o campesinato. A relação era tão próxima que nas eleições presidenciais de 1964 que antecederam o golpe militar, a Federação de Camponesa de Cochabamba o nomeou como seu candidato oficial. Após o golpe organizado pelo mesmo Barrientos neste ano, não foi difícil delinear um pacto entre o governo militar e os camponeses, no qual o governo garantiria a continuidade da reforma agrária e os camponeses, a sua fidelidade ao regime. O pacto durou até os anos 1970, quando veio a crise do petróleo. A partir de então, a Bolívia, seguindo recomendações internacionais, implementou uma política econômica ortodoxa, de aumento de preços de produtos industrializados e congelamento de salários e de preços de produtos agrícolas simples. É importante lembrar que o Pacto Militar Camponês não atingiu homogeneamente os camponeses bolivianos. De fato, ele conseguiu incorporar o setor mais organizado deles, os sindicatos

5.YASHER, Deborah apud REGALSKY, Pablo, op. cit., p. 94-95. Tradução da autora.

Page 28: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

28

Terra e território

agrários dos vales de Cochabamba, os mesmos que participaram de forma mais ativa na Revolução de 1952. Contudo, ainda era uma relação baseada na cooptação de dirigentes sindicais e não necessariamente enraizada nas suas bases.

O katarismo e a CSUTCB Paralelamente ao declínio do Pacto Militar Camponês, um outro setor do campesinato boliviano começou a se reorganizar com base em elementos étnicos. O movimento katarista surgiu na província de Omasuyus, norte da cidade de La Paz e ao leste do lago Titicaca, e resgatou com muita força uma memória de lutas indígenas de libertação contra o jugo europeu e criollo, tendo enquanto referência mais forte a figura de Tupac Katari. Aimará, Katari coordenou uma rebelião em conjunto com Bartolina Sisa e cercou a cidade de La Paz em 1781, chefiando 40 mil indígenas. A rebelião aconteceu paralelamente a muitas outras, como a de Tupac Amaru no Peru e de Tomás Katari em Potosi. Eram lutas para a reconstituição do território originário, profundamente radicalizadas e questionadoras da presença espanhola. Já na década de 1970, o katarismo denunciava o nacionalismo enquanto forma de dominação européia. No modelo universalista e liberal de Estado-nação, a etnicidade era mais uma vez utilizada como “ferramenta de resistência da comunidade andina”6.

O movimento se espalhou pelas regiões aimarás, criando laços também dentro de setores urba-nos. O principal feito do katarismo, contudo, foi a criação da Confederação Sindical Única dos Traba-lhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) em 1979, que substituiu a antiga Confederação Nacional de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CNTCB), entidade marcada pelo clientelismo do Pacto Militar Camponês. O katarismo foi, portanto, o movimento que dirigiu a reorganização do campesinato enquan-to setor independente e autônomo. A CSUTCB representou um grande avanço nas futuras lutas sociais no país, pela primeira vez na história uma só entidade tinha a capacidade de mobilizar todos os setores camponeses indígenas do país, incluindo os do ocidente.

Ao filiar-se à COB (Central Operária Boliviana), a CSUTCB resgatou a luta conjunta entre camponeses e trabalhadores urbanos, e isso marcou diversas mobilizações do final dos anos 1970 até meados dos 1980. Contudo, em 1985, o operariado boliviano sofreu um grande golpe na sua principal força motriz, os mineiros. Foi aprovado o decreto 21060, que promovia o enxugamento do aparato estatal e reformas econômicas de “estabilização”. A conseqüência direta foi a demissão de cerca de vinte mil trabalhadores mineiros estatais e, a partir deste momento, a dianteira das mobilizações e lutas populares

6. REGALSKY, Pablo, op. cit., p. 43. Tradução da autora.

Page 29: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

29

Terra e território

na Bolívia passou ao movimento camponês indígena.

Os cocaleiros Durante os anos de 1980, foi se formando um outro importante ator nas lutas sociais na Bolívia: o movimento cocaleiro. Junto com as políticas de ajuste estrutural, iniciou-se uma intervenção norte-americana muito mais forte no controle do narcotráfico e de tudo que se ligava a este na Bolívia. O estopim deste processo foi a aprovação da Lei 1008, em 1988, que militarizava a região tropical do departamento de Cochabamba. Ali, segundo cálculos unilaterais do governo, havia produção de folha de coca “excedentária” e que deveria ser controlada e erradicada. O pesquisador Eduardo Córdova, da Universidade Mayor de San Simon, de Cochabamba, pontua que o efeito prático da lei era de criminalizar os movimentos camponeses da região do Chapare: “Trata-se de uma lei inconstitucional. Segundo ela, uma pessoa é culpada e depois tem que demonstrar a sua inocência. Ela inverte os princípios jurídicos. A partir dela, a repressão contra os camponeses no Trópico de Cochabamba foi muito grande”. Isso trouxe como conseqüência uma organização dos camponeses cocaleiros muito maior, que passaram cada vez mais a adotar uma postura autônoma e enquanto setor diferenciado dos demais setores de produtores rurais, buscando um discurso antiimperialista em resposta à presença americana e resgatando a folha de coca enquanto um símbolo da cultura indígena e de resistência. No terceiro capítulo uma descrição muito mais ampla será feita dos efeitos das políticas antidrogas na região do Chapare.

Crise de mediação e Lei de Participação Popular A década de 1980 foi terrível para o movimento popular boliviano. Se por um lado a COB levou um golpe duríssimo em 1985 com a demissão dos mineiros, o movimento camponês e indígena ainda não estava completamente estruturado dos resquícios do Pacto Militar Camponês e também sofria muito com as políticas imperialistas e neoliberais, como é o caso dos cocaleiros. Córdova atribui este enfraquecimento por dois motivos. O primeiro era o desgaste intenso dos movimentos populares, em especial da COB, fruto das mobilizações para a conquista da democracia no início da década. O segundo motivo foi que as políticas neoliberais não eram neste período antipopulares, pois, apesar dos impactos na organização dos trabalhadores, estabilizavam a economia do país abalada pela imensa inflação. A democracia deste período foi chamada de democracia pactuada, pois como nenhum dos

Page 30: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

30

Terra e território

partidos que concorriam às eleições conseguia ganhar com maioria absoluta dos votos, era construído um acordo parlamentar na indicação presidencial. Com os movimentos populares se reorganizando, sem forças para grandes mobilizações e intervenções nacionais, “os políticos se responsabilizaram pela política”, como define Córdova este período, sem laços entre os governos e os movimentos sociais. O máximo que estes últimos conseguiam fazer eram algumas ações isoladas de resistência às políticas neoliberais, mas nunca como protagonistas do processo e sempre enquanto atores reativos. Na realidade, os governos também se viam débeis, uma característica geral do Estado boliviano. Zavaleta Mercado caracterizava este estado como um “Estado Aparente”, incapaz de atuar na totalidade do território nacional, pois a sua fundação foi artificial, externa à grande maioria da sociedade boliviana7. A concretização disso é seqüência de golpes de Estado que há na história do país e a ingerência estrangei-ra na determinação das políticas nacionais, que muitas vezes foram feitas sem levar em conta nenhuma especificidade local8. Contudo quando havia setores sociais envolvidos que lhes davam respaldo, o Estado se fortalecia. O apoio dos mineiros e da COB, por exemplo, foi essencial para a Revolução de 1952 e o governo do MNR que a seguiu; assim como as milícias camponesas foram fundamentais para proteger o regime militar das insurreições populares mais autônomas. No início dos anos 1990, já não havia tanta certeza na população de que a estabilidade da economia e as políticas de privatização de fato faziam com que as riquezas fossem divididas e a vida da população melhorasse. Os movimentos sociais começam a se rearticular com mais força e a resistência ao neoliberalismo crescia e já apontava para um contra-ataque.

Até que em 1994, o Estado propôs uma reconciliação com o movimento camponês através da promulgação da Lei de Participação Popular (LPP). Era época do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada9, que tinha enquanto seu vice-presidente um indígena aimará katarista, Victor Hugo Cárdenas. A LPP incluía no sistema eleitoral municipal os territórios rurais, pois antes dela o território municipal era somente urbano e a população rural só votava nas eleições nacionais. Esta lei mudou intensamente a perspectiva política institucional das populações rurais. Os sindicatos rurais poderiam ter seus próprios candidatos e os camponeses poderiam ser eleitos e participar no interior do Estado.

A interpretação desta lei varia conforme a orientação teórica. Contudo, caracterizações negati-vas e positivas da lei têm conclusões parecidas: houve aumento de presença camponesa nos municípios e a organização política institucional deste setor aumentou. A lei também é identificada como um elemento importantíssimo para a criação e expansão do maior fenômeno eleitoral boliviano dos últimos tempos, o

7.ZAVALETA Mercado, René apud URQUIDI, Vivian, op. cit.

8.Um exemplo disso é a re-forma no sistema boliviano de pensões e aposentadorias feita em 1996. O novo sistema passou a estabelecer como ida-de de aposentadoria 65 anos, quando a expectativa média de vida dos bolivianos na épo-ca não passava de 62.

9.Gonzalo Sánchez de Lozada foi presidente de 1993 a 1996 e de janeiro a outubro de 2003. A sua primeira gestão foi marcada pela privatização de estatais e por reformas que incluiam setores indígenas e camponeses no aparato es-tatal. A sua segunda gestão, iniciada em um momento de efervescência popular, foi marcada por grande endureci-mento militar contra os movi-mentos sociais que levou à sua queda em outubro de 2003.

Page 31: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

31

Terra e território

Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP), partido do atual presidente Evo Morales.

A princípio e antes do seu funcionamento, a maior parte dos movimentos sociais era contrá-ria à lei, em especial a CSUTCB. Uma das principais críticas era a de que a lei não havia sido feita em conjunto com estes movimentos, que era uma política imposta de cima para baixo. Tratava-se de uma política geral de “eliminação de atores estratégicos”, como denomina Eduardo Córdova, pois enfraquecia a organização nacional dos movimentos, na medida em que focava o centro das disputas políticas no espaço regional municipal. “Estes movimentos diziam ‘agora nós vamos brigar pelo dinheiro da parti-cipação popular, não pelo que faz o governo em nível nacional’”, lembra ele. Mas ele crê que, ao final, a lei foi positiva para os movimentos sociais, pois os re-inseriram nos panoramas das disputas políticas institucionais. Dentro desta perspectiva teria surgido o MAS, pois se tratava de um instrumento político que deixava claro a escolha pela institucionalidade em oposição à luta armada. “Os camponeses vão tentar entrar na institucionalidade e desde aí vão tentar fazer mudanças, mas respeitando a Constituição e as leis”, enfatiza Córdova.

Pablo Regalsky tem uma análise negativa da lei quase pelo mesmo motivo. Segundo ele, a LPP surge para criar “uma capa intermediária entre o campesinato indígena e o Estado”, transformando o ins-trumento político camponês (MAS), que antes era um instrumento para criar soberania e cuja proposta inicial era a defesa da terra e do território, em um partido que se propõe a “resolver a crise do Estado-nação”. A prática política deste partido no poder municipal acabou por significar não a independência do campesinato, a sua autonomia, mas sim a sua dependência com relação ao Estado e a criar “faccio-nalismos dentro desta mesma organização para ver quem repartia o dinheiro que as municipalidades administravam”.

Fato é que, a partir da criação e da legalização do MAS-IPSP, a presença política deste partido nas eleições municipais e nacionais foi exponencial. Em 1999, na primeira eleição municipal que enfren-taram, elegeram nove prefeitos. Em 2002, primeira eleição nacional com a sigla, Evo Morales alcança o segundo lugar. Em 2005, em meio à crise que derrubou dois presidentes, Evo Morales ganha as eleições presidenciais com 53,7%. Pela primeira vez na história da democracia boliviana um candidato ganha com maioria absoluta10.

10.DO ALTO, Hervé. “El MAS-IPSP boliviano, entre la protesta callejera y la política institucional”. In: MONAS-TERIOS, Karin; STEFANO-NI, Pablo; DO ALTO, Hervé (editores). Reinventando la nación en Bolivia. Movimien-tos sociales, Estado y poscolo-nialidad. Clacso / Plural. La Paz, 2007.

Page 32: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

32

Terra e território

14.Chaco de Tarija e áreas de coleta de castanhas na Amazô-nia boliviana.

15.DUNKERLEY, James, op. cit., p.105.

Indígenas do oriente – a outra etnicidade Paralelo a esta história de êxito, um outro movimento começava a aparecer no cenário nacional. Em agosto de 1990 uma marcha de indígenas saiu de Trinidad, departamento de Beni, em direção a La Paz. 800 indígenas chegaram à sede do governo e pela primeira vez fizeram com que o país percebesse a sua existência. Esquecidos e alvos fáceis do abuso dos madeireiros e fazendeiros das regiões baixas bolivianas, eles pediam o reconhecimento da sua cultura e dos seus territórios. Eram indígenas provindos dos departamentos de Beni, Santa Cruz, Tarija, Chuquisaca, de diversas etnias, como chimanes, yuracarés, movimas, sirionós, guaranis, matacos, tacanas, etc11. A marcha teve tanto impacto na opinião pública que o governo emitiu imediatamente oito decretos, reconhecendo quatro territórios indígenas e se comprometendo a formar uma comissão de regularização dos direitos indígenas nas terras baixas (Amazônia e leste boliviano)12. A história do oriente boliviano, por mais que tenha relação profunda com a do ocidente, traçou caminhos diversos. A expansão das fazendas criollas se deu em menor grau neste território pela grande extensão de terras e dificuldades no seu domínio devido ao clima e à vegetação tropical. A colonização de fato ficou muito mais nas mãos dos padres jesuítas, que estabeleceram nesta região missões nos moldes das que foram feitas no Brasil e no Paraguai. Ao contrário do oriente, que sempre contou com indígenas aimarás ou quíchuas, as terras baixas bolivianas concentravam dezenas de povos indígenas13. A Reforma Agrária de 1953 praticamente se limitou nesta área a eliminar legalmente o trabalho servil, sendo que até hoje em algumas regiões14 o trabalho escravo e servil permanece, apesar das denúncias das mais diversas organizações. Não houve divisão de terras nessa área, pois era um território reservado para a criação de empresas agrícolas segundo as políticas públicas pensadas pelo nacionalismo desenvolvimentista. O decreto 3464, que estabeleceu a reforma agrária em 2 de agosto de 1953, dava proteção a propriedades pequenas e médias e a empresas agrícolas, concentradas em sua maioria na região de Santa Cruz15. Neste panorama, os povos indígenas desta região pouco ou nada participaram do processo. Os que estavam incorporados nas fazendas enquanto peões e trabalhadores servis saíram às cidades. Porém, muitos estavam ainda isolados em seus territórios, lutando contra os avanços das forças que concentram poderes políticos e econômicos nestes locais, como madeireiros, agroindustriais e petroleiras, mas sem estarem minimamente incorporados aos debates nacionais. Até hoje, uma das maiores lutas políticas de muitos destes povos é conseguir documentos pessoais que possam garantir-lhes um mínimo de seguridade

11.LEHM Arcaya, Z. apud GARCIA Linera, Álvaro (co-ord.); CHÁVEZ Leon, Marxa; COSTAS Monje, Patricia. Los movimientos sociales en Bolivia, p. 219. Editora Plu-ral. La Paz, 2008.

12.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., idem, p. 217.

13.Ainda hoje, esta região possui mais de 30 povos in-dígenas, grande maioria dos 36 reconhecidos pela nova Constituição Política do Es-tado, ainda em processo de aprovação.

Page 33: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

33

Terra e território

pública e status de cidadania. A década de noventa inicia apontando perspectivas para estas populações. As organizações indígenas já haviam passado por um período de estruturação interna, embalados pela criação da Confederação Indígena do Oriente Boliviano (Cidob) em 1982 e por iniciativas de outras populações indígenas amazônicas em outras partes da América Latina16. A marcha de 1990 é resultado, portanto, desta organização crescente17. Além disso, a memória dos 500 anos de presença espanhola aproxima uma série de ONGs de defesa dos direitos indígenas destas organizações, e a sua luta por reconhecimento ganha um destaque internacional. Trata-se de mais um resgate da etnicidade, que desta vez não tem relação com a cultura andina e altiplânica, mas que têm um inimigo comum a esta, a ocupação dos seus territórios e a tentativa de eliminação gradual da sua cultura e modo de vida. “Terra e território” é o grande mote das mobilizações dos anos 1990 e unia estes movimentos étnicos a todos aqueles que se organizam no campo de forma mais sindical. É com este princípio somado ao de autodeterminação que será pensado pela primeira vez o Instrumento Político Pela Soberania dos Povos (IPSP), que depois irá adotar a sigla de MAS. Impulsionado pelo setor cocaleiro, ele é aprovado em 1995 em um congresso conjunto da CSUTCB, da Confederação Sindical de Colonos da Bolívia (CSCB)18, da Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia – Bartolina Sisa (FNMCB-BS), e a Cidob (que neste momento já se chamava Confederação de Povos Indígenas da Bolívia).

Das primeiras revoltas do milênio à “revolução democrática cultural” No início dos anos 2000, as lutas e mobilizações começaram a entrar no terreno urbano. Já havia uma avaliação consensuada dos setores urbanos de que os ajustes econômicos aplicados durante os anos 1990 não distribuíram riquezas, mas sim contribuíram para tornar a Bolívia um país mais pobre e dependente. O estopim se dá em 2000 na cidade de Cochabamba, com a privatização da água. A tentativa malfadada do governo Banzer de privatizar os serviços de água causou uma grande mobilização que uni-ficou ambientalistas, camponeses, moradores de bairros e trabalhadores urbanos. Parte destes serviços não era controlada pelo Estado, mas sim por juntas comunitárias e, na prática, seria expropriada pelo governo para ser cedida a uma empresa privada. Esta frente social travou uma batalha intensa na cidade, articulou-se com ativistas de San Francisco nos Estados Unidos (EUA) para pressionar a empresa ameri-cana Bechtel que estava negociando com o governo, e por fim, conseguiu barrar a privatização da água.

16.Albó aponta que o pri-meiro despertar étnico na América Latina foi com os povos shuar nos anos 1960 na Amazônia equatoriana. Isso depois desembocou na criação da Confederação de Naciona-lidades Indígenas da Amazô-nia Equatoriana (Confeniae), que forma, em conjunto com a Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Pe-ruana (Aidesp) e com a Cidob, a Coordenadora Indígena da Bacia Amazônica (Coica), em 1984. Esta organização ajudou muito na estruturação dos tra-balhos da Cidob na Bolívia. In: ALBÓ, Xavier. Pueblos in-dios en la política, p. 184-205. Plural / Cipca. La Paz, 2002.

17.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 218.

18.O termo colono neste con-texto remete ao camponês que foi levado pelo Estado a zonas de colônias, onde obtiveram dotação de parcelas de terras. Estes colonos se organizam na CSCB e são diferentes, por-tanto, dos colonos em estado de servidão nas fazendas antes da reforma agrária.

Page 34: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

34

Terra e território

A Guerra da Água foi chamada de primeira revolta do milênio e foi também a primeira conquista efetiva dos movimentos sociais bolivianos contra o neoliberalismo que avassalava o país. A largada havia sido dada. Para movimentos sociais bolivianos estava clara a possibilidade não somente de barrar as políticas do governo quanto também de avançar nas suas próprias pautas. A Guerra do Gás, melhor explicada no capítulo quarto, lançou nacionalmente a agenda de outubro, com a propos-ta de nacionalização e industrialização do gás natural. Marchas nacionais de camponeses neste período pediam a modificação da Lei Inra (Instituto Nacional de Reforma Agrária), uma nova Reforma Agrária, e a refundação das bases do país através de uma Assembléia Constituinte, propagando os ideários descolo-nizadores de plurinacionalidade e reconhecimento das diversas etnicidades e das autonomias indígenas. Em 2002, cocaleiros também tinham a sua própria Guerra pela Coca, na qual denunciavam o fechamento de seus mercados e a violência que viviam devido à militarização da região. Foi em meio a tantas revoltas populares, que vinham avançando nas suas reivindicações, que dois presidentes da Bolívia caíram (Sánchez de Lozada em 2003 e Carlos Mesa em 2005). Em 2005, novas eleições foram chamadas e Evo Morales, eleito presidente, inicia a chamada “revolução democrática cultural”. Ele era o único candidato com a capacidade de fazer a Bolívia “governável”, ou seja, de parar as revoltas populares crescentes. Isso se deve em parte porque seu governo podia responder às reivindicações populares e em parte também porque possuía uma imensa legitimidade enquanto liderança social.

*** Escrevo este texto enquanto este governo está em vigência e seus rumos estão ainda abertos, mas já se pode notar muitos dos seus efeitos na sua principal base de sustentação, o movimento camponês e indígena. Contudo, a pretensão aqui não é estabelecer uma análise do que é o governo de Evo Morales. Claro que em muitos momentos as interpretações – que são muitas – vão aparecer. A questão central é demonstrar a linha histórica que levou a estes indígenas coloniais, depois camponeses e depois indígenas novamente, a lutarem tão ferozmente pela sua soberania. Trata-se de uma luta tão forte que derrubou presidentes, recuou o imperialismo norte-americano, e tem força suficiente para refundar o país e começar a história de novo.

Para entender as forças motrizes deste movimento político e social, acompanhei entre setembro de 2007 e junho de 2008 três movimentos com culturas camponesas distintas.

Page 35: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

35

Terra e território

Relato as experiências por certa ordem cronológica e espacial, pois escolhi o percurso tendo em vista a perspectiva de uma brasileira. Cruzei a fronteira sul mato-grossense com o departamento boliviano de Santa Cruz, região oriental do país. Lá, encontrei uma estrutura agrária bastante parecida com a do Brasil: grandes latifúndios; monocultura de soja e de cana; trabalho assalariado miserável; movimentos indígenas enfraquecidos na sua imensa diversidade e por anos e anos de missões religiosas; milícias armadas de latifundiários, trabalho escravo e servil, crimes gritantes contra os direitos humanos que são geralmente omitidos pela grande imprensa local; e, por fim, um recente movimento sem-terra, inspirado pelo brasileiro, que simboliza boa parte dos desafios e contradições que vivem os camponeses desta região.

Em seguida, fui ao Chapare, região militarizada graças à política norte americana de Guerra contra as Drogas, causando a morte de dezenas de camponeses plantadores de coca entre os anos de 1980 e 1990. Trata-se de uma zona tropical que reúne camponeses migrantes do altiplano, mas que conformaram uma identidade cocaleira e se transformaram, pela fortíssima repressão sofrida, em um dos atores mais fortes do movimento camponês boliviano. Não é gratuito que dali surgiu o impulso central para a criação do MAS-IPSP e dali provém o primeiro presidente indígena da Bolívia, Evo Morales.

Por fim, num caminho que vai das terras baixas bolivianas ao altiplano andino, de leste à oeste, conheci o movimento aimará da província de Omasuyus, no departamento de La Paz. Ali os camponeses não são migrantes, sempre ocuparam o território onde estão. Sua luta pode se focar no resgate aos recursos naturais, mas acima de tudo lutam pela sua reconstituição enquanto povo, em contraposição ao Estado colonial. Resgatam com força os seus símbolos culturais aimarás e heróis da luta pela sua libertação, como Tupac Katari e seu cerco à cidade de La Paz em 1781. Eles foram atores políticos essenciais do período de 2000 a 2005, e suas mobilizações, chamadas de rebeliões indígenas aimarás, interpelaram com muita radicalidade a estrutura do Estado boliviano.

Page 36: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

36

Terra e território

Detalhe

MAPA DE SANTA CRUZ

Page 37: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

37

Terra e território

2 - O ORIENTE BOLIVIANO E A LUTA PELA TERRA

Page 38: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

38

Terra e território

Page 39: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

39

Terra e território

COMUNIDADE AGROECOLÓGICA DE PUEBLOS UNIDOS

Ao encontrar uma pessoa pela primeira vez, Luiz Guerra raramente esboça reação. Quando muito, vira seu rosto para o lado oposto, com vergonha ou desdém. Luiz tampouco fala muitas palavras, mas “mama”, “papa” e “casa” estão no seu vocabulário de grunhidos típicos de crianças de dois anos de idade. É filho único, sem muitos amigos. Costuma brincar com o loro bravo de estimação ou - quando chove - com garrafas de plástico vazias em poças d’água.

Luiz mora com seus pais em Pueblos Unidos, uma comunidade formada por famílias do Mo-vimento Sem Terra – Bolívia (MST-B)1 que fica na província de Guarayos, norte do departamento de Santa Cruz. As famílias reivindicam 16 mil hectares nesta área, que serão terras coletivizadas, propriedade da pessoa jurídica “Comunidade Agroecológica de Pueblos Unidos”. A posse das terras ainda não está finalizada, mas a comunidade já conta com uma resolução de assentamento no local, o que os permite produzir e viver nas terras legalmente.

Há muitas crianças como Luiz na comunidade, entre um e oito anos. Quando as crianças atingem uma idade maior, a ida das famílias para povoados maiores é quase inevitável. Com quase dois de fundação, Pueblos Unidos ainda não conta com uma escola própria. É por questões como educação e saúde – há um posto de saúde, mas falta médico e medicamentos – que muitas das 350 famílias que estão legalmente morando na comunidade não passam a maioria do tempo nela. Boa parte dos moradores, contudo, está esperançosa com a melhoria de infra-estrutura da comunidade e estão aguardando ajudas governamentais. Com isso, poderão se estabelecer de forma mais constante em Pueblos Unidos.

A área de urbanização fica perto da entrada da comunidade e é nela que se concentram as habitações das famílias, uma grande construção retangular que serve de sede das atividades comunais (assembléias, reuniões, aulas etc.), três vendas, o posto de saúde e um poço – que fica no meio de um terreno aberto, ao redor do qual se dispõem os principais prédios. Todas as construções são cabanas,

1.O MST-B não é de uma afi-liação ou de um braço inter-nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) brasileiro, apesar de muitas referências políticas e organizativas no movimento sem-terra brasileiro.

Page 40: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

40

Terra e território

com tetos de folhas de motacu, uma palmeira abundante nesta região, e paredes de madeira ou chuchiu, uma espécie de bambu. Os carros não entram na área de urbanização, pois ela é separada da estrada que leva a Pueblos Unidos pelo Rio Grande. O acesso à comunidade é, portanto, sempre feito de barco ou canoa. O que parece encantador aos olhos dos visitantes, um símbolo de reclusão ou mesmo rebeldia da comunidade é, na verdade, um grande problema. Toda a produção de Pueblos Unidos tem que ser transportada em barcos precários, o que dificulta o cotidiano e a auto-suficiência dos moradores.

As crianças que ficam na comunidade inventam o que fazer. As maiores ajudam seus pais nas plantações. As outras gostam de imitar as atividades dos adultos, brincam de canoa, acompanham as assembléias do lado de fora da sede. Têm muita vontade de ir à escola e, quando se identificam, dizem seus nomes, sua idade, e a classe equivalente que estariam se estivessem na escola. Quando as famílias chegaram a essas terras, em setembro de 2006, foi contratado um professor para alfabetizar as crianças. Mas por problemas econômicos, o professor teve que ser dispensado.

Neste momento, a comunidade conta somente com a ajuda voluntária da professora Fabiola Rojas, que visita a comunidade todos os finais de semana para alfabetizar os adultos da comunidade. São ao todo 90 alunos, que acompanham duas turmas, uma que vai da primeira a terceira série e outra que vai da quarta a sexta série. A professora ensina castelhano e matemática e tem como suporte de ensino as cartilhas Yo sí puedo2, que fazem parte de um programa recém criado pelo governo Evo Morales de erradicação do analfabetismo, inspirado por um programa equivalente de Hugo Chávez na Venezuela. Não há apoio para os outros materiais escolares, como cadernos, canetas, giz de lousa, etc. As aulas, apesar de serem voltadas para os adultos, contam com extensa participação das crianças. Algumas arrumam cadernos e lápis e passam a fazer seus próprios rabiscos, outras simplesmente correm de um lado para o outro, como numa festividade.

Luiz, chamado por Caluchito pelas outras crianças de Pueblos Unidos em referência a seu pai, é muito novo e ainda não se encanta muito pelas atividades na sede. Passa a maior parte do tempo do lado oposto da urbanização, na venda de seus pais. Trata-se da maior venda da comunidade, a única que conta com um gerador de eletricidade e, portanto, com um refrigerador que pode oferecer bebidas geladas nos dias quentes que predominam nesta região. Quem cuida da venda é a sua mãe, Benita, que mantém as contas em um caderno pequeno. Seu pai não sabe ler muito bem e se volta mais para o trabalho no cam-po, onde têm pequenas plantações de arroz, batata, tomate e verduras.

Juan Carlos Guerra, o Calucho, tem 29 anos e faz parte do movimento sem-terra desde 2001,

2.Em tradução literal “Eu pos-so sim”.

Page 41: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

41

Terra e território

um ano após a criação do movimento na Bolívia. Lembra com orgulho o passado de lutas que levou a conquista das terras de Pueblos Unidos. Entre 2001 e 2006, estas famílias tiveram que ocupar e desocupar mais de quatro localidades, muitas vezes enfrentando conflitos violentos com os latifundiários da região norte do departamento de Santa Cruz. “Entramos em La Luna, de La Luna nos tiraram; depois de San Caetano nos tiraram; de Guadalupe nos tiraram, e paramos em Yuquises, onde ficamos por um ano”, conta Calucho. E Yuquises traz aos sem-terra de Pueblos Unidos muitas lembranças amargas.

O assentamento em YuquisesSegundo Javier Aramayo, o assessor jurídico dos sem-terra e que acompanha todas as batalhas

legais empreendidas pelo movimento3, a descoberta na fazenda Los Yuquises se deu sem querer. Na época, o movimento havia feito uma brigada para localizar terras fiscais4 que poderiam ser revertidas para a reforma agrária. No dia 8 de agosto de 2004, quando esta brigada cruzava Los Yuquises, propriedade do fazendeiro Rafael Paz, encontrou homens que carregavam armamento moderno. Os sem-terra estavam em maior número e os detiveram. Logo descobriu na fazenda todo tipo de armamento, metralhadoras, fuzis, granadas tipo limão, aparatos de radiocomunicação. “Era obviamente um arsenal que havia entrado na Bolívia via contrabando, pela fronteira com o Paraguai”, diz o assessor.

Aramayo tem a convicção de que este material era utilizado para fomentar os “comitês de autodefesa da terra”, que seriam um braço armado dos latifundiários da região. Ele explica que houve uma organização das famílias detentoras de terras para evitar o avanço dos assentamentos sem-terra e dos questionamentos às suas propriedades. “O movimento sem-terra se inicia com força na região do Grande Chaco5, onde passa a ter um caráter mais orgânico no final dos anos 1990. Logo em 2000 começa a tomar mais corpo e a se relacionar com outras organizações sociais, e neste ano há uma proliferação impressionante de assentamentos. Foram afetadas as propriedades de muitos deputados, senadores, autoridades, militares, etc. E em 2001, ocorre o massacre de Pananti6, e ele foi uma espécie de contestação violenta dos grupos de poder para a eliminação seletiva dos lideres do MST. E o efeito disso foi que, em vez do movimento ser extinto no Grande Chaco, ele começa em Santa Cruz a partir de 2002. E neste momento são afetadas grandes famílias do norte crucenho7, que é uma espécie de pólo de desenvolvimento agrícola e industrial, onde o Estado concentrou grandes capitais entre os anos 1960 e 1970”. Portanto, a partir da experiência na região do Grande Chaco, as famílias detentoras de terras passaram a se preparar para o conflito com os camponeses sem-terra.

3.Trata-se de uma parceria que o movimento sem-terra tem com o Centro de Estudos Jurídicos e Investigação Social, organização sediada em Santa Cruz de la Sierra, especializa-da em questões agrárias.

4.Terras fiscais são terras de propriedade do Estado boli-viano que ainda não tiveram nenhuma destinação.

5.Região que fica no departa-mento de Tarija.

6.O massacre de Pananti ocor-reu em novembro de 2001 no departamento de Tarija, quando um grupo de para-militares armados atacou um acampamento do movimento, ferindo e matando campone-ses sem-terra.

7.Do departamento de Santa Cruz.

Page 42: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

42

Terra e território

Aramayo ainda explica uma particularidade da expansão do movimento no norte crucenho. Por ser uma região que concentrou muitos investimentos estatais para a produção agrícola, houve também nela um estímulo à migração de famílias do oriente ao ocidente, para se tornarem mão-de-obra destas fazendas. “Estas famílias vão vivendo ao redor destas fazendas. Então quem compõe majoritariamente o movimento sem-terra na região? São os filhos da antiga fracassada reforma agrária. São os jovens nascidos e criados em Santa Cruz, filhos daqueles que haviam sido trazidos como força de trabalho para fortalecer as antigas fazendas tradicionais da região, para sustentar esta burguesia agrícola”. A descoberta de armas em Yuquises faz parte deste contexto. Logo após a descoberta, foram feitas denúncias ao Ministério Público e a imprensa foi chamada. O movimento decidiu que permaneceria assentado na fazenda até que o processo terminasse e tudo fosse investigado. Além da denúncia do armamento ilegal, era denunciada a falta de atividade produtiva do local, motivo suficiente para a reversão da propriedade da terra.

“Nós dizíamos que o movimento havia se tornado um defensor da democracia”, diz Aramayo. Mas isso, obviamente, não foi reconhecido na opinião pública. A imprensa, conta ele, deturpou tudo: “diziam que havia um campo de treinamento guerrilheiro, com mais de 60 trabalhadores e que estavam atrapalhando a atividade produtiva de Santa Cruz e que este campo estava sendo assessorado por colombianos, guatemalenses, peruanos, e que tinham campos de tiros e torres de comunicação à satélite. Fizeram uma montagem para desprestigiar o movimento”. Após terem encontrado as armas, o clima era muito tenso. Aramayo conta uma situação que ilustra isso. A região era isolada, e para que as autoridades a alcançassem eram necessárias várias horas de viagem. Durante a noite, chegaram representantes de vários ministérios, de organizações de direitos humanos, da defensoria pública, e eles se prepararam para iniciar uma reunião. Estavam todos com medo, pois era uma situação delicada e passível de um conflito armado a qualquer momento. O que eles não sabiam era que havia sido organizado um sistema de sentinelas, no qual cada guarda comunicava a sua posição através de foguetes. Quando soou a troca de estalidos, as autoridades se desesperaram e se jogaram ao chão, com todos os seus guarda-costas por cima, para divertimento geral dos que ali estavam.

A investigação nos órgãos de governo correu e inclusive o serviço de inteligência do exército boliviano chegou a confirmar, através do Ministro de Governo da época, Saul Lara, uma corrida a armamento na região de Santa Cruz. Mas, ao final, todo processo foi arquivado, absolutamente ninguém foi indiciado pela existência daquele armamento.

Page 43: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

43

Terra e território

E aí, os papéis se inverteram. Os militantes do movimento passaram a ser acusados de terroristas e a pressão dos latifundiários crescia a cada dia para que eles fossem despejados da fazenda. “O governo é cúmplice e inimigo dos produtores e da institucionalidade crucenha, por isso põe todo o poder do Estado para mostrar os do bando sem-terra como vítimas e não como o que realmente são: delinqüentes organizados para a subversão”, disse na ocasião José Céspedes, presidente da CAO (Câmara Agroindustrial do Oriente)8. No dia 15 de setembro de 2004, a CAO publicou uma carta aberta no jornal La Razón, que ameaçava textualmente que, se o governo não tomasse iniciativas para impedir as ocupações de terras, os agroempresários iriam “defender seus direitos com seus próprios meios”9. Ou seja, não somente foram identificadas e denunciadas iniciativas paramilitares, mas também os promotores desta iniciativa, via CAO, explicitaram que elas poderiam acontecer.

No dia 8 de maio de 2008, a ameaça de “justiça com seus próprios meios” dos latifundiários se concretizou. Rafael Paz, dono de Yuquises, contratou para esta ocasião mais de uma centena de homens para despejar à força os camponeses do MST que estavam em sua propriedade. Calucho descreve a ação dos paramilitares assim: “Primeiro queimaram nosso arroz e quando os companheiros foram tentar salvar seus produtos, prenderam nove deles. Eles foram torturados, amarrados, vendaram seus olhos. Era uma gente drogada, que tiraram da prisão e contrataram para brigar com a gente”. Segundo ele, os militantes do MST seqüestrados foram resgatados pelos sem-terra do próprio assentamento, que se organizaram para enfrentar os contratados.

Contudo, grande parte destes contratados foi convocada para trabalhar como peões nos cam-pos de cultivo, não para formarem uma guarda paramilitar de Rafael Paz e despejar os sem-terra. José Luis Alvarada contou à imprensa que eles foram contratados por Vicente Socompi, funcionário de Rafael Paz, que lhes disse que iam “roçar e fazer a colheita de arroz, e ficou de nos pagar 50 pesos bolivianos por dia. Roçamos só um dia e Socompi não nos avisou nada, não nos disse que havia gente ali, ele nos levou direto ao matadouro. Inclusive quando houve enfrentamento com os sem-terra, Socompi não estava com a gente, ficou no acampamento mais atrás”10.

De qualquer forma, 67 destes homens contratados por Paz ficaram sob a guarda do MST de-pois do enfrentamento, para serem entregues mais uma vez às autoridades, pois se esperava que alguma iniciativa fosse tomada. Este fato, ao invés de evidenciar a iniciativa aberta paramilitar, levou a imprensa a acusar os sem-terra de seqüestradores. As pessoas que foram mantidas por somente alguns dias pelos do movimento sem-terra eram sempre identificadas como “reféns”, sem levar em conta que o que pedia

8.Los Tiempos, 13/05/2005. Agropecuarios acusan al gobi-erno. Disponível em: http://www.lostiempos.com/noti-c ias/13-05-05/13_05_05_nac4.php. Tradução da autora.

9.QUIROGA, Omar; NÚÑEZ, Eulogio. Estudio de impacto en políticas de tierra y terri-torio: estudio de caso de “Los Yuquises”, p. 16. CIPCA Re-gional Santa Cruz. Santa Cruz de la Sierra, 2005. Tradução da autora.

10.Bolpress.com, 21/06/2005. Enviados a los Yuquises con engaños para enfrentar a los Sin Tierra advierten con tomar la casa de Rafael Paz. Disponível em: http://www.bolpress.com/art.php?Cod=2005001365&PHPSESSID=2a320f85dc64affeaa85342b265e420d. Tradução da autora.

Page 44: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

44

Terra e território

Page 45: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

45

Terra e território

o MST era que estas pessoas fossem julgadas pela justiça e não eram utilizadas como moeda de troca para nenhuma negociação.

O setor agroindustrial obviamente bradava contra os “delitos flagrantes contra a vida e a liberdade”11 destes “reféns”, omitindo o fato de que eles foram levados à área para despejarem os sem terra e nem sequer sobre esta condição foram avisados pelos seus contratantes. Ironicamente, os “seqües-trados” pelo MST quando chegaram a Santa Cruz após a sua tão reivindicada libertação foram aos meios de comunicação não para reclamar dos abusos sofridos nas mãos dos sem-terra, mas sim para pedir o pagamento dos seus serviços prestados12. “Com uma mentira muito grande nos levaram e graças à gente eles já são donos destas terras”, comentaram eles para a Bolpress, uma publicação on-line alternativa, e concluíram “eles nos fizeram brigar entre pobres”13.

No dia seguinte ao enfrentamento dos sem-terra com os contratados de Paz, uma conferência de imprensa foi organizada pelo MST na praça central de Santa Cruz de la Sierra. A intenção era denunciar os ataques aos direitos humanos promovidos pelos latifundiários, que estavam ameaçando um assentamento feito na defesa dos interesses públicos. No final da atividade, o dirigente do MST que estava organizando a conferência, Silvestre Saisari, foi atacado até ficar inconsciente pela Unión Juvenil Cruceñista (UJC). Na ocasião, ele disse a uma publicação local: “Arrastaram-me até me levarem outra vez à praça, em frente à sala de imprensa, onde tiraram meus documentos, meu celular. Começaram a mexer nas minhas coisas e gritavam ‘vamos te matar, colla14 de merda. Agora sim você vai ver o que é sofrer’ (...) Não entendia porque estavam gritando, porque estavam me batendo. Pedi-lhes para parar, mas continuaram me batendo na boca, no nariz, no rosto e começaram a me chutar (...). Sentia-me muito mal, e perdi a consciência quando me bateram atrás da orelha”15.

E no dia 25 de maio, cerca de nove meses depois da descoberta das armas e da presença do movimento em Yuquises - e depois de muita pressão dos latifundiários - o despejo finalmente foi efetiva-do. Na época, o movimento já tinha nestas terras cerca de 3,5 mil hectares cultivados, em sua maioria de arroz. Aramayo lembra que chegou em Yuquises cerca de 24 horas antes do despejo. Documentaram a produção que era equivalente a 400 mil dólares, e de tudo isso nada foi recuperado. “Tocaram fogo, de propósito. Houve companheiros detidos, perseguidos, ilegalmente. Consideraram proprietários de toda esta produção os fazendeiros, nada deveria ser assim”, lembra ele.

Não houve maior resistência ao despejo, pois o MST contava com a promessa do governo de dotação imediata de terras fiscais, assim que saíssem da fazenda Los Yuquises. O movimento deu um

11.Los Tiempos, 13/05/2005, op. cit. Tradução da autora.

12.Bolpress.com, 21/06/2005, op. cit.

13.Bolpress.com, 21/06/2005, idem. Tradução da autora.

14.Expressão utilizada para identificar os indígenas prove-nientes do ocidente altiplâni-co boliviano.

15.Entrevista dada para a pu-blicação El Nuevo Dia. Cit. in: QUIROGA, Omar et al., p. 18. Tradução da autora.

Page 46: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

46

Terra e território

prazo de cinco dias para que as terras fossem dotadas, mas, no dia 30 de maio, o governo voltou atrás no que haviam combinado. “O Ministro de Desenvolvimento Sustentável, Erwin Aguilera, afirmou que o Estado não negociará com o MST nenhuma dotação de terras em Santa Cruz. Contudo, esclareceu que estudam a entrega de terras florestais aos camponeses que não participam em invasões”16. A partir desta demonstração do governo, as famílias do MST que estavam em Yuquises começaram novamente as suas ações de pressão, indicando constantemente uma volta à fazenda improdutiva. Ao final, somente com a entrada do governo Evo Morales a tão esperada dotação de terras foi feita. A propriedade de Rafael Paz continuou intacta, mas os sem terra conseguiram a dotação de terras fiscais em uma área vizinha.

Calucho recorda bem de um diálogo que teve com algumas autoridades no momento do despejo. “Eu falei pro capitão ‘eu não vou me render nunca, porque sou homem e preciso de terra para trabalhar’, ‘Mas vocês são uns invasores! Por que fazem tanta desordem?’, me disse ele e eu respondi ‘Porque eu estou com a razão. Sou boliviano e tenho o direito de ter um pedaço de terra para trabalhar. E é por isso que vou lutando. E vou entrar de novo aí. Vocês estão me tirando daí, mas vou entrar de novo”. E por ironia do destino, foi este mesmo exército que acompanhou Calucho, sua família e mais centenas de outras na chegada a Pueblos Unidos em 5 de setembro de 2006, quando finalmente foram legalizadas terras para a conformação da sua tão esperada comunidade.

Impactos políticos da ocupação em Los Yuquises O caso da fazenda Los Yuquises teve um grande impacto durante o governo de Carlos Mesa (outubro de 2003 a junho de 2005) e nos debates acerca da propriedade da terra na região do oriente boliviano. No período que durou o assentamento, de 8 de agosto de 2004 a 25 de maio de 2005, dois governadores do departamento de Santa renunciaram graças às pressões do setor latifundiário. A ocupação precisa ser vista sob o prisma da gestão de Carlos Mesa, que substituiu o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada derrocado pelas mobilizações sociais de outubro de 2003. A promessa de Mesa na época era garantir um maior diálogo com os movimentos sociais, também porque sabia que se seu governo mantivesse a mesma agressividade de Sánchez de Lozada, não duraria nem um mês. Portanto, a sua postura inicial ao lidar com o assentamento dos sem-terra era negociar, posição considerada ina-ceitável para o setor agroempresário da região, que começou a atacar o governo com todas as armas que detinham: forte poder econômico e controle dos principais meios de comunicação do país e da região, em especial os televisivos.

