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TERCEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO 31 DE JANEIRO DE 2015: 6. Bernardo Guimarães e “O Seminarista” No terceiro encontro do grupo de leitura, no dia 31 de janeiro de 2015, comentamos as obras de Joaquim Felício dos Santos, Visconde de Taunay e especialmente, “O Seminarista” de Bernardo Guimarães. Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (Ouro Preto, MG, 15 de agosto de 1825), formou-se, não com poucas dificuldades, em Direito. Apesar da aparente falta de vocação para o Direito (Academia de Direito de São Paulo), a faculdade serviu para aproximar Guimarães da sua indiscutível vocação: a literatura. Foi na universidade que ele conheceu escritores como José de Alencar e Alvarez de Azevedo. Estudou Direito em São Paulo. Foi juiz municipal na cidade de Catalão em Goiás. Foi jornalista, professor de latim, francês, retórica e poética. Com a publicação do romance “O ermitão de Muquém”, em 1869, passa a dedicar-se mais à prosa de ficção, já que sua poesia – se desdobra entre o lirismo bucólico, a sátira e a bestialogia – não estava recebendo respostas positivas do público. Publicou “O seminarista” em 1972, e dois anos mais tarde a sua obra mais famosa: “A Escrava Isaura”. Estudiosos têm relacionado a publicação desta obra a um acontecimento histórico do Brasil conhecido como “Questão religiosa”. Trata-se de um conflito nos anos 1870 que teria iniciado como um enfrentamento entre a Igreja Católica e a Maçonaria, incluindo divergências irreconciliáveis entre ultramontanismo, o liberalismo e o regime do padroado. A atuação de dois bispos foi central nesta questão: Dom Vital e Dom Macedo Costa. Neste período pipocam as campanhas jornalísticas contra o episcopado no Rio de Janeiro e “O Seminarista” é publicado. O autor recebeu maior reconhecimento apenas após sua morte, que chegou em 1884, quando estava ele com 58 anos. Em 1896, foi nomeado patrono da cadeira nº. 5 da Academia Brasileira de Letras.

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Page 1: TERCEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO 31 … · Capela do Senhor Bom Jesus do Matosinho, que em frente dele se ergue no alto da colina, como a branca pomba da aliança ... misericórdia

TERCEIRO ENCONTRO DO DESAFIO LITERÁRIO

31 DE JANEIRO DE 2015: 6. Bernardo Guimarães e “O Seminarista”

No terceiro encontro do grupo de leitura, no dia 31 de janeiro de 2015,comentamos as obras de Joaquim Felício dos Santos, Visconde de Taunay e especialmente,“O Seminarista” de Bernardo Guimarães. Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (OuroPreto, MG, 15 de agosto de 1825), formou-se, não com poucas dificuldades, em Direito.Apesar da aparente falta de vocação para o Direito (Academia de Direito de São Paulo), afaculdade serviu para aproximar Guimarães da sua indiscutível vocação: a literatura. Foina universidade que ele conheceu escritores como José de Alencar e Alvarez de Azevedo.Estudou Direito em São Paulo. Foi juiz municipal na cidade de Catalão em Goiás. Foijornalista, professor de latim, francês, retórica e poética. Com a publicação do romance “Oermitão de Muquém”, em 1869, passa a dedicar-se mais à prosa de ficção, já que suapoesia – se desdobra entre o lirismo bucólico, a sátira e a bestialogia – não estavarecebendo respostas positivas do público. Publicou “O seminarista” em 1972, e dois anosmais tarde a sua obra mais famosa: “A Escrava Isaura”.

Estudiosos têm relacionado a publicação desta obra a um acontecimento históricodo Brasil conhecido como “Questão religiosa”. Trata-se de um conflito nos anos 1870 queteria iniciado como um enfrentamento entre a Igreja Católica e a Maçonaria, incluindodivergências irreconciliáveis entre ultramontanismo, o liberalismo e o regime dopadroado. A atuação de dois bispos foi central nesta questão: Dom Vital e Dom MacedoCosta. Neste período pipocam as campanhas jornalísticas contra o episcopado no Rio deJaneiro e “O Seminarista” é publicado. O autor recebeu maior reconhecimento apenasapós sua morte, que chegou em 1884, quando estava ele com 58 anos. Em 1896, foinomeado patrono da cadeira nº. 5 da Academia Brasileira de Letras.

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O Seminarista narra a história de amor entre o padre Eugênio e a jovemMargarida. Criados como irmãos desde a mais tenra infância, íntimos inseparáveis,experimentam a primeira angústia da saudade quando Eugênio é enviado ao Seminário.Ainda jovem demais para o amor erótico, pensava na amiga apenas com a ternura de umacriança quando chegou ao Seminário.

