teoria da literatura - livros grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · teoria da...

205
Júlio César França Pereira TEORIA DA L ITERATURA: ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS Abril, 2006

Upload: duongquynh

Post on 07-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

Júlio César França Pereira

TEORIA DA LITERATURA:

ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS

Abril, 2006

Page 2: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

1

Júlio César França Pereira

TEORIA DA LITERATURA:

ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Literatura Comparada Orient.: Prof. Dr. Roberto Acízelo Q. de Souza

Niterói Instituto de Letras da UFF

Abril de 2006

Page 4: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

2

Júlio César França Pereira

TEORIA DA LITERATURA:

ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS

Tese de Doutoramento em Letras, defendida e aprovada na Universidade Federal Fluminense, em 28 de abril de 2006, pela banca examinadora constituída pelos professores: _____________________________________________ Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza - Orientador Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Fernando Décio Muniz Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause Universidade do Estado do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof. Dr. José Luís Jobim de Sales Fonseca Universidade do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Maria Conceição Monteiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Page 5: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

3

Este trabalho só foi possível graças a interlocutores muito especiais:

Meu orientador Roberto Acízelo de Souza,

Meus professores Fernando Décio Muniz e José Carlos Barcellos,

Meus companheiros de doutorado Sérgio Vieira Bugalho e Leonardo Côrtes Macário

Meus colegas do Fórum de Pesquisadores em Literatura.

Page 6: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

4

A hostilidade para com a teoria geralmente significa uma oposição às teorias de outras pessoas, além de um esquecimento da teoria que se tem.

Terry Eagleton (2003:X) (...) se não sei precisamente o lugar que ocupará ou ocuparia um discurso que se sabe nem científico, nem ficcional, sei quando nada que advogá-lo tem o propósito de tentar romper com a idéia que toma a ciência como detentora da lógica.

Luiz Costa Lima (1981:207) As descobertas envelhecem, os métodos não.

Isaías Pessotti (2001:378)

Page 7: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

5

SUMÁRIO

RESUMO ............................................................................................................................................. 06 ABSTRACT ........................................................................................................................................ 07 1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ...................................................................................................... 08

1.1 - UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS ............................................................................. 08 1.1.1 -“O que é Teoria Literária?”........................................................................................... 09 1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”............................................................................. 14 1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”.............................................. 17

1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA............................................................................................. 21 1.3 - OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA............................................... 28 1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA............................................................................. 37 1.5 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA ............................................................................. 40

2 - OS PRECURSORES....................................................................................................................... 44 2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM ........................................ 45

2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren ......................................................... 46 2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários ................................................................................ 56 2.1.3 - Teoria, Crítica, História ............................................................................................... 68 2.1.4 - O capítulo esquecido ............................................................. ...................................... 74 2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren ...................................................... 77

2.1.5.1 - O conceito de Literatura .................................................................................... 78 2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários ....................................... 79 2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura? ......................................................................... 80

2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA ............................................................................. 81 2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser ............................................................................ 82 2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura ........................................................................... 84 2.2.3 - O projeto teórico de Kayser ......................................................................................... 86

3 - ANOS 60 E 70: CONSTRUÇÃO OU RUÍNA? ............................................................................ 90 3.1 - O MANUAL DE AGUIAR E SILVA ........................................................................................ .... 96

3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura ..................................................................... 96 3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários ............................................................ 100

3.2 - TEORIA, LATO SENSU ............................................................................................................. 103 4 - A ERA DAS CRÍTICAS ................................................................................................................ 111

4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO ................................................. 113 4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA ................................................................................................. 118 4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS ................................................................................................ 122

5 - A ERA DAS REVISÕES ........................................................................................... .................... 130 5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS ......................................................................................... 142

5.1.1 - Diversidade e complexidade ........................................................................................ 143 5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários ..................................................................... 145 5.1.3 - Uma teoria sem objeto? ........................................................................ ....................... 146

5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER ......................................... 151 5.2.1 - Do conceito de Literatura .................................................................................... ....... 151 5.2.2 - Os estudos literários e as armadilhas das dicotomias .................................................. 153 5.2.3 - Uma disciplina ambivalente ....................................................................................... 158

6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL .................................................. 163 6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES ............................................................................ 163 6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS ...................................................................................................... 167 6.3 - O RENASCIMENTO ................................................................................................................. 175

7 - OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA ..................................................................... 179 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 190

Page 8: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

6

RESUMO

A partir de uma leitura crítica que buscou compreender os conceitos de

Literatura, de Estudos Literários e de teoria formulados nos principais manuais de

Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da

disciplina, com o intuito de se projetar quais as condições para o desenvolvimento de

uma reflexão teórica sobre a Literatura em um momento histórico assinalado por

profundo relativismo nas concepções de conhecimento orientadoras das ciências

humanas.

Palavras-chave: Teoria da Literatura; Relativismo; Estudos Literários (Crítica)

Page 9: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

7

ABSTRACT

Starting from a critical reading that aimed to understand the concepts within

Literature, Literary Studies and Literary Theory in the main handbooks, a summary of

both positive and negative aspects of the discipline was elaborated in an attempt to

project the conditions to the development of a theoretical thinking concerning Literature

in a historical moment that is marked by a deep relativism in Humanities.

Page 10: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

8

1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE

1.1 – UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS

When the study of literature is under fire - as it is nowadays - it stands more than ever in need of a type of discourse which both objectifies and justifies this particular scholastic endeavor1. Wolfgang Iser (in New Literary History, 1983:425)

Há cerca de vinte anos atrás, a revista New Literary History realizou uma

enquete com um grupo de acadêmicos europeus e norte-americanos. Três foram as

questões formuladas: (i) Quais os objetivos e funções da Teoria2 Literária no presente?

(ii) Quais conseqüências práticas teve a Teoria Literária em sua atividade de ensino da

Literatura e em seu trabalho de produção crítica? (iii) Quais seriam as deficiências, se

existentes, da Teoria Literária no ensino da pós-graduação? As perguntas foram

respondidas por mais de trinta scholars3, entre eles alguns grandes nomes dos Estudos

Literários4 contemporâneos, tais como Terry Eagleton, Hans Ulrich Gumbrecht,

Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Adrian Marino e George Steiner.

Uma das primeiras impressões que se pode ter com a leitura das respostas ao

questionário é a amplitude de compreensão que o termo Literary Theory suscitava em

cada um dos professores entrevistados. Essa imprecisão semântica — fruto, por um

lado, de uma série de usos históricos do termo “teoria”, e, por outro lado, da própria

1 “Quando o estudo da Literatura está sob ataque — como ocorre hoje em dia — torna-se mais do que nunca necessário um tipo de discurso que tanto torne objetivo quanto justifique este esforço acadêmico específico” [tradução minha]. 2 Embora alguns autores estabeleçam diferenças conceituais entre "Teoria da Literatura" e "Teoria Literária", não farei distinção entre os dois termos neste trabalho, por entender que, mesmo nos específicos contextos argumentativos em que se postula a diferenciação, a alternância dos termos não remete a disciplinas distintas, mas a diferentes modos de se entender a reflexão teórica sobre a Literatura. 3 Cinco estudantes de pós-graduação também responderam ao questionário. Como acredito que os pontos de vista dos alunos e dos professores pressupõem diferenças importantes, e como a diferença quantitativa entre os depoimentos era muito grande, optei por desconsiderar neste trabalho as opiniões dos alunos. 4 Adotarei neste trabalho a terminologia de Roberto Acízelo de Souza, que chamará de Estudos Literários “ao conjunto das disciplinas que historicamente concorreram para delimitar a área de fenômenos constituídos pela linguagem verbal elaborada” (Souza , 1987:134).

Page 11: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

9

negligência com que os conceitos são geralmente tratados no caótico ambiente

terminológico do campo dos Estudos Literários — revela-se na multiplicidade de

objetivos e de funções aventadas como pertinentes ao trabalho teórico, bem como no

caráter muitas vezes contraditório dos problemas e das qualidades da disciplina

identificados pelos acadêmicos.

As três questões formuladas pela revista funcionam, em conjunto, como um teste

da condição de existência de uma suposta disciplina chamada Literary Theory. As duas

primeiras perguntas tinham um caráter pragmático e claramente perguntavam “para

que serve a Teoria Literária?”, embora a primeira delas — a interrogação pelos

objetivos e funções — tenha obrigado os entrevistados a refletirem sobre a ontologia da

disciplina, a fim de responder ao questionamento implícito “o que é a Teoria

Literária?”. Já a terceira questão era explicitamente de cunho didático e institucional,

interrogando pelo desempenho efetivo da teoria como disciplina acadêmica

institucionalizada e que, como tal, precisa ser “ensinada” e “aprendida”: “como

funciona, nas universidades, a Teoria Literária?”.

Embora a enquete tenha sido realizada há vinte anos, as dificuldades, os

embaraços, as aporias e, principalmente, a falta de clareza do estatuto disciplinar da

Teoria Literária revelados pelas questões formuladas permanecem, em sua quase

totalidade, atuais. Tomando a enquete de modo heurístico, procurei então sistematizar as

respostas dadas pelos entrevistados a cada um desses núcleos temáticos, a fim de

introduzir, a título de exemplificação, o conjunto de problemas e questões com os quais

foi necessário lidar.

1.1.1 - “O que é Teoria Literária?”

The character of critical theory is not (or should not be) dazzling or “exciting” (except in the sense that any important new theoretical idea or argument is exciting if it is important); above all, its strength must lie in accuracy and precision of formulation5.

John M. Ellis (ibid., 1983:416)

5 “Não é (ou não devia ser) da natureza da teoria crítica ser deslumbrante ou estimulante (a menos no sentido em que qualquer nova idéia ou argumentação teórica, quando importante, é estimulante). A força de uma teoria reside, sobretudo, na exatidão e na precisão com que é formulada” [tradução minha].

Page 12: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

10

As respostas à pergunta acerca dos objetivos e funções da teoria literária revelam

o quanto se está longe de unanimidade conceitual em torno do que vem a ser Literay

Theory. Uma primeira classificação possível para as respostas seria dividi- las entre

aquelas que tomam o termo como designação dos Estudos Literários em geral —

englobando além de abordagens propriamente teóricas, também trabalhos de natureza

interpretativa, histórica, analítica e crítica — e aquelas que a entendem como um

procedimento específico dentro do campo da investigação sobre Literatura. No primeiro

caso, a compreensão ampla de teoria literária promove um desafio a seus defensores: ter

de conjugar sistematicamente um conjunto de práticas tão diversificadas como a busca

de significados da obra, a análise formal de seus elementos de composição, a

contextualização histórica, o julgamento de valor etc., numa amplitude que abarcasse

todos os modos já empreendidos de consideração de uma obra literária. Nas atuais

condições dos Estudos Literários, um sistema conceitual desta monta — embora fosse

certamente muito bem vindo... — é utópico, pois exigiria a resolução de impasses

diversos hoje tidos como insuperáveis: a importância do autor para o sentido da obra, a

relação das obras literárias com o mundo, os limites da interpretação, a legitimidade do

cânone, para ficar apenas com alguns das questões mais pujantes.

Há, contudo, variantes desse entendimento lato: Michel Glowinski (ibid.:419-

420), Jerome McGann (ibid.:438) e Adrian Marino (ibid.:435-436) estão entre aqueles

que compreendem a teoria como tendo uma função sistematizadora e disciplinadora,

cabendo a ela fornecer as bases e as premissas do trabalho acadêmico, integrar as

descobertas dispersas em análises particulares e demonstrar que o estudo da Literatura

não precisa ser uma desorganizada coleção de pequenas informações sobre vários

temas. Sendo da competência da teoria a análise, a classificação e a definição de

conceitos literários básicos (cf. Marino, ibid.:435-436), ela poderia, ao unificar

interesses particulares em um contexto mais amplo, criar um espaço de comunicação e

entendimento entre os estudiosos.

Wolfgang Iser (ibid.:425) pensa nessa função sistematizadora como a garantia de

que a experiência da Literatura possa ser intersubjetivamente verificável. Embora os

teóricos possam falar em diferentes linguagens, os fundamentos de cada um poderiam

ser conhecidos graças a um sistema conceitual teórico comum. Mesmo que não se

concordasse em como se lidar com os problemas, ao menos os acadêmicos poderiam

Page 13: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

11

compreender-se mutuamente. Tal função seria de extrema necessidade, tendo em vista

que o número de sentidos e definições de uso quase individual continua crescendo,

tornando urgente uma crítica da terminologia da área. Sem uma sis tematização coerente

e bem engendrada a ser realizada pela Teoria, a Crítica e a História Literária estariam

completamente desorientadas.

Mas que tipo de teoria poderia dar conta da complexidade não do objeto

literário, mas dos Estudos Literários, a ponto de se posicionar, hierarquicamente, acima

das demais abordagens? Iser (ibid.:425) imagina que essa suposta força estruturadora,

para pretender ser uma teoria, teria que ser algo mais do que um conjunto de premissas.

Seria necessário um constante esforço de revelação e de teste de seus fundamentos,

exatamente o que distinguiria o trabalho teórico dos tipos predominantes de Crítica

Literária. Tal teoria deveria ser estruturada de modo que, tão logo passasse a falhar em

seus objetivos, fosse retificada, o que normalmente não acontece com outros

procedimentos dos Estudos Literários, muito tendentes ao dogmatismo.

O ponto de vista de Iser aproxima-o daqueles que vêem na teoria a instância de

auto-reflexão do campo de Estudos Literários. Para Hans Ulrich Gumbrecht (ibid.:422-

423) e Murray Krieger (ibid.:432-433), a pergunta primordial a ser feita é se há, de fato,

um objeto consistente chamado “literatura” sobre o qual teorias (compreendidas como

um conjunto de conceitos) podem ser construídas. Em outras palavras, a principal

questão teórica deveria ser não o estabelecimento de “teorias”, mas a definição do

objeto de nossa disciplina. Krieger (ibid.) afirma que somente após a decisão sobre o

status disciplinar seria possível determinar as funções da teoria em relação à

interpretação, à Crítica e à História Literárias.

Em uma posição aproximada situam-se os que entendem, como Jan

Kowenhoven (ibid.:431-432), que a Teoria Literária deva ser uma instância autônoma,

concernente apenas a si própria e aos problemas que ela mesmo se propõe, a despeito de

modas, utilidades ou apelos do senso comum. Evan Watkins (ibid.:448-450) acredita

que a principal questão é justamente tentar entender como a Literatura e seu estudo

ocupam uma posição específica no conjunto de relações culturais. De modo similar,

Eugene Vance (ibid.:448) defende a função da teoria como sendo a de definir a

especificidade do texto literário como um elemento constitutivo da cultura ocidental.

Page 14: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

12

Entre as concepções de Teoria Literária como uma prática reflexiva estão

também as de John Ellis (ibid.:416-417) e de Lionel Gossman (ibid.:420-422), que

identificam sua função e seus objetivos com os da teoria em qualquer campo: a

investigação técnica de um objeto, de sua natureza e de sua relação com outras formas

culturais, além do esclarecimento relativo a questões mais gerais de uma área de estudos

(os objetivos, a natureza de seus resultados, a conveniência das metodologias, a

natureza e prática da crítica, dos tratados e da interpretação). Como as questões centrais

de uma teoria são já bastante conhecidas, o progresso teórico é sempre lento e deve ser

feito de modo paciente, através da análise cuidadosa de conceitos, de acurados

processos de distinção, sistematização e reavaliação das linhas de argumentos mais

conhecidas na busca de incoerências lógicas. A força de uma teoria está em sua exatidão

e em suas formulações precisas — e não no seu caráter atraente ou excitante — que

funcionarão como hipóteses lógicas e filosóficas nas quais se basearão a análise e o

juízo, de modo o mais “científico” e descritivo possível, a fim de evitar ao máximo

qualquer tipo de julgamento ideológico.

Conceber a Teoria Literária como a realização, no campo dos Estudos Literários,

de ideais teóricos comuns à produção do conhecimento científico dá margem à geração

de uma instância metateórica que teria por objetivo questionar diretamente as condições

de existência daquele ramo da saber: “Theoretical work ought to show how and why no

one class of scholars, and no one subject (including theory) is self-justifying, self-

explanatory, and self-sustaining”6, alerta David Bleich (ibid.:411), indicando que não se

pode naturalizar a existência da disciplina. A teoria deveria ter de pensar sua própria

condição acadêmica, seus problemas de identidade, suas funções e seus objetivos no

conjunto da sociedade, principalmente neste momento, em que a função social do

teórico/estudioso de Literatura não é clara e a própria coerência interna do corpo teórico

e de análise é problemática. É neste contexto de questionamentos que a teoria deve

encontrar seu modo de redirecionar sua atividade crítica e social, ao mesmo tempo que

administra as pressões por maior efetividade prática (cf. Neil Larsen, ibid.:433-435).

Não são poucos os que defendem que a Teoria Literária deva ter um

compromisso político. E muitos também são os sentidos possíveis para “atividade

política”. Raymond Federman (ibid.:417-418), Vida Markovic (ibid.:437-438) e David

6 “O trabalho teórico deveria mostrar como e porquê nenhum grupo de acadêmicos e nenhuma disciplina

Page 15: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

13

Punter (ibid.:439-441), por exemplo, entendem que a teoria deve reafirmar o valor da

Literatura, legitimar sua presença e sua existência em nossa cultura como uma das mais

importantes atividades humanas. Procedendo assim, ela ofereceria um ponto de partida

para o combate contra a crise de valores, manteria viva a herança dos Estudos

Literários, ofereceria diretrizes para o estudo da Literatura e ajudaria a entender qual o

papel da Literatura no mundo contemporâneo.

O comprometimento político da teoria implica, em muitos casos, modificar as

condições de existência cultural de seu objeto, propagar valores e julgamentos,

estabelecer legitimidades e ilegitimidades, realizar exclusões, reafirmar o papel político

do intelectual. Para Watkins (ibid.:448-450) e Gossman (ibid.:420-422), não haveria

maiores problemas com esse aspecto normatizador, uma vez que é uma ilusão

positivista acreditar que se possam produzir discursos teóricos imaculados que

transcendam à ideologia. Os discursos humanos seriam sempre embebidos em desejo e

história. Teorias que se julgam puras agiriam de modo repressivo, enquanto os melhores

discursos teóricos reconheceriam que sua materialidade, longe de ser uma falha, é o que

lhes dá sentido, interesse e importância.

O engajamento tem, contudo, seus riscos. Teorias fortemente politizadas acabam

tendo pouco interesse na própria Literatura, comenta Alastair Fowler (ibid.:418-419). É

o que parece acontecer com as iniciativas que visam a aproximar a Teoria Literária do

campo dos Estudos Culturais. Muitos trabalhos nessa linha colocam-se como se

houvesse chegado a hora de os teóricos finalmente assumirem a responsabilidade pelas

conseqüências sociais de suas hipóteses e procedimentos (cf. Annette Kolodny,

ibid.:429-431), na aspiração de que assim são capazes de contribuir para a

transformação das instituições (cf. Bleich, ibid.:411-413). No juízo de Larsen (ibid.:

433-435), a Teoria Literária deveria se transformar definitivamente em teoria da

ideologia, o que só não ocorre porque ela teme abrir mão da exclusividade do campo do

literário, sem perceber que, enquanto isso, a Literatura vai-se esvaindo e, com ela, a

própria relevância da teoria.

Ainda sob a perspectiva de uma Teoria Literária que extrapole os domínios do

estudo da Literatura, há um tipo de visão — Eagleton, (ibid.:415-416), Gumbrecht

(ibid.:422-423) e Watkins (ibid.:448-450) — que atribui a ela a função de promover o

(inclusive a teoria) é autojustificável, auto-explicativa e auto-sustentável” [tradução minha].

Page 16: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

14

intercâmbio dos Estudos Literários com os interesses oriundos de pesquisas ou de

disciplinas afins, como a Filosofia, a História, a Sociologia etc., integrando-a ao campo

mais vasto dos estudos das relações culturais em geral. Além dessa via interdisciplinar,

fala-se também em se abrir novos campos de investigação ou em sua substituição por

campos mais abrangentes, como no caso do projeto de Iser (ibid.:425-426), por uma

antropologia cultural da Literatura, e no de Jauss (ibid.:428-429), por uma teoria

interdisciplinar do conhecimento.

Tendo apresentado, em linhas gerais, as respostas à primeira pergunta da

enquete, passo à segunda questão, mas não sem antes fazer menção a George Steiner

(ibid.:444-445), que defendeu uma posição isolada, mas não insólita. Para ele, em

outros contextos que não o dos Estudos Literários, o termo teoria vincula categorias de

verificação e de falsificação potencial, experimentos mais ou menos controlados e

formalizações. No entanto, aplicada à Literatura e às artes, a teoria seria apenas um

empréstimo metafórico ou, pior, um caso de pretensão obscurantista. Nossos melhores

argumentos e metodologias seriam “mitologias racionais” ou “cenários discursivos” —

por exemplo, uma leitura marxista ou psicanalítica de textos literários, construtos

ontológicos como os de Heidegger, mitos de sujeitos ausentes, como em Mallarmé e

seus epígonos desconstrutivistas. Tais mitologias programáticas, ainda que possuam

grande força de persuasão, não seriam teorias, em qualquer sentido confiável.

1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”

My graduate students have read Derrida before ever encountering Husserl; they know what is “wrong” with Northrop Frye before they can locate his name in the card catalogue7.

Evan Watkins (ibid.:449)

Num esforço de sistematizar as concepções descritas no item anterior, sobre o

que seja (ou o que deveria ser) a Teoria Literária, creio que seria possível agrupá- las, de

modo generalizador, em torno de quatro linhas8 fundamentais, a saber:

(i) uma designação genérica para Estudos Literários;

7 “Meus alunos de pós-graduação lêem Derrida antes de sequer tomarem conhecimento de Husserl; eles sabem o que há de errado com Northrop Frye antes de serem capazes de encontrar seu nome nas fichas catalográficas” [tradução minha]. 8 Abstraio aqui a posição de George Steiner, mas sua negativa da possibilidade de existir uma Teoria Literária permanecerá como uma hipótese a ser considerada ao longo deste trabalho.

Page 17: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

15

(ii) uma instância sistematizadora encarregada de estabelecer um sistema de

fundamentos, conceitos e métodos que possam ser partilhados pelos estudiosos de

Literatura;

(iii) uma instância filosófica, auto-reflexiva, voltada para a ontologia de seu

objeto;

(iv) uma instância empenhada em articular e relacionar o conhecimento sobre a

Literatura com um conjunto mais amplo de questionamentos políticos, sociais e

culturais.

Neste item, procuro articular esses quatro pontos de vista básicos com as funções

da Teoria Literária apontadas nas respostas à segunda pergunta da enquete.

A posição (i) ajusta-se com a concepção lata de Teoria Literária que defende não

ser possível se falar de um texto literário sem a presença, consciente ou não, implícita

ou explícita, de um modelo de entendimento daquilo que venha a ser a Literatura —

posição comum a Ellis (ibid.:416-417), Glowinski (ibid.:419-420), Gossman (ibid.:421),

Gumbrecht (ibid.:422-423), Krieger (ibid.:432-433) e Carol Jacobs (ibid.:427-428) —,

pois, nas palavras de Stanley Fish (ibid.:418), qualquer leitura de um texto literário é

uma tematização da posição teórica do leitor. Raymond Federman (ibid.:417-418) vai

ainda mais além, entendendo que o próprio autor precisa de uma teoria implícita para

escrever. A teoria é, portanto, um elemento constitutivo da própria Literatura, o que leva

Jacobs (ibid.: 428) a identificar o ensino desta com o daquela.

Harmoniza-se com a posição (ii) uma compreensão da função da teoria como

reguladora dos Estudos Literários. Bons exemplos encontram-se em Jim Springer Borck

(ibid.414), que fala do “rigor” que a teoria imprimiu à sua atividade, Markiewicz

(ibid.:436-437), que se refere à sistematização, precisão e consciência que ela trouxe a

seu trabalho, Glowinski (ibid.:419-420), defensor de que, sem teoria, os Estudos

Literários seriam vítimas da ingenuidade, e McGann (ibid.:438), que acha impensável a

prática do trabalho acadêmico sem a aquisição de uma autoconsciência sobre as

premissas críticas e conceituais dadas pela reflexão teórica. Esta visão trata a teoria

como uma espécie de instância autocontroladora dos Estudos Literários, que forçaria o

estudioso a responder pelas conseqüências de sua prática e a procurar entender o que se

faz e por que se faz o que se faz, o que, em linhas gerais, é também a opinião de

Watkins (ibid.:448-450), Punter (ibid.:439-441) e Fish (ibid.:418). Ela criaria uma

Page 18: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

16

ordem de valores nos Estudos Literários e os capacitaria a promover uma constante

autocrítica (cf. Ihab Hassan, ibid.:423). A teoria seria assim, comenta Iser (ibid.:425-

426), um lembrete constante para que não se perca de vista o que se pretende saber

quando se começa a estudar Literatura.

Responsável por fornecer os parâmetros dos discursos sobre a Literatura, a teoria

teria desse modo a função de dizer o que deve ser levado em conta e o que deve ser

descartado na abordagem das obras, pensa Robert Schwartz (ibid.:444), além de precisar

oferecer uma reflexão metodológica sobre modos de argumentação na Crítica Literária e

interpretações válidas, chegando mesmo ao extremo de dever propor um cânone de

descrição das obras literárias (cf. Markiewicz, ibid.:436-437).

Schwartz (ibid.:444) e McGann (ibid.:438) conferem à teoria a função de exercer

a consciência histórica necessária para se perspectivar ao máximo afirmações a respeito

do significado de um texto. É também nesse sentido que Vance (ibid.:448) entende a

Teoria Literária como responsável por encorajar o estudante a repensar a História de

Literatura e procurar depreender os modelos históricos nela inerentes.

Concordantes com a posição (iii) estão os que defendem as funções da teoria

literária para além de sua aplicabilidade imediata na leitura de textos, dada sua condição

disciplinar de instância de reflexão pura. Gossman (ibid.:420-422), Gumbrecht

(ibid.:422-423) e Ronald Paulson (ibid.:438-439) admitem que a Teoria Literária é a

filosofia dos Estudos Literários, opinião que parece ser compartilhada por Watkins

(ibid.:448-450), que viu nela a possibilidade de conciliar sua formação de filósofo com

a de estudioso da Literatura. Como plano de reflexão filosófica, a teoria estaria

relacionada com a busca de generalizações, não lhe cabendo, diz Kowenhoven

(ibid.:431-432), tratar de obras particulares, mas promover uma reflexão sobre as

regularidades observáveis nos processos literários, com o que concordam Markiewicz

(ibid.:436-437) e Schwartz (ibid.:444).

Por fim, a posição (iv), dos defensores da necessidade “expansionista” da Teoria

Literária, acolheria as concepções a respeito das funções da teoria de Bleich,

Bloomfield, Braudy, Hermeren e Iser, que seriam, de modo geral, as de ampliar nossos

modos de estudo, de revitalizar a atividade acadêmica e de permitir que se atente para

aspectos da Literatura aos quais jamais se deu atenção. Dentro dessa perspectiva,

haveria concepções de teoria que privilegiariam as possibilidades analíticas: a reflexão

Page 19: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

17

teórica teria então por objetivo capacitar a leitura da mais ampla gama de textos,

atentando sempre para a multiplicidade e a complexidade dos processos de escrita e de

leitura em relação a seus contextos, opinião de Kolodny (ibid.:430), David Lodge

(ibid.:435) e Wallace Jackson (ibid.:426-427). A teoria seria um caminho para o livre

pensamento, uma alternativa à rigidez, ao dogmatismo e à ortodoxia de linhas de

investigação estritamente literárias (cf. Marino, ibid.:435).

1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”

We create strange creatures with a huge head but no body who speak a rather curious jargon which they themselves do not always understand9.

Raymond Federman (ibid.:418)

A terceira questão da enquete indagava dos professores sobre os efeitos da

Teoria Literária no ensino universitário. Grande parte das respostas apontava para as

dificuldades enfrentadas pelo ensino da teoria. Os problemas relacionados eram vastos e

iam desde a denúncia da falta de envergadura intelectual dos alunos para tratar de temas

filosóficos ou para aplicar seus conhecimentos teóricos em seu trabalho crítico — Iser

(ibid.:426), Markiewicz (ibid.:437), McGann (ibid.:438) e Sullivan (ibid.:446) — até a

obscuridade de certas correntes — Eagleton (ibid.:416) e Markiewicz (ibid.:437).

Outros, como Kolodny (ibid.:430), replicavam que o problema não era a teoria em si,

mas seu lugar no ensino de pós-graduação. Haveria poucos cursos que reservassem

espaço para uma introdução sistemática e abrangente da multiplicidade de correntes,

escolas, teorias e debates. Marino (ibid.:436) acrescentava ainda que faltariam cursos de

história das idéias sobre Literatura, de Retórica, de Poética etc.

Através das respostas, pode-se também observar como cada uma das quatro

concepções da disciplina anteriormente descritas — e as funções a elas atribuídas — é

criticada sob a perspectiva de um posicionamento diverso, o que parece revelar que tais

noções de teoria não são complementares, mas mutuamente excludentes.

Da posição (i), muito genérica, depreende-se o seguinte problema: seus

defensores acreditam que o professor de Literatura pratica teoria, mesmo que não seja

ou não se considere um teórico — pois haveria, segundo Kolodny (ibid.:430), uma

9 “Criamos estranhas criaturas com uma enorme cabeça mas sem corpo, que falam um jargão

Page 20: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

18

teoria que subjaz a todo discurso sobre a Literatura —, o que implica, em tais casos, a

ausência de um ensino sistemático e coerente (cf. Lodge, ibid.:435). A posição teórica

que não se percebe como tal é naturalizada e acaba não sendo ensinada como “uma”

teoria. É a partir desta crítica que se aponta para a necessidade de se organizar a

disciplina, o que poderia ser feito começando-se por um estudo histórico da mesma (cf.

Krieger, ibid.:433), pela exploração das estruturas conceituais que resultaram na

multiplicidade concreta de práticas historicamente desenvolvidas e pelo conseqüente

questionamento dos interesses ideológicos que fundam suas práticas (cf. Watkins,

ibid.:449).

Marino (ibid.:436) lembra, contudo, que, como rareiam os trabalhos de grande

fôlego, como os de René Wellek, há uma falta de obras de referências, o que tornaria o

ensino da teoria fragmentado e incompleto, razão por que certamente não seria mais

possível se falar em um curso completo de Teoria Literária. Neste contexto, Leo Braudy

(ibid.:415) defende a necessidade de se avaliar, efetivamente, que teorias têm alguma

utilidade. Assim, como acontece em outras áreas, poder-se- iam estabelecer as teorias

sobre quais todos deveriam ter algum tipo de conhecimento, ficando as demais restritas

aos especialistas naquele tópico específico.

Apesar da grande quantidade de conhecimentos e da crescente multiplicidade de

práticas críticas, a Teoria Literária raramente se pergunta pelos fatores sociais e

culturais que a conduziram a esse estado. Com uma bibliografia muito compartimentada

e em constante expansão, o estudante costuma se sentir perdido, sem saber como os

temas e as abordagens chegaram a se tornar pontos relevantes. As idéias são descartadas

tão logo começam a ser disseminadas e não é possível coordenar ou redirecionar o que

sequer foi compreendido num primeiro momento.

A teoria deveria então encarar a hipótese de que a multiplicidade de práticas

críticas não resulta da ausência de modelos metodológicos organizados — aliás

existentes em um número suficiente para incrementar a confusão —, mas do

desenvolvimento histórico dos Estudos Literários na universidade e da posição anômala

dos seus cultores na sociedade contemporânea, incapazes de criticar tais modelos.

Nenhuma teoria pode seguir adiante sem ser também histórica, completa Watkins

(ibid.:450).

curiosíssimo que nem sempre elas próprias entendem” [tradução minha].

Page 21: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

19

A posição (ii) dá margem à censura de que se exige constantemente do aluno, no

ensino de correntes de teoria literária, a aplicação de modelos, rebaixando os textos a

meras ilustrações das premissas teóricas, opinião partilhada por Bleich (ibid.:411-413) e

iser (ibid.:425-426). Embora seja essencial para o ensino da pós-graduação, a teoria,

pensa gumbrecht (ibid.:422-423), deve ser dada a partir de uma discussão efetiva que

possibilite aos futuros profissionais e colegas a capacidade de pensar por conta própria.

A essa dificuldade soma-se a resistência em se permitir aos alunos a experiência com

outras correntes, que não as do professor, problema anotado por Bloomfield (ibid.:414),

Borck (ibid.:414), Krieger (ibid.:433) e Iser (ibid.:426). Uma das causas deste

embaraço, entende Kolodny (ibid.:429-431), reside no fato de os departamentos

tenderem a se fechar em torno de apenas um escola ou método.

Ainda sob a perspectiva da crítica a uma concepção de teoria como instância

sistematizadora dos Estudos Literários, Bloomfield (ibid.:413-414), Markiewicz

(ibid.:436-437) e Glowinski (ibid.:419-420) identificam os problemas do trabalho

teórico com a tendência para minimizar o particular, superestimar o geral, enveredar por

raciocínios filosóficos e sucumbir a abstrações, especulações e esquematismos. Sob o

mesmo ponto de vista, Gossman (ibid.:420-422) chega a lamentar que a teoria faça com

que os estudantes rejeitem idéias e percepções interessantes e sugestivas que não podem

ser formuladas com suficiente rigor, ou não podem ser justificadas e validadas em

termos de uma teoria abrangente. Para ele, não se pode trabalhar apenas no escopo de

uma teoria, mas se deve trabalhar também no “escuro”, onde muitas das questões mais

interessantes ocorrem.

A posição (iii) é atacada pelos que entendem que o grande problema da Teoria

Literária é, exatamente, a sua pretensão de ser um fim em si mesma e não uma

ferramenta de pesquisa que permita descobrir coisas — opinião de Bleich (ibid.413),

Gossman (ibid.:422), Vance (ibid.:448), Iser (ibid.:426), Lodge (ibid.:435) e Markovic

(ibid.:438). A disciplina não seria um campo auto-suficiente de especulação e de

raciocínio dedutivo, estando por isso obrigada a se justificar em termos de seu uso. O

desprezo pela aplicabilidade, diz Bleich (ibid.:411-413), apenas reforçaria o estereótipo

do trabalho intelectual como sem objetivo e inútil, o que ocorre quando muitas correntes

teóricas, ao encorajarem os aprendizes a questionar, negar ou resistir às afirmativas

empreendidas por outros, acabam sugerindo que pensar é superior e diferente de fazer.

Page 22: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

20

Bleich entende que qualquer idéia que surja e termine como estritamente teórica apenas

reduz o valor e a importância da teoria.

Göran Hermeren (ibid.:424) entende que a teoria é discutida isoladamente com

muita freqüência, porque a relação entre as atividades literária, teórica e acadêmica não

é explícita. Isso torna a relevância do trabalho teórico difícil de ser compreendida pelos

alunos. A grande dificuldade deles é exatamente entender as transições entre a teoria e a

interpretação, as poéticas e as descrições de obras concretas, as descrições e a

hermenêutica (cf. Glowinski, ibid.:419-420). Dissociado das outras práticas dos Estudos

Literários, o trabalho teórico arrisca-se a degenerar em meras palavras e criar uma teia

de abstrações que dizem respeito apenas ao próprio teórico, o que afasta o estudo da

Literatura de outras dimensões da cultura. E o que é pior, diz Norman Holland (ibid.:

424-425), torna a teoria insensível ao desprezo que lhe vota o senso comum.

Um grande número de acadêmicos — Bloomfield (ibid.:413-414), Borck (ibid.:

414), Paulson (ibid.:438-439) e Federman (ibid:417-418) — ressalta que os cursos de

Teoria Literária, ainda que importantes, não podem substituir o estudo de obras e o da

História Literária, tampouco se transformar no centro da formação de um estudante de

Literatura. O conhecimento estrito de obras teóricas, obviamente, não forma bons

professores e muito do mau uso que se faz da teoria se explicaria justamente pela falta

de conhecimento que os alunos têm dos textos literários. A solução estaria no melhor

equilíbrio entre a leitura de teoria e a de Literatura. Outros, porém, como Fowler

(ibid.:418-419) tratam o problema de modo mais radical, entendendo que aquilo que se

deve incentivar na pós-graduação é a familiaridade com a Literatura, com o contexto

histórico, com a periodização, não se devendo assim dissipar tempo com a teoria, nociva

porque incentivaria o abandono do estudo diacrônico.

A dicotomia entre texto teórico e texto literário é ironizada por Jacobs

(ibid.:427-428), para quem a suposição de que se possa optar entre Literatura e teoria,

como se fosse uma opção política e polêmica, é absurda. Escolher Literatura em

detrimento da teoria revelaria uma grande ignorância em relação ao seu objeto e ao

próprio empreendimento crítico, tanto quanto estudar Teoria Literária sem considerar a

Literatura seria, digo eu, no mínimo um nonsense. Os Estudos Literários, assim pensa

Ronald Paulson (ibid.:439), deveriam conduzir o estudante à reflexão teórica, mas

depois levá- lo de volta aos textos literários, então iluminados pela teoria.

Page 23: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

21

Uma crítica comum à posição (iv) pode ser resumida na postura de Vance

(ibid.:448), que entende ser o problema da Teoria Literária sua natureza híbrida: não é

pura história, nem pura filosofia, nem pura antropologia, nem puro estudo de Literatura,

razão pela qual ela é freqüentemente superficial e assistemática. Krieger (ibid.:432-433)

também concorda que o grande problema da teoria seja exatamente seu fracasso em

determinar seus próprios limites.

Entre as principais causas apontadas como responsáveis pela fluidez das

fronteiras da Teoria Literária está a aceitação franqueada dos modismos, que faz com

que qualquer novidade receba prioridade em relação aos métodos clássicos. Ignora-se,

deste modo, que muitas novidades são repetições ou redescobertas, opinião de Marino

(ibid.:436) e Morton Bloomfield (ibid.:414). Esse tipo de teoria, que desconhece as

reflexões sobre as linguagens anteriores a de, por exemplo, Derrida, bem como sobre a

própria história da disciplina, incentiva tendências narcisistas de crítica e oferece meios

de se evitar os desafios apresentados pela tradição e pela necessidade da prática da

confirmação e da refutação, ponto de vista com que concordam Fowler (ibid.:419) e

Ellis (ibid.:417).

Em muitos casos, a aceitação de uma perspectiva teórica se dá pelo fascínio

produzido pelo esplendor da imprecisão grandiosa, ao invés da clareza exigida de

qualquer pesquisa teórica autêntica, referindo-se Ellis (ibid.) à pretensão de algumas

correntes de que o comentário do texto seja tão importante quanto o próprio, a ponto de

poder substituí- lo, ponto de vista também de Alvin Sullivan (ibid.:446). A dependência

existencial-temporal do último em relação ao primeiro — isto é, do comentário em

relação ao texto — não é apenas uma questão de lógica elementar, enfatiza Steiner

(ibid.:445), mas também de percepção moral.

1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA

Uma análise preliminar das respostas à enquete da New Literary History pode

conduzir a uma primeira hipótese de trabalho: “Teoria da Literatura” não é uma noção

auto-evidente e muitas das discussões em torno do tema são prejudicadas pela ausência

de um acordo conceitual prévio. As compreensões muito diversificadas a respeito da

natureza, dos objetivos e das funções do trabalho teórico produzem diferenciados

Page 24: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

22

procedimentos de produção, de divulgação e de ensino da Teoria Literária. Se, por um

lado, a multiplicidade de caminhos de abordagem da Literatura aponta, supostamente,

para a pujança e complexidade da obra literária, por outro lado, essa pletora de

possibilidades aparentemente equivalentes em suas irredutíveis especificidades conduz

os Estudos Literários a uma situação incômoda para uma disciplina institucionalizada.

Seria efetivamente uma qualidade poder se responder a uma pergunta como o que é ser

um estudioso de Literatura? de infinita maneiras, ou isso apenas revelaria o quão

pouco especializada vem se tornando essa área de estudos?

Não creio que estudiosos atuantes nesta área possam ignorar a relevância dessa

questão. Por esta razão, sempre entendi que, qualquer que fosse o caminho tomado por

meu trabalho, eu deveria manter esta pergunta em meu horizonte — irrespondível, mas

de constante presença — para não me permitir continuar desenvolvendo uma atividade

sem ter alguma consciência objetiva de suas finalidades. Não estou pensando em

teleologias extremas, mas apenas tentando entender como minha prática, o estudo da

Literatura, responde à minha condição humana, sobretudo, como um ser político.

É claro que reconheço a validade de respostas “afetivas” a essa questão, como

todas aquelas que entendem que nossa condição de estudiosos de Literatura já se

justificaria pelo simples fato (aliás, nada simples) de estarmos atuando como agentes de

conservação do patrimônio constituído por algumas das mais radicais e maravilhosas

aventuras do ser humano: as obras de arte literária. A melhor forma de demonstrar

gratidão a todos aqueles que permitiram que essas obras chegassem compreensíveis até

nós seria atuar também como preservadores e transmissores deste legado. Esta seria, por

si só, uma missão tão nobre quanto quixotesca: atuar como bastião de um patrimônio

cultural evanescente. Mas não é claro para mim como minha presença na Academia

contribui, efetivamente, para essa causa. A proliferação desenfreada de discursos sobre

a obra literária, a diafonia das correntes de pensamento, a exuberância das abordagens

inter, trans e meta disciplinares parecem estar muito mais se utilizando da Literatura

para falarem de outras coisas — em geral, delas próprias — do que propriamente

tratando da Literatura, de seus problemas e de suas qualidades.

O que poderia ser entendida como apenas uma dúvida existencial deve ser

também considerada em sua dimensão política: o que significa ser subsidiado — ainda

que mal — pelo estado para estudar Literatura, se transformar num especialista em

Page 25: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

23

Literatura e depois atuar como formador de outros especialistas? Mesmo reconhecendo

não reunir as condições necessárias para fazer desta questão o problema teórico a ser

enfrentado neste trabalho, devo admitir que prosseguir falando profissionalmente de

Literatura, sem um esforço prévio de compreender essa função no que ela significa e

pode significar para meu tempo e para a sociedade em que vivo, vem se transformando

num hábito suspeito, se não fraudulento, de apenas encher de mais confusões as já

abarrotadas prateleiras dos Estudos Literários.

Tendo admitido a validade e a pertinência da pergunta “que é ser um estudioso

de Literatura?”, o próximo passo será tentar entender em que um estudioso da

Literatura se diferenciaria do leitor comum. Nossa condição de especialistas —

legitimados que somos por nossa posição institucional — deve implicar, suponho, o

domínio de um discurso sobre a obra literária qualitativamente diverso daquele dos

demais leitores não-especializados.

Aceito aqui como válida qualquer advertência no sentido de se negar a

pertinência de se pensar o discurso do especialista como qualitativamente superior aos

demais discursos sobre Literatura. No entanto, se aceitamos a equivalência entre eles,

deveríamos imediatamente procurar, nos cadernos de classificados, um novo ofício.

Para podermos continuar a fazer o que fazemos, precisamos ao menos acreditar, em

hipótese, que é possível um discurso e um saber sobre a Literatura — dados por um

conjunto de práticas desenvolvidas no ambiente da universidade — diferenciados, em

qualidade, da infinidade de discursos e de saberes possíveis sobre qualquer obra

literária.

A partir dessa assertiva hipotética — o discurso e o saber do especialista são

qualitativamente diferentes dos discursos e dos saberes que podem ser produzidos sobre

uma obra literária por não-especialistas —, uma outra suposição se impõe: onde estaria

o cerne desta diferença? Entre as respostas possíveis, creio que poderia situar-se no

esforço de observar a obra:

(i) não apenas naquilo que significa para mim, leitor, mas naquilo que

significa e pode significar para o conjunto dos homens;

(ii) como um documento histórico, um retrato privilegiado de uma época;

(iii) em suas similaridades com outras obras, chegando-se assim a algum tipo

de visão sistemática de fenômenos aparentemente sempre tão singulares;

Page 26: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

24

(iv) em suas relações, diacrônicas ou sincrônicas, com o conjunto das demais

atividades humanas;

(v) como singularidade irredutível e absoluta, como algo cuja existência é

sempre um “existir para alguém”;

(vi) como artesanato textual, fruto de técnicas de produção que podem ser

catalogadas e reutilizadas para a produção de outras obras.

Estas são respostas justas e possíveis, como ainda seriam possíveis e justas

muitas outras. As seis possibilidades arroladas correspondem, efetivamente, a

realizações dos Estudos Literários ao longo da história. Cada uma delas se funda em

algum tipo de pressuposto sobre a Literatura: a obra como documento, como linguagem,

como pensamento, como objeto que se oferece aos sentidos etc. Cada uma dessas

tentativas recorta, de um mesmo campo de observação, a linguagem verbal, objetos

formais bastante diversos que vêm sendo denominados, há pelo menos duzentos anos,

com maior ou menor imprecisão, Literatura.

Chegar-se- ia assim, aparentemente, a uma solução para a questão inicial

proposta: o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre obras literárias

fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura. Tal conclusão

poderia mesmo ser demonstrada, sem maiores dificuldades, de modo empírico. Bastaria

uma visada histórica para perceber que os objetos que chamamos hoje literários têm se

prestado a compreensões distintas e, por vezes, quase contraditórias, sem nenhum

prejuízo perceptível do fenômeno literário, que sobrevive e resiste para além dos

tumultuosos pensares de seus admiradores e estudiosos.

Minha segunda pergunta — o que diferencia o discurso do especialista do

discurso do não-especialista? — persiste, porém, sem resposta. Uma outra visada, agora

empírica, poderia nos mostrar que, num mesmo momento histórico, como o nosso,

discursos supostamente fundamentados sobre a Literatura parecem se propagar em

progressão geométrica. Se nos submetermos ao que foi postulado no parágrafo anterior

(“o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre a Literatura

fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura”), não acabaríamos

obrigados a sustentar que qualquer discurso fundamentando em qualquer premissa é

igualmente legítimo? E tal concepção não deveria também aceitar discursos geralmente

tomados como não-especializados, como o do diletante que fundamenta seu discurso e

Page 27: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

25

seu saber sobre a obra literária em, por exemplo, seu gosto individual? Não

terminaríamos igualando — democraticamente, é bem verdade — uma teoria do

romance ou um tratado de versificação a declarações tão peremptórias quanto

incontestáveis do tipo “gosto porque gosto”?

Para não acabar por se reconhecer que o resultado do estudo profissional da

Literatura é idêntico ao das muito mais agradáveis horas de leitura e de conversa

opiniática, deve-se admitir que a exigência simples de um discurso sobre a obra literária

fundamentado em qualquer pressuposto não é suficiente para que possamos entender o

que diferencia o saber do especialista do saber do não-especialista. Uma possível saída

estaria em admitir que devemos ser capazes de empreender uma crítica desses

fundamentos (e pseudofundamentos) dos discursos sobre a obra literária. Mas tal

empreendimento é possível na condições de pensamento do mundo atual?

O pensamento relativista, com a radicalidade que grassa hoje no meio dos

Estudos Literários, quase nos faz esquecer que estamos obrigados, em nossa existência,

a fazer escolhas e juízos. Sem algumas presunções temerárias, sem algumas certezas

operacionais, sem as pequenas decisões “autoritárias” do cotidiano, não somos sequer

capazes de atravessar uma rua. Em outras palavras, o relativismo, levado ao extremo,

paralisaria o homem numa sucessão interminável de aporias enquanto se persegue a

utópica igualdade na diferença, o provável ideal de justiça de nossos dias.

Não estou assumindo aqui uma posição pragmática, mas indicando que tomar o

relativismo como fundamento último tem autorizado comportamentos pragmáticos

diversos, muitos deles pouquíssimo afinados com as boas intenções democráticas dos

relativistas. O mundo não pára porque alguns homens têm dúvidas sobre a verdade

última das coisas e dos seres.

Os desafios de uma epistemologia relativista não podem ser tomados como

definitivamente aporéticos. A filosofia kantiana, para ficar num único e bastante

conhecido exemplo, com seu relativismo gnoseológico, mostra que a relatividade de

nosso conhecimento — tudo o que conhecemos, conhecemos em função de nossa razão

— pode ser, ao mesmo tempo, também a promessa e um projeto de universalidade;

afinal, todos os homens são racionais. Como não estamos dispostos a abandonar as

importantes e não poucas conquistas que uma consciência relativista tem proporcionado

ao homem, nem tampouco abrir mão de nossa capacidade crítica — a potência de

Page 28: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

26

questionar os limites e a validade de nossos pensamentos e ações —, talvez devêssemos

nos dedicar seriamente a formular novos modos de pensamento que nos permitam um

contraponto crítico, de onde se possa avaliar, por exemplo, em nome de que tipo de

democracia ou em nome de que idéia de arte estão sendo proferidos discursos sobre a

obra literária. Se não formos capazes desta reflexão, continuaremos a ver, à revelia de

seus defensores, o relativismo servindo de combustível ideológico para atitudes,

comportamentos e discursos estranhos às pretensões igualitárias de suas premissas.

Entro agora no segundo questionamento derivado de minha pergunta inicial

sobre o significado de ser um estudioso da Literatura: num contexto de relativismo

cultural, quais modelos de Estudos Literários legitimamente fundamentados são

possíveis? Acredito — e continuo assim no terreno das hipóteses, pois não tenho como

“provar” a superioridade desta possibilidade — que a resposta a essa pergunta passa

necessariamente pelo esforço de se reelaborar um estudo metódico e sistemático da

Literatura. Para tanto, antes de mais nada, seria necessário superar a aversão, no

ambiente dos Estudos Literários, ao simples proferimento da palavra “teoria”. A

desconfiança, por parte de estudantes e de professores, em relação ao trabalho teórico é,

em parte, justificável. A forma como ele vem sendo utilizado tem se revelado por vezes

inócua, outras vezes iníqua. Na imagem precisa de Gustavo Bernardo,

A teoria se torna árida, seca, burocrática, somente quando pára de pensar sobre si mesma, acreditando-se acima da crítica e da reflexão e se sobrepondo totalitariamente ao método e à prática. Quando se coloca a teoria na frente do método, ela fica se parecendo com uma chave de fenda que não encontra, na dimensão do real, a fenda que lhe cabe, e então arranha o real até forjar a fenda e torcer o fenômeno para onde a teoria dizia a priori que ele ia. (Bernardo, 1999:161; grifo meu).

Em conseqüência do mau uso do trabalho teórico, a teoria vem sendo

compreendida apenas como uma tentativa fracassada de transformar o estudo da

Literatura em uma ciência nos moldes positivistas do século XIX.

O que normalmente chamamos Teoria da Literatura, com T e L maiúsculos, é,

de fato, uma realização histórica no âmbito dos Estudos Literários no século XX, que se

concretizou numa pletora de correntes cujos pressupostos são tão variados, concorrentes

e contraditórios entre si que somente com um supremo esforço de generalização podem

ser reunidas em um mesmo rótulo. Nesse sentido, a antipatia pela teoria se justifica: seu

alastramento como “abordagem” hegemônica trouxe, aos Estudos Literários, muito mais

confusão e contradições do que conhecimento e soluções para os problemas da área.

Page 29: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

27

Uma das metas deste trabalho é, em primeiro lugar, mostrar que o que parece ter

morrido no século passado foi um determinado projeto de teoria, não a necessidade e a

pertinência do estudo metódico e sistemático da Literatura. Além disso, creio que é

estratégico demonstrar que nenhuma Teoria da Literatura pode ser tomada como

substituta ideal de todas as possíveis abordagens do objeto literário, isto é, não pode ser

considerada “uma espécie de enciclopédia do saber sobre a Literatura, que incorpora,

como meros capítulos seus, todas as demais disciplinas historicamente discerníveis

nesse setor” (Souza, 1987:102). A reflexão teórica, assim, seria uma faceta do

movimento de compreensão da Literatura, juntamente com as abordagens

interpretativas, analíticas, históricas, judicativas e prescritivas, que constituem o

conjunto das atitudes possíveis — ao menos até este momento — diante de objetos

literários.

Para que a teoria assuma o papel que lhe cabe no estudo especializado da

Literatura, proponho a observação de quatro princípios orientadores:

(i) O estudo da Literatura, para ser sistemático e metódico, não deve precisar

reproduzir fielmente métodos das ciências empíricas modernas ou repetir os caminhos

trilhados pelos Estudos Literários nos séculos XIX e XX, que se serviram de

metodologias importadas de outras ciências humanas e sociais, como a Antropologia, a

Sociologia, a Lingüística, a Psicanálise e a História.

(ii) A historicidade da experiência humana não pode redundar, necessariamente,

em que todo e qualquer sistema teórico esteja fadado a se realizar como absolutização

de concepções individuais ou históricas. Se o plano da experiência se revela aberto e

histórico, a teoria deverá ser aberta, para a contínua renovação de seus pressupostos —

sem que isso signifique formular uma teoria para cada obra literária particular ou

abandonar princípios teóricos a cada problema que o dinamismo e a diversidade dos

processos criativos da arte venha a apresentar —, e histórica — por ser concebida como

uma construção de pensamento que se dá em um tempo e espaço definidos —, sem ser

historicista, isto é, sem se restringir a concepções causais sobre a obra de arte.

(iii) O estudo especializado da Literatura precisa estar empenhado no

estabelecimento, aperfeiçoamento e conservação de uma linguagem conceitual

universal, com o objetivo de tornar os trabalhos teóricos inteligíveis entre si e passíveis

de serem comunicados.

Page 30: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

28

(iv) Uma Teoria da Literatura precisa realizar, como uma de suas preocupações

axiais, uma constante reflexão sobre o papel da Literatura na existência do homem, o

que implica possuir uma dimensão filosófica cujos postulados sejam ética, lógica e

epistemologicamente coerentes.

Atender os quatro princípios orientadores ora propostos exigirá, ao longo da

reflexão que nos propomos, uma talvez utópica e certamente ambiciosa aspiração de

compromisso com um novo caminho para as ciências humanas, fundado em novos

ideais de objetividade. Acredito que um esforço em se realizar uma reflexão rigorosa

possa permitir pensar o estudo da Literatura, em condições que superem o relativismo

permissivo que tem marcado o campo de Estudos Literários nos últimos anos. É

possível imaginar que o estudo especializado da Literatura possa ser legitimado, com

suas limitações, por ser um modo de compreensão da função do estudioso da Literatura

solidário com um determinado modo de compreensão da arte, um determinado modo de

compreender o conhecimento humano, um determinado modo de compreender o

homem, enfim.

1.3 – OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA

Até a investigação do fenômeno literário ambicionar, a partir do século XIX, um

caráter científico, três disciplinas de cunho humanístico disputaram este campo de

estudos: a Retórica, a Poética e a Estética. As duas primeiras têm suas origens na

Antigüidade e permaneceram dominantes até pelo menos o fim do século XVIII. A

Estética só foi conceitualmente formulada como um campo autônomo em meados do

século XVIII, com a obra de Alexander Baumgarten. Originadas numa tradição

filosófica estranha à especialização das ciências, Retórica, Poética e Estética não são

facilmente separadas entre si. Roberto Acízelo de Souza aponta, contudo, para algumas

especificidades inerentes a cada disciplina, e demonstra como elas ora se relacionaram

de modo complementar e sem hierarquias, ora com oscilações de proeminência que

passaram “da Retórica à Poética e desta à Estética” (ibid.:30).

Fazendo inicialmente uma distinção entre Retórica e Poética, diz o ensaísta:

(...) a primeira se concentra em questões predominantemente técnicas acerca da construção do discurso, enquanto a segunda é animada por um empenho especulativo que não se confina somente ao âmbito dos recursos de seleção e arranjo verbal, interessando-se antes pelos problemas correlativos da origem,

Page 31: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

29

natureza e função da arte literária. Outras vezes, porém, a Poética sacrifica o especulativo ao pragmático e normativo (o que se dá sobretudo na Baixa Idade Média e no Classicismo moderno), com o que a preocupação absorvente com a técnica da composição a aproxima bastante do âmbito retórico (ibid.:49).

As origens da Retórica podem ser relacionadas a um fato político-econômico,

pois a sistematização e o ensino de técnicas oratórias atendiam a importância que a

eloqüência assumia em sociedades em que tribunais e assembléias eram os centros de

todas as decisões. Mas a fixação e o desenvolvimento da disciplina estão intimamente

relacionados à Sofística, que, muito mais do que uma técnica de manipulação da

linguagem, era um novo modo de reflexão sobre ela, e, de certo modo, representou a

fundamentação filosófica da Retórica.

Do ponto de vista da história tradicional da Filosofia, a Sofística foi relegada,

durante séculos, a um papel secundário, que não condiz, por exemplo, com a atenção

reservada a ela pelos próprios Sócrates, Platão e Aristóteles, os quais dedicaram grande

parte de seu pensamento em dialogar com sofistas. Acízelo lembra, por exemplo, que,

no tratado aristotélico de retórica, há diversos pontos convergentes com o pensamento

de sofistas: a potência catártica do discurso, o alcance filosófico da poesia, o poder da

mímesis etc. Mesmo Platão, deixando-se de lado a perspectiva moral/pedagógica de

suas críticas à poesia, não negava o imenso poder do lógos — um pressuposto caro à

Sofística.

Foi justamente um sofista, Górgias, que acrescentou à codificação dos recursos

de oratória judiciária e política o gênero epidíctico. Mas, já em Aristóteles, observa-se

uma distinção — ele escreveu um tratado destinado à Retórica e outro à Poética — que

se faria presente em Horácio, Ovídio e ao longo do mundo antigo, até que com Tácito,

quando a oratória política e judiciária tornaram-se proibidas, reunir-se-iam as duas

disciplinas sob o nome de Eloqüência.