16.El Deber. Cit. in: QUIRO-GA, Omar et al., p. 22. Tradução da autora.

Page 47: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

47

Terra e território

Mesa sabia o risco que correria se enfrentasse militarmente os assentados, pois isso poderia resultar um efeito multiplicador da mobilização parecido com o que houve em outubro de 2003. Ao final, acabou cedendo à pressão dos latifundiários e enviou o exército à região, endurecendo o discurso contra os movimentos sociais. É possível que esta tenha sido uma tendência geral do governo nesta época, o que acelerou a sua queda em junho de 2005, promovida pelos movimentos sociais. Por outro lado, o movimento sem-terra viu na descoberta das armas a possibilidade de de-nunciar a ação paramilitar dos latifundiários na opinião pública, de expor a improdutividade destes fazendeiros e a necessidade de redistribuição das terras. Talvez a idéia fosse reverter a imagem do mo-vimento sem-terra na Bolívia como um movimento de invasores ilegais, para um movimento de defesa dos interesses públicos e que sofre com os mais diversos ataques aos seus direitos humanos. Contudo, no geral, a grande imprensa foi bastante eficaz na inversão de papéis, e o movimento sem terra mais uma vez foi tomado como ilegal, violento e que atacava os direitos de propriedade, que, como vimos, são os únicos que existem para o setor latifundiário de Santa Cruz. A conquista efetiva da sua luta foi fazer a sua demanda conhecida em território nacional. No interior dos movimentos sociais, a história das famílias de Yuquises se somou às tantas sagas do seu repertório histórico. Isso lhes garantiu, por exemplo, que a dotação de terras para o assentamento de Pueblos Unidos, feito já no primeiro ano do governo de Evo Morales, tenha sido uma prioridade, com grande conteúdo simbólico na região. Uma outra implicação que teve este conflito de Yuquises foi o questionamento que o setor agroindustrial fez à figura do governador. Neste último período do governo Mesa, se tornou fortíssima a reivindicação regional de que este cargo fosse eleito diretamente pela população crucenha, pois a Bolívia é um estado centralizado e não federativo, e o cargo de governador era, até o momento, indicado pelo governo central. Provavelmente, os setores de poder econômico da região identificaram a tendência de mudanças radicais no governo central, que a partir de 2005 é conquistado por um partido de origem popular, contrário, portanto, aos interesses destes setores. Estabelecer em Santa Cruz um feudo político que blindasse a agroindústria boliviana dos reveses da política nacional foi a saída mais viável encontrada. Mais à frente, veremos como esta aparente luta entre governo central e governo departamental vai se desenvolver na reivindicação dos Estatutos Autonômicos.

Page 48: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

48

Terra e território

Pueblos Unidos tem este nome porque reúne famílias que vieram de diversas localidades do departamento de Santa Cruz e, principalmente, dos departamentos que ficam no altiplano boliviano – Chuquisaca, La Paz, Oruro e Cochabamba. A maioria dos seus moradores fala pelo menos dois idiomas, no geral quíchua e castelhano. Como “filhos da fracassada reforma agrária”, os trabalhadores sem-terra espelham uma das histórias mais duras do campo boliviano. Seus pais vieram do altiplano porque as políticas agrárias na região não evitaram a criação de minifúndios incapazes muitas vezes de garantir a soberania alimentar das famílias que neles viviam. Estes camponeses não tiveram escolha para além de se tornarem empregados em terras alheias e esperavam contar com a sorte para talvez, algum dia, ter a sua própria terra que trabalhar. Para conseguir isso, contudo, tiveram e têm até hoje que enfrentar uma luta arraigada com as poderosas famílias que controlam as terras do oriente do país, como demonstrou a experiência de Yuquises.

Seus inimigos conquistaram suas terras nos governos nacionalistas, muitas vezes de forma ile-gal, por relações pessoais com os políticos no poder, geralmente sem nenhum amparo em uma política de interesse público. Apesar da Reforma Agrária de 1953 proibir o latifúndio, ela permitia extensões de terra de até 50 mil hectares, sendo que há comprovadamente dotações de terra maiores que esta área. A dinâmica da distribuição de terras entre os anos 1950 até os 1990 funcionou muitas vezes conforme os interesses políticos de cada governo. Se no altiplano era interessante manter o ritmo da distribuição de terras para garantir a imensa quantidade de milícias camponesas favoráveis ao regime, o que se reproduziu também no Pacto Militar Camponês, o ocidente era utilizado como espaço de barganhas políticas com apadrinhados17. Ali se acomodou a elite com grandes extensões de terras, latifúndios escondidos sob a denominação empresas agrícolas. O movimento sem-terra boliviano tem, portanto, enquanto ação pri-mordial a “reivindicação de uma verdadeira reforma agrária no oriente boliviano”, como caracteriza o seu

POLÍTICAS AGRÁRIAS NA BOLÍVIA

17.ROMERO, Carlos. “La vio-lencia como componente del proceso agrario boliviano”. 19/08/2005. Artigo disponí-vel em: www.cejis.org

Page 49: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

49

Terra e território

dirigente Silvestre Saisari.As características da malfadada reforma agrária no oriente boliviano poderiam ser ligadas a

várias situações. Uma delas seria a de que as relações entre os fazendeiros e os colonos nesta região possuíam na década de 1950 um grau de exploração diferente do que no altiplano e nos vales, o que não teria acarretado no oriente a explosão de tomadas de terras tal como houve no ocidente depois da revolução nacional. Talvez por este mesmo motivo não havia organizações sindicais camponesas fortes na região que pudessem liderar o processo. Além disso, por a região ter uma grande quantidade de terras baldias, não havia uma necessidade direta de desapropriação das fazendas que já existiam. Por fim, quando se viram ameaçados, os latifundiários rapidamente denominaram as suas propriedades enquanto empresas agrícolas, protegidas pela lei, ou dividiam as suas terras entre parentes18.

O resultado da reforma agrária em Santa Cruz pode ser resumido em números bastante simples. De 1953 a 1992, período em que o decreto de reforma agrária de 1953 esteve vigente, foram dotados cerca de 23 milhões de hectares a aproximadamente 13 mil proprietários. Metade destes proprietários eram grandes, com propriedades acima de 500 hectares – sendo quatro delas maior do que 50 mil hectares. A outra metade eram pequenos ou médios, com propriedades entre um a 500 hectares. Os primeiros detiveram 97% das terras, os segundos, somente 3%19.

Aramayo apresenta dados de ilegalidades: “Neste período se pode considerar de que de cada 10 processos agrários que se tramitaram, sete estão com vícios irregulares de nulidade absoluta ou relativa (...). Além disso, a antiga reforma agrária distribuía a terra com a condição de que quem a recebia teria que apresentar um plano de investimentos, no qual se comprometia a fazer atividades produtivas e se reportar ao Estado. Não faziam nada, ninguém revisava o plano de investimentos”.

No início da década de noventa, a corrupção nos órgãos de reforma e gestão agrária chegou a um nível insustentável. Na época, estourou o caso Bolibras, no qual o Ministro da Educação Hedim Céspedes, do governo Paz Zamora, tramitou a seu favor uma dotação de 100 mil hectares de terras20. Estes e outros casos obrigaram o governo a intervir nos órgãos responsáveis – na época o Conselho Nacional de Reforma Agrária e o Instituto Nacional de Colonização – e a propor uma série de ações para reestruturar as políticas agrárias no país.

A intervenção do Estado e a Lei InraO período de revisão das políticas agrárias durou de 1992 a 1996, quando foi decretada a

18.CEJIS / FSUTC-AT-SC. Situación y desafíos del movi-miento campesino cruceño, p. 157. Santa Cruz, 2006.

19.Dados do arquivo do Ins-tituto Nacional de Reforma Agrária (INRA) boliviano. In: CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 159.

20.CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 162.

Page 50: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

50

Terra e território

Lei do Serviço Nacional de Reforma Agrária (SNRA), Lei de No. 1715, também conhecida como Lei Inra. Este período tinha como função estudar o ordenamento territorial do uso do solo boliviano, localizando geograficamente as superfícies que já haviam sido dotadas e aquelas que estavam vazias e eram propriedades do Estado; identificar as sobreposições de titulações de terras e as irregularidades cometidas no passado acerca dos assuntos agrários; estabelecer estatísticas sobre o assunto; e por fim elaborar as leis correspondentes às conclusões deste processo21.

Logo, todas estas políticas culminaram na elaboração da Lei Inra, que continuou o processo de revisão e regulamentação das terras, processo chamado de saneamento agrário. Os debates neste período ficaram polarizados por camponeses, indígenas e colonos, através das suas entidades representativas, de um lado e de outro lado o Poder Executivo e o setor empresarial agrícola. De forma geral, a disputa se dava acerca das diversas concepções do que deveriam ser as políticas agrárias no futuro. O governo, junto com o empresariado, defendia que “a regulação da posse das terras e o seu aproveitamento eficiente fossem determinados pelo mercado de compra e venda destas”22. As organizações camponesas indígenas defendiam uma revisão completa das irregularidades nos processos de dotação de terras anteriores, verificação de cumprimento de função econômica e social das propriedades para eventual reversão dos títulos para o Estado. Além disso, defendiam a política de distribuição de terras fiscais para camponeses, indígenas e colonos e não para grandes proprietários.

Ao final, a Lei Inra acabou sendo aprovada em agosto de 1996 sem estabelecer consensos com o setor camponês indígena, que logo iniciou uma série de protestos. A lei, de fato, continha algumas disposições que favoreciam os trabalhadores rurais e que estes mais tarde vão aproveitar. A principal delas era reafirmar a distribuição gratuita de terras a comunidades, além de determinar critérios de equidade de gênero para a distribuição e posse de terras.

O principal ponto negativo era relativo ao cumprimento da função social das propriedades, já que o simples pagamento de imposto era considerado símbolo de não abandono e, portanto, dificultava muito a reversão das terras ao Estado, mesmo que estas estivessem comprovadamente improdutivas. Uma outra característica negativa era que a expropriação de terras improdutivas, segundo esta lei, não poderia “ser vinculada à solicitação da parte interessada”, o que dificultava ainda mais a identificação de terras sem função social, pois excluía as iniciativas de controle social dos movimentos indígenas e camponeses, possibilidade existente na vigência da antiga Lei de Reforma Agrária23. Uma demanda do setor camponês que também foi completamente ignorada foi o estabelecimento de limites mais rigorosos

21.Idem, p. 162.

22.Ibidem, p. 165. Tradução da autora.

23.Ibidem, p. 168 e p. 173-4.

Page 51: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

51

Terra e território

para a propriedade agrária, mantendo o limite estabelecido anteriormente de 50 mil hectares.No geral, a lei reproduzia o espírito das políticas neoliberais propostas na época. Sua

característica mais marcante era garantir o direito proprietário das empresas agrícolas, dificultando todas as formas de fazer cumprir a disposição constitucional que obrigava estas propriedades a terem função social. As negociações do conteúdo da lei que vieram na segunda metade dos anos 1990 foram para favorecer ainda mais o setor empresarial, sendo que as demandas do movimento camponês indígena eram constantemente ignoradas24.

Sua principal medida prática era estabelecer um prazo de 10 anos, até 2006, para terminar a regularização das terras na Bolívia. Neste período, teria que ser feita uma análise integral do território boliviano, titulando as propriedades legais, revertendo ao Estado as que não possuíam função social - política, como vimos, que já estava comprometida devido às próprias disposições da lei - e identificando as terras fiscais para a continuidade da reforma agrária e conseqüente distribuição de terras a comunidades indígenas e camponesas.

No decorrer destes anos, muitas dificuldades foram encontradas. A principal delas era o fato da regularização das pequenas propriedades camponesas ou comunitárias serem realizadas de forma lenta ou inexistente por falta de verbas. Segundo a lei, estas propriedades teriam que ser tituladas de forma gratuita, com os custos garantidos pelo Estado. Mas, na realidade, as poucas propriedades camponesas tituladas tiveram os seus trâmites pagos pelos próprios sindicatos agrários ou conseguiram assistência de alguma organização não governamental. Paralelo a isso, os latifundiários, por terem verbas para custearem os processos de regularização, avançaram muito mais na titulação das suas terras. Ou, como disse um dirigente colono em 2003, “trabalharam muito para legalizar o ilegal”25.

Obviamente, o setor camponês se mobilizou para agilizar a regularização das suas terras. Diego Marquina, secretário executivo da Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses Apiaguaiqui Tumba de Santa Cruz (FSUTC-AT-SC) em 2003, cita duas mobilizações com marchas de diversos setores camponeses, uma em 2000 e outra em 2001, que resultaram em acordos para acelerar o processo de regularização das terras e que mais tarde foram ignorados26.

Além disso, houve diversas denúncias de corrupção no interior do Inra, órgão governamental responsável por efetivar a regularização do território boliviano. O Inra departamental de Santa Cruz, por exemplo, tinha boa parte dos seus membros ligados à CAO e, segundo um informe da Equipe de Análise de Conflitos do departamento de Santa Cruz, de fato o órgão público tramitava mais rapidamente

24.Ibidem, p. 177.

25.Cit. in: CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 212. Tradução da autora.

26.Cit. in: CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 204.

Page 52: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

52

Terra e território

as demandas dos setores detentores de poder27. Casos como estes levaram o governo a terceirizar esta responsabilidade a empresas privadas, quase eliminando o controle público que se poderia ter do processo. De fato, tal medida não agilizou o processo e nem o tornou mais transparente.

“O Inra, mais que trazer soluções, trouxe problemas aos pequenos produtores e não foram identificadas terras fiscais, não foi revertido nem um metro quadrado de terras, por isso o problema está nos maus funcionários do Inra porque não estão cumprindo a lei”, reclamava um dirigente colono em dezembro de 200328.

A declaração demonstra a impaciência dos pequenos trabalhadores rurais com a ineficiência e a desigualdade do processo depois de sete anos de aprovação da lei e faltando três anos para que o prazo final da regularização das terras terminasse. Tratava-se de um setor absolutamente descontente com as políticas do governo e descrente das supostas iniciativas de reforma agrária, de localização de terras fiscais e reversão de terras improdutivas, que poderiam assegurar uma divisão mais justa do território boliviano.

Na realidade após anos da antiga reforma agrária e de mais de uma década da Lei Inra, a realidade do campo boliviano continua sendo bastante desigual e demonstrando um potencial imenso para a distribuição entre comunidades camponesas. Aramayo resume a situação nos seguintes dados: “Dos 109 milhões de hectares que tem o país, são considerados de vocação agrícola cerca de 15%29. Segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística, até 2006, somente 2,3 milhões de hectares de vocação agrícola estavam funcionando. Uma hipótese que se tira disso é que há terra para produzir. E, contudo, não há. Somente os dados de referência oficiais estão indicando que há uma grande possessão de terra improdutiva e ociosa”.

E disso sabem os camponeses do país. Não somente pelos dados, mas por viverem nas fronteiras com estas propriedades gigantes e improdutivas. Além disso, a manutenção destas “terras de engorde” é um negócio cada vez mais rentável, graças à explosão mundial de agrocombustíveis que causou um aumento generalizado nos preços das terras. No final da década de noventa, ao perceber a morosidade do processo de redistribuição agrária da Lei Inra – se é que se pode dizer que havia algum – os camponeses sem-terra intensificaram as tomadas de terra. Carlos Eologio Cortez, dirigente da regional do MST de Santa Cruz, identifica neste momento o surgimento do movimento sem-terra: “O MST começou nos anos 2000, porque em 96 se criou a Lei Inra para regularizar as terras, com este objetivo. Mas até o ano 2000, não havia nada. E é por isso que surgi-

27.CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 211.

28.Cit. in: CEJIS / FSUTC-AT-SC, op. cit., p. 211. Tradu-ção da autora.

29.Aproximadamente 16 mi-lhões de hectares.

Page 53: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

53

Terra e território

mos, para pressionar que estas terras [que no processo de regularização do governo fossem identificadas como fiscais ou fossem revertidas de latifúndios improdutivos] fossem dotadas às famílias sem-terra”.

Portanto, além de todas as marchas que proliferavam no país denunciando as políticas agrárias, o início dos anos 2000 é um período muito intenso de ocupações de terras e de conflitos rurais. Em teoria, a Bolívia sempre teve um arcabouço legal que proibia o latifúndio e as propriedades agrárias improdutivas. Contudo, a falta de interesse das classes políticas e da burocracia que operava os órgãos de governo, somada às brechas da legislação aproveitadas pelo setor latifundiário, impedia a efetiva aplicação da lei.

A Lei de Recondução ComunitáriaCom a chegada de Evo Morales ao Palácio Quemado, as expectativas camponesas cresceram

muito. A principal reivindicação era a revisão da Lei Inra para que as reversões das terras improdutivas – que todos sabiam que existiam - fossem feitas e mais terras estivessem à disposição da reforma agrária. Logo no início do governo, foi anunciada a segunda revolução agrária da Bolívia, nome com o qual o governo tem tratado a sua política agrária até o presente momento. Nos seus primeiros decretos, o governo voltou a centralizar o Inra, descentralizado na gestão anterior de Carlos Mesa. Tratava-se de uma reivindicação dos movimentos sociais, pois ficando o poder político do órgão da reforma agrária mais ligado à gestão departamental, as chances dos interesses das elites locais prevalecerem aos do campesinato aumentavam.

Logo, começou a se articular um dispositivo de revisão da Lei Inra, que foi chamada de Lei de Recondução Comunitária da Reforma Agrária. Foram necessários onze meses de governo para que a lei fosse aprovada, tornando-se a Lei de No. 3545. Durante estes meses uma intensa negociação foi tentada com os setores empresariais agrícolas, representados principalmente pela CAO e pela Confederação Agro-pecuária Nacional (Confeagro), mas ao final do processo claramente os interesses eram irreconciliáveis. A oposição ao governo começou a boicotar a aprovação da lei no congresso, e ela só foi finalmente aprovada quando uma intensa mobilização camponesa indígena chegava a La Paz em forma de marcha.

A Lei de Recondução Comunitária trouxe na prática uma melhor caracterização do que consis-te e do que não consiste função econômica social, facilitando a reversão de terras improdutivas em terras fiscais. Também reforça a disposição que já havia na Lei Inra de que a distribuição de terras fiscais para a reforma agrária seria feita para comunidades (indígenas ou não) e não para propriedades individuais de qualquer tipo. Ela começou a ser aplicada a partir da aprovação do seu regulamento, somente em junho

Page 54: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

54

Terra e território

de 2007, processo este que também causou batalhas midiáticas entre governo e setor agrário empresarial. Isaac Ávalos, secretário executivo da CSUTCB, é muito confiante no processo de reversões agrárias que inaugura a lei. “Tenho certeza que em alguns anos teremos pelo menos 10 milhões de hectares para distri-buir a nossos irmãos em todo o país. Esta é a política que o presidente lançou com esta nova lei, e que foi também conseguida pelos movimentos através da marcha no ano passado [novembro de 2006]”.

Elva Terceros, investigadora de temas agrários na Bolívia, percebe na lei um grande avanço no que diz respeito ao controle social dos movimentos sociais rurais no processo de saneamento e titulação de terras. Antes, segundo ela, o processo era feito quase às escondidas, por empresas terceirizadas, muitas vezes somente com o conhecimento do proprietário das terras a serem saneadas. Nunca se sabia ao certo o que passava entre eles, pois a presença do Estado quase não existia. Com a lei, o Estado voltou a ser protagonista do processo de saneamento, acabando com as terceirizações e aumentando a participação de setores sociais no processo. Além disso, antes da lei o controle social estava exclusivamente restringido às comissões agrárias, onde estão as expressões coorporativas e de poder econômico deste setor, aponta Carlos Romero, membro do MAS e também especialista em temas agrários. “Agora, este controle social foi passado a qualquer cidadão. Qualquer cidadão pode ser denunciante de terras que não são trabalha-das”, comenta ele.

Limitação da propriedade individual de terrasA aplicação destas políticas ocorreu paralelamente ao processo de Assembléia Constituinte, que

iniciou em 2006 e terminou no dia 9 de dezembro de 2007, quando foi aprovado o texto constitucional em detalhe. Foi principalmente neste processo que centraram forças os movimentos camponeses e ali conseguiram aprovar a sua principal reivindicação referente às políticas agrárias: uma limitação para a propriedade agrária. Saíram da carta final duas propostas de limitação, 5 ou 10 mil hectares, que ainda precisam passar por um processo de referendo que deve acontecer em 2008. Junto com este referendo, também passará por uma consulta pública a nova Constituição, que, se aprovada, concretizará politicamente as medidas do governo Evo Morales.

Isaac Ávalos defende a proposta de limitação de 5 mil. “Porque um empresário tem meio mi-lhão de hectares e um camponês tem dois hectares. O que estamos reivindicando agora é que ele fique com 5 mil hectares e o resto que vá para o Estado (...) O povo dirá: voto pelo latifúndio ou voto pelo 5 mil (...) [Assim] vai sobrar muita terra para os que não têm em nosso país”.

Page 55: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

55

Terra e território

Já Carlos Romero, que também foi deputado e presidente da Comissão Terra e Território na Assembléia Constituinte, aponta que a proposta de 10 mil hectares seria mais viável. “Se a população se inclinasse pelos 5 mil hectares, creio que seria muito difícil de administrar o tema pelos operadores da po-lítica agropecuária, portanto creio que neste tema ainda tem que procurar consensos. Ou, pelo contrário, fazer uma campanha pelos 10 mil hectares, que sim seriam mais administráveis”. Mas de qualquer forma ele aponta que no processo constituinte, o acúmulo da comissão que ele presidiu não apontava para nenhuma limitação, pois “entendíamos que isso deveria obedecer a estudos multidisciplinares e a muitas considerações técnicas”. Eles propunham que o poder executivo posteriormente apresentasse uma lei que contivesse estes aspectos. Mas, segundo Romero, a limitação na nova Constituição foi “uma medida política antes que técnica e deveria ser essencialmente técnica”.

Para os setores empresariais e para alguns intelectuais a proposta de limitação de terras é tida como descabida. José Blanes, pesquisador do Centro Boliviano de Estudos Multidisciplinares (Cebem), diz que a proposta é feita com base na realidade altiplânica sem levar em conta realidades culturais e econômicas da região oriental do país. “Tecnicamente, é impossível pensar uma agricultura que tenha limites de 5 mil hectares. Minifúndio em terras altiplânicas é de um hectare, mas o minifúndio em ter-ras tropicais é de 20 hectares (...). A grande extensão de produção de soja, algodão, cana, não se pode submeter a este tipo de limitação. Por questões de rendimento de escala, você não pode dizer até 10 ou 5 mil (...). Porque isso é uma visão de terra do ocidente que não corresponde com a visão de terra que tem o oriente”. Ele chama a proposta como fundamentalmente política e sem base em nenhum aspecto técnico. Crê que ela servirá mais como uma bandeira que como uma política efetiva, pois não vê força política do governo para efetivar a medida. “Isso será papel molhado. Seria generalizar um enfrentamento com o oriente e se uniriam contra o governo madeireiros, boiadeiros, fazendeiros, agricultores, e povos originários”, prevê ele.

É exatamente esta certeza de Blanes que preocupa Patrícia Molina, coordenadora geral do Fó-rum Boliviano de Defesa do Meio Ambiente (Fobomade). Ela considera que se realmente é possível limi-tar a propriedade de terras, seria um grande avanço, mas o problema é ter uma efetiva regulamentação da limitação. “Eu creio que esta medida assim como está, sem ter uma série de outras regulamentações, pode significar quase nada. Eu posso dividir a minha possessão com minha família e igualmente mantenho tudo o que tenho. Então, é muito importante como se regulamenta isso, para que realmente seja efetivo e não seja somente um discurso”.

Page 56: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

56

Terra e território

Além disso, Molina questiona a própria forma adotada no oriente de monocultivo, latifúndio e tipo de produção agropecuária voltada somente para a exportação, fatores não questionados por Blanes. Não se trata, portanto, de culturas de entendimento do território diferentes, mas sim de interesses econô-micos que predominam na região e que não tem eco em interesses gerais da população. Ela aponta que os monocultivos de cana-de-açúcar ou de soja, além de trazerem diversos impactos ambientais como o esgo-tamento do solo e o desmatamento, foram mantidos através de créditos nunca pagos ao Estado e “agora, as elites estão preocupadas porque não têm esta fonte de subsídio eterno”. “O que complica a vida”, diz ela, “o que cria problemas ambientais e sociais, é a exportação. A soja é subsidiada, porque se subsidia o diesel. Se isso é cortado, a soja não existe. Então se está mantendo algo que teoricamente não deveria existir, porque não é competitivo. Deveríamos procurar outra coisa que sirva para as demandas locais”.

Neste sentido, o que está em jogo na questão agrária boliviana são modelos de desenvolvi-mento. Molina defende um modelo voltado principalmente para os interesses internos do país: “Nossas necessidades se resolvem facilmente. Propomos pensar o nosso desenvolvimento a partir do nosso estado atual (...). O desenvolvimento tem que ser pensado desde dentro e para resolver as nossas necessidades. Basta de pensar o que temos para ver o que exportamos”.

Regularização das terras em tempos de EvoCom relação à política agrária, o governo de Evo Morales teve que enfrentar outro problema.

Ele iniciou quando faltava menos de um ano para terminar o prazo da Lei Inra de regularização e consolidação da propriedade agrária na Bolívia, estabelecido para outubro de 2006. Nesta data, haviam sido completamente regularizados somente 11% do território nacional, sendo que 31% estavam em processo e mais da metade, 58%, nem haviam começado30. Houve consenso entre oposição e governo para prorrogar o prazo por mais sete anos. Contudo, no início do mandato, o governo Evo Morales já havia declarado que este saneamento agrário na Bolívia estava em estado de emergência e abriu concursos para a contratação de mais funcionários para o Inra. Ao mesmo tempo, começou a intensificar as parcerias com a cooperação internacional para o financiamento do processo em vários departamentos, em especial os do oriente do país, foco dos maiores conflitos agrários.

Este aceleramento do processo, apesar de não ser em um ritmo desejado pelos camponeses do país, que ainda cobravam resultados mais efetivos, conseguiu ao menos render frutos no que diz respeito à cessão de alguns territórios fiscais aos indígenas e aos sem-terra. O primeiro exemplo foi a própria

30.FUNDACIÓN TIERRA. Con los pies en la tierra – Ob-servatorio de la Revolución Agraria en Bolivia, No. 1, p. 41. La Paz, junho de 2007.

Page 57: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

57

Terra e território

comunidade do MST Pueblos Unidos, que foi dotada já em agosto de 2006 de um território de 16 mil hectares para a produção agrícola, manejo florestal e outros usos produtivos. O segundo exemplo, mais recente, de junho de 2007, foi a da Terra Comunitária de Origem (TCO) Monteverde, territórios que fo-ram tituladas em favor dos indígenas. Estas duas dotações são tidas pelos movimentos enquanto exemplos concretos da revolução agrária que estaria acontecendo no país. Contudo, nenhuma delas foi resultado de expropriações de terras improdutivas, mas sim de dotações de terras que já pertenciam ao Estado antes, mas que não estavam sendo muito bem fiscalizadas e que muitas vezes eram alvo de ocupações indevidas de fazendeiros.

Carlos Romero aponta um grande avanço na consolidação de territórios comunitários neste processo de saneamento. “As TCOs [Terras Comunitários de Origem], que em muitos casos estavam praticamente paralisadas na sua tramitação como a TCO Monte Verde, puderam obter seus títulos execu-toriais. Eu diria que no governo de Evo Morales, fazendo um cálculo grosso modo, estamos em cerca de 26 milhões de hectares titulados como TCO, quando antes somente havíamos chegado a algo em torno de 2 milhões. Então, há avanços substanciais e especificamente para os povos indígenas”.

A revolução agrária e o “salto qualitativo”Estes exemplos fazem com que os dirigentes do MST falem da revolução agrária aplicada pelo

governo com muitas esperanças, mesmo sem que a principal política dela – a efetiva limitação da extensão de terras para evitar o latifúndio - tenha sido aplicada ainda. “Na antiga reforma agrária havia comunidades inteiras que possuíam somente 20 hectares. No período de 96 a 2006, havia comunidades de três mil hectares, dotadas com terras fiscais. E neste processo do movimento sem-terra, estamos falando de quase 20 mil hectares. Isso faz deste processo - por suas características em extensão de superfície, quantidade populacional, localização estratégica da área - um fato único em toda a história da vida republicana. Estamos falando que em mais de 180 anos, não se havia distribuído a uma comunidade terras com estas características”, comenta Aramayo sobre Pueblos Unidos.

Saisari localiza neste processo a importância da recuperação dos valores comunitários. “Percebemos que, durante a vida republicana que teve o nosso país, a visão coletiva dos nossos ancestrais foi desaparecendo. Agora estamos novamente recuperando isso, apesar de sabermos que este não é um processo simples, pois muitos companheiros têm uma visão bastante individual”. A experiência de Pueblos Unidos tem sido, portanto, uma prova de aplicabilidade desta visão comunitária, já que “o coletivo é

Page 58: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

58

Terra e território

a alternativa que reivindicamos como organização para o futuro, sobretudo, no desenvolvimento das comunidades e das famílias”, pontua o dirigente.

A estratégia, segundo o Saisari, sempre foi convencer os outros movimentos camponeses e indígenas que se deveria dar prioridade ao modelo de comunidades coletivizadas, sem propriedade individual. Ele comemora o fato de que isso hoje já é um consenso entre eles, e que somente assim esta prioridade pôde ser reforçada na Lei de Recondução Comunitária e na nova Constituição.

A posse e a gestão comunitária de terras se devem mais a esta referência ao passado indígena que Saisari pontua do que a uma concepção socialista de combate à propriedade privada, acumulada na vida sindical boliviana. De fato, esta perspectiva só é tão forte porque muitas comunidades, como já afirmamos anteriormente, mantiveram as suas gestões comunitárias sob o nome de sindicato agrário.

Contudo, de alguma forma as duas perspectivas convergem na luta contra a visão de que a terra é uma mercadoria como qualquer outra. Igualmente, elas se misturam quando Saisari explica o que seria o projeto de reforma agrária que o movimento defende: “Para a gente uma reforma agrária é quando há uma participação completa do Estado, das famílias, dos recursos, do território. Enfim, de todos os meios que se utilizam para conformar uma nova comunidade (...). Para a gente, reforma agrária não é a simples entrega da terra, em que somente alguns tantos são os beneficiários. Ela é a construção de uma nova so-ciedade, sobre uma base ideológica, coletiva, que busca um equilíbrio entre homem e natureza”.

Segundo Aramayo, o acesso às terras não é uma finalidade do movimento, mas sim um meio. Pois a partir da consolidação de um assentamento e da “luta pela efetivação dos direitos econômicos, so-ciais e culturais” das famílias desta comunidade - que seriam a garantia de soberania alimentária, de poder ter acesso às terras, poder reproduzir e manter a sua cultura e seus costumes – é iniciado um processo de empoderamento da comunidade. Ela passa a adquirir capacidade de governança, não somente para administrar as questões relativas à terra, mas também a gerar um modelo de relações econômicas, sociais e políticas distinto, que permitiria dar um outro salto qualitativo. O erro da primeira reforma agrária, diz ele, foi ter se fechado em imediatismos, abandonando as perspectivas de transformação da sociedade. “O que agora está acontecendo com Pueblos Unidos é um processo que estabelece uma perspectiva para os próximos 50 anos”, conclui.

O desafio, como sempre foi, é convencer não somente os outros movimentos, como também o resto da sociedade deste projeto. Saisari é otimista, apesar de reconhecer que os latifundiários do oriente do país não aceitarão a proposta com muita facilidade, pois “eles estão convencidos que o capitalismo é a

Page 59: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

59

Terra e território

única solução para o mundo sair da pobreza. Nós entendemos o contrário, que ele é o meio para continu-ar aumentando a pobreza. Nosso país demonstrou isso, mas eles não entendem assim. Bom, haverá uma luta constante”. Aponta a necessidade de que os movimentos sociais tenham meios de comunicação para fazer este embate ideológico e demonstrar que a sua proposta é possível. Para isso, mais do que simples propaganda, os dirigentes do MST têm a convicção de que é necessário demonstrar na prática a viabili-dade da sua proposta, e disso depende o sucesso de Pueblos Unidos e das demais comunidades que estão sendo formadas de forma comunitária.

Page 60: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

60

Terra e território

“Nós sabemos produzir”Cerca de 300 km ao norte de Santa Cruz, com dificuldades de acompanhar as notícias acerca

do governo de Evo Morales, em Pueblos Unidos o desafio se expressa numa percepção generalizada de que se a comunidade der certo, mais famílias vão ter acesso a terras para trabalhar. Nas assembléias, a idéia fixa, reproduzida nas palavras de vários companheiros, é provar que a comunidade sabe produzir.

A presença de 350 famílias no território de 16 mil hectares foi estabelecida através de um cálcu-lo de aproximadamente 50 hectares por família. Destes, até cinco podem ser trabalhados individualmen-te, para subsistência ou para venda externa. Nestes pequenos terrenos, são plantados arroz, milho, batata, verduras e legumes variados, frutas, etc. Os outros 45 hectares são destinados aos interesses comunais e podem servir para diversas atividades produtivas. Muitas famílias, portanto, não se importam muito com os rumos que são dados aos territórios coletivos, desde que os seus plantios individuais sejam suficientes para a sua subsistência e para garantir algum dinheiro para cobrir uma ou outra necessidade. Assim, pou-co se interessam pelas assembléias e reuniões da comunidade. Outras, contudo, viveram cada momento da luta para conseguir esta dotação de terras e valorizam muito os espaços conjuntos de discussão.

A produção nas terras coletivas ocupa cerca de mil hectares hoje, com plantação de soja (450 hectares), milho (200 hectares) e arroz (200 hectares). Esta produção é toda mecanizada, organizada e mantida por uma equipe de onze membros da comunidade. Para impulsionar a produção foi contratada uma empresa, cujos técnicos e engenheiros ensinam o núcleo de produção a trabalhar com tratores a manejar os fungicidas, herbicidas, etc. Boa parte dos recursos para os investimentos iniciais de Pueblos Unidos veio do TCP-Alba (Tratado de Comércio dos Povos - Alternativa Bolivariana para as Américas), que financia combustíveis, insumos e sementes. Além disso, a comunidade recebeu do governo uma parte do maquinário utilizado na área de cultivo comunal.

DESAFIOS PARA PUEBLOS UNIDOS

Page 61: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

61

Terra e território

Carlos Vedia, um migrante de Potosi, chefia a equipe de produção. Ele esteve no movimento sem-terra alguns anos antes da chegada a Pueblos Unidos, participando inclusive do conflito em Yuqui-ses. Fala quíchua melhor que castelhano, mas sabe escrever bem e antes de se juntar ao movimento sem terra já havia trabalhado como administrador de propriedades. Sente-se feliz por agora ser seu próprio pa-trão e explica com entusiasmo todos os planos produtivos que a comunidade tem. Depois de consolidar a produção agrária mecanizada, querem instalar uma empresa madeireira para aplicar um manejo florestal ecológico na comunidade. Além disso, os rios e as lagoas que há no território os fazem pensar também em criação de peixes e ecoturismo, pois também têm grandes extensões ecológicas que não poderiam ser economicamente exploradas de outra forma. Com estas propostas, já seriam quatro unidades produtivas. Vedia comenta sobre mais uma que ficaria responsável pelo transporte dos habitantes da comunidade, e para isso teriam ainda que comprar meios de transporte. Ele enfatiza, contudo, de que tudo isso será decidido e gerido pela comunidade nas assembléias comunais, instância máxima de decisão.

Os planos produtivos citados por Vedia já demonstram o desafio que enfrenta a comunidade. Para além da vontade da comunidade de provar que um território comunal pode ser produtivo em larga escala, com produção mecanizada e presença de seus produtos de forma competitiva no mercado, há todos os aspectos ligados à responsabilidade política da comunidade. O primeiro deles seria o compromis-so histórico com a manutenção ecológica do território que ocupa, bandeira importante do movimento sem-terra também na Bolívia. O segundo seria o compromisso com uma cultura democrática de decisões através de assembléias comunais, o cumprimento estrito dos mandatos políticos que são dados, sem abuso dos dirigentes. Trata-se da difícil - mas também recompensadora - tarefa de criar autogoverno. O terceiro aspecto seria a responsabilidade desta comunidade, por ser vanguarda de todo um processo, de apoiar as comunidades que se estão formando.

Mas houve muitas dificuldades no primeiro ano. Uma parte considerável da plantação se perdeu por causa das inundações no início de 2006. Como não há caminhos que ligam a comunidade à estrada de terra, a produção teve que ser escoada de barco. A empresa que lhes dava assessoramento técnico lhes obrigou a vender sua produção de soja muito cedo, e acabaram vendendo tudo abaixo do preço de mercado. Os latifundiários vizinhos, dentre eles a família Paz que detinha a propriedade de Yuquises e que têm uma relação de ódio com o movimento, os boicotaram continuamente, fechando estradas e impedindo que levassem seus produtos aos mercados. A produção é suficiente para alimentar as famílias, mas muitas estão sem reservas em dinheiro para arcar com gastos que podem vir para além da

Page 62: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

62

Terra e território

alimentação – médicos, transporte, educação, bens de consumo variados.Por estes e outros motivos, a preocupação da comunidade tem se focado na produção, sem

encarar muito os outros aspectos do desafio. A empresa que lhes dá assessoria técnica foi escolhida por um simples critério técnico e a utilização de agrotóxicos e de mecanização generalizada é feita sem levar muito em conta seus impactos ambientais. As contradições que existem em utilizar mecanismos de pro-dução agrícolas presentes nas grandes fazendas latifundiárias no seio de um movimento que surge como contestação deles ainda não são tão evidentes para a comunidade como um todo.

Roberto Aparício, dos Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras (AVSF), pensa que este problema é reflexo de não haver uma preocupação de construir modelos de produção familiar também no oriente boliviano. “Para muitos dos camponeses sem-terra, o modelo não é a agricultura familiar, porque nunca viram um modelo de agricultura familiar ali [no oriente] que funcionasse e que permitisse viver dignamente”, diz ele. “O modelo que os camponeses têm no oriente é o modelo do fazendeiro. Este é o modelo exitoso e todos querem ser fazendeiros (...). E este sistema, claro, funciona muito bem para elites, para uma maioria não pode funcionar”.

Ele conta que a sua instituição, por questões de justiça social e ocupação de território, defende o modelo de agricultura familiar. Aponta, além disso, que é dela que provém a maior parte dos alimentos consumidos na Bolívia e não da agricultura em grande escala e de monocultivo do oriente. Neste sentido, a garantia da soberania alimentar na Bolívia, tão ameaçada mundialmente com a inflação de alimentos, depende necessariamente da promoção da pequena agricultura familiar.

Ele acredita que um assentamento como o de Pueblos Unidos sim traz muitos avanços, mas o modelo de produção adotado ainda é um aspecto central. “Para mim parece mais justo socialmente e mais interessante para os bolivianos que uma propriedade que tem mil hectares de quinua e que é de uma pessoa sozinha, fosse de mil camponeses. Já seria melhor. Mas se é o mesmo modelo de produção baseado em esgotar o solo, em ter uma lógica de exportação, de oferecer o que pede o mercado do norte, isso não soluciona o problema (...). Parece-me que está muito bem exportar, um intercâmbio de produtos a nível mundial, por que não? Mas desde uma perspectiva de primeiro garantir a sua comida e a sua produção”.

Patrícia Molina aponta também que os camponeses do oriente dependem das cadeias de produção agroindustriais, que lhes impõe a sua forma de cultivo com muita utilização de agrotóxicos e fertilizantes. “O grande produtor é dono de outras partes da cadeia, ou seja, é a própria indústria que tem terras. O pequeno produtor tem que vender seu produto, porque não tem a possibilidade de transformá-

Page 63: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

63

Terra e território

Page 64: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

64

Terra e território

los. Então, estes produtores estão à mercê destas empresas, que lhes provêm sementes, fertilizantes e pesticidas”, explica ela.

Vedia, contudo, reconhece que há muito que desenvolver na comunidade e confia que com o tempo e com a consolidação financeira, poderão ter verbas para estruturaram melhor os seus projetos ecológicos. “O manejo ecológico não pode existir se não há uma pesquisa, uma unidade que classifique as espécies, as suas potencialidades, os riscos que se pode cometer. E por isso mesmo, planejamos ter um fundo comum para contratar técnicos e pesquisadores. Assim, sozinhos, não podemos dar conta disso”. Ele comenta que a intenção final é que Pueblos Unidos seja um centro de propagação de inovação tecnológica, que ajude outras comunidades no manejo ecológico, na produção de sementes, no controle de pragas etc. “Muitas vezes, sabemos que estamos gerando o mesmo problema, com as pragas, com o desmonte talvez não ordenado. Mas agora é muito difícil pensar que vamos fazer um manejo sustentável desde o princípio, pois neste momento brigamos com a fome que temos”.

Reunião comunalÀs sete horas da manhã, os sem-terra se reúnem na sede. É dia 8 de outubro de 2007, segunda

feira, e a reunião precisa acontecer cedo, antes que o trabalho no chaco comece. Chove, a sede está cercada de poças d’água, que são evitadas pelos adultos e comemoradas pelas crianças. Garrafas de plástico viram barcos de navegação.

Estão presentes cerca de setenta membros da comunidade, dentre eles menos de dez mulheres e nenhuma pede a palavra. Elas se limitam a tirar as suas dúvidas com os companheiros ao lado e a vigiar as crianças que brincam ao redor da sede. Chama a atenção também o fato de haver muitos homens jovens, solteiros e sem família ainda. É o caso de Davi Moreno, 24 anos, secretário geral da comunidade. Ele faz a chamada das diversas comunidades que vivem em Pueblos Unidos e coordena o restante da reunião.

Eles estão discutindo o contrato da venda de mil toneladas de soja, fruto da produção deste final de ano, proposto pela empresa Fênix, a mesma que oferece assistência técnica à comunidade. O contrato é lido em voz alta. Muitos pontos são destacados, todos estão desconfiados. Não concordam com a proposta de que a colheita seja feita pela empresa, ou que esta estabeleça uma data para retirar a sua produção. Além disso, exigem que haja fiscais da comunidade no momento do exame da qualidade e de pesagem dos grãos. No ano anterior, procedimentos parecidos os prejudicaram na venda da sua produção. Agora querem pesquisar bastante antes de assinar qualquer contrato, querem se informar

Page 65: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

65

Terra e território

mais acerca do mercado de soja e acerca dos procedimentos jurídicos deste tipo de negociação. Segundo a sua experiência de lutas, a letra escrita pomposamente, com linguagem técnica jurídica, sempre foi um símbolo de injustiça.

Finalmente encarregam Nazário Quispe, membro do diretório executivo da comunidade, responsável pelos contratos e de levar o documento a Santa Cruz para que seja revisto por um advogado e ser renegociado com a empresa Fênix. Este processo é demorado, mas é a única forma de tentar garantir que não haja atropelos e que todas as famílias fiquem informadas e possam opinar acerca dos rumos da sua propriedade. Nazário também leva muita responsabilidade, pois sabe que um erro seu acarretará em muito prejuízo à comunidade inteira, além de muitas críticas públicas de seus companheiros.

O que fazer com o dinheiro comum?A venda da produção comunal obviamente dará ganhos para a comunidade em cifras muito

superiores a qualquer pretensão isolada de um pequeno camponês. A decisão do que fazer com este dinheiro é complicada, mas a comunidade já discutiu alguns parâmetros de utilização dos recursos.