"Eis o nosso herói transportado das livres e risonhas campinas da fazendapaterna para a monótona e austera prisão de um seminário no arraial deCongonhas do Campo, de barrete e sotaina preta, no meio de uma turba decompanheiros desconhecidos; como um bando de anus pretos encerrados emum viveiro. Que mudança radical de vida!... que meio tão diferente daquele emque até então tinha vivido!...Essa transplantação devia modificarprofundamente a existência do arbusto tão violentamente arrancado do solonatal. Antes, porém, de prosseguirmos, repousemos um pouco nossas vistassobre o pitoresco edifício do seminário e especialmente sobre a alva e formosaCapela do Senhor Bom Jesus do Matosinho, que em frente dele se ergue no altoda colina, como a branca pomba da aliança repousa sobre os montes. Ali elarefulge como um fanal de esperanças ao triste caminheiro estafado e perdidopelas escabrosas sendas da vida, como um refúgio de paz aos aflitosperegrinos do vale das lágrimas, como um cofre das graças e perdões damisericórdia divina, oferecendo alívio e cura a todos os sofrimentos do corpo,consolação e refrigério a todas as atribuições do espírito." (GUIMARÃES, p.27)

Fotografia atual ds Fachada da Basílica Senhor Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas doCampo.

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Eugênio está no seminário para atender a vontade dos pais. Lá ele vai se saindomuito bem, é um aluno exemplar e querido pela liderança. Costuma ser taciturno, temuma alma poética. Apaixona-se imediatamente pela poesia ao conhecer Ovídio e Virgílio.

"RELIGIÃO, AMOR, POESIA, eis os elementos, que bastavam paraencher aquela existência e torná-la a mais feliz do mundo. Eramcomo três anjos de asas azuis e ouro, que esvoaçavam de contínuoem torno dessa alma infantil e cândida, e arrebentavam os céus emgozos inefáveis. ” (p.35)

Na poesia encontra vazão para o sentimento de ternura crescente que trazia porMargarida e começa a escrever-lhe versinhos que nunca envia: (Longe de teus lindosolhos, Ó Margarida, passo a noite, passo o dia Em cruel melancolia; Ai! Triste vida!). Nãohavia aparente conflito entre a afeição do moço pela menina e sua vocação sacerdotal atéo dia que um superior encontra seus versos. O alarde e a culpa são tamanhos que Eugêniopassa a ver com os piores olhos aquele afeto e saudades que nutre por Margarida.

“De noite, quando sonhava com ela – e isto sempre lhe acontecia –despertava benzendo-se, punha-se de joelhos e rezava longamentepedindo a Deus que lhe arredasse do espírito aquela tentação, queaté dormindo tanto lhe perturbava. Mas debalde Eugênio cerravaos olhos e ouvidos, debalde procurava furtar-se à influência dessasimpressões externas, que lhe falavam de Margarida […] No fim dealgum tempo, Eugênio estava magro, pálido, alquebrado, que maisparecia uma múmia ambulante. Tinha-se de todo amortecido obrilho de seus grandes olhos azuis, e profunda palidez cobria-lhe orosto magro. O adolescente de dezesseis anos parecia um ancião àsbordas da sepultura”. (pp.43, 45)

Fica alguns meses impedido de voltar para a fazenda da família, a orientação dospadres é que permaneça longe de tentações. No entanto, o tempo passa, a família começaa sentir apertar a falta do filho e ele finalmente viaja de férias para a terra natal. Ao sereaproximar de Margarida todos aqueles sentimentos reprimidos voltam com força total,desta vez acompanhados de promessas de amor e casamento.

“Era, enfim, o tipo mais esmerado da beleza sensual, mas habitadopor uma alma virgem, cândida e sensível. Era uma estátua de Vênusanimada por um espírito angélico. Ainda que Eugênio nãoconhecesse e amasse Margarida desde a infância, ainda que a visseentão pela primeira vez, era impossível que toda a virtude eausteridade daquele cenobita em botão não se prostrasse vencidodiante daquela deslumbrante visão.” (p.49)

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Inconformados com a paixão do filho, os pais de Eugênio expulsam Margarida e suamãe da fazenda e mentem para o jovem: Margarida teria se casado e por isso se mudou.Desapontado o jovem aceita seguir com o sacerdócio. Os dias, as semanas, os mesescorrem. Margarida adoece, os jovens se reencontram e ele percebe que foi enganado. Emmeio as resgatas jura de amor entregam-se em um beijo. Mas um final feliz já não é maispossível.