A Retórica adaptou-se ao Cristianismo e tornou-se, na era medieval, uma das

disciplinas do Trivium. Nesta altura, ela se encontrava unificada com a Poética, numa

disciplina que reunia arte oratória, correspondência administrativa e criação poética, até

que, em fins do século XV, ocorreu a separação entre Primeira Retórica (ou Retórica

geral) e Segunda Retórica (ou Retórica poética). A Idade Média, contudo, marcaria o

início do declínio da Retórica. Com o passar do tempo, a perda da finalidade de

instrumentalizar oradores fez com que ela passasse a se ocupar exclusivamente da

Page 32: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

30

palavra escrita. De disciplina dominante do Trivium, ela foi perdendo sua preeminência,

primeiro para a Gramática e depois para a Dialética. No Renascimento, quando a

redescoberta da Poética, de Aristóteles, deu nova vida aos estudos da arte literária, a

Retórica encontraria espaço apenas como disciplina escolar do ensino jesuítico.

Sob a capa da Eloqüência, a Retórica havia absorvido toda a cultura da palavra e

estava diretamente relacionada à idéia de Literatura como um “bem escrever”. Seu

esvaziamento está relacionado, nos termos de Acízelo, a um movimento que começa no

século XVIII e se consuma no XIX: em primeiro lugar, a nova ordem epistemológica

que deu lugar a uma nova forma de entendimento da linguagem, sob “uma perspectiva

racionalista (Gramática de Port-Royal), referencial (empirismo) ou sensualista

(Estética)” (ibid.:51); depois, a ascensão da ideologia romântica e sua incompatibilidade

com o caráter preceptístico assumido pelas duas disciplinas humanísticas; e, por fim, a

submissão das Humanidades aos ideais cientificistas, e a ascensão da História como

disciplina-chave das novas Ciências Humanas.

Em suas últimas versões, a Retórica, então já uma decadente e ridicularizada

disciplina, resumia-se a um conjunto de classificações. Seu declínio da condição de

metalinguagem predominante foi seguido, no plano teórico, por um vazio que seria

preenchido pelo impressionismo crítico. Escritores, críticos, historiadores e filósofos,

alternando biografismo, sociologismo e psicologismo, dominaram o ambiente dos

Estudos Literários.

Por permitir partir do termo classificatório para o exemplo — mas não o inverso,

do fato de língua ao nome da figura, o que caracterizaria um procedimento indutivo —,

a Retórica se aproximaria, mais do que qualquer outra investigação da Literatura, de

uma ciência empírica baseada na construção de uma teoria hipotético-dedutiva

(ibid.:32), conforme pode ser observado nas etapas caracterizadas por Acízelo:

(i) Observação dos enunciados: por exemplo, no enunciado “aurora de róseos

dedos” detectar-se-ia um fato de linguagem: a relação analógica entre “róseos dedos” e

“alongados e divergentes traços avermelhados” permitindo a substituição do termo

próprio pelo figurado.

(ii) Fixação de proposições singulares (descrições/nomeações): descrição do

fato detectado. No caso, a relação de analogia entre “róseos dedos” e “alongados e

divergentes traços avermelhados”.

Page 33: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

31

(iii) Generalizações: a partir da observação de outros fatos semelhantes,

estabelecimento de uma proposição geral: ocorre, na linguagem, a transposição, com

base numa relação de semelhança, do nome de uma coisa para outra.

(iv) Classificação das proposições singulares: criação de um conceito (no caso

em questão, o de metáfora) a partir desta generalização.

(v) Construção de uma “teoria de nível baixo”10: conjugação das proposições,

das classes e dos conceitos, num sistema coerente.

Estabelecida, por fim, uma teoria, ela deverá permitir novas generalizações

conjugadas a suas proposições, promover operações dedutivas que integrem a ela novos

enunciados e tornar-se um instrumento técnico de produção de enunciados por ela

classificáveis conceitualmente.

Outra disciplina clássica, a Poética, tem sua origem em obras fundadoras como

a Poética, de Aristóteles, a Ars poetica, de Horácio, e o Sobre o sublime, de Longino. A

partir do século I a.C., ocorre o já referido sincretismo com a Retórica, com o

predomínio desta sobre aquela — no Septennium medieval, apenas os estudos retóricos

se fazem presentes. Será apenas no final do século XV, com a distinção entre Retórica

Geral e Retórica Poética, antes já aqui mencionada, que a Poética, então chamada de

Segunda Retórica, alcançaria o seu auge. Enquanto a Primeira Retórica ficaria

confinada ao ambiente escolar, a Poética emergiria, redescoberta no Renascimento,

como uma disciplina de pesquisa filosófico-técnico-formal que daria origem às artes

poéticas do Classicismo europeu moderno, até ter sua posição hegemônica arrebatada

pela Estética, no século XVIII. Para Roberto Acízelo de Souza, os fatores que causam a

derrocada da Poética teriam sido os mesmos que abalaram a Retórica, já aqui antes

referidos.

Outra disciplina da tradição humanística é a Estética, que se organizou

conceitualmente em 1750, com o trabalho de Alexander Baumgarten. A temática,

contudo, já era trabalhada desde a Antigüidade Clássica: uma abordagem da Literatura

que levasse em consideração o conjunto das demais artes. Correspondia a tentativa de se

estabelecer uma ciência do conhecimento sensível, a partir de uma distinção entre

10 Por “teoria de nível baixo” deve-se entender “(...) um conjunto de proposições/conceitos coerentes entre si, apto a permitir a dedução de novas generalizações, bem como dotado da capacidade de funcionar, isto é, dotado de alcance técnico, ainda que incapaz de desvendar a profundidade do próprio funcionamento” (ibid.:32).

Page 34: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

32

“coisas conhecidas” e “coisas percebidas”. A Estética era, portanto, não apenas um

estudo da arte, mas um campo de estudo epistemológico.

Há, na obra de Baumgarten, a tentativa de conceder ao sensível maior

consideração, integrando-o de algum modo às faculdades cognitivas racionais. Ao

colocar a arte “sob a jurisdição de uma ‘gnosiologia inferior’” (ibid.:54), ele reforçou

uma concepção de linguagem como transparência à sensibilidade, impulsionando a

ideologia romântica da criação artística como obra do gênio. Paradoxalmente, as

transformações de que a Estética “é simultaneamente fator e produto” (ibid.:55) são

também as razões de seu rápido declínio, a saber, a escalada da ciência que acabou por

tomar o lugar das especulações filosóficas características da Estética, e os êxitos do

Romantismo e do evolucionismo, que conferiram à História o status de modo

investigativo dominante.

A emergência dos ideais da ciência moderna, no século XVII, afetaria

profundamente os Estudos Literários. O operativismo e o substancialismo que

marcavam os estudos de Literatura de tradição clássica tornar-se- iam progressivamente

desacreditados. Retórica, Poética e Estética, como modelos de conhecimento e como

metalinguagem, ficaram incapazes de atender às novas necessidades epistemológicas e

artísticas. Por um lado, o conhecimento voltado para o artesanal ou para o especulativo

das disciplinas clássicas distanciou-se da intenção de “submeter também as realidades

sociais ao âmbito da Ciência” (ibid.:57). Por outro, a produção artística, inspirada pelos

ideais estéticos do Romantismo, escapava a uma metalinguagem desenvolvida em

função de uma produção eminentemente clássica.

Os novos pressupostos epistemológicos gerariam entendimentos diversos sobre

como abordar a Literatura: como expressão da personalidade do autor, como

representação social ou como documento histórico. Para cada uma delas, se

estabeleceria um modo investigativo próprio: o psicológico-biográfico, o sociológico e

o filológico, todos, porém, submetidos aos fundamentos filosóficos da História.

A crise do código clássico, somado à convicção romântica de ser o gosto pessoal

a instância última do juízo e à utilização dos jornais como instrumentos de divulgação

da Literatura para um público não especializado (cf. ibid.:61), gerariam antes, porém,

um período intermediário, marcado pelo impressionismo crítico, até que, sob a égide da

ciência moderna, a Literatura passará a ser tomada como um objeto a que se aplicarão

Page 35: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

33

os métodos científicos das então incipientes Ciências Humanas. Paradoxalmente,

relegando-se uma premissa da cientificidade, o primeiro momento do cientificismo nos

Estudos Literários é marcado por um movimento de desespecialização. Sem um método

de pesquisa que lhe fosse próprio, os estudos da Literatura se caracterizaram pelo

ecletismo e pela tendência culturalista decorrente da adoção de métodos e modelos de

outras disciplinas científicas. Sem estarem ainda consolidados em nenhuma disciplina

científica e sem possuírem nenhum conhecimento especializado, apenas absorveram

quase indiscriminadamente os esforços e modelos teóricos das novas disciplinas

científicas.

A Crítica e a História Literária surgiram como a mediação entre as

especializadas e não-científicas disciplinas clássicas e a não-especializada e não-

científica crítica impressionista. Ao postularem um ideal de cientificidade e, ao mesmo

tempo, de não-especialização, elas se tornaram uma espécie de “estágio (...)

protocientífico da investigação da Literatura” (ibid.:59).

Nas semelhanças entre Crítica e História Literárias, há uma diferença conceitual

fundamental, que diz respeito à preocupação com o valor das obras. Mas o que se

designa, de fato, por Crítica Literária? O primeiro problema que se enfrenta é o fato de

o termo ter usos muito distintos em cada uma das principais línguas européias. São tão

misteriosos os motivos que levaram à expansão do termo “crítica”, quanto os que

levaram a língua inglesa a utilizar a forma criticism — em francês, italiano, espanhol,

português e alemão, a forma “criticismo” e seus equivalentes referem-se ao método

epistemológico kantiano — ou à limitação do sentido de kritik, em alemão, às resenhas

diárias. Acízelo entende então ser mais razoável dizer que a Crítica Literária não se

constitui como uma disciplina, mas como uma prática comentadora de obras literárias,

cujas orientações têm se transformado bastante ao longo do tempo (ibid.:85-96).

O que pode ser percebido é o maior uso da palavra, junto com “história”, em

referência a obras que se ocupam da “Literatura” a partir de fins do XVIII, em

substituição aos termos Retórica, Poética, Estética, Eloqüência. Embora correspondesse

às intenções de se criar uma “alternativa científica para o conhecimento da Literatura,

em substituição ao complexo humanístico” (ibid.:90) das disciplinas clássicas, e tivesse

chegado a designar uma suposta disciplina dos Estudos Literários, havia muito pouco de

Page 36: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

34

“científico” na atividade crítica do século XIX, praticamente imune a qualquer tipo de

rigor metodológico e conceitual. Em geral, a Crítica Literária

(...) tendeu a identificar-se com pura emissão de impressões de leitura, comentário ligeiro de obras literárias, no máximo servindo-se de minguadas idéias gerais provenientes de versões ecléticas e banalizadas de certo(s) sistema(s) de conhecimento sobre a Literatura. Assim, a Crítica Literária acaba por tornar-se pura publicidade e/ou divulgação jornalística de obras literárias; é ela que praticamente se confunde com o que veio a chamar-se de impressionismo crítico (...) (ibid.:91).

Ao longo do século XIX, a crítica vai-se distanciando de se tornar uma atividade

de investigação sistematizada da Literatura e se firmando como uma prática de

publicidade de obras ou de popularização sumária de sistemas científicos, diretamente

relacionada com a sociedade industrial moderna e com o circuito de circulação de

produções culturais.

As tentativas de se conceder à Crítica Literária um espaço disciplinar próprio

nem sempre representam um empenho em repensar a possibilidade da prática em si, mas

apenas, como lembra Roberto Acízelo de Souza, implicam mais em “salvar a palavra do

que a prática crítica” (ibid.:93). Algumas tentativas de resgatá- la acabam sugerindo um

certo sentido etimológico profundo que o termo conteria, e que este sentido original se

teria corrompido, ao longo da história, por práticas críticas que não fariam jus a sua

essência. Não parece possível, contudo, se evidenciar tal sentido original pelos dados

históricos que se apresentam.

Para Roberto Acízelo de Souza, a presença de uma preocupação conceitual, que

se recusasse a se submeter a valores que lhe são estranhos, consciente da necessidade de

se ater a seu aparato instrumental e dos riscos de se contaminar ideologicamente, não

estaria no plano da crítica, mas no da Teoria da Literatura. Para o ensaísta, a palavra

crítica está inseparavelmente ligada, em nossos dias, a julgamento, valor e opinião, não

fazendo sentido pretender que ela seja “um corpo organizado de conhecimentos”

(ibid.:95), justa definição de Teoria da Literatura, ou “a consideração analítica de obras

particulares, em contínua referência a um quadro teórico inicial de base” (ibid.:95),

atividade para cuja designação há a palavra “análise”.

Contemporânea da crítica, a História de Literatura fundamenta-se no

pressuposto da cientificidade da História. A ascensão do historicismo como ponto de

vista epistemológico dominante no XIX tem algumas causas recuperáveis: (i) a

expansão do capitalismo burguês e a exigência de uma reflexão crítica sobre as

Page 37: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

35

contradições sociais advindas, (ii) a afirmação do modelo científico físico-matemático

como norteador das ciências humanas e (iii) a ideologia estética romântica e sua

valorização do passado como série de estágios evo lutivos da humanidade.

Três eram os principais modelos metodológicos adotados pela História Literária

no século XIX: o biográfico-psicológico, sociológico e o filológico.

A diretriz biográfico-psicológica, da qual Sainte-Beuve foi um dos principais

nomes, baseava-se na premissa romântica de que o gênio é a instância suprema para a

explicação da Literatura. “Neste sentido, a obra literária se definiria, antes de mais nada,

como uma linguagem que se distingue pela pregnância de uma subjetividade” (Roger,

2002:50). O historiador devia, pois, esforçar-se por reconstruir biográfica e

psicologicamente o autor, o processo criador e o conteúdo psíquico da obra. A exigência

da historicidade era respeitada através da concepção de que a “biografia é história do

indivíduo” (Souza, 1987:65).

Para se entender as diretrizes sociológicas da História de Literatura, deve-se

distinguir as Ciências Sociais — o conjunto de disciplinas que se formou, no século

XIX, a partir dos trabalhos de Comte e Spencer — da preocupação com grupos

humanos, presente desde o nascimento da Filosofia. (Cf. ibid.:70). O influxo da

Sociologia sobre os Estudos Literários pode ser dividido em pelo menos dois grupos:

por um lado, o grupo das posturas assumidas pela História de Literatura, cuja

modalidade de abordagem tendia a reduzir o objeto literário ao interesse sociológico,

centrando suas análises na função social do escritor, nos estudos da significação social

das obras e no entendimento da obra literária como reflexo da sociedade; por outro lado,

a posição que seria assumida, futuramente, por algumas correntes teóricas, modalidades

que partem do princípio de reconhecer a especificidade da Literatura como uma questão

de linguagem e que centrariam sua atenção nos estudos das relações entre formas

literárias e formas sociais, na análise da consubstancialidade entre estrutura de

linguagem e contexto social e na premissa de que a linguagem é uma instituição social e

a Literatura uma forma individual, estética e de inserção no plano do imaginário (Cf.

ibid.:70-77).

A História de Literatura de diretriz filológica teve em Lanson um de seus

expoentes. Mesmo antes do estabelecimento do termo “filologia” com o sentido em que

é empregado hoje, certas abordagens de textos que remontam ao século VI a.C. podem

Page 38: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

36

ser entendidas como as primeiras investigações filológicas conhecidas: o

estabelecimento de um texto da Ilíada e da Odisséia a partir de diversas versões e uma

primeira interpretação alegórica dos cantos homéricos (ibid.:78). Já no século III a.C.,

os esforços de constituição e manutenção da Biblioteca de Alexandria fixaram

procedimentos, métodos e técnicas filológicas cuja validade alcança nossos dias.

No período pós-alexandrino e durante a Idade Média, o trabalho filológico se

confunde com a elaboração de antologias de excertos e, em muitos casos, com a

simplificação de textos. No Renascimento, a retomada do interesse pelo período

clássico ativou a necessidade de práticas capazes de reconstituir a legibilidade, física ou

contextual, dos textos antigos. Augusto Wolf pôde, desse modo, em fins do século

XVIII, estabelecer um conceito de Filologia como “Ciência que, partindo do exame de

textos escritos, coadjuvada pela Paleontologia, Arqueologia e Gramática

Comparativista, se propõe fazer a historiografia da língua, da Literatura e/ou da

totalidade da cultura documentada” (ibid.:80). A união com a Gramática

Comparativista, no século XIX, permitiu que a Filologia — com seu apego à

objetividade e suas técnicas de pesquisa empírica — fosse absorvida pelos Estudos

Literários11.

Obviamente, a neutralidade absoluta da Filologia era falaciosa. Barthes

(1970:152), no final dos anos 60, num ataque incisivo àquilo que chamava de “crítica

universitária”, acusava a Filologia de produzir discursos apoiada no “postulado da

analogia”, isto é, de sempre “colocar a obra estudada em relação com alguma coisa

outra, um alhures da Literatura”, seja esta outra coisa uma outra obra, um dado

biográfico etc.

Antes de ter seus princípios questionados de modo intransigente pelas correntes

teóricas do século XX, que postulavam a especificidade e imanência do discurso

literário, a História de Literatura recebeu um alento, com a nova concepção de história

da Escola dos Annales, que propunha substituir a “história dos fatos por uma história

dos problemas e das mentalidades” (Roger, 2002:45). Em relação ao ensino da

Literatura, a perspectiva historicista ainda se faz fortemente presente em nossos dias,

11 Por estas mesmas razões, curiosamente, a Filologia também será acolhida no âmbito da Teoria da Literatura. A severidade no trato do documento e a metodologia rigorosa de pesquisa, apoiada na crença sobre sua neutralidade científica, fez a Filologia compatível com os ideais da nova disciplina, tornando-se uma espécie de preâmbulo operacional do trabalho teórico em si (cf. Souza, id.:82).

Page 39: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

37

como pode ser observado, no ensino médio, na importância dada à periodização e aos

estilos de época, e, no ensino superior, às Literaturas nacionais.

1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA

O século XX será marcado, no campo dos Estudos Literários, pela ascensão e

hegemonia de um modo de abordagem da obra literária que ficará conhecido por Teoria

da Literatura12, surgida com o propósito de ser

(...) a primeira realização verdadeiramente científica no campo dos Estudos Literários, na medida em que pretende dispor de um objeto claramente constituído, de um aparato específico de conceitos, de métodos e de técnicas analíticas, bem como de um sistema de proposições solidárias protocolares de suas experiências (Souza, 1987:135).

Diretamente ligada às transformações operadas nas Ciências Humanas, em

especial aos novos rumos tomados pela Lingüística estruturalista e pela emergente

Psicanálise, a Teoria foi receptora, e não criadora, de conceitos que seriam decisivos

para um novo modo de compreensão do fenômeno literário, tais como

descontinuidade , estrutura, inconsciente (cf. ibid.:100). Relembre-se ainda que não

apenas as novíssimas tendências tiveram acolhida no seio da Teoria: Retórica, Poética,

por suas perspectivas especializadas e imanentistas, e a Filologia, por seu rigor

metodológico, também harmonizavam-se com os novos modelos de estudo da

Literatura.

Mas seria correto se pensar em Teoria ou em Teorias da Literatura? A dúvida

é bastante pertinente, tendo-se em vista que o campo dito teórico dos Estudos Literários

apresenta-se dividido em perspectivas “fundadas em pressupostos metodológicos não

apenas diferentes, mas francamente antagônicos e muitas vezes inconciliáveis,

mutuamente exclusivos” (ibid.:9). Isso se explicaria, em parte, pela permanência e

contínua repercussão das antigas realizações históricas dos Estudos Literários —

Poética, História de Literatura, Crítica, Ciência da Literatura —, que jamais perderam

12 Antes que o termo “Teoria da Literatura” dominasse a cena dos Estudos Literários no século XX, houve tentativas de se conceber a Literatura, ainda sob a perspectiva historicista, como algo que escapa à compreensão da razão analítica. Por essa orientação, todo o esforço metodológico possível aos Estudos Literários residia no trabalho preliminar da Filologia. Vossler, Spitzer e Auerbach foram os principais nomes desta suposta fase intermediária entre a história e a teoria, chamada de Ciência da Literatura. Também por esse termo, entende-se uma denominação genérica dos estudos sistemáticos da Literatura, muito comum em língua alemã — Literaturwissenschaft (cf. ibid.:96-98).

Page 40: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

38

inteiramente sua vigência. Mesmo sob a estrita égide da Teoria da Literatura,

encontramos ainda rótulos que individualizam orientações bastante diversas entre si, o

que geraria uma diversificação e complexidade causadora, dentre outros problemas, de

uma nomenclatura pletórica, como “um labirinto cujo plano parece alheio aos assédios

da razão” (ibid.).

O termo “Teoria da Literatura” está diretamente relacionado à publicação do

livro homônimo de René Wellek e Austin Warren, em 1949, marco histórico de um

novo modo de se propor o estudo do fenômeno literário, desvinculado dos modelos

historicistas do século anterior. Essa nova tendência não se realizou de forma única,

espraiando-se em diretrizes diversas que, no entanto, a despeito de divergências

profundas, apresentam, no entender de Roberto Acízelo, uma afinidade de pressupostos,

tais como a recusa ao historicismo e ao positivismo, a busca de rigor metodológico, o

interesse por uma abordagem intrínseca da obra literária e a compreensão da Literatura

como sendo, essencialmente, linguagem.

Há, para Acízelo, quatro centros de interesse fundamentais da Teoria da

Literatura:

(i) o texto: este seria o foco de interesse mais característico da Teoria da

Literatura. De certo modo, porém, a Retórica e algumas orientações filológicas da

História de Literatura e da Crítica Literária também têm a matéria textual como seu foco

de atenção. A diferença é que, naquela disciplina clássica, o texto era um dado

substantivo a ser conhecido analiticamente e classificado através de uma pesquisa

empírica, o que a transformou tanto num sistema hipotético-dedutivo quanto em uma

tecnologia de produção de textos. Na Filologia, o texto é um documento, um dado real,

concreto e particular, nunca interrogado por seus princípios abstratos de composição. Já

na Teoria da Literatura o texto é “um tecido verbal dotado de propriedades artísticas ou

ficcionais” (ibid.:115). A partir desse pressuposto comum, as correntes textualistas da

Teoria da Literatura diferenciaram-se em dois enfoques: uma pesquisa indutiva

orientada em função das especificidades de cada obra literária em particular, num

“contínuo confronto das generalizações com os fatos observáveis nas obras submetidas

à descrição” (ibid.:116), caso da Estilística e do New Criticism; uma pesquisa que

buscava a definição formal das propriedades abstratas da obra literária, concebendo

cada texto apenas como uma atualização destas, caracterizada pelo método dedutivo e

Page 41: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

39

baseada na “coerência interna do sistema de suas proposições” (ibid.:116), caso do

Formalismo Russo e do Estruturalismo, por exemplo.

(ii) o psiquismo : Como as preocupações com questões relativas ao psiquismo

remontam aos mais longínquos períodos da humanidade, Acízelo propõe que se atente

para a necessidade de se distinguir entre uma região da realidade e determinado objeto

de pesquisa:

(...) ocupar-se com o psiquismo não significa encerrar-se no universo teórico da Psicologia, do mesmo modo que a investigação da socialidade não mobiliza automaticamente o aparato conceitual da sociologia. (ibid.: 117)

Do mesmo modo que a História de Literatura e a Crítica Literária haviam sido

receptivas à nascente Psicologia, e as disciplinas clássicas às questões genéricas do

psiquismo, a Teoria da Literatura foi receptiva à Psicanálise, seus conceitos de

inconsciente e seus sistemas simbólicos, que consideravam o elemento psíquico não

como um conteúdo com o qual a linguagem se relacione, mas “como o conjunto das

articulações inconscientes dos sistemas significantes”, que “constitui a própria instância

estrutural da linguagem” (ibid.:121).

(iii) a socialidade : Embora também seja um foco de interesse muito antigo no

campo dos Estudos Literários, será apenas no século XIX, com o influxo da Sociologia,

que se terá um estudo sistematizado dos elementos sociais relacionado à Literatura. O

modelo sociológico, contudo, não teve boa receptividade pela Teoria da Literatura, em

primeiro lugar porque a nova disciplina rejeitava a tendência de buscar em fatores

extrínsecos as considerações sobre a obra literária, e depois porque a Sociologia não se

dedicava a entender a linguagem literária considerada em si mesma. Porém, pelos

mesmos motivos que a Teoria da Literatura recusou a Psicologia mas acolheu a

Psicanálise, à recusa da Sociologia correspondeu a aceitação da Antropologia e de seus

sistemas simbólicos

(iv) os aspectos filosóficos: Roberto Acízelo entende a preocupação filosófica

na Teoria da Literatura, em especial representadas nas diretrizes fenomenológicas e

existencialistas, como os esforços de compreensão dos problemas ontológicos,

epistemológicos, éticos e lógicos da Literatura.

Cada foco de atenção — texto, psiquismo, socialidade e aspectos filosóficos

— foi convertido em um objeto distinto — o texto literário, o psiquismo na

Literatura, a socialidade da Literatura , os aspectos filosóficos da Literatura

Page 42: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

40

— conforme os métodos e os propósitos particulares das correntes teóricas que

deles se ocuparam (cf. Souza, id.:113). Roberto Acízelo de Souza aponta dessa

forma a profunda afinidade existente entre os modelos teóricos de análise e as

concepções históricas acerca do objeto. Entende que a tendência de fazer com que,

por Teoria da Literatura, se entenda o somatório de todas as realizações históricas

dos Estudos Literários apagaria essa distinção fundamental entre campo de

observação e objeto (ibid.:102). Do fato de Retórica, Poética, História de

Literatura, Crítica Literária e Teoria da Literatura trabalharem num mesmo campo

de observação não decorre que tenham o mesmo objeto, tendo em vista que tal

objeto não é um fato que se ofereça naturalmente à observação, mas resultado de

uma construção afinada com pressupostos e métodos específicos a cada uma dessas

disciplinas.

1.5 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA

Uma característica dos Estudos Literários é a de se constituir como um

campo de conhecimento em que são muitas as “pertinências observáveis”,

enquanto é limitada a nossa capacidade de generalização (Souza, 1999:1). Foi

absolutamente inevitável, portanto, delimitar a pesquisa a um objeto factível que

funcionasse como amostragem válida do problema maior com o qual se pretendia

lidar. A proposta deste trabalho foi restringir seu objeto teórico geral (os Estudos

Literários) a um objeto teórico específico (o papel da reflexão teórica dentro dos

Estudos Literários contemporâneos) e, por fim, a um conjunto de objetos teóricos

empíricos — os manuais de Teoria da Literatura publicados em língua portuguesa.

Por objeto teórico geral, os Estudos Literários, considero a totalidade dos

trabalhos investigativos sobre Literatura, que talvez possam ser categorizados

aproveitando-se o esquema de Antônio Soares Amora (2004:12) em seu livro

Introdução à Teoria da Literatura (1967). Procurando definir o papel da Teoria da

Literatura dentro do campo dos Estudos Literários, ele propunha uma distinção

profícua entre quatro disciplinas que se ocupam dos fatos literários: a Análise, a

Crítica, a Historiografia e a Teoria Literária. Cada uma dessas disciplinas possuiria

Page 43: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

41

métodos, objetos e objetivos específicos e representaria tipos de comportamentos

possíveis diante da Literatura:

(i) o analítico , interessado na decomposição da obra em seus elementos

menores;

(ii) o crítico, interessado em julgar a obra, a partir de critérios artísticos,

morais ou intelectuais;

(iii) o historicista, interessado em situar a obra espaço-temporalmente;

(iv) o teórico , interessado em extrair da obra aquilo que é essencial nos

fenômenos literários.

Haveria ainda, segundo o próprio Amora, um outro comportamento

possível, o do leitor, interessado em “compreender” a obra literária. Seria

temerário afirmar que intenções de compreender a obra estão restritas ao interesse

do leitor comum e não dizem respeito às demais abordagens referidas, mas se

poderia aceitar a idéia de um quinto procedimento, o interpretativo , interessado

no(s) sentido(s) e no(s) significado(s), mas que não estaria resumido às intenções

do leitor leigo. Por fim, se fosse levada em consideração a história dos Estudos

Literários, não se poderia desconsiderar ainda uma sexta perspectiva: o

comportamento prescritivo, que visava a orientar a criação artística (por exemplo,

a Arte Poética, de Horácio, a Art Poétique , de Boileau e, em certa medida, e

naturalmente com outros objetivos e critérios, grande parte da Crítica Literária

marxista mais ortodoxa).

Este esforço de classificação interessa a este projeto por chamar a atenção

para como, desde as primeiras tentativas conhecidas de se tomar a Literatura como

objeto de problematização, os Estudos Literários vêm demonstrando tendência a se

concentrar em determinados aspectos da obra literária e a relegar a um segundo

plano os demais. Esses comportamentos desdobram-se em múltiplas possibilidades

de discursos sobre a Literatura, conforme o aspecto que receberá atenção do

estudioso — os elementos que envolvem a criação, ou a recepção, ou os traços

miméticos/representacionais, ou a materialidade textual etc.

Tais focos vêm sendo trabalhados, ao longo da história, através de

procedimentos descritivos, elucidativos, valorativos, normativos, bem como têm

recebido o tratamento de metodologias provenientes de outros campos do saber,

Page 44: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

42

tais como Filosofia, História, Antropologia, Sociologia etc. A combinação entre os

comportamentos possíveis diante da obra e os aspectos a serem considerados,

somada à proliferação de procedimentos importados de outras áreas do saber, faz

com que o termo “Estudos Literários” seja pouco mais do que uma designação

genérica que abarca uma diversidade de práticas com objetivos e resultados

radicalmente diversos entre si. Nas condições em que este trabalho foi elaborado

— reconhecidamente sua limitação temporal —, a complexidade deste objeto geral

obriga a uma segunda delimitação e ao estabelecimento de um objeto teórico

específico.

Dentre os variados procedimentos abarcados pela noção de Estudos

Literários, a reflexão teórica será o objeto teórico específico desta pesquisa. Tomo

como uma petição de princípio a hipótese de que o enfraquecimento das condições

de existência desta instância de pensamento e de investigação — os problemas de

indefinição de seus objetivos, funções, métodos e fundamentos, comentados

anteriormente — está diretamente ligado à crise dos estudos de Literatura.

Entretanto, a diversidade de abordagens que têm partilhado historicamente a

problemática “disciplina” Teoria da Literatura, faz com que o enfrentamento de tal

objeto esteja ainda além das condições de realização desta pesquisa, o que implica

a necessidade de uma terceira delimitação, a dos objetos empíricos.

Esta última delimitação se faz através de dois critérios: em primeiro lugar,

decidi limitar o âmbito de minha pesquisa aos problemas da reflexão teórica no

Brasil. Novamente, as condições de produção deste trabalho, notadamente as

limitações temporais a que os doutorandos estão submetidos no Brasil — a saber, a

obrigação de concluir a pesquisa em exatos quatro anos —, é a principal

responsável pela opção de restringir a investigação às obras lançadas em nosso

país. Pode-se, contudo, justificar metodologicamente tal opção, a partir de dois

argumentos:

(i) A facilidade de acesso propiciada pelos atuais meios de comunicação faz

com que não haja, no que toca à pesquisa de ponta, grande defasagem entre a

produção nacional e a estrangeira. Ater-se às obras publicadas em língua

portuguesa não implicará, portanto, uma perda significativa na qualidade dos

temas, a ponto de invalidar o mérito da pesquisa.

Page 45: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

43

(ii) Uma meta efetiva desta pesquisa é também avaliar o caráter

institucional da Teoria da Literatura no Brasil. Como nos cursos de graduação em

Letras, os alunos efetivamente só lêem em português — fato anotado por Costa

Lima (1983:2) há cerca de vinte anos atrás —, o conjunto de obras em língua

portuguesa será um indicativo válido do tipo de ensino que circula em nossos

cursos superiores.

Em segundo lugar, uma outra circunscrição precisou ser empreendida: como

já foi comentado anteriormente, o campo da “teoria” é amplo, pouco especializado

e virtualmente aberto, a ponto de se tornar temerário julgar até que ponto uma obra

se propõe ou não em ser uma obra de Teoria da Literatura. Sendo assim, elegi uma

espécie de obra — os manuais de teoria.

Seja pela acuidade de vários de seus postulados, seja por suas incoerências,

os manuais são elementos formidáveis para a análise dos acertos e desacertos de

um projeto histórico de reflexão teórica que “fracassará” ao longo do século XX,

tendo sido desacreditado como uma tentativa infrutífera de prender a Literatura nas

malhas do absoluto e do universal. Além disso, os manuais são índices dos

aspectos pedagógicos da disciplina: como a Teoria da Literatura é traduzida na

sala-de-aula, como ela pode se tornar acessível, sendo simples sem ser simplista. É

preciso entender, sobretudo, como, talvez à sua revelia, esses livros se

transformaram em manuais de regras para o estudo da Literatura, destino ingrato

para muitas propostas reflexivas e teóricas que acabam aprisionadas como uma

série de normas ou, nas palavras de Compagnon (2002:13), em “pequena técnica

pedagógica”.

Os capítulos 2, 3, 4 e 5 — além do sexto, voltado exclusivamente aos

autores brasileiros — consistirão no inventário e na descrição crítica destes

manuais em função de três perguntas: (i) qual a compreensão que cada um tem de

Literatura? (ii) Para que e como se deve estudar Literatura? (iii) Qual o papel da

teoria dentro dos Estudos Literários?

Da descrição e da crítica destes manuais chegaremos, no capítulo

conclusivo, a uma súmula da Teoria da Literatura no século XX, de suas imensas

qualidades e de seus não menores problemas, a fim de recuperar seus pontos fortes

— como a resistência ao relativismo crítico historicista, por seus aspectos

Page 46: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

44

similares com o atual relativismo crítico culturalista, e o enfrentamento de

universalismos de cunho elitista — e rever seus desacertos, de modo a inventariar

as condições mínimas para a abordagem teórica do fenômeno literário na

atualidade.

Page 47: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

45

2 – OS PRECURSORES

2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM

O livro Teoria da Literatura, de René Wellek e Austin Warren, é uma obra

primordial. Escrito no final da década de 4013 do século XX, o manual é o marco de

uma nova orientação nos Estudos Literários, ao reunir esforços de superação de um

estudo historicista da Literatura em direção a uma prática rigorosamente metódica e

voltada aos aspectos textuais da obra literária. Já nos anos 60, estava em sua terceira

edição nos Estados Unidos e na Inglaterra, e já havia sido traduzido para o espanhol,

italiano, japonês, coreano, alemão, português, hebraico e gujaráti. Recentemente, no ano

de 2003, teve sua primeira edição brasileira, mas a edição portuguesa circulou

amplamente no Brasil em décadas anteriores.

René Wellek era austríaco e havia participado como membro júnior do Círculo

Lingüístico de Praga. Tornou-se uma espécie de porta-voz de uma nova geração de

estudiosos da Literatura, que concordavam quanto à necessidade de uma posição

contrária ao factualismo positivista que se estendia pelos Estudos Literários, então ainda

dominados por orientações historicistas. Austin Warren era um dos expoentes do New

Criticism norte-americano, uma tendência de estudos de Literatura que enfatizava os

aspectos formais da obra literária, considerada como um objeto autotélico e completo

em si. Em comum, segundo os próprios escreveram no prefácio à 1a edição americana

13 Embora o ano de publicação da obra não seja de fácil identificação, em virtude dos problemas já notados por Roberto Acízelo de Souza (1999:107) — a tríplice datação que aparece na imprenta (1942, 1947 e 1949) —, adotarei neste trabalho o ano de 1949, em razão do prefácio da edição original estar assinada como maio de 1948, ano posterior às outras datas. Além disso, na bibliografia que aparece no fim da 1a edição norte-americana, pode-se ver referência a obras publicadas em 1947 e 1948, o que inviabilizaria a possibilidade de sua edição ser anterior a estes anos. Contra minha escolha, entretanto, poderia pesar o prefácio à segunda edição, onde os autores se referem à publicação do capítulo extirpado da 1a edição como tendo sido publicada em 1946. Acredito, porém, que Wellek se referia à publicação do mesmo sob a forma de artigo e sob o titulo “The graduate study of literature” no periódico Sewanne Review, o que faz com que o ano de 1949 seja o mais provável.

Page 48: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

46

(1948), apesar da formação distinta, o compartilhamento da “posição de que os Estudos

Literários devem ser especificamente literários” (Wellek & Warren, 2003:VIII).

Note-se que nem Wellek nem Warren são “criadores” de uma nova abordagem

da obra literária, mas sua obra conjunta representou a primeira tentativa de se

sistematizar os Estudos Literários nos termos em que ficaria conhecida a Teoria da

Literatura. Mais ainda, o livro não possui a radicalidade que os trabalhos teóricos

posteriores imprimiram à disciplina, pois era orientado de modo a fazer com que se

considerasse a especificidade do texto literário sem se ignorar os aspectos contextuais

que o envolvem. História, Teoria e Critica literária, na proposta dos autores, não eram

concorrentes, mas disciplinas que se auxiliavam mutuamente no trabalho de

compreensão e sistematização da Literatura.

A leitura aqui proposta pretende ser fiel aos objetivos traçados na introdução

deste trabalho, lançando em relação ao livro as três questões metódicas propostas.

2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren

No segundo capítulo, “A natureza da Literatura”, assinado por Wellek, lança-se

a questão basilar dos Estudos Literários, muitas vezes discutida, freqüentemente

evitada, nunca solucionada: qual é o objeto da investigação literária, isto é, quais obras

são Literatura, quais obras não são e qual a natureza da obra literária. Wellek

inicialmente repassa as respostas costumeiras à questão: a mais genérica delas é se

considerar Literatura tudo que já foi impresso. Com esta concepção lato sensu, os

estudos da Literatura se tornariam intimamente relacionados com a história da

civilização e seriam “literários apenas no sentido em que se ocupam de matéria

impressa ou escrita, necessariamente a fonte primordial da maior parte da história”

(Wellek & Warren, 2003: 11). Transformado numa espécie de história da cultura, tal

estudo não mereceria o cunho de literário porque se apresentariam misturados na análise

da obra critérios e juízos condizentes apenas com os interesses que outras disciplinas

possuem na obra literária. Além disso, tal concepção teria o inconveniente de reforçar o

problema etimológico14 do termo “Literatura”, diretamente relacionado à palavra escrita

14 A etimologia da palavra leva-nos à língua latina e a Quintiliano, litteratura , provavelmente de littera, letra do alfabeto, passando pelo século XIV quando literato indicava tanto o alfabeto quanto o homem de saber laico, como também qualquer coisa escrita com letras. O sentido de pessoa culta é conservado durante o Renascimento e será somente entre os séculos XVII e XIX, com o advento da cultura

Page 49: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

47

ou impressa, o que sugeriria, de modo errôneo, que as literaturas orais não fariam parte

desse conjunto.

Uma segunda definição recorrente relacionada por Wellek costuma identificar a

Literatura às grandes obras, aos livros cuja forma ou cujo tema são notadamente de

excelente qualidade. O inconveniente de tal critério é que ele seria dependente de um

juízo de valor, cuja fundamentação escaparia das fronteiras da Literatura. Além do mais,

um cânone baseado em “grande obras” não consideraria diferenças entre obras

filosóficas, científicas, históricas ou literárias, o que novamente inviabilizaria a

especificidade do termo.

Qual seria, pois, para os autores, o estatuto ontológico de uma obra de arte

literária, qual seu modo particular de existência? Wellek dedicou um capítulo à questão.

Em seu método característico de exposição, ele apresenta as respostas tradicionais à

pergunta e avalia a pertinência de cada uma delas: a primeira considera a arte literária

como um artefato, assim como a pintura ou a escultura. A essa possibilidade o autor

contrapõe o problema da Literatura oral: que espécie de materialidade ela possuiria?

Como alternativa a essa objeção, haveria a possibilidade de se considerar então toda

obra literária como uma seqüência de sons. Wellek então observa que uma seqüência de

sons é apenas a execução da obra, e não a obra em si. Ele compara a atualização oral de

uma obra com a execução de uma sinfonia, para dizer que tal concepção importaria para

os Estudos Literários um problema enfrentado pelo campo dos estudos da música: onde

estaria a existência efetiva da obra de arte — na execução ou na partitura, na leitura ou

no texto impresso? Wellek ainda faz notar que supor que a existência de um poema é

restrita a sua atualização oral levaria à estranha conclusão de que ele inexistiria quando

não recitado, e que seria recriado de novo a cada leitura (ibid.: 184-5).

Uma terceira linha de reposta consiste em identificar a obra de arte literária com

a experiência do leitor. Wellek acredita que o caráter individual e idiossincrático da

experiência invalidaria a possibilidade de que ela venha a ser identificada como o modo

de existência da obra literária. Ter-se-ia de admitir, novamente, que o modo de ser do

poema é recriado a cada experiência de leitura. Seu comentário é certeiro e permanece

válido para o atual estatuto dos Estudos Literários:

romântico-burguesa, que os sentidos relacionados à imaginação e invenção, à arte e à estética passarão a determinar as principais acepções da palavra.

Page 50: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

48

Terminamos no ceticismo completo e chegamos à velha máxima viciosa do de gustibus non est disputandum. Se levássemos a sério essa visão, seria impossível explicar porque a experiência que um leitor tem de um poema seria melhor do que a experiência de qualquer outro leitor e porque é possível corrigir a interpretação de outro leitor. Significaria o fim definitivo de todo o ensino de leitura que almeje elevar a compreensão e a apreciação de um texto (ibid.:187).

Esse não será o único alerta que ele faz, ao longo do livro, sobre os perigos que o

relativismo extremo representa para os Estudos Literários. Ele defende que, por mais

interessantes que possam ser os estudos sobre a recepção de uma obra, eles não

deveriam integrar os objetivos do estudo da Literatura, pois seriam incapazes de lidar

com aspectos fundamentais da obra literária, como, por exemplo, sua estrutura e seu

valor.

Um quarto encaminhamento de resposta é propugnar que a obra literária consiste

na experiência do autor. Tal proposição envolveria pensar tanto no caráter consciente da

criação quanto no inconsciente. O primeiro caso levaria ao risco da “falácia da

intenção”, uma vez que o autor pode ser um mau “leitor” de sua obra e, além do mais,

na grande maioria dos casos, só temos acesso ao legado da obra em si:

Mesmo se possuímos testemunhos contemporâneos, na forma de uma declaração de intenção explícita, tal declaração não tem necessariamente de ser irrecusável para um observador moderno. As “intenções” do autor são sempre “racionalizações”, comentários que, certamente, devem ser levados em consideração, mas que devem ser criticados à luz de obra de arte acabada (ibid.:189).

O segundo caso nos conduziria a um objetivo inatingível, uma vez que seria

impossível ter acesso os componentes inconscientes da criação — ao menos naquela

época, quando ainda não se atribuía à psicanálise a potência que lhe seria conferida nas

décadas seguintes. Além do mais, um estudo de tal tipo atravessaria a temporalidade de

uma obra, ao remeter a experiências do passado do autor, anteriores à obra concreta.

A quinta resposta relacionaria o modo de existência da obra à sua recepção

coletiva, o que, para Wellek, seria o mesmo que dizer que “o poema reside no estado de

espírito do leitor, multiplicado ao infinito” (ibid.:192): haveria tantos poemas quanto

leitores, quantos estados de espírito. No caso de se procurar na recepção coletiva os

elementos de uma experiência comum, isto é, os pontos de interseção entre as

experiências individuais, estar-se- ia, para Wellek, empobrecendo a obra de arte15.

15 Ao desqualificar, nos estudos de recepção, os pontos de interseção entre as experiências de leitura por empobrecer a possibilidade de múltiplas experiências proporcionadas pela obra literária, Wellek contradiz

Page 51: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

49

Numa clave francamente fenomenológica16, Wellek postula que a condição de

experiência da obra de arte literária é similar às nossas condições de experiências

cognitivas. Embora jamais possamos conhecer um objeto em sua totalidade, não temos

como negar sua identidade de objeto. E por mais que nosso conhecimento seja precário,

sempre se pode apreender algo da “estrutura de determinação” do objeto, “que torna o

ato de cognição não um ato de invenção arbitrária ou distinção subjetiva, mas o

reconhecimento de algumas normas impostas a nós pela realidade” (ibid.:195). Como

qualquer objeto do conhecimento, a estrutura de uma obra de arte constrange a leitura

que dela é fe ita, ou seja, resiste, até certa medida, às imperfeições de nossas leituras:

“Um poema (...) não é uma experiência individual ou uma soma de experiências, mas

apenas uma causa potencial de experiências” (ibid.:192). Note-se que, a partir desta

concepção, é admitida a possibilidade de experiências de leituras que podem não dar

conta da estrutura de determinação da obra literária, e assim se realizarem

incorretamente.

Concebe, pois, Wellek a obra literária como uma estrutura de normas que é

apenas parcialmente realizada no ato de leitura: assim, qualquer experiência individual é

uma tentativa de apreensão desse conjunto de normas e padrões (ibid.:192). Tais

normas, contudo, não se confundem com o sentido de “norma” presente em estilos de

época ou na ética. São estruturas implícitas em cada obra de arte e se relacionam em

maior ou menor grau com os elementos da tradição literária17.

Dizer que a obra de arte literária é um objeto apenas acessível através da

experiência individual da leitura, mas que não se ident ifica por completo com nenhuma

dessas experiências, significa admitir que muitas variáveis afetam a experiência da obra

de arte. Entre elas, especialmente importante é o conhecimento de concretizações

anteriores, como críticas, interpretações, leituras particulares prévias, etc. Esses fatores

que interferem na leitura dizem respeito a uma outra característica fundamental da obra:

ela possui uma vida, no sentido de que tem uma origem no tempo, transforma-se por

seu postulado da necessidade de haver teorias generalistas para o estudo da Literatura (conforme será discutido mais adiante). Além disso, ele vai de encontro à sua constante preocupação de conter o subjetivismo exacerbado nas leituras das obras. 16 A formação filosófica de Wellek é de orientação fenomenológica. No campo dos estudos literários, por exemplo, ele conhecia e endossava a teoria dos estratos de Roman Ingarden. (cf. Wellek, 2003:193). 17 Poéticas que pretendam defender a originalidade intransigente e a individualidade irredutível da obra de arte, a ponto de pretender lhe negar qualquer vínculo com a tradição, acabam por isolá-la em algo incomunicável ou incompreensível (ibid.:193).

Page 52: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

50

conta das leituras que dela são feitas e pode vir a perecer, pois depende de algum

veículo ou mecanismo que possibilite sua preservação:

Como uma obra de arte passa através de um processo de evolução e ainda preserva sua estrutura básica intacta? Podemos falar da “vida” de uma obra de arte na história exatamente no mesmo sentido em que podemos falar de um animal ou ser humano que continua a ser o mesmo indivíduo embora mudando constantemente no curso de uma vida (ibid.: 199).

Wellek rejeita, porém, que o fato de a Literatura e a obra literária se

transformarem ao longo do tempo possa servir de fundamente ao argumento de que elas

não podem ser estudadas em si mesmas e que os Estudos Literários devam sucumbir ao

relativismo e ao subjetivismo:

(...) não se poderia negar que há [na Ilíada] uma substancial identidade de “estrutura”, que permaneceu a mesma ao longo de todo o processo de história, passando, ao mesmo tempo pelas mentes de seus leitores, críticos e colegas artistas. Assim, o sistema de normas está se desenvolvendo e mudando e permanecerá, em algum sentido, sempre incompleto e imperfeitamente realizado (ibid.: 200).

A percepção da estrutura da obra, contudo, é dependente de valores. Wellek

reconhece que não é possível se compreender ou analisar uma obra sem recorrer a

algum tipo de valor que lhe é anterior: afinal, só o ato de se tornar um objeto como obra

de arte já é, em si, um ato de avaliação. Seria um erro também supor que os valores são

inerentes à estrutura da obra, o que levaria à enganosa suposição de que há uma ordem

eterna e atemporal “de ‘essências’ às quais apenas posteriormente são acrescentadas as

individualizações empíricas” (ibid.:200).

Se, por um lado, a suposição de uma escala de valores absoluta desconsidera a

interferência de julgamentos individuais no processo de leitura e avaliação de uma obra,

por outro, há a temerária posição de que todos os pontos de vista são igualmente

válidos. Wellek nega que as interpretações sejam todas equivalentes e postula que uma

“hierarquia de pontos de vista, uma crítica da compreensão das normas, está implícita

no conceito da adequação da interpretação” (ibid.:200). Ele introduz então a noção de

perspectivismo, uma proposta de síntese que “dinamize a própria escala de valores mas

não renuncie a ela como tal” (ibid.:200).

O “perspectivismo”, como denominamos tal concepção, não significa anarquia de valores, uma glorificação do capricho individual, mas um processo de vir a conhecer o objeto a partir de pontos de vista diferentes, que, por sua vez, podem ser definidos e criticados. A estrutura, o signo e o valor formam três aspectos do mesmo problema e não podem ser isolados artificialmente (ibid.: 201).

Page 53: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

51

Warren18, mais adiante, num capítulo dedicado ao tema do “valor”, ressaltará a

importância de se distinguir os termos “valorizar” e “avaliar”, este relacionado a atos de

julgamento, aquele indicativo de interesse por algo. Avaliar é, “por referência a uma

norma, pela aplicação dos critérios, pela comparação dele com outros objetos e

interesses”, estabelecer a posição hierárquica de algo (ibid.:324). Já valorizar refere-se à

quantificação do interesse que se tem por algo. No caso da Literatura, são diversas as

razões que levam os homens a valorizá- la, sendo difícil normatizar esse interesse.

Warren (idem:324-5), contudo, defende que a “natureza, a função e a avaliação da

Literatura devem necessariamente existir em correlação íntima”, isto é, deve-se

valorizar a Literatura de acordo com sua natureza 19. Mas no que consistiria esse ser da

Literatura?

Wellek acredita que a melhor definição do termo “Literatura” se dá quando ela é

identificada “à arte da Literatura” (ibid.:14). O conjunto de normas e estruturas da obra

de arte literária se constitui como um determinado uso da língua que seria característico

da Literatura:

A língua é o material da Literatura, como a pedra ou o bronze são o da escultura, as tintas o de pintura, os sons o da música. Devemos perceber, porém, que a língua não é matéria inerte, como a pedra, mas é, ela própria, uma criação do homem e, assim, carregada com a herança cultural de um grupo lingüístico (ibid.:14).

Não sendo o material da Literatura uma matéria bruta20, mas um dado cultural e

complexo, Wellek precisa especificar em que consiste o uso literário da língua. As

distinções fundamentais propostas por ele são entre os usos literário, científico e

18 O manual fo i composto a quatro mãos, mas os capítulos, com exceção do último da primeira edição americana, são assinados pelos autores isoladamente. Por esta razão eu me refiro ora a um, ora a outro, conforme a autoria da passagem em questão. 19 A atenção especial dada à necessidade de se valorizar a Literatura de acordo com sua natureza é uma observação diretamente direcionada aos estudos que instrumentalizam a Literatura, tornando-a exemplo de alguma outra coisa que se queira afirmar. A grande preocupação de Warren se justifica porque não há como evitar que isso ocorra, pois “(...) as coisas podem ser mal usadas ou usadas inadequadamente, isto é, em funções que não têm relevância central para as suas naturezas” (ibid.:326). 20 O comentário sobre a língua como material que reage ao escritor e constrange suas possibilidades de criação reaparece no capítulo sobre as relações entre a Literatura e as demais artes: “(...) o ‘veículo’ de uma obra de arte (...) não é meramente um obstáculo técnico a ser superado pelo artista para expressar a sua personalidade, mas um fator pré-formado pela tradição e que tem um poderoso caráter determinante, que molda e modifica a abordagem e a expressão do artista individual. O artista não concebe em termos mentais gerais, mas em termos de material concreto, e o veículo concreto tem sua própria história, muitas vezes bem diferente da de qualquer outro veículo” (ibid.:165). Ou ainda, mais adiante: “Toda obra literária, poderíamos dizer, é meramente uma seleção extraída de uma determinada língua, do mesmo

Page 54: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

52

cotidiano da língua. Ele descarta que a emoção ou o sentimento sejam responsáveis por

diferenciar linguagem literária e linguagem científica, mas afirma que a segunda

aspiraria a um ideal de pura denotação que a aproximasse de alguma linguagem

universal, como a matemática ou a lógica. Já a linguagem literária seria altamente

conotativa, porque se basearia, em diferentes graus, em uma língua histórica, cheia de

ambigüidades, homônimos, irracionalidades, além de também produzir significados

através da própria materialidade do signo.

Já a distinção entre as linguagens cotidiana e literária seria mais difícil. A

começar porque “linguagem cotidiana” não é um conceito simples. Não haveria como

se distinguir, em termos qualitativos, os usos cotidiano e literário da língua, mas apenas

quantitativamente, pois, no seu uso literário, os “recursos da linguagem são explorados

de modo muito mais deliberado e sistemático” (ibid.:16). Ele se vale de uma distinção

que, nos termos de Pareyson (1997), seria entre arte e artisticidade — ou seja, em

qualquer objeto pode haver elementos estéticos, mas o fato de serem produzidos de

“modo artístico”, isto é, com “artisticidade”, não o tornam, necessariamente, obras de

arte. Wellek remete a Jakobson21 — embora a citação, curiosamente, não esteja

explícita em seu texto — ao entender que se deva considerar como literária apenas as

obras em que a função estética é dominante. A Literatura refere-se, portanto, a obras de

arte literárias, a obras que se pretendem, pela força de sua constituição, artísticas.

A linguagem poética organiza, comprime os recursos da linguagem cotidiana e, às vezes, até comete violência contra ela, em uma tentativa de forçar a nossa consciência e atenção. Muitos desses recursos um escritor encontrará formados, ou pré-formados, pelas atividades silenciosas e anônimas de muitas gerações. Em certas literaturas altamente desenvolvidas e especialmente em certas épocas, o poeta limita-se a usar uma convenção estabelecida: a linguagem, por assim dizer, poetiza por ele (ibid.:17).

Intimamente ligada a uma tradição, a obra de arte literária caracterizar-se-ia

ainda, para Warren, por sempre impor uma unidade e uma ordem a seu material. A

Literatura não consiste nas partes que compõem uma obra, mas na organização desses

elementos: “O que determina se uma determinada obra é ou não literária não são os

elementos, mas a maneira como são combinados, e com que função” (ibid.:325). Esse

modo que uma obra de escultura é descrita como um bloco de mármore do qual se retiraram alguns pedaços” (ibid.:226). 21 Embora a primeira versão em inglês do artigo “A dominante” seja de 1970, o original checo é de 1935 (cf. Jakobson, Roman. Language in literature. Cambridge: Harvard University Press, 1987. p.507). É

Page 55: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

53

processo de criação de uma estrutura de sentidos e valores própria retiraria a obra do

mundo da realidade. O particular estatuto de referencialidade do mundo da Literatura é

um ponto fundamental para Warren:

Em uma obra de arte bem-sucedida, os materiais são completamente assimilados na forma: o que era “mundo” transformou-se em “linguagem”. Os “materiais” de uma obra de arte literária são, em um nível, palavras, em outro nível, experiências do comportamento humano e, em outro, as idéias e posturas humanas. Todos eles, inclusive a linguagem, existem fora da obra de arte, em outros mo dos, mas, em um poema ou romance bem-sucedido, são colocados em relações polifônicas pela dinâmica de próprio estético (ibid.:329).

Uma de suas hipóteses é de que haveria dois tipos básicos de conhecimento, que

utilizariam sistemas lingüísticos diferentes: as ciências, que empregariam um modo

discursivo, e a arte, que se valeria de um representativo. A obra literária teria, contudo,

como referência um mundo ficcional, inventivo, imaginativo 22. E com esse passo ele faz

a distinção chave entre uma classificação descritiva e uma classificação judicativa da

Literatura, elevando a ficcionalidade a um critério de distinção entre o que é e o que não

é Literatura:

Não faz nenhum mal renegar uma obra importante e influente à retórica, à filosofia, ao panfletarismo político, todos os quais podem colocar problemas de análise estética, de estilística e composição, similares ou idênticos aos apresentados pela Literatura, mas onde a qualidade central da ficcionalidade estará ausente. Essa concepção, portanto, incluirá nela todos os tipos de ficção, mesmo o pior romance, a pior peça teatral. A classificação da arte deve ser distinguida da avaliação (ibid.:20).

Ao diferenciar os dois juízos sobre a obra literária — ser ou não ser Literatura,

ser boa ou má Literatura —, Wellek tem consciência de que toda e qualquer distinção

entre Literatura e não-Literatura revela aspectos da obra literária, mas é precária por

nunca ser completamente satisfatória em si: uma obra “não é um objeto simples mas,

antes, uma organização altamente complexa, de caráter estratificado, com múltiplos

significados e relações” (ibid.:22). Muitas são — acrescentará Warren no quarto

capítulo, “A função da Literatura” — as possibilidades de uso e entendimento dos textos

literários. A natureza da Literatura transforma-se ao longo do tempo, o que pode ser

muito pouco provável que Wellek tendo se formado na antiga Tchecoslováquia e participado do Círculo Lingüístico de Praga, não conhecesse o referido trabalho de Jakobson. 22 Wellek faz notar que a Literatura imaginativa não deve ser entendida estritamente como produtora de imagens. As imagens não são essenciais para o enunciado ficcional. Mesmo a metáfora, muitas vezes associada à essência da poesia, se faz presente ostensivamente em nossa linguagem cotidiana, na gíria e nos provérbios (Wellek & Warren, 2003:21).

Page 56: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

54

confirmado quando se observam momentos históricos em que não há distinção

discursiva entre Filosofia, Literatura, religião, etc. Além disso, dada a sua propriedade

de ultrapassar seu tempo e espaço históricos, novas “utilidades” e sentidos aparecem e

se somam à obra literária ao longo do tempo, e, nas palavras de Warren (ibid.:23),

quando é passado o tempo de sua atividade primordial, muitas vezes a ferramenta se

transforma em ornamento.