Primeiro os recursos serão utilizados para pagar as dívidas feitas para impulsionar os primeiros cultivos, explica Vedia. A prioridade é que ele seja utilizado para sustentar a produção comunal, que sirva para fazer reinvestimentos na produção da comunidade. Com ele, a comunidade pretende ser autônoma da ajuda do Estado e de ONGs. Desta forma, poderá desenvolver outras unidades produtivas (como o manejo florestal, a piscicultura e o ecoturismo), assim como investir em tecnologia agrícola própria, que siga as orientações políticas do movimento. Além disso, estes recursos também deverão ser utilizados para a construção de infraestrutura para a comunidade, caminhos, contratação de professores e compra de medicamentos.

Vedia esclarece que os recursos também serão utilizados para oferecer créditos aos camponeses da comunidade. Funcionaria como uma reserva comunal, da qual eles poderiam retirar verbas para as suas próprias produções, mas na condição de empréstimos. “Nada será presenteado. Assim como queremos ser autônomos com relação ao Estado, os camponeses daqui têm que aprender a ser responsáveis”. A principal preocupação é evitar que os recursos sejam apropriados de forma individual.

Com o tempo, quando já tiverem um maior excedente, será possível dividir entre os habitantes de Pueblos Unidos o dinheiro de cada colheita. A idéia é que a comunidade em si não acumule capitais, somente coordene os custos operativos e necessários para os seus investimentos de produção e

Page 66: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

66

Terra e território

desenvolvimento. “Não vamos acumular capitais, pois para isso teríamos que ter ações. Isso permitiria que alguém que tenha dinheiro acabe por se intrometer na comunidade, podendo até comprá-la. Não há espaço para isso, nos nossos regulamentos e estatutos está bastante claro”, pontua o administrador da produção da comunidade.

“Vem, mulher. Vem ver seu chaco!”Enquanto estamos nos preparando para visitar o pequeno lote de Calucho, este reclama que a

sua mulher nunca foi visitar as suas parcelas de terra. Não que Benita faça pouca coisa, pelo contrário. Ela cuida do filho e da venda, prepara a alimentação da família e também vende aos visitantes da comunidade refeições durante o dia inteiro. Aceitando a provocação do marido, amarra Caluchito nas costas e nos acompanha na visita ao chaco31 recém preparado.

Para chegar ao chaco de Calucho, atravessamos algumas centenas de metros da plantação coleti-va de soja. Logo chegamos a uma área desolada, com troncos espalhados pelo chão, a terra toda manchada de negro pela queimada. Como a grande maioria dos camponeses bolivianos, Calucho preparou as suas terras com um procedimento chamado chaqueo. Trata-se de uma forma antiga de lidar com a terra e que consiste em limpar um terreno novo e depois queimar o mato cortado. As cinzas penetram no solo com as primeiras chuvas de outubro e novembro, fertilizando a terra. Ali, logo depois que começam as chuvas, se costuma plantar arroz. Depois, pode-se plantar milho ou mandioca. Os cultivos seguem por alguns anos até que finalmente é estabelecido um período de descanso para estas terras. A terra descansa, o mato cresce, e depois, quando este período termina, se faz um novo chaqueio nos meses de agosto e setembro, antes da chegada das novas chuvas.

Calucho acabou de chaquear cerca de cinco hectares. A primeira chuva da primavera aconte-ceu na madrugada anterior, e ainda nesta semana ele vai começar a plantar arroz. Logo, as terras negras estarão cobertas de pequenos pontinhos verdes. Ele está empolgado, é a primeira plantação que faz com a segurança de que vai poder fazer a colheita e vender o seu produto. Com a resolução de assentamento emitida pelo Inra, agora ninguém os poderá tirar destas terras. A memória de toneladas e toneladas de arroz sendo perdidas em Yuquises ainda é muito viva em todos eles.

A empolgação com a sua plantação compensa o desinteresse que Calucho sente pelos assuntos políticos hoje. Ex-dirigente, ele separa com saudosismo os velhos e os novos militantes do movimento sem-terra. Acredita que os tempos mudaram, no momento de paz e com as terras praticamente regularizadas,

31.Chaco é uma parcela de terra.

Page 67: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

67

Terra e território

sente que o espírito não é mais tão coletivo quanto era há alguns anos. Antes, segundo ele, se alguém tinha algum problema, todos ajudavam. Se havia um doente, a comunidade inteira se sensibilizava e dava um jeito de tratá-lo. As direções políticas do movimento agora não têm nem idéia do que foi o passado de luta. Hoje ele se identifica como um militante de base, não quer mais ser dirigente.

Chaqueos, desmatamento e impactos ambientaisAntes das primeiras chuvas de outubro e novembro, o departamento de Santa Cruz sempre

está em estado de alerta. As queimadas realizadas na área rural deixam toda a atmosfera da região cheia de fumaça, os problemas respiratórios das crianças triplicam, o calor fica insuportável. O fenômeno se estende para áreas de reservas ecológicas, ameaçando gravemente a fauna e a flora da região.

“A queima de terras florestais é uma prática antiga, conhecida como ‘chaqueos’, realizada pelos indígenas e camponeses nesta época do ano para ter mais áreas de cultivo e evitar gastos em outros tipos de programas adequados para transformar a sua agricultura”, explicava o jornal La Opinión sobre a destruição de mais de dois milhões de hectares com queimadas32. Além disso, informava que dos 17 mil focos de incêndio, 70% deles estavam em Santa Cruz.

Esquecia esta matéria da real composição rural do oriente boliviano, majoritariamente ocupa-do por grandes propriedades agrárias, sendo que as pequenas propriedades camponesas ocupavam uma extensão ínfima de terras. Como sozinhas poderiam elas causar tanto dano ambiental?

Patrícia Molina, do Fobomade, é muito contundente com relação a isso: “Houve diferentes processos neste país de incentivar a colonização, o transporte de grupos humanos do ocidente ao oriente que gerou processos de desmatamento, mas nunca são comparados ao que gera os grandes latifundiários (...). O latifundiário, quando vê um negócio, consegue créditos, e desmata enormes quantidades de terras (...). E estes chaqueios dos grandes são destinados à pecuária. E a pecuária às vezes não tem muito sentido, porque sai mais barato comprar carne do Brasil pelas dificuldades de transporte. Então isso está vinculado com a consolidação da terra. O mato é tombado para pôr vacas e desta maneira conseguir que se verifique que se está fazendo algo nas terras e que lhes dêem o título”.

Javier Aramayo, que também faz parte do Fobomade, cita outros dados. “De acordo com dados da Superintendência Florestal em 2007, o desmatamento avança incessantemente 300 mil hectares ao ano. É justamente a grande expansão agrícola a responsável por isso, com o cultivo intensivo de soja, mas também com a conversão de terras para a pecuária (...). A ação de camponeses e indígenas na derrubada

32.La Opinión. Disponível em:http://www.opinion.com.bo/Portal.html?CodNot=56 06&CodSec=3. Tradução da autora.

Page 68: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

68

Terra e território

e queima dos bosques não é feita em grande escala e foi realizada durante centenas de anos e nunca provocou este tipo de impacto ambiental”. Molina aponta, além disso, que há estudos que comprovam que o chaqueio feito pelo camponês, controlado e em pequena escala, é até positivo em alguns setores tropicais para promover a re-vegetação.

Para Aramayo, o problema do desmatamento via chaqueio é no fundo um problema causado pela escolha de um modelo de produção que não tem compatibilidade com a manutenção do meio am-biente, que prioriza o monocultivo em grande escala do que a “diversificação produtiva e agroecológica orientada para a soberania alimentar”.

Page 69: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

69

Terra e território

A oeste de Pueblos Unidos, na província de Ichilo, também no norte de Santa Cruz, se encontra a Comunidade Agroecológica Tierra Prometida, uma outra comunidade do MST. Ali estão assentadas cerca de cem famílias, com um movimento que iniciou nestas mesmas terras desde 1999. Diferente de Pueblos Unidos, estas famílias ainda não contam com nenhuma resolução de assentamento. A ocupação do assentamento é, portanto, débil, pois as famílias que lá estão não sabem se vão poder ficar nesta área por muito tempo.

Este assentamento surgiu antes mesmo da existência organizada do movimento sem-terra. Um grupo de camponeses da região se organizou para ocupar algumas terras da reserva Choré, onde havia muitas madeireiras. Nesta época, eram assessorados pelos sindicatos locais. Encontraram terras desocupadas que poderiam se assentar e logo foram formadas cinco comunidades. Com o tempo, estas comunidades se consolidaram enquanto comunidades do MST boliviano, participando das suas lutas nacionais.

A demora na dotação de títulos e nos trâmites do processo de legalização do assentamento causou muitas fissuras nas comunidades. Algumas começaram a ter discordância com o projeto de dotação coletiva e logo passaram a se denominar sindicatos. Das cinco comunidades que havia, somente duas se mantiveram enquanto movimento sem-terra. As outras logo passaram a se chamar sindicatos agrários.

“Não sei porque se separaram. Talvez porque pensavam que como sindicatos iam conseguir os títulos mais rápido. Mas é ao contrário. Nós temos um processo de trâmite bem avançado. Eles tem um memorial pequeno, nós temos uma pasta grossa assim. Só falta para a gente conseguir a nossa personalidade jurídica, o que a prefeitura nos está negando”, explica Celestino Pacheco. Ele é um dos que iniciaram o processo de ocupação destas terras, há quase dez anos. Chegou em Santa Cruz quando tinha vinte e poucos anos, e nestas terras se casou e teve quatro filhos, que são collas-camba33, segundo as

TIERRA PROMETIDA, UMA OUTRA EXPERIÊNCIA SEM-TERRA

33.Camba é o termo para denominar a população das terras baixas.

Page 70: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

70

Terra e território

Page 71: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

71

Terra e território

suas palavras. Migrante de Oruro, não queria seguir o destino dos mineiros da região, que morrem aos 40 anos devido aos rigores da profissão, ao exemplo de seu pai. “Santa Cruz é um paraíso”, diz ele, “aqui faz calor, não falta comida”.

Como todos os integrantes da comunidade, Pacheco lamenta as suas divisões. No fundo, acredita que estes sindicatos só se formaram pela ganância dos seus camponeses. “Isso de sindicato, eu já conheço e não gosto. Porque tem companheiro que pega a sua terra para fazer negócio e eu não quero terra para negócio, quero terra para trabalhar”. Na realidade, se trata de uma disputa entre ter a propriedade coletiva ou ter a propriedade individual.

O trâmite da titulação é um problema que depois estas cinco comunidades (duas do MST e três sindicais) vão ter que resolver. Ele foi iniciado antes da sua divisão, e apresentava as terras enquanto um território único, de 12 mil hectares, para simplificar os caminhos burocráticos. Além disso, segundo a legislação nacional, a prioridade de dotações de terra é dada a comunidades, não a indivíduos, nem que sejam pequenos proprietários. Provavelmente, se saírem os papéis de titulação, estes serão coletivos, em nome de uma organização que representa as cinco comunidades, queiram os camponeses habitantes da área ou não.

Sebastiana Ortiz, que também está no assentamento desde a sua fundação, diz que a principal vantagem do movimento sem terra em relação aos sindicatos é que em comunidade é possível ter mais apoio para o desenvolvimento produtivo: “Os companheiros nos disseram que em comunidade pode vir muita ajuda. Se vem, seria bom. Porque não há nada ainda. Porque às vezes queremos plantar madeirá-veis, organizar pesca e não tem ajuda, não tem financiamento. Sozinhos, sempre falta dinheiro”.

Os assentados em Tierra Prometida também são unânimes em afirmar que o movimento sem-terra tem mais preocupação com o meio ambiente que os sindicatos. “Nós temos uma outra idéia de trabalhar a terra, de fazer um trabalho conjunto. Não queremos matar muita floresta, queremos reflorestar com árvores frutíferas, madeiráveis. Porque se a gente derruba as árvores, logo o vento passa e espalha o fogo para todos os lados. E depois, a terra perde umidade, fica seca e não dá mais para plantar nada. (...) Quando eu cheguei aqui, tudo era floresta. Plantava cebola, pimentão, tomate, cenoura, era uma beleza. Agora, a terra está seca, é mais difícil”, diz Celestino.

Carlitos Vedia, que também faz parte do movimento sem-terra da região, classifica os sindicatos como mais tranqüilos, não querem saber de nada. Em comparação, o MST participa de vários movimentos, congressos e marchas. Ele mesmo foi nas duas últimas marchas nacionais convocadas e aprecia estar

Page 72: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

72

Terra e território

sempre participando de tudo. A grande maioria das famílias, a exemplo da de Pacheco e Sebastiana, não mora em Tierra

Prometida. Vivem nos povoados que ficam por perto, como Enconada. Os motivos são variados. O primeiro deles é que em Tierra Prometida não tem um poço d’água profundo, falta estrutura para tudo. Como não têm titulação das terras, não há quase nenhuma infraestrutura para viver. Além disso, eles não têm muita segurança em produzir na comunidade e a parte comunitária das terras não é cultivada. Sabem que, apesar dos anos que estão lá, sempre correm o risco de despejo.

As divisões causaram muita mágoa nos camponeses, que também relembram os áureos tempos de unidade. “Agora somos só dois grupinhos, Tesouro e XV de Agosto. Antes não, antes era bonito, todos juntos, as cinco comunidades”, diz Carlitos.

“Tem que continuar caminhando, nem que seja em cima de quatro patas”Com esta frase Crescencio Torres concluiu a nossa conversa. A inspiração dela veio quando

falava de seu pai, um bravo lutador de Potosi, que nunca desistia. Crescencio é também um militante antigo, esteve na organização dos que foram pela primeira vez ocupar as terras que hoje chamam de Tierra Prometida. No momento, está muito desanimado. A titulação não chega, todos se dividiram e ele, além de tudo isso, não pode trabalhar. Tem uma ferida na perna que não se cura e, portanto, não lhe permite andar com firmeza. Não tem esposa nem filhos, vive em uma pequena cabana em Enconada, contando sempre com a ajuda da sua irmã para se alimentar.

Ele foi vítima de um atropelamento durante a marcha de novembro de 2006 que pedia a aprovação da Lei 1715, de Recondução da Reforma Agrária. De Tierra Prometida, participaram 60 pessoas na marcha, sendo que dez alcançaram a cidade de La Paz, completando quase trinta dias de caminhada. A participação de Crescencio foi interrompida perto de Cochabamba, quando pela manhã estavam levantando acampamento para continuar a marcha. Neste momento, um motorista atingiu desgovernadamente várias pessoas participantes da marcha, matando duas e ferindo mais nove, dentre elas Crescencio.

De lá, ele foi levado ao Hospital Viedma, em Cochabamba. Por causa da demora na liberação de verbas do seguro de acidentes do motorista, uma semana se passou até que a necessária operação na sua perna fosse feita. Depois, Crescencio foi transferido para a Clínica de Acidentados nesta mesma cidade, onde iniciou a sua demorada recuperação. A perna continuava infeccionada, a ferida não cicatrizava,

Page 73: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

73

Terra e território

as dores se mantinham. Segundo o Dr. Andrade, médico desta clínica, a operação feita após o acidente foi inadequada, com pinos mal postos e placas impróprias para curar seus ossos. Em junho de 2007, uma das placas teve que ser retirada e, desde então, a ferida se cicatrizou, mas a fratura na perna não se restabeleceu. Para se recuperar, Crescencio terá que passar por outra cirurgia, mas agora já não possui cobertura do seguro do motorista. A cirurgia custa 1500 dólares e ele ainda não tem idéia de como vai arrecadar este dinheiro, já que nem o dinheiro das passagens até Cochabamba para fazer as consultas ele tem34. Ironicamente, o motorista irresponsável, que até agora não respondeu juridicamente pelo caso, é um médico e possui uma clínica privada em Monteiro35.

Crescencio foi acompanhado desde o princípio por Thomas Siron, um estudante francês que fazia o seu doutorado sobre o Movimento Sem Terra boliviano. “Foi um dos poucos que me ajudaram. Ele me acompanhava sempre no hospital, foi um filho de Deus”, diz Crescencio. Contudo, em setembro de 2007, Thomas teve que voltar para França para entregar a sua tese.

Crescencio não vê resultados no processo que está sendo levado contra o motorista, está descrente de tudo. Não pode trabalhar, mal consegue andar. A cabana em que vive o deixa sujeito a goteiras, mosquitos e furtos. Sua alimentação irregular, sem muito cálcio, também atrapalha bastante na sua recuperação.

Quando recebe visitas, fala do seu acidente com desânimo, voz baixa. Mostra as radiografias, identifica os pinos mal postos. Por último, prefere mostrar a carta escrita por Thomas, que exprime em palavras claras os motivos para a sua revolta angustiada. Após fazer um extenso relato acerca do seu tratamento médico, a carta termina assim: “A causa de Crescencio, sua recuperação física e moral (já que o abandono não ajuda a recupe-rar suas forças) não é somente uma causa monetária, mas também uma causa de justiça social. Como os feridos de outubro negro em El Alto, ainda que não com balas, Crescencio foi vitimado enquanto lutava por seu povo, por sua classe e pela sua pátria e para conseguir dias melhores para todos, em uma sociedade sem mais dominação, onde todos e todas tenham sua terra e o seu direito a se reproduzir”.

34.A Bolívia não conta com um sistema de saúde público que garanta atendimento gra-tuito à população, como o Sis-tema Único de Saúde (SUS) brasileiro.

35.Estas informações foram retiradas da carta de Thomas Siron, que ajudou Crescencio no seu primeiro ano de conva-lescença.

Page 74: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

74

Terra e território

Bloqueio em San JuliánSão oito horas da noite, estamos reunidos no grande galpão da Federação de Colonos de San

Julián. San Julián fica na estrada que corre pelo norte de Santa Cruz, em direção a Trinidad, capital do departamento de Beni. Converso com um grupo de jovens que fazem parte da juventude do município, é composta por estudantes, trabalhadores e camponeses.

Mario Cruz, de 23 anos, nasceu em San Julián, mas estuda na Universidad Autónoma René Gabriel Moreno (UAGRM), em Santa Cruz de la Sierra. Ele sempre volta em fins de semana para sua cidade natal, onde participa com mais intensidade das movimentações sociais. Conta que há muitas difi-culdades no movimento estudantil da UAGRM, pois os grupos conservadores são apoiados pelo reitor e financiados pelo Comitê Cívico, além de sempre fraudarem as eleições. Seus pais são migrantes, mas ele se considera crucenho.

A maioria dos jovens que está ali reunida é assim, filha de migrantes, camba-colla. Eles são res-ponsáveis pelo segundo bloqueio que será instalado em alguns minutos, mas não estão ansiosos. A cidade de San Julián é famosa pela sua localização estratégica e, ao bloquear a estrada, isola Santa Cruz do norte do país. Jovens como Mario participam de bloqueios desde muito pequenos, sabem exatamente onde são os pontos estratégicos, como funciona o sistema de turno e o que fazer em caso de conflito.

O motivo do bloqueio esta noite é o referendo sobre o Estatuto Autonômico de Santa Cruz, que vai acontecer no dia seguinte, 4 de maio de 2008. A ação serve para impedir que as urnas do refe-rendo cheguem a San Julián e também demonstra o repúdio dos habitantes locais ao processo. A cidade, habitada principalmente por colonos migrantes do altiplano, é conhecida por ser o bastião do MAS-IPSP no departamento de Santa Cruz e se opõe veementemente ao Estatuto Autonômico, considerado por eles um documento separatista, orquestrado pelas elites empresariais locais para impedir os avanços do

A BATALHA DE SANTA CRUZ

Page 75: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

75

Terra e território

governo Evo Morales.Edgar Renjifo, dirigente da juventude, explica que o maior problema do referendo de aprova-

ção do estatuto está na sua legalidade. “Não é um mecanismo presente na Constituição e as autoridades departamentais não tem o poder de convocar este referendo. Ele tem que ser convocado pelas autoridades nacionais”. Por este motivo, a Corte Nacional Eleitoral (CNE) considerou ilegal o referendo crucenho, no dia 7 de março de 2008. Além disso, nenhuma organização internacional reconheceu o processo.

Portanto, a tática dos opositores ao estatuto é não participar da consulta, demonstrando a sua falta de legalidade. De fato, San Julián adotou uma tática mais ousada. Em uma assembléia convocada para o dia 3 de maio, eles decidiram que nenhuma urna seria aberta no município, além de convocar o bloqueio de 24 horas, começando naquela mesma noite.

A juventude de San Julián vai em uma caminhonete até o seu ponto de bloqueio correspon-dente, que fica na entrada da cidade. Junto deles estão muitos jornalistas, com suas câmeras de vídeo e máquinas fotográficas. Querem registrar o início do bloqueio e todos os conflitos com os automóveis que querem passar e não podem. Ainda enquanto montam a barricada, passa um caminhão de frigorífico. Os jovens gritam, “não deixem passar, vamos fazer um churrasco!”, e as risadas são gerais. O caminhão é o último liberado para passar. Logo, pneus são espalhados pela estrada e incendiados. As pessoas tentam escolher uma posição na qual a fumaça passe menos, mas é inevitável que depois de alguns minutos a sensação de sufoco seja geral.

Há ameaças de que virá para acabar com o bloqueio a Unión Juvenil Cruceñista (UJC), a mesma organização que havia surrado o dirigente do MST Silvestre Saisari na praça principal de Santa Cruz. Eles atuam como espécie de braço armado do Comitê Cívico de Santa Cruz, e possuem nas suas costas diversas acusações de agressões aos direitos humanos. Há uma certa apreensão dos colonos com relação a isso, pois não sabem exatamente se virá e por onde virá a UJC.

Cerca de uma hora depois que o bloqueio foi instalado, alguns carros chegam da parte sul da estrada. Deles saem jovens muito fortes, com roupas esportivas e camisetas azuis justas. Atrás delas está escrito Juventude Che Guevara. Eles foram convidados pelos colonos de San Julián para garantir a segu-rança do bloqueio. São jovens de bairros da periferia de Santa Cruz, que se organizaram depois do apa-recimento da UJC para demonstrar que têm um posicionamento político diferente. Um amigo jornalista me esclarece que eles se constituíram no interior das academias de musculação e que apóiam o governo de Evo, mas falta um pouco de formação política.

Page 76: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

76

Terra e território

Na manhã seguinte volto às barricadas. Felizmente, a UJC não havia aparecido na noite ante-rior, deixando San Julian em paz com o seu bloqueio. Edgar ainda está acordado, com olhos vermelhos e o rosto um pouco sujo pela fumaça. Explica-me que houve uma tentativa de abertura de urna em uma das comunidades que fazem parte de San Julián e que eles estão indo para lá.

No caminho, vem a notícia de que houve um ferido no conflito entre os inspetores de urna e os moradores de San Julián. Um menino, da parte dos colonos, tentava fugir dos que defendiam a manuten-ção do referendo, caiu da van que o levava e teve as suas pernas atropeladas. Ao saber disso, a população que estava espalhada pelos demais bloqueios começa ir em direção a Los Angeles, ponto do conflito.

Acompanho parte desta população, num caminhão em direção a Los Angeles. Os caminhões param algumas centenas de metros da escola onde as urnas foram abertas. Uma cholita vai recolhendo pedras na estrada, alguns jovens pegam galhos de árvores ao lado do acostamento. Armas improvisadas. A tensão é grande, e todos sentem muito ódio. Haviam visto passar há pouco o jovem que tinha sido atropelado. Um dos seus.

Chegando lá, os ânimos já estavam mais calmos. Os promotores do referendo haviam fugido. “Depois que o menino caiu, todo machucado, eles ainda ficaram chutando e batendo nele”, contava um camponês que estava presente no conflito antes. “Falavam ‘ganha a autonomia e vão embora os collas de Santa Cruz’”, dizia outro.

Depois de se interarem melhor dos acontecimentos, a maioria dos camponeses começa a vol-tar aos seus respectivos bloqueios. Alguns ficam, os insultos racistas da briga anterior ainda ecoando fortemente na memória. Converso com dois camponeses de Brecha Casarabi, uma comunidade de San Julián, ambos migrantes de Potosi. “Eles dizem que a gente é de fora, que não é de Santa Cruz. Mas se são justamente eles que são descendentes de espanhóis, croatas, americanos. E a gente está aqui há milhares de anos”, lamenta um deles.

Ao final do dia, os colonos de San Julián conseguiram fazer com que ninguém votasse no refe-rendo na cidade. Fizeram um ato de encerramento do bloqueio, queimando bonecos de Rubén Costas, governador de Santa Cruz, Branco Marinkovic, presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e de Marta Cardoso, notária local que tentou promover a abertura das urnas.

Elite crucenha, racismo e polarizaçãoEu voltei para Santa Cruz um dia depois do referendo autonômico. Já na entrada da cidade

Page 77: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

77

Terra e território

podia ver pichado nos muros “passaporte para os collas”. No dia anterior, houve fortes conflitos, princi-palmente no bairro popular Plan 3000. Os moradores deste bairro, na sua maioria também migrantes, se posicionaram contrários ao referendo. Ali, contudo, houve um enfrentamento mais violento do que o de San Julián, entre os moradores e os jovens da UJC, que foram convocados pelo governador para guardar as urnas. Para parar o tumulto entre os dois bandos, a polícia interveio com gás lacrimogêneo e um senhor morreu de ataque cardíaco.

É normal que um estrangeiro seja muito bem recebido em Santa Cruz. Os crucenhos se orgu-lham da sua hospitalidade e simpatia com visitantes, sempre se opondo aos compatriotas do altiplano, conhecidos por serem mais fechados. Contudo, poucos turistas percebem a moeda oposta desta simpatia, o intenso racismo das demarcações sociais em Santa Cruz.

O motor disso é um regionalismo muito arraigado, que vê no resto do país o seu opositor e a causa de todos os problemas que enfrentam a população crucenha. O ataque é feito sob uma perspectiva geral de que o governo boliviano é centrado somente no altiplano e que, Santa Cruz, motor produtivo agrário do país, sempre foi colocada em um segundo patamar. Os migrantes do altiplano são, portanto, inimigos a serem combatidos dentro do território crucenho. Só são aceitos se se submetem ao discurso regionalista hegemônico da região, coisa que, pela cultura de organização e resistência do ocidente boli-viano, dificilmente acontece.

Segundo a socióloga Ximena Soruco, o discurso do conflito das regiões acima de qualquer outro conflito social e econômico é resultado de um populismo de direita. “O discurso regional, oriente contra ocidente, cambas contra collas, encobre a luta pelo excedente, pelas riquezas naturais, e quem se apropria desses recursos (...). É um populismo de direita (...). Constroem um povo a partir de um inimigo comum. Essa é a experiência fascista. O fascismo constrói o judeu como o culpado de tudo, onde os seto-res pobres, toda a insatisfação política, econômica, social e cultural da população se choca com o inimigo, sem questionar a estrutura interna desse país ou região”36.

Esta construção de um povo que cita Ximena se refere à construção da identidade camba, de-signação que no passado era equivalente a um peão, colono servo das fazendas, e que servia para borrar as várias identidades indígenas da região. Pedro Nuni, atual vice-presidente da Cidob, explica que não há uma cultura camba, “o termo camba é depreciativo, que os patrões utilizavam para os indígenas, para o os camponeses. Era o pior, era como dizer ‘vocês são um lixo’. Mas agora mesmo eles utilizam isso. É um engano. Apegam-se e tomam o termo camba para poder ter créditos com uma grande massa da região, que

36.Brasil de Fato, entrevis-ta feita por Igor Ojeda, 24/04/2008. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/a-heranca-racista-e-oligarca-da-elite-de-santa-cruz/

Page 78: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

78

Terra e território

somos nós, os indígenas e camponeses. E eles dizem que somos queridos, que querem que estejamos com eles, e ‘eu também sou igual a você’”. Esta criação étnica por parte das elites crucenhas é materializada na Nación Camba, principal organização de viés separatista em Santa Cruz.

Wilfredo Plata, também sociólogo, expõe que por detrás deste discurso integrador do índio das terras baixas, se esconde um histórico de ocupação violenta de terras e extermínio étnico, fato bastante evitado pelos exaltadores da identidade camba37. José Luís Roca, um dos intelectuais entusiastas da cultura camba, pontua: “Os crucenhos necessitaram três séculos para completar a ocupação do oriente. Come-çaram por Chiquitos, chegaram a Moxos, e, em busca da borracha, alcançaram o Rio Madeira (...) até as primeiras décadas do século vinte quando se apropriaram definitivamente das planícies chaqueñas, esta gente errante e audaz configurou um espaço onde prevalece uma cultura mestiça sui generis, com fortes resquícios hispânicos: a cultura camba”38. Trata-se de uma descrição heróica do passado colonizador, do sangue espanhol, mas que se permite uma mescla difusa com a cultura indígena local, cuja diversidade de povos indígenas não são passíveis de identificação precisa39.

Apesar de ter um longo histórico e do seu grande apelo popular, o discurso regionalista é claramente impulsionado por uma minoria que detém o poder econômico em Santa Cruz. O porta-voz deste discurso é o Comitê Cívico de Santa Cruz, organização formada na década de 1950 com influência da Falange Socialista Boliviana, maior expoente do fascismo boliviano. O comitê se tornou o grande defensor dos interesses da elite crucenha, que, como aponta Soruco, não passou por um processo de modernização a exemplo de outras elites bolivianas, como a do estanho. Enquanto a elite mineradora foi derrotada pela Revolução de 1952, a elite crucenha se manteve com a mesma lógica da sua formação, na época do auge da borracha.

“No oriente não há uma renovação de elites, não há movimentos sociais, operários, indígenas, camponeses, populares, que as tenham questionado. Enquanto no ocidente, houve a Revolução de 1952. O retorno à democracia e o período 2000-2005 também questionam e derrotam essas elites. As elites que surgiram tiveram que incorporar as demandas dos movimentos sociais. (...) Enquanto no ocidente há uma acumulação histórica de movimentos sociais, no oriente há uma acumulação histórica de elites, que transformam seu discurso de acordo com o contexto (...). Não é um problema de família. Há famílias que entram e que saem, as que empobrecem e as que enriquecem. Há, claro, sobrenomes que continuam, mas o que conta é a lógica. Seu modelo econômico é o extrativo do século 19. E o racismo contra a população indígena é da mesma época. Pois, se não for para exterminá-la, deve-se assimilá-la como mão-de-obra”40,

37.SORUCO, Ximena (co-ord.); PLATA, Wilfredo; MEDEIROS, Gustavo. Los barones del Oriente. El poder en Santa Cruz ayer y hoy, p. 101-166. Fundación Tierra. Santa Cruz, 2008.

38.ROCA, José Luis apud SO-RUCO, Ximena (coord.) et al., op. cit., p. 107. Tradução da autora.

39.A proposta de Estatuto Autonômico crucenho reco-nhece somente cinco povos indígenas, sendo que o oriente boliviano contém mais de 30 populações étnicas diferentes.

40.Brasil de Fato, op. cit.

Page 79: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

79

Terra e território

Page 80: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

80

Terra e território

diz Soruco.Esta elite aposta então no discurso da autonomia regional, na construção do inimigo comum

altiplânico, aproveitando-se da dispersão dos movimentos sociais da região. “No passado, o discurso au-tonomista recorria ao argumento do isolamento geográfico e da marginalização das decisões políticas es-tatais, ou seja, à falta do Estado em um vasto território. Na etapa contemporânea, o argumento é inverso. Ou seja, a invasão por parte dos migrantes collas promovida pelo Estado centralizador – ou seja, muito Estado – e a apropriação dos indígenas das terras altas dos recursos naturais, considerados exclusivos dos crucenhos”, diz Plata41.

Um dos exemplos que Plata utiliza para demonstrar este autonomismo moderno é uma citação de Sérgio Antelo, membro da Nación Camba: “Sob o argumento de que ‘todos somos bolivianos’ e temos direito a tudo que supostamente contém o país, foram socializadas ‘as terras sem dono’ que se encontram no ‘Oriente selvagem’, (...) o que deu origem a invasões étnicas sobre territórios que não lhes correspon-dem (...) nem por história, nem por falsos direitos constitucionais”42. Antelo aparentemente se esquece de que os territórios que hoje correspondem ao departamento de Santa Cruz um dia também foram por sua vez invadidos - não somente “etnicamente”, mas também culturalmente, militarmente e economicamente - pelos seus tão enaltecidos antepassados hispânicos.

Contudo, a maior contradição que há no discurso desta elite é que ela foi justamente o único setor da sociedade crucenha beneficiado pelo Estado “andino-cêntrico”. Após o auge da borracha no século XIX, esta elite entrou em decadência e só conseguiu se reestruturar a partir da Revolução Nacional de 1952, quando a política agrária do MNR promovia a agroindústria no oriente boliviano. Desta forma, houve inúmeros créditos e ajudas estatais, como o deslocamento de mão-de-obra do ocidente, para con-formar uma nova burguesia agrária baseada nas recém criadas empresas agrícolas. De fato, foi a ditadura de Banzer, que durou de 1971 a 1978, que deu extensões imensas de terras a esta elite, consolidando o modelo do latifúndio desta região. Os cultivos cíclicos desta região, como a cana e a soja, foram os únicos de fato a obter subsídio do Estado boliviano.

Contudo, se muito do apoio material vinha de dentro do território nacional, esta elite sempre teve as suas perspectivas voltadas para fora. A começar pelo modelo de produção da região, exportador desde a época da borracha. “Essa burguesia nacional, que foi criada pelo Estado nacional, tem uma visão local, regional. Está olhando o exterior, mas localmente. Não olha para o ocidente. É uma visão anti-nacional”, diz Plata43. Por isso, não está minimamente preocupada com soberania alimentar da população

41.SORUCO, Ximena (co-ord.) et al., op. cit., p. 162. Tradução da autora.

42.ANTELO, Sergio (negrito no original) apud SORUCO, Ximena (coord.) et al., op. cit., p. 143. Tradução da autora.

43.Brasil de Fato, op. cit.

Page 81: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

81

Terra e território

boliviana e em criar políticas agrárias que respondam às demandas internas do país.Mas além das perspectivas econômicas estarem voltadas para fora e para a exportação, as pers-

pectivas culturais desta elite também se voltam para fora. È um regionalismo que resgata o passado his-pânico e aponta para referentes culturais dominantes norte-americanos para se definir. Ignora completa-mente a existência de uma cultura boliviana geral.

Há poucos anos, tornou-se um escândalo nacional a declaração de uma Miss Bolívia: “Infeliz-mente as pessoas que não conhecem muito sobre a Bolívia e pensam que somos todos índios. É o lado oeste do país, La Paz, a imagem que reflete isso, estas pessoas de baixa estatura e índias. Eu sou do outro lado do país, do lado leste, que não é frio, é quente. Nós somos altos, somos pessoas brancas e sabemos inglês. Este conceito errôneo de que a Bolívia é somente um país andino está equivocado. A Bolívia tem muito a oferecer e este é o meu trabalho como embaixadora do meu país, fazer com que as pessoas saibam sobre a diversidade que temos”44. Yayita Toledo, que representava a Bolívia no concurso de Miss Universo em 2004, falava sobre os preconceitos que os estrangeiros têm sobre o seu país.

A aparente regionalização da políticaContudo, no panorama político atual boliviano, as elites crucenhas ganham um papel de desta-

que nacional. A oposição mais forte ao governo de Evo Morales não é encabeçada por partidos tradicio-nais, mas sim pelo Comitê Cívico de Santa Cruz. Diversos intelectuais apontam como causa deste proces-so a grande crise do sistema político boliviano, que estourou no início deste século com as mobilizações de 2000 e ainda persiste. Reflexo desta crise é a baixíssima votação que os partidos tradicionais tiveram na úl-tima eleição nacional frente à esmagadora vitória do MAS-IPSP, de 53,7%. Em 2005, o MNR, partido do anterior governo, obteve somente 6,5% dos votos; a UN (Unidade Nacional), liderada pelo ex-empresário Samuel Doria Medina, que pertenceu ao MIR (Movimento de Esquerda Revolucionária) anteriormente, obteve 7,8%; e o Podemos (Poder Democrático Social), agrupação liderada por Jorge Quiroga, ex-ADN (Ação Democrática Nacionalista, partido de Hugo Banzer) obteve 28,6%.

José Blanes aponta como uma das causas deste processo a Lei de Participação Popular. A lei regionaliza a política, incluindo no processo institucional as lideranças locais, que antes somente estavam envolvidas com as organizações sociais. “Então, uma estrutura de participação na gestão do Estado é aberta, e ela absorve uma quantidade muito grande das lideranças que antes eram somente lideranças sociais, e agora são polivalentes. Ao mesmo tempo em que é um líder social, pode ser um líder estatal.

44.Citação retirada do filme boliviano Quien mató la lla-mita blanca?. Tradução da autora.

Page 82: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

82

Terra e território

Os partidos começam a se regionalizar”. Mas os partidos tradicionais já não conseguem lidar com esta nova situação política e são amplamente rechaçados nas eleições a partir de 2000 como símbolos da velha política. Blanes conclui que o resultado deste processo é uma mistura explosiva de Estado com sociedade civil “Eu diria que por um lado a sociedade perde identidade como sociedade civil, mas ganha com muita força em sua relação com o Estado. Há mais mobilização que nunca, há mais representação que nunca, mas ao mesmo tempo há mais clientelismo que nunca”.

Na crise deste Estado-nação, que foi amplamente questionado pela esquerda e pela direita, o conflito entre estes dois pólos, de classe, aparece como um conflito de regiões. Intelectuais como Eduardo Paz, professor de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés, não descartam a possibilidade de estar em marcha uma tentativa de “balcanização” da Bolívia. “Por isso é que a experiência iugoslava tem que ser tomada em conta. No coração da Europa havia uma nação muito forte desde a Segunda Guerra Mundial, e que em uma guerra nos anos 1990 se converteu em diversas nações. E este perigo existe na Bolívia. E pode ser anedótico, mas nos perguntamos: por que o embaixador dos EUA na Bolívia45 é o mesmo que foi o representante dos EUA na época do fracionamento da Iugoslávia?”. Tal fragmentação só pode ser pensada no contexto do governo de Evo Morales, com a possibilidade de que políticas radicalizadas sejam implementadas com um apoio majoritário da população, fechando os limites da democracia representati-va para os setores de poder econômico boliviano.

Uma outra possibilidade, de caráter não-fragmentador do território nacional, seria um golpe de Estado. De fato, Manfred Reyes Villa, governador de Cochabamba, ex-militar e aluno da Escola das Américas no Panamá, chegou a pedir às forças armadas que interviessem no governo para garantir um processo mais democrático de Assembléia Constituinte em novembro de 2007. “Eu creio que tentaram golpes e vão continuar tentando. Nunca deixaram de procurar militares que estivessem dispostos a isso”, diz Paz. Mas, até o momento, todas as declarações das Forças Armadas Bolivianas deram pleno respaldo ao governo de Evo e à integração nacional.

De fato, o desgaste da direita tradicional transforma as organizações sociais regionais, como os comitês cívicos, em seus melhores representantes. O Comitê Cívico de Santa Cruz, por exemplo, possui atores no seu interior que não são exclusivamente da região, como a CAO e a Câmara de Hidrocarbo-netos de Bolívia. Pablo Regalsky vê uma imensa influência brasileira na presença destes atores: “A CAO tem enquanto núcleo fundamental os sojeiros brasileiros, colombianos e peruanos, que controlam as melhores terras produtivas do oriente e a Câmara de Hidrocarbonetos é controlada pela Petrobrás. Toda

45.O atual embaixador norte-americano da Bolívia, Philip Goldberg, foi assessor político na Bósnia e acompanhou de perto o processo da guerra ci-vil iugoslava e o posterior jul-gamento do presidente sérvio Slobodan Milosevic.

Page 83: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

83

Terra e território

esta ofensiva política da direita, que as pessoas dizem ‘são os crucenhos, são os cambas’, na verdade está plenamente respaldada pelo projeto expansionista, imperial brasileiro”.

Sobre o arco de alianças que a direita articula no país, Paz identifica cinco principais instrumen-tos, incluindo também as empresas petroleiras: “Quais são os atributos da oposição? Tem cinco instru-mentos. Por ter maioria no senado, podem dali boicotar qualquer impulso parlamentar para mudança. Segundo, os meios de comunicação, que são convertidos em um grande instrumento articulador de toda a oposição a Evo Morales, com todos os canais de televisão e os jornais (...). Terceiro, o Poder Judiciário, que era uma herança dos governos anteriores (...). Quarto, as empresas petroleiras, que se converteram nos tesoureiros dos comitês cívicos, para fomentar mobilizações populares e grandes campanhas publicitá-rias contra o governo. E quinto, a Embaixada dos EUA, que de maneira muito sutil e hábil foi articulando aonde tinha influência todas estas forças para debilitar o governo”.

Houve também erros do governo Evo que permitiram este grande fortalecimento das regiões “opositoras”. Como vimos no caso de Yuquises, no início de 2005 o conflito agrário no norte de Santa Cruz era fortíssimo. Neste embate entre camponeses e latifundiários, estes últimos começaram a questionar fortemente a figura do governador, indicado pelo governo central, que era considerado pouco agressivo por eles. Ou seja, o governo Mesa hesitou para adotar uma postura violenta contra os sem-terra. Neste momento, a reivindicação de que os governadores fossem eleitos aumentou muito e junto com as eleições presidenciais chamadas em 2005 (dois anos antes do previsto), foram chamadas também eleições diretas para os governadores.

Estas eleições não eram previstas constitucionalmente46 na Bolívia e, para que estes governadores pudessem ocupar seus cargos, um acordo foi feito com o recém eleito presidente Evo Morales, que os nomeia. “Eu creio que neste momento deveria estar claro de que eram empregados do Poder Executivo, que não tinham poder autônomo próprio. O problema é que estando Evo Morales respaldado pela lei, lhes deram muitas possibilidades de ter poder desde de janeiro de 2006, através de uma administração cada vez mais independente, de se converterem em administradores de recursos importantes... E o governo, ao invés de controlar esta administração, acabou permitindo que ela se ampliasse”, diz Paz.

A conformação dos governos departamentais opositores se deu logo em 2006, no primeiro ano do governo de Evo. Sob a mesma pressão que levou às eleições diretas para governadores, foi convocado um referendo para determinar se a Bolívia seria um país centralizado ou com autonomias departamentais. Nacionalmente, a autonomia departamental perdeu. Mas em quatro departamentos, Pando, Beni, Santa

46.A atual Constituição Polí-tica do Estado boliviana prevê que os governadores sejam nomeados pelo Presidente da República e dependem admi-nistrativamente do Ministério da Presidência.

Page 84: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

84

Terra e território

Page 85: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

85

Terra e território

Cruz e Tarija, os que conformam as terras baixas bolivianas ao leste e ao norte do altiplano, o “sim” ganhou. Desde então, suas autoridades locais se prenderam a esta demanda comprovada por autonomia departamental, e a partir desta demanda passaram a fazer oposição ao governo. Estes quatro departamentos são chamados de “meia-lua”.

O maior problema da autonomia departamental que é aplicada hoje, não é a autonomia em si, mas o fato dela não ser regulamentada. Por ser uma medida inexistente no arcabouço legal boliviano, não há nada que regule a gestão dos governos departamentais e que os ligue à gestão nacional. Portanto, estes departamentos concretizam ações que podem ser consideradas desobediências civis, como no recente caso dos Estatutos Autonômicos. É uma verdadeira guerra de versões na disputa de quem tem mais legitimidade para efetivar políticas estatais, o governo central ou os departamentos, que se apresentam factualmente como estados separados.

Paz ainda cita um outro fator que fortaleceu estes governos departamentais opositores: o au-mento da arrecadação graças à política de nacionalização dos hidrocarbonetos, pois os governos depar-tamentais ganham uma porcentagem do Imposto Direto dos Hidrocarbonetos (IDH). “Veio a naciona-lização dos hidrocarbonetos e grande parte da renda petroleira é destinada a estes governos. Então, não somente eles ganham autonomia de ação, mas ganham recursos econômicos. E o que fazem os prefeitos? Deixam de prestar contas ao Estado, adquirem cada vez mais independência e usam estes recursos para se fortalecer contra o governo central”, explica ele. Estas verbas são utilizadas para organizar manifestações sociais pró-autonomia ou para fomentar campanhas publicitárias contrárias ao governo.