“Os anos passam. A luta interior não cessa. Eugênio é sincero emsuas preces, em sua fé; contudo, Margarida o obceca. O jovem vivecomo um anacoreta, mas visões noturnas da mulher o acossam.Certo dia, uma carta do pai comunica aos padres o casamento deMargarida. O seminarista, no entanto, não experimenta a libertação;antes, sente-se traído — e vítima de um ciúme doentio, primeiroodeia, depois é tomado por uma sensualidade atroz, e finalmenteabatido, transforma-se num “limbo silencioso, gélido e sombrio”.Será este homem que, ao reencontrar Margarida, não resistirá.”(GURGEL, 2012)

Para o crítico literário Rodrigo Gurgel (2012) a obra écarregada do mesmo romantismo forçado e pueril de Joséde Alencar, que seria “efeito da pieguice romântica”. Gurgelcritica também a repetição de idéias e adjetivos, ele afirma:

“Em meio a tal excesso de floreios, há também odescuidado estilo de Guimarães, que não se importa de,numa seqüência de parágrafos, repetir verbos esubstantivos; e utilizar sinônimos como se estivesseapresentando uma idéia nova. Ou, ainda pior, reproduzir,ao longo da narrativa, as mesmas informações.” (GURGEL,p.81)

Muito se tem comentado sobre o caráter anticlerical daobra e, realmente, em muitos dos seus trechos é possívelperceber nítida inclinação neste sentido. Para Gurgel omaior problema é forma explícita e até “doutrinária” comque esse aspecto se dá quando o autor faz questão deverbalizar o que já estava claro

“O rapaz que saiu de um seminário depois de ter estado ali alguns anos, faz na sociedade afigura dum idiota. Desazado, tolhido e desconfiado, por mais inteligente e instruído que seja,não sabe dizer duas palavras com acerto e discrição, e muito menos com graça eafabilidade. E se acaso o moço é tímido e acanhado por natureza, acontece muitas vezesficar perdido para sempre. […] Essas duas tendências naturais de seu coração terno e

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entusiasta, pode-se dizer essas duas paixões, que lhe eram inatas, o amor e a devoçãocongraçavam-se admiravelmente em seu espírito. O arroubo místico, a contínua aspiraçãopara Deus e para as coisas celestes não excluíam nele o amor por essa criatura, que é sobrea terra um dos mais belos reflexos do infinito poder — a mulher. É que de fato esses doissentimentos tão puros, tão celestes ambos, nada têm de inconciliáveis em si mesmos, esomente uma lei meramente convencional, impondo o celibato como um preceitoimperativo, podia levantar entre eles esse odioso antagonismo, contra a qual a razãoprotesta e revolta-se o coração. ” (Bernardo Guimarães)

Mas Gurgel não é apenas crítica. Elogia a habilidade do autor de construirpersonagens com um timing perfeito.

“Ótimo psicólogo, Bernardo Guimarães soma outras qualidades aseu texto. Algumas de suas paisagens repetem, com perfeição, o queainda podemos presenciar em inúmeros trechos da Estrada Real, aoviajarmos pelo interior de Minas Gerais. Seus diálogos fluem numanaturalidade carregada de jargões populares, e nosso escritor usabem certas expressões típicas, ainda hoje ouvidas nas conversas dosbotequins ou à saída das missas em alguma cidadezinha mineira:uma personagem “pensa suas vaquinhas”; outra deve “um favorão aDeus”… Ele também retrata costumes típicos: os agregados daspropriedades rurais (situação em que viviam Margarida e sua mãe),os mutirões que terminam em festa, a quatragem (antiga dança desapateado comum em regiões de Minas), as simpatias a que todosnós um dia recorremos, como a que a mãe de Eugênio utiliza paraparalisar a jararaca que se enrolara em Margarida: “Tendo-a enfimdescoberto, encarou-a fixamente, e sem despregar dela os olhos,levou as mãos aos atilhos da cintura da saia, que começou aarrochar cada vez com mais força, murmurando certas orações eesconjuros cabalísticos”. (GURGEL, P.86)

Referências

GUIMARÃES, Bernardo. O Seminarista. São Paulo: Editora Martin Claret Ltda, 2011. 138pp.

GURGEL, Rodrigo. Muita Retórica, Pouca Literatura: De Alencar a Graça Aranha.Campinhas, SP: Vide Editorial, 2012. 228 pp.

_____________________. Ecos do ultra-romanstismo. Jornal Rascunho, online. Gazeta do Povo.Artigo disponível em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/ecos-do-ultra-romantismo/