Wellek entra assim no terreno das discussões sobre os significados e sentidos de

uma obra de arte. Para ele, o significado total de uma obra não se restringe ao

significado que ela tem para o autor ou para seus contemporâneos, tratando-se de “um

processo de adição, isto é, a história da critica pelos seus muitos leitores em muitas

épocas” (ibid.:42). E adotando uma postura característica da Hermenêutica moderna,

conclui:

Simplesmente não é possível deixarmos de ser homens do século XX enquanto nos ocupamos de um julgamento do passado: não podemos esquecer as associações de nossa linguagem, das nossas posturas adquiridas, do impacto e da importância dos últimos séculos. (...) Se conseguíssemos realmente reconstruir o significado que Hamlet tinha para o seu público contemporâneo, só o faríamos empobrecer. Suprimiríamos os significados legítimos que as últimas gerações encontraram em Haml (ibid.:42).

Antecipando os problemas que ressurgiriam com força no final do século XX

sobre os limites da interpretação e da superinterpretação, Wellek faz notar que o fato de

mais e novos significados serem acrescentados à obra ao longo da história não significa

que não há “leituras errôneas, subjetivas e arbitrárias”, e portanto permanecem

necessários os critérios de distinção entre estas leituras (ibid.:42).

Warren acredita que a história da função da Literatura estaria ligada à história da

Estética, que, por sua vez, poderia ser resumida na alternância dialética horaciana entre

dulce et utile — prazer e conhecimento. Menos que buscar uma solução em um dos

lados da dicotomia, o desafio seria exatamente “descrever a função da arte de uma

maneira que [se] faça justiça simultaneamente ao dulce e ao utile” (ibid.:24). Warren

entende que toda arte “seja ‘doce’ e ‘útil’ aos seus usuários adequados” (ibid.:25), isto

é, não se trata de um valor absoluto universal, mas algo relativo ao grupo social que

responde àquela expressão artística23. Haveria, pois, modos específicos de deleite e uso.

23 Warren cita uma conhecida passagem de T. S. Eliot, quando o poeta diz que em uma obra de Shakespeare, “para os ouvintes mais simples há o enredo; para os mais pensativos, o personagem e o conflito do personagem; para os mais literários, as palavras e a fraseologia; para os que têm mais

Page 57: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

55

A questão conseqüente passa a ser então se a Literatura tem apenas uma função

(ou várias), e se essa(s) função — ou funções — diz(em) respeito a algo que somente a

Literatura faz ou a algo que outras atividades, além da Literatura, também fazem. Seria

a Literatura uma atividade realmente única e específica, ou “um amálgama de filosofia,

história, música e imagens que, em uma economia realmente moderna, seria

distribuído?” (ibid.:27).

A defesa da Literatura passaria por propor “que ela não é um sobrevivente

arcaico, mas uma permanência” (ibid.:30), o que implica garantir- lhe a condição de

oferecer uma experiência absolutamente singular. Essa experiência singular é entendida

de modo diverso por diferentes correntes de pensamento, como fonte de um

conhecimento ora além, ora aquém do racional. Na tradição do famoso dito aris totélico

— a poesia seria mais “verdadeira” do que a História, por tratar do universal, e não do

particular —, a Literatura seria algo maior do que outras formas de conhecimento.

Todas as vezes em que a Literatura — e a disciplina que estruturou seu estudo no século

XIX, a História — parece fragilizada diante de outros modos de saber, diz-se que ela dá

conta exatamente daquilo que escapa à Ciência e à Filosofia, como forma de resguardar

a sua importância:

(...) sentimos um temor ilógico de que, se a arte não é “verdadeira”, é uma “mentira”, como Platão violentamente a chamou. A Literatura imaginativa é uma “ficção”, uma “imitação da vida” artística, verbal. O oposto de “ficção” não é “verdade” mas “fato” ou “existência no tempo e no espaço” (ibid.:30).

A verdade da Literatura, reforça Warren, não se confundiria com a verdade que

pode ser metodicamente verificada. Nos termos de uma definição redutora positivista, a

arte, obviamente, não poderia ser uma forma sequer experimental de verdade.

Wellek também considera as implicações relacionadas a se considerar a

Literatura como obra de pensamento. Novamente, ele não descarta o uso da obra

literária por outras disciplinas — no caso, a Filosofia — mas rejeita modelos

determinísticos de se encarar a relação entre pensamento e Literatura, como quando se

usa a obra literária como documento ou exemplo para chegar a conclusões de que as

idéias, em Literatura, são “idéias filosóficas diluídas” (ibid.:137). Sob uma perspectiva

sensibilidade musical, o ritmo; e, para os ouvintes de compreensão e sensibilidades maiores, um significado que se revela gradualmente” (T.S. Eliot. Use of poetry. Cambridge: Harvard University Press, 1933. p. 153, apud Wellek & Warren, 2003:331).

Page 58: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

56

literária, não faria sentido se atribuir valor a uma obra pela excelência de seu conteúdo

filosófico.

Wellek conclui afirmando que a verdade filosófica não tem valor artístico para a

obra literária. Uma poesia que supostamente conseguisse fundir imagens e conceitos em

um nível de excelência filosófica não seria, necessariamente, melhor poesia, mas apenas

um tipo de poesia. O que interessa, para um estudioso de Literatura, na relação entre

pensamento e Literatura, é estudar as idéias quando se tornam constitutivas da textura

da obra de arte, isto é, “quando deixam de ser idéias no sentido comum de conceitos e

tornam-se símbolos ou mesmo mitos” (ibid.:156).

Por fim, Warren observará, de modo arguto, que a pergunta pela função da

Literatura não é, em geral, uma questão que seja formulada pelo poeta ou pelo

apreciador da Literatura, mas quase sempre “por utilitaristas e moralistas, ou por

estadistas e filósofos, isto é, pelos representantes de outros valores especiais ou pelos

árbitros especulativos de todos os valores” (ibid.:34). Mas a resposta a essa questão

sempre acabaria sendo de responsabilidade dos poetas e dos amantes da Literatura, que

precisariam pensá-la nos termos da dimensão social e humana em que ela é colocada,

chamados, “como cidadãos moral e intelectualmente responsáveis, a dar alguma

resposta racional à comunidade” (ibid.:35). Sob tais circunstâncias, é natural que as

respostas tendam a enfatizar a utilidade em detrimento do deleite. E os Estudos

Literários refletem tal circunstância, tendo dificuldades em lidar com o específico prazer

da Literatura:

um prazer superior porque é prazer em um tipo superior de atividade, isto é, a contemplação não aquisitiva. E a utilidade (...) da Literatura é uma seriedade prazerosa, isto é, não é a seriedade de um dever que deve ser feito ou de uma lição a ser aprendida mas uma seriedade estética, uma seriedade da percepção (ibid.:26).

A complexidade da obra literária, conforme descrita por Wellek & Warren,

exige que os Estudos Literários estejam à altura da multiplicidade de aspectos que a

compõe. Os autores imaginam uma divisão em três partes: “Operações preliminares”,

“Abordagem extrínseca ao estudo da Literatura” e “Abordagem intrínseca ao estudo da

Literatura”.

Page 59: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

57

2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários

No primeiro capítulo da primeira parte, “A Literatura e os Estudos Literários”,

assinado por Wellek, é proposta a distinção entre o que o autor entende tratar-se de duas

atividades distintas: a Literatura, uma arte, e os Estudos Literários, “se não exatamente

uma ciência, (...) uma espécie de conhecimento ou saber” (Wellek &Warren, 2003:3). O

saber produzido pelos Estudos Literários seria cognitivamente diferenciado daquele

obtido da leitura direta da própria obra literária. Mesmo o escritor que se propusesse a

falar da Literatura, estaria submetido a um outro regime discursivo.

Ele deve traduzir a sua experiência de Literatura em termos intelectuais, assimilá-la a um esquema coerente que tem de ser racional para ser conhecimento. Pode ser verdade que a matéria desse estudo seja irracional ou que, pelo menos, contenha elementos fortemente irracionais, mas nem por isso ele estará numa posição diferente que a do historiador da pintura, do musicólogo ou mesmo do sociólogo ou do anatomista (ibid.:3).

Uma pretensa “irracionalidade” do objeto não seria argumento suficiente para

justificar a “irracionalidade” de seu estudo. Wellek está ciente de que tal posição é

controversa e argumenta antecipadamente contra dois tipos de pensamento que

negariam o caráter cognitivo dos Estudos Literários. A primeira delas defenderia o

trabalho do estudioso da Literatura em termos de uma “segunda criação” (ibid.:3), em

que uma descrição mais ou menos analítica da obra literária substitui o ato de leitura da

obra em si. Trata-se, muito possivelmente, de uma herança da “transposição literária”,

uma espécie de subgênero literário muito comum na crítica de artes plásticas em

períodos nos quais não havia recursos tecnológicos para a reprodução visual da obra. A

atividade teve origem no século XVIII e atravessou o século XIX, tendo em Diderot,

Gautier, Deschamps, Hugo e Vigny alguns de seus cultores mais famosos (cf. Richard,

1988). Baseada na pressuposição de que o crítico é dotado de uma capacidade que o

leitor não possui — este dependeria daquele para experimentar a obra em sua totalidade

—, tal prática era alvo de ressalvas desde o século XIX, como transparece no

comentário mordaz de Delacroix sobre as críticas de Théophile Gautier:

Ele toma um quadro, descreve-o a seu modo, faz ele próprio um quadro encantador, mas não fez um ato de verdadeira crítica, contanto que consiga fazer reluzir, cintilar as expressões macarrônicas que ele acha com um prazer às vezes convincente. (...) ele fica contente, atinge seu objetivo de escritor curioso (...). (Delacroix, Journal, 17/06/1855, 11, 341, Ed. Joubin, apud Richard, 1988:17).

Page 60: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

58

No campo da Literatura, a “transposição” ainda possuía força em meados do

século XX — e, a bem dizer, ainda permanece viva nos trabalhos críticos que

pretendem substituir ou superar, através de processos hermenêut icos diversos, a

experiência direta da leitura da obra. Wellek denomina “crítica criativa” esse processo

de duplicação, que ele julga desnecessário e que redunda, na melhor das hipóteses, na

“tradução de uma obra de arte em outra, geralmente inferior” (ibid.:4).

A segunda contestação enumerada por Wellek é a daqueles que argumentam que

a Literatura “não pode ser estudada. Só podemos lê- la, usufruí- la, apreciá- la” (ibid.:4).

Wellek entende que tal “ceticismo”, ao operar com dicotomia entre “estudo” e

“apreciação”, não considera corretamente o que deva ser “o estudo da Literatura,

simultaneamente ‘literário’ e ‘sistemático’” (ibid.:4). A questão consiste, portanto, em

saber como se pode tratar intelectualmente de uma arte, no caso específico, da arte

literária, sem que entrem em conflito os fatores ligados à apreciação subjetiva da obra e

aqueles relacionados aos interesses metódicos do estudo.

Uma das respostas dadas a essa pergunta foi a tentativa de se empregar os

métodos das ciências naturais ao estudo da Literatura. Wellek relaciona quatro dessas

experiências de se transferir os métodos científicos para os Estudos Literários:

(i) a emulação dos “ideais científicos de objetividade, impessoalidade e certeza”

(ibid.:4), baseada na possibilidade de se coletar fatos neutros;

(ii) um método “genético” que, por meio do estudo de antecedentes e origens, e

fundamentado no princípio científico da causalidade, estabeleceria relações

cronológicas entre os fatos;

(iii) uma variante do método genético, que explicaria os fenômenos literários em

relação a causas econômicas, sociais e políticas;

(iv) o uso de conceitos da Biologia para explicar a evolução da Literatura.

Para Wellek, tais iniciativas ou se revelaram fracassadas e conduziram seus

defensores a um profundo ceticismo, ou os deixaram confortavelmente iludidos de que

os progressos da ciência viriam, fatalmente, resolver a totalidade dos problemas dos

Estudos Literários. Mas o insucesso das tentativas de se importar os métodos das

ciências naturais não significa que eles devam ser radicalmente descartados, pois vários

elementos da metodologia científica são comuns a qualquer tipo de conhecimento

sistemático — indução, dedução, análise, síntese, comparação. Os Estudos Literários

Page 61: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

59

poderiam ser, portanto, rigorosos e metódicos, ainda que seus métodos nem sempre

coincidam com os das ciências naturais:

Apenas uma concepção muito restrita de verdade pode excluir as conquistas das humanidades do domínio do conhecimento. Muito antes do desenvolvimento científico moderno, a filosofia, a história, a teoria do direito, a teologia e mesmo a filologia haviam elaborado métodos de saber. Suas conquistas podem ter sido obscurecidas pelos triunfos teóricos e práticos das modernas ciências físicas, mas são, não obstante, reais e permanentes e podem, às vezes com algumas modificações, ser ressuscitadas ou renovadas. Devemos simplesmente reconhecer que existe essa diferença entre os métodos e objetivos das ciências naturais e das humanidades. (ibid.:5).

A complexidade e a dificuldade da distinção entre os dois modos de

conhecimento — o das ciências naturais e o das humanidades — é reconhecida por

Wellek. Citando Dilthey, ele endossa a diferenciação entre explicar causalmente um

fenômeno — o caso das ciências — e compreendê- lo em sua significação — caso das

humanidades —, cujos procedimentos envolvem grande parte de subjetividade.

Referindo-se a Windelband, Wellek acrescenta que a distinção se concentraria também

na diferença entre o estabelecimento de leis gerais, por parte dos cientis tas, e o trabalho

com fatos únicos e não recorrentes, no caso das humanidades:

Por que estudamos Shakespeare? Está claro que não estamos primordialmente interessados no que ele tem em comum com todos os homens, pois, então, poderíamos estudar qualquer outro homem; tampouco estamos interessados no que ele tem em comum com todos os ingleses, todos os homens do renascimento, todos os isabelinos, todos os poetas, todos os dramaturgos, ou mesmo todos os dramaturgos isabelinos (...). Queremos, antes, descobrir o que é peculiarmente de Shakespeare, o que torna Shakespeare Shakespeare, e isso obviamente é um problema de individualidade e valor (ibid.:7).

Admitir, entretanto, que os fatos humanos são realmente únicos e imprevisíveis é

admitir a impossibilidade de se falar sobre eles de algum modo que não seja meramente

descritivo. A especificidade do trabalho empírico com a Literatura residiria, pois, em

grande monta, em compreender o caráter de individualidade que atribuímos ao objeto de

estudo. Muitas e fracassadas foram as tentativas de se encontrar leis gerais para a

Literatura, mas, no maior número das vezes, “quanto mais geral, mais abstrata e,

portanto, mais vazia ela parecerá, e mais o objeto concreto da obra se esquivará a nossa

compreensão” (ibid.:8). Decorre daí uma generalizada aversão aos métodos científicos

no ambiente dos Estudos Literários.

Page 62: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

60

As duas posições extremadas, no entender de Wellek, conduzem a enganos: por

um lado, a identificação entre o método científico das ciências naturais e o método

histórico conduz à fragilidade de leis gerais. Por outro lado, a negação da cientificidade

em favor do caráter pessoal da experiência com a Literatura e da individualidade

extrema da obra de arte sucumbe geralmente à subjetividade completa, que esquece

Que nenhuma obra de arte pode ser inteiramente “singular”, já que, se fosse, seria completamente incompreensível. (...) Mesmo um monte de lixo (...) é singular no sentido de que suas exatas proporções, posição e combinações químicas não podem ser reproduzidas exatamente (ibid.:8).

Diante do desafio que o tema da relação entre o universal e o particular

representam para os estudos da Literatura, Wellek procura acomodar generalidade e

particularidade na obra literária, postulando que não se deve confundir individualidade

com particularidade e singularidade completas: “cada obra de Literatura tem as suas

características individuais mas também compartilha propriedades com outras obras de

arte” (ibid.:9). É exatamente neste ponto que a função da Teoria da Literatura se

justificaria:

A Crítica Literária e a História de Literatura tentam caracterizar a individualidade de uma obra, de uma autor, de um período ou de uma Literatura nacional. Mas essa caracterização só pode ser obtida em termos universais, com base em uma Teoria Literária (ibid.:9).

Ao apontar para a necessidade de um estudo generalista e universalizante da

Literatura, Wellek procura desvincular os Estudos Literários de uma prática

estritamente voltada para a leitura, isto é, eles não se limitariam a ter como objetivo

propiciar atos individuais de leitura. Os Estudos Literários deveriam, pois, se constituir

como uma tradição suprapessoal, como um corpo crescente de conhecimento,

discernimentos e julgamentos (ibid.:9-10).

No tópico seguinte será apresentada em maiores detalhes a divisão entre Crítica,

História e Teoria Literárias proposta por Wellek. Por ora, pretendo mostrar como os

autores tentam também desarticular uma classificação dos Estudos Literários baseada

em critérios historiográficos: a divisão dos estudos da Literatura em geral, comparada

e nacional.

Começando por “Literatura Comparada”, Wellek ressalta o caráter ambíguo do

termo, uma vez que a “comparação é um método usado por toda crítica e ciência e não

descreve adequadamente, de nenhuma maneira, os procedimentos específicos do estudo

Page 63: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

61

literário” (ibid.:46). O termo, na época, abrangia campos e problemas bastante distintos:

(i) o estudo da Literatura popular e sua entrada na chamada alta Literatura, (ii) o estudo

da Literatura oral, (iii) o estudo das relações entre duas ou mais literaturas e (iv) o

estudo da Literatura considerada em sua totalidade (mundial, geral, universal).

Sobre (i), Wellek dirá que os problemas relacionados à Literatura popular

deveriam ser assunto do Folclore, “um importante ramo do conhecimento que só em

parte se ocupa dos fatos estéticos24, já que estuda a civilização total de um ‘povo’ (folk),

os seus costumes e hábitos, superstições e ferramentas, assim como as suas artes”

(ibid.:47). Já em relação a (ii), Wellek defende sua inclusão no âmbito dos Estudos

Literários, postulando “uma continuidade entre Literatura oral e escrita que nunca se

interrompeu” (ibid.:48). Sobre (iii), dirá Wellek que tais estudos não consistem num

modo peculiar de estudar Literatura. A ênfase de tais estudos é em aspectos externos,

pois “dedicam-se principalmente aos ecos de uma obra-prima, como traduções e

imitações, (...) ou à pré-história de uma obra-prima, às migrações e à difusão de seus

temas e formas” (ibid.:49). Sobre (iv), Wellek entende que a dificuldade estaria em

estabelecer o que se deve entender, primeiro, por “Literatura mundial”. Ele descarta a

possibilidade de um estudo das Literaturas nacionais dos cinco continentes, por julgá- lo

“desnecessariamente grandioso” (ibid.:50), desconsidera a noção de Weltliteratur25 de

Goethe por se tratar de um ideal ainda longe de ser alcançado e acaba optando por uma

noção eurocêntrica26 de Literatura universal. Wellek demonstra simpatia pela idéia de

uma Literatura ocidental, o que, segundo ele, seria um ideal presente no trabalho dos

primeiros historiadores da Literatura do século XIX (os Schlegels, Sismondi, Bouterwek

e Hallam). O surto dos nacionalismos, da especialização dos estudos e o fortalecimento

de uma consciência provinciana seriam responsáveis pelo estreitamento do estudo da

Literatura em casos nacionais isolados, juntamente com o exagero da aplicação das

idéias de evolucionismo biológico na história e desenvolvimento da Literatura.

24 Atribuir ao “Folklore” a responsabilidade de estudar a Literatura popular revela como a idéia de Literatura de Wellek não se baseia tanto em diferenciações lingüísticas, mas é extremamente dependente de uma noção de “estética” que nunca chega a ser francamente discutida no livro. Essa é, por sinal, a grande crítica que Costa Lima (1975) fará ao manual. 25 Nos termos de Goethe, a “Literatura mundial” (Weltliteratur) refere-se a um momento em que todas as Literaturas estariam unificadas e a Literatura de cada nação desempenharia seu papel como em uma sinfonia (cf. Goethe, 1994:224-228). 26 O eurocentrismo de Wellek é explícito, por exemplo, quando ele coloca a dúvida retórica de se saber se o ossianismo seria um caso de Literatura nacional ou universal (Wellek & Warren, id:51). Ora, o

Page 64: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

62

A posição de Wellek caracteriza-se pela defesa de um estudo da Literatura como

um todo, mesmo reconhecendo as dificuldades que tal empreitada implica. Seu

argumento de maior força é entender que seria falsa a idéia de uma Literatura nacional

contida em si mesma. Sua idéia de História de Literatura baseia-se no entendimento de

que a importância das diferenças entre as línguas no estudo da Literatura foi

superestimada, em prejuízo de uma história internacional dos temas, das formas, das

técnicas e dos gêneros. Reforçando o argumento de que os nacionalismos políticos do

século XIX exageraram a importância da diferença lingüística no estudo da Literatura,

Wellek observa a permanência da associação entre língua e Literatura nos cursos

superiores de Letras, em que há identificação entre o estudo da língua e o da Literatura

— observação válida ainda hoje para o caso brasileiro. A conseqüência de tais

procedimentos no ensino norte-americano era, para Wellek (ibid.:54), a “extraordinária

falta de contato entre os estudantes de Literatura inglesa, alemã e francesa”, que

possuiriam formação muito diferenciada e que utilizariam métodos de pesquisa também

muito peculiares. A título de exemplo de como pode ser nocivo o estudo da Literatura

baseado no vernaculismo, ele cita o caso da Literatura latina, que seria fundamental para

a compreensão da Literatura inglesa medieval, além de mencionar a situação muito

freqüente de Literaturas nacionais diversas partilharem um mesmo idioma (ibid.;56).

Wellek não defende o fim dos estudos nacionais de Literatura, mas sim que o estudo das

contribuições nacionais seja o ponto de partida para a consideração de uma Literatura

universal.

Além de repensar o espaço que o estudo das Literaturas nacionais deve ter na

totalidade dos Estudos Literários, Wellek também propõe reavaliações de diversos

procedimentos característicos da área. Na segunda parte do manual, denominada

“Operações preliminares”, Wellek integra a seu modelo de Estudos Literários aquilo

que chama de tarefas preliminares da investigação literária:

(i) a compilação dos materiais (manuscritos, impressos, registros orais);

(ii) a elaboração de edições críticas (com variados níveis de complexidade, que

pode ir de processos interpretativos a trabalhos de pesquisa histórica) que ajudem a

eliminar os efeitos do tempo sobre a obra, através de anotações com explicações

lingüísticas e históricas etc.;

ossianismo sob nenhuma circunstância é um caso de Literatura universal, sendo, quando muito, de

Page 65: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

63

(iii) o exame da autoria, autenticidade e datação dos materiais, através de

métodos paleográficos, de recensão, de crítica textual, de estilometria etc.

Reconhecendo a importância que os empreendimentos de cunho filológico-

hermenêutico — a reconstrução do contexto histórico e a interpretação à luz dessa

reconstituição — têm para o entendimento de obras do passado, Wellek nega, porém,

que tais estudos possam utilizar pressupostos de casualidade para orientar problemas de

descrição, análise e valoração da obra de arte literária, negando assim o que chamará de

“falácia das origens” (ibid.:83).

Wellek quer esclarecer a real importância de tais procedimentos, conferindo- lhes

a medida de sua utilidade: não são nem podem ser o objetivo final ou único dos Estudos

Literários, mas também não correspondem a atividades inúteis, isto é, tanto a

ridicularização desses procedimentos quanto sua glorificação por seu suposto grau

superior de objetividade são inadequados:

Esses estudos só merecem críticas adversas quando usurpam o lugar de outros estudos e tornam-se uma especialidade imposta sem piedade a todo estudante de Literatura. Foram editadas meticulosamente, com passagens emendadas e debatidas com o maior detalhe, obras literárias que, do ponto de vista literário ou mesmo histórico, não valem a pena ser discutidas. (...) Como outras atividades humanas, esses exercícios muitas vezes se tornam fins em si mesmos (ibid.:61).

Para Wellek, os procedimentos preliminares são de fundamental importância no

estudo de tradições literárias remotas, contudo, de valia relativa para o estudo de

Literaturas modernas. Sobretudo, ele entende que tais procedimentos, que poderíamos

chamar de filológicos, devem ser submetidos a critérios de disciplinas que são

colocadas em posição hierarquicamente superior: a Teoria e a História. O alvo das

críticas de Wellek era, sobretudo, o ensino superior norte-americano da época:

(...) são quase que os únicos métodos sobre os quais a maioria das faculdades americanas fornece algum tipo de instrução sistemática. Ainda assim, qualquer que seja a sua importância, deve-se reconhecer que esse tipo de estudo apenas lança as fundações para uma análise e interpretação efetivas, assim como para a explicação casual da Literatura. Eles se justificam pelo uso que se dá aos seus resultados (ibid.:79).

A Filologia, porém, não era a maior ameaça que Wellek vislumbrava. Os

métodos mais difundidos do estudo da Literatura se baseavam em aspectos externos27 da

Literatura européia. 27 Para Wellek, esse tipo de estudo extrínseco da Literatura, que se ocupa das relações periféricas da obra literária e que busca uma ordem causal, não deveria ser confundido com o estudo histórico, orientado para

Page 66: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

64

obra literária e, para os autores, não respeitavam a especificidade da Literatura. Embora

os elementos ambientais, contextuais e históricos sejam a matéria da obra de arte, o

interesse do pesquisador em Literatura deve recair sempre sobre aquilo que é específico,

individual, e que determina a condição artística da obra em questão.

Os defensores do estudo dos elementos extrínsecos da Literatura centravam o

foco de sua atenção ora na figura do autor — buscando as causas da obra na biografia

ou na psicologia —, ora na consideração de elementos econômicos, sociais e políticos

como condicionantes da criação literária, ou ainda no papel desempenhado por outros

campos do conhecimento como explicação causal da Literatura.

Estes estudos, que Wellek filia ao positivismo e ao pensamento científico do

século XIX, são marcados por um grau variável de aceitação do determinismo, que vai

do modesto estabelecimento de relações entre fatores externos e a obra de arte literária

até concepções fatalistas da criação artística.

(...) a explicação causal é um método muito superestimado no estudo da Literatura e, com igual certeza, nunca pode solucionar os problemas críticos da análise e da avaliação. Entre os diferentes métodos governados pela causa, uma explicação da obra de arte em termos do contexto total parece preferível, já que a redução da Literatura ao efeito de uma única causa é manifestamente impossível (ibid.:84-85).

A afluência de métodos e disciplinas das demais ciências humanas nos Estudos

Literários, que se intensificaria ainda mais nos anos subseqüentes, era um grande

problema para Wellek & Warren. A estas disciplinas eles dedicaram toda a terceira

parte do livro, denominando-as de estudos extrínsecos de Literatura. De modo geral,

eles são classificados em três grandes grupos: (i) os estudos biográficos do autor, (ii) os

estudos de psicologia (do autor, da obra, do processo de criação28, da recepção) e (iii) os

estudos de caráter sociológico.

Wellek e Warren atentam para que as relações (i) e (ii) devam ser observadas

com parcimônia e reservas. Elas em geral interessam a um ponto de vista estranho ao

estudioso da Literatura, cujo interesse é da competência do historiador, do psicólogo, do

a observação das alterações temporais da arte literária, e que possui um lugar importante no modelo de estudos literários proposto pelo autor, conforme será melhor demonstrado no tópico seguinte. 28 De modo geral, Warren admite que a Psicologia tenha alguma capacidade de esclarecer aspectos da criação literária, mas parece duvidar de sua eficiência no plano hermenêutico e no de juízo sobre um texto. Mesmo os esforços de crítica textual (crítica genética) que se empenham em reconstruir o processo de criação da obra, teriam importância periférica para o exame da obra finalizada. (cf. ibid.:109). Warren acha que não há nada suficientemente generalizado, apenas quase depoimentos individuais de criadores

Page 67: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

65

sociólogo, do antropólogo. A obra de arte não deve ser encarada, pois, como pura auto-

expressão ou apêndice de uma individualidade, nem o autor pode ser confundido como

possuidor de certos graus de excepcionalidade (o gênio, o louco, o possuído, o dotado

de uma deficiência e de um dom compensatório etc.), o que sempre deu margens a

interpretações que viam na Literatura de um certo papel terapêutico. É fundamental,

sobretudo, entender que em todas as situações tais conclusões não têm valor crítico e

não podem ser fonte para atribuição de valor à obra.

Merece maior atenção o capítulo em que Wellek aborda as questões relativas às

relações entre Literatura e sociedade. Trata-se de uma argumentação direcionada contra

a crítica marxista e a crítica de orientação sociológica. A propalada aversão da Teoria da

Literatura às questões de representação social da obra literária parece ter origem nas

muitas reservas que os teóricos têm em relação às abordagens sociologizantes da obra

literária. Há, entretanto, uma enorme distância entre perceber que a teoria é

intensamente crítica da presença dos estudos “sociais” na Literatura e afirmar que a

teoria ignora tais aspectos. Muitos são os problemas da disciplina teoria, mas entre eles

certamente não está a aversão às questões de representação social. A teoria, ao menos

no que se refere aos momentos iniciais da formação da disciplina, é bastante atenta a

estes problemas, e acusá- la em relação a tal aspecto revela no mínimo ignorância de

seus postulados teóricos.

Por entender que essa má compreensão da Teoria da Literatura é uma das causas

de seu desprestígio, relacionei, a título de exemplificação, uma série de afirmações de

Wellek sobre o caráter social da Literatura:

(i) “A Literatura é uma instituição social que usa como veículo a linguagem,

uma criação social” (ibid.:113);

(ii) Processos literários tradicionais (os símbolos, as imagens, a métrica) têm

natureza social, isto é, são normas e convenções sociais, assim como grande número das

questões suscitadas pelos Estudos Literários é de natureza social: tradição, convenção,

normas, gêneros, mitos;

(iii) “(...) a Literatura ‘representa’ a ‘vida’, em grande medida, é uma realidade

social” (ibid.:113);

sobre o processo criativo, para ser objeto de uma teoria. Ele percebe que a Psicanálise e os conceitos de consciente e inconsciente teriam papel importante nesse tipo de estudo.

Page 68: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

66

(iv) O escritor é um ser social — possui um determinado reconhecimento social

e obtém certas vantagens advindas deste reconhecimento;

(v) A obra literária dirige-se sempre a um público, mesmo que hipotético;

(vi) A Literatura tem uma função social e, ao longo da história, esteve ligada a

diversas instituições sociais;

(vii) O campo da Estética não se baseia em instituições sociais, mas forma, ele

próprio, uma instituição social que se relaciona com as demais.

O projeto teórico de Wellek & Warren, assim, jamais pretendeu negar o caráter

representativo e social da Literatura. O repúdio de Wellek a algumas abordagens

sociologizantes da Literatura tem como principal alvo o caráter prescritivo da crítica

marxista de então:

Os críticos marxistas não apenas estudam as relações entre Literatura e sociedade, mas têm também a sua concepção claramente definida de como essas relações deviam ser, tanto na presente sociedade como em uma futura sociedade “sem classes”. Eles praticam a crítica valorativa, “judicial”, baseada em critérios políticos e éticos, não literários. Eles nos dizem não apenas o que eram e o que são as relações e implicações sociais da obra de um autor deviam ter sido ou devem ser. Eles não são apenas estudiosos da Literatura e da sociedade mas profetas do futuro, monitores, propagandistas e têm dificuldade para manter separadas essas duas funções (ibid.:106).

Wellek (2003:131) adverte que mesmo Marx estaria ciente de quão oblíquas são

as relações entre Literatura e sociedade. Assim, defender que o autor deve expressar a

vida de seu tempo, ou exigir dele a consciência de determinadas situações sociais, ou

ainda, em diversas ocasiões, o compartilhamento de posturas ideológicas do crítico é um

critério de avaliação específico e, embora Wellek não use o termo, ideológico. A

exigência de representatividade social atende aos desígnios de uma poética29, mas não

pode ser considerado um componente essencialmente estético da obra literária:

29 Faço valer aqui uma útil distinção proposta por Luigi Pareyson (1997), para quem uma Poética é a proposição, programática ou implícita, de um programa de arte, em que um dado ideal de arte é expresso. Uma poética, portanto, expressa um dado gosto. A Estética, por outro lado, teria uma preocupação filosófica e especulativa. Quando se toma uma proposição de uma poética, particular e histórica, como uma assertiva estética, que precisa pretender ser geral e universal, deturpa-se “aquilo que é legítimo quando entendido como programa de arte”, mas absurdo quando “se pretende valer como conceito de arte” (Pareyson, 1997:15). Quando uma poética aspira a ser uma teoria estética, o que era apenas um programa passa a sustentar uma concepção excludente de arte. Aquilo que vinha sendo proposto como elemento inspirador de um fazer artístico é transformado no próprio princípio de seu valor. A reflexão estética não pode se envolver numa polêmica relacionada a gostos. É claro que o filósofo é também portador de um gosto, mas é inerente a sua prática o empenho em não permitir que seu gosto particular fundamente os princípios de sua teoria. Para a Estética, todas as poéticas são igualmente legítimas. Não importa ao pensamento estético de que tipo de arte se trata, importa que seja arte. A multiplicidade das

Page 69: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

67

Há grande Literatura que possui pouquíssima ou nenhuma relevância social; a Literatura social é apenas um tipo de Literatura e não é central na Teoria da Literatura, a menos que sustentemos a visão de que a Literatura é, basicamente, uma “imitação” da vida como ela é e da vida social em particular. Mas a Literatura não é substituta para a sociologia ou para a política. Ela tem a sua própria justificação e seu próprio objetivo (ibid.:137).

São inúmeras as possibilidades de se estudar as relações entre Literatura e

sociedade, sejam centradas na obra, no escritor, no público, nas instituições literárias em

geral. Mas mesmo uma boa sistematização dos dados levaria, na melhor das hipóteses, a

uma sociologia do escritor, da obra, da recepção ou da Literatura, mas não seria jamais

um estudo da Literatura em si mesma 30. Para Wellek, “nenhum estudo causal pode fazer

justiça à análise, à descrição e à avaliação de uma obra literária” (ibid.:135). No estudo

das relações da Literatura com os aspectos contextuais, Wellek nega que sejam

pensadas relações de dependência ou causalidade, uma vez que o escritor e a obra tanto

são influenciados quanto influenciam seu tempo. No máximo, as condições sociais

determinam a possibilidade de certos valores, mas não concretizam os próprios valores.

Isso se comprova por não ser possível, por exemplo, se prever que formas artísticas

virão num futuro.

Ainda que não seja possível negar que certas obras literárias se ofereçam a serem

usadas como documentos31 — afinal, “a Literatura ocorre apenas em um contexto

social, como parte de uma cultura, em um meio” (ibid.:129) —, Wellek critica os

estudos que se centram exclusivamente no conteúdo da obra literária e que vêem na

Literatura apenas um espelho da realidade. Tais usos da obra como documento são mais

adequados aos estudiosos de temas sociais do que aos de Literatura propriamente dita,

embora também os primeiros precisem utilizar e interpretar o material literário

adequadamente.

poéticas existentes pode fomentar a existência de uma multiplicidade de teorias estéticas, mas essa possível pluralidade não pode implicar a perda do caráter especulativo e universalista da Estética. 30 É notável, porém, a grande quantidade de exemplos e de descrições sociológicas feitas por Wellek ao longo do manual, um indicativo de como era — e é — forte a presença das abordagens extrínsecas nos estudos literários. 31 Alguns exemplos de possíveis estudos derivados desse tipo de abordagens — “A relação entre senhorio e arrendatário na ficção americana do século XIX”, “O marinheiro na ficção e no teatro inglês” ou “Os hiberno-americanos na ficção do século XX” (cf. Wellek, 2003:127) — revelaram-se uma previsão impressionantemente acertada sobre o rumos desta vertente dos estudos literários.

Page 70: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

68

2.1.3 - Teoria, Crítica, História

No quinto capítulo do manual, “A teoria, a crítica e a História Literária”, Wellek

começa a dar corpo a seu projeto de se estudar racionalmente a Literatura sem

submissão às ciências naturais ou à História. Para tanto, ele propõe que seja admitida a

possibilidade de que se organize um estudo sistemático e integrado da Literatura. O

capítulo, infelizmente, é o que apresenta o maior número de imprecisões e

ambigüidades, que prejudicam consideravelmente a compreensão do projeto de Wellek

e de quais seriam as funções que cada disciplina desempenharia dentro dos Estudos

Literários.

O primeiro problema é encontrado já no início do capítulo, quando Wellek se

interroga sobre qual deveria ser o termo adequado para designar o estudo da Literatura.

Ele levanta algumas possibilidades.

Literary scholarship32, seria inadequado porque não conteria o sentido de Crítica

Literária, uma vez que a ênfase do termo recairia nos estudos acadêmicos. Philology

seria problemático porque a noção de filologia abrange uma área de estudos cujo

interesse por textos é mais amplo do que os limites que ele pretende para a compreensão

do termo Literatura, ou ainda porque se confunde com o interesse por questões

lingüísticas ou gramático-históricas. Research é considerado inadequado, pois o autor

entende que o termo se refere a procedimentos preliminares do estudo da obra literária

(como a própria busca do corpus material), mas não denotaria claramente “as sutis

preocupações com interpretação, caracterização e avaliação que são peculiarmente

características dos Estudos Literários” (ibid.:37).

Prosseguindo, antes de eleger um melhor termo, Wellek, estranhamente,

abandona a preocupação com a definição terminológica e parte então para as distinções

internas da disciplina geral33 (que, na falta de outra denominação, continuarei a chamar

32 Na tradução portuguesa, “erudição literária” (Wellek, s.d.:43), na brasileira, “estudos literários” (Wellek, 2003:36). Penso que as duas traduções são inadequadas: a primeira em virtude do sentido quase pejorativo que a palavra erudição possui hoje em dia no ambiente dos estudos literários, onde é usada muitas vezes para indicar um conhecimento extenso mas estéril; a segunda porque no termo “estudos literários”, atualmente, está contemplado o conjunto das práticas de estudo do objeto literário, o que não aconteceria com o termo literacy scholarship, uma vez que Wellek reclama que o termo excluiria a crítica literária em favor da ênfase no estudo acadêmico. 33 Wellek parece não ter muita simpatia pelo nome que deu a seu livro e que acabaria sendo adotado para designar uma disciplina acadêmica. No prefácio à primeira edição, ele reconhece a dificuldade de se escolher um título, e chega a sugerir que talvez fosse mais adequado Teoria da Literatura e metodologia

Page 71: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

69

Estudos Literários): História, Crítica e Teoria. Cada uma dessas disciplinas se

distinguiria por possuir concepções distintas de Literatura, que poderiam ser divididas

em duas classificações integradas: (i) a Literatura como ordem sincrônica / a Literatura

como série diacrônica histórica e (ii) o estudo dos princípios gerais / o estudo das obras

concretas.

Wellek distingue os objetivos gerais dos Estudos Literários de tal forma que

poderíamos esquematizá- los como segue:

(i) Uma disciplina que estudasse os princípios gerais da Literatura tomada como

ordem sincrônica;

(ii) uma disciplina que estudasse os princípios gerais da Literatura tomada como

série diacrônica e histórica;

(iii) uma disciplina que estudasse as obras concretas, tomando a Literatura como

ordem sincrônica;

(iv) uma disciplina que estudasse as obras concretas, tomando a Literatura como

série diacrônica e histórica.

Encontra-se aqui um novo problema do capítulo: fica claro, por exemplo, que a

Crítica Literária seria responsável pelo objetivo (iii), mas não é muito preciso se a

História de Literatura se encarregaria de (ii) e (iv), ou se apenas de (iv). E, o que é mais

grave, Wellek fala de teoria como “estudo dos princípios da Literatura, das suas

categorias, critérios, etc.” (ibid.:37), mas não explicita se seus objetivos seriam (i) e (ii),

ou se apenas (i).

A falta de um termo geral para os estudos de Literatura e a pouca clareza na

definição dos limites das três subdisciplinas não são as únicas imprecisões do capítulo.

Mais adiante, Wellek critica quem usa o termo “Crítica Literária” abrangendo a Teoria

Literária, porque “tal uso ignora uma distinção útil” (ibid.:38), porém acha que seu

manual deverá dar conta tanto de uma teoria da Crítica Literária quanto de uma teoria

da História Literária, o que parece querer dizer que o autor subsume a História e a

Crítica Literárias na teoria. Além de uma incoerência em relação a sua própria proposta,

dos estudos literários, título que será recuperado pela recente edição brasileira da obra. Já no “Prefácio à 3a edição americana”, de setembro de 1962, ele se refere ao desenvolvimento de suas idéias em dois livros posteriores: o Conceitos de crítica e o História da crítica moderna, o que parece indicar que teria perdido o interesse pelo termo “theory of literature”, passando a se referir ao “criticism” como a totalidade dos estudos literários. È curioso notar que, em língua inglesa, a expressão theory of literature foi quase que completamente suplantada por literary theory.

Page 72: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

70

tal afirmativa representa uma inadequação que já havia sido notada por Roberto Acízelo

de Souza:

(...) a Teoria da Literatura não é uma enciclopédia dos Estudos Literários, tendente a reduzir as demais disciplinas da área a meros capítulos seus. (...) [Ela é] uma das disciplinas desenvolvidas no âmbito dos Estudos Literários. (...) rompendo com a opção historicista prevalente no século XIX, a Teoria da Literatura se propôs considerar o objeto literário enquanto linguagem, aí se encontrando — tudo indica — o centro de convergência das inúmeras correntes em que se tem desdobrado (Souza, 1987:134).

Wellek afirma que a teoria deveria ser “um órganon dos métodos” e que era “a

grande necessidade da pesquisa literária hoje” (ibid.:9). Se tomada ao pé da letra, essa

afirmação obriga a se admitir que a disciplina geral dos Estudos Literários, para Wellek,

seria a Teoria — da qual a História e a Crítica seriam dependentes. Isso, porém,

inviabilizaria a distinção que ele mesmo defende como fundamental, entre teoria,

história e crítica. A situação se torna ainda mais confusa se considerarmos sua definição

de crítica em um livro posterior, a História da crítica moderna:

Entenderei a palavra “crítica” em termos largos para significar não só os juízos sobre livros e autores, individualmente considerados, a crítica “de juízo”, a crítica prática, demonstrações de gosto literário, mas também e principalmente o que se tem pensado a respeito dos princípios e da Teoria da Literatura, da sua natureza, criação, função, efeitos e relações com as outras atividades do homem, os seus gêneros, artifícios e técnicas, as suas origens e a sua história (Wellek, 1967:15).

As profundas incongruências nas proposições de Wellek parecem nascer da

dificuldade que ele encontra em definir, simultaneamente, uma disciplina — a teoria —

e um conjunto de disciplinas — os Estudos Literários, dos quais a teoria seria uma parte

—, estabelecendo ainda as relações entre esses dois elementos. Por um lado, ele procura

introduzir a teoria entre as demais disciplinas, mas, por outro, precisa conter os excessos

das abordagens então hegemônicas — a História e a Crítica. No entanto é preciso

desconsiderar tais incoerências e aproveitar o que há de mais positivo no projeto de

Wellek, a começar pela proposta de mútua dependência entre os três modos de

abordagem da obra literária:

(...) os métodos assim designados não podem ser usados isoladamente, que estão de tal maneira entrelaçados que tornam inconcebíveis a Teoria Literária sem a crítica ou a história, a crítica sem a teoria e a história ou a história sem a teoria e a crítica. Obviamente, a Teoria Literária é impossível, exceto com base em um estudo de obras literárias concretas. Não podemos chegar a critérios, categorias e esquemas in vacuo . Inversamente, porém, nenhuma crítica ou história é possível sem algum conjunto de questões, algum sistema

Page 73: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

71

de conceitos, alguns pontos de referência, algumas generalizações. (...) O processo é dialético: uma interpenetração mútua de teoria e prática (ibid.:38).

Wellek repudia toda e qualquer tentativa de se isolar os três modos de

abordagem. Ele ataca, por exemplo, o modelo de F. W. Bateson34, que propunha a

História Literária como empenhada em demonstrar que “A deriva de B”, trabalhando

com fatos verificáveis, enquanto que à Crítica Literária caberia a distinção “A é melhor

que B”, fundada em opiniões. O argumento de Wellek é o de que a História não lida

com fatos naturais, mas construídos, e que está cheia de juízos de valor (a escolha dos

materiais, das obras e dos autores a serem considerados etc.).

Wellek parece se referir aos juízos, nestas passagens, de modo um tanto lato,

quase como sinônimo de qualquer processo de escrutínio da razão. Seria muito mais

produtivo entender, como ele e Warren propõem em outros momentos, o juízo crítico

como compreendendo dois procedimentos dis tintos: o juízo ontológico (é ou não é

Literatura) e o juízo de valor (a distinção entre bom e ruim). O juízo ontológico seria,

penso eu, uma questão da Teoria, que poderia fornecer à História as condições para a

aplicação deste juízo, enquanto o juízo de valor propriamente dito estaria restrito à

Crítica. Porém, se, como Wellek defende nesta passagem, a História precisa produzir

juízos (de valor e ontológicos) para ser História, isso não estaria comprometendo

terrivelmente os objetivos da historiografia? Como se daria, efetivamente, essa

colaboração mútua, se a História precisar ser produtora e dependente de juízos e,

concomitantemente, precisar dar subsídios aos juízos da Crítica e da Teoria? Não

estaríamos de fato diante do problema da má definição entre as disciplinas, isto é, o

dilema de não saber qual o limite de um processo metodológico? A presença de juízos

de valor na História não seria indicativa justamente de má compreensão daquilo que ela

pretende ser?

O papel inadequado atribuído à história por Wellek pode ser entendido como

uma conseqüência direta do fato de seu projeto de Teoria da Literatura ser destinado a

suplantar a História de Literatura e seus métodos. Muitos dos argumentos lançados por

Wellek são destinados a criticar e mesmo desautorizar vários modos de historicismo.

Deve-se, portanto, tentar distinguir, no manual, entre um tipo de má crítica, polemista,

fruto do choque entre as orientações concorrentes, História e Teoria, e uma boa crítica

34 Artigo publicado na importante revista New Criticism, Scrutiny, IV, 1935, pp. 181-5.

Page 74: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

72

realmente perspicaz e ponderada sobre os desacertos dos historiadores no trato com a

obra literária.

Exemplo de boa crítica é a indicação que Wellek faz da pouca atenção dada pela

História de Literatura à análise e à interpretação da obra em si, em comparação com

seus esforços de contextualização: “Afinal, apenas as próprias obras justificam todo o

nosso interesse pela vida de um autor, pelo seu ambiente social e por todo o processo da

Literatura” (ibid.:177). A explicação para esse descaso ele associa às origens românticas

da historiografia literária:

A moderna História de Literatura surgiu estreitamente ligada ao movimento romântico, que só podia subverter o sistema crítico do neoclassicismo com o argumento relativista de que tempos diferentes exigiam padrões diferentes. Assim, a ênfase deslocou-se da Literatura para o seu contexto histórico, que foi usado para justificar os novos valores atribuídos à antiga Literatura (ibid.:177).

Para Wellek, o futuro da História de Literatura seria dependente da reavaliação

de alguns de seus pressupostos românticos, de “um alargamento de perspectivas, uma

supressão de sentimentos locais e provincianos” (ibid.:53). Ele tem em mente,

especialmente, a superatenção dedicada às Literaturas nacionais em detrimento da

Literatura como um todo, conforme foi visto na seção anterior.

Outro ponto crítico levantado por Wellek contra a História de Literatura refere-

se ao fato de muitos historiadores tratarem a Literatura como apenas documento

ilustrativo de época e, por serem incapazes de escrever a história de uma arte, escreve m

histórias da civilização. Já outros, embora cientes do estatuto da obra literária e

preconizadores da Literatura como arte, parecem incapazes de escrever a história de

uma arte, e por isso escrevem coletâneas de ensaios críticos (cf. ibid.:345-6).

Como Wellek precisa integrar a História de Literatura a seu modelo de Estudos

Literários, ele precisa propor que papel ela desempenhará. Além das óbvias tarefas

ligadas à cronologia, entende ser a principal tarefa do historiador literário a descrição

das transformações da obra no tempo:

(...) uma obra de arte individual não permanece inalterada ao longo da história. Há, com certeza, uma identidade de estrutura substancial que permaneceu a mesma ao longo dos tempos. Mas essa estrutura é dinâmica; ela muda ao longo de todo o processo da história, à medida que passa pelas mentes de leitores, críticos e outros artistas. O processo de interpretação, crítica e apreciação nunca foi completamente interrompido e é provável que continue indefinidamente ou, pelo menos, enquanto não houver nenhuma interrupção completa da tradição cultural (ibid.:348).

Page 75: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

73

Mas mesmo nesta delegação de funções, Wellek é parcimonioso com a História.

Ele critica os “reconstrucionistas literários” (ibid.:39), defensores de um historicismo

que propõe deter a intrusão dos preconceitos do presente na análise e consideração de

obras do passado:

Como tais estudos não podem senão nos convencer de que períodos diferentes nutriam concepções e convenções críticas diferentes, concluiu-se que cada época é uma unidade contida em si mesma, expressada através do seu próprio tipo de poesia, incomensurável com qualquer outra (ibid.:40).

Para Wellek, o relativismo crítico seria uma conseqüência inevitável dos

esforços de reconstrução histórica, com sua ênfase na sincronia da época e na

descontinuidade da história da poesia, e seria o maior responsável pela atenção

hipertrofiada dada ao papel do autor, suas intenções e seu contexto, no estudo da

Literatura.

Não é, em absoluto, verdadeiro que o estudo de reconstrução histórica esteja

fadado ao relativismo. O que vai determinar a paridade entre as épocas será uma

avaliação crítica que poderá se dar após o trabalho historiográfico, mas que não se

confunde com ele. Ao criticar o esforço da História em não ser anacrônica, isto é, ao

criticar a própria essência da pesquisa histórica, Wellek apenas revela sua dificuldade

em fazer com que a sua proposta de Teoria Literária se concilie com as demais

disciplinas que partilhariam os Estudos Literários.

Se os ataques à história são em geral exagerados e dizem respeito muito mais a

um tipo específico de historiografia literária, a crítica de Wellek ao relativismo é

bastante pertinente. Ele não faz uma defesa do absolutismo doutrinário baseado em uma

natureza humana imutável ou na universalidade da arte, mas no que chama

perspectivismo, uma postura que pretende entender a obra simultaneamente como algo

histórico e universal.

Devemos poder relacionar uma obra de arte aos valores de seu tempo e de todos os períodos subseqüentes ao seu. Uma obra de arte é tanto “eterna” (isto é, preserva certa identidade) como “histórica” (isto é, passa por um processo de desenvolvimento que pode ser investigado). O relativismo reduz a História de Literatura a uma série de fragmentos distintos e, portanto, descontínuos, ao passo que a maioria dos absolutismos serve apenas uma situação transitória do presente ou se baseia (como os padrões dos novos humanistas, dos marxistas e neotomistas) em algum ideal abstrato não-literário, injusto para com a variedade histórica da Literatura. “Perspectivismo” significa que reconhecemos a existência de uma poesia, uma Literatura comparável em todas as épocas, desenvolvendo-se, mudando,

Page 76: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

74

cheia de possibilidades. A Literatura não é nem uma série de obras únicas, sem nada em comum, nem uma série de obras encerradas em círculos temporais (...) (ibid.:43).

Entendendo que tanto o absolutismo quanto o relativismo são posições

inadequadas, Wellek considerava, com acerto premonitório, que o relativismo era a

grande ameaça aos Estudos Literários, uma vez que já assumia uma feição “equivalente

à anarquia de valores, à renúncia da tarefa crítica” (ibid.:43). Warren (ibid.:337)

complementa dizendo que a vontade — ainda também bastante atual — de se reagir ao

autoritarismo real dos cânones geralmente mergulha o pensamento na “ciranda do

gosto” e no aprisionamento à máxima De gustibus non est disputandum.

Warren entendia que a vontade de se objetivar o valor literário não está

necessariamente ligada à dependência estrita a determinados cânones estéticos, fixos e

imutáveis, pois a oscilação do valor da obra literária é inerente à própria característica

do objeto. As qualidades de uma obra existem em potência e não como dados objetivos

a serem apreendidos incondicionalmente. Elas exigem condições de percepção que

podem ser alteradas ao longo do tempo. Mas a aceitação da mobilidade dos padrões de

valor tem por efeito indesejado ficarmos aprisionados à tirania do fluxo. Entre a

limitação de regras absolutas e caducas e o elogio da mudança cons tante e aleatória, os

autores pretendiam fazer valer duas idéias-chave: a de multivalência e a de

geracionismo. As verdadeiras obras de arte seriam multivalentes, isto é, jamais seriam

apreendidas em sua totalidade. Assim, cada geração pode “descobrir” estratos que ou

foram ignorados ou não foram bem avaliados pelas gerações que lhe antecederam. Um

outro tipo de obra de arte literária seria o daquelas que primariam por uma originalidade

extrema e que, por tal razão, ficariam sujeitas às oscilações do gosto coletivo. Warren

chamará Geracionismo a tal circunstância, em que o juízo individual sobre uma obra é

suplantado pelo gosto estético do momento histórico e social, sendo que tais momentos

se alternariam em intervalos de duração variável ao longo da história.

2.1.4 - O capítulo esquecido

O capítulo XX (The study of literature in the Graduate School) aparece apenas

na 1a edição americana da obra. Era o tópico único de uma quinta parte do livro,

chamada de The Academic Situation. Não chegou a ter, pois, tradução em português, já

Page 77: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

75

que tanto a edição portuguesa quanto a brasileira se baseiam na 3a edição norte-

americana. Os autores optaram por retirá- lo já da segunda edição do manual, de 1956,

alegando que, pouco menos de dez anos após sua publicação, muitas das sugestões de

mudanças nele apresentadas já tinham sido implementadas em vários lugares. O

capítulo, de fato, soa datado em diversos pontos. Mas, além da curiosidade de ser o

único do livro a ser assinado por ambos os autores, apresenta importantes considerações

sobre a idéia de Estudos Literários por eles defendida. Considero importante sua leitura

sobretudo porque muitas das sugestões, que teriam sido adotadas em algumas partes do

mundo, seguem sem ser implementadas no ensino superior de Literatura no Brasil.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o capítulo ataca a ausência de um ensino

teórico e metódico nos cursos de pós-graduação em Literatura da época, que se

encontravam divididos, segundo os autores, entre a ênfase exagerada no “método

histórico” e o franco diletantismo. Um problema que, para Wellek e Warren (1949:298),

não se restringia aos Estudos Literários, mas afetava as humanidades em geral,

mergulhadas em problemas causados por uma combinação de atitudes provincianas, de

pseudociências e de ecletismos irresponsáveis.

Os sistemas de ensino de Literatura da Europa são criticados de forma bastante

genérica. Os alemães são censurados por suas “teorias grandiosas” e suas “verborragias

pretensiosas”, que, além de não terem aplicação a nenhuma obra de arte concreta, são

caracterizadas por serem excessivamente nacionalistas e possuírem conteúdo fortemente

racial. Os franceses são atacados por produzirem pouca teoria e por evitarem questões

metodológicas. Os russos recebem uma dupla crítica: os formalistas, por terem

produzido, com a noção de Ostranenie, um novo tipo de relativismo, em que o valor de

uma obra é medido por seu grau de originalidade em relação a uma poética

anteriormente existente; já aos marxistas, sucessores dos formalistas nas academias

soviéticas, a crítica é por terem passado a compreender a Literatura por sua utilidade

social e não mais em sua especificidade literária, conforme argumentos melhor descritos

na subseção 2.1.2.

Os Estados Unidos representavam para os autores (ibid.:288) a maior esperança

de se modernizar o ensino acadêmico da Literatura, o que, em seus termos, significava

dar ao antiquado ensino filológico o seu papel subsidiário, quebrar o provincianismo

lingüístico e dos nacionalismos em geral, trazer a Literatura contemporânea para o

Page 78: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

76

âmbito das pesquisas acadêmicas35, e, fundamentalmente, dar consciência metodológica

e teórica a esses estudos.

Tornar o profissional de ensino da Literatura um especialista era uma

necessidade primordial para os autores. Para tanto, a formação do professor

universitário de Literatura deveria se distanciar não apenas do historicismo e do tom

opiniático dos críticos de periódicos, mas também se diferenciar do tipo de formação

recebida pelo professor de língua. Tratava-se de uma necessidade urgente, pois a

expansão mundial das universidades gerara uma multiplicação de professores de língua

que se tornavam também encarregados de ensinar Literatura, sem possuir vocação ou

treinamento para tanto36:

O professor de Literatura deveria ser ele próprio um literato, assim como sempre se esperou que um professor de filosofia fosse um filósofo e não um mero historiador de filosofia. Não importa se como um poeta ou romancista, ou crítico ou teórico, o professor de Literatura deveria ser alguém com experiência em Literatura, e que a valoriza como uma arte. Em termos comuns, ele precisa ser um apologista da Literatura37 (ibid:290). [tradução minha]

Já o doutoramento em Literatura não deveria consistir numa formação voltada

para uma especialidade. Um Ph.D. em Literatura deveria ser muito mais um

“Professional man of letters”, alguém que, além de conhecer a Literatura em sua língua

nativa, estivesse minimamente a par da Teoria, da História e da Crítica Literárias, e que

fosse habilitado a discutir livros em sala-de-aula com seus alunos sem necessidade de

recorrer a impressões ou simpatias pessoais (cf. Ibid:292-3). Afinal, o que se poderia

esperar de um professor de Literatura é que ele fosse capaz, com uma preparação ad hoc

adequada, de ensinar e escrever sobre qualquer autor ou período, dentro dos limites de

seu conhecimento de línguas. Para tanto ele precisaria ter um treinamento nos métodos

acadêmicos de estudo da Literatura: a habilidade de avaliar a confiabilidade das

pesquisas publicadas, a habilidade de ana lisar hipóteses e afirmativas de outros

pesquisadores, a habilidade de analisar um poema, um romance ou uma peça.