O ano de 2007 foi inteiramente marcado pelas disputas acerca da Assembléia Constituinte. Propagada como um espaço de consenso nacional tanto pelo governo quanto pela oposição, a Consti-tuinte não se concretiza como tal, pelas profundas divergências entre os dois grupos. Ao perceber que o consenso não seria viável e que o MAS era a força majoritária do processo, a oposição se retira e se nega a estar presente nas sessões que determinam o texto final. A partir deste momento, a sua tática passa a ser deslegitimar a Constituinte e incentivar a criação dos estatutos autonômicos dos departamentos da meia-lua, apresentados como continuação da vontade popular expressada em 2006. Esta situação culmina no dia 15 de dezembro de 2007, quando, ao mesmo tempo em que Evo Morales apresentava à nação o texto final da nova Constituição Política do Estado (CPE) no Palácio Quemado em La Paz, se apresentava em Santa Cruz o texto final do Estatuto Autonômico da região, redigido por ilustres locais que nem sequer foram eleitos para tal atividade.

Page 86: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

86

Terra e território

O ano de 2008 começa então com duas agendas. A agenda do governo central, que tem que fa-zer passar por referendo a sua CPE, acompanhada do referendo de limitação da extensão da propriedade agrária; e a agenda da meia-lua, que quer aprovar os seus Estatutos Autonômicos. O departamento de San-ta Cruz, que possui a maior população dos quatro, foi vanguarda de todo este processo e anunciou o seu referendo autonômico para o dia 4 de maio, apesar da Corte Nacional Eleitoral ter declarado o processo nulo. Enquanto isso, o governo central ainda enfrenta problemas para aprovar a data dos seus referendos, já que importantes núcleos de poder como o senado são hegemonizados pela oposição.

Estatuto Autonômico e interesses agráriosPara finalizar a história desta suposta briga entre regiões, é necessário fazer uma análise do Es-

tatuto Autonômico de Santa Cruz. Ele serviu de forte referência para a formulação dos demais estatutos que estão neste momento em processo de aprovação em Tarija, Beni e Pando47. Esta análise é extremamen-te importante porque, mais além de todas as disputas sobre autonomia ou não, está nas entrelinhas deste processo uma briga profunda sobre a terra e a garantia de continuidade da estrutura agrária da região, ameaçada pelas medidas anunciadas pelo governo.

O Estatuto Autonômico estabelece taxativamente que toda a administração agrária será com-petência departamental. “O direito proprietário sobre a terra, a regularização dos direitos, a distribuição, redistribuição e administração das terras no departamento de Santa Cruz é responsabilidade do Executivo Departamental e estará regulado através de uma lei departamental aprovada pela Assembléia Legislativa Departamental” (Artigo 102).

Para concretizar este poder absoluto sobre o território crucenho, o estatuto determina a criação do Conselho Agrário Departamental (Artigo 106) e do Instituto Departamental de Terras (Artigo 107), ambos sem nenhuma conexão com as entidades afins já existentes em nível nacional, como o Inra. Ou seja, seu funcionamento é completamente independente das disposições nacionais agrárias, o que impe-diria, por exemplo, que uma possível limitação de terras tenha efeito na região ou mesmo que o trabalho cotidiano do Inra na verificação do cumprimento de função econômica e social seja feito nas proprieda-des agrárias crucenhas.

Mas é o Artigo 109 que escancara a vontade das elites crucenhas de administrar as terras da região sem o mínimo de controle social. Este artigo estabelece um poder imenso do governador, que “assinará todos os títulos agrários que creditem a propriedade sobre a terra e se encontrem dentro da ju-

47.Pando e Beni fizeram as suas consultas no último dia 1o. de junho. Tarija fará a sua consulta no dia 22 de junho.

Page 87: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

87

Terra e território

risdição do Departamento Autônomo de Santa Cruz, os quais, de acordo com princípios constitucionais, (...) não são revisáveis, salvo pela autoridade judicial competente, permitindo a sua inscrição no Registro de Direitos Reais”.

Carlos Romero comenta inclusive que a ânsia destes proprietários de terras em Santa Cruz fez com que o estatuto tivesse algumas aberrações do ponto de vista da gestão pública. “O estatuto não prevê nenhum mecanismo efetivo de redistribuição de terras, mas bem elimina os mecanismos que já estão previstos na legislação agrária vigente. Não menciona a reversão, nem sequer a expropriação, que é uma medida que existe em qualquer país do mundo para realizar obras públicas”. A própria onipotência do governador relativa à titulação de terras é considerada por Romero uma irracionalidade. Estes elementos, segundo ele, demonstram o verdadeiro caráter do estatuto, que é “proteger as terras” do setor latifundi-ário.

Mas a população urbana de Santa Cruz aparentemente não acredita que estas questões são tão relevantes. Conta mais neste processo o sentimento de pertencimento local, sentimento incorporado inclusive por alguns migrantes. Sabino Aguilar é cochabambino e tem um pequeno negócio na periferia de Santa Cruz. Ele reconhece muitos dos problemas do Estatuto Autonômico: “Há artigos que não estão bem. Por exemplo, coisas a favor do trabalhadorr nem sequer estão escritas. Então, isso é o que nos dá desconfiança (...). Eu li uns folhetos também que diziam que a terra vai continuar como antes, os estatutos não vão mudar nada. A política do governo [central] reparte as terras fiscais aos que não têm, e no estatu-to não há isso. Isso afeta também o camponês”. Mas, faltando dois dias para consulta e mesmo sabendo de todos estes problemas, afirma que vai votar favorável ao estatuto. Por quê? “Por Santa Cruz, eu me sinto crucenho, trabalhei aqui 14 anos. Aqui está a minha família, tenho netos crucenhos, filhos das minhas filhas. Tomara que seja para bem”.

Os resultados finais do referendo mostraram um grande apoio popular ao estatuto. Segundo dados da Corte Departamental Eleitoral, 86% dos votos válidos foram favoráveis ao estatuto e 14% con-trários. Contudo, 40% dos votantes habilitados não compareceram às urnas, mais do dobro do padrão de abstenção da região, o que também demonstra que a campanha pelo não-comparecimento teve resultados significantes.

Page 88: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

88

Terra e território

MAPA DE COCHABAMBA

Detalhe

Page 89: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

89

Terra e território

3 - MOVIMENTO COCALEIRO E A LUTA PELA SOBERANIA NACIONAL

Page 90: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

90

Terra e território

Page 91: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

91

Terra e território

CHAPARE

Finados em Santa HelenaNo Chapare, o último dia de finados caiu em uma sexta-feira chuvosa. Na tradição boliviana,

era o dia de Todos os Santos, quando os mortos, em especial aqueles que morreram recentemente, são recordados com prantos e festas.

Quando cheguei no sindicato agrário Santa Helena, por volta das 9h da manhã, todos já estavam de pé há muito tempo. A mesa, em tributo aos mortos, estava pronta, e a cada momento vinham crianças prestar as suas homenagens. Ela geralmente é composta por comidas, flores, coca, coisas que os mortos apreciavam. Mais tarde, ela seria levada ao cemitério, carregada pelos membros da comunidade. Todos se concentravam em uma das casas que fica mais perto da estrada secundária que passa pelo sindicato. As mulheres serviam pães assados e chicha, os homens bebiam, conversavam e jogavam com moedas.

Seu Julián e Seu Andrés estavam me esperando. Seu Julián é secretário geral do sindicato, função que na Bolívia é uma mescla entre dirigente político e comunitário, pois o sindicato é o órgão de gestão territorial das comunidades camponesas. Seu amigo, Seu Andrés, ia me mostrar esta manhã o seu chaco, sua pequena plantação de coca e as demais coisas que são colocadas lá dentro para o sustento da família.

O sindicato Santa Helena fica na beira de um ramal norte, que leva até a cidade de Eterazama, da estrada principal que liga Cochabamba a Santa Cruz. Os lotes dos membros desta comunidade se encontram saindo deste ramal para dentro, atrás das casas da comunidade, muitas vezes já alcançando um terreno mais acidentado. Entramos os três em direção ao chaco. Atravessamos um pequeno córrego, subimos alguns barrancos, tudo envolto a uma densa vegetação. Corta para a direita, depois para a esquerda, andamos mais um pouco. Até que chegamos à plantação de coca de Don Andrés, um terreno pequeno, um cato de coca – quarenta por quarenta metros, que dão ao final 1,6 mil m2, plantação

Page 92: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

92

Terra e território

permitida atualmente.Por mais que as políticas governamentais acerca da produção de coca tenham mudado

nos últimos anos, estes pés de coca foram plantados seguindo uma geografia diferente. Quanto mais escondidos na mata eram, melhor. Assim poderiam se salvar da erradicação forçosa promovida pelos governos anteriores.

Mostraram-me como se colhe a coca, tirando as folhas ao puxar a mão fechada pelo tronco, da base até a extremidade. Não se pode fazer com muita força ou violência, se não as folhas se rompem e ficam imprestáveis para vender depois. Até o método da colheita é apropriado para o clima clandestino das plantações. Se comparado com a colheita feita nos Yungas de La Paz - onde as plantações de coca eram permitidas por serem “tradicionais” – na qual cada folha é retirada com cuidado, o método chaparenho1 é muito mais rápido. No período auge do preço da folha de coca, anos 1970 até meados de 1980, quando a repressão não era forte, a colheita rápida servia para maximizar os ganhos. Nos períodos de repressão intensa, do final dos anos 1980 até meados dos anos 2000, servia para não chamar tanto a atenção dos militares.

Seu Andrés Yucra, com seu lote de 9 hectares, é um dos maiores camponeses do sindicato. Na época anterior, lembra, todos ocupavam boa parte dos seus lotes com hectares de coca. Para fazer a colheita, contratavam peões. Hoje, com somente um cato legalizado, dão conta do serviço com ayni, uma espécie de troca de diárias de serviços entre as famílias. Como a coca se colhe a cada três ou quatro meses, nos dias da colheita o proprietário reúne à base do ayni a mão-de-obra para fazer o serviço com a rapidez necessária. Assim, ele e sua família têm os próximos meses para “devolver” o trabalho feito.

Como um cato é equivalente aproximadamente à sexta parte de um hectare, sobra bastante terreno para Don Andrés produzir outras coisas. Enquanto caminhamos pelo seu chaco, ele vai me mostrando outros cultivos. Aqui e ali tem árvores madeiráveis - cerebo, palo román, tijiaque, armendrillo - que a seu tempo poderão render muito dinheiro. Depois, algumas árvores de cítricos. Arroz e mandioca, mas somente para consumo familiar. Finalmente, ocupando 3,5 hectares, estão nove cabeças de gado, maior unidade produtiva do chaco.

Voltamos para a comunidade. A preparação para a ida ao cemitério continuava. Os homens aos poucos iam ficando mais alegres com a chicha. Muitos mascam a sua coca, trazendo um grande bolo de folhas em uma das bochechas2. As mulheres se concentram mais na cozinha, ainda preparando comidas para servir. A manhã seguia, com chuva, mortos e coca. Cheia de símbolos do Chapare.

1.Do Chapare.

2.Na verdade se diz mascar, mas a prática do acullico ou pijcheo não consiste em tritu-rar as folhas, mas sim pressio-ná-las com os dentes para aos pouco ir tirando a sua seiva.

Page 93: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

93

Terra e território

Page 94: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

94

Terra e território

A regiãoO lugar denominado Chapare ou Trópico de Cochabamba na verdade é composto por três

províncias do departamento de Cochabamba: Chapare, Tiraque e Carrasco. É uma região onde predomina um clima tropical, muito úmido, com extensões de terra planas, mas que vão se acidentando a oeste, na província de Chapare, à medida que se aproximam da província mais altiplânica de Ayopaya.

Ali, vivem atualmente no mínimo 40 mil famílias de pequenos produtores agrícolas3, que se organizam em sindicatos agrários, como o de Santa Helena. Há hoje 1087 sindicatos na região, agrupados em 109 centrais sindicais4. Por fim, estas se organizam dentro de seis federações camponesas: Federação do Especial do Trópico de Cochabamba, Federação Mamoré Bulo Bulo, Federação Carrasco Tropical, Federação Centrais Unidas, Federação Especial Yungas do Chapare e Federação Chimoré. Estas federações se agrupam em uma Coordenadora, que é quem responde unificadamente ao movimento cocaleiro do Chapare.

A formação destas organizações sociais está ligada ao histórico de colonização desta área. Durante a colônia, esta era uma área muito pouco habitada, com presença considerável dos índios yuracarés. Segundo o pesquisador Fernando Salazar, do Instituto de Estudos Sociais e Econômicos da Universidad Mayor de San Simón, já no fim do século XVII houve uma guerra entre os yuracarés e os espanhóis pelo controle da produção da folha de coca. A coca era um mercado importante nesta época, pois era muito consumida nas minas de Potosi, no norte argentino e chileno. Em termos gerais, a coca ocupava o quarto ou quinto lugar nas exportações bolivianas5. Um estudo do final do século XVIII indica que a coca representava cerca de 30% do valor total dos produtos nacionais comercializados no mercado de Potosi6.

Ainda no final do século XVII, apareceram na região missões franciscanas. Elas fundaram povoados que existem até hoje, como San Antonio que depois foi rebatizado de Villa Tunari na década de 19407. Mas a colonização veio de forma mais contínua a partir do século XX, quando muitos camponeses e fazendeiros começam a colonizar espontaneamente a região.

Muitos pesquisadores8 apontam como marco o final da Guerra do Chaco, quando prisioneiros paraguaios foram utilizados para construir uma via que ligava Villa Tunari a Cochabamba, fato que impulsionou a abertura da região. Fernando Salazar aponta uma outra conseqüência desta guerra para a região: muitos dos soldados convocados eram colonos em trabalho servil nas fazendas criollas bolivianas. Ao voltarem da guerra, estes soldados não queriam mais trabalhar nestas fazendas e começam a procurar

3.KOMADINA, Jorge (co-ord.); GEFFROY, Celine. El poder del movimiento políti-co. Estrategia, tramas organi-zativas e identidad del MAS en Cochabamba (1999-2005), p. 82. CESU, DICYT-UMSS, Fundación PIEB. La Paz, 2007.

4.DIRECO (Dirección Na-cional de Reconversión Agrí-cola). Coca en cifras – datos a nivel nacional, p. 43-45. 2005.

5.Segundo entrevista feita com Fernando Salazar.

6.SPEDDING, Alison. Kaw-sashun coca. Economía cam-pesina cocalera en los Yungas y el Chapare, p. 56. PIEB. La Paz, 2005.

7.GARCIA Linera, Álvaro (co-ord.) et al., op. cit., p. 383.

8.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 91. GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 384.

Page 95: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

95

Terra e território

terras próprias no trópico cochabambino.A partir da Reforma Agrária de 1953, os governos começaram atuar de forma mais ativa na

colonização da região como parte da sua política de modernização agrária. Em algumas regiões, como em Chimoré em 1958, foram estabelecidas colônias dirigidas, prometendo aos colonos9 infraestrutura produtiva, o que no final acabou se resumindo em mosquiteiros e algumas sementes. Muitas das colônias que existem hoje, contudo, se formaram espontaneamente, com os camponeses se juntando e distribuindo lotes entre si10. Em algumas regiões, como a de Ivirgarzama, os lotes variam entre 10 a 20 hectares. Nas regiões mais perto de Villa Tunari, como o sindicato Santa Helena, os lotes raramente passam de 10 hectares.

Com a pouca ajuda do governo para fomentar outros cultivos economicamente rentáveis, os camponeses aos poucos se voltaram para o cultivo de coca, aproveitando que já havia um mercado deste produto tradicional em Villa Tunari11.

O auge da coca: lógica inversa do camponêsEntre 1970 a 1986, a região viveu o auge do preço da coca, que coincide com a presença forte

da indústria da cocaína. “Alguns já não cultivavam banana nem cítricos, em seu chaco já não tinha espaço para nada. Estavam desde a rua até a ponta com coca, já não tinham espaço nem para um pátio decente para secar a coca, o faziam na rua. Vinha um carro e este tinha que parar. Tiravam o toldo, passava o carro, e voltavam a secar a coca. A este extremo chegou”, descreve Carlos Meneces, que foi secretário geral da Federação do Trópico no início da década de 1980.

Segundo Alison Spedding, que coordenou um extenso estudo sobre a economia camponesa cocaleira na Bolívia, aparentemente no início dos anos 1970 a produção de coca no Chapare ainda era voltada para os mercados tradicionais como os centros mineiros. Mas no final desta década a demanda da indústria da cocaína se torna mais marcante, levando à modificação das formas de produção agrícola destes camponeses12.

Spedding, ao analisar a história da economia da folha da coca, identifica esta época como a que mais apresenta características da economia agrária capitalista. A utilização de praticamente todas as terras disponíveis para o plantio de coca, a eliminação da rotatividade de cultivos e a diminuição dos plantios de subsistência (como mandioca, arroz, cítricos, etc.) em detrimento da coca foram práticas que contraria-vam em muito a lógica de produção camponesa.

9.Colonos neste caso nova-mente não é o colono servil das fazendas, mas sim o cam-ponês deslocado pelo Estado para habitar e produzir em uma área.

10.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 92.

11.Idem, p. 92.

12.Ibidem, p. 93.

Page 96: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

96

Terra e território

O espanto de Carlos com relação à forma como seus companheiros plantavam coca na época se justifica especialmente se tomarmos em conta esta lógica de produção, forjada nas dificuldades da agricultura andina. Com cultivos em diferentes pisos ecológicos, os camponeses dos Andes asseguram um trabalho que ocupa toda a mão-de-obra familiar e uma produção certa, por mais que seja pequena, frente aos desastres naturais e às mudanças climáticas13. A diversidade da produção com rotatividade de cultivos garante a alimentação da família, mesmo que os recursos econômicos provindos da venda destes produtos sejam muitos baixos. A racionalidade camponesa, portanto, prioriza questões como garantir um mínimo de produção de subsistência ou a ocupação plena da família em detrimento da busca por máximos rendi-mentos por força de trabalho ou produtos “investidos” – como seria lógica capitalista14.

A coca se ajusta perfeitamente a esta lógica, pois pode ser cultivada em pequenas extensões, inserida nos ciclos de rotatividade de cultivos, gera atividades para toda a unidade familiar e recursos econômicos mínimos. Nas palavras de José Encinas, dirigente do Sindicato Recta Ivirgarzama: “o agricultor planta coca, faz a colheita e disso come, se veste, faz estudar os seus filhos. Então, ela é praticamente tudo para o cocaleiro que não tem apoio”.

Segundo Spedding, ainda que este período de auge da coca tenha representado uma exceção, não se encontra referências de produtores que tenham adotado “relações de produção estritamente capitalistas” nesta época. Isso porque o cultivo de coca necessita de muita mão-de-obra e há certas etapas que são impossíveis de serem mecanizadas, em especial a colheita. É por isso que as fazendas cocaleiras pararam de produzir coca a partir da Reforma Agrária e 1952, por não terem mais mão-de-obra gratuita15.

Contudo, os altos preços da coca atraíram como nunca migrantes de todo o país, que vinham a para trabalhar como peões ou partidários16 nas plantações de coca. Aos poucos, muitos juntaram dinheiro para comprar lotes próprios e cultivar a sua própria coca.

Neste sentido, uma outra conseqüência do aumento de preço da coca foi a criação de um mercado de terras. Antes, segundo Spedding17, este era quase inexistente na região, pois os camponeses tinham acesso às terras com a simples afiliação a um sindicato, que significava a mesma coisa que incorporação a uma comunidade já criada ou ainda por ser estabelecida.

13.GOLTE apud SPEDDING, Alison, op. cit., p. 19.

14.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 20.

15.Idem, p. 7.

16.Partidários são camponeses que cultivam terras de uma terceira pessoa e dividem seus ganhos com ela.

17.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 94.

Page 97: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

97

Terra e território

Ainda em 1961, o governo nacionalista de Víctor Paz Estenssoro se comprometeu na Conven-ção de Viena a erradicar a coca em 25 anos e acabar com a prática do acullico, o mascar de coca. A ativi-dade era entendida como arcaica, símbolo de um passado indígena a ser superado pela fase nacionalista. Contudo, para os governos que seguiram, em especial os do período militar, a ideologia nacionalista ficava em segundo plano frente à crescente ligação destes com o narcotráfico que se estabelecia na região. Portanto, a produção de coca e de cocaína na Bolívia aumentou exponencialmente até meados da década de 1980.

O período entre 1975 a 1982 é caracterizado por Fernando Salazar como a época em que o nar-cotráfico governava o país. Durante ditadura de Banzer, que ocupou quase toda a década de 1970, foram descobertos vários escândalos ligando parentes do presidente e autoridades do governo com o tráfico de cocaína. Mas foi na curta e violenta ditadura de Luis García Meza de 1980 a 1981, que as ligações entre o narcotráfico e o Estado boliviano ficaram mais explícitas. Especula-se que os clãs da cocaína financiaram o seu golpe com cerca de um milhão de dólares18. Sua ditadura marca a “época dourada” da vinculação da economia boliviana à cocaína, que então representava 50% do PIB boliviano19. Obviamente, os EUA não apoiavam esta relação direta com o narcotráfico e este fator, somado à extrema violência de seu governo contra os movimentos sociais, derrubou Meza do poder em menos de dois anos de governo.

A partir de então, os governos bolivianos passaram a colaborar irrestritamente com a política norte-americana de combate às drogas. Contudo, a intervenção antidrogas no país, instalada a partir de 1982, quando reiniciaram os governos democráticos, não possuía o narcotráfico como seu maior foco. A política se voltava principalmente contra a base da cadeia de produção, os camponeses cocaleiros, provavelmente tidos como alvos mais fáceis que os poderosos clãs da cocaína, que além de tudo sempre estiveram ligados aos grupos de poder no país.

O ESTADO CONTRA A COCA

18.DUNKERLEY, James, op. cit., p. 383-392.

19.DO ALTO, Hervé, op. cit., p. 73.

Page 98: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

98

Terra e território

Negociando com o inimigoSeu Carlos Meneces não é daqueles que idolatra a folha de coca. “Se é sagrada, que a coloquem

em um altar! Não masquem, nem pisem, nem cuspam!”. No cultivo da coca, somente via a oportunidade de atrair algum desenvolvimento para a região.

Nascido na periferia de Cochabamba, chegou a se inscrever em direito na Universidad Mayor de San Simón. Contudo, as repressões e o controle militar da época o desanimaram e ele preferiu tentar a sorte no campo. Ainda jovem, se tornou dirigente sindical da Federação Chimoré. Mas a ditadura militar colocou na ilegalidade todas as federações, com exceção da Federação do Trópico, que era controlada politicamente pelo regime através da cooptação dos seus dirigentes. Eram resquícios do Pacto Militar Camponês.

Em 1982, um pouco antes da queda do regime militar, foi organizada a eleição da diretoria da Federação do Trópico. As eleições tinham que ser democráticas, pois o governo norte-americano necessitava de um interlocutor legítimo na região para começar a aplicar os seus planos de erradicação da coca.

Seu Carlos queria participar das eleições, contrariando os seus ex-companheiros da então extinta Federação Chimoré, que pensavam que isso seria pactuar com as políticas do governo. Montou a sua chapa sem dinheiro para fazer campanha, visitando somente um terço da região. Enquanto a outra chapa, a financiada pelos militares, tinha carro, motorista, gasolina, distribuía presentes. A inesperada vitória de Seu Carlos indicava um pressentimento dos cocaleiros de que os tempos haviam mudado.

O governo quis anular a eleição, mas as autoridades americanas presentes o impediram, “queriam ver no que ia dar”. Dois dias depois que tomaram posse, receberam um comunicado de que teriam uma reunião com uma autoridade americana de alto escalão. A política que os EUA propunham na época era a erradicação de qualquer maneira, feita geralmente com a pulverização de químicos por via aérea, acabando com a folha de coca e com quaisquer outros cultivos existentes, tendo como conseqüência enormes danos sociais, econômicos e ambientais.

Tratava-se de uma das primeiras negociações com camponeses acerca da política americana de erradicação da folha de coca. Seu Carlos, que foi nomeado junto com outros dois companheiros pela Federação para participar do encontro, se lembra da conversa com detalhes.

A reunião foi à noite, em Villa Tunari. A todo tempo, a autoridade americana tentava arrancar pedidos dos dirigentes, “Os EUA sempre consideram que os países de terceiro mundo têm que ficar

Page 99: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

99

Terra e território

pedindo coisas, como mendigos”.Então, quando o gerador do povoado falhou, o americano emendou: “Olha, que contratempo.

Vocês necessitam ter eletricidade. Falta desenvolvimento para vocês”. Recebeu como resposta comentários acerca da beleza da natureza e da lua. Como era bom, quando jovem, caminhar com a namorada em noites de luar, não?

A estratégia dos dirigentes cocaleiros era fazer com que o representante americano entendesse que o problema com as drogas não era dos bolivianos, mas sim dos americanos. Portanto, quem tinha que pedir alguma coisa eram eles. “Diziam que havia sete milhões de jovens que entravam a cada ano nas drogas. E a gente era seis milhões nesta época e não tinha problema com isso. A pobreza é um problema, mas a droga é pior. Eles sim tinham um problema grave. De que lhes serve ganhar o mundo e perder a sua alma? Não serve de nada. Estavam pior que a gente”, conclui Seu Carlos.

Mas a conversa estava emperrada, não havia como começar a negociação. Por fim, o americano perguntou:

Vocês para produzir cem laranjas, como fazem?- Colocamos ao ombro cem laranjas, andamos...- E quanto lhes pagam?- Nos pagam tanto.- E é suficiente para viver?- Não.- Ah... Então necessitam ganhos.- Claro, para isso temos a coca. Tiramos o equivalente a cem laranjas e ganhamos duzentas vezes - mais.Mas isso está mal, não há lei em Bolívia que proíba isso?- Não, não há nenhum problema. A gente masca a coca.- Mas vocês não sabem, há milhões de jovens em nosso país ficam doentes!- Ahh! O problema é de vocês, não da gente! -

A partir daí, a conversa fluiu até as duas horas da madrugada. Seu Carlos crê que foi muito positiva. Graças a ela, diz ele, se conseguiu negociar uma política para a coca com desenvolvimento alternativo e evitar a pulverização de químicos pelo ar. “Eu creio que a partir disso, as políticas de coca na Bolívia foram mais brandas que na Colômbia e no Peru”.

Page 100: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

100

Terra e território

Lei 1008Contudo, nada impediu que o governo boliviano, sustentado pelo americano, começasse a

aplicar políticas duras durante os anos 1980 a respeito dos produtores de coca. Em 1986 o preço da coca despencou e este fato coincidiu com o Plano Trienal, primeiro de uma série de planos que têm enquanto política comum a erradicação das plantações de coca, o combate ao narcotráfico (sendo estes dois últimos garantidos por uma forte militarização da região) e a aplicação de cultivos de substituição da coca, chamada de desenvolvimento alternativo.

Dois anos depois, o governo promulga a Lei 1008, a Lei do Regime da Coca e Substâncias controladas. A lei poderia ser considerada um avanço se consideradas as tentativas americanas de eliminação completa da coca, pois identifica o consumo tradicional boliviano da coca, que pode, portanto, ser mantido por um número limitado de cultivos.

Esta lei teria sido baseada em estudos de produtividade dos cocais bolivianos e do consumo tradicional – através do acullico, mates e usos rituais – da folha de coca. Assim, se estabeleceu uma quantidade de hectares de serviriam a esta demanda e a quantidade que estariam “excedentes” e que, portanto, serviriam ao narcotráfico.

Contudo, muitos problemas aparecem na aplicação desta lei. O primeiro deles eram os dados utilizados para calcular a produtividade dos cocais. Spedding aponta que, além serem coletadas ou apresentadas sem o mínimo de rigor acadêmico, as cifras de produtividade tendiam a aumentar (ou seja, significavam menos territórios permitidos para os cocais) na medida em que o debate acerca da erradicação da folha de coca se tornava mais conflitivo20.

Além disso, a lei não adotou critérios universais para estabelecer os cultivos “excedentes”, mas sim critérios culturais e geográficos. Ela estabeleceu a divisão do país em três territórios. O primeiro era uma área de cultivo “tradicional” da coca, que teria a produção da folha autorizada e se consistia na região dos Yungas do departamento de La Paz na região dos Yungas de Vandiola no departamento de Cochabamba. O segundo território era onde havia cultivo “excedentário” da folha de coca e que se consistia principalmente no trópico cochabambino, apesar de também incluir algumas regiões no departamento de La Paz. O terceiro território é todo o restante do país, no qual o cultivo de coca estaria terminantemente proibido.

Sempre foram, portanto, imensos os questionamentos sobre os critérios escolhidos para estabelecer

20.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 72.

Page 101: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

101

Terra e território

as áreas de cultivo “tradicional” e “excedentário”, determinando, portanto, quais camponeses teriam a sua atividade considerada legal e quais, ilegal. A explicação dada é a de que as áreas de cultivo antigo, como os Yungas, eram áreas que serviam para o consumo tradicional de coca, e as áreas de colonização recente, como o Chapare, eram áreas que haviam se estabelecido principalmente graças ao mercado de cocaína. Contudo, não se considerava que já antes deste mercado, cuja explosão se dá no final dos anos 197021, o Chapare se constituía em uma importante região produtora de coca para os usos tradicionais. O estabelecimento destas duas zonas parece ter como principal orientação a divisão dos produtores de coca, impedindo a organização de lutas conjuntas.

Contudo, o maior problema desta lei era o clima de terror que impunha nas áreas excedentárias. Havia uma grave inconstitucionalidade na lei, que permitia prisões e ações militares contra pessoas ou comunidades antes que a culpa destes fosse comprovada. Combinado com a militarização da região, muitos foram presos, torturados e mortos sem nenhum processo jurídico que permitisse estas ações. Se-gundo esta lei, diz Eduardo Córdova “uma pessoa não é inocente, é culpada e tem que demonstrar a sua inocência”, portanto, há uma inversão dos princípios jurídicos.

A partir destas políticas do final dos anos 1980, em especial a militarização e o total descumprimento dos direitos humanos, o conflito na região do Chapare se tornou intenso. “O pretexto era a luta contra o narcotráfico e contra o terrorismo, mas queriam na verdade nos evacuar do Chapare, tirar nossas terras. Graças à nossa luta ficamos. Militarizaram e resistimos à militarização. Isto uniu o setor camponês, e por causa desta luta e deste confrontamento, também nos ensinou a falar de política”, diz Feliciano Mamani, prefeito de Villa Tunari e ex-dirigente cocaleiro. A cada plano que o governo soltava, o movimento cocaleiro traçava novas formas de luta, tanto no plano local, em defesa das suas plantações de coca, quanto no nacional, na denúncia de violações de direitos humanos.

Antes de relatarmos algumas histórias das lutas destes camponeses, é importante dar um panorama completo sobre as políticas de luta contra as drogas do Estado boliviano. Como dissemos anteriormente, além da militarização das regiões “excedentárias”, as políticas incluíam a erradicação dos cocais e o desenvolvimento de cultivos alternativos.

Erradicação voluntáriaComo estratégia para a eliminação da coca e a aplicação de outros cultivos, o Plano Trienal e a Lei

1008 estabeleciam uma política de erradicação compensada, na qual o produtor de coca oferecia uma

21.Spedding sugere o ano de 1978 como uma data “que a demanda ilícita chegou a ser um fator determinante para a plantação de novos cocais”. In: SPEDDING, Alison, op. cit., p. 73.

Page 102: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

102

Terra e território

certa quantidade de plantação de coca a ser eliminada em troca de dinheiro e insumos para iniciar outros cultivos.

O sucesso desta política nos primeiros anos se deu principalmente porque muitos dos cocais já estavam sendo abandonados. A enorme queda nos preços da coca de 1986 fez com que muitos camponeses, em especial aqueles que não tinham terras e trabalhavam como partidários ou peões, voltassem para as suas regiões de origem. Assim, com o passar dos anos, os proprietários tendiam a reduzir os seus cocais com o que conseguiam cultivar somente com a mão-de-obra da sua própria família. Desta forma, a política de erradicação compensada se encaixou perfeitamente para estes anos de baixa nos preços da coca, nos quais os proprietários erradicavam os cocais que já não tinham mais condições de cultivar22.

Este abandono dos cocais não se deu imediatamente, sendo necessário alguns anos para que os camponeses se convencessem que a queda no preço da coca não era um fenômeno temporário. Os dados oficiais mostram que a erradicação compensada alcançou seu auge somente em 1990, época em que este processo de abandono dos cocais culminava. Já quatro anos depois, em 1994, a erradicação compensada chega a um mínimo, marcando o fim deste processo, pois os cocais não erradicados até este momento eram o que uma família poderia cultivar23.

Até meados dos anos 1990, o preço do hectare erradicado chegou a um máximo de 2,5 mil dólares. Alguns aproveitavam este alto valor para erradicar seus cocais e com o dinheiro investir na plantação de novos cocais, que novamente seriam erradicados. Muitos se dedicavam de fato aos cultivos alternativos, mas as diversas dificuldades de mercado e de investimentos que estes representavam, os faziam voltar ao cultivo de coca, que representava um ganho econômico mais estável. Os cocaleiros que tinham muitos hectares de coca para oferecer à erradicação compensada juntaram uma pequena fortuna, mas este dinheiro pouco foi aproveitado para o desenvolvimento da região. Alguns conseguiram estabelecer pequenos negócios ou comprar carros para terem outras fontes de recursos. Contudo, a grande maioria, segundo os próprios chaparenhos, desperdiçou seu dinheiro em bebedeiras ou com gastos excessivos e desnecessários24.

Mas, é a história da Finsa a mais lembrada quando se pensa em todo o dinheiro que passou pela região e não ficou. Trata-se de uma empresa financeira que apareceu no Chapare prometendo pagar juros altíssimos às aplicações feitas na empresa. “O chaparenho fazia uma colheita e tudo o que ganhava levavam a Finsa”, lembra Carlos Meneces. No final, a empresa faliu e com isso devorou centenas de milhões de pesos bolivianos, recursos retirados da economia dos camponeses do trópico.

22.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 95.

23.Idem, p. 95

24.Ibidem, p. 324.

Page 103: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

103

Terra e território

Os anos de erradicação compensada terminaram no segundo governo de Hugo Banzer Suárez, com a aplicação do seu Plano Dignidade em 1998. Segundo este plano, a erradicação voluntária teria que acabar até o início do ano de 200225. Quem não erradicasse neste período toda a extensão de seus cocais, os teria erradicados forçosamente depois. Após esta medida, muitos dos enfrentamentos na região se acirraram, pois a presença militar era mais forte e agressiva na tarefa de identificar e erradicar cocais.

Desenvolvimento alternativoParalelo à erradicação, o governo e os organismos internacionais propunham o desenvolvimento

alternativo de outros cultivos, numa política de substituição da folha da coca. Dos anos 1960 até meados dos anos 1980, houve um incentivo vago à produção de cítricos26 e com o Plano Trienal (1986) e a Lei 1008 (1988) estas políticas ganharam mais corpo.

A princípio elas eram combinadas à erradicação, com a distribuição de mudas e ferramentas para novos cultivos como forma de pagamento aos cocais erradicados. Os principais produtos promovidos pelo desenvolvimento alternativo eram então: palmito, banana e abacaxi. Aos poucos, diversas dificuldades, que não foram pensadas seriamente pelas instituições que promoveram estes cultivos, apareceram.

José Encinas, de Ivirgarzama, está atualmente em uma comissão produtiva da Central Carrasco na qual coordena os produtores de palmito. Conta que começou a plantar palmito em 1994, com a ajuda das políticas de desenvolvimento alternativo que lhe proveram de mudas e de formação técnica para o cultivo. No início, cada unidade (interior do tronco da palmeira) era comprada pelos órgãos de desenvolvimento alternativo por 1,50 peso boliviano. Depois, os preços foram baixando como conseqüência da política de retirada paulatina de subvenções até chegaram ao valor de 0,30 peso boliviano no final da década de 1990. Com este valor, já não compensavam os altos custos da produção e grande parte dos produtores desistiram do palmito.

A falta de mercados consumidores era o principal problema apresentando por estas políticas. Além do palmito, também o cultivo de abacaxi passou por esta situação. A produção repentina e massiva desta fruta no Chapare logo fez o mercado saturar e seu preço caiu absurdamente, mais uma vez fazendo com que os produtores voltassem a plantar coca. Um outro problema é que tanto o abacaxi quanto o palmito não são produtos que possuem um grande mercado consumidor interno, sendo a sua produção geralmente voltada para a exportação. Mas os mercados no exterior só são abertos quando uma série de normas de cultivo, como certificações de utilização de agrotóxicos, de acondicionamento e de transporte

25.Spedding aponta que, se-gundo este plano, durante o ano de 1998 a compensação voluntária iria diminuir gra-dualmente de 2,5 mil dólares, com valores que primeiro eram de 1,5 mil dólares, de-pois de 800 dólares e por fim chegariam a zero a partir de outubro deste ano. Depois, seria aplicada uma compensa-ção comunitária, que também tinha compensação por hec-tare erradicado, e o seu valor começava com 800 dólares, subia a 2 mil dólares no ano de 1999 e baixava durante os anos de 2000 e 2001 até 500 dólares. A partir de janeiro de 2002, não haveria mais com-pensação alguma e todos os co-cais que ainda existissem iriam ser erradicados. SPEDDING, Alison, op. cit., p. 47.

26.Grupo de Trabajo “En de-fensa de la hoja de coca” apud GARCIA Linera, Álvaro (co-ord.) et al., op. cit., p. 387.

Page 104: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

104

Terra e território

Page 105: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

105

Terra e território

são cumpridas, imposições com custos muitas vezes inviáveis para o pequeno produtor.A frustração com relação à falta de mercados sempre foi muito grande. Em 2002, por exemplo,

centenas de produtores “alternativos” de abacaxi, leite e palmito do Chapare foram até a cidade de Cochabamba para deixar seus produtos na porta da agência estatal responsável pelo desenvolvimento alternativo na região, em protesto pela falta de mercados prometidos pelo governo27.

Um outro problema é que a maioria destes cultivos, em especial a banana, requer uma quantidade de terras bastante extensa para ser rentável. Ou seja, os camponeses mais pobres da região que possuíam lotes de cinco ou menos hectares já não tinham também a possibilidade de cultivar estes produtos.

Além disso, todos estes cultivos requerem muito mais investimentos que a coca. José Encinas conta que, para plantar um hectare de palmito se necessita ao redor de 1,5 mil dólares e poucos agricultores têm condições começarem esta produção sozinhos, sem ajuda dos organismos de financiamento. Normalmente, estes cultivos necessitam de mão-de-obra especializada, ou seja, já não se pode contar com os membros da família.

Todas estas dificuldades fizeram com que os produtos alternativos tivessem poucos êxitos nestes anos de sua aplicação. Fernando Salazar aponta que, citando dados Concade28, somente 6,2% das famílias camponesas que moram no Chapare hoje são exitosas com cultivos alternativos. Além disso, há cerca de 46,8% das famílias da região que desenvolvem produtos alternativos, mas o fazem paralelamente aos cultivos da folha de coca e não são consideradas “exitosas”. Isso é explicado pelo simples fato de que é a coca a que garante o sustento da família enquanto o cultivo alternativo ainda não é rentável ou em anos de quedas bruscas de preços. “Foi a coca que gerou o desenvolvimento alternativo definitivo”, aponta Salazar. O restante das famílias, 47%, vive com os recursos obtidos com os cultivos de coca e, além deles, possuem cultivos tradicionais para consumo próprio. No geral estes são os camponeses mais pobres, com pequenos lotes e sem condições de fazer quaisquer investimentos para cultivar outras coisas29.

José Encinas crê, contudo, que se há empenho do Estado e dos organismos internacionais, é possível desenvolver seriamente outros cultivos no Chapare, pois há vontade política dos produtores de coca em diminuir e racionalizar a sua produção. O principal problema que aponta é que nunca houve apoio real para isso. Do dinheiro que veio para apoiar o desenvolvimento alternativo durante os anos 1980 e 1990, a grande maioria ficou em salários de técnicos e obras super faturadas30: “Era um negócio dos anteriores governos neoliberais feito em nome da gente. Mas o dinheiro era gasto por eles, farreavam. De todo o dinheiro somente 10% ou 20% chegava ao agricultor”.

27.SPEDDING, Alison, op. cit., p. 41.

28.O Counter Narcotics Con-solidation of Alternative De-velopment Efforts (Concade) foi um projeto elaborado pela cooperação norte-americana através da AID-Usaid. Ele du-rou de 1998 até 2005.

29.Os números apresentados estão em: SALAZAR, Fernan-do. De la coca al poder. Políti-cas públicas de sustitución de la economía de la coca y po-breza en Bolivia, 1975-2004, p. 215. Consejo Latinoame-ricano de Ciencias Sociales. Cochabamba, 2007. Trabalho feito através do Programa Clacso-Crop.

Page 106: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

106

Terra e território

O desenvolvimento alternativo aplicado durante estes quase vinte anos de política de “Guerra con-tra as drogas” é visto pelos camponeses locais como uma falácia. O dinheiro, que veio fácil através das compensações paternalistas, foi gasto sem estimular o desenvolvimento local. Os produtos de substituição eram cultivados somente se o camponês tivesse um lote grande suficiente e dinheiro para investir, além de serem voltados para o mercado externo, cheio de dificuldades para a inserção do pequeno produtor. As obras criadas eram elefantes brancos, por onde escorria todo o dinheiro que teria que desenvolver a região. Não houve tentativa real de desenvolvimento integral camponês, com preocupação com o seu bem-estar e sustento da sua família.

No geral, o balanço é de que estas políticas foram e ainda são implementadas sem tomar em conta a realidade do produtor camponês, as suas práticas cotidianas, a forma como organiza seu trabalho e a sua vida, impondo um modelo de desenvolvimento não aplicável a grande maioria destes trabalhadores. Fernando Salazar resume o desenvolvimento alternativo proposto durante este tempo em “compensações e muita propaganda”.

30.Feliciano Mamani citou caso escolas que foram feitas pela Usaid a 120 mil dólares, e que, ao serem copiadas pelas prefeituras locais, foram feitas a um terço do preço.

Page 107: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

107

Terra e território

“Nos anos 80 começou. Aí começaram a militarizar a zona. E quando um exército entra em um lugar, não entra, pois, com flores, né? Entra matando, disparando, chutando, batendo, assassinando”. Com a voz se exaltando a cada verbo enumerado, José Encinas se lembra como foram estas quase duas décadas seguidas de repressão. Como muitos cocaleiros, não pode citar com exatidão as datas, os episódios e as reivindicações específicas. Lembra dos abusos cometidos sem trégua, da truculência com a qual eram tratados, e de uma noite de tortura da qual obviamente não gosta de falar. Mas sabe que tudo começou a partir da criminalização do produtor cocaleiro do Chapare.

Pouco depois da aprovação do Plano Trienal – e recém presença das forças armadas na região – houve uma série de mobilizações pedindo participação na formulação das políticas públicas acerca da coca, pois já estava sendo formulada a Lei 1008. Com esta reivindicação, em maio de 1987, os cocaleiros fecharam a estrada que liga Santa Cruz a Cochabamba, e que passa pelo meio do Trópico. O desbaratamento desta mobilização pela polícia e pelos militares foi feito a custa de 8 mortos e mais de 500 presos. Este foi o estopim para outras mobilizações, que protestavam contra as mortes.

Estas mobilizações, no geral, eram rechaçadas pelo governo com a desculpa de que se tratava de uma “contra-ofensiva do narcotráfico”, o que nos próximos anos se tornaria um padrão de respostas oficiais acerca das reivindicações chaparenhas.