35 Wellek e Warren escrevem num momento em que o estudo, por exemplo, de autores contemporâneos ainda não está plenamente estabelecido. 36 Não era apenas a formação dos professores que recebia a atenção dos autores. Wellek e Warren (1949:286), ao compararem o ensino universitário nos Estados Unidos e na Europa, percebem a diferença que a formação anterior dos alunos acarreta para o ensino da Literatura. 37 “The teacher of literature should himself be a literary man, as professors of philosophy are, still, expected to be philosophers, not merely historians of philosophy. Whether a practicing poet or novelist or a critic or theorist, he should be a man who has experienced, and who values, literature as an art. In the traditional sense, he should be an “apologist” for literature.”.

Page 79: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

77

Os departamentos de Literatura também precisariam sofrer mudanças

significativas. Deveriam deixar de ser organizados em função dos especialistas em

autores e passar a privilegiar especialistas em diversos métodos e abordagens. Um

departamento bem composto deveria abranger teóricos, filósofos com interesse em

Literatura, poetas, professores ligados a questões sociais e políticas, especialistas em

drama, em romance, em poesia, professores com formação voltada para as relações

entre psicologia e Literatura, entre Literatura e religião etc. Os currículos necessitariam,

obviamente, acompanhar tais mudanças, e passariam a ser compostos por cursos

voltados para a Teoria, para as abordagens específicas da Literatura (biográfica,

sociológica, ideológica), para os estudos das relações entre Literatura e outras artes,

entre Literatura e Filosofia (ibid.:294). Por fim, os departamentos de Literaturas

nacionais deveriam ser reformulados e concentrados em um grande departamento de

Literatura Geral ou Internacional, ou ainda, simplesmente, de Literatura (ibid.:296).

Por fim, Wellek e Warren lamentavam a impressionante incapacidade dos

acadêmicos em comunicarem entre si seus trabalhos em um nível razoável de abstração.

Essa falta de habilidade de comunicar, para indivíduos de outras disciplinas ou

disciplinas afins, as hipóteses e as conclusões de suas pesquisas indicavam para os

autores um lamentável rompimento entre os elos da cultura. E numa Europa

recentemente devastada pela guerra, eles lamentavam:

Muito embora o mundo não vá ser reagregado pela semiótica ou pela Filosofia, uma singela dose de comunicação intelectual entre cientistas, cientistas sociais e humanistas pode ajudar a manter unido o que ainda restou (ibid.:296)38. [tradução minha]

2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren

Conforme minha proposta de trabalho, o Teoria da Literatura servirá, ao longo

deste trabalho, como um marco zero dos projetos de Teoria da Literatura no século XX.

Com o intuito de podermos nos remeter com clareza aos pontos-chave do modelo

teórico de Wellek e Warren, procurei explicitar e sistematizar as respostas às três

questões de minha proposição metodológica: “o que é Literatura?”, “o que são os

Estudos Literários?” e “o que é Teoria da Literatura?”.

Page 80: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

78

2.1.5.1 - O Conceito de Literatura

(i) Wellek e Warren tomam a Literatura como uma arte. Como tal, a obra

literária possui uma particular posição ontológica. Não é real (no sentido de que não tem

uma existência física), nem exclusivamente mental (pois possui uma contrapartida

material), nem ideal (não pode ser descrita em termos lógicos, como a noção de um

triângulo). É um sistema de normas implícitas, intersubjetivas, acessíveis apenas através

de experiências individuais orientadas pela estrutura sonora de suas sentenças.

(ii) O conjunto de normas e estruturas da obra de arte literária age sobre a língua,

matéria da Literatura. A Literatura se constituiria, pois, como um determinado uso da

língua, que se distinguiria dos demais usos (científico e cotidiano), por ser altamente

conotativa e por produzir significados através da própria materialidade do signo.

(iii) A obra literária possui vida, no sentido de que tem uma origem no tempo,

transforma-se por conta das leituras que dela são feitas e lhe acrescentam sentidos, e

pode vir a perecer, pois é dependente de algum veículo ou mecanismo que possibilite

sua preservação.

(iv) A leitura de uma obra literária é um processo cognitivo sui generis, pois a

Literatura oferece uma experiência absolutamente singular, devendo ser entendida como

fonte de um conhecimento além ou aquém do racional.

(v) A obra literária é apenas parcialmente realizada no ato de leitura. Qualquer

experiência individual de leitura é uma tentativa de apreensão da estrutura de normas e

padrões da obra. A estrutura de uma obra literária constrange a leitura que dela é feita e

resiste às imperfeições de nossas leituras. Estamos sujeitos, pois, a interpretar mal ou a

não compreender as normas e a estrutura da obra de arte.

(vi) A obra literária tem como referência um mundo ficcional, inventivo,

imaginativo. A ficcionalidade é, deste modo, um critério de distinção entre o que é e o

que não é Literatura. Assim, a verdade da Literatura não se confunde com a verdade

que pode ser metodicamente verificada.

38 “Though the world will not be put together again by semiotics or even philosophy, a modest degree of intellectual communication between scientists, social scientists, and humanists can do much to hold together what remains.”

Page 81: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

79

2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários

(i) Os Estudos Literários devem ser rigorosos e metódicos, ainda que seus

métodos nem sempre coincidam com os das ciências naturais.

(ii) O saber produzido pelos Estudos Literários deve ser cognitivamente

diferenciado daquele obtido através da leitura direta da própria obra literária.

(iii) Os Estudos Literários precisam lidar com os elementos de generalidade e de

particularidade da obra literária, estando atentos para não se confundir individualidade

com singularidade absoluta.

(iv) Teoria, Crítica e História seriam as subdisciplinas que integrariam os

Estudos Literários, e se ocupariam, respectivamente, com a investigação dos princípios

gerais da Literatura, a análise das obras concretas (tomando a Literatura como ordem

sincrônica) e a consideração das obras concretas (tomando a Literatura como série

diacrônica e histórica).

(v) Os Estudos Literários não devem ser uma prática estritamente voltada a

propiciar atos individuais de leitura, mas devem constituir-se como uma tradição

suprapessoal em constante transformação e expansão.

(vi) A Literatura deve ser estudada como um todo. Seria falsa a idéia de uma

Literatura nacional contida em si mesma. A diferença entre as línguas no estudo das

Literaturas foi superestimada, em prejuízo de uma história internacional dos temas, das

formas, das técnicas e dos gêneros. Os estudos nacionais de Literatura devem ser apenas

o ponto de partida para a consideração de uma Literatura universal, o que implicaria

abolir o provincianismo lingüístico.

(vii) Os empreendimentos de cunho filológico-hermenêutico — a reconstrução

do contexto histórico e a interpretação à luz dessa reconstituição — têm papel

subsidiário e não podem ser o objetivo final dos Estudos Literários.

(viii) Embora os elementos ambientais, contextuais e históricos sejam a matéria

da obra de arte, o interesse do pesquisador em Literatura deveria ser sempre sobre

aquilo que é específico, individual, e que determina a condição artística daquela obra.

Os elementos extrínsecos em geral interessam a um ponto de vista estranho ao do

Page 82: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

80

estudioso da Literatura, de competência do historiador, do psicólogo, do sociólogo, do

antropólogo.

(ix) A afluência de métodos e disciplinas das demais ciências humanas nos

Estudos Literários gera uma atenção exagerada aos elementos extrínsecos da Literatura

e é marcada por um grau variável de aceitação do determinismo, que va i do

estabelecimento de relações entre os fatores externos e a obra de arte literária até as

concepções fatalistas da criação artística.

(x) O profissional de ensino de Literatura deve ser um especialista apenas no

sentido de possuir uma formação diferenc iada do professor de língua. Deve ser alguém

com experiência em Literatura, e que a valorize como uma arte. Mas o doutoramento

em Literatura, contudo, não deveria constituir uma formação voltada para uma

especialidade. Um Ph.D. em Literatura deveria ser alguém capaz, com uma preparação

ad hoc adequada, de ensinar e escrever sobre qualquer autor ou período, dentro dos

limites de seu conhecimento de línguas, sem necessidade de recorrer a impressionismos

ou simpatias pessoais. Para tanto ele precisaria ter um treinamento nos métodos

acadêmicos de estudo da Literatura: a habilidade de avaliar a confiabilidade das

pesquisas publicadas, a habilidade de analisar hipóteses e afirmativas de outros

pesquisadores, a habilidade de analisar um poema, um romance ou uma peça.

(xi) Os departamentos de Literatura deveriam ser organizados em função dos

diversos métodos e abordagens existentes do fenômeno literário. Já os departamentos de

Literaturas nacionais deveriam ser reformulados e concentrados em grandes

departamentos de Literatura Geral ou Internacional, ou ainda, simplesmente, de

Literatura.

(xii) Os Estudos Literários devem ser organizados de forma a possibilitar que os

acadêmicos comuniquem entre si seus trabalhos em um nível razoável de abstração.

2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura?

(i) A teoria é pensada por Wellek e Warren como uma disciplina universalista e

generalizante, que estuda os princípios gerais da Literatura e que, dessa forma, fornece

subsídios para a caracterização dos traços individuais de uma obra, um autor, um

Page 83: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

81

período ou uma Literatura nacional — a ser empreendida pela Crítica e pela História

Literárias.

(ii) A teoria deveria ser um órganon dos métodos e uma espécie de disciplina

geral dos Estudos Literários, da qual a História e a Crítica seriam dependentes —

afirmação contraditória [em relação] a outras assertivas dos autores.

(iii) A teoria deve ser perspectivista, encontrando um meio termo entre a fixidez

do absolutismo das tradições e a fluidez do relativismo, que inviabiliza o estudo

sistemático.

(iv) A teoria deve concentrar-se nas obras de arte concretas, isto é, dedicar-se ao

texto literário em si. Para tanto, a recuperação e a atualização dos antigos métodos da

retórica, de poética ou da métrica clássicas devem ser revistos e reformulados em

termos modernos.

2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA

Publicado à mesma época do manual de Wellek & Warren, o “Análise e

interpretação da obra literária; introdução à Ciência da Literatura” teve larga

influência nos meios universitários brasileiros. Apesar de não conter em seu título a

palavra teoria, entendo que sua inclusão como objeto deste trabalho justifica-se, em

primeiro lugar, por ter funcionado efetivamente como um manual de teoria nos cursos

de letras do Brasil e, além disso, pelo fato de que a Ciência da Literatura apresenta

muitos pontos em comum com a então nascente Teoria da Literatura.

Wolfgang Kayser morreu em 1960, ano da 6ª edição alemã de sua obra. Entre

1941 e 1946, lecionou Literatura Alemã em Portugal, onde permaneceu até 1950.

Publicou o manual em 1948, simultaneamente em língua portuguesa e alemã (Das

Sprachliche Kunstwerk era o título alemão). Segundo o próprio autor, os livros diferiam

apenas quanto aos exemplos utilizados. A 1ª edição em língua portuguesa tinha por

título Fundamentos da interpretação e da análise literária.

A versão de maior circulação no Brasil é a segunda, de 1958, baseada na 4ª

edição alemã. Trata-se de uma revisão extensa e substancial, segundo o revisor Paulo

Quintela e o próprio autor, que chega a atribuir metade da autoria ao colega português

Page 84: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

82

(cf. Kayser, 1976:XIX). O título é alterado, e o novo subtítulo, “introdução à Ciência da

Literatura”, apenas reforça a filiação intelectual da obra.

A sua edição mais recente é a 7ª, de 1985. Entre esta e a segunda, não há

diferenças significativas, exceto por revisões de tradução e de atualização de

bibliografia, segundo o próprio Quintela.

2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser

Já no Prefácio à 1ª edição portuguesa, aparece um primeiro esboço de definição

conceitual de obra literária, em termos muito próximos aos de Wellek & Warren: a

Literatura é descrita como uma obra de arte cuja matéria prima é a língua (ibid.:XVII).

E as semelhanças não param por aqui. Kayser também nega que a essência da Literatura

seja a sua capacidade de representação da realidade, isto é, nenhuma obra literária deve

ser entendida, sumariamente, como um simples reflexo de qualquer outra coisa. Ainda

em termos muito semelhantes aos propostos no Teoria da Literatura, o professor

alemão reafirma a necessidade de se compreender a obra literária “como estrutura

lingüística fechada e completa em si mesma” (ibid.:XXI).

A definição de obra literária para Kayser conjuga arte e língua. Para tanto, ele

estabelece dois critérios: o primeiro deles estabelece uma distinção bastante ampla, que

parece fazer coincidir a noção de texto literário com a noção simples de texto: “(...) todo

o texto ‘literário’ (no sentido mais lato da palavra) é um conjunto estruturado de frases

fixado por símbolos” (ibid.:6). Essa primeira distinção, um tanto estranha por sua

incapacidade discriminatória, não visa a diferenciar a Literatura de outros textos, mas

apenas de conjuntos não estruturados de frases: “As frases, alinhadas umas às outras, no

texto de exercícios de uma gramática, para estudos de qualquer regra, não são um

conjunto estruturado, não são, pois um texto literário” (ibid.).

Esse grande “conjunto estruturado de frases fixado por símbolos”, acrescenta

Kayser, possui, obviamente, “um conjunto estruturado de significados”. Mas Kayser

ainda está num nível de definição que parece pretender apenas dar conta da matéria da

Literatura: a significação é uma propriedade da língua, não da Literatura. É neste ponto

que, finalmente, ele introduz o segundo critério de definição e apresenta assim aquilo

que distinguiria o texto literário dos demais textos:

Page 85: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

83

(...) os significados das palavras já não se referem a fatos reais. Pelo contrário, os fatos aqui adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo menos uma existência peculiar, absolutamente diversa da realidade. Os fatos ou, como também diremos, a objetualidade (que, é claro, abrange também seres humanos, sentimentos, acontecimentos) existem somente como realidade evocada por estas frases poéticas. As frases do poema têm a capacidade de provocar a sua própria objetualidade (ibid.:6).

Como ocorre na proposta de Wellek & Warren, o modelo de Kayser apresenta a

Literatura como uma produção textual com um estatuto particular de referencialidade: a

obra literária produziria suas próprias referências. Mas a essa delimitação, Kayser,

surpreendentemente nomeia Belas Letras39, e não Literatura. Trata-se de uma curiosa

introdução repentina do termo em meio a sua tentativa de delimitar o literário no

conjunto dos discursos. Ele dirá que é “legítimo afirmar que as Belas Letras são o objeto

especial da Ciência da Literatura, e que, em face dos outros textos, se apresenta como

algo de suficientemente diferenciado” (ibid.:7). Embora ele julgue suficiente a descrição

feita de Literatura — ou, em seus termos, Belas Letras —, sua conceituação é precária e

pouco aprofundada. Fica-se sem saber ao certo se as Belas Letras são uma parte da

Literatura ou a própria Literatura e, o que é ainda mais problemático, o porquê de uma

disciplina que se apresenta como “Ciência da Literatura” ter por objeto algo que não se

chama “Literatura”, mas “Belas Letras”...

Ainda que empregue com freqüência termos como “estrutura lingüística” e

“totalidade da obra”, elementos que diferenciariam o texto literário dos demais textos,

tais noções-chave são pouco discutidas e tornam muito frágeis os pressupostos de uma

disciplina que se pretende uma “ciência”. Mesmo a noção de Belas Letras,

abruptamente introduzida em seu processo de conceituação de obras literárias, é tão

inconsistente que Kayser praticamente a abandona ao longo do manual, e usa com muito

mais freqüência o termo “Literatura”.

39 O termo “belas letras” corresponde a uma denominação em voga especialmente no século XVIII, que se baseava em critérios estéticos (a beleza, a sensibilidade) para distinguir certa classe de textos dos de cunho filosófico ou científicos, pertecentes ao campo da razão (cf. Souza, 2003:6-13). Roberto Acízelo de Souza também observa que Kayser é um dos poucos a empregar o termo, no século XX, sem o cunho irônico e pejorativo que carrega, quando aplicado para desqualificar textos “diletantes, conservadores, frívolos ou reacionários” (ibid.:13).

Page 86: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

84

2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura

Novamente em termos muito parecidos com os de Wellek & Warren, Kayser

observa que, na primeira metade do século XX, o estudo da Literatura, ainda que se

pretendesse uma atividade científica, centrou-se excessivamente na observação da obra

como manifestação de elementos extraliterários. Aproveitava-se a Literatura para se

chegar ao esclarecimento de fatores tais como autor, geração, corrente, ideologia, classe

social, época, a custo de tornar secundários os problemas inerentes ao fenômeno

literário. Para o autor, a obsessão dos Estudos Literários com as relações entre a obra e

aspectos extra-poéticos poderia ser explicada pelo fato de que eles atribuiriam à

“realidade” a verdadeira vida da qual a obra seria um mero reflexo (cf. ibid.:XXI).

A proposta de Kayser retoma um ideal comum tanto ao New Criticism de

Warren quanto ao Formalismo Russo tão bem conhecido por Wellek: pensar a obra

como uma estrutura lingüística auto-suficiente: “A obra de arte literária vive como tal e

em si mesma” (ibid.:430). Tal compreensão é a garantia para que o pensamento não seja

traído por um historicismo que arrastaria a obra de arte “para o redemoinho de um

relativismo psicológico ou histórico ou nacional” (ibid.:431).

Em seus termos, a principal tarefa da investigação literária é “a determinação das

forças lingüísticas criadoras, a compreensão da sua cooperação e a tentativa de tornar

transparente a totalidade da obra isolada” (ibid.:XXI). Como as formas lingüísticas do

texto literário, em sua totalidade, não diferem das demais manifestações da língua, não

deve ser objetivo da Ciência da Literatura apurar todas as formas empregadas num texto

literário. Elas só interessariam aos Estudos Literários na medida em que contribuíssem

efetivamente para a constituição da obras literárias (cf. ibid.:105). Não é claro,

infelizmente, no trabalho de Kayser, como se daria essa seleção de quais formas são

importantes para o estudo da obra literária.

Ainda que proponha a sua débil concepção de “Ciência da Literatura” como

núcleo dos Estudos Literários, Kayser garante não desconsiderar a importância da

História de Literatura, que iria ser beneficiada com as conquistas da investigação

científica. Ele comenta que, enquanto as Poéticas clássicas e iluministas eram

normativas e se baseavam na crença em um gosto único, a era moderna passou a

experimentar, com a arte, outras possibilidades “além das do deleite estético e da

Page 87: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

85

compreensão intelectual” (ibid.:14). Baseando-se em exemplos de como nosso

julgamento sobre uma obra muda ao sabermos quando foi realizada ou quem é seu

autor, Kayser observa com acerto que novos critérios passaram a influenciar o

julgamento — a obra passou a ser vista também como documento ou como expressão de

um criador. Essa transformação teria marcado o término de um período em que se

experimentava uma pura emoção estética, que acabou dando espaço à “interpretação

histórica e descritiva”, fazendo surgir a História de Literatura (cf. ibid.:16).

Kayser acredita que a Ciência e a História de Literatura, como adversárias da

normatividade da Poética Clássica, confundiram-se por um tempo. Os historiadores,

porém, teriam sucumbido a idéias românticas, como aquela que vê na obra literária o

produto de um gênio criador: “Basta consultar a maioria das histórias das Literaturas

ainda hoje representativas, para verificar que, no fundo, não são mais do que um

encadeamento de monografias sobre poetas” (ibid.:16).

Kayser discorda ainda de outros pressupostos da História de Literatura. Para ele

não há ciências nacionais da Literatura, pois “as forças que constituem a estrutura

lingüística da poesia bem como a sua forma são quase em toda a parte as mesmas”

(ibid.:XXII, grifo meu) 40.

No que diz respeito à Filologia, Kayser sustenta posição muito próxima de

Wellek & Warren: os métodos filológicos teriam um papel subsidiário e consistiriam

num estágio preparatório dos Estudos Literários. Uma vez que a obra literária é

entendida sobretudo como “texto”, o estudo científico deve orientar-se por produtos do

trabalho filológico, tais como edições críticas, determinação de autoria, da data de

produção etc. (cf. ibid.:21). Também como os autores de Teoria da Literatura, Kayser

censura os exageros positivistas que elevavam o trabalho filológico ao objetivo final do

estudo da Literatura, e limitavam o trabalho prático à “edição crítica dos textos,

investigação das fontes e gênese das obras e (...) das circunstâncias da vida do poeta”

(ibid.:16).

Em relação à Crítica Literária, Kayser é incisivo em separar a Ciência da

Literatura da crítica que era feita em salões e nos jornais. Ele destaca a importância de

se estabelecer e fixar uma terminologia técnica que, reunindo em si o resultado da

investigação sobre a Literatura que se transmite ao longo do tempo, seria a principal

Page 88: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

86

arma contra trabalhos “empolados” e repletos de “classificações subjetivas”, que

indicariam, já pelo estilo, “uma maneira de pensar inadequada” (cf. ibid.:41). No

próprio manual, Kayser se esforça para definir vários daqueles que chama conceitos

fundamentais da análise literária, bem como recuperar a terminologia dos antigos

tratados de versificação41.

2.2.3. O projeto teórico de Kayser

A sistematização das questões teóricas era exatamente o objetivo da Ciência da

Literatura (cf. ibid.:10). O manual tinha por objetivo oferecer uma iniciação a esses

problemas suscitados pelas obras literárias. Kayser defend ia o estabelecimento de uma

nova concepção metodológica que conseguisse sintetizar a diversidade das análises

possíveis sobre as obras literárias.

A síntese dos métodos era dependente, contudo, do cumprimento de algumas

exigências. Em primeiro lugar, Kayser considerava fundamental atingir-se um grau

mínimo aceitável de objetividade dentro dos Estudos Literários:

O intérprete (...) nunca poderá abstrair da sua individualidade, nem da sua época, nem da sua nacionalidade (...). Tudo isso, contudo, não destrói o direito e a necessidade de uma apreensão tanto quanto possível objetiva dos textos literários, nem conseguiu soterrar os impulsos para a atingir (ibid.:4).

Objetividade e cientificidade se confundem no projeto de Kayser, e ele não é

muito esclarecedor sobre os aspectos em que a Ciência da Literatura seria mais objetiva

do que as demais práticas dos Estudos Literários. O que se observa é a interferência

constante de elementos estranhos a sua proposição de se evitar a subjetividade. A título

de exemplo, remeto aos “dotes” necessários ao estudioso da Literatura, isto é, ao

conjunto de qualidades fundamentais, segundo o autor, para alguém que pretende ser

um especialista da Literatura: (i) “apreender problemas teóricos como tais” (ibid.:3), (ii)

“compreender os métodos científicos” (ibid.), (iii) aplicar, por si próprio, os métodos na

resolução de novas questões” (ibid.) e (iv) “vocação para o objeto imediato de estudo”

(ibid.:3).

40 Note-se, contudo, que o uso da palavra quase cria a lacuna que justificaria pensar-se a Literatura em termos nacionais. 41 Paulo Quintela, tradutor da obra, reforça essa preocupação “de fixar a terminologia e o vocabulário técnico da ciência literária”, mas buscando apoio na “nomenclatura alemã, indubitavelmente a mais rigorosa e diferenciada” (Quintela in Kayser, 1976:XV).

Page 89: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

87

Esse quarto requisito42, pouco científico, não é, para Kayser, algo acessório, mas

fundamental, pois representa exatamente aquilo que permitiria perceber “o que há de

específico na obra poética” (ibid.). Com isso, ele flexibiliza perigosamente sua noção de

ciência, ao introduzir um elemento que não pode ser transmitido racionalmente e que

aproxima o estudioso da Literatura daquele que possui um dom. E como tal qualidade

inata não pode ser medida ou avaliada, o discurso da Literatura ficaria novamente

aprisionado no plano da opinião e dos caprichos pessoais.

A vocação, no projeto de Kayser, parece se justificar apenas como um

argumento contra aqueles que acusam os estudos de arte de destruírem a sensibilidade

artística. Ele contesta o positivismo dominante e defende que os temas metafísicos

sejam reintroduzidos nos Estudos Literários:

Se o trabalho positivista da Literatura do século XIX se contentou com o tratamento a dar às questões filológicas e aos fenômenos analíticos, e, na sua ânsia de só avançar em terreno absolutamente seguro, deixou de lado questões mais profundas do domínio da metafísica, tal limitação das possibilidades duma ciência do espírito pareceu então inadmissível (ibid.:244).

Já observei anteriormente que não é clara, na proposta de Kayser, sua exata

compreensão de qual seria a cientificidade da Ciência da Literatura. O que se sabe é que

ele a imaginava compreendida como parte de uma ciência da língua. Ao contrário do

que pensava Wellek & Warren, ele entendia que a especialização que fez acentuar a

separação entre Estudos Literários e Lingüística prejudicava a eficiência daqueles.

Especialmente a Estilística merecia sua admiração. Tomando “estilo” com o conceito

que abrangeria “a totalidade das formas lingüísticas de uma obra” (ibid.:105), ele a

considerava como a corrente de estudos que se diferenciaria da Lingüística por se

interessar pelos traços estilísticos, isto é, pela freqüência com que certos fenômenos

lingüísticos ocorreriam em uma obra. Permanece sem maiores explicações qual a

relação que haveria entre a recorrência de certas formas lingüísticas em um texto e seu

caráter de obra de arte.

Elevando o estilo à condição de “âmago da ciência e da História de Literatura”

(cf. ibid.:301), Kayser faz questão de defini- lo em contraste com a noção veiculada pelo

termo no século XIX:

42 Ao mesmo tempo que é uma condição sine qua non para a compreensão da obra literária e, portanto, para seu estudo, a vocação corresponde também a um risco, pois conduz a um “entusiasmo” que “ultrapassa, na maior parte das vezes, o interesse teórico” (ibid.).

Page 90: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

88

A concepção de estilo que poderíamo s denominar como antiquada é aquela que dominava a maneira de ver do século XIX e que ainda hoje vive uma existência, de modo algum sombria, nalguns escritos populares. No fundo serve-lhe de base a interpretação da obra poética como algo de “fabricado” conscientemente, algo que não passa de linguagem arrebicada e enfeitada com determinados meios. Esses meios são as conhecidas figuras retóricas da antiguidade. A investigação dum texto consiste, nesses casos, na mera enumeração das figuras retóricas que nele estão contidas (ibid.:302).

A passagem acima é sintomática. Primeiro porque deixa transparecer que Kayser

está alinhado a um modo de compreensão da obra literária como algo que se produz, em

alguma medida, de modo inconsciente — um ponto de vista que certamente o aproxima

de uma visão de Literatura mais romântica do que moderna. Depois, porque se percebe,

quando se observa qual é, no manual, o entendimento e o uso do termo “estilo”, que as

diferenças entre seu conceito e os anteriores não são tão profundas quanto Kayser quer

nos fazer crer, especialmente no que se refere ao forte caráter prescritivo de que o termo

se reveste no livro: “A estilística que se conserva sempre atual é o ensino do bom estilo,

ou melhor, do emprego ‘adequado’ da linguagem” (ibid.:303).

Aos poucos se revela o quanto o pensamento de Kayser é dependente de

categorias e métodos característicos de disciplinas clássicas de estudo da Literatura. As

figuras de retórica, por exemplo, recebem minuciosa atenção, embora não haja

sistematização nem atualização dos pressupostos da Retórica tradicional. Ainda que se

esforce por se livrar do componente normativo, é inegável que Kayser se orienta por

uma poética — no sentido usado por Pareyson, já referido anteriormente — que, em

grande medida, resiste à parte da Literatura moderna do século XX:

(…) o desregramento literário, que de resto se pode observar em todos os países, provém em boa parte do desprezo da técnica, do ofício e, por conseguinte da tradição. A par daquele falso conceito de poeta e de criação literária, a rejeição de toda a sensatez é bastantes vezes produto apenas do comodismo (ibid.:201).

Traído por sua concepção pessoal de arte, Kayser falha em transformar a Ciência

da Literatura em uma disciplina aberta para a variedade e mobilidade da Literatura.

Como agravante, a indiscutível erudição de seu autor faz com que seu manual apresente

um grande grau de dispersão no tratamento dos temas, especialmente no que toca ao

recurso a exemplificações. Ainda que Kayser relativize a importância dos exemplos em

seu livro, mais da metade do manual é voltada para exemplos, ilustrações e aplicações,

Page 91: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

89

muitas de caráter impressionista43, pouco sistematizadas, e que se constituem como um

conjunto de comentários descritivos acerca de obras isoladas.

43 Como exemplo, “Obscuro (...) é mais rico em conteúdo emocional, tem mais perspectiva emocional que escuro” (ibid.:332).

Page 92: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

90

3 - CONSTRUÇÃO OU RUÍNA? “(…) the absence of systematic criticism has created a power vacuum, and all the neighboring disciplines have moved in44.” Northrop Frye (1957:12)

O Teoria da Literatura de Wellek & Warren propõe alguns fundamentos para o

estudo teórico da Literatura sem chegar aos detalhes da constituição da nova disciplina.

Além disso, seria uma expectativa injusta se esperar que um livro pudesse ter a força de

regular a prática do estudo da Literatura. Especialmente por ter como uma de suas

qualidades o fato de não ser um receituário de operações a serem aplicadas, ele não

atendia a quem esperava encontrar fórmulas objetivas para se explicar obras literárias.

Principalmente, o manual, por si só, era insuficiente para erigir e consolidar um novo

modo de estudo da Literatura. Para que a teoria se consolidasse como um campo de

estudos sistemático, era necessário que se retomasse o trabalho de Wellek e Warren de

onde eles pararam. Não foi isso, contudo, o que aconteceu.

É verdade que, nos anos seguintes ao lançamento do livro, a preocupação com a

forma da obra literária foi potencializada. Os trabalhos dos formalistas russos, de larga

importância na formação de Wellek, foram redescobertos e traduzidos.

Concomitantemente, um outro tipo de formalismo, advindo da Antropologia via estudos

lingüísticos — o Estruturalismo — ganha franco acesso aos Estudos Literários. Mas,

por outro lado, os “estudos extrínsecos” obtiveram força renovada, especialmente com

os desenvolvimentos da Sociologia e da nova Psicologia — a Psicanálise.

A diversidade de visões sobre a Literatura não produzia, contudo, discussões

teóricas vigorosas sobre o seu estudo em sua totalidade. Na ausência de trabalhos

amplos sobre a complexidade dos Estudos Literários, multiplicavam-se os ensaios

pontuais sobres temas muito específicos. A radicalidade das posições fazia com que a

Literatura passasse a ser algo superficial e secundária diante daquilo que realmente

Page 93: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

91

importava: as teses que precisavam ser comprovadas e defendidas como territórios em

uma guerra, fosse a estrutura de Lévi-Strauss ou a superestrutura de Marx. A

necessidade de escolhas dicotômicas entre forma e conteúdo, consciente e inconsciente,

realidade e ficção, transformou o momento em que os fundamentos da disciplina

precisariam ser aprofundados em um diálogo entre surdos, em que temas

especificamente literários eram tratados grosseiramente como questões de opção

política.

Em 1970, perguntado pelo estado atual dos Estudos Literários, Mikhail Bakhtin

fazia uma descrição sombria do estado da disciplina:

Não há uma colocação ousada das questões gerais, (...) não há uma luta verdadeira e sadia entre correntes científicas (…). No fundo, os Estudos Literários ainda são uma ciência jovem, ainda não possuem métodos elaborados e verificados na experiência como existem nas ciências naturais; por isso a ausência de uma luta entre correntes e o temor de levantar hipóteses ousadas acarretam necessariamente o domínio de truísmos e chavões; destes, lamentavelmente, não há carência entre nós (Bakhtin, 2003:360).

Bakhtin era uma voz singular na época: posicionava-se simultaneamente contra

as principais correntes, por entender que todas desvinculavam a Literatura da história da

cultura, fosse por isolar a obra para estudá- la como uma estrutura autônoma, fosse para

ligá- la imediatamente a fatores socioeconômicos. De modo geral, ele considerava os

Estudos Literários ainda incapazes de lidar com um fenômeno tão “complexo e

polifacético” como a Literatura (ibid.:360-2).

O que se via, num quadro amplo, era uma concorrência de discursos sobre

aspectos isolados da Literatura, conseqüência talvez de um processo crescente de

especialização, que formava “especialistas” incapazes de pensar a Literatura e seu

estudo em sua complexidade. Quando esses estudos pontuais e específicos alcançavam

algum sucesso, seus métodos eram transformados em categorias que eram aplicadas a

exaustão em outras obras, com resultados duvidosos e por vezes calamitosos. O citado

Bakhtin é um dos que sofreram — e sofrem — com tal problema. Seus estudos sobre as

diversas vozes em romances de Dostoievski fizeram com que termos como dialogismo e

polifonia fossem elevados ao nível de categorias generalistas capazes de serem

“aplicadas” à Literatura como um todo.

44 “(...) a ausência de uma crítica sistemática criou um vácuo de poder que foi preenchido pelas disciplinas vizinhas”. Tradução minha.

Page 94: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

92

Publicado no ano 1967, em Portugal, o manual Teoria da Literatura45 de Vítor

Manuel Aguiar e Silva é uma obra bastante representativa do estado da disciplina nas

décadas de sessenta e setenta. Sob o pretexto de permitir ao leitor o acesso aos mais

diversos modos de se estudar a obra literária, Aguiar e Silva fez um apanhado de

métodos, correntes, interpretações e projetos teóricos de estudo da Literatura, agrupados

sem nenhum critério explícito, e deu sua contribuição para que a disciplina passasse a

ser entendida como o conjunto assis temático de todos os discursos sobre a Literatura já

produzidos.

Longe de conter uma exposição metódica e coerente de uma disciplina, o

manual é muito mais um compêndio que foi absorvendo quase indiscriminadamente os

trabalhos produzidos sobre Literatura e se tornando, assim, cada vez mais extenso e

caótico46. Uma característica marcante do livro são as constantes modificações e

acréscimos feitos pelo autor nas sucessivas edições ao longo dos anos. As alterações

impressionam também pelo curto espaço de tempo em que ocorrem. Apenas um ano

depois do lançamento, Aguiar e Silva já comentava no prefácio à 2ª edição:

(...) alguns capítulos foram remodelados e acrescentados, tendo-se procurado sobretudo alargar a análise consagrada aos problemas de Crítica Literária : introduziram-se algumas páginas sobre a sociologia da Literatura, alargou-se a exposição sobre a estilística, ampliou-se e aprofundou-se o estudo do estruturalismo (Silva, 1979:13).

Sociologia da Literatura, Crítica Literária, estilística, estruturalismo e muitos

outros convivem lado a lado sob o maleável rótulo de “Teoria da Literatura”, sem que

sequer sejam buscadas as tentativas de hierarquização e de sistematização das

subdisciplinas que se observavam, por exemplo, no manual de Wellek & Warren. E

como o período é marcado por uma intensa produção de discursos sobre a Literatura,

progressivamente novas e diversas possibilidades iam sendo acrescentadas ao livro.

Aguiar e Silva, em 1982, justificava assim a volubilidade das edições de seu manual:

Um livro científico-didático que não se renove, com o espírito de rigor que deve caracterizar a docência e a investigação universitárias, é um livro

45 A obra teve, em vinte anos, oito edições portuguesas: 1a edição, 1967; 2a edição, 1968; 3a edição, 1973; 4a edição, 1982; 5a edição, 1983; 6a edição, 1984; 7ª edição, 1986; 8a edição, 1987, além de uma reimpressão em 1988. Há também uma edição brasileira, lançada em 1976, pela editora Martins Fontes, baseada na 3ª edição portuguesa. Em espanhol, foram nove edições, a última no ano de 1996. Em 1990 foi lançada em Portugal uma versão concisa e adaptada da obra, denominada Teoria e metodologia literárias, de caráter didático e voltada provavelmente para os cursos de graduação. 46 Na 4ª edição, o manual deixou de ser um volume único e se dividiu em dois tomos.

Page 95: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

93

condenado à morte breve. Assim, naturalmente, reescrevemos de novo, na sua maior parte, esta nossa obra (...) (idem,1991:Prefácio da 4a ed.).

Reescrever a obra, nos termos de Aguiar e Silva, significava em geral adicionar

novas propostas interpretativas. O manual vai assim acumulando modos de

entendimento da Literatura que permanecem em voga até que um outro o substitua. A

Teoria de Literatura se transformava assim numa seqüência contínua de modelos, que se

sucedem como camadas em um processo de sedimentação. Por vezes, no curto espaço

de um ano, o autor era influenciado pelas novidades do cenário dos Estudos Literários e

abdicava de suas antigas posições:

Nessa 5a edição do volume I, reescrevemos na sua quase totalidade o capítulo 5. Parece-nos que os problemas da periodização literária, à medida que se vai desagregando o paradigma formalista da Teoria da Literatura e se vai consolidando a idéia da necessidade de combinar interdisciplinarmente a história, a semiótica e a sociologia da Literatura, assumem uma relevância crescente para a inteligibilidade de todos os fenômenos da semiose literária (ibidem: Prefácio à 5a ed.).

Na passagem acima, o ano era o de 1983, e a 4ª edição havia sido lançada apenas

um ano antes! O açodamento com que os novos discursos são assimilados pelo manual

revela quão pouco autocrítica vinha se tornando a disciplina, incapaz de estabelecer

critérios sobre o que deveria e o que não deveria fazer parte de seu corpo teórico. A

passagem citada expõe o momento em que os estudos de semiótica são absorvidos pelo

manual, juntamente com novas idéias a respeito da importância da interdisciplinaridade.

É uma ocasião delicada para os Estudos Literários, que são novamente invadidos por

metodologias, objetivos e interesses advindos das ciências humanas em geral. Aguiar e

Silva, ao menos aparentemente, está atento para os problemas advindos da mistura entre

métodos e disciplinas:

Um livro científico-didático não deve ser nem um formulário reducionista, nem um repositório heterogêneo e caótico de informações, destituído de coerência teorética. Não deve escamotear os problemas e as dificuldades, não deve impor ou insinuar soluções ideologizantes, não deve desorientar, confundir ou ludibriar intelectualmente o seu leitor-aluno (ibid.:Prefácio à 4a ed., grifo meu).

Parece, entretanto, haver um abismo entre as intenções e a prática de Aguiar e

Silva. Se não se pode acusar o seu Teoria da Literatura de ser reducionista — a própria

extensão da obra lhe acode em defesa —, é difícil não ver em seu manual o “repositório

heterogêneo e caótico de informações, destituído de coerência teorética” a que ele se

refere. O estudo da Literatura é por ele apresentado como uma longa conversa que se

Page 96: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

94

estende desde a Grécia Antiga até nossos dias, parecendo estar a verdade sempre com

aquele que tem a última palavra.

Esse perigoso rumo tomado pelos Estudos Literários já havia sido percebido

pelo canadense Northrop Frye, que publicou em 1957 o livro Anatomia da crítica47.

Embora falasse de “Crítica Literária” e não em “teoria”, ele tinha em mente uma noção

ampla de crítica, que corresponde àquilo que chamo neste trabalho Estudos Literários.

Frye (1973:23) defendia como primeiro postulado para um estudo metódico da

Literatura a necessidade de transformá-lo em um corpo de conhecimento coerente e

inteligível: até o momento, dizia ele, a cronologia era o único princípio organizador

descoberto nos Estudos Literários48.

Frye (id.:24) chamava de “visão ingênua” a compreensão da Literatura como

uma espécie de bibliografia enumerativa das obras literárias, “uma vasta massa ou pilha

misturada de ‘obras’ distintas”. Para ele, se a Literatura realmente se limitasse a isso,

qualquer modo de aprendizado criterioso seria realmente impossível. Para que a crítica

seja um estudo sistemático, os textos literários devem possuir alguma característica que

permita que ela seja assim. Sua hipótese era a de que a Literatura precisava poder ser

descrita como algo mais do que um amontoado de obras, assim como, da mesma forma,

as ciências naturais fundam-se na hipótese de que há algum tipo de ordem na natureza:

Crer numa ordem da natureza, contudo, é uma inferência da inteligibilidade das ciências naturais; e se as ciências naturais chegassem a demonstrar completamente a ordem da natureza, presumivelmente esgotariam seu tema. Da mesma forma, a crítica, se é uma ciência, tem de ser totalmente inteligível; mas a Literatura, como a ordem de palavras que torna a ciência possível, é, tanto quanto sabemos, uma fonte inexaurível de novos descobrimentos críticos, e o seria mesmo que novas obras literárias deixassem de ser escritas (ibid.:25).

Embora admita ser o texto literário uma “fonte exaurível” de novos sentidos,

Frye também defendia ser fundamental reconhecer-se que há discursos sobre a

47 Há duas razões para que eu não tenha tomado o livro de Frye como objeto de meu trabalho. Em primeiro lugar, uma razão formal: ele não usa o termo “teoria da literatura”, mas “crítica literária”. Além disso, e este é o motivo principal, ele é concebido como um livro de ensaios, e não se constitui — nem pretender isso — como um manual de teoria. Embora tenha pretendido que seu livro fosse uma experimentação “sobre a possibilidade de uma vista sinóptica do escopo, teoria, princípios e técnicas da crítica literária”, ele admite que seu projeto tem lacunas que o impediriam de ser apresentado como um sistema ou como uma teoria (cf. Frye, 1973:11). Para Frye, ainda não era possível se distinguir a crítica que se pretendia científica — ele a chamava erudita — daquela que se baseava no gosto e na oscilação das modas — nos seus termos, a crítica pública. 48 Opinião que me parece contestável, uma vez que os gêneros literários são um outro bom exemplo de princípio organizador bastante fecundo e de longa história dentro do campo de estudos da literatura.

Page 97: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

95

Literatura que são sem sentido e que impedem a construção de uma estrutura

sistemática de conhecimento. Mais do que reconhecer sua existência, era necessário se

livrar deles. A lista, para ele, era ampla, e incluía os comentários auto-reflexivos, os

ideológicos e os sentimentais. Em outras palavras, Frye entendia que não poderia haver

uma Crítica Literária criteriosa se ela não empreendesse uma constante autocrítica.

Frye reconhecia também que a crítica é cercada por grande variedade de

vizinhos, com os quais é necessário entrar em contato sem abrir mão de sua

independência. Embora possa parecer interessante conhecer as disciplinas aproximadas,

isso não significa que se precise emular seus métodos ou se instaurar abordagens que

interessam aos objetivos particulares dessas disciplinas. Por exemplo, seria obviamente

possível e razoável que um sociólogo queira trabalhar com textos literários, mas, ao

fazer isso, ele não atenta — nem precisa atentar — para os valores literários da obra. De

forma inversa, o crítico literário não deve ter obrigações com a Sociologia. Para um

teólogo, por exemplo, talvez um poema de uma religiosidade ortodoxa expresse de

modo mais satisfatório seus conteúdos do que um herético, mas isso não teria

importância para a Crítica Literária. Para o ensaísta canadense, não há qualquer ganho

quando se confundem os objetivos de duas disciplinas. E como os Estudos Literários

sofriam do “vácuo de poder” que a ausência de métodos próprios havia criado, o risco

maior era sempre o de se perder a especificidade do trabalho literário em função das

metas das demais áreas do conhecimento. Ele descrevia a Crítica Literária em um estado

de ingenuidade similar aos das ciências primitivas:

Seus materiais, as obras-primas da Literatura, ainda não são considerados como fenômenos a serem explicados em termos de uma estrutura conceptual que só a crítica detém (...). É tempo de a crítica saltar para nova base da qual possa descobrir quais são as formas constitutivas ou continentes de sua estrutura conceptual. A crítica afigura-se estar muitíssimo necessitada de um princípio coordenador, uma hipótese central que, como a teoria da evolução em Biologia, veja os fenômenos com os quais lida como partes de um todo (ibid.:23).

3.1 - O MANUAL DE AGUIAR E SILVA

Contrastando com essa busca de Frye por um princípio orientador Aguiar e Silva

defendia a abertura cega aos novos modelos, alegando que o pressuposto

epistemológico fundamental de todo o ensino universitário deveria ser a consciência de

Page 98: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

96

que não existem teorias definitivas ou imutavelmente verdadeiras. Retoma-se assim a

um tema que se ia consolidando como o problema axial da Teoria da Literatura: como

equilibrar método e diversidade, fundamentos e relatividade. O problema é onipresente

não apenas no escopo da Teoria da Literatura, mas no dos Estudos Literários e das

ciências humanas como um todo. Como se verá adiante, o manual de Aguiar e Silva não

apresenta muitas respostas a esse impasse.

3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura

Como o método de exposição de Aguiar e Silva se caracteriza pela sobreposição

de discursos sobre um mesmo assunto, e como seu próprio ponto de vista é

constantemente influenciado por tais discursos, não é fácil estabelecer qual o seu efetivo

posicionamento diante dos temas. Apesar dessa dificuldade, procurei aqui sintetizar sua

argumentação a respeito do conceito de Literatura, do papel dos Estudos Literários e da

teoria.

Ainda que reconheça as dificuldades inerentes ao estabelecimento de um

conceito e o fato de ser precária toda tentativa de conceituação de algo como a

Literatura, Aguiar e Silva procura tomar posição diante do polêmico tema. Inicialmente,

critica a solução adotada por autores “positivistas” que suprimiram radicalmente tais

dificuldades, acatando a sugestão etimológica do vocábulo e transformando em

Literatura todas as obras escritas em qualquer época e por qualquer povo,

“independentemente de possuírem, ou não, elementos de ordem estética” (Silva,

1991:14). Tomando a evolução etimológica e semântica do vocábulo “Literatura”, ele

situa na segunda metade do século XVIII o momento em que o termo adquire os

significados relacionados à criação artística e ao “conjunto de textos resultantes desta

atividade criadora” (ibid.:10). Novamente a Estética, como já acontecera em Wellek &

Warren, é evocada como uma espécie de muleta dos Estudos Literários. Fala-se em

nome de critérios estéticos como se a simples menção do termo “estética” fosse

suficiente para se justificar e esclarecer o uso que se está fazendo do termo Literatura,

como se fosse uma palavra mágica capaz de elucidar aqueles mesmos problemas cuja

ignorância Aguiar e Silva acusara nos positivistas: “Como é óbvio (...) apenas nos

Page 99: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

97

interessa o [sentido] de Literatura como atividade estética, e, conseqüentemente, como

os produtos, as obras daí resultantes (Silva, 1979:16)”.

Ao considerar “óbvia” sua opção, Aguiar e Silva transforma num partis pris

aquilo que deveria ser a conclusão de um raciocínio. Sem sequer dar maiores detalhes

sob sua compreensão de atividade estética, enumera diversas compreensões de

Literatura, em autores como Aristóteles, Mukarovsky, Jakobson, Hjelmslev, Ingardem,

Zumthor etc., para, depois, optar por uma classificação lingüística da obra literária: “(...)

não será muito difícil estabelecer uma distinção entre linguagem literária e linguagem

não literária, de modo a ser possível discriminar (...) — no plano ontológico (...) — os

limites da Literatura” (ibid.:69).

A confiança de Aguiar e Silva na distinção lingüística parece total e, no contexto

de sua exposição, completamente injustificada. Afinal, logo em seguida, ele se eximirá

de elaborar um conceito de Literatura, justamente pela impossibilidade de se chegar aos

fatores determinantes da literariedade:

Não será possível, todavia, definir o conceito de Literatura através de uma fórmula mais ou menos condensada em que se tenha apenas em conta uma das qualidades assinaladas como distintivas do discurso literário. Com efeito, dado o caráter heterogêneo da Literatura, nem a ficcionalidade, nem a particular “ordem sobreposta” às exigência da comunicação lingüística usual, nem a plurissignificação constituem fatores que, isoladamente, possam definir satisfatoriamente a literariedade (ibid.:69).

Não se trata aqui de criticar a incapacidade do autor em sintetizar um conceito

de Literatura. O que faço notar são as contradições de sua exposição. Os fundamentos

de sua argumentação são invalidados por ele próprio, uma conseqüência direta da

mescla indiscriminada de pontos de vista sobre problemas literários diversos. É

compreensível que Aguiar e Silva se esforçasse para distinguir a Literatura de outras

formas textuais, mas era de se esperar que um livro de “teoria” devesse ser mais

cuidadoso no tratamento das questões-chave da disciplina.

Nas últimas edições da obra, Aguiar e Silva aumentou o grau de complexidade

de sua discussão sobre o conceito de obra literária, passando a problematizar a definição

referencial49 de Literatura, ao tomar o argumento que postula não se poder descrevê-la

“como idéia essencialística” por não haver “nenhum denominador comum para todas as

49 “Por definição referencial ou real, entende-se a definição que explica a natureza do objeto definido e por definição nominal, aquela que explica o significado de um termo” (Silva, 1991:40).

Page 100: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

98

produções ‘literárias’, a não ser o uso da linguagem”, o que obrigaria a “procurar no (s)

sujeito(s) leitor(es) o fundamento do conceito [.]” (Silva, 1991:17-18).

Referindo-se a Wittgenstein, o professor português comenta que falar em

essências conduziria à ontologização de enunciados e a esquecer-se que os conceitos são

instrumentos — uma vez que, quando se fala em essência, se estaria falando em termos

de uma determinada convenção lingüística, funcional apenas em um determinado jogo

de linguagem. Contudo, ele radicaliza o pensamento do filósofo austríaco, ao lhe

atribuir um ceticismo que tornaria “aleatória a fundamentação de qualquer teoria

científica” (ibid.:22-23). Em conseqüência, Aguiar e Silva, com a desenvoltura de quem

passa de Lukács a Stanley Fish no mesmo raciocínio, descarta Wittgenstein:

(...) os objetos (...) que são denominados com a mesma palavra apresentam uma comum capacidade para serem utilizados do mesmo modo ou de modo similar, satisfazendo ou dando uma resposta a determinados anseios, desejos e finalidade do homem. E tal comum capacidade não pode ser totalmente alheia à constituição dos próprios objetos (ibid.:27).

Amenizado o grau de indeterminação dos conceitos, aponta-se agora para a

possibilidade de que haja algo comum nas coisas que são referidas pelo mesmo nome.

Aguiar e Silva parece então mover-se de volta para um plano da referencialidade do

conceito:

(...) quando se pretende formular uma definição referencial ou real de Literatura, delimitando e caracterizando os elementos constitutivos da literariedade, o que se procura estabelecer (...) é o conjunto das propriedades específicas da arte que se designa por Literatura (...). (idem, 1991:29-30).

Retoma assim o autor o modo de conceituação empregado nas primeiras edições.

A Literatura é uma arte, a literariedade é o conjunto de propriedades específicas da obra

de arte. Mas se incorre aqui numa confusão entre palavra e conceito. Traços de

significado da palavra Literatura são trazidos para o plano da conceituação, exigindo

que o conceito “Literatura” dê conta de todos os usos que a palavra “Literatura” tem no

senso comum. Procura-se assim um objetivo impossível: o de conciliar o termo em seu

uso cotidiano, como palavra da língua, com sua função instrumental, como conceito50.

O engano de se considerar a Literatura inteiramente resistente a conceitos

consiste exatamente em pretender tornar equivalentes um conceito e uma palavra do

senso comum, como pretende Aguiar e Silva: “Por um lado, é necessário considerar a

50 Voltarei ao problema dos conceitos nos estudos literários nos capítulos finais.

Page 101: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

99

Literatura como sistema semiótico de significação e de comunicação; por outro, a

Literatura como conjunto ou soma de todas as obras ou textos literários” (ibid.:30).

Como conseqüência, chega-se sempre aos clichês aporéticos a respeito da relatividade

do conceito de Literatura:

Tem de se reconhecer, primeiramente, como inquestionável o relativismo histórico do conceito de Literatura — relativismo de que o tardio aparecimento da designação Literatura é uma reveladora prova e, ao mesmo tempo, uma conseqüência. Torna-se extremamente difícil, senão impossível, estabelecer um conceito de Literatura rigorosamente delimitado intencional e extensionalmente que apresente validade pancrônica e universal e por isso mesmo é cientificamente desaconselhável impor dogmaticamente à heterogeneidade das obras literárias produzidas durante cerca de vinte e cinco séculos (ibid.:30).

Mais uma vez há uma inadequação na caracterização de um conceito. Conceituar

algo não significa normatizá- lo dogmaticamente, mas torná- lo um objeto de estudo.

Contudo, nos Estudos Literários, de forma geral, as discussões não são conceituais, mas

sobre os sentidos da palavra “Literatura”. Não é pelo fato de as obras literárias serem,

como diz Aguiar e Silva, um “sistema aberto”, ou “um conjunto aberto de textos”, ou

por se encontrarem sempre em transformação ao longo do tempo, que a busca da

conceituação deva ser descartada a priori porque inviável.

Fiel ao seu método evasivo, o autor concluirá de modo paradoxal. Dirá haver

uma “mutabilidade diacrônica e sincrônica do conceito de Literatura”, mas também dirá

acreditar na “persistência” e na “estabilidade” de alguns valores próprios dela. Resta-

lhe, pois, a solução salomônica: “um relativismo histórico mitigado que tem sempre em

conta o condicionamento histórico-cultural, mas que não exclui a existência de certas

regularidades fundamentais ou de certos fatores invariantes” (ibid.:33).

(...) as objeções e as dúvidas sobre a possibilidade de uma definição referencial de Literatura são pertinentes sob vários aspectos, obrigam a reexaminar com novo rigor soluções teóricas rotineiras, mas revelam-se também, nalguns pontos muito importantes, mal fundamentadas, teoricamente inconsistentes e empiricamente refutáveis. Se o reconhecimento da relativa heterogeneidade diacrônica e sincrônica da Literatura constitui uma atitude correta sob o ponto de vista teorético, dever-se-á considerar como falsa e metodologicamente insustentável a posição dos que hiperbolizam essa heterogeneidade ao ponto de concluírem pela impossibilidade de se caracterizar a Literatura, a não ser através de caracterizações de tipo pragmático-nominalista. Os conceitos abertos e as “semelhanças de família” de Wittegenstein, instrumentos fecundos ao serviço do relacionismo e do relativismo históricos, não podem ser nem tão ‘abertos’ que deixem de ser conceitos, nem tão heterogêneas que se convertam em dessemelhanças, senão em antagonismos (Silva, 1991:39).

Page 102: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

100

Conciliando as correntes ao propor uma espécie de ponto de fuga a ser alcançado

em futuro incerto, Aguiar e Silva não mais reafirma, nem nega, o conceito de Literatura

com o qual trabalhava nas primeiras edições de seu livro. Esse posicionamento reticente

se tornaria característico dos manuais de Teoria da Literatura, que passam a acatar a tese

relativista como razão para não enfrentar a necessidade de explicitar seu conceito

operacional de Literatura, limitando-se a discutir os problemas relacionados à

conceituação. O relativismo vencia outra batalha dentro dos Estudos Literários.

3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários em Aguiar e Silva

É grande a dificuldade de se estabelecer quais as funções dos Estudos Literários

na concepção de Aguiar e Silva, sobretudo em virtude da amplitude dos temas por ele

abordados, o que é plenamente observável nos títulos dos capítulos que compunham

uma das primeiras edições, ainda em volume único: I – O conceito de Literatura. A

Teoria da Literatura; II – Funções da Literatura; III – A criação poética; IV – Gêneros

Literários; V – Lírica, narrativa e drama; VI – O romance; VII – A periodização

literária; VIII – Maneirismo e barroco; IX – Classicismo e neo-classicismo; X –

Rococó, pré-romantismo e romantismo; XI – Origem e desenvolvimento dos modernos

estudos de história e Crítica Literárias; XII – A História Literária segundo a

metodologia de G. Lanson; XIII – O formalismo russo; XIV – O new criticism; XV – A

estilística; e XVI – A problemática do estruturalismo51.

Desta enumeração, podem ser tiradas algumas observações relevantes. Em

primeiro lugar, o critério de sistematização dos temas é incerto: não é compreensível o

porquê de lírica, narrativa e drama constituírem um mesmo capítulo, enquanto o

romance recebe um outro isolado. O autor não apresenta nenhum argumento capaz de

explicar a razão de o romance ser uma espécie literária que necessita de um capítulo

isolado. Em edições seguintes, o capítulo sofreria modificações e se passaria a chamar

“O romance: história e sistema de um gênero literário”, elevando o romance da

condição de uma espécie narrativa a de um gênero autônomo. Um segundo ponto a se

destacar seria a enorme atenção dedicada à periodização literária e aos estilos de época,

temas muito mais pertinentes à História do que à Teoria da Literatura. Por fim, não se

Page 103: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

101

pode deixar de apontar a estranheza de haver um capítulo voltado para um autor

específico de História da Literatura, Gustave Lanson, especialmente em função de uma

distinção feita pelo próprio Aguiar e Silva:

(...) determinada a natureza da obra literária, impõe-se o estudo das possibilidades, dos fundamentos e propósitos da disciplina que nos ocupa — a Teoria da Literatura. O objeto material da Teoria da Literatura já está, evidentemente, estabelecido — a Literatura —, mas torna-se necessário discriminar o ângulo específico por que é encarado este objeto: é necessário, em suma, determinar o objeto formal da Teoria da Literatura, o qual não se identifica com o objeto formal da História Literária ou da Crítica Literária, por exemplo (Silva, 1979:73, grifo meu).

Novamente, há um claro descompasso entre o discurso de Aguiar e Silva e sua

prática: em nenhum momento se definirão formalmente quais são os objetos da Crítica,

da História e da Teoria, e quais seriam os limites entre essas disciplinas. Certo é que ele

endossa, por diversas vezes, essa divisão tríplice, em termos idênticos aos de Wellek &

Warren, no que se refere à interação entre as subdisciplinas (ibid.:77). No entanto, qual

seria exatamente o papel da teoria nesse contexto, eis uma questão, aliás básica, difícil

de se esclarecer, mesmo quando o autor trata diretamente do assunto:

Acreditamos, pois, que é possível fundamentar uma Teoria da Literatura, uma poética ou ciência geral da Literatura, que estude as estruturas genéticas do discurso literário, as categorias estético-literárias que possibilitam e condicionam a obra concreta e permitem a sua compreensão, que estabeleça um conjunto de métodos suscetível de assegurar a análise rigorosa do fenômeno literário. Negar a possibilidade de instaurar este saber no mundo profuso e desbordante da Literatura equivale a transformar os Estudos Literários em desconexos esforços que jamais podem adquirir o caráter e conhecimento sistematizado (ibid.:77).

Valendo-se de seu manual, aliás, não há como imaginar que os Estudos

Literários poderiam deixar de ser uma série de “esforços desconexos”, uma vez que

nada há dito sobre como as relações entre “estruturas genéticas do discurso literário”,

“categorias estético- literárias” e o “conjunto de métodos de análise” viriam a se

transformar em um modo de conhecimento sistematizado. Efetivamente, do modelo de

Aguiar e Silva têm-se apenas três pontos que são reforçados com freqüência:

(i) a asserção óbvia de que a Teoria da Literatura não é uma disciplina de

especulação a priori (ibid.:77);

51 Em edições seguintes o autor acrescentará capítulos como “O sistema semiótico literário” e a “A comunicação literária”.

Page 104: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

102

(ii) o alerta para a necessidade de que a Teoria da Literatura deve evitar repetir a

normatividade que arruinou a Poética e a Retórica Clássicas (ibid.:78).

(iii) a defesa de uma Teoria da Literatura que se configura e que tende a ser cada

vez mais uma área interdisciplinar, em que “avultam como privilegiadas as conexões

[dela] com a Lingüística, mas também com outros ramos do saber — sociologia,

psicologia, teoria da informação, matemática” (ibid.:78, grifo meu).

Concretamente, nas últimas versões da obra, o que se observa é uma

aproximação de Aguiar e Silva às idéias semióticas de Iuri Lotman.

(...) torna-se necessário analisar, primeiramente, a Literatura como sistema semiótico e os mecanismos do funcionamento da semiose literária; em seguida, torna-se necessário analisar a Literatura como texto literário, isto é, como realização concreta e particular daquele sistema (Silva, 1991:40).

Tais idéias estão expostas no livro A estrutura do texto artístico, lançado em

português em 1978, apenas dois anos depois do original. Ligado aos estudos de

Semiótica, Iuri Lotman foca-se principalmente nos problemas da significação do texto

artístico. Toma a Literatura como uma das formas de arte, que, por sua vez, é um entre

outros sistemas semiológicos.

A teoria de Lotman está em sintonia com uma teoria geral da comunicação.

Tomada como uma forma de comunicação de massas, a Literatura possuiria uma

linguagem própria, uma linguagem particular que se sobreporia à linguagem natural. A

Literatura consistiria assim num sistema particular de signos e regras de combinação,

adequado para a transmissão de informações não passíveis de serem transmitidas por

outro meio.

No texto literário, “não só os limites dos signos são diferentes, mas o próprio

conceito de signo é diferente” (Lotman, 1978:55). Eles não possuem um caráter

convencional, funcionando muito mais como ícones e figuras. A própria obra literária

organiza-se como um signo: “(...) cada texto artístico é elaborado como um signo único

de um conteúdo particular construído ad hoc” (ibid.:56).

Para Lotman, o objetivo do estudo de qualquer sistema de signos é a

determinação do seu conteúdo, especialmente porque “a arte é inseparável da procura da

verdade” (ibid.:46). Assim, menos que uma Teoria da Literatura, Lotman oferece uma

hermenêutica a partir da análise da estrutura textual da obra literária, baseada

Page 105: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

103

fortemente em conceito lingüísticos estruturais, como os eixos sintagmático e

paradigmático.

Não há como se dizer, entretanto, se Lotman foi a opção final de Aguiar e Silva

ou se foi apenas a última novidade dos Estudos Literários a ser acrescentada ao seu

manual.

3.2 - TEORIA, LATO SENSU

Roland Barthes, embora jamais tenha escrito um livro especificamente dedicado

à Teoria da Literatura, contribuiu de modo decisivo para os rumos tomado pela

disciplina, especialmente no Brasil, onde sua influência sobre os Estudos Literários se

faz notar até hoje. Embora as idéias por ele defendidas fossem, em larga medida,

opostas ao projeto teórico de, por exemplo, Wellek & Warren, os trabalhos sobre

Literatura produzidos por Barthes foram tomados por muitos como um discurso teórico

sobre a Literatura.

Critique et vérité, lançado na França em 1966 e com edição brasileira quatro

anos mais tarde, é um bom exemplo52. Trata-se de um livro polêmico, em que Barthes

sai em defesa do que chama de nova crítica ou crítica de interpretação, uma tendência

que para ele seria o resultado da influência de quatro grandes linhas de pensamento na

crítica francesa: Existencialismo, Marxismo, Psicanálise e Estruturalismo 53.

Barthes chamará de “lansonistas” a seus adversários, identificando-os com um

modelo de Crítica Literária acadêmica de orientação historicista e confiante no rigor e

na objetividade dos métodos filológicos. O ensaísta defende a tese de que o grande

problema deste tipo de crítica é o silenciar sobre sua condição de ser, assim como as

críticas de interpretação, uma crítica ideológica — índice, para ele, ou de ingenuidade

ou de má-fé.

(...) o lansonismo é ele próprio uma ideologia; ele não se contenta com exigir a aplicação das regras objetivas de toda pesquisa científica, ele implica convicções gerais sobre o homem, a história, a Literatura, as relações do autor e da obra (...). É certo que os postulados filosóficos são realmente inevitáveis; o que se pode censurar ao lansonismo não são seus partis pris

52 Optei por abordar apenas uma obra de Barthes sobre os estudos literários. Sua produção crítica é muito diversificada e muitas vezes contraditória, e considerá-la em sua totalidade conduziria a problemas específicos do pensamento barthesiano que extrapolam os objetivos desta tese. 53 Note-se que nenhuma dessas orientações é originária dos estudos literários.

Page 106: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

104

mas sim o fato de os calar, de os cobrir com o drapeado moral do rigor e da objetividade (Barthes, 1970:159).

Desferindo um ataque feroz aos filólogos, retratados por ele quase como idiotas

que só conseguiriam perceber o sentido literal dos textos, Barthes descreve a Literatura

como uma segunda língua, à parte da literalidade, que libertaria a leitura das regras

filológicas. A ambigüidade seria um elemento constitutivo da linguagem literária. Se, no

uso cotidiano da língua, o contexto resolve a ambigüidade, seu uso literário se

caracterizaria pela capacidade de significar mesmo fora de seu contexto (cf. ibid.:216).

Tal distinção apresenta um problema ao qual Barthes não dá a devida atenção. A

língua, e não exclusivamente a Literatura, é cheia de ambigüidades. Um enunciado da

língua cotidiana pode gerar diversos sentidos fora de seu contexto. Desta forma, seria

necessário, pois, determinar, a priori, se um enunciado é ou não literário, para estarmos

autorizados a compreendê- lo em suas múltiplas significações e não buscarmos — como

os “lansonistas” a que Barthes se referia — o sentido do enunciado em seu contexto. Em

outras palavras, tal distinção seria insuficiente para marcar a diferença entre enunciados

literários e não- literários.

Barthes procurava atacar os lansonistas utilizando as próprias armas de seus

adversários. Fazendo valer a relação profunda por eles defendida entre a obra, o autor e

seu momento histórico, ele se pergunta por que tal relação deixaria de existir quando se

tratava da obra e do tempo do crítico, lançando assim aquele que será um dos grandes

pressupostos de sua visão de Literatura, ao colocar no mesmo nível discursivo a crítica e

a obra de arte literária, elidindo desse modo as diferenças entre os tipos de discurso.

Embora tal procedimento tenha tido e até hoje tenha muitos seguidores, abolir a

distinção entre os discursos em nome de uma noção ampla de escritura é uma operação

questionável. Northrop Frye sustentava uma interessante posição epistemológica a

respeito da necessidade de uma distinção entre a obra literária e seu estudo. Para ele, o

fato de a Literatura ser constituída por palavras levava muitos a confundi- la com outras

práticas discursivas — o que podia ser visto, por exemplo, nas bibliotecas que

catalogam a Crítica Literária como uma subdivisão da Literatura. Frye defendia que a

Literatura não devia ser tomada como um “tema” entre outros, mas como um objeto de

estudo. Os Estudos Literários estariam para a Literatura assim como a História estaria

Page 107: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

105

para a ação e a Filosofia para o saber, isto é, seria uma representação discursiva de uma

atividade humana.

Os estudos sistemáticos de Literatura não produziriam, prossegue Frye, um

conhecimento imediato ou direto da Literatura, do mesmo modo que quem aprende uma

ciência natural como a Física não está aprendendo a natureza, mas as teorias físicas. Os

Estudos Literários, desta forma, conduzem ao aprendizado do conjunto de saberes sobre

a Literatura, não à obra literária em si: “(...) a dificuldade que amiúde se sente de

‘ensinar Literatura’ nasce do fato de que isso não pode ser feito: a crítica da Literatura é

tudo o que pode ser ensinado diretamente” (Frye, op.cit.:19).

Num primeiro momento, o pensamento de Barthes parece coincidir com o de

Frye, ao menos no que concerne ao problema da referencialidade:

O objeto da crítica é muito diferente; não é “o mundo”, é um discurso, o discurso de um outro: a crítica é um discurso sobre um discurso; é uma linguagem segunda ou metalinguagem (como diriam os lógicos). Daí decorre que a atividade crítica deve contar com duas espécies de relações: a relação da linguagem crítica com a linguagem do autor observado e a relação dessa linguagem-objeto com o mundo. (Barthes, op.cit:161)

Tomando a crítica como uma metalinguagem, Barthes assume uma posição

estruturalista e toma a Literatura como um sistema de signos cujo “ser” não está na

mensagem que possa vir a conter, mas no sistema desta linguagem. Ele defende a crítica

como uma tarefa “puramente formal” e “tautológica”, em que o crítico não descobriria

nada na obra, mas, ao contrário, a cobriria com a sua (do crítico) própria linguagem (cf.

ibid.:161-2). A crítica não pode pretender esclarecer um texto literário, pois não haveria

nada mais claro do que o próprio texto. Ela pode sim “engendrar um certo sentido,

derivando-o de uma forma que é a obra” (ibid.:221), como se colasse à obra uma

segunda linguagem, isto é, um novo conjunto coerente de signos.

Barthes nega que a crítica possa ser a reconstrução de uma verdade perdida ou

obscura, ou ser a procura pela verdade do outro (cf. ibid.:163). Despreza os esforços

críticos de se “respeitar a obra”, de ser “fiel à obra”, de ser preciso “atentar ao seu

sentido”. O desejo de ser verossimilhante é apontado por ele como a principal causa da

paralisação da crítica, tendo em vista que seria inviável, para o crítico, pretender falar

sobre a obra. Não haveria nada a ser dito sobre uma obra literária, a não ser que ela é

aquilo que é:

Page 108: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

106

Esta tautologia não é gratuita: finge-se primeiramente acreditar que é possível falar da Literatura, fazer dela o objeto de uma fala, mas essa fala não vai longe, porque não há nada a dizer desse objeto senão que ele é ele mesmo. O verossímil crítico termina, com efeito, no silêncio ou em seu substituto, a tagarelice (ibid.:205).

Para evitar a tagarelice tautológica, só restaria ao crítico acrescentar sua própria

linguagem e suas próprias imagens às obras. Surpreendentemente, Barthes não

considera que, com isso, o crítico as esteja deformando para nelas se exprimir, mas que

estaria, na verdade, reproduzindo-a “como um signo destacado e variado, o signo das

próprias obras” (ibid.:225-6). Barthes pretende assim demolir qualquer tipo de

compreensão de Literatura que esteja ligada à idéia de que o texto é expressão de

alguma subjetividade: “(...) a crítica e a obra dizem sempre: eu sou Literatura. (...) por

suas vozes conjugadas, a Literatura nunca enuncia mais que a ausência de sujeito”

(ibid.).

Isso não significa, para o ensaísta, que a crítica esteja autorizada a dizer qualquer

coisa, ou, nos seus termos, “delirar” (ibid.:222). Mas os motivos que impediriam o

delírio não seriam aqueles que faltariam ao discurso crítico barthesiano, segundo seus

adversários “lansonistas”. Barthes se recusa a aceitar qualquer argumento baseado na

oposição entre razão e desrazão. Fazendo-se valer, novamente, da paridade por ele

postulada entre escritores e críticos, defende que o direito ao delírio é uma conquista da

Literatura desde pelo menos Lautreamont, e que a preocupação com a razão envolveria

uma esfera de preocupação alheia ao trabalho crítico. Para ele, a ga rantia contra as

leituras extremadas seriam os constrangimentos que a forma da obra literária impõe ao

crítico. Libertado da lógica científica, o crítico é submetido à incerta e frágil lógica do

significante.

De onde viria a validade buscada em um sistema de signos, de onde viria essa

coerência perseguida, indicada na aproximação por ele feita entre o trabalho crítico e a

reflexão lógica, quando se referia à tautologia inerente a ambos? Barthes parece

reconhecer a precariedade desta lógica. É obrigado, então, a dar um passo contraditório

em sua exposição e se aproximar de modelos de compreensão da Literatura mais

tradicionais. Ele se vale, por exemplo, daquilo que chama regra da exaustividade,

quando afirma estar o crítico obrigado a engendrar um sistema de sentido que torne a

obra inteligível em sua totalidade. Ele também recupera as figuras de linguagem, os

antigos modos de descrição da Retórica Clássica, agora atualizadas nos conceitos da

Page 109: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

107

então ascendente Psicanálise: metáfora (substituição), elipse (omissão), homonímia

(condensação), metonímia (deslocamento) e antífrase (denegação) (cf. ibid.:224).

Depois de afastar, radicalmente, a crítica de qualquer tipo de estudo metódico ou

sistemático e de transformá-la num arremedo da Literatura, Barthes subitamente

condescende, ao propor uma distinção tríplice dos modos de se lidar com a Literatura: a

Ciência, a Crítica e Leitura. Tomando a obra literária como uma estrutura que contém

múltiplos sentidos, distingue, inicialmente, entre os discursos que pretenderiam dar

conta dessa totalidade de sentidos e os discursos que visariam a apenas um dentre eles:

Esses dois discursos não devem de modo algum ser confundidos, pois eles não têm nem o mesmo objeto nem as mesmas sanções. Pode-se propor chamar de Ciência da Literatura (ou da escritura) aquele discurso geral cujo objeto é, não tal sentido determinado, mas a própria pluralidade dos sentidos da obra, e Crítica Literária aquele outro discurso que assume abertamente, às suas custas, a intenção de dar um sentido particular à obra (cf. ibid.:216, grifo meu).

A essa diferenciação Barthes acrescenta uma outra, a que existiria entre a

atribuição de sentido imediata, feita de modo silencioso através da leitura, e aquela

mediada por uma atividade escrita, característica da Crítica Literária:

(...) sobre o sentido que a leitura dá à obra, como sobre o significado, ninguém no mundo sabe algo, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se estabelece para além do código da língua. (...) Passar da leitura à crítica é mudar de desejo, é desejar não mais a obra mas sua própria linguagem (ibid.:230).

A partir dessas distinções, Barthes esboça uma série de condições para a

existência de uma Ciência da Literatura. Em primeiro lugar, nega à História da

Literatura o estatuto de ciênc ia, por faltar a ela uma preocupação acerca da natureza de

seu objeto (cf. ibid.:216). Os historiadores literários se ocupariam em demasia com os

conteúdos das obras, ao passo que uma Ciência da Literatura deveria tratar das

“condições de conteúdo”, uma vez que seus objetos não seriam “os sentidos plenos de

uma obra, mas pelo contrário o sentido vazio que os suporta a todos” (cf. ibid.:217).

Barthes tem em mente uma Ciência da Literatura baseada na Lingüística,

constituída como um “modelo hipotético de descrição” (ibid.:217), que envolveria

alguns aspectos:

(i) estabelecimento de um quadro de conceitos e esforço de afinação entre os

termos teóricos;

(ii) estabelecimento de certas regras capazes de explicar certos resultados;

Page 110: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

108

(iii) pressuposição da existência no homem de uma faculdade de Literatura;

(iv) transformação das idéias de “autor” e de “obra” apenas em ponto de partida

de uma investigação que teria como objeto a linguagem: “(...) não pode existir uma

ciência de Dante, de Shakespeare ou de Racine, mas somente uma ciência do discurso”

(ibid:219);

(v) divisão entre o estudo dos elementos do nível da frase (figuras, fenômenos de

conotação, anomalias semânticas) e o estudo dos elementos superiores à frase

(estruturas narrativas, mensagem poética, textura discursiva). A esses dois focos, porém,

escaparia um resíduo que, para Barthes, seria essencial na obra: o gênio pessoal, a arte,

a humanidade.

Barthes não se aprofunda na discussão dessas condições de existência de uma

Ciência da Literatura. Revela, entretanto, que tem em mente algo como uma lingüística

do discurso, cujo objetivo não deveria ser ensinar os sentidos da obra, mas descrever os

mecanismos pelos quais os sentidos são engendrados por ela. Admite, contudo, que tal

disciplina não teria como dar conta sozinha do objeto Literatura, e que a Ciência da

Literatura precisaria se valer da História, “que lhe dirá a duração, muitas vezes imensa,

dos códigos segundos (como o código retórico), bem como da Antropologia, que

permitirá descrever por comparações e integrações sucessivas a lógica geral dos

significantes” (ibid.:220-1).

Creio não ser injusto com Barthes dizer que sua opção, ao longo de sua carreira,

foi pela Crítica e não por seu modelo de Ciência da Literatura. Sua proposta metódica

de estudo da Literatura sucumbiu ante sua idéia de Crítica como uma atividade criativa,

assistemática e engajada nos grandes modelos de pensamento da época — Marxismo,

Existencialismo, Psicanálise, Estruturalismo. Devo enfatizar que Barthes jamais

considerou as profundas diferenças, por ele estabelecidas, entre ciência e crítica como

indicadoras de um prejuízo para a segunda, uma vez que esta conteria uma “ironia

barroca”, que potencializaria as formas significantes da linguagem (ibid.:228) e

exploraria aspectos que escapariam àquela.

Por vezes, tem-se a impressão de que o Barthes escritor matava

progressivamente o Barthes crítico54, porém, noutras vezes tem-se a impressão

54 Barthes, afinal, talvez fosse um bom escritor, mas não um bom crítico, nas palavras de Costa Lima (1981:208): “a última fase do Barthes, a sua fase mais narcisista, em que ele passa a fazer o ‘Barthes par lui-même’, mostra como, afinal de contas, Barthes sempre foi um espelho. E um crítico-espelho não é um

Page 111: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

109

contrária, especialmente quando a Literatura passa a ser por ele descrita como uma

espécie de crítica da linguagem55. Em tais proposições, os críticos não se distinguem

mais do escritor, agora descrito dogmaticamente como “aquele para quem a linguagem

constitui problema, que experimenta sua profundidade, não sua instrumentalidade ou

sua beleza” (ibid.:210). Eliminando os gêneros discursivos, abolindo as diferenças entre

os escritores e obcecado por uma crença quase mística nos poderes da linguagem, tudo

o que restou, para Barthes, foi tomar a escrita como um triste solilóquio metalingüístico:

Se a crítica nova tem alguma realidade, ela consiste nisso: não na unidade de seus métodos, ainda menos no esnobismo que, segundo se diz comodamente, a sustenta, mas na solidão do ato crítico, doravante afirmado, longe dos álibis da ciência ou das instituições, como um ato de plena escritura. (...) o escritor e o crítico se reúnem na mesma condição difícil, em face do mesmo objeto: a linguagem (ibid.:210).

Repleto de imagens, figuras e frases de efeito, o discurso barthesiano encobre as

inúmeras contradições existentes em sua argumentação. Um bom exemplo pode ser

observado quando ele descreve a atividade crítica como “uma série de atos intelectuais

profundamente engajados na existência histórica e subjetiva (...) daquele que os realiza”

(ibid.:160). Se a crítica é um ato de criação intencional e é modulada pelas condições de

vida de seu autor, por que também não o seria a obra literária, uma vez que Barthes

mesmo a igualou ao discurso crítico? Ele se vale aqui de um pressuposto com o qual ele

próprio parece não compactuar ao longo de sua vida intelectual: o de que o sentido de

um texto é, ao menos parcialmente, condicionado pelo contexto de produção. E, indo

mais além, cabe a pergunta: como a crítica pode reforçar a ausência da subjetividade da

linguagem — como foi mencionado anteriormente — e, ao mesmo tempo, ser o efeito

da ação de uma subjetividade?

Barthes também não consegue harmonizar sua premissa da ausência do sujeito

na Literatura com as teses da totalidade de significação da obra e com sua aceitação das

figuras de linguagem como mecanismos de produção de efeitos retóricos. De fato, é

difícil, sem supor a existência de algum tipo de consciência criadora, explicar o porquê

de haver totalidade significante apenas em obras literárias, e não, por exemplo, num

crítico, porque o que fundamentalmente o analista (ao menos em princípio) deveria ser seria aquele que estabelece uma palavra entre o modo como ele recebe alguma coisa e aquilo que independe da recepção dele. Ora, se a minha escrita fundamentalmente é um speculum, é um espelho da minha reação diante do texto, então não estou falando do texto, estou falando de mim a pretexto de falar do text o” (Lima, 1981:208). 55 Barthes fazia uma analogia com a Filosofia, que seria a crítica da razão.

Page 112: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

110

conjunto aleatório de palavras, ou o porquê de as figuras de linguagem serem

recorrentes e funcionais. Mas ele se trai quando, ao atacar a verossimilhança que se

exigia do crítico, afirma: “(...) o escasso filete de fala que lhe deixam [ao crítico] todas

as suas censuras só lhe permite afirmar o direito das instituições sobre os escritores

mortos” (ibid.:205). Se a ausência do sujeito é a expressão máxima tanto da crítica

como da Literatura, qual a importância dos “direitos do escritor” para invalidar a crítica

ao uso institucional que os Estudos Literários acadêmicos fariam da Literatura?

A paridade postulada entre escritores e críticos ignora a obra literária como um

ato de comunicação56. Em Barthes, a Literatura se transforma num produto de, por e

para a linguagem, e a tarefa crítica num jogo de linguagem em que não é clara a razão

de se precisar de uma obra literária para jogá- lo. Na encruzilhada em que se colocou,

entre a escolha da tagarelice e o silêncio, Barthes negligenciou os matizes do segundo

caminho. A busca pelo “verossímil” talvez não conduzisse necessariamente ao silêncio

absoluto, mas a uma cautela sóbria que, quem sabe, evitaria a tagarelice que a frágil

“lógica do significante” detonou nos Estudos Literários.

56 Desprezar a literatura como um ato de comunicação, isto é, não tomar o texto literário como o produto de um outro indivíduo que tem algo a comunicar, constitui-se como um modo de individualismo extremo cujas conseqüências éticas extrapolam os limites deste trabalho.

Page 113: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

111

4 - A ERA DAS CRÍTICAS

Nos anos 80, os problemas da Teoria da Literatura alcançaram seu auge, como

ficou demonstrado no resultado da pesquisa promovida pela New Literary History

apresentado na introdução deste trabalho. Fragilizada em virtude das muito distintas

concepções sobre sua natureza e função, a teoria passou a ser objeto de interrogações

cada vez mais freqüentes a respeito de sua utilidade e relevância para os Estudos

Literários. Como os próprios teóricos da Literatura falhavam ou se eximiam de

circunscrever seu objeto de estudo, o “vácuo” criado por suas omissões e perplexidades,

de que falava Frie, passou a ser preenchido por discursos que começaram a pôr em

dúvida a legitimidade e especificidade da disciplina.

Tome-se como exemplo Para uma crítica da Teoria Literária, de Constanzo Di

Girolamo, lançado em português em 198557. Baseando-se na glossemática do

dinamarquês Louis Hjelmslev, ele atacava o que chamava de falsas hipóteses, “que se

quer fazer crer serem universais” e que “são apresentadas como verdades científicas” da

Teoria da Literatura (Di Girolamo, 1985:8).

Para Girolamo, o campo da investigação literária estaria tomado por uma série

de abordagens parciais e dogmáticas comprometidas com um ideal inalcançável:

determinar as marcas específicas do texto literário. Tal tarefa seria simplesmente

irrealizável, pois seriam mutáveis, no tempo e no espaço, os elementos que os grupos

sociais identificam como literários. Seria sempre o público, em última instância, que

decidiria se um texto é ou não literário e que se disporia ou não a recebê- lo e avaliá- lo

por uma perspectiva estética.

Não haveria, portanto, naquilo que se chama Literatura, quaisquer traços que

justificassem um tratamento diferenciado em relação aos outros produtos de linguagem.

Em conseqüência, os instrumentos de trabalho de um estudioso de Literatura poderiam e

57 O original é de 1978.

Page 114: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

112

deveriam ser os mesmos de um lingüista. O juízo de literariedade, por mais paradoxal

que possa parecer, não seria uma responsabilidade dos Estudos Literários, mas da

Sociologia e da história da cultura.

Di Girolamo defendia a criação de uma disciplina, a análise do texto, que estaria

para os atos de fala assim como a Lingüística está para a langue saussuriana. Tal

disciplina ignoraria o que certa época entende por literário, e trataria a Literatura — cuja

“função poética não é intrínseca ao texto, mas resulta exclusivamente (...) de

mecanismos do seu funcionamento social” (ibid.:105) — como um fato lingüístico

como outro qualquer.

O livro de Di Girolamo58 é apenas um exemplo entre muitos, uma vez que a

produção de “discursos teóricos” sobre a Literatura era intensa no período — muitos,

como esse, advindos de campos fora do âmbito restrito dos Estudos Literários. Já os

manuais perdiam gradativamente sua força e utilidade, uma vez que se tornava cada vez

mais inglória a tentativa de se sintetizar a miríade de produções discursivas sobre a

Literatura. No campo editorial voltado para o ensino da Literatura em nível superior,

tornaram-se freqüentes, especialmente em língua inglesa, os lançamentos de readers,

coletâneas de ensaios sobre a Literatura reunidos sob algum título que mencionasse o

termo “teoria”. O aparecimento de tais compilações — reuniões de ensaios autônomos,

de autores variados, às vezes de várias épocas, sobre diversos temas ligados ao estudo

da Literatura — é o sintoma de que os Estudos Literários haviam aberto mão da

necessidade de se sistematizar a disciplina Teoria da Literatura.

Um bom exemplo deste tipo de obra é Théorie de la Littérature, organizado por

Aron Kibédi Varga, lançado em 1981 na França e traduzido em Portugal no mesmo ano.

Eduardo Prado Coelho, prefaciador da versão portuguesa, apresenta-o como sucessor

dos manuais que dominaram o ensino superior da Literatura em Portugal, e supunha que

o livro viesse a substituir, em importância, os manuais de Kayser, Wellek & Warren e

Aguiar e Silva. A coletânea, porém, além de se ressentir da ausência de um princípio

organizador — que bem ou mal se fazia presente nas obras que a antecederam —,

apresentava poucas novidades: retoma os antigos modos de se pensar a Literatura —

Retórica, Estilística, História —, os problemas das relações dos Estudos Literários com

outras disciplinas e introduz as novidades da área — as teorias da recepção e semióticas.

58 A decisão de comentar o livro de Di Girolamo deve-se ao fato de o termo teoria da literatura ser

Page 115: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

113

Nada que o próprio Aguiar e Silva ainda não estivesse fazendo com as contínuas

edições de seu manual.

Uma das poucas obras do período que talvez mereça a denominação de manual é

Teoria da Literatura: uma introdução, de Terry Eagleton, lançado em inglês em 1983 e

publicado em português no mesmo ano. A ressalva explica-se por ser o livro uma crítica

ao percurso histórico da teoria, combinada a uma defesa intransigente de um certo ponto

de vista sobre os Estudos Literários, mas que está longe de ser uma exposição

sistemática de uma proposta teórica de estudo da Literatura. O caráter do livro é

bastante compreensível quando se leva em consideração o estado da teoria naquele

momento — a essa altura, longe de ser uma disciplina que estudava a Literatura,

tornara-se muito mais um problema a ser encarado pelos Estudos Literários.

4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO

Partindo do tradicional questionamento acerca da natureza da Literatura,

Eagleton se negará a conceituá- la, por entender que toda e qualquer compreensão de

Literatura é sempre condicionada por julgamentos de valor que extrapolam os limites

do literário. Ele admite que usa as palavras “Literatura” e “literário” apenas por não

dispor de termos mais adequados (Eagleton, 2003:15). Ainda assim, não se privará do

capítulo introdutório, comum a todos os manuais comentados até agora, em que se

discutem os problemas referentes à conceituação do objeto de estudo.

Eagleton recusa as definições que relacionam a Literatura com a ficção.

Aludindo aos problemas inerentes às frágeis fronteiras entre as noções de factual e de

ficcional, retoma um argumento recorrente nas discussões sobre o tema, o de que

haveria criação e imaginação também em obras reconhecidas como não ficcionais —

filosóficas, científicas, teológicas, históricas. Teria sido somente a partir do

Romantismo que as definições de Literatura passaram a se enquadrar nessas categorias

de obras criativas e imaginativas (ibid.:24), gerando as bases da Estética moderna, mas a

pretensão de haver um objeto ou uma experiência passíveis de serem isolados e

pensados sob uma categoria como a da beleza seria um efeito da alienação da arte e

conseqüência direta de um momento histórico em que a Literatura deixava de ter uma

mencionado já no título da obra.

Page 116: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

114

função óbvia. Os ideais de uma arte autônoma, portanto, não seriam nada além de uma

tentativa de defesa desesperada dos artistas contra o processo de mercantilização da

arte, através da glorificação da sua inutilidade. Em outras palavras, ele propõe que se

entenda a ligação entre arte e autonomia da imaginação como diretamente relacionada

aos efeitos do capitalismo industrial sobre os artistas (cf. ibid.:27).

Esse é o modo característico de exposição de Eagleton: misturando dados

históricos precisos, comentários político-econômicos pertinentes e uma indiscutível

habilidade retórica, ele condiciona os temas à sua perspectiva particular, e invalida —

quando não ridiculariza — os modos de pensar que lhe são adversos. Na situação

descrita acima, ele faz uma abordagem parcial do problema, uma vez que haveria

diversos modos de se pensar a definição de ficcional. A ficção não precisa ser,

necessária e exclusivamente, associada às idéias de obras de criatividade ou de

imaginação — pode-se, por exemplo, pensá-la nos termos de Searle 59, simplesmente

como algo ao qual não cabe uma verificação em termos de verdade e falsidade.

Para defender sua posição de que é impossível se conceituar a Literatura, o

ensaísta se apóia num argumento recorrente no âmbito dessa discussão: o de que obras

tradicionalmente entendidas como não-ficcionais foram — ou são — consideradas

Literatura. Eagleton, porém, evita uma pergunta inevitável e que não poderia ser

ignorada: tais obras são coerentemente avaliadas como ficcionais? E quem as avalia

assim? O silêncio sobre a questão nada mais, do que um subterfúgio que lhe facilita a

demonstração de que não é possível se estabelecer um conceito trans-histórico de

Literatura. Como já acontecera em Aguiar e Silva, a conceituação é inviabilizada por se

pretender que ela dê conta de todos os sentidos e usos que a palavra já possuiu e poderá

vir a possuir ao longo da história.

A segunda tentativa de definição rechaçada por Eagleton é aquela associada aos

trabalhos dos formalistas russos, que aventavam a hipótese de ser possível se definir a

Literatura a partir de uma perspectiva lingüística. A obra literária seria, para eles, o

resultado de um determinado uso de linguagem, um uso que transformaria ou

intensificaria a potência da linguagem comum, produzindo uma “desconformidade entre

os significantes e os significados” (ibid.:3), e que chamaria atenção para a materialidade

do texto literário. Eagleton observa com acerto que o desprezo dos formalistas pelo

59 John Searle . Speech acts: an essay in the philosophy of language. Londres: Cambridge U. P., 1969.

Page 117: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

115

estudo dos conteúdos da obra de arte literária — constantemente apontado por seus

detratores — não representava a negação das profundas relações entre arte e realidade

social, mas indicava que não deveria caber ao trabalho crítico dar conta dessa questão.

O objeto do trabalho crítico seria os elementos literários formais, os artifícios de

composição de uma obra: som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas

narrativas.

Noções como a de estranhamento (ou desfamiliarização) — elaboradas a

partir da descrição de alguns efeitos causados pela transgressão das normas lingüísticas

por certas obras literárias — são contestadas por Eagleton (idem:6). Em primeiro lugar

porque, como nem toda quebra da norma é literária, a noção de desvio seria incapaz de

funcionar como um elemento de distinção entre textos literários e não- literários. Além

disso, a idéia de desvio pressupõe, necessariamente, a existência de um padrão, porém,

algo como um grau zero da linguagem não passaria de uma formulação abstrata sem

nenhuma correspondência na realidade. A língua se realiza de modo muito distinto por

diversos grupos sociais e simplesmente não haveria nada que pudesse ser chamado de

“linguagem comum”, a partir da qual o desvio se produziria:

A idéia de que existe uma única linguagem normal, uma espécie de moeda corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade é uma ilusão. (...) Até mesmo o mais ‘prosaico’ do séc. XV pode nos parecer ‘poético’ hoje devido ao seu arcaísmo (ibid.:6-7).

Ambos os comentários são pertinentes e pouco suscetíveis à contestação.

Contudo, a argumentação do ensaísta peca novamente por simplificar em demasia o

pensamento de seus adversários. Não se pode inferir da argumentação dos formalistas

que eles acreditassem haver apenas uma linguagem comum, ou que o desvio seja algo

trans-histórico, tampouco que todo desvio é poético. Curiosa e paradoxalmente, o

próprio Eagleton entende que os formalistas estavam cientes do caráter social e histórico

das noções de norma e desvio, isto é, que eles sabiam que “o caráter ‘literário’ advinha

das relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sendo, portanto, uma

característica perene” (ibid.:7).

De modo semelhante, não é pertinente inferir que o formalismo propusesse a

identificação direta e imediata entre a literariedade, entendida como um certo uso de

linguagem, e os usos metafóricos da língua. Mas é graças ao modo superficial com que

aborda a contribuição dos formalistas aos Estudos Literários que Eagleton — valendo-

Page 118: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

116

se de demonstrações óbvias, como a de haver metáforas em qualquer uso de língua, e

não exclusivamente nos usos literários — pode chegar a ridicularizá- los, e transformá-

los numa espécie antiquada e pitoresca de estudiosos de Literatura.

O modo apressado com que descarta algumas propostas do formalismo pode ser

explicado pela intenção de Eagleton em defender o diferencial da Literatura como sendo

um traço contextual, e não textual. Ele pensa a distinção da Literatura sobretudo em

termos de utilidade. A obra literária seria um “discurso não-pragmático” que, ao

contrário dos outros textos, não teria “nenhuma finalidade prática imediata” (ibid.:10).

Com isso, ele esclarece o porquê de não querer se imiscuir na tarefa de conceituar a

Literatura: ela não poderia ser definida de modo objetivo simplesmente porque sua

definição dependeria da maneira pela qual uma obra é lida, e não de sua natureza. E

como há muitas maneiras de se ler uma obra...

Trata-se de uma boa desculpa, mas não de um bom argumento. Confundem-se

aqui os possíveis usos de uma coisa com sua definição conceitual. Empregando aqui um

tipo de imagem aproximada às utilizadas pelo próprio Eagleton, não é porque alguém

possa ter sido atacado a enxadadas que as enxadas deverão deixar de ser definidas como

um instrumento de capinar ou de revolver a terra. Relacionar diretamente os usos

contingentes com os conceitos é entregar ao acaso das circunstâncias a possibilidade de

se refletir sobre o mundo.

Com um raciocínio muito próximo ao de Stanley Fish — embora não o cite

nominalmente nesta passagem60 — Eagleton entende que qualquer texto pode ser lido

de modo pragmático ou não, isto é, pode ser lido ou não como Literatura. Endossando

John M. Ellis, ele se concentra numa idéia de obra literária como um texto não-

específico que, por alguma razão, é altamente valorizado. Literatura seria pois um

termo funcional e não ontológico (cf. ibid.:12-13).

Ocorre, porém, que, ao superestimar a importância do modo através do qual

a obra é lida, em detrimento de sua natureza, Eagleton torna misteriosa e pouco

60 Em uma passagem mais adiante, Eagleton não parece estar muito convencido dos argumentos de Fish: “(...) não há obra literária ‘objetiva’ (...). O verdadeiro escritor é o leitor: descontente com a mera co-participação iseriana na empresa literária, os leitores agora derrubam os padrões e se instalam no poder. (...) a crítica é apenas uma explicação das reações experimentadas pelo leitor a uma sucessão de palavras na página. (...) Tudo no texto (...) é produto da interpretação, e de modo algum constitui algo dotado de uma realidade factual. Isso suscita uma indagação intrigante, qual seja saber o que Fish acredita estar interpretando quando lê. Sua resposta a essa questão, de uma sinceridade comovente, é que não sabe — mas ele também acha que ninguém sabe” (Eagleton, 2003:117).

Page 119: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

117

funcional a distinção, por ele mesmo proposta, entre discursos pragmáticos e não-

pragmáticos, uma vez que a “pragmaticidade” dos textos seria apenas um efeito

direto da escolha de uso feita pelos leitores:

O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de Literatura, então, ao que parece, o texto será Literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado (ibid.:11).

Como os julgamentos de valor interferem diretamente na compreensão de

ser ou não literária uma obra, e como, além disso, as definições de Literatura são

historicamente condicionadas, Eagleton propõe que se deve abandonar a ilusão de

que a Literatura possa ser uma categoria objetiva (no sentido de eterna e imutável):

“Qualquer coisa pode ser Literatura, e qualquer coisa que é considerada Literatura,

inalterável e inquestionavelmente, (...) pode deixar de sê- lo” (ibid.:14-15).

De fato é possível se supor, como faz Eagleton, que possa vir a haver uma

sociedade para a qual Shakespeare não seja mais relevante, e que tal condição

possa ser resultado de um enriquecimento, e não de um embrutecimento, da

espécie humana. Mas o que é devastador em tal hipótese não é admitir que, com tal

ocorrência, se estariam perdendo os cânones literários, mas que toda uma vasta

gama de experiências humanas a que as obras de Shakespeare dizem respeito teria

deixado de fazer sentido. Hipóteses radicais deste tipo, em que se lança mão da

possibilidade extrema de que, de súbito, tudo pode deixar de ser o que é, não

podem ser tomadas como uma justificativa para que se inviabilize todo e qualquer

esforço de se organizar e de se sistematizar um objeto de estudo. Isso porque

garantir a imutabilidade de seus objetos não pode ser o propósito nem a aspiração

de uma proposta teórica.

Porque históricos, os conceitos e os modelos teóricos devem ser propostos e

discutidos no âmbito de sua historicidade, o que não implica dizer que sejam

incondicionalmente relativos e que não possam ser contestados, criticados,

invalidados ou reformulados.

Page 120: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

118

4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA

Para que se compreenda melhor a noção de Literatura defendida pelo ensaísta, é

necessário entender suas concepções de Estudos Literários e de teoria. No entanto,

formular suas respostas às duas outras questões metodológicas desse trabalho requererá

procedimentos distintos dos utilizados até aqui com os outros manuais. Isso porque sua

posição é bastante distinta daquela dos autores anteriormente comentados. Tomando a

“crise no campo dos Estudos Literários” como “uma crise da definição da própria

matéria” (ibid.:294), isto é, uma crise referente à própria compreensão do objeto

“Literatura”, ele acredita, de fato, estar fazendo não uma introdução ao estudo teórico da

Literatura, mas o seu necrológio (ibid.:281).

A compreensão que Eagleton tem dos Estudos Literários está diretamente

relacionada à importância por ele atribuída aos julgamentos de valor em toda e qualquer

abordagem de uma obra de Literatura. Para o ensaísta, sempre interpretaríamos “as

obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses” (ibid.:16-7). Ele

contesta a suposta isenção da descrição “objetiva” dos fatos, pois todas as afirmações

ditas factuais pressuporiam juízos que poderiam vir a ser questionados. Como não

haveria possibilidade de observações desinteressadas e como todas as afirmações são

feitas dentro de uma rede mais ou menos discreta de valores, os interesses seriam

“constitutivos de nosso conhecimento, e não apenas preconceitos que o colocam em

risco” (ibid.:19). A essa estrutura de valores, muitas vezes oculta, que dá forma a nossos

julgamentos e afirmações, Eagleton chama de ideologia (cf. ibid.:20).

Em seu modelo, juízos de valor e ideologia estão intimamente ligados. Por essa

perspectiva, não faz sentido se pensar a Literatura como uma categoria “objetiva”, nem

se pode dizer que ela é um capricho da subjetividade, pois os juízos de valor

supostamente subjetivos têm uma estreita relação com as ideologias sociais (ibid.:22).

Com isso, ele conclui: “A Literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma

ideologia” (ibid.:30).

Se a Literatura é uma ideologia, se os Estudos Literários, como os conhecemos,

são ideológicos, que tipo de atividade crítica o autor tem em mente, que seja capaz de

dar conta de tais barreiras ideológicas e, ao mesmo tempo, fazer jus ao estatuto de

disciplina acadêmica? Ele ensaia uma descrição pouco restritiva: “Talvez a Crítica

Page 121: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

119

Literária e a Teoria Literária signifiquem apenas qualquer manifestação (em certo nível

de ‘competência’, sem dúvida), sobre um objeto chamado Literatura” (ibid.:272).

Mas qual seria o “nível de competência” que transformaria uma opinião

qualquer sobre a Literatura num discurso teórico ou crítico? O ensaísta não está

inclinado àquela “euforia ecumênica” que celebra “a pluralidade dos métodos críticos”

(ibid.:272). Ele adverte que alguns métodos seriam mutuamente incompatíveis, e além

disso muitos trabalhos críticos seriam francamente avessos à qualquer tipo de método. E

na discussão gerada sobre os pressupostos de cada um, estes últimos seriam os piores

adversários, “já que o poder da ideologia sobre eles é mais acentuado em sua convicção

honesta de que fazem leituras ‘inocentes’” e de que não dependeriam de uma estrutura

de suposições ideologicamente condicionada (ibid.:273).

Eagleton crê que não há consenso capaz de harmonizar os estudiosos da

Literatura, pois conflitos como esse “só podem ser resolvidos unilateralmente”

(ibid.:273). A resolução da crise passaria pela discussão de problemas que se situariam

além dos limites cobertos pelo espectro dos Estudos Literários, a começar pelo próprio

status dos profissionais da área, descritos como uma classe intermediária, que nem

conseguiria superar as ideologias nem se uniria a elas. O surgimento dos Estudos

Literários acadêmicos teria sido uma resposta ao “amadorismo elegante” da crítica

impressionista que teria procurado substituir o diletantismo por um profissionalismo

organizado e que se justificasse perante os cofres públicos (cf. ibid.:274).

Esse “profissionalismo” seria, contudo, totalmente destituído de justificativa

social. A falta de objetivos claros nos profissionais da área seria um reflexo da condição

ambígua que os Estudos Literários acadêmicos teriam no mundo atual. Se a deferência

capitalista à arte não passaria de uma hipocrisia — exceto quando se trata dos altos

investimentos do mercado internacional das artes — , é também uma realidade o fato de

que os Estados capitalistas ainda alocam recursos nos departamentos de humanidades

das universidades. Eagleton descreve tais departamentos, em termos obviamente

althusserianos, como uma “parte do aparelho ideológico do moderno Estado capitalista”

(ibid.:275-6) que contém uma forma de conhecimento que contradiz as prioridades

desse mesmo Estado. Entretanto, o conteúdo desse saber não representaria uma ameaça

para o Estado, porque os Estudos Literários se caracterizariam exatamente por se

constituírem como um modo de manipular tais conteúdos numa linguagem aceitável. O

Page 122: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

120

que se diz, dentro dos Estudos Literários, não poria em risco o status quo, sejam

posições moderada ou radicais, porque respeitariam a uma forma específica de discurso.

Os teóricos, críticos e professores de Literatura são (...) guardiões de um discurso (...). O discurso, em si, não tem um significado definido, (...) é antes uma rede de significantes capaz de envolver todo um campo de significados, objetos e práticas. Certos escritos são selecionados como mais redutíveis a esse discurso do que outros; a eles dá-se o nome de Literatura, ou de “cânone literário” (ibid.:277).

Em outras palavras, os Estudos Literários seriam os responsáveis pela criação e

pela administração de uma ideologia chamada Literatura, um tipo de discurso dentro do

qual os conteúdos são tratados de modo a torná- los, social e politicamente, inofensivos.

Eagleton se apóia em dois pontos nessa descrição dos Estudos Literários: não

haveria, em termos ontológicos, um objeto que possa ser chamado Literatura, e não

haveria uma técnica ou um saber que seja restrito à Literatura. Os Estudos Literários

existiriam sim, mas como um conjunto de técnicas discursivas cujo raio de ação

extrapola, em muito, as fronteiras daquilo que eles mesmos descrevem como seu objeto

— a “Literatura”.

A proposta de Eagleton é a de que muitos textos situados além do espectro

coberto pelos Estudos Literários poderiam ser tão ricamente significativos quanto

aqueles ditos literários. E seria exatamente esse o grande impasse experimentado pela

área naquele momento: admitir-se ou não capaz de lidar com discursos que ela não

considera como literários. Aceitar o desafio seria perder a sua especificidade e deixar de

se denominar área de Estudos Literários. Negá-lo, por seu turno, implicaria dizer que

esses outros discursos deveriam ser analisados por outras disciplinas, pois o interesse

dos Estudos Literários se resumiria às obras literárias, “porque a Literatura é mais

valiosa e compensadora do que qualquer outro texto sobre o qual de poderia construir o

discurso crítico” (ibid.:278). Para Eagleton, essa segunda opção é falsa:

(...) muitos filmes e obras da filosofia são consideravelmente mais valiosos do que muita coisa incluída no “cânone literário”. Não que sejam valiosos de maneiras distintas: poderiam apresentar objetos de valor no sentido atribuído à palavra pela crítica. Sua exclusão daquilo que é estudado ocorre não porque não sejam “redutíveis” ao discurso: é uma questão da autoridade arbitrária da instituição literária (ibid.:278).

A argumentação de Eagleton é absurda. Após ter abolido, em sua exposição, a

possibilidade de haver um objeto chamado Literatura, ele agora pode fundir os juízos

de valor aos juízos ontológicos e afirmar não haver diferenças entre um filme e uma

Page 123: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

121

obra literária. Além do mais, a atenção dos Estudos Literários a algo que se costuma

chamar Literatura nunca foi justificada como uma declaração da superioridade desse

objeto sobre outras formas culturais, assim como não se deve supor que um médico se

especializa em cardiologia, e não em pneumologia, por achar que os pulmões não são

tão importantes quanto o coração.

A argumentação do ensaísta baseia-se no seguinte raciocínio: como a Literatura

é uma ideologia criada pelos Estudos Literários e esses são os responsáveis por atribuir

as características que pensam distinguir naquela, eles não teriam como justificar a

limitação de seu objeto — afinal, eles poderiam conceber a Literatura como bem

entendessem. Isso só não ocorreria, entretanto, porque os Estudos Literários possuiriam

uma “sectária intolerância ao nível do significante” (ibid.:279). Os exemplos a que

Eagleton alude são, no mínimo, questionáveis: ele menciona que não é possível deixar

de perceber que os mesmos instrumentos estruturalistas que podem ser aplicados ao

Lost Paradise, de Milton, “podem ser aplicados ao jornal Daily Mirror” (ibid.:280).

Ora, antes de mais nada, não parece ser um problema dos Estudos Literários se seus

métodos — no caso em questão, nem se trata de um método originário dos estudos de

Literatura — são capazes de dar conta de outros objetos culturais, ou se são utilizados

por outras disciplinas. Além disso, talvez se devesse perguntar a Eagleton se a aplicação

de um tratado de versificação ao mesmo periódico obteria resultados tão positivos.

Eagleton pretende resolver o problema dos Estudos Literários da forma mais

sumária possível: extinguindo o problema. Ao eliminar a existência de algo que possa

ser descrito como Literatura, ele torna todas as perguntas sobre o tema vazias. Sendo a

Literatura, como um objeto específico do conhecimento, uma ilusão, acredita que seria

mais vantajoso entendê- la:

(...) como um nome que as pessoas dão, de tempos em tempos e por diferentes razões, a certos tipos de escrita, dentro de todo um campo daquilo que Michel Foucault chamou de “práticas discursivas”, e que se alguma coisa deva ser objeto de estudo, este deverá ser todo o campo de práticas, e não apenas as práticas por vezes rotuladas, de maneira um tanto obscura, de “Literatura” (ibid.:281).

Diluída a Literatura no conjunto indiscriminado dos discursos, Eagleton pode

aspirar agora ao renascimento da antiga Retórica, uma disciplina que se dedicasse ao

estudo geral dos discursos, dos modos como eles são produzidos, dos efeitos que são

por eles gerados. Ele admira os retóricos clássicos por terem conseguido um meio termo

Page 124: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

122

entre humanismo e formalismo, pois tomavam as estruturas lingüísticas sempre em

função de suas finalidades sociais.

Ela [a retórica] não se preocupava se o objeto de sua investigação era oral ou escrito, poesia ou filosofia, ficção ou historiografia: seu horizonte era apenas o campo da prática discursiva na sociedade como um todo, e seu interesse particular estava em ver tais práticas como formas de poder e de desempenho (ibid.:282).

O retorno ao campo da Retórica resgataria, segundo Eagleton, os Estudos

Literários dos modismos que tomam a Literatura por “um objeto particularmente

privilegiado”, e o “elemento ‘estético’ como algo separáve l dos determinantes sociais”

(ibid.:283). Uma disciplina voltada para o estudo dos discursos como um todo poderia

reunir em si os interesses das diversas correntes dos Estudos Literários: os aspectos

formais da linguagem (do estruturalismo, da semiótica, dos formalismos em geral), os

efeitos dos discursos nos leitores (das teorias da recepção), as implicações com o poder

e o desejo (da desconstrução e da psicanálise), os efeitos transformadores do discurso

(do humanismo liberal). Tal prática seria ainda superior aos atuais Estudos Literários

porque poderia justificar sua atividade em termos de utilidade, uma vez que seria uma

atividade crítica num sentido amplo, pois, para Eagleton, as críticas de caráter

estritamente formal não teriam como responder à pergunta sobre sua utilidade.

Até aqui, Eagleton apenas promoveu um deslocamento do problema. Mesmo

que o objeto dos atuais Estudos Literários passasse a ser, de súbito, as “práticas

discursivas”, não há como não se supor que, no âmbito dessa “Nova Retórica”, não

acabariam sendo recolocadas as questões a respeito das distinções entre os tipos de

discurso e reintroduzidos os problemas referentes um certo tipo de discurso outrora

chamado Literatura. Aparentemente ciente dessa fragilidade em seu argumento,

Eagleton estende seu projeto uma pouco mais além.

4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS

Eagleton postula que há dois modos de se justificar a existência de uma teoria:

(i) em termos de seu método ou (ii) em termos de seu objeto. Usa essa distinção para

novamente desqualificar a possibilidade de existência de uma Teoria da Literatura:

Qualquer tentativa de definir a Teoria Literária em termos de um método característico está destinada ao fracasso. A Teoria Literária deve refletir a

Page 125: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

123

[sic]61 natureza da Literatura e da Crítica Literária. Mas são muitos os métodos da Crítica Literária (...) Esses métodos nada têm de significativo em comum. Na verdade, têm mais em comum com outras “disciplinas” (...) do que entre si. Metodologicamente falando, a Crítica Literária é uma “não-disciplina”. Se a Teoria Literária é uma reflexão crítica sobre a crítica, segue-se, então, que também ela é uma não-disciplina (ibid.:271).

Eagleton faz aqui uma estranha descrição da função da teoria, como se ela fosse

dependente dos métodos da crítica. Trata-se de uma afirmação problemática e não

esclarecida ao longo de sua exposição. De qualquer modo, é bastante claro que pretende

reforçar sua perspectiva: não há como haver uma reflexão teórica sobre um objeto

instável cuja descrição depende do contexto e do uso que dele se faz.

(...) a Teoria Literária (...) é de fato apenas um ramo das ideologias sociais, destituída de qualquer unidade ou identidade que a distinga adequadamente da filosofia, lingüística, psicologia, do pensamento cultural e sociológico. E segundo, no sentido de que a única esperança que ela tem de se distinguir — apegar-se a um objeto chamado Literatura — está mal dirigida (ibid.:280).

Dois são os pontos fundamentais de sua argumentação. Em primeiro lugar,

defende que a teoria precede, mesmo de modo inconsciente, o trabalho analítico. A

reflexão “teórica” estabelece como se vai ler um texto, isto é, as teorias não apenas

existem como são essenciais em qualquer ato de leitura. Em segundo lugar, ele repassa

um dos objetivos de seu livro, o de mostrar que “não existe, de fato, nenhuma ‘Teoria

Literária’ no sentido de um corpo teórico que se origine da Literatura ou seja

exclusivamente aplicável a ela” (ibid.:VII). Em seus termos, isso significa que existem

sim teorias sobre os discursos, muitas até — o que não existe é algo chamado

Literatura.

O fato de ser a “Teoria Literária” uma ilusão, porém, não significaria que não se

possa extrair dela muitos conceitos valiosos para um tipo totalmente diferente de prática

discursiva (ibid.:284), a “teoria dos discursos”. Construída a partir das cinzas daquela, a

“Nova Retórica” de Eagleton teria muitos pontos em comum com a Teoria da

Literatura. Procuremos acompanhar o raciocínio do autor. Quando, na conclusão do

livro, lança a questão crucial — “qual a finalidade da Teoria Literária?” (ibid.:267) —,

ele primeiro esvazia a importância da teoria. Num tom irônico, argumenta que há, no

mundo, muito mais coisas importantes do que “códigos, significantes e leitores” (ibid.),

e age como se estivesse colocando a teoria em seu devido lugar numa agenda de

61 “Literary theory is supposed to reflect on the nature of literature and literary criticism” (Eagleton, 1996:7). A tradução deveria ser “(...) refletir sobre a natureza da literatura e da crítica literária.”

Page 126: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

124

prioridades. O comentário, obviamente, é justo: não há por que se esperar que os

Estudos Literários pretendam ser algo além de uma prática voltada para o conhecimento

de uma atividade humana que muitos julgam valiosa. Mas Eagleton não pretende dizer

exatamente que a Teoria da Literatura é menos importante que questões como a miséria,

guerras, fome etc. Seu objetivo é relacionar, de maneira inseparável, a teoria com todas

essas grandes questões sociais e políticas: a teoria seria assim “parte da história política

e ideológica de nossa época” (ibid.:268).

Indo contra os defensores de uma teoria que trate apenas e exclusivamente da

obra literária, Eagleton argumenta que as teorias da Literatura não teriam a

especialização que se acredita que tenham:

A Teoria Literária é, em si mesma, menos um objetivo de investigação intelectual do que uma perspectiva na qual vemos a história de nossa época. (...) qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem, sentimento e experiência humanos, inevitavelmente envolverá crenças mais amplas e profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos (ibid.:268).

Para Eagleton, no fundo, as teorias literárias não falam de Literatura. E quando

pensam dela falar, o fazem por escapismo, alienação ou até mesmo má-fé. Grande parte

do livro é dedicada a essa acusação contra as correntes teóricas, em um grande esforço

de mostrar como os modos de se entender a Literatura seriam determinados por

motivações políticas, econômicas e sociais. Eagleton tem uma vasta munição contra a

Teoria da Literatura no século XX62:

(i) O humanismo liberal é criticado por despolitizar a obra literária, ao tratá- la

como um repositório de abstratos “valores humanos universais”, e negligenciar, como

se fossem trivialidades, os temas sociais e históricos. O humanista subestimaria

grosseiramente a capacidade transformadora da Literatura, ao isolá- la de seu contexto

social imediato: “O humanismo liberal é uma ideologia moral dos bairros elegantes,

limitada na prática, a questões altamente impessoais” (ibid.:285). A crença em que a

Literatura tornaria as pessoas melhores teria caído por terra diante da barbárie e do

horror causados, por exemplo, por nazistas leitores de Goethe 63.

62 As correntes psicanalíticas — além, obviamente, das de orientação marxista — são umas das únicas abordagens da literatura que contam com a simpatia de Eagleton. O ensaís ta entende que a discussão sobre o prazer no âmbito da Psicanálise tem grande potencial de esclarecimento dos problemas de valor nos estudos literários (ibid.:265). 63 Eagleton parece aqui se esquecer que a mesma comparação poderia ser aplicada aos seus tão caros ideais socialistas e comunistas, que também geraram, à revelia de muitos de seus defensores, é bem

Page 127: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

125

(ii) Herdeiro da tradição humanista, o New Criticism e seu projeto de considerar

a obra literária exclusivamente em sua imanência não passariam de uma alienação

provocada pelo capitalismo industrial (ibid.:64). Centrar-se na textualidade da obra e

ignorar os aspectos periféricos a ela são vistos por Eagleton como uma receita de inércia

política e de submissão ao status quo (ibid.:68).

O New Criticism — um dos pilares da Teoria da Literatura no século XX, como

vimos no segundo capítulo deste trabalho — recebe de Eagleton as críticas mais duras e

descomedidas. Ele, que havia antes criticado o Humanismo por seus valores humanos

abstratos, repreende os novos críticos exatamente por terem abandonado sua raízes

humanistas e por terem tentado tecnicizar o estudo da Literatura. Para desqualificá- los,

Eagleton busca na biografia deles os termos de sua condenação:

(...) a Nova Crítica era, no fundo, um irracionalismo completo, estreitamente associado ao dogma religioso (vários dos principais Novos Críticos Americanos eram cristãos), e a política direitista do “sangue e solo” do movimento agrário (ibid.:67).