Em junho de 1987, os camponeses começaram a fazer novas mobilizações, reclamando da utilização de herbicidas por parte das forças de erradicação na região, política anunciada pelo governo americano dias antes, mas negada pelo boliviano. Em Villa Tunari, numa tentativa de negociar com as autoridades um esclarecimento sobre se havia ou não uso de herbicidas para erradicar cocais, os militares atiraram contra a uma multidão de manifestantes, matando uma pessoa a princípio. Depois, quando a população indignada ocupou o acampamento militar, novamente os militares voltaram a atirar na

A RESISTÊNCIA COCALEIRA

Page 108: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

108

Terra e território

multidão, causando a morte de mais duas pessoas.Quando a manifestação já estava desbaratada, as tropas continuaram com o clima de terror na

cidade, espalhando gases pelo mercado, vizinhanças, perseguindo dirigentes. Isso se alastrou nos seguintes dias para as outras cidades do trópico, onde as tropas atuavam sempre que havia concentrações de pessoas para debater ou protestar contra a repressão, dispersando os manifestantes com balas, gases e golpes. Nas operações, efetivadas pela Umopar (Unidade Móvel para Patrulha Rural) - criada com a militarização da região a partir de 1986 - eram vistos soldados norte-americanos participando e orientando as ações militares. Na conta deles foi colocado o saldo final de 16 mortos destes conflitos31.

Opção ZeroEm 1993, faz uma visita à Bolívia, o diretor da ONCDP (Office of National Drug Control

Policy, uma repartição de políticas de controle de drogas dos EUA), também chamado de czar antidrogas, Lee Brown. Durante seu encontro com o então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, Lee Brown pressionou o presidente boliviano por uma aplicação de uma política de tolerância zero com a coca “excedentária”, chamada Opção Zero. Na época, sua declaração de que a guerra deveria se voltar “contra as colméias e não contra as abelhas”, deixava explícito aos produtores de coca o recado de que o foco continuaria sendo eles e não os grandes e poderosos narcotraficantes.

A política Opção Zero foi prontamente implementada pelo então primeiro governo de Sánchez de Lozada e, como sua conseqüência, mais massacres e ataques aos direitos humanos apareceram no Chapare. As tentativas de negociação dos produtores de coca foram em vão, apesar das diversas marchas e manifestações ocorridas no período.

Em 1994, os cocaleiros organizaram uma grande marcha “Pela vida, pela coca e por soberania nacional”, que pedia a retirada de efetivos do DEA (Drug Enforcement Agency) americano e de forças militares e policiais do Chapare, além do cumprimento de convênios anteriores ignorados pelo governo. Em diversos momentos, o governo tentou desbaratar a marcha, prendendo os seus manifestantes, acusando-os de narcotraficantes. Contudo, a marcha chegou a La Paz em setembro deste mesmo ano com cerca de 1500 manifestantes. Conseguiram firmar um acordo com o governo, que incluía, dentre muitos outros itens, a modificação da Lei 1008 e uma campanha internacional pela despenalização da folha de coca32.

31.Todo este processo de luta é bastante detalhado em GAR-CIA Linera, Álvaro (coord.), et al., op. cit., p. 395-399.

32.PINTO Ocampo, Maria Teresa. “Entre la represión y la concertación: los cocaleros en el Chapare y en el Putu-mayo”, p. 12-13. Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. 2004.

Page 109: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

109

Terra e território

Cocaleiras e a opinião públicaMas foi em 1995, com a marcha das mulheres cocaleiras “Pela vida e soberania nacional”, que

o movimento cocaleiro conseguiu tocar o país. A reivindicação era principalmente a defesa dos direitos humanos, tanto com relação à atuação da Umopar na erradicação de cocais, quanto à repressão feita às lideranças, em especial depois da marcha de 1994, e violações de direitos humanos de forma geral. As mulheres relatavam casos de abusos sexuais e violência contra crianças e adolescentes, saqueio de casas e presos políticos33.

“Quem são estes Umopares que não têm controle? Eles entram em nossas casas quando querem. Entram em nossos cocais e à força os erradicam. Eles tiram o nosso dinheiro. Quem vai devolver? Parecem padrastos, porque batem em nossos filhos, amarram as nossas mãos, põem panos em nossas bocas para que não se escute o abuso”, relatava a marchista Apolônia Aduviri34.

A marcha, pacífica e formada por cerca de 150 mulheres, acompanhadas de seus filhos e alguns homens, saiu de Cochabamba no dia 19 de dezembro de 1995 e logo no seu segundo dia sofreu uma tentativa de dispersão da polícia. Com violência, conseguiram arrastar a maioria das marchistas para dentro de um ônibus que as levou de volta ao Chapare. Lá, ainda presas no quartel da Umopar em Chimoré, foram obrigadas a assinar documentos se comprometendo a não participar de nenhum movimento, inclusive da marcha. Contudo, ao serem liberadas, as mulheres novamente começaram a pensar em estratégias para voltar a se reunir com as suas companheiras que conseguiram fugir da polícia e davam continuidade à marcha35.

O Ministro de Governo de então, Carlos Sanchez Berzain, explicou a ação dizendo que as marchantes foram “convidadas” a entrar nos ônibus e voltar para o trópico. Contudo, a truculência da ação logo se explicitou: “Estas senhoras não têm o direito de atentar contra a segurança e a saúde das crianças que estavam carregando, e tampouco têm o direito de fazer apologia de defesa a um material como a folha de coca excedentária, matéria prima do narcotráfico. Por isso a marcha foi suspensa”, justificou ele na época. Logo, centenas de instituições sociais e autoridades passaram a declarar publicamente que quem “não tinha direito” era o governo de suspender a marcha e reprimir a manifestação pública, democrática e pacífica das cocaleiras36.

A repressão do governo continuou, sempre com a desculpa de era uma atividade ligada ao narcotráfico. Contudo, à medida que a marcha de aproximava de La Paz, por caminhos escondidos para fugir da polícia, as cocaleiras ganhavam a simpatia da opinião pública e dos camponeses das regiões pelas

33.AGREDA R., Evelin; RODRÍGUEZ O., Norma; CONTRERAS B., Alex. Mu-jeres cocaleras. Marchando por una vida sin violencia, p. 149. Comité Coordinador de las Cinco Federaciones Del Trópico de Cochabamba. Co-chabamba, 1996.

34.Idem, p. 149. Tradução da autora.

35.Ibidem, p. 63-66.

36.Ibidem, p. 64.

Page 110: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

110

Terra e território

quais passavam. A perseguição da polícia, o grande esforço para superar o desgaste físico, o pedido por defesa de direitos humanos básicos, foram todos elementos que ajudaram as cocaleiras nesta batalha ideológica.

A marcha chegou em La Paz no dia 17 de janeiro de 1996, com cerca de quinhentas mulheres. Somaram-se durante o caminho, várias mulheres cocaleiras dos Yungas de La Paz, representantes de outras entidades solidárias e reforços do próprio Chapare. Em La Paz, fizeram uma reunião com as esposas do presidente e do vice-presidente, explicitando todos os abusos que sofriam e a sua pauta de reivindicação. As reuniões não foram muito frutíferas, mas após uma greve de fome ainda sustentada pelas marchistas, conseguiram um acordo com o governo.

O acordo, que garantia a não aplicação futura da erradicação forçosa e cumprimento dos direitos humanos37, foi absolutamente desrespeitado nos meses e anos seguintes. Contudo, a marcha conseguiu um grande avanço para o movimento cocaleiro: publicizar os abusos sofridos e convencer a opinião pública de que os camponeses do Chapare não eram narcotraficantes, versão sempre sustentada pelo governo boliviano.

Silvia Lazarte, hoje importante figura política do MAS-IPSP pois foi presidente da Assembléia Constituinte, era na época dirigente das mulheres cocaleiras. “Diziam ‘narco-cocaleiras’ e tratavam o companheiro Evo, quando era dirigente, de ‘narco-dirigente’, de tudo nos tratavam. E chegamos com os nossos pés em La Paz, e lhes dissemos ‘Agora aqui chegamos. Se nos tratam de narcotraficantes, agora nos leve todos à prisão. Se somos de fato isso, devem levar a gente’. Mas somente maltratavam e perseguiam a gente. Já não tínhamos liberdade de viver. Por isso, mais que tudo, as mulheres se levantaram. Fizemos isso com clareza”, lembra ela.

Coca Zero e erradicação forçosaEm 1997 assumiu a presidência o ex-ditador Hugo Banzer Suárez. Apesar do seu governo nos

anos 1970 ter tido diversos laços com o narcotráfico, ele agora era encarado como um grande aliado pelo governo americano. Logo no início do seu mandato anuncia um plano de erradicação completa da coca excedentária, o Plano Dignidade, cuja meta era atingir de “coca zero” no Chapare. A política consistia em acabar paulatinamente com a erradicação compensada e substituí-la pela erradicação forçosa, política que pela primeira vez era assumida abertamente pelo governo.

Para sustentar a erradicação forçosa, principal pilar da política “coca zero”, o governo instituiu

37.Ibidem, p. 189.

38.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 402.

Page 111: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

111

Terra e território

uma nova força repressora, a Força Tarefa Conjunta (FTC), que juntava efetivos militares com policiais. A FTC cumpria o mesmo papel que a Umopar, porém com ainda mais violência e abusos38.

Contra a ofensiva do governo, os produtores de coca resgataram os comitês de autodefesa, que haviam sido utilizados no início dos anos 1990. Estes comitês, formados pelos próprios camponeses, tinham como função vigiar e esconder os caminhos que levavam aos cocais, impedindo a entrada da FTC nestes. Obviamente, estes comitês muitas vezes se enfrentavam com as forças de erradicação, causando mais feridos e presos, mas de fato conseguiram retardar ou mesmo impedir a erradicação em muitas zonas39.

No final de 2000, o presidente Banzer se reuniu com autoridades americanas em um evento público no quartel de Chimoré para apresentar os resultados exitosos de seu governo, 43 mil hectares de coca erradicados. José Encinas lembra que na ocasião houve um ato no qual os cocaleiros espalharam folhas de coca na estrada em frente ao quartel, mostrando aos americanos que a coca não estava e nem iria estar erradicada.

No final dos anos 1990 e início dos 2000, foram intensas as marchas e os bloqueios para pro-testar contra a situação no Chapare e tentar alguma negociação com o governo. Mesmo coordenadas com as demais mobilizações que sacudiam o país neste período – Guerra da Água, Guerra do Gás, etc. – o governo não cedia na política de erradicação forçada.

Pelo contrário, em novembro de 2001, poucos meses após ter assumido a presidência40, Jorge Quiroga publicou o decreto 26415, que proíbia a secagem, transporte e comercialização da folha de coca do Chapare. Este decreto foi efetivado em 2002, com o fechamento de vários mercados de coca, como o de Sacaba, principal centro de comercialização da coca chaparenha41.

Guerra pela CocaA resposta que os camponeses deram a este decreto ficou conhecida como Guerra pela Coca. As

mobilizações incluíram a ocupação da sede local da Digeco (Direção Geral da Coca), marchas, bloqueios e protestos tanto na região do Chapare quanto na cidade de Cochabamba, reunindo também estudantes e outros setores populares42.

Um mês após o início das manifestações e depois de mais de dez mortos em conflitos, os coca-leiros conseguiram finalmente um acordo com o governo. O acordo anulava o decreto 26415, pelo menos por um período de três meses, garantia indenizações por feridos e mortos e colocava em liberdade todos

39.Idem, p. 399-400.

40.Hugo Banzer Suárez se afastou por problemas de saú-de em agosto de 2001, entran-do em seu lugar o então vice-presidente Jorge Quiroga.

41.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 410.

42.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 410-411.

Page 112: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

112

Terra e território

os detidos.Era o início do recuo governamental nas políticas acerca da coca, demonstrando a fragilidade

e a crise pela qual passava o Estado boliviano nestes primeiros anos de 2000. O recuo não era somente com relação aos cocaleiros, mas também na aplicação das políticas de privatização de recursos naturais, como a água e o gás, e acontecia graças a um fenômeno de intensa organização popular em diversas regiões do país. Já não era mais sustentável o cumprimento das recomendações econômicas e políticas norte-americanas.

Page 113: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

113

Terra e território

Viva a coca! Morte aos yankis!A palavra de ordem acima, em quíchua “Kawsachun coca! Wañuchun yankis!”, é um resumo

das muitas lutas e mobilizações dos cocaleiros desde o final dos anos 1980. Identificam nela o seu principal elemento de união e sobrevivência, a coca, e também o seu principal inimigo, o governo norte-americano.

Desde os primeiros enfrentamentos com a força militar que foi imposta a partir do Plano Trie-nal de 1986, o inimigo era identificado como aplicador e propositor das políticas antidrogas no Chapare. As evidências eram muitas: agentes do DEA nas operações militares, intenso investimento americano nas forças de repressão bolivianas e incontáveis declarações públicas de autoridades americanas que claramen-te excediam as funções diplomáticas.

Nas eleições presidenciais de 2002, o então embaixador americano Manuel Rocha ameaçou o eleitorado boliviano de sanções do governo estadunidense caso elegesse Evo Morales: “uma Bolívia dirigi-da por gente que se beneficiou do narcotráfico não pode esperar que os mercados dos Estados Unidos se mantenham abertos para as exportações tradicionais como os têxteis e o gás natural”43.

Além disso, as constantes alusões de políticos e autoridades norte-americanas à erradicação da coca na Bolívia através de ataques militares e fumigações, sem a mínima demonstração de preocupação com os camponeses bolivianos, colaboraram em muito para o fortalecimento da reivindicação de sobera-nia nacional. Evelin Agreda, Norma Rodriguez e Alex Contreras relatam em seu livro sobre a marcha das mulheres cocaleiras em 1995, algumas destas declarações. Uma delas, feita em março de 1995 pelo parla-mentar norte-americano Dan Burton, é notável tanto pela sua agressividade quanto pela sua ignorância: “Se deve invadir a Bolívia desde as suas costas até o altiplano para bombardear os seus cocais”44.

Mesmo quando já havia, após as intensas manifestações cocaleiras, um relativo consenso da

O INIMIGO MORA AO NORTE

43.Los Tiempos, 27/06/2002. Tradução da autora.

44.AGREDA R., Evelin et al., op. cit., p. 8. Tradução da autora.

Page 114: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

114

Terra e território

opinião pública boliviana de que a folha de coca deve ser tratada de forma diferente que a cocaína, as autoridades americanas seguiam afirmando o contrário, contribuindo grandemente para a sua perda de respeitabilidade. Da mesma maneira, as autoridades do governo, em especial as ligadas ao exército e à de-fesa nacional, repetiam incansavelmente o discurso de que os cocaleiros defendiam o narcotráfico sempre que havia agressões aos seus direitos humanos.

O aberto sentimento antiamericano é um fenômeno comum na América Latina. Contudo, nos países que viveram a política de Guerra contra as Drogas, a relação com os EUA é um tanto mais amarga. Esta política, implementada nas últimas décadas do século XX, teve como foco preferencial a região andina. Ali, os tradicionais produtores da folha de coca, camponeses indígenas do altiplano, logo se incorporaram durante a década de 1970 na base da crescente cadeia de produção da cocaína.

A inserção neste mercado, segundo Fernando Salazar, se dá pela existência de dois fatores, de-terminantes para qualquer potencial país produtor de matérias-primas para drogas: abundância de terras e pobreza. Além disso, pelo fato da folha de coca ser um produto natural há anos cultivado e consumido pelos povos andinos, não há nenhuma restrição moral por parte dos camponeses à sua produção, ao con-trário do que acontece com as plantas de maconha, por exemplo. Nestas regiões, coca não é sinônimo de cocaína e nem de vício, como acontece no resto do mundo.

O desinteresse dos seguidos governos estadunidenses em entender a realidade destes povos andinos, a sua cultura, as suas necessidades materiais negadas por uma estrutura econômica global, nos faz duvidar que a Guerra contra as Drogas tenha uma intenção genuína de resolução do problema da de-pendência destas substâncias. Diversos estudos, como veremos a seguir, demonstram que outras políticas que não a interferência direta nos países produtores da folha de coca, da maconha ou da papoula, são muito mais eficazes.

Nos EUA: “war on drugs!”As políticas antidrogas iniciaram com mais força nos EUA a partir da década de 1970, com o

crescente do consumo de drogas entre jovens. A Guerra contra as Drogas, anunciada pelo presidente Ni-xon, a princípio teve como enfoque inicial o tratamento da dependência em substâncias como cocaína ou heroína45. Aos poucos, coincidindo com o fim da Guerra Fria, a batalha contra as drogas passou a ser uma política internacional, com um alto grau de interferência nos países considerados fontes de droga, além de ter um grande enfoque na criminalização e penalização de usuários e comerciantes destas substâncias.

45.Estas informações foram retiradas do documento “The Drug War in the Andes”, um programa de um curso para ser ministrado nas escolas ame-ricanas esclarecendo os efeitos da Guerra contra as Drogas na região andina. FARTHING, Linda. “The Drug War in the Andes”. Disponível em: http://ain-bolivia.org/drug-warCompleteLF.doc

Page 115: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

115

Terra e território

Coincidentemente, à medida em que os anos avançavam, a dependência de drogas se concentrava cada vez mais nas camadas mais pobres da população.

O principal efeito da política de reforço penal em território americano foi um aumento subs-tancial de presidiários, levando o país a ter uma das taxas de encarceramento mais altas do mundo. Entre 1973 a 2004, a população carcerária do estado de Nova Iorque cresceu mais de seis vezes, sendo que este aumento se deve majoritariamente a prisões relativas às leis antidrogas. Além disso, cerca de 70% dos presos são viciados em substâncias ilícitas ou álcool46. Obviamente, o enfoque do problema das drogas nos EUA como um problema de segurança pública levou a intensa penalização das camadas mais pobres da população. Estas sofrem duplamente: por serem as mais alheias às políticas públicas de prevenção e tratamento de drogas e, portanto, as mais suscetíveis à dependência destas substâncias; e por também serem criminalizadas pelas conseqüências deste problema.

Segundo dados oficiais do governo americano de 2003, somente 36% do orçamento para con-trole de drogas é utilizado em tratamento e prevenção, cerca de 9% é utilizado para pesquisas e 55%, maior parte dos recursos, é utilizado para o aumento de repressão interna, interdição das rotas de comér-cio internacionais e erradicação de matérias primas em países-fonte, nesta ordem de importância47. Estes números indicam que a questão das drogas é entendida prioritariamente como uma atividade criminosa, e não como uma dependência química e um problema de saúde. Esta mentalidade é reforçada pelo lugar comum de que o tratamento a dependentes não é efetivo, pois, após um alto investimento do Estado na recuperação destes, a grande maioria voltaria ao final a consumir drogas.

Há estudos, contudo, que apontam que o tratamento é a política mais efetiva na diminuição real do consumo de drogas, em comparação com as políticas de controle de oferta. Um estudo do RAND, renomado instituto de pesquisa norte-americano, sobre efetividade de políticas públicas de combate ao consumo de cocaína aponta números contundentes. Segundo ele, o tratamento é sete vezes mais efetivo do que o aumento do controle penal (domestic enforcement), 11 vezes mais efetivo que a interdição da entrada das drogas nas fronteiras e 23 vezes mais efetivo que a ajuda a outros governos a erradicarem a produção local de substâncias ilícitas48.

De forma muito simples, os autores do estudo apontam que as políticas mais eficientes para lidar com o consumo de drogas e os seus efeitos negativos é o controle da demanda e não da oferta. O controle da oferta causa aumento de preços, o que eventualmente diminui o consumo, mas logo que o mercado mundial se restabelece, os preços se normalizam e o consumo idem. Já as políticas de tratamen-

46.FARTHING, Linda, op. cit.

47.Dados do ONDCP (Office of National Drug Control Pol-icy). In: FARTHING, Linda, op. cit.

48.Para chegar a tal conclu-são, foi feito um estudo de quanto investimento a mais seria necessário para diminuir o consumo de cocaína em 1% no decorrer de um ano. Chegaram aos seguintes nú-meros: 34 milhões de dólares em tratamento, 250 milhões de dólares em reforço penal (domestic law enforcement), 780 milhões de dólares na atu-ação em países fonte de ma-téria prima para drogas. Um resumo deste estudo pode ser encontrado em: http://rand.org/publications/randreview/issues/RRR.spring95.crime/treatment.html

Page 116: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

116

Terra e território

to, mesmo que não sejam efetivas individualmente (no sentido de que o usuário nunca mais irá consumir drogas), têm um impacto considerável no consumo geral. Esta pesquisa foi feita no início da década de 1990, há quase vinte anos. Mesmo assim, desta época até hoje, foram gastos pelo governo americano mais de US$ 25 bilhões em políticas de interdição e erradicação de drogas em países produtores49.

Estratégia de domínioA Guerra contra as Drogas, portanto, possui comprovada ineficácia no que diz respeito à sua

meta final, que é diminuir o consumo de drogas, além de aglutinar intensos sentimentos antiamericanos. Estes fatos fazem muito palpável a tese de renomados intelectuais, como Noam Chomsky, que vêem nesta política estadunidense uma estratégia de dominação política e econômica da região andina. Com ela, vieram conjugados os ajustes estruturais da década de 1980, que implementaram o modelo neoliberal em quase todo o mundo em desenvolvimento, as propostas de tratados de livre-comércio, as privatizações de empresas nacionais, etc. Como um ciclo, tais políticas causaram mais pobreza no campo, mais dependên-cia dos camponeses dos produtos ligados ao narcotráfico, mais intervenção militar, e mais atrelamento destes governos ao governo norte-americano.

Uma das políticas de controle econômico que era utilizada em nome das lutas antidrogas era o certificado de drogas (drug certification) emitido pelo governo dos EUA. Através dele, o governo esta-dunidense estabelecia unilateralmente metas para que os países produtores de drogas cumprissem anu-almente no combate ao narcotráfico. Caso não cumprissem, eram previstas muitas sanções econômicas americanas, como corte de ajuda financeira ou voto negativo no Fundo Monetário Internacional (FMI) ou Banco Mundial (BM) para eventuais empréstimos pedidos por estes países. Tais “sanções” não pos-suíam nenhuma relação com o combate às drogas e tinham como única função punir países que even-tualmente não estariam colaborando com o problema americano. Esta política foi fortemente criticada inclusive por especialistas americanos em políticas internacionais, pois contrariava a lógica de cooperação internacional requerida para enfrentar um problema como o narcotráfico, substituindo-a por uma lógica de chantagem unilateral50. O certificado de drogas ocorreu até 2002, quando as pressões dos países afeta-dos tiveram efeito e o governo americano optou por políticas mais sutis de controle.

Linda Farthing e George Ann Potter apontam um outro problema das políticas americanas: o total descumprimento da Leahy Law, que obriga o governo norte-americano a retirar qualquer apoio a forças armadas que desrespeitem os direitos humanos51. Os constantes abusos da FTC boliviana, do

49.FARTHING, Linda, op. cit.

50.SPENCER, Bill; AMA-TANGELO, Gina. “Drug Certification”. In: Foreign Policy In Focus, Vol. 6, No. 5, março de 2001. Disponível em: http://www.foreignpolicy-infocus.org/

51.POTTER, George Ann; FARTHING, Linda. “Bolivia: Eradication and Backlash”. Junho, 2001. Disponível em: http://www.fpif.org/briefs/vol5/v5n38bolivia_body.html

Page 117: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

117

Terra e território

Page 118: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

118

Terra e território

exército colombiano, da ação militar dos EUA na ocupação do Iraque - e mais um sem número de exemplos - nos indicam que provavelmente esta foi uma das leis mais ignoradas da história americana, pois apresenta franca oposição às políticas internacionais do país. Noam Chomsky, em uma entrevista a Week Online em 2002, identifica um ponto central com relação a isso: “Já faz um bom tempo se estabeleceu uma relação de muita proximidade entre violações de direitos humanos e ajuda e treinamento militar dos EUA. Não é que os EUA gostem de torturar pessoas, é que simplesmente não se importam. Para o governo estadunidense, violações de direitos humanos são uma conseqüência secundária”52.

Não se pode deixar de mencionar a conjugação da Guerra contra as Drogas com as políticas de ajustes estruturais, pelas quais passaram todo mundo em desenvolvimento a partir dos anos 1980. Estas políticas de aplicação de pacotes econômicos ortodoxos e diminuição da função do Estado no que diz respeito à garantia dos direitos sociais interromperam importantes processos de democratização pós-dita-duras militares, como no caso da Bolívia e do Equador. A agenda neoliberal se mantém até hoje, com a recente aplicação dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) – quase consolidados no Peru e na Colômbia53 -, promovendo muitos conflitos na região andina, em especial com o campesinato.

No Equador, por exemplo, precedeu a chegada de Rafael Correa no poder uma série de mobilizações indígenas intensas, que pediam um referendo para a aprovação do TLC e a caducidade do contrato com a petroleira Oxy. O TLC afetava substancialmente os produtores camponeses, ameaçados com os diversos produtos agroindustriais subvencionados pelo governo norte-americano. A petroleira Oxy possuía um contrato de exploração do petróleo que garantia meros 15% dos lucros aos cofres equatorianos. Apareciam então como principais reivindicações da região temas antineoliberais, de proteção dos usos, costumes e sobrevivência dos povos indígenas, andinos e camponeses, e também de recuperação dos recursos naturais54.

No Peru, igualmente, várias manifestações foram feitas em rechaço ao TLC com os EUA, em especial dos movimentos camponeses. Assim como no Equador, eram eles os mais afetados pelas políticas de abertura econômica. Contudo, a mobilização não ganhou a amplitude que ganhou no país vizinho e tampouco se refletiu no panorama eleitoral. Em 2006, ano das mobilizações, foi eleito o candidato de centro Alan Garcia, que não apresentava nenhuma resistência à aprovação do tratado55.

Como já vimos, estes temas de alguma forma já haviam aparecido na Bolívia, com a Guerra da Água e a Guerra do Gás. Contudo, neste país se somou a estas mobilizações o movimento cocaleiro, que atacava a outra política conjugada dos EUA na região andina: a Guerra contra as Drogas. A mistura ex-

52.Entrevista dada a Week On-line, em 08/02/2002, disponí-vel em: http://www.chomsky.info/interviews/20020208.htm. Tradução da autora.

53.No caso da Colômbia, o tema do TLC tem invadido as campanhas eleitorais nos EUA. Os pré-candidatos de-mocratas, Hillary Clinton e Barack Obama, já se manifes-taram contrários à aprovação do TLC por denúncias de violações dos direitos huma-nos por parte do governo co-lombiano.

54.Sobre as lutas contra o TLC no Equador consultei: MOREANO, Alejandro, “Ecuador en la Encrucijada”, e MALDONADO, Ana Maria L. “Movimiento indígena, lu-cha contra el TLC y racismo em Ecuador”. In: Revista del Observatorio Social de Amé-rica Latina. Ano VII No19 enero-abril 2006.

55.TLC dos EUA com o Peru já foi aprovado e assinado, mas ainda está em fase de imple-mentação.

Page 119: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

119

Terra e território

plosiva destes temas levou Evo Morales ao governo e plantou uma arraigada certeza na população de que os EUA são um inimigo, tanto por sua política econômica, quanto por sua política “social” de controle das drogas. A Colômbia, como sabemos, é um dos países onde esta política antidrogas se tornou mais notória. Não quero aqui me estender sobre as conseqüências específicas do Plano Colômbia e da atuação dos EUA no país. Para ter dimensão do seu fracasso, basta somente citar as acusações que pairam sobre o presidente Álvaro Uribe, grande aliado dos EUA, de envolvimento com grupos paramilitares; a recente invasão do território equatoriano pelo exército colombiano causando um imenso problema diplomático na região; e a não diminuição dos plantios de coca, apesar do intenso investimento americano em fumi-gações aéreas.

O fato da política antidrogas dos EUA não cumprir o fim a que se propõe e de desempenhar uma de política externa de intervenção na América Latina tem consequências desastrosas do ponto de vista social. São atacadas as partes mais empobrecidas envolvidas no ciclo de produção e consumo de substâncias ilícitas, criminalizadas fortemente dentro e especialmente fora dos EUA. Não é de se espantar que um dos repertórios mais fortes dos crescentes governos de esquerda e movimentos sociais andinos é o pedido de soberania nacional frente às imposições norte-americanas.

Page 120: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

120

Terra e território

Economia da cocaUS$ 290 milhões: é o valor bruto da produção de coca em 2004 segundo dados oficiais56. É com

esta quantidade de dinheiro que a folha coca contribui anualmente para a economia do país. Equivalente a isso, aponta Fernando Salazar, somente alcançaria a agroindústria de Santa Cruz, tão festejada pela sua importante contribuição ao desenvolvimento do país. A diferença, pontua Salazar, é que os seus rendimentos são divididos por algumas famílias, enquanto os rendimentos da coca são divididos por milhares de famílias cocaleiras57. Só no Chapare, responsável por cerca da metade da produção nacional58, são no mínimo 40 mil famílias. Este dinheiro, livre de taxações, rapidamente se espalha do pequeno produtor cocaleiro para todo território nacional, sendo um importante motor da economia boliviana.

A erradicação da folha de coca excedentária promovida pelos governos bolivianos a partir dos anos 1980 significava pelo menos o corte de metade desta produção, causando imensos danos a estas fa-mílias e à economia do país. É por isso que Salazar caracteriza a atuação destes governos como hipócrita: “Diziam ‘acabamos com a coca e salvamos o mundo’, mas o mundo não nos salva! Brasil não nos salva com o tema energético, por exemplo”. Ele afirma que sem uma iniciativa global séria de controle de dro-gas, a erradicação da coca na Bolívia seria presentear a outros países estes ingressos de milhões de dólares, pois se trata de uma questão de mercado internacional. Sobre os países receptores de drogas, como o Bra-sil, afirma: “Enquanto uma parte dos políticos ou de sua polícia esteja vinculada ao narcotráfico, esqueça. Não há luta que vai solucionar. Se não entra por Bolívia, vai entrar por outros lados”.

A chegada de um ex-cocaleiro ao Palácio Quemado mudou em muito as políticas governamen-tais acerca da produção da folha de coca. Com as convulsões sociais que precederam a caída de Carlos Mesa, os cocaleiros conseguiram fazer um acordo que permitia a produção de um cato59 de coca por fa-mília que não possuía cultivos de desenvolvimento alternativo, o que totalizava cerca de 3,5 mil hectares.

UM COCALEIRO NO PALÁCIO QUEMADO

56.DIRECO, op. cit.

57.É possível apontar tam-bém como diferença entre esta agroindústria e o cultivo de coca questões ambientais. Enquanto a coca requer pou-cos nutrientes, é cultivada em policulturas, em sistemas de rotação, etc., a agroindústria é baseada na monocultura da soja, do açúcar ou na pecuária extensiva, que acarretam inú-meros danos ambientais com agrotóxicos e esgotamento do solo.

58.Segundo a Direco, o Cha-pare é responsável por quase 28 mil toneladas métricas de um total de 59 mil de produ-ção nacional. DIRECO, op. cit., p.3.

59.1600 m2, cerca de um sexto de hectare, que possui 10.000 m2.

Page 121: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

121

Terra e território

Mas foi o governo de Evo Morales que de fato “pacificou” a região, sendo quase inexistentes os conflitos dos cocaleiros com os militares nestes seus dois primeiros anos de gestão.

A tática do governo é focar esforços militares na interdição e destruição de focos de produção de cocaína. Com relação aos produtores da folha de coca, ficou permitido um cato de coca por família, o que equivale a cerca de 7 mil hectares de coca legais no Chapare. A estratégia geral é a de promover cultivos alternativos em paralelo ao cultivo de coca racionalizado.

“Un catito, no más!”60

Para ter êxito na sua proposta, o governo aposta suas fichas no controle social feito pelos pró-prios sindicatos desta limitação da produção da folha de coca. Contudo, alguns camponeses, e inclusive Fernando Salazar, indicam que a partir do cato de coca, muitos cocaleiros passaram a produzir para além do permitido. Afiliar outros membros da família enquanto unidades familiares diferentes no sindicato passou a ser uma burla comum para possuir mais de um cato.

Mas todos concordam que é necessário racionalizar. “Os companheiros cocaleiros, ao racio-nalizar um cato de coca, ao diminuir a sua plantação de coca, estão fazendo um sacrifício. Isso para que o nosso governo, representante dos cocaleiros, não seja estigmatizado pelo narcotráfico. (...) Estamos colaborando, somos conscientes”, diz José Encinas. O problema é justamente este, o cato de coca hoje sig-nifica uma renda miserável para as famílias cocaleiras. Portanto, se não há um incentivo para a produção rentável de outros cultivos, os cocaleiros terão que exceder o limite das suas plantações.

“A coca é sempre mais rentável”, aponta Encinas. Mesmo que haja um esforço dos próprios camponeses para a produção de outros cultivos, se não houver uma política de desenvolvimento integral na região, eles vão continuar dependentes da economia da folha da coca. “O agricultor cocaleiro, ao ver que a sua coca foi reduzida, não tem recursos econômicos para se dedicar à produção em grande quanti-dade destes produtos. (...) Ao não ter estes recursos, não lhe sobra mais nada do que novamente se dedicar a plantar coca”.

Mas a própria coca pode ser este respaldo necessário para o agricultor, pelo menos é o que pontua David Llanos, professor de sociologia da Universidad Mayor de San Andrés. “Então, depois da erradicação forçosa, quando Evo Morales chegou à presidência, eu vi esta mentalidade de diversificar sua produção ao redor do plano cato de coca. ‘Tenho meu cato de coca, com que tenho certeza que terei algum recurso. Posso produzir palmito, vou me arriscar com este respaldo, e posso produzir um pouco de

60.Tradução livre: “Um cati-to, nada mais”. Catito é dimi-nutivo de cato.

Page 122: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

122

Terra e território

abacaxi, outros produtos alternativos’”.José Meneces, irmão de Carlos Meneces, é secretário executivo da Central Ivirgarzama, está

bastante preocupado com estas questões. Como o irmão, é da cidade de Cochabamba, não fala bem quíchua e teve que se acostumar a mascar coca em reuniões, “além do quíchua, é a coca que nos permite comunicar” diz ele. Conta que seguiu um árduo caminho para que seus companheiros aceitassem as suas idéias. Mas, em outubro do ano passado (2007), a Central Ivirgarzama conseguiu consolidar um conselho de desenvolvimento produtivo, uma espécie de braço econômico que tem responsáveis por cada tipo de cultivo existente na central: coca, abacaxi, palmito, madeiráveis, pimenta, etc.

A partir daí, diz José Meneces, vão sendo aplicadas propostas de desenvolvimento produtivo para cada cultivo. Um dos exemplos é a própria coca, que pode ser explorada de maneira mais rentável. “Queremos trabalhar os catos de coca em áreas comunais, que a maioria dos sindicatos possui (...). Depois, queremos fazer este cultivo de coca de maneira orgânica, com certificações (...). Por fim, pretendemos transformar a nossa produção mates de coca ou energizantes. Então, isso é o que estamos propondo concretamente pela Central, fazer uma indústria com a nossa coca orgânica”. Além dos maiores rendimentos que se poderia obter da coca desta forma, o dirigente aponta que assim seria possível mostrar à comunidade internacional que a coca boliviana vai para um mercado legal.

Ele conta que o elemento principal da proposta da sua central é a industrialização dos produtos da região, sempre tomando em conta os mercados consumidores. Para isso seriam necessárias duas coisas: intenso investimento internacional, a central calcula a necessidade de US$ 100 milhões anuais em um plano qüinqüenal para desenvolver a região industrialmente; e disciplina e vontade dos agricultores chaparenhos para de fato se incorporarem em um mercado internacional.

Mas David Llanos, apesar de reconhecer que estes planos poderiam funcionar, tem dúvidas acerca da industrialização da coca. Segundo ele, um dos maiores problemas dos produtos alternativos como o palmito é que a maior parte do dinheiro fica nas indústrias processadoras, o produtor camponês controlava somente a parte do cultivo. “Enquanto que com a coca, eles mais ou menos controlam desde a sua plantação, até o processamento e a venda. Está nas mãos do camponês, todo este processo”. O grande perigo, aponta ele, é que em um processo de industrialização da coca, a mesma situação que há com o palmito se repita: “será mais uma planta de processo de alimentos. Subirá em centavos a sua renda, não mais. A empresa também terá que ganhar, a cooperativa também terá que ganhar”.

Com relação à coca, ele acredita que seria mais interessante a proposta de melhorar a qualidade

Page 123: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

123

Terra e território

da folha para o consumo tradicional, como a produção de folhas orgânicas. É um problema comum, diz ele, a falta de mercado de forma geral, ou a dependência somente do mercado externo. “Por que o que acontece com o palmito? O problema dele é que a nível interno não se consome muito este produto, não está na dieta boliviana. Eu considero que qualquer produto para que tenha um arranque como produto, como empresa, é necessário que tenha minimamente um mercado interno e depois pensar em exporta-ção. Porque a exportação sempre tem coisas ligadas a questões políticas, de relações internacionais (...). Sempre está ligada com isso. Se não tem um mercado interno, é um pouco difícil que se sustente”. Em contrapartida, pontua ele, “a coca sempre teve desde séculos um mercado tradicional mais ou menos estável. (...) E, o consumo de coca continua sendo necessário. A coca tem o seu mercado estabelecido em populações rurais e centros mineiros. E hoje, há um crescimento nos centros urbanos, intelectuais, comerciantes”.

Ficam alguns questionamentos, contudo. Quais seriam as garantias que estas tentativas de desenvolvimento de cultivos alternativo da era Evo Morales não vão repetir os mesmos erros dos projetos anteriores? Ou seja, que não tenham uma lógica de produção externa à lógica camponesa? Sobre isso, David Llanos explica que o agricultor chaparenho não tem a mesma lógica do agricultor boliviano tradicional, apesar de sim centrar a sua economia na mão-de-obra familiar: “o camponês chaparenho vive de ganhos monetários, não é o camponês típico do Vale Alto [cochabambino], que pode diversificar a sua produção e pode assim ter uma boa parte da sua dieta diária [garantida com isso]. Enquanto no Chapare eles vivem mais do mercado, então necessitam destes recursos”. Isso explica a possibilidade de aplicação de cultivos voltados para o mercado, desde que sejam aplicáveis às suas condições materiais, ou seja, terrenos em pequenas extensões (de 5 a 10 hectares) e mão-de-obra familiar, e que os camponeses possuam o mínimo de segurança para desenvolvê-los, que neste caso poderia ser o cato de coca: “Eu considero que os produtores chaparenhos, se têm algo de respaldo, poderiam desenvolver qualquer outro produto. Obviamente em escalas mínimas, ou seja, com perdas, mas de todas as formas, lhes daria algo de recursos com o tempo. Não seria algo excludente. Evidentemente, é uma lógica distinta do que estão pensando os camponeses, não vão ter todo o controle sobre todo o movimento desta economia, mas lhes vai dar algo de ganho adicional”.

Segundo Feliciano Mamani, prefeito de Villa Tunari, a principal diferença dos projetos de desenvolvimento aplicados hoje e os que eram aplicados anteriormente é que agora todos eles são feitos em conjunto com as organizações representantes dos cocaleiros. “Agora ninguém pode entrar pela

Page 124: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

124

Terra e território

Page 125: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

125

Terra e território

janela, todos têm que entrar pela porta da frente”. Ele diz que os projetos financiados por organizações internacionais são hoje coordenados com as prefeituras, com as federações, com os comitês cívicos, etc. Antes, o dinheiro do desenvolvimento alternativo causava divisões entre as comunidades, fomentava entidades paralelas aos sindicatos. “Era gato e cachorro entre organizações, quem nos fazia brigar? O dinheiro do desenvolvimento alternativo (...). Agora temos uma política muito diferente (...). Estamos avançando no desenvolvimento alternativo”.

Dona IsabelaA poucos quilômetros da sede da prefeitura de Villa Tunari e de tantas conversas otimistas,

está a casa de Dona Isabela Rivera. Ela fica justo na beira da estrada e está com o pátio cheio de folhas de coca secando. Quase puro quíchua fala Dona Isabela e nossa comunicação é no começo mediada por um jovem peão que a ajuda de vez em quando.

Com 58 anos registrados na cédula de identidade, mas não guardados na memória, ela vive sozinha. Seu marido faleceu, seus filhos estão grandes. Às vezes vêm para ajudar, mas não muito. Para a sua plantação de coca, único cultivo que tem, precisa contratar estes peões, já que não dá conta do trabalho sozinha.

Conta que outubro é uma boa época para a coca, pois faz calor. No inverno, as folhas não crescem muito, “dá bichinhos” e tem que comprar veneno. Mas no verão a colheita é boa e a coca sai bonita. O sol também é bem vindo neste dia de secagem, pois se o tempo está fechado, a coca não seca bem, negreia e perde o sabor. A coca de Dona Isabela, que ocupa todo o pátio, vai dar menos de um pa-cote depois de seca. Esta medida equivale a 50 libras ou aproximadamente 19 kilos. Com a libra da coca valendo 12 pesos bolivianos, Dona Isabela com sorte vende a sua produção por 600 pesos bolivianos, algo em torno de 80 dólares.

A coca, explica, se colhe três, no máximo quatro vezes ao ano. Seu rendimento por colheita varia, um cato pode render de dois até seis pacotes, dependendo do tempo e da qualidade das terras. Supondo que renda quatro pacotes por colheita, um cato garantiria a uma unidade familiar 600 pesos bolivianos por mês, o que Dona Isabela vai receber com a coca do pátio. Ela diz que com isso não dá para viver: “Como vai dar? Em cada quatro meses colhe, e depois tem que comprar remédios para a folha e para as ervas, custa dinheiro. Não dá. Tudo está caro”.

Ela participou de marchas até La Paz. Delas, só lembra do frio e da presença de Evo. Confunde-

Page 126: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

126

Terra e território

se com as reivindicações e com os anos. Já quase indo embora, pergunto se posso tirar uma foto. Descon-fiada, diz que é velha, não fica bem. Fazemos um trato: se a foto sai ruim, apagamos. Apoiada na mesa, ao lado de um vaso de flores, Dona Isabela se vê bonita e sorri.

Page 127: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

127

Terra e território

A reunião ordinária da Central Chipiriri acontece a cada primeira terça-feira do mês. Em abril de 2008, estavam reunidas cerca de 70 pessoas. Eram representantes dos 11 sindicatos afiliados, da prefei-tura de Villa Tunari, do comitê cívico da região, do comitê de vigilância da prefeitura, das comerciantes de coca, da rádio comunitária e da própria diretoria da central e da diretoria da central de mulheres. Havia sanções para os que faltassem à reunião. Cada dirigente faltante ou que não trouxera os delegados de base estipulados, teria que pagar 50 pesos bolivianos.

Assim são as coisas no Chapare, a vida sindical camponesa é tida como muito importante, fonte de sobrevivência durante tantos anos de luta. O sistema de multas e obrigatoriedade de participação em reuniões é comum em quase todos os movimentos camponeses bolivianos e também em muitos dos mo-vimentos populares, mas ele por si só não garante a extensa participação em reuniões. Apesar de muitos dizerem que participam das atividades comunais (reuniões, bloqueios, serviços comunais, etc.) por causa das sanções, as multas pagas raramente excedem o dinheiro perdido com os dias parados. É, portanto, muito mais um motivo moral que econômico.

O ampliado começou às nove horas da manhã, no interior do mercado de coca do povoado de Chipiriri. A mesa era conduzida por Homar Claros, secretário executivo da central. Ele apresenta os mais de dez pontos de pauta para serem avaliados pelos demais. Eles passavam por informes da prefeitura acerca de obras e projetos; debates sobre os problemas políticos do país, como a nova constituição e os conflitos com a agroindústria; precauções acerca de roubos acontecidos em um dos sindicatos; ou avisos duros sobre o controle interno do cato de coca.

As discussões eram intensas, algumas vezes em tom de cobrança e acusações, outras vezes em tom de conciliação. “A palavra, companheiro”, assim se iniciavam quase todas as falas que ocuparam o dia inteiro de debates, resquícios do sindicalismo operário. Contudo, a continuação geralmente vinha em um

MOVIMENTO SOCIAL E POLÍTICO NO CHAPARE

Page 128: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

128

Terra e território

Page 129: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

129

Terra e território

quíchua pontuado com uma ou outra expressão em castelhano. quechuañol, assim o descrevem. Apesar da população do Chapare ser migrante de distintas partes do país, o quíchua é tido como um idioma geral.

Ali ninguém fazia falas de defesa contundentes do governo, nem havia divisões ou brigas inter-nas por haver mais ou menos acordo político com as linhas nacionais do MAS, diferente de ocorria com outros movimentos. Não houve nenhuma preocupação em afirmar a autonomia perante o governo, pois havia entre eles um imenso consenso de que este é o seu governo, Evo é o seu presidente, e o MAS é o seu instrumento político. Sendo isso um a priori, as discussões políticas se focam mais em como ajudar o governo, no geral utilizando a imensa força de mobilização característica do movimento cocaleiro em marchas, atos públicos ou denúncias contra a “oligarquia da meia lua”.

A discussão se estendeu até tarde da noite, com somente uma pausa para almoçar às duas horas da tarde. Foram mais de doze horas de uma reunião que não se esvaziou em nenhum momento. Era um dia de semana e, com exceção dos representantes da prefeitura, ninguém recebia salários ou liberações para estar ali. A imensa maioria eram camponeses “de base” (com cargos em sindicatos ou sem nenhum cargo) e discutiam cada uma das pautas, da mais cotidiana até mais política conjuntural.

Mulheres cocaleirasDas mais de 70 pessoas presentes na reunião da Central Chipiriri, cerca de 15 eram mulheres,

e algo como cinco pediram a palavra. Maria Eugênia se destacava entre elas. Jovem, falava sem hesitar, em voz alta e clara. Dava informes sobre a situação política do país, sobre atividades congressuais nacionais e seminários de formação. Na hora do almoço, coordenou a atuação das mulheres. Não usava pollera nem tranças, e tinha o cabelo preso em um rabo de cavalo. O chapéu, contudo, guardava na parte de cima as usuais flores de plástico da cholita cochabambina.

Ela ocupa atualmente o cargo de secretária de atas da Federação de Mulheres do Trópico de Cochabamba, entidade que existe subordinada à Federação do Trópico, e que coordena as atividades políticas femininas. Dos informes que deu, um deles era acerca do congresso da sua federação. Participam deste congresso quatro representantes por sindicato: secretário geral, secretária geral61 e duas delegadas. A proporção de gênero que não é completamente livre, representantes de qualquer sexo, e nem de auto-organização, só mulheres, é explicada por Maria Eugênia: “Porque tanto mulheres como homens têm que ter uma só visão. Por isso na convocatória se põe um homem e três mulheres. Em cada comissão tem que haver homens. Porque talvez como mulheres não temos muita preparação, (...) temos filhos, temos

61.Segundo Maria Eugenia, cada sindicato possui além do seu secretário geral uma secre-tária geral, de mulheres. Eles chamam estas duas figuras de “dirigente” e “dirigenta” de sindicato. Contudo, normal-mente quem é considerado a autoridade máxima do sindi-cato é o dirigente, cabendo à mulher mais a coordenação de assuntos femininos.

Page 130: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

130

Terra e território

que cuidar da casa, tudo o demais, não participamos muito dos cursos. Os homens estão um pouco mais preparados, se nos equivocamos em alguma coisa, eles nos ajudam (...) Somos como dois tourinhos que vamos arar bem juntos, mas às vezes as mulheres estão mais raquíticas, mais fracas”.

Uma das principais funções, portanto, das organizações de mulheres no Trópico é a realização de seminários de formação e capacitação política das próprias mulheres. Paralelamente, são organizados cursos de corte e costura, que são vistos como atividades de auto-suficiência, “é uma forma de aprendiza-do, se faz vestimentas, polleras, blusas, tudo o que se necessita aqui no trópico”, explica Maria Eugenia.

Como mãe solteira, chefe de família e que cuida do seu próprio chaco, Maria Eugênia conhece o machismo na região. Lembra que quando começou a freqüentar as reuniões, os homens não aceitavam a presença das mulheres, “diziam ‘o que sabe ela e por que veio?’. Então sempre te marginavam e a gente chorava. Até agora há muito machismo”. Ela conta, contudo, que foi desse choro que se aprendeu a elevar a voz e superar o medo. “Consegui romper esta cadeia de machismo, não me calam fácil. Sempre peço a palavra e digo assim duro, e digo as verdades (...). Porque se nós não fazemos, quem vai fazer? Porque para os homens é melhor também”.

Mas a identificação do machismo interno não interfere na concordância com os companheiros sobre o debate político nacional, como demonstrou a marcha de mulheres de 1995. Assim como as orga-nizações cocaleiras “de homens”, as “de mulheres” têm atualmente como principal bandeira a “defesa da Bolívia e seus recursos naturais”. Para Maria Eugênia, isso significa hoje a aprovação da nova Constituição Política do Estado, porque ela é a primeira que “foi feita pelos e para os bolivianos. Em contrapartida, a atual constituição não foi feita pelos bolivianos, foi feita por gente especializada em roubar (...) A nova constituição reflete toda a nossa realidade”. Ela defende, como os demais dirigentes cocaleiros, o governo de Evo Morales como uma verdadeira revolução voltada para as camadas mais pobres da população, dan-do como exemplo as políticas assistenciais do Bono Juancito Pinto e a Renta Dignidad62.

Por todos os avanços do governo, as mulheres do trópico estão dispostas a ofertar suas vidas. “Não importa se vamos defender com nossas vidas. Nós como dirigentas estamos dispostas a morrer. Se algumas vão morrer, algumas vão morrer”. Não se trata de mera bravata, a convicção de Maria Eugênia é expressada algumas semanas antes da realização do referendo do Estatuto Autonômico de Santa Cruz.

Ela enxerga a iniciativa como uma tentativa de resgate de poder dos grupos oligarcas tradicio-nais. “Estamos vendo que temos que ir a Santa Cruz a nos enfrentar com eles. Porque em Santa Cruz muitos de nossos companheiros estão em favor da gente. Porque lá estão impondo a autonomia (...). E nós

62.Bono Juancito Pinto é uma espécie de Bolsa Escola boliviana, dá 200 pesos boli-vianos anuais a famílias que têm crianças de 6 a 10 anos matriculadas em escolas pú-blicas. Renta Dignidad é tam-bém uma política de bonifica-ção para os bolivianos maiores de 60 anos, que oferece 2400 pesos bolivianos anuais para os que não possuem nenhum tipo de aposentadoria e 1800 pesos bolivianos para os que possuem.

Page 131: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

131

Terra e território

como mulheres estamos analisando bem esta conjuntura e acreditamos que temos que derrotá-los (...). Porque nossos filhos já não podem viver nesta escravidão, nestas condições péssimas”. Apesar da vontade das cocaleiras de irem a Santa Cruz no dia 4 de maio, o governo pediu a todos os movimentos sociais que se manifestassem pacificamente, evitando conflitos fatais. Portanto, no dia 4 de maio, o movimento cocaleiro em conjunto com demais movimentos camponeses organizou uma concentração de centenas de milhares de pessoas em Cochabamba, em completo repúdio aos estatutos autonômicos.

A única coisa que desanima Maria Eugênia acerca do processo político que vive o país são as bri-gas internas, de egos de dirigentes e dirigentas. O atual preconceito que há da parte das militantes antigas com relação às novas a incomoda muito. “Elas sempre nos dizem ‘vocês são novas’, entre mulheres há esta discriminação. Por que tem que nos tratar assim? Se sempre vivemos aqui”. Ela descreve o personalismo, o apadrinhamento e a perseguição interna de dirigentes que começam a se destacar como uma “guerra suja”. Percebe nisso um erro muito grande, pois acha que a organização não pode depender de algumas poucas pessoas, todas têm que estar preparadas. “Não somos solitários! Por exemplo, a Federação do Tró-pico pode encabeçar [uma luta] primeiro, mas depois as outras organizações se somam e assim podemos ganhar. Porque sozinhos não podemos”.

Tal conflito fará, provavelmente, com que Maria Eugenia saia da federação. “Eu não estou mui-to preocupada com cargos, por isso digo que vou cumprir e vou sair. Porque não gosto de brigar por coisas assim. Gosto de brigar por defender meus direitos, a minha vida. Mas assim, brigar pessoalmente não”, desabafa. Ao final, o problema dela não é isolado. A história do instrumento político tão reivindicado pelos cocaleiros, o MAS-IPSP, é inteiramente pontuada por brigas internas de lideranças.

A voz soberana do cocaleiroNo dia 13 de abril de 2002, o Trópico de Cochabamba amanheceu calado. “Não tínhamos

voz, era como se estivessem tapando a nossa boca assim”, diz Geronimo Anturiano. Estavam em meio à Guerra da Coca e, no dia anterior, o governo de Jorge Quiroga havia utilizado seu último recurso para debilitar o movimento cocaleiro: confiscar os equipamentos da Rádio Chipiriri, rádio comunitária de responsabilidade da Federação do Trópico.

Geronimo, que há oito anos trabalha na rádio, conta que a ação da polícia, combinada com forças militares, foi completamente ilegal. “Nem sequer trouxeram um aviso prévio, que dissesse mini-mamente ‘por favor, vocês não têm esta documentação, precisam apresentar até tal data. Caso contrário,

Page 132: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

132

Terra e território

vamos fechar’”. Vieram, abriram a porta, pegaram os equipamentos e foram embora.No meio dos conflitos com as forças combinadas do governo, a rádio cumpria um papel im-

portantíssimo frente à desinformação generalizada que promoviam os meios de comunicação tradicionais sobre o Chapare e os cocaleiros. “Porque muitas emissoras, sejam elas nacionais, locais ou departamen-tais, não relatavam o que acontecia aqui no trópico, a matança, os feridos, os mal-tratos físicos, isso não se via. Então, nesta rádio tínhamos toda esta informação e enviávamos a nível departamental, nacional e mundial, inclusive”, explica Geronimo. Fazer parar a rádio era um grande golpe contra as organizações sindicais chaparenhas.

Logo, a recuperação dos equipamentos entrou nas negociações dos cocaleiros com o governo. Em junho, o governou cedeu e os cocaleiros receberam de volta os equipamentos da rádio, junto com diversos outros pontos de reivindicação. Geronimo conta, em tom de anedota, que o governo dizia que estava doando equipamentos para a rádio, quando se comprovou no momento da sua entrega que eram exatamente os mesmos que haviam sido retirados.

Por ser uma rádio de propriedade do movimento sindical cocaleiro, a rádio sempre possuiu recortes políticos. Geronimo dá o exemplo de quando a agência de cooperação americana Usaid quis veicular seus programas na rádio. “Estes programas tinham a finalidade de desorientar as organizações, eram contra elas. Eles diziam que não era bom ter as plantações da folha de coca, porque isso era droga, e que tínhamos que fazer plantações de palmito, abacaxi. E diziam que iam dar dinheiro para pôr secadoras ou colheitadoras. E isso não era bom para a organização, estava começando a dividir. No sindicato, uns estavam com associações, outros estavam com o sindicato. Então, pensamos, se vamos colocar estas men-sagens, o sindicalismo pode morrer”. A primeira saída pensada pela rádio foi cobrar preços exorbitantes da agência norte-americana, para que ela desistisse de veicular seus programas. Mas quando ela aceitou os preços, deixou a equipe da rádio sem saber o que fazer. “E que fazemos? Começamos a fazer truques, deixávamos o que nos era conveniente, e o resto apagávamos. E o financiador, não sei se escutava ou não, mas pagava de qualquer forma”, lembra Geronimo.

Mas hoje já não há tantos conflitos. Os dois anos de Evo Morales na região mudou muita coisa. As associações paralelas promovidas pela cooperação internacional já se esfacelaram, se incorporaram de novo aos sindicatos. O cotidiano da rádio está mais calmo, já não é necessário fazer plantão à noite para escutar pelo telefone as notícias dos conflitos.

Contudo, nem tudo está às mil maravilhas. A rádio sofre com um gravíssimo problema econô-

Page 133: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

133

Terra e território

mico e foi, ironicamente, o governo Evo Morales um dos responsáveis indiretos por isso. Por nove anos consecutivos, a rádio recebeu verbas da ONG holandesa CAF (Communication Assistance Foundation)63. E em 2005, ano de renovação deste projeto de financiamento, a equipe da rádio estava com muitas ex-pectativas. Havia feito um estudo de transmissão para começar também a veicular programas televisivos e formar uma rede de comunicação em todo o trópico. Igualmente, Evo Morales havia acabado de ser eleito presidente e isso obviamente significava tempos melhores para o Chapare. Mas Geronimo conta que a resposta da sua financiadora foi desconcertante: “ela já não podia ajudar, porque o objetivo que traçamos havia chegado, os nossos sonhos foram cumpridos. Porque fizemos o companheiro Evo chegar à presidência, por esta rádio. Então, a CAF nos felicitou, dizendo que a organização que haviam financiado cumpriu a sua meta”.

Os resultados dos problemas financeiros apareceram duramente neste começo de 2008. Um dos locutores da rádio foi embora e o contrato com o diretor da rádio, um comunicador profissional, tam-bém terminou e ele voltou à Cochabamba. A equipe, que antes era composta por seis pessoas - o diretor, o secretário administrador (Geronimo), dois locutores e dois operadores - está hoje reduzida a quatro.

A alternativa foi pedir a ajuda da federação, para que ela garantisse a existência da rádio. “En-tão, começamos incomodar nas reuniões das centrais e da federação, dizendo que eles levassem mais a sério”. A federação decidiu então cobrar uma contribuição anual de 12 bolivianos de cada afiliado para a manutenção da rádio. Com os 18 mil afiliados que tem a federação, esta contribuição significaria 2,5 mil dólares mensais para a rádio, o que garantiria parte do pagamento dos seus salários e custos de operação. A outra parte é garantida pela cobrança de anúncios de casas comerciais da região e serviços.

Geronimo também estava presente na reunião da Central Chipiriri. Ele deu um extenso infor-me sobre a situação vulnerável da rádio e sobre a necessidade dos sindicatos de recolher as suas contri-buições. Logo, seguiu-se uma longa discussão. Alguns reclamavam que a locutora que ficou não fala bem quíchua, outros davam dicas para a programação, e finalmente, chegaram à conclusão de que deveria haver um seminário de formação sobre comunicação. Geronimo escutava e dava também as suas opiniões como representante da equipe da rádio, que tinha várias limitações para responder a todas as demandas. São nestas conversas sindicais, que vão dos tons mais exaltados aos mais conciliatórios, que se define cotidianamente os rumos da Rádio Chipiriri, a voz soberana dos cocaleiros.

63.A CAF mudou de nome em 2004, tornando-se “Free Voice - Dutch support for Me-dia in development”

Page 134: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

134

Terra e território

Visita à Federação do TrópicoA sede da Federação do Especial Trópico fica em frente à Praça Busch, em Cochabamba. Na

primeira vez que eu passei por lá, recém chegada na cidade, tinha a firme intenção de entrevistar Júlio Salazar, secretário-geral da federação. Não consegui a entrevista, foram quase duas horas de espera dentro de uma sala onde ficava ao mesmo tempo a secretária, a mesa de Salazar, a pessoa que estava sendo aten-dida e todas as demais que queriam falar com ele. Ao menos, acompanhei brevemente o cotidiano desta mescla intrigante de sindicato e partido.

Júlio Salazar, além do seu cargo na federação, exerce também a função de presidente departamental do MAS-IPSP. A federação serve como sede do partido, assim como a sua sala principal tem esta dupla função. O dirigente cocaleiro coordena muitas das atividades do partido dali, assim como atende organizações base da federação e movimentos amigos.

No tempo que estive ali, por exemplo, me chamou a atenção um senhor dirigente dos aposentados, que na época organizava um ato em defesa da Renta Dignidad. Era ajudado por um assessor do partido na redação da convocatória do ato, já que ele tinha muitas dificuldades com a palavra escrita. Pediu a Júlio bandeiras do partido, da Bolívia e wiphalas64, além de cartazes para organizar a agitação do ato. O assessor lhe indicou que era melhor utilizar mais bandeiras bolivianas, pois isso tornaria a comunicação do ato mais eficaz, dialogaria com o nacionalismo boliviano.

Tudo me impressionava, ou melhor, me horrorizava. Nunca havia visto tamanha confusão en-tre um movimento social e um partido. Minha experiência com o movimento estudantil brasileiro me ensinou a considerar o aparelhamento dos movimentos sociais feito pelos partidos de esquerda uma das coisas mais condenáveis que existe na política. Portanto, ele sempre é feito às escondidas, nunca tão explicitamente.

Mas, e quando o partido em questão é um instrumento político do próprio movimento? É aprovado em seus fóruns enquanto partido político e, portanto, se constitui teoricamente enquanto um braço do movimento? Enfim, era a pergunta que passava em minha cabeça todo o tempo. Procurei mais coisas, cartazes, panfletos, etc., que indicassem que ali também funcionava a sede de uma federação cocaleira. Achei um adesivo, imitando o logo da coca-cola: “Coma coca, uma folha a menos para a droga”.

Cansada de esperar, perguntei à secretária se haveria uma outra ocasião mais tranqüila, onde eu poderia conversar com os dirigentes cocaleiros. Ela me escreveu em um papel “Shinahota, 26/10/07.

64.Bandeira quadriculada for-mada por sete cores símbolo do Qullasuyu quando a cor branca está no meio.

Page 135: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

135

Terra e território

Aniversário do presidente”. Lá iam estar os principais dirigentes durante todo dia, me garantiu. Perguntei se era o presidente da federação. Ela respondeu que sim, de todas as federações. “Seu nome?”, perguntei muito jornalista, fazendo anotações. Ela respondeu rindo: ”Evo Morales”.

De movimento social a movimento políticoDesde a sua fundação, no início dos anos 1990, a Coordenadora das Seis Federações do Trópico

teve somente um representante máximo, Evo Morales. Mesmo agora, sendo presidente da República, os cocaleiros não permitiram que ele abandonasse esta função. Segundo alguns, é um mecanismo para que ele não se afaste das suas bases e sempre volte ao trópico para prestar contas da sua política.

Os cocaleiros sempre reivindicaram para si a paternidade MAS-IPSP (Movimento ao Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos) ou simplesmente instrumento político (IP). Por mais que o MAS tenha contado com outros setores importantes para a sua consolidação, é inegável que os cocaleiros foram e continuam sendo uma força central.

Segundo Francisco Mijia, cocaleiro fundador do instrumento, a idéia de formá-lo se popularizou entre os cocaleiros durante a marcha de 94, “foi neste momento que a proposta ficou mais clara”. Os cocaleiros estavam cansados da sua impotência frente aos governos da época, que dificilmente cumpriam os seus acordos e que promulgavam leis impopulares sem que os movimentos sociais pudessem fazer qualquer coisa. “Então era para enfrentar estes governos de turno, que estavam acabando com as organizações produtivas do trópico, e para também acabar com as leis malditas, como a Opção Zero e também a lei de imunidade. Com isso queríamos acabar. Nós estivemos em seminários, contratamos pessoas para passar cursos sobre política. Era para que houvesse uma união entre orgânico e político. Porque antes era diferente, a organização muito à parte e a política muito à parte. Mas discutimos e entramos em acordo, todas as centrais e federações juntas”, conta Mijia.

Feliciano Mamani, prefeito de Villa Tunari, conta que a repressão foi um importante fator para que os cocaleiros aprendessem a falar de política. “Os governantes nos diziam que a nossa política era machado e pá. E como vamos suportar isso? Também tínhamos direito de formar uma política, também temos o direito de ter um prefeito, um presidente, um deputado”, diz ele.

Mas, de fato, a criação do instrumento político partiu de uma iniciativa conjunta dos cocaleiros com outros setores. Ele foi surgiu em 1995, no congresso “Terra, Território e Instrumento Político”, onde participaram camponeses (CSUTCB), colonos (CSCB), mulheres camponesas (FNMCB-BS) e

Page 136: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

136

Terra e território

Page 137: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

137

Terra e território

indígenas do oriente (CIDOB). A representação nacional dos cocaleiros se dividia entre a CSUTCB e a CSCB. A idéia era que houvesse uma “participação direta dos militantes sindicais mediante uma adesão coletiva das suas organizações, sem criar uma estrutura partidária”65. Em teoria, portanto, não era uma incorporação destes movimentos a um movimento político, mas sim a criação de um braço eleitoral tático. Este instrumento também respondia a uma demanda histórica de evitar as tradicionais divisões que sofriam as organizações sociais nos momentos eleitorais, debilitando muito a sua luta66. O nome dado a este instrumento foi, a princípio, Assembléia pela Soberania dos Povos (ASP) e o seu encarregado político era o dirigente camponês Alejo Véliz.

Contudo, não se pode ignorar um outro importante fator para a criação deste instrumento: a Lei de Participação Popular, promulgada um ano antes. Como já comentamos anteriormente, a lei abria espaços para a participação de camponeses dentro da política institucional local e, caso eles quisessem disputar estes espaços, igualmente necessitavam de um instrumento eleitoral. De fato, na primeira eleição que o instrumento político participou - com a sigla de Esquerda Unida e em coalizão com o Partido Comunista da Bolívia (PCB) – em dezembro de 1995, foram eleitos 11 prefeitos, na sua maioria camponeses do Chapare67.

Alejandro Almaraz, ex-membro da direção nacional do MAS e atual Vice-ministro de Terras, diz que o entendimento dos dirigentes do instrumento era uma espécie de apropriação da LPP, ir crescendo a partir das prefeituras: “Eles pensavam que o negócio não era chegar na prefeitura, mas sim ir avançando: prefeituras, parlamento e algum dia ganhar a eleição nacional. E estes eram os que estão agora, Evo, os potosinos – os dirigentes camponeses potosinos também era muito fortes – e outros que ficaram à margem do MAS e que faziam parte desta idéia inicial: Alejo Véliz de um lado, e o Mallku do outro”.

Contudo, o instrumento político enfrentou um grande problema nos seus primeiros anos de existência: a negativa constante da Corte Nacional Eleitoral em lhe dar a sua personalidade jurídica. Portanto, de 1995 até 1999, quando se consegue a sigla do MAS (Movimento ao Socialismo), o instrumento teve que participar das eleições com siglas emprestadas e coalizões.

Logo, as brigas internas entre as lideranças camponesas no interior deste movimento começaram a dar seus frutos. A principal delas era entre Evo Morales, que representava o setor cocaleiro, e Alejo Véliz, que tinha uma considerável base em outras regiões camponesas cochabambinas. Esta briga leva a uma grande quantidade de sindicatos cocaleiros a boicotar a candidatura de Véliz em 1997, quando ele concorria à presidência e a deputado plurinominal68 pelo ASP, que novamente estava em aliança com a

65.DO ALTO, Hervé, op. cit., p. 75. Tradução da autora.

66.Idem, p. 75.

67.KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 31.

68.O deputado plurinomi-nal é eleito com a somatória dos votos nacionais em uma determinada sigla. Já o depu-tado uninominal é eleito com somatória dos votos regionais. São, portanto, duas eleições diferentes.

Page 138: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

138

Terra e território

Esquerda Unida69. O voto cruzado, que fez com que regionalmente os cocaleiros votassem em Evo Morales para deputado uninominal, mas não votassem em Véliz nacionalmente, se explicitou no resultado das eleições: Evo Morales foi eleito com 70%, o deputado uninominal com a melhor porcentagem de votos em todo o país, e Alejo Véliz, cabeça de chapa, não conseguiu os votos suficientes para ser eleito deputado plurinacional.

Este fenômeno impulsionou o racha dentro do instrumento, fazendo com que os “evistas” adotassem a sigla de IPSP (Instrumento Político pela Soberania dos Povos) e os “alejistas” ficassem com ASP. O ideal de instrumento político já aparecia bastante arranhado, pois se pretendia a representar de uma ampla gama de movimentos sociais se dividiu com uma simples briga de caudilhos.

Um pouco antes das eleições municipais de 1999, a sigla “MAS” é oferecida a Evo Morales. Ironicamente, tratava-se de uma sigla criada por um antigo membro da Falange Socialista Boliviana, partido de extrema direita. Aceitando a sigla com muita dificuldade, o setor evista consegue agregar-lhe o IPSP, dando o nome atual do partido. Contudo, a cor azul, cor do coorporativismo fascista boliviano, não pôde ser mudada. Em 1999, a sigla MAS-IPSP obteve 3,3% dos votos nacionais, enquanto o grupo de Alejo Véliz, em coligação com o PCB, conseguiu angariar somente 1,1% dos votos70.

Os votos do MAS, apesar de serem massivos na região do Chapare, também contaram com uma votação expressiva na província cochabambina de Ayopaya, onde Roman Loayza era importante dirigente camponês. Além disso, 61% dos votos que obteve a sigla não provinham do departamento de Cochabamba, mas sim do resto do país, o que indicava que o “grupo do Evo” tinha bases políticas nacionais, apesar da sua vanguarda política estar concentrada em Cochabamba.

A adoção da sigla “MAS” teve outras conseqüências. Ela era inaceitável para Felipe Quispe, então secretário-executivo da CSUTCB, eleito inclusive para mediar os grupos “evistas” e “alejistas” na confederação. Quispe havia participado de algumas reuniões do IPSP, mas, segundo ele, a adoção da sigla fascista negaria completamente a identidade indígena do instrumento. A partir deste momento, Quispe começou uma aproximação maior com o setor de Alejo Véliz e criou o seu próprio partido em 2000, o Movimento Indígena Pachakuti (MIP), processo que veremos mais à frente.

O instrumento político idealizado pelos movimentos camponeses em 1995, inicia os anos 2000 como instrumento de alguns setores e de outros não. É inegável que a sua relação com o movimento cocaleiro é da mais orgânica possível, sendo factível para este setor o seu entendimento como braço político. Para a CSUTCB, contudo, esta relação foi diferente, pois dependia das suas direções políticas. Inclusive,

69.Este boicote é relatado por Hervé do Alto. DO ALTO, Hervé, op. cit., p. 78. Tradu-ção da autora.

70.KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 33-34.

Page 139: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

139

Terra e território

é pela briga que se instalou dentro desta confederação a partir da negação de Quispe de participar do instrumento, que se cria duas confederações camponesas paralelas. Para a Cidob, o instrumento político sempre foi um processo alheio, já que se afasta da sua consolidação logo depois de 1995 por se inclinar neste período a táticas eleitorais clientelistas de alianças com partidos tradicionais. Segundo Hervé do Alto “esta antecipada baixa [da Cidob], à qual sucederiam múltiplas fases de aproximação e afastamento, permite identificar a lealdade de geometria variável das organizações sociais em relação ao instrumento político, oscilando entre a lealdade incondicional (que ilustra o setor cocaleiro) e a permanente negociação de fidelidades políticas”71.

Fato é que, a partir da criação deste instrumento e do seu funcionamento como estrutura autônoma das entidades que o propuseram, o fracionamento dos movimentos sociais bolivianos foi um processo constante. A CSUTCB se parte em duas, uma parte identificada com o discurso indianista de Quispe, e outra com o MAS. No oriente, apesar da Cidob ter uma relação bastante variável com o MAS, um setor organizado em torno da Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz (CPESC) é mais radicalizado e se identifica com o instrumento político. Inclusive o MST, tem o setor de Santa Cruz com mais proximidade com o MAS e outros setores nacionais que adotam posturas mais autônomas.

Mineiros e cocaleirosSão muito comuns as comparações entre o protagonismo recente do movimento cocaleiro

com o antigo protagonismo mineiro. Um dos maiores propagadores da tese de que a vanguarda dos movimentos sociais bolivianos passou na década de 1980 dos mineiros para os produtores cocaleiros é Filemón Escobar, que se amparou na sua experiência de ex-assessor político do movimento mineiro para se tornar um dos maiores ideólogos do instrumento político.

Não se pode afirmar, contudo, que houve um deslocamento populacional significativo das minas ao Chapare, como muitos pensam. Em 1986, um ano depois das demissões em massa de mineiros que marcou a decadência do seu movimento, o Chapare vivia uma das suas maiores crises com a baixa do preço da folha de coca. A grande maioria dos mineiros que em 85 se migraram para lá, provavelmente se dirigiu a outras regiões posteriormente. De fato, houve uma migração mineira nas décadas anteriores, mas a população de ex-mineiros no Chapare hoje não é muito significante72.

Mas, como todo movimento social boliviano da atualidade, o movimento cocaleiro tem sim muitas referências nas lutas do operariado mineiro. Filemón Escobar, em particular, é fonte de muitas

71.DO ALTO, Hervé, op. cit., p. 76. Tradução da autora.

72.Sobre isso fala Eduardo Córdova: “Há alguns que di-zem que os 21 mil mineiros que foram despedidos foram produzir coca. Mas isso não é verdade, alguns se foram, muitos se foram e não fica-ram e voltaram às cidades ou a outros lugares. Mas dos que se foram não ficaram muitos. Em um trabalho que vi dos anos 90, a proporção de ex-mineiros entre os camponeses cocaleiros era ao redor de 4% a 5%. Em uma federação de cocaleros que eu estudei, era ao redor de 5%. Em um tra-balho que se fez em 2002 em outra zona era de 2,5%”.

Page 140: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

140

Terra e território

delas. Para explicar a estratégia de luta do movimento cocaleiro dentro da democracia representativa, ele recorre ao bloco parlamentar mineiro: “A Tese de Pulacayo diz textualmente que ‘na próxima luta eleitoral, nossa tarefa consiste em levar um bloco operário o mais forte possível ao parlamento, ressaltando que ao ser antiparlamentários não podemos deixar o campo livre aos nossos inimigos de classe. Frente ao eleitoralismo, oponhamos a formação do bloco parlamentar mineiro”73. Portanto, a idéia do instrumento político tem, segundo Escobar, total convergência com as idéias mineiras, já que eles igualmente não se submetiam a um partido político, mas sim ao movimento do qual fazem parte, o movimento operário.

Mas Jorge Komadina, investigador social de Cochabamba, aponta que o bloco mineiro foi uma exceção na experiência deste movimento: “a regra foi a estratégia insurrecional ou a participação eleitoral mediada pelos partidos de esquerda que atuavam como ventríloquos dos do movimento operário e camponês”74.

Institucionalidade: tática ou estratégia?A tese do instrumento político, contudo, teve uma outra conseqüência: evitar que os cocaleiros

adotassem a tática da guerrilha contra os constantes abusos que sofriam. Segundo Escobar, esta foi uma grande conquista. “Eu lhes dizia: ‘a única forma de defender a folha de coca não é agarrando os ferros, a única forma de defendê-la é com os sindicatos cocaleiros se transformando em força política, e a única maneira de isso acontecer é entrarmos na linha da democracia representativa”75.

Mas, no princípio do movimento, não era somente a idéia da guerrilha que se opunha a estratégia parlamentar. Havia dentro do instrumento político, percepções da disputa parlamentar enquanto tática, como podemos ver nas palavras de Román Loayza, escritas em 2000: “Participamos dos espaços que nos oferecem na sociedade neoliberal, eleições municipais, nacionais, propostas de leis, participação popular, reforma educativa, saúde, assentamentos humanos, defesa da biodiversidade e dos recursos genéticos e naturais, etc. para pressionar o modelo e atacar com nossas demandas e necessidades até que ele arrebente pelas suas próprias limitações internas”76.

Komadina, que identifica nestas palavras uma “leitura tática e instrumental” da democracia como um todo77 e não uma crítica a um sistema político específico, aponta que esta visão de Loayza foi superada dentro do MAS em 2002. Neste ano, segundo ele, o instrumento político foi impactado com o segundo lugar obtido por Evo nas eleições presidenciais, o que demonstrava pela primeira vez a possibilidade real de eleger um presidente. “A partir dos seus resultados o MAS interiorizou uma estratégia

73.Entrevista citada em: KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 38. Tradução da autora.

74.KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 39. Tradução da autora.

75.Idem, p. 39. Tradução da autora.

76.LOAYZA, Román apud KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 39. Tradução da autora.

77.KOMADINA, Jorge, et al., op. cit., p. 39.

Page 141: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

141

Terra e território

democrática e eleitoral para chegar ao poder”78. De dentro do partido, portanto, não viriam mais críticas sistêmicas ao Estado boliviano, ele já se consolidava como um a priori da sua ação.

Pablo Regalsky lamenta profundamente esta mudança, apesar de localizar as raízes dela já nas primeiras gestões realizadas pelo MAS em prefeituras, através da LPP. “Inicialmente, o instrumento político, que eu apoiei muitíssimo, possuía uma base estratégica de independência política do campesinato e dos trabalhadores e da defesa da terra e do território. O principal era terra e território, mas baseado neste modelo de independência política, do Estado e de qualquer partido político (...). Mas na prática, ele acabou sendo o contrário, acabou sendo o mediador que permitiu rearticular os movimentos camponeses com o Estado, no exercício dos governos municipais. Agora, tudo isso foi um processo contraditório”.

Hervé do Alto concentra parte do seu trabalho nestas contradições do MAS. Ele identifica como conseqüência deste maior eleitoralismo uma espécie de “oligarquização” do MAS, que após 2002 começou a incorporar cada vez mais intelectuais da esquerda que tinham um peso mais importante que os camponeses e indígenas no momento de definir quais seriam as figuras parlamentares. “Enquanto os militantes têm dificuldades para adaptar-se a este novo âmbito que é o parlamento, os intelectuais e/ou ex-militantes da esquerda, muito mais cômodos no manejo da atividade parlamentar tendem a se apropriar da palavra pública do MAS-IPSP e, portanto, a definir eles mesmos as orientações do partido”.

Contudo, não se pode generalizar que há uma mão de via única da esfera política em direção à social. Hervé do Alto pontua que nos casos de profundas crises do Estado e de intensa mobilização social, as bases dos movimentos populares (inclusive as do próprio MAS) apontam uma agenda que obriga o partido a mudar o rumo das suas políticas. Ele cita o exemplo da reivindicação de nacionalização dos hidrocarbonetos, na qual o partido oficialmente defendia somente o aumento das regalias petroleiras de 18% para 50%, mas a pressão dos seus próprios sindicatos de base o fez incorporar a proposta mais avançada. “A explicação que propomos aqui deste fenômeno é essencialmente estrutural: a ausência de aparato partidário que caracteriza o MAS-IPSP permite entender porque suas bases, cuja estruturação se sustenta em formas organizativas previamente existentes, como sindicatos ou juntas vicinais, apresentam uma forte sensibilidade ao ‘que sucede’ dentro do espaço dos movimentos sociais, o que explica a tendência de se mobilizarem se existem motivos para fazê-lo dentro deste espaço”79.

78.Idem, p.53. Tradução da autora.

79.DO ALTO, Hervé, op. cit., p. 88. Tradução da autora.

Page 142: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

142

Terra e território

MAPA DE ACHACACHI

Detalhe

Page 143: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

143

Terra e território

4 - O movimento indígena de Omasuyus

Page 144: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

144

Terra e território

Page 145: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

145

Terra e território

A promessa de KatariUma grande extensão de terras se espalha na região entre a Cordilheira Real dos Andes e o Lago

Titicaca. Filetes de água correm do degelo dos altos picos nevados da cordilheira em direção ao lago, per-seguindo o trajeto do sol num caminho de leste a oeste. Estas águas irrigam a região, tornando-a apta para o cultivo de cereais, de tubérculos e para a criação de animais. Desde os tempos pré-incas, agricultores po-voam densamente a região - hoje chamada província Omasuyus, localizada no departamento de La Paz.

A capital da província, Achacachi, é o centro de comércio da região. Ali se reúnem os campone-ses todas as quartas e domingos para distribuir seus produtos e comprar outros de necessidades básicas. Saindo da cidade em direção sul, já a caminho de La Paz, passamos por uma ponte, quase imperceptível para os viajantes pela pequenez do riacho que ela atravessa.

Em aimará q’alachaka significa ponte de pedra. Ali, em Q’alachaka, se formou no início dos anos 2000 o terceiro grande exército indígena da história da Bolívia, comparável aos exércitos de Tupac Katari (1781) e Zárate Willka (1899). Armados com mausers da década de 1950, reminiscências da Revolu-ção Nacional de 1952, estes camponeses aimarás demonstraram todo o seu repúdio ao Estado boliviano. Eles reivindicavam a refundação do Qullasuyu, região correspondente à Bolívia dentro do território inca, o Tawantisuyu, que em quíchua significa “as quatro jurisdições unidas”1. Carregavam a wiphala, bandeira de sete cores que, dependendo da disposição destas, representa cada uma das regiões incas. Quando a cor branca cruza a diagonal da bandeira, trata-se de uma bandeira do Qullasuyu.

Os aimarás em estado de guerra portavam acima de tudo as lembranças da sua história rebelde. Traziam marcadas as palavras pronunciadas por Tupac Katari mais de duzentos anos antes: “Eu morro, mas amanhã voltarei convertido em milhares de milhares”. Esperança de libertação para os índios aimarás da região ocidental boliviana, estas palavras sempre foram símbolos de terror para a população criolla ur-

REBELIÕES AIMARÁS

1.ALBÓ, Xavier, op. cit.. p. 173.

Page 146: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

146

Terra e território

bana. Tupac Katari realizou um cerco da cidade de La Paz que durou meses, deixou a cidade sem comida e ameaçou inundá-la pela parte sul, abrindo os diques que forneciam água à cidade. Para a elite mestiça que até hoje vive na sede do governo boliviano, a memória katarista é uma memória de medo, cerco e comprovação de uma suposta barbárie indígena.

O protesto era ancestral, mas focava em uma exploração ainda visível e existente. No início do nosso século, os índios bolivianos identificam a velha dominação colonial e racial com o nome moderno de neoliberalismo, mas que igualmente usurpa suas terras, seus recursos naturais, questiona seus modos de vida e de entendimento de mundo.

***A história sobre a rebelião aimará de 2000 a 2005 me foi relatada por alguns personagens que

participaram ativamente dos protestos e por outros que tornaram destes protestos seu objeto de estudo apaixonado.

Felipe Quispe, El Mallku2, era secretário executivo da CSUTCB de 1998 a 2003, dirigente máximo da principal organização social boliviana. Nascido em Jisk’a Axariya, uma comunidade próxima ao lago Titicaca e na província de Omasuyus, ele focou muito da sua gestão em mobilizações na sua re-gião natal. Rufo Yanarico e Eugenio Rojas fizeram parte do comitê de bloqueio de 2003, e participaram de todas as demais mobilizações anteriores. Eugenio Rojas é atualmente prefeito de Achacachi e Rufo, funcionário da prefeitura. Marxa Chávez é uma jovem socióloga pacenha, que tem em Omasuyus o seu foco de estudo. Pablo Mamani é professor de sociologia da Universidade Pública de El Alto (Upea), importante centro de reflexão da identidade aimará por estar localizada em um centro urbano com um movimento étnico muito forte. Xavier Albó é um antropólogo estudioso do movimento indígena bolivia-no e em especial o aimará.

A convulsão de movimentos de 2000As mobilizações iniciaram em Omasuyus em abril de 2000, com bloqueios de estrada. Elas

coincidiram com a Guerra da Água em Cochabamba e com diversos outros protestos nacionais contra a Lei de Águas do governo de Hugo Banzer. Rufo Yanarico se lembra bem desta época, em especial do conflito que houve em Achacachi no dia 9 de abril de 2000 entre os camponeses e os militares do quartel que está na própria cidade.

2.Mallku significa em aimará significa condor ou líder. In: CRABTREE, John. Perfiles de la protesta, p. 61. Funda-ción Unir / Fundación PIEB. La Paz, 2005.

Page 147: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

147

Terra e território

Ele conta que neste dia, um domingo de feira, os camponeses estavam reunidos por dois mo-tivos. O primeiro era a comemoração da Revolução Nacional, iniciada nesta mesma data. O segundo, era um protesto contra a lei de privatização da água, porque “o general Banzer queria vender as águas do nevado do Illampu, e toda esta água teríamos que pagar. Ali abaixo tem uma lagoa e dela, com o degelo, descem as águas até aqui”. Neste protesto houve um enfrentamento entre os camponeses e os militares do regimento Ayacucho, localizado na própria cidade de Achacachi. O conflito logo causou a morte de dois jovens. Estas mortes enraiveceram os camponeses, que matam um capitão do exército como represália. Rufo conta que o capitão foi tirado ainda vivo do hospital, mas “os camponeses, ao ver morto um irmão, tiraram o capitão do hospital e o mataram”. Depois, com esta mesma força impulsionada pela raiva, en-traram na prisão e na escola base da polícia, e ali queimaram papéis e confiscaram armas.

Felipe Quispe, que acompanhava as mobilizações desde La Paz, esteve nas negociações poste-riores ao 9 de abril entre os camponeses e o governo. O governo a princípio queria prender todos os en-volvidos na morte do capitão, “tinham que ir para a prisão 70 pessoas da comunidade (...). Porque matar um branco é como matar um deus, quem mata o branco é visto como um diabo. Então, a gente exigiu do governo que eles identificassem no exército os soldados que haviam matado os dois jovens camponeses. E eles diziam que isso era intocável. E a gente dizia que da nossa parte também era intocável, não íamos investigar nada. Porque era uma ação comunitária, toda as pessoas se levantaram e mataram o capitão”.

As negociações se concluíram no dia 14 de abril3 sem nenhum avanço concreto, já que a Lei de Águas já havia sido cancelada pelo governo por mobilizações anteriores4. Além disso, ninguém acabou sendo preso pelo conflito em Achacachi, nem os militares, nem os camponeses. A diferença, pontua Quispe, é que os infratores do lado do exército “carregam condecorações. As ruas e as praças deste país levam os nomes destes assassinos, desta gente que mata a nação indígena”.

Mas logo em setembro e outubro de 2000 as mobilizações iniciaram de novo, tanto em Oma-suyus quanto nacionalmente. Na região do trópico cochabambino, os cocaleiros enfrentavam a política da coca zero, com forte militarização e repressão aos cultivos da folha. Haviam se mobilizado com um bloqueio da estrada que liga Cochabamba a Santa Cruz para pedir a não construção de mais um quartel militar no Chapare, a permissão de um cato de coca por família e a aplicação de políticas reais de desen-volvimento alternativo5. Ao mesmo tempo, os professores rurais e urbanos protestavam fortemente contra os salários baixos e faziam uma forte greve nacional.

3.GARCIA Linera, Álvaro (co-ord.) et al., op. cit., p. 122.

4.Idem, p. 122.

5.Idem, p. 404.

Page 148: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

148

Terra e território

A região de Achacachi se mobilizava segundo as reivindicações da CSUTCB que incluíam, entre outros pontos: a revisão da Lei Inra; a revisão do decreto 21060 aprovado em 1985: marco do início das políticas neoliberais na Bolívia com a demissão dos trabalhadores mineiros e políticas de estabilização econômica; o estabelecimento de mercados camponeses; e a doação de tratores para a mecanização do campo. Tratava-se de uma lista bastante ambiciosa, de mais de 70 pontos, mas a junção de diversos movi-mentos nacionais em mobilização fez com que a reivindicação da CSUTCB fosse mais factível.

Durante mais de duas semanas, as principais estradas da Bolívia estavam bloqueadas, e a cidade de La Paz estava completamente cercada, com todos os caminhos que vão ao interior do departamento fechados6. A principal cidade do país teve que receber alimentos por via aérea. Os movimentos indígenas, que agora já não eram somente camponeses, mas também contavam com um importante setor urbano da cidade de El Alto, também ameaçavam com a inundação da cidade. Era a mais completa recriação da saga de Katari, presente no planejamento de cada ação de mobilização.

“São os maiores bloqueios que houve no país nos últimos 25 anos”, diz Marxa Chávez. “Há uma preocupação de todos os setores urbanos, pelo menos da zona central. ‘Que está acontecendo, o que vai acontecer?’. Toda a cidade está cercada e a memória do cerco é muito forte, Tupac Katari fez um cerco que durou de seis meses a La Paz. Então a memória indígena de mobilização recupera estas formas tão antigas de pensar a política, de cercar La Paz”. O cerco de 2000, segundo ela, fez explicitar as heranças coloniais que persistem na cidade: “Era muito evidente o racismo que havia em La Paz, a visualização dos índios como selvagens que iam entrar, que iam assaltar e queimar a cidade. Era isso o que dizia a elite branca que vive na zona sul. La Paz historicamente está constituída assim, como muitas cidades coloniais. E continua sendo uma cidade colonial. Há espaços que os indígenas até agora não podem entrar. Se você vai a um café na zona sul com uma pessoa que se veste de pollera, não te servem, não querem te atender”.