Causa surpresa que uma proposta de racionalização dos Estudos Literários seja

descrita como “um irracionalismo completo”. Exatamente de que estaria falando

Eagleton? Kant, não obstante sua glorificação da razão, também seria um

“irracionalista” apenas por ser cristão? É notável como, em algumas de suas críticas,

Eagleton se amesquinha a ponto de exercer um patrulhamento das opções políticas e até

mesmo religiosas de seus adversários.

(iii) Se o New Criticism é criticado por apostar suas fichas na razão, as teorias

baseadas na fenomenologia são descritas como autoritárias e dogmáticas pelo motivo

exatamente contrário: o desprezo pela análise racional. Centrada num modelo cognitivo

intuitivo, as correntes fenomenológicas são taxadas de alienadas e de serem um sintoma

da própria crise que pretenderam superar (cf. ibid.:85). Para Eagleton, o método

fenomenológico husserliano seria acrítico, pois é destituído de avaliações: “A crítica

não é considerada uma construção (...), é uma simples recepção passiva do texto, uma

transcrição pura de suas essências mentais” (ibid.:82). Já Heiddeger, a quem Eagleton

concede o crédito de ter sido o responsável pela reintrodução dos significados históricos

e da existência concreta do mundo na critica fenomenológica, teria falhado em derrubar

a metafísica ocidental, erigindo uma outra — o Dasein (ibid.:90).

verdade, uma longa série de barbáries ao longo do século XX.

Page 128: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

126

(iv) A hermenêutica também recebe críticas contundentes, especialmente as

propostas de E. D. Hirsch Jr64 e de Gadamer. Eagleton (id.:93) entende que o modelo de

Hirsch se basearia em uma teoria pré- lingüística em que o sentido seria um ato mental

fixado pelos signos. O sentido único empobreceria o texto, pois o trabalho crítico se

resumiria ao estabelecimento de uma interpretação que baniria todas as particularidades

e “detalhes anárquicos” da obra em favor de uma única. A conclusão a que Eagleton

chega é assombrosamente paranóica: “O objetivo de todo esse policiamento é a proteção

da propriedade privada” (ibid.:95).

O esforço de Hirsch em evitar a anarquia crítica através do estabelecimento de

graus interpretativos é comparado com as intenções de regimes autoritários que são

incapazes de “justificar racionalmente os seus próprios valores dominantes” (ibid.:95).

A crítica de Eagleton parece-me abusiva, uma vez que Hirsch pensa na intenção autoral

menos como uma instância normativa arbitrária, do que como um dado mais ou menos

objetivo da obra, inscrito em sua textualidade. E talvez se devesse perguntar a Eagleton

como ele próprio lida com a totalidade de sentidos da obra, uma vez que é

extremamente resistente a leituras que não acompanhem sua perspectiva marxista

althusseriana.

Já Gadamer é criticado por depender, em seus modelos interpretativos, de uma

tradição única, fruto de “uma teoria da história grosseiramente complacente” em que a

arte se identifica com “os monumentos clássicos da alta tradição alemã” (ibid.:100).

Eagleton critica o suposto dialogismo da história proposto pelo hermeneuta, entendendo

que os interlocutores deste diálogo não têm a mesma posição (homens e mulheres, por

exemplo). O círculo hermenêutico gadameriano não passaria de um círculo fechado

entre o leitor e a obra, que refletiria “a condição fechada da instituição acadêmica da

Literatura, à qual só podem concorrer certos tipos de textos e leitores” (ibid.:110).

(v) A teoria da recepção de Iser também é criticada por sua orientação política

liberal, que pressuporia, como leitor ideal, alguém que deveria possuir exatamente as

características e as qualidades específicas do ser humano que essa leitura pretende

64 Hirsch estabelece uma profícua distinção entre os significados e o sentido de uma obra. Sem negar que uma obra literária signifique coisas diferentes, para pessoas diferentes, para épocas diferentes, ele trata esses diversos entendimentos como uma questão de significação , não de sentido. Esse estaria relacionado ao autor, aquela, aos leitores. O sentido seria absoluto e imutável e resistiria às transformações históricas (cf. E. D. Hirsch Jr. Validity in interpretation . New Haven: Yale University Press, 1967).

Page 129: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

127

produzir — reproduzindo, deste modo, os problemas do “vicioso” círculo hermenêutico

gadameriano.

(vi) O Estruturalismo, para o ensaísta, é uma afronta ao bom senso, pois, ao

rejeitar “o óbvio da história” em favor das estruturas profundas (ibid.:132), o método

analítico estruturalista simplesmente ignoraria o valor cultural do objeto analisado.

Referindo-se a Fredric Jameson65, Eagleton concorda que o estruturalismo seria um

sintoma de que a linguagem tinha-se tornado uma obsessão para a vida intelectual do

século XX. Seu caráter não histórico, sua rejeição dos conteúdos e seu nível generalista

faziam com que tudo, homens e textos, ficassem muito parecidos. Ao tentar evitar a

falácia humanista, os estruturalistas teriam caído na armadilha oposta e abolido os

sujeitos humanos (ibid.:166).

(vii) Os pós-estruturalismos teriam radicalizado o interesse estruturalista na

linguagem. Qualquer significação, neste modelo teórico de linguagem, era uma ficção.

Era necessário, então, renunciar às idéias tradicionais de que se escrevia sobre algo, para

alguém, e colocar a linguagem como “uma alternativa para os problemas sociais que nos

pressionavam” (ibid.:193).

De um modo geral, as críticas mais duras de Eagleton são voltadas àquelas

teorias que buscam o “mito acadêmico” da objetividade dos métodos e dos

procedimentos. Assim como Barthes censurava os lansonistas por esconderem sua

ideologia, Eagleton rejeita a teoria e suas técnicas, seus ideais científicos, suas buscas

por demonstrações racionais, sua obsessão pelos universais por não passarem de uma

cortina de fumaça que encobre suas raízes profundamente ideológicas. Ainda que os

teóricos, em geral, não concordem com o status quo, eles agiriam como pactuantes dos

sistemas de poder, por acreditarem que a Teoria Literária nada tem a ver com tais

assuntos, omitindo-se em relação a eles (cf. ibid.:268-9).

Sob o argumento de reagir aos antigos modos históricos e críticos de estudo da

Literatura, a moderna Teoria Literária seria uma sucessão de tentativas de se afastar da

realidade, lançando mão de “uma gama aparentemente interminável de alternativas: o

poema em si, a sociedade orgânica, as verdades eternas, a imaginação, a estrutura da

mente humana, o mito, a linguagem e assim por diante” (ibid.:270). Corresponderia,

pois, a um novo passo em um movimento que teria começado com a Estética moderna

65 Frederic Jameson. The prison-house of language; a critical account of structuralis m and Russian

Page 130: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

128

— quando se elidiu a historicidade da arte e se fez com que obras cujas funcionalidades

históricas eram inteiramente distintas passassem a ser pensadas sob um mesmo prisma.

Eagleton quer fazer ver que há um erro de prioridades na Teoria da Literatura. A

escolha e a rejeição dos elementos teóricos deveriam estar exclusivamente ligados

àquilo que se pretende fazer, na prática, com os textos. As questões ontológicas e

metodológicas, que tanto preocupam alguns teóricos, seriam absolutamente secundárias

diante das questões que Eagleton chama de “estratégicas” — em seus termos, qualquer

método ou teoria que contribua para a “emancipação humana, para a produção de

‘homens melhores’ por meio da transformação socialista da sociedade, é aceitável”

(ibid.:288). Um exemplo desse tipo de modelo teórico estaria na prática do crítico

socialista que, ao tomar a Literatura em termos de ideologia ou luta de classes, não

estaria projetando seus interesses sobre as obras, porque tais questões, sendo a matéria

da história, e sendo a Literatura um fenômeno histórico, são também a matéria da

Literatura (ibid.:288).

Eagleton pode finalmente chegar ao corolário de sua teoria dos discursos. Como

todo ato crítico é, para ele, ideológico, não é possível não haver algo de prescritivo na

formulação de uma verdadeira teoria. Sem esse grau de normatividade, o discurso

teórico se transforma num falacioso modelo neutro, num modelo descritivista, cujo

limite seria a pura tautologia, ou num modelo entre infinitos, pois milhares de coisas

podem ser feitas com um texto. Toda atividade crítica deve ser, portanto, política, e, por

não haver como se dizer qual política é mais adequada para se tratar de um texto, tudo o

que resta a fazer é discutir-se, apenas e tão-somente, política.

Nesse modelo de “crítica política” do discurso, o papel dos textos que chamamos

Literatura seria incerto. Não teria mais seu status privilegiado, pois “tal dogmatismo não

tem lugar no campo do estudo cultural” (ibid.: 292). Com isso, os departamentos de

Literatura nas universidades deixariam de existir, em favor de departamentos que

deveriam combinar uma série de teorias e métodos de análise cultural, nova concepção

em cujos detalhes Eagleton não se aprofunda.

O autor perfaz assim o objetivo de seu livro, e conclui o planejado necrológio

não apenas da Teoria da Literatura, mas dos Estudos Literários como um todo. Não é

sequer possível se discutir seu modelo de Teoria Literária, simplesmente porque ele

formalism. Princeton: Princeton University Press, 1972.

Page 131: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

129

inexiste como tal. O que se poderia fazer é criticar sua gritante incapacidade de refletir

sobre seus próprios fundamentos — a crítica marxista e os postulados do nexo causal

entre capitalismo e práticas discursivas, surpreendentemente, não são criticados ao

longo de seu manual —, bem como censurar seu dogmatismo político. Isso, porém,

significaria entrar em seu jogo e perder os rumos de uma reflexão cujo objetivo é

descrever, analisar e criticar uma disciplina que se apóia na hipótese de haver — ao

contrário do que pensa Eagleton — algo que pode ser chamado, metodicamente,

Literatura.

Page 132: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

130

5 - A ERA DAS REVISÕES

A radical proposta de Eagleton — acabar com os Estudos Literários, em proveito

de uma teoria geral dos discursos que teria por objetivo discutir, exclusivamente,

política — representa, muito provavelmente, a extrema contestação à reflexão teórica

sobre a Literatura vinda de dentro de suas próprias fronteiras. O projeto apocalíptico do

autor não chegava, entretanto, a ser uma voz isolada. Era razoavelmente disseminada

uma crença de que os Estudos Literários e a Literatura, tal como concebidos até então,

haviam chegado ao fim66. Tome-se, por exemplo, Teoria da Literatura, de Stéphane

Santerres-Sarkany, lançado em 1990 (não há referência ao ano de publicação na edição

portuguesa), em que o estado da Teoria da Literatura é descrito como tendo alcançado

“um ponto sem retorno”:

[A Teoria da Literatura] é cada vez mais firmemente rejeitada pelos “meios literários” — os escritores e a sua roda corporativa — e é abertamente contestada “do interior” pelos seus próprios defensores. Os dois campos questionam as suas tendências generalizantes e abstratas. As interrogações sobre os seus antecedentes epistemológicos surgem de todos os lados. É de recear que, não tarda muito, falemos dela no pretérito perfeito (Santerres-Sarkany, s.d.:9).

A crise da Teoria da Literatura estaria diretamente relacionada com o

florescimento daquilo que autor chama “nova cultura letrada” — o atual contexto

cultural, caracterizado pelo surgimento de técnicas de escrita e de leitura (os novos

suportes do livro, as micro e as macro tiragens), pela simbiose escrita-áudio-visual cada

vez mais intensa e, sobretudo, por uma “nova geografia literária” em que nichos

nacionais, regionais e tribais cada vez mais marcados coexistem com um mercado cada

vez mais “poliglota, internacional e cosmopolita (ibid.:12).

A “nova cultura letrada” se teria consolidado no exato momento em que a

instituição literária vivia seus derradeiros momentos de agonia, descritos pelo autor

66 Catherine Belsey (1980:30), num livro influente no ambiente de língua inglesa — Critical practice — já havia falado em uma “revolução copernicana” que estaria acontecendo nos modos através dos quais os

Page 133: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

131

como uma combinação de ocorrências que aboliram antigas fronteiras entre criadores e

comentadores, entre Literatura escrita e Literatura oral, entre atividade de lazer e

cognição estética, entre poesia e espetáculo, entre Literatura legítima e paraliteratura, e

deram origem a um amálgama que “romperá com uma tradição secular e desembocará

(...) num novo significado do termo ‘Literatura’” (ibid.:13). Santerres-Sarkany

demonstra um otimismo pouco fundamentado, quase ingênuo, sobre o futuro dessa nova

cultura literária que, livre do jugo da academia, funcionaria “livremente” sob os

auspícios do mercado:

O que era servil, pois dependia do ideal burguês, é agora escolhido criteriosamente pelos interesses mais fortes, mais vastos, do mercado real e simbólico. Anuncia-se uma cultura letrada de todos (ibid.:12).

Trata-se, sem sombra de dúvidas, da crença liberal no mercado, levada aqui ao

seu paroxismo. A euforia de Santerres-Sarkany pela nova cultura letrada surpreende

ainda pela velha novidade que é anunciada: o “novo significado do termo Literatura”

por ele apregoado nada mais é do que seu sentido pré-moderno, em que Filosofia,

História, ciências, autobiografia, biografia, memórias, testemunhos e outros modos

discursivos compartilhariam mais uma vez a complacente noção de Literatura.

Diante dessa nova, para Santerres-Sarkany, idéia de Literatura, a velha e

“exausta” Teoria Literária, obcecada por ultrapassadas questões de textua lidade, deveria

ser substituída por teorias que dessem conta da ótica do leitor, que passaria a ser o foco

dominante da nova atenção teórica:

Pela força das circunstâncias, a atenção concentrou-se na leitura. (...) Podemos supor que a evolução interior do pensamento tornou esta posição de qualquer modo inevitável. Nem a análise centrada no autor, nem aquela que visa à imanência textual, nem a abordagem contextual tiveram um rendimento plenamente satisfatório. (...) A teoria viu-se encurralada contra a parede: a pressão das mudanças tecnológicas e dos seus efeitos era visível desde a base e não cessava de crescer (ibid.:74).

Essa nova Teoria da Literatura, agora uma “reflexão sobre a função de uma

prática cultural transformada” (ibid.150), se valeria dos pressupostos epistemológicos

defendidos por Santerres-Sarkany, para quem a ciência contemporânea não seria mais

“um saber sistemático, cumulativo e progressivo”, pois a idéia de “acumulação” de

conhecimento teria sido substituída pela de “dinâmica” (ibid.:134-5). Infelizmente, o

funcionamento dessa nova ciência fundada no dinamismo não é esclarecido pelo autor.

textos são percebidos em nossa época.

Page 134: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

132

Como num toque mágico, os problemas teóricos fundamentais da disciplina se

dissolveriam diante da necessidade premente de se teorizar sobre a evidente, ao menos

para o autor, “democratização geral e radical do literário” (ibid.:14). Os antigos temas

dos Estudos Literários deveriam ser abandonados em favor das questões relativas à

cultura midiática em geral. A instituição Literatura veria, então, os processos de

legitimação passarem do “mandarinato acadêmico e universitário para as mãos das

potências econômicas e dos media em luta pelo poder simbólico" (ibid.:15).

Em tal contexto, teriam os Estudos Literários e, especificamente, a Teoria da

Literatura algum papel a desempenhar ou mesmo alguma razão para existir? A

exposição caótica do autor não permite que se chegue a maiores conclusões. Salvo

engano, pesaria sobre a “nova Teoria da Literatura” responsabilidades extraordinárias,

como a de conciliar “a unicidade inalienável do artefato, a participação cada vez mais

ativa dos públicos em expansão e a descompartimentação cultural em curso, que atinge

a barreira ciência/arte”, bem como recolocar “esta dicotomia no cadinho da verdade

quotidiana”, de modo a “aclimatar a obra escrita ao nosso planeta”, através de um

contato mais “cômodo” entre enunciatário e os diversos públicos (ibid.:150).

Não é fácil, e provavelmente não seria proveitoso, tomar a proposta de

Santerres-Sarkany como um “modelo teórico” de estudo da Literatura, ou mesmo de

qualquer outro objeto cultural, uma vez que os fundamentos, os métodos e as práticas

que constituiriam sua suposta “nova Teoria da Literatura” não são por eles discutidas.

Obras como essa — que se autodenominam teóricas por observarem um certo grau de

abstração e de generalidade no tratamento de seus temas, mas que são, na realidade,

desprovidas de qualquer aspiração metodológica ou de sistematização e não apresentam

qualquer preocupação com a fundamentação de suas assertivas — não eram raras no

ambiente dos Estudos Literários nos anos 90.

Ainda mais comum era a absorção de práticas analíticas advindas de outras áreas

do conhecimento — da filosofia desconstrucionista de Jacques Derrida, do

genealogismo histórico de Michel Foucault, das teorias do discurso do materialismo

cultural, das teorias pós-coloniais, dos estudos feministas, das queer theories, dos

discursos das minorias. Pela segunda vez os Estudos Literários experimentavam uma

Page 135: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

133

onda de importação67 de modelos analíticos que agravaria a condição assistemática e

“indisciplinada” da Teoria da Literatura.

Foi dentro desse contexto que dois acadêmicos da Austrália, os professores de

Literatura Richard Freadman e de Filosofia Seumas Miller, publicaram conjuntamente

em 199268 Re-pensando a teoria; uma crítica da Teoria Literária contemporânea, uma

obra que contestava certas concepções e formas específicas da teoria nos anos 80 e 90.

O livro procura relacionar a decadência da Teoria da Literatura com a aceitação

indiscriminada de modelos teóricos vindos de diversos campos de conhecimento.

Ainda que entendam que a distinção entre teorizar sobre um objeto e fazer

comentários sobre ele tenha sido perigosamente elidida no campo dos Estudos

Literários, Freadman e Miller não pretendem negar estatuto teórico a todos os discursos

que dominam o campo da Teoria da Literatura contemporânea. Se os pressupostos

constitutivos e os fundamentos dessas práticas discursivas são, muitas vezes, implícitos,

isso não significa que elas não funcionem como “teorias”, mas apenas indicaria as

inadequações que elas apresentariam enquanto tais. Para os autores, o problema de se

buscar o embasamento dos Estudos Literários em alguma teoria “não-literária” é o risco

de se acabar por se dissolver a própria categoria Literatura 69. Na Teoria Literária

contemporânea é comum se pôr em dúvida a validade de se pensar em um objeto como

Literatura e se hipertrofiar o poder que a reflexão teórica teria de condicionar seus

objetos, o que implica acusar a teoria de construí- los e determiná- los inteiramente70.

Como efeito, a diferença entre objeto e teoria muitas vezes desapareceria.

Freadman e Miller deixam claro que teorizar a respeito de algo não implica

acreditar que se possa explicar inteiramente o objeto em questão. No caso específico da

Literatura, eles admitem que ela é, sob diversos aspectos, resistente à teorização, o que

significa dizer que não é possível se exaurir, com descrições e explicações, uma obra

literária (Freadman & Miller, 1994:259). Contudo, isso não quer dizer que seja

67 A primeira onda havia trazido o estruturalismo antropológico, a psicanálise, o marxismo e a lingüística saussuriana para o campo dos estudos literários. 68 A edição brasileira é de 1994. 69 É o caso de Eagleton em sua superdisciplina, que iguala os textos “literários” e outras formas comunicativas, e faz com que os fenômenos literários sejam explicados causalmente em termos das mesmas leis descritivas e prenunciadoras empregadas em relação a outros fenômenos sociais. Além de causal, tal teoria seria altamente teleológica, pois “sua teoria e sua prática crítica são construídas para realizar mudanças radicais e sociais” (Freadman e Miller, 1994:66-7) 70 Para Freadman e Miller, por mais dogmática que seja, uma teoria precisa ter uma concepção prévia de seu objeto (ibid.:248), ou então se transformaria em uma teoria sobre nada.

Page 136: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

134

impossível descrever as obras literárias teoricamente, indicando apenas que haveria

limites para esses procedimentos.

Por “Teoria Literária contemporânea”, os autores entendem um conjunto de

práticas intelectuais que se julgariam mais sofisticadas em termos metodológicos e mais

socialmente relevantes do que os modelos críticos anteriores (ibid.:11), por terem

politizado, de um modo progressista sem precedentes, os Estudos Literários e superado

os modelos humanistas politicamente conservadores e dependentes de um ultrapassado

conceito de Literatura. O pressuposto fundamental desses novos modelos teóricos é a

crença em que a linguagem nem reflete nem referencia alguma realidade existente, mas

a constrói. Em conseqüência, o texto literário, por um lado, seria incapaz de “apresentar

representações autênticas da realidade” e, por outro, teria “o poder de construir ou de

reproduzir relatos sobre o mundo que servem aos interesses de grupos ou classes sociais

ascendentes” (ibid.:13).

Para Freadman e Miller, esses modelos teóricos seriam menos progressistas,

política e pedagogicamente, do que se pretendem, e se valeriam de caracterizações

simplistas e caricaturais das teses humanistas. Os autores contestam haver uma

incompatibilidade entre emancipação política e humanismo ou entre trabalho teórico e

pensamento humanista (ibid.:247), e apontam como a grande contradição das teorias

contemporâneas o repúdio dos mesmos valores (humanistas) que elas pretendem

alcançar com seu esforço de se politizarem (ibid.:94).

Reunindo a Teoria Literária contemporânea sob a denominação de “anti-

humanismo construtivista”, Freadman e Miller descrevem uma série de aspectos

característicos desses modelos teóricos: a negação do poder referencial da Literatura, a

adoção de modelos descentralizados de sujeito, a negação da autoridade original do

autor, a negação do significado definido, a negação de atos de interpretação

determinados, a afirmação da pluralidade infinita de leituras, a ligação entre

interpretação e relações de poder social, a rejeição da idéia de cânone e, por fim, a

própria rejeição da categoria “Literatura” — em muitos casos, a Literatura, para a teoria

contemporânea, menos que seu objeto, é sua antagonista, algo que precisa ser

denunciado por seus comprometimentos ideológicos (ibid.:13-14). Este conjunto de

traços estaria interligado ao seu pressuposto fundamental: a “priorização ontológica

absoluta da linguagem” (ibid.:49).

Page 137: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

135

A supervalorização da linguagem, para os autores, seria muito mais o efeito de

“uma crença supersticiosa na magia das palavras” (ibid.:49) do que o resultado de uma

adequada reflexão, uma vez que tal convicção estaria assentada sobre três asserções

questionáveis: (i) ser a linguagem um sistema fechado e voltado sobre si mesmo, (ii) ser

a linguagem uma expressão da ideologia e (iii) ser a linguagem indeterminada e fonte de

um número também indeterminado de significados possíveis (ibid.:34).

Sobre (i), Freadman e Miller entendem que o problema estaria em se ter tomado

de modo acrítico e radical algumas doutrinas saussurianas. Para os autores, o lingüista

suíço estava longe de ser um grande filósofo da linguagem e algumas de suas

proposições, bastante influentes nos meios das teorias contemporâneas, se revelam

inconsistentes quando melhor analisadas. Tome-se, como exemplo, a tese do significado

diferencial: se os termos de uma linguagem se definissem, negativamente, pelo que não

significam, ter-se-ia, como resultante, apenas um conjunto fechado e circular de

definições, incapaz de produzir significado para qualquer um dos termos71 (ibid.:35).

Para que a linguagem signifique é necessário admitir, pois, que ela se liga com sentidos

extralingüísticos e, conseqüentemente, admitir que ela é, ao menos parcialmente,

dependente desta realidade, e que um texto pode sim simular e incorporar aspectos do

real72.

Sobre (ii), os autores entendem que o principal prejuízo para os Estudos

Literários estaria na convicção de que nenhum texto pode dar acesso à realidade.

Freadman e Miller, além de fazerem uma crítica pontual às noções de ideologia

normalmente em uso por essas correntes, defendem que, se há a possibilidade de

existirem crenças e sistemas de crença fora da ideologia dominante — afinal, alguns

teóricos pretendem estar fazendo a crítica dessas ideologias —, então também poderia

haver textos literários que não sejam ideológicos73. Além do mais, se toda prática

estética é meramente ideológica — é o que pensam teóricos como Terry Eagleton —,

não haveria sentido em tomar as obras de arte como objetos privilegiados de ins trução

71 Isto é, num hipotético sistema de 3 termos, o sentido de A seria apenas não-B e não-C, o de B seria não-A e não-C, e o de C, não-A e não-B, e os três termos seriam incapazes de significar qualquer coisa para além de seu sentido negativo. 72 Conforme será visto mais adiante, o interesse dos autores é mostrar que a linguagem, em especial os textos literários, pode produzir “representações autênticas do domínio ético” (ibid.:297). 73 Os autores interpelam também os teóricos que afirmam que tudo é ideológico na linguagem, mas que não seriam capazes de explicar como as ideologias políticas determinam significados de termos como, por exemplo, “círculo” e “dor” (ibid.:38).

Page 138: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

136

sobre a realidade. Se os textos são apenas mercadorias, porque não tomar também

outros artefatos — não-artísticos — como objetos de interpretação?

Freadman e Miller também criticam o emprego da noção de “discurso” quando

usado de modo hiperbólico para se negar que seja possível ter acesso a qualquer tipo de

realidade fora da linguagem: se tudo é discurso e se todos os discursos são fictícios e

sem fundamento, conseqüentemente, tudo é fictício e sem fundamento. Nesse contexto,

as práticas discursivas são tomadas ou como produtos da ideologia — pelos marxistas

— ou como manifestações de poder — por Michel Foucault e seus seguidores —, com

argumentos que, embora se passem por científicos, nada seriam além de uma outra

crença supersticiosa na existência de uma presença malévola que está em todas as partes

— a Ideologia ou o Poder (ibid.:227).

Para criticar o argumento (iii), Freadman e Miller tomam o desconstrucionismo

de Jacques Derrida como objeto de reflexão. Descrevem a desconstrução como um

modelo discursivo que se propõe a revelar e demolir o que o filósofo francês chamava

de logocentrismo, um conjunto de pressuposições metafísicas que dariam forma à

cultura ocidental. Por operar com os mesmos conceitos que pretende destruir, a prática

desconstrucionista seria cheia de incoerências — os autodenominados “paradoxos da

desconstrução” —, embora disfarçadas pelo estilo discursivo reconhecidamente

anárquico de seu criador:

(...) o que é incomum em relação a Derrida é essa mistura especial de jogo e argumentação de difícil compreensão que caracteriza todos os seus textos. Essa mistura muito favoreceu sua reputação entre os estudiosos da Literatura, que encontram uma combinação de exotismo estilístico com um aparente rigor conceitual adequado; ela também facilitou a passagem de idéias que são problemáticas mas que estão suficientemente disfarçadas em engenhosidades retóricas para parecerem irrefutáveis (ibid.:155).

A pouca clareza e as contradições características do estilo do filósofo são

entendidas, por seus seguidores, como uma evidência para a sua alegação de que toda

linguagem é “escorregadia” e tem seus significados indeterminados. Acreditar, contudo,

que a linguagem é inerente e radicalmente indeterminada, significaria admitir que

qualquer um poderia interpretar qualquer objeto de qualquer maneira (ibid.:154), uma

implicação que os desconstrucionistas não estariam dispostos a aceitar: afinal, é

somente porque a linguagem apresenta algum grau de determinação que o próprio

Derrida é capaz de produzir determinados sentidos. Se assim não fosse, ninguém

Page 139: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

137

precisaria sequer se dar ao trabalho de tentar comunicar algo, uma vez que a

comunicação seria sempre um processo completamente aleatório.

Para Freadman e Miller, os desconstrucionistas analisariam os textos literários

buscando encontrar aquilo que Derrida já previra estar lá, isto é, os derridianos

produziriam leituras estereotipadas que reduziriam toda especificidade de um texto “à

mera apresentação de evidências, ao status de evidência para afirmações apriorísticas

sobre indeterminação, caráter metafórico e assim por diante” (ibid.:174). A

desconstrução, pois, não produziria leituras de obras, apenas processos de confirmação

de uma “profecia hermenêutica” (ibid.:179), que não permitiria ao texto analisado

revelar-se (ibid.:187).

A partir da tentativa de refutação dos fundamentos das teorias “anti-humanistas

construtivistas”, Freadman e Miller passam então a elaborar uma hipotética proposta de

estudo da Literatura74 que possa ser qualificada de teórica, ainda que não emule às

ciências naturais ou às sociais. Para tanto, eles entendem ser necessário constituir um

conjunto de princípios coerentes, interligados numa estrutura abrangente e sistemática,

que possuam um vasto de campo de aplicação e que se ofereçam a uma comprovação

minuciosamente objetiva (ibid.:249).

Os autores entendem que há três tipos de procedimentos teóricos: o descritivo,

quando apenas se descreve um objeto sem pretender determiná- lo ou avaliá- lo; o

explanatório, quando se deseja explicar, em termos causais ou teleológicos, a

existência dos objetos; ou normativo, quando se recomenda, valorativamente, certas

práticas em detrimento de outras (ibid.:253-8). Grande parte das teorias literárias

contemporâneas seria, na opinião deles, de cunho normativo, no sentido de que

privilegiam uma dada interpretação das obras literárias e rechaçam terminantemente

teorias alternativas. Surpreendentemente, eles não crêem que isso seja, particularmente,

74 Freadman e Miller chegam a esboçar uma proposta teórica, que parte de uma concepção do objeto literatura como uma forma de comunicação que envolveria alguém que comunica, alguém com quem se comunica e algo que é comunicado. Esse algo comunicado é um texto, “um conjunto de atos de fala estruturados de forma tal que cada texto constitui um todo unitário e, desse modo, distingue-se de todos os outros textos e das coisas que não são textos” (ibid.:250). Tal definição distinguiria as obras literárias de outros objetos, mas seria insuficiente para distingui-las dos demais tipos de textos. Como, na prática, as pessoas, baseadas em critérios diversos, são capazes de identificar certos textos como literários, o primeiro trabalho de um teórico poderia ser justamente o detalhamento e a sistematização desses critérios, com o intuito de gerar uma base de dados iniciais de uma teoria (ibid.:251).

Page 140: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

138

ruim. Eles próprios admitem defender uma teoria normativa — desejam mostrar que a

Literatura está essencialmente relacionada ao domínio ético75.

Freadman e Miller não negam o mérito dos comprometimentos sociais que as

teorias contemporâneas advogam, nem pretendem negar os importantes avanços obtidos

pelos Estudos Literários graças a trabalhos advindos de áreas tais quais os estudos

feministas ou pós-colonialistas, mas crêem que essas discussões só podem ser resolvidas

no campo da Ética76. Eles querem mostrar que o relativismo cultural e a ausência de um

discurso ético estão intimamente relacionados, pois num contexto dominado pela

relatividade não há desenvolvimento moral possível, uma vez que aquilo que se torna o

“correto” é apenas o que uma sociedade diz ser: “a sociedade nunca pode estar errada, e

(...) o indivíduo — a menos que ele/ela se adapte — nunca pode estar certo” (ibid.:87-

8). Para Freadman e Miller, num contexto de relativismo cultural não poderia haver

nenhum tipo de desenvolvimento moral:

(...) o desenvolvimento posterior nas atitudes raciais não é moralmente superior; a escravidão é moralmente correta para a antiga sociedade e moralmente incorreta para a sociedade posterior, e isso é tudo que se pode dizer a esse respeito (...). Pois se o genocídio é uma de suas práticas sociais, então o genocídio é moralmente correto (ibid.:87).

Embora pertinentes enquanto comentários de cunho moral, a deficiência da

argumentação de Freadman e Miller está no fato de que eles acabam reproduzindo o

mesmo problema que denunciavam em grande parte da Teoria Literária contemporânea,

ao introduzirem, no plano da discussão teórica da Literatura, um outro campo de saber

(a Ética), que passa a funcionar como uma instância valorativa não apenas dos modelos

e fundamentos da reflexão teórica, mas claramente da própria noção de obra literária:

(...) é fundamental para nossa proposta que o texto possa simular e incorporar aspectos notáveis do real; em especial, que ele possa oferecer representações autênticas do domínio ético. Na verdade acreditamos que a Literatura está essencialmente relacionada a esse domínio, e que seus poderes no que diz

75 Eles definem a ética como sendo “uma preocupação com a forma como se deveria viver (uma preocupação que envolve questões inter-relacionadas sobre modos desejáveis de conduta das vidas individuais, por um lado, e formas desejáveis de inter-relacionamento entre indivíduos, por outro)” (ibid.:297). 76 Seja o marxismo, que substitui as questões éticas por questões de ideologia, sejam os formalismos diversos, que defendem versar a literatura sobre nada porque também a linguagem é intransitiva, sejam ainda os pós-estruturalismos, que vêem a literatura como uma convenção discursiva que pode revelar os processos de construção social, as teorias literárias contemporâneas desprezariam os discursos éticos, por considerá-los “áridos, opressivos e reacionários” (ibid.:75). Essa impaciência com o discurso ético, fruto de uma combinação da priorização de sistemas sobre os eus individuais com um profundo descaso em relação às explicações divergentes de mundo, seria, para Freadman e Miller, uma manifestação de tendência subliminarmente totalitária (ibid.:20).

Page 141: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

139

respeito a ele fazem dela uma forma central de investigação humana (ibid.:297).

Tomando a Literatura a priori como um discurso ético, o projeto teórico de

Freadman e Miller incorre numa postura dogmática que — como já havia acontecido

com a proposta de Terry Eagleton — arrasta a discussão sobre a teoria para fora do

ambiente estrito dos Estudos Literários. Fazer da Literatura um problema político ou um

problema ético são duas variações da mesma decisão de se abrir mão de pensar a obra

literária em sua especificidade.

De modo geral, pode-se considerar o livro de Freadman e Miller como uma

reação a um cenário em que as fronteiras entre pluralidade e completa desorganização

tornaram-se perigosamente tênues. Em nome da diversidade e do relativismo, reduziu-se

o poder de autocrítica dos Estudos Literários e, num ambiente em que todos estão, a

priori, corretos, não tarda para que os discursos se igualem em suas completas ausências

de valor e significação.

O estado de crise levará Terry Eagleton, em 1996, na reedição de seu manual, a

escrever um posfácio que, ao comentar as transformações da teoria nesse período, deixa

transparecer sua insatisfação com os rumos da disciplina que ele, treze anos atrás,

propusera suprimir. Ele busca as causas dos atuais problemas dos Estudos Literários na

década de 70, descrita por ele como um período de grandes esperanças sociais, políticas e

teóricas. Naquele momento em que as universidades teriam experimentado uma maior

democratização do acesso ao ensino superior, o “tácito consenso de valores entre

professores e alunos” (Eagleton, 2003:301), de que tanto dependeriam as Humanidades,

foi irreversivelmente abalado. Tornou-se não mais possível se exigir do estudante que

colocasse de lado sua experiência pessoal e avaliasse obras a partir do ponto de vista de

um sujeito universal e descomprometido, uma vez que alunos e professores possuíam

então formações e origens completamente distintas. Na década de 80, esses jovens

herdeiros da cultura popular dos anos 60 e 70, agora professores, foram gradativamente

seduzidos por um campo de pesquisa novo, que parecia satisfazer ao mesmo tempo “a

iconoclastia antielitista de 1968” e o rigor de um modelo teórico justificado, numa

“ligação maravilhosamente econômica entre sala de aula e tempo de lazer” (ibid.:302-3).

A energia teórica da década de 70 agora se convertera, com os fracassos e

impasses das lutas políticas, em ceticismo e desilusão. O caráter totalizador dos antigos

projetos teóricos — incluiria Eagleton nesse grupo a sua própria proposta? — dera lugar

Page 142: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

140

a “uma espécie de antiteoria: local, setorial, subjetiva, incidental, estetizada ou

autobiográfica”. As grandes questões do passado foram substituídas pelas

micropolíticas, que conduziram a discussão política a áreas até então insuspeitas, como

o corpo humano. Ironizando, o ensaísta comenta que, após ter “desconstruído tudo

quanto pudera, a teoria finalmente se tornara capaz de desconstruir-se a si mesma”

(ibid.:305-6).

Muitas foram as formas assumidas pelas teorias que dominaram os Estudos

Literários nos anos 90 — o autor as denomina ora “pós-modernismos”, ora “pós-

estruturalismos”, ora “culturalismos”. Em comum, elas possuiriam a crença na verdade

como um produto da interpretação, nos fatos como construções discursivas e na

objetividade como apenas uma interpretação que conseguiu se impor. Esquecido — ou

arrependido — de sua própria proposta, Eagleton não vê com simpatia as teorias

culturais que dissolvem a especificidade da Literatura:

Não há o melhor ou o pior, apenas o diferente (...). A impaciência do pós-modernismo com as avaliações estéticas convencionais assumiu uma forma tangível nos chamados Estudos Culturais, que se desenvolveram rapidamente ao longo da década de 1980, e que no mais das vezes se recusavam a respeitar as distinções de valor entre o soneto e a novela de televisão (ibid.:319).

Após desqualificarem todos os fundamentos e tornarem impossível qualquer

crítica racional, as “teorias pós-modernistas” retiraram as bases que possibilitariam a

validação de suas próprias críticas, e teriam conduzido o pensamento contemporâneo a

um impasse: já não havendo como se propor nenhuma justificativa fundamentada para

qualquer estilo de vida, restou apenas se invalidar a própria idéia de crítica,

estigmatizando-a como necessariamente ‘metafísica’, ‘transcendente’, ‘absoluta’ ou

‘fundacional’” (ibid.:321).

É nesse contexto que florescem os Estudos Culturais e os estudos pós-

colonialistas, descritos como “uma espécie de terreno baldio” onde foram lançados os

temas descartados “por uma filosofia estreitamente analítica, uma sociologia empirista e

uma ciência política positivista” (ibid.:327). Sem nenhuma unidade particular enquanto

disciplina e desconsiderando por completo as questões de método que sempre

assombraram os teóricos da Literatura, as teorias culturais são, para Eagleton, um bem

de consumo da sociedade pós-moderna77, sendo altamente estetizadas e funcionando

77 Eagleton assinala que, graças a “seu esoterismo, sua sintonia com os modismos, sua singularidade e sua

Page 143: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

141

como “um substituto duvidosamente moderno da atividade política, numa época em que

tal atividade tem sido, em termos gerais, difícil de exercer”. Surgidas “como uma crítica

ambiciosa de nossos modos de vida correntes”, elas estariam agora ameaçadas de

terminarem “como uma complacente consagração destes” (ibid.:326). Para Eagleton, o

culturalismo e seus temas prediletos, a alteridade e a identidade, ao incentivarem o

relativismo, passaram a defender uma espécie de “domínio imperial às avessas”

(ibid.:325).

A indeterminação disciplinar das teorias que dominam os atuais Estudos

Literários assinalaria, para Eagleton, o esgotamento de um modelo de atividade

acadêmica, e sinalizaria que nem as humanidades nem o que se costumava chamar de

teoria poderiam prosseguir existindo como antes (ibid.:327). Era o fim da esperança de

que a teoria pudesse ser uma prática voltada sobre si mesma. A impossibilidade de se

alcançar o distanciamento clínico pretendido fazia com que todo e qualquer projeto

teórico estivesse sempre fadado ao fracasso (ibid.:300).

Apesar do tom desencantado e pessimista, pode-se perceber que, em comparação

com a 1ª edição de seu manual, Eagleton amenizou suas críticas aos modelos teóricos

mais tradicionais, fundados em valores humanistas e na crença na possibilidade de

existência de valores comuns. O Humanismo, outrora violentamente atacado, é agora

criticado apenas por não perceber que a esperança em valores universais deve ser

encarada como um projeto, e não uma realidade, pois ainda não haveria condições

materiais que permitissem seu florescimento (ibid.:330). Atualmente, dez anos após

esse posfácio, quando se acessa sua página dentro do site da Universidade de

Manchester, onde atualmente é professor, pode-se ver que sua postura intolerante em

relação à teoria parece superada, uma vez que ele declara ser essa uma de suas

especialidades, e que está interessado em supervisionar pesquisas nesta área:

Como a Teoria Literária “pura” — Formalismo, Semiótica, Hermenêutica, Narratologia, Psicanálise, Teoria da Recepção, Fenomenologia e afins — tem ocupado um lugar secundário ultimamente e dado lugar a uma agenda teórica mais “limitada”, seria bom ver ressurgir o interesse pelo tema 78.

relativa novidade, a teoria vem obtendo um alto prestígio no mercado acadêmico” (ibid.:326). 78 “‘Pure’ literary theory — formalism, semiotics, hermeneutics, narratology, psychoanalysis, reception theory, phenomenology and the like — have taken something of a back seat these days to a more narrowly conceived theoretical agenda, so it would be agreeable to see a resurgence of interest in these regions” [tradução minha] (Acesso em 05/02/2006, http://www.arts.manchester.ac.uk/subjectareas/englishamericanstudies/academicstaff/terryeagleton/).

Page 144: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

142

5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS

O primeiro manual publicado em português a confrontar a realidade da Teoria da

Literatura nos anos 90 — assistemática, sem objeto específico, enfraquecida em seus

conceitos e categorias — é Teoria Literária: uma introdução, de Jonathan Culler,

publicado em 1997 e lançado no Brasil dois anos depois. Ele se propôs a fazer um livro

que fugisse ao padrão das introduções à Teoria Literária que a descrevem como uma

série de escolas críticas mutuamente concorrentes.

A edição brasileira merece algumas considerações. Nela há uma introdução,

assinada pelos editores, na qual duas advertências chamam a atenção. A primeira faz

menção ao fato de não haver “teoria ou crítica neutra” e que “o caminho e a posição

teórica adotados por Culler são apenas uma das opções à disposição de quem se

aventura pelo território da teoria” (in Culler, 1999:7). A segunda informa que a decisão

editorial de adicionar notas e comentários ao texto tem o objetivo de facilitar o trabalho

de leitores menos familiarizados com as referências de Culler, bem como de apontar

para outros entendimentos da teoria supostamente omitidos pelo autor.

Trata-se de um caso curioso em que os próprios editores põem em dúvida a

qualidade do livro que publicam. Eles parecem entender que o autor haveria deixado de

mencionar elementos fundamentais da disciplina e teria escrito uma obra introdutória

que apresentaria a — grave — deficiência de usar referências que não eram percebidas

pelo leitor. A alegação dos editores soa disparatada diante dos objetivos de Culler, que é

explícito em declarar que toma as correntes teóricas pelo muito que possuem em

comum, de modo que se possa fa lar em termos de uma teoria, e não de teorias. Assim,

ou a opinião dos editores brasileiros é um completo contra-senso em relação ao projeto

de Culler, ou os editores consideram o livro um total fracasso de realização. Como o

manual é fiel à proposta de seu autor, parece-me mais provável que os editores tenham

escolhido publicar uma obra que não atendia a suas expectativas.

Ao não fazer um panorama das escolas teóricas e optar por discutir as questões

fundamentais e os pontos em comum entre as escolas teóricas, Culler terá relativo

sucesso no resgate das questões fundamentais da disciplina, embora tenha dificuldades

em estabelecer o exato papel da Teoria da Literatura dentro do novo contexto dos

Estudos Culturais.

Page 145: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

143

5.1.1 - Diversidade e complexidade

Segundo Culler (1999:42), aquela que deveria ser uma questão central para a

reflexão teórica — a pergunta sobre o que é a Literatura — parecia já não ter mais

grande importância para a teoria contemporânea, que abandonara o interesse pela

distinção entre obras literárias e não- literárias e passara a refletir sobre a Literatura

como uma categoria histórica e ideológica. A razão para se ter deixado de lado essa

questão fundamental poderia ser encontrada na importação e na mescla indiscriminada

de modelos teóricos externos aos Estudos Literários. Os teóricos das demais áreas

humanísticas não veriam utilidade na distinção entre se saber se um texto é ou não-

literário, mesmo porque as descrições de “literariedade” já produzidas são

insatisfatórias, além de apontarem para características que se faziam presentes em

outros tipos de obras — a narratividade, que se faz presente nos discursos históricos

variados; as figuras retóricas, presentes em tantos outros tipos de discurso, etc.

Culler procura então redimensionar a importância da pergunta “o que é

Literatura?”, mostrando que a busca de uma definição não visa a evitar que o leitor

“confunda um romance com a História ou a mensagem num biscoito da sorte com um

poema”, mas possibilitar uma formulação teórica que tenha por objetivo promover “os

métodos críticos mais pertinentes e descartar os métodos que negligenciam os aspectos

mais básicos e distintivos da Literatura” (ibid.:47).

Tomando a pergunta sob a ótica tradicional que averigua a possibilidade de se

pensar em traços distintivos comuns a todas as obras consideradas “Literatura”, Culler

admite que, quando se observa o caráter multifacetado das obras literárias, tanto em sua

variações sincrônicas quanto em suas transformações diacrônicas, é tentador concluir

pelo relativismo e dizer que elas são tudo que uma dada sociedade trata como tais, isto

é, “um conjunto de textos que os árbitros culturais reconhecem como pertencentes à

Literatura” (ibid.:29). Entretanto, ele observa, uma conclusão deste tipo apenas

deslocaria a pergunta original, transformando-a num questionamento sobre o que faz

com que se trate algo como Literatura.

Page 146: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

144

Culler retoma e critica uma imagem de John M. Ellis, endossada por Eagleton

em seu manual79, em que a Literatura teria o mesmo estatuto que as ervas daninhas têm

para um jardineiro. Assim como a noção de “mato” refere-se apenas àquilo que o

jardineiro não quer em seu jardim, isto é, não aponta para uma natureza em comum

entre as plantas que são assim denominadas, a Literatura também seria um conjunto de

textos considerados “literários” por alguém, mas que não possuiriam uma essência em

comum. Tal comparação, ele argumenta, novamente não eliminaria a pergunta inicial,

que se transformaria agora em “o que está envolvido em tratar as coisas como Literatura

em nossa cultura?” (ibid.:30).

O ensaísta parte então para definir seu próprio conceito de Literatura: sua

primeira proposição é a de que uma obra literária seria um produto discursivo que,

removido de seu ambiente e destacado de seus propósitos originais, ainda se ofereceria à

interpretação. Quando descontextualizada, esse tipo de obra produziria sua própria

contextualização — o contexto da Literatura (ibid.:32) —, onde certos princípios da

linguagem possuiriam um estatuto diferente. Por exemplo, o princípio cooperativo da

comunicação, em que se postula que se deve ser claro em qualquer ato de fala, teria sua

importância diminuída, a ponto de serem toleráveis obscuridades e irrelevâncias, pois

um leitor de Literatura presumiria que “as complicações da linguagem têm (...) um

propósito comunicativo” que exigiriam um certo esforço interpretativo (ibid.:33).

A Literatura, entretanto, seria algo mais do que apenas uma moldura que se

coloca em certo tipo de linguagem, pois, ele acredita, “nem toda sentença se tornará

literária se registrada na página como um poema”. Por outro lado, a Literatura seria

também algo mais do que um tipo especial de linguagem, uma vez que muitas obras

literárias não ostentam sua diferença em relação a outros usos de língua (ibid.:34). Eis,

portanto, o grande desafio da definição do conceito de Literatura. Aqueles elementos

que os teóricos apontam como propriedades das obras literárias, ou seus traços

distintivos — a colocação da linguagem em primeiro plano, a ficção, a Literatura como

objeto estético, como prática auto-reflexiva —, são, na verdade, muito mais fruto da

atenção particular dada por certos modos de estudo aos seus objetos. Tais qualidades,

entretanto, nunca conseguiram ser conceituações de Literatura, porque a linguagem

sempre resiste aos enquadramentos e “cada qualidade identificada como um traço

79 Curiosamente, Culler não cita nenhum dos dois na passagem.

Page 147: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

145

importante da Literatura mostra não ser um traço definidor, já que pode ser encontrada

em ação em outros usos da linguagem” (ibid.:42). Ao longo da história, observa o autor,

foram atribuídas funções e qualidades diametralmente opostas à Literatura — muitas

vezes acusada de ser um instrumento ideológico, outras incensada por ser um lugar de

resistência onde a ideologia é exposta e pode ser questionada. Tal oscilação se

explicaria pela confusão que se faz entre propriedades potenciais da obra literária e

determinados focos de atenção que realçam tais características (ibid.:45). Para Culler, os

Estudos Literários só são possíveis quando não se esquecem da complexidade e da

diversidade de seu objeto, que, “afinal de contas, é uma instituição baseada na

possibilidade de dizer o que quer que você imagine” (ibid.:46).

5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários

Pensando a situação dos Estudos Literários na atualidade, Culler entende que a

área foi incorporada pelos Estudos Culturais — em seus termos, um projeto de se

compreender

(...) como as produções culturais operam e como as identidades culturais são construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de comunidades diversas e misturadas, de poder do Estado, indústrias da mídia e corporações multinacionais (ibid:49).

A questão central dos Estudos Culturais, saber como somos manipulados pelas

formas culturais e como podemos agenciá- las, estaria ligada a sua dupla genealogia (o

estruturalismo francês e a Teoria Literária marxista britânica), que dera corpo a uma

mescla de análises que tomam “a cultura como uma expressão do povo” com outras que

a tomam “como imposição sobre o povo” (ibid.:50-1).

Culler, em princípio, não acredita que precise haver conflitos de interesses entre

os Estudos Culturais e os Literários. Os culturalistas não têm por que repudiar a

concepção de objeto literário proposta pelos estudos de Literatura, pois a própria origem

do culturalismo está relacionada à aplicação de técnicas de análise literária aos demais

artefatos culturais, também tratados como textos. Por outro lado, os Estudos Literários

teriam ganhado muito quando passaram a pensar a obra literária como uma prática

cultural que se relaciona com outros modos discursivos (ibid.:52). O medo de certos

literatos, de que os Estudos Culturais possam vir a matar a Literatura através do

Page 148: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

146

estímulo à leitura e ao estudo de outras formas, seria infundado. Culler lembra que

acusação semelhante também fora feit a contra a teoria, quando se dizia que ela afastava

os alunos das obras literárias propriamente ditas (ibid.:53).

A aversão de parte dos estudiosos da Literatura aos Estudos Culturais estaria

relacionada a uma desconfiança de que os objetos de análise dos culturalistas são

selecionados não por sua “excelência literária”, mas por sua representatividade cultural.

Teme-se que critérios como o de “politicamente correto” ou o desejo de dar a cada

minoria uma representação justa acabem desvirtuando os princípios “especificamente

literários” de escolha das obras a serem estudadas (ibid.:54). Culler contesta tal

desconfiança, argumentando que não é verdadeiro que a “excelência literária” tenha

alguma vez efetivamente determinado o que devia ser estudado. Toda seleção feita

pelos Estudos Literários sempre foi orientada pela aplicação de critérios historicamente

comprometidos com valores não- literários. Com os Estudos Culturais, o que teria

mudado foi o entendimento daquilo que se acha interessante para ser representado por

uma obra literária, bem como a própria forma dessa obra (ibid.:54). Em outras palavras,

os Estudos Culturais teriam problematizado exatamente a própria noção de excelência

literária.

Agora que os Estudos Culturais parecem ter-se tornado hegemônicos no campo

das humanidades e que muitos dos seus praticantes já não possuem uma formação

literária, o antigo interesse despertado pelas obras literárias — sua complexidade como

objeto único — pode estar dando lugar a um tipo de sociologia não-quantitativa e

sucumbindo definitivamente à tendência em se tratar diversas formas culturais como

sintoma de alguma situação social específica.

Essa mudança de foco, que se consolida no desprezo pela categoria Literatura e

pelo empenho em favor de uma noção ampla como a de cultura, está, como se verá

mais adiante, diretamente relacionada ao caráter peculiar da reflexão teórica na

contemporaneidade.

5.1.3 - Uma teoria sem objeto?

O campo dos Estudos Culturais é tão confusamente interdisciplinar e tão difícil

de se definir quanto a própria Teoria Literária contemporânea, e Culler quer mostrar que

Page 149: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

147

ambos estão hoje intimamente relacionados: isto é, os Estudos Culturais seriam a

prática daquilo que hoje se entende por teoria (ibid.:48).

Ele comenta que o termo teoria tem atualmente um uso indiscriminado, tanto

nos Estudos Literários quanto nos culturais, e é empregado com freqüência

isoladamente — nem Teoria Literária, nem teoria cultural, apenas teoria. Com razão, ele

comenta que a queixa que se faz hoje ao excesso de teoria nos Estudos Literários não

está se referindo à grande quantidade de trabalhos que reflitam sistematicamente sobre o

tema, mas à pletora de discursos sobre questões gerais cuja relação com a Literatura está

longe de ser evidente:

Teoria, nos Estudos Literários, não é uma explicação sobre a natureza da Literatura ou sobre os métodos para seu estudo (...). É um conjunto de reflexão e escrita cujos limites são excessivamente difíceis de definir (ibid.:12-3).

Ele acredita que parte do problema está no próprio termo “teoria”, que, por um

lado, significaria “um conjunto estabelecido de proposições”, mas, por outro lado,

conteria usos menos específicos, vagamente aproximados à “especulação” ou a qualquer

tipo de explicação não óbvia de alguma complexidade. Citando Richard Rorty (apud

ibid.:13), Culler diz que o que se entende por teoria hoje seria um “tipo de escrita que

não é nem a avaliação dos méritos relativos das produções literárias, nem história

intelectual, nem filosofia moral, nem profecia social, mas tudo isso combinado num

novo gênero”.

De modo genérico, o termo “teoria” tem designado textos que alimentam ou

contestam reflexões fora da área de estudos onde são gerados. No caso específico dos

Estudos Literários, desde pelo menos os anos 60 o campo é receptivo a esse tipo de

reflexão teórica, que chamo aqui de teoria sem objeto, e que Culler propõe entender

como uma crítica da cultura em sentido amplo:

Teoria, nesse sentido, não é um conjunto de métodos para o estudo literário mas um grupo ilimitado de textos sobre tudo o que existe sob o sol, dos problemas mais técnicos de filosofia acadêmica até os modos mutáveis nos quais se fala e se pensa sobre o corpo (...) (ibid.:13).

A análise genealógica feita por Foucault em História da sexualidade seria um

exemplo de como um trabalho no campo da História passou a ser adotado, em outros

campos do saber, como se fosse uma proposta teórica. O que era um modelo analítico

que mostrava como categorias e noções são construídas através de práticas discursivas

Page 150: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

148

ganhou estatuto de uma teoria da sexualidade, apesar de estar longe de ser um conjunto

de axiomas que se pretendam universais80 (ibid.14-17). Culler resume assim o que se

entende por teoria hoje: uma prática interdisciplinar, normalmente um discurso com

efeitos fora de sua disciplina original, de caráter analítico e especulativo, que representa

a tentativa de entender o que está envolvido naquilo que se está estudando

especificamente. Constitui-se normalmente como uma crítica ao senso comum, aos

conceitos considerados como naturais e às próprias categorias de sua própria reflexão

(ibid.:23).

Uma das características marcantes dessa “teoria” é que ela é virtualmente

infinita, pois consiste num corpus em constante expansão, graças a um processo

contínuo de novos acréscimos e de revisões. Por ser ilimitada, ela é, conseqüentemente,

impossível de se dominar, e provocaria nos indivíduos um efeito contrário ao que dela

se espera: quem estuda teoria esperando saber sobre um determinado fenômeno,

descobriria saber cada vez menos sobre ele. Culler, entretanto, parece ver com simpatia

esse efeito de atordoamento que a teoria provoca em quem resolve por ela se aventurar

— e que, segundo ele próprio, seria uma das principais causas de resistência a ela. O

ensaísta endossa esse estatuto negativo da teoria, acreditando que sua justa função deva

ser exatamente a de desfazer premissas e postulados.

Culler entende haver nos Estudos Literários dois projetos teóricos possíveis: um

poético, de cunho lingüístico, que se interessaria por como os sentidos e os efeitos são

possíveis, e outro hermenêutico, voltado para a interpretação das formas (ibid.64-65).

Atualmente, o primeiro modelo teria sido amplamente suplantado pelo segundo, já que

os culturalistas não se interessam pelo funcionamento da Literatura e buscam as obras

apenas por acreditarem que elas podem dar subsídios para suas reflexões. Assim, o que

se chama hoje de escolas ou abordagens teóricas da Literatura, antes de serem modelos

de interpretação, seriam discursos que têm a tendência de dar tipos específicos de

respostas à pergunta sobre aquilo de que trata determinada obra, baseadas no que elas

consideram particularmente importante para a cultura e a sociedade:

(...) “a luta de classes” (marxismo), “a possibilidade de unificação da experiência” (New criticism), “conflito edipiano” (psicanálise), “a contenção de energias subversivas” (novo historicismo), “a assimetria das relações de

80 Esse tipo de trabalho, como também o método desconstrucionista de Derrida, atrairia os estudos literários por seu caráter especulativo, que incita a se repensar as categorias fundamentais da literatura (cf. ibid.:22).

Page 151: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

149

gênero” (feminismo), “a natureza autodesconstrutivista do texto” (desconstrução), “a oclusão do imperialismo” (teoria pós-colonial), “a matriz heterossexual” (gay and lesbian studies) (ibid.:67).

Algumas dessas “correntes” teóricas propõem explicações para o funcionamento

da Literatura — e participariam, assim, do projeto da poética —, mas funcionam muito

mais como projetos hermenêuticos que “dão origem a tipos específicos de interpretação

nos quais os textos são mapeados numa linguagem-alvo”. Culler admite que, nesse

movimento, algumas vezes a resposta é previsível, mas o que seria importante no jogo

da interpretação não é tanto a resposta que se dá, mas o caminho percorrido, “o que

você faz com os detalhes do texto ao relacioná- los com sua resposta” (ibid.:67-8).