O surgimento do Quartel de Q’alachakaAo mesmo tempo, os bloqueios no interior do país eram muito intensos. Foi nesta mobiliza-

ção que surgiu o Quartel Indígena de Q’alachaka. Logo atrás da pequena ponte que marca a entrada da cidade de Achacachi há uma montanha. Este era um dos pontos de bloqueio estratégicos da região de Omasuyus e os camponeses o mantinham através de turnos feitos pelas comunidades. Os bloqueadores se reuniam nesta montanha e ali faziam assembléias, discussões, planejavam táticas e se preparavam para o enfrentamento.

6.Ibidem, p. 124.

Page 149: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

149

Terra e território

Page 150: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

150

Terra e território

Eugenio Rojas vê o quartel de Q’alachaka como um espaço de formulação política, de resgate das suas próprias raízes: “aí se formavam as pessoas, se discutia temas importantes, daí nasce a reconsti-tuição de Qullasuyo. Fala-se muito de Tupac Katari, de nossa economia, nossa identidade, nossa história. Este quartel é um lugar onde se gera idéias, se debate. E as discussões são diárias, feitas em todos os dias do bloqueio de caminhos. Porque a cada dia vêm pessoas novas, um dia é turno de um grupo, outro dia é de outro. E pensamos também as nossas ações, ‘se o governo não responde, que medidas vamos tomar?’. Vão surgindo estratégias revolucionárias, são táticas pensadas diariamente”.

Mas o quartel, obviamente, não era somente um espaço de discussão política, era principal-mente um espaço de resistência, no qual as pessoas portavam armas, dispostas a um enfrentamento intenso. Esta disposição à luta armada é explicada por Felipe Quispe por duas motivações. A primeira seria o resgate da luta rebelde dos antepassados índios contra o branco opressor, como a luta de Tupac Katari. A segunda seria a experiência de alguns militantes aimarás com as guerrilhas armadas das décadas anteriores, como o Exército Guerrilheiro Tupac Katari (EGTK) do início da década de 1990. “Para que não houvesse desarme, colocaram os mausers abaixo junto com as bases, as armas mais modernas mais acima, e os morteiros, as armas mais pesadas, lá em cima, na montanha, para que ninguém as visse. A imprensa, o exército, ninguém podia ver, só de avião se podia ver. Eu estava ali permanente no comando. E o chamam Quartel Q’alachaka, mas isso vem da nossa militância, dos Ayllus Rojos, do EGTK. Todas estas pessoas se encapuzam, pegam armas e estão com as bases”, conta Felipe.

As armas provêm principalmente da Guerra do Chaco da década de 1930 e da Revolução de 1952. Eugenio Rojas explica que os governos posteriores tentaram retomar as armas dos camponeses, mas eles, espertos, “entregaram as armas mais antigas e ficaram com as novas. Uma boa estratégia que tomaram os nossos avós”.

Marxa Chávez crê que a criação do Quartel Indígena de Q’alachaka é o evento mais importante que acontece neste bloqueio: “É outro ponto de trajetória [aimará] muito radical, muito importante para o movimento indígena. Um exército indígena destas características não era visto desde 1899, quando houve o exército indígena de Zárate Willka, com suas próprias armas, com os seus próprios caudilhos”.

Das mobilizações de setembro e outubro de 2000, Rufo lembra em especial da grande união que havia entre os camponeses e os professores rurais: “Os professores cancelavam as suas aulas e vinham aqui por turno dormir em Q’alachaka, onde estávamos bloqueando. Era pleno inverno, fazia frio. Os cam-poneses também baixavam por turno, não se cansavam, não se pode cansar. Quando se declara alguma

Page 151: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

151

Terra e território

guerra, levantamento ou conflito social, as pessoas não se cansam em Omasuyus”.

Assassinos em nossa terra Frente à toda convulsão social que tomava o país e que causou a morte de nove pessoas e mais

de uma centena de feridos, o governo Banzer cedeu no início de outubro7. A CSUTCB conseguiu a aprovação de quase todas as suas demandas, “praticamente destruímos o governo de Banzer, porque a mobilização era contundente”, diz Felipe Quispe8.

Na ocasião das negociações, as declarações de Felipe Quispe às autoridades de governo ficaram conhecidas e ajudaram a fazer crescer o sentimento étnico de povo oprimido historicamente pelo bran-co estrangeiro: “Eu não vou olhar nos olhos de vocês, porque os seus olhos estão banhados do sangue indígena (...). Isso me dói como Mallku maior. Isso me dói porque vocês, inquilinos, se apropriaram da nossa terra”9.

Pablo Mamani, que pesquisa as estruturas simbólicas da resistência aimará, considera estas in-terpelações de Felipe Quispe como marcos. Segundo ele, antes “ninguém se atrevia a falar assim com um ministro, com um presidente. Essa foi uma ruptura radical nos meios de comunicação (...). São elementos que abrem e rompem status de conveniência, questionam de maneira radical o Estado e as elites criollas do país”.

A mobilização aimará de 2001Apesar da imensa pauta conquistada em outubro de 2000, já no início de 2001 era perceptível a

pouca vontade do governo de cumprir com o prometido. Anunciados para maio, os bloqueios de estradas voltaram a aparecer em junho na região de Omasuyus e em outras províncias vizinhas no departamento de La Paz, como Los Andes, Manco Cápac, Camacho e Franz Tamayo. Ao contrário do que aconteceu em 2000, a mobilização não tinha um caráter nacional e se focava na região aimará.

Além da exigência do cumprimento dos acordos anteriores, de reivindicação mais corporativa, esta mobilização continha novas pautas em evidência. Pela primeira vez, eram apresentadas demandas étnicas, como soberania territorial, autogoverno indígena, substituição de símbolos coloniais do Estado boliviano por símbolos indígenas, como mudança de bandeira, de hino e de heróis nacionais10. Tratava-se de uma forte expressão de um nacionalismo indígena aimará11, com uma mobilização que tinha como foco acima de tudo a construção de um projeto político, muito mais do que conquistas específicas dentro

7.Ibidem, p. 123.

8.Felipe Quispe cita como conquistas da mobilização de 2000 “uma resolução para construir uma universidade indígena, uma sede para a CSUTCB, a modificação da Lei Inra, mil tratores, merca-dos camponeses, 3,8 milhões de hectares de terras para os camponeses. Eram 72 pontos, conseguimos até liberar os pe-quenos devedores”.

9.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 123. Tradução da autora.

10.Idem, p. 126.

11.Ibidem, p. 126.

Page 152: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

152

Terra e território

do Estado boliviano.“Em 2001 vai continuar o nosso pedido. Mas então falávamos não simplesmente de recursos,

mas também falávamos da nova Bolívia, que é a reconstituição de Qullasuyu. Vamos expor que há duas Bolívias, Felipe Quispe falou muito sobre isso. Uma Bolívia do poder econômico e do poder político e outra Bolívia que não tem o que comer. Então, qual era a alternativa? Era refundar a Bolívia, mas sob a lógica dos povos indígenas, seus princípios políticos e econômicos”, conta Eugenio Rojas.

O bloqueio de estradas interrompeu fluxos turísticos importantes, como o que liga a cidade de La Paz ao santuário de Copacabana, no Lago Titicaca. Durante quase um mês, o governo esperou que a mobilização se enfraquecesse, já que estava concentrada somente em um departamento do país. Con-tudo, em julho de 2001, o Ministro de Governo se impacientou e ameaçou mandar cinco mil homens a zona de Achacachi para acabar com o bloqueio12. Mais uma vez, os governos bolivianos atiravam contra os seus próprios pés, na sua completa ignorância sobre a lógica de mobilização indígena camponesa. A mobilização se intensificou, e o Quartel de Q’alachaka voltou a aparecer com muita força. No dia 13 de julho, mais de 25 mil camponeses desceram armados aos pontos de bloqueio, dispostos a enfrentar o exército. “Os aimarás dizem ‘não, o exército não vai entrar aqui e se querem entrar, ‘vamos ter guerra. Será exército indígena contra exército republicano’. Então eles saem com suas armas e o exército do governo vai avançando com tanques. Foi um momento tão tenso, ia haver matança. Os companhei-ros, por mais aguerridos que sejam, não têm armas, têm mausers de cinqüenta anos. O exército tinha metralhadoras, fuzis modernos”, lembra Marxa Chávez. Segundo ela, é o segundo ponto importante da trajetória dos aimarás, pois em 2000 este exército se forma e em 2001 “ele aparece publicamente, disposto a enfrentar. É algo muito radical”.

Neste momento de tensão, os setores sociais de Cochabamba através de Evo Morales (cocalei-ros) e Oscar Oliveira (Coordenadoria da Água) indicaram a sua solidariedade à mobilização aimará e a sua disposição a se juntar aos bloqueios. Contudo, já no dia 18 de julho, dia seguinte ao anúncio, começou o diálogo com o governo13, evitando assim o conflito entre os aimarás e o exército.

A Guerra do Gás e a derrocada de Goni em 2003No início de 2003 entra um novo governo, Gonzalo Sánchez de Lozada inicia então o seu se-

gundo mandato como presidente boliviano. O governo do MNR logo no início repudia os acordos feitos nas mobilizações camponesas anteriores, dizendo que eles careciam de validação jurídica.

12.ALBÓ, Xavier, op. cit., p. 88.

13.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 127.

Page 153: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

153

Terra e território

Tratava-se de um governo de profundo corte neoliberal, que começa com a aplicação de polí-ticas de ajustes econômicos ortodoxos, vistas de forma muito negativa pela população. Uma delas foi o impostazo, que causou já em janeiro de 2003 um conflito entre a polícia nacional mobilizada contra o exército sob mando do governo. A população urbana de La Paz logo se juntou ao conflito em defesa da polícia e morreram 32 pessoas nos dois dias que duraram os enfrentamentos.

Marxa Chávez aponta que a linha neoliberal do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, o Goni, já não condizia com as discussões que havia na sociedade: “As pessoas estavam justamente questio-nando o neoliberalismo e Goni aparece com uma proposta neoliberal. Além disso há um questionamento ao primeiro governo dele, de 1993 a 1996, quando se capitalizou tudo, foram vendidas todas as empresas públicas de Bolívia”.

No início do mês de setembro de 2003, o departamento de La Paz voltou a se mobilizar. Foram duas marchas que caminham em direção a La Paz, nenhuma muito massiva ou com cobertura midiática. Uma saiu de Caracollo, cidade ao sul de La Paz, liderada por Felipe Quispe. Participavam dela setores do seu partido, o Movimento Indígena Pachakuti, estudantes e moradores de El Alto. A outra saiu de Hua-rina, na própria província de Omasuyus, e foi convocada pela Federação Departamental de Camponeses, e juntava principalmente a direção do movimento sindical camponês da região.

Além do cumprimento dos acordos anteriores, as marchas reivindicavam a libertação de um dirigente camponês preso pela execução de justiça comunitária14 e, mais importante, incorporavam o pedido de não-exportação, nacionalização e industrialização do gás natural. Na época, o governo queria exportar o gás boliviano aos Estados Unidos através de portos chilenos. Isso causou um grande impacto na população, que nunca perdoou o país vizinho por ter anexado a parte litoral boliviana no final do século XIX, deixando o país sem saída para o mar.

“Queríamos dizer ao governo que não se vendesse o gás, porque eles queriam vender o gás ao Chile. E a gente se perguntava por que, pois o gás deveria ser para a gente. Os bolivianos não tinham gás e para vender havia. É um recurso não-renovável e tem que ficar para o país, não pode vender a outros”, diz Rufo Yanarico.

Marxa Chávez, contudo, localiza o início das discussões sobre o gás antes do governo de Sán-chez de Lozada. Tratava-se de uma discussão mais massiva do que a que houve em 2000, com a ameaça de privatização da água: “A água, que havíamos defendido em 2000 com todas as comunidades aimarás e com Cochabamba, se torna uma discussão também geral porque se começa a falar dos hidrocarbonetos.

14.Edwin Huampo, da pro-víncia pacenha Los Andes, foi preso por participar da deci-são de justiça comunitária de matar dois ladrões. GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 128.

Page 154: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

154

Terra e território

Banzer morre e delega o governo a Tuto Quiroga, e aí se começa a falar da possibilidade da venda do gás. (...) Havia nas rádios, nas ruas, grupos de discussão sobre os recursos naturais e o racismo. Foi um processo muito forte de discussão coletiva, já não somente em nível de comunidades aimarás ou de Co-chabamba, mas algo generalizado. Eu creio que era um processo de preparação coletiva para um futuro enfretamento”.

Contudo, as marchas do início de setembro não causaram muita adesão pública, e os manifes-tantes decidem apelar para outra forma de mobilização. “As pessoas começaram a falar ‘não vamos sair daqui, temos que deixar na cidade o cheiro de índio, o cheiro da Pachamama’ (...). Diziam ‘vamos ficar em La Paz, em greve de fome’. E nós, como dirigentes, nos perguntávamos aonde. Porque se ficássemos em qualquer lugar, o governo no meio da noite ia nos despejar. Aí tivemos a idéia de ficar na Rádio San Gabriel, que era uma rádio católica”, conta Felipe Quispe.

Mas as coisas não foram tão fáceis, e os responsáveis pela rádio cobraram aluguel dos grevistas. A solução apareceu quando autoridades do governo visitaram a rádio para começar uma negociação: “Para que não houvesse greve de fome, veio o Ministro de Assuntos Camponeses e Indígenas. Seqüestra-mos a ele e a seu vice-ministro, além de diretores. Todas as pessoas fechamos dentro da rádio. Nós somos preparados para este tipo de seqüestro, porque já havíamos aprendido antes”, explica Felipe Quispe. Para liberar as autoridades, os camponeses pediam duas coisas: a liberação do dirigente preso por justiça comu-nitária e que o governo pagasse o aluguel da rádio. Seus pedidos foram prontamente atendidos.

Alguns dirigentes, conta Rufo Yanarico, saíram da greve de fome na rádio, localizada em El Alto, para organizar bloqueios nas suas comunidades. “Chamamos as bases para que nos apóiem, mas as pessoas estavam um pouco cansadas. Saímos com o bloqueio em Q’alachaka. Mas às 10h da manhã sai o quartel e prendem Eugenio (Rojas) e o levam ao Quartel de Ayacucho”. Este bloqueio começou no dia 15 de setembro de 2003.

Rufo lembra que os soldados levaram Eugenio à Achacachi, que na época era do Comitê de Blo-queio, para denunciá-lo frente à população local: “Eles diziam às pessoas que ele que prejudicava o povo, que não deixava as pessoas trabalharem, que saía a bloquear. E Eugenio sabia porque estava bloqueando, então foi discurso contra discurso. Aí o povo defende a Eugenio, e acontece o contrário, os militares recebem pedradas e se escapam ao quartel”.

Depois deste episódio, o governo decide no dia 20 de setembro, tomar ações mais enérgicas contra os bloqueios. A desculpa era recuperar turistas que estavam isolados em Sorata, pois a estrada que

Page 155: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

155

Terra e território

liga a cidade com La Paz estava interrompida em Omasuyus. Rufo estava voltando do bloqueio para sua comunidade, Tacamara, quando viu um helicóptero chegando no quartel Ayacucho. Dentro dele estava o então Ministro de Governo Carlos Sánchez Berzain. Ele estava organizando no quartel uma ofensiva militar para trazer os turistas e dispersar o bloqueio na região.

Foi em Warisata, povoado que fica justamente entre Sorata e Achacachi, que se enfrentaram o exército com os camponeses. Eugenio Rojas conta15 que a população local organizou uma resistência aos militares, impedindo a sua passagem com a destruição de pontes e caminhos. Quando eles finalmente conseguiram alcançar Warisata, enfrentaram-se primeiro com as mulheres e jovens, que não possuíam armas de fogo, somente pedras e paus. No momento de ingressar à comunidade, os militares utilizaram armas de fogo e assim se endureceu a guerra entre “Exército Indígena de Omasuyus contra o exército libe-ral de Sánchez de Lozada”16. O conflito começou às 15h e terminou às 19h, e resultou na morte de cinco pessoas, inclusive de uma menina de nove anos17, a maioria estava alheia ao conflito.

A morte destas pessoas somada ao fato do exército ter metralhado a Escola de Warisata, símbo-lo da cultura aimará, mexeu amplamente com a opinião pública e teve, mais uma vez, um efeito multipli-cador da mobilização. Felipe Quispe lembra de uma senhora, parente de uma das vítimas: “Esta mulher teve quase doze filhos, e aparecia bem forte pelos meios de comunicação (...). E as pessoas são muito sentimentais no nosso país, viam-na com muitos filhos, perguntando como ia sustentá-los, chorando pelas telas de televisão. Então esta dor, estas lágrimas de Warisata perfuraram os corações de pedra dos que viviam em El Alto e em La Paz”.

A partir do massacre de Warisata, a população de El Alto se juntou maciçamente às mobiliza-ções. De 20 de setembro até 17 de outubro, quando Goni caiu, o país se convulsionou. Os bloqueios de estrada se multiplicaram para outros territórios, e a vanguarda da ação política passou a ser a cidade El Alto, com o seu fortíssimo movimento de juntas de vizinhos. Os moradores de El Alto desciam à cidade de La Paz continuamente, paralisando suas atividades e cercando mais uma vez a sede do governo. Com a mobilização, houve massacres violentos, que chegaram a ter até 26 mortos em um dia, como o massacre do Rio Seco. Os mineiros de Huanuni e Caracoles se juntaram à mobilização, e, ao final, se provocou uma greve geral dos setores urbanos das principais cidades do país18.

Marxa Chávez vê este período como uma conjunção de todas as forças sociais da Bolívia: “Em outubro, é como se tivéssemos juntado Cochabamba, com o altiplano aimará, com El Alto, e com a força de cidades como La Paz e Oruro. Tudo em um só tempo. É como se fossem diferentes tempos políticos

15.Cit in: GUTIÉRREZ, Ra-quel; ESCÁRZGA, Fabíola (coordenadoras). Movimiento indígena en América Latina: resistencia y proyecto alter-nativo, Volumen II, p. 60-67. Casa Juan Pablos / Centro Cultural / S. A. de C.V./ Cen-tro de Estúdios Andinos y Me-soamericanos / Benemérita Universidad Antónoma de Puebla. 2006.

16.Cit. in: GUTIÉRREZ, Ra-quel et al., op. cit., p. 63. Tra-dução da autora.

17.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 129.

18.Idem, p. 129.

Page 156: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

156

Terra e território

juntos também, não? O tempo sindical, político, dos mineiros que chegam de Oruro a La Paz em outubro. O tempo das comunidades do norte (Omasuyos), que também vão chegar, e que estão já na construção deste quartel indígena. A cidade de El Alto, que se insurreciona totalmente, é uma cidade tomada pelos moradores, a polícia não pode entrar ao menos que seja disparando. A cidade de La Paz, que também se junta à mobilização. A cidade de Cochabamba, que volta a sair. Oruro e Potosi que estão totalmente mobilizadas”.

A agenda de outubro, que reivindica a nacionalização dos hidrocarbonetos, a sua industrializa-ção, e a reversão generalizada das políticas neoliberais dos anos anteriores, é forjada em meio a todas estas reivindicações. Ela é resultado de um sentimento nacionalista difuso, contrário à exportação do gás por portos chilenos, que se desenvolve em uma agenda contundente e popular, que expõe questões centrais para país. Ela consegue reverter definitivamente o processo neoliberal boliviano, derrocando Sánchez de Lozada e obrigando os governos futuros a olhar mais para as necessidades internas do país do que para as recomendações políticas e econômicas internacionais.

Os camponeses de Omasuyus, enquanto o conflito urbano se intensificava em diversas partes do país, se preparavam para chegar à cidade de La Paz. Segundo Felipe Quispe, era a concretização do seu terceiro plano de ação, a tática mais ambiciosa dentro deste projeto político aimará.

A primeira, chamada de Plano Pulga, se realizava quando as mobilizações estavam enfraqueci-das. “À noite picávamos, atacávamos o inimigo, e depois íamos embora. E assim começava. A pulga de pica e salta constantemente”, explica Quispe. Assim, por exemplo, os caponeses bloqueavam caminhos pela noite e durante o dia saiam. A operação era repetida sempre que o caminho era desbloqueado, des-gastando as autoridades. A segunda tática era o Plano Formiga Colorada, que acontecia quando havia manifestações maciças, marchas ou bloqueios.

O terceiro plano, o Plano Tarajchi, um pássaro da região andina, se consistia em “assalto aos quartéis, às casas dos ricos, ao palácio de governo”, era, segundo Quispe, a tomada efetiva do poder. Os indígenas de Omasuyus de fato chegaram a La Paz em outubro de 2003, mas chegaram tarde, depois que Goni já havia renunciado.

“Os irmãos jovens caminhavam aqui pela cordilheira, clandestinamente. A gente caminhava pela estrada, até a cidade de La Paz. Já tínhamos preparado o cerco, no qual teríamos que morrer. Antes que acontecesse isso, Gonzalo Sánchez de Lozada abandonou o governo, escapou... E já estávamos a pon-to de começar a guerra civil, igual a de 1952. Todos estávamos dispostos a morrer, a dar nossas vidas. Eu

Page 157: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

157

Terra e território

creio que foi uma boa hora para Goni sair, senão, teríamos guerra civil”, conta Rufo Yanarico.Felipe Quispe lamenta, “se isso tivesse acontecido, já estaríamos muito diferente. Agora já não

seriamos Bolívia, já seriamos Qullasuyu. Porque a gente teria feito outra coisa, não somos Evo Morales”.A Guerra do Gás derrubou Gonzalo Sánchez de Lozada em 17 de outubro de 2003. A instabi-

lidade política da Bolívia continuou durante o mandato de Carlos Mesa, seu vice, que também foi obri-gado a renunciar em 2005. Neste mesmo ano, foram chamadas novas eleições, das quais sai presidente o ex-cocaleiro Evo Morales.

Page 158: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

158

Terra e território

Luta pela reivindicação ou reivindicação pela luta?Nestes anos de luta intensa em Omasuyus, foram reivindicadas a não-privatização da água, listas

imensas de pedidos específicos da CSUTCB, símbolos nacionais indígenas em contraposição aos símbo-los coloniais e, finalmente, a nacionalização e industrialização dos hidrocarbonetos.

Contudo, uma meta muito maior se transparece quando Felipe Quispe e Eugenio Rojas, por exemplo, expõem as suas histórias. As reivindicações aparecem, portanto, como desculpas, formas de mobilizar as pessoas em torno do seu grande projeto: a reconstituição do Qullasuyu, a tomada do poder pelos indígenas originários.

Xavier Albó, contudo, vê nas mobilizações da região de Achacachi um terceiro e principal impulso: a rixa interna dentro da CSUTCB entre os partidários de Felipe Quispe e os partidários de Evo Morales. “E eu creio que a Guerra do Gás era a ocasião e não a causa principal. A causa principal era conseguir sua hegemonia dentro da CSUTCB”, diz o antropólogo.

Tal disputa ocasionou em 2001 uma divisão da entidade que persiste até hoje, com uma con-federação liderada por Quispe e outra por setores ligados ao MAS19. Então, se havia uma mobilização de cocaleiros, o setor aimará de Omasuyus se mobilizava mais fortemente, numa disputa para ganhar a legitimidade de vanguarda e de liderança. Às vezes, a balança pendia para o lado do altiplano, como em setembro e outubro de 2000 quando as mobilizações lançaram Felipe Quispe como personagem impor-tantíssimo da conjuntura boliviana; outras vezes, a balança pendia para o trópico cochabambino, como em 2002 quando Evo Morales, então deputado, foi expulso do parlamento por perseguição política e as mobilizações cocaleiras ganharam tanta notoriedade que foram chamadas de Guerra do Gás20. Aparen-temente, a rixa se esgotou em 2005, quando Evo Morales foi eleito presidente, suplantando em muito o seu antigo adversário.

O AIMARÁ POLÍTICO

19.Isaac Ávalos, citado ante-riormente é secretário execu-tivo da CSUTCB ligada ao MAS, enquanto Rufo Calle é secretário executivo da mais ligada ao grupo do Mallku.

20.Esta caracterização de lide-ranças em 2000 e 2002 é feita por Xavier Albó. In: ALBÓ, Xavier, op. cit., p. 92.

Page 159: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

159

Terra e território

De qualquer forma, não se pode explicar as mobilizações de 2000 a 2005 somente com a briga de lideranças e de egos. Havia diferenças entre os projetos políticos de mudança apresentados pelo setor aimará e pelo setor masista. Eles também disputavam entre si uma saída para a crise que enfrentava o Estado-nação boliviano.

As reivindicações, no geral comuns aos dois blocos, diziam respeito à resistência frente à polí-tica neoliberal, às privatizações, à pobreza crescente da população, à falta de soberania nacional, à dimi-nuição dos salários, dos direitos trabalhistas, etc. Contudo, o grande tema de debate entre os dois blocos sociais era o que fazer após o neoliberalismo ser derrotado.

A reconstituição do Qullasuyu era um projeto ambicioso, mas carecia de apelo para os setores não aimarás da sociedade boliviana. “Era um projeto forte, mas utópico. Não era operativo”, aponta Xavier Albó. Segundo ele, a proposta era excessivamente “ideológica” e não partia das próprias comuni-dades para efetuar mudanças, num processo de baixo para cima, condição fundamental para uma efetiva descolonização.

Em contrapartida, o projeto que apresentava o MAS-IPSP, por mais difuso que fosse, conseguia travar um diálogo a nível nacional. Frente à necessidade de descolonização, respondia com a proposta de Assembléia Constituinte, que teria caráter fundacional. Centrava-se muito nas propostas de nacionaliza-ção das empresas privatizadas e em uma política externa independente e denunciante do imperialismo norte-americano. Albó aponta no próprio Evo Morales algumas características importantes para que o MAS tivesse maior aceitação: “Parte da habilidade política do Evo foi ter, sendo ele somente dirigente cocaleiro, a habilidade de vestir camisetas muitos distintas. Recuperou o aimará de quando era menino, se colocou ao lado dos mineiros, começou a brigar junto com eles”.

De qualquer maneira, o projeto masista conseguiu chegar à presidência da república em 2005. Enquanto isso, os que lutavam pela reconstituição do Qullasuyu ou estão agora um pouco eclipsados, ou aderiram ao projeto masista, tentando ver nele uma forma de aplicação do seu próprio, como é o caso do vice-presidente Álvaro Garcia Linera.

A República de QullasuyuEugenio Rojas define o projeto de reconstituição do Qullasuyu com o resgate da política e da

economia aimará. Esta política, segundo ele, não tem a lógica de dominação da política eurocêntrica ca-pitalista “para o aimará a política é prestar serviço, não é dominar, presentear os nossos recursos naturais,

Page 160: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

160

Terra e território

oprimir, massacrar. Não é essa a democracia e o princípio político do aimará, se não que é servir ao povo (...) Então, a política é por turnos. Vão trabalhando por turno, esta região é para isso, essa é para aquilo, este ano tem que ser esta região e aquela não. Esta é uma política de serviço, por estar neste território, por ter o usufruto da terra”.

A economia aimará segue os princípios comunitários e coletivos: “Nós não aceitamos a empresa privada, aqui não há empresas privadas. Verá hoje, são todas associações comunais, que fazem parte da comunidade. Nós agora estamos impulsionando as empresas comunitárias, frente à empresa privada. Isso é uma nova alternativa, que nos vai custar muito, mas estamos avançando bem nisso”, diz Eugenio a partir também da sua experiência como prefeito.

Claro que a contraposição à política eurocêntrica e dominadora e à empresa privada são fenômenos modernos, impossíveis de serem pensados em épocas pré-colombianas. A visualização do indesejado também não é feita somente olhando para a Europa, para a fonte da colonização, como um exercício de comparação teórica. É feita com a experiência objetiva da colonização na América Latina, com todas as distorções e massacres que são conseqüências de uma imposição cultural, econômica e política. Nos rincões da América Latina, a política eurocêntrica tomou características mais cruéis, personalistas, corruptas e violentas. A empresa privada, símbolo de modernidade em outras partes, aqui será um novo nome para as antigas empresas coloniais que expropriavam os povos originários para guardar as suas riquezas em uma parte longínqua do globo. Portanto, esta retomada dos valores antigos, feita com maior contundência somente no século XX – quinhentos anos depois do início da colonização - só pode ser entendida pela perspectiva histórica atual.

Da mesma maneira, a figura do q’ara, do homem branco, estrangeiro, é constantemente revista dentro da figura do elemento explorador. Se antes ele era o espanhol, que sugava a prata de Potosi e as vidas dos índios nas minas, ele passou a ser na atualidade a figura do gringo americano que intervém nos assuntos de política interna, que promove os massacres no Chapare, ou o latifundiário croata que se apropria de territórios indígenas nas terras baixas do país21.

Portanto, a imagem do q’ara é sempre relacionada com a figura do que possui riquezas. Contudo, estas riquezas não provêm de um esforço pessoal, segundo as teorias clássicas liberais, mas são frutos da exploração dos povos indígenas, como aponta Garcia Linera22. Desta forma, trata-se de um conflito de classes com forte elemento étnico, pois a sociedade de classes e colonial na Bolívia foi fundada a partir deste recorte cultural: “A etnificação social é um componente estrutural da formação classista da

21.Branco Marinkovic, pre-sidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, sofre um processo atualmente por ter se apro-priado indevidamente de 26 mil hectares, parte deles em território dos índios guarayos.

22.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 176.

Page 161: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

161

Terra e território

sociedade e, em muitos casos, é tanto ou mais visível, e, portanto, moralmente mobilizador, que o próprio volume da riqueza possuída”23.

Garcia Linera ainda aponta que é justamente esta característica étnica que pôde fazer com que o movimento aimará, majoritariamente camponês, tivesse um braço tão forte na zona urbana como o movimento de moradores de El Alto. “Ao ressaltar esta dimensão cultural da condição de classe, a etnicidade como núcleo explicativo da opressão unificante, o movimento abre as portas para uma articulação com outros setores, de outras classes sociais etnicamente dominadas, ainda que economicamente menos exploradas (transportistas, comerciantes, operários, etc.)”24.

O Estado opressor, ainda com características coloniais, era a materialização deste q’ara. Era ele que regulava a exploração das empresas estrangeiras em território boliviano, era ele que permitia a inter-venção americana. Seu controle era feito por uma elite nacional que tinha muito mais em comum com os estrangeiros do que com os próprios bolivianos. Portanto, a relação deste movimento com o Estado sem-pre teve em vista a sua substituição por outro modelo, uma ruptura que apontasse para uma nova era25.

Esta sociedade “comunitarista” seria alcançada, segundo Felipe Quispe, “com a força das armas, não pela via eleitoral”. Para ele, a participação no Estado é válida somente para se tornarem conhecidos e aprender como os q’aras controlam o poder. Eugenio Rojas, que é prefeito, aponta que o Estado traz limitações de ação, mas garante que se sua comunidade achar necessário infringir as regras do Estado, ele o fará: “Mas se fazemos bem ao nosso povo, não temos medo de sermos processados”.

Tal vontade de auto-governo e de autodeterminação se popularizou, segundo Garcia Linera, com a luta contra a privatização da água26 em 2000. Tratava-se de uma privatização não de um bem estatal, mas sim de um bem comunitário. O serviço de abastecimento de água, tanto nos vales de Cochabamba quanto no altiplano de Omasuyus, era gestionado por sistemas comunitários e familiares. Além de ser uma expropriação, sem indenização, destas estruturas de abastecimento27, a privatização da água ameaçava a forma tradicional de gestão comunitária boliviana, principalmente no campo. Frente a isso, a figura do Estado foi cada vez mais questionada nas mobilizações de Omasuyus.

Contudo, o movimento de Omasuyus não pode ser tomado como a totalidade do movimento aimará, assim como o seu projeto político não é geral para todas as agrupações aimarás. Tal observação é feita por Xavier Albó, que lembra que organizações como a CSUTCB e a Conamaq (Conselho Nacional de Markas e Ayllus do Qullasuyu) tem projetos políticos distintos, assim como Felipe Quispe e Evo Mora-les, ambos aimarás, também são figuras políticas muito diferentes.

23.Idem, 176. Tradução da autora.

24.Ibidem, 177. Tradução da autora.

25.O partido fundado em meio a estas mobilizações por Felipe Quispe, e pelo qual Eugenio Rojas é prefeito de Achacachi, o Movimento In-dígena Pachakuti, indica esta vontade política. Na tradição dos povos andinos “Pachaku-ti” significa mudança do mundo e nova era. In: ALBÓ, Xavier op. cit., p. 191.

26.GARCIA Linera, Álvaro (coord.) et al., op. cit., p. 180-181.

27.Em Cochabamba, por exemplo, as organizações vici-nais se responsabilizavam pelo abastecimento da água e ha-viam construído, sem a ajuda do Estado, toda a infraestrutu-ra para tal atividade.

Page 162: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

162

Terra e território

O antropólogo localiza, contudo, uma característica geral em todos eles: “Bom, eles querem se reconstruir enquanto povo, isso é evidente. A reivindicação, de qualquer forma, não tem o problema que há com os de outras partes, que é ter a sua terra, isso eles já têm. O que sim querem ter mais é seu próprio governo nestes territórios”.

Dialética e dualismo aimaráHá outras características gerais, porém, que identifica Xavier Albó nos aimarás. Uma das temáti-

cas freqüentemente tratadas na sua obra é o que ele chama de “aparente paradoxo aimará”, uma presença sempre muito forte de elementos solidários e faccionalistas nas populações aimarás. Ele dá o exemplo do ano 200028, no qual estas duas características se apresentaram ante a opinião pública de forma muito contundente. A intensa mobilização nos meses de setembro e outubro demonstrou um grande sentido étnico e de identificação aimará, com o cerco da cidade de La Paz e o bloqueio de diversas estradas, resga-tando constantemente figuras de heróis aimarás como Tupac Katari e Bartolina Sisa. Alguns meses antes, contudo, um conflito entre os ayllus vizinhos Laymi e Qaqachaka causou a morte de 80 indígenas.

Não se trata de algo necessariamente inexistente em outros grupos. Albó lembra, como exemplo disso, o intenso faccionalismo que houve na região dos vales cochabambinos logo após a Revolução de 1952, com conflitos fatais entre grupos camponeses rivais. Da mesma forma, o sentido comunitário, em maior ou menor grau, é visto em sindicatos de regiões quíchuas em todo o país.

No caso aimará, seu objeto de estudo, Albó aponta que o comunitarismo é uma forma que o grupo encontra para equilibrar os interesses individuais. A comunidade ganha grande importância jus-tamente pela sua capacidade de resolver conflitos entre indivíduos e por não permitir que haja grandes desigualdades no seu interior. Contudo, o gérmen deste tipo específico de individualismo aimará perma-nece, e se desenvolve mais comumente na forma do faccionalismo29.

Ao contrário do ideário ocidental, que faz do indivíduo um princípio ordenador da sociedade, os aimarás fazem da comunidade este princípio. Desta forma, os impulsos individuais, egoístas, que não consideram a coletividade, são canalizados em formas coletivas: de grupos contra grupos no interior de uma comunidade ou de comunidade contra comunidade em um espaço regional comum. Talvez o senti-do da coletividade tenha se fortalecido especialmente devido à presença colonizadora que, ao impulsionar a desagregação dos povos originários, acabou criando também o efeito contrário.

Contudo, não se pode negar que as adversidades vividas pelos aimarás como resultado da

28.ALBÓ, Xavier, op. cit., p. 15-16.

29.Idem, p. 30-31.

Page 163: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

163

Terra e território

Page 164: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

164

Terra e território

colonização, como a privação de recursos naturais (terras férteis, água para irrigação, etc.), também são motivos centrais para o faccionalismo. “O motivo quase onipresente neste faccionalismo é o acesso aos re-cursos naturais. Neste ponto quase não há região – com exceções nos Yungas e zonas de colonização – nas quais não houve algum conflito, sequer ao nível de querela. São brigas por território”, pontua Albó30.

Albó aponta alguns elementos que provocam mais o faccionalismo, como os recursos escassos, e outros que provocam mais a solidariedade, como a identificação de um inimigo em comum. “Em gran-de síntese, quando têm um objetivo em comum, estão juntos. E quando desaparece este objetivo comum, pan pan pan , brigam entre eles”.

Esta dialética e união de contrários são aspectos centrais na estruturação simbólica aimará31. Ela pode ser perceptível desde organizações sociais por metades, com povos que habitam um território composto por partes mais altas e partes mais baixas, até entendimento dos objetos e da natureza, “há, por exemplo, pedras masculinas (mais duras) e outra femininas (menos duras, porém mais resistentes); a casa é considerada masculina e o pátio feminino; ou ao nível comunal, a torre da igreja é considerada é masculina, em contraste com o átrio ou a praça, que são femininos”32.

O que é aimará?Finalizando pelo início, cabe um esclarecimento aos leitores sobre a definição do que é ser

aimará. Segundo Mario Galindo, eram etnias aimarás as que compunham os senhorios collas, espécie de reinos localizados ao redor do Lago Titicaca que duraram do século XII até o século XV, com a anexação da região colla (Qullasuyu) ao domínio inca33.

Hoje, contudo é muito difícil falar de etnias puras, estabelecendo, por exemplo, que todos os que falam a língua aimará hoje são decendentes dos senhorios collas e os que falam quíchua, dos incas. A utilização generalizada destes dois idiomas pelos povos andinos corresponde inclusive muito mais a um fenômeno colonial. “O aimará era uma rama que ficou majoritária de uma língua geral maior. E quando chegam os espanhóis, eles borram todas as diferenças que havia entre os indígenas e circunscrevem os indígenas em uma identidade determinada, ‘índios aimarás, índios quíchuas’. Então, estas são identifica-ções coloniais”, explica Marxa Chávez.

As próprias regiões onde cada língua era falada também não correspondem às atuais divisões, que têm áreas geográficas mais contínuas. Correspondiam mais a “zonas ecológicas”, nas quais “os aima-rás estavam, sobretudo, em áreas de altitude mais aptas para o pastoreio, e os quíchuas nos vales mais

30.Ibidem, p. 32. Tradução da autora.

31.Ibidem, p. 49.

32.Ibidem, p. 46. Tradução da autora.

33.GALINDO S., Mario (coord.); CRUZ A., Bonifa-cio; PARDO V., Elizabeth; BUENO S., Ramiro. Visiones aymaras sobre las autonomías. Aportes para la construcción del Estado nacional, p. 251. PIEB. La Paz, 2007.

Page 165: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

165

Terra e território

agrícolas”, aponta Xavier Albó34. Segundo ele, era muito provável que o pertencimento a um aylllu era mais importante que a localização geográfica deste, e talvez até mais importante que a língua falada.

Marxa Chávez aponta, porém, que o fenômeno da forte identificação aimará de hoje se deve muito mais a uma identidade politicamente construída do que uma cultura em si. “A população aimará antes da colônia sofreu um processo de subordinação a tudo o que foi a dominação inca. Então, há uma mistura, ninguém pode dizer que são culturas puras. Mas sim, há um processo de identificação muito forte”. Segundo ela, o aimará enquanto folclore era aceito pela sociedade colonial, mas quando o aimará passou a ser reivindicado como identidade política, esta identificação foi fortemente negada.

Mais uma vez tratamos de uma identificação que, apesar de ter raízes milenares, tem uma relação dinâmica com o presente e só pode ser entendida a partir da sociedade que vivemos hoje. Dizer “Nação Aimará” e “República Qullasuyu” é fruto muito mais de um processo histórico de reversão da opressão étnica sofrida durante a colônia do que de uma mera vontade de voltar ao passado.

34.ALBÓ, Xavier, op. cit., p. 173-174. Tradução da autora.

Page 166: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

166

Terra e território

Antecedentes de 2000, a história do MallkuFelipe Quispe começou a sua militância já nos anos 1970, quando o movimento étnico na

região altiplânica aimará estava reflorescendo com base na referência política de Tupac Katari. Ele fazia parte de uma corrente chamada indianismo, que criou nesta época o Movimento Índio Tupac Katari (MI-TKA). O indianismo se contrapunha ao Movimento Revolucionário Tupac Katari (MRTK), que possuía uma linha mais nacionalista, pois foi justamente esta vertente que se inseriu na direção da CSUTCB.

A radicalidade é a característica mais marcante do indianismo, pois o seu discurso étnico e contra os q’aras era muito forte. “Tem uma conotação política muito forte esta palavra ‘índio’”, explica Marxa Chávez, “pois é a palavra que as elites usam para descriminar. Dizer ‘você é um índio’ é uma des-qualificação total. Então, eles assumem essa visão e dizem ‘sim, somos índios e vamos nos liberar como índios’. São eles que propõem coisas tão fortes como a guerra de raças contra os brancos, a expulsão dos brancos”.

Felipe conta que o golpe de Estado de Garcia Meza, em julho de 1980, os fez abandonar o país. Nesta época, ele fazia parte do Exército de Liberação Nacional e junto com companheiros, participou de guerrilhas em outros países, como em El Salvador, na Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional. “Ali aprendemos a fazer uma organização clandestina, conspirativa, como podíamos nos articular, a fazer a luta armada”, diz ele.

Ao voltar para a Bolívia, estas pessoas passaram a participar do movimento sindical camponês “Então aprendemos ali e logo em 1984 regressamos a La Paz e tivemos que ocupar as direções sindicais. Eu fui secretário da federação. E com estes credenciais voltamos a rearticular a militância, a organizar os quadros políticos. Sempre com esta mentalidade de sair à luta armada”.

Finalmente, no início dos anos 1990, foi formado o Exército Guerrilheiro Tupac Katari

TRÊS HISTÓRIAS AIMARÁS

Page 167: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

167

Terra e território

Page 168: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

168

Terra e território

(EGTK). Este exército juntava militantes antigos do indianismo, como o próprio Felipe Quispe, com militantes da esquerda marxista tradicional, como os irmãos Raul e Álvaro Garcia Linera, que atualmente é vice-presidente boliviano. “Eles eram do Movimento Nacionalista Revolucionário de Esquerda. Discu-timos, eram totalmente marxistas, não sabiam nada da ideologia índia, tupac-katarista. Eles eram gente da burguesia, dos ricos, queriam se proletarizar, se indianizar, queriam provar a coca, comer a comida índia”, diz Felipe.

O EGTK, organização clandestina e pequena, se limitava a fazer ações midiáticas de ataque a torres de televisão e embaixadas: “Fazíamos a nossa propaganda, quebrando as torres, colocando bombas nas embaixadas, nas igrejas evangélicas, dos mórmons, acima de tudo era uma expressão contra os EUA”. A ação guerrilheira também incluía treinamento dos novos militantes: “a gente, os velhos, havíamos participado e nos submetido às regras das guerrilhas na América Central. E trouxemos isso. E queríamos levar isso em prática, e levamos até certo ponto”.

Mas Felipe identificava discrepância com os militantes brancos. “Não sabiam cozinhar, porque o pau tem que cruzar, e eles os metiam assim, e só fazia fumaça, nunca cozinhava a comida. Eles não gostavam de fazer guarda durante a noite, buscavam a sua comodidade. Aí começamos a discrepar. Aí aprendi também que no branco não se pode mandar, sempre tem este complexo de superioridade, sempre tem este ‘eu’”.

Em 1992, a guerrilha é desbaratada pelo governo, suas lideranças são presas ou fogem do país. A luta guerrilheira do EGTK acontece paralelamente a outras experiências latino-americanas dos anos 1990, como Sendero Luminoso e o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA), ambos no Peru. Mas não se compara a violência dos movimentos peruanos, pois suas ações efetivas se deram muito mais no plano da propaganda. Xavier Albó também aponta outra característica própria do EGTK: “Diferente-mente de outros grupos, como o MRTA, que apelava para figuras andinas, mas não tinha bases realmente rurais e andinas, Felipe Quispe sim havia conseguido aglutinar um grupo de base, sobretudo na região de Achacachi, e havia feito seus avanços para influir na poderosa CSUTCB desde o seu discurso mais radical e ideológico”35.

Eugenio Rojas, que foi companheiro de Quispe no EGTK, acredita que a experiência foi po-sitiva, mas vê muitos erros na atuação deles e das guerrilhas da época. “E eu conheço um pouco o que era o Sendero Luminoso, eu trabalhei três meses ali na guerra. Era lamentável, eu era muito jovem e não compreendia o que estávamos fazendo. (...) Era muito terror dentro na população indígena. Trouxemos

35.Idem, p. 80. Tradução da autora.