Mais uma vez, o ensaísta não acredita que esse seja um problema: ele rechaça os

defensores das teses intencionalistas que temem que abrir mão da autoridade do autor

possa conduzir o processo de interpretação a um “vale-tudo” onde qualquer obra passe a

significar qualquer coisa. Para Culler, o texto resistiria às leituras e exigiria do analista

um esforço “para convencer os outros da pertinência de sua leitura” (ibid.:68). O sentido

de uma obra não seria fundamentalmente nem o que o autor tinha em mente, nem uma

propriedade do texto, nem uma função da experiência do leitor (ibid.:69), mas algo

dinâmico que acompanha o alargamento ou a redescrição do seu contexto de leitura —

algo que os discursos teóricos contemporâneos teriam explorado muito bem.

Culler não considera produtivo dividir os Estudos Literários entre os que

produzem interpretações que buscam um sentido original e os que vasculham o texto à

busca de sentidos ocultos. Entende que a busca de um sentido primordial pode muito

bem reduzir o poder de um texto, enquanto uma leitura atenta a novos significados seria

capaz de potencializar e tornar novamente atual, por suas relações com questões atuais,

um texto (ibid.:70-1). Melhor seria distinguir entre os que produzem interpretações

“reconstrutivas” — por entenderem que os textos, revelados em seu funcionamento, têm

algo valioso a dizer — e os que produzem interpretações “sintomáticas” — que tratam o

texto como índice de algo não-textual, “fonte real de interesse, seja ela a vida psíquica

do autor ou as tensões sociais de uma época ou a homofobia da sociedade burguesa”

(ibid.:71).

O ensaísta tem consciência de que os Estudos Literários orientados por

interpretações sintomáticas, por negligenciarem a especificidade do objeto e o

tomarem claramente como um signo de outra coisa, são insatisfatórios enquanto

Page 152: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

150

modelos interpretativos — afinal, acredito, elas não estariam, efetivamente,

interpretando as obras, mas as instrumentalizando. Culler, contudo, também entende

que essas práticas sintomáticas podem ser úteis, porque forneceriam explicações sobre

a prática social da qual a obra funciona como exemplo.

Embora em diversas passagens do manual Culler critique os Estudos Culturais 81,

ele parece quase sempre empenhado em mostrar que não há perdas, mas apenas

transformações, nessa nova realidade da Teoria da Literatura. Mas não consegue negar

que é muito difícil se imaginar que se possa conciliar os interesses daqueles que

pretendem entender as especificidades de funcionamento de algo chamado Literatura

com os interesses culturalistas no objeto literário — a Literatura como fonte de

materiais para teorização sobre raça, gênero, sexualidade, micro e macro-políticas,

questões de construção de identidade etc. (ibid.:109). Por muitas vezes, ele mesmo

admite o quanto o culturalismo enfraquece algumas das práticas características dos

Estudos Literários, quando, por exemplo, lamenta que a poesia tenha estado em segundo

plano, por efeito de teorias que afirmam “a centralidade cultural da narrativa” (ibid.:84).

Ele tampouco é convincentemente enfático quando argumenta não haver risco de se

poder falar qualquer coisa sobre uma obra, porque o texto não aceitaria leituras

abusivas. Essa suposta “resistência” do texto tem-se mostrado muito frágil diante de

métodos hermenêuticos determinados a usar a obra literária como ilustrações de suas

concepções prévias — vejam-se, por exemplo, os comentários de Freadman e Miller

sobre as análises desconstrucionistas da Literatura. Mesmo na questão do cânone,

quando assume de modo explícito a defesa do culturalismo e argumenta que os Estudos

Literários jamais elegeram suas obras através de critérios estritamente literários, ele

parece dizer, de revés, que os Estudos Culturais não estão realmente empenhados em

criticar os critérios de canonização, mas apenas desejam acrescentar mais obras de valor

duvidoso ao oscilante cânone literário.

Por fim, a visão de Culler, de que a teoria é ilimitada e que não tem por objetivo

oferecer soluções harmoniosas, mas apenas novas perspectivas de reflexão (ibid.:117), é

precária, especialmente quando se precisa pensar a Teoria da Literatura como um ramo

81 Culler tem reservas, por exemplo, quanto ao fato de as descrições culturais representarem, como pretendem, uma intervenção política progressista, especialmente nos EUA. A aversão dos culturalistas americanos ao elitismo dos estudos literários tradicionais não poderia ser dissociada de uma “tradição filistina” americana [,] e o desprezo pela chamada alta cultura não chegaria a ser “um gesto politicamente radical ou de resistência” (ibid.:57).

Page 153: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

151

do conhecimento. É improvável que uma disciplina possa construir alguma forma de

saber quando parece ter por objetivo único a formulação de hipóteses que se destruam

contínua e sucessivamente. Se, em suas origens, a teoria pretendeu ser uma reflexão que

permitiria falar-se da obra literária com algum rigor, ela se transformou, na descrição de

Culler, num conjunto infinito e assistemático de práticas discursivas, ora de cunho

analítico ora de cunho especulativo, sobre qualquer artefato cultural — inclusive a

Literatura.

5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER?

Lançado na França em 1998 e traduzido para o português em 2001, O demônio

da teoria; Literatura e senso comum, representa uma mudança de concepção em

relação aos manuais dos anos 80 e 90. Embora parta de um ponto muito semelhante ao

de Culler — o de que o principal efeito da teoria seria a contestação contínua dos

saberes do senso comum —, Antoine Compagnon procura resgatar a importância dos

tópicos, dos procedimentos e dos conceitos específicos dos Estudos Literários, mostrar

o quanto eles podem ser produtivos e como podem sim ajudar a constituir uma

disciplina que mereça a denominação de teoria.

Fundamental na proposta do ensaísta francês é sua percepção de que a teoria se

deixou paralisar por suas próprias armadilhas teóricas ou, em muitos casos, ardis

retóricos. Ele pretende mostrar que os grandes temas enfocados pelos Estudos Literários

ao longo dos séculos permanecem atuais. Eles teriam sobrevivido mesmo aos teóricos

que acreditam que quando uma noção chega ao domínio do senso-comum ela perde sua

condição de relevância. Para Compagnon, o futuro dos Estudos Literários dependerá do

sucesso em se abandonar a propensão às reflexões radicalmente dicotômicas sobre as

questões centrais de nosso campo de estudos.

5.2.1 - Do conceito de Literatura

Após se acompanhar cinqüenta anos de manuais de teoria, todos com seu

indefectível capítulo voltado ao tema do conceito de Literatura, não chega a ser

surpreendente que já não haja grandes novidades de conteúdo na exposição de

Page 154: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

152

Compagnon. Ele descreve as dificuldades relativas às definições lato e stricto sensu —

as primeiras não conferem especificidade ao objeto Literatura, as segundas não

conseguem dar conta de sua variabilidade extrema — e considera que grande parte do

problema estaria em não se respeitar a distinção entre o nome “Literatura”, este

relativamente novo, e a coisa “Literatura”. Ao não se considerar essa diferença,

surgiriam as contradições entre um ponto de vista histórico, que quer contextualizar o

conceito, e um ponto de vista lingüístico, que pretende descrever os traços

característicos do objeto. As duas perspectivas, irredutíveis entre si, conduzem sempre a

uma aporia que a teoria contemporânea “resolveria”, em geral, de modo sociológico,

apontando o conjunto dos usos do termo “Literatura” como o máximo de definição que

se pode dele extrair.

Compagnon não acata essa solução do impasse e formula uma definição de

Literatura muito próxima à de Jonathan Culler: os textos literários seriam “aqueles que

uma sociedade utiliza, sem remetê- los necessariamente a seu contexto de origem”, por

presunção de que sua pertinência não se reduziria ao contexto de sua enunciação inicial.

Conseqüentemente, é a sociedade que decidiria “se certos textos são literários fora de

seus contextos originais” (ibid.:45). Ele tem consciência de que tal conceituação é,

inevitavelmente, uma petição de princípios. “Literatura é Literatura, aquilo que as

autoridades (os professores, os editores) incluem na Literatura. (...) é impossível passar

de sua extensão à sua compreensão, do cânone à essência” (ibid.:46).

Atualmente, o foco de atenção estaria sobre a extensão do conceito, e as

tentativas de se limitar sua compreensão são consideradas como uma seqüência

histórica de fracassos. A noção de Literatura tornou-se provavelmente mais ampla do

que era para a Filologia do século XIX, e recobre um conjunto de objetos que vai dos

clássicos às histórias em quadrinho. O critério dessa dilatação na extensão do conceito,

longe de ser literário ou teórico, estaria ligado ao declínio dos pressupostos humanistas

e formalistas que marcaram os primeiros anos da Teoria da Literatura, bem como à

ascensão de critérios políticos, éticos, sociais e ideológicos. Para Compagnon, o

aparecimento desses novos princípios de avaliação das obras literárias está intimamente

relacionado aos rumos que a Teoria da Literatura imprimiu aos Estudos Literários nas

últimas décadas do século passado.

Page 155: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

153

5.2.2 - Os Estudos Literários e as armadilhas das dicotomias

O ponto forte da argumentação de Compagnon é sua tentativa de resgatar a

pertinência e a validade de certos conceitos e categorias dos Estudos Literários. É

particularmente produtiva sua demonstração de como noções como a de intenção do

autor ou a de mímesis constituem-se ainda em poderosos pressupostos para o campo de

estudos da Literatura, a despeito do descrédito com que foram tratadas ao longo das

últimas décadas do século XX.

A intenção do autor permaneceria sendo uma categoria válida, pois, mesmo os

seus detratores mais radicais — teóricos que, como Roland Barthes, postularam a

“morte do autor” —, se valeriam de noções como ironia ou sátira, que só podem ser

compreendidas a partir de uma idéia de intenção — alguém diz uma coisa de modo a se

fazer compreender outra. A crença na intencionalidade estaria também intimamente

relacionada ao que Compagnon chama de procedimento essencial de pesquisa literária,

a técnica das passagens paralelas:

Quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua dificuldade, sua obscuridade ou sua ambigüidade, procuramos uma passagem paralela, no mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer o sentido da passagem problemática (ibid.:68).

Compagnon argumenta que a técnica de se usar um determinado trecho para se

explicar uma outra passagem do mesmo texto — ou de um outro texto do mesmo autor

—, além de ser bastante antiga e amplamente generalizada, não é objeto de muitas

controvérsias dentro dos Estudos Literários. Mesmo os teóricos defensores da falácia da

intenção não se privam de empregar o método das passagens paralelas em suas

interpretações, sem perceber que tal procedimento se baseia não apenas na pertinência,

mas principalmente na coerência da intenção do autor, sem a qual o paralelismo seria

um índice frágil demais e apenas o resultado de uma coincidência aleatória (ibid.:75).

As coerências ou as contradições que se apontam através do emprego do método

das passagens paralelas “caracterizam implicitamente o texto produzido pelo homem,

por oposição àquele que comporia um macaco datilógrafo, a erosão da água sobre um

rochedo, ou uma máquina aleatória” (ibid.:76). Trata-se, pois, de um procedimento que

visa a “explicar” um texto, partindo-se do pressuposto de que uma obra é o resultado de

uma organização deliberada e de que seus elementos de composição podem ser

Page 156: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

154

descritos e tornados inteligíveis em função de um propósito que a antecede. Compagnon

argumenta francamente contra Barthes, defendendo não ser possível se tratar a

Literatura como um texto aleatório, apenas como língua em estado bruto, e propõe que

se deva entendê-la como palavra, discurso e atos de linguagem (ibid.:79). Perguntar por

aquilo que quer dizer um texto é sempre perguntar por aquilo que quer dizer o autor, ou

seja, um antiintencionalista seria, na verdade, indiferente “não só àquilo que o autor

quer dizer, mas também, e principalmente, àquilo que o texto quer dizer” (ibid.:85). Na

prática, nem mesmo os maiores adversários da intencionalidade acreditariam não haver

um propósito significativo em um texto — o ensaísta cita como exemplo uma réplica de

Jacques Derrida a John Searle, quando o filósofo francês diz ao americano “Não foi isto

que eu quis dizer”, e contradiz na prática sua tese da indeterminação da linguagem

(ibid.:89-90).

Compagnon, contudo, não defende incondicionalmente as teses intencionalistas.

Fiel à sua definição de Literatura — é próprio do texto literário escapar de seu contexto

de origem —, ele contesta os estudos que se baseiam exclusivamente na

recontextualização da obra, e que, ao assim procederem, conduziriam um texto literário

à condição paradoxal de não-Literatura, por negarem justamente o processo que faz dele

Literatura (ibid.:82). Seu argumento é engenhoso, porém falacioso: não faz sentido se

pensar que o contexto de origem sempre restituiria o texto a um estado de não-

Literatura, pois isso significaria dizer que não se poderiam ler obras literárias de autores

nossos contemporâneos (afinal, estariam todas em seu contexto de origem...). Não

parece implicado na hipotética assertiva de ser a obra literária um texto que continua

a significar fora de seu contexto que essa mesma obra, em seu contexto original, não

possa ser considerada literária, ao não ser que se tome “contexto” numa acepção tão

restrita que se aproxime de “sentido literal”. Ao propor que a recontextualização elimina

a literariedade de um texto, Compagnon assume uma posição tão insustentável e radical

quanto algumas das teses extremas que critica ao longo do manual, e se esquece de sua

própria proposição de que a obra de arte é “eterna e histórica. Paradoxal por natureza,

irredutível a um de seus aspectos, é um documento histórico que continua a

proporcionar uma emoção estética” (ibid.:202).

Embora recuse o radicalismo de algumas teses intencionalistas, Compagnon

defende que a concepção de sentido de uma obra humana deve compreender a noção de

Page 157: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

155

atividade intencional e, por conseguinte, a crença de que as palavras nela empregadas

querem dizer alguma coisa. Basear-se num texto implica “invocar um critério de

coerência e complexidade imanentes” que apenas a hipótese de uma intenção justificaria

(ibid.:94). Quando se nega a intenção do autor e se dá à obra um outro autor — o leitor

— faz-se dela uma outra obra. Mais que um erro interpretativo, Compagnon vê aqui

uma questão ética: “A responsabilidade crítica, frente ao sentido do autor,

principalmente se esse sentido não é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de

um princípio ético de respeito ao outro” (ibid.:95).

Admitir a intenção como um critério concebível de se fundamentar a validade de

uma interpretação não significa defender uma identificação plena com uma

premeditação “clara e lúcida” (ibid.:79). O que o texto disse em seu contexto de

produção e o que o texto diz no do leitor hoje podem ser dados complementares e não

concorrentes. A significação de uma obra não se esgota e nem é estritamente

equivalente à sua significação para o autor e seus contemporâneos, mas é o produto de

uma acumulação de significados. Compagnon aceita a distinção feita por Hirsch entre

sentido e significação — mencionada no capítulo 4 deste trabalho —, e acredita que

marcar a prioridade lógica do sentido em relação à significação suprime a contradição

entre as teses intencionalistas e a existência de outras interpretações. Dizer que uma

obra é inesgotável não precisa querer dizer que ela não possua um sentido original

relacionado à intenção de seu autor: “O que é inesgotável é sua significação, sua

pertinência fora do contexto de seu surgimento” (ibid.:88).

O que fazemos do texto é uma coisa, o que o texto fazia quando nasceu é outra e

o que se vem fazendo com o texto ao longo da história é ainda uma terceira coisa: nesse

sentido, se a interpretação de um texto literário consiste, acima de tudo, na identificação

do ato de fala inicial realizado pelo autor, não significa que a interpretação se encerre

por aí: “Numerosas são as implicações e associações de detalhes que não contradizem a

intenção principal, mas cuja complexidade é (infinitamente) mais particular, e que não

são intencionais no sentido de premeditadas” (ibid.:90-91).

Outro exemplo de dicotomia nos Estudos Literários está relacionado ao tema da

mímesis. Os teóricos teriam exagerado na atenção dada às relações entre os textos e, em

conseqüência, superestimaram “as propriedades formais dos textos em detrimento de

sua função referencial” (ibid.:111). Novamente, Compagnon procura livrar-se da

Page 158: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

156

“maldição do binarismo” — nesse caso específico, da necessidade de se optar entre (i)

as teses que postulam a Literatura como uma representação da realidade e (ii) as que

sustentam que a Literatura só fala de Literatura —, que obrigaria a escolha entre duas

posições insustentáveis. O ensaísta argumenta que os teóricos que manifestam aversão

pelas ligações entre Literatura e realidade se baseariam, geralmente, em concepções

limitadas ou ultrapassadas de referência e, em virtude de uma confusão recorrente entre

as questões de referência na língua e a escola realista em Literatura, tomariam o

realismo literário como modelo ideal de seus ataques (ibid.:126).

Além de considerarem apenas um tipo específico de crítica e de Literatura, os

anti-referencialistas, ao tomarem radicalmente a noção saussuriana de arbitrariedade do

signo 82, teriam efetivamente substituído a realidade pela linguagem como fonte de

sentido dos textos. A língua transformou-se assim num poder absoluto e tirânico,

especialmente para aqueles teóricos que estabelecem uma íntima identificação entre

Teoria da Literatura e crítica da ideologia. Esse modelo de pensamento seria, contudo,

repleto de contradições. A possibilidade de se criticar um sistema de poder residiria no

justo fato de que a língua não pode ser simplesmente assimilada à ideologia (ibid.:125),

uma vez que é exatamente através dela que se revelariam os mecanismos ideológicos.

Além disso, qualquer acusação de ilusão referencial precisaria estar ancorada em

algum tipo de percepção de haver uma inadequação de referência, o que só seria

possível a partir da aceitação de haver alguma forma “correta” de representação. Apesar

dessas incoerências, a linguagem se converteu em uma onipotência e os Estudos

Literários passaram

(...) de uma total ausência de problematização da língua literária, de uma confiança inocente, instrumental (...) na representação do real e na intuição do sentido, a uma suspeição absoluta da língua e do discurso, a ponto de excluir toda representação (ibid.:126).

Para Compagnon, reintroduzir a realidade na Literatura significa dar um passo

decisivo na direção de um regime de ponderação capaz de entender que não é pelo fato

de a Literatura falar da Literatura que ela está impedida de também falar sobre o mundo.

Afinal, seria razoável supor que, “se o ser humano desenvolveu suas faculdades de

linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem” (ibid.:126-7).

82 Compagnon faz aqui as mesmas críticas de Freadman e Miller à aceitação indiscriminada de certas doutrinas de Saussure por certos teóricos.

Page 159: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

157

Após reivindicar a reintrodução de temas como “autor” e “realidade” no

conjunto de preocupações da teoria, Compagnon passa a refletir sobre o papel que a

História deve desempenhar nos Estudos Literários. Mesmo que os teóricos da Literatura

recusem os fundamentos e os métodos dos historiadores, não lhes é possível negar que

muitas das diferenças entre as obras literárias são, ao menos em parte, históricas,

tornando legítimo se indagar de qualquer teoria “como ela explica essas diferenças

históricas, como as define, como as situa” (ibid.:198).

Compagnon não acredita que a História da Literatura ou a História Literária

tenham desempenhado bem seus papéis dentro dos Estudos Literários. A primeira ele

desqualifica inteiramente, descrevendo-a como uma tentativa de síntese ou panorama

que na maioria das vezes não produz “história”, mas uma “simples sucessão de

monografias sobre os grandes escritores e os menos grandes, apresentados em ordem

cronológica” (ibid.:199-200). A segunda83 ele entende ser ora uma disciplina ora um

método de pesquisa originados no século XIX, de fortes traços filológicos e positivistas,

através da qual a pesquisa universitária pretendeu substituir tanto a erudição quanto uma

Crítica Literária dogmática e impressionista. Tendo por hipótese central de trabalho a

proposição de que o escritor e a obra devem ser compreendidos em seu contexto

original, a História Literária se teria deixado aprisionar pelo gosto pela “explicação

genética baseada no estudo das fontes” (ibid.:200).

Mesmo o esforço da História Literária em se separar da Crítica nunca teria

chegado a ser bem sucedida, no entender de Compagnon. Em primeiro lugar, porque a

própria expressão Crítica Literária84 sempre foi ambígua, ora significando a totalidade

dos Estudos Literários ora a parte que diz respeito aos juízos. Além disso, a confiança

dos historiadores na objetividade dos fatos — que os levava à crença da cientificidade

na constatação “A deriva de B”, ao passo que a operação crítica “A é melhor que B”

seria apenas um julgamento de valor baseado na subjetividade — foi denunciada como

83 Ele é bastante impreciso em sua caracterização da história literária, chegando por vezes a identificá-la erroneamente com a Filologia ou com os próprios estudos literários acadêmicos: “Por história literária compreendo (...) um discurso que insiste nos fatores exteriores à experiência da leitura, por exemplo, na concepção ou na transmissão das obras, ou em outros elementos que em geral não interessam ao não-especialista. A história literária é a disciplina acadêmica que surgiu ao longo do século XIX, mais conhecida, aliás, com o nome de filologia, scholarship, Wissenchaft , ou pesquisa” (ibid.:22). 84 Ele entende por crítica literária “um discurso sobre as obras literárias que (...) que descreve, interpreta, avalia o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade (...)” (ibid.:22).

Page 160: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

158

infundada pela teoria, que contestou essa suposta polarização, enquanto sonhava ela

mesma em renunciar aos dois procedimentos.

A teoria tinha razão ao apontar que o factualismo e o objetivismo da História

Literária não podiam ser tomados de forma absoluta, pois não era tão simples quanto os

historiadores supunham pôr de lado seus próprios julgamentos para se reconstruir o

passado. Contudo, ela teria se excedido em suas críticas, quando postulou ser

irremediavelmente impossível se penetrar nas mentalidades antigas (ibid.:204), e

inviabilizou, deste modo, o próprio projeto de produção de conhecimento histórico. Em

outras palavras, se era justo alertar para que não se tomasse a descrição historiográfica

como realidade incontestável, não era pertinente encará- la como irremediável e

aprioristicamente falsa.

Expulsas pela teoria, a história e a realidade teriam retornado triunfalmente aos

Estudos Literários nas últimas décadas do século XX, sob a forma dos Cultural Studies,

do New Historicism norte-americano e dos estudos do pós-colonialismo, práticas que

seriam por muitos consideradas antiteóricas ou antiliterárias exatamente pela forte

oposição ainda existente entre teoria e história na mentalidade do campo de estudos de

Literatura. Compagnon não crê que se possa negar a elas o estatuto de teoria, mas

admite que seja razoável lhes censurar “o fato de não conseguirem estabelecer uma

ponte com a análise intrínseca” das obras literárias (ibid.:222). Essa difícil conciliação

entre os interesses dos Estudos Literários, culturais, históricos e políticos é um problema

que caberia exatamente à teoria resolver.

5.2.3 - Uma disciplina ambivalente

Compagnon faz uma distinção curiosa entre Teoria da Literatura e Teoria

Literária. Aquela seria uma espécie de metacrítica dos Estudos Literários e teria por

objetivo refletir sobre os discursos de base da crítica e da História Literária (O que é

Literatura? Qual é a relação entre Literatura e autor, entre Literatura e realidade, entre

Literatura e leitor, entre Literatura e linguagem?). Já a segunda seria a instância crítica

da primeira e deveria procurar revelar os pressupostos, códigos e convenções através

dos quais a Teoria da Literatura responde àquelas questões fundamentais dos Estudos

Literários (ibid.:24-5).

Page 161: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

159

Ao longo do livro, porém, tal distinção parece ser dispensável. Compagnon não

expressa formalmente quais seriam as diferenças de métodos e de procedimentos que

permitiriam à Teoria Literária criticar a Teoria da Literatura, tampouco esclarece qual o

teor “literário” de uma reflexão que não seria exatamente dedicada às questões

relacionadas à Literatura, mas aos fundamentos e pressupostos de uma outra disciplina.

Sobretudo, ele mesmo não respeita muito sua própria distinção, e na maior parte das

vezes emprega simplesmente o termo teoria, sem explicitar se o complemento é

“literária” ou “da Literatura”.

Apesar dessas obscuridades, creio poder-se dizer que Compagnon acredita ser a

função tanto da Teoria da Literatura quanto da Teoria Literária organizar os Estudos

Literários. Ele define a teoria como uma “epistemologia” (ibid.:20), embora lhe negue o

estatuto de filosofia da Literatura, alegando que ela não teria caráter especulativo ou

abstrato, mas analítico. Trata-se de uma passagem contraditória, pois, além de as

epistemologias serem fundamentalmente filosóficas, não há nada de inadequado em ser

analítica uma filosofia, e, no fundo, Compagnon pensa a teoria como uma disciplina de

caráter filosófico, dedicada à avaliação dos pressupostos de valoração da crítica e dos

pressupostos de contextualização da História Literária.

Tendo por meta problematizar as afirmações e mostrar que todas podem ser

respondidas de diversas maneiras, Compagnon admite que a teoria seja uma disciplina

relativista, embora não pluralista. Ela se constituiria como um conjunto de doutrinas,

dogmas e ideologias que, num domínio em que a experimentação não é possível,

proliferam a ponto de haver tantas teorias quanto teóricos (ibid.:23). Entretanto, embora

sejam muitas as respostas possíveis, elas não seriam compossíveis, e se excluiriam

“mutuamente, porque não chamam de Literatura, não qualificam como literária a

mesma coisa; não visam a diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes

objetos” (ibid.:26).

Compagnon parece ciente de que a distância entre o pluralismo e o relativismo é,

em muitos casos, apenas uma questão de grau. Diante de problemas que não podem ser

resolvidos de modo objetivo e imediato, a teoria radicalizou suas posições e passou a

eliminar os impasses da maneira mais sumária possível: tornando ilegítimas as questões

que atentassem contra o caráter relativístico do conhecimento por ela promovido. Teria

sido assim que termos de uso corrente nos Estudos Literários (Literatura, autor,

Page 162: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

160

intenção, sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade,

história, influência, período, estilo) deixaram de ser encaradas como temas básicos e

foram lançadas ao limbo dos problemas caducos, pois formulados a partir de projetos de

saber taxados de positivistas, ideológicos, ingênuos etc.

O argumento principal de Compagnon é o de que essa fuga das questões

fundamentais intensificou o antagonismo entre a teoria e senso comum. A atração dos

teóricos pelos paradoxos — como o da morte do autor ou o da indiferença da Literatura

pelo real — e sua pouca disposição em ser razoável e matizar suas assertivas

corresponde ao que ele chama de o demônio da teoria, uma tendência auto-sabotadora

que seria responsável por ter mergulhado a reflexão sobre a Literatura em um

emaranhado de posições teóricas absurdas que se confrontam até perderem de vista seu

próprio objeto, a obra literária.

Aturdida diante de sua incapacidade de justificar racionalmente suas

preferências, avessa às constatações empíricas de consensos e tendo perdido a fé na

possibilidade de uma terceira via entre um objetivismo insustentável e um subjetivismo

incômodo, a teoria contemporânea clamou para si o mesmo estatuto relativo que

concedeu à Literatura. Diz Compagnon: “Não há por que pedir contas de seus

fundamentos epistemológicos nem de suas conseqüências lógicas. Assim, não há

diferença entre um ensaio de Teoria Literária e uma ficção” (ibid.:259). Mesmo um dos

únicos méritos dessa prática teórica demolidora — seu poder de “abalar as idéias

preconcebidas, de sacudir a boa consciência ou a má fé da interpretação” — tornou-se

uma espécie de vitória de Pirro, em que as certezas por ela produzidas “são tão

maniqueístas quanto aquelas de que era preciso se desvencilhar” (ibid:260).

Esse momento crítico experimentado pela teoria teria duas causas relacionadas

ao caráter bivalente da disciplina: além de sua radicalidade autodestrutiva, que contesta

“toda posição sensata para chegar a uma posição enfim ‘infalsificável’, pois

insustentável” (ibid.:159), ela também sofreria com a estagnação que experimenta ao ser

traduzida para as salas de aula e transformada em uma ciência de apoio à análise e à

interpretação do texto. Quando institucionalizada, a teoria transforma-se em “uma

pequena técnica pedagógica, freqüentemente tão árida quanto a explicação de texto, que

ela atacava, então, energicamente” (ibid.:13). Essa valência esquizofrênica da Teoria da

Literatura — por um lado uma subversiva crítica às construções e convenções

Page 163: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

161

históricas, por outro uma prática destinada a ser transformada em um pequeno método

pela Academia — seria reflexo da dificuldade encontrada pelos teóricos em “preservar o

equilíbrio entre os elementos da Literatura”:

Os literatos não são adeptos do meio-termo (...): ou a intenção do autor é a realidade da Literatura ou, então, ela é somente uma ilusão; ou a representação da realidade é a realidade da Literatura, ou, então, ela é somente uma ilusão; (...) ou o estilo é a realidade da Literatura ou, então, ele é somente uma ilusão, e dizer de outra forma a mesma coisa é em realidade dizer outra coisa (ibid.:187-8).

Qual o caminho para a superação dessa crise? Compagnon é evasivo e prega

uma espécie de agnosticismo teórico. Declara não advogar a causa de uma teoria entre

outras, nem a do senso comum, mas a de uma crítica a todas as teorias, inclusive ao

senso comum. Defende, pois, a dúvida hiperbólica diante de todo discurso sobre a

Literatura que, no fim das contas, redundaria em um constante estado de perplexidade.

Trata-se de um desfecho contraditório. Ao tomar a Teoria da Literatura como

uma epistemologia, ele realmente a descreveu como uma escola de relativismo, mas

negou- lhe a possibilidade de ser pluralista, uma vez que a necessidade de se fazer

escolhas seria inevitável. Para se estudar Literatura seria indispensável se tomar partido,

pois os métodos não se somam e o ecletismo não leva a lugar algum (ibid.:262).

Também é claro que Compagnon, ao longo do livro, posiciona-se contra ou a favor de

certas teses, e admite, numa auto-avaliação, que o fato de não ter estendido sua pesquisa

até os anos 90 talvez pudesse se dever à circunstância de que, “depois de 1975, não

tenha sido publicado nada de interessante [.]” (ibid.:262). Por que então essa súbita

contemporização em sua conclusão?

Como ocorrera antes com Jonathan Culler, Compagnon resignadamente atribui à

teoria o objetivo de “desconsertar”, “contestar” e “denunciar” as ilusões produzidas

pelos discursos sobre a Literatura, provindas da academia ou do senso comum. Mas se a

teoria for de fato apenas essa prática negativa que se esforça em demonstrar a

impossibilidade de qualquer conhecimento efetivo sobre a Literatura, ela presta então

um desserviço aos Estudos Literários. Compagnon provavelmente concorda que o

relativismo representa um mal tão grande para os Estudos Literários quanto qualquer

dogmatismo, mas o tom reticente com que conclui seu manual, abrindo mão de se

comprometer com as posições que sustentou ao longo de sua argumentação, revelam

Page 164: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

162

exatamente a força que a consciência relativística exerce, em nosso tempo, sobre o

nosso campo de estudos.

Page 165: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

163

6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL

Não deixa de ser curioso num trabalho dedicado á Teoria da Literatura haver um

capítulo que se organize a partir das idéias de nação e de cronologia, duas categorias

estritamente ligadas àquela que foi a grande adversária dos primeiros teóricos: a

História da Literatura. Entretanto, como aqui se defende que uma das maiores

qualidades da reflexão teórica é ter a consciência de seus limites e da importância de

outros enfoques para a produção do conhecimento no âmbito dos Estudos Literários,

dedico esse capítulo a relacionar cronologicamente e a comentar de maneira sucinta os

manuais de Teoria da Literatura publicados originalmente no Brasil.

O critério empregado na seleção da obras foi o mesmo utilizado com as

estrangeiras, e acabou conduzindo à confirmação de que, também em nosso país, o

nome antecedeu a coisa85: antes do manual fundador de Wellek e Warren, foram aqui

lançados ao menos dois livros com títulos que continham a expressão Teoria da

Literatura, embora descrevessem uma abordagem do fenômeno literário que em pouco

ou nada se assemelhava à que caracterizaria a disciplina ao longo do século XX.

6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES

O termo “Teoria da Literatura” aparece precocemente no campo de Estudos

Literários brasileiro. Em 1935, Estêvão Cruz publicou um livro denominado Teoria da

Literatura, cujo subtítulo, “para uso das escolas, e de acordo com os programas oficiais

vigentes”, já revelava o caráter da obra e seu público-alvo. Sua orientação didática e sua

fidelidade às grades curriculares da época são, por sinal, lamentadas por Jorge de Lima,

prefaciador da obra, ao comentar que, ainda assim,o livro ofereceria a possibilidade de

85 Roberto Acízelo (in Jobim, 1992) comenta que a primazia da utilização do termo deve ser dada aos russos Alexander Portebnia e Boris Tomachevski, autores de Notas para uma teoria da l iteratura (1905) e Teoria da literatura (1925), respectivamente.

Page 166: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

164

“se poder conhecer e pesar quanto a Literatura de hoje é divergente dos modelos

clássicos ainda obrigados nos programas oficiais” (in Cruz, 1935:7).

O elogio do poeta é apenas protocolar. A obra é aferrada a princípios

oitocentistas dos Estudos Literários, a começar pelo problema da conceituação da

Literatura. Cruz é extremamente ambíguo em sua definição de obra literária. Embora

assuma uma definição de cunho estético — “A Literatura é o conjunto das produções do

intelecto humano, faladas ou escritas, que despertam o sentimento do belo pela

perfeição da forma e pela excelência das idéias” (ibid.:13) —, ele aceita os diversos

sentidos históricos em que o termo foi empregado, bem como os sentidos que se faziam

presentes à sua época, e admite que a Literatura possa ser compreendida de uma forma

mais ampla, ainda que não vá dela se ocupar ao longo do livro. Sem maiores detalhes

que justificassem a opção, o autor deixa claro que tratará não da obra literária “em toda

a sua extensão, mas só aquela que é capaz de provocar uma emoção” (ibid.). Sua única

rejeição é às definições de cunho historicista que falem em termos de “espírito do povo”

e incluam, no âmbito da Literatura, toda a produção intelectual de um país, seja poesia,

música, romance, pintura, filosofia.

A crença em valores fixos e universais fundamenta sua visão dos Estudos

Literários — em seus termos, Crítica Literária. Cruz a define como a “análise das

produções do talento literário: um ato lógico que supõe o gosto (juízo estético) e

ilustração” (ibid.:88). A prática crítica seria um ato objetivo, pois a ilustração — “um

conjunto de princípios que permitem determinar as virtudes essenciais ou intrínsecas da

obra literária, e transmitir a outros o resultado dessa determinação” (ibid.:89) — evitaria

as idiossincrasias do gosto particular. Tais princípios, que não são explicitados pelo

autor, “ressaltariam aos olhos de todo talento crítico” e seriam responsáveis por não

permitir que o gosto pessoal se converta em obstáculo ao trabalho crítico. O caráter

normativo do manual revela-se ainda em passagens como aquela em que a arte literária

é definida como “o conjunto de preceitos segundo os quais deve ser composta a obra

literária, afim de que nos possa emocionar (...). É o meio adequado de representar o belo

literário” (ibid.:13).

Page 167: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

165

Ressalve-se, porém, que, ao contrário das primeira86 e segunda partes87 onde o

caráter retórico/poético do livro transparece de modo mais intenso, a forma da

introdução não difere dos manuais de Teoria da Literatura que lhe seguirão, e contém,

ainda que em termos muito diversos, a mesma discussão acerca das acepções usuais do

objeto de estudo, das definições do termo, de seus limites e de suas origens.

Também em 1935, Augusto Magne publica Princípios elementares de

Literatura, cujo subtítulo é “Teoria Literária”. Trata-se de outra obra de transição entre

os modelos de Estudos Literários do XIX e do XX, fortemente influenciado pela

Retórica Clássica, o que pode ser observado pela grande atenção dada às figuras e aos

tropos, bem como pela grande atenção dispensada à Eloqüência no capítulo destinado

aos gêneros.

Nove anos após o manual de Estêvão Cruz, Antônio Soares Amora lançou o seu

Teoria da Literatura, em termos um pouco mais afastados dos modelos oitocentistas de

estudo da Literatura. Pode-se mesmo observar, nas sucessivas edições do livro, as

pequenas alterações que vão sinalizando as transformações sofridas pelos Estudos

Literários entre os anos 40 e 60 do século passado, a ponto de levar o autor a lamentar,

em certo momento, a dificuldade progressiva em se sistematizar, numa obra de cunho

escolar, a problemática literária (Amora, 1971:7).

Amora entendia não ser possível constituir uma disciplina voltada aos estudos de

Literatura — em seus termos, Crítica Literária — sem uma conceituação inicial de seu

objeto. Acreditava haver dois modos de se abordar essa questão: um teórico e outro

histórico (ibid.:11). De modo perspicaz entendia que era um equívoco tentar

acompanhar a evolução semântica da palavra Literatura, pois conduziria ao erro de se

confundir a história do conceito com a da palavra (ibid.:12). Ele estabelecia ainda uma

outra distinção, entre a idéia geral e abstrata contida em um conceito e a particularidade

expressa através de uma concepção:

(...) todo e qualquer artista tem sempre uma concepção da arte, isto é, compreende e realiza a arte de determinado modo; mas muito freqüentemente não chega a estabelecer um conceito de arte. À crítica, ou mais propriamente, à Teoria Literária, é que tem cabido a tarefa de analisar e conceituar essas diversas concepções (ibid.:12).

86 A primeira parte é denominada “A arte literária em sua unidade”, e é composta pelos seguintes capítulos, todos de orientação retórica: V – A invenção; VI – A disposição; VII – A elocução ou estilo; VIII – A linguagem; IX – A linguagem literária; X – A linguagem figurada e XI - A Crítica Literária 87 A segunda parte é denominada “A arte literária em sua variedade”, e é composta pelos seguintes capítulos: XII – Poesia épica; XIII – Poesia lírica e dramática; XIV – A didática e XV – A oratória.

Page 168: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

166

Seria uma ilusão se achar que um único conceito ou uma única concepção de

Literatura exista a cada momento histórico: conceitos e concepções são múltiplos,

diversificados e, muitas vezes, absolutamente incompatíveis entre si (ibid.:13). Quanto a

sua própria noção de Literatura, Amora descrevia a obras literárias como ficção: uma

forma de conhecimento em que a realidade é recriada e expressa numa supra-

realidade , que não possuiria compromissos de identidade com a realidade racional ou

sensível (ibid.:32). Ele é contundente ao defender a Literatura como representação: o

que conferiria a um texto o caráter de obra literária não seria nem a natureza da

expressão nem seus objetivos, mas a natureza do seu conteúdo.

Procurando diferenciar seu livro dos outros manuais de orientação retórica e

poética voltados ao ensino da Literatura, Amora defendia que um livro didático não

poderia consistir em simples resumos dos pontos exigidos pelo programa oficial,

destinados à memorização dos estudantes. Ele pretendia ter escrito “uma obra com a

orgânica da ciência a que serve, e destinada à consulta, ao estudo e à reflexão, a que o

estudante tem de se habituar” (ibid.:8). Trata-se de uma postura progressista, quando se

lembra que, ainda nos anos 60 do século passado, continuavam a ser lançadas obras

como Teoria Literária (1965), de Hênio Tavares, obra que, apesar do título e da data de

lançamento, chama atenção por ter sido, ao longo de sua extraordinária vitalidade

editorial88, absolutamente imune a todas os temas desse efervescente período da Teoria

da Literatura, sendo por completo afinada às orientações oitocentistas dos Estudos

Literários.

Em 1967, com uma obra remodelada, Introdução à Teoria da Literatura89,

Antônio Soares Amora abandona os termos retóricos em favor de uma concepção de

teoria mais afinada com a época. É de especial interesse a esquematização dos cinco

comportamentos possíveis diante da obra literária, a que me referi no capítulo inicial

deste trabalho, bem como sua distinção entre a “Teoria da Literatura (que é o estudo

geral da Literatura e seus problemas)” a as “outras disciplinas que também se ocupam

de fatos literários — a Análise Literária, a Crítica Literária e a História Literária”

(Amora, 2004:12). Dado o grande desenvolvimento dos Estudos Literários, o autor dizia

88 A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2002. 89 A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2004.

Page 169: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

167

já não ser possível dominá- los em seu conjunto, razão por que cada uma dessas

disciplinas exigiria uma formação especializada (ibid.:151).

Sendo uma das cinco abordagens possíveis da obra literária, a Teoria da

Literatura, embora não se confunda com as demais, pois cada uma teria seus objetivos e

métodos próprios, mantém com elas uma relação íntima. Para Amora, o trabalho teórico

visa a estabelecer generalidades a partir da observação de fenômenos literários,

constituindo-se como uma disciplina de reflexão sobre os problemas da Literatura, e não

como uma série de conceitos a serem decorados pelos que estudam a matéria (ibid.:12).

Ele defendia que, como a Literatura está em constante processo de variação, também a

teoria deveria ser uma disciplina em permanente evolução (ibid.:41). Seus métodos não

poderiam ser fixos e deveriam variar conforme a natureza da obra a ser analisada.

Amora reunia no âmbito da Teoria da Literatura todo e qualquer esforço

especulativo e generalizante sobre a Literatura, o que lhe permitia contar uma história

da teoria que começava na Grécia clássica e se estendia até o século XX, quando —

após uma suposta divisão entre uma corrente de caráter cientifico e outra de caráter

filosófico — Ciência da Literatura e Filosofia da Literatura teriam dado origem a uma

só disciplina, a Teoria da Literatura, uma matéria propedêutica a qualquer tipo de estudo

da Literatura (ibid.:31-35).

6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS

Os anos 70 são pródigos em manuais de Teoria da Literatura. Em 1971, alguns

ensaios dos formalistas russos são traduzidos para o português e lançados no Brasil sob

o título Teoria da Literatura. Na introdução, Dionísio de Oliveira Toledo anunciava

uma nova era nos Estudos Literários brasileiros, em que se substituiria a crítica

conteudística e subjetiva — de autores como José Veríssimo e Otto Maria Carpeaux —

por uma prática científica atenta aos aspectos formais da obra de arte literária (Dionísio

de Oliveira Toledo in Eikhenbaum, 1971:XXIV).

Dois anos depois, Leodegário Azevedo Filho organiza Teoria da Literatura,

obra que relaciona e descreve as origens e as idéias gerais de algumas das abordagens

da disciplina no século XX, em capítulos intituladas “A Nova Crítica”, “A Estilística”,

“O Formalismo Russo”, “A Semântica Estrutural”, “O grupo Tel Quel”, “A teoria do

Page 170: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

168

reflexo de Lukács”, “O estruturalismo genético de Goldmann”, “A autonomia do

processo estético segundo Badiou” e “A Psico-crítica como crítica estrutural”. O

organizador apresenta o livro como um trabalho de equipe, destinado a suprir o grande

desconhecimento teórico existente entre professores e estudantes nos cursos superiores

de Letras. Ambicionava ter organizado um manua l “em termos modernos” — ou seja,

diferenciado de outras obras “existentes no Brasil, ou mesmo no Exterior, com idêntico

título,” que se ressentiriam da falta de atualização bibliográfica —, capaz de ajudar o

“estudante que se inicia em matéria tão complexa” e se sente desorientado diante de

uma imensa bibliografia estrangeira, especialmente a de origem francesa, que se

expandia então vertiginosamente (Azevedo Filho, 1973:7-8).

Embora defendesse a pluralidade de correntes no estudo teórico da Literatura,

Azevedo Filho alertava para o risco de as múltiplas possibilidades acabarem

redundando em “confusão de métodos de leitura, tão freqüente entre nós, inclusive em

certas teses de mestrado e doutorado” (ibid.:10). Numa época em que os Estudos

Literários presenciaram uma livre convivência de jargões e pseudojargões oriundos das

muitas e concorrentes abordagens do objeto literário, ressaltava o cuidado que pedira

aos seus colaboradores quanto à clareza da exposição:

De nossa parte, tivemos cuidado extremo (pelo menos isso foi recomendado) em evitar o bloqueio da comunicação por falha técnica do emissor, mas sem fazer concessões à comunicação de massa, concessões prejudiciais à linguagem especializada da obra. Por isso mesmo, não se encontrará aqui a clareza das paredes brancas, mas a clareza de um vocabulário técnico, utilizado por necessidade de expressão e não por esnobismo (ibid.:9, grifo meu).

A passagem, especialmente o trecho grifado, soa como uma mea-culpa. Isso

porque o capítulo dedicado à descrição da disciplina, escrito por Antônio Sérgio

Mendonça, é, de fato, um ensaio obscuro, de exposição caótica e argumentação

incompreensível. Embora utilize um aparato terminológico inspirado em certos autores

da Filosofia e da Psicanálise — é facilmente identificável a influência de Derrida,

Heidegger e Lacan, embora ele não os cite diretamente —, o autor não se dá ao trabalho

de contextualizar os conceitos empregados ou de esclarecer as categorias com a quais

trabalha. Partindo de uma enigmática distinção entre a “imanentista” Teoria da

Literatura e a “transcendente” Teoria Literária, o texto é emblemático em seu caráter

esotérico, representando, com fidelidade, o alto grau de hermetismo — e, por vezes, de

Page 171: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

169

non-sense — atingido por alguns discursos teóricos nos anos 70. Reproduzo, a título de

ilustração, dois parágrafos:

A Teoria da Literatura é, contudo, uma Teoria da Leitura. É fundamental precisarmos que, se a Escrita já estivesse presente de maneira potencial no objeto, o estilo seria apenas a forma particular de manifestá-la. Uma vez isto não acontecendo (sob pena de recorrermos a uma problemática metafísica da origem e/ou do Significado Transcendental), temos o lugar discursivo da disciplina. Se a Escritura (texto latente, deslocado e/ou condensado) não é reversível à Escrita (texto manifesto) abre-se o espaço para a leitura. Os objetos situados ao nível inconsciente, — daí a Escritura colocar-se como linguagem latente, — diferem-se de seus opostos, recortam-se e distinguem-se entre si. Assim, executaremos a leitura desta diferença. Daí a importância da Teoria da Literatura, como Teoria da Leitura da diferença literária, como não especificidade já dada. Ou seja, se o estilo não traduz a Escritura, por simplesmente reduplicar a Escrita (já que ambas não são reversíveis) abre-se o espaço do teórico. Ele diz da Leitura das condições de produção do Discurso (Antônio Sérgio Mendonça in Azevedo Filho, 1973:11).

Concluindo, pensamos que o ponto de partida para uma reflexão sobre a Teoria da Literatura reside em a concebermo s como a Teoria da Leitura que dá conta do sentido latente em sua diferenciação como tipo de discurso inconsciente. Para criticá-la, em seus próprios argumentos, diríamos que a différence (polissemia de origem) é diferenciada em seus termos (ibid.:16)

Não é de se espantar que os alunos de graduação se sentissem desorientados

diante de tais textos “introdutórios” e que passassem a rejeitar a teoria, tomando-a como

um palavrório vazio e apartado de qualquer utilidade. Responsável pela duvidosa

decisão de entregar a um “combativo (...) estruturalista de orientação lacaniana” (ibid.:

9) o dever de explicar a disciplina que dava nome a seu manual, Leodegário de Azevedo

Filho — que descreve o texto de Mendonça como “denso e sintético” — precaveu-se

contra possíveis críticas que questionassem a linguagem utilizada no livro,

aconselhando o leitor a reler o texto e a corrigir “as possíveis falhas de sua própria

formação universitária”.

Apesar dos problemas gerados por certos discursos “teóricos” que, longe de

contribuírem para o aperfeiçoamento da Teoria da Literatura, apenas a tornavam objeto

de desconfiança ou de aversão por parte de estudantes e professores, a disciplina tinha-

se institucionalizado e se fazia presente nos cursos superiores de Letras desde uma

resolução do Conselho Federal de Educação de 1962 (cf. Souza, 1999:102). Não tardou

para que sua influência se estendesse também ao ensino médio. Em 1975, o professor

Heitor Megale lançou Elementos de Teoria Literária; ensino de 2o grau, destinado,

como informa o próprio subtítulo, aos alunos do desse nível. Organizado em capítulos

que poderiam ser agrupados em quatro grandes temas — definições e conceitos,

Page 172: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

170

versificação, gêneros literários e uma longa parte (mais da metade do volume!) dedicada

à periodização literária —, o livro foi saudado pelo prefaciador, Massaud Moisés (in

Megale, 1975:s.p.), que elogia a fusão entre as novidades da Teoria Literária e “o saldo

positivo das investigações anteriores”, numa provável alusão à marcante presença no

manual de tópicos de orientação historiográfica, tais como estilos de época.

A ausência de reflexão e problematização sobre os temas e as questões da

Literatura torna o manual, efetivamente, pouco “teórico”. Argumentação, quando há, se

dá através de máximas de conteúdo dogmático, de que são exemplos: “A Literatura é

uma arte afim com outras artes, com determinadas ciências e intimamente ligada à

filosofia”; “o desenvolvimento das artes plásticas, rítmicas e cênicas é correlato ao da

Literatura” (ibid.:3). O conceito de Literatura defendido por Megale é relacionado com

arte e ficção, mas nenhuma das duas categorias é objeto de maiores esclarecimentos por

parte do autor. De forma geral, pode-se dizer que o manual é comprometido por sua

noção de Literatura por demais restrita — que talvez possamos qualificar como uma

poética da expressão, em que a gênese da obra é descrita como uma inspiração provinda

de “vivência que tenha comovido mais ou menos fortemente o escritor e agitado sua

vida íntima” (ibid.:09) a ponto de levá- lo à expressão estética dessa experiência.

No mesmo ano de 1975, Eduardo Portella organizou Teoria Literária, uma

coletânea de textos autônomos, de vários autores, sobre temas relacionados aos Estudos

Literários, dividido em quatro seções: 1 - Teoria Literária, Crítica e História, 2 - Estilo e

Épocas, 3 - Gêneros e Narrativas e 4 - A nova cultura e seus signos. Não há qualquer

preocupação em se sistematizar os assuntos tratados, a ponto de haver um capítulo

dedicado à “análise da narrativa”, mas nenhum dedicado á análise de poesia, por

exemplo.

No capítulo introdutório, sintomaticamente denominado “Limites ilimitados da

Teoria Literária”, o organizador comenta a importância “repentina e peculiar” que a

Teoria Literária, ao ocupar o espaço outrora preenchido pela Poética e pela Retórica,

tinha assumido dentro dos Estudos Literários:

Podemos até afirmar, sem o receio de incorrer em qualquer deslize mitômano, que a Teoria Literária é o núcleo e implementa, crítica e metodologicamente, todo o sistema de ensino das Literaturas. Nenhuma Literatura particular, no seu modo de produção universal, pode ser estudada e ensinada sem o necessário suporte teórico (Portella, 1979:7).

Page 173: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

171

Essa superdisciplina literária, embora institucionalmente autônoma, deveria

evoluir até alcançar um caráter irremediavelmente interdisciplinar, estendendo-se assim

(...) por todo o universo sem fim das diferentes práticas sociais, unindo, num esforço conjugado de compreensão da intersubjetividade, espaços teóricos aparentemente distantes ou refratários entre si. A Antropologia, a Lingüística, a Psicologia, o Direito, a investigação empírica e a pesquisa teórica, dão as mãos para levar adiante a tarefa comum de decifração do enigma do homem. (ibid.:8)

A interdisciplinaridade era então saudada como a melhor alternativa contra a

ameaça do isolacionismo que a atenção desmedida a questões relativas à literariedade

trazia aos Estudos Literários. Essa euforia exagerada quanto ao futuro da Teoria da

Literatura já era contrabalançada, no entanto, pelo temor de que a abertura para outras

áreas pudesse significar uma “modalidade de entreguismo, redutor e suicida” que, não

respeitando as especificidades da linguagem poética (ibid.:8-9), colocasse em risco a

própria sobrevivência da disciplina.

Em 1975, Luiz Costa Lima organiza a 1ª edição de Teoria da Literatura em suas

fontes, primeiro e único reader dedicado à Teoria da Literatura lançado no Brasil. A

coletânea de ensaios de autores diversos é dividida em sete partes (Introdução geral,

Problemas gerais, A Estilística, O Formalismo Russo, O New Criticism, A análise

sociológica e O Estruturalismo), que apresentavam um panorama dos temas e das

correntes teóricas do século XX até aquele momento.

Na introdução — o ensaio denominado “O labirinto e a esfinge” — o

organizador discute a falta de clareza de significado do termo “Teoria da Literatura”,

mesmo entre os especialistas. A julgar pelos programas da cadeira de teoria em nossas

universidades, a teoria seria uma propedêutica ao ensino da Literatura. No entanto, tal

circunstância seria muito mais o resultado da má formação do aluno brasileiro, que

precisaria de uma disciplina introdutória às noções básicas de abordagem literária. Essa

deficiência do alunado, somada ao desconhecimento e à resistência de grande parte dos

professores ao trabalho teórico, seriam os grandes responsáveis por impedir que a

disciplina fosse uma instância de discussão de temas e conceitos, transformando-a num

corpus dogmático.

Os problemas referentes a falta de clareza das metas e objetivos da disciplina

provinham, para Costa Lima, de longa data, e já se faziam presentes no Theory of

literature de Wellek e Warren, “obra que inaugura a sistematização da Teoria da

Page 174: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

172

Literatura”. Para o ensaísta, o modelo de reflexão gerado pela combinação das análises

operacionais ancoradas no Formalismo eslavo e no New Criticism saxão era fundado

numa crença quase religiosa na Estética, sem que em nenhum momento a capacidade de

objetividade e credibilidade dos princípios e critérios estéticos fosse devidamente

questionada (Lima, 1975:11). Se a teoria fosse realmente uma espécie de suma dos

Estudos Literários, o “órganon dos métodos” (Wellek & Warren, 2003:9), de onde

proviriam seus critérios validatórios? Como se descrever métodos diversos sem se

explicitar a própria posição do teórico?

Costa Lima defendia que a teoria deveria ser uma espécie de epistemologia dos

Estudos Literários, empenhada “em discutir seus critérios de coerência, validade e

verificação”, bem como em limitar “suas lacunas demonstrativas, suas contradições ou

mesmo incoerências" (ibid.:12). Essa pretensão, entretanto, seria comprometida,

segundo o autor pelo papel basilar que a Estética, com seu caráter especulativo

incompatível com um ideal de ciência, desempenhava na disciplina.

A tradição da Es tética está ligada a aspectos voltados à compreensão da arte

como uma experiência cognoscitiva “inferior”, em comparação com a clareza e certeza

das apreensões lógicas. Quando a Teoria da Literatura se associa aos princípios

estéticos, aceita a indeterminação e a confusão como inerentes à arte. Costa Lima

defendia a teoria como epistemologia exatamente por estar a disciplina empenhada em

“pensar a arte além da experiência com que ela se recusa ao entendimento” (ibid.:19).

Conclui então que, sendo a Estética um a priori de grande parte dos Estudos Literários,

para a Teoria da Literatura aspirar a ser uma ciência formalizante que não opera sob o

princípio da crença, ela tem por obrigação refletir sobre seus pressupostos estéticos, ou

admitir que “que não se quer como ciência e sim como uma filosofia da Literatura”

(ibid.:16).

Em 1983, na segunda edição90 de Teoria da Literatura em suas fontes, Costa

Lima91 descreve no prefácio o reader como uma obra de caráter didático-informativo

“imprescindível dada a situação calamitosa do ensino de Teoria da Literatura em nossos

90 A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2002. 91 Costa Lima diz que decidiu “expurgar” a introdução geral contida na 1a edição, “tanto por apresentar uma visão demasiado particularizada da teoria da literatura, quanto por conter uma reflexão hoje demasiado datada” (Lima, 1983:1). Se de fato alguns comentários sobre as correntes teóricas poderiam soar datadas ainda nos anos 80, creio que sua reflexão sobre a relação entre Teoria da Literatura e Estética permanece atual nos dias de hoje.

Page 175: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

173

cursos de letras” (Lima, 1983:1). A “corrida de mediocridades” que caracterizaria o

ensino e a pesquisa em Literatura no Brasil (ibid.:3) se explicaria por ser virtualmente

impossível se teorizar sobre algo acerca do qual não se tem experiência — o autor se

referia à falta de contato entre aluno e obra literária na realidade brasileira. Como

conseqüência, os cursos de teoria continuavam a funcionar como propedêuticas à

Literatura, sendo ou exageradamente simplistas, por transformarem os temas num

conjunto de afirmações a serem decoradas, ou incompreensíveis, por exigirem o

conhecimento de fontes às quais os alunos não teriam acesso, por, em geral, não serem

capazes de ler em outra língua92. Risco ainda maior a que estaria sujeita a disciplina

seria o degenerar em deformadora, “porque, não tendo tido os próprios professores uma

formação teórica efetiva, a apresentação das teorias passa[ria] a se confundir com a

apresentação de caixas de ferramentas a serem ‘aplicadas’ aos textos!” (ibid.:2).

No posfácio, Costa Lima afirma estar ciente de que sua obra não substituía a

necessidade de um manual. Ele desconfiava, contudo, de que a extensão e a

complexidade alcançadas pela Teoria da Literatura não permitiam mais a realização de

um livro que fosse, ao mesmo tempo, um “panorama atual da disciplina e um tratado

competente” (ibid.:450). Os Estudos Literários exigiriam um grau de especialização

cada vez maior e a Teoria da Literatura não mais se resumia a “orientações

esquemáticas destinadas à aplicação sobre seus respectivos objetos” (ibid.:451).

Em 1985, Rogel Samuel organizou um Manual de Teoria Literária93, livro

destinado aos cursos de graduação em Letras e que consiste numa reunião de ensaios

isolados de vários autores sobre temas como “Arte e sociedade”, “Gêneros literários”,

“Periodização e História Literária”, “Literatura Comparada”, “Cultura de Massa e

Cultura Popular” e “Literatura e Lingüística”. O pouco cuidado no tratamento dos temas

é explícito, por exemplo, no capítulo dedicado à Crítica Literária, dividido em

subcapítulos assinados por autores distintos sem nenhuma unidade ou sistematização

reconhecível, bem como no último capítulo, dedicado à interpretação, em que um vasto

conteúdo é compactado em míseras três páginas.