Page 169: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

169

Terra e território

essa experiência para cá e quase a mesma coisa implementamos na Bolívia, este terror. Não era assim. Mas estes erros nos fortaleceram no futuro. Percebemos que os guerrilheiros com o povo avançam melhor. Dentro da massa, no meio das pessoas, a gente empurrando, mas junto, metido aí no meio. Eu era diri-gente, Felipe era dirigente. Isso nos ajudou, não retroceder jamais, avançar diariamente com o povo. Isso nos ajudou muito em 2000, 2001, 2003, 2005, e ainda continuamos”.

O irmão de Eugenio, Felipe Quispe, os irmãos Garcia e outras lideranças do EGTK foram presos em 1992 e permaneceram cinco anos na prisão. Ao saírem ganharam uma grande atenção midiá-tica, em especial Felipe Quispe, que passou a ser chamado de El Mallku. Já nesta época, ele demonstrava especial capacidade denunciar publicamente os q’aras, o Estado colonial opressor e reivindicar a figura do herói Tupac Katari, sempre muito presente na memória aimará.

Logo depois, em novembro de 1998, Felipe foi eleito secretário-executivo da CSUTCB como mediação de uma rixa entre dois grupos cochabambinos, o grupo de Alejo Véliz e o grupo de Evo Mo-rales. Logo, Quispe se aproxima mais do grupo de Véliz, segundo ele porque o grupo de Evo era muito recuado nas suas ações: “Havia o grupo de Alejo Véliz, que tinha uma linha política mais ou menos pró-xima de mim. E havia o grupo de Evo Morales, que não queria realizar os bloqueios de estradas, cortar os produtos agropecuários, cercar as cidades, fazer greves marchas. (...) Mas nós, como tínhamos uma posição radical e já havíamos feito a guerra de guerrilhas, pensávamos diferente. Desta forma, tivemos que expulsar o grupo de Evo Morales”.

Esta expulsão ocorreu em março de 2000, quando Roman Loayza, então segundo nome da CSUTCB, foi expulso da confederação. Em novembro deste mesmo ano, Felipe Quispe fundou seu pró-prio partido, o MIP, o que acirrou a disputa entre o seu grupo e o grupo liderado por Evo Morales, que até então encabeçava o único partido nascido de dentro das organizações camponesas, o MAS-IPSP.

Em janeiro de 2001, um congresso da CSUTCB em Oruro elege como secretário-executivo a Humberto Choque. Contudo, o grupo de Felipe Quispe e as algumas federações departamentais que a ele permaneciam fiéis, como a de La Paz, não reconhecem o congresso e em abril realizam um outro con-gresso em La Paz. Ali, Felipe Quispe é reeleito como secretário executivo e começa o paralelismo sindical da CSUTCB, que até hoje possui duas sedes e duas diretorias.

Segundo Marxa Chávez, de qualquer maneira a entrada de Felipe Quispe na liderança da CSU-TCB é um marco, ao menos se levamos em conta o movimento específico de Achacachi. “Felipe é eleito como máximo representante da CSUTCB em 98 e é interessante porque diferente dos outros dirigentes,

Page 170: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

170

Terra e território

que estão muito imiscuídos na política partidária, o que ele faz é ir de comunidade em comunidade. Ele passa pelas 200 comunidades de Omasuyos, a pé, de bicicleta, com um grupo de companheiros que o apóiam”. Ela relata que, enquanto fazia a sua pesquisa em Omasuyus, as pessoas falvam deste trabalho de base, este “processo de discussão ao nível das comunidades”, no qual se debatia política e recursos naturais e que foi central para a luta contra a privatização da água em 2000.

Felipe Quispe conta que foi um processo de “re-indianização” das pessoas. “A maioria dos camponeses eram militantes do MNR. Quando era mais jovem, meus irmãos mais velhos eram do MNR, das milícias armadas. Porque aqui neste lugar havia patrões, e para tirar estes patrões tiveram que se armar. Então, como estavam movimentizados [eram do MNR], como agora também estão neoliberalizados, o que tinha que ser feito? Tinha que des-movimentizar, des-neoliberalizar, e finalmente re-indianizar, ou seja, fazer com que reencontrem com seu próprio pensamento, que voltassem a ser índios, não simplesmente camponeses”. Este trabalho era feito com cursos, seminários, palestras, uma espécie de “escola política ideológica que eduque as pessoas, as massas”.

A partir deste processo, segundo Quispe, se conseguiu apresentar um discurso diferente frente à nação. “Já não era colocar bombas, atirar, sabotar os meios econômicos dos ricos, era uma luta massiva, de toda uma nação aimará, pedindo a sua livre autodeterminação. (...) Havíamos re-indianizado estas pessoas. Então começa a sacudir a apatia, rompe o silêncio destes 500 anos, sai à luz pública um discurso anti-q’ara, anti-branco, anti-colonial, anti-imperialista, anti-capitalista”.

Oito anos depois dos conflitos massivos de 2000, Felipe Quispe não ocupa nenhum cargo dentro do movimento camponês indígena. Seus seguidores diminuíram consideravelmente de tamanho, dado o que ele mesmo chama de “fenômeno Evo Morales”, que praticamente os destruiu a partir de 2005. Muitos militantes passaram para o lado do MAS, como o seu velho companheiro de guerrilha Álvaro Garcia Linera, hoje pilar das políticas de governo do MAS. “E a gente discutiu, queríamos levar Álvaro Garcia como candidato à presidência, mas ele nem sequer quis sair como deputado nacional. Ele dizia que ia sair como deputado constituinte pelo nosso movimento político, mas tampouco. Logo aparece nas filas do MAS como candidato à vice-presidência, e isso é traição. Não há nenhuma carta de renuncia, não há nada”.

Quispe acusa também Eugenio Rojas, prefeito de Achacachi pelo MIP, de ter passado para as filas do MAS. “É como eu te dizia, muita gente foi para o outro lado. É como piolho, vão para o lado que faz calor, e como o Evo está fazendo muito calor, estão vivendo aí, neste calor”, lamenta o Mallku.

Page 171: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

171

Terra e território

Vivendo como os aimarás“Os aimarás diziam que tem que tratá-la como gente. Da batata, não se pode desperdiçar nada.

Assim vemos a natureza, com respeito”, me explica Seu Rufo Yanarico enquanto descascamos chuño no gramado da sua pequena chacra36. Dona Marcelina, sua esposa, nos acompanha e verifica se os chuños estão bem descascados.

Chuño é um tipo de batata ressacada, muito comum na alimentação tradicional andina. Quan-do a colheita é feita, são separadas as batatas mais miúdas. Estas são espalhadas ao solo para que congelem com as geadas noturnas. Depois, são pisadas para desidratar e o resto da secagem é feita pelo sol, muito forte nos Andes durante o dia. Por fim, as cascas têm que ser tiradas, e o chuño está pronto para ser guar-dado por anos e anos. Para comê-lo, basta cozinhá-lo em água.

Tacamara é uma comunidade de cerca de 400 famílias e fica aos pés do nevado Illampu, a me-nos de vinte minutos por estrada de pedras saindo de Achacachi. Ali Seu Rufo nasceu, se criou, se casou e teve seus três filhos: José, Marisol e Gabriel. Todos estudam na escola da comunidade, e José, que é filho mais velho e tem hoje 17 anos, já participa com os pais das reuniões comunitárias.

A pequena chacra, de meio hectare, foi herança dos pais de Seu Rufo, que até 1952 eram colo-nos na antiga fazenda de mesmo nome. O lote dos pais era garantido em troca do trabalho de segunda a sábado nas terras da patroa, Dona Emiliana. Depois da revolução de 1952, o casal dividiu o lote de um hectare entre os seus dois filhos homens. As filhas mulheres teriam que encontrar um marido para que pudessem ter seus próprios terrenos.

Com somente meio hectare, explica Seu Rufo, infelizmente não se pode deixar a terra descan-sar. A sorte é que há a água do degelo que sempre proveu a região de irrigação e a comunidade nunca sofreu com as secas. Na sua chacra, Seu Rufo mantém pequenas plantações de cebola, fava, aveia, batata e trigo. Além disso, possui três vacas, quatro porcos e uma galinha. As plantações garantem a comida da família, enquanto o leite das vacas, que dão cada uma algo em torno de cinco litros ao dia, garante o dinheiro para comprar material escolar, roupas, e demais necessidades de consumo.

A família vende o litro de leite por 2,3 pesos bolivianos à empresa Pil Andina. Seu Rufo se surpreende ao saber que esta mesma empresa vende o seu litro de leite pasteurizado no supermercado a 5,50. De qualquer forma, como Don Rufo agora é chefe de recursos humanos (personal) da prefeitura de Achacachi, a situação da família já não depende tanto da produção de leite. Com o marido funcionário público, é Dona Marcelina quem cuida do dia a dia da chacra. Ela conta também com os filhos, que já

36.Chacra, assim como chaco, se refere à uma parcela de ter-ra. É uma denominação mais usada no altiplano

Page 172: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

172

Terra e território

Page 173: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

173

Terra e território

têm idade para ajudar.Quando terminamos de descascar o chuño, Marisol traz o almoço acompanhada de seus irmãos.

Estendem na grama um tecido grosso bem resistente, listrado de cores fortes e feito pela própria Dona Marcelina. Nele sentamos em roda para almoçar. No centro, há outro pano, que traz embrulhados chuño, favas, um pote com molho de pimenta e peixe frito do Titicaca. Tomamos um refrigerante de mamão.

Falam algo em aimará, a família toda ri. Dona Marcelina me explica que seus filhos querem me adotar. Rimos todos. Sinto-me um pouco como Gringo, o gato da família. Devem pensar que eu, magra e sem cor para os padrões bolivianos, passo fome no Brasil.

Mas não há tempo para muitas conversas. Dona Marcelina e Don Rufo têm uma reunião im-portante às 11h, na praça da comunidade. Vou com eles até lá, para pegar a van que parte de volta para Achacachi. Ao chegarmos na praça, percebo um grupo de homens reunidos no canto esquerdo e um grupo de mulheres - algumas fiando lã, outras costurando – mais ao centro da praça. Seu Rufo e Dona Marcelina se separam imediatamente, cada qual indo em direção ao grupo que lhes corresponde. Eu, por sorte, encontro uma van que me leva direto a La Paz. No caminho vejo baixar José, o filho mais velho, atrasado para a reunião.

A Escola Ayllu de WarisataPara falar comigo, Basílio Quispe Churata pediu a autorização da prefeitura de Achacachi.

Tudo bem assinado e comprovado, para que ninguém lhe acusasse de atuar sem o aval da comunidade. Ele tem oitenta anos e, vaidoso, veio vestindo seu poncho vermelho, pois sabe que junto com os jornalis-tas há sessões de foto.

Os ponchos vermelhos são vestimentas masculinas tradicionais na região de Omasuyus, e são utilizados na tradição aimará tanto para festividades quanto para a guerra. Cada detalhe agregado ao pon-cho tem um significado, como o barrado verde que traz desejos de um bom cultivo. Já as listras escuras do chamado poncho huayruru (vermelho e negro) indicam o passado de servidão, dos tempos de colonos nas fazendas criollas. Trata-se de nunca esquecer, portanto, a luta pela liberdade.

Quase toda a região de Omasuyus sofreu com a servidão indígena. Diferentemente de outras regiões de aimarás, as fazendas coloniais eram muitas ali. Seu atrativo vinha provavelmente da fertilidade trazida pela irrigação natural e da proximidade com La Paz. Mas algumas poucas comunidades originárias se mantiveram, pois provavelmente as suas terras não eram férteis, grandes ou interessantes o suficiente

Page 174: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

174

Terra e território

para as fazendas. Warisata era uma destas poucas regiões de Omasuyus onde ainda viviam famílias indí-genas livres.

Warisata, portanto, possui uma cultura autônoma aimará muito forte, e isso foi um dos princi-pais motivos para ter sido ali onde surgiu a escola indígena mais importante do país. A escola de Warisata se tornou referência para muitos outros projetos educativos indígenas latino-americanos e, mais que tudo, foi referência para o ideal de liberação indígena camponês. O dia da sua fundação, 2 de agosto, se tornou posteriormente o Dia do Ìndio, comemoração nacional de muito significado político na história posterior boliviana37.

A família de Seu Basílio era da comunidade Muramaya, uma das oito comunidades que fazem parte de Warisata. Ali seu pai, Manuel Quispe Siñani, havia conseguido comprar terras do seu antigo patrão. Basílio nasceu em 1928, e tinha somente três anos quando a Escola Ayllu de Warisata foi fundada, em 1931. A escola nasceu de uma iniciativa conjunta de um habitante de Warisata, Avelino Siñani, tio avô de Basílio38, e Elizardo Perez, professor de origem mestiça formado em Sucre.

Basílio, portanto, acompanhou desde muito pequeno a construção e consolidação dos princí-pios político-pedagógicos da escola. Antes da existência da escola, Avelino Siñani, que era um camponês que tinha alguma educação básica, ensinava a outros camponeses a ler, a escrever, e a fazer contas. As clas-ses eram clandestinas, à noite e com o local sempre variando, pois os patrões da região não queriam que os índios tivessem qualquer tipo de formação e puniam fortemente os que se envolviam nestas atividades.

Elizardo Pérez era nesta época funcionário do Ministério de Instrução Pública, inspetor de assuntos indígenas do departamento de La Paz. Ele tinha como tarefa criar núcleos de educação para os camponeses, e já há algum tempo procurava uma região onde pudesse desenvolver este projeto.

Seu Basílio explica que foi uma peregrinação. “O tempo passou e ele preparou o seu plano de fundar um magistério. Primeiro se dirigiu a província Aroma, ao sul de La Paz, mas os fazendeiros não deixaram que ele desenvolvesse seu projeto. Voltou a La Paz e em Miraflores, começou a organizar educação para operários e para camponeses. Mas se deu conta que com o tempo, a cidade ia chegar até ali e não ia ser conveniente para os camponeses. O segundo intento não deu muito resultado. Então saiu para as margens do lago Titicaca, saindo de Copacabana, passando por Huata e chegou em Achacachi. E ali lhe informaram que em Warisata havia uma escola particular clandestina e que necessitava um professor do Estado”.

Era aparentemente contraditório que o Estado boliviano, que igualmente representava os

37.Foi no Dia do Índio, em 2 de agosto de 1953, que foi de-cretada a Reforma Agrária por Hernán Siles Zuazo, na cidade de Ucareña. Evo Morales, cin-qüenta e três nos depois, na mesma data e local, anunciou a sua política de Revolução Agrária, com a titulação de terras a camponeses e a doação de tratores.

38.A irmã de Avelino Siñani, Martina, era avó paterna de Basílio.

Page 175: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

175

Terra e território

fazendeiros que tanto se opunham à instrução do indígena, tivesse a política de formar uma escola rural camponesa. Seu Basílio explica isso com a Guerra do Chaco contra o Paraguai, que se iniciou em 1930 e que tinha como maior parte dos seus combatentes os indígenas recrutados. “Que lindo teria sido se nossos irmãos camponeses soubessem se defender. Mas eles não sabiam mexer com armas, tinham poucos conhecimentos. Desta maneira perdemos uma parte do chaco boliviano, perdemos petróleo. Por isso, o presidente Daniel Salamanca disse que os nossos índios precisavam se civilizar, aprender a ler e a escrever”. Era necessário formar uma massa com sentimento nacional, de inclusão dentro do espaço boliviano, principalmente frente às constantes perdas territoriais que Bolívia vinha sofrendo na sua história.

Mas esta vontade do Estado boliviano não era mais do que um aval para que a escola funcio-nasse, já que até os recursos para que ela fosse construída partiram dos esforços das comunidades de Warisata. Ao chegar na região, Elizardo Perez fez uma reunião com as autoridades da comunidade, que não somente concordaram com a construção da escola, mas também lhe ofereceram o terreno, materiais de construção – barro, pedra, terra, palha, areia, cascalho, todos os recursos locais – e força de trabalho comunitária para viabilizar o projeto. Depois da sua fundação, boa parte da escola ainda continuava em construção. “Esta ocasião eu já assisti. Eu levava merenda, coca e cigarro para os trabalhadores”, lembra Don Basílio Quispe. “Aqui es-tavam trabalhando os irmãos camponeses como formigas. Alguns faziam os tijolos, outros traziam pedras, tudo em comissões sob a orientação de Elizardo Perez, de mallkus, caciques e outras autoridades locais”. Assim, a escola se concretizou como um fruto da comunidade.

Na realidade, o nacionalismo casado com o resgate do indígena é um fenômeno que contra-ditoriamente vai se repetir a partir da Revolução de 1952. A reforma agrária devolve aos indígenas seu território, e, apesar de serem identificados como camponeses e de terem chamado as suas comunidades de sindicatos agrários, por baixo disso surgia a reconquista do manejo territorial indígena e as condições para que fossem resgatadas formas de vida anteriores à colônia e à presença européia.

A mesma lógica seguiu Warisata. Sob os ideais de progresso nacionalistas que floresceram a par-tir da Guerra do Chaco e que vão explodir na Revolução de 1952, foi formada esta escola que tinha como função “civilizar” o índio, e, acima de tudo, promover o desenvolvimento no campo. Mas este espaço, imensamente dependente da comunidade para se efetivar, acabou sendo um espaço de resgate cultural e de resistência contra a opressão dos fazendeiros. Ao se pretender um espaço universalizante, se tornou um foco de organização e reivindicação do indígena.

Page 176: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

176

Terra e território

A filosofia pedagógica de Elizardo Perez aplicada ali tinha quatro preceitos básicos “estudo, trabalho, produção e investigação”. Dentro destes parâmetros, os alunos aprendiam trabalhando para a própria escola, que tinha os seus campos de cultivo e tinha as suas oficinas de carpintaria, mecânica, tapeçaria, etc. Isso tornava a escola auto-sustentável, tanto na construção de obras internas, na reposição de móveis, quanto na alimentação dos estudantes e professores. Depois, o excedente da produção, se houvesse, poderia ser vendido e ajudaria na arrecadação de recursos para a escola.

Destes preceitos se pode tirar duas conclusões. A primeira, que tem a ver com o nacionalismo, é a necessidade de promover o desenvolvimento no campo, de ensinar aos camponeses a fazer roupas, móveis, casas, que eles possam criar as suas pequenas manufaturas, que eles introduzam o cultivo de outros alimentos, como tomate, cebola, alface, para equilibrar a sua dieta alimentar, etc. Um espaço lhes é dado para que se desenvolvam, para que se libertem da estrutura arcaica da servidão, e para que com isso contribuam para o desenvolvimento da nação Bolívia. Era uma espécie de política de expansão das escolas técnicas no espaço rural. Mas a segunda conclusão é que a auto-sustentabilidade do projeto apon-tava não para um modelo de escola liberal, mas sim para um modelo de escola comunitária. Ao invés de depender do Estado, ela era dependente da comunidade onde estava inserida. Ali, a transparência é total, o controle social é feito diretamente pela comunidade, que incide sobre as políticas a serem desenvolvidas pela escola. Neste sentido, o nacionalismo deu as condições para que as sementes do movimento indígena atual fossem plantadas e cuidadas.

A forte ligação da escola com a comunidade era determinada pelo Parlamento Amauta, um con-selho de representantes das comunidades que se encarregava de coordenar os serviços das comunidades à escola. Amauta quer dizer sábio, e cada uma das comunidades de Warisata tinha que indicar um sábio representante para este conselho. Destes, o que tinha mais experiência é o amauta maior, o que dirige o parlamento.

Seu Basílio conta que o Parlamento Amauta se reunia semanalmente para estabelecer as tarefas a serem cumpridas no período. As tarefas poderiam ser políticas, tratar de problemas da escola, nas quais o conselho tinha que “coordenar com o diretor, com os professores e com as autoridades educativas e interministeriais, de acordo com a necessidade”. Mas elas também poderiam ser bastante pontuais, como organizar a irrigação e ajudar na manutenção dos cultivos, etc.

Em 1937, finalmente se concretizou o plano inicial de construir na escola um magistério. No final da década de 1930, durante o curto governo nacionalista do General Germán Busch, herói da Guer-

Page 177: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

177

Terra e território

ra do Chaco, Warisata se tornou um modelo nacional parra a educação rural, impulsionando a criação de muitos núcleos de escolas indígenas espalhados em todo território boliviano. O magistério, portanto, respondia à demanda crescente destes outros projetos similares, que careciam de professores formados nesta pedagogia. Já em 1940, depois de três anos, saíam de Warisata os primeiros professores formados pela própria escola. Nesta época, a escola também mantinha vários contatos internacionais, pois experiências neste sentido estavam sendo tentadas em muitos países da América Latina. Houve uma relação especial com o governo de Lázaro Cárdenas no México, que era amigo pessoal de Elizardo Perez e que financiou parte da construção do Pavilhão México, prédio que depois seria a sede do magistério de Warisata.

Em estilo neo-tihuanaco, a obra foi coordenada por vários artistas latino-americanos, que foram buscar inspiração na antiga civilização pré-inca ao redor do Lago Titicaca. Um destes artistas era o perua-no Mariano Fuentes Lira, tido como um segundo pai por Seu Basílio, que era um jovem aluno da escola quando as obras do Pavilhão México começaram. O artista projetou os impressionantes portais que estão nas extremidades do pavilhão. O que está a leste tem a inscrição “Arte neo-índia para o povo” e o que está a oeste, “Trabalho é paz e liberdade”. Mas, logo em cima da frase se nota duas ramas de cereais cruzadas, lembrando o símbolo comunista da foice e o martelo. Don Basílio explica que por isso pensavam que eram comunistas, mas na realidade seu pai de criação queria interpretar a filosofia índia.

Independente da posição ideológica de Fuentes Lira, que provavelmente quis deixar ali um recado, para os fazendeiros da região tudo que fosse contrário aos seus interesses era algo a ser combatido fortemente, pois colocava em cheque o regime de servidão do qual dependia o seu bem-estar. Podia ser nacionalismo, comunitarismo, indigenismo, socialismo, e, como comunismo era o nome que soava mais feio, foi exatamente com ele que começaram a fazer a sua campanha de desprestígio da escola.

Em 1939, somente dois anos depois da fundação do magistério, caiu o governo de Germán Busch e entrou na presidência Carlos Quintanilla. Era uma época de muita instabilidade política, cheia de golpes e contra-golpes de Estado. O novo governo era mais identificado com a elite rural e mineira e tentou eliminar as políticas nacionalistas anteriores. No início dos anos 1940, interveio na escola e nos demais núcleos de educação indigenal, substituindo seus diretores e proibindo o Parlamento Amauta de funcionar. As oficinas foram saqueadas e pararam de produzir, a escola entrou em uma profunda decadência que levou ao seu fechamento em 1942. “Os filhos dos fazendeiros estavam no governo, eram autoridades e chefes. Perceberam que a filosofia de Elizardo Perez dava resultado, e disseram ‘a escola

Page 178: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

178

Terra e território

Page 179: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

179

Terra e território

de Warisata tem que ser fechada, estes índios um dia vão se levantar, vão fazer bloqueio, vão invadir’. E fecharam a escola”, lamenta Seu Basílio que na época havia acabado seu curso primário e queria iniciar o magistério.

Toda a sua geração foi para La Paz e começaram a trabalhar para ganhar a vida. Basílio, na im-possibilidade de se formar professor, se tornou cabeleireiro e trabalhou em um salão cujo dono era japo-nês. Dali, Seu Basílio tirou algumas aprendizagens. A primeira é que até hoje sabe falar algumas palavras em japonês. A outra é que se acostumou a ler muito jornal, pois tinha que ter assunto para falar com os clientes, e mesmo quando estava em casa, pegava seus livros e continuava lendo.

No final da década de quarenta, o jovem Basílio teve que prestar serviço militar. Em 1948, sua companhia serviu durante quatro meses como guarda do palácio de governo. Basílio logo começou a conhecer as autoridades e a ganhar certa intimidade. O presidente da época era Henrique Hertzog, que coincidentemente havia sido governador do departamento de La Paz em 1931 e estava presente na inau-guração da escola. Um dia Basílio tomou coragem e disse ao presidente: “Minha Excelência, eu sou de Warisata e você também fundou a nossa escola. Por favor, nos devolva a escola. Sem o magistério, meus companheiros vieram a La Paz, são sapateiros, costureiros, mecânicos, carpinteiros”. Ele pediu então que viesse uma comissão de Warisata a La Paz para ter uma audiência com ele. A comissão foi a La Paz, a reunião aconteceu e neste mesmo ano a escola de Warisata voltou a funcionar.

Mas os rumos levaram Basílio, que sempre gostou de estar bem informado, a outros lados. Em 1952 estoura a revolução nacional na sede do governo boliviano e ele, reservista do exército, se incorpora ao levante. “Eu estava na célula São Pedro, por células nos organizamos. No dia 8 de abril de 1952, já es-távamos bem organizados e o governo não sabia nada. Victor Paz Estenssoro estava exilado na Argentina, e quem liderava era o doutor Hernan Siles Zuazo. O sinal já estava preparado, às 3h da manhã dinamites estouram em diferentes bairros da cidade. Eu estava lá, pronto. Não havia armamento, mas o plano era atacar o arsenal de guerra de Chayapampa. Ali havia munições, armas, tudo, só precisava tomar. Toma-mos todo, pegamos todos os armamentos. E eu, como eu sou reservista, peguei a arma e pronto”.

Ele explica também que naquela época o MNR não era como o MNR de Goni, neoliberal. “Foi um bom partido nesta época. Mas, o que aconteceu? O fazendeiro se infiltrou, se apoderou da política do MNR, nos enganou. Por isso que houve a Guerra do Gás, porque o camponês já havia dado conta”.

Page 180: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

180

Terra e território

A Escola Ayllu hoje“A escola foi reaberta em 1948, e até agora continua. Mas não tem o mesmo objetivo, já mudou,

já não é escola produtiva. Simplesmente ensina a ler e a escrever, assim como qualquer outra escola”, me explica Andrés Mamani, atual diretor da escola de Warisata. O Parlamento Amauta ainda existe, mas já não atua como antes, quando os habitantes das comunidades se responsabilizavam de fato pelas tarefas da escola. Agora, cumpre a função de simples conselho, que opina sobre os assuntos da escola, faz a me-diação entre ela e a comunidade.

Um dos motivos para isso ter acontecido foram as reformas educacionais que teve Bolívia du-rante a segunda metade do século XX, que conseguiram de forma mais eficiente incorporar a escola de Warisata a um padrão nacional, e dificultaram o desenvolvimento autônomo da sua própria pedagogia. “Não era individualista a Escola Ayllu de Warisata, era comunal, na aprendizagem também. Enquanto agora é individual, o docente está na lousa, escreve, fala, o aluno olha e copia”, lamenta Andrés Mama-ni.

Mas Mamani também conta sobre iniciativas para recuperar o modelo de escola produtiva. Estão recuperando as oficinas, como a de tecidos e de carpintaria; mantêm ainda alguns campos de cul-tivo de batatas e criam animais, como gado, ovelhas e galinhas. A iniciativa esbarra, contudo, na falta de recursos para impulsionar estas políticas, para equipar uma oficina, por exemplo. Mamani tem esperanças em uma lei que está trabalhando o governo atualmente que será chamada de Lei Avelino Siñani e Elizardo Perez. Ela proporá um resgate à filosofia fundacional de Warisata, da escola produtiva.

Page 181: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

181

Terra e território

PERGUNTAS, CERTEZAS E ESPERANÇAS

Page 182: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

182

Terra e território

Page 183: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

183

Terra e território

Com muitos percalços, idas e vindas, fiquei ao todo seis meses na Bolívia. Pouco tempo para entender o país, mas tempo suficiente para acumular muitas dúvidas. Sendo este trabalho realizado em meio a vários processos históricos – o mandato de Evo Morales, o profundo questionamento do Estado-nação, a construção de auto-governos indígenas – muitas questões ficaram em aberto.

Evo conseguirá terminar o seu mandato? Se sim, sob quais concessões e condições? O país se dividirá? Haverá golpe de Estado? A nova Constituição Política de Estado será finalmente aprovada? Haverá uma legislação que limite efetivamente a propriedade de terras? A revolução agrária existirá de verdade ou não passará de discurso? Essas perguntas podem ser respondidas em questões de meses ou anos.

Mas há outras perguntas, que falam de processos históricos mais longos e profundos, como o futuro do movimento indígena camponês boliviano. Conseguirá ele cumprir a tarefa de descolonização a qual se propõe? Os inimigos, como vimos, são muitos: a oligarquia crucenha, o governo norte-americano, a persistente herança colonial. Ou será que, ao final do processo, este movimento será novamente cooptado pelos grupos dominantes reformulados? E o governo de Evo, é um caminho para esta descolonização ou seria ele um caminho para a criação de novas elites? Marca o fim ou o começo deste processo de emancipação? O limite é muito tênue.

Contudo, na intensa disputa e polarização que há no país, o regime burguês de democracia representativa está se esgotando, pela esquerda ou pela direita. A Bolívia vive hoje um período pré (guerra civil? golpe? revolucionário?), mas que é significativo por si só. Como no Chile de Allende, a Bolívia do início dos anos 2000 viveu experiências de poder popular e de soberania.

Este fenômeno é ainda mais especial se considerarmos o período histórico que vivemos, chamado de pós-moderno, “atomizado”, no qual as pessoas estão enterradas em números de bilhões de

Page 184: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

184

Terra e território

habitantes e nada mais importa do que a sua sobrevivência imediata. Aceitar esta constatação é torná-la verdade e as lutas bolivianas atuais só existem porque para grande parte da sua população este indivíduo pós-moderno atomizado não é uma realidade.

A população boliviana sabe da sua história de dominação, e sabe que a história não acabou, porque o neoliberalismo é o neocolonialismo, o “pongueaje” moderno. É por isso que, muito mais do que as intrigas políticas dadas dentro do Palácio do Governo, a história dos últimos anos foi traçada em assembléias, bloqueios, marchas e ocupações de terra. E mesmo com um representante deste movimento ocupando a cadeira presidencial, a história persiste e continua sendo assim.

Page 185: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

185

Terra e território

LIVROS E ARTIGOS DE REFERÊNCIA

AGREDA R., Evelin; RODRÍGUEZ O., Norma; CONTRERAS B., Alex. • Mujeres cocaleras. Marchando por una vida sin violencia. Comité Coordinador de las Cinco Federaciones Del Trópico de Cochabamba. Cochabamba, 1996.ALBÓ, Xavier• . Pueblos indios en la política. Plural / Cipca. La Paz, 2002CEJIS / FSUTC-AT-SC. • Situación y desafíos del movimiento campesino cruceño. Santa Cruz, 2006.CEPAL / NAÇÕES UNIDAS. • Los pueblos indígenas de Bolivia: diagnóstico sociodemográfico a partir del censo del 2001. Santiago do Chile, 2005. Disponível em: http://www.cepal.org.ar/publicaciones/xml/3/23263/bolivia.pdfCRABTREE, John. • Perfiles de la protesta, p. 61. Fundación Unir / Fundación PIEB. La Paz, 2005.DIRECO (Dirección Nacional de Reconversión Agrícola). • Coca en cifras – datos a nivel nacional. 2005.DO ALTO, Hervé. “El MAS-IPSP boliviano, entre la protesta callejera y la política institucional”. •In: MONASTERIOS, Karin; STEFANONI, Pablo; DO ALTO, Hervé (editores). Reinventando la nación en Bolivia. Movimientos sociales, Estado y poscolonialidad. Clacso / Plural. La Paz, 2007.DUNKERLEY, James. • Rebelión en las venas, la lucha política en Bolivia 1952-1982. Editora Plural. La Paz, 2003.FARTHING, Linda. “The Drug War in the Andes”. Disponível em: http://ain-bolivia.org/•drugwarCompleteLF.docFUNDACIÓN TIERRA. • Con los pies en la tierra – Observatorio de la Revolución Agraria en Bolivia, No. 1, p. 41. La Paz, junho de 2007.GALINDO S., Mario (coord.); CRUZ A., Bonifacio; PARDO V., Elizabeth; BUENO S., Ramiro. •Visiones aymaras sobre las autonomías. Aportes para la construcción del Estado nacional, p. 251. PIEB. La Paz, 2007.

Page 186: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

186

Terra e território

GARCIA Linera, Álvaro (coord.); CHÁVEZ Leon, Marxa; COSTAS Monje, Patricia. • Los movimientos sociales en Bolivia. Plural. La Paz, 2008.GUTIÉRREZ, Raquel; ESCÁRZGA, Fabíola (coordenadoras). • Movimiento indígena en América Latina: resistencia y proyecto alternativo, Volumen II, p. 60-67. Casa Juan Pablos / Centro Cultural / S. A. de C.V./ Centro de Estúdios Andinos y Mesoamericanos / Benemérita Universidad Antónoma de Puebla. 2006.KOMADINA, Jorge (coord.); GEFFROY, Celine. • El poder del movimiento político. Estrategia, tramas organizativas e identidad del MAS en Cochabamba (1999-2005). CESU, DICYT-UMSS, Fundación PIEB. La Paz, 2007.MALDONADO, Ana Maria L. “Movimiento indígena, lucha contra el TLC y racismo em •Ecuador”. In: Revista del Observatorio Social de América Latina. Ano VII No19 enero-abril 2006.MOREANO, Alejandro, “Ecuador en la Encrucijada”. In: Revista del Observatorio Social de •América Latina. Ano VII No19 enero-abril 2006.PINTO Ocampo, Maria Teresa. “Entre la represión y la concertación: los cocaleros en el Chapare y •en el Putumayo”. Informe final del concurso: Movimientos sociales y nuevos conflictos en América Latina y el Caribe. Programa Regional de Becas CLACSO. 2004.POTTER, George Ann; FARTHING, Linda. “Bolivia: Eradication and Backlash”. Junho, 2001. •Disponível em: http://www.fpif.org/briefs/vol5/v5n38bolivia_body.htmlQUIROGA, Omar; NÚÑEZ, Eulogio. • Estudio de impacto en políticas de tierra y territorio: estudio de caso de “Los Yuquises”, p. 16. CIPCA Regional Santa Cruz. Santa Cruz de la Sierra, 2005.REGALSKY, Pablo. • Etnicidad y clase: El Estado boliviano y las estrategias andinas de manejo de su espacio. CEIDIS / CESU-UMSS / CENDA e Plural. La Paz, 2003.ROMERO, Carlos. “La violencia como componente del proceso agrario boliviano”. 19/08/2005. •Artigo disponível em: www.cejis.orgRYDELL, C. Peter; EVERINGHAM, Susan S. • Controlling Cocaine: Supply Versus Demand Programs. Rand Monograph Report. Disponível em: http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR331/. Resumo disponível em: http://rand.org/publications/randreview/issues/RRR.spring95.crime/treatment.htmlSALAZAR, Fernando. • De la coca al poder. Políticas públicas de sustitución de la economía de la coca y pobreza en Bolivia, 1975-2004. Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. Cochabamba, 2007.

Page 187: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

187

Terra e território

Trabalho feito através do Programa Clacso-Crop.SORUCO, Ximena (coord.); PLATA, Wilfredo; MEDEIROS, Gustavo. • Los barones del Oriente. El poder en Santa Cruz ayer y hoy. Fundación Tierra. Santa Cruz, 2008.SPEDDING, Alison. • Kawsashun coca. Economía campesina cocalera en los Yungas y el Chapare, p. 56. PIEB. La Paz, 2005.SPENCER, Bill; AMATANGELO, Gina. “Drug Certification”. In: • Foreign Policy In Focus, Vol. 6, No. 5, março de 2001. Disponível em: http://www.foreignpolicy-infocus.org/URQUIDI, Vivian. • Movimento Cocaleiro na Bolívia. São Paulo. Editora Hucitec, 2007.

Jornais consultados

http://www.brasildefato.com.br/http://www.opinion.com.bo/http://www.bolpress.com/http://www.lostiempos.com/http://www.la-razon.com/http://bolivia.indymedia.org/

Page 188: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

188

Terra e território

P. 5. Colonos de San Julián se preparam para enfrentar grupo rival que promovia a votação do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. Em 04/05/2008.

P. 14. A dirigente da Federação de Colonos em San Julián dá instruções durante bloqueio. Em 04/05/2008

P. 20. Cholitas assistem ato repudiando a especulação no preço dos alimentos e o empresariado agrícola em Cochabamba. Em 06/12/2007.]

P. 38. Colonos preparados para enfrentar grupo rival que promovia a votação do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. Em 04/05/2008.

P. 44. Casa de teto de motacu e parede de chuchiu na zona de urbanização improvisada em Pueblos Unidos. Outubro, 2007.

P. 63. Campo de soja em Pueblos Unidos. Outubro, 2007.

P. 63. Benita com Caluchito no seu chaco recém preparado. Outubro, 2007.

P. 70. Sem-terras tomam café da manha em Tierra Prometida. Outubro, 2007.

P. 79. Dirigente comunitário de San Julián denuncia conteúdo do Estatuto Autonômico de Santa Cruz.

LEGENDAS DAS FOTOS

Page 189: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

189

Terra e território

Logiero faz referência ás lojas maçônicas, pois os líderes cívicos de Santa Cruz são identificados como maçons. Em 04/05/2008.

P. 84. Jovem ajeita pneus de ponto de bloqueio em San Julián. Em 03/05/2008.

P. 84. Moradores do bairro popular Plan 3000 de Santa Cruz de la Sierra à caminho de uma manifestação contrária ao Estatuto Autonômico. Em 02/05/2008.

P. 84. Cartazes de denúncia do Estatuto Autonômico de Santa Cruz. Em 02/05/2008.

P. 90. Secagem da coca de Dona Isabela, Três Arroyos, perto de Villa Tunari. Novembro, 2007.

P. 93. Seu Julián e Seu Andrés mostram como se faz a colheita da coca. Santa Helena, perto de Villa Tunari. Novembro, 2007.

P. 104. Seu Carlos Meneces mostra plantação de banana promovida pelo desenvolvimento alternativo. Novembro, 2007.

P. 117. Manifestantes em frente à Embaixada dos EUA. Junho, 2008.

P. 124. Dona Isabela em sua casa, Três Arroyos, perto de Villa Tunari. Novembro, 2007.

P. 128. Mercado de coca em Chipiriri. Novembro, 2007.

P. 136. Camponeses vêem a entrega da Nova Constituição Política do Estado. Ao fundo, está Evo Morales na bancada do Palácio Quemado. Em 15/12/2007.

P. 144. Bloco da Federação Departamental de Camponeses de La Paz em manifestação em La Paz. Junho, 2008.

Page 190: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

190

Terra e território

P. 149. Ponte de pedra, q’alachaka, local onde surgiu o quartel indígena. Atrás, a montanha onde os camponeses se reuniam. Abril, 2008.

P. 163. Cholitas da cidade de El Alto em manifestação em La Paz. Junho, 2008.

P. 167. Felipe Quispe, El Mallku. Abril, 2008.

P. 167. “Jallalla Mallku”, “viva Mallku” já meio desbotando em Achacachi. Abril, 2008.

P. 167. Felipe Quispe, El Mallku. Abril, 2008.

P. 167. Folhas de coca.

P. 172. Dona Marcelina e Seu Rufo descascando chuno em Tacamara. Província Omasuyus, departamento de La Paz. Maio, 2008.

P. 178. Seu Basílio Quispe com a assinatura de Mariano Fuentes Lira em obra no Pavilhão México da Escola de Warisata. Abril, 2008.

P. 178. Prédio do magistério de Warisata. Abril, 2008.

P. 178. Detalhe Pavilhão México do prédio do magistério de Warisata. Abril, 2008.

P. 182. Pacenha e wiphala, Achacachi. Abril, 2008.

Page 191: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

191

Terra e território

SIGLAS

ADN - Ação Democrática NacionalistaASP - Assembléia pela Soberania dos PovosBM - Banco MundialCAO - Câmara Agroindustrial do OrienteCidob - Confederação Indígena do Oriente Boliviano (na fundação) / Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (hoje)CNE - Corte Nacional EleitoralCNTCB - Confederação Nacional de Trabalhadores Camponeses da BolíviaCOB - Central Operária BolivianaConfeagro - Confederação Agropecuária NacionalCPE - Constituição Política do EstadoCPESC - Coordenadora de Povos Étnicos de Santa CruzCSCB - Confederação Sindical de Colonos da BolíviaCSUTCB - Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da BolíviaDEA - Drug Enforcement AgencyDigeco - Direção Geral da CocaEGTK - Exército Guerrilheiro Tupac KatariFMI – Fundo Monetário InternacionalFNMCB-BS - Federação Nacional de Mulheres Camponesas da Bolívia - Bartolina SisaFobomade - Fórum Boliviano de Defesa do Meio Ambiente

Page 192: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

192

Terra e território

FSUTC-AT-SC - Federação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses Apiaguaiqui Tumba de Santa CruzFTC - Força Tarefa ConjuntaIDH - Imposto Direto dos HidrocarbonetosInra – Instituto Nacional de Reforma AgráriaLPP - Lei de Participação PopularMAS-IPSP - Movimento ao Socialismo - Instrumento Político pela Soberania dos PovosMIP - Movimento Indígena PachakutiMIR - Movimento de Esquerda RevolucionáriaMNR - Movimento Nacionalista RevolucionárioMST-B - Movimento Sem Terra - BolíviaPCB - Partido Comunista da BolíviaPodemos - Poder Democrático SocialSNRA - Serviço Nacional de Reforma AgráriaTCO - Terra Comunitária de OrigemTCP-Alba - Tratado de Comércio dos Povos - Alternativa Bolivariana para as AméricasTLC - Tratado de Livre ComércioUJC - Unión Juvenil CruceñistaUmopar - Unidade Móvel para Patrulha RuralUN - Unidade Nacional

Page 193: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

193

Terra e território

Acullico ou pijcheo – Comumente chamado de “mascar” de coca, mas não consiste em triturar as folhas, mas sim pressioná-las com os dentes para aos pouco ir tirando a sua seiva.Ayllu – Nome com o qual os povos andinos chamam as suas comunidades indígenas originárias.Ayni – Sistema de trabalho recíproco, no qual uma família conta com o trabalho de outras unidades familiares em uma determinada ocasião e, futuramente, o devolve em atividades equivalentes.Camba – Como são chamados os habitantes das terras baixas bolivianas.Chaco – Lote de terra, termo utilizado em Santa Cruz e entre os cocaleiros.Chacra - Lote de terra, termo utilizado em Omasuyus.Chaqueo – Processo de queima e derrubada do mato de um determinado terreno tanto para fins agrícolas quanto pecuários.Chicha – Bebida alcoólica fermentada de milho.Chicheria – bares populares onde se bebe chicha.Cholitas – Mulheres indígenas do ocidente boliviano que se vestem com sua roupa típica: pollera, blusa rendada, chapéu e tranças. O tamanho e o estilo da pollera e do chapéu podem variar dependendo da região.Chuchiu – Espécie de bambu, com o qual se faz paredes para moradias.Chuño – Espécie de batata desidratada.Colla – Como são chamados os habitantes do altiplano boliviano.Criollo - Descendente de espanhóis nascido na América Latina.Kuraka – Chefe político da comunidade, cacique.Mita – Sistema de fornecimento de força de trabalho servil recrutada nas comunidades pelo o governo, forma de pagamento de tributos. Utilizado tanto pelos incas como pelos espanhóis.

GLOSSÁRIO

Page 194: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

194

Terra e território

Motacu – Espécie de palmeira abundante nas terras baixas bolivianas, com a qual se faz forragem para tetos de moradias.Pachamama – Mãe-terra.Pollera – Saia bastante rodada e volumosa utilizada pelas cholitas. Em La Paz são mais cumpridas, indo até o tornozelo, e em Cochabamba são mais curtas, até o joelho.Pongueaje – Sistema de trabalho servil dentro das fazendas criollas, na qual os camponeses para cultivar e ter acesso a um lote de terras precisavam trabalhar nas terras do fazendeiro.Q’owa – Cerimônia de oferenda à Pachamama.

Page 195: Terra e Território. A luta pela Descolonização na Bolívia

195

Terra e território