A orientação dominante no manual de Samuel, se é que podemos vislumbrar

alguma, é a descrição da Teoria da Literatura como “uma ciência em que prevalecem a

92 O problema de os alunos não serem capazes de ler em outra língua é superdimensionado por Costa Lima. A dificuldade seria facilmente contornável, caso existissem bons livros de teoria traduzidos ou escritos em português.

Page 176: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

174

diversidade e a interdisciplinaridade” (Samuel, 1985:contracapa). No já referido

capítulo dedicado à Crítica Literária, Angélica Maria Santos Soares justifica o caráter

interdisciplinar da teoria por sua necessidade de “estar aberta às múltiplas dimensões do

seu objeto de estudo” (in Samuel, 1985:90), embora não seja explicado o porquê das

múltiplas dimensões do objeto não poderem ser tratadas por uma única disciplina. De

modo similar aos termos de Portella (1975), a equação interdisciplinaridade e

independência também é descrita como problemática, dado o risco de se perder, com a

assimilação de elementos de ciências afins, a autonomia da Teoria Literária. A autora

faz, entretanto, uma defesa intransitiva da multiplicidade dos métodos, baseada na

consciência de que nenhum procedimento crítico é capaz de esgotar a alegada riqueza

da obra literária.

Na continuidade do capítulo, os autores se revezam em comentários sobre as

correntes teóricas, alguns com um surpreendente tom de depoimento biográfico, como

na passagem transcrita abaixo, supostamente sobre as relações entre crítica e

psicanálise, assinada por Nadiá Paulo Ferreira:

Aqui estou em desafio pelo fascínio que me colocou no impasse que tento desenrolar porque não disse “não” ao compromisso com o claro. Faz de conta que é possível dizer algo sobre qualquer coisa para alguém compreender. E como todo faz de conta implica numa história, começaremos por outra — a de menos um.

Era uma vez um homem que sonhava... Conheci-o à distância de meu silêncio, pesar de, de vez em quando, nos cruzarmos em andanças. Clown, louco e muitas outras coisas diziam dele e de sua perseverança de falar e escrever sobre Lacan. Um pouco mais de ironia circulava de boca em boca, nos meios literários, que além do próprio Lacan, só ele sabia o que esse senhor escrevia. E não é que era verdade! Desviei-me de seu rumo. La mento esse abandono. Mas só depois, muito depois, é que me dei conta da perda em relação ao meu desejo de conhecer o pensamento de Lacan. Nessa época andava colada em outras bandas (in Samuel, 1985:124).

Em 1986, Roberto Acízelo de Souza publicou Teoria da Literatura94, uma

reflexão sobre a história da formação da disciplina, seus métodos, seus objetos e seus

conceitos. O pequeno manual é uma versão condensada do Formação da Teoria da

Literatura, lançado no ano seguinte, sobre o qual já me referi com maiores detalhes no

primeiro capítulo deste trabalho.

93 A última edição de que tenho notícia é a 14ª, de 2001. 94 A última edição de que tenho notícia é a 9ª, de 2004.

Page 177: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

175

6.3 – O RENASCIMENTO

A partir do final dos anos 80 escasseou a publicação de manuais de Teoria da

Literatura no Brasil. Nesse começo de século XXI, entretanto, parece estar se

experimentando um renascimento no interesse por esse tipo de obra. Em 2002,

novamente Rogel Samuel publica o Novo manual de Teoria Literária95. A nova versão

é de autoria individual, mas apresenta os mesmos problemas encontrados na publicação

da década de 80 e está longe de ser um manual de teoria, pois nela o autor apenas

apresenta de modo assistemático breves "notícias", tão sumárias quanto superficiais,

sobre tópicos relacionados aos Estudos Literários e a outras áreas do saber.

Diversas proposições são obscuras, como, por exemplo, a tentativa de

estabelecer uma distinção entre “Teoria Literária” e “Teoria da Literatura”:

A Teoria Literária reúne uma coleção de ciências que alguns tratam por “Teoria da Literatura”, outros de “Teoria Literária”. Esta distinção existe: “Teoria Literária” se diz da teoria que nasce da prática literária, da obra, da leitura; e “Teoria da Literatura” vê a Literatura como objeto do saber (Samuel, 2002:7).

Ou ainda a estranha descrição lingüística de texto literário, que falha, se não pelo

simplismo, pela indefinição trazida pelo uso da expressão “outras propriedades”:

Literário é um certo texto que possui a literariedade, constituída pelas metáforas, as metonímias, as sonoridades, os ritmos, a narratividade, a descrição, os personagens, os símbolos, as ambigüidades e alegorias, os mitos e outras propriedades (ibid.:7-8).

Além da pouca preocupação com os conceitos e com as definições, o manual

caracteriza-se ainda pela presença insólita de tópicos relacionados a objetos culturais

inesperados em uma obra destinada ao estudo teórico da Literatura, como o comentário

sobre um programa de televisão, no capítulo “Best-seller, cinema e TV”:

O Fantástico da Globo tem uma abertura e sete blocos principais. O tratamento fantástico do programa decorre do fato de que, tirados dos contextos onde se inseriam, os acontecimentos perdem os seus sentidos, sua história, num caleidoscópio irreconhecível pelo olho da razão, um programa de “variedades” (ibid.:110).

Por fim, a bibliografia é bastante desatualizada para um livro publicado em 2002

e apresenta omissões que não se justificam em uma obra introdutória, em que as

95 A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2005.

Page 178: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

176

referências cumprem o papel fundamental de facultar ao leitor o aprofundamento nos

temas de seu interesse.

No mesmo ano, Flávio Kothe lança Fundamentos da Teoria Literária. Duas

características marcantes da obra — o descaso que reserva aos temas tradicionais da

Teoria da Literatura e a pouca atenção dada às obras teóricas que a antecedem —

podem já ser percebidas fora do corpo do texto: no sumário, que mostra que os

capítulos, com exceção do primeiro, tratam de temas relacionados a filósofos ou a temas

filosóficos96, e na ausência de uma bibliografia, procedimento incomum e inadmissível

em uma obra de caráter acadêmico.

Nas poucas passagens em que se dedica a temas relativos aos Estudos Literários,

Kothe inviabiliza a questão fundamental da Teoria da Literatura por considerar

“indefinível” seu objeto. Para o autor, o questionamento “O que é a Literatura?”

conteria em si a armadilha de obrigar a se assumir o pressuposto da pergunta, isto é, a

pressuposição de que a Literatura seria algo universal e necessária (Kothe, 2002:11).

Em conseqüência, toda tentativa de “definição do ser se converte na definição de um

dever ser” (ibid.), fazendo com que a disciplina se torne uma propedêutica normativa

que legitima um cânone institucionalizado e limita seus horizontes de perquirição.

A posição de Kothe não é, entretanto, tão radical quanto parece à primeira vista.

Isso porque, mais adiante, após uma distinção entre “definição” e “conceituação”97, a

possibilidade de se perguntar pelo objeto da teoria torna-se novamente possível. A

acusação do autor se ameniza: os teóricos não conceituariam, mas definiriam a

Literatura, e toda definição tenderia a um idealismo que pretende “como que cortar o

processo de mutação do objeto” (ibid.:40). Ele acusa especificamente Wellek e Warren

de, ao definirem a Literatura, não levarem em consideração suas funções, embora em

nenhum momento explicite qual seria essa definição dos autores.

Ora, é óbvio que a natureza de objetos culturais — no seu próprio exemplo, um

machado — é dada pela função que desempenham. Mas Kothe não demonstra, em sua

96 Os capítulos são: “A natureza da obra literária” (do qual nos ocupamos mais adiante), “A estrutura definitória idealista”, “Marxismo e desconstrução”, “Platão e o mito da caverna”, “Platão e o Platonismo”, “Kant e o despotismo da razão”, “Hegel e a busca do absoluto”, “Hegel e o fundamento da existência”, “Marx e o preço do poeta”, “Marx e a produção imaterial”, “Mao Tse-Tung sobre a contradição” e “Lógica da comparação intertextual”. 97 “A definição busca ser definitiva, dizendo de uma vez por todas o que se organiza em determinado espaço. Já o conceito é a percepção dos elementos idênticos naquilo que ao longo do espaço e do tempo se apresenta diferenciado e diversificado” (ibid.:31).

Page 179: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

177

argumentação, por que a definição de Wellek e Warren não levaria em consideração as

funções da Literatura, e em que medida aquela é incompatível com estas, bem como

não explica por que a noção de Literatura dos autores do Teoria da Literatura não é um

“conceito”, mas uma “definição”. Sem uma exposição clara dos termos contra os quais

se argumenta, a discussão sem interlocutores torna-se uma briga contra adversários

imaginários98.

Em 2004, Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba publica Tópicos da teoria

para investigação do discurso literário. Não se trata exatamente de um manual de

Teoria da Literatura, mas de uma reflexão, em moldes foucaultianos, que investiga, a

partir da descrição dos modelos teóricos em voga no século XX, os mecanismos de

controle do discurso presentes nos Estudos Literários.

Os discursos sobre Literatura reproduziriam os mesmos “processos de controle”

contidos nos outros modos de produção de conhecimento na modernidade. A ascensão

da Teoria Literária representaria o momento em que se passa, nos Estudos Literários, da

atenção ao sujeito criador para o material verbal da obra, e a institucionalização da

disciplina teria dado autoridade aos que, por dominarem um conjunto de técnicas,

métodos e proposições, estariam assim qualificados para falar de Literatura. Para a

autora, conceber “a linguagem literária de uma forma específica” tem por conseqüência

a “uniformização prévia do que é literário e [o] entendimento da obra como reflexo de

um pensamento teórico a priori” (Borba, 2004:40). Creio, entretanto, que em uma

disciplina tão fragmentada como a que nos ocupamos, em que a obra literária não é

descrita de “uma forma específica”, mas de modos múltiplos e concorrentes, os supostos

mecanismos de controle do discurso não podem ser comparados aos de outras

disciplinas realmente metódicas.

Em 2005, Maria Magaly Trindade Gonçalves e Zina Bellodi publicaram Teoria

da Literatura “revisitada”. Benedito Nunes, no prefácio, observa com acerto que a tese

principal do manual, ainda que implícita, é a de que a Teoria da Literatura seria uma

disciplina que se transformaria tanto ao longo do tempo que não haveria “senão várias

Teorias da Literatura” (in Gonçalves & Bellodi, 2005:9). O ponto de vista das autoras,

98 O único argumento de Kothe é o suposto reacionarismo de seus autores, em termos que lembram muito as piores críticas de Terry Eagleton: “Austin Warren pertenceu ao new criticism americano, conhecido por seu conservadorismo político; René Wellek saiu do seu país, a Tchecoslováquia, por causa dos perigos da guerra e, tendo boas condições de trabalho em Yale, não morou mais lá depois que foi instaurado o comunismo” (ibid.:19).

Page 180: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

178

centrado nesse caráter diacrônico dos Estudos Literários, conduz a uma dificuldade que

é comum a todas as posições que atentam para a extrema variabilidade dos modos de se

conceber a Literatura dentro do âmbito da reflexão teórica: afinal, a Teoria da Literatura

é uma ou várias disciplinas? Se uma, caberia a qualquer manual ressaltar os pontos de

permanência e continuidade comuns a todas as correntes, tornando possível se continuar

falando em uma, e somente uma, Teoria da Literatura. Se várias, a questão conduz a um

contra-senso, pois como uma disciplina pode ser uma, a ponto de dar origem a um

manual, e várias ao mesmo tempo? Não parece ser possível tomar-se de modo histórico

a Teoria sem enfrentar esse problema.

No caso do manual em questão, a disciplina aparece mais uma vez como um

sinônimo de Estudos Literários, em que todos os procedimentos teóricos, críticos e

históricos concorreriam para o objetivo único de produzir conhecimento sobre a obra

literária. A Literatura é tomada de forma historicista, através do inventário de seus

conceitos ao longo das eras: Antigüidade, Idade Média, Renascimento, Neoclassicismo,

séculos XIX e XX. Não há no manual, efetivamente, qualquer tipo de “novidade” que o

distinga de seus predecessores, seja em relação ao conteúdo, seja no que concerne ao

tratamento dos temas.

Page 181: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

179

7 – OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA

Ao longo deste trabalho, tenho defendido a Teoria da Literatura como a parte

dos Estudos Literários voltada para uma reflexão sistemática, metódica e generalizante

sobre a Literatura. Há, contudo, entre as diretrizes que proponho e suas realizações

concretas ao longo da história, um enorme abismo. Como um dos maiores problemas da

disciplina é exatamente o número despropositado de modelos teóricos concorrentes, não

há sentido em se propor mais um aos inúmeros já existentes. Por essa razão empenhei-

me, através da leitura dos seus grandes manuais, na recuperação crítica do legado da

Teoria Literária, tomando os autores não como adversários os quais me coubesse

superar, mas como interlocutores que podiam apontar, tanto pelas qualidades quanto

pelas imperfeições de suas propostas, caminhos para o futuro da reflexão teórica sobre a

Literatura. Embora “simples” compêndios, eles tinham muito a dizer sobre a disciplina.

O manual de Wellek e Warren, primeiros sistematizadores da Teoria da

Literatura, legou-nos um projeto universalista e generalizante que pretendia fornecer

subsídios para o estudo da obra literária. De suas críticas à História, muitas delas

exageradas, retiramos a certeza de que não faz sentido se rechaçar, a priori, um modelo

de pensamento simplesmente porque apresenta pontos de discordância com o nosso.

Aprendemos também que a resistência ao relativismo não pode redundar numa defesa

de um absolutismo doutrinário baseado em naturezas imutáveis, risco que sempre

corremos devido a nossa tendência de tomar por universais nossas idiossincrasias.

Dos manuais de Aguiar e Silva retivemos a importância de se ter uma teoria

aberta à historicidade da Literatura e do homem, mas nos ficou também a certeza de que

essa abertura não poderia se consolidar apenas com a absorção indiscriminada de todos

os trabalhos produzidos. A autocrítica e a capacidade de avaliar continuamente seus

pressupostos deve ser, portanto, uma constante da reflexão teórica, o que implica ser

capaz de se admitir que há discursos sobre a Literatura que são incompatíveis com a

construção de uma estrutura sistemática de conhecimento. Nossa disciplina precisa ser

Page 182: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

180

resistente às novas idéias, apenas adotando mudanças que realmente representem

melhores soluções aos antigos problemas.

Do livro de Terry Eagleton, ficou-nos as certezas de não haver nada de natural

nas abordagens às obras literárias e de haver sempre uma teoria implícita em qualquer

discurso sobre elas. Veio-nos também a convicção de não valerem a pena críticas

demolidoras que pretendam invalidar uma proposta seja pela excessiva simplificação de

postulados, seja por desqualificar seus autores política ou socialmente. A construção de

um saber precisa se dar através do acúmulo — crítico — do conhecimento e não por um

processo contínuo de reconstruções sobre escombros. O manual do crítico inglês

apontou-nos ainda a necessidade de se fazer da observação de nossos próprios

postulados o primeiro passo antes de se pretender desqualificar os alheios, além de nos

revelar que interpor questões políticas no ambiente dos Estudos Literários transforma a

discussão sobre Literatura em discussão política, eliminando assim a razão de ser de

nossa disciplina.

De Jonathan Culler ficou o proveitoso esforço de se pensar os Estudos Literários

integrados aos Culturais, embora também tenham se tornado evidentes os grandes riscos

de essa absorção acabar por dissolver a categoria Literatura. A proposta do ensaísta

norte-americano mostrou-nos também que compreender a teoria de modo intransitivo,

sem objeto, gera uma prática cujo objetivo único é a formulação de hipóteses que se

destroem contínua e sucessivamente.

Por fim, o trabalho de Antoine Compagnon nos indicou o quanto ainda são úteis

e atuais os temas tradicionais dos Estudos Literários, além de nos alertar sobre os riscos

implicados na atração dos teóricos pelas dicotomias e pelas armadilhas retóricas.

Revelou-nos também a necessidade de se superar o agnosticismo teórico, pois a cômoda

“dúvida hiperbólica” diante de todo discurso sobre a Literatura é insuficiente para uma

disciplina que segue viva em salas de aula de graduação do Brasil e de parte importante

do mundo ocidental.

Dessa súmula de quase sessenta anos de Teoria da Literatura, pude identificar

algumas causas da atual crise e quais desafios se impõem a uma disciplina voltada à

reflexão teórica sobre a obra literária na atualidade. Reconheço que talvez Costa Lima

(1983:450) tenha razão ao desconfiar que a extensão, a complexidade e a especialização

alcançadas pela Teoria Literária não permitam mais a elaboração de livros que possam

Page 183: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

181

ser, simultaneamente, um manual e um “tratado competente” — o que, por extensão,

significaria admitir não mais ser possível pensá- la como disciplina. Parece-me, no

entanto, que o problema persiste em não se saber exatamente do que trata a Teoria da

Literatura, e de quais são seus limites dentro dos Estudos Literários.

Se tomarmos a Literatura em seu processo mínimo — um fenômeno que envolve

um ato de escrita, um texto e um ato de leitura (e seus respectivos contextos) —

perceberemos que há uma multiplicidade de relações entre esses elementos que podem

ser exploradas por propósitos de pesquisa diversificados. Sem nenhuma pretensão de

exauri- las, enumero algumas, com suas respectivas possíveis linhas de estudo entre

parênteses:

(i) Se atento para a escrita, posso me concentrar nas relações entre o escritor e

sua época (biografismos), o escritor e outros artistas (estudos sociológicos do autor,

estudos de influência), o escritor e o texto (estudos do processo de criação), a escrita e o

inconsciente (estudos psicanalíticos) etc.

(ii) Se considero o texto, posso me deixar atrair pelas ligações entre o texto e a

língua (estilística), o texto e o mundo político, social e cultural (estudos sociológicos,

antropológicos e históricos da Literatura, estudos de ideologia, estudos culturais), o

texto e outros textos (estudos de intertextualidade) etc.

(iii) Se me dirijo à leitura, posso me dedicar às ligações entre leitura e texto

(estudos interpretativos), a leitura e seus contextos (estudos de recepção) etc.

De que se ocuparia exatamente a Teoria da Literatura? Da escrita, do texto, da

leitura ou dos contextos, isoladamente? Creio que não, pois não faria sentido se supor

que a reflexão teórica se ocupasse única e exclusivamente de um elemento específico da

Literatura. De todos esses elementos em conjunto? Também acredito que não, pois

então ela se confundiria com a totalidade dos Estudos Literários e sucumbiria diante da

impossibilidade de sistematizar aparatos conceituais e metodologias provindas de

inúmeros campos do saber. Da crítica a todas as linhas de estudo que se ocupam de

cada um dos aspectos da Literatura? Não seria apropriado, pois, para tanto, ela

precisaria ser uma epistemologia das Ciências Humanas, capaz de avaliar os

pressupostos de disciplinas como História, Sociologia, Antropologia, Lingüística,

Filosofia, Psicanálise etc., e já não teria nenhuma ligação específica com a Literatura em

si. De que, então, se ocuparia ela?

Page 184: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

182

Em conjunto, as abordagens aos diversos aspectos da Literatura constituiriam os

Estudos Literários. Dada a grande variedade de enfoques justos e possíveis, é fácil

perceber o porquê de nosso campo de estudos ser tão diversificado e suscetível à

influência de outras áreas do saber. Afinal, é perfeitamente razoável que nos sintamos

desorientados toda vez que somos convocados a falar de uma obra literária, tendo em

vista os inúmeros aspectos interessantes e pertinentes que disputam nossa atenção. Além

disso, nos sendo possível relacionar a Literatura com virtualmente qualquer coisa e nos

sendo permitindo através dela falar sobre o mundo, é compreensível que, muitas vezes,

nos esqueçamos justamente daquilo que nos possibilitou a pensar a realidade desse

modo diferenciado. Conseqüentemente, é compreensível que os Estudos Literários

tenham se tornado tão amplos e pouco específicos — ou caóticos, numa descrição mais

veemente. A Teoria da Literatura pode ser a resposta a essa crise.

Minha hipótese é de que tudo o que se pode esperar da reflexão teórica é que ela

ofereça as condições para que a Literatura possa ser estudada. Uma Teoria Literária

precisaria então ser responsável por descrever de modo generalista o objeto de estudo

“Literatura” e seus elementos constitutivos. Essas descrições devem ser abertas a

constantes reavaliações e aperfeiçoamentos, mas também precisam ser metodicamente

resistentes a propostas precipitadas que pretendam transformá-las ao sabor dos

modismos que, em geral, consistem tão-somente em “velhas novidades”. Deverão

também se relacionar de forma sistemática e constituir um modelo teórico que possa

servir de fundamentação para os Estudos Literários como um todo. Por fim, serão

capazes de fornecer os elementos a partir dos quais será possível se desqualificar

discursos que, por não respeitarem o regime constitutivo de seu objeto, não falariam da

obra literária, mas a usariam para falar de outros assuntos — e, dessa forma, não

deveriam ser entendidos como pertencentes ao campo de estudos sobre a Literatura.

A implementação dessa proposta é uma utopia, pois três obstáculos se interpõem

entre esse horizonte da reflexão teórica e o estado de crise atual da Teoria da Literatura:

(i) a má compreensão de seus próprios limites, (ii) a ausência de um sistema conceitual

e (iii) o relativismo do conhecimento dominante nos Estudos Literários.

Do primeiro obstáculo já tratamos exaustivamente ao longo deste trabalho. Creio

ter ficado claro que a “Teoria da Literatura” não é uma noção auto-evidente e que as

compreensões muito diversificadas a respeito de sua natureza, de seus objetivos e de

Page 185: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

183

suas funções deram e ainda dão origem a diferenciados procedimentos de produção, de

divulgação e de ensino do trabalho teórico. A multiplicidade de respostas possíveis à

pergunta “o que é a Teoria da Literatura?” constitui um sério problema para uma

disciplina institucionalizada que exige, no mínimo, uniformidade curricular. Por essa

razão, defendi ser fundamental entender que a reflexão teórica não deve se confundir

com a totalidade dos Estudos Literários, isto é, não deve se ocupar das particularidades

das obras literárias, não deve se interessar pelas múltiplas interpretações suscitadas

pelos textos literários, não deve se identificar com as relações históricas, psicológicas,

sociológicas, culturais ou políticas de obras específicas. A reflexão teórica deve se

propor pensar a obra literária exatamente pela perspectiva que escapa a essas

abordagens, isto é, como Literatura — única razão de existência de uma disciplina que

não se chama “teoria dos textos” ou “teoria dos discursos” ou “teoria dos objetos

culturais produzidos com linguagem verbal”, mas Teoria da Literatura.

Sobre o segundo obstáculo, embora tenha a ele me referido ao longo do trabalho,

talvez seja preciso me estender um pouco mais. Muitas das dificuldades enfrentadas

pelos Estudos Literários são causadas por uma terminologia vasta, imprecisa e repleta

de empréstimos a modelos teóricos das mais diversificadas áreas do conhecimento. Por

essa razão, as diversas correntes que surgiram ao longo do século XX experimentaram

uma ininteligibilidade recíproca, gerada pela miríade de termos e proposições

incompatíveis e mutuamente excludentes. A ausência de uma nomenclatura tem

dificultado enormemente o entendimento mútuo entre pesquisadores — e, por

conseguinte, tem prejudicado a produção de conhecimento sobre a Literatura. Termos às

vezes usados originalmente dentro de um contexto específico de pensamento —

lembremos, por exemplo, a noção de Lírica na Poética de Aristóteles — atravessam os

séculos absorvendo sentidos, agregando novas conotações e adquirem, por vezes, um

sentido radicalmente distinto de seu uso inicial. Como resultado, muitos dos termos

empregados atualmente nos Estudos Literários têm uma amplitude que exige um tratado

e não um verbete enciclopédico para dar conta da vasta rede de significados a eles

associados.

Tome-se, como exemplo, a noção de estilo, muito bem anotada por Antoine

Compagnon. Não sendo originalmente um termo técnico, a palavra carrega uma série de

acepções ligadas ao seu uso não-teórico. Como se não bastasse, em seu uso “técnico”

Page 186: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

184

ela possui sentidos contraditórios, designando ao mesmo tempo “a diversidade infinita

dos indivíduos e a classificação regular das espécies” (Compagnon, 2001:170). Longe

de funcionar como um conceito, o termo representa uma noção complexa e ambígua

que, ao invés de “ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquiria

outras (...) acumulou-as e hoje pode comportá- las todas: norma, ornamento, desvio, tipo,

sintoma, cultura” (ibid.:173). Conseqüentemente, num enunciado dos Estudos

Literários, termos como estilo são incapazes de elucidar qual o sentido pretendido com

seu uso. Diante dessa falta de poder de referência dos termos e noções de nosso campo

de estudo, alguns teóricos resolvem o problema do modo mais radical e

contraproducente, isto é, desprezando a importância de se conceituar e taxando os

conceitos de redutores, normativos, ideológicos etc.

Um estudo especializado deve possuir uma linguagem técnica que seja de

domínio comum entre seus praticantes. Não é pelo fato de não se poder abarcar todos os

sentidos históricos que são carregados, por exemplo, pela palavra “literatura” que o

conceito de Literatura seja inviável. É certo que a transformação histórica dos

significados é inexorável. Também é verdadeiro que os termos podem ter diferentes

significados em sistemas conceituais diferentes. Mas o problema dos Estudos Literários

não são os sentidos dos termos em “edifícios teóricos” distintos, mas um uso abusivo e

leviano de conceitos como palavras, e vice-versa, gerando profundas dificuldades de

compreensão — ou mesmo falsos problemas —, causadas pela imprecisão e

obscuridade inerente aos enunciados da área.

Num campo onde o conhecimento produzido não está sujeito a experimentações,

aspirar cientificidade nos postulados da Teoria da Literatura, ao menos nos sentidos

tradicionais de ciência, é pouco mais do que uma aspiração temerária. No entanto, desde

que se abandone qualquer ilusão de positivismo lógico que suponha uma linguagem

ideal baseada no modelo da lógica formal, pode-se ter num sistema conceitual um

poderoso instrumento de produção de conhecimento99. A conceituação é um

procedimento fundamental da economia do discurso teórico, pois garante a estabilidade

do sentido e da referência a cada reutilização, isto é, permite “manipular os termos

significantes sem reexplicitação permanente do sentido e da referência” (Cossuta,

2001:61).

99 A fonte das afirmações que se seguem sobre “conceito” é o livro de Frédéric Cossuta (2001) Elementos para a

Page 187: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

185

Por conceito, entendo um “operador textual que (...) permite categorizar o real

ou o ser integrando-os no domínio do dizível”, através da articulação entre um termo

significante, um sentido e uma referência (ibid.:50-1). A instauração de um conceito

envolve três fatores, cuja correlação deve ser fixada através dos seguintes

procedimentos:

(i) a escolha e a fixação de um termo significante, operações que não devem ser

arbitrárias e que requerem sempre algum modo de validação dessa escolha

terminológica;

(ii) a definição do sentido do termo significante, através do elenco de seus traços

discriminantes e de seus elementos diferenciados em relação aos demais conceitos.

(iii) a indicação de sua referência extra-discursiva100, através de exemplos e de

casos particulares.

Vale ressaltar que a fixação e a delimitação dos sentidos dos termos não

correspondem apenas a um preâmbulo da reflexão teórica, mas a uma parte fundamental

dela, em que se “reorganiza o universo da língua” e se cria um “universo de significação

autônomo” (ibid.:41). Uma nova terminologia é sempre instaurada sobre um campo

nocional pré-existente, isto é, sobre um conjunto de termos — palavras da língua ou

expressões semiconceituais — que antecedem ao sistema conceitual que está se

implantando. Quando a terminologia de uma doutrina integra-se num todo sistemático,

constitui-se assim o campo conceitual que garantirá aos conceitos a sua área de

significação. Fora desse campo, um termo retorna à sua condição de palavra ou de

noção assistemática.

Como todo termo carrega consigo os resíduos de suas significações em outros

campos conceituais, nocionais e mesmo na língua cotidiana, muitas das dificuldades

encontradas na leitura de textos teóricos não estão relacionadas à obscuridade do que é

dito, mas ao desconhecimento do seu campo conceitual — ou, o que é muito mais

comum em nossa área, à ausência de um.

Embora se desenvolva a partir do sistema conceitual que constitui, a reflexão

teórica pode e deve fazer referência a um mundo da experiência comum com seu leitor,

leitura dos textos filosóficos. 100 Cossuta (2001:44) fala em referência “extralingüística”, o que não me parece adequado. A referência de um conceito pode ser lingüística, desde que, por exemplo, o conceito trate exatamente de elementos lingüísticos. A referência deve, porém, apontar para algo fora do discurso em que aquele conceito é construído, ou correr o risco do circunlóquio.

Page 188: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

186

isto é, o discurso teórico precisa obrigatoriamente conter uma dimensão pedagógica e

ontológica em seu esforço de recobrir com um discurso homogêneo e coerente o campo

do real101. A dimensão referencial de um texto teórico tem a função de eliminar a

dicotomia entre “pensamento abstrato” e “realidade”. Os conceitos, integrados entre si,

são exatamente os instrumentos que dão forma a esta dimensão, tornando uma doutrina

capaz de tornar inteligível sua relação com o mundo — não apenas os elementos da

experiência sensível, mas também o vasto plano das idéias. A função referencial

também permite que o próprio leitor se encarregue de “encontrar equivalentes parciais

concretos” para dar ao ato de denotar “seu horizonte espaço-temporal” (ibid.:76). Um

modelo teórico deverá conter dois universos denotativos de uma doutrina, o ideal,

construído pelo poder generalizador do conceito, e o concreto, constituído pelos

elementos da ordem da experiência, referidos através de casos particulares, exemplos ou

descrições.

A referencia a elementos da ordem da experiência tem pelo menos quatro

funções:

(i) didática, no sentido de facilitar a compreensão do texto e ajudar a modificar

o ponto de vista do leitor;

(ii) ontológica, no sentido de que não apenas designa o mundo, mas o torna

presente à ordem do discurso e atualiza a comprovação de estar ele ancorado no real;

(iii) heurística, no sentido que o caso particular é oferecido previamente como o

suporte cujos traços gerais serão explorados no processo de constituição do conceito;

(iv) de validação, no sentido de que apresenta referentes que confirmam as

proposições e exigem o compartilhamento, entre teórico e leitor, de um domínio de

experiência comum.

Resta lembrar que todo o processo de construção dos conceitos deve ser

explicitado, de modo a poder ser analisado e criticado, pois a reflexão teórica deve se

dar justamente através do reexame e, no caso de novas evidências factuais, da possível

redefinição de seu campo conceitual. A análise e a crítica não devem se deter apenas

nos procedimentos empregados na elaboração do sistema de conceitos, devendo

101 Note-se, porém, que “o campo conceitual não visa diretamente o real, mas constrói uma representação ‘ideal’ dele, estruturando um universo de denotação que, mediante certos procedimentos, lhes pode ser associado” (ibid.:66).

Page 189: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

187

também avaliar todas as recorrências, paráfrases e transformações que ele sofre dentro

de um modelo teórico (ibid.:42).

O sucesso de um sistema conceitual está, entretanto, condicionado à superação

do terceiro obstáculo à reflexão teórica: os pressupostos relativistas que orientam grande

parte das abordagens à Literatura na atualidade. Trata-se de uma questão de resolução

mais complexa por ser sua origem externa ao âmbito da Teoria da Literatura e dos

Estudos Literários, fato que não chega a ser excepcional, dada a enorme permeabilidade

das fronteiras de nosso campo de estudos.

As idéias relativísticas estão longe de ser uma novidade nas Ciências Humanas.

No campo da Antropologia 102, a noção de relativismo cultural foi formulada pelo

antropólogo alemão Franz Boas e está ligada a uma postura metodológica em que o

pesquisador deve suspender ou pôr de lado seus preconceitos culturais para tentar

entender crenças e comportamentos em contextos específicos. Representou, portanto,

uma contrapartida ao pensamento etnocêntrico que dominou a disciplina no século XIX.

No campo dos estudos filosóficos103, as idéias relativísticas remontam pelo

menos aos sofistas104 e constituem um tema de grande força no campo da Ética — o

relativismo dos valores morais — e no campo da Epistemologia — o relativismo do

conhecimento humano. De modo geral, a defesa da relatividade está ligada a uma

atitude de negação da possibilidade de haver algum tipo de verdade cuja validade seja

universal. Um relativista assume, portanto, que os sentidos e os valores das crenças e

comportamentos humanos não possuem uma referência absoluta e são sempre

relacionadas a contextos históricos e culturais específicos. Em conseqüência, não seria

possível se falar de características intrínsecas aos seres ou aos objetos e qualquer

proposição sobre o mundo constitui apenas um entre inúmeros modos possíveis de se

interpretá- lo.

O relativismo que grassa em nosso campo de estudo sugere que a limitação de

nossos sentidos e nossos preconceitos culturais nos impediriam de observar

objetivamente o mundo e aparenta ser uma combinação das idéias advindas da

102 As informações sobre o relativismo cultural na Antropologia foram obtidas em Salter, F.K., ed. Risky Transactions. Trust, Kinship, and Ethnicity. New York: Berghahn, 2002. 103 As informações sobre o relativismo do conhecimento na Filosofia foram obtidas especialmente em Robert Audi (1999) The Cambridge dictionary of Philosophy, Simon Blackburn (2005), The Oxford dictionary of Philosophy e Richard Rorty (2000), Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança . 104 O famoso axioma de Protágoras de Abdera, "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são", é fonte de controvérsias até os dias atuais.

Page 190: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

188

Antropologia e da Filosofia que teria dado nova vida às tendências relativistas já

presentes na História da Literatura — contra as quais Wellek & Warren se insurgiram.

Identificar todas as portas de entrada dessas teses nos Estudos Literários exigiria um

trabalho alheio ao que se propõe aqui. Creio, porém, não ser temerário apontar ao

menos duas:

(i) via Lingüística, através da já mencionada má compreensão das teorias

saussurianas sobre o valor relacional dos elementos da língua 105 e da hipótese de Sapir-

Whorf, de que a língua “enformaria” o modo como os indivíduos vêem o mundo.

(ii) via práticas interpretativas, em especial o desconstrucionismo, os trabalhos

de Stanley Fish e Richard Rorty, que em comum defenderiam não haver leituras

melhores ou piores porque não haveria qualidades intrínsecas aos textos — sequer

existiriam textos fora dos contextos de leitura.

Por se tratar de um tema de longa tradição filosófica, a bibliografia sobre o

assunto é extensa e são diversos tanto os modelos de pensamento que endossam quanto

os que contestam as teses relativistas. Entre as contestações ao relativismo, duas são

especialmente difundidas: a primeira sugere que a defesa da relatividade se auto-

refutaria, pois uma assertiva do tipo “tudo é relativo” só pode ser compreendida de

modo absoluto e seria, pois, uma comprovação de que, afinal, nem tudo é relativo. A

outra objeção sustenta que dizer que todas as opiniões diferentes estão igualmente

corretas é o mesmo que dizer que nenhuma está, uma vez que se todas as convicções

são igualmente válidas, então todas são igualmente sem valor.

Não é necessário se entrar no mérito das tréplicas dos relativistas e das contra-

tréplicas de seus adversários para se entender que o relativismo está longe de ser um

truísmo. No entanto, como a fascinação de nossa disciplina pelos temas das outras

Ciências Humanas se dá apenas em um nível superficial, desprezamos a argumentação

envolvida na discussão das teses relativistas e tomamos proposições por axiomas. Aos

que se atrevem a contestar, as denominações são variadas, mas todas de sentido infame

— absolutistas, dogmáticos, essencialistas, autoritários, fundamentalistas.

Basear-se em uma epistemologia radicalmente relativista, por si só, já criaria

enormes dificuldades para uma disciplina que, em sua origem, aspirava ser capaz de

propor discursos sobre a Literatura mais objetivos do que aqueles produzidos pela

105 Conforme Capítulo 5, p. 135.

Page 191: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

189

impressionista Crítica e pela relativista História. A situação só se agrava quando essas

teses relativísticas surgem apartadas de seu contexto de discussão e produzem uma

desconfiança generalizada diante de qualquer proposição de modelos metódicos e

rigorosos. Quando tomado de modo dogmático, o relativismo produz posturas céticas ou

dá ensejo a projetos pragmáticos que instrumentalizam as obras literárias e que

conduzem a discussão sobre elas para um âmbito externo aos dos estudos de Literatura.

A condição de existência de uma disciplina que possa produzir reflexão teórica

sobre a Literatura depende, pois, de nossa capacidade de produzir modelos teóricos

fundados em pressupostos não-relativistas. Voltamos assim ao ponto de partida da

Teoria da Literatura e ao projeto não-continuado de Perspectivismo, de Wellek e

Warren. Há sessenta anos, eles já consideravam, com acerto premonitório, que o

relativismo era a grande ameaça aos Estudos Literários, uma vez que já assumia uma

feição “equivalente à anarquia de valores (...) [e] à renúncia da tarefa crítica” (Wellek &

Warren, 2003:43). Sem defender um absolutismo doutrinário baseado em uma natureza

humana imutável ou na universalidade da arte, eles propunham que se devesse entender

a obra simultaneamente como algo histórico e universal: “‘Perspectivismo’ significa que

reconhecemos a existência de uma poesia, uma literatura comparável em todas as

épocas, desenvolvendo-se, mudando, cheia de possibilidades” (ibid.:43).

A busca por uma Teoria da Literatura perspectivista pode ser nossa opção contra

um relativismo tão disseminado quanto o são as aporias que origina e que nos faz

quedar perplexos, como se tivéssemos alcançado o limite extremo do nosso

pensamento: para além dessas fronteiras, haveria apenas a irracionalidade e a barbárie.

Duas possibilidades nos restam: acatarmos essa supostamente irremediável insuficiência

de nossa razão e nos tornarmos espectadores de nosso próprio fracasso, ou exigirmos da

reflexão teórica, justamente aquela que nos colocou nesse impasse, que nos indique as

saídas.

Page 192: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

190

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor W. Minima moralia: reflexões a partir da vida danificada. Tradução de Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1992. ______. Teoria estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições Setenta, 1970. ALTHUSSER, Louis. Sobre o trabalho teórico. Tradução de Joaquim José Moura Ramos. Lisboa: Presença, s.d. [1967]. AMORA, Antônio Soares. Introdução à Teoria da Literatura. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2004. ______. Teoria da Literatura. 10. ed. São Paulo: Clássico-Científica, 1975. ANGENOT, Marc et al., org. Théorie littéraire. Paris: Presses Universitaires de France, 1989. ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Tradução de Jaime Bruna. 5. ed. São Paulo: Cultrix, 1992. ATKINS, G. Douglas, MORROW, Laura. Contemporary literary theory. Amherst: The University of Massachusetts Press, 1989. AUDI, Robert, ed. Relativism. The Cambridge dictionary of Philosophy. 2a ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 790. AUERBACH, Erich. Introdução aos estudos literários. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1970. AZEVEDO FILHO, Leodegário A. et al. Teoria da literatura. Rio de Janeiro: Gernasa, 1973. BAKHTIN, Mikhail. Os estudos literários hoje. In:___. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 359-363. ______. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In:___. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 3. ed. São Paulo: Ed.UNESP, 1993. p.13-70 BARTHES, Roland. O que é a crítica. In:___. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.157-231. BAYER, Raymond. História da Estética. Lisboa: Estampa, 1995. BELSEY, Catherine. Critical practice. New York: Methuen, 1980.

Page 193: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

191

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. ______. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. 3. ed. Tradução, prefácio e notas de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002. BERNARDO, Gustavo. O conceito de literatura. In: JOBIM, José Luís, org. Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 135-169. ______. Quem pode julgar a primeira pedra? Ou ética e literatura. Rio de Janeiro: Relume Dumará/UERJ, 1993. BLACKBURN, Simon. Relativism, epistemological. The Oxford dictionary of Philosophy. 2a ed. Oxford: Oxford University Press, 2005. p. 757. BOILEAU-DESPRÉAUX, Nicolas. A arte poética. Introdução, tradução e notas de Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 1979. BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Tópicos da teoria para investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. BUCCO, Martin. René Wellek. Boston: Twayne Publishers, 1981. BUGALHO, Sérgio. Fernando Pessoa; poesia e música — uma contribuição ao estudo das idéias estéticas pessoanas. Niterói: Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, 1999. Dissertação de Mestrado. BUNGE, Mario. Que é, e para que serve a Epistemologia? In:___. Epistemologia; curso de atualização. Tradução de Cláudio Navarro. São Paulo: T.A.Queiroz/Edusp, 1980. p.1-63. BURKE, Kenneth. Teoria da forma literária. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1969. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade; estudos de teoria e história literária. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1965. COHEN, Jean et al. Pesquisas de Retórica. Petrópolis: Vozes, 1975. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria; literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001. CONCEITO. In: ENCICLOPÉDIA Luso Brasileira de Cultura. Lisboa: Editorial Verbo, 1967. P. 1196-1199. COUTINHO, Afrânio. Crítica e críticos. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1969.

Page 194: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

192

______. Crítica e poética. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1968. ______. Crítica e Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará-PROED, 1987. ______. Da crítica e da nova crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957. COUTINHO, Eduardo F. Os discursos sobre a literatura e sua contextualização. In:___, org. Fronteiras imaginadas; cultura nacional/teoria internacional. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001. p. 287-298. COSSUTTA, Frédéric. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. Tradução de Angela de Noronha Begnami et al. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. CROCE, Benedetto. Breviário de Estética / Aesthetica in nuce. Tradução de Rodolfo Ilari Jr. São Paulo: Ática, 2001. CRUZ, Estevão. Teoria da literatura; para uso das escolas, e de acordo com os programas especiais vigentes. Prefácio de Jorge de Lima. Porto Alegre: Globo, 1935. CULLER, Jonathan. Literary Theory; a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 1997. ______. Teoria Literária; uma introdução. São Paulo: Beca, 1999. CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. O que é um conceito? In:___. O que é a filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. p.25-48 DE MAN, Paul. Resistência à teoria. Lisboa/Rio de Janeiro: Edições 70, 1989. DI GIROLAMO, Constanzo. Para uma crítica da teoria literária. Lisboa: Horizonte, 1985 [1978]. DICIONÁRIO de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1986. DOSTOIÉVSKI, F. M. Os irmãos Karamázov. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. DUARTE, Rodrigo, org. Belo, sublime e Kant. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. DUFRENNE, Mikel. O poético. Tradução de Luiz Arthur e Reasylvia Kroeff de Souza. Supervisão e apresentação de Angelo Ricci. Porto Alegre: Globo, 1969. EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Tradução de Mauro Sá Rego Costa. Rio de

Page 195: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

193

Janeiro: Jorge Zahar, 1993. ______. As ilusões do pós-modernismo. Tradução de Elisabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. ______. Literary theory; an introduction. 2. ed. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996. ______. Teoria da literatura; uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1983]. EARNSHAW, Steven. The direction of literary theory. New YorkY: St. Martin`s Press, 1996. ECO, Umberto. A definição de arte. Tradução de José Mendes Ferreira. Rio de Janeiro: Elfos; Lisboa, Edições 70, 1995. ______. Interpretação e superinterpretação. Tradução Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 1993. EIKHENBAUM, Boris et al. Teoria da literatura; formalistas russos. Tradução de Ana Mariza Ribeiro et al. Prefácio de Boris Schnaiderman. Apresentação de Dionísio de Oliveira Toledo. Porto Alegre: Globo, 1971. ENCYCLOPEDIA of contemporary literary theory: approaches, scholars, terms. Irena R. Makaryk, general editor and compiler. 2 V. Toronto: University of Toronto Press, 1993 ENZENSBERGER, Hans Magnus. Literatura como instituição ou O efeito aspirina. In: ___. Mediocridade e loucura e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1995. p. 25-33. FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Tradução de Leandro Konder. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002 FISCHER, Michael. Does Deconstruction make any difference? Does Deconstruction make any difference? poststructuralism and the defense of poetry in modern criticism. Bloomington: Indiana University Press, 1985. p. 110-125. FISH, Stanley. Is there a text in this class? the authority of interpretive Communities. Cambridge: Harvard University Press, 1980. FOUCAULT, Michel. Linguagem e Literatura. In: MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 157-196. ______. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FORTINI, F. Literatura. In: ENCICLOPÉDIA Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional -

Page 196: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

194

Casa da Moeda, 1989.V. 17. p. 176-199. FREADMAN, Richard & MILLER, Seumas. Re-pensando a teoria; uma crítica da teoria literária contemporânea. Tradução de Aguinaldo José Gonçalves e Álvaro Hattnher. São Paulo: Ed. da UNESP, 1994. ______. Re-thinking theory; a critique of contemporary theory and an alternative account. Cambridge: University Press, 1992. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. ______. Anatomy of criticism; four essays. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1957. GADAMER, Hans Georg. Verdade e Método I; traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. 5 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. GARCÍA BERRIO, Antonio. Teoria de la literatura; la construcción del significado poético. 2. ed. Madrid: Cátedra, 1994. GARRIDO GALLARDO, M.A. Introduccion a la teoria de la literatura. Madrid: Sociedad General Española de Libreria, 1975. GENETTE, Gerard. Literatura e semiologia, pesquisas semiológicas. Tradução de Célia Neves Dourado. Petrópolis: Vozes, 1972. GONÇALVES, Maria Magaly Trindade, BELLODI, Zina C. Teoria da literatura "revisitada" . Prefácio de Benedito Nunes. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. HARRISON, Bernard. Incovenient fictions; Literature and the limits of theory. New Haven: Yale University Press, 1991. HAWTHORN, Jeremy. Unlocking the text; fundamental issues in literary theory. London: Edward Arnold, 1987. HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1966. HERRON, Jerry et al. The ends of theory. Detroit: Wayne State University Press, 1996. HILFER, Tony. The new hegemony in literary studies; contradictions in theory. Evanston: Northwestern University Press, 2003. HIRSCH, E.D., Jr. Introduction: Meaning and Significance. In:___. The aims of interpretation. Chicago: The University of Chicago Press, 1976. p. 1-13.

Page 197: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

195

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. Tradução e notas de Celia Benetini. São Paulo: Perspectiva, 1988. HUYSSEN, Andreas. Literatura e cultura no contexto global. In: MARQUES, R., VILELA, L.H. Valores: arte, mercado, política. Belo Horizonte: Ed.UFMG/ABRALIC, 2002. p. 8-37. INGARDEN, Roman. A obra de arte literária. 2 ed. Tradução de Albin Beau, Maria da Conceição Puga e João Barrento. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. ISER, A . Wolfgang. O fictício e o imaginário; perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1996. ______. Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-chaves da época. In:____. Lima, Luís Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2a ed. Vol. 2. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. JEFFERSON, Ann, ROBEY, David, ed. Modern literary theory; a comparative introduction. London: Batsford, 1982. JOBIM, José Luís. Formas da teoria; sentidos, conceitos, políticas e campos de força nos estudos literários. Rio de Janeiro: Caetés, 2002. ______, org. Introdução aos termos literários. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. ______, org. Palavras da crítica; tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. _____. A crítica da teoria: uma análise institucional. [1994]. In:___. A poética do fundamento. Niterói: Eduff, 1996. p. 55-66. JOHNS Hopkins guide to literary theory & criticism. Edited by Michael Groden and Martin Kreiswirth. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e Antonio Marques. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. ______. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. 2 v. Os Pensadores, 7. ______. Duas introduções à Crítica do Juízo. Organização de Ricardo Ribeiro Terra. São Paulo: Iluminuras, 1995. ______. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2002.

Page 198: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

196

______. Sobre a pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. Piracicaba, SP: UNIMEP, 1996. KAVANAGH, Thomas, ed. The limits of theory. Stanford: Stanford University Press, 1989. KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária; introdução à ciência da literatura. 4. ed. Tradução de Paulo Quintela. Coimbra: Arménio Amado, 1967-1968. 2 v. KIRCHOF, Edgar Roberto. Estética e semiótica; de Baumgarten e Kant a Umberto Eco. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. KOFF, Rogério Ferrer. O paradoxo do relativismo; possibilidades do Humanismo no pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001. Tese de Doutorado. KOTHE, Flávio R. Fundamentos da teoria literária. Brasília: EdUNB, 2002. v. 1. KRAUSS, Werner. Problemas fundamentais da teoria da literatura. Lisboa: Caminho, 1989 [1968]. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1975. KURZ, Robert. O fantasma da arte. Folha de São Paulo. São Paulo, 4 abr. 1999. Disponível em: <http://www.uol.com.br/fsp/mais/fs04049906.htm>. Acesso em: 15 mar. 2002. LAMBROPOULOS, Vassilis, MILLER, David Neal, org. Twentieth Century literary theory; an introductory anthology. Albany: State University of New York Press, 1987. LEAVIS, Frank R. Literary criticism and philosophy. In:___. The common pursuit. London: Chatto & Windus, 1953. p. 211-222. LIMA, Luís Costa. O controle do imaginário; razão e imaginação nos tempos modernos. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. ________. Quem tem medo de teoria? In:___. Dispersa demanda; ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. ______. Estruturalismo e teoria da literatura; introdução às problemáticas estética e sistêmica. Petrópolis, RJ: Vozes, 1973. ______. Mímesis; desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ________. Poesia e crítica (um depoimento). In:___. Pensando nos trópicos; Dispersa

Page 199: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

197

Demanda 2. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 14-25. ______. Introdução geral: O labirinto e a esfinge. In:___, sel., introd. e rev. técnica Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. p. 9-41. ______. Nota introdutória. In:___, sel., introd. e rev. técnica. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. V. 1, p. 1-3. ______. Nota à 3a edição. In:___, sel., introd. e rev. técnica. Teoria da literatura em suas fontes. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. V. 1, p. 7-8. LITERARY theory in the University: a survey. New Literary History. Charlottesville: The John Hopkins University Press, XIV, (2):409-451, winter/1983. LONGINO. Do sublime. Introdução e notas de J. Pigeaud. Tradução Filomena Hirata. São Paulo: Martins Fontes, 1996. LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Estampa, 1978 [1976]. LUCY, Niall. Postmodern literary theory; an introduction. Oxford: Blackwell, 1997. LUKÁCS, Georg. Marxismo e Teoria da Literatura. Seleção e tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. MAGNE, Augusto. Princípios elementares de literatura; teoria literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935. MAKARYK, Irena, ed. Encyclopedia of contemporary literary theory; approaches, scholars, terms. 2 v. Toronto: University of Toronto Press, 1993. MARQUES, R. & VILELA, L.H. Valores: arte, mercado, política. Belo Horizonte: Ed.UFMG / ABRALIC, 2002. MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. 2 v. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. MEGALE, Heitor. Elementos de teoria literária; ensino de 2o grau. 2. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1975. MEIRA, Cécil. Introdução ao estudo da literatura; curso superior. 3. ed. revista e aumentada. Belém, PA: Imprensa Universitária, 1965. MILLER, J. Hillis. The function of literary theory at the present time. In:___. Theory now and then. New York: Harvester Wheatsheaf, 1991. p. 385-393. MITCHELL, W.J.T., ed. Against theory; literary studies and the new pragmatism. Chicago: University of Chicago Press, 1985.

Page 200: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

198

MOHANTY, Satya P. Political criticism and the challenge of otherness e On situating objective knowledge. Literary theory and the claims of history; postmodernism, objectivity, multicultural politics. Ithaca: Cornell University Press, 1997. p. 116-197. MONTENEGRO, Pedro Paulo. A teoria literária na obra de Araripe Júnior. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974. MORA, Jose Ferrater. Dicionário de filosofia. Tradução de Roberto Leal Ferreira e Álvaro Cabral. 3. ed. São Paulo : Martins Fontes, 1998. NATOLI, Joseph, ed. Tracing literary theory. Chicago: University of Illinois Press, 1987. NEWTON, K. M. Introduction. In:___., ed. Twentieth-century literary theory. New York: St. Martin’s Press, 1988. p. 1-17. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada; história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2000. NUNES, Benedito. Introdução à filosofia da arte. 5. ed. São Paulo: Ática, 2001. OLIVA, Alberto. Kuhn: o normal e o revolucionário na reprodução da racionalidade científica. In: CARRERO, Vera Porto, org. Filosofia, história e sociologia das ciências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 71-97. OLSEN, Stein Haugom. The end of literary theory. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. OSEKI-DÉPRÉ, Inês. A propósito da literariedade. São Paulo: Perspectiva, 1990. PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Tradução de Maria Helena Nery Garcez. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. PARRINDER, Patrick. The failure of theory; essays on criticism and contemporary fiction. Brighton: Harvester, 1987. PASCAL, G. O pensamento de Kant. Introdução e tradução de Raimundo Vier. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. PESSOTTI, Isaias. Aqueles cães malditos de Arquelau. 4a ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2001 [1993]. PINTO, Paulo Roberto Marguti. Introdução à lógica simbólica. Belo Horzionte: Ed.UFMG, 2001. PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1974.

Page 201: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

199

______. et al. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. PRENDERGAST, Christopher. The order of mimesis; Balzac, Stendhal, Nerval, Flaubert. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. PROUST, Marcel. Contre Sainte-Beuve; notas sobre crítica e literatura. Tradução de Haroldo Ramanzini. São Paulo: Iluminuras, 1988. PUENTE, Fernando Rey, org. Os filósofos e a mentira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. REGNER, Anna Carolina. Feyerabend/Lakatos : “adeus à razão” ou construção de uma nova racionalidade?. In: CARRERO, Vera Porto, org. Filosofia, história e sociologia das ciências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999. p. 99-120 RICHARD, André. A crítica de arte. Tradução de Maria Salete Bento Cicaroni. São Paulo: Martins Fontes, 1988. RICOUER, Paul. Entre retórica e poética: Aristóteles. In:___. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 2000. RICHTER, David, org. Falling into theory; conflicting views on reading literature. Boston: Bedford Books of St. Martin’s Press, 1994. ROCHA, João Cezar de Castro. Entre a heurística e a hermenêutica: a reflexão de W. Iser como alternativa à história literária. In:___. (org.) Teoria da ficção: indagações à obra de W. Iser. Tradução de Bluma W. Vilar e J. C. C. Rocha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p. 32-47. ROGER, Jérome. A crítica literária. Tradução de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro, DIFEL, 2002. ROITMAN, Ari, org. O desafio ético. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Organização de Cristina Magro e Antônio Marcos Pereira. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2000. RYAN, Michael. Literary theory; a practical introduction. Oxford: Blackwell, 1999. SALTER, F. K., ed., Risky Transactions. Trust, Kinship, and Ethnicity. New York: Berghahn, 2002. SAMUEL, Rogel, org. Manual de teoria literária. 2a ed. Petrópolis, Vozes, 1985. ______. Novo manual de teoria literária. 2a ed. Petrópolis: Vozes, 2002. SARLO, Beatriz. O lugar da arte. In:___. Cenas da vida pós-moderna. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. p. 123-158.

Page 202: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

200

SARTRE, Jean-Paul. O que é a literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 1989 [1948]. SCHILLER, F. A educação estética do homem. Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. Introdução e notas de Márcio Suzuki. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995. SHUSTERMAN, R. Vivendo a arte; o pensamento pragmatista e a estética popular. São Paulo: Ed. 34, 1998. SELDEN, Raman. A reader’s guide to contemporary literary theory. Lexington: The University Press of Kentucky, 1989. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar. Teoria da literatura. 1. ed. Coimbra: Almedina, 1968. ______. Teoria da literatura. 3. ed. Revista e aumentada. Coimbra: Almedina, 1991. V. 1. ______. Teoria da literatura. 8. ed. Coimbra: Almedina, 1991. V. 1. ______. Teoria da literatura. São Paulo, Martins Fontes, 1976. ______. Teoria e metodologias literárias. Lisboa: Universidade Aberta, 1990. SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de pós crítica. Cadernos de Pesquisa. Belo Horizonte: NAPq/FALE/UFMG, 20:1-110, nov. 1994. SOUZA, Roberto Acízelo de. Estudos literários: objetos, disciplinas, instrumentos. Rio de Janeiro: UERJ, 2003. (Pré-publicação) ______. Formação da teoria da literatura. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico; Niterói: EdUFF, 1987. ______. O império da eloqüência; retórica e poética no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: EdUERJ; Niterói: EdUFF, 1999. ______. Teoria da Literatura. In: JOBIM, José Luís, org. Palavras da crítica; tendências e conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 367-389. ______. Teoria da Literatura. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991. STRELKA, Joseph, ed. Literary Theory and Criticism; festschrift in honor of René Wellek. New York: Peter Lang, 1984. TAVARES, Hênio. Teoria literária. 12. ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 2002. TRINGALI, Dante. A arte poética de Horácio. São Paulo: Musa Editora, 1993.

Page 203: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

201

TRIVINHO, Eugênio. O mal-estar da teoria; a condição da crítica na sociedade tecnológica atual. Rio de Janeiro: Quartet, 2001. TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética. Tradução do grupo de doutorandos do curso de pós-graduação em Filosofia da Universidade do Rio Grande do Sul. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. TYSON, Lois. Everything you wanted to know about critical theory but were afraid to ask e Gaining an overview. Critical theory today; a user- friendly guide. New York: Garland, 1999. p. 1-11; 423-430. VALÉRY, Paul. Discurso sobre a estética. In: LIMA, Luiz Costa, org. Teoria da literatura em suas fontes. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. p. 7-25. VARGA, A. Kibédi et alii. Teoria da literatura. Lisboa: Editorial Presença, s.d. [1981]. WALKER, R. Kant e a lei moral. Tradução de Oswaldo Giacóia Junior. São Paulo: Ed. UNESP, 1999. WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2001. WELLEK, René. Conceitos de crítica; introdução e organização de Stephen G. Nichols Jr. Tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Cultrix, s.d. ______. & WARREN, Austin. Teoria da literatura. Tradução de José Palla e Carmo. 5. ed. [Lisboa]: Europa-América, s.d. ______. Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1942?].

Page 204: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 205: TEORIA DA LITERATURA - Livros Grátislivros01.livrosgratis.com.br/cp100329.pdf · Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina,

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo